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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE histórias e poderes de um conceito Gustavo Manoel da Silva Gomes Recife 2013 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE Histórias e poderes de um conceito Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social da Cultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco como requisito parcial para conclusão do Curso de Mestrado em História Social da Cultura Regional Orientadora da Profª Drª Lúcia Falcão Barbosa Recife 2013 2 Ficha catalográfica G633c Gomes Gustavo Manoel da Silva A cultura afrobrasileira como discursividade histórias e poderes de um conceito Gustavo Manoel da Silva Gomes Recife 2013 183 f il Orientadora Lúcia Falcão Barbosa Dissertação Mestrado em História Social da Cultura Regional Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de História Recife 2013 Referências 1 História 2 Cultura afrobrasileira 3 Intelectuais 4 Discursividade 5 Poder I Barbosa Lúcia Falcão orientadora II Título CDD 981 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO PRÓREITORIA DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE histórias e poderes de um conceito DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ELABORADA POR GUSTAVO MANOEL DA SILVA GOMES APROVADA EM 08022013 BANCA EXAMINADORA Profª Drª Lúcia Falcão Barbosa Orientadora Programa de PósGraduação em História UFRPE Profº Drº Wellington Barbosa da Silva Programa de PósGraduação em História UFRPE Profº Drº Moisés de Melo Santana Departamento de Educação UFRPE 4 DEDICATÓRIA A todas as cidadãs e cidadãos brasileiros que desejam construir um mundo onde todas as pessoas sejam compreendidas e aceitas da forma como são Pela liberdade da comunidade negra à qual represento Por uma nova consciência sobre a identidade cultural afrobrasileira 5 AGRADECIMENTOS Este espaço de minha escrita serve para reconhecer a atuação de pessoas cruciais à efetivação de todo esse processo formativo a quem faço questão de tornar públicos os meus agradecimentos A minha mãe Edneide Borges mulher forte e guerreira que viveu as agruras de uma mãe solteira numa sociedade machista classista e racista esforçandose para criar me e darme o melhor que pudesse Com ela agredeço muito o empenho da minha estimada avó Maria dos Anjos carinhosamente chamada de Vó Fia Família é um bem precioso que nos dá suporte Agradeço a toda ela em especial aos meus afilhados e muitos sobrinhos sempre atentos e dispostos a convidarme para brincar Até quando não posso Agradeço imensamente ao Luiz Domingos Omomilewá o filho da beleza das águas Há cinco anos uma figura essencial na minha vida Companheiro sempre atento dedicado terno e muito paciente cuja presença em minha vida se torna cada vez mais imprescindível Ele me ajudou muitíssimo neste período do mestrado O amigo Eduardo Lima um irmão atento brincalhão calmo e conselheiro que sempre tem me ajudado muito As amigas e amigos negras e negros da UFRPE que me inspiram sempre pela postura militância apoio e inspiração estética nesta instituição Viviane Aquino Renata Mesquita Roberta Paula Marcone Souza Laís Neves Luiz Domingos Pallomma Dármea Vanessa Marinho Vivenciamos juntos uma negritude linda ativa e inteligente na universidade pública Agradeço bastante a minha orientadora a Profa Dra Lúcia Falcão Amiga companheira de leituras discussões tangos e sambas Alguém com quem compartilhei segredos sorrisos esperanças e muito trabalho Ela tem dado tons ao mesmo tempo pulsantes e delicados ao meu desenvolvimento intelectual Aos professores da UFRPE Sandra Melo e Carmi Ferraz que me iniciaram cientificamente nas regras da pesquisa acadêmica Ao apoio respeito e incentivo dos professores Juliana Andrade João Morais Maria Auxiliadora Denise Botelho e Claudilene Silva a professora da UFPE Thereza Didier Registro um agradecimento especial ao professor Tiago de Melo Gomes que tive o prazer de conhecer melhor depois buscando seus conselhos orientações e empréstimo de livros raros sobre meu tema de pesquisa Ele tornouse uma pessoa essencial nesta minha caminhada Mestre 6 com quem ao lado do Eduardo conversei aprendi sorri e por vezes bebi algumas boas cervejas Agradeço imensamente ao respeito profissional a confiança e a afeição com que sempre me trataram os professores Wellington Barbosa e Moisés Santana Aceitaram compor a banca para minha argüição pública nesta fase tão importante da minha vida Pelo mesmo motivo agradeço também ao professor José Bento do curso de História da UFPE Todos esses profissionais são figuraschaves na minha formação humana e não apenas profissional Agradeço imensamente aos mestresamigos que ajudaram neste processo Martha Rosa Gian Carlo e Sandro Vasconcelos que me ajudaram com documentos dicas e doses de ânimo Agradeço com muito carinho a Yalorixá Fátima de Oxum e ao babalorixá Genivaldo de Oxum Cada um em momentos diferentes ao longo desses dois anos de mestrado me ajudou quando precisei de socorro espiritual Obrigado Sou também muito grato ao meu orixá meu pai Logunedé O príncipe dos orixás senhor das pedras preciosas da beleza e da prosperidade do amor das artes e de tudo o que é belo e encantador no mundo Ele é o dono do meu destino Escolheume quando nasci Está comigo me fazendo brilhar neste mundo Loci Loci Logun É com profunda satisfação que agradeço a uma família muito querida que tenho Uma família que conquistei devagarzinho e que preenche muito o meu coração a família do AFOXÉ OXUM PANDÁ Povo lindo e arretado sem o qual não consigo viver bem Agradeço na pessoa de meu presidente Genivaldo Barbosa Lemos e minha diretora a guerreira Sandra Guerra Em nome deles meus queridos irmãos do afoxé sintamse todas e todos recebendo beijos sinceros e carinhosos no coração Saibam que vocês me acompanharam também neste trabalho A todas e todos meu mais sincero e gostoso MUITO OBRIGADO 7 SUMÁRIO Resumo8 Resumen9 Apresentação10 Introduzindo uma problemática historiografia para a descolonização do conceito de cultura afrobrasileira no ensino de história16 CAPÍTULO 1 CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO discursividades negociadas na emersão do Movimento Negro brasileiro35 11 A identidade negra entre textos sons cores e gestos o movimento negro como contraprojeto de Estado brasileiro36 CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira72 21 A presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afro brasileira como discursividade73 212 Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afro brasileira77 213 Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira88 214 Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira104 CAPÍTULO 3 A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO a historiografia o ensino de história e o novo compromisso político do estado brasileiro119 31 As novas discursividades na construção do conceito de cultura afrobrasileira a narrativa histórica como instrumento assumidamente político120 312 Peter Fry e Carlos Vogt a dinâmica cultural e a cultura afrobrasileira repensada123 313 Robert Slenes a história cultural e a cultura afrobrasileira vista por dentro132 314 O MNU seu conceito de cultura afrobrasileira e o ativismo negro na construção de um novo currículo para o Ensino de História143 CONSIDERAÇÕES FINAIS168 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS175 8 RESUMO Em 2003 o Estado brasileiro sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o Ensino de História da África e da Cultura AfroBrasileira Hoje parece haver um consenso da relevância política cultural e social deste ato bem como da necessidade de realizar atividades que concretizem os princípios da referida Lei Esta dissertação busca reconstruir alguns percursos históricos que respaldaram esta legislação a partir das produções históricodiscursivas do conceito de cultura afrobrasileira elaboradas por intelectuais da academia e dos movimentos sociais negros enquanto projetos políticos de reorganização da identidade nacional Nosso propósito foi promover uma reflexão crítica aprofundada sobre as implicações políticas de cada versão conceitual da cultura afrobrasileira que pode ser assumida no Ensino de História Neste trabalho tomamos Edward Said como referencial teóricometodológico ao ponderar a perspicácia política na produção intelectual que se propõem a discutir identidades culturais Neste sentido analisamos os perfis dos sujeitos negros os cenários as situações sociais e as práticas culturais negras selecionados para compor as narrativas desses intelectuais ao mesmo tempo em que refletimos sobre as implicações políticas de cada conceituação de cultura afrobrasileira Eni Orlandi é um referencial da análise do discurso que nos permite enxergar o conceito de cultura afrobrasileira como uma discursividade um conceito aberto às diferentes significações negociadas e assumidas por distintos interlocutores em contextos e com propósitos políticos específicos Tomamos como corpus de análise obras historiográficas que inauguraram paradigmas interpretativos sobre a cultura afro brasileira relatos orais de militantes negros relatórios Carta de Princípios e Programa de Ação do MNU além de legislação específica que versa sobre o ensino de história e cultura afrobrasileira A investigação nos fez perceber que ao longo do século XX intelectuais de diferentes momentos e com distintos propósitos observaram analisaram classificaram e definiram a identidade cultural negra indicando os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira em meio à cultura nacional Eles não só reforçam uma tradição conceitual de um campo de estudos como também reconfiguraram limitaram e atualizaram de forma generalizante a cartografia cultural dos afrodescendentes Ao realizar uma análise históricodiscursiva dessas produções intelectuais percebemos que conceitualmente o campo da cultura afrobrasileira é um espaço de mediação de poderes políticos que é reconfigurado a cada instante sugerindo orientações e ações cotidianas às pessoas comprometidas com determinadas perspectivas políticas fato que se reflete também no currículo do Ensino de História PALAVRASCHAVE História Cultura AfroBrasileira Intelectuais Discursividade Poder 9 RESUMEN En 2003 el gobierno brasileño promulgó la Ley N 10639 a lo cual hizo de la enseñanza de la historia africana y Cultura AfroBrasileña una obligatoriedad en las escuelas Hoy en día parece que hay un consenso de las cuestiones políticas culturales y sociales de esta ley así como la necesidad de realizar actividades que pongan en práctica los principios de la Ley Este ensayo intenta reconstruir algunas rutas históricas que apoyaron esta legislación a partir del concepto histórico de las producciones discursivas y culturales afrobrasileñas elaborados por los intelectuales de la academia y los negros de los movimientos sociales con el objetivo de reorganización política de los proyectos de la identidad nacional Nuestro objetivo ha sido desarrollar el pensamiento crítico sobre las implicaciones políticas de cada versión del concepto africanobrasileño cultural que puede suponer para la enseñanza de la Historia En este trabajo tomamos Edward Said como teórico y metodológico por su perspicacia política de la producción intelectual que proponemos a discutir sobre las identidades culturales En este sentido se analizaron los perfiles de los sujetos de raza negra escenarios situaciones sociales y las prácticas culturales negras seleccionadas para componer los relatos de estos intelectuales mientras reflexionamos sobre las implicaciones políticas de cada conceptualización de la cultura afrobrasileña Eni Orlandi es un marco de análisis del discurso que nos permite ver el concepto de la cultura afrobrasileña como un discurso un concepto abierto a diferentes significados negociados y asumidos por los diferentes interlocutores en contextos específicos y con fines políticos Tomamos como el análisis del corpus obras históricas que abrieron paradigmas interpretativos sobre los afrobrasileños y su cultura historias orales de militantes negros los informes la Carta de Principios y Programa de Acción de MNU y la legislación específica que se ocupa de la enseñanza de la historia y la cultura africanabrasileña Percibimos con la investigación que a lo largo del siglo XX los intelectuales de distintas épocas y con distintos propósitos han observado analizado clasificado y definido la identidad cultural negra indicando los lugares simbólicos de la cultura afrobrasileña a través de la cultura nacional Ellos no hicieron sino reforzar una tradición de estudios del campo conceptual así como reconfigurar actualizar resumiendo los estudios a la generalización de la cartografía cultural de origen africano Mediante la realización de un análisis histórico de estos intelectuales y sus producciones discursivas hemos visto que conceptualmente el campo de la cultura afrobrasileña es un espacio para la mediación del poder político que se pone a cero a cada momento que sugiere lineamientos y acciones cotidianas de personas comprometidas con ciertas perspectivas políticas e eso también se refleja en el plan de estudios de la enseñanza de Historia PALABRAS CLAVE Historia Cultura AfroBrasileña Intelectuales Discurso Poder 10 APRESENTAÇÃO Muleque muleque quem te deu este beiço assim tão grandão Teus cabelos de pimenta do reino Teu nariz essa coisa achatada Muleque muleque quem te fez assim Eu penso muleque que foi o amor1 CENA 1 Manhã ensolarada Uma escola católica no bairro de Apipucos no Recife Nela grande movimentação de jovens fardados voltando ainda muito animados do recreio Conversavase sobre as paqueras os flertes as fofoquinhas as novelas os shows etc Todos os adolescentes sentiam a vida pulsante e queriam ser cada um o mais belo dos belos o mais popular dos populares e o mais poderoso de todos De repente um amontoado de gente em torno da parede no corredor Empurra empurra Ansiedade risinhos De que se tratava Era uma eleição feita pelos alunos da turma mais velha da escola a 8ª série para evidenciar os alunos considerados os mais e os menos bonitos da classe O cara branco parecido com o ator de Malhação foi eleito o mais bonito Um aluno que se dizia moreno foi apontado pela turma como negro sendo eleito o menos afeiçoado de todos Os colegas de classe fizeram questão de explicarlhe entre um riso e outro que seu tipo de cabelo seu nariz e bocas largos além de sua pele escura haviam influenciado o resultado CENA 2 Anos depois Noite de domingo Céu estrelado e muito calor No Mercado Eufrásio Barbosa em Olinda uma festa No palco o Afoxé Oxum Pandá Entre uma bela música e outra palavras de valorização da negritude Você pode você é lindo negro O público delira Uma injeção de ânimo que mexe com a cabeça Um jovem negro fica encantando com tudo aquilo as cores amarela branca e dourada da deusa 1 TRINDADE Solano O Poeta do Povo SP Cantos e Prantos Editora 1999 11 Oxum o ritmo inebriante dos instrumentos os movimentos dos bailarinos a alegria do público Aquilo causava sucessivos arrepios Olhos cheios dágua o show continua emanando axé Na memória repetiase Você pode você é lindo negro CENA 3 Noites de terça e quintafeira Calor bom da primavera Um grupo de estudantes universitários do curso de Licenciatura em História da UFRPE cursa a disciplina História e Cultura AfroBrasileira São muitas as velhas novidades que estavam escondidas pela tradicional ótica ocidental Redescobriamse muitas coisas importantes das quais não se imaginavam que existissem na história da humanidade Um dos alunos se repensa enquanto negro Aquilo tudo é muito importante Seus referenciais são reconstruídos mesmo que o professor da disciplina não saiba que o processo está acontecendo Durante as aulas afloravam as memórias afetivas que aquele jovem tinha das idas aos candomblés dos quais tanto gostava e com os quais se encantava Ele se repensava enquanto intelectual e se propunha a se tornar pesquisador desse desafiador campo da História e da Cultura AfroBrasileira Esta decisão traria marcas éticas e estéticas para a sua vida CENA 4 Manhã quente no Recife Um jovem professor negro entra na sala de aula do Ensino Médio numa escola privada Neste dia ele calçava alpercatas brancas e vestia uma calça branca e uma bata de origem marroquina estampada de azul e branco com bordados acobreados Demonstrava estilo personalidade requinte com simplicidade e afirmava uma ideia de afrodescendência O professor deseja bom dia Apaga as anotações que outro professor deixara no quadro Virase para a turma Apresentase e começa a aula O tema As origens da Filosofia No final da aula três alunas e um aluno se dirigem ao professor Parecem ter gostado do que ouviram O aluno chega a elogiar mais de três vezes a aula do professor parecendo nem ele mesmo acreditar no que ouvira aqueles cinqüenta minutos O professor diz já ter entendido que o aluno gostou e pergunta qual o motivo da insistência na admiração É que eu pensei que o senhor fosse um professor bem relaxado por causa do seu estilo Sabe como é esse cabelo essa roupa Eu pensei esse cara deve ser artista também um professor bem louquinho ou relaxado 12 O que estas cenas têm em comum A presença insistente de um jovem negro que tenta afirmarse num mundo que em vários momentos o nega Este jovem sou eu Gustavo Gomes E esta pequena apresentação trata de uma das faces de minha experiência de vida cujo recorte temático é a relação histórica que tenho reconstruído de pertencimento a minha etnicidade Nesta história as instituições escolares e os grupos culturais ocupam um papel central a partir dos quais minha identidade foi sendo repensada e reconstruída partindo de diferentes níveis de reflexão e ação De minha própria experiência enquanto cidadão negro brasileiro pude perceber o quanto estão imbricadas as relações entre educação cultura política e identidade No amadurecimento desta percepção eu tive sede e tive fome Mas eram sede e fome de livros de música de roupas de penteados de alegrias e de argumentos Foi assim que me aproximei de algumas instituições como o Núcleo da Cultura AfroBrasileira da Prefeitura do Recife os Núcleos de Estudos AfroBrasileiros da UFRPE e da UFPE de ativistas negros de vários perfis das agremiações carnavalescas negras dos terreiros de candomblé etc Foi assim que eu ingressei naquele povo que me seduziu e me deu esperanças o Afoxé Oxum Pandá Instituição muito importante na minha vida pois me possibilita viver a militância política negra um pouco da religiosidade cadomblecista e o exercício estético da dança dos orixás A permanência neste afoxé no qual hoje componho a diretoria e coordenação da dança me fortaleceu muito enquanto pesquisador da cultura afrobrasileira Obrigado mãe Oxum Ora yê yê No entanto para além de pesquisador eu sempre busquei formas múltiplas de intervenção social Ajudei a criar na universidade o Grupo de Percussão e Danças Afro Brasileiras Obá Okê para alunos da UFRPE e membros da comunidade circunvizinha à universidade Sempre fui apaixonado pelas coisas belas pelas interações estéticas Porém a minha preocupação maior esteve voltada aos pensamentos representações e julgamentos que pairam na sociedade Como narrei eu mesmo fuisou vítima de situações desse tipo em vários momentos da minha vida Ora da mesma forma que aquele aluno questionou previamente a minha capacidade intelectual e profissional outros professores e até gestores também o fizeram O meu cabelo entrançado estilo Rastafári já foi por várias vezes critério para eu perder uma vaga de emprego como professor Provavelmente eu não era compreendido como um bom exemplo para certas instituições O que imaginavam de mim eu sei bem mas prefiro me abster de demarcar estas paginas com passagens tão desagradáveis Da mesma forma 13 muitas pessoas quando me veem pelas ruas ou mesmo nas universidades onde sou chamado para compor mesasredondas palestrar ou ministrar cursos as pessoas que me veem pela primeira vez sempre perguntam se eu sou músico artista atleta ou qualquer outro profissional mas nunca conseguem olhar para mim pela primeira vez e imaginar um educador um historiador um pesquisador um escritor etc Um mestre em história então Não quero dizer com isso que as produções artísticas e desportivas estejam destituídas de inteligência e não realizem complexas operações mentais Não é isso Como disse sou bailarino também Mas entenda quando as pessoas perguntam o que sou e o que faço partem de pressupostos que me enquadrarão em único lugar e preferencialmente um lugar que não lhes pareça muito inteligente ou sério Louquinho ou relaxado foram os termos que aquele aluno expressou com sinceridade enquanto muitos só pensaram e preferiram omitir Sobre o que quero falar especificamente Sobre as implicações políticas que as representações sociais exercem nas relações sociais cotidianas de pessoas negras Um penteado um estilo de roupa ou qualquer outro símbolo pode ser carregado de sentidos políticos para uns mas pode ser encarado como algo grosseiro feio ou inconfiável por outros Assumir um perfil estético é ativar uma gama tão grande de significações possíveis que um indivíduo pode ser encurralado culturalmente politicamente social e economicamente Empregos podem ser negados a fala pode não ganhar credibilidade social a confiança política pode ser negada Por que o Brasil nunca elegeu um presidente negro Por que nunca houve um candidato com este perfil ou por que os brasileiros ainda não aprenderam a confiar politicamente num negro Tudo isso tem a ver com educação Não apenas doméstica mas também escolar Por isso minha preocupação foi trabalhar enfaticamente a formação de professores para o ensino de história e cultura afrobrasileira Desmistificar preconceitos recontar histórias pluralizar discursos e memórias abrir caminhos para novas identidades mais do que um exercício intelectual consistiu num ato político Esse tema de ensino aprendizagem não deve jamais ser reduzido apenas às crianças negras tampouco apenas às brancas ou de outros grupos étnicos Todos precisamos nos conhecer melhor mutuamente compreendendonos No início desta minha empreitada sobre a história e a cultura afrobrasileira eu estava quase cego de tanta euforia Quanto mais bebia e comia mas sede tinha dos conhecimentos específicos e tudo o que me chegava pelos sentidos do corpo viravam temas e materiais para aulas e cursos de formação 14 Aí vieram a formatura em Licenciatura em História pela UFRPE e a especialização em História e Cultua Afrobrasileira pela UNICAP Após a formatura passei um curto tempo desempregado procurando escolas onde pudesse dar aulas A busca acabou quando passei num concurso para professor substituto do Departamento de Educação da UFRPE Naquela instituição pública fui aceito pela minha competência e o visual que carrego não era interpretado de forma negativa Agora era colega de trabalho de meus estimados professores e com o salário recebido investi no curso de especialização Continuava pois a insistir em discutir na formação de professores temas como Educação das Relações ÉtnicoRaciais e História e Cultura Afrobrasileira Os trabalhos realizados eram bastante instigantes mas como historiador que sou uma coisa intrigavame Eu vivia na euforia de um presente contínuo do processo vivenciava a fase da concretização da Lei nº 1063903 e a urgência de efetivála através de práticas diversas de ensino No entanto eu precisava compreender o processo histórico conflituoso e promissor de construção daquele marco legal Foi aí que me lancei à seleção do Mestrado em História na UFRPE e em Educação na UFPE Passei nas duas seleções mas preferi ficar na UFRPE para continuar no campo da História A minha proposta investigativa porém não se limitava a narrar linearmente o surgimento da Lei como uma sucessão de documentos legislativos que instituem obrigações Eu tentei entender epistemologicamente as múltiplas recriações do conceito de cultura afrobrasileira para refletir sobre suas implicações políticas Que noções e representações da identidade cultural negra perpassam as cabeças das pessoas e fazem com elas tomem determinadas atitudes perante alguém que assume uma identidade e um conjunto de práticas culturais negras Esta busca foi um esforço intelectual de enxergar a longevidade de práticas e representações instituídas socialmente e atualizadas a cada dia Foi na verdade uma busca de entender o que se passou em vários momentos comigo mesmo Neste sentido é importante dizer que como este trabalho se trata de uma proposta políticointelectual que sugere a existência de outras formas de pensar organizar discursar e narrar não nos pareceu lógico seguir uma linearidade na escrita Estar ainda que timidamente promovendose outras experiências narrativas que mexa com a organização temporal dos fatos mas sem sacrificar a produção de sentidos Foi desta maneira que cheguei aqui percorrendo caminhos tortuosos misteriosos e igualmente sedutores Encontrando livros textos fontes músicas danças denúncias e muitas 15 esperanças Termino este texto pelo começo Pela narrativa do começo de uma nova fase em minha vida CENA 5 Fevereiro de 2013 Manhã ensolarada de verão A cidade do Recife está eufórica É véspera do desfile do Galo da Madrugada Em todos os bairros da cidade as festinhas já começaram Pelas ruas e estabelecimentos comerciais muitas cores brincadeiras gargalhadas músicas e danças Às 900 horas da manhã na UFRPE um ritual se repete Um jovem professor negro está diante de uma banca de doutores para sua defesa pública da Dissertação de Mestrado Na platéia a família militantes negros amigos estudantes universitários de vários níveis yalorixás e babalorixás integrantes de grupos culturais e a presença ilustre do Afoxé Oxum Pandá O nome deste professor Gustavo Gomes Expectativas a mil Lá fora os esperam as bênçãos dos orixás e as alegrias de uma boa cerveja dos tambores e clarins 16 Introduzindo uma problemática historiografia para a descolonização do conceito de cultura afrobrasileira no ensino de história Pensar a história entendida como a experiência dos seres humanos no tempo é também um convite para pensar a historiografia compreendida não simplesmente como um conjunto de fundamentos e métodos que regem a pesquisa e a escrita da história mas também como um campo de construção discursiva sobre as histórias vividas Hoje podemos afirmar isso graças aos variados movimentos de revisão teóricometodológica pelos quais passou a ciência histórica no último século Nesse processo de maturação os debates que reoxigenaram a historiografia hodierna ampliaram perspectivas temas objetos fontes conceitos e métodos que reconhecidamente passaram a compor o repertório do ser e do fazer historiográficos Cada vez mais para além dos sujeitos que analisamos em nossas pesquisas nós historiadores nos descobrimos como sujeitos da linguagem descobrindo também que os significados por nós produzidos são suscetíveis a análises críticas O discurso e suas estratégias de produção circulação e apropriações se tornaram objetos de estudo da História No entanto o que estamos chamando de discurso neste trabalho Para pensar algumas relações entre história e discurso tomamos alguns referenciais como Michel Foucault Michel de Certeau e Eni Orlandi Autores que propõem perspectivas argumentativas em certos pontos divergentes mas concordando que as relações de poder interferem nas construções discursivas Num primeiro momento a perspectiva da análise do discurso em Michel Foucault2 tornouse importante por reconhecer a historicidade dos conceitos Contudo ao relacionar essa historicidade com o seu conceito de Poder Foucault constrói diferentes valorações entre indivíduo e estruturas sociais Nele o poder assume uma abstração tamanha que parece se tornar o único sujeito propulsor da história As ações das pessoas comuns estão sempre determinadas pelo poder disciplinador institucional Em Foucault o poder se apropria das pessoas enquanto as pessoas não conseguem se apropriar do poder conseguindo por vezes exercêlo apenas quando ele está disponível Em sua linha de raciocínio os discursos são práticas sociais que legitimam o poder onipresente e disciplinador apresentando camadas de significação que os mascaram sendo oriundos dele Assim os conceitos e os significados produzidos no 2 FOUCAULT M Arqueologia do Saber RJ Forense 1987 Vigiar e Punir RJ Vozes 1996 Microfísica do Poder RJ Graal 1985 17 discurso não correspondem de forma alguma à realidade daquilo a que se empenham em classificar Nesse sentido o historiador que se propusesse a analisar discursos estaria o tempo todo buscando sentidos forjados construídos por quem teve o poder de análise classificação e escrita Seria uma busca infinita daquilo que não poderíamos alcançar realmente porque não se trata da objetividade das coisas mas apenas de uma discursividade Para Foucault o discurso constrói realidades instituindo práticas sociais de opressão Já Michel de Certeau3 acrescenta o importante conceito de lugar social para entendermos essa historicidade dos discursos Um dos textos onde o autor reflete sobre as interfaces entre história e discurso traz como tema o conceito de cultura popular4 Michel de Certeau chega a afirmar que tal conceito foi forjado por uma elite para diferenciar a sua prática cultural classificada como erudita daquela feita pelas camadas populares da população Dessa forma o conceito de cultura popular legitima o poder e a dominação elitista Não seria um conceito que corresponderia objetivamente ao universo cultural dos populares e portanto não seria cabível para entender as práticas culturais das pessoas comuns Logo propõe o autor a historiografia deve abandonar o conceito de cultura popular porque ela não existe fora do poder e discurso que a desclassifica Em suma em um raciocínio parecido com o de Foucault o autor propõe que se abandone o uso de determinados conceitos porque eles são forjados por poderes e regras de dominação e não correspondem à verdade das coisas das quais se propõem a falar Em sua análise Certeau não considerou que os conceitos podem ser apropriados e ressignificados em contextos diferentes Nesse jogo de eterno faz de conta impossibilitase a construção do conhecimento histórico a partir da análise do discurso reduzindoa a mera contemplação Como propõe Carlo Ginzburg estes autores levam a historiografia a um irracionalismo estetizante 5 Em perspectiva distinta Eni Orlandi nos propõe uma noção de discurso em que não se precise abdicar da objetividade na construção do conhecimento Para ela o discurso é um jogo uma negociação ativa em que diferentes interlocutores produzem e negociam efeitos de sentidos Sua perspectiva leva em consideração que os sujeitos 3 CERTEAU Michel de A operação historiográfica In A Escrita da História Rio de Janeiro Forense Universitária 2000 4 CERTEAU Michel de A beleza do morto In A cultura no plural Campinas SP Papirus 1995 5 GINZBURG Carlo O queijo e os vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição São Paulo Companhia das Letras 2006 18 históricos estão situados em contextos específicos que são interpelados por ideologias e valores mas que também são ativos nas relações sociais e os sentidos que constroem correspondem não só aos determinantes sóciohistóricoideológicos mas também às articulações destes com os interesses de cada sujeito que produz e se apropria dos discursos É dessa maneira que preferimos pensar em discursos no plural em polissemia em jogos de poder que se concretizam a partir da negociação ativa de sentidos Os discursos são construções que significam e ressignificam os objetos as pessoas as experiências sociais e culturais mediando as relações de poder ao passo que por elas também são interpelados Eles são construções simbólicas mas não eliminam a possibilidade de objetivação do mundo e das experiências históricas Os discursos instituem práticas sociais mas não constroem realidades e sim representações6 Ponderamos que seja possível trabalhar objetivamente com os discursos como fonte para a ciência histórica Não precisamos abandonar os conceitos entendidos enquanto elementos constitutivos da discursividade pelo fato de que eles sejam forjados É preciso mapear e analisar as estratégias utilizadas em suas múltiplas reconstruções Consideramos que os discursos em sua historicidade assumem significados distintos a partir das condições de produção e das identidades assumidas pelos interlocutores que produzem e se apropriam dos discursos Como sugere a linguística no desenvolvimento da análise do discurso a investigação científica dependerá das 6 Para Denise Jodelet o ser humano cria representações a fim de se situar cotidianamente no mundo nomeandoo conhecendoo dominandoo Para a autora as representações são ao mesmo tempo aproximações e distanciamentos dos objetos ideias ou pessoas representadas São interpretações que ressignificam esses objetos transformandoos sempre em leituras de alguém em um dado momento a partir dos referenciais conceituais dos quais uma pessoa já dispõe Desta forma as representações nunca correspondem totalmente à integridade à realidade tampouco à verdade do objeto representado JODELET Denise Representações sociais um domínio em expansão In JODELET Denise org As Representações sociais Rio de Janeiro Eduerj 2002 Já Edward Said afirma que as formas de representação de algo ou alguém partem de dados do mundo material e não devem ser encaradas como meras invenções espontâneas São inventadas no sentido de que são fabricadas discursivamente a partir da seleção e organização de símbolos que produzem determinados efeitos de sentidos a fim de legitimar poderes e formas de dominação Mesmo que tais representações partam de dados materiais elas não devem ser generalizadas pois são sempre leituras que reduzem o objeto representado Elas são formas específicas de apreender algo ou alguém que possuem profundas conseqüências políticas suscetíveis à análises críticas SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 Outro conceito de representação que nos parece bastante cabível nessa discussão vem de Bordieu que considera as representações como apropriações das estruturas sociais perpetuando símbolos e poderes de hierarquização BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 Dessa forma consideramos que as representações sobre a cultura afro brasileira têm sido uma maneira específica de percepção em relação a esta que a coloca ou a desloca simbolicamente em diferentes níveis hierárquicos através de distintas intenções símbolos e efeitos de sentido Esses distintos símbolos e efeitos de sentido são compartilhados socialmente perpetuando representações que referendam não somente as estruturas sociais como também as lutas sociais dominação x exclusão produção x superação das desigualdades raciais e dominação x autonomia simbólica da identidade negra 19 questões levantadas pelo pesquisador dos materiais levantados por ele de suas finalidades e dos modos como adequa esse aporte científico à sua área do conhecimento Trabalhamos o discurso como efeito de significação movimento circulação discursividade que media as relações de poder através de negociações de sentido e recriações de símbolos que dão lógica as ações das pessoas tanto nos momentos decisivos de suas vidas como em sua cotidianidade Pensamos o discurso nessa ambivalência de funções e tomamolo como fonte para a análise das relações de poder que se estabelecem a partir das construções discursivas dos intelectuais Tomamos aqui a proposta paradigmática póscolonial de Edward Said7 Esse referencial nos ajudará a pensar os discursos construídos sobre si e sobre o outro não só como meios de construção de identidades mas sobretudo como estratégias políticas que assumem diferentes significações em contextos distintos Com este autor as relações entre discurso x poder x subjetividade x produção do conhecimento são revisadas e construídas sobre parâmetros não só teóricos mas também políticos que não negam a objetividade e o compromisso ético da história com a crítica social Num primeiro momento a proposta teóricometodológica da historiografia póscolonial nos incita a fazer um estudo críticoreflexivo sobre as estratégias de saber que construíram ao longo do tempo saberes colonizados que definem estereotipam e dominam identidades sociais No segundo momento ela nos propõe uma reflexão sobre os discursos como possibilidade de ressignificação dessas identidades assumindo outra postura política de libertação respeito e aceitação das diferenças abandonando velhas concepções reducionistas que legitimam formas de dominação de uns sobre outros A discussão proporcionada por Edward Said contempla o conflito simbólico na história ao problematizar como diversos intelectuais constroem um campo de estudos científicos buscando definir discursivamente a identidade e os lugares culturais políticos e econômicos a serem ocupados por um outro que será estudado sendo esse outro um grupo ou uma sociedade inteira Por conseguinte tomamos como parâmetro para o nosso trabalho o estudo da perspicácia observável no jogo de poder quando um intelectual cria discursos narrativas e esquemas explicativos que determinam lugares 7 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 20 políticos culturais e econômicos para uma categoria social nesta pesquisa os afro brasileiros Embasandose em Said consideramos que não há imparcialidade por parte do intelectual É interessante refletirmos sobre os modos como toda uma diversidade histórica cultural política econômica e social de vários povos negros passa a ser simplesmente desqualificada e ignorada até se formar fragmentos estereotipados de uma identidade cultural exótica Desta forma este trabalho acadêmico se coloca como um estudo que fala de discurso e poder analisando de forma contextualizada os interesses as estratégias e as consequências da construção de um campo intelectual acerca da cultura afrobrasileira Um campo que será disputado por intelectuais de diferentes instituições e perfis Um campo de estudos e levantamento de pautas políticas que busca ao longo da história compreender classificar e descrever a identidade cultural negra no Brasil a partir de seleções que preservam múltiplos jogos de intenção8 Cabe aqui explicar a noção de intelectual que utilizamos Aqui faremos referencia a três intelectuais distintos que constroem conceitos por caminhos diferentes mas complementares Uma primeira definição nos vem do Cientista Social Michel Löwy O autor nos adverte que os intelectuais constituem não uma classe mas uma categoria social Os intelectuais seriam definidos desta forma por suas relações com as instancias extraeconômicas da estrutura social e não pelo seu lugar no processo de produção econômica Sua identidade é fluida e adaptável quanto aos propósitos de diferentes classes sociais embora historicamente estejam em vários momentos mais próximos da pequena burguesia Para Löwy o que define a identidade dos intelectuais é o seu papel ideológico Quando define o conceito de intelectuais Löwy afirma que eles são produtores diretos da esfera ideológica os criadores de produtos ideológicos culturais9 Enquanto produtor imediato de ideologias e culturas os intelectuais se distinguem de outros profissionais do mercado cultural como empresários administradores ou distribuidores de bens culturais pois estes não produzem diretamente ideologias apenas as fazem circular na lógica de mercado 8 Tomamos emprestado o conceito de campo intelectual de Bourdieu pois consideramos a cultura afro brasileira como um campo de estudos disputado politicamente pelos mesmos O campo intelectual é um espaço de conflitos e lutas científicas associadas à imposição de sentidos ou de formas de classificação Nossa escolha aqui é analisar esse processo a partir de práticas discursivas alusivas à cultura afro brasileira a fim de repensar a construção das formas específicas de apreender os indivíduos negros e suas práticas culturais BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 9 LÖWY Michel Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários a evolução política de Lucács 19091929 São Paulo Lech Livraria Editora Ciências Humanas 1979 p 1 21 Para o crítico literário Edward Said10 em primeira instância o intelectual é um indivíduo que exerce um papel público na sociedade cujo trabalho se legitima pela representação que o público e ele mesmo faz de si tomando como critério de sua consciência e compromisso ético a reflexão o ceticismo a racionalidade e o juízo moral Mas enquanto indivíduo o intelectual tem uma identidade e não pode ser entendido como alguém sem rosto ou tomado por uma corporação que o desumaniza Mesmo situado em um contexto histórico e interpelado por ideologias ele imprime suas marcas próprias nas mensagens que veicula O intelectual é um ser que toma para si e é reconhecido socialmente como tal a tarefa de investigar refletir analisar classificar e explicar o mundo os objetos as pessoas a natureza o imaginário as relações entre todas essas coisas Ele é alguém que pensa discute defende ideias constrói sistemas explicativos classificatórios e institui sentidos e práticas sociais perante um tema Said considera que os intelectuais podem servir a diferentes propósitos Numa primeira acepção seriam aqueles que utilizam do seu papel no espaço público para legitimar os poderes políticos dominantes que se empenham em manter a ordem desigual nas relações de poder Numa segunda acepção os intelectuais seriam aqueles indivíduos que utilizariam do seu papel social para questionar o status quo produzir fraturas nas comunidades simbólicas nacionais perturbar a ordem reivindicar direitos políticos justiça social e interferir no reordenamento social Na primeira versão o intelectual é alguém que acomoda na segunda ele é alguém que incomoda Essa diferenciação se torna fundamental para a compreensão de que não podemos generalizar o termo intelectual como categoria atemporal É nesse sentido que Said propõe que metodologicamente situemos os intelectuais em seus contextos específicos busquemos mapear suas ideias valores e crenças e analisemos como cada um deles articula seus argumentos e recria as representações sobre o tema de que tratam Essa perspectiva faz ruir a ilusão de imparcialidade do intelectual seja ele um cientista um comunicador social ou um artista Há sempre uma ligação entre a produção do conhecimento e um posicionamento político e é sobre essa concepção que analisaremos como diferentes intelectuais se posicionaram no Brasil frente ao tema história e cultura afrobrasileira Como pensaram e definiram as identidades que emergem nessa discursividade que articula identidade x alteridade negros x não negros Que sentidos são construídos sobre essas palavras nos diferentes contextos de 10 SAID Edward Representações do intelectual as conferências Reith de 1993 São Paulo Companhia das Letras 2005 22 produção do conhecimento em que a história do Brasil será um campo discursivo disputado simbolicamente por diferentes perfis de intelectuais Da mesma forma que para Said para o sociólogo Daniel Pecáut o intelectual é um indivíduo que assume uma identidade política de produtorintérprete de ideias na organização do Estado e é reconhecido socialmente enquanto tal11 O autor estuda a construção de uma cultura política que legitimou uma intelectualidade brasileira enquanto categoria social com perfil de classe média urbana Mesmo estudando a formação e legitimação de diferentes gerações de intelectuais no Brasil respectivamente 19251940 e de 19541964 o autor no ajudar a perceber que apesar das diferentes perspectivas teóricometodológicas existem concepções e propósitos entre distintos intelectuais que formam uma coesão interna O autor explica que essa perspectiva analítica não reduz o estudo das concepções políticas intelectuais homogeneizandoas mas do contrário permite analisar criticamente a formação de representações do fenômeno político que foram fecundas o suficiente para criar uma espécie de sentido comum sobre a identidade nacional e definir o objetivos dos debates intelectuais mesmo possuindo nas origens uma multiplicidade de tendências Pecáut nos alerta para a necessidade de nos esforçarmos para perceber a partir de qual ângulo os intelectuais estavam acostumados a falar12 lembrando ainda que as diferentes perspectivas teóricometodológicas defendidas por autores diversos não consistem necessariamente em antagonismos de projetos políticos Às vezes reforçam determinadas visões do nacional Como enfatiza ruptura porém não significa esquecimento nem anulação13 É neste sentido que o autor nos propõe o conceito de Cultura Política como o ato de aderir a uma mesma concepção de formação social Desse ponto de vistaa cultura política implica que tendências diversas num primeiro momento contraditórias possam surtir de uma mesma matriz geral supõe também a difusão de um significado comum e enfim referese a formas concretas de sociabilidade e comunicação A cultura política não diz respeito portanto ao conjunto dos membros da sociedade mas é antes constitutiva da identidade de um grupo14 11 PECÁUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação São Paulo Ática 1990 12 Idem Op Cit p 18 No nosso caso perguntamos quais as semelhanças nas perspectivas de estudos sobre a cultura afrobrasileira a partir de que ângulos os intelectuais estavam acostumados a falar sobre o tema 13 Idem Op Cit p 17 14 PECÁUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação São Paulo Ática 1990 p 17 23 Este trabalho não se reduz a produzir uma história das ideias numa abordagem relativamente clássica que esteja mais preocupada em arrolar linearmente mudanças paradigmáticas ao invés de problematizar as implicações políticas dos discursos percebendo as influências que os intelectuais exercem no mundo real comunicandose a partir de sua própria ótica de poder O maior objetivo desta pesquisa de mestrado foi analisar e confrontar os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira criados por meio de enunciados que emergiram entre uma historiografia nacional hoje clássica e o Movimento Negro no Brasil a fim de mapear quais dessas concepções influenciaram nas propostas oficiais para o Ensino de História após a Lei nº 106390315 Assim tomamos como referencial teóricometodológico a análise do discurso tomando autores e suas discursividades de forma contextualizada Como propõe o próprio Said devemos considerar que os sujeitos históricos devem ser explicados contextualizados e não tomados como dados objetivos e acabados16 Os sentidos do discurso não estão somente nas palavras mas também nas relações sociais em que elas se dão Por isso compõe nossa proposta metodológica historiar esses autores e contextualizálos Nesse sentido surgem as perguntas quem fala sobre a cultura afro brasileira De onde se fala Que perspectiva é adotada para falar sobre Em que circunstancias se fala Para quem se fala Como funcionam as estratégias discursivas como metáforas comparações argumentações classificações conclusões etc Que relações existem entre quem fala e o seu contexto histórico Que projetos estão 15 A proposta de analisar e confrontar os conceitos de cultura afrobrasileira e suas representações entre os discursos dos cientistas sociais e do movimento negro deuse pelo fato de que esses foram os sujeitos cuja produção sobre o tema se deu com maior destaque Verdadeiras batalhas simbólicas em torno de um conceito que assumia diferentes acepções e por conseguinte implicações políticas Consideramos a legitimidade e a importância do Movimento Negro brasileiro para a reconstrução da historiografia nacional e também para o campo do Ensino de História em suas dimensões teóricas e práticas Como veremos em vários momentos intelectuais não negros dialogaram com o referido movimento encampando lutas políticas e intelectuais No entanto afirmar a participação dos militantes negros apenas enquanto parceria com os iluminados da academia brasileira seria um reducionismo Embora muitos militantes negros produzissem seus discursos a partir de sua prática cotidiana em suas agremiações culturais muitas das quais de caráter carnavalesco o que percebemos também é que muitos dos líderes dessa movimentação negra produziam seus novos conceitos de cultura afrobrasileira a partir da academia Eram universitários sobretudo das ciências sociais que estavam pensando reelaborando e ressignificando símbolos e efeitos de sentido ou seja novas representações sobre a cultura afrobrasileira a partir das regras de produção do discurso científicoacadêmico 16 Neste trabalho optamos por uma contextualização que enfatize mais os aspectos sociais e culturais do que os ditos propriamente políticos embora esses não deixem de ser evidenciados em nossa narrativa O que objetivamos é a ilustração de cenários e a recriação das ambiências que foram favoráveis ao surgimento de certas perspectivas sobre o conceito de cultura afrobrasileira em diferentes momentos da história do Brasil no qual foram inaugurados os paradigmas interpretativos sobre essa cultura que se tornaram clássicos 24 associados a cada fala Que implicações políticas cada fala possibilita em relação ao negro e sua cultura Destarte mapeamos as semelhanças as contradições e os confrontos entre as diferentes perspectivas conceituais propostas por diferentes cientistas sociais analisando e verificando o grau de interdiscursividade com que eles desenvolvem seus discursos e suas narrativas históricas Compreendemos aqui a interdiscursividade no sentido de Eni Orlandi como um conjunto de formulações já feitas por alguém e que são atualizadas em novos discursos Ou seja quais os sentidos que circulam e se atualizam entre a historiografia clássica nacional e o Movimento Negro brasileiro Que projetos políticos são atualizados por meio dessa interdiscursividade Diante dos discursos analisados tomamos como procedimento metodológico o que Said chamou de localização estratégica um modo de descrever a posição do autor num texto em relação ao tema sobre o qual se escreve Através disso podemos detectar a posição assumida pelos autores em relação ao que classificam como cultura afro brasileira Nas palavras do referido autor essa localização inclui o tipo de voz narrativa que ele o intelectual adota o tipo de estrutura que constrói os tipos de imagens temas motivos que circulam no seu texto todos os quais se somam para formar os modos deliberados de se dirigir ao leitor enfim de representálo ou falar em seu nome17 Buscaremos então como dados de análise discursiva nos textos que trabalharemos os perfis atribuídos aos negros os cenários e as circunstâncias históricas e sociais em que os negros aparecem nas narrativas e as práticas culturais selecionadas para representar a cultura afrobrasileira Considerando sempre que os discursos analisados não podem ser considerados como obras em si ou ainda como meros produtos dos contextos políticos mas como indícios que produzem e reproduzem ideias sobre diferentes aspectos da cultura afrobrasileira O que há em comum nestas textualidades tão diferentes as quais nos propomos a analisar Em ambos os casos a ciência histórica foi eleita como o campo de mediação de poderes de legitimação ou de combate ao racismo de ressignificação do conceito de cultura afrobrasileira A história foi transformada em metáfora da identidade negra 17 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 p 50 25 Hora depreciando subjugando e dominando simbolicamente Hora valorizando expandindo e libertando também simbolicamente Cada um desses grupos de intelectuais se propôs a estudar a experiência negra na construção da identidade cultural do Brasil e dentro de suas respectivas concepções realizaram um conjunto de operações simbólicas que construíram determinados sentidos e práticas sociais referentes aos negros e a sua cultura selecionaram observaram analisaram classificaram e organizaram em novas formas de narrativas alguns símbolos e significados da cultura afrobrasileira Essa perspectiva fez com que nos aproximássemos do nível argumentativo de Hayden White18 Este autor afirma que a produção das narrativas históricas está atrelada às subjetividades de quem as produz Para White a história é um gênero discursivo equivalente à literatura quanto às suas estratégias de formação seleção e organização de temas fontes e argumentos etc No entanto a característica mais própria da ciência histórica é que deve narrar os eventos históricos eventos que realmente teriam acontecido no passado mas que são reinterpretados no presente a partir de novas dimensões éticas e estéticas Desse modo a narrativa histórica não seria meramente um conjunto de fatos inventados com fortes doses de espontaneismo como se diz da narrativa literária Hayden White propõe uma grande importância à subjetividade e autonomia do historiador visualizandoo como um criador de sentidos a partir de fatos históricos mas que seriam fatos selecionados organizados distribuídos costurados argumentados metaforizados pela vontade do historiador Para White a narrativa histórica é uma discursividade composta de metáforas que resultam de seleções de informações históricas que se deseja veicular Embora enfatize a grande carga de subjetivismo autoral o autor não aconselha como Foucault e De Certeau que abandonemos os conceitos porque seriam unicamente forjados mas que atentemos às tensas relações de construção discursiva que compõem as narrativas históricas entendidas como representações do passado A narrativa histórica é entendida como um discurso ou seja uma rede de significações sobre o passado Não devemos portanto abandonar o conceito de cultura afrobrasileira Este é um conceito negociado discursivamente Ele assume diferentes sentidos a partir de contextos sujeitos e interesses distintos Nosso esforço é compreender os sentidos que 18 WHITE Hayden Trópicos do discurso ensaios sobre a crítica da cultura São Paulo EDUSP 1994 26 são dados a este conceito e refletir criticamente sobre as implicações políticas e intelectuais referentes a cada uma dessas conceituações pois elas vão influenciar as propostas curriculares e as narrativas construídas no cotidiano do Ensino de História19 No Brasil a preocupação científica e conceitual com o negro e sua cultura formaram um corpus livresco a partir do advento da república Em fins do século XIX os intelectuais assumiram o compromisso de pensar a nação brasileira e reorganizála Naquele contexto de mudanças institucionais precisavase analisar a população negra que não era mais escrava e fluía dentro de possíveis conceitos de cidadania em que os novos lugares a serem ocupados por essa população começavam a ser redefinidos20 Foi nesta mesma época que surgiram e ganharam fama internacional os estudos de Nina Rodrigues Já no início do século XX os estudos de Gilberto Freyre condensaram o desejo do Estado Varguista de apagar simbolicamente os conflitos e construir um discurso de harmonia mestiçagem e democracia Nestes estudos que legitimam a ordem social desigual ao passo que forjam o sentimento de uma comunidade nacional a cultura afrobrasileira é abordada segundo uma perspectiva folclorista Já nos anos 1960 com o crescimento dos debates críticas sociais e esperanças marxistas num Brasil que não conseguia mais esconder as acentuadas desigualdades sociais os estudos de Florestan Fernandes denunciam aquilo que passou a ser chamado de mito da democracia racial afirmando a existência do racismo no país Não obstante ainda pensandose em cultura tomando a cultura afrobrasileira como um campo de espetacularização e alienação política Desse modo foram definidos e desqualificados os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira lugares que se tornaram icônicos como os únicos lugares onde se poderia encontrar os afrodescendentes produzindo a sua autêntica cultura que seriam a culinária colorida e saborosa a indumentária típica e chamativa a dança selvagem e sensual a música frenética e desordenada o candomblé como um culto fetichista os contos populares e supersticiosos a escultura grosseira a sexualidade permissiva a educação folgada o vocabulário exótico21 A cultura afrobrasileira era 19 Nesta dissertação nos detemos apenas a mapear quais concepções de cultura afrobrasileira chegam aos documentos oficiais para o Ensino de História Lei 1063903 e Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 20 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 21 Como veremos no capítulo II esses são adjetivos atribuídos pelos historiadores brasileiros 27 folclorizada conceitualmente intelectualmente definida colonizada inferiorizada22 submetida Um conceito colonizado por estrangeiros pelo olhar e pela lógica branca que não compreendia nem achava que existia uma lógica cultural própria no universo cultural e nas experiências históricas negras23 Foi somente nas últimas décadas do século XX que outros intelectuais inauguram nas ciências sociais o paradigma que entende a cultura como mediadora de relações políticas Nesse contexto destacamse Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slens Usando diferentes léxicos como participação experiência etc para esses novos historiadores a cultura passa a ser um espaço criativo onde existem lutas políticas de diferentes formas na linguagem enquanto complexo sistema de conceituação e significação do mundo e nos afetos e relações interpessoais cotidianas e nos simbolismos e visões de mundo que embasam a lógica própria dessas práticas culturais afrobrasileiras Agora se pensa cultura afrobrasileira como um conjunto de articulações entre lembranças de antigas tradições culturais africanas e as novas experiências sociais e históricas impostas aos escravos no cotidiano da vida no cativeiro Para dar conta dos objetivos da pesquisa recorreremos aos precursores do pensamento sobre a cultura afrobrasileira no Brasil24 Para tanto escolhemos os textos que inauguraram paradigmas explicativos sobre a cultura afrobrasileira a partir da perspectiva histórica a saber Os africanos no Brasil escrito por Nina Rodrigues no final do século XIX sobre o paradigma da Eugenia e publicado somente em 193225 Casa Grande e Senzala publicado por Gilberto Freyre em 193326 assumidamente difusionista cultural A integração do negro na sociedade de classes publicado por Florestan Fernandes em 1964 texto clássico da Escola Sociológica Paulista referência na América Latina com grande carga marxista27 Cafundó a África no Brasil 22 Marilena Chauí afirma que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social entre atividades intelectuais e manuais e a necessidade da escolaridade para ter competência de produzir uma boa cultura CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 23 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 24 Existem intelectuais de origem estrangeira que foram inauguradores de paradigmas como o inglês Peter Fry e o estadunidense Robert Slenes 25 NINA RODRIGUES Raimundo Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 26 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 27 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 28 Linguagem e Sociedade publicado em 1996 por Peter Fry e Carlos Vogt28 que já traz uma nova concepção para se pensar a cultura afrobrasileira enxergando a cultura como um conjunto de articulações entre tradições e recriações de acordo com os novos contextos e relações sociais que os sujeitos estabelecem visão essa que é corroborada por Robert Slennes quando publica em 1999 a obra Na senzala uma flor esperanças e recordações da família escrava Brasil Sudeste século XIX29 Investigamos também as práticas dos intelectuais militantes dos movimentos negros Estes como constatamos construíam um perfil que identificamos dentro da segunda acepção de Said intelectuais que instauram uma fratura na comunidade simbólica nacional e questionam o status quo de uma sociedade racista e desigual e propõem reformulações do Estado e da sociedade nacionais Seus discursos criam uma presença que incomoda Nesse grupo de intelectuais encontramos maior pluralidade de sujeitos abarcando estudantes e professores universitários pesquisadores jornalistas lideranças religiosas artistas presidentes de agremiações carnavalescas etc Todos unidos por um novo signo a negritude positivada ressignificada por eles mesmos a partir dos anos finais da década de 1970 Esse grupo embora possuísse diversas vozes e propostas conceituais e metodológicas constituindo um verdadeiro mosaico de negritudes possíveis elege na sua militância política a luta pela construção de uma nova concepção de história e de cultura afrobrasileira Conceitos estes que tiveram um centralismo significativo na causa ao ponto de culminar na Lei nº 1063903 que torna obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos da escravidão e da cultura afrobrasileira nos currículos oficiais de ensino no Brasil Essa lei foi resultado dessa luta por meio da qual se tem buscado instituir atualmente em materiais didáticos projetos pedagógicos e práticas de ensino a história e cultura afrobrasileira Quando partimos para falar do Movimento Negro Unificado nos deparamos com a dificuldade de acesso as fontes pois se num primeiro momento o MNU não tinha estrutura física que comportasse a documentação do que produzia noutro teve de lidar com a inexistência de arquivos oficiais que guardassem os documentos pois eles não estavam dentro do circuito de grande circulação e mesmo talvez não fossem interpretados por algum acervo como interessante e digno de ser recolhido e consagrado 28 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 29 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 29 como espaço de memória Essa foi a maneira pela qual reconhecemos os documentos do MNU espaços de memória negra lugar de discursos a serem problematizados Mas que era na verdade um nãolugar oficial Não sabíamos onde encontrar ao certo pois estavam dispersas Tivemos de buscar em acervos pessoais e neste momento tivemos acesso aos acervos pessoais da historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz e da antropóloga Maria Auxiliadora da Silva Militantes negras funcionárias da Universidade Federal Rural de Pernambuco Assim conseguimos como fontes alguns relatos de diversos militantes a Carta de Princípios e os Programas de Ação do MNU o relatório do VIII Encontro de Negros e Negras do Nordeste o negro e a educação No site do Ministério da Educação MEC conseguimos documentos como a Lei nº1063903 o Parecer CNECP 032004 e a Resolução CNECP 012004 que tratam não só do estabelecimento do Ensino de História da África e da e Cultura AfroBrasileira mas das diretrizes que devem ser adotadas para a consolidação desse tema de ensino Fontes que cruzadas nos permitiram não só observar a continuidade do caráter reivindicatório do MNU e a atualização de sua proposta que articulava educação cultura política e identidade dentro de um projeto maior de reconstrução jurídica e simbólica do Estado e da sociedade brasileira a partir da perspectiva das relações étnicoraciais e combate ao racismo como também percebermos as batalhas discursivas e conceituais as redes de significação e interdiscursividade indignações e esperanças enfim os conflitos vivenciados não só no plano discursivo mas também das relações pessoais e institucionais para a efetivação da lei Retomando o pensamento de Edward Said consideramos que o discurso criado sobre si e sobre o outro sobre os lugares determinados para cada uma dessas identidades discursivas é antes a distribuição de consciência geopolítica em textos uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica mas também de toda uma série de interesses que por meios de enunciados estratégicos não só criam mas igualmente mantém o lugar cultural político social intelectual e econômico dos sujeitos representados por essas identidades expressando certa vontade ou intenção de compreender em alguns casos controlar manipular e até incorporar o que é um mundo manifestadamente diferente ou alternativo e novo Ora pensar a história e a historiografia é também pensar o ensino de história Nossa preocupação nesta dissertação é tratar o campo do ensino de história de forma 30 digna como objeto de estudo do historiador Por isso buscamos articular da forma mais responsável engajada e ética possível historiografia e ensino de história Já vimos que o século XX foi promissor para a ciência histórica que passou a ser repensada vivenciando um processo de transformação em suas bases teóricas e metodológicas Contudo nesse processo de maturação epistemológica não apenas a História em si mas também as formas como é socializada ensino de história constituíram novos campos de discussões teóricas filosóficas e metodológicas abrangendo dimensões éticas e estéticas Para a nova historiografia os documentos escritos ou não devem ser problematizados situados no tempo e no espaço e confrontados para problematizar a nossa consciência histórica pois este é o papel do historiador revisitar problematizar reler e ressocializar o saber sobre as experiências humanas no tempo No que diz respeito às discussões em torno das formas de socialização do saber histórico alguns teóricos como Seffner30 Fonseca31 Bittencourt32 Karnal33 Munakata34 Freitas35 Carretero36 alertam para a necessidade de se incentivar o desenvolvimento da área do Ensino de História não somente como prática social exercida no cotidiano de sala de aula mas também como área de investigação científica vivenciada nas universidades Já que o saber histórico é mutável no tempo e no espaço entendemos que o seu fazer pedagógico também assim o seja37 e é a partir dessas concepções que repensamos o Ensino de História a fim de promover uma prática que atenda as demandas contemporâneas de formação cidadã O caminho que buscamos nesta discussão é o de democratizar de forma crítica o acesso à informação aos discursos negligenciados pelas historiografias tradicionais que privilegiaram determinados sujeitos históricos em detrimento de outros 30 SEFFNER F Leitura e escrita na história Em NEVES I et al org Ler e escrever compromisso de todas as áreas Porto Alegre Editora UFRGS 2006 31 FONSECA S G Didática e prática de ensino de História experiências reflexões e aprendizados Coleção Magistério Formação e Trabalho Pedagógico Campinas Paripus 2003 32 BITTENCOURT Circe O Saber Histórico na Sala de Aula São Paulo Contexto 2006 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 33 KARNAL Leandro org História na Sala de Aula conceitos práticas e propostas São Paulo Contexto 2007 34 MUNAKATA Kazumi Histórias que os livros didáticos contam depois que acabou a ditadura no Brasil In FREITAS Marcos Cezar Historiografia brasileira em perspectiva São Paulo Contexto 2010 35 FREITAS Itamar Fundamentos teóricometodológicos para o ensino de História Anos iniciais São Cristóvão Editora da UFS 2010 36 CARRETERO Mario Constructivismo y educación Buenos Aires Paidós 2009 37 KARNAL Leandro org História na Sala de Aula conceitos práticas e propostas São Paulo Contexto 2007 31 Mas como o termo ensino de história é muito amplo temos que fazer recortes e decidimos analisar quais as concepções de cultura afrobrasileira que chegam aos documentos oficiais do Ensino de História após a Lei nº 10639 de janeiro de 2003 acompanhando o processo anterior de construção dessas conceituações A referida lei altera a LDB Lei nº 939496 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos e da cultura afrobrasileira38 com o propósito de combater o racismo através da construção crítica do conhecimento A reflexão crítica acerca das conceituações da cultura afrobrasileira no ensino de história nos levam a problematizar a participação da instituição escolar nas tensas relações entre produção x reprodução de valores sociais Não queremos reduzir simplesmente os sistemas de ensino a instrumentos de reprodução mecânica de ideologias e atitudes para fins de legitimação de grupos dominantes pois reconhecemos que o cotidiano escolar é plural e dinâmico em que os múltiplos sujeitos interagem negociando sentidos interesses e necessidades O próprio Bourdieu fala de sistemas de reprodução de ideologias mas é sábio em afirmar que o ser humano sempre recria as possibilidades de ação pois é um agente estruturante construtor e ativador da sociedade Existe sempre a possibilidade de transformação paradigmática no próprio interior do cotidiano escolar Uma das instancias fundamentais para a transformação paradigmática dos conhecimentos produzidos no Ensino de História é a produção de currículos Segundo os historiadores Marcus Silva e Selva Guimaraes Fonseca39 o currículo deve ser entendido como uma construção um campo de lutas pela legitimação de saberes experiências e memórias Como fruto de complexas negociações e seleções o currículo reconfigura as possibilidades de construção identitária a partir do ensino de história Ele legitima a visão de alguém ou de algum grupo que detém em determinado contexto o poder de dizer e fazer Desta forma mais que revelar diretrizes para o Ensino de 38 Levase em consideração a reformulação da referida lei que passou em março de 2008 a ser de nº 11645 tornando obrigatório além do ensino da história e cultura afrobrasileira o ensino da história e cultura dos povos indígenas no Brasil O objeto deste projeto contudo restringese à primeira área do conhecimento citada pois a Lei nº 1063903 possui suas respectivas diretrizes curriculares enquanto a Lei nº 1164508 ainda não possui suas respectivas diretrizes bem definidas Por isso apoiamonos na lei anterior enquanto opção política ter maior propriedade com militantes dos diversos movimentos negros por exemplo 39 SILVA Marcus e FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 32 História o currículo expressa variadas e tensas relações sociais conflitos e acordos aproximações e distanciamentos40 Conforme a historiadora Circe Bittencourt41 para que ocorram mudanças nas propostas curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade e mais precisamente na clientela escolar Quando se reconhece que surgiram novas demandas socioculturais e políticas na sociedade e estas mudanças também se refletem no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares Diante de um público escolar assumidamente heterogêneo para se chegar a níveis aceitáveis de escolarização necessitase não apenas de investimentos consideráveis por parte dos governos mas também de currículos flexíveis42 Isso justifica a obrigatoriedade da implantação do ensino de História da África e da cultura Afrobrasileira nas propostas curriculares do país pois urge ainda a necessidade de pluralizar e ressignificar as linguagens os discursos as memórias e as identidades da sociedade brasileira e a escola é um espaço muito propício a este trabalho Porém falar de currículo é algo ainda muito amplo Atualmente a especificidade das análises científicas sobre as políticas curriculares levam em consideração as múltiplas dimensões desse objeto cultural Em breve explanação Bittencourt esclarece que existem diferenças entre a o currículo formal ou normativo aquele criado pelos poderes governamentais b o currículo real ou interativo aquele que corresponde às práticas educativas construídas ao que de fato acontece no cotidiano escolar e que nem sempre corresponde ao currículo formal embora o tome como proposta norteadora c o currículo oculto que consiste na imposição de valores crenças conceitos e preconceitos que não estão referendados no currículo formal mas que direcionam as ações e as condutas dos sujeitos escolares e d o currículo avaliado ou seja aquele que se materializa no conjunto de materiais e métodos avaliativos da instituição escolar43 Para fins desta pesquisa nos deteremos apenas na reformulação do currículo real no Brasil referente ao Ensino de História e da Cultura AfroBrasileira No primeiro capítulo CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO discursividades negociadas na emersão do movimento negro brasileiro reconstruímos os cenários de emersão dos movimentos negros no Brasil a partir de 40 Idem Op Cit 41 BITTENCOURT Circe O saber histórico na sala de aula São Paulo Contexto 2006 42 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 43 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 33 1978 data de fundação oficial do MNU Embora dialoguemos com experiências institucionais temporais e teóricometodológicas de diferentes movimentos negros ao longo do século XX nos concentramos nas ações promovidas a partir da versão mais recente do MNU O nosso foco detevese no discurso nas ações e nos documentos construídos pelos intelectuais dos mais significativos movimentos negros surgidos a partir dos anos 1970 Inicialmente retomamos a outras duas experiências de movimento negro a Frente Negra Brasileira FNB e o Teatro Experimental Negro TEN para perceber que as demandas dos movimentos negros no Brasil do século XX atualizam as articulações entre cultura política e educação No segundo capítulo CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira iniciamos uma primeira analise comparativa entre as críticas dos movimentos negros aos usos e abusos que são feitos da cultura afrobrasileira tanto no plano das conceituações quanto no plano das políticas públicas e do ensino e entre as concepções de cultura afrobrasileira propostas pelos acadêmicos na historiografia nacional entre fins do século XIX e a metade do século XX Tal fato demonstra como a participação dos negros na sociedade brasileira constitui um universo de preocupações que constantemente se atualiza no pensamento nacional As narrativas analisadas nos fizeram um complexo trânsito de ideias circulando e produzindo sentidos que às vezes se cruzavam e às vezes se repeliam Conferimos autores teses e noções bem distintas de cultura afrobrasileira mas que apesar de tantas diferenças possuíam uma semelhança fundamental o olhar estrangeiro para a cultura afrobrasileira uma vontade de estudar este universo cultural a fim de classificálo e ao menos simbolicamente dominálo De acordo com os referenciais de seus respectivos momentos históricos eles não conseguiram entender a lógica própria da cultura afro brasileira e já partiram de estereótipos para discursar cientificamente sobre tal cultura Destarte localizamos os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira proposto em cada narrativa e refletimos sobre as implicações políticas de cada uma delas No terceiro e último capítulo A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO a historiografia o ensino de história e o novo compromisso político do estado brasileiro apresentamos uma nova proposta interpretativa aquela pela qual os movimentos negros elegem como mais legítima para contemplar as demandas de significação desses movimentos reconstruindo sobre prismas de dignidade autonomia 34 respeito e aceitação as identidades negras Percebemos que neste mesmo momento já nas décadas finais do século XX houve várias tentativas de aproximação entre os novos cientistas sociais que estavam estudando a cultura afrobrasileira e os movimentos sociais negros Esta relação é constatada a partir da interdiscursividade que circula e atualiza os discursos de ambos os lados De um lado nós problematizamos os sentidos que são invocados em cada conceituação presente os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira dispostos em cada narrativa e as implicações políticas que elas podem ter no espaço formativo escolar De outro nós discutimos como tais demandas são retomadas como uma série ações reivindicatórias que modificam a legislação do Estado brasileiro criando entre muitos conflitos a lei 1063903 35 CAPÍTULO 1 CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO DISCURSIVIDADES NEGOCIADAS NA EMERSÃO DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO 36 Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo responsável pela minha raça pelos meus ancestrais44 A identidade negra entre textos sons cores e gestos o movimento negro como contraprojeto de Estado brasileiro Até o início da década de 60 no Brasil várias categorias sociais viviam experiências de organização e mobilização política O pensamento de esquerda aumentava as suas esferas de influência e desta perspectiva política emergiam críticas e propostas de reforma do Estado Brasileiro a fim de reconstruirse a cidadania nacional de forma mais democrática O socialismo reoxigenava os debates sobre a moderna república brasileira e a reelaboração de critérios de cidadania nacional numa série de movimentos intelectuais que tentavam resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados45 Projetos alternativos inspirados por exemplo na cultura e na experiência popular para reformular novos projetos de ação e formação do Estado brasileiro foram elaborados Contudo esse fervor foi resfriado pelo golpe militar de 1964 que instaurou uma ditadura Com a ditadura ocorreu um enfraquecimento dos movimentos sociais chegando mesmo à extinção de alguns Houve a vigilância constante do governo para evitar novas organizações mas isso não garantiu que as pessoas deixassem de se organizar Ao contrário a experiência da repressão e validação de um Estado que legitima as desigualdades sociais iria instigar o surgimento de novos movimentos de base em que pesava a confiança entre os membros e a consciência de seu desamparo ante o poder público Mas só quando a Ditadura estava próxima do fim é que os movimentos sociais brasileiros começaram a se intensificar organizandose e influenciandose Os movimentos pela Anistia Estudantil Feminista Negro Homossexual Sem Terra Operário Ecológico e Diretas Já são exemplos emblemáticos desse novo momento histórico46 44 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p 105 45 BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 46 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 37 Durante os anos da ditadura militar a sociedade brasileira era interpelada por várias ações que concretizavam relações de poder e legitimavam projetos políticos a censura a repressão e a propaganda governamental de um lado e as ações de categorias sociais desprivilegiadas politicamente de outro Se havia uma história silenciada da violência e opressão de um lado de outro o governo federal fazia questão de divulgar na mídia o entusiasmo do chamado milagre econômico No discurso oficial do Estado brasileiro dos anos 1970 o crescimento da economia trazia entusiasmo para as classes médias urbanas forneciamse argumentos para fomentar a Segurança Nacional contra toda forma de estrangeirismos e buscavase selecionar emblemas que invocassem sentidos de uma unidade nacional47 Contraditoriamente às propagandas otimistas do governo muitos indivíduos negros insistiam em denunciar que tal crescimento não havia chegado à população afro descendente o fechamento à influência estrangeira não se aplicava à lógica capitalista norteamericana e que a cultura afrobrasileira ocupava uma espécie de sublugar na simbologia da identidade nacional Outros intelectuais de várias procedências étnicas denunciaram alguns desses entre outros fatores do regime político autoritário instalado no Brasil A repressão política e depois a crise econômica criaram uma ambiência favorável à oposição ao Regime Militar No Brasil a emergência do movimento negro recebeu também várias influências internacionais como podemos ver nos relatos do militante abaixo Podemos identificar três matrizes de pensamento no discurso da geração que se engaja no movimento negro nos anos 1970 e 80 Três diferentes influências externas Você tem o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos que sempre mobilizou a atenção da militância você tem as lutas independentistas no continente africano sobretudo até pela facilidade da proximidade lingüística nos países lusófonos notadamente Angola Moçambique São Tomé e Príncipe GuinéBissau E por fim o movimento pela negritude que a rigor sempre foi um movimento literário na verdade um movimento cultural de intelectuais da África e das Antilhas que se encontraram em Paris nos anos 30 do século passado e que vão formular algumas idéias a respeito do que seriam o ocidentalismo e o orientalismo na perspectiva africana nos valores africanos Enfim um modo africano de ser por meio de várias linguagens48 47 MORAIS Maria Thereza Didier de Emblemas da Sagração Armorial Ariano Suassuna e o movimento armorial 197076 Editora Universitária da UFPE 2000 48 Depoimento de Hédio Silva Junior In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 69 38 Em nível internacional ente os anos 195060 junto à sociedade moderna a História que passara por diversos momentos de transformação a fim de legitimarse como universalista e científica atravessou uma crise epistêmica49 Com o fim da II Guerra Mundial a Europa perde o centralismo enquanto modelo civilizatório para o mundo A empresa colonialista perdera sua credibilidade e não encontrava mais lógica de existência sobretudo perante a opinião pública Neste período surgiram várias críticas acadêmicas ao neocolonialismo e ao póscolonialismo mas somente em 1978 com a publicação do livro Orientalismo de Edward Said é que este debate internacionalizouse50 A partir da segunda metade do século XX autores de varias nacionalidades propuseram críticas ao pensamento eurocêntrico elaborado desde os gregos antigos para desclassificar os povos africanos51 Entre os filósofos iluministas do século XVIII e os cientistas modernos do século XIX vários intelectuais surgiram e mesmo a partir de argumentações diferentes tinham como ponto em comum a tentativa de explicar evolutivamente a existência de diferentes sociedades humanas tomando como parâmetro a ideia de progresso racional e tecnológico político cultural e econômico social atribuída à história européia Em oposição a esta civilização o continente africano só tinha sentido enquanto espaço de lacunas irracionalidade primitivismo a historicidade etc Para o historiador Muryatan Barbosa a História da África enquanto disciplina acadêmica resulta de dois fatores De um lado o crescente relativismo europeu diante dos seus próprios valores no pósguerra De outro a renovação crítica das Ciências Sociais e especificamente no campo da historiografia a influência dos Annales e sua proposta de históriaproblema interdisciplinar e totalizante Foi assim que nos anos 1950 e 1960 a História da África surgia no campo intelectual de países europeus como a Inglaterra e a França e de vários países africanos recémcriados paralelamente aos seus processos de independência Na África a historiografia nascente servia também como 49 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 50 Idem op cit 51 Uma breve discussão situando discursos eurocêntricos em relação à África pode ser encontrada em OLIVA Anderson A História da África nos bancos escolares representações e imprecisões na literatura didática In httpwwwscielobr acesso em 29 de setembro de 2007 39 instrumento de luta ideológica e política no processo de descolonização não só política e econômica mas também cultural52 Foi neste contexto que foram geridos os estudos do historiador senegalês Cheikh Anta Diop que buscou comprovar através de fontes as origens negras da civilização egípcia e a influência desta sobre os antigos helenos53 O historiador Djibril Tamsir Niani escreveu o livro Sundjata ou o épico mandinga que ficou famoso pela proposta pioneira em usar vastamente os relatos e memórias orais como fonte para construir a história oficial de povos ágrafos inaugurando na África um paradigma metodológico carregado de sentidos políticos e abrindo caminho para vários historiadores Neste período ainda surge a revista Presença Africana que se torna o principal periódico científico a divulgar o pensamento de intelectuais africanos e afro descendentes Conforme Muryatan nessa revista são comuns o uso dos termos raça etnia povo cultura etc para definir uma nova comunidade simbólica A revista Presença Africana tornase deste modo um elo da diáspora negra em que os intelectuais africanos e afrodescendentes assumemse como participantes de uma mesma comunidade de interesses na luta contra o racismo e o colonialismo54 Um autor que se tornou clássico neste período foi o martinicano Frantz Fanon55 Segundo Lewis R Gordon a obra de Fanon autor que assumiu uma postura política de combate ao racismo e ao colonialismo chegou a ser encarada como uma teoria perigosa nos EUA dos anos 196070 enquanto que na América do Sul em países como o Chile era adotada nas salas de aula universitárias ao lado de leituras por ela influenciadas como a Pedagogia do Oprimido do brasileiro Paulo Freire56 No texto clássico Pele 52 Existiram também várias dificuldades para a legitimação de uma historiografia da África nos jovens países africanos o modelo explicativo ainda eurocentrado as dificuldades de institucionalização e financiamento das pesquisas etc BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 53 Uma interessante discussão sobre o tema pode ser encontrada em FINCH III Charles Cheikh Anta Diop confirmado In NASCIMENTO Elisa Larkin Afrocentricidade uma abordagem epistemológica inovadora São Paulo Selo Negro 2009 54 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 55 Intelectual afromartinicano nascido em 1925 Fanon lutou junto às forças de resistência no norte da África e mesmo na Europa durante a II Guerra Estudou filosofia e psiquiatria na França e dirigiu o Departamento de Psiquiatria do Hospital BlidaJoinville na Argélia onde participou também da Frente de Libertação Nacional pela independência da Argélia Por isso Fanon passou a ser perseguido pela polícia em todas as possessões francesas Sua vida foi marcada por ativa militância e luta física e simbólica pela transformação dos povos colonizados e vitimados pela ótica do racismo Fanon faleceu em 1961 nos EUA vitima de pneumonia enquanto buscava a cura para sua leucemia Mais informações sobre Fanon disponíveis em GORDON Lewis R Prefácio In FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 56 Idem op cit 40 negra máscaras brancas57 o autor faz uma crítica ao que chamou de colonialismo epistêmico ou seja uma forma orientada de ver o mundo e viver nele a partir do racismo e do colonialismo Para tanto o psicólogo estabelece relações entre a cultura a política o imaginário e a linguagem a fim de que identifiquemos como essas construções são feitas vivenciadas e compartilhadas na medida em que mediamos significados e discursos Em outras palavras há uma constelação de dados uma série de proposições que lenta e sutilmente graças às obras literárias aos jornais à educação aos livros escolares aos cartazes ao cinema à rádio penetram no indivíduo constituindo a visão do mundo da coletividade à qual ele pertence58 O critério corraça ele denuncia tem sido definitivo nas relações de poder e no desenvolvimento político econômico social e cultural das pessoas negras Para alcançar sua liberdade ou desalienação o negro deveria tomar urgentemente a consciência das relações simbólicas e sócioeconômicas que os condena às condições subhumanas59 Sua obra inicialmente se propõe a ajudar a transformar o negro em um ser de ação em direção a um novo humanismo60 Para Gordon Fanon construiu um paradigma na história das ciências sociais ao examinar a profundidade da denegação sintomática de muitas pessoas negras como conseqüência da dominação no âmbito epistemológico da produção do conhecimento realizando uma crítica política à categoria dos intelectuais mas foi sensível e cuidadoso o suficiente para não cometer reducionismos e homogeneizar a representação de que todas as pessoas nãonegras sejam racistas61 Como a dominação simbólica ocorre Para Fanon a partir das apropriações que as negras e os negros fazem do modelo social político econômico e cultural dos brancos Através da adoção de línguas de origem européias de um vestuário ocidental de uma perspectiva judaicocristã de um padrão estético branco da perpetuação de valores e crenças eurocêntricos Todo povo colonizado isto é todo povo no seio do 57 Os dois livros mais importantes do autor são Os condenados da Terra e Pele negras máscaras brancas Neste trabalho daremos um breve foco no segundo livro pois ele é o responsável por lançar as bases dos estudos sobre legitimação da perspectiva descolonial 58 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p 135 59 MUNANGA Kabenguele Negritude usos e sentidos Belo Horizonte Autentica 2012 60 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p25 61 GORDON Lewis R Prefácio In FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 41 qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural toma posição diante da linguagem da nação civilizadora isto é da cultura metropolitana62 A colonização epistêmica estabelece e generaliza estereótipos degradantes em torno da ideia de autenticidade africana ou afrodescendente Para transformar esta realidade no entanto sugere o autor que o processo de busca da originalidade cultural tradicional é um ato político contra o processo racista de colonização No Brasil os intelectuais negros que se juntavam no inicio da década de 1970 buscavam ter acesso a este perfil bem específico de bibliografia Aí o Arthur me trouxe um monte de livros da editora Civilização Brasileira Entre esses tinha o Alma no exílio de Elridgarei e Cleaver e os Condenados da Terra de Frantz Fanon Eu comecei a ler Alma no exílio que foi a experiência do Cleaver que era uma principais lideranças dos Panteras Negras e logo depois entrei no Fanon63 A importância da leitura de bibliografias sobre o tema deuse pelo fato de nutrir os argumentos e estratégias de uma emergente movimentação negra brasileira Os movimentos pelos direitos civis nos EUA o protagonismo de Martin Luther King os movimentos como Os panteras Negras e o Black Power o Soul e o funk music criavam novas discursividades novas visibilidades e sensibilidades negras Os exemplos dessa articulação entre política e produção cultural no exterior influenciaram bastante o olhar de alguns militantes afrobrasileiros Sobre isso ilustra o relato de Calos Alberto Medeiros No início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir64 62 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p34 63 Depoimento de Amauri Mendes Pereira In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 75 64 Depoimento de Carlos Alberto Medeiros In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 42 Artistas que se tornavam referências mundiais enquanto profissionais para os militantes eram antes de tudo ovacionados pela sua negritude sobretudo quando assumiam uma estética afrocentrada que valorizava os traços negros do corpo Isso ocorreu não só nos EUA mas também no Brasil como podemos ver nas fotografias abaixo Para a antropóloga Nilma Lino Gomes A expressão estética negra é inseparável do plano político do econômico da urbanização da cidade dos processos de afirmação étnica e da percepção da diversidade65 A autora afirma que o cabelo crespo para os sujeitos negros carrega sentidos culturais políticos e sociais que lhes são muito importantes e específicos localizandoos dentro de um grupo étnicoracial66 Black Power e Black is beatiful eram estilos estéticos criados nos EUA que chegaram a influenciar fortemente o militantes negros brasileiros Acima fotografias de artistas que 65 GOMES Nilma Lino Sem perder a raiz corpo e cabelo como símbolos da identidade negra Belo Horizonte Autêntica 2006 p 29 66 Idem op cit 43 ganhavam cada vez mais projeção nos anos 1970 não só pelo talento mas também pelo fato de assumir o pertencimento étnicoracial a uma comunidade negra Estes artistas ajudaram a popularizar a aceitação do cabelo crespo como símbolo de negritude e modernidade de comportamento urbano Respectivamente Diana Ross 197567 o grupo norteamericano Jackson Five 197068 e do cantor eleito como representante da Soul music no Brasil Tim Maia fotografia sem data específica que havia morado nos EUA e voltara ao Brasil trazendo a moda dos jovens negros norteamericanos do estilo Black Power69 Por sua vez a agitação dos movimentos políticos dos Panteras Negras influenciava também a produção de novos artigos culturais que mesmo sem objetivos políticos a priori ajudaram a dar uma visibilidade negra em espaços antes não ocupados pelas representações de uma possível presença negra Foi assim que ocorreu com as Histórias em Quadrinhos HQ Ainda de forma tímida foram criados alguns superheróis negros que a principio eram coadjuvantes nas revistas dos tradicionais heróis brancos O caso da marca Marvel é emblemático Ao lado do tipo idealizado Capitão América foram acrescentados personagens como Luke Cage Pantera Negra e Falcão 67 Fotografia disponível no site httpmainstylelistcom Acesso em 20012013 68 Fotografia disponível no site httpedyvieiranoticiasblogspotcombr Acesso em 20012013 69 Fotografia disponível no site httpwwwmundodastriboscom Acesso em 23012013 44 Acima da esquerda para a direita imagem da capa de HQ norteamericana dedicada exclusivamente a Luke Cage em junho de 197270 À direita imagem de historieta de Luke Cage traduzida para o português e vendida no Brasil pela Editora Abril Edição de novembro de 198571 Luke Cage é um personagem que ainda carrega o peso do estereótipo sobre o negro norteamericano e urbano exmembro de gangue Em sua história de vida Cage foi preso injustamente Na prisão ele fora submetido a uma experiência científica que transformou sua genética conferindolhe grande força física e uma pele invulnerável Percebase que nesta HQ a pele de um negro é ressignificada como símbolo de força e ivunerabilidade Nesta HQ o personagem trava luta contra um vilão o filho de satã que é representado com a pele branca e os cabelos louros Acima imagens de quadrinhos do herói Falcão inserido na revistinha do Capitão América traduzida no Brasil72 Falcão é representado com grandes asas que lhe permitem a liberdade de movimentos nas quais poderíamos fazer uma primeira inferência vendo nesta metáfora imagética a possibilidade de desejos políticos de uma 70 Imagem disponível em httpstvcinemaemusicawordpresscom Acesso em 21012013 71 Almanaque do Capitão América nº 78 Editora Abril São Paulo 20111985 p 27 Acervo pessoal do pesquisador 72 Almanaque do Capitão América nº 78 Editora Abril São Paulo 20111985 p 27 Acervo pessoal do pesquisador p 58 e 63 45 comunidade negra em busca de livre expressão de ser e de fazer Falcão possui ainda poderes telepáticos com o seu animal de estimação um falcão No quadrinho acima se vê que o personagem interage bastante com personagens negros ilustrando as interações entre uma comunidade específica Estas produções artísticas convertiamse em algo muito maior que instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo seriam elas mesmas a própria expressão dessa luta Os militantes que materializariam o nascente movimento negro brasileiro estavam atentos a todas essas produções a todas essas discursividades que circulavam produzindo novos sentidos políticos sobre a negritude Contudo como nos lembra a historiadora Martha Rosa aquela movimentação negra emergente não ficou imune à vigilância militar73 A esse respeito nos conta o militante Edson Cardoso Nós estávamos vivendo uma época em que a ditadura tinha consciência do noticiário que estava no mundo das lutas na África e do que estava acontecendo nos Estados Unidos E houve a tentativa sabendo qual era a situação no Brasil de criar um tapume porque aqui era um foco de possível agitação74 Conscientes de sua realidade os militantes já pontuavam a heterogeneidade das concepções instituições e práticas com vistas a combater o racismo revelando a aglutinação de militantes com experiências e formações distintas Naquele momento vários intelectuais e artistas assumiram um compromisso ético e estético num propósito de produção de novos conhecimentos sobre a história e a cultura afrobrasileira valorizando sua ancestralidade cultural africana e lutando contra o racismo Assim formavase por variadas experiências teóricas e práticas uma cultura política que redefinia socialmente não só o papel de uma emergente intelectualidade assumidamente negra que comungava de propósitos comuns embora houvesse divergências internas e que se comunicava dentro de uma ótica muito própria de poder visando assegurar suas pautas políticas enquanto categoria social mas também um conjunto de pautas políticas Uma pluralidade de sujeitos se entrecruza nas novas 73 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 98 74 Depoimento de Edson Cardoso In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 8687 46 produções discursivas Neste sentido vale lembrar a quem o sociólogo Michel Löwy chama de intelectuais escritores artistas poetas filósofos sábios pesquisadores publicistas teólogos certos tipos de jornalistas certos tipos de professores e estudantes etc75 Homens e mulheres negras com estes distintos perfis de formação produziram nesta seara No entanto quando analisamos as fontes relativas ao protagonismo das instituições negras no Brasil percebemos que muitas pessoas sem formação acadêmica mas que exerciam papeis de liderança para as comunidades negras cumpriram um papel crucial na aglutinação de novos sujeitos e formação de novas gerações de militantes Muitos desses sujeitos eram presidentes ou diretores de grupos ou associações culturais principalmente de caráter carnavalesco Tal fato mostra que houve diferentes tipos de interações e apropriação entre sujeitos espaços e discursividades dos movimentos negros e das instituições culturais76 Neste caso pensamos que seja relevante tomar emprestado o termo intelectuais populares proposto por Robert Slenes no prefácio ao livro de Tiago Gomes77 Parafraseando o historiador da África Steven Feirman que cunhou o termo intelectuais camponeses Slenes busca da mesma forma que Feirman nos atentar à capacidade de pessoas comuns sem títulos universitários refletirem analiticamente sobre sua experiência de vida78 Neste capítulo daremos grande importância a estes artistas populares que interagem de forma ativa com outras instituições e práticas discursivas Mas toda história tem um marco inicial uma oficialidade que fazemos questão de demarcar mesmo que não seja de forma linear Vejamos Em 07 de julho de 1978 um grupo de intelectuais negros militantes raciais partidários políticos estudantes e professores universitários fundaram nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo um movimento com o nome de Movimento Unificado contra a Discriminação Racial MUCDR Este movimento não abarcava todas as tendências e entidades negras mas teve grande aceitação no meio destas 75 LÖWY Michel Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários a evolução política de Lucács 19091929 São Paulo Lech Livraria Editora Ciências Humanas 1979 p 1 76 SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação Curricularidade em ritmo de sambareggae Tese Doutorado em Educação Programa de Pós em Educação Pontífica Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2000 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 77 SLENES Robert O horror o horror o contexto da formação de identidades mestiças no Rio de Janeiro dos anos 1920 In GOMES Tiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 CampinasSP Editora da UNICAMP 2004 78 Idem op cit p 25 47 recebendo logo menção de apoio de outros estados brasileiros Só depois de algum tempo é que o movimento passaria a chamarse de Movimento Negro Unificado como nos conta Milton Barbosa No inicio era Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial MUCDR Com o tempo o Contra a Discriminação Racial ficou como uma palavra de ordem e ficou só Movimento Negro Unificado Mas a palavra negro quem propôs foram o Abdias do Nascimento e a Lélia Gonzalez e todo mundo aceitou Isso deu uma mexida em termos de concepção79 Aquele era um momento em que várias organizações negras buscavam construir a democratização do Estado brasileiro além da fundação do Movimento Negro em julho de 1978 houve também a estréia do Cadernos Negros da realização do I Festival Comunitário Negro Zumbi na cidade de Araraquara em São Paulo as comemorações dos 90 anos de abolição A fundação de agremiações carnavalescas negras de destaque político e cultural como os blocos afro Ilê Ayê e Olodum em Salvador80 e os afoxés Ará Odé Alafin Oyó Ilê de Egbá e Oxum Pandá em Olinda e Recife81 Ao lado desses eventos que demarcavam simbolicamente uma nova discursividade e novas formas de territorialidade negra no Brasil havia o entusiasmo esquerdista causado pela fundação do Partido dos Trabalhadores PT o surgimento dos movimentos sociais e a retomada do sindicalismo82 Fundado assim definiuse o Movimento Negro o conjunto de iniciativas de resistência e de produção cultural e de ação política explícita de combate ao racismo que se manifesta por via de uma multiplicidade de organização em diferentes instâncias de 79 Depoimento de Milton Barbosa In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 156 80 Sobre as relações entre o carnaval a militância negra a construção de novas práticas pedagógicas na cena cultural de Salvador vide SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação Curricularidade em ritmo de sambareggae Tese Doutorado em Educação Programa de Pós em Educação Pontífica Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2000 81 Sobre as relações entre o carnaval afropernambucano e a militância política negra através dos afoxés de Pernambuco vide QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 82 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 48 atuação com diferentes linguagens por via de uma multiplicidade de organização espalhadas pelo país Tratase de fato de um mosaico que tenta sustentar sua identidade no propósito comum de posicionarse contra o racismo83 Consideramos a importância desta autodefiniação do MNU para pensar o perfil desse movimento nascido no final da década de 1970 mas utilizamos o conceito de movimento negro sintetizado pela historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz Portanto movimentos negros são entidades que têm a luta contra o racismo como seu eixo central embora cada uma tenha sua área de atuação específica Movimento Negro por conseqüente representa o conjunto dessas organizações84 Desta forma pensando o movimento negro como um sujeito coletivo um aglomerado de múltiplas instituições políticas sociais e culturais negras Nossa abordagem contemplará não apenas a instituição política Movimento Negro Unificado MNU mas elencará também algumas das intuições culturais e suas respectivas ações que corroboraram para o fortalecimento das pautas políticas da comunidade negra inserindo nesta discussão a construção do conceito de cultura afrobrasileira Por que é relevante trazer a experiência do surgimento e desenvolvimento do movimento negro Por que através desta instituição social temos a possibilidade de refletir sobre as transformações históricas na sociedade em torno de ideias como a própria nação cidadania etc Para o sociólogo Arim Soares do Bem os movimentos sociais podem ser encarados como ferramentas para se compreender os complexos mecanismos de desenvolvimento da sociedade brasileira revelando as áreas de carência estrutural os focos de insatisfação e os desejos coletivos permitindo assim a realização de uma verdadeira topografia das relações sociais85 Destarte os movimentos sociais são indícios que nos permitem problematizar e conhecer o modelo de sociedade no qual se articulam e se desenvolvem O sociólogo considera ainda que a importância histórica 83 Uma parte das resoluções do I Encontro Nacional de Entidades Negras publicado no Jornal do MNU nº 18 p6 Apud QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 84 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 96 85 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 49 desses movimentos consiste não somente no fato de que eles revelam tensões e conflitos sociais mas também no fato de que as categorias reivindicatórias de direitos também elaboram propostas de soluções possíveis para o que exigem buscando a institucionalização jurídicolegal das conquistas ampliando e universalizando o campo formal do direito para todo conjunto da sociedade criando novos contextos históricos Essa é a noção de movimentos sociais que usaremos para pensar os movimentos negros do Brasil do século XX Desta forma poderíamos perguntar Sobre que pautas reivindicatórias esse movimento buscou se sustentar Como o movimento se posicionou diante do tema cultura negra ou afrobrasileira Essas perguntas nos levarão a conhecer contextos muito complexos em que serão revelados outros sujeitos cenários interesses e discursos que proporão uma determinada conceituação de cultura afrobrasileira a partir de uma perspectiva política Embora nosso foco nesta dissertação seja historicizar a experiência histórica dos movimentos negros no século XX devemos compreender que a história desses movimentos no Brasil possuem pelo menos mais de um século86 embora não possamos dizer que os movimentos negros tiveram sempre o mesmo perfil político e institucional Precisamos especificar o que estamos chamando de movimentos negros em diferentes temporalidades Concordamos com o seguinte pensamento de Cunha Esta profusão de organizações sociais de maioria afrodescendente formais ou informais e que consolidam expressões de cultura e identidade ou que realizam protestos contra as injustiças sociais vividas pela população negra 87 Desta forma 86 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 ERAS Lígia Wilhelms e SILVA Iraci T B Raimundo da Educação e cultura afrobrasileira Anais do I Encontro de Divulgação Científica e Tecnológica ENDICT ISSN 21763046 DOMINGUES Petrônio Um templo de luz Frente Negra Brasileira 19311937 e a questão da educação Revista Brasileira de Educação Vol 13 nº 39 setembrodecembro 2008 Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação São Paulo Brasil QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 ROMÃO Jeruse História da educação do negro e outras histórias Brasília MEC 2005 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de PósGraduação em Educação da Universiade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 87 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 Neste contexto pensamse as revoltas escravas as associações negras e movimentos sindicais os partidos políticos os clubes e entidades culturais e religiosas etc 50 encaramos como movimentos negros toda uma diversidade de instituições e agrupamentos realizados por indivíduos negros que aspiram melhores condições de vida e constroem projetos políticos sociais econômicos e culturais etc Esses movimentos no plural possuem a cada momento histórico perfis específicos os quais merecem ser ponderados Arim Soares do Bem afirma que no século XIX muitos dos movimentos sociais que eclodiram no Brasil tinham caráter de revoltas populares e não possuíam uma plataforma políticoideológica em comum por isso esses movimentos de contestação permaneciam desarticulados O sociólogo mesmo tentando enxergar algumas permanências entre eles separa os movimentos sociais surgidos nos oitocentos em dois momentos distintos a na primeira metade do século na qual predominou o romantismo político que buscava formar a identidade nacional do império brasileiro e b na segunda metade onde a racionalidade científica positivismo liberalismo e eugenia influenciou o fim da escravidão e estabeleceu novas bases para o capitalismo brasileiro Nesse contexto havia de um lado por exemplo uma movimentação política e social mesmo que muitas vezes suspeitas em torno da abolição da escravatura por parte dos abolicionistas e havia de outro uma série de revoltas populares das camadas escravizadas em busca de conquistar a sua liberdade sem esperar por paternalismos Revoltas alimentadas algumas vezes pela experiência haitiana Contudo esses movimentos que abarcavam categorias sociais como os escravos em busca de melhores condições de vida não possuíam em sua maioria articulações muito precisas entre diferentes localidades fato que dificultou seus desenvolvimentos embora tenham sido suficientes para corroer a estrutura da escravidão por dentro88 Ainda conforme do Bem já nas duas primeiras décadas do século XX surge uma nova racionalidade dos movimentos sociais Tratouse de um momento de fervor político organização dos sindicatos e crescimentos dos partidos de esquerda que buscaram transpor a experiência de organização política da classe operaria para o contexto nacional Entre 1930 e 1945 houve a emersão de um projeto liberal industrializante que estabeleceu rupturas com as elites oligárquicas embora ainda houvesse continuidades com ela O processo de crescimento urbano desenvolveuse como objeto de políticas públicas 88 REIS João José Domingos Pereira Sodré um sacerdote africano na Bahia oitocentista AfroÁsia 34 2006 237313 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 51 Tomando a escola como uma das instituições sociais mais influenciáveis na construção de identidades os debates acerca das relações étnicoraciais no ambiente escolar se tornaram cada vez mais abrangentes Cientes de que as relações entre história memória e identidade são interpeladas por relações de poder vários movimentos negros organizados se mobilizaram política e culturalmente para garantir a ressignificação dos saberes escolares recolocando a identidade negra sobre novos referenciais possibilitadores não só de uma nova consciência sóciohistórica e cultural mas também do exercício político da cidadania Essas são algumas das experiências na vida social que incitaram vários intelectuais negros a enfrentar a exclusão social organizandose e elaborando projetos alternativos de sociedade brasileira ao longo de todo o século XX Eles haviam concluído que mais do que identificar a discriminação racial é preciso combatêla Desde a década de 30 do referido século com a Frente Negra entre outros movimentos políticos e culturais já se reivindicava a educação como o campo mais propício à ascensão social dos negros brasileiros e à valorização da identidade negra Em suma ao longo do século XX os movimentos negros brasileiros instituíram algumas práticas discursivas em busca de construir uma cidadania para o negro brasileiro A luta posta e constantemente atualizada ao longo do século XX era contra a permanência da ideologia de branqueamento que norteava as políticas públicas do Estado brasileiro mantendo como uma das características fundamentais a não legitimação das matrizes negras na formação da nacionalidade Tratavase agora de uma série de lutas discursivas em que se propunham projetos políticos de exercício de cidadania a serem negociados com o Estado sobre isso afirmam Lígia Eras e Iraci Silva Dentro de uma sociedade a que foram relegados à exclusão buscaram através de movimentos sociais a luta pela igualdade racial e de direitos legais Essas reivindicações produziram uma construção de valores de justiça dando lugar a uma identidade de cidadãos negros brasileiros89 89 ERAS Lígia Wilhelms e SILVA Iraci T B Raimundo da Educação e cultura afrobrasileira Anais do I Encontro de Divulgação Científica e Tecnológica ENDICT ISSN 21763046 p 81 52 Nesse contexto vários intelectuais negros também surgiram a fim de garantir novos lugares sociais políticos econômicos e culturais para os negros brasileiros É justamente essa história que queremos evidenciar a partir deste capítulo Como aponta a socióloga Maria Auxiliadora Gonçalves da Silva a identidade negra foi encarada como uma problemática comum a sujeitos sociais que vivenciam experiências cotidianas de preconceito e exclusão Assim emergem novas formas oficiais de organização do movimento negro90 Como a estratégia do MNU tinha como foco a institucionalização e conceituação de críticas e propostas logo buscaram criar uma série de documentos que legitimassem suas pretensões enquanto movimento social como a Carta de Princípios e o Programa de Ação91 Esses documentos são instrumentos legais que buscaram legitimar o conjunto de ações do movimento em prol da conquista de uma visibilidade social incitada pela imposição da inclusão dos negros brasileiros retirandoos das malhas da exclusão social Como podemos ver abaixo definiase como princípios do MNU na sua Carta de Princípios 90 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 91 Fundado em 7 de julho de 1978 na cidade de São Paulo movimento negro reuniuse na Assembléia Nacional do MNU no dia 9 de setembro na cidade do Rio de Janeiro Conforme o militante Milton Barbosa foi uma assembléia durou 36 horas de discussões acalouradas onde se confrontavam diferentes perspectivas de ação In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 156 53 Neste documento percebemos que desde sua fundação o MNU já assume um discurso oficial indicando as suas críticas ao Estado e à sociedade brasileira embora existissem divergências quanto aos métodos a serem utilizados Discursivamente o nascente movimento define o que seria um cidadão negro aquele que possui na cor da pele no rosto ou nos cabelos sinais característicos dessa raça A militância afro brasileira escolheu segundo o senso comum as características fenotípicas como critério de autenticidade da identidade negra Mas esta opção não deve ser tomada de forma reducionista Ao fazer este tipo de definição o MNU aproximase dos critérios de identificação social do negro legitimandoos mas buscando agora positiválos Com isso abremse novas possibilidades de identificação de outros sujeitos de cor com a 54 ideia de negritude Em seguida a carta elenca formas de reprodução do racismo cujas existências possuem sentido e legitimidade não só em nível das relações pessoas mas sobretudo nas relações institucionais Aqui chamamos a atenção para a forma como o movimento pontua a situação da cultura afrobrasileira nas relações institucionais com o Estado brasileiro marginalização racial política econômica social e cultural do povo negro e colonização descaracterização esmagamento e comercialização de nossa cultura Antes de definir o que seria a cultura afrobrasileira o MNU situavaa num contexto político de legitimação da dominação dos cidadãos negros Contra esta constatação assume respectivamente a luta pela defesa do povo negro em todos os aspectos políticos econômicos sociais e culturais Para a efetivação desta luta o documento ressalta a importância da valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção A carta ainda incide sobre a relevância do protagonismo dos sujeitos negros na autogestão desse novo projeto de sociedade e assume redes de solidariedade com outros grupos sociais oprimidos e demais movimentos sociais Este é um ponto importante da proposta pois denota que o movimento negro não queria trocar a valoração dos sujeitos invertendo a polarização dicotômica negros x brancos Não se tratava de elevar o negro ao ponto máximo enquanto ícone de cidadania brasileira localizandoo simbolicamente acima de brancos e índios mas sim de a partir de solidariedades políticas e equidades compartilhadas construir a igualdade de tratamento e existência entre os diferentes seguimentos étnicos brasileiros Observando a mensagem proferida no final do documento escrita em letras garrafais POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL vemos que a ideia de democracia racial passa a ser denunciada enquanto ideologia de dominação a partir da concepção do sociólogo Florestan Fernandes mas passa a ser também um ideal a ser conquistado no sentido que pela ação consciente dos cidadãos negros do Estado e do restante da população brasileira poderá se concretizar Essas linhas de pensamento serão desenvolvidas na consolidação do MNU e suas filiais nos estados brasileiros mas só algumas chegarão a outras instâncias legais do Estado brasileiro nos anos 1990 e na primeira década do século XXI como por exemplo a reavaliação do papel do negro na história do Brasil e valorização da cultura negra como formas de combate ao racismo 55 Mesmo considerando a experiência histórica dos movimentos antecessores como a FNB92 e o TEN93 o MNU propunha uma lógica diferenciada em relação a eles pois agora não se desejava reafirmar a inserção na ordem consumista brasileira como um igual ao branco mas como um diferente dele Buscavase construir outra lógica de inserção a partir da construção de uma identidade negra que valorizava uma ideia de ancestralidade africana produzindo um discurso que ressignificasse esta ancestralidade como um símbolo de orgulho e diferenciação da identidade negra Buscavase a originalidade tradicional e descolonizada no sentido de Frantz Fanon A luta política contra o racismo incluía a valorização desta ancestralidade da negritude e da cultura afrobrasileira ao passo que punha em pauta os debates sobre o papel das atividades culturais nesta luta Mas na emergência daquele movimento negro havia pessoas com diferentes experiências e formações definindo perspectivas e propostas de ação que ora se 92 A Frente Negra Brasileira FNB fundada na cidade de São Paulo em 1931 por um grupo de homens de cor92 preocupavase com a elevação moral e material da raça negra num momento em que várias escolas dificultavam ou mesmo proibiam a matrícula de alunos negros Para tanto criou um associativismo colocando na mão de particulares a criação e manutenção de uma escola para a instrução dos negros Perpetuavase pela educação a lógica da inserção pela igualdade do negro ao branco Ideologicamente a referida escola mantinha um projeto de caráter nacionalista e integrador A FNB cresceu bastante a partir de São Paulo chegando a influenciar capitais e cidades interioranas em vários outros estados brasileiros como Campinas Sorocaba Rio de Janeiro Salvador Vitória Recife Porto Alegre etc À medida que crescia e tomava proporções maiores na sua atuação em nível nacional a FNB institucionalizouse enquanto partido político mas foi abolido junto com todos os outros partidos políticos pela ação do plano Cohen de 1937 que iniciava a era Vargas Mesmo tendo sua existência encurtada por forças políticas a FNB realizou um projeto políticosocial na contramão do Estado republicano brasileiro que permanecia negando o exercício pleno da cidadania e garantindo o racismo como forma de dominação que gera e nutre as desigualdades sociais para os afrodescendentes92 Do ponto de vista simbólico a FNB mostrou ao Brasil uma experiência históricoescolar pensada e gerida por negros onde todos os professores pertenciam a esta categoria social Vide DOMINGUES Petrônio Um templo de luz Frente Negra Brasileira 19311937 e a questão da educação Revista Brasileira de Educação Vol 13 nº 39 setembrodecembro 2008 Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação São Paulo Brasil e CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 93 O Teatro Experimental Negro TEN foi uma organização fundada em São Paulo em 1941 cuja liderança maior coube a Abdias do Nascimento O TEN se empenhava em garantir o direito à educação da população negra como dever do Estado brasileiro e não de pessoas ou instituições privadas como fora estimulada pela FNB nos anos 1930 Para além da ascensão social do negro através da educação o TEN desejava realizar alterações conceituais nas consciências dos jovens atores e públicos negros positivando a negritude e forjando novos laços de pertencimento étnicoracial Para tanto promovia atividades de alfabetização discussões sobre o negro na sociedade brasileira produzia textos teatrais e realizava encenações em espaços públicos no centro da cidade ou nas favelas a fim de sensibilizar a comunidade negra para o exercício da cidadania Estimulava a dramatização do processo de introjeção da inferioridade negra para transformála Essa proposta provinha de suas articulações entre educação cultura e política Vide MULLER Ricardo G Teatro políticas e educação a experiência histórica do Teatro Experimental do Negro TEN 19451968 In LIMA Ivan C Educação Popular Afrobrasileira Série Pensamento Negro em Educação FlorianópolisNE nº 051999 56 encontravam ora se desencontravam94 Na carta de princípios o MNU pontua seu posicionamento político quanto aos usos comumente feitos da cultura afrobrasileira valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção95 Embora o documento expresse a representatividade de uma postura coletiva tomada frente ao tema quanto aos métodos de militância política a perspectiva cultural não constituía um campo confortável de ação Em determinadas cidades como Recife e Salvador por exemplo o movimento negro que surgia criava também algumas entidades culturais e estreitava os laços com as já existentes para a valorização da cultura negra e ativação da militância política Essa atuação gerou um desconforto entre os militantes que se dividiram em alas de acordo com suas perspectivas de trabalho os culturalistas e os políticos Mesmo comungando de objetivos como valorização da identidade negra reconhecimento da ancestralidade africana e combate ao racismo no Brasil o movimento negro que surgia naquele momento apresentava uma heterogeneidade de perspectivas e propostas de trabalho decorrente das distintas experiências e formações dos intelectuais envolvidos Entre os militantes que assumiam uma perspectiva que chamavam de política enfatizavam o protesto social e a busca da efetivação de políticas públicas para a população negra Ao mesmo tempo condenavam a ala culturalista de perpetuar uma visão folclorista espetacularizada e alienante da cultura negra Essa visão se aproximava da tese elaborada por Florestan Fernandes nos anos 196096 Os militantes negros que defendiam a perspectiva política estavam próximos à esquerda revolucionária e seguiam as teorias marxistas lugar discursivo de onde Florestan Fernandes estudava a inserção dos negros na sociedade de classes Nós líamos não só os livros mas artigos de Clóvis Moura Florestan Fernandes etc97 Com isso os militantes políticos denotavam uma prática de interdiscursividade em que assumiam uma perspectiva da cultura como prática de alienação 94 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 95 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO 19781988 10 anos de luta contra o racismo São Paulo Confraria do Livro 1988 p 1819 96 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 A análise da produção discursiva referente a história e especificamente sobre a cultura negra nós veremos no próximo capítulo 97 Depoimento de Gilberto Leal In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 75 57 Havia dentro do movimento negro diferentes apropriações do pensamento de Fernandes e sua escola A ala dos culturais selecionava os argumentos do sociólogo que lhes pareciam cabíveis à legitimação das idéias de racismo e exclusão social mas quando se tratava de pensar a cultura negra a tese de Fernandes não parecia correta Os militantes culturalistas definiam que seu trabalho era o de articular cultura e política não só no sentido de valorização do universo cultural negro e sua divulgação e exercício no espaço público mas também como instrumento de crítica ao mito da democracia racial e denuncia do racismo98 Assim buscaram se aproximar de outros intelectuais que se interessavam pelos estudos da cultura afrobrasileira e que poderiam legitimar sua perspectiva Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes99 Os relatos dos militantes que vivenciaram aqueles momentos nos contam versões a respeito Em 1976 77 já havia uma tensão no meio do movimento negro entre aqueles que defendiam que era uma mudança cultural e os que defendiam uma mudança mais profunda Os primeiros achavam que a mudança tinha que acontecer através de informação Temos que publicar mais organizar poesia organizar contos fazer eventos esportivos tentar reunir a comunidade uma tendência que a gente batizou de culturalista Eram pessoas que tinham feito as opções corretas mas que a gente não sabia avaliar naquele momento E havia pessoas como eu do movimento político que queriam uma manifestação mais política mas nós não tínhamos nenhum cabedal para fazer isso Eles tinham um projeto específico de literatura de teatro de festival e nós querendo transformar aquilo em uma coisa política negando que aquilo fosse política100 Em depoimento bastante parecido Antonio Carlos dos Santos mais conhecido como Vovô presidente do Bloco Afro Ilê Ayê em Salvador nos conta 98 Devemos considerar que haviam exemplos dessa articulação no exterior para os quais alguns militantes estava atentos Sobre isso tomemos o relato de Calos Alberto Medeiros No início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 Neste sentido a produção artística convertiase em algo muito maior que instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo seria a própria expressão dessa luta Depoimento de Carlos Alberto Medeiros In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 99 Esta relação de proximidade política e discursiva será discutida no capítulo 3 100 Depoimento de Ivair Alves dos Santos In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 237 58 Nós já fomos chamados de falso africano e de tocador de tambor pelo próprio pessoal do movimento negro Essas pessoas achavam que tinha que ser pelo político e não pelo cultural Só que nós mostramos ao pessoal que só o fato de a gente criar um bloco desses já foi um ato político E você faz o político junto com o cultural Porque você fazia aqui reuniões de movimento negro e só iam os mesmos Às vezes tinha mais brancos do que negros nas reuniões nos seminários onde tinha pesquisadores E no bloco afro você fazia na rua Você tem o apelo popular e ali você passa todas as informações101 Nesta mesma linha de raciocínio em defesa da cultura como articulação política Luiz Alves Ferreira diz E aí fizemos Semana de Cultura Negra Semana de Política Negra porque a visão que a gente tem é que a cultura está dentro da política e viceversa102 Defendendo essa perspectiva o movimento negro buscava não só reconhecer valorizar divulgar dinamizála preservandoa mais também reexplicálas contextualizálas expondo os sentidos mais profundos dessas práticas a serem vistas por dentro da lógica cultural de seus praticantes Não é a toa que entre esses militantes haviam babalorixás e yalorixás presidentes de entidades culturais e esportivas antropólogos historiadores jornalistas etc Seriam os negros assumindo a fala por seus símbolos e significados descolonizando o pensamento social brasileiro sobre a cultura negra Mas para realizar esse projeto o movimento negro propôsse sobretudo a focar nas atividades culturais que estivessem mais próximas das pessoas negras no seu cotidiano em suas comunidades para a partir delas promover suas sensibilizações políticas culturais e educativas É por isso que no Programa de ação aparecem com destaque os Blocos Afros as Escolas de Samba os Grupos de Capoeira Dança entre outras manifestações de Cultura negra A crítica social e política que alimentavam o desejo de melhoria da qualidade de vida da população negra não deixaram de existir O movimento negro agora instalara discursivamente uma fratura na ideia de comunidade nacional brasileira Simbolicamente interrompiase a continuidade para instalar a diferença que legitimaria a luta política desta categoria social 101 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 238 102 Depoimento de Luiz Alves Ferreira In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 235236 59 No entanto devemos atentar para não cairmos no reducionismo conceitual acerca desse projeto Esta ação do MNU não se tratava de reforçar estereótipos sobre a cultura negra engessandoa em lugares simbólicos clássicos mas sim de uma estratégia política de reinstitucionalização e reutilização dessas práticas culturais como meio de estabelecer novos meios políticos ao passo que angariava a participação cada vez maior das comunidades negras Nesse processo também a música a dança a capoeira etc eram ressignificadas ganhando não só novos sentidos mas também novas formas conteúdos e práticas Podemos sentir isso no relato de Vovô presidente do Bloco Afo Ilê Ayê Aqui no Ilê é tudo muito em cima da música A música é um veículo condutor muito importante Aqui tem música tema que é a música do ano que é a música que educa Então é essa música que informa informa a cidade Não é só pra educar o branco para a gente também porque nós não tínhamos essa informação não temos no dia adia no livro didático103 Uma vez que a cultura possuía uma importância significativa no combate ao racismo a educação foi eleita como campo privilegiado dessa transformação cultural Mas esta preocupação ocorreu para além das ações nas instituições informais do ensino como já se fazia Para o MNU havia na verdade uma interligação muito forte entre política cultura e educação que se precisava garantir oficialmente no projeto educativo brasileiro via intervenção do Estado mas sob a orientação do MNU Como o projeto desse movimento perpassava a institucionalização e conceituação em suas críticas propostas e ações o MNU propunha também no seu Programa de Ação a sua definição de Educação A Educação deve ser um instrumento de libertação e não de alienação de um povo Portanto devemos lutar pela transformação não só da estrutura como dos conteúdos do sistema educacional brasileiro exigindo a colocação no mesmo nível da história Européia a da África assim como a ênfase sobre a participação do Negro e do índio na formação sócio cultural do Brasil104 103 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 2389 240 104 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 60 Desenvolvendo o texto o MNU afirma que a escola é uma instituição que cumpre um papel alienante ao invés de desenvolvimento intelectual e libertário da educação brasileira pois ela perpetuaria a mentalidade elitista e racista alienando os estudantes Influenciado pela teoria de Louis Althusser para o MNU a escola seria um Aparelho Ideológico do Estado reproduzindo uma ideologia de dominação econômica e racial que produzia desigualdades entre negros e brancos105 Segundo Althusser autor que corrobora com o acervo esquerdista dos movimentos sociais a partir dos anos 197080 a escola é um dos principais aparelhos ideológicos do Estado capitalista cujo modelo político predomina nas relações sociais modernas A escola é apontada pelo filósofo como formadora das forças produtivas voltadas ao mercado de trabalho garantindo a produção ideológica que perpetua as relações de subalternidade na lógica da desigualdade social Neste sentido a instituição escolar não deixa de ser um palco para a luta de classes Porém uma vez que esteja comprometida ideologicamente com o Estado ela comprometese também com a ideologia das classes que dominam e gerem o próprio Estado A escola seria desta forma portadora de forte caráter violento perpetuando ideias e ações de dominação do Estado capitalista através das instituições ou forças de persuasão Ora é através da aprendizagem de alguns saberes práticos envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe dominante que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista isto é as relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados Os mecanismos que reproduzem este resultado vital para o regime capitalista são naturalmente envolvidos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente reinante visto que é uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante uma ideologia que representa a Escola como um meio neutro106 Outro referencial que a partir dos anos 1960 denunciava a educação como espaço de reprodução das desigualdades sociais era o sociólogo francês Pierre Bourdieu Até meados do século XX a escola era encarada socialmente como uma instituição neutra uma instituição que a partir de seus critérios racionais e democráticos 105 É importante ressaltar que nos anos 1980 as linhas de pensamento embasadas na teoria marxista estavam retomando sua força nas discussões intelectuais no Brasil É neste sentido que devemos pensar a utilização de algumas teses e temos como reprodução cultural a escola como Aparelho Ideológico do Estado alienação etc 106 ALTHUSSER Louis Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado Lisboa Presença 1970 p 66 67 61 oportunizava igualmente a todos os estudantes as mesmas oportunidades de comunicação aprendizagem e êxito na cultura letrada e na vida profissional Destarte os motivos de seus respectivos êxitos ou fracassos escolares eram atribuídos aos próprios alunos Do contrário analisando através de diferentes materiais e métodos algumas das múltiplas dimensões do cotidiano escolar Bourdieu inverte a interpretação e evidencia o papel da escola enquanto reprodutora e legitimadora das desigualdades sociais107 Para Bourdieu este fato provém do projeto moderno fundado no século XVIII de se criar uma escola diferenciadora que distinguisse os sujeitos conforme suas respectivas origens sociais e lhe prédeterminasse um destino social Desde então à dualidade rígida das formações escolares corresponde uma dualidade de cultura É todo o colorido da vida escreve Philippe Ariès que se alterou com o tratamento escolar diferencial da criança burguesa ou popular Ao perder sua função de unificar ou pelo menos de tornar possível a comunicação a cultura recebe uma função de diferenciação108 Para o sociólogo a escola é tida na sociedade moderna como instituição que veicula uma cultura legítima universalmente válida Mas na verdade ela perpetua a cultura a linguagem os valores e projetos políticos das classes dominantes No entanto este caráter arbitrário da escola é ocultado através do discurso que evidencia a sua racionalidade e a neutralidade fortalecendo ainda mais o processo inconsciente de dominação simbólica e consolidação das desigualdades sociais Ela formata indivíduos com concepções comuns que legitimam a existência as ideias e o poder das classes dominantes Os homens formados em uma dada disciplina ou em uma determinada escola partilham um certo espírito literário ou cientifico o moldado pela Escola Normal Superior ou aquele moldado pela Escola Politécnica Tendo sido moldados segundo o mesmo modelo pattern os espíritos assim modelados patterned encontramse predispostos a manter com seus pares uma relação de cumplicidade e comunicação imediatas109 107 NOGUEIRA Maria Alice e NOGUEIRA Cláudio M Martins Bourdieu e a educação Belo Horizonte Autêntica 2006 Ainda segundo os autores existiram outros fatores que influenciaram a produção teórica de Bourdieu nos anos 1960 como o surgimento de pesquisas quantitativas em países como Inglaterra EUA e França que demonstraram o peso das origens sociais nos destinos escolares e a massificação do acesso ao ensino secundarista e superior na França acompanhada do descrédito da formação universitária como garantia de ingresso no mercado de trabalho e mobilidade social para as camadas populares urbanas 108 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 2011 p 220 109 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 2011 p 206 62 Neste contexto de reflexões rupturas epistêmicas apontamentos e denuncias um trabalho pioneiro sobre a reprodução de ideologias nos sistemas de ensino foi o da Educadora Ana Célia da Silva Ela analisou a reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros voltados à alfabetização Sua dissertação de mestrado originou o livro hoje clássico A discriminação do negro no livro didático no qual a educadora pontuou que nestes materiais didáticos ainda havia a permanência de uma ideologia das aptidões ou seja uma forma de perceber as identidades étnicoraciais não só naturalizando as diferenças entre elas mas também justificando suas respectivas formas de ocupação de determinados lugares e papéis sociais Seu trabalho de cunho denunciativo evidenciou a permanência histórica da ideologia do branqueamento social brasileiro nos livros didáticos Tal aspecto discriminatório se faz perceber pela forma como são criadas as narrativas alusivas a personagens brancos e negros na literatura didática110 A autora percebeu que em se tratando dos negros os livros didáticos traçavam perfis identitários estereotipados negativamente sendo sempre o escravo o serviçal o indivíduo caricaturado uma minoria quantitativa na história desumanizados submissos e exercendo profissões e papéis sociais desprestigiado sem referencias familiares O cenário onde esses personagens negros aparecem é majoritariamente a rua Eles aparecem em diferentes situações sociais trabalhando brincando tentando chamar a atenção Sem identidade humanizada eles são chamados por apelidos ou pela cor da pele e geralmente são representados tanto em linguagem verbal quanto nãoverbal em último lugar A cultura negra geralmente era omitida nos livros didáticos dos anos 1980 ou quando aparecem são folclorizadas O universo negro nos livros didáticos era dominado pela lógica branca Já os personagens brancos possuem outras condições de aparição Seu perfil é sempre o de um sujeito feliz e organizado que domina as situações representadas Seu perfil é de um homem trabalhador de classe média que possui bens materiais forma famílias exerce bons empregos são bonitos limpos e inteligentes Eles ainda exercem papéis sociais e profissões de alto prestígio social Diferentemente do negro que costuma aparecer na rua o branco aparece em espaços burgueses o escritório o carro 110 SILVA Ana Célia A discriminação do negro no livro didático Salvador EDUFBA 2004 63 novo a casa as festas as lojas etc nas narrativas dos livros os brancos aparecem em distintas situações sociais trabalhando comprando ensinando etc também agora são chamadas pelos nomes próprios A cultura do branco conforme a autora é a referencia para os alunosleitores destes livros ela é bonita racional correta pura enfim um modelo a ser seguido Neste contexto também ganhava bastante popularidade a obra do educador brasileiro Paulo Freire Defendendo o caráter eminentemente político da educação Freire denuncia as práticas simbólicas de dominação cultural e política de grupos opressores e assume uma postura políticofilosófica de comprometimento não simplesmente com ideias mas com algo maior a existência humana a vida numa sociedade cuja estrutura conduz a dominação de consciências Ele propõe não uma pedagogia para os oprimidos mas a construção e valorização de uma pedagogia do oprimido visando a sua própria libertação e autonomia através da reconfiguração consciente e responsável dos sujeitos Para isso sugeria que era fundamental a elaboração de uma pedagogia que estivesse enraizada nas subculturas pois elas possibilitaram um contínuo tomar reflexivo criativo e transformador de seus próprios caminhos de libertação Não se tratava simplesmente naquele momento de uma nova metodologia de ensino mas de uma proposta metódicopolítica de aprendizagem em que mais do que criar as possibilidades de reflexão e ação sobre a realidade aprender seia a exercer a prática da liberdade Desta forma aprender não consistia numa educação bancária cuja prioridade é repetir palavras regras gramaticais cristalizadas ou conteúdos disciplinares tidos como verdadeiros Essa pedagogia tradicional é classificada por Freire como violenta discriminatória invasiva de mundos culturais e fazia com que os oprimidos perdessem sua originalidade111 Freire construía um novo paradigma naquele momento afirmando que aprender significa sim ao oprimido experimentar formular nomear criar a própria palavra criadora da cultura A necessidade existente no meio educativo seria então de valorizar aproveitar e evidenciar a palavra dos oprimidos pois este falar está associado a seus juízos experiências e comportamentos Esse processo porém não é individual mas coletivo Para Freire neste percurso o homem terá condições reais de deixar de ser objeto para ser de fato um homem um ser humano pleno A pedagogia então se transforma em antropologia e história 111 Como vimos a perda da originalidade por parte dos oprimidos é uma argumentação já presente na obra de Frantz Fanon também um autor que influenciou a obra de Paulo Freire 64 num processo de hominização de tomada da consciência de si no mundo no espaço no tempo na cultura O importante do ponto de vista de uma educação libertadora e não bancária é que em qualquer dos casos os homens se sintam sujeitos de seu pensar discutindo o seu pensar sua própria visão de mundo manifestada implícita ou explicitamente nas suas sugestões e nas de seus companheiros112 Esse processo de tomada de consciência de si é um processo histórico Mas todo este ciclo de interligação entre educação cultura e história caracteriza um processo político O professor Ernani Fiori explica que a proposta políticofilosófica de Paulo Freire se torna extremamente relevante num contexto em que a dominação de consciências se faz condição predominante no qual as pessoas que mais trabalham possuem menor direito de dizer suas palavras e significações do mundo Desta forma os dominadores mantêm o monopólio da palavra com que mistificam massificam e dominam113 Assim a construção de um método educativo pautado numa nova racionalidadesensível é um ato político Conscientizar é então politizar e para Freire os universos culturais dos dominados as subculturas marginalizadas enfim a cultura popular se traduzem em ferramentas de políticas populares Para ele não pode haver cultura sem política114 Tecemse desta forma os fundamentos e métodos de uma pedagogia da esperança aquela que rompa com a opressão e priorize a autonomia o respeito a dignidade e a igualdade de existência e tratamento entre todos os homens Com Paulo Freire outro paradigma educativo se instaura Se a escola é reconhecidamente apontada como instituição que perpetua formas simbólicas de dominação a educação freiriana ganha novas conotações Agora ela é encarada como campo de transformação sóciopolíticocultural Entre a escrita e a leitura de suas Pedagogias do oprimido da autonomia e da esperança a educação é reoxigenada como possibilidade de transformações e de exercício da liberdade humana de ser dizer e fazer em que as subculturas cumprem um papel essencial Para o MNU esta proposta que sintetiza crítica denunciativa proposta metódicopolítica transformadora e indicação da originalidade ancestralidade e universo cultural próprio como 112 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p 139 113 FIORI Ernani Maria Aprender a dizer sua palavra Prefácio à 49ª reimpressão In FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 114 Idem Op cit p 65 ferramentas para a transformação hominização dos indivíduos negros se torna bastante oportuna Paulo Freire estará entre as discursividades negociadas e apropriadas pelo MNU na construção de suas pautas políticas Embasados nestes pressupostos políticofilosóficos para denunciar o caráter reprodutivista da educação a fim de transformála o MNU elegeu a disciplina escolar História como o campo de ressignificação de saberes e consciências sóciopolíticas Novos discursos onde circulassem novos sentidos da negritude seriam produzidos a partir da história selecionandose personalidades experiências e valores que recontassem a história do Brasil tomando o negro como um sujeito ativo e portador de profundos valores civilizatórios que não eram contemplados na lógica ocidental Propunhase a construção de narrativas que rompessem com a ideologia da democracia racial e evidenciassem os conflitos entre negros e brancos na história do Brasil Em suma propunhase através da educação uma ruptura simbólica com a narrativa fundadora de uma comunidade nacional que fora discursivamente harmonizada Esse processo de conscientação histórica revisitaria o passado para compreender o racismo presente a fim de construir um projeto de cidadania negra para o Brasil em um futuro muito próximo Ora um povo que não sabe do seu passado um povo sem história não pode visualizar os caminhos a empreender ao seu futuro115 Na seção Educação do Programa de Ação116 o MNU definia no documento qual deveria ser a sua atuação para garantir que a educação nacional se convertesse em um campo democrático evitando a reprodução da ideologia racista A partir de várias experiências e ações de grupos e instituições negras do passado e daquele momento 115 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 116 Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claros para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autêntica democracia racial como intitula na sua introdução onde assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de Ação pondera 16 temas divididos em seções a saber 1 marginalização do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 desemprego 4 condições de vida 5 Direito e violação 6 prisões 7 o menor Abandonado 8 Cultura Negra 9 Educação 10 Mulher Negra 11 Imprensa Negra 12 Nos Sindicatos 13 Área Rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 luta internacional contra o racismo e 16 transformação geral na sociedade Este documento realiza um aprofundamento analítico das propostas que estão sucintamente apresentadas na Carta de Princípios do MNU Não é propósito nosso fazer uma análise dos dezesseis temais apresentados no Programa de Ação pois nosso foco nessa dissertação recai sobre as articulações entre política cultura e educação por dois motivos básicos 1 como nos lembra a historiadora Queiroz esses elementos são estruturadores do discurso do MNU bem como pontos de interdiscursividade entre o MNU nacional suas filiais em outros estados e outras entidades culturais e 2 por serem esses os critérios que sendo atualizados em diferentes discursividades e documentos oficiais relativos à reavaliação da educação e da história possibilitaram a sanção da lei 1063903 gerando novas demandas para o Ensino de História definindo assim o objeto de estudo dessa investigação 66 foram eleitas então seis ações básicas 1 denunciar e combater a publicação de livros didáticos que veiculassem valores racistas em seus conteúdos 2 realizar cursos de formação para professores de diferentes níveis de ensino 3 efetuar atividades didáticas nas periferias favelas e alagados etc com crianças e jovens para despertar sua consciência negra e crítica para a história do negro no Brasil e na África 4 arregimentar pedagogos psicólogos historiadores etc negros e nãonegros para analisar documentar e instrumentalizar os militantes negros para as suas ações educativas117 5 levantar trabalhos didáticos referentes à cultura afrobrasileira junto a grupos e organizações culturais e 6 solicitar às instituições políticopartidárias maior atuação junto ao ministério da Educação e Cultura para impedir a publicação e circulação de materiais didáticos de cunho racista A seção Educação do Programa de Ação é finalizada com alguns tópicos propositivos quanto à concretização desse projeto educativo entre os quais destacamos Contra a discriminação racial nas escolas Por melhores condições de ensino aos negros Pela reavaliação do papel do negro na história do brasil Pela participação dos negros na elaboração dos currículos escolares em todos os níveis e órgãos culturais Pela inclusão da disciplina história da áfrica nos currículos escolares Por um ensino voltado para os valores e interesses do povo negro e de todos os oprimidos118 Todas essas propostas serviram como exemplos para o surgimento de outras entidades culturais e filiais do MNU nos estados brasileiros Mas elas foram retomadas em forma de interdiscursividade embora nem sempre tenham sido seguidas em todas as unidades da federação119 No Recife por exemplo o Centro de Cultura e Emancipação da Raça Negra CECERNE foi criado em novembro de 1979 por militantes negros universitários como Inaldete pinheiro Silvio Ferreira Irene Souza Tereza França e Jorge Morais120 Essa 117 Como veremos no capítulo 3 essa proposta levou o MNU a se aproximar de novos estudiosos da cultura afrobrasileira como Peter Fry e Robert Slenes por exemplo 118 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 119 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 120 A historiadora Martha Rosa Queiroz percebeu que a imprensa de grande circulação recifense registrou a fundação do CECERNE referindose aos seus fundadores como intelectuais Ela explica que No senso comum principalmente em período de fim de ditadura militar ocupar espaços de militância política e ser universitário eram prerrogativas de intelectuais em sua maioria de classe média outra representação a 67 instituição promoveu uma série de estudos e debates sobre as temáticas correlacionadas aos negros no Brasil e teria se expandido com o propósito de desenvolver uma consciência racial em outros indivíduos negros Quando criada no mês de novembro propondo esse período como data simbólica das lutas antiracistas negras os militantes do CECERNE propuseram uma série de atividades como exibição de filmes e debates121 O grupo que integrou o CECERNE buscou institucionalizarse e definir suas pretensões mesmo possuindo opiniões divergentes122 No que se refere a suas propostas houve uma interdiscusividade com as propostas do MNU nacional Entre elas a intenção de reavaliar o papel do negro na história do Brasil ganhava destaque e era assumida também pelas entidades culturais como blocos afros escolas de samba afoxés centros educativos culturais e desportivos entre outras123 Queiroz afirma que no CECERNE havia duas perspectivas políticas no movimento A primeira que mesmo reconhecendo a existência e violência do racismo não se opunha assumidamente à tese freyriana e a ideia de morenidade que se era forte em todo o Brasil era ainda mais influente em Pernambuco terra natal de Gilberto Freyre A segunda que se opunha ferrenhamente ao pensamento freyriano e que não hesitava em protestálo inclusive em eventos públicos de grande relevância para a sociedade pernambucana124 Ao passo que o tempo passava os debates se acirravam e os eventos promovidos pela entidade funcionaram como divisores de águas entre os militantes de cada perspectiva Isso gerou em 1980 um racha que deu origem a dois outros movimentos qual o grupo foi vinculado Idem Op cit p 118 De fato este grupo de militantes negros no Recife cumpria um papel de intelectuais não só pelo fato de estar produzindo ideologias construindo um grupo aglutinador de pensadores e produtores de uma cultura política mas também porque a sociedade passava a reconhecêlos como tal referindose a eles por exemplo através da imprensa usando o termo intelectuais Lembramos a perspectiva defendida tanto por Edward Said como por Daniel Pecáut de que a identidade do intelectual definese não só por parte dos sujeitos que assumem politicamente esta identidade e produzem novos objetos ideológicoculturais mas também pelo reconhecimento que a sociedade pode fazer ou não destes sujeitos enquanto tal 121 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 122 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 123 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 124 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 68 negros o Movimento Negro Unificado do Recife MNURecife e o próprio CECERNE Após dois anos o MNURecife foi reformulado e passou a ser chamado de MNUPernambuco Mas este período foi significativo porque conseguiu realizar alguns eventos emblemáticos as comemoraçõesreflexões sobre o 13 de maio de 1981 apoiou o desfile da Escola de Samba Limonil que trazia como temaenredo Exaltação dos orixás e organizou e sediou o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE Em 1982 no entanto atendendo a proposição do MNU nacional o MNU Recife tornouse uma de suas cédulas filiais e para isso mudou de nome a fim de contemplar e representar o estado pernambucano Assim passou a chamarse Movimento Negro de Pernambuco MNUPE Uma vez que a ligação entre MNU e MNUPE se estreitava aumentava ainda mais os encontros entre as perspectivas adotadas entre as duas instituições Da mesma forma que o MNU por exemplo o MNUPE assumia a perspectiva política da cultura vendoa como mediadora de conflitos políticos legitimadora de uma ancestralidade africana e dinamismo de um conjunto de práticas afrobrasileiras125 As atividades culturais afrobrasileiras em Pernambuco ganharam muito mais força Um exemplo emblemático é a importância que ganhou o candomblé enquanto símbolo de resistência cultural O MNUPE lutará politicamente pela utilização deste símbolo na construção da legitimidade de uma identidade afrobrasileira e também pelo seu livre exercício como um direito do cidadão brasileiro que seja adepto Sobre isso nos diz Queiroz que Para um movimento que se afirma sistematicamente como político eleger a religião no caso o candomblé como o maior pólo de resistência sóciocultural é uma indicação do lugar que a cultura pode ocupar na prática política126 O MNUPE em consonância com a proposta do MNU reconhecia a relevância da articulação entre cultura e política Assim a descolonização conceitual a desfolclorização o reconhecimento a valorização e a divulgação da cultura afro brasileira em Pernambuco seriam alvos de ações em instituições culturais esportivas e educativas e também de debates e ações na política pública O universo cultural afro brasileiro era identificado pelo MNUPE a linguagem a visão de mundo a estética o 125 Em Pernambuco esses debates entre o político e o cultural geraram momentos de desconforto entre os militantes mas foi a perspectiva que articula cultura à política que acabou se tornando a predominante no Recife Neste sentido a participação de grupos culturais e agremiações carnavalescas foi uma prática cada vez mais constante 126 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 142 69 candomblé a dança as festas a musicalidade etc Estrategicamente o MNUPE reloca discursivamente algumas práticas culturais de Pernambuco no universo histórico político econômico social e simbólico da população negra pernambucana O frevo por exemplo até então símbolo de uma pernambucanidade mestiça foi identificada dentro de uma história de produção cultural afropernambucana com origens no pós abolição127 A ideia de conscientização da raça negra passa a ser entendida como um processo educativo um processo de mudança cultural nas percepções das pessoas negras128 interferindo em suas subjetividades e recriando suas identidades sociais durante muito tempo e por vários caminhos o MNUPE atuava como uma instituição informal de ensino de história da África dos povos africanos da resistência escrava e da cultura afrobrasileira Em Pernambuco foram produzidos vários seminários congressos debates exibição de vídeos atos públicos eventos culturais e vários periódicos negros como o Negritude Este jornal era produzido pelo MNUPE e demarcava discursivamente o posicionamento político de combate ao racismo através da reconstrução de ideias e avaliação da história nacional Na edição especial em reflexão ao centenário da abolição o editorial do Negritude explicava Começamos dizendo que o negro não é uma classe social O negro é parte integrante de uma civilização que foi escravizada por uma outra a civilização branca Por conseguinte o Movimento Negro Unificado não é uma entidade de classe Ele nasceu para transformar o sentimento de autorejeição do negro em orgulho de pertencer à raça que deu vida a Zumbi dos Palmares O MNU não foi concebido para alimentar estereótipos e repetir chavões do tipo esse governo que aí está ou a classe dominante que está aí Estamos muito além disso O que nós combatemos é uma civilização que foi estruturada economicamente à custa do sangue do negro e do índio Um governo que está aí não vem de Marte ele é filho de uma civilização que acumulou há séculos privilégios raciais infinitos E afinal que civilização branca É aquela que em Angola permitia a qualquer português usar uma pistola automática e ao negro dono da terra não lhe era permitido o uso de um simples canivete ou esta que acha perfeitamente normal um negro ser apanhador de lixo e um branco ser ministro médico advogado governador É isto que entendemos por civilização branca homogênea e feroz nesses quase cinco séculos de História brasileira Quando falamos em civilização branca não estamos querendo dizer absolutamente que rejeitamos o branco enquanto pessoa humana Há 127 Idem Op cit 128 Esta proposta de transformação psicológica dos cidadãos negros como já vimos está fortemente embasada na proposta de Frantz Fanon 70 brancos que fazem parte do problema e brancos que fazem parte da solução Só não aceitamos o paternalismo e a imposição ideológica O MNU nasceu para transformar o Brasil e ninguém conhecerá o Brasil senão conhecer o negro129 Percebese que nesta proposta política o discurso assume grande relevância na reconstrução das consciências e identidades sociais É preciso revisitar o passado falar desmistificar propor novos materiais e métodos de construção do nacional a partir do olhar afrocentrado Todas essas ações são exemplos dessas estratégias de construção de um campo discursivo que revalida as identidades afrobrasileiras a partir da luta contra o racismo e da valorização da ancestralidade africana A importância do jornal Negritude deuse também pelo fato de veicular informações daquele momento sobre casos de racismo em Pernambuco no Brasil em vários locais do mundo sobre as lutas póscoloniais na África ou qualquer outra notícia recente que pudesse ser de interesse da comunidade negra Interessante é perceber que como se tratava de um periódico produzido por um movimento social a veiculação das notícias não se restringia a mero caráter informativodescritivo mas possuía uma textualidade reflexiva sob a ótica dos autores aprofundando as análises conjunturais e estruturais dos temas analisados localizando a prática do racismo no cerne de várias questões Conforme Queiroz o jornal Negritude foi muito importante também por servir como um espaço jornalístico com fins pedagógicos onde a história dos povos negros era revisitada constantemente a partir de uma perspectiva afrocentrada O que percebemos então é que a partir de finais dos anos 1970 o nascente movimento negro se estrutura e tece pautas políticas onde a cultura exercerá um papel fundamental arregimentando inclusive várias agremiações culturais Este movimento se expande no Brasil durante os anos 1980 distribuindo paulatinamente seus tentáculos sobre várias unidades da federação Nesse processo os laços se estreitam as perspectivas se afinam os discursos circulam se cruzam se alimentam e criam novas interpretações e propostas Fabricase desta maneira uma cultura política de uma intelectualidade negra urbana politizada e com fortes tendências estéticas além de éticas Este movimento negro de fins do século XX não quer assumir como unicamente sua a responsabilidade de reparação política e social do negro como fizera a Frente 129 NEGRITUDE Boletim do Movimento Negro UnificadoPE Recife Ano III nº 5 maio de 1988 Editorial p2 71 Negra Brasileira dos anos 1930 Também não quis exigir unicamente do governo a responsabilidade por essa mudança como foi feito pelo Teatro Experimental Negro nos anos 194050 O MNU estabelecia princípios materiais e métodos para a partir das necessidades experiências e cosmovisão de uma comunidade negra orientar o Estado brasileiro na implementação de políticas de reparação para com esta comunidade A ação política deveria se dar através de parcerias entre o MNU e o Estado brasileiro Em suas ligações institucionais ações experiências e documentos oficiais a luta assumia grande relevância no plano dos discursos Nesta lógica pensarse politicamente é pensarse dentro das demandas de significação de uma comunidade com ancestralidade demarcada Assim a perspectiva cultural é revestida de grande importância não só simbólica mas sobretudo política O MNU assume um posicionamento frente à relação entre as posturas assumidas pelo Estado brasileiro e a cultura afrobrasileira Essas relações como veremos estão embasadas numa longa tradição de pensamento130 atualizada por diferentes intelectuais não negros que em seus respectivos momentos históricos cumpriram um papel fundamental tanto na ciência brasileira quanto nos projetos de reorganização política do nacional O MNU se posiciona oficialmente contra a discriminação alienação folclorização e exploração da cultura afrobrasileira Perguntaríamos então como foi criada e desenvolvida uma tradição de pensamento sobre a cultura afrobrasileira contra a qual se posiciona o MNU Quem são os intelectuais mais representativos dessa tradição de pensamento Quais as noções de cultura afrobrasileira que emergem de seus discursos suas narrativas históricas Como as práticas de cultura afrobrasileira são representadas por esses intelectuais Os caminhos que trilharemos na busca por responder estas perguntas serão apresentados no próximo capítulo 130 Conforme o historiador Alexandre Carvalho uma tradição de pensamento consiste na formação de um campo de estudos pautado na reflexão analítica produzida em diferentes momentos por distintos pensadores com o fim de reorientar os princípios daquela tradição ou campo de estudos CARVALHO Alexandre Historiografia e Paradigmas a tradição primitivistasubstantiva e a Grécia Antiga Tese de Doutorado História Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2007 Referimonos aqui ao ato de formação e desenvolvimento de um campo específico de estudos no Brasil os estudos afrobrasileiros cuja nossa ênfase será especificamente a discussão em torno das diferentes conceituações da cultura afrobrasileira 72 CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA AFRO BRASILEIRA NAS OBRAS CLÁSSICAS DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 73 A simplicidade do negro é um mito forjado por observadores superficiais131 A presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afro brasileira como discursividade Neste capítulo buscaremos analisar os diversos contextos de criação e recriação do conceito de cultura afrobrasileira num extenso trânsito de sentidos negociados por sujeitos interesses e discursos que mesmo partindo de perspectivas teórico metodológicas distintas se encontram Qual o momento histórico que marca o surgimento das preocupações científicas132 dos intelectuais quanto à presença negra no Brasil Conforme a historiadora Wlamira Albuquerque os debates e propostas em torno da construção da nacionalidade republicana no Brasil foram caracterizados por uma forte racialização das relações sociais políticas jurídicas e culturais133 Num contexto de transformações políticas e insegurança as elites brancas precisavam pensar com cuidado as formas de inserção das massas de cor que deixavam de ser simplesmente escravos para serem projetados como cidadãos Era preciso tutelar esses novos cidadãos mas manter privilégios antigos fazendo florescer uma série de novos mecanismos e práticas ambiguamente paternalistas e discriminatórias no regime republicano que se propunha para o Brasil Construirseiam cidadanias diferentes para os diferentes tipos de brasileiros em que a população de cor foi configurada como quasecidadãos Para a historiadora Zuleica Campos134 desde o início desse projeto republicano alguns intelectuais questionavam o modelo de civilização adotado no país A ideia de uma nação moderna limpa e higienizada em termos biológicos sociológicos e culturais 131 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p72 132 Sabemos que ao longo da história brasileira vários intelectuais se preocuparam com a presença do negro e de suas práticas culturais Contudo trataremos aqui de intelectuais que escrevem sobre o negro a partir do paradigma científico e situamse no final do século XIX 133 A fim de evitar reducionismos a historiadora não entende a racialização de forma unilateral como uma imposição dos brancos aos negros Na verdade ela entende esse processo como um discurso aberto a diversas signficações negociações e apropriações por sujeitos diferentes de acordo com interesses e contextos distintos Assim a racializaçao é entendida como estratégia políticodiscursiva para diferentes grupos de brancos e negros Os primeiros para legitimarem a inferioridades dos segundos e os segundos para legitimaram sua autenticidade e construir pautas de lutas ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 134 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 74 se tornou modelo de pensamento e de ações que buscaram reajustar os parâmetros políticos sociais culturais e também geográficos do Brasil Adentrando o século XX esse projeto político alcançou seu ápice nos anos 30 Neste contexto de transição se apoiará a busca de respostas a respeito da identidade nacional brasileira Uma nova versão para essa identidade moderna e que pudesse construir narrativas e símbolos que dessem conta do Estado de compromisso135 mas que pudesse contemplar elementos das tradições populares aproximandose das pessoas comuns de forma carismática parecendo democrático mas conservando as hierarquias sociais136 A perspectiva racializadora chegou ao campo das discussões sobre a cultura nacional Para Wlamira Albuquerque se de um lado existiam negros inventando tradições embasadas na ideia de ancestralidade heranças culturais e pureza das tradições africanas existia de outro uma espécie de medo branco da perversão dos costumes ditos civilizados fazendo com que todas as atenções fossem dadas aos agrupamentos de cidadãos negros seus festejos e suas práticas culturais a fim de compreendêlas para manter os negros sempre no seu devido lugar De acordo com a autora Saber o seu lugar é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidade hierarquizada que sendo referendadas ou contestadas atualizamse cotidianamente É construindo e conhecendo tais lugares que as pessoas estabelecem relações reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social137 Identidades e lugares sociais estabelecidos e negociados pela racialização É neste contexto que circulam novos sentidos para uma comunidade negra que incomoda porque busca sua legitimidade na esfera política São sentidos que circulam e 135 A historiadora Campos usa a expressão Estado de compromisso para referirse ao equilíbrio instável entre burgueses militares e latifundiários no campo político brasileiro dos anos 1930 como um período de transição no interior das classes dominantes 136 Além de Campos outros historiadores demonstram o caráter autoritário e repressor que a política varguista adotou frente a várias manifestações populares tidas ora como atrasadas ou anticristãs ora como ameaças políticas no sentido de serem interpretadas como disfarces para encontro de grupos comunistas Vide por exemplo ALMEIDA Maria das Graças Andrade Ataíde de A construção da verdade autoritária São Paulo HumanitasFFLCHUSP 2001 SANTOS Mário Ribeiro dos Trombones tambores repiques e ganzás a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife 19301945 Recife SESC 2010 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 137 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 p 33 75 mediam conflitos na elaboração do novo projeto de Estado brasileiro que estava sendo proposto Assim a construção conceitual da cultura afrobrasileira faz parte de um universo tenso e complexo de preocupações políticas que se desenvolve integrando o projeto republicano brasileiro Essas preocupações desdobramse em diferentes momentos ocorridos entre o final do século XIX e o final do século XX através de intelectuais referenciais teóricometodológicos projetos políticos e visões de mundo distintas Tais discussões científicas se tornaram mais conhecidas a partir dos anos 1930 momento em que a identidade nacional proposta tentaria articular numa equação incerta o desejo de ruptura com o passado no plano político econômico e social para garantir a superação do atraso nacional e a identificação das continuidades do passado no nível cultural para assegurar a coesão política e o progresso futuro138 O Brasil adentrava numa nova era industrialização surgimento das primeiras universidades instituição das ciências sociais no país A história ao lado dessas ciências sociais buscará conhecer a realidade a fim de fomentar projetos de intervenção social O Brasil seria ressaltado pelas suas peculiaridades mas com uma diferença em relação ao século XIX agora o pensamento intelectual nacional se propunha como não legitimador das formas de exclusão exploração e dominação Numa perspectiva mais militante e otimista se estudará a pluralidade que forma a nacionalidade e se buscará a modernização desta O Brasil precisava ser redescoberto pelo próprio povo brasileiro e seus intérpretes seriam os intelectuais que caminhavam junto a esse povo139 Neste contexto são publicados no Brasil os primeiros textos paradigmáticos produzidos por intelectuais brasileiros de grande respeito no mundo acadêmico da época140 Obras que se tornaram clássicas consagradas como referências para todos aqueles que buscassem estudar o universo cultural afrobrasileiro Esses autores inauguraram paradigmas interpretativos sobre a cultura afrobrasileira em narrativas historiográficas buscando entender a participação negra na constituição da identidade nacional Nesse processo de construção discursiva os autores elegem e classificam alguns lugares como tipicamente simbólicos da cultura afrobrasileira a serem tomados como critério de autenticidade da identidade cultural negra Porém a lógica do olhar 138 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 139 Idem Op Cit 140 Nosso foco se detém apenas sobre os intelectuais que escrevem sob o teto da ciência Abordaremos neste capítulo apenas os acadêmicos que construíram esses paradigmas de interpretação sobre a cultura afrobrasileira construindo uma historiografia temática muito específica 76 branco141 cheio de estereótipos preconceitos e valores civilizatórios ocidentais disfarçada de lógica científica imparcial crítica e verdadeira velou pelo mundo estereotipado das representações discursivas desses intelectuais sobre os negros O olhar branco não permitia que os intelectuais acadêmicos dos quais trataremos enxergassem e compreendessem a lógica própria que circulava no interior da cultura afrobrasileira Assim esta cultura é primeiramente investigada descrita classificada e plasmada a partir da superficialidade de suas práticas e materialidades em detrimento dos sentidos mais profundos que são relegados mais uma vez à invisibilidade Essa mistura interpretativa tornouse perspicaz na medida em que parecia conseguir difundir a ideia de democracia ao passo em que mantinha as hierarquias na sociedade brasileira142 A fim de destacarmos a importância do papel da dimensão simbólica presente na construção discursiva acadêmica desses intelectuais reconhecemos que as suas narrativas remetem a múltiplos tempos e a múltiplas autorias143 configurandose em redes de significação múltiplas formando interdiscursos Ainda levando em consideração as ideias da antropóloga Maria José Campos entendemos que seja muito perigoso rotular a obra de um autor como reveladora ou obscurantista de conflitos sem trabalhar as nuanças de seu pensamento e mesmo as influências sobre autores posteriores Não se trata somente de retornar ao pensamento dos autores clássicos sobretudo no que respeita ao lugar dos cidadãos negros em nossa nacionalidade mas examinar de forma contextualizada e não determinista as questões a que se propuseram responder e as ideias que mobilizaram suas respostas tendo sempre em mente que tais respostas não tiveram aceitação apenas nos meios acadêmicos mas também que se estenderam ao senso comum Identificamos portanto a ocorrência de uma atualização silenciosa do conhecimento através da reprodução de noções clássicas revestidas em novos argumentos A cerca disso assim atesta a autora importa mais destacar o caráter curativo dos discursos identitários e dessa interpretação quando se trata de pensar na nação ou mesmo refletir sobre o ato de quem funda e se debruça sobre a sua prática 141 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 142 ALBUQUERQUE Walmira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 143 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 Eni Orlandi trabalha essa perspectiva na análise do discurso através da categoria de interdiscursividade ou interdiscurso ORLANDI Eni Análise de Discurso princípios e procedimentos Campinas SP Pontes 2012 77 Inventar nunca foi por certo um gesto de exclusiva vontade na medida em que ninguém manipula só ou simboliza por si e isoladamente Na verdade sem uma comunidade de sentidos não há interpretação que deite raízes ou modelo que se aprofunde Portanto não se trata de simplesmente desqualificar ou jogar na vala comum das ideologias ou das falsas ideologias falas que repercutem para além de seu mote inicial144 Assim quando falamos em cultura afrobrasileira não estamos falando apenas de visões de mundo e práticas culturais alusivas aos negros brasileiros mas também a um campo discursivo formado e reformado por diferentes tipos de intelectuais no âmbito das preocupações de um Estado republicano brasileiro Dessa forma a cultura afro brasileira é também um conjunto de representações que a partir dela se constroem na diversidade de contextos vozes e interesses que também nela se cruzam Para entender o sucesso desses estudos propomos iniciar nossa análise a partir do contexto e do perfil intelectual daquele que foi o inaugurador de um conceito científico ou de uma tradição acadêmica de estudos sobre a cultura afrobrasileira Nina Rodrigues 1 Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afro brasileira O maranhense Raimundo Nina Rodrigues viveu em centros urbanos onde o contingente de negros escravizados era notável Nas ruas nas portas das casas nas lojas nos portos Negros e crioulos trabalhando conversando cantando esmolando esbravejando negociando Tudo parecia seguir o ritmo natural da vida Mas entre 1888 ano que se formou em Medicina 1890 ano que foi aprovado em concurso público para professor da Faculdade de Medicina da Bahia e 1906 ano em que morreu Nina Rodrigues vivenciou várias transformações da sociedade brasileira que de escravocrata passou a adotar o operariado assalariado incentivando a imigração européia de monarquia passou a ser uma república de agrária passou por um crescente processo de urbanização É justamente nesses cenários urbanos em transformação que se darão as principais discussões políticas e intelectuais em torno da 144 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 78 nacionalidade brasileira Conforme Renato Ortiz145 e Lilia Shwarcz146 é nesse contexto que a questão racial revestida de um discurso científico passa a ganhar espaço e credibilidade Para Shwarcz o século XIX foi o século do estabelecimento da ciência e das instituições de pesquisa e ensino O saber científico é revestido de grande poder ocupando um lugar central na reestruturação do Estado e é nesse aspecto que a fala institucional se compõem num fator de grande importância pois dá legitimidade e autoriza o discurso do intelectual atribuindolhe grande poder político e social Esse processo também acometeu o Brasil da época O país foi passando de objeto a sujeito produtor de explicações científicas A partir dos anos 70 dos oitocentos toda uma nova configuração paradigmática e conceitual chega ao Brasil reformulando as instituições as formas de comunicação a cultura a política o comércio o ensino etc O Brasil precisava mostrarse moderno e nesse projeto modernizador a ciência e seus distintos representantes exerciam um poder discursivo legitimador essencial em que o lema ordem e progresso tornase possível graças ao paradigma evolucionista que predomina no pensamento ocidental Naquele cenário brasileiro o liberalismo e o racismo foram muito importantes na construção intelectual política econômica social e mesmo cultural do país Assim não se pode compreender o projeto de sociedade brasileira que era formulado no período sem considerar que a racialização era uma perspectiva basilar de análises e reflexões desvelando dimensões políticas e sociais Havia um grande pessimismo quanto à identidade nacional estar pautada na miscigenação pois esta era encarada como sinônimo de fraqueza racial e conseqüentemente nacional147 O pensamento médico social de Nina Rodrigues esteve revestido com as teorias raciais que surgiram na Europa ao longo do século XIX O seu principal aporte teórico era a Eugenia teoria criada por Francis Galton que defendia a promoção de um aprimoramento genético das populações o que poderia levar às nações a pureza racial e o progresso No entanto vale frisar que as teorias raciais no Brasil não foram simplesmente importadas elas foram sobretudo adaptadas148 a um projeto intelectual que analisava a 145 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 146 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo Das Raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 147 Idem op cit 148 Teóricos como Lilia Schwarcz Renato Ortiz e Wlamira Albuquerque discordam da idéia simplista de que os cientistas brasileiros de fins do XIX limitaramse a copiar as teorias raciais européias Essas teorias se tornaram hegemônicas no Brasil justamente no momento em que perdiam força na Europa Há uma clivagem entre o momento de produção dessas teorias na Europa e as formas como são apropriadas no Brasil Nem todos os referencias são aceitos mas só os que dialogam com os referenciais já utilizados em diálogo com o contexto mestiço do Brasil 79 evolução brasileira na interpretação de uma história natural da humanidade149 O cientista Nina Rodrigues é um dos precursores das ciências sociais no país e está inserido nesse contexto político e intelectual que se desenvolve após a abolição da escravatura Suas abordagens iniciais ainda estão impregnadas da perspectiva biológica validando seus argumentos na relação meioraça Por questões temporais Nina Rodrigues conseguiu observar acompanhar e entrevistar diretamente os últimos remanescentes de escravos africanos no Brasil São justamente as memórias sentimentos e práticas culturais desses sujeitos que compõe o repertório argumentativo do universo semântico que foi recortado e recosturado produzindo novos sentidos a partir da perspectiva racializadora de Nina Rodrigues Seu campo de pesquisa foi privilegiadamente a Bahia sobretudo Salvador diversos espaços públicos as ruas as feiras e estabelecimentos comerciais os terreiros de candomblé e os arquivos Espaços de experimentação científica onde sincretizou150 e aplicou seu pensamento eugenista e evolucionista forjando uma dizibilidade e uma visibilidade151 da cultura negra inaugurando cientificamente um conceito de cultura afrobrasileira Nina Rodrigues partiu de critérios de diferenciação racial para observar anotar teorizar desclassificar as experiências históricas e culturais negras no Brasil fazendo uma operação simbólica na identidade nacional ordenando as partes do todo brasileiro formando simbolicamente um Estado que ainda não é O projeto médicoeugenista se colocava como o redentor da nação fragilizada É dentro desse contexto que ele escreve seu livro clássico sobre a história e cultura afrobrasileira Os africanos no Brasil sendo a obra publicada em 1932 após a morte do autor Seu discurso não foi apenas fortemente marcado pelo paradigma evolucionista determinista e eugênico mas por uma postura cientificista e patriótica Nina Rodrigues queria entender as consequências da miscigenação étnica e cultural para 149 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 p 15 150 Renato Ortiz 2006 faz uma discussão sobre o que resolveu chamar de sincretismo científico no período até aqui discutido numa alusão às misturas e adequações que os cientistas brasileiros fizeram das teorias raciais européias Ortiz esclarece que a diferença entre sincretismo religioso e sincretismo científico não diz respeito apenas ao campo religioso x campo cientifico mas também à perspectiva temporal pois o sincretismo religioso busca entender as misturas e transformações passadas na experiência religiosa que se refletem no presente já o sincretismo científico é um projeto presente de articulação mistura e transformação de teorias cientificas com vistas a projetar um futuro Mais informações vide ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 151 Termos cunhados em ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 80 uma nação em vias de formação Foi o primeiro intelectual brasileiro a escrever um estudo sistemático dedicado exclusivamente a presença negra no Brasil Seu discurso é complexo oscilando entre o pessimismo e o otimismo entre a sedução e o desprezo pelo universo cultural negro Para ele nos níveis biológico psicológico e cultural a presença negra no Brasil é algo inegável mas é uma presença que degenera pois o negro é caracterizado pela infantilidade carência e grosseria de seus conteúdos e formas No livro Os Africanos no Brasil 152 Nina Rodrigues pretende legitimar o seu estudo como o mais completo sobre a presença negra no Brasil cujo propósito teria sido investigar cientificamente um problema que se constituiu na formação da nacionalidade brasileira o negro Esse problema fora constatado em seus estudos anteriores sobre medicina legal higiene e criminalidade O que buscava entender nesse momento era justamente a influência que o caldeamento étnico pode exercer sobre a característica de uma nacionalidade em vias de formação 153 Estrategicamente Nina Rodrigues se localiza em seu texto como um cientista patriota e é na tentativa de construção de um progresso nacional brasileiro a partir da razão que ele produz os seus argumentos Sobre essa problemática chamada genericamente de o negro o médico afirma que existe uma perspectiva temporal que o engloba em três recortes o passado origem da presença africana no Brasil o presente miscigenação e o futuro embranquecimento Nessa perspectiva temporal do problema Nina Rodrigues se propõe a analisar justamente o primeiro recorte temporal o passado A história fora escolhida como campo de experimentação de seu argumento científico e para isso Nina Rodrigues mostrase conhecedor dos critérios de cientificidade histórica da época ao construir sua metodologia de pesquisa que consistiu em consultas bibliográficas sobre a escravidão negra e documentos oficiais do período 152 Esse livro foi escolhido por alguns motivos específicos a por ser o último escrito de Nina Rodrigues e demonstrar uma produção mais madura de suas ideias b apresentar um estudo mais amplo sobre a história e culturas negras no Brasil perpassando vários temas c ser um livro que privilegia a perspectiva historiográfica do tema contemplando referenciais e métodos historiográficos da época embora Nina Rodrigues oscilasse entre a Medicina e a Antropologia e d por ser um dos livros mais lidos e citados até hoje na história do pensamento social brasileiro sobre a cultura negra Vale dizer aqui que consideramos ser esta discussão de Nina Rodrigues uma discussão datada pertencente a uma época específica aqui já contextualizada O que nos interessa nesta análise não é estigmatizar ou condenar o pensamento de Nina Rodrigues mas problematizálo localizálo e perceber quais são as estratégias argumentativas que definem o que é ser negro e o que faz o negro no Brasil 153 RODRIGUES Nina R Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p 32 81 colonial colhidos no Arquivo Público da Bahia154 Inspirado também na Antropologia cultural numa perspectiva comparada realiza pesquisas de campo com entrevistas assistindo a rituais e festas entre outras manifestações além de fotografar alguns objetos culturais155 Do resultado dessas aproximações de diferentes disciplinas métodos e referenciais teóricos Nina Rodrigues tornase com maior precisão o inaugurador de uma tradição brasileira de invenção conceitual da cultura afrobrasileira numa perspectiva histórica oficial A partir da materialidade de suas fontes e dados pesquisados ele seleciona distribui organiza estabelece continuidades e sentidos ao que ele está chamando de cultura negra no Brasil ou nos seus termos sobrevivências das culturas africanas no Brasil estabelecendo que a cultura afrobrasileira vive das continuidades e não das rupturas das culturas africanas Assim ele legitima através de seu discurso científico os autênticos lugares simbólicos da cultura negra a linguagem as belasartes música dança pintura e escultura as festas populares e o folclore a religião e suas mitologia e culto indumentária e culinária Com isso Nina Rodrigues projetava não só palavras mas também imagens de africanidades que sobrevivem e que continuariam a existir nos descendentes mulatos e crioulos uma vez que os legítimos africanos estavam morrendo ou emigrando de volta para a África após a abolição Dessa maneira definiase o que é ser negro e o que fazem os negros Limitavase a produção cultural e a inteligência negra a estes únicos lugares e práticas Para Nina Rodrigues o motivo da escravidão negra no país se justificou pela falta de mãodeobra indígena nas lavouras e minas de ouro Utilizandose de estimativas demográficas o autor ressalta uma maior presença negra em relação à população branca no Brasil desde os tempos coloniais Mas a sua preocupação principal no livro é estabelecer hierarquias entre os povos africanos e a partir de sua escala evolutiva localizar os povos que mais teriam influenciado culturalmente o Brasil A partir do paradigma evolucionista que predominava no mundo científico brasileiro da época Nina Rodrigues narra histórias oficias da África selecionando argumentos que evidenciam a sucessão de guerras e domínios de reinos sobre outros na África enfatizando e classificando a organização política econômica social e cultural dos sudaneses como formas culturais superiores É essa a ancestralidade negra que Nina 154 Nina Rodrigues seguia o paradigma positivista Assim fazia parte do seu universo semântico as noções de evolução e de estudo dos grandes datas fatos e homens que foram transformados em símbolo da comunidade nacional brasileira da época 155 RODRIGUES Nina R Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p 32 82 Rodrigues seleciona para o Brasil Para ele a predominância intelectual e social quem sabe também numérica cabia absolutamente aos negros sudaneses e não aos bantos que seriam culturalmente atrasados Daí a necessidade de referendar um discurso que privilegiasse e inventasse uma descendência afrobrasileira forte direta e coerente com os negros sudaneses Esses é que deveriam ser os referenciais culturais para o Brasil os negros que na África estavam mais naturalmente direcionados ao progresso e à civilização Ao criar esse critério o autor inclui na idéia de afrobrasilidade o perfil sudanês e exclui o perfil banto como critério de nossa possível civilidade Sudanesa é a ancestralidade que o Brasil precisa e quer Para isso ele descreve as etnias africanas transmigradas ao Brasil dando maior ênfase aos sudaneses nagôs jêjes haussás minas tapas bornuns gurunxis fulás e mandigas enquanto aos bantos angolas congos benguelas e moçambiques são dedicadas menos linhas menos descrições e argumentos Após localizar no mapa africano a melhor ancestralidade negra para o Brasil Nina Rodrigues usa os dados de suas pesquisas científicas para eleger e descrever as práticas culturais negras Inventase assim nesta tradição conceitual um modo específico de apreender o outro156 nesse caso o negro Cristalizamse nela também os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira a culinária as palavras de línguas africanas a indumentária os cultos fetichistas festas e contos populares folclore música dança pintura e escultura Sua abordagem é folclórica pensando cultura como tradição e tradição como reprodução mecânica de ideias e ações A cultura afrobrasileira não seria necessariamente arte porque a arte pautase no modelo de racionalidade estética ocidental Assim a cultura afrobrasileira que para ele seria destituída de racionalidade encontrase no reino do senso comum e por isso seria classificada como tipicamente folclórica Lançando o conceito de sobrevivências africanas ele propõe uma continuidade de práticas culturais africanas autênticas puras ainda existentes no Brasil Modificar tais práticas seria retirar delas sua autenticidade sua tradição e pureza seria descaracterizálas Desse modo o autor não só define os elementos típicos da cultura afrodescendente no Brasil mas a estabiliza conceitualmente cristalizaa propagando uma noção estereotipada de cultura que não pode se dinamizar caso 156 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 83 contrário perderia suas purezas suas africanidades Surgem oficialmente uma dizibilidade e visibilidade do ser e fazer negros Quando pensamos essa dizibilidade e visibilidade plasmada sobre os negros e sua cultura valemonos da noção de estereótipo trazido pela educadora Ana Célia da Silva imagens cristalizadas ou idealizadas de indivíduos ou grupos de indivíduos que cumprem o papel social de produzir os preconceitos as opiniões e os conceitos baseados em dados não comprováveis da realidade do outro colocando esse outro sob rejeição ou suspeita157 Conforme a autora os estereótipos representam atitudes negativas com relação a uma pessoa ou a todo um grupo baseandose em comparações nas quais o mundo tido como referência é o mundo do sujeito que interpreta e estereotipa Essa atitude provém da necessidade de alguns grupos agredirem enfraquecerem e dominarem outros Em visão complementar o historiador Durval Muniz afirma que O discurso da estereotipia é um discurso assertivo repetitivo é uma fala arrogante uma linguagem que leva à estabilidade acrítica é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras158 Para a escritora nigeriana Chimmammanda Adiche159 o problema dos estereótipos não é que eles não sejam verdadeiros mas que sejam incompletos e generalizados Edward Said160 afirma que o processo de construção de uma forma específica de apreender conceitualmente o outro não é pura invenção espontânea mas corresponde sempre a alguma materialidade um conhecimento superficial que corresponde de alguma forma aos objetos idéias ou pessoas de que se fala os quais desejamos representar Contudo é um conhecimento da parte que é tomada como o todo reduzindo a diversidade e a complexidade das identidades 157 SILVA Ana Célia Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático Salvador EDUFBA 2010 158 ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 159 ADICHE Chimmammanda O perigo de uma única história Conferência ministrada em julho de 2009 Oxford Inglaterra Disponível em wwwyoutubecom Acesso em 11 de maio de 2011 160 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 84 Nesse contexto as operações simbólicodiscursivas como produção de conceitos são elementos fundamentais Os conceitos são formas de representação161 que também formam ou reforçam estereótipos Enquanto intelectual Nina Rodrigues é o inaugurador de uma tradição de representar conceitualmente no Brasil a cultura afrobrasileira Embora essa representação parta de uma materialidade de dados observados e analisados segundo os referenciais dispostos naquele momento histórico esses conceitos não dão conta de toda a diversidade e complexidade que possui a cultura afro brasileira Tais conceitos formam fragmentos estereotipados da cultura afrobrasileira selecionando e elegendo o que se diz ser ou não típico dessa cultura deixando de fora toda uma rede de sujeitos eventos intencionalidades e significações Discrimina os lugares não só culturais mas também políticos e econômicos dos negros Esse processo de representação conceitual do que é o ser e o fazer negro se construiu nos primeiros momentos do século XX num projeto de fortalecimento de uma identidade contrária àquela que é a do ser e fazer branco Os argumentos os métodos e as instituições dos intelectuais que os produzem fazem parte de uma complexa rede de significações interpeladas por relações de poder que legitimam esses dizeres Construindo essa dizibilidade e visibilidade sobre a cultura negra reinventando a Nina Rodrigues descreve as indumentárias femininas e masculinas Para ele uma típica mulher negra vestese à baiana com saias de cores vivas e bem rodadas de seda fina Uma camisa de linho alvo e um pano da costa sobre esta Na cabeça um torço também chamado de turbante Adornamse bastante com colares e braceletes de ouro levando uma figa pendurada na cintura É costume também das mulheres negras carregarem os filhos nas costas presos a uma toalha Já os operários negros conservam o habito de vestes brancas de tecido grosso de algodão calça e camisa justa e curta que lembra os camisus nagôs162 O autor segue argumentando que a culinária brasileira também tem grande influência negra sobretudo na Bahia vatapá caruru bobó efó acarajé abará munguzá acaçá aberém arroz de haussá e cuzcuz são exemplos de comidas O autor evidencia a base comum dessa culinária na tríade azeite de dendê pimenta e milho ou arroz como provas das continuidades africanas em nossas cozinhas 161 Como explicado na introdução deste trabalho pensamos as representações não como espontenismo e criação meramente abstrata sobre as coisas mas como leituras possíveis a partir de alguma materialidade do objeto ideia ou pessoa representada As representações são tentativas de nomeação e classificação reducionistas pois não dão conta integralmente da complexidade dos objetos a que se propõem a representar mas de alguma forma se aproxima deles 162 RODRIGUES Nina Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p111 85 Já as línguas negras são concebidas como fragmentos dispersos de línguas africanas que foram acolhidas por uma língua maior e racional que seria a língua portuguesa Neste sentido as línguas africanas são presenças exóticas e sua existência no sistema complexo do português brasileiro habita um lugar predeterminado na hierarquia estabelecida lugar definido pela quantidade de palavras e importância de seus usos em contextos formais eou informais A língua nagô seria a que mais influenciaria o meio cultural brasileiro mas a presença negra na língua portuguesa é algo que a deteriora desqualifica À música à dança à pintura e à escultura o autor chama belasartes Ao fazer isso mais uma vez estabelece conceito e padrões europeus para comparar às produções dos africanos e seus descendentes no Brasil O termo belasartes aciona todo um referencial ocidental de produção artística mas quando o leitor acessa a descrição de Nina Rodrigues sobre as belasartes negras acaba desclassificandoas por comparação Conforme o autor as belasartes afrobrasileiras são tidas como formas de expressão que complementam a precária linguagem dos negros Mas elas o fariam isto de modo infantil por serem muito rústicas Embasado em LèvyBrhul Nina Rodrigues explica que para os povos ditos bárbaros a linguagem mímica e artística exerce um papel fundamental na inteligência prélógica163 predispondose à linguagem falada Assim a linguagem mímica seria essencial na cultura negra Ela completaria a linguagem primitiva dos africanos Por isso a dança seria tão importante para o negro A formação de círculos o ato de bater palmas os cânticos coletivos as interações coreográficas os gestos corporais contorcidos tudo isso faria parte das típicas danças negras tornandose elemento essencial para formar o gosto artístico do povo brasileiro o ser negro estaria intimamente ligado ao fazer dança do senso comum dos ignorantes do folclore Mas não se pode pensar dança sem pensar a música Desta forma o autor parte para analisar a linguagem musical dos negros e começa por fazer uma lista e descrição dos típicos instrumentos negros que ele sempre caracteriza ou desqualifica como rústicos atabaques canzás marimbas marimbaus matungos pandeiros e berimbaus 163 Conceito cunhado pelo antropólogo LèvyBrhul que classifica os diferentes estágios mentais do homem Para Brhul todos os homens são dotados de representações coletivas A diferença é que nas sociedades industriais as representações coletivas são reflexivas críticas e científicas enquanto nas sociedades primitivas são alógicas e supersticiosas no sentido em que tipicamente não realizam distinções de tempo espaço estado e ser Cf CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 86 Afirma que no Brasil o instrumento negro por excelência é o tambor Eis um símbolo que se torna praticamente sinônimo de negritude aglutinando a palavra à imagem o ser ao fazer164 Já a música negra é classificada como de vibrações fortes ferozes e confusas selvagens Nas pinturas e esculturas negras prevaleceriam segundo o autor os desenhos toscos traços simples e grosseiros Entre os principais temas de representação estão os religiosos prevalecendo traços físicos negróides O primitivismo e grosseria dos traços e estilo africanos seriam decorrentes de uma defasagem de uma educação precisa ou seja para que os negros produzissem esculturas enquanto objeto artístico deveriam ser submetidos a uma educação ocidental moralizante e racional Discutindo as festas populares e o folclore Nina Rodrigues enfatiza a presença do totemismo uma relação de parentesco entre homem natureza que se estende para a organização da vida civil Assim diz ele todos os povos negros escravizados eram totêmicos e essa forma de ver o mundo de construir suas relações de saber e de poder de organizar o mundo social constitui um dos principais pilares dos saberes fazeres e festejos populares Nas diversas manifestações folclóricas se perceberia a presença de esculturas de animais plantas ou outros objetos totens que fariam parte das performances e interferiam nas narrativas de tais manifestações o que comprovaria a mentalidade prélógica dos negros Já no folclore ficaram as lendas e os causos populares nos quais o protagonismo de animais é evidente A estes animais são associadas qualidades e ações humanas com fins de distrair e também moralizar O último lugar cultural analisado neste livro é a religião Para o autor as práticas religiosas foram as que melhor se conservaram no Brasil mantendose relativamente puras Porém é ainda perceptível a ênfase que o autor dá a umas perante outras como é o caso do culto jêjenagô que se internacionalizou com o advento da escravidão e aglutinou outras mitologias Para falar de religião Nina Rodrigues valese sobretudo da observação direta vai aos terreiros assiste a algumas cerimônias e entrevista participantes dos candomblés baianos mas ele também realiza análises indiretas através de processos criminais e reportagens A religião é o tópico que o intelectual discute de forma mais extensa e com maior propriedade 164 Não negamos a importância deste símbolo para a negritude O próprio MNU vai retomar a este símbolo positivando como ícone da ancestralidade africana O que problematizamos aqui é quando o tambor vira estereótipo do negro É como se para ser um autêntico negro o cidadão tivesse necessariamente que saber tocar e gostar dos tambores Oculto nesta concepção está a generalização de que todos os negros e negras associamse aos tambores Além do que este argumento toma a cultura como base material e não subjetiva 87 Nina Rodrigues afirma que os nagôs possuem um sistema religioso complexo divinizando forças naturais mas já atribuindo figuração antropomorfa Cultos que mesmo em meio a tantas repressões tornamse populares inclusive entre as populações brancas tão distintas na sociedade brasileira Para ele religião típica de negro no Brasil é o candomblé165Religião atrasada mas que demonstra lógicas muito próprias com possibilidades de evolução pois já teria dado provas de estar inserida na experiência de marcha evolutiva ao contrário por exemplo dos cultos bantos Ao longo de todo o texto percebemos uma grande complexidade de movimentos em seus argumentos Ora o pesquisador enfatiza uma suscetibilidade e inferioridade cultural negra ora acusa sua grande influência sobre a cultura branca denotandolhe relativo poder mesmo que um poder depreciativo Na discussão sobre a religião dos negros essas tensas zonas discursivas se tornam mais constantes Ora acusa os cultos fetichistas de degenerescência psicossocial ora os defende da ação abusiva da polícia Ora diz serem os negros selvagens e bárbaros tendentes à criminalidade ora acusa a justiça brasileira de não compreender as culturas negras Na verdade como diz Renato Ortiz166 Nina Rodrigues situase no meio de várias encruzilhadas discursivas período de muitas transformações nos campos político econômico social e cultural Seu discurso embora assuma opções feitas reflete a explosão de todas essas influências aceleradas que começam a interpelar as novas subjetividades brasileiras Seus argumentos são complexos interdiscursivos circulares Uma idéia extremamente importante e que não se deve esquecer é que nesse processo de inventar uma noção folclórica de cultura afrodescendente no Brasil Nina Rodrigues possibilita a leitura de que os negros foram de certa forma personagens ativos desde o início da empresa escrava no Brasil Para ele os negros colonizaram silenciosamente o Brasil e suas influências se veem até hoje Mas foi uma colonização na contramão no sentido contrário do que precisava o progresso da nação brasileira O Brasil ganha assim a partir de um viés científico a invenção de uma ancestralidade negra de perfil sudanês sobretudo nagô que se materializa nas palavras e expressões linguísticas típicas fragmentos exóticos de línguas africanas usadas no Brasil na música barulhenta e na dança frenética lasciva e contorcida que complementa 165 O intelectual era contra outras formas de culto que não os candomblés Para eles os cultos que denotavam reconfigurações advindas das apropriações de cultos bantos indígenas e de um catolicismo popular seriam práticas de charlatanismo Para a defesa do candomblé como autenticamente africano o autor usa o termo pureza nagô 166 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 p 34 88 a linguagem negra nas pinturas e esculturas de traçados grosseiros nas festas e saberes populares folclóricos totêmicos nas religiões fetichistas nas indumentárias e culinárias típicas Esses são os lugares simbólicos da cultura e os significados da afrodescendência brasileira em Nina Rodrigues Lugares simbólicos ser e fazer negros marcados pela falta pelo atraso pela carência pela grosseria e infantilidade de seus conteúdos e formas 2 Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira Em 1930 Gilberto Freyre homem de família tradicional de Pernambuco esteve na Bahia e conheceu o Museu AfroBaiano Nina Rodrigues encontro a partir do qual foi aparentemente seduzido por um universo cultural que lhe gerava uma mescla de estranhamento e atração ao mesmo tempo Queria entender uma presença cultural no Brasil tão evidente e já estudada que não se podia negar Os negros no Brasil estavam por todos os lugares e ele sabia que essa presença não se restringia só ao mundo material mas também simbólico brasileiro Ainda em 1930 Freyre vivenciou a experiência do exílio Passou pelos Estados Unidos por Portugal e por países africanos lugares que o influenciaram em sua busca intelectual de entender a cultura afro brasileira ou melhor o lugar e as formas das presenças culturais negras na identidade cultural brasileira Da mesma forma que Nina Rodrigues no final do século XIX Gilberto Freyre no início do século XX buscava compreender o caráter nacional brasileiro a fim de criar um discurso que desse homogeneidade à identidade nacional criando simbolicamente um povo brasileiro cujo símbolo maior seria a miscigenação É nesse sentido que a história lhe servirá como forma de explicação e entendimento da nacionalidade num momento onde as discussões sobre a identidade brasileira estavam na pauta dos políticos e intelectuais O Brasil adentrava numa nova era industrialização surgimento das primeiras universidades instituição das ciências sociais no país Houve uma maior burocratização do Estado que buscava dar novos formatos à educação saúde agricultura segurança cultura etc essas reformas na estrutura interna do Estado brasileiro absorviam os sujeitos e as demandas das camadas médias urbanas167 Zuleica Campos afirma que 167 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 89 entre os desdobramentos deste processo estão não só as movimentações pela reforma de outras esferas da vida social mas também o agravamento das crises internas das oligarquias dominantes da economia e da política nacional e a ascensão de Vargas ao poder político em 1930168 Campos pondera que entre as estratégias que marcaram essa transição para a formação desse estado centralizado e posteriormente autoritário governado por Vargas estavam o apoio ao desenvolvimento industrial à expansão da burocracia estatal à ampliação de assistência social aos trabalhadores e a tomada de um posicionamento nacionalista quanto a assuntos econômicos e culturais A história ao lado dessas ciências sociais buscará conhecer a realidade a fim de fomentar projetos de intervenção social Os intelectuais brasileiros estão buscando novas respostas para a identidade nacional brasileira como elemento que dará um sentido de comunidade aos cidadãos da república brasileira Uma nova versão para essa identidade moderna e que pudesse construir narrativas e símbolos que dessem conta do Estado de compromisso que privilegiasse as elites mas que pudesse contemplar elementos das tradições populares aproximandose das pessoas comuns de forma carismática parecendo democrático mas conservando as hierarquias sociais O Brasil seria ressaltado pelas suas peculiaridades mas com uma diferença em relação ao século XIX agora o pensamento intelectual nacional se propunha como não legitimador das formas de racismo exclusão exploração e dominação Numa perspectiva mais otimista se estudaria a pluralidade que forma a nacionalidade e se buscaria a modernização desta É neste contexto que são publicados no Brasil os primeiros textos paradigmáticos produzidos por intelectuais brasileiros de grande respeito no mundo acadêmico da época como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre O sucesso dessas obras também em nível internacional deuse pelo contexto do entre guerras Naquele momento havia não só as lembranças recentes da Primeira Guerra Mundial mas também se assistia à ascensão dos regimes totalitários que se legitimavam através das doutrinas raciais e do racismo científico As leituras que desvelassem distintas presenças raciais estavam no centro das atenções intelectuais do ocidente O pensamento freyriano ganhou ainda mais destaque por defender a tese de que o Brasil era um exemplo de nação tolerante uma nação que harmoniza as diferenças raciais 168 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 90 Freyre escreve sob influência da antropologia cultural de Franz Boas que buscava dissociar o conceito biológico de raça do conceito antropológico de cultura Neste momento a perspectiva eugenista ainda vigorava enquanto política social embora há muito tempo já recebesse críticas no campo intelectual Zuleica Campos169 afirma que as leituras mais influentes da teoria boasiana no Brasil foram as obras do antropólogo americano Melville Herskovits um dos principais discípulos de Boas nos EUA que estudou a presença negra na América Analisando o discurso científico da época tanto a historiadora Zuleica Campos quanto a antropóloga Maria José Campos170 buscam mostrar que no Brasil a noção de democracia racial a partir de uma interpretação otimista da mistura racial e cultural por meio da apropriação das teorias culturalistas americanas ainda estão associadas ao pensamento eugenista O que percebemos neste sentido é que os intelectuais brasileiros desse período não estão meramente reproduzindo teorias e sistemas explicativos vindos do exterior mas estão recriandoos conforme o contexto e as necessidades postas para o entendimento da identidade brasileira naquele momento Nesse sentido eles realizam operações discursivas que ressignificam conceitos e argumentos ligando ideias que a princípio estariam opostas realizando o que Ortiz chama de sincretismo científico Na busca de inaugurar um novo paradigma interpretativo Freyre diz que pretende realizar um ensaio que fosse ao mesmo tempo o que chamou de sociologia genética e história social Ele faz isso para criticar o modelo positivista de historiografia nacional da época por enfatizar uma perspectiva patriótica em detrimento dos temas que ele considera de interesse rigorosamente histórico171 Temas estes que estavam esquecidos ou inacessíveis aos estudiosos e que agora com a publicação de Casa Grande e Senzala seriam reconhecidos valorizados e divulgados resolvendo um problema político maior para o Brasil a criação de uma comunidade nacional integradora172 169 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 170 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 171 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p47 172 A obra Casa Grande e Senzala foi escolhida por ter sido a primeira obra onde Freyre realiza um denso estudo sobre a cultura negra atribuindo a ela uma dimensão histórica Esse livro é bastante relevante do ponto de vista simbólico pelas significações que constrói acerca da presença negra na identidade nacional sendo uma das obras mais lidas desde sua publicação até hoje no Brasil e no exterior 91 Destarte seu foco cai sobre tudo o que diz respeito à vida íntima e a moral sexual do Brasil onde para ele reside a autenticidade da nação o caráter do povo173 Essa vida íntima na moral sexual brasileira só poderia ser encontrada em outras fontes de informação ou sugestão referentes a lugares específicos de produção cultural quanto à participação do negro e mesmo do índio do folclore rural nas zonas mais coloridas pelo trabalho escravo dos livros e cadernos manuscritos de modinhas e receitas de bolo174 e quanto à produção cultural do branco coleções de jornais dos livros de etiqueta e finalmente do romance brasileiro que nas páginas de alguns dos seus maiores mestres recolheu muito detalhe interessante da vida e dos costumes da vida patriarcal175 Com essa construção argumentativa Gilberto Freyre já inicia seu texto demarcando os devidos lugares culturais ocupados por negros índios e brancos de acordo com suas hierarquias sociais Lugares que em sua narrativa viram símbolos associados à identidade de cada um desses sujeitos definindoas plasmandoas estereotipandoas Negros e índios produzem o folclore colorido musical e culinário Os brancos produzem a imprensa livros de etiqueta e literatura Dessa forma o autor começa a demarcar através da cultura a posição política de cada personagem no cenário de colonização e organização da nacionalidade brasileira É bem verdade que Freyre ao preferir construir uma narrativa histórica a partir de outros problemas perspectivas e fontes fez emergir novas interpretações historiográficas a respeito do passado brasileiro Contudo uma vez que os seus conhecimentos sobre a história política de que dispunha naquele momento só o faziam perceber os escravos em condições subalternas é justamente nessa subcondição humana que Freyre representa os negros em sua narrativa Negros que sofrem mas que produzem sua cultura sempre envolvente e gostosa embora ainda mística e rústica No momento em que agradece aos amigos que o ajudaram na construção do livro cedendolhe fontes indicandolhes bibliografias corrigindo o texto passandoo a limpo etc Freyre nomeia cada amigo contribuinte de sua obra pessoas ligadas às elites 173 Essa ideia de compreender o caráter ainda possui uma perspectiva biologista da questão Freyre quer entender esse caráter de forma psicológica naturalizando ou localizando na raça os elementos psicológicos que expliquem as práticas culturais em diálogo com os diferentes contextos de relações sociais que se estabeleciam Nesse sentido há um interdiscurso com a proposta de Nina Rodrigues Vide também REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 174 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 33 175 Idem Op Cit 92 oligárquicas às classes médias urbanas à intelectualidade ao poder público e por último a alguns exescravos Ainda quanto a esse agradecimento vemos que há uma forma hierarquizada no que considera como contribuições à obra Casa Grande e Senzala Aos exescravos compete responder perguntas informar sobre o que sabem de seu universo cultural passar receitas aos homens da elite que dominam as esferas políticas econômicas e de produção intelectual no Brasil compete ler revisar analisar sugerir ceder fontes escritas traduzir organizar construir critérios de análise e um sentido sobre as informações colhidas que formarão a narrativa Àqueles compete passar informações a estes compete fazer um conjunto de procedimentos uma operação simbólica sobre o passado nacional que legitima a visão de mundo de seus interventores176 Durante todo o texto Freyre recorre bastante a referenciais teórico metodológicos de intelectuais brancos utilizando como fontes os relatos de cronistas que estiveram na África e no Brasil colonial e falaram sobre o cotidiano e as atividades culturais dos negros nestas duas espacialidades genéricas177 O pensamento de Gilberto Freyre revela uma grande complexidade causada por diferentes referenciais teóricos e estratégias argumentativas onde parece que o autor quer revelar críticas às estruturas de poder mas ao mesmo tempo as ameniza quando dá exemplos de relações sociais harmoniosas construídas historicamente no Brasil Na verdade o que se percebe é a força persuasiva de um autor que parece buscar se aproximar do universo cultural dos excluídos para lhes inserir de forma mais digna nas 176 O historiador Tiago de Melo Gomes sugere que alguns artistas populares negros como Pixinguinha tenham influenciado a tese de Freyre Estes artistas negros elaboravam suas leituras críticas do contexto social do Brasil principalmente no que diz respeito às discussões raciais Também as formas de inserção desses artistas como símbolos da nacionalidade brasileira contribuíram para os estudos de Gilberto Freyre Para uma discussão aprofundada ler GOMES Tiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 CampinasSP Editora da UNICAMP 2004 177 Neste sentido é importante ressaltar que a obra de Freyre utiliza essas fontes como dispositivos de verdade As fontes ilustram o passado reafirmando os argumentos do autor Argumentos que por mais que pareçam inovadores consolidamse como conservadores das relações sociais Freyre ressalta a importância da utilização de outras fontes que revelem o caráter do povo através de sua vida íntima revelando suas essências mas a escolha dessa nova perspectiva tornou sua narrativa a vida dos brasileiros e a história do Brasil em uma saudosa memória de um passado cultural praticamente sem conflitos Apenas se buscou acrescentar fontes com outros tipos de informação mas sem desconfiar dessas fontes sem criticálas sem desvencilhálas do que o historiador Robert Slenes chama de olhar branco a percepção do branco sobre o negro e sua cultura As fontes que Freyre usou para legitimar suas verdades estavam cheias de olhares preconceituosos e estereotipados dos quais o autor não conseguiu se livrar pois os referenciais historiográficos de que dispunha ainda tomavam a fonte como provas da verdade sem se problematizar o lugar a autoria e a intencionalidade presente nas fontes De fato não se pode cobrar essa postura de Freyre pois essa não era uma postura consolidada no campo historiográfico principalmente no Brasil dos anos 30 afinal essas discussões só vieram a se consolidar algumas décadas depois contudo é importante ressaltar que a metodologia utilizada por ele naquele momento criou uma narrativa que reforçou estereótipos conservadores quanto à identidade cultural negra 93 relações sociais brasileiras porém que constrói uma narrativa que apaga os conflitos acalma as tensões sociais e preserva as hierarquias A colocação de pólos contrários como vencedor e vencido proprietário e propriedade explorador e explorado atribuindo a elas o mesmo valor semântico da expressão senhor e escravo em vários momentos do texto Casa Grande e Senzala possibilitou a interpretação de Gilberto Freyre como um autor comunista nos anos 30178 um estudioso subversivo que poderia alertar à condição estrutural de exploração e dominação na sociedade brasileira De outro modo no entanto o autor ainda utiliza termos eugênicos como raça superior e raça inferior raça adiantada raça atrasada e utiliza termos como confraternização harmonia harmonização união miscigenação etc Termos estes que o ajudam na construção discursiva da ideia de democracia racial Freyre assume que na sua trajetória intelectual inicialmente pensava a identidade nacional mestiça como doença tendo a perspectiva eugenista como modelo de pensamento Contudo depois de entrar em contato com teorias do difusionismo cultural de Franz Boas nos Estados Unidos passa a criticar a perspectiva eugenista buscando trocar o conceito de raça pelo conceito de cultura para reinterpretar o que o autor ainda chamava de contribuição cultural negra no Brasil Para Freyre as deficiências e carências apontadas pelos eugenistas como consequências diretas das raças na verdade seriam consequências de condições sociais e contextos políticos de uma raça ou cultura sobre a outra Desta forma o argumento que explicaria a inferiorização do negro e do índio no Brasil sairia do mundo natural biológico nato para o mundo social cultural e político Contudo as hierarquias raciais ainda estão presentes na narrativa histórica de Gilberto Freyre legitimando seus argumentos e reforçando relações políticas e sociais Ele põe a figura portuguesa no mais alto pódio da identidade nacional É o português quem governa constrói estupra administra ensina É o português o centro que dá sentido à brasilidade Freyre cria um esquema de estrutura narrativa que cria uma visibilidade centralizadora do português e periférica dos índios e negros Para ele o português é o elemento gerador de nossa estrutura social coesa É dele que parte os pontos de sustentação para índios e negros A casa grande senhorial foi o centro de coesão patriarcal e religiosa sob a qual se apoiou a organização nacional foi nela onde 178 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 94 melhor se exprimiu o caráter brasileiro a nossa continuidade social179 a família patriarcal foi a unidade centralizadora brasileira e o colonizador português o elemento ativo desbravador conquistador plástico dominador o patriarca que cuida O indígena foi o elemento passivo selvagem primitivo e fraco Já os negros foram passivos plásticos servindo como escravos de estimação Metáfora em que o autor assemelha o negro a um animal doméstico O mito fundador criado por Gilberto Freyre paulatinamente apaga e desqualifica a presença indígena enquanto tributária da formação social e cultural do Brasil O autor prefere evidenciar as presenças portuguesa e negra genericamente nomeada de africana Contudo essa relação é estabelecida hierarquicamente sendo à primeira presença reservada todos os adjetivos e sentidos centralizadores de poder racionalidade e civilidade ao passo que a segunda relegamse os sentidos lugares e atividades periféricas nas relações sociais e culturais O português já apresentava historicamente uma prédisposição à vida tropical e às afinidades interraciais devido às relações estabelecidas na África e na Índia por advento da expansão marítima portuguesa180 A harmonia e a democracia racial existiriam não graças aos indígenas e negros mas graças somente ao português que permitiu o estabelecimento dessas relações181 O poder viril do português não se materializaria somente na sua esfera privada de vida sexualidade mas também na esfera pública relações sociais e políticas O português grita decide comanda Às outras raças cabe obedecer Para Freyre esse seria um costume com profundas raízes históricas É como se o brasileiro gostasse e até sentisse falta de ser comandado182 pois Uma espécie de sadismo do branco e de 179 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 45 180 Na verdade nos argumentos do autor essa predisposição aos contatos com as ditas sociedades exóticas existia desde a formação do Estado Português O homem português já era mestiço com o árabe Essa miscigenação não o inferiorizava do contrário permitiu o pioneirismo português no contexto da expansão marítima e colonização dos mundos não portugueses Assim Freyre atribui uma interpretação otimista à miscigenação vislumbrandoa como possibilidade de progresso de um povo e não de seu fracasso Para José Carlos Reis Freyre devolve a autoestima das elites brasileiras que no final do século XIX sobre o paradigma eugenista havia sido condenada por ser mestiça REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999180 181 O racismo ainda estava tão presente no discurso de Freyre que quando fala sobre os casamentos inter étnicos no Brasil Colonial chega a afirmar sobre os filhos de portugueses e índias de semelhante intercurso sexual só podem ter resultado bons animais ainda que maus cristãos ou mesmo más pessoas Idem Op Cit p84 182 O historiador José Carlos Reis aponta que na obra Casa Grande e Senzala Freyre defende cinco teses 1 o encontro racial entre os diferentes povos foi harmonioso possibilitando casamento interétnicos e a formação de uma sociedade miscigenada nos trópicos Brancos negros e índios são povos do passado não existiriam mais em sua pureza o Brasil é todo de uma cor só mulato 2 essa miscigenação só foi possível graças ao caráter democrático do português que já apresentava uma predisposição histórica para 95 masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas relações sexuais como nas relações sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio183 Mas é interessante perceber que Freyre ao desenhar um português miscigenado desenha um português que é também africanizado pois é homem que recebeu muitas influências de árabes na arquitetura no vocabulário na culinária no catolicismo místico e popular Influências culturais africanas difundidas no mundo português que não provinham de qualquer África e sim da África do norte moura não somente mais próxima geograficamente de Portugal mas sobretudo mais civilizada Assim vêse de forma paradoxal tanto a adesão do autor ao difusionismo cultural ao evidenciar que as práticas culturais religiosas africanas foram difundidas entre as práticas culturais e religiosas cristãs quanto ainda certa dose de eugenia pois essas influências reconhecidas a princípio parecem construir um elogio mas na verdade são tratadas como depreciação 184 Sofreram os colonizadores não exclusiva ou diretamente da América mas das colônias em geral dos contatos com povos exóticos e raças atrasadas das conquistas e das relações ultramarinas decidida influência no sentido da dissolução moral O ônus moral do imperialismo185 Enfim enxergando o passado pela ótica do colonizador branco a quem tanto elogia Freyre justifica a vida sexual e moral do brasileiro a partir de referenciais como Montesquieu e Treitschke que atribuem ao clima tropical e à vida nos trópicos a existência da sensualidade da poligamia e da escravidão Desta forma conclui que os contatos entre raças diferentes 3 o cenário por excelência da miscigenação e ordenação da vida brasileira foi a CasaGrande 4 as limitações físicas e psíquicas do negros resultam não da raça mas das condições sociais as quais foram submetidos numa sociedade latifundiária de monocultura e onde a sífilis se espalhou e 5 o povo brasileiro é masoquista vem de uma tradição histórica de relações sociais de comando x obediência Sofre é explorado e comandando mas gosta porque essa foi a educação que o povo sempre recebeu Assim para fortalecer o país dar coesão ao povo e por ordem na república é necessário um governo ideal que seja másculo viril patriarcal e comandante supremo absoluto enfim autoritário REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 183 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 45 184 Idem Op Cit p 394 Essa leitura da religião se assemelha com o pensamento de Nina Rodrigues na obra Os africanos no Brasil para quem as religiões africanas depreciam a religião cristã 185 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 333 96 diante da natureza voraz e danos econômicos a escravidão foi uma instituição necessária à colonização do Brasil Na criação dessa instituição o português ocupou lugares estratégicos que lhe cabiam devido ao seu perfil exercendo os papeis que lhes eram mais próprios realizando atividades culturais que só sua competência poderia cumprir a política a administração as letras a diplomacia o direito Em Gilberto Freyre são esses os lugares da cultura branca Lugares caracterizados pela presença competente e poderosa pela riqueza e desenvolvimento pela racionalidade e pelo equilíbrio e harmonia entre conteúdos e formas Já quando sua escrita parte para caracterizar o índio Freyre utiliza termos como semicivilização raça atrasada selvagens introvertidos taciturnos morosos tristes calados sonsos sorumbáticos sem graça sem espontaneidade sem cortesia sem sorriso identificados pelo animismo e totemismo pela perene infantilidade carência e ingenuidade de cultura inferior e nômade A força de significação das palavras que o autor usa para homogeneizar e desclassificar as identidades indígenas revela a estratégia discursiva de hierarquizar identidades sociais Seu interesse em falar do índio no livro é dissertar sobre a sua influência nas relações sexuais e de família na magia e na mística É a partir desse recorte temático reduzido que o índio é integrado à narrativa histórica freyriana É no campo e nas matas afastadas da civilização dos centros urbanos que estão guardadas ainda vivas de alguma forma as reminiscências de práticas culturais tradicionais dos indígenas Criase como critério de autenticidade da identidade indígena o afastamento geográfico do restante da sociedade brasileira Desta forma Freyre também situa os indígenas em seus devidos lugares Determina segundo sua ótica branca os lugares da cultura indígena o folclore os contos populares as superstições as tradições totêmicas as relações de amor e compradio186 com animais e plantas que seriam perceptíveis na iniciação sexual de muitos jovens com tais animais ou vegetais a visão de mundo mística da crença no sobrenatural fato que explicaria o sucesso até aquele momento anos 30 do que o autor insiste em chamar assim como o chamava Nina Rodrigues de baixo espiritismo Todas essas sobrevivências culturais todas essas tradições primitivas teriam sido ofuscadas pelo próprio perfil fraco e passivo dos indígenas Freyre entende que foi por isso que os indígenas teriam sido apagados pela ação colonizadora e pela catequese europeia mesmo que tenham sobrevivido algumas influências do que ele chama da 186 Relações de parentesco e proteção Oriundo da palavra compadre Essa expressão denota o caráter patriarcal das relações sociais no passado colonial do Brasil 97 linguagem rústica dos índios na língua portuguesa Freyre ainda afirma que a produção açucareira exterminou os indígenas Ora pela morte ora pela fuga os indígenas haviam sumido da sociedade brasileira Estavam localizados no passado colonial não existiriam mais na república brasileira para além das lembranças romances folclore e história O índio fora substituído pela mão de obra escrava negra que para o autor era muito mais vigorosa em todos os sentidos É neste enredo que entra o personagem negro como foco na narrativa de Freyre Ele aparece dentro de uma problematização histórica que busca traçar as origens negras do Brasil Retomando o raciocínio de Nina Rodrigues Freyre afirma que os historiadores do século XIX limitaram a procedência dos escravos importados para o Brasil ao estoque banto Seria esse um ponto que se deveria retificar De outras áreas de cultura africana transportamse para o Brasil escravos em grosso número Muitos de áreas superiores à banto187 Através desta interdiscursividade com Nina Rodrigues o autor demonstra uma preferência em mostrar que em sua noção de cultura afro brasileira aparecerá o perfil sudanês as matrizes jejenagô e haussás entre outros povos sudaneses Os sudaneses seriam superiores graças a miscigenação entre sangue hamítico e árabe Mais uma vez sudanesa seria a ancestralidade africana que teria o Brasil era a que os portugueses desejaram pois se tratariam dos africanos mais elegantes bonitos e sensuais em detrimento da grosseria afrodisíaca dos bantos A presença banto seria mais uma vez apagada na narrativa historiográfica que dá logica ao Estado brasileiro O trabalho escravo dos negros teria sido necessário não só pela falta de indígenas para o trabalho mas também pela falta de mulheres brancas para os desfrutes dos portugueses e de técnicos em trabalhos com metais que fazem parte da típica cultura africana caracterizada na perspectiva burguesa como destituída de inteligência e prestígio tida pelo trabalho braçal a agricultura a mineração a pecuária a culinária Pelo título dado ao quarto capítulo O escravo na vida sexual e de família do brasileiro já conseguimos fazer algumas críticas primeiramente o negro entra nessa narrativa apenas como escravo é como se fosse uma condição natural de existência do indivíduo negro nascer ou ser escravizado e é sobre essa condição da identidade negra que a narrativa dotase de sentido Em segundo lugar o escravo negro é tratado como 187 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 382 98 um estrangeiro um ser que orbita em torno da família do brasileiro mas que dela não faz parte porque a ele não foi atribuído o adjetivo de nacionalidade brasileiro O escravo o negro seria alguém que invade essa família brasileira mestiça mas de caráter português a partir da vida sexual terceiro o autor já define um lugar cultural para a presença negra no Brasil a sexualidade mas não de qualquer forma e sim sob a forma de uma sexualidade permissiva associada a termos como sedução orgias e degeneração familiar É bem verdade que em vários momentos o autor atribui essa força da participação negra na vida sexual à instituição escravista pois reconhece que os escravos eram forçados na maioria das vezes a manter relações sexuais com os portugueses os homens de caráter viril dominador autoritário colonizador mas não deixa de atribuir aos africanos os adjetivos de escravos passivos e naturalmente lascivos Logo no início do capítulo IV o autor já define os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira os xangôs de Recife188 e candomblés da Bahia reisados maracatus coroação de rei do congo e ainda acrescenta Na ternura na mímica excessiva no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos na música no andar na fala no canto de ninar menino pequeno em tudo o que é expressão sincera de vida trazemos quase toda a marca da influência negra Da escrava ou sinhama que nos embalou Que nos deu de mamar Que nos deu de comer ela própria amolegando na mão o bolão de comida Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de malassombrado Da mulata que nos tirou o primeiro bichodepé de uma coceira tão boa Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu ao ranger da cama devento a primeira sensação completa de homem Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo189 Assim reaparecem aqui os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira já evidenciados na obra do médico Nina Rodrigues revelando nesta interdiscursividade as premissas racialista e discriminatória que não só estereotipam a identidade cultural negra mas também separam e mantêm as hierarquias sociais no Brasil Essa é a 188 No início do século XX os cultos de matriz africana no Recife eram chamados de Xangôs Nome que originalmente designa o orixá da justiça e do fogo que em Pernambuco foi estendido para significar também o espaço físico onde ocorrem os rituais os terreiros o toque nos dias de festas públicas e de forma genérica todo o culto O termo candomblé que hoje está bem difundido no Brasil veio a ser utilizado em substituição ao termo Xangô no Recife a partir dos diálogos entre intelectuais militantes e lideranças religiosas dos cultos em Pernambuco e na Bahia na busca de reafricanizar ressignificar e legitimar sua prática religiosa em nível nacional 189 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 367 grifos nossos 99 significação superficial que reveste a cultura afrobrasileira a partir dos seguintes lugares simbólicos a música e o canto a fala e a mímica que a complementa a culinária os contos populares e as lendas o misticismo do catolicismo à brasileira e a magia o curandeirismo caseiro Mas Freyre acrescenta outros lugares a brincadeira inocente onde o negro é naturalmente submisso a sexualidade onde o negro já experiente neste assunto inicia e corrompe a pureza do branco São esses os traços culturais tipicamente negros que o autor prefere evidenciar em sua narrativa Ele afirma ainda que não é de seu interesse ao menos diretamente a importância dos negros na vida estética e muito menos no progresso econômico do Brasil O autor preferiu evidenciar a importância negra na constituição da moral e do caráter do povo brasileiro ou seja as formas pelas quais os negros participavam da vida sexual brasileira É por isso no entanto que na página 395 ele descreve a cena de ritual de culto afrobrasileiro e admite não saber a função de um tecido em cor específica amarelo ou vermelho etc usado por alguns adeptos nesse ritual190 Daí se percebe que o autor fez recortes selecionou partes elegeu alguns elementos e práticas que se tornaram símbolos da cultura afrobrasileira em detrimento de outros mas os estudou sem contemplar a profundidade dos sentidos desses mesmos elementos culturais Muita coisa fugiu do olhar branco e da compreensão de Gilberto Freyre porque ele achava que eram coisas já postas já esclarecidas já compreendidas pelo olhar científico Dessa maneira alguns elementos que ele via nas práticas afrobrasileiras eram reduzidos a mero espontaneísmo sem significados profundos ou relevantes O difusionismo cultural ao qual estava filiado o fazia perceber que as culturas negras se espalhavam por todas as esferas culturais dos brasileiros no cotidiano mas não conseguia apreender muitos dos sentidos valores e conceitos que estavam por trás desses mesmos materiais e práticas da cultura negra que se difundiam Ora para ele não parecia ser fácil ou evidente compreender a cultura afro brasileira por dentro porque acreditava como Arthur Ramos e outros intelectuais brasileiros da época que os documentos oriundos da escravidão foram queimados a mando de Rui Barbosa Portanto não havia documentos que falassem dos negros diretamente por sua voz191 190 No candomblé o uso de cores no vestuário dos adeptos é uma alusão a cor que representam os orixás 191 No Brasil o intelectual que criou o mito de que as fonte sobre a escravidão haviam sido queimadas a mando do ministro da fazenda Rui Barbosa foi Arthur Ramos A esse respeito ele disse A história do trafico de escravos no Brasil ainda não está suficientemente escrita É de uma longa história só ela comportando um vasto volume Bem assim a história da escravidão destruição dos documentos históricos determinada pelo Ministério da Fazenda em circular n29 de 13 de maio de 1891 inutilizou várias tentativas nesse sentido E continuam muitos daqueles problemas aludidos sem solução RAMOS 100 Assim Freyre usa antropólogos sociólogos filósofos psicólogos biólogos cronistas literatos abolicionistas e clérigos que durante a colônia o império e início da república falaram dos e pelos índios e negros É a partir dessa interdiscursividade acrescentada de valores do próprio autor que ele constrói o perfil dos negros na história do Brasil extrovertido alegre risonho sociável expansivo loquaz fortes bem nutridos atléticos sensuais pobre mas limpo de iniciativa pessoal talento de organização poder de imaginação aptidão técnica e econômica indivíduo que possui identidade étnica Esses são termos que parecem dotar a identidade negra de bons atributos mas não devemos esquecer que muitos desses existem como pedido de permissão ou compensação para a aceitação do negro apesar de sua raça Não é a toa que o autor ainda usa metáforas como lama de gente preta Em outros momentos ele define os típicos personagens negros de nossa história ele plasma e limita os papéis sociais exercidos por negros o negrovelho o pai de terreiro o moleque de brinquedo a mucama a cozinheira perita na arte do forno a negrinha sensual o guia o cúmplice o curandeiro o corruptor mas sempre o escravo192 Nesta manobra discursiva o negro acaba sendo considerado o maior e mais plástico colaborador do branco na colonização do Brasil Vejase que ele não é tido como o principal colonizador mas apenas o contribuinte da grande obra portuguesa A colonização portuguesa foi política a africana foi cultural Aqui há uma hierarquia Enquanto o português o patriarca é duro viril dá ordens comportase cheio de cerimônias o negro escravo é mole intimista faz pedidos e súplicas Para Freyre o negro foi responsável por muitas das maneiras e vícios dos brasileiros Aqui a cultura afrobrasileira recebe mais uma conotação ruim pra além da ideia de folclore pois falar Arthur O negro brasileiro Recife Massangana 1988 p 1516 Embasados em Slenes 1983 Peter Fry e Carlos Vogt afirmam que os documentos queimados a mando do ministro da Fazenda Rui Barbosa foram os originais das matrículas de escravos que havia no Brasil desde a Lei do Ventre Livre em 1871 Esses documentos se tornaram a base legal da propriedade de escravos e eram usados como principal prova dos exsenhores de escravos na hora em que estes exigiam idenizações do Estado pela perda da posse do excativo Foi por isso que Rui Barbosa teria mandado queimar especificamente esses vestígios e não todos os documentos da escravidão como declarava Arthur Ramos em 1934 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 192 O tempo todo em sua obra Freyre usa a palavra menino para se referir à criança branca ao passo que usa o termo moleque para definir a criança negra A partir de Eni Orlandi não podemos deixar de crer que a significação das palavras tenha uma forte dimensão histórica e ideológica de cunho ainda racista As formas como se designam as pessoas desvelam não só representações mas interesses políticos ORLANDI Eni Análise de Discurso princípios e procedimentos Campinas SP Pontes 2012 101 em vícios numa sociedade cristã é remeterse a uma ideia de pecado vida errada abominável condenável O uso deste termo na narrativa freyriana parece soar como elogio pois o vício é tratado como um ato que seduz e é gostoso de ser praticado porém a ideia de prática errada ou condenável não foi abolida deste léxico Definindo os lugares dos negros e ainda retomando os cronistas de época e autores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos Freyre reestabelece o cenário típico onde o negro e sua cultura aparecem com maior força as festas sobretudo o Carnaval Situação social de perpetuação da cultura negra mística totêmica e fetichista É nas festas que o negro executa suas danças espontâneas dramática sensuais alegres e muito vivas A identidade negra é passiva feminina sensível é que realiza uma profusão de cores movimentos sons cheiros e sabores animando e suavizando a empresa autoritária da identidade branca ativa viril masculina e racional de nossa formação portuguesa Nas palavras do autor Muitos acrobatas de circo sangradores dentistas barbeiros e até mestre de meninos tudo isso foram os escravos no Brasil e não apenas negros de enxada ou de cozinha Muito menino brasileiro deve ter tido por seu primeiro herói não nenhum médico oficial de marinha ou bacharel branco mas um escravo acrobata que viu executando piruetas difíceis nos circos e bumbasmeuboi de engenho ou um negro tocador de pistom ou de flauta193 Por conseguinte além da dança e da música outro lugar cultural para o negro seria o circo Lugar onde poderia exercer naturalmente sua mímica excessiva Mais uma vez a cultura é usada como argumento para definir os papéis sociais dos negros no Brasil naturalizandolhes as funções onde exerçam trabalhos braçais que na lógica de nossa sociedade burguesa são desprivilegiados194 193 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 505 194 Para a filósofa Marilena Chauí não devemos esquecer que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social entre intelectuais e manuais e necessidade da escolaridade para ter competência de produzir uma boa cultura Analisando a noção de cultura de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre percebemos que eles usam do argumento cultural enquanto herança ou aptidão para legitimar o exercício dos negros em funções sociais menos privilegiadas na sociedade burguesa CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 É isso por exemplo o que também está querendo dizer Edward Said quando afirma que a colonização cultural que se dá também pela formação de estereótipos implica não somente na criação de barreiras e limitações culturais do outro de quem se fala mas também suas limitações sociais econômicas e políticas processo do qual os intelectuais não estão isentos aliás em muitos casos eles são os principais artífices 102 Como se trata de uma cultura dos trabalhos mecânicos a culinária não poderia deixar de ser evidenciada Freyre é categórico ao dizer que os negros dominaram a cozinha Este espaço teria sido dominado pela cozinheira gorda ou pelo homem cozinheiro efeminado que reproduziam alimentos e técnicas culinárias africanas produzindo os legítimos doces ou quitutes dos tabuleiros das negras forras Doces da rua coloridamente africanos que faziam desleal concorrência com os doces recatados das casas de família Fato que mostra a especialização dos escravos nas artes culinárias além dos outros serviços domésticos Segundo o autor a cozinha baiana é mais tipicamente afrobrasileira seguida das cozinhas pernambucanas e maranhenses Aqui o autor plasma uma série de estereótipos o perfil de quem faz os alimentos cozinheira gorda ou cozinheiro efeminado ou são receitas tipicamente africanas e os estados brasileiros de forte tradição de culinária africana Além de criar uma cartografia cultural localizando simbolicamente os lugares culturais dos negros Freyre interfere na cartografia simbólica do Brasil pontuando os pontos onde está mais nitidamente a cultura afrobrasileira O autor de Casa Grande e Senzala descreve a indumentária típica das negras vendedoras de doces reforçando a imagem que Nina Rodrigues descreveu das negras vestidas à baiana Quando fala da linguagem negra o autor faz outra caricatura Para ele a linguagem africana amolece o vigor da língua portuguesa tiralhe o prestígio a solenidade O contribuinte da cultura brasileira amolece e suaviza a imposição cultural do colonizador oficial Nas palavras do autor A linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama negra O processo de reduplicação da sílaba tônica tão das línguas selvagens e da linguagem das crianças atuou sobre várias palavras dando ao nosso vocabulário infantil um especial encanto O dói dos grandes tornouse dodói dos meninos Palavra muito dengosa A linguagem infantil brasileira e mesmo a portuguesa tem um sabor quase africano cacá pipi bumbum tentém neném tatá papá papato Lili mimi auau bambanho cocô dindinha bimbinho Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram perdendo a solenidade dissolvendose deliciosamente na boca dos escravos As Antônias ficaram SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 103 Dodons Toninhas Totonhas as Teresas Tetés os Manués Nezinhos Mandus Manés 195 Mesmo parecendo querer elogiar essa presença negra através do uso de adjetivos como encanto e dengosa o autor não dispensou o uso do termo selvagens para fazer referência às falas dos escravos Freyre deprecia essa fala pois dentro de sua perspectiva patriarcal e machista ele atribui à cultura negra a ideia de plasticidade moleza feminilidade algo que descaracteriza desfaz o vigor e a autoridade masculina do colonizador português Se antes havia duas línguas uma da Casagrande e outra da Senzala o contato das crianças brancas com as amas negras diluiu essa fronteira mas ao falar desse contato Freyre acaba referendando a concepção de linguagem africana como fragmentos estereotipados de línguas africanas que foram acolhidas pela língua portuguesa uma língua coesa exata e profunda capaz de dar sentido aos fragmentos limitados carentes de semântica própria dos africanos Fato que ocorreu não só na linguagem falada mas também na gramática do português brasileiro Os vocábulos africanos na língua portuguesa são para Freyre vocábulos órfãos ou no máximo filhos de pais não ilustres A influência africana deturparia a língua portuguesa mandá buscá comê ti faço mi deixe coler le pediu cadê ele vigie espie mas é justamente essa deturpação esse português errado que caracteriza o português brasileiro e garante a nossa identidade lingüística e o seu caráter vernáculo196 Um ponto interessante a se notar nessa narrativa é que Freyre visualiza o negro em um campo de atuação diferente dos que vinha citando até aqui caracterizados apenas por atuarem como trabalhadores braçais Para ele havia um campo de trabalho que alguns negros conseguiram ocupar dando novas formas a educação Um campo de prestígio social tido como trabalho liberal intelectual Falando sobre o negro na educação Freyre evidencia que as formas de ensinar nas práticas cotidianas de professores negros se dão de forma mais afetivas permissivas frouxas do que nas práticas dos professores brancos Isso teria a ver com o perfil cativante do negro como atesta o autor 195 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 414 O texto foi transcrito respeitando a grafia do texto original 196 FREYRE Gilberto Idem op cit p 419 104 E felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros doces e bons Devem ter sofrido menos que os outros os alunos de padres frades professores pecuniários mestres régios estes uns ranzinzas terríveis sempre fugando rapé velhos caturras de sapato de fivela e vara e palmatória na mão197 Na narrativa freyriana brancos negros e índios se confraternizam a cultura popular irradia pureza e autenticidade as diferenças se harmonizam e os conflitos tendem a desaparecer mesmo quando tangencia a violência física o estupro e o racismo mas omite a garantia de privilégios às elites brancas através da manutenção de hierarquias raciais Na obra Casa Grande e Senzala Freyre realiza uma abordagem cultural de cunho folclorista percebendo a cultura afrobrasileira como um conjunto de tradições africanas que são reproduzidas no Brasil sendo por vezes adaptadas devido à condição da escravidão Seu conceito de cultura parece bastante moderno próximo do conceito que será trazido na historiografia brasileira anos mais tarde como veremos mais à frente mas no momento em que ele passa a querer aplicar esse conceito localizando os lugares objetos e práticas dessa cultura ele o faz a partir de bens materiais e de algumas práticas sem buscar compreendêlas pela ótica dos negros Assim sua análise se mostra superficial 3 Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira O sociólogo Florestan Fernandes tornouse livre docente da Universidde de São Paulo USP em 1953 e em 1964 professor catedrático da mesma universidade Legitimado institucionalmente como intelectual Florestan Fernandes foi também militante político e um dos fundadores do PT Ele assumiu uma postura de esquerda voltandose à crítica social e governamental ao passo em que propunha um projeto de 197 Idem op cit p 505 Contudo observase que a prática cultural do negro na educação é uma prática que desfaz a lógica dura da racionalidade europeia na construção do conhecimento O que esperar por exemplo de um professor que deixe emergir mais as relações de afetividade no tratamento dos alunos do que a objetividade de seu trabalho como mestre Até que ponto essa representação do negro como professor em Freyre corresponde à leitura de um professor não autoritário e sim a um professor desprendido das obrigações do seu trabalho de ensinar Ainda assim o negro como um indivíduo recriador de práticas educativas é uma leve ponderação que poderia passar despercebida diante de uma maior evidenciação dos outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira que são plasmados como clássicos típicos autênticos na obra CasaGrande e Senzala culinária música sexualidade linguagem folclore 105 sociedade embasado nos ideais marxistas de igualdade e justiça Devido à sua postura de crítica política cinco anos após tornarse professor catedrático da USP ele foi aposentado compulsoriamente pelo regime militar que se instalara no país Regime político do qual se tornaria um dos críticos mais ferrenhos Sua ligação com a perspectiva marxista talvez possa ser considerada também por sua história de vida pois era um intelectual que ascendeu socialmente mas provinha de família humilde possuindo certa experiência enquanto cidadão brasileiro das classes baixas O marxismo lhe cabia bem tanto quanto visão política de mundo quanto como teoria científica que lhe legitimava intelectualmente198 O livro de Fernandes que analisamos é o clássico A integração do Negro na sociedade de classes199 A respeito desta obra o professor Antônio Guimarães explica Escrito originalmente como tese para o concurso de professor titular de sociologia da USP o livro é um ponto de encontro de muitos caminhos teóricos traçados por Florestan Fernandes até aquele ano e de passagem para uma reflexão madura e politicamente mais engajada sobre a sociedade brasileira200 Unindo suas pesquisas à sua militância política de esquerda à sociologia à historiografia de seu tempo Florestan já era em 1964 um intelectual consagrado Seu estudo clássico resultou de uma pesquisa encomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura UNESCO a fim de entender cientificamente o contexto do Brasil enquanto celeiro da democracia racial no 198 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 199 Dividido em dois volumes 1 o legado da raça branca e 2 o limiar de uma nova era A obra A integração do negro na sociedade de classes foi escolhida por conter uma análise social bastante densa e abrangente cujo foco é exclusivamente a presença negra na sociedade brasileira onde o autor assume o caminho da pesquisa historiográfica para construir sua tese de análise das relações raciais no Brasil do período pósabolição Esta obra contém uma análise das considerações que o autor faz a respeito do universo cultural dos negros brasileiros São estas considerações de Florestan Fernandes sobre a cultura afrobrasileira que constituem o foco de nossa análise Para o professor Antônio Guimarães do departamento de Sociologia da USP que prefaciou a 5ª edição da obra em questão existem dois motivos que explicam o sucesso da obra de Florestan Fernandes a atualidade de suas discussões e a sua importância na construção de um campo intelectual disciplinar no Brasil Esses motivos também são considerados nesta dissertação para que se tome A integração do Negro na sociedade de classes como obra de referência a ser analisada De fato sua importância quanto à construção disciplinar metodológica e conceitual foi muito importante no Brasil dos anos 1960 já o argumento de atualidade da obra se torna mais delicado pois há um bom tempo se reconhece às limitações do trabalho de Fernandes para a epistéme científica atual Neste trabalho a atualidade da obra se torna importante enquanto necessidade de rever a noção de cultura afrobrasileira presente na obra 200 GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 9 106 contexto pós Segunda Guerra Mundial e veio a denunciar um contexto brasileiro totalmente oposto ao que se imaginava quanto à igualdade de tratamento entre as diferentes raças constituintes do Brasil Ele chocou o mundo denunciando o caráter omisso e destruidor do racismo à brasileira 201 Ele escrevia num Brasil onde os centros urbanos possuíam grande importância econômica com o crescimento da industrialização e acirramento da ordem competitiva onde o Brasil aprofundava sua inserção na lógica do capitalismo tornandose mais dependente em relação às potencias estrangeiras favorecendo as classes interessadas no desenvolvimento interno202 Nos campos político e cultural havia um fervor de análises e proposições Para além de centros de administração das instancias governamentais do Estado Brasileiro os centros urbanos eram também o espaço de circulação das classes médias intelectualizadas onde se davam os principais debates sobre a moderna república brasileira e a reelaboração de critérios de cidadania nacional numa série de movimentos intelectuais que tentam resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados203 Projetos alternativos inspirados por exemplo na cultura e na experiência 201 Após as duas grandes guerras mundiais que foram alimentadas entre outras razões pela ascensão dos regimes totalitários e pela legitimação das doutrinas raciais e do racismo científico o Brasil se tornou referência mundial de boa convivência entre as diferentes raças em vários aspectos sociais a cordialidade a valorização de diferentes raças e etnias biológicos a composição interétnica das famílias brasileiras e culturais o reconhecimento de matrizes culturais de diferentes raças na composição da cultura brasileira Essa interpretação otimista como vimos foi criada pelo discurso de Gilberto Freyre intelectual brasileiro que tinha grande força no exterior A UNESCO encomendou tal pesquisa a Fernandes a fim de projetar o Brasil para o mundo como exemplo de tolerância às diferenças e harmonização das relações raciais a ser seguido pelo mundo O trabalho de Fernandes no entanto feriu profundamente a premissa que originou a investigação mostrando que o racismo brasileiro era ainda mais violento e omisso do que se imaginava No período de sua pesquisa a UNESCO também publicava a coleção História Geral da África com 8 volumes Esta coleção foi requisitada pelos próprios intelectuais africanos dos países recémcriados durante o processo de descolonização da África Nos países do então terceiro mundo as ciências sociais sobretudo a história foram eleitas como campo legitimador de denuncias políticas econômicas e culturais O colonialismo e o racismo estavam na pauta das denuncias enquanto deveriam ser evidenciadas novas interpretações históricas das experiências vividas pelos povos negros 202 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 p 203 203 A historiadora Lúcia Falcão Barbosa estuda o contexto intelectual do Recife entre o final da década de 1950 e início de 1960 Embora o foco da autora seja o cotidiano e a cosmovisão dos intelectuais sobre a construção da cidadania e da nacionalidade brasileira a partir do Recife parecenos bastante pertinente estender esse raciocínio em nível nacional pois nesse período prégolpe além da perspectiva nacional desenvolvimentista dos anos 50 e o golpe militar de 1964 ano em que a obra A integração do negro na sociedade de classes foi publicada houve uma emersão de intelectuais com perfil esquerdista preocupados em repensar a nação propor um novo projeto de sociedade brasileira e decidir sobre o que a autora chama de resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados num tom profético e vanguardista de forte vibração estética e política que inclusive chamou a atenção dos intelectuais do primeiro mundo Esse perfil não difere muito do perfil de Florestan Fernandes como viemos construindo até aqui BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de 107 popular para reformular novos projetos de ação e formação do Estado brasileiro204 Contudo esse fervor foi resfriado pelo golpe militar de 1964 que instaurou uma ditadura Esse contexto contudo não fez os intelectuais silenciarem bruscamente José Carlos Reis afirma que a administração pública dos militares demonstrava uma retórica ineficiente que não conseguia esconder as crises financeiras e os desequilíbrios sociais mesmo em meio a toda censura e política de propaganda Dessa forma os intelectuais se tornavam cada vez mais céticos sobre as possibilidades de soluções nacionais dentro da ordem vigente principalmente quando se tornou mais influente a hegemonia stalinista no Partido Comunista Brasileiro205 A contraproposta de muitos intelectuais naquele momento era a revolução A consciência revolucionária tinha grande projeção no Brasil dos anos 1960 206 onde se vislumbravam em nível internacional as experiências históricas de esquerda como a revolução cubana e o guevarismo além da valorização da historiografia marxista Neste cenário Florestan Fernandes era também um autor que deu importância não só aos conflitos sociais brasileiros com foco nas relações raciais como também aos movimentos sociais negros que até então não tinham ganhado destaque de outro pesquisador Por esse motivo inclusive Fernandes se torna uma referência que legitima parte dos discursos dos movimentos negros numa relação de circulação negociação e apropriação de sentidos e dizeres Sobre a influência da obra A integração do negro na sociedade de classes Guimarães afirma Desde que foi publicado este livro se transformou em manual de formação política de jovens intelectuais de esquerda que ingressavam nas nossas universidades e que iriam nos anos 1970 revitalizar o movimento social negro e de redemocratização política207 Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 204 FREIRE Paulo Educação e atualidade brasileira São Paulo Cortez Instituto Paulo Freire 2002 205 BARBOSA Lúcia Falcão Idem Idem op cit p 35 206 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 p 183 207 GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 19 108 Fernandes se propôs a evidenciar de forma crítica a figura do cidadão negro no Brasil situandoos no curso dos conflitos que formam e reformam o Estado e a nacionalidade brasileira o cotidiano e as relações interpessoais e institucionais Destarte a obra assume uma proposta que é de se estudar a sociologia e a história para que se possa refletir criticamente e posicionarse politicamente diante das interpretações falaciosas que defendem a ideia de harmonia integração e igualdade nas vivências cotidianas de nossas relações raciais Portanto o foco é a denúncia do mito da democracia racial um slogan carregado de ideologia política de manutenção de uma ordem classista e branca É justamente essa proposta interpretativa e ativista que será apropriada pelo Movimento Negro no Brasil no final dos anos 1970208 Para Fernandes o que considerava como o mito da democracia racial era uma ideologia dominante que consistia em tornar o que eram desigualdades embasadas no critério raça tão próprias da ordem racial escravocrata como desigualdades de classes sociais dentro da lógica da ordem competitiva tão própria do capitalismo industrial Isso consistia numa manipulação ideológica num erro conceitual Para o autor os negros estariam excluídos das esferas do poder no espaço público não só por serem pobres mas também por serem negros Aliás os pobres ele constatou através de estatísticas presentes no seu livro são negros em maioria quantitativa E são pobres por várias explicações históricas porque foram escravos por que foram libertados e não receberam apoio do Estado Brasileiro para dignificarem suas vidas porque tinha dificuldades de serem aceitos como trabalhadores livres já que competiam com os imigrantes europeus e porque enfrentavam o racismo no cotidiano do trabalho livre e assalariado Dessa maneira a condição dos negros no Brasil não se explicava só por critérios de classes sociais mas a localização numa classe social menos abastada era justificada pelo pertencimento a uma raça específica ou seja o tempo todo ao longo da história do Brasil os negros são empurrados para a pobreza No Brasil a condição de raça precederia a condição de classe Para Fernandes a passagem da sociedade escravista para a de ordem competitiva foi marcada por mais uma quebra da ordem democrática A crítica do autor é direcionada a uma burguesia branca que não reconhece 208 Contudo como já foi adiantado no capítulo anterior após as calorosas divergências entre culturalistas e políticos dentro do MNU a postura que foi predominante adotada posteriormente foi uma seleção de temas e argumentos presentes na tese de Fernandes Se os militantes abraçaram a denúncia científica do racismo enquanto forma de pensamento predominante no Brasil não o fizeram quanto à discussão política de Fernandes referentes à cultura afrobrasileira Veremos logo mais o porquê disto 109 a diferença racial a não ser quando é de seu interesse e que é contrária aos movimentos sociais negros Do ponto de vista metodológico Fernandes investiga como a ordem social dialoga com a ordem econômica ao longo do tempo onde se observava a permanência de um jogo de reprodução ideológica e política que evidenciava a historicidade das contradições contemporâneas da sociedade brasileira que ele mesmo caracteriza como racista Esse método de investigação conhecido depois como históricoestrutural foi o que marcou o perfil do que foi chamado posteriormente de escola paulista de sociologia209 Em A integração do Negro na sociedade de classes ele busca construir uma metodologia de ciência experimental que comprove sua narrativa histórica através da análise de vasta documentação histórica e dados estatísticos de entrevistas conversas em grupo e de levantamento bibliográfico sobre o tema Ele adotou uma técnica explicativa a que chamou de reiterativa pois almejava reiterar reconstruir em sua totalidade a realidade da sociedade da qual falava É nesse sentido também que o autor se localiza estrategicamente no seu texto como um cientista preocupado com a permanência do racismo numa sociedade que se modernizava De acordo com o autor Em sentido literal a análise desenvolvida é um estudo de como o Povo emerge na história Tratase de um assunto inexplorado ou mal explorado pelos cientistas sociais brasileiros E nos aventuramos a ele por intermédio do negro e do mulato porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil210 O autor queria entender como é que os exescravos conseguiriam se adaptar a um novo status no contexto republicano onde seriam cidadãos numa sociedade assumidamente hierarquizada Para isso embora seguisse uma forte inclinação marxista o autor buscava articular também a teoria estruturalfuncionalista da sociologia e psicologia social usando os conceitos de dinâmica social Mannheim de anomia 209 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 210 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 21 110 Durkheim e a dialética de Marx211 Seu desejo era que suas análises permitissem o conhecimento aspectos psicodinâmicos e sóciodinâmicos de mobilização dos homens pobres para ingressar na ordem competitiva Mas a leitura da obra nos faz perceber uma questão interessante Embora o autor busque a cientificidade para legitimar os seus argumentos sobre o racismo na sociedade brasileira como um homem de seu tempo numa sociedade que reinventa as diversas formas e práticas de racismo ele mesmo imerso numa ideologia que discrimina o lugar do negro acaba por depreciar e destituílo de inteligência e ação política pois o autor parte de estereótipos negativos acerca do negro e sua cultura A esse respeito o historiador George Andrews afirma que indubitavelmente existe nos argumentos de Florestan Fernandes algo de senso comum da sua época que sugere a culpabilização da vítima212 Em Fernandes o perfil do personagem negro já aparece liberto no período pós abolição sendo destituído de inteligência e autonomia Incapaz de lidar ou administrar o seu próprio destino O liberto se viu convertido sumária e abruptamente em senhor de si mesmo tornandose responsável por seus dependentes embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva 213 O cenário em que esse personagem negro aparece é o mesmo cenário do autor o cenário urbano a cidade de São Paulo que aparecia como o primeiro centro urbano especificamente burguês 214 Um cenário onde desde o final do século XIX com o projeto de branqueamento social no Brasil e a vinda de imigrantes europeus para concretizar esse objetivo os negros eram excluídos das novas possibilidades do mercado de trabalho que era ocupado pelos novos brancos do país Já em 1893 ele constata conforme o censo que 72 dos trabalhadores da cidade de São Paulo eram 211 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 212 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 É nesse sentido que Said afirma categoricamente que não existe imparcialidade dos cientistas quando selecionam seus temas de estudo Os intelectuais partem de estereótipos construídos em torno de seus objetos para poder analisálos Quando se trata de estudos voltados a analisar identidades sociais fica evidente a associação existente entre ciência e política em que as práticas de uma servem para legitimar as práticas da outra Mesmo almejando construir um estudo crítico que servisse de fomento à libertação do negro inconscientemente o estudo de Fernandes atualizava e legitimava discursivamente as hierarquias sociais e garantia o status quo de uma sociedade de privilégios para os cidadãos nãonegros Este aspecto desenvolvese sobretudo quando o autor opõe participação política e práticas culturais negras SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 213 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 29 214 Idem op cit p 34 111 estrangeiros Por conseguinte o negro fora empurrado para as tarefas mais desprestigiadas e mal pagas no Brasil Desenvolvendo o seu argumento o sociólogo pondera que em termos de ocupação da estrutura sociopolítica e econômica do Brasil os brancos brasileiros ocupavam lugar de centralidade na vida política e intelectual do país ao passo que os brancos estrangeiros imigrantes exerceriam funções técnicas e de prestação de serviços em outros setores econômicos em posições estratégicas sempre tendo a possibilidade de riquezas prestígio e poder enquanto os negros e mulatos estariam nos piores lugares de trabalho Os negros estariam presos a um lugar do qual não conseguiriam alcançar a mobilidade social e essa condição lhes gerou uma angústia e um desespero que apenas lhes deixaram poucas escolhas Sobre isso afirma o autor Diante do negro e do mulato se abrem duas escolhas irremediáveis sem alternativas Vedado o caminho de classificação econômica e social pela proletarização restava lhes aceitar a incorporação gradual à escória do operariado urbano em crescimento ou abater penosamente procurando no ócio dissimulado na vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de homem livre215 Aqui o autor começa a articular o ócio a vagabundagem e a criminalidade à situação de pobreza da população negra como possibilidades incertas de reconstruir a própria dignidade É sob o teto destes três princípios que se efetivará a cultura afro brasileira a festa a música a dança a bebida etc são associados aos momentos de lazer dos cidadãos negros que não têm o que fazer Àqueles que não optam pelo crime optam pela cultura como válvula de escape Neste sentido mesmo criticando a ordem produtiva capitalista Fernandes reafirma através de palavras carregadas de valores moralistas o princípio do trabalho e da produção Não trabalhar é ser ocioso e vagabundo Típico argumento burguês O autor chega a indicar que uma parte significativa desta exclusão do negro ao mercado de trabalho na ordem competitiva se devia também ao próprio negro ou melhor às deficiências do negro A recusa de certas tarefas e serviços a inconstância na freqüência ao trabalho o fascínio por ocupações real ou 215 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 44 Grifos nossos 112 aparentemente nobilitantes a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer do trabalho assalariado uma fonte de independência econômica essas e outras deficiências do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com que se defrontavam no regime de trabalho livre Nesta linha de raciocínio Florestan Fernandes vai tecendo um perfil do negro brasileiro após a abolição alienado rústico hostil atrasado vadio explorado ocioso viciado imoral É um trabalhador livre sem cidadania plena Alguém que porta uma cultura de ócio e alienação com a qual não consegue adaptarse bem à ordem competitiva Suas heranças culturais de rebeldia e fluidez para o trabalho proveniente de sua situação no sistema escravista não permitem que ele se torne um bom trabalhador livre que adquira uma mentalidade e os comportamentos requeridos pelo novo estilo de vida burguês que surgia em São Paulo Por isso é que o negro não seria bem aceito no mercado de trabalho tornandose excluído e enquanto excluído ele se tornara um viciado um imoral um criminoso num eterno ciclo de vitimização e culpa Por trás dessa concepção Fernandes está reafirmando a noção de que a cultura afrobrasileira é atrasada Quando pensa a história do Brasil Fernandes considera as elites brancas os fazendeiros comerciantes e imigrantes brancos como sujeitos históricos tomando os negros apenas como seres sujeitados alguém a quem não foi dada condições de ser ativo na construção da história216 Seu argumento é que com o advento da república e o crescimento acelerado dos centros urbanos as instituições foram reformadas e adaptadas ao trabalho livre e às leis do mercado dentro de uma lógica que beneficiava as elites e a empresa agrária preservando visões de mundo estilos de vida e propriedade patrimonial fortemente enraizada no perfil de uma sociedade colonial de estamentos Neste sentido os negros não teriam chances de ascender socialmente Para eles na quase totalidade a sociedade de classe permanecia não igualitária e fechada217 216 Florestan Fernandes desconsidera a participação de negros no próprio processo abolicionista Para ele os negros estavam tão confinados à exclusão social que não conseguiam intervir em relações políticas sejam quais fossem 217 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 62 Grifos do autor 113 Refletindo sobre o contexto de produção de Florestan Fernandes o historiador Robert Slenes218 no momento em que a industrialização brasileira crescia e o país desejava maior autonomia nos centros econômicos e políticos hegemônicos como forma de modernização do Estado era importante denunciar a submissão de um país ao outro de uma categoria social a outra Contudo a perspectiva marxista intensificou seu olhar sobre o escravismo numa perspectiva de total vitimização marginalização e destituição de suas potências criativas por um sistema econômico violento e traumático De acordo com Fernandes O trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de partida o esforço físico constrangido não educará o indivíduo não o preparará para um plano de vida humana mais elevado Não lhe acrescentará elementos morais e pelo contrário degradáloá eliminando mesmo nele o conteúdo cultural que por ventura tivesse trazido do seu estado primitivo Em síntese a escola da escravidão não formou apenas o agente do trabalho escravo deformouo219 Essa declaração parecenos bastante emblemática por uma série de significações que podemos analisar Em uma primeira inferência se percebe o quanto para o autor a instituição da escravidão deteriorou a humanidade dos negros deformandoo imoralizandoo consumindoo por dentro Ela não permite que o escravo saia de seu estado cultural primitivo como ele bem expressa selvagem atrasado para alcançar um plano de vida mais elevado mais consciente culto e digno dentro dos parâmetros ocidentais ao qual o autor se vincula Nesta lógica argumentativa a escravidão corrompera o acervo cultural africano de uma forma tão profunda e duradoura que esse impacto se estendera para a vida cotidiana dos negros livres O negro é mais uma vez caracterizado por um déficit pela falta Falta de liberdade de inteligência de cultura de poder político etc Ele não participara de forma ativa consciente politizada nem da abolição da escravatura nem da revolução burguesa Para Slenes a grande autoridade intelectual nesse campo discursivo de explicação marxista foi de fato Florestan Fernandes um autor para quem os negros estavam destituídos de seu acervo cultural Ele ainda situa os negros em condições sociais anômicas perdidos uns para com os outros desprovidos de laços de interdependência responsabilidade e 218 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 219 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 68 114 solidariedade portanto sem possuir uma vontade política comum Seria por esses motivos que para Fernandes os negros não tiveram um papel importante na dita Revolução Burguesa do Brasil Os negros são citados como incapazes não inteligentes desanimados como se sofressem de um banzo eterno onde sua cultura foi destruída Essa é uma das implicações políticas da representação do negro e sua cultura na narrativa histórica de Florestan Fernandes desqualificar os negros enquanto agentes históricos apagálos da participação política na construção do país Não porque o autor desejasse conscientemente fazer isso mas por discriminálo como alguém incapaz de estar nessa participação por sua condição carente e traumática Essa visão da Escola Sociológica Paulista embora buscando legitimidade cada vez mais na sua base científica continuava marcada por estereótipos racistas220 Ora para Fernandes se é que havia alguma cultura negra no pósabolição alguma tradição africana que houvesse conseguido sobreviver às intempéries da vida no cativeiro haveria de ser uma cultura tão empobrecida tão embrutecida tão desorganizada alienada e fragmentária que não possuiria uma lógica própria Sob a aparência da liberdade os negros e mulatos herdaram a pior servidão que é a do homem que se considera livre entregue de mãos atadas à ignorância à miséria à degradação social Perdidos uns para com os outros no estreito e sombrio mundo social que puderam recriar para si sob a escravidão não compartilhavam dos laços de interdependência de responsabilidade e de solidariedade que integram fortemente os homens nos pequenos ou nos grandes agrupamentos sociais221 A cultura negra seria mísera e desarticulada Ela não aglutinaria os membros de uma comunidade ou agrupamento social negro Ela não seria um instrumento de integração e vontade política Para o autor quando a escravidão foi abolida os negros sabiam que não queriam mais continuar sendo tratado como escravos mas não sabiam o que fazer para evitar isso Carentes de reflexão inteligência senso crítico e vontade política carentes de um sistema linguístico afetivo solidário e de significação do mundo A cultura negra aparece na narrativa de forma indireta apenas como práticas lúdicas ou vícios imoralidades alienação através das quais os negros continuam se 220 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 221 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 76 115 perdendo na história política para entrar nos apêndices de histórias da cultura brasileira de forma pitoresca como um estrangeiro na própria terra que é lembrado de forma espetacularizada através de fragmentos coloridos de um folclore estereotipado No Brasil que se modernizava a partir dos centros urbanos alçandose ao status de civilização e progresso só cabia a exclusão e a invisibilidade à cultura afro brasileira pois esta estaria no rol da cultura popular das práticas de tradição das possíveis marcas de uma ruralidade de um passado colonial rústico primitivo inculto pueril Foi nesse campo de significação que para Fernandes as práticas culturais dos negros foram expurgadas dos centros urbanos ditos civilizados Motivo de retrocesso e vergonha para o estilo de vida burguês a cultura afrobrasileira teria sido empurrada para as periferias das cidades e para o interior dos estados brasileiros onde teriam sido invisibilizadas Assim a modernização do espaço urbano não favoreceu a persistência da cultura negra que poderia servir como meio de associativismo negro Embrutecidos e perdidos uns para com os outros os negros e mulatos não perpetuavam cultura Ao contrário perdiamna Até neste sentido o sujeito histórico da narrativa é o homem branco É ele quem faz tudo ocupa lugar de poder exerce maior saber possui cultura mais elevada organizada e intencional É o branco quem inclusive destrói a cultura negra no raciocínio de Fernandes O exemplo dado pelo autor é o do nascimento da macumba uma prática religiosa descaracterizada e ridicularizada pela ação do branco A macumba seria uma prática religiosa brasileira e não africana porque inclusive perdera a pureza das tradições africanas222 Isso só foi possível porque os negros não conseguiram se organizar para protegerse e proteger sua cultura Não possuindo autonomia social para se associar através de valores culturais próprios de cunho autenticamente sagrado e tradicional a população negra perdeu a possibilidade de zelar pela pureza de seus cultos e acabou assistindo à perversão da macumba pelo branco223 222 Neste sentido como vimos Florestan reforça por outros caminhos interpretativos o argumento de Nina Rodrigues de que a pureza das práticas religiosas africanas foi corrompida pelas interações religiosas com outras matrizes étnicas No entanto vale ressaltar este não é o único ponto em que Fernandes reforça os estereótipos desclassificatórios de Nina Rodrigues pois ambos caracterizam a cultura afrobrasileira como atrasada rustica primitiva folclórica 223 FERNANDES Idem op cit p 86 Destaques do autor 116 Dessa maneira o negro entrega passivamente a sua cultura à ação deteriorante do branco Isso ocasionou a perda de oportunidades de congregação e reorganização social e política o apagamento dessa memória cultural rústica do centro urbano o isolamento econômico social e cultural do negro Esse homem negro esse homem rústico é projetado visivelmente na descrição de Fernandes como um ser caipira analfabeto mal vestido desprotegido paupérrimo Uma pessoa que se entrega à ociosidade à vadiagem à imoralidade e à desmoralização Que segundo o estereótipo racista do branco e aqui o autor busca afastarse discursivamente dessa concepção são desclassificadas como vagabundos cachaceiros desordeiros e mulheres àtoa Seres que através de suas bebidas festas danças vestimentas e aglomerações etc224 perturbavam e ameaçavam o decoro a propriedade e a segurança dos burgueses Talvez esses valores invertidos é que tenham aglutinado os negros A cultura negra recebe o rótulo de cultura popular e passa a ser evidenciada de forma a recriar espetáculos que não resolvem o problema da exclusão social do negro mas apenas o aprofundam225 Os estudiosos Peter Fry e Carlos Vogt226 chamam esta fase dos estudos afro brasileiros na qual Florestan Fernandes se enquadra de fase sociológica Nela já não mais interessa entender se o Brasil está no mesmo compasso ou não em relação às outras nações e sim a dialética entre universal e o particular em que se poderiam trilhar os caminhos para os países subdesenvolvidos A tônica agora seria estruturar as classes sociais no Brasil considerando a história particular dos negros como escravos e depois como trabalhadores livres marcados no país pelo sistema de preconceito de cor Ao romantismo da fase precedente substituise então um realismo de inspiração sociológica de fundo social e de aspiração socialista227 Atualmente as pesquisas em diversas ciências sociais assim como o desenvolvimento dos movimentos negros também já mostraram que várias teses 224 O autor não cita objetivamente as práticas culturais típicas dos negros assim como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre mas de forma indireta ele nos propõe inferências que indicam onde ele localiza a cultura afrobrasileira a música as festas as danças etc Nesse sentido ele não se afasta dos autores já analisados neste trabalho apenas indica os mesmos lugares da cultura as mesmas práticas mas agora atribuindo lhes um sentido de lástima pela perda política e exclusão social do negro Como uma camisa de força essa cultura prende negros e mulatos deteriorandoos à medida em que também se deteriora 225 Nesse ponto Fernandes faz uma crítica contundente aos cientistas sociais africanistas que se apoiando em referenciais como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre por exemplo realizavam esse tipo de abordagem folclorista e espetacularizada e relegavam à crítica à exclusão social do negro 226 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 227 Idem op cit p 35 117 defendidas no livro de Fernandes são controversas228 Na leitura feita percebemos que o autor analisa e julga o passado dos negros por um olhar ainda branco ou seja um olhar que não entende a lógica própria do universo cultural negro porque quer entender as macroestruturas sociais políticas e econômicas Desta forma seu livro clássico apela para uma interpretação pessimista quanto à identidade cultural negra Uma interpretação que desperta rancor pela exclusão social do negro ao passo que o evidencia como um incapaz legitimando um enredo trágico de uma revolução burguesa inacabada e de uma proletarização sem virtudes 229 É por isso que o MNU não toma a tese de Fernandes como legítima quando o movimento quer construir teoricamente o conceito de cultura afrobrasileira num primeiro momento enquanto crítica a permanência do racismo do branco em relação ao negro perpetuado pelo Estado brasileiro a obra parece ser conveniente mas quando passa a estabelecer e não compreender um perfil mental negro uma desclassificação valorativa e conceitual da cultura afrobrasileira Fernandes é julgado pelo MNU como um autor estrangeiro Tratase de um branco falando da cultura negra por uma ótica externa Seria um branco que faz parte ainda de um problema epistêmico e não da solução Como vimos no capítulo anterior em vários documentos o MNU brasileiro ponderou que não era a favor de uma segregação racial entre negros e brancos Os cidadãos não negros que desejassem criar caminhos para a reconstrução de uma tão sonhada democracia do Estado brasileiro seriam bem aceitos tanto é que como veremos no capítulo a seguir intelectuais brancos foram grandes parceiros do MNU na reconstrução epistêmica não só do conceito de cultura afrobrasileira como na elaboração e efetivação de propostas oficiais de reparação do governo brasileiro perante a população negra Porém isso não foi possível ainda com Florestan Fernandes uma vez que as lentes deste autor não permitiam compreender de forma mais profunda a mentalidade a experiência e a cultura afrobrasileira Seus referenciais teóricos só lhes possibilitaram chegar até determinados caminhos da análise social Não era aquela noção que o MNU queria associada a sua identidade aquela noção que trata o negro 228 O autor esteve sensível a este ponto de fragilidade de sua obra inclusive pelas condições de produção da investigação e produção textual em que esteve inserido A esse respeito ele assume que Esse desequilíbrio inesperado na realização do programa de trabalho que nos havíamos imposto faz com que esse estudo contenha provavelmente lacunas e defeitos que poderiam ser eliminados em outras circunstâncias FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 21 229 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 13 118 como coitadinho não só pelo seu passado mas também pela sua condição presente e talvez ainda futura por muito tempo de irracionalidade e impotência política Não foi objetivo neste capítulo discutir todos os intelectuais que neste vasto recorte temporal falaram da cultura afrobrasileira Escolhemos aqui como já dissemos na introdução os intelectuais que inauguraram paradigmas interpretativos da cultura afrobrasileira Vários outros autores que escreveram neste intervalo de tempo e até alguns que estudam ainda hoje se apoiam teoricamente nas noções de cultura afro brasileira forjadas por esses intelectuais de referência Como vimos embora tenham surgidos caminhos teóricometodológicos distintos o ponto de partida e chegada dessas interpretações são as mesmas incompreensões os mesmos estereótipos a irracionalidade folclórica a pobreza conceitual a impotência política a inferioridade vitimização e culpabilidade da própria cultura afrobrasileira que é sempre selecionada organizada descrita analisada e desclassificada pelo olhar externo ao negro o olhar estrangeiro embranquecido no sentido de ocidentalizado modernizado e cristianizado que não consegue perceber a existência de outros sentidos e possibilidades de organização ação e existência Ora se era contra essa tradição de pensamento que vinha se opor o MNU a partir dos anos 197080 que outro projeto poderia ser proposto para reconfigurar essa episteme não só da afrodescendência mas também do Estado brasileiro frente à reorganização do nacional No próximo capítulo analisaremos os conteúdos e formas equacionadas para dar conta desse propósito Encontraremos discursividades em movimento elencando não só palavras mas sons gestos e cores numa profusão de princípios éticos e estéticos políticos e culturais onde intelectuais de vários lugares sociais contribuem para a construção de um projeto maior 119 CAPÍTULO 3 A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO A HISTORIOGRAFIA O ENSINO DE HISTÓRIA E O NOVO COMPROMISSO POLÍTICO DO ESTADO BRASILEIRO 120 Unidos e organizados porém farão de sua debilidade força transformadora com que poderão recriar o mundo tornandoo mais humano230 Novas discursividades na construção do conceito de cultura afrobrasileira a narrativa histórica como instrumento assumidamente político Março de 1978 Voltamos ao contexto da Ditadura Militar no Brasil Um grupo de jornalistas chega à região de Sorocaba no interior de São Paulo no bairro rural do Cafundó A comunidade era composta de negros descendentes de exescravos Os jornalistas lançavam por si só um olhar de admiração e exotismo por aqueles que pareciam estrangeiros embora fossem brasileiros Na mídia os moradores do Cafundó eram apresentados na mídia como africanos descendentes de africanos exescravos que guardavam uma língua estranha herdada da África e da escravidão Entre admirações e repulsas a inquietação e debates ferrenhos Foi a inquietação curiosa acerca da ênfase na defesa de uma pureza de tradições africanas no Brasil que despertou o interesse de vários investigadores muitos dos quais foram à comunidade Entre os intelectuais que queriam comprovar de fato a existência de uma língua africana pura e os que duvidavam da existência dessa língua havia um pressuposto comum a de que o capitalismo desenraiza todas as culturas que não condizem com sua lógica de desenvolvimento Assim a pureza cultural do Cafundó não era possível numa sociedade capitalista a não ser que estivesse extremamente isolada desta Essa argumentação como vimos foi elaborada por Florestan Fernandes nos anos 1960 O que este micro acontecimento tem a ver com a Ditadura Militar especificamente Ora já se sabe que o golpe de 1964 consolidouse no poder esmagando as guerrilhas urbanas através de suas forças de repressão No entanto outro aspecto que deve ser ressaltado é que os modelos explicativos universais começam a ser questionados tanto o humanismo de direita ou o liberalismo quanto o humanismo de esquerda ou o comunismo Justamente nas entrelinhas do universalismo reaparecem as preocupações com o indivíduo com os micros universos com os pequenos grupos e categorias sociais as chamadas minorias231 No compasso de todos esses eventos a 230 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p 165 231 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 36 121 ciência e a cultura brasileira passaram por um fenômeno mais amplo de reconhecimento e valorização dos conteúdos formas e experiências que parecessem alternativos232 Embora fosse um período de censura e repressão surgiram no Brasil alguns movimentos sociais a exemplo do Movimento Negro Unificado MNU que foi fundado na cidade de São Paulo em 07 de julho de 1978 três meses após a descoberta do Cafundó pela mídia A repercussão de Cafundó fez emergir vários sujeitos grupos e instituições com propósitos bem diferentes Na PUC São Paulo Abdias do Nascimento233 lança o Instituto de Pesquisa e Estudos AfroBrasileiros Ipeafro e incluiu o Cafundó no seu projeto de pesquisa sobre os Quilombos Contemporâneos Segundo Fry e Vogt também o Clube 28 de setembro234 o MNU os pesquisadores os jornalistas e os advogados voltados à causa negra buscavam não só prestar assistência ao Cafundó mas também a partir dessa assistência se auto fortalecerem social e politicamente com base no espírito assistencial de suas ações Esse fato revelou diversas disputas políticas tanto entre alguns movimentos sociais como também diversas políticas teóricas entre diversos intelectuais na academia Foi durante o período da Ditadura CivilMilitar que os pesquisadores Carlos Vogt e Peter Fry conheceram a comunidade rural de Cafundó com a qual desenvolveram uma investigação de cerca de dez anos 1978 a 1988 Além deles também participaram dessa pesquisa o linguista Maurício Gnerre e o historiador Robert Slenes Estes pesquisadores reconhecem a força e a legitimidade dos movimentos negros a exemplo de outros movimentos sociais nos ganhos políticos para as categorias as quais representam Para eles os ganhos políticos na legislação brasileira devemse aos movimentos presentes no cenário nacional que manifestam enfaticamente o ponto de vista teórico ideológico e militante de intelectuais e de organizações na defesa da etnicidade como um valor de si mesmo235 Desta maneira consideraram legítimo a aproximação com o nascente MNU 232 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 233 Como vimos no capítulo 1 Abdias do Nascimento foi um dos principais líderes do Teatro Experimental Negro TEN Além de escritor e dramaturgo Abdias foi também Professor Enquanto um dos principais militantes negros do século XX agia nos campos intelectuais e políticos do MNU em nível nacional chegando a ser parlamentar 234 Associação Negra existente em São Paulo nos período da pesquisa 235 Esta perspectiva aproximase da caracterização dos movimentos sociais no Brasil do século XX feita pelo sociólogo Arim Soares do Bem para quem a importância histórica desses movimentos consiste não somente no fato de que eles revelam tensões e conflitos sociais mas também no fato de que as categorias reivindicatórias de direitos também elaboram propostas de soluções possíveis para o que exigem buscando a institucionalização jurídicolegal das conquistas ampliando e universalizando o campo formal do direito para todo conjunto da sociedade criando novos contextos históricos BEM Arim Soares do A 122 Num e noutro caso obedecíamos ao mesmo impulso ideológico a crença de que o Cafundó era um símbolo de resistência negra cujo alcance político ainda que legitimasse nosso trabalho acadêmico o ultrapassava Era inconcebível para nós brancos que somos que esse símbolo não fosse incorporado na luta mais ampla dos movimentos negros236 Os autores em questão explicam que assumiram um compromisso político para com a comunidade a fim de que sua pesquisa não trouxesse benefícios apenas para eles mesmos enquanto intelectuais mas também para os próprios moradores do Cafundó enquanto sujeitos participantes do estudo A pesquisa em história se propôs a investigar e contribuir para a confirmação da posse da terra da comunidade que naquele momento era uma afirmação bastante contestada Após o denso trabalho cruzando depoimentos orais com inventários e testamentos nos cartórios do interior de São Paulo foi constatada a real posse de oitenta alqueires das terras do Cafundó pelos seus habitantes descendentes de exescravos que haviam recebido a terra como herança de seus senhores Intelectuais e representantes da comunidade do Cafundó conseguiram pressionar o governo ao ponto de garantir o reconhecimento a relegalização de suas terras A história rendeu tantos debates e reportagens que pressionou o reconhecimento público do Estado brasileiro para com a diversidade étnica que o compõe em suas especificidades e o compromisso em garantir os direitos básicos para a autogestão de uma vida digna no grupo Em 1990 ocorreu o tombamento do Cafundó enquanto comunidade negra com posse legal das terras momento em que também essa comunidade foi consagrada como símbolo para as lutas do MNU Neste sentido a ação desses diversos sujeitos e instituições possibilitaram através da participação da comunidade do Cafundó um ganho político para essa mesma comunidade O que mais nos importa desta história é o fato de que nesse contexto de múltiplos interesses e significações Peter Fry Carlos Vot Robert Slenes e Maurício Gnerre se posicionam política e intelectualmente quanto à tradição acadêmica de pensamento que havia se estabelecido sobre a cultura afrobrasilera Estes intelectuais propuseram a revisão do conceito de cultura afrobrasileira criticando sua historicidade centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 236 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 18 123 revelando novas experiências históricas onde essa cultura possa ser evidenciada de forma diferente Promoviase uma série de esforços intelectuais para compreender de forma mais interna e profunda os significantes e significados que criam e recriam a lógica dessa complexa cultura afrobrasileira Para isso os autores propõem não só a crítica dos referenciais antigos como também a seleção de novos referencias nos campos da antropologia da linguística e da história De que forma isto assume a forma de narrativa histórica Veremos a seguir através da análise do livro Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade237 1 Peter Fry e Carlos Vogt a dinâmica cultural e a cultura afrobrasileira repensada Fry e Vogt assim como seus colaboradores assumem posturas intelectuais mais transparentes frente a sua proposta de trabalho ao tema aos sujeitos participantes à academia e à sociedade brasileira Discursivamente eles se localizam estrategicamente numa fase de transição epistemológica e política onde não só o Estado deve ser repensando como também a ciência e as identidades sociais e culturais Dessa forma eles assumem uma parcialidade em favor da história negra ao passo que se colocam dentro da experiência estudada e não fora como os intelectuais que vínhamos estudando até aqui De acordo com os autores O relato que aqui será feito é o de um narrador cientista que interessado em relativizar o comportamento do outro se descobre ele próprio relativizado diante desse comportamento Um relato cujo narrador em terceira pessoa dá lugar a um narrador em primeira pessoa isto é a um narrador personagem238 A experiência investigativa pela qual passaram os fez revisitar os estudos canônicos feitos até aquele momento sobre a cultura afrobrasileira Dessa maneira os autores pontuam duas tradições de abordagem científica dos africanismos reinventados 237 Esse livro foi escolhido pelo fato de inaugurar uma nova perspectiva de se entender a cultura afro brasileira através do paradigma que os autores chamam de históricoestrutural em que como o próprio termo sugere a dimensão histórica ocupa um lugar privilegiado para se entender a cultura Foi esse livro também que possibilitou à historiografia da escravidão no Brasil dar saltos qualitativos na sua produção investigativa sobre os complexos processos de formação da cultura afrobrasileira 238 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996p 20 124 no Brasil que merecem destaque a primeira seria a filológica ou historicizante e a segunda seria a históricoestrutural A primeira se preocupa em evidenciar as origens continuidades e similaridades entre práticas culturais no Brasil e na África E têm uma perspectiva folclorista que promove uma espécie de genealogia cultural evidenciando aspectos da cultura africana no Brasil que os próprios brasileiros não têm consciência Nesse sentido a cultura afrobrasileira emerge como pitoresca e cristalizada desconsiderando o dinamismo dos processos históricos que fazem com que os traços sociais e culturais acabem sobrevivendo e sendo readaptados mudando de sentidos e significações A cultura afrobrasileira seria atemporal cristalizada mera reprodução mecânica de atividades exóticas Os sujeitos que a fazem seriam destituídos de inteligência e criatividade pois apenas reproduzem mecanicamente as atividades herdadas dos seus antepassados sem adequálas aos novos contextos Nina Rodrigues e Gilberto Freyre são exemplos dessa abordagem filológica e folclorista que consistia num método comparativo entre Brasil e África privilegiando as línguas religião e folclore Tal abordagem corresponde à fase de estudos afrobrasileiros a que Fry e Vogt chamam de romântica A segunda perspectiva a históricoestrutural na qual os autores se inserem considera que a vida social não incide em combates campais entre culturas opressoras e culturas que romanticamente resistem mas entre grupos categorias e sujeitos para quem a cultura orienta a ação política e é ao mesmo tempo uma arma usada para empreendêla Aqui os autores estão pensando a política no plano micro como relações de poder que se estabelecem no cotidiano Nessas pequenas e grandes batalhas do diaa dia a cultura vive e revive através daqueles que a usam transformandoos e transformandose É desse ponto de vista que eles estudam a língua africana do Cafundó enquanto prática cultural viva dinâmica ressignificada e ressignificante e como ação política Essa linguagem específica é entendida como eixo estruturador da vida em sociedade cujo significado político e social é dado pelo contexto das relações onde tem existência Temos portanto uma abordagem lingüísticoantropológica O grande debate sobre reprodução versus transformação cultural agora passa a ser abordado à luz de um estudo das relações sociais concretas nas quais esses traços culturais se articulam Privilegia a natureza política e econômica das relações entre os articuladores dos africanismos e a sociedade envolvente Pensase a cultura afro brasileira apontandoa em várias direções Esses autores estão nas décadas de 70 e 80 propondo um novo paradigma interpretativo para a cultura afrobrasileira 125 A primeira perspectiva pontuada referenda a desqualificação e exclusão dos negros na história e cultura nacional a segunda propõe uma compensação da cidadania negra através de novos mecanismos de análise e conhecimento em que a cultura consiste um campo privilegiado da ação política Na pesquisa em questão essa lógica da compensação é percebida no interior das relações sociais da prática cultural da Cupópia ou Falange nomes que designam a língua falada no Cafundó assim os autores comentam Tudo se passa como se por uma espécie de mecanismo compensatório fosse criado um espaço mítico no interior da situação de degradação econômica e social característica da história das populações negras do Brasil espaço no qual seria possível uma como que renovação ritual de certa identidade perdida239 Este fato remodela as relações sociais dentro do grupo e deste com o conjunto da sociedade Tal perspectiva analítica possibilita compreender como a sobrevivência de certos traços culturais de origem africana até o presente se tornam um elemento compensatório um importante eixo estruturador da construção de identidades e relações sociais numa sociedade marcada pela exclusão do negro Do ponto de vista metodológico a pesquisa foi iniciada com o recolhimento de relatos orais onde foi dada grande importância à memória dos cafundoenses Após verificarem que existiam vários pontos convergentes e outros divergentes nas narrativas sobre a origem da comunidade os pesquisadores partiram para os arquivos e cartórios da região Através de um rigoroso levantamento de fontes dados e cruzamentos de informações através de documentos legais como mapas e inventários constataram a propriedade de terras da comunidade para os escravos e seus descendentes como marco de origem da comunidade e de suas relações sociais e culturais Constataram também vários processos de grilagem dessas mesmas terras pelos fazendeiros vizinhos Um processo violento marcado por brigas e mortes Para os autores as representações presentes nos relatos dos informantes embora sugestivas não mereciam muita confiança em consequência da ausência de dados complementares de outras fontes Neste sentido as outras fontes buscadas permitiram a reconstituição da história da comunidade desde o século XVIII Os autores procuraram 239 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 26 126 situar esses aspectos de experiência histórica da comunidade do Cafundó dentro do cotidiano da escravidão especificamente no interior de uma política de domínio senhorial amplamente difundida na região muitos senhores daquela região deixavam suas terras para os seus escravos Contudo este tipo de relação estava longe de caracterizar as relações entre senhores e escravos como relações harmoniosas como na proposta de Gilberto Freyre Do contrário Fry e Vogt enfatizam a existência de uma política de dominação senhorial presente nessas doações que só aconteciam quando os senhores não possuíam descendentes diretos para deixar as terras como posse Quando a recebiam os escravos não podiam arrendálas vendêlas ou doálas Isso fazia com que os escravos permanecessem de certa forma presos às terras que se tornavam extensões da posse dos antigos senhores através dos escravos Nos inventários analisados o testador sempre procurava limitar o direito dos donatários de dispor da propriedade Os escravos e também os seus descendentes libertos eram vistos como infantis incapazes de cuidarem de si O incentivo a formação de famílias entre os próprios escravos também fazia parte da política senhorial de dominação visando tornar esses escravos mais dependentes240 Foi assim que os autores puderam por exemplo situar o caráter de comunidade organizada a partir da ideia de parentesco do cafundó no século XVIII um momento histórico que antecede em muito a doação de terras e à fixação do grupo no local atual Através do estudo da genealogia das famílias que compunham a comunidade do Cafundó à época da pesquisa os autores verificaram que um grande traço definidor da comunidade negra era a estabilidade familiar essa estabilidade definia a estrutura social e cultural através das normas familiares e comunitárias que possuíam grande relevância A partir desse dado os autores refutam a ideia de família devassa instável anômala e patológica socialmente veiculada por uma historiografia culturalista como a de Freyre241 Enfim essa perspectiva já redireciona nosso entendimento quanto à noção de cultura Aqui estão sendo enfatizados outros aspectos culturais como a linguagem a 240 O que não quer dizer que os arranjos familiares sejam unicamente decorrentes dessa política de dominação senhorial pois explicam os autores os escravos sempre interpretavam a sua condição dentro dos contextos e viram a união matrimonial como possibilidade de ganhos materiais e simbólicos por isso também costumavam casarse Porém não é fácil chegar a essas conclusões há que se ler os documentos nas entrelinhas de forma conjuntural Todas essas informações são importantes para se compreender o contexto em que tem sentido a língua chamada de cupópia ou falange 241 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 26 127 constituição de famílias e a organização social embasada na ideia de parentesco Os autores também atentam para a organização espacial da comunidade242 que se apresentava de forma circular onde de um lado desse círculo se colocava uma parentela Almeida Caetano e de outro lado outra parentela Pires Cardoso Naquele contexto havia uma série de leituras e significações dos fazendeiros e outras comunidades vizinhas ao Cafundó referentes aos Almeida Caetano Devido à suas práticas culturais eles eram referidos como praticantes da falange ou cupópia vagabundos embrulhões de emprego esporádico sem aliança com o poder local e católicos que exerciam práticas de cultos afrobrasileiros Já os Pires Cardoso eram tidos como trabalhadores honestos que não falam a falange e têm alianças com o poder local possuem empregos regulares e são evangélicos Percebese que são representações que tomam como pontos de partida alguns símbolos de uma estereotipada ancestralidade africana o fato de falar ou não a cupópia de praticar ou não cultos afrobrasileiros de não lidar de forma digna com o trabalho de serem vagabundos e embrulhões243 242 É importante ressaltar que os autores não desconsideram outras práticas culturais como afro brasileiras a exemplo das danças músicas candomblé festas jogos etc Esses que se tornaram lugares clássicos da cultura afrobrasileira no discurso oficial e por conseguinte no senso comum do entendimento brasileiro A partir deste momento a noção de cultura afrobrasileira e suas práticas de dança música gastronomia e candomblés são aqui interpretadas de forma diferente não como elementos de pura herança africana que compõe o folclore brasileiro nem como práticas de alienação mas como práticas que inscrevem sentidos memórias identidades solidariedades e relações de poder Nas palavras dos autores Nesse aparente paradoxo é que reside talvez o papel social mais importante dessa língua africana do Cafundó Esse papel em outras circunstâncias pode ser manifestado através de outros recursos culturais como por exemplo dança música gestos corporais representações dramáticas etc enfim recursos que integram inúmeras manifestações culturais de origem africana no Brasil Pensamos nos candomblés nos congos e moçambiques na capoeira nos afoxés etc VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p120 243 Aqui esse conjunto de representações está nitidamente associado ao mundo social que circunda a comunidade do Cafundó no entanto vimos essa mesma espécie de raciocínio está presente na obra de Florestan Fernandes o que comprova a forte presença de estereótipos racistas em sua interpretação oriundas desse contexto em São Paulo que pensa a cultura afrobrasileira enquanto popular rústica atrasada alienação e depreciação a partir da qual os negros herdaram da escravidão à má vontade quanto ao exercício do trabalho preferindo a vagabundagem A diferença argumentativa é que as pessoas comuns usavam esse discurso para acusar condenar e justificar a exclusão do negro culpablizandoo já Florestan usa essa marca discursiva para vitimizar os negros e não condenálos Quanto à adjetivação de vagabundos para os Almeida Caetano depois de recolher relatos orais e investigar mais informações os pesquisadores constataram que o que parecia ser somente vagabundagem era na verdade uma estratégia pela sobrevivência pois os Almeida Caetano estavam ameaçados de morte caso saíssem das terras Era por isso que eles preferiam trabalhar nas próprias terras para o próprio sustento ao invés de buscarem trabalho nas fazendas vizinhas contrariando a ideologia trabalhista Assim o que antes era compreendido como vagabundagem passou a ser analisado de forma mais detalhada e virou estratégia de sobrevivência frente às ameaças de morte Nesse trânsito discursivo Fry e Vogt construíram outras marcas discursivas ressignificando a experiência e a identidade negra 128 No decorrer da pesquisa os autores começaram a enxergar outras possibilidades interpretativas e passaram a construir um novo perfil para esses sujeitos negros da comunidade Por exemplo analisando o mestre Otávio 64 anos líder da parentela Almeida Caetano os pesquisadores caracterizamno como um homem trabalhador festeiro cantador e contador de histórias poeta e tocador de sanfona estimado por muita gente Otávio era um homem que anteriormente bebia muito até que deixou de beber como ele mesmo narra por conta própria mas não perdeu a empolgação pelas festas músicas e danças Era um homem de muitas vaidades Um homem muito cordial que exercia grande poder de liderança local embora não estivesse nada próximo do protótipo de um herói negro como por exemplo Zumbi dos Palmares Mas todos os contatos entre a comunidade e o que vem de fora dela passam por ele na medida em que mantém coeso um grupo de parentes que dadas as condições históricas das suas relações sociais poderiam e até mesmo deveriam estar espalhados Para os autores este homem negro não era um alienado pois em seus relatos ele deixou muito claro a sua consciência de liderança atribuindo boa parte dela ao seu destro uso da língua africana Conforme os autores a identidade de Otávio é marcada por contradições entre a fanfarronice e a consciência de que é preciso defender as suas coisas e parentes e lutar por direitos Este homem é transformado num novo modelo de compreensão dos negros Constróise mais um símbolo de negritude num herói comum que age politicamente no cotidiano Agora a ciência diz que o negro é um sujeito histórico Ele é organizado consciente e dotado de ação política Aspectos apenas visíveis quando se parte para uma pesquisa que busque compreender a cultura no cotidiano mediando conflitos Esse novo universo descritivo foi construído a partir das múltiplas atividades do mestre Caetano o trabalho na terra e na criação de animais o trabalho de rezador e benzedor na comunidade o grande afeto e ironia que marcam as suas atitudes Assim os autores fazem uma operação simbólica que inverte as identidades das parentelas cafundoenses Pois aquelas classificações são mais de natureza estratégica do que de ordem estrutural Assim poderíamos ver os Almeida Caetano como muito mais autônomos politicamente embora mais fracos economicamente enquanto que os Pires Cardoso são mais fortes economicamente e menos autônomos politicamente É nesse jogo de poder entre a própria comunidade e entre esta e o restante da sociedade que a língua afrobrasileira da cupópia é interpretada como uma prática 129 cultural viva enquanto prática discursiva da qual só os iniciados podem negociar sentidos Ela estabelece uma etnicidade já que assumir a fala dessa língua é assumir uma negritude uma ascendência africana244 Uma vez que a identidade é uma construção social as identidades culturais afrobrasileiras não se realizam pelo isolamento de grupos ou comunidades afrodescendentes mas pelo seu envolvimento com a sociedade como um todo e seu reconhecimento por esta Destarte a cupópia ingressa no discurso como prática legitimadora da identidade grupal cujos ancestrais são africanos exescravos e da luta política do grupo pela posse das terras No cotidiano da pesquisa verificouse que a cupópia é uma prática cultural afro brasileira restrita a poucos falantes sendo utilizada no diaadia da comunidade sempre que alguém acha necessário trocar informações sem que todos em volta entendam o que dizem Assim a cupópia é uma prática cultural que pertence à esfera do cotidiano245 amigos que dividem a conta num bar para conservarse da vergonha de falta de dinheiro por exemplo empregados que excluem a participação do chefe num diálogo a linguagem como código secreto que permite a inversão social da relação dominadores x dominados ou em casos em que um patrão não aprecie o trabalho de um empregado A grande questão é que essa língua africana é diacrítica ou seja ela exerce um papel de diferenciação social entre os grupos A falange constitui uma forma de estabelecer solidariedades e alianças entre seus falantes e os habitantes de cidades vizinhas e os representantes do poder distante Ela exerce mais do que uma função referencial ou cognitiva Ela dá forma às relações de poder no cotidiano da vida social A cupópia cria uma espécie de renovação ritual da identidade ancestral africana dando aos cafundoenses um senso de origem comum que compensa simbolicamente as relações sociais dos habitantes Situações que remetem à política de trabalho e sobrevivência concreta do grupo Como se opera então essa língua chamada de cupópia ou falange Tratase de uma língua africana ou afrobrasileira Embora as palavras sejam de léxicos africanos 244 A falange ou cupópia é uma língua africana não só porque boa parte do seu léxico vem de línguas como quimbundo umbundo e quicongo mas também porque ao falála os habitantes do cafundó representam a si mesmos como africanos Essa significação alude não apenas à origem etimológica do vocabulário mas as estratégias políticas de atribuição de sentido para uma identidade social com vistas a determinados interesses 245 Ao contrário do que vimos nas abordagens anteriores onde a cultura afrobrasileira é concebida dentro de eventos de interrupção do cotidiano realizada somente em datas e momentos especiais festivos ou religiosos por exemplo por isso é que se diz que na abordagem folclorista a cultura afrobrasileira é espetacularizada 130 a estrutura sintática que a organiza são da língua portuguesa Embora seja uma língua que apresente um léxico limitado 140 palavras ao todo o sistema da falange é dinâmico criando múltiplas significações para uma mesma palavra a depender do contexto em que se dá o diálogo o discurso Tratase portanto de uma língua viva e muito complexa que produz sentidos em contextos sociais específicos e que para muitos observadores desatentos não passa de uma língua confusa e pouco inteligente Fry e Vogt pensam a linguagem como um complexo sistema de construção de conceitos e significação do mundo a partir de cosmovisões que estão relacionadas com as estruturas sociais e culturais do Cafundó Dentro dessa cosmovisão há um dinamismo no sentido das palavras em contextos específicos em que a fala e as significações da cupópia assumem interesses específicos É o que os autores chamam de um paradigma das finalidades A partir dessa noção os autores analisam discursos situações conversacionais entre os falantes da cupópia a fim de entender como essa linguagem se expande e significa relações sociais a partir de conceitos Nas palavras dos autores Dizer que esse diálogo não tem lógica é cometer um abuso de etnocentrismo A lógica cartesiana das combinações sintáticas etc o diálogo não tem mas ao mesmo tempo revela uma lógica de associações paradigmáticas uma certa solidariedade vertical se assim pudermos dizer que uma vez aceitas permitem entender e acompanhar o fio fragmentado de suas significações246 Pensando epistemologicamente a noção de cultura afrobrasileira enquanto possuidora de matrizes originarias de África Fry e Vogt redirecionam o nosso olhar a matriz cultural banto Uma matriz que parece pouco visível quando se pensa em cultura afrobrasileira já que muitos dos símbolos clássicos dessa cultura aludem ao universo yorubá como no caso dos orixás247 Os autores sugerem então uma maior influência de línguas bantos na origem da falange o que não quer dizer que necessariamente os 246 Assim sendo existe uma lógica muito própria nessa forma de linguagem que escapa àqueles pesquisadores imersos em preconceitos culturais e raciais VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 171172 247 Como vimos no capítulo 2 esta noção de que a ancestralidade típica ou pelo menos mais aceitável da África no Brasil é de origem sudanesa foi forjada por Nina Rodrigues Não negamos a participação de povos originários da África Ocidental na formação da cultura afrobrasileira mas problematizamos a redução desta cultura apenas à matriz jêjeiorubá e a displicência com os vários povos bantos Como vimos esta noção criada por Nina Rodrigues partia do pressuposto de que os bantos fossem inferiores aos sudaneses 131 ancestrais da comunidade tenham vindo de regiões onde se falavam essas línguas Fray e Vogt dão grande importância às culturas bantos enquanto matriz da cultura afro brasileira mas chegam a concordar com o esquema explicativo de Nina Rodrigues de uma separação grosso modo de dois troncos lingüísticos de origem africana no Brasil o yorubá para a Bahia e Maranhão e o Banto para o sul do país e Pernambuco248 A falange não é uma reprodução fiel das línguas africanas mas um conjunto de rearranjos brasileiros dessas línguas Dessa forma essas práticas culturais são africanas quanto à sua origem histórica mas são também brasileiras contemporâneas quanto à sua significação do mundo a partir das relações sociais concretas atuais Desse modo os africanismos linguísticos no Brasil antes de indicarem um caminho de procedência exclusiva indicam sobretudo a construção ideológica de uma África miticamente homogênea e por mais fantástica que possa parecer brasileira249 A cupópia portanto não é simplesmente uma língua africana nem tão somente brasileira Pela série de rearranjos que passa num complexo contexto de relações de poder em que a cultura media forças no cotidiano a cupópia ou falange deve ser melhor compreendida como prática cultura afrobrasileira É impossível notar sua ancestralidade africana da mesma forma que é impossível notar seu dinamismo dentro da realidade brasileira A cultura afrobrasileira em Fry e Vogt está em outros lugares simbólicos na prática de linguagem na organização espacial na construção de identidades políticas na formação de famílias Desenhase discursivamente uma nova cartografia cultural da cultura afrobrasileira que é portanto um conjunto de práticas vivas que assumem diversas formas e significados por diferentes sujeitos em contextos diferentes mas são sempre práticas que mediam relações de força Este paradigma ganha ainda mais legitimidade com os estudos do historiador Robert Slenes 248 É importante notar a complexidade de argumentos dos estudiosos e aqui mais uma vez resgatamos a noção de interdiscursividade das continuidades de um discurso em outros uma vez que os sentidos do discurso estão sempre abertos e negociados de acordo com os interesses dos falantes em contextos específicos Ora embora em muitos aspectos Fry e Vogt discordem de Nina Rodrigues eles não conseguem fugir de seu esquema explicativo básico simplista e dualista a respeito da classificação dos africanos entre bantos e sudaneses 249 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 188 132 2 Robert Slenes a história cultural e a cultura afrobrasileira vista por dentro O historiador norteamericano Robert Slenes veio para o Brasil durante a década de 1970 e sua trajetória intelectual demonstra um percurso de inquietações buscas e reinterpretações provocadoras Pelo número de artigos livros resenhas entrevistas palestras e comentários verificase que a comunidade acadêmica brasileira reconhece a importância científica desse intelectual dedicado à história da escravidão no império brasileiro O livro publicado pelo autor que se tornou um clássico no Brasil recebe o título de Na Senzala uma flor250 O ponto de partida para tal estudo foi a busca de aprofundar os seus estudos de doutorado feito em 1976 na Stanford University partindo de uma historiografia demográfica e econômica sobre a escravidão no Brasil da segunda metade do século XIX Nesse estudo surgiu sua primeira contraposição à historiografia existente até então que afirmava ser a família escrava uma instituição vulnerável Freyre e Fernandes Do contrário Slenes percebeu em suas fontes que a família havia se tornado uma instituição muito viável para os escravos que percebendo isso mobilizaram forças estratégias e afetividades para construir suas famílias Como o próprio autor narra num primeiro momento ele preferiu analisar as famílias escravas como instrumento de dominação e exploração por parte dos senhores o que ele mesmo chamou de política de dominação senhorial termo que utilizou no texto do livro Cafundó Só posteriormente quando percebeu a mudança paradigmática que a historiografia norte americana vinha dando à autonomia escrava é que Slenes voltou à questão da família escrava para tentar compreender os significados dessa instituição dentro da perspectiva dos próprios africanos escravizados ou seja dentro de uma perspectiva afrocentrada Para chegar a essa compreensão era necessário reconstruir um acervo de fontes qualitativas e uma metodologia de pesquisa viável O historiador recorreu a algumas 250 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 O livro resulta de uma longa trajetória de pesquisas e publicações sobre a história da historiografia da escravidão no Brasil demografia dos escravos no interior paulista o cotidiano escravista no império brasileiro as relações políticas entre brancos e negros e a cultura afrobrasileira O livro denota um momento de maturidade intelectual do autor pois são discussões conceitos métodos e fontes revisitadas de um trabalho de mais de vinte anos reunindo em quatro capítulos textos que marcam uma nova discursividade sobre a história a cultura e a identidade negra no Brasil É por isso que esse foi o livro escolhido para se analisar o conceito de cultura afrobrasileira na narrativa histórica de Robert Slenes Aqui se trata da concretização de mudança paradigmática no campo da historiografia propriamente dita 133 fontes que já havia usado no doutorado entretanto somando ao acervo pesquisado a inventários postmortem e processos de crimes b listas de avaliação e de matrícula c cartas de alforria assentamentos de batismo e casamento d anúncios de escravos fugidos e processos criminais e cíveis nos arquivos dos municípios de CampinasSP e VassourasRJ e relatos de cronistas sobre as famílias de escravos e a vida no cativeiro das grandes lavouras do sudeste produzidos no século XIX e f estudos etnográficos sobre a África Central produzidos entre os séculos XVI e XIX por colonizadores europeus Sua metodologia de ligação nominal entre diversas fontes permitiulhe perseguir e acompanhar a trajetória histórica de diversos sujeitos escravizados e fazendo uma análise crítica dessas fontes lendo nas entrelinhas o autor começou a perceber aquilo que a princípio descartava a possibilidade de articular bases materiais e simbólicas e compreender como os africanos escravizados articulavam suas heranças culturais para interpretar suas experiências históricas no Brasil O seu principal referencial teórico foi EP Thompson a partir do qual Slenes entendeu que o sentimento de pertencimento a um grupo social por parte dos sujeitos históricos estudados no caso os escravos africanos e seus descendentes era crucial para entender sua história Contudo apesar do embasamento na teoria thompsiana Slenes afirma que só começou a se interessar pelas questões culturais quando participou de outra pesquisa sobre a qual já nos referimos nessa dissertação assim se expressou o autor Na verdade foi meu envolvimento em outro projeto a partir de 1978 que me levou a refletir de forma mais sistemática sobre questões de cunho cultural Refirome à pesquisa que fiz sobre a história no bairro rural negro de Cafundó na região de Sorocaba junto com Carlos Vogt e Peter Fry251 A partir de tal pesquisa Slenes voltouse aos debates conceituais sobre cultura Ao estudar a experiência histórica linguística e cultural da cupópia o historiador interessouse em acessar bibliografias específicas sobre línguas nativas antropologia e história da África Central anteriormente chamada genericamente de África banto A partir de então Slenes debruçouse sobre fontes que lhe revelassem formas de comunicação nas senzalas atos de rebeldia escrava e as formas de religiosidade Buscou 251 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 15 134 documentos e temas através dos quais assim pressupunha aflorariam mais informações sobre o universo cultural dos negros Assim nos anos 1980 estava posta no campo acadêmico da História uma nova perspectiva e novo foco elementos que exigiam novas fontes e métodos de análise Uma questão de ordem epistemológica e operacional se colocava que fontes consultar se os escravos nas grandes lavouras não dispunham nem razoavelmente de momentos para registrar suas memórias ou expectativas e interpretar sua experiência histórica Para o autor a solução foi tentar perceber alguns elementos da vida material e simbólica dos escravos nos relatos dos cronistas e viajantes brasileiros e estrangeiros que falaram um pouco do cotidiano escravo nas lavouras do sudeste durante o século XIX ainda que tratassem a formação de famílias e lares negros de forma depreciativa Foi necessário ler nas entrelinhas dos discursos dos cronistas literatos viajantes e cientistas brancos que à sua época não compreendiam ou achavam impossível a existência de uma lógica própria dos negros Além dessa análise atenta minuciosa e crítica complementouse a leitura comparativa de toda a literatura antropológica linguística e histórica referente à África Central a qual o autor teve acesso Estrategicamente Slenes se define no seu texto como um revisionista conceitual um historiador com novo perfil científico Declara que o objetivo do seu livro é resgatar a capacidade de os escravos constituírem famílias de vários formatos conjugais extensas e integracionais além de reconhecerlhes as ações de assistência entre si na construção de projetos em comum Essa perspectiva teria resultados não só intelectuais mas também políticos como bem atesta o autor Mapear esses caminhos ajuda a definir as preocupações deste livro Revela alguns dos paradigmas ou modelos explicativos que mais têm informado a bibliografia internacional nas ciências sociais Ilumina as diferentes estratégias usadas para denunciar o racismo e a herança social do escravismo E indica também certas mudanças na postura dos historiadores perante suas fontes252 Como viemos demonstrando nesta dissertação durante muito tempo a tradição brasileira de estudos africanistas ou afrobrasileiros partiu de premissas racistas a partir 252 SLENES Robert Idem op cit p 28 135 das quais o negro sempre foi pensado como inferior como alguém caracterizado pela falta pela carência e pela grosseria de seus conteúdos e formas culturais Nesta concepção eurocêntrica a cultura afrobrasileira era vista descrita analisada e desclassificada pelas linhas mais superficiais de sua existência Muitos dos símbolos culturais não eram compreendidos dentro do universo cultural negro porque os investigadores brancos não estavam dispostos a compreender a lógica própria daqueles que mesmo na condição de escravos não deixavam de ser sujeitos históricos Aliás os investigadores brancos nem acreditavam que houvesse uma lógica própria dos escravos negros seres de pouca inteligência mas sim uma lógica imposta a eles pelos senhores brancos estes que seriam inteligentes Dessa forma muitas das práticas negras foram interpretadas como primitivas limitadas ou reduzidas fossem pelas condições biológicas e culturais dos negros fossem pelas condições sociais e históricas da escravidão Em uma ou outra abordagem a cultura negra foi vista como uma contribuição e não como uma participação ativa e ativadora da nacionalidade brasileira Uma presença exótica talvez admirável mas que nunca deveria ser apropriada ou tida como significativa na construção de nossa civilidade moderna crítica racionalista Foi nessa concepção que surgiu uma cartografia cultural afrobrasileira ou sendo mais claro os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira a dança a música a culinária a encenação os contos populares o candomblé a linguagem fragmentada o vocabulário exótico a capoeira e outras práticas esportivas a sexualidade natural ou pior permissiva etc como únicas possibilidades culturais dos negros e ainda assim no dizer do branco essas seriam práticas culturais inferiores Não se pensava o negro produzindo símbolos e práticas culturais no campo dos conceitos e ideias no campo da linguagem como complexo sistema de significação do mundo ou no campo da política Não se pensava que havia dignidade dessas práticas a partir de outros valores culturais que pudessem ser importantes Em nossa sociedade ocidental que elegeu as atividades intelectuais como padrão cultural elevado e prestigiado atribuir aos afrobrasileiros apenas os fazeres mecânicos da cultura pode ser encarado como a permanência de práticas discriminatórias a partir da invenção e legitimação científica do critério racial que reduz as potencialidades negras e consequentemente de seu prestígio social e de suas lutas políticas A estratégia adotada pelo historiador Robert Slenes é a de entender a cultura como formada por conceitos ideias símbolos práticas e relações que partem de uma 136 cosmovisão autônoma e têm uma lógica própria Segundo o autor a cultura é reatualizada a partir das múltiplas experiências de ação e reflexão em diferentes contextos históricos São princípios norteados por uma concepção da cultura como inteligência fruto de complexas e dinâmicas operações mentais às quais dizem também respeito à história dos povos negros Com isso o autor se posicionou politicamente não só contra uma historiografia clássica e de certa forma conservadora mas também contra um conjunto de representações que vinham alimentando um conjunto de relações de poder que por sua vez nutriam a desigualdade social a partir do critério racial Por conseguinte o discurso de Slenes dialoga muito com diversos movimentos negros do Brasil e com isso ele foi mais um dos que conseguiram contemplar no plano acadêmico muitas das demandas de significação dos movimentos sociais negros253 Seu raciocínio propõe que a os africanos mesmo na condição subalterna de escravos não deixaram de ser sujeitos históricos b todos os africanos escravizados possuíam uma lógica própria de significação de sua experiência histórica e cultural articulando cotidianamente memórias e expectativas futuras logo os significados culturais desses símbolos e práticas contemplam não só dimensões conceituais linguísticas e históricas mas sobretudo políticas Ao contrário do que dizem os clássicos do pensamento social brasileiro o negro é não somente um ser constituído de inteligência e construtor de seus valores como também um ser consciente analítico e político A partir dessa concepção é que o autor amplia nossa cartografia cultural afrobrasileira indicando novos lugares simbólicos de cultura a linguagem os conceitos e ideias a política a afetividade a arquitetura a ciência254 253 Afirmamos que Slenes foi mais um pelo fato de reconhecermos que haviam outros intelectuais brancos e vários intelectuais negros empenhados na mesma causa e agindo no plano acadêmico a partir de suas diversas formações acadêmicas 254 No sentido de uma ciência natural sabedoria ou forma de produção de conhecimento legitima para os africanos e seus descendentes mas que segue uma lógica distinta da ciência moderna ocidental Essa discussão é bem parecida com a que vimos em Fry e Vogt como vimos é desde sua participação nas discussões com esses intelectuais que o Slenes vem pensando o conceito de cultura para pensar epistemologicamente as práticas afrobrasileiras Da mesma forma é importante dizer que Slenes não desconsidera práticas culturais como a dança a música as línguas e a culinária africana Para ele ainda hoje pouco sabemos realmente sobre tais práticas porque elas não foram bem interpretadas pelos olhares brancos Nas palavras do autor um dos aspectos mais visíveis da cultura negra no Brasil as danças escravas de origem africana foram descritas como alegrias grosseiras sujas voluptuosidades febres libertinas p139 sendo vistas mais como produtos deteriorados pela escravidão do que como manifestações culturais Para esses observadores brancos a cultura africana não punha limites civilizatórios nos comportamentos humanos Nesta argumentação Slenes acusa existirem preconceitos raciais e culturais É preciso compreender essas práticas dentro de uma cosmovisão afrobrasileira dentro de sua lógica própria de significação construção de identidades e mediadoras de relações de poder e conflitos políticos 137 Essa interpretação que chega ao Brasil tem grande influência da mudança epistemológica ocorrida nos EUA a partir dos anos 1960 quando ocorre um estreitamento entre a academia e o movimento social negro na busca de construir uma nova explicação científica para a experiência negra nos Estados Unidos Lá o atento movimento negro criticava os cientistas culturalistas por construírem vários estereótipos negativos sobre as condições históricas e culturais dos negros Essas discussões racistas preocupadas excessivamente com aspectos culturais deveriam mudar o foco em direção às políticas sociais Estas a partir de agora seriam o foco da construção da cidadania negra naquele país como o acesso à educação ao trabalho e a outros serviços do Estado em detrimento de uma discussão de cunho folclórico e festivo De outro lado explica Slenes o movimento negro americano também era contrário às interpretações de vitimização de seu povo questionando a noção de que a cultura negra pudesse ser alienante255 Dois autores se destacaram nesse movimento epistêmico internacional Eugene Genovese e Herbert Gutman O primeiro enfatizando a autonomia total dos escravos em relação aos senhores o segundo evidenciando a interdependência entre os dois Contudo a premissa básica de que partiam os dois autores era a de que os africanos escravos não estavam despojados de cultura ou culturalmente sem raízes Genovese e Gutman estão situados num paradigma historiográfico onde as classes subalternas ocupam a centralidade da investigação e da narrativa assim como na obra de EP Thompson Sobre isso afirma o autor As pesquisas mais inovadoras caracterizavamse com frequência crescente por um novo enfoque sobre as pessoas subalternas especialmente operários e escravos vistos agora como ativamente engajados com sua experiência refletindo sobre ela à luz de sua cultura e no processo reelaborando essa cultura e tecendo estratégias de aliança e oposição no encontro com outros agentes históricos256 255 Como vimos no primeiro capítulo houve uma forte influencia das leituras de textos acerca do pensamento dos movimentos negros americanos pelos militantes do MNU Inferimos que estas leituras também influenciaram nas críticas e seleções dos argumentos do MNU brasileiro em relação à tradição de pensamento que era atualizada na historiografia nacional acerca da cultura afrobrasileira desta maneira fica tornase compreensível não só as críticas as abordagens folcloristas como as de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre mas também às abordagens fatalistas como as de Florestan Fernandes 256 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 39 138 Conforme Slenes esse movimento foi de interesse nas culturas subalternas que levou muitos historiadores a reavaliarem o legado cultural africano a partir das senzalas Nesse sentido além de Thompson Genovese e Gutman outros referenciais fundamentais foram Sideny Mintz e Richard Prince Autores que afirmavam ser necessário captar a lógica dos escravos portadores de uma herança cultural em comum apesar de suas diferenças etnolinguísticas frente às situações específicas de contato entre si com seus senhores e com outras pessoas livres ou libertas257 Essa é a tese que embasa os trabalhos de Slenes É tentando enxergar a cultura afrobrasileira por dentro buscando entender a sua lógica própria que ele investiga e escreve258 Dessas influências e percepções é que surge a concepção de cultura defendida por Slenes as tradições culturais africanas transportadas ao Brasil foram adequadas ao contexto da escravidão o que fez com que os escravos interpretassem suas experiências históricas articulando suas memórias de práticas culturais e vivências africanas às suas expectativas futuras quanto à sua sobrevivência em meio às agruras da vida no cativeiro buscando sempre lutar contra sua opressão e construir um cotidiano cada vez mais humano para si a partir de referenciais culturais O objetivo do livro Na senzala uma flor está em tornar mais complexa a história do escravismo percebendoo como instituição na qual interagiram múltiplos sujeitos o que se de um lado evidencia a organização e relativa autonomia dos escravos não erradica por outro a dureza da vida no cativeiro Buscase reconstruir a visão dos vencidos entrar na cabeça dos escravos conhecer suas armas simbólicas e suas possibilidades de ativar e coordenar essas armas entre si259 pensase o cotidiano como espaço de formação de estratégias de enfrentamento e adaptação ao escravismo 257 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 40 258 Essa mudança conceitual proveio de uma movimentação intelectual ocorrida no Brasil já próximo ao fim do regime militar Tratavase de uma discussão que se posicionava como progressista assumindo lutas contra uma historiografia conservadora e racista que legitimava um estatuto de ciência alicerçada no etnocentrismo de uma elite intelectual branca que direciona abordagens temas fontes e tratamentos metodológicos ideologizados corroborando na interpretação negativa do negro e sua cultura e com isso excluindoos da narrativa história significativa e do acesso aos lugares privilegiados de saber e poder Segundo Slenes a força de ideias préconcebidas e estereótipos sobre os negros seu cotidiano e sua cultura não permitia que os cientistas brancos entendessem o universo escravo e estamos falando aqui não apenas de uma brancura em nível de cor de pele mas sim de uma brancura de cosmovisão judaico cristã moderna ocidental capitalista etc Isso porque havia uma imagem deturpada do negro que era produzida por um racismo extremado e do qual seria muito raro escapar A lente distorcida do branco ou o que o autor chama de olhar branco era utilizada de forma comprometedora para tentar enxergar a cultura do negro 259 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 133 139 Dessa forma o autor problematiza não somente as propostas de política senhorial mas também propostas de política de resistência escrava formando um debate sobre as possibilidades de ação de múltiplos sujeitos sociais que segundo Slenes esteve ausente da análise da maioria das obras historiográficas clássicas no Brasil Realidade epistemológica que de acordo com o autor agora estaria mudando Para outros povos inclusive para outras comunidades escravas os historiadores recentemente têm resgatado tradições populares contestatórias herdadas reformuladas inventadas e com isso têm reintroduzido a política em suas análises tornando a história novamente um processo indefinido com desfechos sempre imprevistos260 Assim é que Slenes propõe que compreendamos as práticas culturais afro brasileiras a partir de conceitos e ideias formulados dentro da lógica e da cosmovisão afrobrasileira que articula memórias de tradições africanas à experiência de cativeiro e às expectativas de negociação e ganhos para a vida material e espiritual Uma das primeiras propostas do autor é compreender que os negros da África Central compreendem e explicam sua forma básica de organização social a partir do conceito de ancestralidade ou de linhagem Importante conceito que orienta a ação dos escravos na formação de suas famílias na experiência dos cativeiros nas fazendas do século XIX Para Slenes a família escrava é um lugar simbólico da cultura afrobrasileira pois ela possibilitou a formação de um sentimento de pertencimento a uma comunidade negra que mesmo dividida pela política de incentivos dos senhores minava as chances de total dominação devido ao compartilhamento de experiências memórias e valores criando boas oportunidades de enfrentamento cotidiano por mais que parecesse o contrário A família escrava era um projeto de vida um campo de batalha um dos principais palcos onde se travavam lutas entre escravos e senhores na busca para definir a própria estrutura e destino da escravidão A família foi uma das mais importantes instituições culturais que contribuiram para a formação de uma identidade nas senzalas 260 Idem op cit p 115 Assim ao fomentar a reinterpretação conceitual da cultura afrobrasileira Slenes defende que as práticas da cultura popular de procedência negra não consistem em práticas de alienação mas sim em práticas que ressignificam as lutas políticas dos populares negros Quais seriam por exemplo os sentidos políticos e contextuais de uma manifestação cultural como os afoxés 140 conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por um grande número de cativos A família é importante para a transmissão e reinterpretação da cultura e da experiência entre as gerações261 Ela é um espaço de formação de uniões solidariedades e memória histórica próprias A partir dessa noção de família escrava é que o autor busca compreender os significados culturais e sociais que a instituição familiar adquirira historicamente para os escravos a partir de vários elementos como a arquitetura e o domínio do espaço doméstico o controle do fogo no interior das senzalas o acesso ao cultivo da terra em beneficio próprio a organização e perfil de sua economia doméstica sua fraqueza e sua força perante as políticas senhoriais Como então reconhecer as heranças culturais e as instituições próprias dos africanos escravizados Para Slenes o historiador poderá conhecer o universo simbólico dos escravos no Brasil a partir do momento em que começar a estudar o universo cultural de diversas etnias africanas Para isso ele valese de relatos de colonizadores europeus que abordaram aspectos do cotidiano de algumas etnias da África Central entre os séculos XVI e XIX Essa atitude ele toma em vários momentos de seu texto262 Conferindo tais etnias Slenes mapeia os conceitos e as práticas em comum que são transportadas para o Brasil A partir disso evidenciamse conceitos da cosmovisão centroafricana como linhagem venturadesventura263 senzala264 Esses e outros conceitos e práticas estruturavam a cultura e orientavam as ações dos africanos sendo reproduzido no interior das famílias daí também a importância do conceito de 261 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 114 262 A escolha da região da África Central como matriz de referência à cultura afrobrasileira deuse porque era a esta região que pertencia por uma longa extensão de tempo a maioria dos africanos escravizados que foram levados para a região das grandes lavouras do sudeste brasileiro Para demonstrar isso o autor recorre à metodologia da história demográfica usando da estatística em documentos oficiais sobre compra e registro de escravos para quantificar e verificar tal procedência Outro motivo que justifica essa escolha é o fato de que conforme o historiador nesta região da África Central havia muitas semelhanças entre símbolos significados e práticas culturais mesmo entre as diferentes etnias Esse fato teria facilitado os rearranjos grupais e familiares dos escravos no Brasil o que torna mais seguro fazer um estudo mais aprofundado de uma lógica cultural que contemple a uma maioria de sujeitos estudados Essa conclusão foi tirada a partir do momento em que os novos estudos sobre a cultura dessa vasta área africana têm enfatizado menos os aspetos de vida material e mais os modelos culturais ou conjunto de valores que subjazem às ideias e práticas culturais das comunidades que formam uma cultura bantu geral Aqui Slenes traz como referenciais teóricos Willy de Craemer Jan Vansina e Renée C Fox 1976 No entanto lembremos o fato de deslocar para a África Central nossos olhares sobre uma ancestralidade da afrobrasilidade não deixa de ser um ato político contra a visão evolucionista forjada por Nina Rodrigues que insiste na África Ocidental como princípio originário da afrobrasilidade 263 O estado normal do universo harmonia bemestar e saúde x o estado anormal do universo o desequilíbrio os infortúnios e as doenças que são condições causadas por espíritos maus ou por pessoas através da feitiçaria SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 264 residência dos serviçais em propriedades agrícolas moradia de gente separada da casa principal sentido principal povoado SLENES Robert Idem op cit p148 141 linhagem a cultura pertence a um grupo de parentesco a uma linhagem e não somente ao lugar de origem A herança cultural é transportável Os escravos a transportam fazendo escolhas Por conseguinte o autor traça um perfil do negro escravizado bem diferenciado um ser que produz cultura que trava conflitos que tem consciência de sua condição que constrói redes de solidariedade que trabalha nos latifúndios que é de procedência e fala bantu265 que se organiza familiarmente a partir do conceito de linhagem Marca assim uma dizibilidade e uma visibilidade que torna a presença negra mais comum e próxima da realidade de qualquer ser humano O negro e sua cultura passam a não mais ser exóticos invasores ou depreciadores E Slenes parte para analisar outros aspectos culturais afrobrasileiros construídos nesse contexto de articulações negociações e apropriações É salutar frisar que o autor embora critique os aspectos teóricos de Nina Rodrigues também não deixa de se aproximar dele quanto ao método de se comparar objetos e práticas entre Brasil e África para verificar semelhanças e portanto continuidades eou rupturas das culturas africanas no Brasil Slenes contudo não está preocupado em mapear a pureza na permanência de práticas mas de entender os processos da dinâmica que transformam a cultura afrobrasileira Quando ele compara objetos e práticas entre BrasilÁfrica o faz porque as semelhanças analisadas refletem uma relação histórica não necessariamente linear É assim que entra em sua narrativa histórica a análise da construção espacial e do culto ao fogo no interior das senzalas como práticas possíveis a partir da reorganização dos escravos através de casamentos constituição de famílias e reconstrução do conceito de linhagem Ele explica que num contexto em que aos escravos solteiros eram destinadas senzalas que seguiam a arquitetura em formato de um grande pavilhão coletivo lotadas com pouca privacidade e autonomia locais onde os escravos comiam mal e dividiam o mesmo vasilhame casarse era uma boa opção porque viabilizava aos escravos construir as suas senzalas ou choupanas para viver apenas com suas famílias e isso trazia vários benefícios como viver com mais privacidade cultivar uma pequena horta criar alguns animais guardar os animais que caçavam os vegetais e grãos que encontravam no caminho entre a senzala e a lavoura ter um fogo doméstico só para a própria família cozinhar suas receitas africanas e manter tradições religiosas e comemorativas no interior de suas senzalaschoupanas etc 265 Reproduzimos a ortografia usada pelo próprio autor 142 Essas choupanas eram simples mas eram os espaços onde as famílias escravas tinham autonomia e privacidade Eram cabanas muito parecidas com as cabanas feitas nas aldeias africanas e tal semelhança fora identificada no repertório cultural dos escravos Dessa forma como na África da cultura bantu explica Slenes muitos escravos que vieram dessa região trouxeram os significados do fogo e da fumaça na sua memória e esses sentidos vinham à tona sempre no interior das senzalas familiares Nestas senzalas havia uma fogueira que ficava acesa vinte e quatro horas por dia durante todos os dias do ano Algo que parecia ilógico para muitos senhores cronistas e cientistas brancos na verdade tinha sentidos muito complexos e significativos na experiência africana e afrobrasileira por que a do ponto de vista material a fumaça espantava os insetos ajudava a aquecer e criava uma espécie de verniz nas paredes de pauapique que ajudáva a conservar a casa b do ponto de vista simbólico o fogo representava os laços de parentesco com os ancestrais africanos era um símbolo da linhagem familiar possuía um sentido político de ligação formação de comunidades solidariedades e proteção e c ainda quanto ao simbólico havia a crença de que a fumaça ajudava a manter dentro da habitação os espíritos protetores das famílias que traziam boa sorte saúde proteção e força para suportar as agruras da vida no cativeiro Não é a toa que a festa entre os escravos se realiza sempre em frente às cabanas dos escravos casados pois ali estava uma fogueira que ligava as pessoas aos ancestrais É assim que se processa a cultura afrobrasileira em Slenes uma materialidade o fogo uma prática o culto ao fogo um conceito linhagem e as expectativas que articulam tudo isso proteção força superação da escravidão etc É preciso entender de forma mais profunda e respeitosa a rede de significados que dá sustentação aos objetos e práticas culturais afrobrasileiras Ao contrário do que dizia até então a historiografia clássica sobre a escravidão a experiência dos escravos vista de dentro não pode ser reduzida a uma história de submissão cooptação e aculturação Ela deve ser entendida como potência recriadora das possibilidades de existência significação e negociação de forças no mundo social Fechase historiograficamente os paradigmas propostos ao longo do século XX para se entender a cultura afrobrasileira Slenes continua sendo o mais atualizado dos intelectuais que cria argumentos para a reorientação da tradição de pensamento brasileiro sobre as culturas negras no Brasil Lembrese que quando o autor critica esta tradição de pensamento reducionista ele não está criticando apenas os intelectuais mas a todos os 143 sujeitos que de diferentes formas se apropriaram dessas representações e a partir delas estabelecem relações políticas com a população negra intelectuais artistas pessoas comuns mídia burocratas o Estado brasileiro Mas toda essa análise discursiva corrobora para revelar um lado dessa história de criações conceituais o lado acadêmico Vimos no capítulo 1 que o emergente MNU também já se preocupava com a noção de cultura afrobrasileira cristalizada no Brasil Uma noção que legitimava formas de dominação exclusão e exploração do negro Duas perguntas se fazem necessárias para conhecer as reconfigurações deste contexto a partir de agora Primeiramente de que forma o conceito de cultura afrobrasileira proposto pelo MNU se alinhavam com as noções de cultura afrobrasileira recriada por Carlos Vogt Peter Fry e Robert Slenes E segundamente quais os desdobramentos dessa nova forma de pensar a cultura afrobrasileira para o Estado Brasileiro e por conseguinte para o conjunto de toda a sociedade 3 O MNU seu conceito de cultura afrobrasileira e o ativismo negro na construção de um novo currículo para o Ensino de História Como vimos no capítulo 1 para o MNU havia uma interligação muito forte entre política cultura e educação que se precisava garantir no projeto educativo brasileiro via intervenção do Estado mas sob a orientação do movimento Esta interligação possuía uma importância significativa no combate ao racismo Portanto a educação foi eleita como campo privilegiado dessa transformação cultural A efetivação das ações educativas promovidas pelo MNU ocorreu através de jornais agremiações carnavalescas grupos culturais recreativos e desportivos etc No entanto para o MNU o projeto dessa transformação cultural perpassava a jurisdição a institucionalização a conceituação daí sua preocupação em produzir documentos oficiais que legitimassem suas perspectivas teóricas e práticas acerca do tema No Programa de Ação266 o MNU afirma que a escola é uma instituição que historicamente tem cumprido um papel alienante Ao invés de desenvolvimento 266 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claros para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autentica democracia racial como intitula na sua introdução assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de ação pondera sobre 16 temas a saber 1 marginalização 144 intelectual e libertário da educação brasileira ela perpetuaria a mentalidade elitista e racista alienando os estudantes Embasando tais afirmações percebemos num primeiro momento que a escola seria identificada sob a influência de Althusser como um aparelho ideológico do Estado Já num segundo momento influenciado por Bourdieu o MNU evidencia o papel da escola enquanto reprodutora e legitimadora das desigualdades sociais através de um processo inconsciente e sistemático de dominação simbólica legitimação de verdades práticas conceitos regras e valores cristalizados na cultura e nos interesses não do Estado mas das classes dominantes consolidando desta forma as desigualdades sociais Foi neste contexto por exemplo que a educadora Ana Célia da Silva uma das fundadoras do MNU de Salvador construiu seu estudo sobre a reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros voltados à alfabetização Um estudo que virou referência nacional sobre o tema Mas foi com esperança que o MNU decidiu conceber a educação Apoiado no educador pernambucano Paulo Freire o MNU define no seu Programa de Ação a educação como um instrumento de libertação e não de alienação de um povo Concordando com Paulo Freire assumiase uma concepção nitidamente comprometida politicamente da educação Era necessário sim denunciar as práticas simbólicas de dominação política e cultural de grupos opressores e assumir uma postura político filosófica de comprometimento com a existência humana Numa sociedade cuja estrutura conduz a dominação de consciências era fundamental a elaboração de uma pedagogia que estivesse enraizada nas subculturas O movimento negro instalara discursivamente uma fratura na ideia de comunidade nacional brasileira Simbolicamente interrompiase a continuidade para instalar a diferença que legitimaria a luta política desta categoria social O projeto elaborado tecia denúncias e esperanças Nessa operação simbólica lutavase para eleger do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 desemprego 4 condições de vida 5 Direito e violação 6 prisões 7 o menor Abandonado 8 Cultura Negra 9 Educação 10 Mulher Negra 11 Imprensa Negra 12 Nos Sindicatos 13 Área Rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 luta internacional contra o racismo e 16 transformação geral na sociedade No entanto nosso foco nessa dissertação recai sobre as articulações entre política cultura e educação por dois motivos básicos a como nos lembra a historiadora Queiroz esses elementos são estruturadores do discurso do MNU bem como pontos de interdiscursividade entre o MNU nacional suas filiais em outros estados e outras entidades culturais e b por serem esses os critérios que sendo atualizados em diferentes discursividades e documentos oficiais relativos à reavaliação da educação e da história possibilitaram a sanção da lei 1063903 gerando novas demandas para o Ensino de História definindo assim o objeto de estudo dessa investigação 145 a cultura como um elemento estruturador fundamental da prática política do movimento negro portanto era preciso definila De acordo com o MNU Cultura é o modo como o homem vê sua relação com a natureza e com seus semelhantes A cultura nasce com o homem na criação de seu mundo e na produção geral para sua vida e vivencia incluindo aí as relações de trabalho a produção necessária à vida a distribuição destes bens materiais e simbólicos e as relações de Poder Consequentemente a Cultura é a visão de mundo que implica na valorização de certas práticas e desvalorização e abandono de outras267 Dessa forma o MNU articulava as relações entre a cultura e a política entendida enquanto relações de poder A cultura não partia unicamente de uma concepção materialista preocupada com os modos de trabalho produção e circulação de bens materiais mas contemplava também a produção e as apropriações de objetos simbólicos A cultura era definida como um espaço de negociação entre a manutenção de visão de mundo e de poderes instituídos e novas formas de poder político exercido pelas camadas subalternas de uma sociedade Enquanto campo de negociação a cultura seria algo que mediaria os conflitos e seria dinâmica desenvolvendose de acordo com os novos contextos sujeitos e interesses Este documento mostra que há uma interdiscursividade entre os cientistas sociais aqui analisados e o MNU Assim continua o Programa de Ação do MNU Todavia a Cultura AfroBrasileira está presente na linguagem brasileira na religiosidade que mesmo marginalizada por credos oficializados leva pessoas a fazerem sua fé nos terreiros A Cultura trazida da África foi recriada no Brasil sob opressão e violência em permanente conflito contra opressores daí o seu caráter defensivo de resistência frente a todo um processo de branqueamento que toma a Cultura do NorteEuropeu como símbolo positivo como ideal e a Cultura Africana bem como os Negros como símbolo negativo268 267 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 268 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 Grifos nossos Nesta dissertação preservamos a grafia utilizada na fonte quanto ao uso de letras maiúsculas o que já evidencia a relevância de alguns conceitos para o MNU e também quanto à pontuação 146 Aqui percebemos que esta noção de cultura afrobrasileira enquanto um conjunto de articulações entre memórias de tradições africanas articuladas às novas condições de vida no cativeiro e às expectativas de vida dos africanos escravizados dialoga diretamente com a discursividade proposta por Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes Constatase que o MNU localiza outros lugares simbólicos da cultura afro brasileira denotando mais as formas do que especificamente os conteúdos a linguagem e não as palavras de origem africana a religiosidade e não apenas uma religião específica Alargamse os horizontes das práticas culturais Cabe ressaltar que esta definição não abomina outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira como a dança a gastronomia as festas a música etc Do contrário o que se incita é que estas práticas culturais sejam descolonizadas e reinterpretadas conforme uma ótica afrocentrada Enquanto manutenção de visão de mundo e de poderes instituídos a cultura afrobrasileira seria mantida como folclore pelas classes dominantes que a usavam escamoteando ou combatendo a visão de mundo que a nível popular pode ser bem diferente e mesmo contrária à burguesia 269 Já enquanto novas formas de poder político exercido pelas camadas subalternas de uma sociedade a cultura seria um instrumento dinâmico de luta política no qual caberia preservar sob a orientação do MNU Frente a esse modo de desvalorização e esmagamento de nossa cultura cabe ao MNU orientar respostas nesse processo incentivando os trabalhos de valorização da Cultura Negra criando formas para defendêlas preservála dinamizála e desenvolvêla enquanto instrumento de luta no processo de libertação de nosso país270 A fim de desconstruir estereótipos essencialistas acerca da cultura afro brasileira o MNU entende esta cultura como algo dinâmico Uma cultura que se expande negocia e adquire novos sentidos quando encampa lutas políticas Ao contrário do que o senso comum afirma sobre uma possível perspectiva estereotipada e essencialista da identidade cultural negra promovida pelo MNU há que se buscar as historicidade dessas construções analisandoas com bastante cuidado para cair em reducionismos A partir do movimento foram criados e recriados muitos símbolos Muitos conceitos foram positivados enquanto instrumentos simbólicos de luta política e 269 Idem op cit 270 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 Grifos nossos 147 afirmação identitária num país que nega o racismo que perpetua Desde quando essas atitudes poderiam ser consideradas ilegítimas Só um observador apressado e imbuído de etnocentrismos é que não consegue perceber a lógica própria desta atividade A encruzilhada onde se encontram a política a educação e a cultura está no âmago do saber histórico O MNU e outros movimentos e instituições socioculturais se empenham em realizar tal operação simbólica São múltiplas as interações e apropriações discursivas gerando certos dizeres comuns tidos como importantes para a consciência histórica libertadorade homens e mulheres negros Eles buscam compor outras formas de narrativas e performances sobre a história e a cultura afrobrasileira A história é eleita como campo de reconstrução da identidade cultural e política dos negros Músicas vídeos peças de teatro são criados a partir de pesquisas e leituras diversas jornais sobre os direitos civis nos EUA processos de independência de países africanos livros sobre a história da África da escravidão e da cultura afrobrasileira intercâmbios encontros palestras e rodas de diálogo entre africanos e afroamericanos afrocaribenhos e afrobrasileiros etc A este respeito o militante Antônio Carlos dos Santos mais conhecido como Vovô líder do Bloco Afro Ilê Ayê de Salvador diz Aqui no Ilê é tudo muito em cima da música A música é um veículo condutor muito importante Aqui tem música tema que é a música do ano que é a música que educa Então é essa música que informa informa a cidade Não é só pra educar o branco para a gente também porque nós não tínhamos essa informação não temos no diaadia no livro didático E agora nós começamos a pegar esse material de uns 12 15 anos atrás e a transformar em caderno de educação para utilizar nas escolas Mais ainda é muito pouco aproveitado isso Quando a gente fala na Lei 10639 nós já fazemos isso há 30 anos271 Em Pernambuco nas cidades de Olinda e Recife ecoavam os cânticos dos afoxés Músicas que não apenas reverenciam a ancestralidade africana e o culto aos orixás mas que em Pernambuco assumiu nitidamente a militância negra e luta institucional contra o racismo272 As letras dos afoxés mais antigos ainda em atuação no 271 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 2389 240 272 A historiadora Martha Rosa discute as relações entre os afoxés de Pernambuco e a militância política negra Ver QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 Já o historiador Ivaldo Marciano indica que em Pernambuco afoxé é um termo polissêmico pois significa um conjunto de práticas e representações que se aglutinam para reconstruir uma noção de identidade negra Entre esses 148 estado ilustram um pouco desse aspecto A música Tempos Passados de autoria de Rogério F Silva foi composta para o afoxé Alafin Oyó e diz Eu vim da ÁfricaEu sou nagôSou de origem negraSou filho de Alafin OyóHá tempos atrás me trouxeram para o BrasilNas ondas do marBateramme muito no navioA dor não passava e também não tinha fimMas não tive medo porque minha cabeça é de Alafin São muitas as significações políticas que pulsam dessa letra e da boca dos foliões negros que desfilam pelas ruas de Olinda e Recife nos carnavais de anos 198090 Além de afirmar uma ancestralidade africana ao vir de África o personagem negro que fala na música mas que representa toda uma população afrobrasileira afirma ser filho de Alafin Oyó Conforme a historiografia da África o soberano do reino do império yorubá tinha como título político de Alafin numa tradução ocidental seria a figura do rei Logo este negro ou esta comunidade que falacanta é filho descende do rei do soberano de Oyó capital do império yorubá Portanto adquirese um status de nobreza de realeza africana A história narrada em forma de música reafirma os momentos de dor e tormento no trajeto transatlântico mas ao mesmo tempo reafirma a existência de um acervo cultural o qual o negro escravizado faz uso para dar sentido a sua vida recriar laços de pertencimento e linhagem e com isso conseguir força para continuar lutando pela sobrevivência com o máximo de dignidade que puder Como se afirma isto Ao dizer que mesmo em meio à dor e ao tormento não houve medo E por que não houve medo Porque a cabeça273 do personagem é de Alafin ou seja ele é filho do orixá que foi Alafin Xangô Este orixá representa o poder dos trovões do fogo do poder masculino e da justiça São estes os sentidos que o autor ativa e chama para o acervo da militância políticocultural do afoxé Alafin Oyó nobreza orgulho valentia força justiça esperança O Afoxé Alafin Oyó não foi o único neste sentido Os Afoxés Ará Odé e Ilê de Egbá também construíram musicas militantes Outro antigo afoxé pernambucano cujas letras trazem grande dose de politização é o Afoxé Oxum Pandá Além do significados estão a é uma instituição de militância política negra b é um grupo que possui ligação direta e muito forte com o candomblé c é também uma expressão artística de grande teor estético d é uma entidade cultural que estimula a promoção social iniciando jovens no mundo da técnica da arte da militancia etc e é uma agremiação carnavalesca f é também um espaço simbólico de retorno a uma África mitificada enquanto valorização da ancestralidade e g é mais um espaço que possibilita a reconfiguração de identidades negras em Pernambuco estado brasileiro cuja maior referencia de negritude foi construída sobre o maracatu Ver LIMA Ivaldo Afoxés em Pernambuco usos da história na luta por reconhecimento e legitimidade Topoi v 10 n 19 juldez 2009 p 146159 273 No candomblé a cabeça é um ponto de capitação de energia uma espécie de portal Na lógica desta religião cada pessoa é filha de um ou mais orixás O orixá que rege a vida da pessoa é chamado orixá de cabeça Dizer que a minha cabeça é de Alafin é reafirmar que se é filho do orixá que em vida foi Alafin do império yorubá ou seja Xangô 149 carnaval este afoxé ganhou grande projeção na mídia pernambucana gravando Cds e se apresentando em vários eventos Seus Cds passaram a ser muito usados em projetos sócio educativos como o Programa Escola Aberta Refrões como os das músicas Não há silêncio de autoria de Jeane Siqueira e da música Meu Recado de autoria de Jorge Riba transformaramse em verdadeiros hinos à negritude como as músicas do Alafin O refrão de Não há Silêncio entoava O meu tambor não se cala não A minha voz não morre jamais já a música Meu Recado diz Eu sou filho de Orixá Babá Não venha me provocar Segue em frente o seu caminho Deixe o meu povo passar Eis algumas das estratégias presentes em Pernambuco de construção simbólica de uma comunidade sob ícones em comum para referendar pautas políticas História cultura e identidades negras eram ressignificadas em práticas políticoculturais das instituições negras Do movimento social negro estão emergindo novas demandas para o Ensino de História que se desejava para o Brasil inclusive já instruindo os caminhos possíveis para essa construção Essa nova configuração curricular não foi um processo fácil uma vez que o currículo é um espaço de disputa política pela legitimação de memórias identidades valores e crenças associadas às distintas categorias sociais Para inserir essa proposta de reeducação histórica política e cultural à sociedade brasileira vários caminhos foram trilhados Destacaremos aqui uma das ações mais importantes ocorridas no Recife por organização do movimento negro da cidade em 1988 quando ainda tinha o nome de MNURecife o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE cujo tema foi O negro e a educação Ateremonos um pouco neste evento pelo fato do seu tema ter selecionado o campo da educação como foco para se pensar as relações étnicoraciais no Brasil A exemplo de tantos outros encontros promovidos por diversas entidades negras no país nas duas últimas décadas do século XX nesse encontro foram propostas e debatidas algumas ações que culminariam anos mais tarde na Lei nº 10639 em janeiro de 2003 O encontro ocorreu na cidade do Recife entre os dias 29 e 31 de julho de 1988 sendo organizado pelo MNURecife e pela Escola Maria da Conceição O evento foi produzido a fim de causar uma série de reflexões críticas no ano de centenário da abolição da escravatura mas a sua efetivação foi ameaçada por grandes dificuldades financeiras Dificuldades que não foram solucionadas com toda eficácia mesmo contando com o financiamento de instituições públicas como a Universidade Federal 150 Rural de Pernambuco UFRPE que funcionou como umas das sedes a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco FUNDARPE a Fundação FORD Legião Brasileira de Assistência LBA Viação Aérea de São Paulo VASP Cia Hidrelétrica do São Francisco CHESF Água Mineral NOANA Indústrias Pilar Ministério da Cultura Prefeitura do Recife Banco do Estado de Pernambuco e Centro Josué de Castro274 O tema o negro e a educação foi proposto na edição anterior do ENNNE ocorrido em Belém PA e deveuse a compreensão dos militantes de que a educação é a base sobre a qual estruturase a forma de pensar e agir de um povo275 A educação brasileira era criticada na medida em que esta era considerada instrumento para se subjugar a população negra uma vez que legitima e reproduz um currículo eurocêntrico Criticando o tradicional perfil eurocêntrico da educação brasileira os ativistas assumem um compromisso com o aprofundamento dos estudos debates e ações que poderiam viabilizar uma tomada de consciência racial e fortalecimento de sua identidade étnico cultural Assim o VIII Encontro teve como preocupação central questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira através dos meios oficiais de educação do País A partir dessa consciência esperase que o VIII Encontro seja o início da luta pela reformulação do ensino no Brasil que passa principalmente pela construção de um curriculum que contemple também a cultura negra 276 Na programação do evento houve a definição do regimento do evento palestras debates apresentações artísticas discussões em grupos de trabalho elaboração de propostas plenária e posteriormente a elaboração de um relatório que registrasse e encaminhasse as propostas do evento como ações a serem desenvolvidas pelos diversos seguimentos que compõem o movimento negro No evento estiveram presentes representantes de estados brasileiros das cinco regiões além de autoridades políticas e intelectuais de países como Cuba e Guiana Francesa entre outros Marcaram presença também atores de diferentes espaços do universo cultural afrobrasileiro babalorixás 274 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 275 Idem op cit p 5 276 Idem Op Cit p 56 Transcrição compatível com a ortografia usada no documento 151 yalorixás bailarinos músicos diretores de agremiações carnavalescas de origem negra como as Escolas de Samba Maracatus e afoxés Ao lado destes estavam os professores diretores escolares e gestores públicos das redes municipais estaduais e federal Todos esses sujeitos articulados a partir das interlocuções dos militantes pesquisadores e professores universitários negros277 Uma das mesas redondas do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste no salão nobre da UFRPE Fotografia encontrada no Relatório do evento sem referência ao tema da mesa e aos componentes Foram muitas as problemáticas levantadas nesse evento assim como os debates e as opiniões nem sempre convergentes Porém havia uma tese em comum entre os diferentes seguimentos representados pelos intelectuais presentes a de que o sistema educacional brasileiro desqualificava a cidadania negra ao reduzir a identidade negra a um apêndice de uma história nacional de caráter eurocêntrico Fato que precisava ser modificado Muitas experiências na tentativa de reformulação do ensino a partir das relações étnicoraciais foram socializadas e registradas no relatório principalmente nas redes de ensino Estadual de Pernambuco e Bahia e Municipais de Olinda e Recife Houve várias propostas também dos representantes do Pará Em várias dessas propostas foram registradas uma grande preocupação com a reconstrução da história a ser contada 277 Não quero dizer que o evento tenha contado apenas com a presença de intelectuais negros mas que estes ocuparam um lugar central de articulação das discussões e proposições 152 evidenciando a participação ativa dos sujeitos negros na construção do Brasil valorizando a cultura afrobrasileira combatendo o racismo e reconhecendo a legitimidade das lutas políticas dos movimentos negros Ao longo do relatório destacaramse expressões como História da África A Luta dos Negros no Brasil A Cultura Negra O Combate ao Racismo A Reformulação dos Currículos de Ensino Um aspecto importante presente no discurso dos militantes era a valorização da cultura tanto nas escolas formais quanto nas escolas ou instituições informais de ensino Locais em que a cultura deveria exercer um papel relevante sendo praticada como instrumento de aprendizado e não como lazer apenas A cultura afrobrasileira era definida enquanto instrumento de ensinoaprendizagem de conscientização racial e construção da identidade negra de valorização da ancestralidade africana e de equiparação em nível de direitos e respeito quando comparada a outras culturas como as brancas indígenas etc Dessa maneira por exemplo propunhase que as religiões como a Umbanda e o Candomblé pudessem ser contempladas nos currículos escolares e assumiase uma postura de crítica à folclorização e comercialização da cultura afro brasileira no ensino de história278 A história ocupava cada vez mais a centralidade nos debates promovidos pelos distintos seguimentos do movimento negro enquanto possibilidade de construção de uma educação libertária que conte a verdadeira história sobre o povo negro Já que a história foi eleita era importante ao evento a legitimação de um discurso historiográfico Esse era assumidamente um desejo dos movimentos negros O historiador Biu Vicente representando a Prefeitura do Recife cumpriu este papel enfatizando a importância da atuação do MNU para essa mudança epistemológica no campo educacional Desde 1987 começamos a debater nas nossas capacitações com professores o que realmente significa o 13 de maio O fato da nossa escola começar a discutir essa questão não é uma invenção nossa Nós fomos empurrados pelos movimentos sociais Foi exatamente a militância dos movimentos negros dos movimentos sociais que empurrou a escola para discutir os problemas da 278 Os debates sobre a cultura afrobrasileira perpassam todas as palestras debates grupos de trabalho e a plenária final 153 sociedade Nada disso seria possível sem a militância dos movimentos negros279 Vicente afirma que a atuação dos militantes negros nas escolas através de visitas palestras rodas de conversa debates etc fez com que as escolas do Recife passassem a construir um novo conceito sobre o 13 de maio a partir de uma perspectiva crítica em que a narrativa histórica é revisitada e reconstruída sob outras vias de significação que contemplam a atuação negra e também as dificuldades dos afrodescendentes no pós abolição A história seria um campo discursivo ambíguo Ela teria forjado consciências quanto ao passado dos negros no Brasil mas ela também seria a possibilidade de ressignificação da identidade negra no presente criando novas possibilidades de existência cidadã no futuro280 Uma mesa bastante importante foi a de título O papel do professor na descolonização do ensino em que os debates giravam em torno da figura do professor como agente de reprodução de ideologias racistas Propunhase que para haver de fato mudanças no ensino não bastava a construção de um novo currículo mas também a mudança de postura do professor No debate a educadora Helena Teodoro afirmou ser fundamental haver uma mudança na relação do professor com o aluno recuperando sua criatividade Em visão complementar a educadora Tereza de França afirmava uma das dificuldades para a descolonização é não perceber que ensinar é um ato político O grupo de trabalho III O Racismo no Livro Didático foi dirigido pela educadora Ana Célia uma das fundadoras do MNUBA e principal pesquisadora do tema no Brasil Ela defendeu a sua tese de que ainda havia nos livros a ideologia do branqueamento enquanto reprodução de valores éticos e estéticos que positivavam apenas as crianças brancas em detrimento das negras Tal fato se dava explica Ana Célia pelo fato de que os livros didáticos reproduzem os preconceitos colonizadores da igreja dos pensadores e dos intelectuais que legitimavam a ideologia de inferiorização do negro sob uma discursividade tida como científica Para este trabalho importa saber quais foram as demandas geradas para o ensino de história Discussões que foram efetivadas pelo grupo de trabalho V Introdução da 279 VICENTE Biu A experiência do Recife In MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 p 23 280 VICENTE Biu A experiência do Recife In MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 154 história da África e do afrobrasileiro nos currículos escolares Nesse grupo discutiramse as experiências já existentes em algumas cidades e estados brasileiros de implementação de novas configurações curriculares que contemplassem a história da África dos povos negros e da cultura afrobrasileira O grupo concluía que para garantir esses novos temas no ensino de história seria essencial a publicação de bons livros didáticos que contemplassem tais conteúdos de forma responsável e a formação inicial e continuada de professores de história Destarte se deveria pensar também a reelaboração dos currículos não somente na educação básica mas sobretudo no nível superior para que os professores desenvolvessem os suportes intelectuais necessários às suas práticas pedagógicas Todas as propostas desse grupo foram aprovadas por unanimidade na plenária final A saber 01 Incluir o dia 20 de novembro no calendário escolar como Dia Nacional da Consciência Negra 02 Revisão da História do Brasil por historiadores comprometidos com a questão do negro 03 Revisão dos livros didáticos por profissionais empenhados na causa do negro 04 Criação nas secretarias de educação da rede estadual e municipal de grupos de estudos com a participação de visitantes do movimento negro voltados para discutir as questões específicas do negro 05 Aproveitamento do material produzido pelos movimentos negros como material didático 06 O movimento negro deve junto às entidades ligadas à educação mobilizarse para participar no processo de discussão da Lei de diretrizes e bases 07 Garantir que no curso de magistério se discuta a questão do negro O como fazer fica a cargo de cada Estado 08 Que se inclua nas Universidades o centro de letras Departamento de Línguas Africanas e no de História História da África 09 Implantação de escolas para a comunidade a nível nacional a cargo e sob a responsabilidade do movimento negro de cada Estado Para isso seriam utilizados subsídios existentes em cofres públicos cabendo aos movimentos negros levantar projetos nessa ordem 10 Inclusão da história da África e cultura negra no Brasil nos currículos ou pelo menos em torno dos livros programas curriculares Professores e Ciências Humanas 11 Fazer reciclagem com os professores de 1º e 2º graus em História da África e Cultura Negra pelas Faculdades de Educação a nível nacional Fazer textos para serem divulgados pelos professores e alunos sobre história da África e cultura negra 12 Lutar por uma Universidade aberta democrática e participativa onde haja a presença da cultura popular especialmente da cultura Afro 13 Proposta e convite para o engajamento de militantes negros nas reuniões às terçasfeiras às 9 hs para discutir a questão curricular e 155 para subsidiar na mudança da orientação de rede municipal de Olinda 14 Sugerir a criação de uma associação de professores negros e comprometidos com a causa e que a associação legitime os professores que lecionam Introdução da História da África e do AfroBrasileiro nos currículos escolares professores que tenham conhecimento da história281 Dessa forma se legitima oficialmente uma série de demandas do movimento negro unificado para o ensino de história Disciplina que foi eleita como campo discursivo de uma educação libertadora e passou a ocupar a centralidade dos debates e dos anseios dos militantes negros como possibilidade de reconstrução simbólica da identidade negra A criação de disciplinas específicas nos diferentes níveis de ensino e a revisão dos conteúdos de história a publicação de livros didáticos a formação inicial e continuada de professores a criação de grupos de estudo entre professores e ativistas negros nas redes de ensino a formação de grupos para analisar livros didáticos de história e supervisionar projetos políticopedagógicos a instituição de uma data comemorativa como o 20 de novembro o reconhecimento da cultura afrobrasileira como instrumento político de construção identitária e mudança social Todas essas demandas serão constantemente atualizadas em novos eventos do MNU até que sejam transformadas em aparatos legais no final do século XX e início do século XXI Cultura educação e política estão entrelaçadas como proposta de um novo projeto de sociedade brasileira que preze pela ética e pela responsabilidade com a integridade de todos os seus cidadãos Estas foram as estratégias propostas debatidas e adotadas pelos diferentes seguimentos do movimento negro a fim de construir uma nova rede de significações de atribuir novos sentidos a ideia de negritude Negritude enquanto cultura um modelo de vida que se conquista enquanto conscientização e que se converte em atitude para garantir a conquista de direitos políticos 281 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 p 7879 156 Imagens do Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Na capa foto de atividade lúdicoeducativa promovida pelo Centro Maria da Conceição localizado no Morro da Conceição periferia do Recife Nesta instituição as educadoras empenhavamse em construir o conhecimento a partir da experiência sociocultural das crianças e a partir disto dialogar com os conteúdos escolares formais como a alfabetização Outro importante evento promovido pelo movimento ocorreu entre os dias 13 e 15 de abril de 1990 Foi o IX Congresso Nacional do MNU em Belo Horizonte onde o Programa de Ação criado em 1982 foi revisto e criticado propondose um novo texto Este documento contudo guardou muitos dos anseios do movimento negro No que concernem às articulações entre cultura e educação as noções do MNU não mudaram muito embora tenham amadurecido A educação é compreendida como um processo de ensinar e aprender que ocorre cotidianamente em todas as experiências do ser humano portanto a educação transcende a escola No entanto a instituição escolar ainda é legitimadora da mobilidade social e de desenvolvimento da cidadania em nossa sociedade letrada Assim ela se torna também muito importante para a população negra embora não seja o único espaço educativo que essa população possui Contudo dizse no documento o problema é que a educação ainda se constituíra enquanto campo de produção de desigualdade e de reprodução do racismo efetivado pelo apagamento das memórias negras nas narrativas históricas pela negação dos conflitos raciais e pela desqualificação da cultura afrobrasileira Destarte o MNU insistia que entre outras 157 soluções possíveis não poderiam deixar de ser realizadas para a inclusão da disciplina História da África e do Povo Negro no Brasil nos currículos escolares282 Já a discussão de cultura se apresenta de forma mais densa nesse novo documento A noção de cultura do movimento negro continua dialogando com as perspectivas de Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes Ainda se preza pela ideia de que a cultura afrobrasileira esteja articulada à política Contudo o documento pondera duas perspectivas pelas quais a cultura tem sido tradicionalmente abordada em diferentes níveis de estudos e legitimada em ações cotidianas e de políticas públicas 1 primeiramente a permanência da alienação ou manipulação política da cultura pelos brancos Fato que gera algumas conseqüências imediatas a redução da cultura negra à culinária ao lúdico e ao religioso o alijamento da atuação do negro às esferas de decisão da sociedade e sua subordinação econômica a desvinculação da cultura à história de luta e opressão do povo negro e a geração de lucros com a venda da cultura negra pelo branco 2 em segundo lugar a ruptura ou seja a articulação consciente entre cultura e política pela população negra Neste sentido as práticas culturais afro brasileiras seriam mediadoras de conflitos políticos que se estabelecem cotidianamente além de redefinirem as identidades sociais Essa noção gerava como demanda para o MNU atuar na conscientização política das Escolas de Samba Afoxés Maracatus Grupos de Capoeira Terreiros de Candomblé entre outros tipos instituições culturais nas artes visuais filosóficas e literárias por exemplo O objetivo dessa ação seria estimular um salto qualitativo do papel político e social desses grupos283 Na verdade o Programa de Ação de 1990 só atualiza as críticas definições e propostas Todo esse processo de legalização de suas recomendações continuou ocorrendo durante a década de 1990284 Conforme Sales Augusto Soares285 entre o fim da década de 1980 e início da década de 1990 vários estados eou municípios brasileiros criaram leis que reformulavam os currículos escolares garantindo lugar à história da África e 282 MOVIMENTO NEGRO Programa de Ação aprovado no IX Congresso Nacional Belo Horizonte 1990 p 14 283 Idem Op Cit p 16 284 No Rio de Janeiro em março de 1991 foi aprovado no II Congresso Nacional Extraordinário o Estatuto do Movimento Negro Unificado ampliando a base legal do movimento 285 SANTOS Sales Augusto A Lei nº 1063903 como fruto da luta antiracista do Movimento Negro In MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Educação AntiRacista caminhos abertos pela Lei nº 1063903 Brasília MEC 2005 158 história e cultura afrobrasileira a exemplo Bahia286 Porto Alegre287 Belém288 Aracaju289 São Paulo290 Teresina291 e Brasília292 No fervor das discussões daquela década alguns eventos puderam marcar a história do Brasil sob o prisma do MNU como a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida ocorrida em 20 de novembro de 1995 em Brasília quando os seus organizadores foram recebidos pelo então presidente da república Fernando Henrique Cardozo no Palácio do Planalto Na ocasião o presidente assumiu a existência do racismo no Brasil e propunha a criação de ações afirmativas para a população negra em seu governo Os organizadores da marcha entregaram ao presidente o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial documento no qual propunham entre outros elementos a implementação de uma convenção sobre a eliminação da discriminação racial no ensino brasileiro o monitoramento dos livros didáticos manuais didáticos e programas educativos controlados pela união e o desenvolvimento de formações continuadas de professores habilitandoos a abordarem a diversidade racial identificar as práticas discriminatórias na escola e o impacto destas na evasão e repetência de crianças negras Contudo esse projeto ficou guardado por algum tempo Mas o contexto em torno do projeto de revisão da educação brasileira a partir dos debates sobre as relações étnicoraciais tornava cada vez mais evidente o caminho de mudança que paulatinamente se trilhava Além da marcha Zumbi dos Palmares em 1995 foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra em 1996 Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais pelo Ministério da Educação que para a disciplina escolar História referendava a importância de estudar a participação ativa das três matrizes formadoras da identidade nacional indígenas européias e africanas Já em 2001 ocorreram a Conferencia Mundial contra o Racismo a Discriminação Racial a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância Evento organizado pela ONU realizado em Durban na África do Sul Neste último evento o MNU reafirmou a necessidade de o Brasil implementar políticas 286 Constituição do Estado da Bahia 05 de outubro de 1989 287 Lei nº 6889 de 05 de setembro de 1991 288 Lei nº 7685 de 17 de janeiro de 1994 289 Lei nº 2221 de 30 de novembro de 1994 E Lei nº 2251 de 31 de março de 1995 290 Lei nº 11973 de 04 de janeiro de 1996 291 Lei nº 2639 de 16 de março de 1998 292 Lei nº1187 de 13 de setembro de 1996 159 afirmativas sobretudo para a população negra ao passo que o Estado brasileiro assumiu o compromisso de implementar essas políticas a fim de combater o racismo e as disparidade étnicoraciais293 Como fruto da emersão dessas reivindicações e ações dos movimentos negros associadas ao fato de o Estado brasileiro ter se comprometido publicamente com a reparação das desigualdades raciais em suas múltiplas instâncias de ação é que em janeiro de 2003 quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva o governo federal sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos do negro no Brasil e de história e cultura afrobrasileira Por conseguinte podemos afirmar que essa lei resulta de uma luta maior do MNU pelo fim do racismo no Brasil em que a educação foi eleita como campo de ressignificação da identidade cultural negra a partir da qual construindose uma nova discursividade partindo da ação políticocultural dos movimentos negros em consonância com historiadores e cientistas sociais de referência que reformularam a noção de cultura afro brasilera se expandiriam as novas possibilidades históricas de democratização do ensino de história Os cidadãos negros não estariam reduzidos às recordações românticas do colorido folclore ou ao fatalismo da exclusão sem saída Não negaria o lúdico a capoeira a gastronomia a dança a música a festa o candomblé a umbanda e a jurema sagrada etc Não negaria o racismo a pobreza e a falta de trabalho e a evasão escolar Porém traria à luz a esperança Mas garantir que a esperança ultrapasse o mundo das abstrações e se concretizasse no mundo real na experiência cotidiana da sociedade brasileira era necessário instituir práticas discursivas textos oficiais discursividades profícuas A identidade cultural negra era ressignificada através da atividade política sobretudo no nível cultural Os cidadãos negros que passariam a ser reconhecidos como sujeitos que produzem conhecimentos em diversas áreas do saber humano e que mesmo agindo nos espaços lúdicos gastronômicos e religiosos o fazem com sentidos muito 293 Mais informações sobre esse contexto podem ser acompanhadas em BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da Lei nº 1063903 e a Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Mácia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 160 próprios desenvolvendo uma lógica bastante complexa de negociação e construção identitária Esses são os sentidos das lutas do MNU e suas várias facetas que culminou no estabelecimento da Lei 10639 em janeiro de 2003 A esse respeito a historiadora Circe Bittencourt 2006 afirma que para que ocorram mudanças nas propostas curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade e mais precisamente na clientela escolar Quando se reconhece oficialmente que surgiram novas demandas socioculturais e políticas na sociedade e mais especificamente no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares294 A Lei 1063903 modificou o artigo 26 da Lei 939496 denominada Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB No Capítulo II Seção I Das Disposições Gerais a LDB considera o currículo de forma flexível contextual adaptável às diferentes localidades do Brasil Art 26 Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte diversificada exigida pelas características regionais e locais da sociedade da cultura da economia e da clientela No parágrafo 4º do referido artigo incitase o reconhecimento da pluralidade cultural como conteúdo a ser abordado no ensino de história 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro especialmente das matrizes indígena africana e européia Porém num currículo que perpetua uma visão de mundo eurocêntrica a existência de um único parágrafo em forma de sugestão não garante por si só a efetivação de práticas pedagógicas que privilegiem a história e cultura das diferentes matrizes étnicas 294 BITTENCOURT Circe O Saber Histórico na Sala de Aula São Paulo Contexto 2006 161 Como bem atestam Marcus Silva e Selva Guimarães Fonseca295 o currículo é um campo de lutas Um espaço disputado por diferentes sujeitos com diferentes intenções e projetos políticos Nesse espaço simbólico somente alguns conhecimentos poderão ser contemplados e em se tratando do saber histórico escolar poderá perpetuar a memória de um grupo sobre outro A memória de um grupo que detém o poder de dizer e fazer a política educacional O currículo é um lugar de negociação de sentidos e como tal expressa tensões conflitos acordos consensos aproximações e distanciamentos Enquanto construção cultural ele é dotado de uma historicidade é plástico pode readequarse a novas demandas de significação política social e cultural Como vimos ao longo deste capítulo o MNU buscou ser ativo na disputa por esse espaço de legitimação de poderes que é o currículo escolar Na falta de maiores ações efetivas o MNU continuou pressionando o governo federal para que tomasse providencias quanto ao combate ao racismo Uma vez que no contexto da Conferência de Durban em 2001 o governo brasileiro havia se comprometido com a ONU referente à aplicação de medidas de reparação racial para tal foi sancionada a Lei nº 1063903 tornando obrigatório nas redes de ensino brasileiras O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei Art 1 A Lei n 9394 de 20 de dezembro de 1996 passa a vigorar acrescida dos seguintes arts 26A 79A e 79B296 Art 26A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio oficiais e particulares tornase obrigatório o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira 1 O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos a luta dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política pertinentes à História do Brasil 295 SILVA Marcus FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 296 O artigo 79 da LDB trata do projeto educativo para as comunidades indígenas garantindolhes uma política cultural que embora dialoga com o restante da sociedade brasileira priva pela valorização também das práticas culturais especificas desses povos Com a Lei 1063903 instituise neste artigo o Dia Nacional da Consciência Negra 162 2 Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras Art 79B O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra Art 2 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação Brasília 9 de janeiro de 2003 LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque No texto da lei podemos ver o uso de alguns termos presentes nas propostas do MNU desde o Programa de Ação de 1982 o que denota que esse projeto foi elaborado por militantes que estavam imbuídos nessas práticas discursivas O discurso oficial do Estado brasileiro se alimentava dos discursos atualizados do MNU que por sua vez se afinava cada vez mais com os historiadores e cientistas sociais comprometidos com a causa dos negros Nesta prática interdiscursiva ganha destaque a história da África das lutas do povo negro e da cultura afrobrasileira na formação da nacionalidade porém percebase no texto da lei que ainda se usa o termo contribuição ao invés de participação como o desejava o MNU Pode parecer simples mas a escolha de determinados termos em detrimento de outros revela visões de mundo e relações de poder Enquanto que por exemplo o termo participação atribui um sentido de atividade na ação histórica o termo contribuição minimiza afasta marginaliza a ação do outro É importante lembrar que embora haja uma notável interdiscursividade com o MNU ao passar pelo congresso e ser sancionado pelo presidente o texto passa a assumir a voz do governo e neste sentido o MNU e toda a comunidade que ele representa voltam a ser o outro Assim por mais que pareça que se está dando um grande passo inovador se está na verdade reproduzindo representações minimizantes da participação negra na história Brasil que são presentificadas pelo anunciado da lei297 Na análise do discurso todas as formas de expressão tem importância e constroem significados pois Todo dizer é 297 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editores 2012 163 ideologicamente marcado É na língua que a ideologia se materializa Nas palavras dos sujeitos 298 e isso ocorre mesmo que por vezes eles não se deem conta O porquê de se proferir um discurso de uma forma e não de outra encontrar a mensagem transmitida naquilo que não foi dito como uma presença de uma ausência necessária299 problematizar a interpretação do dizível contextualizandoa e percebendo as relações de poder que a interpelam Essa minimização do negro ao contento de uma lei federal não ocorreu apenas no plano mais sutil do discurso Ela se deu também de forma objetiva negando a intervenção direta e legal do MNU na produção de discursos nessa política educativa que se instalara afinal foi vetada a participação do MNU na elaboração de materiais didáticos e na formação de professores como fora requisitado pelo movimento no VIII ENNNE nos Programas de Ação e demais espaços formativos É questionável até que ponto essa nova discursividade que fora convertida em lei promoveu o protagonismo negro na reconstrução da proposta educativa brasileira uma vez que lhe foi negado a participação em processos futuros de intervenção O Estado diz que o MNU só pode vir até determinado ponto da ação Além disso a existência de uma lei na teoria não garante a realização de atividades práticas quanto ao ensino de história e cultura afrobrasileira Se a lei propunha o combate ao racismo através da construção crítica do conhecimento sobre a experiência histórica e cultural dos negros no Brasil ela esbarrava nas dificuldades de outros recursos tão necessários a sua concretização a formação de professores e a produção de livros e materiais didáticos por exemplo Conforme a educadora Claudilene Silva Significa dizer que apesar da conquista de marcos legais que tentam garantir a singularidade e pluralidade do espaço escolar a escolarização da população negra brasileira tem se pautado por uma ideologia que ainda é fundamentada no desejo de branqueamento do Brasil e no mito da democracia racial A escola que a população negra conhece ainda é uma escola que tem negado a sua existência300 298 Idem Op Cit p 38 299 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editores 2012 300 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 19 164 Embora o governo federal e muitos profissionais do ensino tenham se empenhado nos últimos anos em produzir diversas ações de transformação deste quadro tais como a produção de materiais didáticos específicos o fomento a projetos culturais a promoção de eventos e cursos de formação de gestores e professores etc a qualidade de muitas destas ações pode ser questionada sobretudo quando perguntamos qual a noção de cultura afrobrasileira que permeia cada uma dessas ações Com uma lei ainda tão genérica que não estabelece metas nem procedimentos de ações e além disso que também veta a iniciativa direta do MNU na ação política quanto à efetivação da lei as clivagens entre teoria e prática se tornaram evidentes Foi assim que o Conselho Nacional de Educação CNE emitiu o Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 como documentos reguladores da Lei 1063903301 O conselho teve como relatora a Profª Dra Petronilha Beatriz Gonçalves302 No parecer CNECP 032004 buscouse ser bem abrangente Sugeriuse valores como justiça social dignidade humana cidadania respeito às diferenças e valorização das identidades afrobrasileiras como fundamentos para se efetivar a lei no cotidiano de sala de aula Estas ações são estabelecidas no discurso da relatora como princípios orientadores da política educacional para as relações étnicoraciais e versa sobre formação de professores conteúdos e formas de abordagem e produção de livros e materiais didáticos A cultura afrobrasileira é pensada em sua diversidade É definida dentro da perspectiva do MNU referência pela qual a autora enquanto ativista negra 301 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 302 Reconhecida militante negra e pesquisadora das relações étnicoraciais no Brasil Petronilha é professora titular da Universidade Federal de São Carlos UFSCar O texto da professora partiu de uma pesquisa feita com aplicação de questionários a vários sujeitos grupos do Movimento Negro militantes individuais Conselhos Estaduais e Municipais de Educação professores engajados com a temática e pais de alunos Foram encaminhados em torno de 1000 questionários e o responderam individualmente ou em grupo 250 mulheres e homens entre crianças e adultos com diferentes níveis de escolarização As respostas analisadas nestes questionários foram importantes para que se traçassem problemas dificuldades e dúvidas reais dos múltiplos sujeitos a quem o ensino de história e cultura afrobrasileira interessa Por conseguinte esses dados serviram de base para que o parecer tecesse suas orientações posturas indicações normas temas materiais e métodos Isso nos faz perceber a complexidade de sujeitos envolvidos na produção de demandas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Para além do MNU foram relevantes também diversos ativistas negros individualmente acadêmicos agremiações e grupos culturais professores gestores pais etc As vozes destes sujeitos negociaram sentidos sobre a cultura afrobrasileira e sua importância política no currículo de história Compartilharam dificuldades e esperanças traçando projetos Além de ter a profa Petronilha a construção do parecer contou também com a participação de intelectuais de diferentes pertencimentos étnicoraciais tais como a professora indígina Francisca Novantino Pinto de Ângelo Nezokemaero que atua como membro representante indígena na Comissão Nancional de Professores Indígenas do MEC e dos professores brancos Carlos Roberto Jamil Cury professor émerito da UFMG e expresidente da CAPES e da professra Marília AnconaLopez doutora em psicologia clínica que atua como assistente doutor da Pontifícia Unviersidade Católica de São Paulo 165 busca legitimar o seu texto no Parecer Os lugares simbólicos dessa cultura afro brasileira são amplos e pequenos ao mesmo tempo fluidos e consistentes as danças músicas festejos a capoeira o teatro a linguagem as religiosidades O ensino de Cultura AfroBrasileira destacaria o jeito próprio de ser viver e pensar manifestado tanto no dia a dia quanto em celebrações como congadas moçambiques ensaios maracatus rodas de samba303 Mas também entre outras manifestações culturais mais estruturadoras das relações sociais os conceitos a estética as relações culturais ambientais sociais e políticas as formas de trabalho a produção do conhecimento aos conceitos e significações próprias que os negros constroem dentro de sua lógica cultural muito própria em seus diversos contextos de experiências históricas Com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Brasil na construção econômica social e cultural da nação destacandose a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento de atuação profissional de criação tecnológica e artística de luta social304 A resolução por sua vez estabelece o referido parecer como Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e ressalta que o cumprimento das diretrizes será um fato determinante na avaliação do funcionamento das unidades escolares Ainda assim essa decisão extremada não garante o cumprimento dos planejamentos oficiais Art 2 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africanas constituemse de orientações princípios e fundamentos para o planejamento execução e avaliação da Educação e têm por meta promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil buscando relações étnico sociais positivas rumo à construção de nação democrática 2º O Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade história e cultura dos afrobrasileiros bem como a garantia de 303 BRASIL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Parecer CPCNE 032004 Brasília 22062004 304 BRASIL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Parecer CPCNE 032004 Brasília 22062004 166 reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira ao lado das indígenas européias asiáticas Pensando a educação como um desenvolvimento intelectual que contempla a consciência racial os intelectuais responsáveis por estas elaborações oficiais propõe que o Ensino seja o campo não só fomento ao desenvolvimento social dos estudantes negros mas também uma experiência significativa de construção de identidade sentimento de pertencimento reflexão crítica definição de posturas políticas valorização exercício e divulgação da cultura afrobrasileira como marcas distintivas e estimadas mesmo em meio a uma sociedade racista Desta forma a educação seria um espaço de construção e vivencia da cidadania Mas a aplicabilidade desse conceito depende das diferentes apropriações que podem ser feitas no cotidiano do ambiente escolar Vai depender muito dos personagens que se cruzem e negociem sentidos e poderes nas encruzilhadas discursivas da história Para Claudilene Silva devemos compreender a legislação e suas diretrizes dentro do campo das relações étnicoraciais brasileiras como política educacional de promoção da igualdade racial ou seja uma política afirmativa que busca compensar as conseqüências atuais de uma sociedade que reproduz um racismo como estruturador das desigualdades sociais Tal contexto gera um incomodo não só em vários setores da sociedade brasileira como também no Estado brasileiro que embora se proponha como republicano resiste a equacionar desigualmente a diversidade305 Identidades cenários e poderes que circulam em discursividades múltiplas o negro a representação sobre o negro a representação do negro Políticas públicas currículo formal formação de professores práticas pedagógicas representações do alunado conflitos no ambiente escolar reprodução do racismo omissões quanto ao estudo de história e cultura afrobrasileira materiais e livros didáticos Discutir essa complexa rede de artefatos e signficações no Ensino de história é uma tarefa muito ampla e por isso mesmo difícil Há que se fazer recortes e tomar apenas um desses elementos 305 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 167 Para as ciências sociais brasileiras sobretudo a História a presença negra e seu universo cultural tornaramse objeto de estudos específicos com o desenvolvimento do Estado republicano Entre finais do século XIX e durante todo o século XX essa preocupação se atualizou e apareceu de diferentes formas conceituais Ora reforçando estereótipos ora buscando desconstruílos Temos assim um elenco de conceitos de cultura afrobrasileira e algumas propostas de uma cartografia desta cultura localizandoa em determinados lugares simbólicos por vezes plasmandoa de forma irrevogável sem conhecer seus sentidos mais profundos Em outro contexto intelectuais brancos e negros ao lado dos movimentos negros se preocuparam em revisar conceitualmente a história e a cultura afrobrasileira e com isso constroem uma série de pautas e reivindicações que legitimam direitos políticos em prol de uma cidadania negra brasileira Produzemse novos sentidos novas conceituações interdiscursivas que redefinem e relocalizam simbolicamente a cultura afrobrasileira nas representações e nas reorginazações do nacional Nesse processo de construir legitimidades o ensino de história é reconfigurado a partir de demandas identitárias mais democráticas 168 CONSIDERAÇÕES FINAIS A cultura afrobrasileira se torna objeto de estudo no Brasil a partir do momento em que o Estado brasileiro passava por reconfigurações políticas no final do século XIX Se agora o Estado se assumia republicano era necessário pensar de forma mais ampla os seus critérios de cidadania Desde o fim do império brasileiro que os negros não eram escravos mas inda na república não estavam tão claros os projetos de cidadania a ser vivenciados pelos diferentes cidadãos Aliás a diferença num sentido de distinção para usufruto de privilégios políticos foi a regra de estabelecimento de níveis diferenciados de cidadania O Estado se reformulava politicamente mas não deixava de manter relações de desigualdade social As elites ainda mantinham seus propósitos na gestão republicana O novo advento político exigia nova reinvenção do nacional e a cultura foi um dos elementos centrais do mito fundador do Brasil As discursividades emergentes queriam entender o caráter nacional na alma do povo verificando a participação dos três grupos étnicos indicados como formadores do Brasil brancos negros e índios É a partir do critério contribuição na história do desenvolvimento nacional que se legitimará as hierarquias raciais no Brasil Desta forma se legitima discursivamente que aqueles cidadãos em melhores condições sociais são descendentes das raças que mais e melhor contribuíram para o desenvolvimento do Brasil Essa perspectiva racializante naturaliza as diferenças reconfigurando as relações de poder306 Entender esse processo é essencial para perceber as redes de significação discriminatórias que orientam as ações das pessoas ainda hoje perante a população negra e sua cultura Segundo Edward Said307 existe uma profunda diferença entre o ato de estudar o outro para conhecêlo para alargar horizontes e tecer boas relações de convivência entre o eu e o outro e estudar e conhecer esse outro para poder dominálo colonizálo definir suas possibilidades históricas políticas e culturais O movimento negro surgido em finais dos anos 1970 estava atento a isto e buscou referenciarse em uma complexa rede de discursividades que legitimassem as suas pautas políticas Em meio ao processo de descolonização da África aos movimentos pelos direitos civis nos EUA às críticas de intelectuais que põem na 306 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo Das Raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 307 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 169 agenda pública as violências material e simbólica das formas de dominação das sociedades modernas ocidentais em meio às teorias sobre a educação como instância legitimadora ou transformadora de desigualdades sociais surgem textos argumentos e ideias que nutriram o nascente MNU e suas críticas ao Estado brasileiro suas propostas e definições conceituais Dentre suas pautas políticas está a briga pelo universo simbólico e semântico pela representação da identidade cultural negra e a sua dignidade na História Assim julgam os militantes negros do século XX no Brasil há a permanência de um racismo velado que deslegitima social econômica e politicamente a identidade cultural negra Mas este racismo foi construído historicamente é portanto uma construção cultural suscetível de eliminação Nesta luta o MNU assumia postura contra a manipulação ideológica e exploração da cultura afrobrasileira ao passo que se empenhava por sua valorização e uso como instrumento de atuação política Mais do que posicionamentos do MNU estas propostas marcam zonas de interdiscursos Ora aproximações discursivas entre o MNU e uma estabelecida tradição de estudos afrobrasileiros para negaremse ora aproximações entre o MNU e novos estudiosos da cultura afrobrasileira para afirmaremse Desse modo a historicidade do conceito de cultura afrobrasileira mostra que este termo é polissêmico Corresponde não só às práticas culturais em si mas também aos discursos sobre tais práticas O conceito de cultura afrobrasileira como discursividade é algo aberto às significações múltiplas sendo apropriado e ressignificado por diferentes sujeitos com diferentes intenções em momentos distintos da história Essas significações denotam histórias de lutas entre formas de dominação e de libertação entre colonização x descolonização políticocultural Enfim a história da cultura afrobrasileira enquanto discursividade denota poderes O posicionamento estratégico do MNU em seus textos contra a manipulação ideológica e a exploração da cultura afrobrasileira nos instigou a historicizar este processo contra o qual o movimento se coloca oficialmente Percebemos haver a formação e atualização de uma tradição de pensamento colonizadora dominadora sobre a cultura afrobrasileira que foi alimentada por vários intelectuais Tivemos de selecionar e decidimos pelos inauguradores dos paradigmas interpretativos sobre a cultura afrobrasileira Aqueles autores que com muita originalidade e rearranjos teóricometodológicos forjaram narrativas sistemas de explicação e plasmaram as representações sobre o tema que se tornaram clássicas Constatamos que mudanças paradigmáticas mudanças de referenciais teóricometodológicos não consistem 170 necessariamente em mudança de visão de mundo em relação a um determinado tema Autores como Nina Rodrigues Gilberto Freyre e Florestan Fernandes partiam do pressuposto que a cultura afrobrasileira é quando comparada à cultura do branco ocidental cristã moderna capitalista neoliberal racista etc uma cultura menor menos enraizada ou estruturada etc Estes autores não conseguiam compreender a lógica própria do objeto ao qual se propunham a estudar Eles realizaram operações simbólicas e conceituais que identificam e classificam a produção cultural afrodescendente no Brasil pela carência plasticidade infantilidade alienação e grosseria de seus conteúdos e formas São tomados como práticas culturais autenticamente negras a dança a música a festa a escultura a culinária o candomblé a capoeira etc afirmase indiretamente que só se é negro dentro destes nichos culturais dentro desses lugares simbólicos Não se estende a noção de cultura afrobrasileira a outras práticas experiências históricas e visões de mundo Ela é definida pela superficialidade de suas linhas e socialmente desclassificada no dizer do intelectual branco São as danças lascivas as músicas desordenadas as festas desorganizadas as esculturas grosseiras a culinária simples e colorida a religião fetichista o lúdico agressivo No olhar e no dizer colonizador do branco a cultura afrobrasileira é instintiva e não racional Ela deve ficar adormecida sob os lençóis ou enfeitando as coloridas e folclóricas pinturas e fotografias que deverão permanecer guardadas durante todo o ano para não por o país a perder Ela só seria chamada quando necessário à espetacularização e lucratividade do Estado brasileiro e das classes dominantes Uma discussão datada mas que torna clássicas as representações de lugares simbólicos que serão retomados posteriormente por uma grande série de intelectuais brasileiros pela mídia pelas instituições escolares pela indústria cultural etc O processo de estereotipização da cultura afrobrasileira gera lucros para os cidadãos não negros e para o Estado brasileiro ao passo que deslegitima as pautas políticas da população negra Era contra isso que o MNU se posicionava Definidos os nichos autênticos de cultura negra limitase simbolicamente o acesso dos negros a outros espaços de saber e poder limitamse as possibilidades históricas antropológicas e sociais Negase a memória de outras experiências históricas e socioculturais dos negros no Brasil pois tratase de uma perspectiva cultural determinista Não se deve esquecer que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social 171 entre saberes intelectuais e manuais cuja distinção efetivase pela educação formal para ter competência de produzir uma boa cultura308 Nessa perspectiva distintamente da arte a cultura afrobrasileira estaria no campo do folclore Não objetivamos com este trabalho inferiorizar ou desconsiderar o vestuário a gastronomia309 a música a dança a escultura o candomblé enquanto práticas culturais afrobrasileiras Não consideramos que esses lugares simbólicos sejam destituídos de inteligência ou que não haja neles a realização de complexas operações mentais Longe disso Nossa inquietação corresponde ao momento em que esses lugares simbólicos se tornam discursivamente as únicas experiências possíveis sendo tomados como critérios de autenticidade da identidade cultural negra no Brasil Pior ainda sendo incompreendidos e depreciados Uma vez identificadas as intenções estratégias e consequências dessa rede discursiva o próprio MNU ponderoua como uma discussão datada historicamente que não poderia continuar sendo perpetuada no imaginário nacional Afinal sabiam os militantes já se dispunha de outros referencias que ressignificavam o saber e as relações de poder em relação ao tema No Programa de Ação do MNU o movimento convidava historiadores antropólogos e outros cientistas sociais preocupados com a causa do negro para estabelecer diálogos e parceria num intenso revisionismo do nacional No livro Cafundó Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes assumem que consideram legítima a causa do MNU e que decidiram se aproximar do movimento contribuindo através de pesquisas científicas com as suas pautas políticas Nestes encontros e negociação de sentidos o conceito de cultura afrobrasileira é reformulado Esta cultura passa a ser definida como um conjunto de práticas que articulam memórias de experiências vividas no continente africano adaptadas às expectativas de vida e dignidade humanas construídas pelos africanos e seus descendentes no Brasil sob as agruras vividas no cativeiro A cultura ganha nova 308 CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 309 O termo gastronomia não é contemporâneo ao período de produção de Nina Rodrigues Freyre e Fernandes mas sim como já dito o termo culinária Contudo hoje adotamos o termo gastronomia pois este termo indica não só o ato de produzir receitas mas também a variedade de saberes fazeres e significações que circundam a produção dessas mesmas receitas Consideramos também que o termo culinária folcloriza torna estático o saber gastronômico afrobrasileiro Notese que ainda hoje cotidianamente muitas pessoas usam expressões como gastronomia alemã francesa ou italiana e culinária africana e afrobrasileira O estabelecimento e difusão dessas expressões não são processo inocentes Embora o uso dessas expressões possa ser inconsciente elas diferenciam hierarquizando e reconstruindo semanticamente relações de poder 172 dimensão temporal É dinâmica mutável transformada e transformadora É contextual sociológica histórica e política Os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira são ampliados não fragmentos de línguas africanas mas formas de linguagem complexos sistemas de significação do mundo construção de conceitos e visões de mundo Não apenas o candomblé mas todas as religiosidades onde há a presença de elementos africanos ressignificados inclusive em vivências de origem cristãs Não somente os aglomerados negros da festa e do lúdico mas o aglomerado familiar afetivo a linhagem Não somente a casa a choupana ou qualquer outro objeto material por si só mas a construção espacial as extensões e elos invisíveis entre o mundo físico e o espiritual Fry Vogt e Slenes não dispensam os lugares simbólicos clássicos como a dança música gastronomia etc mas afirmam que é preciso buscar conhecer os sentidos mais profundos presentes na lógica que orienta essas ações dos cidadãos negros dentro dessas práticas conforme uma perspectiva afrocentrada Essa busca se configurou na bandeira de luta levantada pelo MNU no fomento às novas pesquisas publicações e produções de materiais didáticos vídeos etc por parte de intelectuais ativistas negros e não negros No Programa de Ação do MNU também é definido o conceito de cultura afrobrasileira onde se percebe total interdiscursividade entre esses novos cientistas sociais e o MNU310 Para o movimento ela é dinâmica e entendida como instância mediadora de relações políticas no cotidiano Ela tem lógica própria sentidos profundos originalidade e não essencialidade estando aberta a novas interações culturais mas sempre sendo transformada e transformando os sujeitos negros a partir de suas experiências e necessidades concretas Esclarecidas essas noções o MNU se empenhou em estabelecêlas também como princípios orientadores das políticas públicas do Estado brasileiro através da educação O movimento exigia que a educação no Brasil fosse reformulada de modo que deixasse de ser instrumento de legitimação ideológica das classes dominantes e passasse a ser um instrumento libertador democrático ético e estético na própria reestruturação do Estado brasileiro Os militantes se empenharam em pesquisas científicas uma vez que são legitimadoras de ações políticas para denunciar as abordagens racistas fortemente presentes nos currículos nas instituições escolares e nos 310 Não queremos dizer com isso que o MNU foi apenas influenciado por esses acadêmicos Na verdade o que constatamos é que as influências foram mútuas Fica difícil dizer quem definiu o que primeiro Aliás isso sequer foi preocupação dos referidos sujeitos tampouco é a nossa Preferimos pensar numa sistemática de diálogos e negociações de sentidos onde a discursividade que sempre aberta circula e é apropriada e reapropriada Temporalmente tanto a fundação do MNU como o início dessas pesquisas históricas de cunho cultural feita por Fry Vogt e Slenes datam de 1978 173 livros didáticos por exemplo Promoveram encontros debates exigiram mudanças e elaboraram propostas de e para o ensino Projetavase através da militância uma nova configuração curricular para o Ensino de história Nessas ações a instituição MNU não estava sozinha Ao seu lado as instituições de caráter cultural agremiações carnavalescas e lideranças religiosas tiveram participação ativa Produziamse narrativas que redignificassem a identidade negra através de músicas sambaenredos peças de teatro poesias etc Uma das ações mais significativas neste sentido foi o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE cujo tema era O negro e a educação A educação foi eleita como via de transformação na mentalidade da sociedade brasileira Fato que reorientaria não só representações mas também ações e relações pessoais no cotidiano das pessoas em relação à cultura negra Foram vários os esforços para a criação de uma Lei que operasse em nível nacional Enquanto isso várias experiências de legalização da proposta foram vivenciadas por alguns estados e municípios brasileiros No entanto as pressões do movimento ao governo federal não cessavam A Marcha Zumbi dos Palmares constitui um marco neste sentido mas a situação só toma corpo em 2001 quando o Estado brasileiro se reconhece como racista perante a ONU e se compromete publicamente em criar políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial Apenas em 2003 é que foi criada a Lei 10639 tornando obrigatório o estudo de história da África dos povos africanos e da cultura afrobrasileira Mas entre a garantia de uma lei e a efetivação de práticas de ensino que a materializem há grandes clivagens Uma longa história de discriminação simbólica não se abandona tão rapidamente Toda uma cultura educativa no Brasil precisa ser mexida formação de professores e gestores escolares produção de materiais didáticos conversas com os alunos e comunidade escolar são algumas medidas necessárias pois a falta delas ainda torna fluida a efetivação da Lei Ora ainda neste sentido outro agravante ainda era que conteúdos selecionar para ensinar Não havia diretrizes específicas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Tal fato deixava uma grande abertura para que aquelas velhas noções estereotipadas da cultura afrobrasileira encontrassem um campo vastíssimo e legalmente garantido para perpetuaremse Para os intelectuais ativistas um perigo Foi então que um ano após sancionada a Lei alguns intelectuais negros indígenas e brancos comprometidos com a reconstrução das relações democráticas entre o Estado e a sociedade criaram o Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 como documentos reguladores da Lei 10639 Agora sim tinhase nos marcos legais para o 174 Ensino de História a referência clara ao conceito de cultura afrobrasileira pautado nas discussões da historiografia cultural ao modo de Slenes Fry e Vogt e do MNU A partir dessa complexa história de discursividades poderes políticos historiografia e ensino de história referendamos uma postura política Pensamos que seja necessário abandonar as velhas concepções e buscar compreender os significados do que sejam para a própria comunidade negra a sua cultura e suas diversas práticas seu vestuário sua gastronomia seus conceitos e sistemas linguísticos suas danças músicas e demais artes suas formas de religiosidade formas de afeto visões de mundo etc Devemos pensálas em seu dinamismo e poder nas mediações políticas Promover um esforço intelectual para descolonizar os dizeres sobre a cultura afrobrasileira é buscar sua lógica própria em outras histórias outras experiências outras práticas culturais outras possibilidades de ser dizer e fazer da população negra em nosso país Esta operação simbólica demanda muitas outras coisas Compreendidos os sentidos da cultura afrobrasileira construídos e propostos para o ensino de história no Brasil neste início do século XXI é terminar esta dissertação com inquietações e esperanças Uma questão importante que se impõe é sobre como esta proposta oficial tem ou não se efetivado em diferentes realidades escolares nestes anos após a Lei Mas isto convenhamos é tema de pesquisas futuras 175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICHE Chimmammanda O perigo de uma única história Conferência ministrada em julho de 2009 Oxford Inglaterra Disponível em wwwyoutubecom Acesso em 11 de maio de 2011 ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 ALBUQUERQUE Jr Durval M História a arte de inventar o passado Ensaios de Teoria da História Bauru SP Edusc 2007 ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 ALMEIDA Maria das Graças Andrade Ataíde de A construção da verdade autoritária São Paulo HumanitasFFLCHUSP 2001 ALTHUSSER Louis Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado Lisboa Presença 1970 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 BATISTA NETO José SANTIAGO Eliete Org Formação de Professores e Prática Pedagógica Recife Ed Universitária da UFPE 2009 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de 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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE histórias e poderes de um conceito Gustavo Manoel da Silva Gomes Recife 2013 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE Histórias e poderes de um conceito Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social da Cultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco como requisito parcial para conclusão do Curso de Mestrado em História Social da Cultura Regional Orientadora da Profª Drª Lúcia Falcão Barbosa Recife 2013 2 Ficha catalográfica G633c Gomes Gustavo Manoel da Silva A cultura afrobrasileira como discursividade histórias e poderes de um conceito Gustavo Manoel da Silva Gomes Recife 2013 183 f il Orientadora Lúcia Falcão Barbosa Dissertação Mestrado em História Social da Cultura Regional Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de História Recife 2013 Referências 1 História 2 Cultura afrobrasileira 3 Intelectuais 4 Discursividade 5 Poder I Barbosa Lúcia Falcão orientadora II Título CDD 981 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO PRÓREITORIA DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA REGIONAL A CULTURA AFROBRASILEIRA COMO DISCURSIVIDADE histórias e poderes de um conceito DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ELABORADA POR GUSTAVO MANOEL DA SILVA GOMES APROVADA EM 08022013 BANCA EXAMINADORA Profª Drª Lúcia Falcão Barbosa Orientadora Programa de PósGraduação em História UFRPE Profº Drº Wellington Barbosa da Silva Programa de PósGraduação em História UFRPE Profº Drº Moisés de Melo Santana Departamento de Educação UFRPE 4 DEDICATÓRIA A todas as cidadãs e cidadãos brasileiros que desejam construir um mundo onde todas as pessoas sejam compreendidas e aceitas da forma como são Pela liberdade da comunidade negra à qual represento Por uma nova consciência sobre a identidade cultural afrobrasileira 5 AGRADECIMENTOS Este espaço de minha escrita serve para reconhecer a atuação de pessoas cruciais à efetivação de todo esse processo formativo a quem faço questão de tornar públicos os meus agradecimentos A minha mãe Edneide Borges mulher forte e guerreira que viveu as agruras de uma mãe solteira numa sociedade machista classista e racista esforçandose para criar me e darme o melhor que pudesse Com ela agredeço muito o empenho da minha estimada avó Maria dos Anjos carinhosamente chamada de Vó Fia Família é um bem precioso que nos dá suporte Agradeço a toda ela em especial aos meus afilhados e muitos sobrinhos sempre atentos e dispostos a convidarme para brincar Até quando não posso Agradeço imensamente ao Luiz Domingos Omomilewá o filho da beleza das águas Há cinco anos uma figura essencial na minha vida Companheiro sempre atento dedicado terno e muito paciente cuja presença em minha vida se torna cada vez mais imprescindível Ele me ajudou muitíssimo neste período do mestrado O amigo Eduardo Lima um irmão atento brincalhão calmo e conselheiro que sempre tem me ajudado muito As amigas e amigos negras e negros da UFRPE que me inspiram sempre pela postura militância apoio e inspiração estética nesta instituição Viviane Aquino Renata Mesquita Roberta Paula Marcone Souza Laís Neves Luiz Domingos Pallomma Dármea Vanessa Marinho Vivenciamos juntos uma negritude linda ativa e inteligente na universidade pública Agradeço bastante a minha orientadora a Profa Dra Lúcia Falcão Amiga companheira de leituras discussões tangos e sambas Alguém com quem compartilhei segredos sorrisos esperanças e muito trabalho Ela tem dado tons ao mesmo tempo pulsantes e delicados ao meu desenvolvimento intelectual Aos professores da UFRPE Sandra Melo e Carmi Ferraz que me iniciaram cientificamente nas regras da pesquisa acadêmica Ao apoio respeito e incentivo dos professores Juliana Andrade João Morais Maria Auxiliadora Denise Botelho e Claudilene Silva a professora da UFPE Thereza Didier Registro um agradecimento especial ao professor Tiago de Melo Gomes que tive o prazer de conhecer melhor depois buscando seus conselhos orientações e empréstimo de livros raros sobre meu tema de pesquisa Ele tornouse uma pessoa essencial nesta minha caminhada Mestre 6 com quem ao lado do Eduardo conversei aprendi sorri e por vezes bebi algumas boas cervejas Agradeço imensamente ao respeito profissional a confiança e a afeição com que sempre me trataram os professores Wellington Barbosa e Moisés Santana Aceitaram compor a banca para minha argüição pública nesta fase tão importante da minha vida Pelo mesmo motivo agradeço também ao professor José Bento do curso de História da UFPE Todos esses profissionais são figuraschaves na minha formação humana e não apenas profissional Agradeço imensamente aos mestresamigos que ajudaram neste processo Martha Rosa Gian Carlo e Sandro Vasconcelos que me ajudaram com documentos dicas e doses de ânimo Agradeço com muito carinho a Yalorixá Fátima de Oxum e ao babalorixá Genivaldo de Oxum Cada um em momentos diferentes ao longo desses dois anos de mestrado me ajudou quando precisei de socorro espiritual Obrigado Sou também muito grato ao meu orixá meu pai Logunedé O príncipe dos orixás senhor das pedras preciosas da beleza e da prosperidade do amor das artes e de tudo o que é belo e encantador no mundo Ele é o dono do meu destino Escolheume quando nasci Está comigo me fazendo brilhar neste mundo Loci Loci Logun É com profunda satisfação que agradeço a uma família muito querida que tenho Uma família que conquistei devagarzinho e que preenche muito o meu coração a família do AFOXÉ OXUM PANDÁ Povo lindo e arretado sem o qual não consigo viver bem Agradeço na pessoa de meu presidente Genivaldo Barbosa Lemos e minha diretora a guerreira Sandra Guerra Em nome deles meus queridos irmãos do afoxé sintamse todas e todos recebendo beijos sinceros e carinhosos no coração Saibam que vocês me acompanharam também neste trabalho A todas e todos meu mais sincero e gostoso MUITO OBRIGADO 7 SUMÁRIO Resumo8 Resumen9 Apresentação10 Introduzindo uma problemática historiografia para a descolonização do conceito de cultura afrobrasileira no ensino de história16 CAPÍTULO 1 CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO discursividades negociadas na emersão do Movimento Negro brasileiro35 11 A identidade negra entre textos sons cores e gestos o movimento negro como contraprojeto de Estado brasileiro36 CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira72 21 A presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afro brasileira como discursividade73 212 Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afro brasileira77 213 Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira88 214 Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira104 CAPÍTULO 3 A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO a historiografia o ensino de história e o novo compromisso político do estado brasileiro119 31 As novas discursividades na construção do conceito de cultura afrobrasileira a narrativa histórica como instrumento assumidamente político120 312 Peter Fry e Carlos Vogt a dinâmica cultural e a cultura afrobrasileira repensada123 313 Robert Slenes a história cultural e a cultura afrobrasileira vista por dentro132 314 O MNU seu conceito de cultura afrobrasileira e o ativismo negro na construção de um novo currículo para o Ensino de História143 CONSIDERAÇÕES FINAIS168 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS175 8 RESUMO Em 2003 o Estado brasileiro sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o Ensino de História da África e da Cultura AfroBrasileira Hoje parece haver um consenso da relevância política cultural e social deste ato bem como da necessidade de realizar atividades que concretizem os princípios da referida Lei Esta dissertação busca reconstruir alguns percursos históricos que respaldaram esta legislação a partir das produções históricodiscursivas do conceito de cultura afrobrasileira elaboradas por intelectuais da academia e dos movimentos sociais negros enquanto projetos políticos de reorganização da identidade nacional Nosso propósito foi promover uma reflexão crítica aprofundada sobre as implicações políticas de cada versão conceitual da cultura afrobrasileira que pode ser assumida no Ensino de História Neste trabalho tomamos Edward Said como referencial teóricometodológico ao ponderar a perspicácia política na produção intelectual que se propõem a discutir identidades culturais Neste sentido analisamos os perfis dos sujeitos negros os cenários as situações sociais e as práticas culturais negras selecionados para compor as narrativas desses intelectuais ao mesmo tempo em que refletimos sobre as implicações políticas de cada conceituação de cultura afrobrasileira Eni Orlandi é um referencial da análise do discurso que nos permite enxergar o conceito de cultura afrobrasileira como uma discursividade um conceito aberto às diferentes significações negociadas e assumidas por distintos interlocutores em contextos e com propósitos políticos específicos Tomamos como corpus de análise obras historiográficas que inauguraram paradigmas interpretativos sobre a cultura afro brasileira relatos orais de militantes negros relatórios Carta de Princípios e Programa de Ação do MNU além de legislação específica que versa sobre o ensino de história e cultura afrobrasileira A investigação nos fez perceber que ao longo do século XX intelectuais de diferentes momentos e com distintos propósitos observaram analisaram classificaram e definiram a identidade cultural negra indicando os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira em meio à cultura nacional Eles não só reforçam uma tradição conceitual de um campo de estudos como também reconfiguraram limitaram e atualizaram de forma generalizante a cartografia cultural dos afrodescendentes Ao realizar uma análise históricodiscursiva dessas produções intelectuais percebemos que conceitualmente o campo da cultura afrobrasileira é um espaço de mediação de poderes políticos que é reconfigurado a cada instante sugerindo orientações e ações cotidianas às pessoas comprometidas com determinadas perspectivas políticas fato que se reflete também no currículo do Ensino de História PALAVRASCHAVE História Cultura AfroBrasileira Intelectuais Discursividade Poder 9 RESUMEN En 2003 el gobierno brasileño promulgó la Ley N 10639 a lo cual hizo de la enseñanza de la historia africana y Cultura AfroBrasileña una obligatoriedad en las escuelas Hoy en día parece que hay un consenso de las cuestiones políticas culturales y sociales de esta ley así como la necesidad de realizar actividades que pongan en práctica los principios de la Ley Este ensayo intenta reconstruir algunas rutas históricas que apoyaron esta legislación a partir del concepto histórico de las producciones discursivas y culturales afrobrasileñas elaborados por los intelectuales de la academia y los negros de los movimientos sociales con el objetivo de reorganización política de los proyectos de la identidad nacional Nuestro objetivo ha sido desarrollar el pensamiento crítico sobre las implicaciones políticas de cada versión del concepto africanobrasileño cultural que puede suponer para la enseñanza de la Historia En este trabajo tomamos Edward Said como teórico y metodológico por su perspicacia política de la producción intelectual que proponemos a discutir sobre las identidades culturales En este sentido se analizaron los perfiles de los sujetos de raza negra escenarios situaciones sociales y las prácticas culturales negras seleccionadas para componer los relatos de estos intelectuales mientras reflexionamos sobre las implicaciones políticas de cada conceptualización de la cultura afrobrasileña Eni Orlandi es un marco de análisis del discurso que nos permite ver el concepto de la cultura afrobrasileña como un discurso un concepto abierto a diferentes significados negociados y asumidos por los diferentes interlocutores en contextos específicos y con fines políticos Tomamos como el análisis del corpus obras históricas que abrieron paradigmas interpretativos sobre los afrobrasileños y su cultura historias orales de militantes negros los informes la Carta de Principios y Programa de Acción de MNU y la legislación específica que se ocupa de la enseñanza de la historia y la cultura africanabrasileña Percibimos con la investigación que a lo largo del siglo XX los intelectuales de distintas épocas y con distintos propósitos han observado analizado clasificado y definido la identidad cultural negra indicando los lugares simbólicos de la cultura afrobrasileña a través de la cultura nacional Ellos no hicieron sino reforzar una tradición de estudios del campo conceptual así como reconfigurar actualizar resumiendo los estudios a la generalización de la cartografía cultural de origen africano Mediante la realización de un análisis histórico de estos intelectuales y sus producciones discursivas hemos visto que conceptualmente el campo de la cultura afrobrasileña es un espacio para la mediación del poder político que se pone a cero a cada momento que sugiere lineamientos y acciones cotidianas de personas comprometidas con ciertas perspectivas políticas e eso también se refleja en el plan de estudios de la enseñanza de Historia PALABRAS CLAVE Historia Cultura AfroBrasileña Intelectuales Discurso Poder 10 APRESENTAÇÃO Muleque muleque quem te deu este beiço assim tão grandão Teus cabelos de pimenta do reino Teu nariz essa coisa achatada Muleque muleque quem te fez assim Eu penso muleque que foi o amor1 CENA 1 Manhã ensolarada Uma escola católica no bairro de Apipucos no Recife Nela grande movimentação de jovens fardados voltando ainda muito animados do recreio Conversavase sobre as paqueras os flertes as fofoquinhas as novelas os shows etc Todos os adolescentes sentiam a vida pulsante e queriam ser cada um o mais belo dos belos o mais popular dos populares e o mais poderoso de todos De repente um amontoado de gente em torno da parede no corredor Empurra empurra Ansiedade risinhos De que se tratava Era uma eleição feita pelos alunos da turma mais velha da escola a 8ª série para evidenciar os alunos considerados os mais e os menos bonitos da classe O cara branco parecido com o ator de Malhação foi eleito o mais bonito Um aluno que se dizia moreno foi apontado pela turma como negro sendo eleito o menos afeiçoado de todos Os colegas de classe fizeram questão de explicarlhe entre um riso e outro que seu tipo de cabelo seu nariz e bocas largos além de sua pele escura haviam influenciado o resultado CENA 2 Anos depois Noite de domingo Céu estrelado e muito calor No Mercado Eufrásio Barbosa em Olinda uma festa No palco o Afoxé Oxum Pandá Entre uma bela música e outra palavras de valorização da negritude Você pode você é lindo negro O público delira Uma injeção de ânimo que mexe com a cabeça Um jovem negro fica encantando com tudo aquilo as cores amarela branca e dourada da deusa 1 TRINDADE Solano O Poeta do Povo SP Cantos e Prantos Editora 1999 11 Oxum o ritmo inebriante dos instrumentos os movimentos dos bailarinos a alegria do público Aquilo causava sucessivos arrepios Olhos cheios dágua o show continua emanando axé Na memória repetiase Você pode você é lindo negro CENA 3 Noites de terça e quintafeira Calor bom da primavera Um grupo de estudantes universitários do curso de Licenciatura em História da UFRPE cursa a disciplina História e Cultura AfroBrasileira São muitas as velhas novidades que estavam escondidas pela tradicional ótica ocidental Redescobriamse muitas coisas importantes das quais não se imaginavam que existissem na história da humanidade Um dos alunos se repensa enquanto negro Aquilo tudo é muito importante Seus referenciais são reconstruídos mesmo que o professor da disciplina não saiba que o processo está acontecendo Durante as aulas afloravam as memórias afetivas que aquele jovem tinha das idas aos candomblés dos quais tanto gostava e com os quais se encantava Ele se repensava enquanto intelectual e se propunha a se tornar pesquisador desse desafiador campo da História e da Cultura AfroBrasileira Esta decisão traria marcas éticas e estéticas para a sua vida CENA 4 Manhã quente no Recife Um jovem professor negro entra na sala de aula do Ensino Médio numa escola privada Neste dia ele calçava alpercatas brancas e vestia uma calça branca e uma bata de origem marroquina estampada de azul e branco com bordados acobreados Demonstrava estilo personalidade requinte com simplicidade e afirmava uma ideia de afrodescendência O professor deseja bom dia Apaga as anotações que outro professor deixara no quadro Virase para a turma Apresentase e começa a aula O tema As origens da Filosofia No final da aula três alunas e um aluno se dirigem ao professor Parecem ter gostado do que ouviram O aluno chega a elogiar mais de três vezes a aula do professor parecendo nem ele mesmo acreditar no que ouvira aqueles cinqüenta minutos O professor diz já ter entendido que o aluno gostou e pergunta qual o motivo da insistência na admiração É que eu pensei que o senhor fosse um professor bem relaxado por causa do seu estilo Sabe como é esse cabelo essa roupa Eu pensei esse cara deve ser artista também um professor bem louquinho ou relaxado 12 O que estas cenas têm em comum A presença insistente de um jovem negro que tenta afirmarse num mundo que em vários momentos o nega Este jovem sou eu Gustavo Gomes E esta pequena apresentação trata de uma das faces de minha experiência de vida cujo recorte temático é a relação histórica que tenho reconstruído de pertencimento a minha etnicidade Nesta história as instituições escolares e os grupos culturais ocupam um papel central a partir dos quais minha identidade foi sendo repensada e reconstruída partindo de diferentes níveis de reflexão e ação De minha própria experiência enquanto cidadão negro brasileiro pude perceber o quanto estão imbricadas as relações entre educação cultura política e identidade No amadurecimento desta percepção eu tive sede e tive fome Mas eram sede e fome de livros de música de roupas de penteados de alegrias e de argumentos Foi assim que me aproximei de algumas instituições como o Núcleo da Cultura AfroBrasileira da Prefeitura do Recife os Núcleos de Estudos AfroBrasileiros da UFRPE e da UFPE de ativistas negros de vários perfis das agremiações carnavalescas negras dos terreiros de candomblé etc Foi assim que eu ingressei naquele povo que me seduziu e me deu esperanças o Afoxé Oxum Pandá Instituição muito importante na minha vida pois me possibilita viver a militância política negra um pouco da religiosidade cadomblecista e o exercício estético da dança dos orixás A permanência neste afoxé no qual hoje componho a diretoria e coordenação da dança me fortaleceu muito enquanto pesquisador da cultura afrobrasileira Obrigado mãe Oxum Ora yê yê No entanto para além de pesquisador eu sempre busquei formas múltiplas de intervenção social Ajudei a criar na universidade o Grupo de Percussão e Danças Afro Brasileiras Obá Okê para alunos da UFRPE e membros da comunidade circunvizinha à universidade Sempre fui apaixonado pelas coisas belas pelas interações estéticas Porém a minha preocupação maior esteve voltada aos pensamentos representações e julgamentos que pairam na sociedade Como narrei eu mesmo fuisou vítima de situações desse tipo em vários momentos da minha vida Ora da mesma forma que aquele aluno questionou previamente a minha capacidade intelectual e profissional outros professores e até gestores também o fizeram O meu cabelo entrançado estilo Rastafári já foi por várias vezes critério para eu perder uma vaga de emprego como professor Provavelmente eu não era compreendido como um bom exemplo para certas instituições O que imaginavam de mim eu sei bem mas prefiro me abster de demarcar estas paginas com passagens tão desagradáveis Da mesma forma 13 muitas pessoas quando me veem pelas ruas ou mesmo nas universidades onde sou chamado para compor mesasredondas palestrar ou ministrar cursos as pessoas que me veem pela primeira vez sempre perguntam se eu sou músico artista atleta ou qualquer outro profissional mas nunca conseguem olhar para mim pela primeira vez e imaginar um educador um historiador um pesquisador um escritor etc Um mestre em história então Não quero dizer com isso que as produções artísticas e desportivas estejam destituídas de inteligência e não realizem complexas operações mentais Não é isso Como disse sou bailarino também Mas entenda quando as pessoas perguntam o que sou e o que faço partem de pressupostos que me enquadrarão em único lugar e preferencialmente um lugar que não lhes pareça muito inteligente ou sério Louquinho ou relaxado foram os termos que aquele aluno expressou com sinceridade enquanto muitos só pensaram e preferiram omitir Sobre o que quero falar especificamente Sobre as implicações políticas que as representações sociais exercem nas relações sociais cotidianas de pessoas negras Um penteado um estilo de roupa ou qualquer outro símbolo pode ser carregado de sentidos políticos para uns mas pode ser encarado como algo grosseiro feio ou inconfiável por outros Assumir um perfil estético é ativar uma gama tão grande de significações possíveis que um indivíduo pode ser encurralado culturalmente politicamente social e economicamente Empregos podem ser negados a fala pode não ganhar credibilidade social a confiança política pode ser negada Por que o Brasil nunca elegeu um presidente negro Por que nunca houve um candidato com este perfil ou por que os brasileiros ainda não aprenderam a confiar politicamente num negro Tudo isso tem a ver com educação Não apenas doméstica mas também escolar Por isso minha preocupação foi trabalhar enfaticamente a formação de professores para o ensino de história e cultura afrobrasileira Desmistificar preconceitos recontar histórias pluralizar discursos e memórias abrir caminhos para novas identidades mais do que um exercício intelectual consistiu num ato político Esse tema de ensino aprendizagem não deve jamais ser reduzido apenas às crianças negras tampouco apenas às brancas ou de outros grupos étnicos Todos precisamos nos conhecer melhor mutuamente compreendendonos No início desta minha empreitada sobre a história e a cultura afrobrasileira eu estava quase cego de tanta euforia Quanto mais bebia e comia mas sede tinha dos conhecimentos específicos e tudo o que me chegava pelos sentidos do corpo viravam temas e materiais para aulas e cursos de formação 14 Aí vieram a formatura em Licenciatura em História pela UFRPE e a especialização em História e Cultua Afrobrasileira pela UNICAP Após a formatura passei um curto tempo desempregado procurando escolas onde pudesse dar aulas A busca acabou quando passei num concurso para professor substituto do Departamento de Educação da UFRPE Naquela instituição pública fui aceito pela minha competência e o visual que carrego não era interpretado de forma negativa Agora era colega de trabalho de meus estimados professores e com o salário recebido investi no curso de especialização Continuava pois a insistir em discutir na formação de professores temas como Educação das Relações ÉtnicoRaciais e História e Cultura Afrobrasileira Os trabalhos realizados eram bastante instigantes mas como historiador que sou uma coisa intrigavame Eu vivia na euforia de um presente contínuo do processo vivenciava a fase da concretização da Lei nº 1063903 e a urgência de efetivála através de práticas diversas de ensino No entanto eu precisava compreender o processo histórico conflituoso e promissor de construção daquele marco legal Foi aí que me lancei à seleção do Mestrado em História na UFRPE e em Educação na UFPE Passei nas duas seleções mas preferi ficar na UFRPE para continuar no campo da História A minha proposta investigativa porém não se limitava a narrar linearmente o surgimento da Lei como uma sucessão de documentos legislativos que instituem obrigações Eu tentei entender epistemologicamente as múltiplas recriações do conceito de cultura afrobrasileira para refletir sobre suas implicações políticas Que noções e representações da identidade cultural negra perpassam as cabeças das pessoas e fazem com elas tomem determinadas atitudes perante alguém que assume uma identidade e um conjunto de práticas culturais negras Esta busca foi um esforço intelectual de enxergar a longevidade de práticas e representações instituídas socialmente e atualizadas a cada dia Foi na verdade uma busca de entender o que se passou em vários momentos comigo mesmo Neste sentido é importante dizer que como este trabalho se trata de uma proposta políticointelectual que sugere a existência de outras formas de pensar organizar discursar e narrar não nos pareceu lógico seguir uma linearidade na escrita Estar ainda que timidamente promovendose outras experiências narrativas que mexa com a organização temporal dos fatos mas sem sacrificar a produção de sentidos Foi desta maneira que cheguei aqui percorrendo caminhos tortuosos misteriosos e igualmente sedutores Encontrando livros textos fontes músicas danças denúncias e muitas 15 esperanças Termino este texto pelo começo Pela narrativa do começo de uma nova fase em minha vida CENA 5 Fevereiro de 2013 Manhã ensolarada de verão A cidade do Recife está eufórica É véspera do desfile do Galo da Madrugada Em todos os bairros da cidade as festinhas já começaram Pelas ruas e estabelecimentos comerciais muitas cores brincadeiras gargalhadas músicas e danças Às 900 horas da manhã na UFRPE um ritual se repete Um jovem professor negro está diante de uma banca de doutores para sua defesa pública da Dissertação de Mestrado Na platéia a família militantes negros amigos estudantes universitários de vários níveis yalorixás e babalorixás integrantes de grupos culturais e a presença ilustre do Afoxé Oxum Pandá O nome deste professor Gustavo Gomes Expectativas a mil Lá fora os esperam as bênçãos dos orixás e as alegrias de uma boa cerveja dos tambores e clarins 16 Introduzindo uma problemática historiografia para a descolonização do conceito de cultura afrobrasileira no ensino de história Pensar a história entendida como a experiência dos seres humanos no tempo é também um convite para pensar a historiografia compreendida não simplesmente como um conjunto de fundamentos e métodos que regem a pesquisa e a escrita da história mas também como um campo de construção discursiva sobre as histórias vividas Hoje podemos afirmar isso graças aos variados movimentos de revisão teóricometodológica pelos quais passou a ciência histórica no último século Nesse processo de maturação os debates que reoxigenaram a historiografia hodierna ampliaram perspectivas temas objetos fontes conceitos e métodos que reconhecidamente passaram a compor o repertório do ser e do fazer historiográficos Cada vez mais para além dos sujeitos que analisamos em nossas pesquisas nós historiadores nos descobrimos como sujeitos da linguagem descobrindo também que os significados por nós produzidos são suscetíveis a análises críticas O discurso e suas estratégias de produção circulação e apropriações se tornaram objetos de estudo da História No entanto o que estamos chamando de discurso neste trabalho Para pensar algumas relações entre história e discurso tomamos alguns referenciais como Michel Foucault Michel de Certeau e Eni Orlandi Autores que propõem perspectivas argumentativas em certos pontos divergentes mas concordando que as relações de poder interferem nas construções discursivas Num primeiro momento a perspectiva da análise do discurso em Michel Foucault2 tornouse importante por reconhecer a historicidade dos conceitos Contudo ao relacionar essa historicidade com o seu conceito de Poder Foucault constrói diferentes valorações entre indivíduo e estruturas sociais Nele o poder assume uma abstração tamanha que parece se tornar o único sujeito propulsor da história As ações das pessoas comuns estão sempre determinadas pelo poder disciplinador institucional Em Foucault o poder se apropria das pessoas enquanto as pessoas não conseguem se apropriar do poder conseguindo por vezes exercêlo apenas quando ele está disponível Em sua linha de raciocínio os discursos são práticas sociais que legitimam o poder onipresente e disciplinador apresentando camadas de significação que os mascaram sendo oriundos dele Assim os conceitos e os significados produzidos no 2 FOUCAULT M Arqueologia do Saber RJ Forense 1987 Vigiar e Punir RJ Vozes 1996 Microfísica do Poder RJ Graal 1985 17 discurso não correspondem de forma alguma à realidade daquilo a que se empenham em classificar Nesse sentido o historiador que se propusesse a analisar discursos estaria o tempo todo buscando sentidos forjados construídos por quem teve o poder de análise classificação e escrita Seria uma busca infinita daquilo que não poderíamos alcançar realmente porque não se trata da objetividade das coisas mas apenas de uma discursividade Para Foucault o discurso constrói realidades instituindo práticas sociais de opressão Já Michel de Certeau3 acrescenta o importante conceito de lugar social para entendermos essa historicidade dos discursos Um dos textos onde o autor reflete sobre as interfaces entre história e discurso traz como tema o conceito de cultura popular4 Michel de Certeau chega a afirmar que tal conceito foi forjado por uma elite para diferenciar a sua prática cultural classificada como erudita daquela feita pelas camadas populares da população Dessa forma o conceito de cultura popular legitima o poder e a dominação elitista Não seria um conceito que corresponderia objetivamente ao universo cultural dos populares e portanto não seria cabível para entender as práticas culturais das pessoas comuns Logo propõe o autor a historiografia deve abandonar o conceito de cultura popular porque ela não existe fora do poder e discurso que a desclassifica Em suma em um raciocínio parecido com o de Foucault o autor propõe que se abandone o uso de determinados conceitos porque eles são forjados por poderes e regras de dominação e não correspondem à verdade das coisas das quais se propõem a falar Em sua análise Certeau não considerou que os conceitos podem ser apropriados e ressignificados em contextos diferentes Nesse jogo de eterno faz de conta impossibilitase a construção do conhecimento histórico a partir da análise do discurso reduzindoa a mera contemplação Como propõe Carlo Ginzburg estes autores levam a historiografia a um irracionalismo estetizante 5 Em perspectiva distinta Eni Orlandi nos propõe uma noção de discurso em que não se precise abdicar da objetividade na construção do conhecimento Para ela o discurso é um jogo uma negociação ativa em que diferentes interlocutores produzem e negociam efeitos de sentidos Sua perspectiva leva em consideração que os sujeitos 3 CERTEAU Michel de A operação historiográfica In A Escrita da História Rio de Janeiro Forense Universitária 2000 4 CERTEAU Michel de A beleza do morto In A cultura no plural Campinas SP Papirus 1995 5 GINZBURG Carlo O queijo e os vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição São Paulo Companhia das Letras 2006 18 históricos estão situados em contextos específicos que são interpelados por ideologias e valores mas que também são ativos nas relações sociais e os sentidos que constroem correspondem não só aos determinantes sóciohistóricoideológicos mas também às articulações destes com os interesses de cada sujeito que produz e se apropria dos discursos É dessa maneira que preferimos pensar em discursos no plural em polissemia em jogos de poder que se concretizam a partir da negociação ativa de sentidos Os discursos são construções que significam e ressignificam os objetos as pessoas as experiências sociais e culturais mediando as relações de poder ao passo que por elas também são interpelados Eles são construções simbólicas mas não eliminam a possibilidade de objetivação do mundo e das experiências históricas Os discursos instituem práticas sociais mas não constroem realidades e sim representações6 Ponderamos que seja possível trabalhar objetivamente com os discursos como fonte para a ciência histórica Não precisamos abandonar os conceitos entendidos enquanto elementos constitutivos da discursividade pelo fato de que eles sejam forjados É preciso mapear e analisar as estratégias utilizadas em suas múltiplas reconstruções Consideramos que os discursos em sua historicidade assumem significados distintos a partir das condições de produção e das identidades assumidas pelos interlocutores que produzem e se apropriam dos discursos Como sugere a linguística no desenvolvimento da análise do discurso a investigação científica dependerá das 6 Para Denise Jodelet o ser humano cria representações a fim de se situar cotidianamente no mundo nomeandoo conhecendoo dominandoo Para a autora as representações são ao mesmo tempo aproximações e distanciamentos dos objetos ideias ou pessoas representadas São interpretações que ressignificam esses objetos transformandoos sempre em leituras de alguém em um dado momento a partir dos referenciais conceituais dos quais uma pessoa já dispõe Desta forma as representações nunca correspondem totalmente à integridade à realidade tampouco à verdade do objeto representado JODELET Denise Representações sociais um domínio em expansão In JODELET Denise org As Representações sociais Rio de Janeiro Eduerj 2002 Já Edward Said afirma que as formas de representação de algo ou alguém partem de dados do mundo material e não devem ser encaradas como meras invenções espontâneas São inventadas no sentido de que são fabricadas discursivamente a partir da seleção e organização de símbolos que produzem determinados efeitos de sentidos a fim de legitimar poderes e formas de dominação Mesmo que tais representações partam de dados materiais elas não devem ser generalizadas pois são sempre leituras que reduzem o objeto representado Elas são formas específicas de apreender algo ou alguém que possuem profundas conseqüências políticas suscetíveis à análises críticas SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 Outro conceito de representação que nos parece bastante cabível nessa discussão vem de Bordieu que considera as representações como apropriações das estruturas sociais perpetuando símbolos e poderes de hierarquização BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 Dessa forma consideramos que as representações sobre a cultura afro brasileira têm sido uma maneira específica de percepção em relação a esta que a coloca ou a desloca simbolicamente em diferentes níveis hierárquicos através de distintas intenções símbolos e efeitos de sentido Esses distintos símbolos e efeitos de sentido são compartilhados socialmente perpetuando representações que referendam não somente as estruturas sociais como também as lutas sociais dominação x exclusão produção x superação das desigualdades raciais e dominação x autonomia simbólica da identidade negra 19 questões levantadas pelo pesquisador dos materiais levantados por ele de suas finalidades e dos modos como adequa esse aporte científico à sua área do conhecimento Trabalhamos o discurso como efeito de significação movimento circulação discursividade que media as relações de poder através de negociações de sentido e recriações de símbolos que dão lógica as ações das pessoas tanto nos momentos decisivos de suas vidas como em sua cotidianidade Pensamos o discurso nessa ambivalência de funções e tomamolo como fonte para a análise das relações de poder que se estabelecem a partir das construções discursivas dos intelectuais Tomamos aqui a proposta paradigmática póscolonial de Edward Said7 Esse referencial nos ajudará a pensar os discursos construídos sobre si e sobre o outro não só como meios de construção de identidades mas sobretudo como estratégias políticas que assumem diferentes significações em contextos distintos Com este autor as relações entre discurso x poder x subjetividade x produção do conhecimento são revisadas e construídas sobre parâmetros não só teóricos mas também políticos que não negam a objetividade e o compromisso ético da história com a crítica social Num primeiro momento a proposta teóricometodológica da historiografia póscolonial nos incita a fazer um estudo críticoreflexivo sobre as estratégias de saber que construíram ao longo do tempo saberes colonizados que definem estereotipam e dominam identidades sociais No segundo momento ela nos propõe uma reflexão sobre os discursos como possibilidade de ressignificação dessas identidades assumindo outra postura política de libertação respeito e aceitação das diferenças abandonando velhas concepções reducionistas que legitimam formas de dominação de uns sobre outros A discussão proporcionada por Edward Said contempla o conflito simbólico na história ao problematizar como diversos intelectuais constroem um campo de estudos científicos buscando definir discursivamente a identidade e os lugares culturais políticos e econômicos a serem ocupados por um outro que será estudado sendo esse outro um grupo ou uma sociedade inteira Por conseguinte tomamos como parâmetro para o nosso trabalho o estudo da perspicácia observável no jogo de poder quando um intelectual cria discursos narrativas e esquemas explicativos que determinam lugares 7 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 20 políticos culturais e econômicos para uma categoria social nesta pesquisa os afro brasileiros Embasandose em Said consideramos que não há imparcialidade por parte do intelectual É interessante refletirmos sobre os modos como toda uma diversidade histórica cultural política econômica e social de vários povos negros passa a ser simplesmente desqualificada e ignorada até se formar fragmentos estereotipados de uma identidade cultural exótica Desta forma este trabalho acadêmico se coloca como um estudo que fala de discurso e poder analisando de forma contextualizada os interesses as estratégias e as consequências da construção de um campo intelectual acerca da cultura afrobrasileira Um campo que será disputado por intelectuais de diferentes instituições e perfis Um campo de estudos e levantamento de pautas políticas que busca ao longo da história compreender classificar e descrever a identidade cultural negra no Brasil a partir de seleções que preservam múltiplos jogos de intenção8 Cabe aqui explicar a noção de intelectual que utilizamos Aqui faremos referencia a três intelectuais distintos que constroem conceitos por caminhos diferentes mas complementares Uma primeira definição nos vem do Cientista Social Michel Löwy O autor nos adverte que os intelectuais constituem não uma classe mas uma categoria social Os intelectuais seriam definidos desta forma por suas relações com as instancias extraeconômicas da estrutura social e não pelo seu lugar no processo de produção econômica Sua identidade é fluida e adaptável quanto aos propósitos de diferentes classes sociais embora historicamente estejam em vários momentos mais próximos da pequena burguesia Para Löwy o que define a identidade dos intelectuais é o seu papel ideológico Quando define o conceito de intelectuais Löwy afirma que eles são produtores diretos da esfera ideológica os criadores de produtos ideológicos culturais9 Enquanto produtor imediato de ideologias e culturas os intelectuais se distinguem de outros profissionais do mercado cultural como empresários administradores ou distribuidores de bens culturais pois estes não produzem diretamente ideologias apenas as fazem circular na lógica de mercado 8 Tomamos emprestado o conceito de campo intelectual de Bourdieu pois consideramos a cultura afro brasileira como um campo de estudos disputado politicamente pelos mesmos O campo intelectual é um espaço de conflitos e lutas científicas associadas à imposição de sentidos ou de formas de classificação Nossa escolha aqui é analisar esse processo a partir de práticas discursivas alusivas à cultura afro brasileira a fim de repensar a construção das formas específicas de apreender os indivíduos negros e suas práticas culturais BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2010 9 LÖWY Michel Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários a evolução política de Lucács 19091929 São Paulo Lech Livraria Editora Ciências Humanas 1979 p 1 21 Para o crítico literário Edward Said10 em primeira instância o intelectual é um indivíduo que exerce um papel público na sociedade cujo trabalho se legitima pela representação que o público e ele mesmo faz de si tomando como critério de sua consciência e compromisso ético a reflexão o ceticismo a racionalidade e o juízo moral Mas enquanto indivíduo o intelectual tem uma identidade e não pode ser entendido como alguém sem rosto ou tomado por uma corporação que o desumaniza Mesmo situado em um contexto histórico e interpelado por ideologias ele imprime suas marcas próprias nas mensagens que veicula O intelectual é um ser que toma para si e é reconhecido socialmente como tal a tarefa de investigar refletir analisar classificar e explicar o mundo os objetos as pessoas a natureza o imaginário as relações entre todas essas coisas Ele é alguém que pensa discute defende ideias constrói sistemas explicativos classificatórios e institui sentidos e práticas sociais perante um tema Said considera que os intelectuais podem servir a diferentes propósitos Numa primeira acepção seriam aqueles que utilizam do seu papel no espaço público para legitimar os poderes políticos dominantes que se empenham em manter a ordem desigual nas relações de poder Numa segunda acepção os intelectuais seriam aqueles indivíduos que utilizariam do seu papel social para questionar o status quo produzir fraturas nas comunidades simbólicas nacionais perturbar a ordem reivindicar direitos políticos justiça social e interferir no reordenamento social Na primeira versão o intelectual é alguém que acomoda na segunda ele é alguém que incomoda Essa diferenciação se torna fundamental para a compreensão de que não podemos generalizar o termo intelectual como categoria atemporal É nesse sentido que Said propõe que metodologicamente situemos os intelectuais em seus contextos específicos busquemos mapear suas ideias valores e crenças e analisemos como cada um deles articula seus argumentos e recria as representações sobre o tema de que tratam Essa perspectiva faz ruir a ilusão de imparcialidade do intelectual seja ele um cientista um comunicador social ou um artista Há sempre uma ligação entre a produção do conhecimento e um posicionamento político e é sobre essa concepção que analisaremos como diferentes intelectuais se posicionaram no Brasil frente ao tema história e cultura afrobrasileira Como pensaram e definiram as identidades que emergem nessa discursividade que articula identidade x alteridade negros x não negros Que sentidos são construídos sobre essas palavras nos diferentes contextos de 10 SAID Edward Representações do intelectual as conferências Reith de 1993 São Paulo Companhia das Letras 2005 22 produção do conhecimento em que a história do Brasil será um campo discursivo disputado simbolicamente por diferentes perfis de intelectuais Da mesma forma que para Said para o sociólogo Daniel Pecáut o intelectual é um indivíduo que assume uma identidade política de produtorintérprete de ideias na organização do Estado e é reconhecido socialmente enquanto tal11 O autor estuda a construção de uma cultura política que legitimou uma intelectualidade brasileira enquanto categoria social com perfil de classe média urbana Mesmo estudando a formação e legitimação de diferentes gerações de intelectuais no Brasil respectivamente 19251940 e de 19541964 o autor no ajudar a perceber que apesar das diferentes perspectivas teóricometodológicas existem concepções e propósitos entre distintos intelectuais que formam uma coesão interna O autor explica que essa perspectiva analítica não reduz o estudo das concepções políticas intelectuais homogeneizandoas mas do contrário permite analisar criticamente a formação de representações do fenômeno político que foram fecundas o suficiente para criar uma espécie de sentido comum sobre a identidade nacional e definir o objetivos dos debates intelectuais mesmo possuindo nas origens uma multiplicidade de tendências Pecáut nos alerta para a necessidade de nos esforçarmos para perceber a partir de qual ângulo os intelectuais estavam acostumados a falar12 lembrando ainda que as diferentes perspectivas teóricometodológicas defendidas por autores diversos não consistem necessariamente em antagonismos de projetos políticos Às vezes reforçam determinadas visões do nacional Como enfatiza ruptura porém não significa esquecimento nem anulação13 É neste sentido que o autor nos propõe o conceito de Cultura Política como o ato de aderir a uma mesma concepção de formação social Desse ponto de vistaa cultura política implica que tendências diversas num primeiro momento contraditórias possam surtir de uma mesma matriz geral supõe também a difusão de um significado comum e enfim referese a formas concretas de sociabilidade e comunicação A cultura política não diz respeito portanto ao conjunto dos membros da sociedade mas é antes constitutiva da identidade de um grupo14 11 PECÁUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação São Paulo Ática 1990 12 Idem Op Cit p 18 No nosso caso perguntamos quais as semelhanças nas perspectivas de estudos sobre a cultura afrobrasileira a partir de que ângulos os intelectuais estavam acostumados a falar sobre o tema 13 Idem Op Cit p 17 14 PECÁUT Daniel Os intelectuais e a política no Brasil entre o povo e a nação São Paulo Ática 1990 p 17 23 Este trabalho não se reduz a produzir uma história das ideias numa abordagem relativamente clássica que esteja mais preocupada em arrolar linearmente mudanças paradigmáticas ao invés de problematizar as implicações políticas dos discursos percebendo as influências que os intelectuais exercem no mundo real comunicandose a partir de sua própria ótica de poder O maior objetivo desta pesquisa de mestrado foi analisar e confrontar os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira criados por meio de enunciados que emergiram entre uma historiografia nacional hoje clássica e o Movimento Negro no Brasil a fim de mapear quais dessas concepções influenciaram nas propostas oficiais para o Ensino de História após a Lei nº 106390315 Assim tomamos como referencial teóricometodológico a análise do discurso tomando autores e suas discursividades de forma contextualizada Como propõe o próprio Said devemos considerar que os sujeitos históricos devem ser explicados contextualizados e não tomados como dados objetivos e acabados16 Os sentidos do discurso não estão somente nas palavras mas também nas relações sociais em que elas se dão Por isso compõe nossa proposta metodológica historiar esses autores e contextualizálos Nesse sentido surgem as perguntas quem fala sobre a cultura afro brasileira De onde se fala Que perspectiva é adotada para falar sobre Em que circunstancias se fala Para quem se fala Como funcionam as estratégias discursivas como metáforas comparações argumentações classificações conclusões etc Que relações existem entre quem fala e o seu contexto histórico Que projetos estão 15 A proposta de analisar e confrontar os conceitos de cultura afrobrasileira e suas representações entre os discursos dos cientistas sociais e do movimento negro deuse pelo fato de que esses foram os sujeitos cuja produção sobre o tema se deu com maior destaque Verdadeiras batalhas simbólicas em torno de um conceito que assumia diferentes acepções e por conseguinte implicações políticas Consideramos a legitimidade e a importância do Movimento Negro brasileiro para a reconstrução da historiografia nacional e também para o campo do Ensino de História em suas dimensões teóricas e práticas Como veremos em vários momentos intelectuais não negros dialogaram com o referido movimento encampando lutas políticas e intelectuais No entanto afirmar a participação dos militantes negros apenas enquanto parceria com os iluminados da academia brasileira seria um reducionismo Embora muitos militantes negros produzissem seus discursos a partir de sua prática cotidiana em suas agremiações culturais muitas das quais de caráter carnavalesco o que percebemos também é que muitos dos líderes dessa movimentação negra produziam seus novos conceitos de cultura afrobrasileira a partir da academia Eram universitários sobretudo das ciências sociais que estavam pensando reelaborando e ressignificando símbolos e efeitos de sentido ou seja novas representações sobre a cultura afrobrasileira a partir das regras de produção do discurso científicoacadêmico 16 Neste trabalho optamos por uma contextualização que enfatize mais os aspectos sociais e culturais do que os ditos propriamente políticos embora esses não deixem de ser evidenciados em nossa narrativa O que objetivamos é a ilustração de cenários e a recriação das ambiências que foram favoráveis ao surgimento de certas perspectivas sobre o conceito de cultura afrobrasileira em diferentes momentos da história do Brasil no qual foram inaugurados os paradigmas interpretativos sobre essa cultura que se tornaram clássicos 24 associados a cada fala Que implicações políticas cada fala possibilita em relação ao negro e sua cultura Destarte mapeamos as semelhanças as contradições e os confrontos entre as diferentes perspectivas conceituais propostas por diferentes cientistas sociais analisando e verificando o grau de interdiscursividade com que eles desenvolvem seus discursos e suas narrativas históricas Compreendemos aqui a interdiscursividade no sentido de Eni Orlandi como um conjunto de formulações já feitas por alguém e que são atualizadas em novos discursos Ou seja quais os sentidos que circulam e se atualizam entre a historiografia clássica nacional e o Movimento Negro brasileiro Que projetos políticos são atualizados por meio dessa interdiscursividade Diante dos discursos analisados tomamos como procedimento metodológico o que Said chamou de localização estratégica um modo de descrever a posição do autor num texto em relação ao tema sobre o qual se escreve Através disso podemos detectar a posição assumida pelos autores em relação ao que classificam como cultura afro brasileira Nas palavras do referido autor essa localização inclui o tipo de voz narrativa que ele o intelectual adota o tipo de estrutura que constrói os tipos de imagens temas motivos que circulam no seu texto todos os quais se somam para formar os modos deliberados de se dirigir ao leitor enfim de representálo ou falar em seu nome17 Buscaremos então como dados de análise discursiva nos textos que trabalharemos os perfis atribuídos aos negros os cenários e as circunstâncias históricas e sociais em que os negros aparecem nas narrativas e as práticas culturais selecionadas para representar a cultura afrobrasileira Considerando sempre que os discursos analisados não podem ser considerados como obras em si ou ainda como meros produtos dos contextos políticos mas como indícios que produzem e reproduzem ideias sobre diferentes aspectos da cultura afrobrasileira O que há em comum nestas textualidades tão diferentes as quais nos propomos a analisar Em ambos os casos a ciência histórica foi eleita como o campo de mediação de poderes de legitimação ou de combate ao racismo de ressignificação do conceito de cultura afrobrasileira A história foi transformada em metáfora da identidade negra 17 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 p 50 25 Hora depreciando subjugando e dominando simbolicamente Hora valorizando expandindo e libertando também simbolicamente Cada um desses grupos de intelectuais se propôs a estudar a experiência negra na construção da identidade cultural do Brasil e dentro de suas respectivas concepções realizaram um conjunto de operações simbólicas que construíram determinados sentidos e práticas sociais referentes aos negros e a sua cultura selecionaram observaram analisaram classificaram e organizaram em novas formas de narrativas alguns símbolos e significados da cultura afrobrasileira Essa perspectiva fez com que nos aproximássemos do nível argumentativo de Hayden White18 Este autor afirma que a produção das narrativas históricas está atrelada às subjetividades de quem as produz Para White a história é um gênero discursivo equivalente à literatura quanto às suas estratégias de formação seleção e organização de temas fontes e argumentos etc No entanto a característica mais própria da ciência histórica é que deve narrar os eventos históricos eventos que realmente teriam acontecido no passado mas que são reinterpretados no presente a partir de novas dimensões éticas e estéticas Desse modo a narrativa histórica não seria meramente um conjunto de fatos inventados com fortes doses de espontaneismo como se diz da narrativa literária Hayden White propõe uma grande importância à subjetividade e autonomia do historiador visualizandoo como um criador de sentidos a partir de fatos históricos mas que seriam fatos selecionados organizados distribuídos costurados argumentados metaforizados pela vontade do historiador Para White a narrativa histórica é uma discursividade composta de metáforas que resultam de seleções de informações históricas que se deseja veicular Embora enfatize a grande carga de subjetivismo autoral o autor não aconselha como Foucault e De Certeau que abandonemos os conceitos porque seriam unicamente forjados mas que atentemos às tensas relações de construção discursiva que compõem as narrativas históricas entendidas como representações do passado A narrativa histórica é entendida como um discurso ou seja uma rede de significações sobre o passado Não devemos portanto abandonar o conceito de cultura afrobrasileira Este é um conceito negociado discursivamente Ele assume diferentes sentidos a partir de contextos sujeitos e interesses distintos Nosso esforço é compreender os sentidos que 18 WHITE Hayden Trópicos do discurso ensaios sobre a crítica da cultura São Paulo EDUSP 1994 26 são dados a este conceito e refletir criticamente sobre as implicações políticas e intelectuais referentes a cada uma dessas conceituações pois elas vão influenciar as propostas curriculares e as narrativas construídas no cotidiano do Ensino de História19 No Brasil a preocupação científica e conceitual com o negro e sua cultura formaram um corpus livresco a partir do advento da república Em fins do século XIX os intelectuais assumiram o compromisso de pensar a nação brasileira e reorganizála Naquele contexto de mudanças institucionais precisavase analisar a população negra que não era mais escrava e fluía dentro de possíveis conceitos de cidadania em que os novos lugares a serem ocupados por essa população começavam a ser redefinidos20 Foi nesta mesma época que surgiram e ganharam fama internacional os estudos de Nina Rodrigues Já no início do século XX os estudos de Gilberto Freyre condensaram o desejo do Estado Varguista de apagar simbolicamente os conflitos e construir um discurso de harmonia mestiçagem e democracia Nestes estudos que legitimam a ordem social desigual ao passo que forjam o sentimento de uma comunidade nacional a cultura afrobrasileira é abordada segundo uma perspectiva folclorista Já nos anos 1960 com o crescimento dos debates críticas sociais e esperanças marxistas num Brasil que não conseguia mais esconder as acentuadas desigualdades sociais os estudos de Florestan Fernandes denunciam aquilo que passou a ser chamado de mito da democracia racial afirmando a existência do racismo no país Não obstante ainda pensandose em cultura tomando a cultura afrobrasileira como um campo de espetacularização e alienação política Desse modo foram definidos e desqualificados os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira lugares que se tornaram icônicos como os únicos lugares onde se poderia encontrar os afrodescendentes produzindo a sua autêntica cultura que seriam a culinária colorida e saborosa a indumentária típica e chamativa a dança selvagem e sensual a música frenética e desordenada o candomblé como um culto fetichista os contos populares e supersticiosos a escultura grosseira a sexualidade permissiva a educação folgada o vocabulário exótico21 A cultura afrobrasileira era 19 Nesta dissertação nos detemos apenas a mapear quais concepções de cultura afrobrasileira chegam aos documentos oficiais para o Ensino de História Lei 1063903 e Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 20 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 21 Como veremos no capítulo II esses são adjetivos atribuídos pelos historiadores brasileiros 27 folclorizada conceitualmente intelectualmente definida colonizada inferiorizada22 submetida Um conceito colonizado por estrangeiros pelo olhar e pela lógica branca que não compreendia nem achava que existia uma lógica cultural própria no universo cultural e nas experiências históricas negras23 Foi somente nas últimas décadas do século XX que outros intelectuais inauguram nas ciências sociais o paradigma que entende a cultura como mediadora de relações políticas Nesse contexto destacamse Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slens Usando diferentes léxicos como participação experiência etc para esses novos historiadores a cultura passa a ser um espaço criativo onde existem lutas políticas de diferentes formas na linguagem enquanto complexo sistema de conceituação e significação do mundo e nos afetos e relações interpessoais cotidianas e nos simbolismos e visões de mundo que embasam a lógica própria dessas práticas culturais afrobrasileiras Agora se pensa cultura afrobrasileira como um conjunto de articulações entre lembranças de antigas tradições culturais africanas e as novas experiências sociais e históricas impostas aos escravos no cotidiano da vida no cativeiro Para dar conta dos objetivos da pesquisa recorreremos aos precursores do pensamento sobre a cultura afrobrasileira no Brasil24 Para tanto escolhemos os textos que inauguraram paradigmas explicativos sobre a cultura afrobrasileira a partir da perspectiva histórica a saber Os africanos no Brasil escrito por Nina Rodrigues no final do século XIX sobre o paradigma da Eugenia e publicado somente em 193225 Casa Grande e Senzala publicado por Gilberto Freyre em 193326 assumidamente difusionista cultural A integração do negro na sociedade de classes publicado por Florestan Fernandes em 1964 texto clássico da Escola Sociológica Paulista referência na América Latina com grande carga marxista27 Cafundó a África no Brasil 22 Marilena Chauí afirma que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social entre atividades intelectuais e manuais e a necessidade da escolaridade para ter competência de produzir uma boa cultura CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 23 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 24 Existem intelectuais de origem estrangeira que foram inauguradores de paradigmas como o inglês Peter Fry e o estadunidense Robert Slenes 25 NINA RODRIGUES Raimundo Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 26 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 27 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 28 Linguagem e Sociedade publicado em 1996 por Peter Fry e Carlos Vogt28 que já traz uma nova concepção para se pensar a cultura afrobrasileira enxergando a cultura como um conjunto de articulações entre tradições e recriações de acordo com os novos contextos e relações sociais que os sujeitos estabelecem visão essa que é corroborada por Robert Slennes quando publica em 1999 a obra Na senzala uma flor esperanças e recordações da família escrava Brasil Sudeste século XIX29 Investigamos também as práticas dos intelectuais militantes dos movimentos negros Estes como constatamos construíam um perfil que identificamos dentro da segunda acepção de Said intelectuais que instauram uma fratura na comunidade simbólica nacional e questionam o status quo de uma sociedade racista e desigual e propõem reformulações do Estado e da sociedade nacionais Seus discursos criam uma presença que incomoda Nesse grupo de intelectuais encontramos maior pluralidade de sujeitos abarcando estudantes e professores universitários pesquisadores jornalistas lideranças religiosas artistas presidentes de agremiações carnavalescas etc Todos unidos por um novo signo a negritude positivada ressignificada por eles mesmos a partir dos anos finais da década de 1970 Esse grupo embora possuísse diversas vozes e propostas conceituais e metodológicas constituindo um verdadeiro mosaico de negritudes possíveis elege na sua militância política a luta pela construção de uma nova concepção de história e de cultura afrobrasileira Conceitos estes que tiveram um centralismo significativo na causa ao ponto de culminar na Lei nº 1063903 que torna obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos da escravidão e da cultura afrobrasileira nos currículos oficiais de ensino no Brasil Essa lei foi resultado dessa luta por meio da qual se tem buscado instituir atualmente em materiais didáticos projetos pedagógicos e práticas de ensino a história e cultura afrobrasileira Quando partimos para falar do Movimento Negro Unificado nos deparamos com a dificuldade de acesso as fontes pois se num primeiro momento o MNU não tinha estrutura física que comportasse a documentação do que produzia noutro teve de lidar com a inexistência de arquivos oficiais que guardassem os documentos pois eles não estavam dentro do circuito de grande circulação e mesmo talvez não fossem interpretados por algum acervo como interessante e digno de ser recolhido e consagrado 28 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 29 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 29 como espaço de memória Essa foi a maneira pela qual reconhecemos os documentos do MNU espaços de memória negra lugar de discursos a serem problematizados Mas que era na verdade um nãolugar oficial Não sabíamos onde encontrar ao certo pois estavam dispersas Tivemos de buscar em acervos pessoais e neste momento tivemos acesso aos acervos pessoais da historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz e da antropóloga Maria Auxiliadora da Silva Militantes negras funcionárias da Universidade Federal Rural de Pernambuco Assim conseguimos como fontes alguns relatos de diversos militantes a Carta de Princípios e os Programas de Ação do MNU o relatório do VIII Encontro de Negros e Negras do Nordeste o negro e a educação No site do Ministério da Educação MEC conseguimos documentos como a Lei nº1063903 o Parecer CNECP 032004 e a Resolução CNECP 012004 que tratam não só do estabelecimento do Ensino de História da África e da e Cultura AfroBrasileira mas das diretrizes que devem ser adotadas para a consolidação desse tema de ensino Fontes que cruzadas nos permitiram não só observar a continuidade do caráter reivindicatório do MNU e a atualização de sua proposta que articulava educação cultura política e identidade dentro de um projeto maior de reconstrução jurídica e simbólica do Estado e da sociedade brasileira a partir da perspectiva das relações étnicoraciais e combate ao racismo como também percebermos as batalhas discursivas e conceituais as redes de significação e interdiscursividade indignações e esperanças enfim os conflitos vivenciados não só no plano discursivo mas também das relações pessoais e institucionais para a efetivação da lei Retomando o pensamento de Edward Said consideramos que o discurso criado sobre si e sobre o outro sobre os lugares determinados para cada uma dessas identidades discursivas é antes a distribuição de consciência geopolítica em textos uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica mas também de toda uma série de interesses que por meios de enunciados estratégicos não só criam mas igualmente mantém o lugar cultural político social intelectual e econômico dos sujeitos representados por essas identidades expressando certa vontade ou intenção de compreender em alguns casos controlar manipular e até incorporar o que é um mundo manifestadamente diferente ou alternativo e novo Ora pensar a história e a historiografia é também pensar o ensino de história Nossa preocupação nesta dissertação é tratar o campo do ensino de história de forma 30 digna como objeto de estudo do historiador Por isso buscamos articular da forma mais responsável engajada e ética possível historiografia e ensino de história Já vimos que o século XX foi promissor para a ciência histórica que passou a ser repensada vivenciando um processo de transformação em suas bases teóricas e metodológicas Contudo nesse processo de maturação epistemológica não apenas a História em si mas também as formas como é socializada ensino de história constituíram novos campos de discussões teóricas filosóficas e metodológicas abrangendo dimensões éticas e estéticas Para a nova historiografia os documentos escritos ou não devem ser problematizados situados no tempo e no espaço e confrontados para problematizar a nossa consciência histórica pois este é o papel do historiador revisitar problematizar reler e ressocializar o saber sobre as experiências humanas no tempo No que diz respeito às discussões em torno das formas de socialização do saber histórico alguns teóricos como Seffner30 Fonseca31 Bittencourt32 Karnal33 Munakata34 Freitas35 Carretero36 alertam para a necessidade de se incentivar o desenvolvimento da área do Ensino de História não somente como prática social exercida no cotidiano de sala de aula mas também como área de investigação científica vivenciada nas universidades Já que o saber histórico é mutável no tempo e no espaço entendemos que o seu fazer pedagógico também assim o seja37 e é a partir dessas concepções que repensamos o Ensino de História a fim de promover uma prática que atenda as demandas contemporâneas de formação cidadã O caminho que buscamos nesta discussão é o de democratizar de forma crítica o acesso à informação aos discursos negligenciados pelas historiografias tradicionais que privilegiaram determinados sujeitos históricos em detrimento de outros 30 SEFFNER F Leitura e escrita na história Em NEVES I et al org Ler e escrever compromisso de todas as áreas Porto Alegre Editora UFRGS 2006 31 FONSECA S G Didática e prática de ensino de História experiências reflexões e aprendizados Coleção Magistério Formação e Trabalho Pedagógico Campinas Paripus 2003 32 BITTENCOURT Circe O Saber Histórico na Sala de Aula São Paulo Contexto 2006 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 33 KARNAL Leandro org História na Sala de Aula conceitos práticas e propostas São Paulo Contexto 2007 34 MUNAKATA Kazumi Histórias que os livros didáticos contam depois que acabou a ditadura no Brasil In FREITAS Marcos Cezar Historiografia brasileira em perspectiva São Paulo Contexto 2010 35 FREITAS Itamar Fundamentos teóricometodológicos para o ensino de História Anos iniciais São Cristóvão Editora da UFS 2010 36 CARRETERO Mario Constructivismo y educación Buenos Aires Paidós 2009 37 KARNAL Leandro org História na Sala de Aula conceitos práticas e propostas São Paulo Contexto 2007 31 Mas como o termo ensino de história é muito amplo temos que fazer recortes e decidimos analisar quais as concepções de cultura afrobrasileira que chegam aos documentos oficiais do Ensino de História após a Lei nº 10639 de janeiro de 2003 acompanhando o processo anterior de construção dessas conceituações A referida lei altera a LDB Lei nº 939496 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos e da cultura afrobrasileira38 com o propósito de combater o racismo através da construção crítica do conhecimento A reflexão crítica acerca das conceituações da cultura afrobrasileira no ensino de história nos levam a problematizar a participação da instituição escolar nas tensas relações entre produção x reprodução de valores sociais Não queremos reduzir simplesmente os sistemas de ensino a instrumentos de reprodução mecânica de ideologias e atitudes para fins de legitimação de grupos dominantes pois reconhecemos que o cotidiano escolar é plural e dinâmico em que os múltiplos sujeitos interagem negociando sentidos interesses e necessidades O próprio Bourdieu fala de sistemas de reprodução de ideologias mas é sábio em afirmar que o ser humano sempre recria as possibilidades de ação pois é um agente estruturante construtor e ativador da sociedade Existe sempre a possibilidade de transformação paradigmática no próprio interior do cotidiano escolar Uma das instancias fundamentais para a transformação paradigmática dos conhecimentos produzidos no Ensino de História é a produção de currículos Segundo os historiadores Marcus Silva e Selva Guimaraes Fonseca39 o currículo deve ser entendido como uma construção um campo de lutas pela legitimação de saberes experiências e memórias Como fruto de complexas negociações e seleções o currículo reconfigura as possibilidades de construção identitária a partir do ensino de história Ele legitima a visão de alguém ou de algum grupo que detém em determinado contexto o poder de dizer e fazer Desta forma mais que revelar diretrizes para o Ensino de 38 Levase em consideração a reformulação da referida lei que passou em março de 2008 a ser de nº 11645 tornando obrigatório além do ensino da história e cultura afrobrasileira o ensino da história e cultura dos povos indígenas no Brasil O objeto deste projeto contudo restringese à primeira área do conhecimento citada pois a Lei nº 1063903 possui suas respectivas diretrizes curriculares enquanto a Lei nº 1164508 ainda não possui suas respectivas diretrizes bem definidas Por isso apoiamonos na lei anterior enquanto opção política ter maior propriedade com militantes dos diversos movimentos negros por exemplo 39 SILVA Marcus e FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 32 História o currículo expressa variadas e tensas relações sociais conflitos e acordos aproximações e distanciamentos40 Conforme a historiadora Circe Bittencourt41 para que ocorram mudanças nas propostas curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade e mais precisamente na clientela escolar Quando se reconhece que surgiram novas demandas socioculturais e políticas na sociedade e estas mudanças também se refletem no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares Diante de um público escolar assumidamente heterogêneo para se chegar a níveis aceitáveis de escolarização necessitase não apenas de investimentos consideráveis por parte dos governos mas também de currículos flexíveis42 Isso justifica a obrigatoriedade da implantação do ensino de História da África e da cultura Afrobrasileira nas propostas curriculares do país pois urge ainda a necessidade de pluralizar e ressignificar as linguagens os discursos as memórias e as identidades da sociedade brasileira e a escola é um espaço muito propício a este trabalho Porém falar de currículo é algo ainda muito amplo Atualmente a especificidade das análises científicas sobre as políticas curriculares levam em consideração as múltiplas dimensões desse objeto cultural Em breve explanação Bittencourt esclarece que existem diferenças entre a o currículo formal ou normativo aquele criado pelos poderes governamentais b o currículo real ou interativo aquele que corresponde às práticas educativas construídas ao que de fato acontece no cotidiano escolar e que nem sempre corresponde ao currículo formal embora o tome como proposta norteadora c o currículo oculto que consiste na imposição de valores crenças conceitos e preconceitos que não estão referendados no currículo formal mas que direcionam as ações e as condutas dos sujeitos escolares e d o currículo avaliado ou seja aquele que se materializa no conjunto de materiais e métodos avaliativos da instituição escolar43 Para fins desta pesquisa nos deteremos apenas na reformulação do currículo real no Brasil referente ao Ensino de História e da Cultura AfroBrasileira No primeiro capítulo CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO discursividades negociadas na emersão do movimento negro brasileiro reconstruímos os cenários de emersão dos movimentos negros no Brasil a partir de 40 Idem Op Cit 41 BITTENCOURT Circe O saber histórico na sala de aula São Paulo Contexto 2006 42 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 43 BITTENCOURT Circe Ensino de História fundamentos e métodos São Paulo Cortez 2008 33 1978 data de fundação oficial do MNU Embora dialoguemos com experiências institucionais temporais e teóricometodológicas de diferentes movimentos negros ao longo do século XX nos concentramos nas ações promovidas a partir da versão mais recente do MNU O nosso foco detevese no discurso nas ações e nos documentos construídos pelos intelectuais dos mais significativos movimentos negros surgidos a partir dos anos 1970 Inicialmente retomamos a outras duas experiências de movimento negro a Frente Negra Brasileira FNB e o Teatro Experimental Negro TEN para perceber que as demandas dos movimentos negros no Brasil do século XX atualizam as articulações entre cultura política e educação No segundo capítulo CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS a construção do conceito de cultura afrobrasileira nas obras clássicas da historiografia brasileira iniciamos uma primeira analise comparativa entre as críticas dos movimentos negros aos usos e abusos que são feitos da cultura afrobrasileira tanto no plano das conceituações quanto no plano das políticas públicas e do ensino e entre as concepções de cultura afrobrasileira propostas pelos acadêmicos na historiografia nacional entre fins do século XIX e a metade do século XX Tal fato demonstra como a participação dos negros na sociedade brasileira constitui um universo de preocupações que constantemente se atualiza no pensamento nacional As narrativas analisadas nos fizeram um complexo trânsito de ideias circulando e produzindo sentidos que às vezes se cruzavam e às vezes se repeliam Conferimos autores teses e noções bem distintas de cultura afrobrasileira mas que apesar de tantas diferenças possuíam uma semelhança fundamental o olhar estrangeiro para a cultura afrobrasileira uma vontade de estudar este universo cultural a fim de classificálo e ao menos simbolicamente dominálo De acordo com os referenciais de seus respectivos momentos históricos eles não conseguiram entender a lógica própria da cultura afro brasileira e já partiram de estereótipos para discursar cientificamente sobre tal cultura Destarte localizamos os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira proposto em cada narrativa e refletimos sobre as implicações políticas de cada uma delas No terceiro e último capítulo A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO a historiografia o ensino de história e o novo compromisso político do estado brasileiro apresentamos uma nova proposta interpretativa aquela pela qual os movimentos negros elegem como mais legítima para contemplar as demandas de significação desses movimentos reconstruindo sobre prismas de dignidade autonomia 34 respeito e aceitação as identidades negras Percebemos que neste mesmo momento já nas décadas finais do século XX houve várias tentativas de aproximação entre os novos cientistas sociais que estavam estudando a cultura afrobrasileira e os movimentos sociais negros Esta relação é constatada a partir da interdiscursividade que circula e atualiza os discursos de ambos os lados De um lado nós problematizamos os sentidos que são invocados em cada conceituação presente os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira dispostos em cada narrativa e as implicações políticas que elas podem ter no espaço formativo escolar De outro nós discutimos como tais demandas são retomadas como uma série ações reivindicatórias que modificam a legislação do Estado brasileiro criando entre muitos conflitos a lei 1063903 35 CAPÍTULO 1 CENÁRIOS CRUZADOS NEGRITUDE EM EXPANSÃO DISCURSIVIDADES NEGOCIADAS NA EMERSÃO DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO 36 Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo responsável pela minha raça pelos meus ancestrais44 A identidade negra entre textos sons cores e gestos o movimento negro como contraprojeto de Estado brasileiro Até o início da década de 60 no Brasil várias categorias sociais viviam experiências de organização e mobilização política O pensamento de esquerda aumentava as suas esferas de influência e desta perspectiva política emergiam críticas e propostas de reforma do Estado Brasileiro a fim de reconstruirse a cidadania nacional de forma mais democrática O socialismo reoxigenava os debates sobre a moderna república brasileira e a reelaboração de critérios de cidadania nacional numa série de movimentos intelectuais que tentavam resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados45 Projetos alternativos inspirados por exemplo na cultura e na experiência popular para reformular novos projetos de ação e formação do Estado brasileiro foram elaborados Contudo esse fervor foi resfriado pelo golpe militar de 1964 que instaurou uma ditadura Com a ditadura ocorreu um enfraquecimento dos movimentos sociais chegando mesmo à extinção de alguns Houve a vigilância constante do governo para evitar novas organizações mas isso não garantiu que as pessoas deixassem de se organizar Ao contrário a experiência da repressão e validação de um Estado que legitima as desigualdades sociais iria instigar o surgimento de novos movimentos de base em que pesava a confiança entre os membros e a consciência de seu desamparo ante o poder público Mas só quando a Ditadura estava próxima do fim é que os movimentos sociais brasileiros começaram a se intensificar organizandose e influenciandose Os movimentos pela Anistia Estudantil Feminista Negro Homossexual Sem Terra Operário Ecológico e Diretas Já são exemplos emblemáticos desse novo momento histórico46 44 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p 105 45 BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 46 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 37 Durante os anos da ditadura militar a sociedade brasileira era interpelada por várias ações que concretizavam relações de poder e legitimavam projetos políticos a censura a repressão e a propaganda governamental de um lado e as ações de categorias sociais desprivilegiadas politicamente de outro Se havia uma história silenciada da violência e opressão de um lado de outro o governo federal fazia questão de divulgar na mídia o entusiasmo do chamado milagre econômico No discurso oficial do Estado brasileiro dos anos 1970 o crescimento da economia trazia entusiasmo para as classes médias urbanas forneciamse argumentos para fomentar a Segurança Nacional contra toda forma de estrangeirismos e buscavase selecionar emblemas que invocassem sentidos de uma unidade nacional47 Contraditoriamente às propagandas otimistas do governo muitos indivíduos negros insistiam em denunciar que tal crescimento não havia chegado à população afro descendente o fechamento à influência estrangeira não se aplicava à lógica capitalista norteamericana e que a cultura afrobrasileira ocupava uma espécie de sublugar na simbologia da identidade nacional Outros intelectuais de várias procedências étnicas denunciaram alguns desses entre outros fatores do regime político autoritário instalado no Brasil A repressão política e depois a crise econômica criaram uma ambiência favorável à oposição ao Regime Militar No Brasil a emergência do movimento negro recebeu também várias influências internacionais como podemos ver nos relatos do militante abaixo Podemos identificar três matrizes de pensamento no discurso da geração que se engaja no movimento negro nos anos 1970 e 80 Três diferentes influências externas Você tem o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos que sempre mobilizou a atenção da militância você tem as lutas independentistas no continente africano sobretudo até pela facilidade da proximidade lingüística nos países lusófonos notadamente Angola Moçambique São Tomé e Príncipe GuinéBissau E por fim o movimento pela negritude que a rigor sempre foi um movimento literário na verdade um movimento cultural de intelectuais da África e das Antilhas que se encontraram em Paris nos anos 30 do século passado e que vão formular algumas idéias a respeito do que seriam o ocidentalismo e o orientalismo na perspectiva africana nos valores africanos Enfim um modo africano de ser por meio de várias linguagens48 47 MORAIS Maria Thereza Didier de Emblemas da Sagração Armorial Ariano Suassuna e o movimento armorial 197076 Editora Universitária da UFPE 2000 48 Depoimento de Hédio Silva Junior In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 69 38 Em nível internacional ente os anos 195060 junto à sociedade moderna a História que passara por diversos momentos de transformação a fim de legitimarse como universalista e científica atravessou uma crise epistêmica49 Com o fim da II Guerra Mundial a Europa perde o centralismo enquanto modelo civilizatório para o mundo A empresa colonialista perdera sua credibilidade e não encontrava mais lógica de existência sobretudo perante a opinião pública Neste período surgiram várias críticas acadêmicas ao neocolonialismo e ao póscolonialismo mas somente em 1978 com a publicação do livro Orientalismo de Edward Said é que este debate internacionalizouse50 A partir da segunda metade do século XX autores de varias nacionalidades propuseram críticas ao pensamento eurocêntrico elaborado desde os gregos antigos para desclassificar os povos africanos51 Entre os filósofos iluministas do século XVIII e os cientistas modernos do século XIX vários intelectuais surgiram e mesmo a partir de argumentações diferentes tinham como ponto em comum a tentativa de explicar evolutivamente a existência de diferentes sociedades humanas tomando como parâmetro a ideia de progresso racional e tecnológico político cultural e econômico social atribuída à história européia Em oposição a esta civilização o continente africano só tinha sentido enquanto espaço de lacunas irracionalidade primitivismo a historicidade etc Para o historiador Muryatan Barbosa a História da África enquanto disciplina acadêmica resulta de dois fatores De um lado o crescente relativismo europeu diante dos seus próprios valores no pósguerra De outro a renovação crítica das Ciências Sociais e especificamente no campo da historiografia a influência dos Annales e sua proposta de históriaproblema interdisciplinar e totalizante Foi assim que nos anos 1950 e 1960 a História da África surgia no campo intelectual de países europeus como a Inglaterra e a França e de vários países africanos recémcriados paralelamente aos seus processos de independência Na África a historiografia nascente servia também como 49 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 50 Idem op cit 51 Uma breve discussão situando discursos eurocêntricos em relação à África pode ser encontrada em OLIVA Anderson A História da África nos bancos escolares representações e imprecisões na literatura didática In httpwwwscielobr acesso em 29 de setembro de 2007 39 instrumento de luta ideológica e política no processo de descolonização não só política e econômica mas também cultural52 Foi neste contexto que foram geridos os estudos do historiador senegalês Cheikh Anta Diop que buscou comprovar através de fontes as origens negras da civilização egípcia e a influência desta sobre os antigos helenos53 O historiador Djibril Tamsir Niani escreveu o livro Sundjata ou o épico mandinga que ficou famoso pela proposta pioneira em usar vastamente os relatos e memórias orais como fonte para construir a história oficial de povos ágrafos inaugurando na África um paradigma metodológico carregado de sentidos políticos e abrindo caminho para vários historiadores Neste período ainda surge a revista Presença Africana que se torna o principal periódico científico a divulgar o pensamento de intelectuais africanos e afro descendentes Conforme Muryatan nessa revista são comuns o uso dos termos raça etnia povo cultura etc para definir uma nova comunidade simbólica A revista Presença Africana tornase deste modo um elo da diáspora negra em que os intelectuais africanos e afrodescendentes assumemse como participantes de uma mesma comunidade de interesses na luta contra o racismo e o colonialismo54 Um autor que se tornou clássico neste período foi o martinicano Frantz Fanon55 Segundo Lewis R Gordon a obra de Fanon autor que assumiu uma postura política de combate ao racismo e ao colonialismo chegou a ser encarada como uma teoria perigosa nos EUA dos anos 196070 enquanto que na América do Sul em países como o Chile era adotada nas salas de aula universitárias ao lado de leituras por ela influenciadas como a Pedagogia do Oprimido do brasileiro Paulo Freire56 No texto clássico Pele 52 Existiram também várias dificuldades para a legitimação de uma historiografia da África nos jovens países africanos o modelo explicativo ainda eurocentrado as dificuldades de institucionalização e financiamento das pesquisas etc BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 53 Uma interessante discussão sobre o tema pode ser encontrada em FINCH III Charles Cheikh Anta Diop confirmado In NASCIMENTO Elisa Larkin Afrocentricidade uma abordagem epistemológica inovadora São Paulo Selo Negro 2009 54 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 55 Intelectual afromartinicano nascido em 1925 Fanon lutou junto às forças de resistência no norte da África e mesmo na Europa durante a II Guerra Estudou filosofia e psiquiatria na França e dirigiu o Departamento de Psiquiatria do Hospital BlidaJoinville na Argélia onde participou também da Frente de Libertação Nacional pela independência da Argélia Por isso Fanon passou a ser perseguido pela polícia em todas as possessões francesas Sua vida foi marcada por ativa militância e luta física e simbólica pela transformação dos povos colonizados e vitimados pela ótica do racismo Fanon faleceu em 1961 nos EUA vitima de pneumonia enquanto buscava a cura para sua leucemia Mais informações sobre Fanon disponíveis em GORDON Lewis R Prefácio In FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 56 Idem op cit 40 negra máscaras brancas57 o autor faz uma crítica ao que chamou de colonialismo epistêmico ou seja uma forma orientada de ver o mundo e viver nele a partir do racismo e do colonialismo Para tanto o psicólogo estabelece relações entre a cultura a política o imaginário e a linguagem a fim de que identifiquemos como essas construções são feitas vivenciadas e compartilhadas na medida em que mediamos significados e discursos Em outras palavras há uma constelação de dados uma série de proposições que lenta e sutilmente graças às obras literárias aos jornais à educação aos livros escolares aos cartazes ao cinema à rádio penetram no indivíduo constituindo a visão do mundo da coletividade à qual ele pertence58 O critério corraça ele denuncia tem sido definitivo nas relações de poder e no desenvolvimento político econômico social e cultural das pessoas negras Para alcançar sua liberdade ou desalienação o negro deveria tomar urgentemente a consciência das relações simbólicas e sócioeconômicas que os condena às condições subhumanas59 Sua obra inicialmente se propõe a ajudar a transformar o negro em um ser de ação em direção a um novo humanismo60 Para Gordon Fanon construiu um paradigma na história das ciências sociais ao examinar a profundidade da denegação sintomática de muitas pessoas negras como conseqüência da dominação no âmbito epistemológico da produção do conhecimento realizando uma crítica política à categoria dos intelectuais mas foi sensível e cuidadoso o suficiente para não cometer reducionismos e homogeneizar a representação de que todas as pessoas nãonegras sejam racistas61 Como a dominação simbólica ocorre Para Fanon a partir das apropriações que as negras e os negros fazem do modelo social político econômico e cultural dos brancos Através da adoção de línguas de origem européias de um vestuário ocidental de uma perspectiva judaicocristã de um padrão estético branco da perpetuação de valores e crenças eurocêntricos Todo povo colonizado isto é todo povo no seio do 57 Os dois livros mais importantes do autor são Os condenados da Terra e Pele negras máscaras brancas Neste trabalho daremos um breve foco no segundo livro pois ele é o responsável por lançar as bases dos estudos sobre legitimação da perspectiva descolonial 58 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p 135 59 MUNANGA Kabenguele Negritude usos e sentidos Belo Horizonte Autentica 2012 60 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p25 61 GORDON Lewis R Prefácio In FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 41 qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural toma posição diante da linguagem da nação civilizadora isto é da cultura metropolitana62 A colonização epistêmica estabelece e generaliza estereótipos degradantes em torno da ideia de autenticidade africana ou afrodescendente Para transformar esta realidade no entanto sugere o autor que o processo de busca da originalidade cultural tradicional é um ato político contra o processo racista de colonização No Brasil os intelectuais negros que se juntavam no inicio da década de 1970 buscavam ter acesso a este perfil bem específico de bibliografia Aí o Arthur me trouxe um monte de livros da editora Civilização Brasileira Entre esses tinha o Alma no exílio de Elridgarei e Cleaver e os Condenados da Terra de Frantz Fanon Eu comecei a ler Alma no exílio que foi a experiência do Cleaver que era uma principais lideranças dos Panteras Negras e logo depois entrei no Fanon63 A importância da leitura de bibliografias sobre o tema deuse pelo fato de nutrir os argumentos e estratégias de uma emergente movimentação negra brasileira Os movimentos pelos direitos civis nos EUA o protagonismo de Martin Luther King os movimentos como Os panteras Negras e o Black Power o Soul e o funk music criavam novas discursividades novas visibilidades e sensibilidades negras Os exemplos dessa articulação entre política e produção cultural no exterior influenciaram bastante o olhar de alguns militantes afrobrasileiros Sobre isso ilustra o relato de Calos Alberto Medeiros No início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir64 62 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p34 63 Depoimento de Amauri Mendes Pereira In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 75 64 Depoimento de Carlos Alberto Medeiros In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 42 Artistas que se tornavam referências mundiais enquanto profissionais para os militantes eram antes de tudo ovacionados pela sua negritude sobretudo quando assumiam uma estética afrocentrada que valorizava os traços negros do corpo Isso ocorreu não só nos EUA mas também no Brasil como podemos ver nas fotografias abaixo Para a antropóloga Nilma Lino Gomes A expressão estética negra é inseparável do plano político do econômico da urbanização da cidade dos processos de afirmação étnica e da percepção da diversidade65 A autora afirma que o cabelo crespo para os sujeitos negros carrega sentidos culturais políticos e sociais que lhes são muito importantes e específicos localizandoos dentro de um grupo étnicoracial66 Black Power e Black is beatiful eram estilos estéticos criados nos EUA que chegaram a influenciar fortemente o militantes negros brasileiros Acima fotografias de artistas que 65 GOMES Nilma Lino Sem perder a raiz corpo e cabelo como símbolos da identidade negra Belo Horizonte Autêntica 2006 p 29 66 Idem op cit 43 ganhavam cada vez mais projeção nos anos 1970 não só pelo talento mas também pelo fato de assumir o pertencimento étnicoracial a uma comunidade negra Estes artistas ajudaram a popularizar a aceitação do cabelo crespo como símbolo de negritude e modernidade de comportamento urbano Respectivamente Diana Ross 197567 o grupo norteamericano Jackson Five 197068 e do cantor eleito como representante da Soul music no Brasil Tim Maia fotografia sem data específica que havia morado nos EUA e voltara ao Brasil trazendo a moda dos jovens negros norteamericanos do estilo Black Power69 Por sua vez a agitação dos movimentos políticos dos Panteras Negras influenciava também a produção de novos artigos culturais que mesmo sem objetivos políticos a priori ajudaram a dar uma visibilidade negra em espaços antes não ocupados pelas representações de uma possível presença negra Foi assim que ocorreu com as Histórias em Quadrinhos HQ Ainda de forma tímida foram criados alguns superheróis negros que a principio eram coadjuvantes nas revistas dos tradicionais heróis brancos O caso da marca Marvel é emblemático Ao lado do tipo idealizado Capitão América foram acrescentados personagens como Luke Cage Pantera Negra e Falcão 67 Fotografia disponível no site httpmainstylelistcom Acesso em 20012013 68 Fotografia disponível no site httpedyvieiranoticiasblogspotcombr Acesso em 20012013 69 Fotografia disponível no site httpwwwmundodastriboscom Acesso em 23012013 44 Acima da esquerda para a direita imagem da capa de HQ norteamericana dedicada exclusivamente a Luke Cage em junho de 197270 À direita imagem de historieta de Luke Cage traduzida para o português e vendida no Brasil pela Editora Abril Edição de novembro de 198571 Luke Cage é um personagem que ainda carrega o peso do estereótipo sobre o negro norteamericano e urbano exmembro de gangue Em sua história de vida Cage foi preso injustamente Na prisão ele fora submetido a uma experiência científica que transformou sua genética conferindolhe grande força física e uma pele invulnerável Percebase que nesta HQ a pele de um negro é ressignificada como símbolo de força e ivunerabilidade Nesta HQ o personagem trava luta contra um vilão o filho de satã que é representado com a pele branca e os cabelos louros Acima imagens de quadrinhos do herói Falcão inserido na revistinha do Capitão América traduzida no Brasil72 Falcão é representado com grandes asas que lhe permitem a liberdade de movimentos nas quais poderíamos fazer uma primeira inferência vendo nesta metáfora imagética a possibilidade de desejos políticos de uma 70 Imagem disponível em httpstvcinemaemusicawordpresscom Acesso em 21012013 71 Almanaque do Capitão América nº 78 Editora Abril São Paulo 20111985 p 27 Acervo pessoal do pesquisador 72 Almanaque do Capitão América nº 78 Editora Abril São Paulo 20111985 p 27 Acervo pessoal do pesquisador p 58 e 63 45 comunidade negra em busca de livre expressão de ser e de fazer Falcão possui ainda poderes telepáticos com o seu animal de estimação um falcão No quadrinho acima se vê que o personagem interage bastante com personagens negros ilustrando as interações entre uma comunidade específica Estas produções artísticas convertiamse em algo muito maior que instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo seriam elas mesmas a própria expressão dessa luta Os militantes que materializariam o nascente movimento negro brasileiro estavam atentos a todas essas produções a todas essas discursividades que circulavam produzindo novos sentidos políticos sobre a negritude Contudo como nos lembra a historiadora Martha Rosa aquela movimentação negra emergente não ficou imune à vigilância militar73 A esse respeito nos conta o militante Edson Cardoso Nós estávamos vivendo uma época em que a ditadura tinha consciência do noticiário que estava no mundo das lutas na África e do que estava acontecendo nos Estados Unidos E houve a tentativa sabendo qual era a situação no Brasil de criar um tapume porque aqui era um foco de possível agitação74 Conscientes de sua realidade os militantes já pontuavam a heterogeneidade das concepções instituições e práticas com vistas a combater o racismo revelando a aglutinação de militantes com experiências e formações distintas Naquele momento vários intelectuais e artistas assumiram um compromisso ético e estético num propósito de produção de novos conhecimentos sobre a história e a cultura afrobrasileira valorizando sua ancestralidade cultural africana e lutando contra o racismo Assim formavase por variadas experiências teóricas e práticas uma cultura política que redefinia socialmente não só o papel de uma emergente intelectualidade assumidamente negra que comungava de propósitos comuns embora houvesse divergências internas e que se comunicava dentro de uma ótica muito própria de poder visando assegurar suas pautas políticas enquanto categoria social mas também um conjunto de pautas políticas Uma pluralidade de sujeitos se entrecruza nas novas 73 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 98 74 Depoimento de Edson Cardoso In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 8687 46 produções discursivas Neste sentido vale lembrar a quem o sociólogo Michel Löwy chama de intelectuais escritores artistas poetas filósofos sábios pesquisadores publicistas teólogos certos tipos de jornalistas certos tipos de professores e estudantes etc75 Homens e mulheres negras com estes distintos perfis de formação produziram nesta seara No entanto quando analisamos as fontes relativas ao protagonismo das instituições negras no Brasil percebemos que muitas pessoas sem formação acadêmica mas que exerciam papeis de liderança para as comunidades negras cumpriram um papel crucial na aglutinação de novos sujeitos e formação de novas gerações de militantes Muitos desses sujeitos eram presidentes ou diretores de grupos ou associações culturais principalmente de caráter carnavalesco Tal fato mostra que houve diferentes tipos de interações e apropriação entre sujeitos espaços e discursividades dos movimentos negros e das instituições culturais76 Neste caso pensamos que seja relevante tomar emprestado o termo intelectuais populares proposto por Robert Slenes no prefácio ao livro de Tiago Gomes77 Parafraseando o historiador da África Steven Feirman que cunhou o termo intelectuais camponeses Slenes busca da mesma forma que Feirman nos atentar à capacidade de pessoas comuns sem títulos universitários refletirem analiticamente sobre sua experiência de vida78 Neste capítulo daremos grande importância a estes artistas populares que interagem de forma ativa com outras instituições e práticas discursivas Mas toda história tem um marco inicial uma oficialidade que fazemos questão de demarcar mesmo que não seja de forma linear Vejamos Em 07 de julho de 1978 um grupo de intelectuais negros militantes raciais partidários políticos estudantes e professores universitários fundaram nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo um movimento com o nome de Movimento Unificado contra a Discriminação Racial MUCDR Este movimento não abarcava todas as tendências e entidades negras mas teve grande aceitação no meio destas 75 LÖWY Michel Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários a evolução política de Lucács 19091929 São Paulo Lech Livraria Editora Ciências Humanas 1979 p 1 76 SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação Curricularidade em ritmo de sambareggae Tese Doutorado em Educação Programa de Pós em Educação Pontífica Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2000 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 77 SLENES Robert O horror o horror o contexto da formação de identidades mestiças no Rio de Janeiro dos anos 1920 In GOMES Tiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 CampinasSP Editora da UNICAMP 2004 78 Idem op cit p 25 47 recebendo logo menção de apoio de outros estados brasileiros Só depois de algum tempo é que o movimento passaria a chamarse de Movimento Negro Unificado como nos conta Milton Barbosa No inicio era Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial MUCDR Com o tempo o Contra a Discriminação Racial ficou como uma palavra de ordem e ficou só Movimento Negro Unificado Mas a palavra negro quem propôs foram o Abdias do Nascimento e a Lélia Gonzalez e todo mundo aceitou Isso deu uma mexida em termos de concepção79 Aquele era um momento em que várias organizações negras buscavam construir a democratização do Estado brasileiro além da fundação do Movimento Negro em julho de 1978 houve também a estréia do Cadernos Negros da realização do I Festival Comunitário Negro Zumbi na cidade de Araraquara em São Paulo as comemorações dos 90 anos de abolição A fundação de agremiações carnavalescas negras de destaque político e cultural como os blocos afro Ilê Ayê e Olodum em Salvador80 e os afoxés Ará Odé Alafin Oyó Ilê de Egbá e Oxum Pandá em Olinda e Recife81 Ao lado desses eventos que demarcavam simbolicamente uma nova discursividade e novas formas de territorialidade negra no Brasil havia o entusiasmo esquerdista causado pela fundação do Partido dos Trabalhadores PT o surgimento dos movimentos sociais e a retomada do sindicalismo82 Fundado assim definiuse o Movimento Negro o conjunto de iniciativas de resistência e de produção cultural e de ação política explícita de combate ao racismo que se manifesta por via de uma multiplicidade de organização em diferentes instâncias de 79 Depoimento de Milton Barbosa In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 156 80 Sobre as relações entre o carnaval a militância negra a construção de novas práticas pedagógicas na cena cultural de Salvador vide SANTANA Moisés de Melo Olodum carnavalizando a educação Curricularidade em ritmo de sambareggae Tese Doutorado em Educação Programa de Pós em Educação Pontífica Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2000 81 Sobre as relações entre o carnaval afropernambucano e a militância política negra através dos afoxés de Pernambuco vide QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 82 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 48 atuação com diferentes linguagens por via de uma multiplicidade de organização espalhadas pelo país Tratase de fato de um mosaico que tenta sustentar sua identidade no propósito comum de posicionarse contra o racismo83 Consideramos a importância desta autodefiniação do MNU para pensar o perfil desse movimento nascido no final da década de 1970 mas utilizamos o conceito de movimento negro sintetizado pela historiadora Martha Rosa Figueira Queiroz Portanto movimentos negros são entidades que têm a luta contra o racismo como seu eixo central embora cada uma tenha sua área de atuação específica Movimento Negro por conseqüente representa o conjunto dessas organizações84 Desta forma pensando o movimento negro como um sujeito coletivo um aglomerado de múltiplas instituições políticas sociais e culturais negras Nossa abordagem contemplará não apenas a instituição política Movimento Negro Unificado MNU mas elencará também algumas das intuições culturais e suas respectivas ações que corroboraram para o fortalecimento das pautas políticas da comunidade negra inserindo nesta discussão a construção do conceito de cultura afrobrasileira Por que é relevante trazer a experiência do surgimento e desenvolvimento do movimento negro Por que através desta instituição social temos a possibilidade de refletir sobre as transformações históricas na sociedade em torno de ideias como a própria nação cidadania etc Para o sociólogo Arim Soares do Bem os movimentos sociais podem ser encarados como ferramentas para se compreender os complexos mecanismos de desenvolvimento da sociedade brasileira revelando as áreas de carência estrutural os focos de insatisfação e os desejos coletivos permitindo assim a realização de uma verdadeira topografia das relações sociais85 Destarte os movimentos sociais são indícios que nos permitem problematizar e conhecer o modelo de sociedade no qual se articulam e se desenvolvem O sociólogo considera ainda que a importância histórica 83 Uma parte das resoluções do I Encontro Nacional de Entidades Negras publicado no Jornal do MNU nº 18 p6 Apud QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 84 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 96 85 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 49 desses movimentos consiste não somente no fato de que eles revelam tensões e conflitos sociais mas também no fato de que as categorias reivindicatórias de direitos também elaboram propostas de soluções possíveis para o que exigem buscando a institucionalização jurídicolegal das conquistas ampliando e universalizando o campo formal do direito para todo conjunto da sociedade criando novos contextos históricos Essa é a noção de movimentos sociais que usaremos para pensar os movimentos negros do Brasil do século XX Desta forma poderíamos perguntar Sobre que pautas reivindicatórias esse movimento buscou se sustentar Como o movimento se posicionou diante do tema cultura negra ou afrobrasileira Essas perguntas nos levarão a conhecer contextos muito complexos em que serão revelados outros sujeitos cenários interesses e discursos que proporão uma determinada conceituação de cultura afrobrasileira a partir de uma perspectiva política Embora nosso foco nesta dissertação seja historicizar a experiência histórica dos movimentos negros no século XX devemos compreender que a história desses movimentos no Brasil possuem pelo menos mais de um século86 embora não possamos dizer que os movimentos negros tiveram sempre o mesmo perfil político e institucional Precisamos especificar o que estamos chamando de movimentos negros em diferentes temporalidades Concordamos com o seguinte pensamento de Cunha Esta profusão de organizações sociais de maioria afrodescendente formais ou informais e que consolidam expressões de cultura e identidade ou que realizam protestos contra as injustiças sociais vividas pela população negra 87 Desta forma 86 BEM Arim Soares do A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 ERAS Lígia Wilhelms e SILVA Iraci T B Raimundo da Educação e cultura afrobrasileira Anais do I Encontro de Divulgação Científica e Tecnológica ENDICT ISSN 21763046 DOMINGUES Petrônio Um templo de luz Frente Negra Brasileira 19311937 e a questão da educação Revista Brasileira de Educação Vol 13 nº 39 setembrodecembro 2008 Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação São Paulo Brasil QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 ROMÃO Jeruse História da educação do negro e outras histórias Brasília MEC 2005 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de PósGraduação em Educação da Universiade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 87 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 Neste contexto pensamse as revoltas escravas as associações negras e movimentos sindicais os partidos políticos os clubes e entidades culturais e religiosas etc 50 encaramos como movimentos negros toda uma diversidade de instituições e agrupamentos realizados por indivíduos negros que aspiram melhores condições de vida e constroem projetos políticos sociais econômicos e culturais etc Esses movimentos no plural possuem a cada momento histórico perfis específicos os quais merecem ser ponderados Arim Soares do Bem afirma que no século XIX muitos dos movimentos sociais que eclodiram no Brasil tinham caráter de revoltas populares e não possuíam uma plataforma políticoideológica em comum por isso esses movimentos de contestação permaneciam desarticulados O sociólogo mesmo tentando enxergar algumas permanências entre eles separa os movimentos sociais surgidos nos oitocentos em dois momentos distintos a na primeira metade do século na qual predominou o romantismo político que buscava formar a identidade nacional do império brasileiro e b na segunda metade onde a racionalidade científica positivismo liberalismo e eugenia influenciou o fim da escravidão e estabeleceu novas bases para o capitalismo brasileiro Nesse contexto havia de um lado por exemplo uma movimentação política e social mesmo que muitas vezes suspeitas em torno da abolição da escravatura por parte dos abolicionistas e havia de outro uma série de revoltas populares das camadas escravizadas em busca de conquistar a sua liberdade sem esperar por paternalismos Revoltas alimentadas algumas vezes pela experiência haitiana Contudo esses movimentos que abarcavam categorias sociais como os escravos em busca de melhores condições de vida não possuíam em sua maioria articulações muito precisas entre diferentes localidades fato que dificultou seus desenvolvimentos embora tenham sido suficientes para corroer a estrutura da escravidão por dentro88 Ainda conforme do Bem já nas duas primeiras décadas do século XX surge uma nova racionalidade dos movimentos sociais Tratouse de um momento de fervor político organização dos sindicatos e crescimentos dos partidos de esquerda que buscaram transpor a experiência de organização política da classe operaria para o contexto nacional Entre 1930 e 1945 houve a emersão de um projeto liberal industrializante que estabeleceu rupturas com as elites oligárquicas embora ainda houvesse continuidades com ela O processo de crescimento urbano desenvolveuse como objeto de políticas públicas 88 REIS João José Domingos Pereira Sodré um sacerdote africano na Bahia oitocentista AfroÁsia 34 2006 237313 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 51 Tomando a escola como uma das instituições sociais mais influenciáveis na construção de identidades os debates acerca das relações étnicoraciais no ambiente escolar se tornaram cada vez mais abrangentes Cientes de que as relações entre história memória e identidade são interpeladas por relações de poder vários movimentos negros organizados se mobilizaram política e culturalmente para garantir a ressignificação dos saberes escolares recolocando a identidade negra sobre novos referenciais possibilitadores não só de uma nova consciência sóciohistórica e cultural mas também do exercício político da cidadania Essas são algumas das experiências na vida social que incitaram vários intelectuais negros a enfrentar a exclusão social organizandose e elaborando projetos alternativos de sociedade brasileira ao longo de todo o século XX Eles haviam concluído que mais do que identificar a discriminação racial é preciso combatêla Desde a década de 30 do referido século com a Frente Negra entre outros movimentos políticos e culturais já se reivindicava a educação como o campo mais propício à ascensão social dos negros brasileiros e à valorização da identidade negra Em suma ao longo do século XX os movimentos negros brasileiros instituíram algumas práticas discursivas em busca de construir uma cidadania para o negro brasileiro A luta posta e constantemente atualizada ao longo do século XX era contra a permanência da ideologia de branqueamento que norteava as políticas públicas do Estado brasileiro mantendo como uma das características fundamentais a não legitimação das matrizes negras na formação da nacionalidade Tratavase agora de uma série de lutas discursivas em que se propunham projetos políticos de exercício de cidadania a serem negociados com o Estado sobre isso afirmam Lígia Eras e Iraci Silva Dentro de uma sociedade a que foram relegados à exclusão buscaram através de movimentos sociais a luta pela igualdade racial e de direitos legais Essas reivindicações produziram uma construção de valores de justiça dando lugar a uma identidade de cidadãos negros brasileiros89 89 ERAS Lígia Wilhelms e SILVA Iraci T B Raimundo da Educação e cultura afrobrasileira Anais do I Encontro de Divulgação Científica e Tecnológica ENDICT ISSN 21763046 p 81 52 Nesse contexto vários intelectuais negros também surgiram a fim de garantir novos lugares sociais políticos econômicos e culturais para os negros brasileiros É justamente essa história que queremos evidenciar a partir deste capítulo Como aponta a socióloga Maria Auxiliadora Gonçalves da Silva a identidade negra foi encarada como uma problemática comum a sujeitos sociais que vivenciam experiências cotidianas de preconceito e exclusão Assim emergem novas formas oficiais de organização do movimento negro90 Como a estratégia do MNU tinha como foco a institucionalização e conceituação de críticas e propostas logo buscaram criar uma série de documentos que legitimassem suas pretensões enquanto movimento social como a Carta de Princípios e o Programa de Ação91 Esses documentos são instrumentos legais que buscaram legitimar o conjunto de ações do movimento em prol da conquista de uma visibilidade social incitada pela imposição da inclusão dos negros brasileiros retirandoos das malhas da exclusão social Como podemos ver abaixo definiase como princípios do MNU na sua Carta de Princípios 90 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 91 Fundado em 7 de julho de 1978 na cidade de São Paulo movimento negro reuniuse na Assembléia Nacional do MNU no dia 9 de setembro na cidade do Rio de Janeiro Conforme o militante Milton Barbosa foi uma assembléia durou 36 horas de discussões acalouradas onde se confrontavam diferentes perspectivas de ação In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 156 53 Neste documento percebemos que desde sua fundação o MNU já assume um discurso oficial indicando as suas críticas ao Estado e à sociedade brasileira embora existissem divergências quanto aos métodos a serem utilizados Discursivamente o nascente movimento define o que seria um cidadão negro aquele que possui na cor da pele no rosto ou nos cabelos sinais característicos dessa raça A militância afro brasileira escolheu segundo o senso comum as características fenotípicas como critério de autenticidade da identidade negra Mas esta opção não deve ser tomada de forma reducionista Ao fazer este tipo de definição o MNU aproximase dos critérios de identificação social do negro legitimandoos mas buscando agora positiválos Com isso abremse novas possibilidades de identificação de outros sujeitos de cor com a 54 ideia de negritude Em seguida a carta elenca formas de reprodução do racismo cujas existências possuem sentido e legitimidade não só em nível das relações pessoas mas sobretudo nas relações institucionais Aqui chamamos a atenção para a forma como o movimento pontua a situação da cultura afrobrasileira nas relações institucionais com o Estado brasileiro marginalização racial política econômica social e cultural do povo negro e colonização descaracterização esmagamento e comercialização de nossa cultura Antes de definir o que seria a cultura afrobrasileira o MNU situavaa num contexto político de legitimação da dominação dos cidadãos negros Contra esta constatação assume respectivamente a luta pela defesa do povo negro em todos os aspectos políticos econômicos sociais e culturais Para a efetivação desta luta o documento ressalta a importância da valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção A carta ainda incide sobre a relevância do protagonismo dos sujeitos negros na autogestão desse novo projeto de sociedade e assume redes de solidariedade com outros grupos sociais oprimidos e demais movimentos sociais Este é um ponto importante da proposta pois denota que o movimento negro não queria trocar a valoração dos sujeitos invertendo a polarização dicotômica negros x brancos Não se tratava de elevar o negro ao ponto máximo enquanto ícone de cidadania brasileira localizandoo simbolicamente acima de brancos e índios mas sim de a partir de solidariedades políticas e equidades compartilhadas construir a igualdade de tratamento e existência entre os diferentes seguimentos étnicos brasileiros Observando a mensagem proferida no final do documento escrita em letras garrafais POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL vemos que a ideia de democracia racial passa a ser denunciada enquanto ideologia de dominação a partir da concepção do sociólogo Florestan Fernandes mas passa a ser também um ideal a ser conquistado no sentido que pela ação consciente dos cidadãos negros do Estado e do restante da população brasileira poderá se concretizar Essas linhas de pensamento serão desenvolvidas na consolidação do MNU e suas filiais nos estados brasileiros mas só algumas chegarão a outras instâncias legais do Estado brasileiro nos anos 1990 e na primeira década do século XXI como por exemplo a reavaliação do papel do negro na história do Brasil e valorização da cultura negra como formas de combate ao racismo 55 Mesmo considerando a experiência histórica dos movimentos antecessores como a FNB92 e o TEN93 o MNU propunha uma lógica diferenciada em relação a eles pois agora não se desejava reafirmar a inserção na ordem consumista brasileira como um igual ao branco mas como um diferente dele Buscavase construir outra lógica de inserção a partir da construção de uma identidade negra que valorizava uma ideia de ancestralidade africana produzindo um discurso que ressignificasse esta ancestralidade como um símbolo de orgulho e diferenciação da identidade negra Buscavase a originalidade tradicional e descolonizada no sentido de Frantz Fanon A luta política contra o racismo incluía a valorização desta ancestralidade da negritude e da cultura afrobrasileira ao passo que punha em pauta os debates sobre o papel das atividades culturais nesta luta Mas na emergência daquele movimento negro havia pessoas com diferentes experiências e formações definindo perspectivas e propostas de ação que ora se 92 A Frente Negra Brasileira FNB fundada na cidade de São Paulo em 1931 por um grupo de homens de cor92 preocupavase com a elevação moral e material da raça negra num momento em que várias escolas dificultavam ou mesmo proibiam a matrícula de alunos negros Para tanto criou um associativismo colocando na mão de particulares a criação e manutenção de uma escola para a instrução dos negros Perpetuavase pela educação a lógica da inserção pela igualdade do negro ao branco Ideologicamente a referida escola mantinha um projeto de caráter nacionalista e integrador A FNB cresceu bastante a partir de São Paulo chegando a influenciar capitais e cidades interioranas em vários outros estados brasileiros como Campinas Sorocaba Rio de Janeiro Salvador Vitória Recife Porto Alegre etc À medida que crescia e tomava proporções maiores na sua atuação em nível nacional a FNB institucionalizouse enquanto partido político mas foi abolido junto com todos os outros partidos políticos pela ação do plano Cohen de 1937 que iniciava a era Vargas Mesmo tendo sua existência encurtada por forças políticas a FNB realizou um projeto políticosocial na contramão do Estado republicano brasileiro que permanecia negando o exercício pleno da cidadania e garantindo o racismo como forma de dominação que gera e nutre as desigualdades sociais para os afrodescendentes92 Do ponto de vista simbólico a FNB mostrou ao Brasil uma experiência históricoescolar pensada e gerida por negros onde todos os professores pertenciam a esta categoria social Vide DOMINGUES Petrônio Um templo de luz Frente Negra Brasileira 19311937 e a questão da educação Revista Brasileira de Educação Vol 13 nº 39 setembrodecembro 2008 Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação São Paulo Brasil e CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 93 O Teatro Experimental Negro TEN foi uma organização fundada em São Paulo em 1941 cuja liderança maior coube a Abdias do Nascimento O TEN se empenhava em garantir o direito à educação da população negra como dever do Estado brasileiro e não de pessoas ou instituições privadas como fora estimulada pela FNB nos anos 1930 Para além da ascensão social do negro através da educação o TEN desejava realizar alterações conceituais nas consciências dos jovens atores e públicos negros positivando a negritude e forjando novos laços de pertencimento étnicoracial Para tanto promovia atividades de alfabetização discussões sobre o negro na sociedade brasileira produzia textos teatrais e realizava encenações em espaços públicos no centro da cidade ou nas favelas a fim de sensibilizar a comunidade negra para o exercício da cidadania Estimulava a dramatização do processo de introjeção da inferioridade negra para transformála Essa proposta provinha de suas articulações entre educação cultura e política Vide MULLER Ricardo G Teatro políticas e educação a experiência histórica do Teatro Experimental do Negro TEN 19451968 In LIMA Ivan C Educação Popular Afrobrasileira Série Pensamento Negro em Educação FlorianópolisNE nº 051999 56 encontravam ora se desencontravam94 Na carta de princípios o MNU pontua seu posicionamento político quanto aos usos comumente feitos da cultura afrobrasileira valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização folclorização e distorção95 Embora o documento expresse a representatividade de uma postura coletiva tomada frente ao tema quanto aos métodos de militância política a perspectiva cultural não constituía um campo confortável de ação Em determinadas cidades como Recife e Salvador por exemplo o movimento negro que surgia criava também algumas entidades culturais e estreitava os laços com as já existentes para a valorização da cultura negra e ativação da militância política Essa atuação gerou um desconforto entre os militantes que se dividiram em alas de acordo com suas perspectivas de trabalho os culturalistas e os políticos Mesmo comungando de objetivos como valorização da identidade negra reconhecimento da ancestralidade africana e combate ao racismo no Brasil o movimento negro que surgia naquele momento apresentava uma heterogeneidade de perspectivas e propostas de trabalho decorrente das distintas experiências e formações dos intelectuais envolvidos Entre os militantes que assumiam uma perspectiva que chamavam de política enfatizavam o protesto social e a busca da efetivação de políticas públicas para a população negra Ao mesmo tempo condenavam a ala culturalista de perpetuar uma visão folclorista espetacularizada e alienante da cultura negra Essa visão se aproximava da tese elaborada por Florestan Fernandes nos anos 196096 Os militantes negros que defendiam a perspectiva política estavam próximos à esquerda revolucionária e seguiam as teorias marxistas lugar discursivo de onde Florestan Fernandes estudava a inserção dos negros na sociedade de classes Nós líamos não só os livros mas artigos de Clóvis Moura Florestan Fernandes etc97 Com isso os militantes políticos denotavam uma prática de interdiscursividade em que assumiam uma perspectiva da cultura como prática de alienação 94 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 95 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO 19781988 10 anos de luta contra o racismo São Paulo Confraria do Livro 1988 p 1819 96 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 A análise da produção discursiva referente a história e especificamente sobre a cultura negra nós veremos no próximo capítulo 97 Depoimento de Gilberto Leal In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 75 57 Havia dentro do movimento negro diferentes apropriações do pensamento de Fernandes e sua escola A ala dos culturais selecionava os argumentos do sociólogo que lhes pareciam cabíveis à legitimação das idéias de racismo e exclusão social mas quando se tratava de pensar a cultura negra a tese de Fernandes não parecia correta Os militantes culturalistas definiam que seu trabalho era o de articular cultura e política não só no sentido de valorização do universo cultural negro e sua divulgação e exercício no espaço público mas também como instrumento de crítica ao mito da democracia racial e denuncia do racismo98 Assim buscaram se aproximar de outros intelectuais que se interessavam pelos estudos da cultura afrobrasileira e que poderiam legitimar sua perspectiva Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes99 Os relatos dos militantes que vivenciaram aqueles momentos nos contam versões a respeito Em 1976 77 já havia uma tensão no meio do movimento negro entre aqueles que defendiam que era uma mudança cultural e os que defendiam uma mudança mais profunda Os primeiros achavam que a mudança tinha que acontecer através de informação Temos que publicar mais organizar poesia organizar contos fazer eventos esportivos tentar reunir a comunidade uma tendência que a gente batizou de culturalista Eram pessoas que tinham feito as opções corretas mas que a gente não sabia avaliar naquele momento E havia pessoas como eu do movimento político que queriam uma manifestação mais política mas nós não tínhamos nenhum cabedal para fazer isso Eles tinham um projeto específico de literatura de teatro de festival e nós querendo transformar aquilo em uma coisa política negando que aquilo fosse política100 Em depoimento bastante parecido Antonio Carlos dos Santos mais conhecido como Vovô presidente do Bloco Afro Ilê Ayê em Salvador nos conta 98 Devemos considerar que haviam exemplos dessa articulação no exterior para os quais alguns militantes estava atentos Sobre isso tomemos o relato de Calos Alberto Medeiros No início dos anos 1970 enquanto James Brown estava cantando Say it loud Im Black and Im proud Diga em voz alta sou negro e tenho orgulho o Salgueiro teve um sambaenredo que era assim Ô ô ô Que saudade da fazenda do senhor Não dava para competir In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 Neste sentido a produção artística convertiase em algo muito maior que instrumento de sedução das massas negras para encamparem a luta política contra o racismo seria a própria expressão dessa luta Depoimento de Carlos Alberto Medeiros In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 85 99 Esta relação de proximidade política e discursiva será discutida no capítulo 3 100 Depoimento de Ivair Alves dos Santos In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 237 58 Nós já fomos chamados de falso africano e de tocador de tambor pelo próprio pessoal do movimento negro Essas pessoas achavam que tinha que ser pelo político e não pelo cultural Só que nós mostramos ao pessoal que só o fato de a gente criar um bloco desses já foi um ato político E você faz o político junto com o cultural Porque você fazia aqui reuniões de movimento negro e só iam os mesmos Às vezes tinha mais brancos do que negros nas reuniões nos seminários onde tinha pesquisadores E no bloco afro você fazia na rua Você tem o apelo popular e ali você passa todas as informações101 Nesta mesma linha de raciocínio em defesa da cultura como articulação política Luiz Alves Ferreira diz E aí fizemos Semana de Cultura Negra Semana de Política Negra porque a visão que a gente tem é que a cultura está dentro da política e viceversa102 Defendendo essa perspectiva o movimento negro buscava não só reconhecer valorizar divulgar dinamizála preservandoa mais também reexplicálas contextualizálas expondo os sentidos mais profundos dessas práticas a serem vistas por dentro da lógica cultural de seus praticantes Não é a toa que entre esses militantes haviam babalorixás e yalorixás presidentes de entidades culturais e esportivas antropólogos historiadores jornalistas etc Seriam os negros assumindo a fala por seus símbolos e significados descolonizando o pensamento social brasileiro sobre a cultura negra Mas para realizar esse projeto o movimento negro propôsse sobretudo a focar nas atividades culturais que estivessem mais próximas das pessoas negras no seu cotidiano em suas comunidades para a partir delas promover suas sensibilizações políticas culturais e educativas É por isso que no Programa de ação aparecem com destaque os Blocos Afros as Escolas de Samba os Grupos de Capoeira Dança entre outras manifestações de Cultura negra A crítica social e política que alimentavam o desejo de melhoria da qualidade de vida da população negra não deixaram de existir O movimento negro agora instalara discursivamente uma fratura na ideia de comunidade nacional brasileira Simbolicamente interrompiase a continuidade para instalar a diferença que legitimaria a luta política desta categoria social 101 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 238 102 Depoimento de Luiz Alves Ferreira In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 235236 59 No entanto devemos atentar para não cairmos no reducionismo conceitual acerca desse projeto Esta ação do MNU não se tratava de reforçar estereótipos sobre a cultura negra engessandoa em lugares simbólicos clássicos mas sim de uma estratégia política de reinstitucionalização e reutilização dessas práticas culturais como meio de estabelecer novos meios políticos ao passo que angariava a participação cada vez maior das comunidades negras Nesse processo também a música a dança a capoeira etc eram ressignificadas ganhando não só novos sentidos mas também novas formas conteúdos e práticas Podemos sentir isso no relato de Vovô presidente do Bloco Afo Ilê Ayê Aqui no Ilê é tudo muito em cima da música A música é um veículo condutor muito importante Aqui tem música tema que é a música do ano que é a música que educa Então é essa música que informa informa a cidade Não é só pra educar o branco para a gente também porque nós não tínhamos essa informação não temos no dia adia no livro didático103 Uma vez que a cultura possuía uma importância significativa no combate ao racismo a educação foi eleita como campo privilegiado dessa transformação cultural Mas esta preocupação ocorreu para além das ações nas instituições informais do ensino como já se fazia Para o MNU havia na verdade uma interligação muito forte entre política cultura e educação que se precisava garantir oficialmente no projeto educativo brasileiro via intervenção do Estado mas sob a orientação do MNU Como o projeto desse movimento perpassava a institucionalização e conceituação em suas críticas propostas e ações o MNU propunha também no seu Programa de Ação a sua definição de Educação A Educação deve ser um instrumento de libertação e não de alienação de um povo Portanto devemos lutar pela transformação não só da estrutura como dos conteúdos do sistema educacional brasileiro exigindo a colocação no mesmo nível da história Européia a da África assim como a ênfase sobre a participação do Negro e do índio na formação sócio cultural do Brasil104 103 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 2389 240 104 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 60 Desenvolvendo o texto o MNU afirma que a escola é uma instituição que cumpre um papel alienante ao invés de desenvolvimento intelectual e libertário da educação brasileira pois ela perpetuaria a mentalidade elitista e racista alienando os estudantes Influenciado pela teoria de Louis Althusser para o MNU a escola seria um Aparelho Ideológico do Estado reproduzindo uma ideologia de dominação econômica e racial que produzia desigualdades entre negros e brancos105 Segundo Althusser autor que corrobora com o acervo esquerdista dos movimentos sociais a partir dos anos 197080 a escola é um dos principais aparelhos ideológicos do Estado capitalista cujo modelo político predomina nas relações sociais modernas A escola é apontada pelo filósofo como formadora das forças produtivas voltadas ao mercado de trabalho garantindo a produção ideológica que perpetua as relações de subalternidade na lógica da desigualdade social Neste sentido a instituição escolar não deixa de ser um palco para a luta de classes Porém uma vez que esteja comprometida ideologicamente com o Estado ela comprometese também com a ideologia das classes que dominam e gerem o próprio Estado A escola seria desta forma portadora de forte caráter violento perpetuando ideias e ações de dominação do Estado capitalista através das instituições ou forças de persuasão Ora é através da aprendizagem de alguns saberes práticos envolvidos na inculcação massiva da ideologia da classe dominante que são em grande parte reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista isto é as relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados Os mecanismos que reproduzem este resultado vital para o regime capitalista são naturalmente envolvidos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente reinante visto que é uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante uma ideologia que representa a Escola como um meio neutro106 Outro referencial que a partir dos anos 1960 denunciava a educação como espaço de reprodução das desigualdades sociais era o sociólogo francês Pierre Bourdieu Até meados do século XX a escola era encarada socialmente como uma instituição neutra uma instituição que a partir de seus critérios racionais e democráticos 105 É importante ressaltar que nos anos 1980 as linhas de pensamento embasadas na teoria marxista estavam retomando sua força nas discussões intelectuais no Brasil É neste sentido que devemos pensar a utilização de algumas teses e temos como reprodução cultural a escola como Aparelho Ideológico do Estado alienação etc 106 ALTHUSSER Louis Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado Lisboa Presença 1970 p 66 67 61 oportunizava igualmente a todos os estudantes as mesmas oportunidades de comunicação aprendizagem e êxito na cultura letrada e na vida profissional Destarte os motivos de seus respectivos êxitos ou fracassos escolares eram atribuídos aos próprios alunos Do contrário analisando através de diferentes materiais e métodos algumas das múltiplas dimensões do cotidiano escolar Bourdieu inverte a interpretação e evidencia o papel da escola enquanto reprodutora e legitimadora das desigualdades sociais107 Para Bourdieu este fato provém do projeto moderno fundado no século XVIII de se criar uma escola diferenciadora que distinguisse os sujeitos conforme suas respectivas origens sociais e lhe prédeterminasse um destino social Desde então à dualidade rígida das formações escolares corresponde uma dualidade de cultura É todo o colorido da vida escreve Philippe Ariès que se alterou com o tratamento escolar diferencial da criança burguesa ou popular Ao perder sua função de unificar ou pelo menos de tornar possível a comunicação a cultura recebe uma função de diferenciação108 Para o sociólogo a escola é tida na sociedade moderna como instituição que veicula uma cultura legítima universalmente válida Mas na verdade ela perpetua a cultura a linguagem os valores e projetos políticos das classes dominantes No entanto este caráter arbitrário da escola é ocultado através do discurso que evidencia a sua racionalidade e a neutralidade fortalecendo ainda mais o processo inconsciente de dominação simbólica e consolidação das desigualdades sociais Ela formata indivíduos com concepções comuns que legitimam a existência as ideias e o poder das classes dominantes Os homens formados em uma dada disciplina ou em uma determinada escola partilham um certo espírito literário ou cientifico o moldado pela Escola Normal Superior ou aquele moldado pela Escola Politécnica Tendo sido moldados segundo o mesmo modelo pattern os espíritos assim modelados patterned encontramse predispostos a manter com seus pares uma relação de cumplicidade e comunicação imediatas109 107 NOGUEIRA Maria Alice e NOGUEIRA Cláudio M Martins Bourdieu e a educação Belo Horizonte Autêntica 2006 Ainda segundo os autores existiram outros fatores que influenciaram a produção teórica de Bourdieu nos anos 1960 como o surgimento de pesquisas quantitativas em países como Inglaterra EUA e França que demonstraram o peso das origens sociais nos destinos escolares e a massificação do acesso ao ensino secundarista e superior na França acompanhada do descrédito da formação universitária como garantia de ingresso no mercado de trabalho e mobilidade social para as camadas populares urbanas 108 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 2011 p 220 109 BOURDIEU Pierre A economia das trocas simbólicas São Paulo Perspectiva 2011 p 206 62 Neste contexto de reflexões rupturas epistêmicas apontamentos e denuncias um trabalho pioneiro sobre a reprodução de ideologias nos sistemas de ensino foi o da Educadora Ana Célia da Silva Ela analisou a reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros voltados à alfabetização Sua dissertação de mestrado originou o livro hoje clássico A discriminação do negro no livro didático no qual a educadora pontuou que nestes materiais didáticos ainda havia a permanência de uma ideologia das aptidões ou seja uma forma de perceber as identidades étnicoraciais não só naturalizando as diferenças entre elas mas também justificando suas respectivas formas de ocupação de determinados lugares e papéis sociais Seu trabalho de cunho denunciativo evidenciou a permanência histórica da ideologia do branqueamento social brasileiro nos livros didáticos Tal aspecto discriminatório se faz perceber pela forma como são criadas as narrativas alusivas a personagens brancos e negros na literatura didática110 A autora percebeu que em se tratando dos negros os livros didáticos traçavam perfis identitários estereotipados negativamente sendo sempre o escravo o serviçal o indivíduo caricaturado uma minoria quantitativa na história desumanizados submissos e exercendo profissões e papéis sociais desprestigiado sem referencias familiares O cenário onde esses personagens negros aparecem é majoritariamente a rua Eles aparecem em diferentes situações sociais trabalhando brincando tentando chamar a atenção Sem identidade humanizada eles são chamados por apelidos ou pela cor da pele e geralmente são representados tanto em linguagem verbal quanto nãoverbal em último lugar A cultura negra geralmente era omitida nos livros didáticos dos anos 1980 ou quando aparecem são folclorizadas O universo negro nos livros didáticos era dominado pela lógica branca Já os personagens brancos possuem outras condições de aparição Seu perfil é sempre o de um sujeito feliz e organizado que domina as situações representadas Seu perfil é de um homem trabalhador de classe média que possui bens materiais forma famílias exerce bons empregos são bonitos limpos e inteligentes Eles ainda exercem papéis sociais e profissões de alto prestígio social Diferentemente do negro que costuma aparecer na rua o branco aparece em espaços burgueses o escritório o carro 110 SILVA Ana Célia A discriminação do negro no livro didático Salvador EDUFBA 2004 63 novo a casa as festas as lojas etc nas narrativas dos livros os brancos aparecem em distintas situações sociais trabalhando comprando ensinando etc também agora são chamadas pelos nomes próprios A cultura do branco conforme a autora é a referencia para os alunosleitores destes livros ela é bonita racional correta pura enfim um modelo a ser seguido Neste contexto também ganhava bastante popularidade a obra do educador brasileiro Paulo Freire Defendendo o caráter eminentemente político da educação Freire denuncia as práticas simbólicas de dominação cultural e política de grupos opressores e assume uma postura políticofilosófica de comprometimento não simplesmente com ideias mas com algo maior a existência humana a vida numa sociedade cuja estrutura conduz a dominação de consciências Ele propõe não uma pedagogia para os oprimidos mas a construção e valorização de uma pedagogia do oprimido visando a sua própria libertação e autonomia através da reconfiguração consciente e responsável dos sujeitos Para isso sugeria que era fundamental a elaboração de uma pedagogia que estivesse enraizada nas subculturas pois elas possibilitaram um contínuo tomar reflexivo criativo e transformador de seus próprios caminhos de libertação Não se tratava simplesmente naquele momento de uma nova metodologia de ensino mas de uma proposta metódicopolítica de aprendizagem em que mais do que criar as possibilidades de reflexão e ação sobre a realidade aprender seia a exercer a prática da liberdade Desta forma aprender não consistia numa educação bancária cuja prioridade é repetir palavras regras gramaticais cristalizadas ou conteúdos disciplinares tidos como verdadeiros Essa pedagogia tradicional é classificada por Freire como violenta discriminatória invasiva de mundos culturais e fazia com que os oprimidos perdessem sua originalidade111 Freire construía um novo paradigma naquele momento afirmando que aprender significa sim ao oprimido experimentar formular nomear criar a própria palavra criadora da cultura A necessidade existente no meio educativo seria então de valorizar aproveitar e evidenciar a palavra dos oprimidos pois este falar está associado a seus juízos experiências e comportamentos Esse processo porém não é individual mas coletivo Para Freire neste percurso o homem terá condições reais de deixar de ser objeto para ser de fato um homem um ser humano pleno A pedagogia então se transforma em antropologia e história 111 Como vimos a perda da originalidade por parte dos oprimidos é uma argumentação já presente na obra de Frantz Fanon também um autor que influenciou a obra de Paulo Freire 64 num processo de hominização de tomada da consciência de si no mundo no espaço no tempo na cultura O importante do ponto de vista de uma educação libertadora e não bancária é que em qualquer dos casos os homens se sintam sujeitos de seu pensar discutindo o seu pensar sua própria visão de mundo manifestada implícita ou explicitamente nas suas sugestões e nas de seus companheiros112 Esse processo de tomada de consciência de si é um processo histórico Mas todo este ciclo de interligação entre educação cultura e história caracteriza um processo político O professor Ernani Fiori explica que a proposta políticofilosófica de Paulo Freire se torna extremamente relevante num contexto em que a dominação de consciências se faz condição predominante no qual as pessoas que mais trabalham possuem menor direito de dizer suas palavras e significações do mundo Desta forma os dominadores mantêm o monopólio da palavra com que mistificam massificam e dominam113 Assim a construção de um método educativo pautado numa nova racionalidadesensível é um ato político Conscientizar é então politizar e para Freire os universos culturais dos dominados as subculturas marginalizadas enfim a cultura popular se traduzem em ferramentas de políticas populares Para ele não pode haver cultura sem política114 Tecemse desta forma os fundamentos e métodos de uma pedagogia da esperança aquela que rompa com a opressão e priorize a autonomia o respeito a dignidade e a igualdade de existência e tratamento entre todos os homens Com Paulo Freire outro paradigma educativo se instaura Se a escola é reconhecidamente apontada como instituição que perpetua formas simbólicas de dominação a educação freiriana ganha novas conotações Agora ela é encarada como campo de transformação sóciopolíticocultural Entre a escrita e a leitura de suas Pedagogias do oprimido da autonomia e da esperança a educação é reoxigenada como possibilidade de transformações e de exercício da liberdade humana de ser dizer e fazer em que as subculturas cumprem um papel essencial Para o MNU esta proposta que sintetiza crítica denunciativa proposta metódicopolítica transformadora e indicação da originalidade ancestralidade e universo cultural próprio como 112 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p 139 113 FIORI Ernani Maria Aprender a dizer sua palavra Prefácio à 49ª reimpressão In FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 114 Idem Op cit p 65 ferramentas para a transformação hominização dos indivíduos negros se torna bastante oportuna Paulo Freire estará entre as discursividades negociadas e apropriadas pelo MNU na construção de suas pautas políticas Embasados nestes pressupostos políticofilosóficos para denunciar o caráter reprodutivista da educação a fim de transformála o MNU elegeu a disciplina escolar História como o campo de ressignificação de saberes e consciências sóciopolíticas Novos discursos onde circulassem novos sentidos da negritude seriam produzidos a partir da história selecionandose personalidades experiências e valores que recontassem a história do Brasil tomando o negro como um sujeito ativo e portador de profundos valores civilizatórios que não eram contemplados na lógica ocidental Propunhase a construção de narrativas que rompessem com a ideologia da democracia racial e evidenciassem os conflitos entre negros e brancos na história do Brasil Em suma propunhase através da educação uma ruptura simbólica com a narrativa fundadora de uma comunidade nacional que fora discursivamente harmonizada Esse processo de conscientação histórica revisitaria o passado para compreender o racismo presente a fim de construir um projeto de cidadania negra para o Brasil em um futuro muito próximo Ora um povo que não sabe do seu passado um povo sem história não pode visualizar os caminhos a empreender ao seu futuro115 Na seção Educação do Programa de Ação116 o MNU definia no documento qual deveria ser a sua atuação para garantir que a educação nacional se convertesse em um campo democrático evitando a reprodução da ideologia racista A partir de várias experiências e ações de grupos e instituições negras do passado e daquele momento 115 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 116 Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claros para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autêntica democracia racial como intitula na sua introdução onde assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de Ação pondera 16 temas divididos em seções a saber 1 marginalização do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 desemprego 4 condições de vida 5 Direito e violação 6 prisões 7 o menor Abandonado 8 Cultura Negra 9 Educação 10 Mulher Negra 11 Imprensa Negra 12 Nos Sindicatos 13 Área Rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 luta internacional contra o racismo e 16 transformação geral na sociedade Este documento realiza um aprofundamento analítico das propostas que estão sucintamente apresentadas na Carta de Princípios do MNU Não é propósito nosso fazer uma análise dos dezesseis temais apresentados no Programa de Ação pois nosso foco nessa dissertação recai sobre as articulações entre política cultura e educação por dois motivos básicos 1 como nos lembra a historiadora Queiroz esses elementos são estruturadores do discurso do MNU bem como pontos de interdiscursividade entre o MNU nacional suas filiais em outros estados e outras entidades culturais e 2 por serem esses os critérios que sendo atualizados em diferentes discursividades e documentos oficiais relativos à reavaliação da educação e da história possibilitaram a sanção da lei 1063903 gerando novas demandas para o Ensino de História definindo assim o objeto de estudo dessa investigação 66 foram eleitas então seis ações básicas 1 denunciar e combater a publicação de livros didáticos que veiculassem valores racistas em seus conteúdos 2 realizar cursos de formação para professores de diferentes níveis de ensino 3 efetuar atividades didáticas nas periferias favelas e alagados etc com crianças e jovens para despertar sua consciência negra e crítica para a história do negro no Brasil e na África 4 arregimentar pedagogos psicólogos historiadores etc negros e nãonegros para analisar documentar e instrumentalizar os militantes negros para as suas ações educativas117 5 levantar trabalhos didáticos referentes à cultura afrobrasileira junto a grupos e organizações culturais e 6 solicitar às instituições políticopartidárias maior atuação junto ao ministério da Educação e Cultura para impedir a publicação e circulação de materiais didáticos de cunho racista A seção Educação do Programa de Ação é finalizada com alguns tópicos propositivos quanto à concretização desse projeto educativo entre os quais destacamos Contra a discriminação racial nas escolas Por melhores condições de ensino aos negros Pela reavaliação do papel do negro na história do brasil Pela participação dos negros na elaboração dos currículos escolares em todos os níveis e órgãos culturais Pela inclusão da disciplina história da áfrica nos currículos escolares Por um ensino voltado para os valores e interesses do povo negro e de todos os oprimidos118 Todas essas propostas serviram como exemplos para o surgimento de outras entidades culturais e filiais do MNU nos estados brasileiros Mas elas foram retomadas em forma de interdiscursividade embora nem sempre tenham sido seguidas em todas as unidades da federação119 No Recife por exemplo o Centro de Cultura e Emancipação da Raça Negra CECERNE foi criado em novembro de 1979 por militantes negros universitários como Inaldete pinheiro Silvio Ferreira Irene Souza Tereza França e Jorge Morais120 Essa 117 Como veremos no capítulo 3 essa proposta levou o MNU a se aproximar de novos estudiosos da cultura afrobrasileira como Peter Fry e Robert Slenes por exemplo 118 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 119 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 120 A historiadora Martha Rosa Queiroz percebeu que a imprensa de grande circulação recifense registrou a fundação do CECERNE referindose aos seus fundadores como intelectuais Ela explica que No senso comum principalmente em período de fim de ditadura militar ocupar espaços de militância política e ser universitário eram prerrogativas de intelectuais em sua maioria de classe média outra representação a 67 instituição promoveu uma série de estudos e debates sobre as temáticas correlacionadas aos negros no Brasil e teria se expandido com o propósito de desenvolver uma consciência racial em outros indivíduos negros Quando criada no mês de novembro propondo esse período como data simbólica das lutas antiracistas negras os militantes do CECERNE propuseram uma série de atividades como exibição de filmes e debates121 O grupo que integrou o CECERNE buscou institucionalizarse e definir suas pretensões mesmo possuindo opiniões divergentes122 No que se refere a suas propostas houve uma interdiscusividade com as propostas do MNU nacional Entre elas a intenção de reavaliar o papel do negro na história do Brasil ganhava destaque e era assumida também pelas entidades culturais como blocos afros escolas de samba afoxés centros educativos culturais e desportivos entre outras123 Queiroz afirma que no CECERNE havia duas perspectivas políticas no movimento A primeira que mesmo reconhecendo a existência e violência do racismo não se opunha assumidamente à tese freyriana e a ideia de morenidade que se era forte em todo o Brasil era ainda mais influente em Pernambuco terra natal de Gilberto Freyre A segunda que se opunha ferrenhamente ao pensamento freyriano e que não hesitava em protestálo inclusive em eventos públicos de grande relevância para a sociedade pernambucana124 Ao passo que o tempo passava os debates se acirravam e os eventos promovidos pela entidade funcionaram como divisores de águas entre os militantes de cada perspectiva Isso gerou em 1980 um racha que deu origem a dois outros movimentos qual o grupo foi vinculado Idem Op cit p 118 De fato este grupo de militantes negros no Recife cumpria um papel de intelectuais não só pelo fato de estar produzindo ideologias construindo um grupo aglutinador de pensadores e produtores de uma cultura política mas também porque a sociedade passava a reconhecêlos como tal referindose a eles por exemplo através da imprensa usando o termo intelectuais Lembramos a perspectiva defendida tanto por Edward Said como por Daniel Pecáut de que a identidade do intelectual definese não só por parte dos sujeitos que assumem politicamente esta identidade e produzem novos objetos ideológicoculturais mas também pelo reconhecimento que a sociedade pode fazer ou não destes sujeitos enquanto tal 121 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 122 SILVA Maria Auxiliadora Encontros e Desencontros de um Movimento Negro Dissertação de mestrado acerca do Movimento Negro do Recife defendida no programa de pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE 1991 123 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 124 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 68 negros o Movimento Negro Unificado do Recife MNURecife e o próprio CECERNE Após dois anos o MNURecife foi reformulado e passou a ser chamado de MNUPernambuco Mas este período foi significativo porque conseguiu realizar alguns eventos emblemáticos as comemoraçõesreflexões sobre o 13 de maio de 1981 apoiou o desfile da Escola de Samba Limonil que trazia como temaenredo Exaltação dos orixás e organizou e sediou o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE Em 1982 no entanto atendendo a proposição do MNU nacional o MNU Recife tornouse uma de suas cédulas filiais e para isso mudou de nome a fim de contemplar e representar o estado pernambucano Assim passou a chamarse Movimento Negro de Pernambuco MNUPE Uma vez que a ligação entre MNU e MNUPE se estreitava aumentava ainda mais os encontros entre as perspectivas adotadas entre as duas instituições Da mesma forma que o MNU por exemplo o MNUPE assumia a perspectiva política da cultura vendoa como mediadora de conflitos políticos legitimadora de uma ancestralidade africana e dinamismo de um conjunto de práticas afrobrasileiras125 As atividades culturais afrobrasileiras em Pernambuco ganharam muito mais força Um exemplo emblemático é a importância que ganhou o candomblé enquanto símbolo de resistência cultural O MNUPE lutará politicamente pela utilização deste símbolo na construção da legitimidade de uma identidade afrobrasileira e também pelo seu livre exercício como um direito do cidadão brasileiro que seja adepto Sobre isso nos diz Queiroz que Para um movimento que se afirma sistematicamente como político eleger a religião no caso o candomblé como o maior pólo de resistência sóciocultural é uma indicação do lugar que a cultura pode ocupar na prática política126 O MNUPE em consonância com a proposta do MNU reconhecia a relevância da articulação entre cultura e política Assim a descolonização conceitual a desfolclorização o reconhecimento a valorização e a divulgação da cultura afro brasileira em Pernambuco seriam alvos de ações em instituições culturais esportivas e educativas e também de debates e ações na política pública O universo cultural afro brasileiro era identificado pelo MNUPE a linguagem a visão de mundo a estética o 125 Em Pernambuco esses debates entre o político e o cultural geraram momentos de desconforto entre os militantes mas foi a perspectiva que articula cultura à política que acabou se tornando a predominante no Recife Neste sentido a participação de grupos culturais e agremiações carnavalescas foi uma prática cada vez mais constante 126 QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 p 142 69 candomblé a dança as festas a musicalidade etc Estrategicamente o MNUPE reloca discursivamente algumas práticas culturais de Pernambuco no universo histórico político econômico social e simbólico da população negra pernambucana O frevo por exemplo até então símbolo de uma pernambucanidade mestiça foi identificada dentro de uma história de produção cultural afropernambucana com origens no pós abolição127 A ideia de conscientização da raça negra passa a ser entendida como um processo educativo um processo de mudança cultural nas percepções das pessoas negras128 interferindo em suas subjetividades e recriando suas identidades sociais durante muito tempo e por vários caminhos o MNUPE atuava como uma instituição informal de ensino de história da África dos povos africanos da resistência escrava e da cultura afrobrasileira Em Pernambuco foram produzidos vários seminários congressos debates exibição de vídeos atos públicos eventos culturais e vários periódicos negros como o Negritude Este jornal era produzido pelo MNUPE e demarcava discursivamente o posicionamento político de combate ao racismo através da reconstrução de ideias e avaliação da história nacional Na edição especial em reflexão ao centenário da abolição o editorial do Negritude explicava Começamos dizendo que o negro não é uma classe social O negro é parte integrante de uma civilização que foi escravizada por uma outra a civilização branca Por conseguinte o Movimento Negro Unificado não é uma entidade de classe Ele nasceu para transformar o sentimento de autorejeição do negro em orgulho de pertencer à raça que deu vida a Zumbi dos Palmares O MNU não foi concebido para alimentar estereótipos e repetir chavões do tipo esse governo que aí está ou a classe dominante que está aí Estamos muito além disso O que nós combatemos é uma civilização que foi estruturada economicamente à custa do sangue do negro e do índio Um governo que está aí não vem de Marte ele é filho de uma civilização que acumulou há séculos privilégios raciais infinitos E afinal que civilização branca É aquela que em Angola permitia a qualquer português usar uma pistola automática e ao negro dono da terra não lhe era permitido o uso de um simples canivete ou esta que acha perfeitamente normal um negro ser apanhador de lixo e um branco ser ministro médico advogado governador É isto que entendemos por civilização branca homogênea e feroz nesses quase cinco séculos de História brasileira Quando falamos em civilização branca não estamos querendo dizer absolutamente que rejeitamos o branco enquanto pessoa humana Há 127 Idem Op cit 128 Esta proposta de transformação psicológica dos cidadãos negros como já vimos está fortemente embasada na proposta de Frantz Fanon 70 brancos que fazem parte do problema e brancos que fazem parte da solução Só não aceitamos o paternalismo e a imposição ideológica O MNU nasceu para transformar o Brasil e ninguém conhecerá o Brasil senão conhecer o negro129 Percebese que nesta proposta política o discurso assume grande relevância na reconstrução das consciências e identidades sociais É preciso revisitar o passado falar desmistificar propor novos materiais e métodos de construção do nacional a partir do olhar afrocentrado Todas essas ações são exemplos dessas estratégias de construção de um campo discursivo que revalida as identidades afrobrasileiras a partir da luta contra o racismo e da valorização da ancestralidade africana A importância do jornal Negritude deuse também pelo fato de veicular informações daquele momento sobre casos de racismo em Pernambuco no Brasil em vários locais do mundo sobre as lutas póscoloniais na África ou qualquer outra notícia recente que pudesse ser de interesse da comunidade negra Interessante é perceber que como se tratava de um periódico produzido por um movimento social a veiculação das notícias não se restringia a mero caráter informativodescritivo mas possuía uma textualidade reflexiva sob a ótica dos autores aprofundando as análises conjunturais e estruturais dos temas analisados localizando a prática do racismo no cerne de várias questões Conforme Queiroz o jornal Negritude foi muito importante também por servir como um espaço jornalístico com fins pedagógicos onde a história dos povos negros era revisitada constantemente a partir de uma perspectiva afrocentrada O que percebemos então é que a partir de finais dos anos 1970 o nascente movimento negro se estrutura e tece pautas políticas onde a cultura exercerá um papel fundamental arregimentando inclusive várias agremiações culturais Este movimento se expande no Brasil durante os anos 1980 distribuindo paulatinamente seus tentáculos sobre várias unidades da federação Nesse processo os laços se estreitam as perspectivas se afinam os discursos circulam se cruzam se alimentam e criam novas interpretações e propostas Fabricase desta maneira uma cultura política de uma intelectualidade negra urbana politizada e com fortes tendências estéticas além de éticas Este movimento negro de fins do século XX não quer assumir como unicamente sua a responsabilidade de reparação política e social do negro como fizera a Frente 129 NEGRITUDE Boletim do Movimento Negro UnificadoPE Recife Ano III nº 5 maio de 1988 Editorial p2 71 Negra Brasileira dos anos 1930 Também não quis exigir unicamente do governo a responsabilidade por essa mudança como foi feito pelo Teatro Experimental Negro nos anos 194050 O MNU estabelecia princípios materiais e métodos para a partir das necessidades experiências e cosmovisão de uma comunidade negra orientar o Estado brasileiro na implementação de políticas de reparação para com esta comunidade A ação política deveria se dar através de parcerias entre o MNU e o Estado brasileiro Em suas ligações institucionais ações experiências e documentos oficiais a luta assumia grande relevância no plano dos discursos Nesta lógica pensarse politicamente é pensarse dentro das demandas de significação de uma comunidade com ancestralidade demarcada Assim a perspectiva cultural é revestida de grande importância não só simbólica mas sobretudo política O MNU assume um posicionamento frente à relação entre as posturas assumidas pelo Estado brasileiro e a cultura afrobrasileira Essas relações como veremos estão embasadas numa longa tradição de pensamento130 atualizada por diferentes intelectuais não negros que em seus respectivos momentos históricos cumpriram um papel fundamental tanto na ciência brasileira quanto nos projetos de reorganização política do nacional O MNU se posiciona oficialmente contra a discriminação alienação folclorização e exploração da cultura afrobrasileira Perguntaríamos então como foi criada e desenvolvida uma tradição de pensamento sobre a cultura afrobrasileira contra a qual se posiciona o MNU Quem são os intelectuais mais representativos dessa tradição de pensamento Quais as noções de cultura afrobrasileira que emergem de seus discursos suas narrativas históricas Como as práticas de cultura afrobrasileira são representadas por esses intelectuais Os caminhos que trilharemos na busca por responder estas perguntas serão apresentados no próximo capítulo 130 Conforme o historiador Alexandre Carvalho uma tradição de pensamento consiste na formação de um campo de estudos pautado na reflexão analítica produzida em diferentes momentos por distintos pensadores com o fim de reorientar os princípios daquela tradição ou campo de estudos CARVALHO Alexandre Historiografia e Paradigmas a tradição primitivistasubstantiva e a Grécia Antiga Tese de Doutorado História Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF Niterói 2007 Referimonos aqui ao ato de formação e desenvolvimento de um campo específico de estudos no Brasil os estudos afrobrasileiros cuja nossa ênfase será especificamente a discussão em torno das diferentes conceituações da cultura afrobrasileira 72 CAPÍTULO 2 CULTURAS NEGRAS DIZERES BRANCOS A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA AFRO BRASILEIRA NAS OBRAS CLÁSSICAS DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA 73 A simplicidade do negro é um mito forjado por observadores superficiais131 A presença negra como problemática para a República brasileira a cultura afro brasileira como discursividade Neste capítulo buscaremos analisar os diversos contextos de criação e recriação do conceito de cultura afrobrasileira num extenso trânsito de sentidos negociados por sujeitos interesses e discursos que mesmo partindo de perspectivas teórico metodológicas distintas se encontram Qual o momento histórico que marca o surgimento das preocupações científicas132 dos intelectuais quanto à presença negra no Brasil Conforme a historiadora Wlamira Albuquerque os debates e propostas em torno da construção da nacionalidade republicana no Brasil foram caracterizados por uma forte racialização das relações sociais políticas jurídicas e culturais133 Num contexto de transformações políticas e insegurança as elites brancas precisavam pensar com cuidado as formas de inserção das massas de cor que deixavam de ser simplesmente escravos para serem projetados como cidadãos Era preciso tutelar esses novos cidadãos mas manter privilégios antigos fazendo florescer uma série de novos mecanismos e práticas ambiguamente paternalistas e discriminatórias no regime republicano que se propunha para o Brasil Construirseiam cidadanias diferentes para os diferentes tipos de brasileiros em que a população de cor foi configurada como quasecidadãos Para a historiadora Zuleica Campos134 desde o início desse projeto republicano alguns intelectuais questionavam o modelo de civilização adotado no país A ideia de uma nação moderna limpa e higienizada em termos biológicos sociológicos e culturais 131 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 p72 132 Sabemos que ao longo da história brasileira vários intelectuais se preocuparam com a presença do negro e de suas práticas culturais Contudo trataremos aqui de intelectuais que escrevem sobre o negro a partir do paradigma científico e situamse no final do século XIX 133 A fim de evitar reducionismos a historiadora não entende a racialização de forma unilateral como uma imposição dos brancos aos negros Na verdade ela entende esse processo como um discurso aberto a diversas signficações negociações e apropriações por sujeitos diferentes de acordo com interesses e contextos distintos Assim a racializaçao é entendida como estratégia políticodiscursiva para diferentes grupos de brancos e negros Os primeiros para legitimarem a inferioridades dos segundos e os segundos para legitimaram sua autenticidade e construir pautas de lutas ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 134 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 74 se tornou modelo de pensamento e de ações que buscaram reajustar os parâmetros políticos sociais culturais e também geográficos do Brasil Adentrando o século XX esse projeto político alcançou seu ápice nos anos 30 Neste contexto de transição se apoiará a busca de respostas a respeito da identidade nacional brasileira Uma nova versão para essa identidade moderna e que pudesse construir narrativas e símbolos que dessem conta do Estado de compromisso135 mas que pudesse contemplar elementos das tradições populares aproximandose das pessoas comuns de forma carismática parecendo democrático mas conservando as hierarquias sociais136 A perspectiva racializadora chegou ao campo das discussões sobre a cultura nacional Para Wlamira Albuquerque se de um lado existiam negros inventando tradições embasadas na ideia de ancestralidade heranças culturais e pureza das tradições africanas existia de outro uma espécie de medo branco da perversão dos costumes ditos civilizados fazendo com que todas as atenções fossem dadas aos agrupamentos de cidadãos negros seus festejos e suas práticas culturais a fim de compreendêlas para manter os negros sempre no seu devido lugar De acordo com a autora Saber o seu lugar é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidade hierarquizada que sendo referendadas ou contestadas atualizamse cotidianamente É construindo e conhecendo tais lugares que as pessoas estabelecem relações reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social137 Identidades e lugares sociais estabelecidos e negociados pela racialização É neste contexto que circulam novos sentidos para uma comunidade negra que incomoda porque busca sua legitimidade na esfera política São sentidos que circulam e 135 A historiadora Campos usa a expressão Estado de compromisso para referirse ao equilíbrio instável entre burgueses militares e latifundiários no campo político brasileiro dos anos 1930 como um período de transição no interior das classes dominantes 136 Além de Campos outros historiadores demonstram o caráter autoritário e repressor que a política varguista adotou frente a várias manifestações populares tidas ora como atrasadas ou anticristãs ora como ameaças políticas no sentido de serem interpretadas como disfarces para encontro de grupos comunistas Vide por exemplo ALMEIDA Maria das Graças Andrade Ataíde de A construção da verdade autoritária São Paulo HumanitasFFLCHUSP 2001 SANTOS Mário Ribeiro dos Trombones tambores repiques e ganzás a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife 19301945 Recife SESC 2010 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 137 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 p 33 75 mediam conflitos na elaboração do novo projeto de Estado brasileiro que estava sendo proposto Assim a construção conceitual da cultura afrobrasileira faz parte de um universo tenso e complexo de preocupações políticas que se desenvolve integrando o projeto republicano brasileiro Essas preocupações desdobramse em diferentes momentos ocorridos entre o final do século XIX e o final do século XX através de intelectuais referenciais teóricometodológicos projetos políticos e visões de mundo distintas Tais discussões científicas se tornaram mais conhecidas a partir dos anos 1930 momento em que a identidade nacional proposta tentaria articular numa equação incerta o desejo de ruptura com o passado no plano político econômico e social para garantir a superação do atraso nacional e a identificação das continuidades do passado no nível cultural para assegurar a coesão política e o progresso futuro138 O Brasil adentrava numa nova era industrialização surgimento das primeiras universidades instituição das ciências sociais no país A história ao lado dessas ciências sociais buscará conhecer a realidade a fim de fomentar projetos de intervenção social O Brasil seria ressaltado pelas suas peculiaridades mas com uma diferença em relação ao século XIX agora o pensamento intelectual nacional se propunha como não legitimador das formas de exclusão exploração e dominação Numa perspectiva mais militante e otimista se estudará a pluralidade que forma a nacionalidade e se buscará a modernização desta O Brasil precisava ser redescoberto pelo próprio povo brasileiro e seus intérpretes seriam os intelectuais que caminhavam junto a esse povo139 Neste contexto são publicados no Brasil os primeiros textos paradigmáticos produzidos por intelectuais brasileiros de grande respeito no mundo acadêmico da época140 Obras que se tornaram clássicas consagradas como referências para todos aqueles que buscassem estudar o universo cultural afrobrasileiro Esses autores inauguraram paradigmas interpretativos sobre a cultura afrobrasileira em narrativas historiográficas buscando entender a participação negra na constituição da identidade nacional Nesse processo de construção discursiva os autores elegem e classificam alguns lugares como tipicamente simbólicos da cultura afrobrasileira a serem tomados como critério de autenticidade da identidade cultural negra Porém a lógica do olhar 138 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 139 Idem Op Cit 140 Nosso foco se detém apenas sobre os intelectuais que escrevem sob o teto da ciência Abordaremos neste capítulo apenas os acadêmicos que construíram esses paradigmas de interpretação sobre a cultura afrobrasileira construindo uma historiografia temática muito específica 76 branco141 cheio de estereótipos preconceitos e valores civilizatórios ocidentais disfarçada de lógica científica imparcial crítica e verdadeira velou pelo mundo estereotipado das representações discursivas desses intelectuais sobre os negros O olhar branco não permitia que os intelectuais acadêmicos dos quais trataremos enxergassem e compreendessem a lógica própria que circulava no interior da cultura afrobrasileira Assim esta cultura é primeiramente investigada descrita classificada e plasmada a partir da superficialidade de suas práticas e materialidades em detrimento dos sentidos mais profundos que são relegados mais uma vez à invisibilidade Essa mistura interpretativa tornouse perspicaz na medida em que parecia conseguir difundir a ideia de democracia ao passo em que mantinha as hierarquias na sociedade brasileira142 A fim de destacarmos a importância do papel da dimensão simbólica presente na construção discursiva acadêmica desses intelectuais reconhecemos que as suas narrativas remetem a múltiplos tempos e a múltiplas autorias143 configurandose em redes de significação múltiplas formando interdiscursos Ainda levando em consideração as ideias da antropóloga Maria José Campos entendemos que seja muito perigoso rotular a obra de um autor como reveladora ou obscurantista de conflitos sem trabalhar as nuanças de seu pensamento e mesmo as influências sobre autores posteriores Não se trata somente de retornar ao pensamento dos autores clássicos sobretudo no que respeita ao lugar dos cidadãos negros em nossa nacionalidade mas examinar de forma contextualizada e não determinista as questões a que se propuseram responder e as ideias que mobilizaram suas respostas tendo sempre em mente que tais respostas não tiveram aceitação apenas nos meios acadêmicos mas também que se estenderam ao senso comum Identificamos portanto a ocorrência de uma atualização silenciosa do conhecimento através da reprodução de noções clássicas revestidas em novos argumentos A cerca disso assim atesta a autora importa mais destacar o caráter curativo dos discursos identitários e dessa interpretação quando se trata de pensar na nação ou mesmo refletir sobre o ato de quem funda e se debruça sobre a sua prática 141 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 142 ALBUQUERQUE Walmira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 143 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 Eni Orlandi trabalha essa perspectiva na análise do discurso através da categoria de interdiscursividade ou interdiscurso ORLANDI Eni Análise de Discurso princípios e procedimentos Campinas SP Pontes 2012 77 Inventar nunca foi por certo um gesto de exclusiva vontade na medida em que ninguém manipula só ou simboliza por si e isoladamente Na verdade sem uma comunidade de sentidos não há interpretação que deite raízes ou modelo que se aprofunde Portanto não se trata de simplesmente desqualificar ou jogar na vala comum das ideologias ou das falsas ideologias falas que repercutem para além de seu mote inicial144 Assim quando falamos em cultura afrobrasileira não estamos falando apenas de visões de mundo e práticas culturais alusivas aos negros brasileiros mas também a um campo discursivo formado e reformado por diferentes tipos de intelectuais no âmbito das preocupações de um Estado republicano brasileiro Dessa forma a cultura afro brasileira é também um conjunto de representações que a partir dela se constroem na diversidade de contextos vozes e interesses que também nela se cruzam Para entender o sucesso desses estudos propomos iniciar nossa análise a partir do contexto e do perfil intelectual daquele que foi o inaugurador de um conceito científico ou de uma tradição acadêmica de estudos sobre a cultura afrobrasileira Nina Rodrigues 1 Nina Rodrigues a eugenia e a inauguração de um conceito de cultura afro brasileira O maranhense Raimundo Nina Rodrigues viveu em centros urbanos onde o contingente de negros escravizados era notável Nas ruas nas portas das casas nas lojas nos portos Negros e crioulos trabalhando conversando cantando esmolando esbravejando negociando Tudo parecia seguir o ritmo natural da vida Mas entre 1888 ano que se formou em Medicina 1890 ano que foi aprovado em concurso público para professor da Faculdade de Medicina da Bahia e 1906 ano em que morreu Nina Rodrigues vivenciou várias transformações da sociedade brasileira que de escravocrata passou a adotar o operariado assalariado incentivando a imigração européia de monarquia passou a ser uma república de agrária passou por um crescente processo de urbanização É justamente nesses cenários urbanos em transformação que se darão as principais discussões políticas e intelectuais em torno da 144 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 78 nacionalidade brasileira Conforme Renato Ortiz145 e Lilia Shwarcz146 é nesse contexto que a questão racial revestida de um discurso científico passa a ganhar espaço e credibilidade Para Shwarcz o século XIX foi o século do estabelecimento da ciência e das instituições de pesquisa e ensino O saber científico é revestido de grande poder ocupando um lugar central na reestruturação do Estado e é nesse aspecto que a fala institucional se compõem num fator de grande importância pois dá legitimidade e autoriza o discurso do intelectual atribuindolhe grande poder político e social Esse processo também acometeu o Brasil da época O país foi passando de objeto a sujeito produtor de explicações científicas A partir dos anos 70 dos oitocentos toda uma nova configuração paradigmática e conceitual chega ao Brasil reformulando as instituições as formas de comunicação a cultura a política o comércio o ensino etc O Brasil precisava mostrarse moderno e nesse projeto modernizador a ciência e seus distintos representantes exerciam um poder discursivo legitimador essencial em que o lema ordem e progresso tornase possível graças ao paradigma evolucionista que predomina no pensamento ocidental Naquele cenário brasileiro o liberalismo e o racismo foram muito importantes na construção intelectual política econômica social e mesmo cultural do país Assim não se pode compreender o projeto de sociedade brasileira que era formulado no período sem considerar que a racialização era uma perspectiva basilar de análises e reflexões desvelando dimensões políticas e sociais Havia um grande pessimismo quanto à identidade nacional estar pautada na miscigenação pois esta era encarada como sinônimo de fraqueza racial e conseqüentemente nacional147 O pensamento médico social de Nina Rodrigues esteve revestido com as teorias raciais que surgiram na Europa ao longo do século XIX O seu principal aporte teórico era a Eugenia teoria criada por Francis Galton que defendia a promoção de um aprimoramento genético das populações o que poderia levar às nações a pureza racial e o progresso No entanto vale frisar que as teorias raciais no Brasil não foram simplesmente importadas elas foram sobretudo adaptadas148 a um projeto intelectual que analisava a 145 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 146 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo Das Raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 147 Idem op cit 148 Teóricos como Lilia Schwarcz Renato Ortiz e Wlamira Albuquerque discordam da idéia simplista de que os cientistas brasileiros de fins do XIX limitaramse a copiar as teorias raciais européias Essas teorias se tornaram hegemônicas no Brasil justamente no momento em que perdiam força na Europa Há uma clivagem entre o momento de produção dessas teorias na Europa e as formas como são apropriadas no Brasil Nem todos os referencias são aceitos mas só os que dialogam com os referenciais já utilizados em diálogo com o contexto mestiço do Brasil 79 evolução brasileira na interpretação de uma história natural da humanidade149 O cientista Nina Rodrigues é um dos precursores das ciências sociais no país e está inserido nesse contexto político e intelectual que se desenvolve após a abolição da escravatura Suas abordagens iniciais ainda estão impregnadas da perspectiva biológica validando seus argumentos na relação meioraça Por questões temporais Nina Rodrigues conseguiu observar acompanhar e entrevistar diretamente os últimos remanescentes de escravos africanos no Brasil São justamente as memórias sentimentos e práticas culturais desses sujeitos que compõe o repertório argumentativo do universo semântico que foi recortado e recosturado produzindo novos sentidos a partir da perspectiva racializadora de Nina Rodrigues Seu campo de pesquisa foi privilegiadamente a Bahia sobretudo Salvador diversos espaços públicos as ruas as feiras e estabelecimentos comerciais os terreiros de candomblé e os arquivos Espaços de experimentação científica onde sincretizou150 e aplicou seu pensamento eugenista e evolucionista forjando uma dizibilidade e uma visibilidade151 da cultura negra inaugurando cientificamente um conceito de cultura afrobrasileira Nina Rodrigues partiu de critérios de diferenciação racial para observar anotar teorizar desclassificar as experiências históricas e culturais negras no Brasil fazendo uma operação simbólica na identidade nacional ordenando as partes do todo brasileiro formando simbolicamente um Estado que ainda não é O projeto médicoeugenista se colocava como o redentor da nação fragilizada É dentro desse contexto que ele escreve seu livro clássico sobre a história e cultura afrobrasileira Os africanos no Brasil sendo a obra publicada em 1932 após a morte do autor Seu discurso não foi apenas fortemente marcado pelo paradigma evolucionista determinista e eugênico mas por uma postura cientificista e patriótica Nina Rodrigues queria entender as consequências da miscigenação étnica e cultural para 149 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 p 15 150 Renato Ortiz 2006 faz uma discussão sobre o que resolveu chamar de sincretismo científico no período até aqui discutido numa alusão às misturas e adequações que os cientistas brasileiros fizeram das teorias raciais européias Ortiz esclarece que a diferença entre sincretismo religioso e sincretismo científico não diz respeito apenas ao campo religioso x campo cientifico mas também à perspectiva temporal pois o sincretismo religioso busca entender as misturas e transformações passadas na experiência religiosa que se refletem no presente já o sincretismo científico é um projeto presente de articulação mistura e transformação de teorias cientificas com vistas a projetar um futuro Mais informações vide ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 151 Termos cunhados em ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 80 uma nação em vias de formação Foi o primeiro intelectual brasileiro a escrever um estudo sistemático dedicado exclusivamente a presença negra no Brasil Seu discurso é complexo oscilando entre o pessimismo e o otimismo entre a sedução e o desprezo pelo universo cultural negro Para ele nos níveis biológico psicológico e cultural a presença negra no Brasil é algo inegável mas é uma presença que degenera pois o negro é caracterizado pela infantilidade carência e grosseria de seus conteúdos e formas No livro Os Africanos no Brasil 152 Nina Rodrigues pretende legitimar o seu estudo como o mais completo sobre a presença negra no Brasil cujo propósito teria sido investigar cientificamente um problema que se constituiu na formação da nacionalidade brasileira o negro Esse problema fora constatado em seus estudos anteriores sobre medicina legal higiene e criminalidade O que buscava entender nesse momento era justamente a influência que o caldeamento étnico pode exercer sobre a característica de uma nacionalidade em vias de formação 153 Estrategicamente Nina Rodrigues se localiza em seu texto como um cientista patriota e é na tentativa de construção de um progresso nacional brasileiro a partir da razão que ele produz os seus argumentos Sobre essa problemática chamada genericamente de o negro o médico afirma que existe uma perspectiva temporal que o engloba em três recortes o passado origem da presença africana no Brasil o presente miscigenação e o futuro embranquecimento Nessa perspectiva temporal do problema Nina Rodrigues se propõe a analisar justamente o primeiro recorte temporal o passado A história fora escolhida como campo de experimentação de seu argumento científico e para isso Nina Rodrigues mostrase conhecedor dos critérios de cientificidade histórica da época ao construir sua metodologia de pesquisa que consistiu em consultas bibliográficas sobre a escravidão negra e documentos oficiais do período 152 Esse livro foi escolhido por alguns motivos específicos a por ser o último escrito de Nina Rodrigues e demonstrar uma produção mais madura de suas ideias b apresentar um estudo mais amplo sobre a história e culturas negras no Brasil perpassando vários temas c ser um livro que privilegia a perspectiva historiográfica do tema contemplando referenciais e métodos historiográficos da época embora Nina Rodrigues oscilasse entre a Medicina e a Antropologia e d por ser um dos livros mais lidos e citados até hoje na história do pensamento social brasileiro sobre a cultura negra Vale dizer aqui que consideramos ser esta discussão de Nina Rodrigues uma discussão datada pertencente a uma época específica aqui já contextualizada O que nos interessa nesta análise não é estigmatizar ou condenar o pensamento de Nina Rodrigues mas problematizálo localizálo e perceber quais são as estratégias argumentativas que definem o que é ser negro e o que faz o negro no Brasil 153 RODRIGUES Nina R Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p 32 81 colonial colhidos no Arquivo Público da Bahia154 Inspirado também na Antropologia cultural numa perspectiva comparada realiza pesquisas de campo com entrevistas assistindo a rituais e festas entre outras manifestações além de fotografar alguns objetos culturais155 Do resultado dessas aproximações de diferentes disciplinas métodos e referenciais teóricos Nina Rodrigues tornase com maior precisão o inaugurador de uma tradição brasileira de invenção conceitual da cultura afrobrasileira numa perspectiva histórica oficial A partir da materialidade de suas fontes e dados pesquisados ele seleciona distribui organiza estabelece continuidades e sentidos ao que ele está chamando de cultura negra no Brasil ou nos seus termos sobrevivências das culturas africanas no Brasil estabelecendo que a cultura afrobrasileira vive das continuidades e não das rupturas das culturas africanas Assim ele legitima através de seu discurso científico os autênticos lugares simbólicos da cultura negra a linguagem as belasartes música dança pintura e escultura as festas populares e o folclore a religião e suas mitologia e culto indumentária e culinária Com isso Nina Rodrigues projetava não só palavras mas também imagens de africanidades que sobrevivem e que continuariam a existir nos descendentes mulatos e crioulos uma vez que os legítimos africanos estavam morrendo ou emigrando de volta para a África após a abolição Dessa maneira definiase o que é ser negro e o que fazem os negros Limitavase a produção cultural e a inteligência negra a estes únicos lugares e práticas Para Nina Rodrigues o motivo da escravidão negra no país se justificou pela falta de mãodeobra indígena nas lavouras e minas de ouro Utilizandose de estimativas demográficas o autor ressalta uma maior presença negra em relação à população branca no Brasil desde os tempos coloniais Mas a sua preocupação principal no livro é estabelecer hierarquias entre os povos africanos e a partir de sua escala evolutiva localizar os povos que mais teriam influenciado culturalmente o Brasil A partir do paradigma evolucionista que predominava no mundo científico brasileiro da época Nina Rodrigues narra histórias oficias da África selecionando argumentos que evidenciam a sucessão de guerras e domínios de reinos sobre outros na África enfatizando e classificando a organização política econômica social e cultural dos sudaneses como formas culturais superiores É essa a ancestralidade negra que Nina 154 Nina Rodrigues seguia o paradigma positivista Assim fazia parte do seu universo semântico as noções de evolução e de estudo dos grandes datas fatos e homens que foram transformados em símbolo da comunidade nacional brasileira da época 155 RODRIGUES Nina R Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p 32 82 Rodrigues seleciona para o Brasil Para ele a predominância intelectual e social quem sabe também numérica cabia absolutamente aos negros sudaneses e não aos bantos que seriam culturalmente atrasados Daí a necessidade de referendar um discurso que privilegiasse e inventasse uma descendência afrobrasileira forte direta e coerente com os negros sudaneses Esses é que deveriam ser os referenciais culturais para o Brasil os negros que na África estavam mais naturalmente direcionados ao progresso e à civilização Ao criar esse critério o autor inclui na idéia de afrobrasilidade o perfil sudanês e exclui o perfil banto como critério de nossa possível civilidade Sudanesa é a ancestralidade que o Brasil precisa e quer Para isso ele descreve as etnias africanas transmigradas ao Brasil dando maior ênfase aos sudaneses nagôs jêjes haussás minas tapas bornuns gurunxis fulás e mandigas enquanto aos bantos angolas congos benguelas e moçambiques são dedicadas menos linhas menos descrições e argumentos Após localizar no mapa africano a melhor ancestralidade negra para o Brasil Nina Rodrigues usa os dados de suas pesquisas científicas para eleger e descrever as práticas culturais negras Inventase assim nesta tradição conceitual um modo específico de apreender o outro156 nesse caso o negro Cristalizamse nela também os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira a culinária as palavras de línguas africanas a indumentária os cultos fetichistas festas e contos populares folclore música dança pintura e escultura Sua abordagem é folclórica pensando cultura como tradição e tradição como reprodução mecânica de ideias e ações A cultura afrobrasileira não seria necessariamente arte porque a arte pautase no modelo de racionalidade estética ocidental Assim a cultura afrobrasileira que para ele seria destituída de racionalidade encontrase no reino do senso comum e por isso seria classificada como tipicamente folclórica Lançando o conceito de sobrevivências africanas ele propõe uma continuidade de práticas culturais africanas autênticas puras ainda existentes no Brasil Modificar tais práticas seria retirar delas sua autenticidade sua tradição e pureza seria descaracterizálas Desse modo o autor não só define os elementos típicos da cultura afrodescendente no Brasil mas a estabiliza conceitualmente cristalizaa propagando uma noção estereotipada de cultura que não pode se dinamizar caso 156 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 83 contrário perderia suas purezas suas africanidades Surgem oficialmente uma dizibilidade e visibilidade do ser e fazer negros Quando pensamos essa dizibilidade e visibilidade plasmada sobre os negros e sua cultura valemonos da noção de estereótipo trazido pela educadora Ana Célia da Silva imagens cristalizadas ou idealizadas de indivíduos ou grupos de indivíduos que cumprem o papel social de produzir os preconceitos as opiniões e os conceitos baseados em dados não comprováveis da realidade do outro colocando esse outro sob rejeição ou suspeita157 Conforme a autora os estereótipos representam atitudes negativas com relação a uma pessoa ou a todo um grupo baseandose em comparações nas quais o mundo tido como referência é o mundo do sujeito que interpreta e estereotipa Essa atitude provém da necessidade de alguns grupos agredirem enfraquecerem e dominarem outros Em visão complementar o historiador Durval Muniz afirma que O discurso da estereotipia é um discurso assertivo repetitivo é uma fala arrogante uma linguagem que leva à estabilidade acrítica é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras158 Para a escritora nigeriana Chimmammanda Adiche159 o problema dos estereótipos não é que eles não sejam verdadeiros mas que sejam incompletos e generalizados Edward Said160 afirma que o processo de construção de uma forma específica de apreender conceitualmente o outro não é pura invenção espontânea mas corresponde sempre a alguma materialidade um conhecimento superficial que corresponde de alguma forma aos objetos idéias ou pessoas de que se fala os quais desejamos representar Contudo é um conhecimento da parte que é tomada como o todo reduzindo a diversidade e a complexidade das identidades 157 SILVA Ana Célia Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático Salvador EDUFBA 2010 158 ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 159 ADICHE Chimmammanda O perigo de uma única história Conferência ministrada em julho de 2009 Oxford Inglaterra Disponível em wwwyoutubecom Acesso em 11 de maio de 2011 160 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 84 Nesse contexto as operações simbólicodiscursivas como produção de conceitos são elementos fundamentais Os conceitos são formas de representação161 que também formam ou reforçam estereótipos Enquanto intelectual Nina Rodrigues é o inaugurador de uma tradição de representar conceitualmente no Brasil a cultura afrobrasileira Embora essa representação parta de uma materialidade de dados observados e analisados segundo os referenciais dispostos naquele momento histórico esses conceitos não dão conta de toda a diversidade e complexidade que possui a cultura afro brasileira Tais conceitos formam fragmentos estereotipados da cultura afrobrasileira selecionando e elegendo o que se diz ser ou não típico dessa cultura deixando de fora toda uma rede de sujeitos eventos intencionalidades e significações Discrimina os lugares não só culturais mas também políticos e econômicos dos negros Esse processo de representação conceitual do que é o ser e o fazer negro se construiu nos primeiros momentos do século XX num projeto de fortalecimento de uma identidade contrária àquela que é a do ser e fazer branco Os argumentos os métodos e as instituições dos intelectuais que os produzem fazem parte de uma complexa rede de significações interpeladas por relações de poder que legitimam esses dizeres Construindo essa dizibilidade e visibilidade sobre a cultura negra reinventando a Nina Rodrigues descreve as indumentárias femininas e masculinas Para ele uma típica mulher negra vestese à baiana com saias de cores vivas e bem rodadas de seda fina Uma camisa de linho alvo e um pano da costa sobre esta Na cabeça um torço também chamado de turbante Adornamse bastante com colares e braceletes de ouro levando uma figa pendurada na cintura É costume também das mulheres negras carregarem os filhos nas costas presos a uma toalha Já os operários negros conservam o habito de vestes brancas de tecido grosso de algodão calça e camisa justa e curta que lembra os camisus nagôs162 O autor segue argumentando que a culinária brasileira também tem grande influência negra sobretudo na Bahia vatapá caruru bobó efó acarajé abará munguzá acaçá aberém arroz de haussá e cuzcuz são exemplos de comidas O autor evidencia a base comum dessa culinária na tríade azeite de dendê pimenta e milho ou arroz como provas das continuidades africanas em nossas cozinhas 161 Como explicado na introdução deste trabalho pensamos as representações não como espontenismo e criação meramente abstrata sobre as coisas mas como leituras possíveis a partir de alguma materialidade do objeto ideia ou pessoa representada As representações são tentativas de nomeação e classificação reducionistas pois não dão conta integralmente da complexidade dos objetos a que se propõem a representar mas de alguma forma se aproxima deles 162 RODRIGUES Nina Os africanos no Brasil São Paulo Madras 2008 p111 85 Já as línguas negras são concebidas como fragmentos dispersos de línguas africanas que foram acolhidas por uma língua maior e racional que seria a língua portuguesa Neste sentido as línguas africanas são presenças exóticas e sua existência no sistema complexo do português brasileiro habita um lugar predeterminado na hierarquia estabelecida lugar definido pela quantidade de palavras e importância de seus usos em contextos formais eou informais A língua nagô seria a que mais influenciaria o meio cultural brasileiro mas a presença negra na língua portuguesa é algo que a deteriora desqualifica À música à dança à pintura e à escultura o autor chama belasartes Ao fazer isso mais uma vez estabelece conceito e padrões europeus para comparar às produções dos africanos e seus descendentes no Brasil O termo belasartes aciona todo um referencial ocidental de produção artística mas quando o leitor acessa a descrição de Nina Rodrigues sobre as belasartes negras acaba desclassificandoas por comparação Conforme o autor as belasartes afrobrasileiras são tidas como formas de expressão que complementam a precária linguagem dos negros Mas elas o fariam isto de modo infantil por serem muito rústicas Embasado em LèvyBrhul Nina Rodrigues explica que para os povos ditos bárbaros a linguagem mímica e artística exerce um papel fundamental na inteligência prélógica163 predispondose à linguagem falada Assim a linguagem mímica seria essencial na cultura negra Ela completaria a linguagem primitiva dos africanos Por isso a dança seria tão importante para o negro A formação de círculos o ato de bater palmas os cânticos coletivos as interações coreográficas os gestos corporais contorcidos tudo isso faria parte das típicas danças negras tornandose elemento essencial para formar o gosto artístico do povo brasileiro o ser negro estaria intimamente ligado ao fazer dança do senso comum dos ignorantes do folclore Mas não se pode pensar dança sem pensar a música Desta forma o autor parte para analisar a linguagem musical dos negros e começa por fazer uma lista e descrição dos típicos instrumentos negros que ele sempre caracteriza ou desqualifica como rústicos atabaques canzás marimbas marimbaus matungos pandeiros e berimbaus 163 Conceito cunhado pelo antropólogo LèvyBrhul que classifica os diferentes estágios mentais do homem Para Brhul todos os homens são dotados de representações coletivas A diferença é que nas sociedades industriais as representações coletivas são reflexivas críticas e científicas enquanto nas sociedades primitivas são alógicas e supersticiosas no sentido em que tipicamente não realizam distinções de tempo espaço estado e ser Cf CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 86 Afirma que no Brasil o instrumento negro por excelência é o tambor Eis um símbolo que se torna praticamente sinônimo de negritude aglutinando a palavra à imagem o ser ao fazer164 Já a música negra é classificada como de vibrações fortes ferozes e confusas selvagens Nas pinturas e esculturas negras prevaleceriam segundo o autor os desenhos toscos traços simples e grosseiros Entre os principais temas de representação estão os religiosos prevalecendo traços físicos negróides O primitivismo e grosseria dos traços e estilo africanos seriam decorrentes de uma defasagem de uma educação precisa ou seja para que os negros produzissem esculturas enquanto objeto artístico deveriam ser submetidos a uma educação ocidental moralizante e racional Discutindo as festas populares e o folclore Nina Rodrigues enfatiza a presença do totemismo uma relação de parentesco entre homem natureza que se estende para a organização da vida civil Assim diz ele todos os povos negros escravizados eram totêmicos e essa forma de ver o mundo de construir suas relações de saber e de poder de organizar o mundo social constitui um dos principais pilares dos saberes fazeres e festejos populares Nas diversas manifestações folclóricas se perceberia a presença de esculturas de animais plantas ou outros objetos totens que fariam parte das performances e interferiam nas narrativas de tais manifestações o que comprovaria a mentalidade prélógica dos negros Já no folclore ficaram as lendas e os causos populares nos quais o protagonismo de animais é evidente A estes animais são associadas qualidades e ações humanas com fins de distrair e também moralizar O último lugar cultural analisado neste livro é a religião Para o autor as práticas religiosas foram as que melhor se conservaram no Brasil mantendose relativamente puras Porém é ainda perceptível a ênfase que o autor dá a umas perante outras como é o caso do culto jêjenagô que se internacionalizou com o advento da escravidão e aglutinou outras mitologias Para falar de religião Nina Rodrigues valese sobretudo da observação direta vai aos terreiros assiste a algumas cerimônias e entrevista participantes dos candomblés baianos mas ele também realiza análises indiretas através de processos criminais e reportagens A religião é o tópico que o intelectual discute de forma mais extensa e com maior propriedade 164 Não negamos a importância deste símbolo para a negritude O próprio MNU vai retomar a este símbolo positivando como ícone da ancestralidade africana O que problematizamos aqui é quando o tambor vira estereótipo do negro É como se para ser um autêntico negro o cidadão tivesse necessariamente que saber tocar e gostar dos tambores Oculto nesta concepção está a generalização de que todos os negros e negras associamse aos tambores Além do que este argumento toma a cultura como base material e não subjetiva 87 Nina Rodrigues afirma que os nagôs possuem um sistema religioso complexo divinizando forças naturais mas já atribuindo figuração antropomorfa Cultos que mesmo em meio a tantas repressões tornamse populares inclusive entre as populações brancas tão distintas na sociedade brasileira Para ele religião típica de negro no Brasil é o candomblé165Religião atrasada mas que demonstra lógicas muito próprias com possibilidades de evolução pois já teria dado provas de estar inserida na experiência de marcha evolutiva ao contrário por exemplo dos cultos bantos Ao longo de todo o texto percebemos uma grande complexidade de movimentos em seus argumentos Ora o pesquisador enfatiza uma suscetibilidade e inferioridade cultural negra ora acusa sua grande influência sobre a cultura branca denotandolhe relativo poder mesmo que um poder depreciativo Na discussão sobre a religião dos negros essas tensas zonas discursivas se tornam mais constantes Ora acusa os cultos fetichistas de degenerescência psicossocial ora os defende da ação abusiva da polícia Ora diz serem os negros selvagens e bárbaros tendentes à criminalidade ora acusa a justiça brasileira de não compreender as culturas negras Na verdade como diz Renato Ortiz166 Nina Rodrigues situase no meio de várias encruzilhadas discursivas período de muitas transformações nos campos político econômico social e cultural Seu discurso embora assuma opções feitas reflete a explosão de todas essas influências aceleradas que começam a interpelar as novas subjetividades brasileiras Seus argumentos são complexos interdiscursivos circulares Uma idéia extremamente importante e que não se deve esquecer é que nesse processo de inventar uma noção folclórica de cultura afrodescendente no Brasil Nina Rodrigues possibilita a leitura de que os negros foram de certa forma personagens ativos desde o início da empresa escrava no Brasil Para ele os negros colonizaram silenciosamente o Brasil e suas influências se veem até hoje Mas foi uma colonização na contramão no sentido contrário do que precisava o progresso da nação brasileira O Brasil ganha assim a partir de um viés científico a invenção de uma ancestralidade negra de perfil sudanês sobretudo nagô que se materializa nas palavras e expressões linguísticas típicas fragmentos exóticos de línguas africanas usadas no Brasil na música barulhenta e na dança frenética lasciva e contorcida que complementa 165 O intelectual era contra outras formas de culto que não os candomblés Para eles os cultos que denotavam reconfigurações advindas das apropriações de cultos bantos indígenas e de um catolicismo popular seriam práticas de charlatanismo Para a defesa do candomblé como autenticamente africano o autor usa o termo pureza nagô 166 ORTIZ Renato Cultura brasileira e identidade nacional São Paulo Brasiliense 2006 p 34 88 a linguagem negra nas pinturas e esculturas de traçados grosseiros nas festas e saberes populares folclóricos totêmicos nas religiões fetichistas nas indumentárias e culinárias típicas Esses são os lugares simbólicos da cultura e os significados da afrodescendência brasileira em Nina Rodrigues Lugares simbólicos ser e fazer negros marcados pela falta pelo atraso pela carência pela grosseria e infantilidade de seus conteúdos e formas 2 Gilberto Freyre o difusionismo cultural e a malemolência gostosa da cultura afrobrasileira Em 1930 Gilberto Freyre homem de família tradicional de Pernambuco esteve na Bahia e conheceu o Museu AfroBaiano Nina Rodrigues encontro a partir do qual foi aparentemente seduzido por um universo cultural que lhe gerava uma mescla de estranhamento e atração ao mesmo tempo Queria entender uma presença cultural no Brasil tão evidente e já estudada que não se podia negar Os negros no Brasil estavam por todos os lugares e ele sabia que essa presença não se restringia só ao mundo material mas também simbólico brasileiro Ainda em 1930 Freyre vivenciou a experiência do exílio Passou pelos Estados Unidos por Portugal e por países africanos lugares que o influenciaram em sua busca intelectual de entender a cultura afro brasileira ou melhor o lugar e as formas das presenças culturais negras na identidade cultural brasileira Da mesma forma que Nina Rodrigues no final do século XIX Gilberto Freyre no início do século XX buscava compreender o caráter nacional brasileiro a fim de criar um discurso que desse homogeneidade à identidade nacional criando simbolicamente um povo brasileiro cujo símbolo maior seria a miscigenação É nesse sentido que a história lhe servirá como forma de explicação e entendimento da nacionalidade num momento onde as discussões sobre a identidade brasileira estavam na pauta dos políticos e intelectuais O Brasil adentrava numa nova era industrialização surgimento das primeiras universidades instituição das ciências sociais no país Houve uma maior burocratização do Estado que buscava dar novos formatos à educação saúde agricultura segurança cultura etc essas reformas na estrutura interna do Estado brasileiro absorviam os sujeitos e as demandas das camadas médias urbanas167 Zuleica Campos afirma que 167 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 89 entre os desdobramentos deste processo estão não só as movimentações pela reforma de outras esferas da vida social mas também o agravamento das crises internas das oligarquias dominantes da economia e da política nacional e a ascensão de Vargas ao poder político em 1930168 Campos pondera que entre as estratégias que marcaram essa transição para a formação desse estado centralizado e posteriormente autoritário governado por Vargas estavam o apoio ao desenvolvimento industrial à expansão da burocracia estatal à ampliação de assistência social aos trabalhadores e a tomada de um posicionamento nacionalista quanto a assuntos econômicos e culturais A história ao lado dessas ciências sociais buscará conhecer a realidade a fim de fomentar projetos de intervenção social Os intelectuais brasileiros estão buscando novas respostas para a identidade nacional brasileira como elemento que dará um sentido de comunidade aos cidadãos da república brasileira Uma nova versão para essa identidade moderna e que pudesse construir narrativas e símbolos que dessem conta do Estado de compromisso que privilegiasse as elites mas que pudesse contemplar elementos das tradições populares aproximandose das pessoas comuns de forma carismática parecendo democrático mas conservando as hierarquias sociais O Brasil seria ressaltado pelas suas peculiaridades mas com uma diferença em relação ao século XIX agora o pensamento intelectual nacional se propunha como não legitimador das formas de racismo exclusão exploração e dominação Numa perspectiva mais otimista se estudaria a pluralidade que forma a nacionalidade e se buscaria a modernização desta É neste contexto que são publicados no Brasil os primeiros textos paradigmáticos produzidos por intelectuais brasileiros de grande respeito no mundo acadêmico da época como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre O sucesso dessas obras também em nível internacional deuse pelo contexto do entre guerras Naquele momento havia não só as lembranças recentes da Primeira Guerra Mundial mas também se assistia à ascensão dos regimes totalitários que se legitimavam através das doutrinas raciais e do racismo científico As leituras que desvelassem distintas presenças raciais estavam no centro das atenções intelectuais do ocidente O pensamento freyriano ganhou ainda mais destaque por defender a tese de que o Brasil era um exemplo de nação tolerante uma nação que harmoniza as diferenças raciais 168 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 90 Freyre escreve sob influência da antropologia cultural de Franz Boas que buscava dissociar o conceito biológico de raça do conceito antropológico de cultura Neste momento a perspectiva eugenista ainda vigorava enquanto política social embora há muito tempo já recebesse críticas no campo intelectual Zuleica Campos169 afirma que as leituras mais influentes da teoria boasiana no Brasil foram as obras do antropólogo americano Melville Herskovits um dos principais discípulos de Boas nos EUA que estudou a presença negra na América Analisando o discurso científico da época tanto a historiadora Zuleica Campos quanto a antropóloga Maria José Campos170 buscam mostrar que no Brasil a noção de democracia racial a partir de uma interpretação otimista da mistura racial e cultural por meio da apropriação das teorias culturalistas americanas ainda estão associadas ao pensamento eugenista O que percebemos neste sentido é que os intelectuais brasileiros desse período não estão meramente reproduzindo teorias e sistemas explicativos vindos do exterior mas estão recriandoos conforme o contexto e as necessidades postas para o entendimento da identidade brasileira naquele momento Nesse sentido eles realizam operações discursivas que ressignificam conceitos e argumentos ligando ideias que a princípio estariam opostas realizando o que Ortiz chama de sincretismo científico Na busca de inaugurar um novo paradigma interpretativo Freyre diz que pretende realizar um ensaio que fosse ao mesmo tempo o que chamou de sociologia genética e história social Ele faz isso para criticar o modelo positivista de historiografia nacional da época por enfatizar uma perspectiva patriótica em detrimento dos temas que ele considera de interesse rigorosamente histórico171 Temas estes que estavam esquecidos ou inacessíveis aos estudiosos e que agora com a publicação de Casa Grande e Senzala seriam reconhecidos valorizados e divulgados resolvendo um problema político maior para o Brasil a criação de uma comunidade nacional integradora172 169 CAMPOS Zuleica O combate ao catimbó práticas repressivas às religiões afroumbandistas nos anos trinta e quarenta Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2001 170 CAMPOS Maria José Arthur Ramos luz e sombra na Antropologia Brasileira uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940 Rio de Janeiro Edições da Biblioteca Nacional 2004 171 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p47 172 A obra Casa Grande e Senzala foi escolhida por ter sido a primeira obra onde Freyre realiza um denso estudo sobre a cultura negra atribuindo a ela uma dimensão histórica Esse livro é bastante relevante do ponto de vista simbólico pelas significações que constrói acerca da presença negra na identidade nacional sendo uma das obras mais lidas desde sua publicação até hoje no Brasil e no exterior 91 Destarte seu foco cai sobre tudo o que diz respeito à vida íntima e a moral sexual do Brasil onde para ele reside a autenticidade da nação o caráter do povo173 Essa vida íntima na moral sexual brasileira só poderia ser encontrada em outras fontes de informação ou sugestão referentes a lugares específicos de produção cultural quanto à participação do negro e mesmo do índio do folclore rural nas zonas mais coloridas pelo trabalho escravo dos livros e cadernos manuscritos de modinhas e receitas de bolo174 e quanto à produção cultural do branco coleções de jornais dos livros de etiqueta e finalmente do romance brasileiro que nas páginas de alguns dos seus maiores mestres recolheu muito detalhe interessante da vida e dos costumes da vida patriarcal175 Com essa construção argumentativa Gilberto Freyre já inicia seu texto demarcando os devidos lugares culturais ocupados por negros índios e brancos de acordo com suas hierarquias sociais Lugares que em sua narrativa viram símbolos associados à identidade de cada um desses sujeitos definindoas plasmandoas estereotipandoas Negros e índios produzem o folclore colorido musical e culinário Os brancos produzem a imprensa livros de etiqueta e literatura Dessa forma o autor começa a demarcar através da cultura a posição política de cada personagem no cenário de colonização e organização da nacionalidade brasileira É bem verdade que Freyre ao preferir construir uma narrativa histórica a partir de outros problemas perspectivas e fontes fez emergir novas interpretações historiográficas a respeito do passado brasileiro Contudo uma vez que os seus conhecimentos sobre a história política de que dispunha naquele momento só o faziam perceber os escravos em condições subalternas é justamente nessa subcondição humana que Freyre representa os negros em sua narrativa Negros que sofrem mas que produzem sua cultura sempre envolvente e gostosa embora ainda mística e rústica No momento em que agradece aos amigos que o ajudaram na construção do livro cedendolhe fontes indicandolhes bibliografias corrigindo o texto passandoo a limpo etc Freyre nomeia cada amigo contribuinte de sua obra pessoas ligadas às elites 173 Essa ideia de compreender o caráter ainda possui uma perspectiva biologista da questão Freyre quer entender esse caráter de forma psicológica naturalizando ou localizando na raça os elementos psicológicos que expliquem as práticas culturais em diálogo com os diferentes contextos de relações sociais que se estabeleciam Nesse sentido há um interdiscurso com a proposta de Nina Rodrigues Vide também REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 174 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 33 175 Idem Op Cit 92 oligárquicas às classes médias urbanas à intelectualidade ao poder público e por último a alguns exescravos Ainda quanto a esse agradecimento vemos que há uma forma hierarquizada no que considera como contribuições à obra Casa Grande e Senzala Aos exescravos compete responder perguntas informar sobre o que sabem de seu universo cultural passar receitas aos homens da elite que dominam as esferas políticas econômicas e de produção intelectual no Brasil compete ler revisar analisar sugerir ceder fontes escritas traduzir organizar construir critérios de análise e um sentido sobre as informações colhidas que formarão a narrativa Àqueles compete passar informações a estes compete fazer um conjunto de procedimentos uma operação simbólica sobre o passado nacional que legitima a visão de mundo de seus interventores176 Durante todo o texto Freyre recorre bastante a referenciais teórico metodológicos de intelectuais brancos utilizando como fontes os relatos de cronistas que estiveram na África e no Brasil colonial e falaram sobre o cotidiano e as atividades culturais dos negros nestas duas espacialidades genéricas177 O pensamento de Gilberto Freyre revela uma grande complexidade causada por diferentes referenciais teóricos e estratégias argumentativas onde parece que o autor quer revelar críticas às estruturas de poder mas ao mesmo tempo as ameniza quando dá exemplos de relações sociais harmoniosas construídas historicamente no Brasil Na verdade o que se percebe é a força persuasiva de um autor que parece buscar se aproximar do universo cultural dos excluídos para lhes inserir de forma mais digna nas 176 O historiador Tiago de Melo Gomes sugere que alguns artistas populares negros como Pixinguinha tenham influenciado a tese de Freyre Estes artistas negros elaboravam suas leituras críticas do contexto social do Brasil principalmente no que diz respeito às discussões raciais Também as formas de inserção desses artistas como símbolos da nacionalidade brasileira contribuíram para os estudos de Gilberto Freyre Para uma discussão aprofundada ler GOMES Tiago de Melo Um espelho no palco identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920 CampinasSP Editora da UNICAMP 2004 177 Neste sentido é importante ressaltar que a obra de Freyre utiliza essas fontes como dispositivos de verdade As fontes ilustram o passado reafirmando os argumentos do autor Argumentos que por mais que pareçam inovadores consolidamse como conservadores das relações sociais Freyre ressalta a importância da utilização de outras fontes que revelem o caráter do povo através de sua vida íntima revelando suas essências mas a escolha dessa nova perspectiva tornou sua narrativa a vida dos brasileiros e a história do Brasil em uma saudosa memória de um passado cultural praticamente sem conflitos Apenas se buscou acrescentar fontes com outros tipos de informação mas sem desconfiar dessas fontes sem criticálas sem desvencilhálas do que o historiador Robert Slenes chama de olhar branco a percepção do branco sobre o negro e sua cultura As fontes que Freyre usou para legitimar suas verdades estavam cheias de olhares preconceituosos e estereotipados dos quais o autor não conseguiu se livrar pois os referenciais historiográficos de que dispunha ainda tomavam a fonte como provas da verdade sem se problematizar o lugar a autoria e a intencionalidade presente nas fontes De fato não se pode cobrar essa postura de Freyre pois essa não era uma postura consolidada no campo historiográfico principalmente no Brasil dos anos 30 afinal essas discussões só vieram a se consolidar algumas décadas depois contudo é importante ressaltar que a metodologia utilizada por ele naquele momento criou uma narrativa que reforçou estereótipos conservadores quanto à identidade cultural negra 93 relações sociais brasileiras porém que constrói uma narrativa que apaga os conflitos acalma as tensões sociais e preserva as hierarquias A colocação de pólos contrários como vencedor e vencido proprietário e propriedade explorador e explorado atribuindo a elas o mesmo valor semântico da expressão senhor e escravo em vários momentos do texto Casa Grande e Senzala possibilitou a interpretação de Gilberto Freyre como um autor comunista nos anos 30178 um estudioso subversivo que poderia alertar à condição estrutural de exploração e dominação na sociedade brasileira De outro modo no entanto o autor ainda utiliza termos eugênicos como raça superior e raça inferior raça adiantada raça atrasada e utiliza termos como confraternização harmonia harmonização união miscigenação etc Termos estes que o ajudam na construção discursiva da ideia de democracia racial Freyre assume que na sua trajetória intelectual inicialmente pensava a identidade nacional mestiça como doença tendo a perspectiva eugenista como modelo de pensamento Contudo depois de entrar em contato com teorias do difusionismo cultural de Franz Boas nos Estados Unidos passa a criticar a perspectiva eugenista buscando trocar o conceito de raça pelo conceito de cultura para reinterpretar o que o autor ainda chamava de contribuição cultural negra no Brasil Para Freyre as deficiências e carências apontadas pelos eugenistas como consequências diretas das raças na verdade seriam consequências de condições sociais e contextos políticos de uma raça ou cultura sobre a outra Desta forma o argumento que explicaria a inferiorização do negro e do índio no Brasil sairia do mundo natural biológico nato para o mundo social cultural e político Contudo as hierarquias raciais ainda estão presentes na narrativa histórica de Gilberto Freyre legitimando seus argumentos e reforçando relações políticas e sociais Ele põe a figura portuguesa no mais alto pódio da identidade nacional É o português quem governa constrói estupra administra ensina É o português o centro que dá sentido à brasilidade Freyre cria um esquema de estrutura narrativa que cria uma visibilidade centralizadora do português e periférica dos índios e negros Para ele o português é o elemento gerador de nossa estrutura social coesa É dele que parte os pontos de sustentação para índios e negros A casa grande senhorial foi o centro de coesão patriarcal e religiosa sob a qual se apoiou a organização nacional foi nela onde 178 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 94 melhor se exprimiu o caráter brasileiro a nossa continuidade social179 a família patriarcal foi a unidade centralizadora brasileira e o colonizador português o elemento ativo desbravador conquistador plástico dominador o patriarca que cuida O indígena foi o elemento passivo selvagem primitivo e fraco Já os negros foram passivos plásticos servindo como escravos de estimação Metáfora em que o autor assemelha o negro a um animal doméstico O mito fundador criado por Gilberto Freyre paulatinamente apaga e desqualifica a presença indígena enquanto tributária da formação social e cultural do Brasil O autor prefere evidenciar as presenças portuguesa e negra genericamente nomeada de africana Contudo essa relação é estabelecida hierarquicamente sendo à primeira presença reservada todos os adjetivos e sentidos centralizadores de poder racionalidade e civilidade ao passo que a segunda relegamse os sentidos lugares e atividades periféricas nas relações sociais e culturais O português já apresentava historicamente uma prédisposição à vida tropical e às afinidades interraciais devido às relações estabelecidas na África e na Índia por advento da expansão marítima portuguesa180 A harmonia e a democracia racial existiriam não graças aos indígenas e negros mas graças somente ao português que permitiu o estabelecimento dessas relações181 O poder viril do português não se materializaria somente na sua esfera privada de vida sexualidade mas também na esfera pública relações sociais e políticas O português grita decide comanda Às outras raças cabe obedecer Para Freyre esse seria um costume com profundas raízes históricas É como se o brasileiro gostasse e até sentisse falta de ser comandado182 pois Uma espécie de sadismo do branco e de 179 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 45 180 Na verdade nos argumentos do autor essa predisposição aos contatos com as ditas sociedades exóticas existia desde a formação do Estado Português O homem português já era mestiço com o árabe Essa miscigenação não o inferiorizava do contrário permitiu o pioneirismo português no contexto da expansão marítima e colonização dos mundos não portugueses Assim Freyre atribui uma interpretação otimista à miscigenação vislumbrandoa como possibilidade de progresso de um povo e não de seu fracasso Para José Carlos Reis Freyre devolve a autoestima das elites brasileiras que no final do século XIX sobre o paradigma eugenista havia sido condenada por ser mestiça REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999180 181 O racismo ainda estava tão presente no discurso de Freyre que quando fala sobre os casamentos inter étnicos no Brasil Colonial chega a afirmar sobre os filhos de portugueses e índias de semelhante intercurso sexual só podem ter resultado bons animais ainda que maus cristãos ou mesmo más pessoas Idem Op Cit p84 182 O historiador José Carlos Reis aponta que na obra Casa Grande e Senzala Freyre defende cinco teses 1 o encontro racial entre os diferentes povos foi harmonioso possibilitando casamento interétnicos e a formação de uma sociedade miscigenada nos trópicos Brancos negros e índios são povos do passado não existiriam mais em sua pureza o Brasil é todo de uma cor só mulato 2 essa miscigenação só foi possível graças ao caráter democrático do português que já apresentava uma predisposição histórica para 95 masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas relações sexuais como nas relações sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio183 Mas é interessante perceber que Freyre ao desenhar um português miscigenado desenha um português que é também africanizado pois é homem que recebeu muitas influências de árabes na arquitetura no vocabulário na culinária no catolicismo místico e popular Influências culturais africanas difundidas no mundo português que não provinham de qualquer África e sim da África do norte moura não somente mais próxima geograficamente de Portugal mas sobretudo mais civilizada Assim vêse de forma paradoxal tanto a adesão do autor ao difusionismo cultural ao evidenciar que as práticas culturais religiosas africanas foram difundidas entre as práticas culturais e religiosas cristãs quanto ainda certa dose de eugenia pois essas influências reconhecidas a princípio parecem construir um elogio mas na verdade são tratadas como depreciação 184 Sofreram os colonizadores não exclusiva ou diretamente da América mas das colônias em geral dos contatos com povos exóticos e raças atrasadas das conquistas e das relações ultramarinas decidida influência no sentido da dissolução moral O ônus moral do imperialismo185 Enfim enxergando o passado pela ótica do colonizador branco a quem tanto elogia Freyre justifica a vida sexual e moral do brasileiro a partir de referenciais como Montesquieu e Treitschke que atribuem ao clima tropical e à vida nos trópicos a existência da sensualidade da poligamia e da escravidão Desta forma conclui que os contatos entre raças diferentes 3 o cenário por excelência da miscigenação e ordenação da vida brasileira foi a CasaGrande 4 as limitações físicas e psíquicas do negros resultam não da raça mas das condições sociais as quais foram submetidos numa sociedade latifundiária de monocultura e onde a sífilis se espalhou e 5 o povo brasileiro é masoquista vem de uma tradição histórica de relações sociais de comando x obediência Sofre é explorado e comandando mas gosta porque essa foi a educação que o povo sempre recebeu Assim para fortalecer o país dar coesão ao povo e por ordem na república é necessário um governo ideal que seja másculo viril patriarcal e comandante supremo absoluto enfim autoritário REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 183 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 45 184 Idem Op Cit p 394 Essa leitura da religião se assemelha com o pensamento de Nina Rodrigues na obra Os africanos no Brasil para quem as religiões africanas depreciam a religião cristã 185 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 333 96 diante da natureza voraz e danos econômicos a escravidão foi uma instituição necessária à colonização do Brasil Na criação dessa instituição o português ocupou lugares estratégicos que lhe cabiam devido ao seu perfil exercendo os papeis que lhes eram mais próprios realizando atividades culturais que só sua competência poderia cumprir a política a administração as letras a diplomacia o direito Em Gilberto Freyre são esses os lugares da cultura branca Lugares caracterizados pela presença competente e poderosa pela riqueza e desenvolvimento pela racionalidade e pelo equilíbrio e harmonia entre conteúdos e formas Já quando sua escrita parte para caracterizar o índio Freyre utiliza termos como semicivilização raça atrasada selvagens introvertidos taciturnos morosos tristes calados sonsos sorumbáticos sem graça sem espontaneidade sem cortesia sem sorriso identificados pelo animismo e totemismo pela perene infantilidade carência e ingenuidade de cultura inferior e nômade A força de significação das palavras que o autor usa para homogeneizar e desclassificar as identidades indígenas revela a estratégia discursiva de hierarquizar identidades sociais Seu interesse em falar do índio no livro é dissertar sobre a sua influência nas relações sexuais e de família na magia e na mística É a partir desse recorte temático reduzido que o índio é integrado à narrativa histórica freyriana É no campo e nas matas afastadas da civilização dos centros urbanos que estão guardadas ainda vivas de alguma forma as reminiscências de práticas culturais tradicionais dos indígenas Criase como critério de autenticidade da identidade indígena o afastamento geográfico do restante da sociedade brasileira Desta forma Freyre também situa os indígenas em seus devidos lugares Determina segundo sua ótica branca os lugares da cultura indígena o folclore os contos populares as superstições as tradições totêmicas as relações de amor e compradio186 com animais e plantas que seriam perceptíveis na iniciação sexual de muitos jovens com tais animais ou vegetais a visão de mundo mística da crença no sobrenatural fato que explicaria o sucesso até aquele momento anos 30 do que o autor insiste em chamar assim como o chamava Nina Rodrigues de baixo espiritismo Todas essas sobrevivências culturais todas essas tradições primitivas teriam sido ofuscadas pelo próprio perfil fraco e passivo dos indígenas Freyre entende que foi por isso que os indígenas teriam sido apagados pela ação colonizadora e pela catequese europeia mesmo que tenham sobrevivido algumas influências do que ele chama da 186 Relações de parentesco e proteção Oriundo da palavra compadre Essa expressão denota o caráter patriarcal das relações sociais no passado colonial do Brasil 97 linguagem rústica dos índios na língua portuguesa Freyre ainda afirma que a produção açucareira exterminou os indígenas Ora pela morte ora pela fuga os indígenas haviam sumido da sociedade brasileira Estavam localizados no passado colonial não existiriam mais na república brasileira para além das lembranças romances folclore e história O índio fora substituído pela mão de obra escrava negra que para o autor era muito mais vigorosa em todos os sentidos É neste enredo que entra o personagem negro como foco na narrativa de Freyre Ele aparece dentro de uma problematização histórica que busca traçar as origens negras do Brasil Retomando o raciocínio de Nina Rodrigues Freyre afirma que os historiadores do século XIX limitaram a procedência dos escravos importados para o Brasil ao estoque banto Seria esse um ponto que se deveria retificar De outras áreas de cultura africana transportamse para o Brasil escravos em grosso número Muitos de áreas superiores à banto187 Através desta interdiscursividade com Nina Rodrigues o autor demonstra uma preferência em mostrar que em sua noção de cultura afro brasileira aparecerá o perfil sudanês as matrizes jejenagô e haussás entre outros povos sudaneses Os sudaneses seriam superiores graças a miscigenação entre sangue hamítico e árabe Mais uma vez sudanesa seria a ancestralidade africana que teria o Brasil era a que os portugueses desejaram pois se tratariam dos africanos mais elegantes bonitos e sensuais em detrimento da grosseria afrodisíaca dos bantos A presença banto seria mais uma vez apagada na narrativa historiográfica que dá logica ao Estado brasileiro O trabalho escravo dos negros teria sido necessário não só pela falta de indígenas para o trabalho mas também pela falta de mulheres brancas para os desfrutes dos portugueses e de técnicos em trabalhos com metais que fazem parte da típica cultura africana caracterizada na perspectiva burguesa como destituída de inteligência e prestígio tida pelo trabalho braçal a agricultura a mineração a pecuária a culinária Pelo título dado ao quarto capítulo O escravo na vida sexual e de família do brasileiro já conseguimos fazer algumas críticas primeiramente o negro entra nessa narrativa apenas como escravo é como se fosse uma condição natural de existência do indivíduo negro nascer ou ser escravizado e é sobre essa condição da identidade negra que a narrativa dotase de sentido Em segundo lugar o escravo negro é tratado como 187 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 382 98 um estrangeiro um ser que orbita em torno da família do brasileiro mas que dela não faz parte porque a ele não foi atribuído o adjetivo de nacionalidade brasileiro O escravo o negro seria alguém que invade essa família brasileira mestiça mas de caráter português a partir da vida sexual terceiro o autor já define um lugar cultural para a presença negra no Brasil a sexualidade mas não de qualquer forma e sim sob a forma de uma sexualidade permissiva associada a termos como sedução orgias e degeneração familiar É bem verdade que em vários momentos o autor atribui essa força da participação negra na vida sexual à instituição escravista pois reconhece que os escravos eram forçados na maioria das vezes a manter relações sexuais com os portugueses os homens de caráter viril dominador autoritário colonizador mas não deixa de atribuir aos africanos os adjetivos de escravos passivos e naturalmente lascivos Logo no início do capítulo IV o autor já define os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira os xangôs de Recife188 e candomblés da Bahia reisados maracatus coroação de rei do congo e ainda acrescenta Na ternura na mímica excessiva no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos na música no andar na fala no canto de ninar menino pequeno em tudo o que é expressão sincera de vida trazemos quase toda a marca da influência negra Da escrava ou sinhama que nos embalou Que nos deu de mamar Que nos deu de comer ela própria amolegando na mão o bolão de comida Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de malassombrado Da mulata que nos tirou o primeiro bichodepé de uma coceira tão boa Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu ao ranger da cama devento a primeira sensação completa de homem Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo189 Assim reaparecem aqui os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira já evidenciados na obra do médico Nina Rodrigues revelando nesta interdiscursividade as premissas racialista e discriminatória que não só estereotipam a identidade cultural negra mas também separam e mantêm as hierarquias sociais no Brasil Essa é a 188 No início do século XX os cultos de matriz africana no Recife eram chamados de Xangôs Nome que originalmente designa o orixá da justiça e do fogo que em Pernambuco foi estendido para significar também o espaço físico onde ocorrem os rituais os terreiros o toque nos dias de festas públicas e de forma genérica todo o culto O termo candomblé que hoje está bem difundido no Brasil veio a ser utilizado em substituição ao termo Xangô no Recife a partir dos diálogos entre intelectuais militantes e lideranças religiosas dos cultos em Pernambuco e na Bahia na busca de reafricanizar ressignificar e legitimar sua prática religiosa em nível nacional 189 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 367 grifos nossos 99 significação superficial que reveste a cultura afrobrasileira a partir dos seguintes lugares simbólicos a música e o canto a fala e a mímica que a complementa a culinária os contos populares e as lendas o misticismo do catolicismo à brasileira e a magia o curandeirismo caseiro Mas Freyre acrescenta outros lugares a brincadeira inocente onde o negro é naturalmente submisso a sexualidade onde o negro já experiente neste assunto inicia e corrompe a pureza do branco São esses os traços culturais tipicamente negros que o autor prefere evidenciar em sua narrativa Ele afirma ainda que não é de seu interesse ao menos diretamente a importância dos negros na vida estética e muito menos no progresso econômico do Brasil O autor preferiu evidenciar a importância negra na constituição da moral e do caráter do povo brasileiro ou seja as formas pelas quais os negros participavam da vida sexual brasileira É por isso no entanto que na página 395 ele descreve a cena de ritual de culto afrobrasileiro e admite não saber a função de um tecido em cor específica amarelo ou vermelho etc usado por alguns adeptos nesse ritual190 Daí se percebe que o autor fez recortes selecionou partes elegeu alguns elementos e práticas que se tornaram símbolos da cultura afrobrasileira em detrimento de outros mas os estudou sem contemplar a profundidade dos sentidos desses mesmos elementos culturais Muita coisa fugiu do olhar branco e da compreensão de Gilberto Freyre porque ele achava que eram coisas já postas já esclarecidas já compreendidas pelo olhar científico Dessa maneira alguns elementos que ele via nas práticas afrobrasileiras eram reduzidos a mero espontaneísmo sem significados profundos ou relevantes O difusionismo cultural ao qual estava filiado o fazia perceber que as culturas negras se espalhavam por todas as esferas culturais dos brasileiros no cotidiano mas não conseguia apreender muitos dos sentidos valores e conceitos que estavam por trás desses mesmos materiais e práticas da cultura negra que se difundiam Ora para ele não parecia ser fácil ou evidente compreender a cultura afro brasileira por dentro porque acreditava como Arthur Ramos e outros intelectuais brasileiros da época que os documentos oriundos da escravidão foram queimados a mando de Rui Barbosa Portanto não havia documentos que falassem dos negros diretamente por sua voz191 190 No candomblé o uso de cores no vestuário dos adeptos é uma alusão a cor que representam os orixás 191 No Brasil o intelectual que criou o mito de que as fonte sobre a escravidão haviam sido queimadas a mando do ministro da fazenda Rui Barbosa foi Arthur Ramos A esse respeito ele disse A história do trafico de escravos no Brasil ainda não está suficientemente escrita É de uma longa história só ela comportando um vasto volume Bem assim a história da escravidão destruição dos documentos históricos determinada pelo Ministério da Fazenda em circular n29 de 13 de maio de 1891 inutilizou várias tentativas nesse sentido E continuam muitos daqueles problemas aludidos sem solução RAMOS 100 Assim Freyre usa antropólogos sociólogos filósofos psicólogos biólogos cronistas literatos abolicionistas e clérigos que durante a colônia o império e início da república falaram dos e pelos índios e negros É a partir dessa interdiscursividade acrescentada de valores do próprio autor que ele constrói o perfil dos negros na história do Brasil extrovertido alegre risonho sociável expansivo loquaz fortes bem nutridos atléticos sensuais pobre mas limpo de iniciativa pessoal talento de organização poder de imaginação aptidão técnica e econômica indivíduo que possui identidade étnica Esses são termos que parecem dotar a identidade negra de bons atributos mas não devemos esquecer que muitos desses existem como pedido de permissão ou compensação para a aceitação do negro apesar de sua raça Não é a toa que o autor ainda usa metáforas como lama de gente preta Em outros momentos ele define os típicos personagens negros de nossa história ele plasma e limita os papéis sociais exercidos por negros o negrovelho o pai de terreiro o moleque de brinquedo a mucama a cozinheira perita na arte do forno a negrinha sensual o guia o cúmplice o curandeiro o corruptor mas sempre o escravo192 Nesta manobra discursiva o negro acaba sendo considerado o maior e mais plástico colaborador do branco na colonização do Brasil Vejase que ele não é tido como o principal colonizador mas apenas o contribuinte da grande obra portuguesa A colonização portuguesa foi política a africana foi cultural Aqui há uma hierarquia Enquanto o português o patriarca é duro viril dá ordens comportase cheio de cerimônias o negro escravo é mole intimista faz pedidos e súplicas Para Freyre o negro foi responsável por muitas das maneiras e vícios dos brasileiros Aqui a cultura afrobrasileira recebe mais uma conotação ruim pra além da ideia de folclore pois falar Arthur O negro brasileiro Recife Massangana 1988 p 1516 Embasados em Slenes 1983 Peter Fry e Carlos Vogt afirmam que os documentos queimados a mando do ministro da Fazenda Rui Barbosa foram os originais das matrículas de escravos que havia no Brasil desde a Lei do Ventre Livre em 1871 Esses documentos se tornaram a base legal da propriedade de escravos e eram usados como principal prova dos exsenhores de escravos na hora em que estes exigiam idenizações do Estado pela perda da posse do excativo Foi por isso que Rui Barbosa teria mandado queimar especificamente esses vestígios e não todos os documentos da escravidão como declarava Arthur Ramos em 1934 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 192 O tempo todo em sua obra Freyre usa a palavra menino para se referir à criança branca ao passo que usa o termo moleque para definir a criança negra A partir de Eni Orlandi não podemos deixar de crer que a significação das palavras tenha uma forte dimensão histórica e ideológica de cunho ainda racista As formas como se designam as pessoas desvelam não só representações mas interesses políticos ORLANDI Eni Análise de Discurso princípios e procedimentos Campinas SP Pontes 2012 101 em vícios numa sociedade cristã é remeterse a uma ideia de pecado vida errada abominável condenável O uso deste termo na narrativa freyriana parece soar como elogio pois o vício é tratado como um ato que seduz e é gostoso de ser praticado porém a ideia de prática errada ou condenável não foi abolida deste léxico Definindo os lugares dos negros e ainda retomando os cronistas de época e autores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos Freyre reestabelece o cenário típico onde o negro e sua cultura aparecem com maior força as festas sobretudo o Carnaval Situação social de perpetuação da cultura negra mística totêmica e fetichista É nas festas que o negro executa suas danças espontâneas dramática sensuais alegres e muito vivas A identidade negra é passiva feminina sensível é que realiza uma profusão de cores movimentos sons cheiros e sabores animando e suavizando a empresa autoritária da identidade branca ativa viril masculina e racional de nossa formação portuguesa Nas palavras do autor Muitos acrobatas de circo sangradores dentistas barbeiros e até mestre de meninos tudo isso foram os escravos no Brasil e não apenas negros de enxada ou de cozinha Muito menino brasileiro deve ter tido por seu primeiro herói não nenhum médico oficial de marinha ou bacharel branco mas um escravo acrobata que viu executando piruetas difíceis nos circos e bumbasmeuboi de engenho ou um negro tocador de pistom ou de flauta193 Por conseguinte além da dança e da música outro lugar cultural para o negro seria o circo Lugar onde poderia exercer naturalmente sua mímica excessiva Mais uma vez a cultura é usada como argumento para definir os papéis sociais dos negros no Brasil naturalizandolhes as funções onde exerçam trabalhos braçais que na lógica de nossa sociedade burguesa são desprivilegiados194 193 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 505 194 Para a filósofa Marilena Chauí não devemos esquecer que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social entre intelectuais e manuais e necessidade da escolaridade para ter competência de produzir uma boa cultura Analisando a noção de cultura de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre percebemos que eles usam do argumento cultural enquanto herança ou aptidão para legitimar o exercício dos negros em funções sociais menos privilegiadas na sociedade burguesa CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 É isso por exemplo o que também está querendo dizer Edward Said quando afirma que a colonização cultural que se dá também pela formação de estereótipos implica não somente na criação de barreiras e limitações culturais do outro de quem se fala mas também suas limitações sociais econômicas e políticas processo do qual os intelectuais não estão isentos aliás em muitos casos eles são os principais artífices 102 Como se trata de uma cultura dos trabalhos mecânicos a culinária não poderia deixar de ser evidenciada Freyre é categórico ao dizer que os negros dominaram a cozinha Este espaço teria sido dominado pela cozinheira gorda ou pelo homem cozinheiro efeminado que reproduziam alimentos e técnicas culinárias africanas produzindo os legítimos doces ou quitutes dos tabuleiros das negras forras Doces da rua coloridamente africanos que faziam desleal concorrência com os doces recatados das casas de família Fato que mostra a especialização dos escravos nas artes culinárias além dos outros serviços domésticos Segundo o autor a cozinha baiana é mais tipicamente afrobrasileira seguida das cozinhas pernambucanas e maranhenses Aqui o autor plasma uma série de estereótipos o perfil de quem faz os alimentos cozinheira gorda ou cozinheiro efeminado ou são receitas tipicamente africanas e os estados brasileiros de forte tradição de culinária africana Além de criar uma cartografia cultural localizando simbolicamente os lugares culturais dos negros Freyre interfere na cartografia simbólica do Brasil pontuando os pontos onde está mais nitidamente a cultura afrobrasileira O autor de Casa Grande e Senzala descreve a indumentária típica das negras vendedoras de doces reforçando a imagem que Nina Rodrigues descreveu das negras vestidas à baiana Quando fala da linguagem negra o autor faz outra caricatura Para ele a linguagem africana amolece o vigor da língua portuguesa tiralhe o prestígio a solenidade O contribuinte da cultura brasileira amolece e suaviza a imposição cultural do colonizador oficial Nas palavras do autor A linguagem infantil também aqui se amoleceu ao contato da criança com a ama negra O processo de reduplicação da sílaba tônica tão das línguas selvagens e da linguagem das crianças atuou sobre várias palavras dando ao nosso vocabulário infantil um especial encanto O dói dos grandes tornouse dodói dos meninos Palavra muito dengosa A linguagem infantil brasileira e mesmo a portuguesa tem um sabor quase africano cacá pipi bumbum tentém neném tatá papá papato Lili mimi auau bambanho cocô dindinha bimbinho Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram perdendo a solenidade dissolvendose deliciosamente na boca dos escravos As Antônias ficaram SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 103 Dodons Toninhas Totonhas as Teresas Tetés os Manués Nezinhos Mandus Manés 195 Mesmo parecendo querer elogiar essa presença negra através do uso de adjetivos como encanto e dengosa o autor não dispensou o uso do termo selvagens para fazer referência às falas dos escravos Freyre deprecia essa fala pois dentro de sua perspectiva patriarcal e machista ele atribui à cultura negra a ideia de plasticidade moleza feminilidade algo que descaracteriza desfaz o vigor e a autoridade masculina do colonizador português Se antes havia duas línguas uma da Casagrande e outra da Senzala o contato das crianças brancas com as amas negras diluiu essa fronteira mas ao falar desse contato Freyre acaba referendando a concepção de linguagem africana como fragmentos estereotipados de línguas africanas que foram acolhidas pela língua portuguesa uma língua coesa exata e profunda capaz de dar sentido aos fragmentos limitados carentes de semântica própria dos africanos Fato que ocorreu não só na linguagem falada mas também na gramática do português brasileiro Os vocábulos africanos na língua portuguesa são para Freyre vocábulos órfãos ou no máximo filhos de pais não ilustres A influência africana deturparia a língua portuguesa mandá buscá comê ti faço mi deixe coler le pediu cadê ele vigie espie mas é justamente essa deturpação esse português errado que caracteriza o português brasileiro e garante a nossa identidade lingüística e o seu caráter vernáculo196 Um ponto interessante a se notar nessa narrativa é que Freyre visualiza o negro em um campo de atuação diferente dos que vinha citando até aqui caracterizados apenas por atuarem como trabalhadores braçais Para ele havia um campo de trabalho que alguns negros conseguiram ocupar dando novas formas a educação Um campo de prestígio social tido como trabalho liberal intelectual Falando sobre o negro na educação Freyre evidencia que as formas de ensinar nas práticas cotidianas de professores negros se dão de forma mais afetivas permissivas frouxas do que nas práticas dos professores brancos Isso teria a ver com o perfil cativante do negro como atesta o autor 195 FREYRE Gilberto Casa Grande e Senzala formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal 51ª edição São Paulo Global 2006 p 414 O texto foi transcrito respeitando a grafia do texto original 196 FREYRE Gilberto Idem op cit p 419 104 E felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros doces e bons Devem ter sofrido menos que os outros os alunos de padres frades professores pecuniários mestres régios estes uns ranzinzas terríveis sempre fugando rapé velhos caturras de sapato de fivela e vara e palmatória na mão197 Na narrativa freyriana brancos negros e índios se confraternizam a cultura popular irradia pureza e autenticidade as diferenças se harmonizam e os conflitos tendem a desaparecer mesmo quando tangencia a violência física o estupro e o racismo mas omite a garantia de privilégios às elites brancas através da manutenção de hierarquias raciais Na obra Casa Grande e Senzala Freyre realiza uma abordagem cultural de cunho folclorista percebendo a cultura afrobrasileira como um conjunto de tradições africanas que são reproduzidas no Brasil sendo por vezes adaptadas devido à condição da escravidão Seu conceito de cultura parece bastante moderno próximo do conceito que será trazido na historiografia brasileira anos mais tarde como veremos mais à frente mas no momento em que ele passa a querer aplicar esse conceito localizando os lugares objetos e práticas dessa cultura ele o faz a partir de bens materiais e de algumas práticas sem buscar compreendêlas pela ótica dos negros Assim sua análise se mostra superficial 3 Florestan Fernandes o marxismo e as perdas da cultura afrobrasileira O sociólogo Florestan Fernandes tornouse livre docente da Universidde de São Paulo USP em 1953 e em 1964 professor catedrático da mesma universidade Legitimado institucionalmente como intelectual Florestan Fernandes foi também militante político e um dos fundadores do PT Ele assumiu uma postura de esquerda voltandose à crítica social e governamental ao passo em que propunha um projeto de 197 Idem op cit p 505 Contudo observase que a prática cultural do negro na educação é uma prática que desfaz a lógica dura da racionalidade europeia na construção do conhecimento O que esperar por exemplo de um professor que deixe emergir mais as relações de afetividade no tratamento dos alunos do que a objetividade de seu trabalho como mestre Até que ponto essa representação do negro como professor em Freyre corresponde à leitura de um professor não autoritário e sim a um professor desprendido das obrigações do seu trabalho de ensinar Ainda assim o negro como um indivíduo recriador de práticas educativas é uma leve ponderação que poderia passar despercebida diante de uma maior evidenciação dos outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira que são plasmados como clássicos típicos autênticos na obra CasaGrande e Senzala culinária música sexualidade linguagem folclore 105 sociedade embasado nos ideais marxistas de igualdade e justiça Devido à sua postura de crítica política cinco anos após tornarse professor catedrático da USP ele foi aposentado compulsoriamente pelo regime militar que se instalara no país Regime político do qual se tornaria um dos críticos mais ferrenhos Sua ligação com a perspectiva marxista talvez possa ser considerada também por sua história de vida pois era um intelectual que ascendeu socialmente mas provinha de família humilde possuindo certa experiência enquanto cidadão brasileiro das classes baixas O marxismo lhe cabia bem tanto quanto visão política de mundo quanto como teoria científica que lhe legitimava intelectualmente198 O livro de Fernandes que analisamos é o clássico A integração do Negro na sociedade de classes199 A respeito desta obra o professor Antônio Guimarães explica Escrito originalmente como tese para o concurso de professor titular de sociologia da USP o livro é um ponto de encontro de muitos caminhos teóricos traçados por Florestan Fernandes até aquele ano e de passagem para uma reflexão madura e politicamente mais engajada sobre a sociedade brasileira200 Unindo suas pesquisas à sua militância política de esquerda à sociologia à historiografia de seu tempo Florestan já era em 1964 um intelectual consagrado Seu estudo clássico resultou de uma pesquisa encomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura UNESCO a fim de entender cientificamente o contexto do Brasil enquanto celeiro da democracia racial no 198 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 199 Dividido em dois volumes 1 o legado da raça branca e 2 o limiar de uma nova era A obra A integração do negro na sociedade de classes foi escolhida por conter uma análise social bastante densa e abrangente cujo foco é exclusivamente a presença negra na sociedade brasileira onde o autor assume o caminho da pesquisa historiográfica para construir sua tese de análise das relações raciais no Brasil do período pósabolição Esta obra contém uma análise das considerações que o autor faz a respeito do universo cultural dos negros brasileiros São estas considerações de Florestan Fernandes sobre a cultura afrobrasileira que constituem o foco de nossa análise Para o professor Antônio Guimarães do departamento de Sociologia da USP que prefaciou a 5ª edição da obra em questão existem dois motivos que explicam o sucesso da obra de Florestan Fernandes a atualidade de suas discussões e a sua importância na construção de um campo intelectual disciplinar no Brasil Esses motivos também são considerados nesta dissertação para que se tome A integração do Negro na sociedade de classes como obra de referência a ser analisada De fato sua importância quanto à construção disciplinar metodológica e conceitual foi muito importante no Brasil dos anos 1960 já o argumento de atualidade da obra se torna mais delicado pois há um bom tempo se reconhece às limitações do trabalho de Fernandes para a epistéme científica atual Neste trabalho a atualidade da obra se torna importante enquanto necessidade de rever a noção de cultura afrobrasileira presente na obra 200 GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 9 106 contexto pós Segunda Guerra Mundial e veio a denunciar um contexto brasileiro totalmente oposto ao que se imaginava quanto à igualdade de tratamento entre as diferentes raças constituintes do Brasil Ele chocou o mundo denunciando o caráter omisso e destruidor do racismo à brasileira 201 Ele escrevia num Brasil onde os centros urbanos possuíam grande importância econômica com o crescimento da industrialização e acirramento da ordem competitiva onde o Brasil aprofundava sua inserção na lógica do capitalismo tornandose mais dependente em relação às potencias estrangeiras favorecendo as classes interessadas no desenvolvimento interno202 Nos campos político e cultural havia um fervor de análises e proposições Para além de centros de administração das instancias governamentais do Estado Brasileiro os centros urbanos eram também o espaço de circulação das classes médias intelectualizadas onde se davam os principais debates sobre a moderna república brasileira e a reelaboração de critérios de cidadania nacional numa série de movimentos intelectuais que tentam resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados203 Projetos alternativos inspirados por exemplo na cultura e na experiência 201 Após as duas grandes guerras mundiais que foram alimentadas entre outras razões pela ascensão dos regimes totalitários e pela legitimação das doutrinas raciais e do racismo científico o Brasil se tornou referência mundial de boa convivência entre as diferentes raças em vários aspectos sociais a cordialidade a valorização de diferentes raças e etnias biológicos a composição interétnica das famílias brasileiras e culturais o reconhecimento de matrizes culturais de diferentes raças na composição da cultura brasileira Essa interpretação otimista como vimos foi criada pelo discurso de Gilberto Freyre intelectual brasileiro que tinha grande força no exterior A UNESCO encomendou tal pesquisa a Fernandes a fim de projetar o Brasil para o mundo como exemplo de tolerância às diferenças e harmonização das relações raciais a ser seguido pelo mundo O trabalho de Fernandes no entanto feriu profundamente a premissa que originou a investigação mostrando que o racismo brasileiro era ainda mais violento e omisso do que se imaginava No período de sua pesquisa a UNESCO também publicava a coleção História Geral da África com 8 volumes Esta coleção foi requisitada pelos próprios intelectuais africanos dos países recémcriados durante o processo de descolonização da África Nos países do então terceiro mundo as ciências sociais sobretudo a história foram eleitas como campo legitimador de denuncias políticas econômicas e culturais O colonialismo e o racismo estavam na pauta das denuncias enquanto deveriam ser evidenciadas novas interpretações históricas das experiências vividas pelos povos negros 202 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 p 203 203 A historiadora Lúcia Falcão Barbosa estuda o contexto intelectual do Recife entre o final da década de 1950 e início de 1960 Embora o foco da autora seja o cotidiano e a cosmovisão dos intelectuais sobre a construção da cidadania e da nacionalidade brasileira a partir do Recife parecenos bastante pertinente estender esse raciocínio em nível nacional pois nesse período prégolpe além da perspectiva nacional desenvolvimentista dos anos 50 e o golpe militar de 1964 ano em que a obra A integração do negro na sociedade de classes foi publicada houve uma emersão de intelectuais com perfil esquerdista preocupados em repensar a nação propor um novo projeto de sociedade brasileira e decidir sobre o que a autora chama de resolver a equação incerta da república moderna defender o bem comum numa sociedade cuja prioridade é a realização de interesses privados num tom profético e vanguardista de forte vibração estética e política que inclusive chamou a atenção dos intelectuais do primeiro mundo Esse perfil não difere muito do perfil de Florestan Fernandes como viemos construindo até aqui BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de 107 popular para reformular novos projetos de ação e formação do Estado brasileiro204 Contudo esse fervor foi resfriado pelo golpe militar de 1964 que instaurou uma ditadura Esse contexto contudo não fez os intelectuais silenciarem bruscamente José Carlos Reis afirma que a administração pública dos militares demonstrava uma retórica ineficiente que não conseguia esconder as crises financeiras e os desequilíbrios sociais mesmo em meio a toda censura e política de propaganda Dessa forma os intelectuais se tornavam cada vez mais céticos sobre as possibilidades de soluções nacionais dentro da ordem vigente principalmente quando se tornou mais influente a hegemonia stalinista no Partido Comunista Brasileiro205 A contraproposta de muitos intelectuais naquele momento era a revolução A consciência revolucionária tinha grande projeção no Brasil dos anos 1960 206 onde se vislumbravam em nível internacional as experiências históricas de esquerda como a revolução cubana e o guevarismo além da valorização da historiografia marxista Neste cenário Florestan Fernandes era também um autor que deu importância não só aos conflitos sociais brasileiros com foco nas relações raciais como também aos movimentos sociais negros que até então não tinham ganhado destaque de outro pesquisador Por esse motivo inclusive Fernandes se torna uma referência que legitima parte dos discursos dos movimentos negros numa relação de circulação negociação e apropriação de sentidos e dizeres Sobre a influência da obra A integração do negro na sociedade de classes Guimarães afirma Desde que foi publicado este livro se transformou em manual de formação política de jovens intelectuais de esquerda que ingressavam nas nossas universidades e que iriam nos anos 1970 revitalizar o movimento social negro e de redemocratização política207 Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 204 FREIRE Paulo Educação e atualidade brasileira São Paulo Cortez Instituto Paulo Freire 2002 205 BARBOSA Lúcia Falcão Idem Idem op cit p 35 206 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro Editora FGV 1999 p 183 207 GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 19 108 Fernandes se propôs a evidenciar de forma crítica a figura do cidadão negro no Brasil situandoos no curso dos conflitos que formam e reformam o Estado e a nacionalidade brasileira o cotidiano e as relações interpessoais e institucionais Destarte a obra assume uma proposta que é de se estudar a sociologia e a história para que se possa refletir criticamente e posicionarse politicamente diante das interpretações falaciosas que defendem a ideia de harmonia integração e igualdade nas vivências cotidianas de nossas relações raciais Portanto o foco é a denúncia do mito da democracia racial um slogan carregado de ideologia política de manutenção de uma ordem classista e branca É justamente essa proposta interpretativa e ativista que será apropriada pelo Movimento Negro no Brasil no final dos anos 1970208 Para Fernandes o que considerava como o mito da democracia racial era uma ideologia dominante que consistia em tornar o que eram desigualdades embasadas no critério raça tão próprias da ordem racial escravocrata como desigualdades de classes sociais dentro da lógica da ordem competitiva tão própria do capitalismo industrial Isso consistia numa manipulação ideológica num erro conceitual Para o autor os negros estariam excluídos das esferas do poder no espaço público não só por serem pobres mas também por serem negros Aliás os pobres ele constatou através de estatísticas presentes no seu livro são negros em maioria quantitativa E são pobres por várias explicações históricas porque foram escravos por que foram libertados e não receberam apoio do Estado Brasileiro para dignificarem suas vidas porque tinha dificuldades de serem aceitos como trabalhadores livres já que competiam com os imigrantes europeus e porque enfrentavam o racismo no cotidiano do trabalho livre e assalariado Dessa maneira a condição dos negros no Brasil não se explicava só por critérios de classes sociais mas a localização numa classe social menos abastada era justificada pelo pertencimento a uma raça específica ou seja o tempo todo ao longo da história do Brasil os negros são empurrados para a pobreza No Brasil a condição de raça precederia a condição de classe Para Fernandes a passagem da sociedade escravista para a de ordem competitiva foi marcada por mais uma quebra da ordem democrática A crítica do autor é direcionada a uma burguesia branca que não reconhece 208 Contudo como já foi adiantado no capítulo anterior após as calorosas divergências entre culturalistas e políticos dentro do MNU a postura que foi predominante adotada posteriormente foi uma seleção de temas e argumentos presentes na tese de Fernandes Se os militantes abraçaram a denúncia científica do racismo enquanto forma de pensamento predominante no Brasil não o fizeram quanto à discussão política de Fernandes referentes à cultura afrobrasileira Veremos logo mais o porquê disto 109 a diferença racial a não ser quando é de seu interesse e que é contrária aos movimentos sociais negros Do ponto de vista metodológico Fernandes investiga como a ordem social dialoga com a ordem econômica ao longo do tempo onde se observava a permanência de um jogo de reprodução ideológica e política que evidenciava a historicidade das contradições contemporâneas da sociedade brasileira que ele mesmo caracteriza como racista Esse método de investigação conhecido depois como históricoestrutural foi o que marcou o perfil do que foi chamado posteriormente de escola paulista de sociologia209 Em A integração do Negro na sociedade de classes ele busca construir uma metodologia de ciência experimental que comprove sua narrativa histórica através da análise de vasta documentação histórica e dados estatísticos de entrevistas conversas em grupo e de levantamento bibliográfico sobre o tema Ele adotou uma técnica explicativa a que chamou de reiterativa pois almejava reiterar reconstruir em sua totalidade a realidade da sociedade da qual falava É nesse sentido também que o autor se localiza estrategicamente no seu texto como um cientista preocupado com a permanência do racismo numa sociedade que se modernizava De acordo com o autor Em sentido literal a análise desenvolvida é um estudo de como o Povo emerge na história Tratase de um assunto inexplorado ou mal explorado pelos cientistas sociais brasileiros E nos aventuramos a ele por intermédio do negro e do mulato porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil210 O autor queria entender como é que os exescravos conseguiriam se adaptar a um novo status no contexto republicano onde seriam cidadãos numa sociedade assumidamente hierarquizada Para isso embora seguisse uma forte inclinação marxista o autor buscava articular também a teoria estruturalfuncionalista da sociologia e psicologia social usando os conceitos de dinâmica social Mannheim de anomia 209 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 210 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 21 110 Durkheim e a dialética de Marx211 Seu desejo era que suas análises permitissem o conhecimento aspectos psicodinâmicos e sóciodinâmicos de mobilização dos homens pobres para ingressar na ordem competitiva Mas a leitura da obra nos faz perceber uma questão interessante Embora o autor busque a cientificidade para legitimar os seus argumentos sobre o racismo na sociedade brasileira como um homem de seu tempo numa sociedade que reinventa as diversas formas e práticas de racismo ele mesmo imerso numa ideologia que discrimina o lugar do negro acaba por depreciar e destituílo de inteligência e ação política pois o autor parte de estereótipos negativos acerca do negro e sua cultura A esse respeito o historiador George Andrews afirma que indubitavelmente existe nos argumentos de Florestan Fernandes algo de senso comum da sua época que sugere a culpabilização da vítima212 Em Fernandes o perfil do personagem negro já aparece liberto no período pós abolição sendo destituído de inteligência e autonomia Incapaz de lidar ou administrar o seu próprio destino O liberto se viu convertido sumária e abruptamente em senhor de si mesmo tornandose responsável por seus dependentes embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva 213 O cenário em que esse personagem negro aparece é o mesmo cenário do autor o cenário urbano a cidade de São Paulo que aparecia como o primeiro centro urbano especificamente burguês 214 Um cenário onde desde o final do século XIX com o projeto de branqueamento social no Brasil e a vinda de imigrantes europeus para concretizar esse objetivo os negros eram excluídos das novas possibilidades do mercado de trabalho que era ocupado pelos novos brancos do país Já em 1893 ele constata conforme o censo que 72 dos trabalhadores da cidade de São Paulo eram 211 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 212 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 É nesse sentido que Said afirma categoricamente que não existe imparcialidade dos cientistas quando selecionam seus temas de estudo Os intelectuais partem de estereótipos construídos em torno de seus objetos para poder analisálos Quando se trata de estudos voltados a analisar identidades sociais fica evidente a associação existente entre ciência e política em que as práticas de uma servem para legitimar as práticas da outra Mesmo almejando construir um estudo crítico que servisse de fomento à libertação do negro inconscientemente o estudo de Fernandes atualizava e legitimava discursivamente as hierarquias sociais e garantia o status quo de uma sociedade de privilégios para os cidadãos nãonegros Este aspecto desenvolvese sobretudo quando o autor opõe participação política e práticas culturais negras SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 213 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 29 214 Idem op cit p 34 111 estrangeiros Por conseguinte o negro fora empurrado para as tarefas mais desprestigiadas e mal pagas no Brasil Desenvolvendo o seu argumento o sociólogo pondera que em termos de ocupação da estrutura sociopolítica e econômica do Brasil os brancos brasileiros ocupavam lugar de centralidade na vida política e intelectual do país ao passo que os brancos estrangeiros imigrantes exerceriam funções técnicas e de prestação de serviços em outros setores econômicos em posições estratégicas sempre tendo a possibilidade de riquezas prestígio e poder enquanto os negros e mulatos estariam nos piores lugares de trabalho Os negros estariam presos a um lugar do qual não conseguiriam alcançar a mobilidade social e essa condição lhes gerou uma angústia e um desespero que apenas lhes deixaram poucas escolhas Sobre isso afirma o autor Diante do negro e do mulato se abrem duas escolhas irremediáveis sem alternativas Vedado o caminho de classificação econômica e social pela proletarização restava lhes aceitar a incorporação gradual à escória do operariado urbano em crescimento ou abater penosamente procurando no ócio dissimulado na vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita meios para salvar as aparências e a dignidade de homem livre215 Aqui o autor começa a articular o ócio a vagabundagem e a criminalidade à situação de pobreza da população negra como possibilidades incertas de reconstruir a própria dignidade É sob o teto destes três princípios que se efetivará a cultura afro brasileira a festa a música a dança a bebida etc são associados aos momentos de lazer dos cidadãos negros que não têm o que fazer Àqueles que não optam pelo crime optam pela cultura como válvula de escape Neste sentido mesmo criticando a ordem produtiva capitalista Fernandes reafirma através de palavras carregadas de valores moralistas o princípio do trabalho e da produção Não trabalhar é ser ocioso e vagabundo Típico argumento burguês O autor chega a indicar que uma parte significativa desta exclusão do negro ao mercado de trabalho na ordem competitiva se devia também ao próprio negro ou melhor às deficiências do negro A recusa de certas tarefas e serviços a inconstância na freqüência ao trabalho o fascínio por ocupações real ou 215 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 44 Grifos nossos 112 aparentemente nobilitantes a tendência a alternar períodos de trabalho regular com fases mais ou menos longas de ócio a indisciplina agressiva contra o controle direto e a supervisão organizada a ausência de incentivos para competir individualmente com os colegas e para fazer do trabalho assalariado uma fonte de independência econômica essas e outras deficiências do negro e do mulato se entrosavam à complexa situação humana com que se defrontavam no regime de trabalho livre Nesta linha de raciocínio Florestan Fernandes vai tecendo um perfil do negro brasileiro após a abolição alienado rústico hostil atrasado vadio explorado ocioso viciado imoral É um trabalhador livre sem cidadania plena Alguém que porta uma cultura de ócio e alienação com a qual não consegue adaptarse bem à ordem competitiva Suas heranças culturais de rebeldia e fluidez para o trabalho proveniente de sua situação no sistema escravista não permitem que ele se torne um bom trabalhador livre que adquira uma mentalidade e os comportamentos requeridos pelo novo estilo de vida burguês que surgia em São Paulo Por isso é que o negro não seria bem aceito no mercado de trabalho tornandose excluído e enquanto excluído ele se tornara um viciado um imoral um criminoso num eterno ciclo de vitimização e culpa Por trás dessa concepção Fernandes está reafirmando a noção de que a cultura afrobrasileira é atrasada Quando pensa a história do Brasil Fernandes considera as elites brancas os fazendeiros comerciantes e imigrantes brancos como sujeitos históricos tomando os negros apenas como seres sujeitados alguém a quem não foi dada condições de ser ativo na construção da história216 Seu argumento é que com o advento da república e o crescimento acelerado dos centros urbanos as instituições foram reformadas e adaptadas ao trabalho livre e às leis do mercado dentro de uma lógica que beneficiava as elites e a empresa agrária preservando visões de mundo estilos de vida e propriedade patrimonial fortemente enraizada no perfil de uma sociedade colonial de estamentos Neste sentido os negros não teriam chances de ascender socialmente Para eles na quase totalidade a sociedade de classe permanecia não igualitária e fechada217 216 Florestan Fernandes desconsidera a participação de negros no próprio processo abolicionista Para ele os negros estavam tão confinados à exclusão social que não conseguiam intervir em relações políticas sejam quais fossem 217 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 62 Grifos do autor 113 Refletindo sobre o contexto de produção de Florestan Fernandes o historiador Robert Slenes218 no momento em que a industrialização brasileira crescia e o país desejava maior autonomia nos centros econômicos e políticos hegemônicos como forma de modernização do Estado era importante denunciar a submissão de um país ao outro de uma categoria social a outra Contudo a perspectiva marxista intensificou seu olhar sobre o escravismo numa perspectiva de total vitimização marginalização e destituição de suas potências criativas por um sistema econômico violento e traumático De acordo com Fernandes O trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de partida o esforço físico constrangido não educará o indivíduo não o preparará para um plano de vida humana mais elevado Não lhe acrescentará elementos morais e pelo contrário degradáloá eliminando mesmo nele o conteúdo cultural que por ventura tivesse trazido do seu estado primitivo Em síntese a escola da escravidão não formou apenas o agente do trabalho escravo deformouo219 Essa declaração parecenos bastante emblemática por uma série de significações que podemos analisar Em uma primeira inferência se percebe o quanto para o autor a instituição da escravidão deteriorou a humanidade dos negros deformandoo imoralizandoo consumindoo por dentro Ela não permite que o escravo saia de seu estado cultural primitivo como ele bem expressa selvagem atrasado para alcançar um plano de vida mais elevado mais consciente culto e digno dentro dos parâmetros ocidentais ao qual o autor se vincula Nesta lógica argumentativa a escravidão corrompera o acervo cultural africano de uma forma tão profunda e duradoura que esse impacto se estendera para a vida cotidiana dos negros livres O negro é mais uma vez caracterizado por um déficit pela falta Falta de liberdade de inteligência de cultura de poder político etc Ele não participara de forma ativa consciente politizada nem da abolição da escravatura nem da revolução burguesa Para Slenes a grande autoridade intelectual nesse campo discursivo de explicação marxista foi de fato Florestan Fernandes um autor para quem os negros estavam destituídos de seu acervo cultural Ele ainda situa os negros em condições sociais anômicas perdidos uns para com os outros desprovidos de laços de interdependência responsabilidade e 218 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 219 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 68 114 solidariedade portanto sem possuir uma vontade política comum Seria por esses motivos que para Fernandes os negros não tiveram um papel importante na dita Revolução Burguesa do Brasil Os negros são citados como incapazes não inteligentes desanimados como se sofressem de um banzo eterno onde sua cultura foi destruída Essa é uma das implicações políticas da representação do negro e sua cultura na narrativa histórica de Florestan Fernandes desqualificar os negros enquanto agentes históricos apagálos da participação política na construção do país Não porque o autor desejasse conscientemente fazer isso mas por discriminálo como alguém incapaz de estar nessa participação por sua condição carente e traumática Essa visão da Escola Sociológica Paulista embora buscando legitimidade cada vez mais na sua base científica continuava marcada por estereótipos racistas220 Ora para Fernandes se é que havia alguma cultura negra no pósabolição alguma tradição africana que houvesse conseguido sobreviver às intempéries da vida no cativeiro haveria de ser uma cultura tão empobrecida tão embrutecida tão desorganizada alienada e fragmentária que não possuiria uma lógica própria Sob a aparência da liberdade os negros e mulatos herdaram a pior servidão que é a do homem que se considera livre entregue de mãos atadas à ignorância à miséria à degradação social Perdidos uns para com os outros no estreito e sombrio mundo social que puderam recriar para si sob a escravidão não compartilhavam dos laços de interdependência de responsabilidade e de solidariedade que integram fortemente os homens nos pequenos ou nos grandes agrupamentos sociais221 A cultura negra seria mísera e desarticulada Ela não aglutinaria os membros de uma comunidade ou agrupamento social negro Ela não seria um instrumento de integração e vontade política Para o autor quando a escravidão foi abolida os negros sabiam que não queriam mais continuar sendo tratado como escravos mas não sabiam o que fazer para evitar isso Carentes de reflexão inteligência senso crítico e vontade política carentes de um sistema linguístico afetivo solidário e de significação do mundo A cultura negra aparece na narrativa de forma indireta apenas como práticas lúdicas ou vícios imoralidades alienação através das quais os negros continuam se 220 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 221 FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 76 115 perdendo na história política para entrar nos apêndices de histórias da cultura brasileira de forma pitoresca como um estrangeiro na própria terra que é lembrado de forma espetacularizada através de fragmentos coloridos de um folclore estereotipado No Brasil que se modernizava a partir dos centros urbanos alçandose ao status de civilização e progresso só cabia a exclusão e a invisibilidade à cultura afro brasileira pois esta estaria no rol da cultura popular das práticas de tradição das possíveis marcas de uma ruralidade de um passado colonial rústico primitivo inculto pueril Foi nesse campo de significação que para Fernandes as práticas culturais dos negros foram expurgadas dos centros urbanos ditos civilizados Motivo de retrocesso e vergonha para o estilo de vida burguês a cultura afrobrasileira teria sido empurrada para as periferias das cidades e para o interior dos estados brasileiros onde teriam sido invisibilizadas Assim a modernização do espaço urbano não favoreceu a persistência da cultura negra que poderia servir como meio de associativismo negro Embrutecidos e perdidos uns para com os outros os negros e mulatos não perpetuavam cultura Ao contrário perdiamna Até neste sentido o sujeito histórico da narrativa é o homem branco É ele quem faz tudo ocupa lugar de poder exerce maior saber possui cultura mais elevada organizada e intencional É o branco quem inclusive destrói a cultura negra no raciocínio de Fernandes O exemplo dado pelo autor é o do nascimento da macumba uma prática religiosa descaracterizada e ridicularizada pela ação do branco A macumba seria uma prática religiosa brasileira e não africana porque inclusive perdera a pureza das tradições africanas222 Isso só foi possível porque os negros não conseguiram se organizar para protegerse e proteger sua cultura Não possuindo autonomia social para se associar através de valores culturais próprios de cunho autenticamente sagrado e tradicional a população negra perdeu a possibilidade de zelar pela pureza de seus cultos e acabou assistindo à perversão da macumba pelo branco223 222 Neste sentido como vimos Florestan reforça por outros caminhos interpretativos o argumento de Nina Rodrigues de que a pureza das práticas religiosas africanas foi corrompida pelas interações religiosas com outras matrizes étnicas No entanto vale ressaltar este não é o único ponto em que Fernandes reforça os estereótipos desclassificatórios de Nina Rodrigues pois ambos caracterizam a cultura afrobrasileira como atrasada rustica primitiva folclórica 223 FERNANDES Idem op cit p 86 Destaques do autor 116 Dessa maneira o negro entrega passivamente a sua cultura à ação deteriorante do branco Isso ocasionou a perda de oportunidades de congregação e reorganização social e política o apagamento dessa memória cultural rústica do centro urbano o isolamento econômico social e cultural do negro Esse homem negro esse homem rústico é projetado visivelmente na descrição de Fernandes como um ser caipira analfabeto mal vestido desprotegido paupérrimo Uma pessoa que se entrega à ociosidade à vadiagem à imoralidade e à desmoralização Que segundo o estereótipo racista do branco e aqui o autor busca afastarse discursivamente dessa concepção são desclassificadas como vagabundos cachaceiros desordeiros e mulheres àtoa Seres que através de suas bebidas festas danças vestimentas e aglomerações etc224 perturbavam e ameaçavam o decoro a propriedade e a segurança dos burgueses Talvez esses valores invertidos é que tenham aglutinado os negros A cultura negra recebe o rótulo de cultura popular e passa a ser evidenciada de forma a recriar espetáculos que não resolvem o problema da exclusão social do negro mas apenas o aprofundam225 Os estudiosos Peter Fry e Carlos Vogt226 chamam esta fase dos estudos afro brasileiros na qual Florestan Fernandes se enquadra de fase sociológica Nela já não mais interessa entender se o Brasil está no mesmo compasso ou não em relação às outras nações e sim a dialética entre universal e o particular em que se poderiam trilhar os caminhos para os países subdesenvolvidos A tônica agora seria estruturar as classes sociais no Brasil considerando a história particular dos negros como escravos e depois como trabalhadores livres marcados no país pelo sistema de preconceito de cor Ao romantismo da fase precedente substituise então um realismo de inspiração sociológica de fundo social e de aspiração socialista227 Atualmente as pesquisas em diversas ciências sociais assim como o desenvolvimento dos movimentos negros também já mostraram que várias teses 224 O autor não cita objetivamente as práticas culturais típicas dos negros assim como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre mas de forma indireta ele nos propõe inferências que indicam onde ele localiza a cultura afrobrasileira a música as festas as danças etc Nesse sentido ele não se afasta dos autores já analisados neste trabalho apenas indica os mesmos lugares da cultura as mesmas práticas mas agora atribuindo lhes um sentido de lástima pela perda política e exclusão social do negro Como uma camisa de força essa cultura prende negros e mulatos deteriorandoos à medida em que também se deteriora 225 Nesse ponto Fernandes faz uma crítica contundente aos cientistas sociais africanistas que se apoiando em referenciais como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre por exemplo realizavam esse tipo de abordagem folclorista e espetacularizada e relegavam à crítica à exclusão social do negro 226 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 227 Idem op cit p 35 117 defendidas no livro de Fernandes são controversas228 Na leitura feita percebemos que o autor analisa e julga o passado dos negros por um olhar ainda branco ou seja um olhar que não entende a lógica própria do universo cultural negro porque quer entender as macroestruturas sociais políticas e econômicas Desta forma seu livro clássico apela para uma interpretação pessimista quanto à identidade cultural negra Uma interpretação que desperta rancor pela exclusão social do negro ao passo que o evidencia como um incapaz legitimando um enredo trágico de uma revolução burguesa inacabada e de uma proletarização sem virtudes 229 É por isso que o MNU não toma a tese de Fernandes como legítima quando o movimento quer construir teoricamente o conceito de cultura afrobrasileira num primeiro momento enquanto crítica a permanência do racismo do branco em relação ao negro perpetuado pelo Estado brasileiro a obra parece ser conveniente mas quando passa a estabelecer e não compreender um perfil mental negro uma desclassificação valorativa e conceitual da cultura afrobrasileira Fernandes é julgado pelo MNU como um autor estrangeiro Tratase de um branco falando da cultura negra por uma ótica externa Seria um branco que faz parte ainda de um problema epistêmico e não da solução Como vimos no capítulo anterior em vários documentos o MNU brasileiro ponderou que não era a favor de uma segregação racial entre negros e brancos Os cidadãos não negros que desejassem criar caminhos para a reconstrução de uma tão sonhada democracia do Estado brasileiro seriam bem aceitos tanto é que como veremos no capítulo a seguir intelectuais brancos foram grandes parceiros do MNU na reconstrução epistêmica não só do conceito de cultura afrobrasileira como na elaboração e efetivação de propostas oficiais de reparação do governo brasileiro perante a população negra Porém isso não foi possível ainda com Florestan Fernandes uma vez que as lentes deste autor não permitiam compreender de forma mais profunda a mentalidade a experiência e a cultura afrobrasileira Seus referenciais teóricos só lhes possibilitaram chegar até determinados caminhos da análise social Não era aquela noção que o MNU queria associada a sua identidade aquela noção que trata o negro 228 O autor esteve sensível a este ponto de fragilidade de sua obra inclusive pelas condições de produção da investigação e produção textual em que esteve inserido A esse respeito ele assume que Esse desequilíbrio inesperado na realização do programa de trabalho que nos havíamos imposto faz com que esse estudo contenha provavelmente lacunas e defeitos que poderiam ser eliminados em outras circunstâncias FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 21 229 GUIMARÃES GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Prefácio à 5ª edição de FERNANDES Florestan A integração do Negro na sociedade de classes o legado da raça branca Vol 1 São Paulo Globo 2008 p 13 118 como coitadinho não só pelo seu passado mas também pela sua condição presente e talvez ainda futura por muito tempo de irracionalidade e impotência política Não foi objetivo neste capítulo discutir todos os intelectuais que neste vasto recorte temporal falaram da cultura afrobrasileira Escolhemos aqui como já dissemos na introdução os intelectuais que inauguraram paradigmas interpretativos da cultura afrobrasileira Vários outros autores que escreveram neste intervalo de tempo e até alguns que estudam ainda hoje se apoiam teoricamente nas noções de cultura afro brasileira forjadas por esses intelectuais de referência Como vimos embora tenham surgidos caminhos teóricometodológicos distintos o ponto de partida e chegada dessas interpretações são as mesmas incompreensões os mesmos estereótipos a irracionalidade folclórica a pobreza conceitual a impotência política a inferioridade vitimização e culpabilidade da própria cultura afrobrasileira que é sempre selecionada organizada descrita analisada e desclassificada pelo olhar externo ao negro o olhar estrangeiro embranquecido no sentido de ocidentalizado modernizado e cristianizado que não consegue perceber a existência de outros sentidos e possibilidades de organização ação e existência Ora se era contra essa tradição de pensamento que vinha se opor o MNU a partir dos anos 197080 que outro projeto poderia ser proposto para reconfigurar essa episteme não só da afrodescendência mas também do Estado brasileiro frente à reorganização do nacional No próximo capítulo analisaremos os conteúdos e formas equacionadas para dar conta desse propósito Encontraremos discursividades em movimento elencando não só palavras mas sons gestos e cores numa profusão de princípios éticos e estéticos políticos e culturais onde intelectuais de vários lugares sociais contribuem para a construção de um projeto maior 119 CAPÍTULO 3 A CULTURA AFROBRASILIERA VISTA POR DENTRO A HISTORIOGRAFIA O ENSINO DE HISTÓRIA E O NOVO COMPROMISSO POLÍTICO DO ESTADO BRASILEIRO 120 Unidos e organizados porém farão de sua debilidade força transformadora com que poderão recriar o mundo tornandoo mais humano230 Novas discursividades na construção do conceito de cultura afrobrasileira a narrativa histórica como instrumento assumidamente político Março de 1978 Voltamos ao contexto da Ditadura Militar no Brasil Um grupo de jornalistas chega à região de Sorocaba no interior de São Paulo no bairro rural do Cafundó A comunidade era composta de negros descendentes de exescravos Os jornalistas lançavam por si só um olhar de admiração e exotismo por aqueles que pareciam estrangeiros embora fossem brasileiros Na mídia os moradores do Cafundó eram apresentados na mídia como africanos descendentes de africanos exescravos que guardavam uma língua estranha herdada da África e da escravidão Entre admirações e repulsas a inquietação e debates ferrenhos Foi a inquietação curiosa acerca da ênfase na defesa de uma pureza de tradições africanas no Brasil que despertou o interesse de vários investigadores muitos dos quais foram à comunidade Entre os intelectuais que queriam comprovar de fato a existência de uma língua africana pura e os que duvidavam da existência dessa língua havia um pressuposto comum a de que o capitalismo desenraiza todas as culturas que não condizem com sua lógica de desenvolvimento Assim a pureza cultural do Cafundó não era possível numa sociedade capitalista a não ser que estivesse extremamente isolada desta Essa argumentação como vimos foi elaborada por Florestan Fernandes nos anos 1960 O que este micro acontecimento tem a ver com a Ditadura Militar especificamente Ora já se sabe que o golpe de 1964 consolidouse no poder esmagando as guerrilhas urbanas através de suas forças de repressão No entanto outro aspecto que deve ser ressaltado é que os modelos explicativos universais começam a ser questionados tanto o humanismo de direita ou o liberalismo quanto o humanismo de esquerda ou o comunismo Justamente nas entrelinhas do universalismo reaparecem as preocupações com o indivíduo com os micros universos com os pequenos grupos e categorias sociais as chamadas minorias231 No compasso de todos esses eventos a 230 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 p 165 231 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 36 121 ciência e a cultura brasileira passaram por um fenômeno mais amplo de reconhecimento e valorização dos conteúdos formas e experiências que parecessem alternativos232 Embora fosse um período de censura e repressão surgiram no Brasil alguns movimentos sociais a exemplo do Movimento Negro Unificado MNU que foi fundado na cidade de São Paulo em 07 de julho de 1978 três meses após a descoberta do Cafundó pela mídia A repercussão de Cafundó fez emergir vários sujeitos grupos e instituições com propósitos bem diferentes Na PUC São Paulo Abdias do Nascimento233 lança o Instituto de Pesquisa e Estudos AfroBrasileiros Ipeafro e incluiu o Cafundó no seu projeto de pesquisa sobre os Quilombos Contemporâneos Segundo Fry e Vogt também o Clube 28 de setembro234 o MNU os pesquisadores os jornalistas e os advogados voltados à causa negra buscavam não só prestar assistência ao Cafundó mas também a partir dessa assistência se auto fortalecerem social e politicamente com base no espírito assistencial de suas ações Esse fato revelou diversas disputas políticas tanto entre alguns movimentos sociais como também diversas políticas teóricas entre diversos intelectuais na academia Foi durante o período da Ditadura CivilMilitar que os pesquisadores Carlos Vogt e Peter Fry conheceram a comunidade rural de Cafundó com a qual desenvolveram uma investigação de cerca de dez anos 1978 a 1988 Além deles também participaram dessa pesquisa o linguista Maurício Gnerre e o historiador Robert Slenes Estes pesquisadores reconhecem a força e a legitimidade dos movimentos negros a exemplo de outros movimentos sociais nos ganhos políticos para as categorias as quais representam Para eles os ganhos políticos na legislação brasileira devemse aos movimentos presentes no cenário nacional que manifestam enfaticamente o ponto de vista teórico ideológico e militante de intelectuais e de organizações na defesa da etnicidade como um valor de si mesmo235 Desta maneira consideraram legítimo a aproximação com o nascente MNU 232 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 233 Como vimos no capítulo 1 Abdias do Nascimento foi um dos principais líderes do Teatro Experimental Negro TEN Além de escritor e dramaturgo Abdias foi também Professor Enquanto um dos principais militantes negros do século XX agia nos campos intelectuais e políticos do MNU em nível nacional chegando a ser parlamentar 234 Associação Negra existente em São Paulo nos período da pesquisa 235 Esta perspectiva aproximase da caracterização dos movimentos sociais no Brasil do século XX feita pelo sociólogo Arim Soares do Bem para quem a importância histórica desses movimentos consiste não somente no fato de que eles revelam tensões e conflitos sociais mas também no fato de que as categorias reivindicatórias de direitos também elaboram propostas de soluções possíveis para o que exigem buscando a institucionalização jurídicolegal das conquistas ampliando e universalizando o campo formal do direito para todo conjunto da sociedade criando novos contextos históricos BEM Arim Soares do A 122 Num e noutro caso obedecíamos ao mesmo impulso ideológico a crença de que o Cafundó era um símbolo de resistência negra cujo alcance político ainda que legitimasse nosso trabalho acadêmico o ultrapassava Era inconcebível para nós brancos que somos que esse símbolo não fosse incorporado na luta mais ampla dos movimentos negros236 Os autores em questão explicam que assumiram um compromisso político para com a comunidade a fim de que sua pesquisa não trouxesse benefícios apenas para eles mesmos enquanto intelectuais mas também para os próprios moradores do Cafundó enquanto sujeitos participantes do estudo A pesquisa em história se propôs a investigar e contribuir para a confirmação da posse da terra da comunidade que naquele momento era uma afirmação bastante contestada Após o denso trabalho cruzando depoimentos orais com inventários e testamentos nos cartórios do interior de São Paulo foi constatada a real posse de oitenta alqueires das terras do Cafundó pelos seus habitantes descendentes de exescravos que haviam recebido a terra como herança de seus senhores Intelectuais e representantes da comunidade do Cafundó conseguiram pressionar o governo ao ponto de garantir o reconhecimento a relegalização de suas terras A história rendeu tantos debates e reportagens que pressionou o reconhecimento público do Estado brasileiro para com a diversidade étnica que o compõe em suas especificidades e o compromisso em garantir os direitos básicos para a autogestão de uma vida digna no grupo Em 1990 ocorreu o tombamento do Cafundó enquanto comunidade negra com posse legal das terras momento em que também essa comunidade foi consagrada como símbolo para as lutas do MNU Neste sentido a ação desses diversos sujeitos e instituições possibilitaram através da participação da comunidade do Cafundó um ganho político para essa mesma comunidade O que mais nos importa desta história é o fato de que nesse contexto de múltiplos interesses e significações Peter Fry Carlos Vot Robert Slenes e Maurício Gnerre se posicionam política e intelectualmente quanto à tradição acadêmica de pensamento que havia se estabelecido sobre a cultura afrobrasilera Estes intelectuais propuseram a revisão do conceito de cultura afrobrasileira criticando sua historicidade centralidade dos movimentos sociais na articulação entre Estado e a sociedade brasileira nos séculos XIX e XX Disponível em wwwcedesunicampbr Acesso em 10062010 236 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 18 123 revelando novas experiências históricas onde essa cultura possa ser evidenciada de forma diferente Promoviase uma série de esforços intelectuais para compreender de forma mais interna e profunda os significantes e significados que criam e recriam a lógica dessa complexa cultura afrobrasileira Para isso os autores propõem não só a crítica dos referenciais antigos como também a seleção de novos referencias nos campos da antropologia da linguística e da história De que forma isto assume a forma de narrativa histórica Veremos a seguir através da análise do livro Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade237 1 Peter Fry e Carlos Vogt a dinâmica cultural e a cultura afrobrasileira repensada Fry e Vogt assim como seus colaboradores assumem posturas intelectuais mais transparentes frente a sua proposta de trabalho ao tema aos sujeitos participantes à academia e à sociedade brasileira Discursivamente eles se localizam estrategicamente numa fase de transição epistemológica e política onde não só o Estado deve ser repensando como também a ciência e as identidades sociais e culturais Dessa forma eles assumem uma parcialidade em favor da história negra ao passo que se colocam dentro da experiência estudada e não fora como os intelectuais que vínhamos estudando até aqui De acordo com os autores O relato que aqui será feito é o de um narrador cientista que interessado em relativizar o comportamento do outro se descobre ele próprio relativizado diante desse comportamento Um relato cujo narrador em terceira pessoa dá lugar a um narrador em primeira pessoa isto é a um narrador personagem238 A experiência investigativa pela qual passaram os fez revisitar os estudos canônicos feitos até aquele momento sobre a cultura afrobrasileira Dessa maneira os autores pontuam duas tradições de abordagem científica dos africanismos reinventados 237 Esse livro foi escolhido pelo fato de inaugurar uma nova perspectiva de se entender a cultura afro brasileira através do paradigma que os autores chamam de históricoestrutural em que como o próprio termo sugere a dimensão histórica ocupa um lugar privilegiado para se entender a cultura Foi esse livro também que possibilitou à historiografia da escravidão no Brasil dar saltos qualitativos na sua produção investigativa sobre os complexos processos de formação da cultura afrobrasileira 238 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996p 20 124 no Brasil que merecem destaque a primeira seria a filológica ou historicizante e a segunda seria a históricoestrutural A primeira se preocupa em evidenciar as origens continuidades e similaridades entre práticas culturais no Brasil e na África E têm uma perspectiva folclorista que promove uma espécie de genealogia cultural evidenciando aspectos da cultura africana no Brasil que os próprios brasileiros não têm consciência Nesse sentido a cultura afrobrasileira emerge como pitoresca e cristalizada desconsiderando o dinamismo dos processos históricos que fazem com que os traços sociais e culturais acabem sobrevivendo e sendo readaptados mudando de sentidos e significações A cultura afrobrasileira seria atemporal cristalizada mera reprodução mecânica de atividades exóticas Os sujeitos que a fazem seriam destituídos de inteligência e criatividade pois apenas reproduzem mecanicamente as atividades herdadas dos seus antepassados sem adequálas aos novos contextos Nina Rodrigues e Gilberto Freyre são exemplos dessa abordagem filológica e folclorista que consistia num método comparativo entre Brasil e África privilegiando as línguas religião e folclore Tal abordagem corresponde à fase de estudos afrobrasileiros a que Fry e Vogt chamam de romântica A segunda perspectiva a históricoestrutural na qual os autores se inserem considera que a vida social não incide em combates campais entre culturas opressoras e culturas que romanticamente resistem mas entre grupos categorias e sujeitos para quem a cultura orienta a ação política e é ao mesmo tempo uma arma usada para empreendêla Aqui os autores estão pensando a política no plano micro como relações de poder que se estabelecem no cotidiano Nessas pequenas e grandes batalhas do diaa dia a cultura vive e revive através daqueles que a usam transformandoos e transformandose É desse ponto de vista que eles estudam a língua africana do Cafundó enquanto prática cultural viva dinâmica ressignificada e ressignificante e como ação política Essa linguagem específica é entendida como eixo estruturador da vida em sociedade cujo significado político e social é dado pelo contexto das relações onde tem existência Temos portanto uma abordagem lingüísticoantropológica O grande debate sobre reprodução versus transformação cultural agora passa a ser abordado à luz de um estudo das relações sociais concretas nas quais esses traços culturais se articulam Privilegia a natureza política e econômica das relações entre os articuladores dos africanismos e a sociedade envolvente Pensase a cultura afro brasileira apontandoa em várias direções Esses autores estão nas décadas de 70 e 80 propondo um novo paradigma interpretativo para a cultura afrobrasileira 125 A primeira perspectiva pontuada referenda a desqualificação e exclusão dos negros na história e cultura nacional a segunda propõe uma compensação da cidadania negra através de novos mecanismos de análise e conhecimento em que a cultura consiste um campo privilegiado da ação política Na pesquisa em questão essa lógica da compensação é percebida no interior das relações sociais da prática cultural da Cupópia ou Falange nomes que designam a língua falada no Cafundó assim os autores comentam Tudo se passa como se por uma espécie de mecanismo compensatório fosse criado um espaço mítico no interior da situação de degradação econômica e social característica da história das populações negras do Brasil espaço no qual seria possível uma como que renovação ritual de certa identidade perdida239 Este fato remodela as relações sociais dentro do grupo e deste com o conjunto da sociedade Tal perspectiva analítica possibilita compreender como a sobrevivência de certos traços culturais de origem africana até o presente se tornam um elemento compensatório um importante eixo estruturador da construção de identidades e relações sociais numa sociedade marcada pela exclusão do negro Do ponto de vista metodológico a pesquisa foi iniciada com o recolhimento de relatos orais onde foi dada grande importância à memória dos cafundoenses Após verificarem que existiam vários pontos convergentes e outros divergentes nas narrativas sobre a origem da comunidade os pesquisadores partiram para os arquivos e cartórios da região Através de um rigoroso levantamento de fontes dados e cruzamentos de informações através de documentos legais como mapas e inventários constataram a propriedade de terras da comunidade para os escravos e seus descendentes como marco de origem da comunidade e de suas relações sociais e culturais Constataram também vários processos de grilagem dessas mesmas terras pelos fazendeiros vizinhos Um processo violento marcado por brigas e mortes Para os autores as representações presentes nos relatos dos informantes embora sugestivas não mereciam muita confiança em consequência da ausência de dados complementares de outras fontes Neste sentido as outras fontes buscadas permitiram a reconstituição da história da comunidade desde o século XVIII Os autores procuraram 239 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 26 126 situar esses aspectos de experiência histórica da comunidade do Cafundó dentro do cotidiano da escravidão especificamente no interior de uma política de domínio senhorial amplamente difundida na região muitos senhores daquela região deixavam suas terras para os seus escravos Contudo este tipo de relação estava longe de caracterizar as relações entre senhores e escravos como relações harmoniosas como na proposta de Gilberto Freyre Do contrário Fry e Vogt enfatizam a existência de uma política de dominação senhorial presente nessas doações que só aconteciam quando os senhores não possuíam descendentes diretos para deixar as terras como posse Quando a recebiam os escravos não podiam arrendálas vendêlas ou doálas Isso fazia com que os escravos permanecessem de certa forma presos às terras que se tornavam extensões da posse dos antigos senhores através dos escravos Nos inventários analisados o testador sempre procurava limitar o direito dos donatários de dispor da propriedade Os escravos e também os seus descendentes libertos eram vistos como infantis incapazes de cuidarem de si O incentivo a formação de famílias entre os próprios escravos também fazia parte da política senhorial de dominação visando tornar esses escravos mais dependentes240 Foi assim que os autores puderam por exemplo situar o caráter de comunidade organizada a partir da ideia de parentesco do cafundó no século XVIII um momento histórico que antecede em muito a doação de terras e à fixação do grupo no local atual Através do estudo da genealogia das famílias que compunham a comunidade do Cafundó à época da pesquisa os autores verificaram que um grande traço definidor da comunidade negra era a estabilidade familiar essa estabilidade definia a estrutura social e cultural através das normas familiares e comunitárias que possuíam grande relevância A partir desse dado os autores refutam a ideia de família devassa instável anômala e patológica socialmente veiculada por uma historiografia culturalista como a de Freyre241 Enfim essa perspectiva já redireciona nosso entendimento quanto à noção de cultura Aqui estão sendo enfatizados outros aspectos culturais como a linguagem a 240 O que não quer dizer que os arranjos familiares sejam unicamente decorrentes dessa política de dominação senhorial pois explicam os autores os escravos sempre interpretavam a sua condição dentro dos contextos e viram a união matrimonial como possibilidade de ganhos materiais e simbólicos por isso também costumavam casarse Porém não é fácil chegar a essas conclusões há que se ler os documentos nas entrelinhas de forma conjuntural Todas essas informações são importantes para se compreender o contexto em que tem sentido a língua chamada de cupópia ou falange 241 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 26 127 constituição de famílias e a organização social embasada na ideia de parentesco Os autores também atentam para a organização espacial da comunidade242 que se apresentava de forma circular onde de um lado desse círculo se colocava uma parentela Almeida Caetano e de outro lado outra parentela Pires Cardoso Naquele contexto havia uma série de leituras e significações dos fazendeiros e outras comunidades vizinhas ao Cafundó referentes aos Almeida Caetano Devido à suas práticas culturais eles eram referidos como praticantes da falange ou cupópia vagabundos embrulhões de emprego esporádico sem aliança com o poder local e católicos que exerciam práticas de cultos afrobrasileiros Já os Pires Cardoso eram tidos como trabalhadores honestos que não falam a falange e têm alianças com o poder local possuem empregos regulares e são evangélicos Percebese que são representações que tomam como pontos de partida alguns símbolos de uma estereotipada ancestralidade africana o fato de falar ou não a cupópia de praticar ou não cultos afrobrasileiros de não lidar de forma digna com o trabalho de serem vagabundos e embrulhões243 242 É importante ressaltar que os autores não desconsideram outras práticas culturais como afro brasileiras a exemplo das danças músicas candomblé festas jogos etc Esses que se tornaram lugares clássicos da cultura afrobrasileira no discurso oficial e por conseguinte no senso comum do entendimento brasileiro A partir deste momento a noção de cultura afrobrasileira e suas práticas de dança música gastronomia e candomblés são aqui interpretadas de forma diferente não como elementos de pura herança africana que compõe o folclore brasileiro nem como práticas de alienação mas como práticas que inscrevem sentidos memórias identidades solidariedades e relações de poder Nas palavras dos autores Nesse aparente paradoxo é que reside talvez o papel social mais importante dessa língua africana do Cafundó Esse papel em outras circunstâncias pode ser manifestado através de outros recursos culturais como por exemplo dança música gestos corporais representações dramáticas etc enfim recursos que integram inúmeras manifestações culturais de origem africana no Brasil Pensamos nos candomblés nos congos e moçambiques na capoeira nos afoxés etc VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p120 243 Aqui esse conjunto de representações está nitidamente associado ao mundo social que circunda a comunidade do Cafundó no entanto vimos essa mesma espécie de raciocínio está presente na obra de Florestan Fernandes o que comprova a forte presença de estereótipos racistas em sua interpretação oriundas desse contexto em São Paulo que pensa a cultura afrobrasileira enquanto popular rústica atrasada alienação e depreciação a partir da qual os negros herdaram da escravidão à má vontade quanto ao exercício do trabalho preferindo a vagabundagem A diferença argumentativa é que as pessoas comuns usavam esse discurso para acusar condenar e justificar a exclusão do negro culpablizandoo já Florestan usa essa marca discursiva para vitimizar os negros e não condenálos Quanto à adjetivação de vagabundos para os Almeida Caetano depois de recolher relatos orais e investigar mais informações os pesquisadores constataram que o que parecia ser somente vagabundagem era na verdade uma estratégia pela sobrevivência pois os Almeida Caetano estavam ameaçados de morte caso saíssem das terras Era por isso que eles preferiam trabalhar nas próprias terras para o próprio sustento ao invés de buscarem trabalho nas fazendas vizinhas contrariando a ideologia trabalhista Assim o que antes era compreendido como vagabundagem passou a ser analisado de forma mais detalhada e virou estratégia de sobrevivência frente às ameaças de morte Nesse trânsito discursivo Fry e Vogt construíram outras marcas discursivas ressignificando a experiência e a identidade negra 128 No decorrer da pesquisa os autores começaram a enxergar outras possibilidades interpretativas e passaram a construir um novo perfil para esses sujeitos negros da comunidade Por exemplo analisando o mestre Otávio 64 anos líder da parentela Almeida Caetano os pesquisadores caracterizamno como um homem trabalhador festeiro cantador e contador de histórias poeta e tocador de sanfona estimado por muita gente Otávio era um homem que anteriormente bebia muito até que deixou de beber como ele mesmo narra por conta própria mas não perdeu a empolgação pelas festas músicas e danças Era um homem de muitas vaidades Um homem muito cordial que exercia grande poder de liderança local embora não estivesse nada próximo do protótipo de um herói negro como por exemplo Zumbi dos Palmares Mas todos os contatos entre a comunidade e o que vem de fora dela passam por ele na medida em que mantém coeso um grupo de parentes que dadas as condições históricas das suas relações sociais poderiam e até mesmo deveriam estar espalhados Para os autores este homem negro não era um alienado pois em seus relatos ele deixou muito claro a sua consciência de liderança atribuindo boa parte dela ao seu destro uso da língua africana Conforme os autores a identidade de Otávio é marcada por contradições entre a fanfarronice e a consciência de que é preciso defender as suas coisas e parentes e lutar por direitos Este homem é transformado num novo modelo de compreensão dos negros Constróise mais um símbolo de negritude num herói comum que age politicamente no cotidiano Agora a ciência diz que o negro é um sujeito histórico Ele é organizado consciente e dotado de ação política Aspectos apenas visíveis quando se parte para uma pesquisa que busque compreender a cultura no cotidiano mediando conflitos Esse novo universo descritivo foi construído a partir das múltiplas atividades do mestre Caetano o trabalho na terra e na criação de animais o trabalho de rezador e benzedor na comunidade o grande afeto e ironia que marcam as suas atitudes Assim os autores fazem uma operação simbólica que inverte as identidades das parentelas cafundoenses Pois aquelas classificações são mais de natureza estratégica do que de ordem estrutural Assim poderíamos ver os Almeida Caetano como muito mais autônomos politicamente embora mais fracos economicamente enquanto que os Pires Cardoso são mais fortes economicamente e menos autônomos politicamente É nesse jogo de poder entre a própria comunidade e entre esta e o restante da sociedade que a língua afrobrasileira da cupópia é interpretada como uma prática 129 cultural viva enquanto prática discursiva da qual só os iniciados podem negociar sentidos Ela estabelece uma etnicidade já que assumir a fala dessa língua é assumir uma negritude uma ascendência africana244 Uma vez que a identidade é uma construção social as identidades culturais afrobrasileiras não se realizam pelo isolamento de grupos ou comunidades afrodescendentes mas pelo seu envolvimento com a sociedade como um todo e seu reconhecimento por esta Destarte a cupópia ingressa no discurso como prática legitimadora da identidade grupal cujos ancestrais são africanos exescravos e da luta política do grupo pela posse das terras No cotidiano da pesquisa verificouse que a cupópia é uma prática cultural afro brasileira restrita a poucos falantes sendo utilizada no diaadia da comunidade sempre que alguém acha necessário trocar informações sem que todos em volta entendam o que dizem Assim a cupópia é uma prática cultural que pertence à esfera do cotidiano245 amigos que dividem a conta num bar para conservarse da vergonha de falta de dinheiro por exemplo empregados que excluem a participação do chefe num diálogo a linguagem como código secreto que permite a inversão social da relação dominadores x dominados ou em casos em que um patrão não aprecie o trabalho de um empregado A grande questão é que essa língua africana é diacrítica ou seja ela exerce um papel de diferenciação social entre os grupos A falange constitui uma forma de estabelecer solidariedades e alianças entre seus falantes e os habitantes de cidades vizinhas e os representantes do poder distante Ela exerce mais do que uma função referencial ou cognitiva Ela dá forma às relações de poder no cotidiano da vida social A cupópia cria uma espécie de renovação ritual da identidade ancestral africana dando aos cafundoenses um senso de origem comum que compensa simbolicamente as relações sociais dos habitantes Situações que remetem à política de trabalho e sobrevivência concreta do grupo Como se opera então essa língua chamada de cupópia ou falange Tratase de uma língua africana ou afrobrasileira Embora as palavras sejam de léxicos africanos 244 A falange ou cupópia é uma língua africana não só porque boa parte do seu léxico vem de línguas como quimbundo umbundo e quicongo mas também porque ao falála os habitantes do cafundó representam a si mesmos como africanos Essa significação alude não apenas à origem etimológica do vocabulário mas as estratégias políticas de atribuição de sentido para uma identidade social com vistas a determinados interesses 245 Ao contrário do que vimos nas abordagens anteriores onde a cultura afrobrasileira é concebida dentro de eventos de interrupção do cotidiano realizada somente em datas e momentos especiais festivos ou religiosos por exemplo por isso é que se diz que na abordagem folclorista a cultura afrobrasileira é espetacularizada 130 a estrutura sintática que a organiza são da língua portuguesa Embora seja uma língua que apresente um léxico limitado 140 palavras ao todo o sistema da falange é dinâmico criando múltiplas significações para uma mesma palavra a depender do contexto em que se dá o diálogo o discurso Tratase portanto de uma língua viva e muito complexa que produz sentidos em contextos sociais específicos e que para muitos observadores desatentos não passa de uma língua confusa e pouco inteligente Fry e Vogt pensam a linguagem como um complexo sistema de construção de conceitos e significação do mundo a partir de cosmovisões que estão relacionadas com as estruturas sociais e culturais do Cafundó Dentro dessa cosmovisão há um dinamismo no sentido das palavras em contextos específicos em que a fala e as significações da cupópia assumem interesses específicos É o que os autores chamam de um paradigma das finalidades A partir dessa noção os autores analisam discursos situações conversacionais entre os falantes da cupópia a fim de entender como essa linguagem se expande e significa relações sociais a partir de conceitos Nas palavras dos autores Dizer que esse diálogo não tem lógica é cometer um abuso de etnocentrismo A lógica cartesiana das combinações sintáticas etc o diálogo não tem mas ao mesmo tempo revela uma lógica de associações paradigmáticas uma certa solidariedade vertical se assim pudermos dizer que uma vez aceitas permitem entender e acompanhar o fio fragmentado de suas significações246 Pensando epistemologicamente a noção de cultura afrobrasileira enquanto possuidora de matrizes originarias de África Fry e Vogt redirecionam o nosso olhar a matriz cultural banto Uma matriz que parece pouco visível quando se pensa em cultura afrobrasileira já que muitos dos símbolos clássicos dessa cultura aludem ao universo yorubá como no caso dos orixás247 Os autores sugerem então uma maior influência de línguas bantos na origem da falange o que não quer dizer que necessariamente os 246 Assim sendo existe uma lógica muito própria nessa forma de linguagem que escapa àqueles pesquisadores imersos em preconceitos culturais e raciais VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 171172 247 Como vimos no capítulo 2 esta noção de que a ancestralidade típica ou pelo menos mais aceitável da África no Brasil é de origem sudanesa foi forjada por Nina Rodrigues Não negamos a participação de povos originários da África Ocidental na formação da cultura afrobrasileira mas problematizamos a redução desta cultura apenas à matriz jêjeiorubá e a displicência com os vários povos bantos Como vimos esta noção criada por Nina Rodrigues partia do pressuposto de que os bantos fossem inferiores aos sudaneses 131 ancestrais da comunidade tenham vindo de regiões onde se falavam essas línguas Fray e Vogt dão grande importância às culturas bantos enquanto matriz da cultura afro brasileira mas chegam a concordar com o esquema explicativo de Nina Rodrigues de uma separação grosso modo de dois troncos lingüísticos de origem africana no Brasil o yorubá para a Bahia e Maranhão e o Banto para o sul do país e Pernambuco248 A falange não é uma reprodução fiel das línguas africanas mas um conjunto de rearranjos brasileiros dessas línguas Dessa forma essas práticas culturais são africanas quanto à sua origem histórica mas são também brasileiras contemporâneas quanto à sua significação do mundo a partir das relações sociais concretas atuais Desse modo os africanismos linguísticos no Brasil antes de indicarem um caminho de procedência exclusiva indicam sobretudo a construção ideológica de uma África miticamente homogênea e por mais fantástica que possa parecer brasileira249 A cupópia portanto não é simplesmente uma língua africana nem tão somente brasileira Pela série de rearranjos que passa num complexo contexto de relações de poder em que a cultura media forças no cotidiano a cupópia ou falange deve ser melhor compreendida como prática cultura afrobrasileira É impossível notar sua ancestralidade africana da mesma forma que é impossível notar seu dinamismo dentro da realidade brasileira A cultura afrobrasileira em Fry e Vogt está em outros lugares simbólicos na prática de linguagem na organização espacial na construção de identidades políticas na formação de famílias Desenhase discursivamente uma nova cartografia cultural da cultura afrobrasileira que é portanto um conjunto de práticas vivas que assumem diversas formas e significados por diferentes sujeitos em contextos diferentes mas são sempre práticas que mediam relações de força Este paradigma ganha ainda mais legitimidade com os estudos do historiador Robert Slenes 248 É importante notar a complexidade de argumentos dos estudiosos e aqui mais uma vez resgatamos a noção de interdiscursividade das continuidades de um discurso em outros uma vez que os sentidos do discurso estão sempre abertos e negociados de acordo com os interesses dos falantes em contextos específicos Ora embora em muitos aspectos Fry e Vogt discordem de Nina Rodrigues eles não conseguem fugir de seu esquema explicativo básico simplista e dualista a respeito da classificação dos africanos entre bantos e sudaneses 249 VOGT Carlos e FRY Peter Cafundó a África no Brasil linguagem e sociedade São Paulo Companhia das Letras 1996 p 188 132 2 Robert Slenes a história cultural e a cultura afrobrasileira vista por dentro O historiador norteamericano Robert Slenes veio para o Brasil durante a década de 1970 e sua trajetória intelectual demonstra um percurso de inquietações buscas e reinterpretações provocadoras Pelo número de artigos livros resenhas entrevistas palestras e comentários verificase que a comunidade acadêmica brasileira reconhece a importância científica desse intelectual dedicado à história da escravidão no império brasileiro O livro publicado pelo autor que se tornou um clássico no Brasil recebe o título de Na Senzala uma flor250 O ponto de partida para tal estudo foi a busca de aprofundar os seus estudos de doutorado feito em 1976 na Stanford University partindo de uma historiografia demográfica e econômica sobre a escravidão no Brasil da segunda metade do século XIX Nesse estudo surgiu sua primeira contraposição à historiografia existente até então que afirmava ser a família escrava uma instituição vulnerável Freyre e Fernandes Do contrário Slenes percebeu em suas fontes que a família havia se tornado uma instituição muito viável para os escravos que percebendo isso mobilizaram forças estratégias e afetividades para construir suas famílias Como o próprio autor narra num primeiro momento ele preferiu analisar as famílias escravas como instrumento de dominação e exploração por parte dos senhores o que ele mesmo chamou de política de dominação senhorial termo que utilizou no texto do livro Cafundó Só posteriormente quando percebeu a mudança paradigmática que a historiografia norte americana vinha dando à autonomia escrava é que Slenes voltou à questão da família escrava para tentar compreender os significados dessa instituição dentro da perspectiva dos próprios africanos escravizados ou seja dentro de uma perspectiva afrocentrada Para chegar a essa compreensão era necessário reconstruir um acervo de fontes qualitativas e uma metodologia de pesquisa viável O historiador recorreu a algumas 250 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 O livro resulta de uma longa trajetória de pesquisas e publicações sobre a história da historiografia da escravidão no Brasil demografia dos escravos no interior paulista o cotidiano escravista no império brasileiro as relações políticas entre brancos e negros e a cultura afrobrasileira O livro denota um momento de maturidade intelectual do autor pois são discussões conceitos métodos e fontes revisitadas de um trabalho de mais de vinte anos reunindo em quatro capítulos textos que marcam uma nova discursividade sobre a história a cultura e a identidade negra no Brasil É por isso que esse foi o livro escolhido para se analisar o conceito de cultura afrobrasileira na narrativa histórica de Robert Slenes Aqui se trata da concretização de mudança paradigmática no campo da historiografia propriamente dita 133 fontes que já havia usado no doutorado entretanto somando ao acervo pesquisado a inventários postmortem e processos de crimes b listas de avaliação e de matrícula c cartas de alforria assentamentos de batismo e casamento d anúncios de escravos fugidos e processos criminais e cíveis nos arquivos dos municípios de CampinasSP e VassourasRJ e relatos de cronistas sobre as famílias de escravos e a vida no cativeiro das grandes lavouras do sudeste produzidos no século XIX e f estudos etnográficos sobre a África Central produzidos entre os séculos XVI e XIX por colonizadores europeus Sua metodologia de ligação nominal entre diversas fontes permitiulhe perseguir e acompanhar a trajetória histórica de diversos sujeitos escravizados e fazendo uma análise crítica dessas fontes lendo nas entrelinhas o autor começou a perceber aquilo que a princípio descartava a possibilidade de articular bases materiais e simbólicas e compreender como os africanos escravizados articulavam suas heranças culturais para interpretar suas experiências históricas no Brasil O seu principal referencial teórico foi EP Thompson a partir do qual Slenes entendeu que o sentimento de pertencimento a um grupo social por parte dos sujeitos históricos estudados no caso os escravos africanos e seus descendentes era crucial para entender sua história Contudo apesar do embasamento na teoria thompsiana Slenes afirma que só começou a se interessar pelas questões culturais quando participou de outra pesquisa sobre a qual já nos referimos nessa dissertação assim se expressou o autor Na verdade foi meu envolvimento em outro projeto a partir de 1978 que me levou a refletir de forma mais sistemática sobre questões de cunho cultural Refirome à pesquisa que fiz sobre a história no bairro rural negro de Cafundó na região de Sorocaba junto com Carlos Vogt e Peter Fry251 A partir de tal pesquisa Slenes voltouse aos debates conceituais sobre cultura Ao estudar a experiência histórica linguística e cultural da cupópia o historiador interessouse em acessar bibliografias específicas sobre línguas nativas antropologia e história da África Central anteriormente chamada genericamente de África banto A partir de então Slenes debruçouse sobre fontes que lhe revelassem formas de comunicação nas senzalas atos de rebeldia escrava e as formas de religiosidade Buscou 251 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 15 134 documentos e temas através dos quais assim pressupunha aflorariam mais informações sobre o universo cultural dos negros Assim nos anos 1980 estava posta no campo acadêmico da História uma nova perspectiva e novo foco elementos que exigiam novas fontes e métodos de análise Uma questão de ordem epistemológica e operacional se colocava que fontes consultar se os escravos nas grandes lavouras não dispunham nem razoavelmente de momentos para registrar suas memórias ou expectativas e interpretar sua experiência histórica Para o autor a solução foi tentar perceber alguns elementos da vida material e simbólica dos escravos nos relatos dos cronistas e viajantes brasileiros e estrangeiros que falaram um pouco do cotidiano escravo nas lavouras do sudeste durante o século XIX ainda que tratassem a formação de famílias e lares negros de forma depreciativa Foi necessário ler nas entrelinhas dos discursos dos cronistas literatos viajantes e cientistas brancos que à sua época não compreendiam ou achavam impossível a existência de uma lógica própria dos negros Além dessa análise atenta minuciosa e crítica complementouse a leitura comparativa de toda a literatura antropológica linguística e histórica referente à África Central a qual o autor teve acesso Estrategicamente Slenes se define no seu texto como um revisionista conceitual um historiador com novo perfil científico Declara que o objetivo do seu livro é resgatar a capacidade de os escravos constituírem famílias de vários formatos conjugais extensas e integracionais além de reconhecerlhes as ações de assistência entre si na construção de projetos em comum Essa perspectiva teria resultados não só intelectuais mas também políticos como bem atesta o autor Mapear esses caminhos ajuda a definir as preocupações deste livro Revela alguns dos paradigmas ou modelos explicativos que mais têm informado a bibliografia internacional nas ciências sociais Ilumina as diferentes estratégias usadas para denunciar o racismo e a herança social do escravismo E indica também certas mudanças na postura dos historiadores perante suas fontes252 Como viemos demonstrando nesta dissertação durante muito tempo a tradição brasileira de estudos africanistas ou afrobrasileiros partiu de premissas racistas a partir 252 SLENES Robert Idem op cit p 28 135 das quais o negro sempre foi pensado como inferior como alguém caracterizado pela falta pela carência e pela grosseria de seus conteúdos e formas culturais Nesta concepção eurocêntrica a cultura afrobrasileira era vista descrita analisada e desclassificada pelas linhas mais superficiais de sua existência Muitos dos símbolos culturais não eram compreendidos dentro do universo cultural negro porque os investigadores brancos não estavam dispostos a compreender a lógica própria daqueles que mesmo na condição de escravos não deixavam de ser sujeitos históricos Aliás os investigadores brancos nem acreditavam que houvesse uma lógica própria dos escravos negros seres de pouca inteligência mas sim uma lógica imposta a eles pelos senhores brancos estes que seriam inteligentes Dessa forma muitas das práticas negras foram interpretadas como primitivas limitadas ou reduzidas fossem pelas condições biológicas e culturais dos negros fossem pelas condições sociais e históricas da escravidão Em uma ou outra abordagem a cultura negra foi vista como uma contribuição e não como uma participação ativa e ativadora da nacionalidade brasileira Uma presença exótica talvez admirável mas que nunca deveria ser apropriada ou tida como significativa na construção de nossa civilidade moderna crítica racionalista Foi nessa concepção que surgiu uma cartografia cultural afrobrasileira ou sendo mais claro os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira a dança a música a culinária a encenação os contos populares o candomblé a linguagem fragmentada o vocabulário exótico a capoeira e outras práticas esportivas a sexualidade natural ou pior permissiva etc como únicas possibilidades culturais dos negros e ainda assim no dizer do branco essas seriam práticas culturais inferiores Não se pensava o negro produzindo símbolos e práticas culturais no campo dos conceitos e ideias no campo da linguagem como complexo sistema de significação do mundo ou no campo da política Não se pensava que havia dignidade dessas práticas a partir de outros valores culturais que pudessem ser importantes Em nossa sociedade ocidental que elegeu as atividades intelectuais como padrão cultural elevado e prestigiado atribuir aos afrobrasileiros apenas os fazeres mecânicos da cultura pode ser encarado como a permanência de práticas discriminatórias a partir da invenção e legitimação científica do critério racial que reduz as potencialidades negras e consequentemente de seu prestígio social e de suas lutas políticas A estratégia adotada pelo historiador Robert Slenes é a de entender a cultura como formada por conceitos ideias símbolos práticas e relações que partem de uma 136 cosmovisão autônoma e têm uma lógica própria Segundo o autor a cultura é reatualizada a partir das múltiplas experiências de ação e reflexão em diferentes contextos históricos São princípios norteados por uma concepção da cultura como inteligência fruto de complexas e dinâmicas operações mentais às quais dizem também respeito à história dos povos negros Com isso o autor se posicionou politicamente não só contra uma historiografia clássica e de certa forma conservadora mas também contra um conjunto de representações que vinham alimentando um conjunto de relações de poder que por sua vez nutriam a desigualdade social a partir do critério racial Por conseguinte o discurso de Slenes dialoga muito com diversos movimentos negros do Brasil e com isso ele foi mais um dos que conseguiram contemplar no plano acadêmico muitas das demandas de significação dos movimentos sociais negros253 Seu raciocínio propõe que a os africanos mesmo na condição subalterna de escravos não deixaram de ser sujeitos históricos b todos os africanos escravizados possuíam uma lógica própria de significação de sua experiência histórica e cultural articulando cotidianamente memórias e expectativas futuras logo os significados culturais desses símbolos e práticas contemplam não só dimensões conceituais linguísticas e históricas mas sobretudo políticas Ao contrário do que dizem os clássicos do pensamento social brasileiro o negro é não somente um ser constituído de inteligência e construtor de seus valores como também um ser consciente analítico e político A partir dessa concepção é que o autor amplia nossa cartografia cultural afrobrasileira indicando novos lugares simbólicos de cultura a linguagem os conceitos e ideias a política a afetividade a arquitetura a ciência254 253 Afirmamos que Slenes foi mais um pelo fato de reconhecermos que haviam outros intelectuais brancos e vários intelectuais negros empenhados na mesma causa e agindo no plano acadêmico a partir de suas diversas formações acadêmicas 254 No sentido de uma ciência natural sabedoria ou forma de produção de conhecimento legitima para os africanos e seus descendentes mas que segue uma lógica distinta da ciência moderna ocidental Essa discussão é bem parecida com a que vimos em Fry e Vogt como vimos é desde sua participação nas discussões com esses intelectuais que o Slenes vem pensando o conceito de cultura para pensar epistemologicamente as práticas afrobrasileiras Da mesma forma é importante dizer que Slenes não desconsidera práticas culturais como a dança a música as línguas e a culinária africana Para ele ainda hoje pouco sabemos realmente sobre tais práticas porque elas não foram bem interpretadas pelos olhares brancos Nas palavras do autor um dos aspectos mais visíveis da cultura negra no Brasil as danças escravas de origem africana foram descritas como alegrias grosseiras sujas voluptuosidades febres libertinas p139 sendo vistas mais como produtos deteriorados pela escravidão do que como manifestações culturais Para esses observadores brancos a cultura africana não punha limites civilizatórios nos comportamentos humanos Nesta argumentação Slenes acusa existirem preconceitos raciais e culturais É preciso compreender essas práticas dentro de uma cosmovisão afrobrasileira dentro de sua lógica própria de significação construção de identidades e mediadoras de relações de poder e conflitos políticos 137 Essa interpretação que chega ao Brasil tem grande influência da mudança epistemológica ocorrida nos EUA a partir dos anos 1960 quando ocorre um estreitamento entre a academia e o movimento social negro na busca de construir uma nova explicação científica para a experiência negra nos Estados Unidos Lá o atento movimento negro criticava os cientistas culturalistas por construírem vários estereótipos negativos sobre as condições históricas e culturais dos negros Essas discussões racistas preocupadas excessivamente com aspectos culturais deveriam mudar o foco em direção às políticas sociais Estas a partir de agora seriam o foco da construção da cidadania negra naquele país como o acesso à educação ao trabalho e a outros serviços do Estado em detrimento de uma discussão de cunho folclórico e festivo De outro lado explica Slenes o movimento negro americano também era contrário às interpretações de vitimização de seu povo questionando a noção de que a cultura negra pudesse ser alienante255 Dois autores se destacaram nesse movimento epistêmico internacional Eugene Genovese e Herbert Gutman O primeiro enfatizando a autonomia total dos escravos em relação aos senhores o segundo evidenciando a interdependência entre os dois Contudo a premissa básica de que partiam os dois autores era a de que os africanos escravos não estavam despojados de cultura ou culturalmente sem raízes Genovese e Gutman estão situados num paradigma historiográfico onde as classes subalternas ocupam a centralidade da investigação e da narrativa assim como na obra de EP Thompson Sobre isso afirma o autor As pesquisas mais inovadoras caracterizavamse com frequência crescente por um novo enfoque sobre as pessoas subalternas especialmente operários e escravos vistos agora como ativamente engajados com sua experiência refletindo sobre ela à luz de sua cultura e no processo reelaborando essa cultura e tecendo estratégias de aliança e oposição no encontro com outros agentes históricos256 255 Como vimos no primeiro capítulo houve uma forte influencia das leituras de textos acerca do pensamento dos movimentos negros americanos pelos militantes do MNU Inferimos que estas leituras também influenciaram nas críticas e seleções dos argumentos do MNU brasileiro em relação à tradição de pensamento que era atualizada na historiografia nacional acerca da cultura afrobrasileira desta maneira fica tornase compreensível não só as críticas as abordagens folcloristas como as de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre mas também às abordagens fatalistas como as de Florestan Fernandes 256 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 39 138 Conforme Slenes esse movimento foi de interesse nas culturas subalternas que levou muitos historiadores a reavaliarem o legado cultural africano a partir das senzalas Nesse sentido além de Thompson Genovese e Gutman outros referenciais fundamentais foram Sideny Mintz e Richard Prince Autores que afirmavam ser necessário captar a lógica dos escravos portadores de uma herança cultural em comum apesar de suas diferenças etnolinguísticas frente às situações específicas de contato entre si com seus senhores e com outras pessoas livres ou libertas257 Essa é a tese que embasa os trabalhos de Slenes É tentando enxergar a cultura afrobrasileira por dentro buscando entender a sua lógica própria que ele investiga e escreve258 Dessas influências e percepções é que surge a concepção de cultura defendida por Slenes as tradições culturais africanas transportadas ao Brasil foram adequadas ao contexto da escravidão o que fez com que os escravos interpretassem suas experiências históricas articulando suas memórias de práticas culturais e vivências africanas às suas expectativas futuras quanto à sua sobrevivência em meio às agruras da vida no cativeiro buscando sempre lutar contra sua opressão e construir um cotidiano cada vez mais humano para si a partir de referenciais culturais O objetivo do livro Na senzala uma flor está em tornar mais complexa a história do escravismo percebendoo como instituição na qual interagiram múltiplos sujeitos o que se de um lado evidencia a organização e relativa autonomia dos escravos não erradica por outro a dureza da vida no cativeiro Buscase reconstruir a visão dos vencidos entrar na cabeça dos escravos conhecer suas armas simbólicas e suas possibilidades de ativar e coordenar essas armas entre si259 pensase o cotidiano como espaço de formação de estratégias de enfrentamento e adaptação ao escravismo 257 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 40 258 Essa mudança conceitual proveio de uma movimentação intelectual ocorrida no Brasil já próximo ao fim do regime militar Tratavase de uma discussão que se posicionava como progressista assumindo lutas contra uma historiografia conservadora e racista que legitimava um estatuto de ciência alicerçada no etnocentrismo de uma elite intelectual branca que direciona abordagens temas fontes e tratamentos metodológicos ideologizados corroborando na interpretação negativa do negro e sua cultura e com isso excluindoos da narrativa história significativa e do acesso aos lugares privilegiados de saber e poder Segundo Slenes a força de ideias préconcebidas e estereótipos sobre os negros seu cotidiano e sua cultura não permitia que os cientistas brancos entendessem o universo escravo e estamos falando aqui não apenas de uma brancura em nível de cor de pele mas sim de uma brancura de cosmovisão judaico cristã moderna ocidental capitalista etc Isso porque havia uma imagem deturpada do negro que era produzida por um racismo extremado e do qual seria muito raro escapar A lente distorcida do branco ou o que o autor chama de olhar branco era utilizada de forma comprometedora para tentar enxergar a cultura do negro 259 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 133 139 Dessa forma o autor problematiza não somente as propostas de política senhorial mas também propostas de política de resistência escrava formando um debate sobre as possibilidades de ação de múltiplos sujeitos sociais que segundo Slenes esteve ausente da análise da maioria das obras historiográficas clássicas no Brasil Realidade epistemológica que de acordo com o autor agora estaria mudando Para outros povos inclusive para outras comunidades escravas os historiadores recentemente têm resgatado tradições populares contestatórias herdadas reformuladas inventadas e com isso têm reintroduzido a política em suas análises tornando a história novamente um processo indefinido com desfechos sempre imprevistos260 Assim é que Slenes propõe que compreendamos as práticas culturais afro brasileiras a partir de conceitos e ideias formulados dentro da lógica e da cosmovisão afrobrasileira que articula memórias de tradições africanas à experiência de cativeiro e às expectativas de negociação e ganhos para a vida material e espiritual Uma das primeiras propostas do autor é compreender que os negros da África Central compreendem e explicam sua forma básica de organização social a partir do conceito de ancestralidade ou de linhagem Importante conceito que orienta a ação dos escravos na formação de suas famílias na experiência dos cativeiros nas fazendas do século XIX Para Slenes a família escrava é um lugar simbólico da cultura afrobrasileira pois ela possibilitou a formação de um sentimento de pertencimento a uma comunidade negra que mesmo dividida pela política de incentivos dos senhores minava as chances de total dominação devido ao compartilhamento de experiências memórias e valores criando boas oportunidades de enfrentamento cotidiano por mais que parecesse o contrário A família escrava era um projeto de vida um campo de batalha um dos principais palcos onde se travavam lutas entre escravos e senhores na busca para definir a própria estrutura e destino da escravidão A família foi uma das mais importantes instituições culturais que contribuiram para a formação de uma identidade nas senzalas 260 Idem op cit p 115 Assim ao fomentar a reinterpretação conceitual da cultura afrobrasileira Slenes defende que as práticas da cultura popular de procedência negra não consistem em práticas de alienação mas sim em práticas que ressignificam as lutas políticas dos populares negros Quais seriam por exemplo os sentidos políticos e contextuais de uma manifestação cultural como os afoxés 140 conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por um grande número de cativos A família é importante para a transmissão e reinterpretação da cultura e da experiência entre as gerações261 Ela é um espaço de formação de uniões solidariedades e memória histórica próprias A partir dessa noção de família escrava é que o autor busca compreender os significados culturais e sociais que a instituição familiar adquirira historicamente para os escravos a partir de vários elementos como a arquitetura e o domínio do espaço doméstico o controle do fogo no interior das senzalas o acesso ao cultivo da terra em beneficio próprio a organização e perfil de sua economia doméstica sua fraqueza e sua força perante as políticas senhoriais Como então reconhecer as heranças culturais e as instituições próprias dos africanos escravizados Para Slenes o historiador poderá conhecer o universo simbólico dos escravos no Brasil a partir do momento em que começar a estudar o universo cultural de diversas etnias africanas Para isso ele valese de relatos de colonizadores europeus que abordaram aspectos do cotidiano de algumas etnias da África Central entre os séculos XVI e XIX Essa atitude ele toma em vários momentos de seu texto262 Conferindo tais etnias Slenes mapeia os conceitos e as práticas em comum que são transportadas para o Brasil A partir disso evidenciamse conceitos da cosmovisão centroafricana como linhagem venturadesventura263 senzala264 Esses e outros conceitos e práticas estruturavam a cultura e orientavam as ações dos africanos sendo reproduzido no interior das famílias daí também a importância do conceito de 261 SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p 114 262 A escolha da região da África Central como matriz de referência à cultura afrobrasileira deuse porque era a esta região que pertencia por uma longa extensão de tempo a maioria dos africanos escravizados que foram levados para a região das grandes lavouras do sudeste brasileiro Para demonstrar isso o autor recorre à metodologia da história demográfica usando da estatística em documentos oficiais sobre compra e registro de escravos para quantificar e verificar tal procedência Outro motivo que justifica essa escolha é o fato de que conforme o historiador nesta região da África Central havia muitas semelhanças entre símbolos significados e práticas culturais mesmo entre as diferentes etnias Esse fato teria facilitado os rearranjos grupais e familiares dos escravos no Brasil o que torna mais seguro fazer um estudo mais aprofundado de uma lógica cultural que contemple a uma maioria de sujeitos estudados Essa conclusão foi tirada a partir do momento em que os novos estudos sobre a cultura dessa vasta área africana têm enfatizado menos os aspetos de vida material e mais os modelos culturais ou conjunto de valores que subjazem às ideias e práticas culturais das comunidades que formam uma cultura bantu geral Aqui Slenes traz como referenciais teóricos Willy de Craemer Jan Vansina e Renée C Fox 1976 No entanto lembremos o fato de deslocar para a África Central nossos olhares sobre uma ancestralidade da afrobrasilidade não deixa de ser um ato político contra a visão evolucionista forjada por Nina Rodrigues que insiste na África Ocidental como princípio originário da afrobrasilidade 263 O estado normal do universo harmonia bemestar e saúde x o estado anormal do universo o desequilíbrio os infortúnios e as doenças que são condições causadas por espíritos maus ou por pessoas através da feitiçaria SLENES Robert Na Senzala uma flor esperanças e recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste século XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 264 residência dos serviçais em propriedades agrícolas moradia de gente separada da casa principal sentido principal povoado SLENES Robert Idem op cit p148 141 linhagem a cultura pertence a um grupo de parentesco a uma linhagem e não somente ao lugar de origem A herança cultural é transportável Os escravos a transportam fazendo escolhas Por conseguinte o autor traça um perfil do negro escravizado bem diferenciado um ser que produz cultura que trava conflitos que tem consciência de sua condição que constrói redes de solidariedade que trabalha nos latifúndios que é de procedência e fala bantu265 que se organiza familiarmente a partir do conceito de linhagem Marca assim uma dizibilidade e uma visibilidade que torna a presença negra mais comum e próxima da realidade de qualquer ser humano O negro e sua cultura passam a não mais ser exóticos invasores ou depreciadores E Slenes parte para analisar outros aspectos culturais afrobrasileiros construídos nesse contexto de articulações negociações e apropriações É salutar frisar que o autor embora critique os aspectos teóricos de Nina Rodrigues também não deixa de se aproximar dele quanto ao método de se comparar objetos e práticas entre Brasil e África para verificar semelhanças e portanto continuidades eou rupturas das culturas africanas no Brasil Slenes contudo não está preocupado em mapear a pureza na permanência de práticas mas de entender os processos da dinâmica que transformam a cultura afrobrasileira Quando ele compara objetos e práticas entre BrasilÁfrica o faz porque as semelhanças analisadas refletem uma relação histórica não necessariamente linear É assim que entra em sua narrativa histórica a análise da construção espacial e do culto ao fogo no interior das senzalas como práticas possíveis a partir da reorganização dos escravos através de casamentos constituição de famílias e reconstrução do conceito de linhagem Ele explica que num contexto em que aos escravos solteiros eram destinadas senzalas que seguiam a arquitetura em formato de um grande pavilhão coletivo lotadas com pouca privacidade e autonomia locais onde os escravos comiam mal e dividiam o mesmo vasilhame casarse era uma boa opção porque viabilizava aos escravos construir as suas senzalas ou choupanas para viver apenas com suas famílias e isso trazia vários benefícios como viver com mais privacidade cultivar uma pequena horta criar alguns animais guardar os animais que caçavam os vegetais e grãos que encontravam no caminho entre a senzala e a lavoura ter um fogo doméstico só para a própria família cozinhar suas receitas africanas e manter tradições religiosas e comemorativas no interior de suas senzalaschoupanas etc 265 Reproduzimos a ortografia usada pelo próprio autor 142 Essas choupanas eram simples mas eram os espaços onde as famílias escravas tinham autonomia e privacidade Eram cabanas muito parecidas com as cabanas feitas nas aldeias africanas e tal semelhança fora identificada no repertório cultural dos escravos Dessa forma como na África da cultura bantu explica Slenes muitos escravos que vieram dessa região trouxeram os significados do fogo e da fumaça na sua memória e esses sentidos vinham à tona sempre no interior das senzalas familiares Nestas senzalas havia uma fogueira que ficava acesa vinte e quatro horas por dia durante todos os dias do ano Algo que parecia ilógico para muitos senhores cronistas e cientistas brancos na verdade tinha sentidos muito complexos e significativos na experiência africana e afrobrasileira por que a do ponto de vista material a fumaça espantava os insetos ajudava a aquecer e criava uma espécie de verniz nas paredes de pauapique que ajudáva a conservar a casa b do ponto de vista simbólico o fogo representava os laços de parentesco com os ancestrais africanos era um símbolo da linhagem familiar possuía um sentido político de ligação formação de comunidades solidariedades e proteção e c ainda quanto ao simbólico havia a crença de que a fumaça ajudava a manter dentro da habitação os espíritos protetores das famílias que traziam boa sorte saúde proteção e força para suportar as agruras da vida no cativeiro Não é a toa que a festa entre os escravos se realiza sempre em frente às cabanas dos escravos casados pois ali estava uma fogueira que ligava as pessoas aos ancestrais É assim que se processa a cultura afrobrasileira em Slenes uma materialidade o fogo uma prática o culto ao fogo um conceito linhagem e as expectativas que articulam tudo isso proteção força superação da escravidão etc É preciso entender de forma mais profunda e respeitosa a rede de significados que dá sustentação aos objetos e práticas culturais afrobrasileiras Ao contrário do que dizia até então a historiografia clássica sobre a escravidão a experiência dos escravos vista de dentro não pode ser reduzida a uma história de submissão cooptação e aculturação Ela deve ser entendida como potência recriadora das possibilidades de existência significação e negociação de forças no mundo social Fechase historiograficamente os paradigmas propostos ao longo do século XX para se entender a cultura afrobrasileira Slenes continua sendo o mais atualizado dos intelectuais que cria argumentos para a reorientação da tradição de pensamento brasileiro sobre as culturas negras no Brasil Lembrese que quando o autor critica esta tradição de pensamento reducionista ele não está criticando apenas os intelectuais mas a todos os 143 sujeitos que de diferentes formas se apropriaram dessas representações e a partir delas estabelecem relações políticas com a população negra intelectuais artistas pessoas comuns mídia burocratas o Estado brasileiro Mas toda essa análise discursiva corrobora para revelar um lado dessa história de criações conceituais o lado acadêmico Vimos no capítulo 1 que o emergente MNU também já se preocupava com a noção de cultura afrobrasileira cristalizada no Brasil Uma noção que legitimava formas de dominação exclusão e exploração do negro Duas perguntas se fazem necessárias para conhecer as reconfigurações deste contexto a partir de agora Primeiramente de que forma o conceito de cultura afrobrasileira proposto pelo MNU se alinhavam com as noções de cultura afrobrasileira recriada por Carlos Vogt Peter Fry e Robert Slenes E segundamente quais os desdobramentos dessa nova forma de pensar a cultura afrobrasileira para o Estado Brasileiro e por conseguinte para o conjunto de toda a sociedade 3 O MNU seu conceito de cultura afrobrasileira e o ativismo negro na construção de um novo currículo para o Ensino de História Como vimos no capítulo 1 para o MNU havia uma interligação muito forte entre política cultura e educação que se precisava garantir no projeto educativo brasileiro via intervenção do Estado mas sob a orientação do movimento Esta interligação possuía uma importância significativa no combate ao racismo Portanto a educação foi eleita como campo privilegiado dessa transformação cultural A efetivação das ações educativas promovidas pelo MNU ocorreu através de jornais agremiações carnavalescas grupos culturais recreativos e desportivos etc No entanto para o MNU o projeto dessa transformação cultural perpassava a jurisdição a institucionalização a conceituação daí sua preocupação em produzir documentos oficiais que legitimassem suas perspectivas teóricas e práticas acerca do tema No Programa de Ação266 o MNU afirma que a escola é uma instituição que historicamente tem cumprido um papel alienante Ao invés de desenvolvimento 266 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 O Programa de Ação foi um documento produzido pelo MNU a fim de tornar claros para a comunidade negra e para o Estado brasileiro as críticas e as propostas de recriação da sociedade brasileira e da cidadania negra Erguendo o lema Por autentica democracia racial como intitula na sua introdução assume o compromisso de desconstruir o mito da democracia racial e de lutar acirradamente contra o racismo o Programa de ação pondera sobre 16 temas a saber 1 marginalização 144 intelectual e libertário da educação brasileira ela perpetuaria a mentalidade elitista e racista alienando os estudantes Embasando tais afirmações percebemos num primeiro momento que a escola seria identificada sob a influência de Althusser como um aparelho ideológico do Estado Já num segundo momento influenciado por Bourdieu o MNU evidencia o papel da escola enquanto reprodutora e legitimadora das desigualdades sociais através de um processo inconsciente e sistemático de dominação simbólica legitimação de verdades práticas conceitos regras e valores cristalizados na cultura e nos interesses não do Estado mas das classes dominantes consolidando desta forma as desigualdades sociais Foi neste contexto por exemplo que a educadora Ana Célia da Silva uma das fundadoras do MNU de Salvador construiu seu estudo sobre a reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros voltados à alfabetização Um estudo que virou referência nacional sobre o tema Mas foi com esperança que o MNU decidiu conceber a educação Apoiado no educador pernambucano Paulo Freire o MNU define no seu Programa de Ação a educação como um instrumento de libertação e não de alienação de um povo Concordando com Paulo Freire assumiase uma concepção nitidamente comprometida politicamente da educação Era necessário sim denunciar as práticas simbólicas de dominação política e cultural de grupos opressores e assumir uma postura político filosófica de comprometimento com a existência humana Numa sociedade cuja estrutura conduz a dominação de consciências era fundamental a elaboração de uma pedagogia que estivesse enraizada nas subculturas O movimento negro instalara discursivamente uma fratura na ideia de comunidade nacional brasileira Simbolicamente interrompiase a continuidade para instalar a diferença que legitimaria a luta política desta categoria social O projeto elaborado tecia denúncias e esperanças Nessa operação simbólica lutavase para eleger do negro 2 Discriminação racial no trabalho 3 desemprego 4 condições de vida 5 Direito e violação 6 prisões 7 o menor Abandonado 8 Cultura Negra 9 Educação 10 Mulher Negra 11 Imprensa Negra 12 Nos Sindicatos 13 Área Rural 14 Posses de terras doações e invasões 15 luta internacional contra o racismo e 16 transformação geral na sociedade No entanto nosso foco nessa dissertação recai sobre as articulações entre política cultura e educação por dois motivos básicos a como nos lembra a historiadora Queiroz esses elementos são estruturadores do discurso do MNU bem como pontos de interdiscursividade entre o MNU nacional suas filiais em outros estados e outras entidades culturais e b por serem esses os critérios que sendo atualizados em diferentes discursividades e documentos oficiais relativos à reavaliação da educação e da história possibilitaram a sanção da lei 1063903 gerando novas demandas para o Ensino de História definindo assim o objeto de estudo dessa investigação 145 a cultura como um elemento estruturador fundamental da prática política do movimento negro portanto era preciso definila De acordo com o MNU Cultura é o modo como o homem vê sua relação com a natureza e com seus semelhantes A cultura nasce com o homem na criação de seu mundo e na produção geral para sua vida e vivencia incluindo aí as relações de trabalho a produção necessária à vida a distribuição destes bens materiais e simbólicos e as relações de Poder Consequentemente a Cultura é a visão de mundo que implica na valorização de certas práticas e desvalorização e abandono de outras267 Dessa forma o MNU articulava as relações entre a cultura e a política entendida enquanto relações de poder A cultura não partia unicamente de uma concepção materialista preocupada com os modos de trabalho produção e circulação de bens materiais mas contemplava também a produção e as apropriações de objetos simbólicos A cultura era definida como um espaço de negociação entre a manutenção de visão de mundo e de poderes instituídos e novas formas de poder político exercido pelas camadas subalternas de uma sociedade Enquanto campo de negociação a cultura seria algo que mediaria os conflitos e seria dinâmica desenvolvendose de acordo com os novos contextos sujeitos e interesses Este documento mostra que há uma interdiscursividade entre os cientistas sociais aqui analisados e o MNU Assim continua o Programa de Ação do MNU Todavia a Cultura AfroBrasileira está presente na linguagem brasileira na religiosidade que mesmo marginalizada por credos oficializados leva pessoas a fazerem sua fé nos terreiros A Cultura trazida da África foi recriada no Brasil sob opressão e violência em permanente conflito contra opressores daí o seu caráter defensivo de resistência frente a todo um processo de branqueamento que toma a Cultura do NorteEuropeu como símbolo positivo como ideal e a Cultura Africana bem como os Negros como símbolo negativo268 267 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 268 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 Grifos nossos Nesta dissertação preservamos a grafia utilizada na fonte quanto ao uso de letras maiúsculas o que já evidencia a relevância de alguns conceitos para o MNU e também quanto à pontuação 146 Aqui percebemos que esta noção de cultura afrobrasileira enquanto um conjunto de articulações entre memórias de tradições africanas articuladas às novas condições de vida no cativeiro e às expectativas de vida dos africanos escravizados dialoga diretamente com a discursividade proposta por Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes Constatase que o MNU localiza outros lugares simbólicos da cultura afro brasileira denotando mais as formas do que especificamente os conteúdos a linguagem e não as palavras de origem africana a religiosidade e não apenas uma religião específica Alargamse os horizontes das práticas culturais Cabe ressaltar que esta definição não abomina outros lugares simbólicos da cultura afrobrasileira como a dança a gastronomia as festas a música etc Do contrário o que se incita é que estas práticas culturais sejam descolonizadas e reinterpretadas conforme uma ótica afrocentrada Enquanto manutenção de visão de mundo e de poderes instituídos a cultura afrobrasileira seria mantida como folclore pelas classes dominantes que a usavam escamoteando ou combatendo a visão de mundo que a nível popular pode ser bem diferente e mesmo contrária à burguesia 269 Já enquanto novas formas de poder político exercido pelas camadas subalternas de uma sociedade a cultura seria um instrumento dinâmico de luta política no qual caberia preservar sob a orientação do MNU Frente a esse modo de desvalorização e esmagamento de nossa cultura cabe ao MNU orientar respostas nesse processo incentivando os trabalhos de valorização da Cultura Negra criando formas para defendêlas preservála dinamizála e desenvolvêla enquanto instrumento de luta no processo de libertação de nosso país270 A fim de desconstruir estereótipos essencialistas acerca da cultura afro brasileira o MNU entende esta cultura como algo dinâmico Uma cultura que se expande negocia e adquire novos sentidos quando encampa lutas políticas Ao contrário do que o senso comum afirma sobre uma possível perspectiva estereotipada e essencialista da identidade cultural negra promovida pelo MNU há que se buscar as historicidade dessas construções analisandoas com bastante cuidado para cair em reducionismos A partir do movimento foram criados e recriados muitos símbolos Muitos conceitos foram positivados enquanto instrumentos simbólicos de luta política e 269 Idem op cit 270 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Programa de Ação Discutido e aprovado no III Congresso Nacional do MNU em abril de 1982 Grifos nossos 147 afirmação identitária num país que nega o racismo que perpetua Desde quando essas atitudes poderiam ser consideradas ilegítimas Só um observador apressado e imbuído de etnocentrismos é que não consegue perceber a lógica própria desta atividade A encruzilhada onde se encontram a política a educação e a cultura está no âmago do saber histórico O MNU e outros movimentos e instituições socioculturais se empenham em realizar tal operação simbólica São múltiplas as interações e apropriações discursivas gerando certos dizeres comuns tidos como importantes para a consciência histórica libertadorade homens e mulheres negros Eles buscam compor outras formas de narrativas e performances sobre a história e a cultura afrobrasileira A história é eleita como campo de reconstrução da identidade cultural e política dos negros Músicas vídeos peças de teatro são criados a partir de pesquisas e leituras diversas jornais sobre os direitos civis nos EUA processos de independência de países africanos livros sobre a história da África da escravidão e da cultura afrobrasileira intercâmbios encontros palestras e rodas de diálogo entre africanos e afroamericanos afrocaribenhos e afrobrasileiros etc A este respeito o militante Antônio Carlos dos Santos mais conhecido como Vovô líder do Bloco Afro Ilê Ayê de Salvador diz Aqui no Ilê é tudo muito em cima da música A música é um veículo condutor muito importante Aqui tem música tema que é a música do ano que é a música que educa Então é essa música que informa informa a cidade Não é só pra educar o branco para a gente também porque nós não tínhamos essa informação não temos no diaadia no livro didático E agora nós começamos a pegar esse material de uns 12 15 anos atrás e a transformar em caderno de educação para utilizar nas escolas Mais ainda é muito pouco aproveitado isso Quando a gente fala na Lei 10639 nós já fazemos isso há 30 anos271 Em Pernambuco nas cidades de Olinda e Recife ecoavam os cânticos dos afoxés Músicas que não apenas reverenciam a ancestralidade africana e o culto aos orixás mas que em Pernambuco assumiu nitidamente a militância negra e luta institucional contra o racismo272 As letras dos afoxés mais antigos ainda em atuação no 271 Depoimento de Antonio Carlos dos Santos Vovô In ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 p 2389 240 272 A historiadora Martha Rosa discute as relações entre os afoxés de Pernambuco e a militância política negra Ver QUEIROZ Martha Rosa Figueira Onde a cultura é política movimento negro afoxés e maracatus no carnaval do Recife 19791995 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade de Brasília UNB Brasília 2010 Já o historiador Ivaldo Marciano indica que em Pernambuco afoxé é um termo polissêmico pois significa um conjunto de práticas e representações que se aglutinam para reconstruir uma noção de identidade negra Entre esses 148 estado ilustram um pouco desse aspecto A música Tempos Passados de autoria de Rogério F Silva foi composta para o afoxé Alafin Oyó e diz Eu vim da ÁfricaEu sou nagôSou de origem negraSou filho de Alafin OyóHá tempos atrás me trouxeram para o BrasilNas ondas do marBateramme muito no navioA dor não passava e também não tinha fimMas não tive medo porque minha cabeça é de Alafin São muitas as significações políticas que pulsam dessa letra e da boca dos foliões negros que desfilam pelas ruas de Olinda e Recife nos carnavais de anos 198090 Além de afirmar uma ancestralidade africana ao vir de África o personagem negro que fala na música mas que representa toda uma população afrobrasileira afirma ser filho de Alafin Oyó Conforme a historiografia da África o soberano do reino do império yorubá tinha como título político de Alafin numa tradução ocidental seria a figura do rei Logo este negro ou esta comunidade que falacanta é filho descende do rei do soberano de Oyó capital do império yorubá Portanto adquirese um status de nobreza de realeza africana A história narrada em forma de música reafirma os momentos de dor e tormento no trajeto transatlântico mas ao mesmo tempo reafirma a existência de um acervo cultural o qual o negro escravizado faz uso para dar sentido a sua vida recriar laços de pertencimento e linhagem e com isso conseguir força para continuar lutando pela sobrevivência com o máximo de dignidade que puder Como se afirma isto Ao dizer que mesmo em meio à dor e ao tormento não houve medo E por que não houve medo Porque a cabeça273 do personagem é de Alafin ou seja ele é filho do orixá que foi Alafin Xangô Este orixá representa o poder dos trovões do fogo do poder masculino e da justiça São estes os sentidos que o autor ativa e chama para o acervo da militância políticocultural do afoxé Alafin Oyó nobreza orgulho valentia força justiça esperança O Afoxé Alafin Oyó não foi o único neste sentido Os Afoxés Ará Odé e Ilê de Egbá também construíram musicas militantes Outro antigo afoxé pernambucano cujas letras trazem grande dose de politização é o Afoxé Oxum Pandá Além do significados estão a é uma instituição de militância política negra b é um grupo que possui ligação direta e muito forte com o candomblé c é também uma expressão artística de grande teor estético d é uma entidade cultural que estimula a promoção social iniciando jovens no mundo da técnica da arte da militancia etc e é uma agremiação carnavalesca f é também um espaço simbólico de retorno a uma África mitificada enquanto valorização da ancestralidade e g é mais um espaço que possibilita a reconfiguração de identidades negras em Pernambuco estado brasileiro cuja maior referencia de negritude foi construída sobre o maracatu Ver LIMA Ivaldo Afoxés em Pernambuco usos da história na luta por reconhecimento e legitimidade Topoi v 10 n 19 juldez 2009 p 146159 273 No candomblé a cabeça é um ponto de capitação de energia uma espécie de portal Na lógica desta religião cada pessoa é filha de um ou mais orixás O orixá que rege a vida da pessoa é chamado orixá de cabeça Dizer que a minha cabeça é de Alafin é reafirmar que se é filho do orixá que em vida foi Alafin do império yorubá ou seja Xangô 149 carnaval este afoxé ganhou grande projeção na mídia pernambucana gravando Cds e se apresentando em vários eventos Seus Cds passaram a ser muito usados em projetos sócio educativos como o Programa Escola Aberta Refrões como os das músicas Não há silêncio de autoria de Jeane Siqueira e da música Meu Recado de autoria de Jorge Riba transformaramse em verdadeiros hinos à negritude como as músicas do Alafin O refrão de Não há Silêncio entoava O meu tambor não se cala não A minha voz não morre jamais já a música Meu Recado diz Eu sou filho de Orixá Babá Não venha me provocar Segue em frente o seu caminho Deixe o meu povo passar Eis algumas das estratégias presentes em Pernambuco de construção simbólica de uma comunidade sob ícones em comum para referendar pautas políticas História cultura e identidades negras eram ressignificadas em práticas políticoculturais das instituições negras Do movimento social negro estão emergindo novas demandas para o Ensino de História que se desejava para o Brasil inclusive já instruindo os caminhos possíveis para essa construção Essa nova configuração curricular não foi um processo fácil uma vez que o currículo é um espaço de disputa política pela legitimação de memórias identidades valores e crenças associadas às distintas categorias sociais Para inserir essa proposta de reeducação histórica política e cultural à sociedade brasileira vários caminhos foram trilhados Destacaremos aqui uma das ações mais importantes ocorridas no Recife por organização do movimento negro da cidade em 1988 quando ainda tinha o nome de MNURecife o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE cujo tema foi O negro e a educação Ateremonos um pouco neste evento pelo fato do seu tema ter selecionado o campo da educação como foco para se pensar as relações étnicoraciais no Brasil A exemplo de tantos outros encontros promovidos por diversas entidades negras no país nas duas últimas décadas do século XX nesse encontro foram propostas e debatidas algumas ações que culminariam anos mais tarde na Lei nº 10639 em janeiro de 2003 O encontro ocorreu na cidade do Recife entre os dias 29 e 31 de julho de 1988 sendo organizado pelo MNURecife e pela Escola Maria da Conceição O evento foi produzido a fim de causar uma série de reflexões críticas no ano de centenário da abolição da escravatura mas a sua efetivação foi ameaçada por grandes dificuldades financeiras Dificuldades que não foram solucionadas com toda eficácia mesmo contando com o financiamento de instituições públicas como a Universidade Federal 150 Rural de Pernambuco UFRPE que funcionou como umas das sedes a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco FUNDARPE a Fundação FORD Legião Brasileira de Assistência LBA Viação Aérea de São Paulo VASP Cia Hidrelétrica do São Francisco CHESF Água Mineral NOANA Indústrias Pilar Ministério da Cultura Prefeitura do Recife Banco do Estado de Pernambuco e Centro Josué de Castro274 O tema o negro e a educação foi proposto na edição anterior do ENNNE ocorrido em Belém PA e deveuse a compreensão dos militantes de que a educação é a base sobre a qual estruturase a forma de pensar e agir de um povo275 A educação brasileira era criticada na medida em que esta era considerada instrumento para se subjugar a população negra uma vez que legitima e reproduz um currículo eurocêntrico Criticando o tradicional perfil eurocêntrico da educação brasileira os ativistas assumem um compromisso com o aprofundamento dos estudos debates e ações que poderiam viabilizar uma tomada de consciência racial e fortalecimento de sua identidade étnico cultural Assim o VIII Encontro teve como preocupação central questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira através dos meios oficiais de educação do País A partir dessa consciência esperase que o VIII Encontro seja o início da luta pela reformulação do ensino no Brasil que passa principalmente pela construção de um curriculum que contemple também a cultura negra 276 Na programação do evento houve a definição do regimento do evento palestras debates apresentações artísticas discussões em grupos de trabalho elaboração de propostas plenária e posteriormente a elaboração de um relatório que registrasse e encaminhasse as propostas do evento como ações a serem desenvolvidas pelos diversos seguimentos que compõem o movimento negro No evento estiveram presentes representantes de estados brasileiros das cinco regiões além de autoridades políticas e intelectuais de países como Cuba e Guiana Francesa entre outros Marcaram presença também atores de diferentes espaços do universo cultural afrobrasileiro babalorixás 274 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 275 Idem op cit p 5 276 Idem Op Cit p 56 Transcrição compatível com a ortografia usada no documento 151 yalorixás bailarinos músicos diretores de agremiações carnavalescas de origem negra como as Escolas de Samba Maracatus e afoxés Ao lado destes estavam os professores diretores escolares e gestores públicos das redes municipais estaduais e federal Todos esses sujeitos articulados a partir das interlocuções dos militantes pesquisadores e professores universitários negros277 Uma das mesas redondas do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste no salão nobre da UFRPE Fotografia encontrada no Relatório do evento sem referência ao tema da mesa e aos componentes Foram muitas as problemáticas levantadas nesse evento assim como os debates e as opiniões nem sempre convergentes Porém havia uma tese em comum entre os diferentes seguimentos representados pelos intelectuais presentes a de que o sistema educacional brasileiro desqualificava a cidadania negra ao reduzir a identidade negra a um apêndice de uma história nacional de caráter eurocêntrico Fato que precisava ser modificado Muitas experiências na tentativa de reformulação do ensino a partir das relações étnicoraciais foram socializadas e registradas no relatório principalmente nas redes de ensino Estadual de Pernambuco e Bahia e Municipais de Olinda e Recife Houve várias propostas também dos representantes do Pará Em várias dessas propostas foram registradas uma grande preocupação com a reconstrução da história a ser contada 277 Não quero dizer que o evento tenha contado apenas com a presença de intelectuais negros mas que estes ocuparam um lugar central de articulação das discussões e proposições 152 evidenciando a participação ativa dos sujeitos negros na construção do Brasil valorizando a cultura afrobrasileira combatendo o racismo e reconhecendo a legitimidade das lutas políticas dos movimentos negros Ao longo do relatório destacaramse expressões como História da África A Luta dos Negros no Brasil A Cultura Negra O Combate ao Racismo A Reformulação dos Currículos de Ensino Um aspecto importante presente no discurso dos militantes era a valorização da cultura tanto nas escolas formais quanto nas escolas ou instituições informais de ensino Locais em que a cultura deveria exercer um papel relevante sendo praticada como instrumento de aprendizado e não como lazer apenas A cultura afrobrasileira era definida enquanto instrumento de ensinoaprendizagem de conscientização racial e construção da identidade negra de valorização da ancestralidade africana e de equiparação em nível de direitos e respeito quando comparada a outras culturas como as brancas indígenas etc Dessa maneira por exemplo propunhase que as religiões como a Umbanda e o Candomblé pudessem ser contempladas nos currículos escolares e assumiase uma postura de crítica à folclorização e comercialização da cultura afro brasileira no ensino de história278 A história ocupava cada vez mais a centralidade nos debates promovidos pelos distintos seguimentos do movimento negro enquanto possibilidade de construção de uma educação libertária que conte a verdadeira história sobre o povo negro Já que a história foi eleita era importante ao evento a legitimação de um discurso historiográfico Esse era assumidamente um desejo dos movimentos negros O historiador Biu Vicente representando a Prefeitura do Recife cumpriu este papel enfatizando a importância da atuação do MNU para essa mudança epistemológica no campo educacional Desde 1987 começamos a debater nas nossas capacitações com professores o que realmente significa o 13 de maio O fato da nossa escola começar a discutir essa questão não é uma invenção nossa Nós fomos empurrados pelos movimentos sociais Foi exatamente a militância dos movimentos negros dos movimentos sociais que empurrou a escola para discutir os problemas da 278 Os debates sobre a cultura afrobrasileira perpassam todas as palestras debates grupos de trabalho e a plenária final 153 sociedade Nada disso seria possível sem a militância dos movimentos negros279 Vicente afirma que a atuação dos militantes negros nas escolas através de visitas palestras rodas de conversa debates etc fez com que as escolas do Recife passassem a construir um novo conceito sobre o 13 de maio a partir de uma perspectiva crítica em que a narrativa histórica é revisitada e reconstruída sob outras vias de significação que contemplam a atuação negra e também as dificuldades dos afrodescendentes no pós abolição A história seria um campo discursivo ambíguo Ela teria forjado consciências quanto ao passado dos negros no Brasil mas ela também seria a possibilidade de ressignificação da identidade negra no presente criando novas possibilidades de existência cidadã no futuro280 Uma mesa bastante importante foi a de título O papel do professor na descolonização do ensino em que os debates giravam em torno da figura do professor como agente de reprodução de ideologias racistas Propunhase que para haver de fato mudanças no ensino não bastava a construção de um novo currículo mas também a mudança de postura do professor No debate a educadora Helena Teodoro afirmou ser fundamental haver uma mudança na relação do professor com o aluno recuperando sua criatividade Em visão complementar a educadora Tereza de França afirmava uma das dificuldades para a descolonização é não perceber que ensinar é um ato político O grupo de trabalho III O Racismo no Livro Didático foi dirigido pela educadora Ana Célia uma das fundadoras do MNUBA e principal pesquisadora do tema no Brasil Ela defendeu a sua tese de que ainda havia nos livros a ideologia do branqueamento enquanto reprodução de valores éticos e estéticos que positivavam apenas as crianças brancas em detrimento das negras Tal fato se dava explica Ana Célia pelo fato de que os livros didáticos reproduzem os preconceitos colonizadores da igreja dos pensadores e dos intelectuais que legitimavam a ideologia de inferiorização do negro sob uma discursividade tida como científica Para este trabalho importa saber quais foram as demandas geradas para o ensino de história Discussões que foram efetivadas pelo grupo de trabalho V Introdução da 279 VICENTE Biu A experiência do Recife In MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 p 23 280 VICENTE Biu A experiência do Recife In MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 154 história da África e do afrobrasileiro nos currículos escolares Nesse grupo discutiramse as experiências já existentes em algumas cidades e estados brasileiros de implementação de novas configurações curriculares que contemplassem a história da África dos povos negros e da cultura afrobrasileira O grupo concluía que para garantir esses novos temas no ensino de história seria essencial a publicação de bons livros didáticos que contemplassem tais conteúdos de forma responsável e a formação inicial e continuada de professores de história Destarte se deveria pensar também a reelaboração dos currículos não somente na educação básica mas sobretudo no nível superior para que os professores desenvolvessem os suportes intelectuais necessários às suas práticas pedagógicas Todas as propostas desse grupo foram aprovadas por unanimidade na plenária final A saber 01 Incluir o dia 20 de novembro no calendário escolar como Dia Nacional da Consciência Negra 02 Revisão da História do Brasil por historiadores comprometidos com a questão do negro 03 Revisão dos livros didáticos por profissionais empenhados na causa do negro 04 Criação nas secretarias de educação da rede estadual e municipal de grupos de estudos com a participação de visitantes do movimento negro voltados para discutir as questões específicas do negro 05 Aproveitamento do material produzido pelos movimentos negros como material didático 06 O movimento negro deve junto às entidades ligadas à educação mobilizarse para participar no processo de discussão da Lei de diretrizes e bases 07 Garantir que no curso de magistério se discuta a questão do negro O como fazer fica a cargo de cada Estado 08 Que se inclua nas Universidades o centro de letras Departamento de Línguas Africanas e no de História História da África 09 Implantação de escolas para a comunidade a nível nacional a cargo e sob a responsabilidade do movimento negro de cada Estado Para isso seriam utilizados subsídios existentes em cofres públicos cabendo aos movimentos negros levantar projetos nessa ordem 10 Inclusão da história da África e cultura negra no Brasil nos currículos ou pelo menos em torno dos livros programas curriculares Professores e Ciências Humanas 11 Fazer reciclagem com os professores de 1º e 2º graus em História da África e Cultura Negra pelas Faculdades de Educação a nível nacional Fazer textos para serem divulgados pelos professores e alunos sobre história da África e cultura negra 12 Lutar por uma Universidade aberta democrática e participativa onde haja a presença da cultura popular especialmente da cultura Afro 13 Proposta e convite para o engajamento de militantes negros nas reuniões às terçasfeiras às 9 hs para discutir a questão curricular e 155 para subsidiar na mudança da orientação de rede municipal de Olinda 14 Sugerir a criação de uma associação de professores negros e comprometidos com a causa e que a associação legitime os professores que lecionam Introdução da História da África e do AfroBrasileiro nos currículos escolares professores que tenham conhecimento da história281 Dessa forma se legitima oficialmente uma série de demandas do movimento negro unificado para o ensino de história Disciplina que foi eleita como campo discursivo de uma educação libertadora e passou a ocupar a centralidade dos debates e dos anseios dos militantes negros como possibilidade de reconstrução simbólica da identidade negra A criação de disciplinas específicas nos diferentes níveis de ensino e a revisão dos conteúdos de história a publicação de livros didáticos a formação inicial e continuada de professores a criação de grupos de estudo entre professores e ativistas negros nas redes de ensino a formação de grupos para analisar livros didáticos de história e supervisionar projetos políticopedagógicos a instituição de uma data comemorativa como o 20 de novembro o reconhecimento da cultura afrobrasileira como instrumento político de construção identitária e mudança social Todas essas demandas serão constantemente atualizadas em novos eventos do MNU até que sejam transformadas em aparatos legais no final do século XX e início do século XXI Cultura educação e política estão entrelaçadas como proposta de um novo projeto de sociedade brasileira que preze pela ética e pela responsabilidade com a integridade de todos os seus cidadãos Estas foram as estratégias propostas debatidas e adotadas pelos diferentes seguimentos do movimento negro a fim de construir uma nova rede de significações de atribuir novos sentidos a ideia de negritude Negritude enquanto cultura um modelo de vida que se conquista enquanto conscientização e que se converte em atitude para garantir a conquista de direitos políticos 281 MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO DO RECIFE Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Recife 1988 p 7879 156 Imagens do Relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste o negro e a educação Na capa foto de atividade lúdicoeducativa promovida pelo Centro Maria da Conceição localizado no Morro da Conceição periferia do Recife Nesta instituição as educadoras empenhavamse em construir o conhecimento a partir da experiência sociocultural das crianças e a partir disto dialogar com os conteúdos escolares formais como a alfabetização Outro importante evento promovido pelo movimento ocorreu entre os dias 13 e 15 de abril de 1990 Foi o IX Congresso Nacional do MNU em Belo Horizonte onde o Programa de Ação criado em 1982 foi revisto e criticado propondose um novo texto Este documento contudo guardou muitos dos anseios do movimento negro No que concernem às articulações entre cultura e educação as noções do MNU não mudaram muito embora tenham amadurecido A educação é compreendida como um processo de ensinar e aprender que ocorre cotidianamente em todas as experiências do ser humano portanto a educação transcende a escola No entanto a instituição escolar ainda é legitimadora da mobilidade social e de desenvolvimento da cidadania em nossa sociedade letrada Assim ela se torna também muito importante para a população negra embora não seja o único espaço educativo que essa população possui Contudo dizse no documento o problema é que a educação ainda se constituíra enquanto campo de produção de desigualdade e de reprodução do racismo efetivado pelo apagamento das memórias negras nas narrativas históricas pela negação dos conflitos raciais e pela desqualificação da cultura afrobrasileira Destarte o MNU insistia que entre outras 157 soluções possíveis não poderiam deixar de ser realizadas para a inclusão da disciplina História da África e do Povo Negro no Brasil nos currículos escolares282 Já a discussão de cultura se apresenta de forma mais densa nesse novo documento A noção de cultura do movimento negro continua dialogando com as perspectivas de Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes Ainda se preza pela ideia de que a cultura afrobrasileira esteja articulada à política Contudo o documento pondera duas perspectivas pelas quais a cultura tem sido tradicionalmente abordada em diferentes níveis de estudos e legitimada em ações cotidianas e de políticas públicas 1 primeiramente a permanência da alienação ou manipulação política da cultura pelos brancos Fato que gera algumas conseqüências imediatas a redução da cultura negra à culinária ao lúdico e ao religioso o alijamento da atuação do negro às esferas de decisão da sociedade e sua subordinação econômica a desvinculação da cultura à história de luta e opressão do povo negro e a geração de lucros com a venda da cultura negra pelo branco 2 em segundo lugar a ruptura ou seja a articulação consciente entre cultura e política pela população negra Neste sentido as práticas culturais afro brasileiras seriam mediadoras de conflitos políticos que se estabelecem cotidianamente além de redefinirem as identidades sociais Essa noção gerava como demanda para o MNU atuar na conscientização política das Escolas de Samba Afoxés Maracatus Grupos de Capoeira Terreiros de Candomblé entre outros tipos instituições culturais nas artes visuais filosóficas e literárias por exemplo O objetivo dessa ação seria estimular um salto qualitativo do papel político e social desses grupos283 Na verdade o Programa de Ação de 1990 só atualiza as críticas definições e propostas Todo esse processo de legalização de suas recomendações continuou ocorrendo durante a década de 1990284 Conforme Sales Augusto Soares285 entre o fim da década de 1980 e início da década de 1990 vários estados eou municípios brasileiros criaram leis que reformulavam os currículos escolares garantindo lugar à história da África e 282 MOVIMENTO NEGRO Programa de Ação aprovado no IX Congresso Nacional Belo Horizonte 1990 p 14 283 Idem Op Cit p 16 284 No Rio de Janeiro em março de 1991 foi aprovado no II Congresso Nacional Extraordinário o Estatuto do Movimento Negro Unificado ampliando a base legal do movimento 285 SANTOS Sales Augusto A Lei nº 1063903 como fruto da luta antiracista do Movimento Negro In MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Educação AntiRacista caminhos abertos pela Lei nº 1063903 Brasília MEC 2005 158 história e cultura afrobrasileira a exemplo Bahia286 Porto Alegre287 Belém288 Aracaju289 São Paulo290 Teresina291 e Brasília292 No fervor das discussões daquela década alguns eventos puderam marcar a história do Brasil sob o prisma do MNU como a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Cidadania e a Vida ocorrida em 20 de novembro de 1995 em Brasília quando os seus organizadores foram recebidos pelo então presidente da república Fernando Henrique Cardozo no Palácio do Planalto Na ocasião o presidente assumiu a existência do racismo no Brasil e propunha a criação de ações afirmativas para a população negra em seu governo Os organizadores da marcha entregaram ao presidente o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial documento no qual propunham entre outros elementos a implementação de uma convenção sobre a eliminação da discriminação racial no ensino brasileiro o monitoramento dos livros didáticos manuais didáticos e programas educativos controlados pela união e o desenvolvimento de formações continuadas de professores habilitandoos a abordarem a diversidade racial identificar as práticas discriminatórias na escola e o impacto destas na evasão e repetência de crianças negras Contudo esse projeto ficou guardado por algum tempo Mas o contexto em torno do projeto de revisão da educação brasileira a partir dos debates sobre as relações étnicoraciais tornava cada vez mais evidente o caminho de mudança que paulatinamente se trilhava Além da marcha Zumbi dos Palmares em 1995 foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra em 1996 Também foram elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais pelo Ministério da Educação que para a disciplina escolar História referendava a importância de estudar a participação ativa das três matrizes formadoras da identidade nacional indígenas européias e africanas Já em 2001 ocorreram a Conferencia Mundial contra o Racismo a Discriminação Racial a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância Evento organizado pela ONU realizado em Durban na África do Sul Neste último evento o MNU reafirmou a necessidade de o Brasil implementar políticas 286 Constituição do Estado da Bahia 05 de outubro de 1989 287 Lei nº 6889 de 05 de setembro de 1991 288 Lei nº 7685 de 17 de janeiro de 1994 289 Lei nº 2221 de 30 de novembro de 1994 E Lei nº 2251 de 31 de março de 1995 290 Lei nº 11973 de 04 de janeiro de 1996 291 Lei nº 2639 de 16 de março de 1998 292 Lei nº1187 de 13 de setembro de 1996 159 afirmativas sobretudo para a população negra ao passo que o Estado brasileiro assumiu o compromisso de implementar essas políticas a fim de combater o racismo e as disparidade étnicoraciais293 Como fruto da emersão dessas reivindicações e ações dos movimentos negros associadas ao fato de o Estado brasileiro ter se comprometido publicamente com a reparação das desigualdades raciais em suas múltiplas instâncias de ação é que em janeiro de 2003 quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva o governo federal sancionou a Lei nº 10639 tornando obrigatório o ensino de história da África dos povos africanos do negro no Brasil e de história e cultura afrobrasileira Por conseguinte podemos afirmar que essa lei resulta de uma luta maior do MNU pelo fim do racismo no Brasil em que a educação foi eleita como campo de ressignificação da identidade cultural negra a partir da qual construindose uma nova discursividade partindo da ação políticocultural dos movimentos negros em consonância com historiadores e cientistas sociais de referência que reformularam a noção de cultura afro brasilera se expandiriam as novas possibilidades históricas de democratização do ensino de história Os cidadãos negros não estariam reduzidos às recordações românticas do colorido folclore ou ao fatalismo da exclusão sem saída Não negaria o lúdico a capoeira a gastronomia a dança a música a festa o candomblé a umbanda e a jurema sagrada etc Não negaria o racismo a pobreza e a falta de trabalho e a evasão escolar Porém traria à luz a esperança Mas garantir que a esperança ultrapasse o mundo das abstrações e se concretizasse no mundo real na experiência cotidiana da sociedade brasileira era necessário instituir práticas discursivas textos oficiais discursividades profícuas A identidade cultural negra era ressignificada através da atividade política sobretudo no nível cultural Os cidadãos negros que passariam a ser reconhecidos como sujeitos que produzem conhecimentos em diversas áreas do saber humano e que mesmo agindo nos espaços lúdicos gastronômicos e religiosos o fazem com sentidos muito 293 Mais informações sobre esse contexto podem ser acompanhadas em BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da Lei nº 1063903 e a Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco UFPE Recife 2009 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Mácia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 160 próprios desenvolvendo uma lógica bastante complexa de negociação e construção identitária Esses são os sentidos das lutas do MNU e suas várias facetas que culminou no estabelecimento da Lei 10639 em janeiro de 2003 A esse respeito a historiadora Circe Bittencourt 2006 afirma que para que ocorram mudanças nas propostas curriculares é necessário que tenham existido mudanças na sociedade e mais precisamente na clientela escolar Quando se reconhece oficialmente que surgiram novas demandas socioculturais e políticas na sociedade e mais especificamente no ambiente escolar fazse necessário repensar e modificar as propostas curriculares294 A Lei 1063903 modificou o artigo 26 da Lei 939496 denominada Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB No Capítulo II Seção I Das Disposições Gerais a LDB considera o currículo de forma flexível contextual adaptável às diferentes localidades do Brasil Art 26 Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte diversificada exigida pelas características regionais e locais da sociedade da cultura da economia e da clientela No parágrafo 4º do referido artigo incitase o reconhecimento da pluralidade cultural como conteúdo a ser abordado no ensino de história 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro especialmente das matrizes indígena africana e européia Porém num currículo que perpetua uma visão de mundo eurocêntrica a existência de um único parágrafo em forma de sugestão não garante por si só a efetivação de práticas pedagógicas que privilegiem a história e cultura das diferentes matrizes étnicas 294 BITTENCOURT Circe O Saber Histórico na Sala de Aula São Paulo Contexto 2006 161 Como bem atestam Marcus Silva e Selva Guimarães Fonseca295 o currículo é um campo de lutas Um espaço disputado por diferentes sujeitos com diferentes intenções e projetos políticos Nesse espaço simbólico somente alguns conhecimentos poderão ser contemplados e em se tratando do saber histórico escolar poderá perpetuar a memória de um grupo sobre outro A memória de um grupo que detém o poder de dizer e fazer a política educacional O currículo é um lugar de negociação de sentidos e como tal expressa tensões conflitos acordos consensos aproximações e distanciamentos Enquanto construção cultural ele é dotado de uma historicidade é plástico pode readequarse a novas demandas de significação política social e cultural Como vimos ao longo deste capítulo o MNU buscou ser ativo na disputa por esse espaço de legitimação de poderes que é o currículo escolar Na falta de maiores ações efetivas o MNU continuou pressionando o governo federal para que tomasse providencias quanto ao combate ao racismo Uma vez que no contexto da Conferência de Durban em 2001 o governo brasileiro havia se comprometido com a ONU referente à aplicação de medidas de reparação racial para tal foi sancionada a Lei nº 1063903 tornando obrigatório nas redes de ensino brasileiras O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei Art 1 A Lei n 9394 de 20 de dezembro de 1996 passa a vigorar acrescida dos seguintes arts 26A 79A e 79B296 Art 26A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio oficiais e particulares tornase obrigatório o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira 1 O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos a luta dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política pertinentes à História do Brasil 295 SILVA Marcus FONSECA Selva Ensinar História no Século XXI em busca do tempo entendido Campinas Papirus 2007 296 O artigo 79 da LDB trata do projeto educativo para as comunidades indígenas garantindolhes uma política cultural que embora dialoga com o restante da sociedade brasileira priva pela valorização também das práticas culturais especificas desses povos Com a Lei 1063903 instituise neste artigo o Dia Nacional da Consciência Negra 162 2 Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras Art 79B O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra Art 2 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação Brasília 9 de janeiro de 2003 LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque No texto da lei podemos ver o uso de alguns termos presentes nas propostas do MNU desde o Programa de Ação de 1982 o que denota que esse projeto foi elaborado por militantes que estavam imbuídos nessas práticas discursivas O discurso oficial do Estado brasileiro se alimentava dos discursos atualizados do MNU que por sua vez se afinava cada vez mais com os historiadores e cientistas sociais comprometidos com a causa dos negros Nesta prática interdiscursiva ganha destaque a história da África das lutas do povo negro e da cultura afrobrasileira na formação da nacionalidade porém percebase no texto da lei que ainda se usa o termo contribuição ao invés de participação como o desejava o MNU Pode parecer simples mas a escolha de determinados termos em detrimento de outros revela visões de mundo e relações de poder Enquanto que por exemplo o termo participação atribui um sentido de atividade na ação histórica o termo contribuição minimiza afasta marginaliza a ação do outro É importante lembrar que embora haja uma notável interdiscursividade com o MNU ao passar pelo congresso e ser sancionado pelo presidente o texto passa a assumir a voz do governo e neste sentido o MNU e toda a comunidade que ele representa voltam a ser o outro Assim por mais que pareça que se está dando um grande passo inovador se está na verdade reproduzindo representações minimizantes da participação negra na história Brasil que são presentificadas pelo anunciado da lei297 Na análise do discurso todas as formas de expressão tem importância e constroem significados pois Todo dizer é 297 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editores 2012 163 ideologicamente marcado É na língua que a ideologia se materializa Nas palavras dos sujeitos 298 e isso ocorre mesmo que por vezes eles não se deem conta O porquê de se proferir um discurso de uma forma e não de outra encontrar a mensagem transmitida naquilo que não foi dito como uma presença de uma ausência necessária299 problematizar a interpretação do dizível contextualizandoa e percebendo as relações de poder que a interpelam Essa minimização do negro ao contento de uma lei federal não ocorreu apenas no plano mais sutil do discurso Ela se deu também de forma objetiva negando a intervenção direta e legal do MNU na produção de discursos nessa política educativa que se instalara afinal foi vetada a participação do MNU na elaboração de materiais didáticos e na formação de professores como fora requisitado pelo movimento no VIII ENNNE nos Programas de Ação e demais espaços formativos É questionável até que ponto essa nova discursividade que fora convertida em lei promoveu o protagonismo negro na reconstrução da proposta educativa brasileira uma vez que lhe foi negado a participação em processos futuros de intervenção O Estado diz que o MNU só pode vir até determinado ponto da ação Além disso a existência de uma lei na teoria não garante a realização de atividades práticas quanto ao ensino de história e cultura afrobrasileira Se a lei propunha o combate ao racismo através da construção crítica do conhecimento sobre a experiência histórica e cultural dos negros no Brasil ela esbarrava nas dificuldades de outros recursos tão necessários a sua concretização a formação de professores e a produção de livros e materiais didáticos por exemplo Conforme a educadora Claudilene Silva Significa dizer que apesar da conquista de marcos legais que tentam garantir a singularidade e pluralidade do espaço escolar a escolarização da população negra brasileira tem se pautado por uma ideologia que ainda é fundamentada no desejo de branqueamento do Brasil e no mito da democracia racial A escola que a população negra conhece ainda é uma escola que tem negado a sua existência300 298 Idem Op Cit p 38 299 ORLANDI Eni Análise do Discurso princípios e procedimentos Campinas Pontes Editores 2012 300 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 19 164 Embora o governo federal e muitos profissionais do ensino tenham se empenhado nos últimos anos em produzir diversas ações de transformação deste quadro tais como a produção de materiais didáticos específicos o fomento a projetos culturais a promoção de eventos e cursos de formação de gestores e professores etc a qualidade de muitas destas ações pode ser questionada sobretudo quando perguntamos qual a noção de cultura afrobrasileira que permeia cada uma dessas ações Com uma lei ainda tão genérica que não estabelece metas nem procedimentos de ações e além disso que também veta a iniciativa direta do MNU na ação política quanto à efetivação da lei as clivagens entre teoria e prática se tornaram evidentes Foi assim que o Conselho Nacional de Educação CNE emitiu o Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 como documentos reguladores da Lei 1063903301 O conselho teve como relatora a Profª Dra Petronilha Beatriz Gonçalves302 No parecer CNECP 032004 buscouse ser bem abrangente Sugeriuse valores como justiça social dignidade humana cidadania respeito às diferenças e valorização das identidades afrobrasileiras como fundamentos para se efetivar a lei no cotidiano de sala de aula Estas ações são estabelecidas no discurso da relatora como princípios orientadores da política educacional para as relações étnicoraciais e versa sobre formação de professores conteúdos e formas de abordagem e produção de livros e materiais didáticos A cultura afrobrasileira é pensada em sua diversidade É definida dentro da perspectiva do MNU referência pela qual a autora enquanto ativista negra 301 CUNHA Jr Henrique Abolição inacabada e a educação dos afrodescendentes Revista Espaço Acadêmico 2008 nº8 outubro ano VIII ISSN 15196186 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 302 Reconhecida militante negra e pesquisadora das relações étnicoraciais no Brasil Petronilha é professora titular da Universidade Federal de São Carlos UFSCar O texto da professora partiu de uma pesquisa feita com aplicação de questionários a vários sujeitos grupos do Movimento Negro militantes individuais Conselhos Estaduais e Municipais de Educação professores engajados com a temática e pais de alunos Foram encaminhados em torno de 1000 questionários e o responderam individualmente ou em grupo 250 mulheres e homens entre crianças e adultos com diferentes níveis de escolarização As respostas analisadas nestes questionários foram importantes para que se traçassem problemas dificuldades e dúvidas reais dos múltiplos sujeitos a quem o ensino de história e cultura afrobrasileira interessa Por conseguinte esses dados serviram de base para que o parecer tecesse suas orientações posturas indicações normas temas materiais e métodos Isso nos faz perceber a complexidade de sujeitos envolvidos na produção de demandas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Para além do MNU foram relevantes também diversos ativistas negros individualmente acadêmicos agremiações e grupos culturais professores gestores pais etc As vozes destes sujeitos negociaram sentidos sobre a cultura afrobrasileira e sua importância política no currículo de história Compartilharam dificuldades e esperanças traçando projetos Além de ter a profa Petronilha a construção do parecer contou também com a participação de intelectuais de diferentes pertencimentos étnicoraciais tais como a professora indígina Francisca Novantino Pinto de Ângelo Nezokemaero que atua como membro representante indígena na Comissão Nancional de Professores Indígenas do MEC e dos professores brancos Carlos Roberto Jamil Cury professor émerito da UFMG e expresidente da CAPES e da professra Marília AnconaLopez doutora em psicologia clínica que atua como assistente doutor da Pontifícia Unviersidade Católica de São Paulo 165 busca legitimar o seu texto no Parecer Os lugares simbólicos dessa cultura afro brasileira são amplos e pequenos ao mesmo tempo fluidos e consistentes as danças músicas festejos a capoeira o teatro a linguagem as religiosidades O ensino de Cultura AfroBrasileira destacaria o jeito próprio de ser viver e pensar manifestado tanto no dia a dia quanto em celebrações como congadas moçambiques ensaios maracatus rodas de samba303 Mas também entre outras manifestações culturais mais estruturadoras das relações sociais os conceitos a estética as relações culturais ambientais sociais e políticas as formas de trabalho a produção do conhecimento aos conceitos e significações próprias que os negros constroem dentro de sua lógica cultural muito própria em seus diversos contextos de experiências históricas Com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Brasil na construção econômica social e cultural da nação destacandose a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento de atuação profissional de criação tecnológica e artística de luta social304 A resolução por sua vez estabelece o referido parecer como Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e ressalta que o cumprimento das diretrizes será um fato determinante na avaliação do funcionamento das unidades escolares Ainda assim essa decisão extremada não garante o cumprimento dos planejamentos oficiais Art 2 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africanas constituemse de orientações princípios e fundamentos para o planejamento execução e avaliação da Educação e têm por meta promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil buscando relações étnico sociais positivas rumo à construção de nação democrática 2º O Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade história e cultura dos afrobrasileiros bem como a garantia de 303 BRASIL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Parecer CPCNE 032004 Brasília 22062004 304 BRASIL Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana Parecer CPCNE 032004 Brasília 22062004 166 reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira ao lado das indígenas européias asiáticas Pensando a educação como um desenvolvimento intelectual que contempla a consciência racial os intelectuais responsáveis por estas elaborações oficiais propõe que o Ensino seja o campo não só fomento ao desenvolvimento social dos estudantes negros mas também uma experiência significativa de construção de identidade sentimento de pertencimento reflexão crítica definição de posturas políticas valorização exercício e divulgação da cultura afrobrasileira como marcas distintivas e estimadas mesmo em meio a uma sociedade racista Desta forma a educação seria um espaço de construção e vivencia da cidadania Mas a aplicabilidade desse conceito depende das diferentes apropriações que podem ser feitas no cotidiano do ambiente escolar Vai depender muito dos personagens que se cruzem e negociem sentidos e poderes nas encruzilhadas discursivas da história Para Claudilene Silva devemos compreender a legislação e suas diretrizes dentro do campo das relações étnicoraciais brasileiras como política educacional de promoção da igualdade racial ou seja uma política afirmativa que busca compensar as conseqüências atuais de uma sociedade que reproduz um racismo como estruturador das desigualdades sociais Tal contexto gera um incomodo não só em vários setores da sociedade brasileira como também no Estado brasileiro que embora se proponha como republicano resiste a equacionar desigualmente a diversidade305 Identidades cenários e poderes que circulam em discursividades múltiplas o negro a representação sobre o negro a representação do negro Políticas públicas currículo formal formação de professores práticas pedagógicas representações do alunado conflitos no ambiente escolar reprodução do racismo omissões quanto ao estudo de história e cultura afrobrasileira materiais e livros didáticos Discutir essa complexa rede de artefatos e signficações no Ensino de história é uma tarefa muito ampla e por isso mesmo difícil Há que se fazer recortes e tomar apenas um desses elementos 305 SILVA Claudilene O Processo de Implementação da Lei Nº 1063903 na Rede Municipal de Ensino do Recife In AGUIAR Márcia Ângela Org Educação e Diversidade Recife Gráfica J Luiz Vasconcelos 2009 v 2 p 0938 167 Para as ciências sociais brasileiras sobretudo a História a presença negra e seu universo cultural tornaramse objeto de estudos específicos com o desenvolvimento do Estado republicano Entre finais do século XIX e durante todo o século XX essa preocupação se atualizou e apareceu de diferentes formas conceituais Ora reforçando estereótipos ora buscando desconstruílos Temos assim um elenco de conceitos de cultura afrobrasileira e algumas propostas de uma cartografia desta cultura localizandoa em determinados lugares simbólicos por vezes plasmandoa de forma irrevogável sem conhecer seus sentidos mais profundos Em outro contexto intelectuais brancos e negros ao lado dos movimentos negros se preocuparam em revisar conceitualmente a história e a cultura afrobrasileira e com isso constroem uma série de pautas e reivindicações que legitimam direitos políticos em prol de uma cidadania negra brasileira Produzemse novos sentidos novas conceituações interdiscursivas que redefinem e relocalizam simbolicamente a cultura afrobrasileira nas representações e nas reorginazações do nacional Nesse processo de construir legitimidades o ensino de história é reconfigurado a partir de demandas identitárias mais democráticas 168 CONSIDERAÇÕES FINAIS A cultura afrobrasileira se torna objeto de estudo no Brasil a partir do momento em que o Estado brasileiro passava por reconfigurações políticas no final do século XIX Se agora o Estado se assumia republicano era necessário pensar de forma mais ampla os seus critérios de cidadania Desde o fim do império brasileiro que os negros não eram escravos mas inda na república não estavam tão claros os projetos de cidadania a ser vivenciados pelos diferentes cidadãos Aliás a diferença num sentido de distinção para usufruto de privilégios políticos foi a regra de estabelecimento de níveis diferenciados de cidadania O Estado se reformulava politicamente mas não deixava de manter relações de desigualdade social As elites ainda mantinham seus propósitos na gestão republicana O novo advento político exigia nova reinvenção do nacional e a cultura foi um dos elementos centrais do mito fundador do Brasil As discursividades emergentes queriam entender o caráter nacional na alma do povo verificando a participação dos três grupos étnicos indicados como formadores do Brasil brancos negros e índios É a partir do critério contribuição na história do desenvolvimento nacional que se legitimará as hierarquias raciais no Brasil Desta forma se legitima discursivamente que aqueles cidadãos em melhores condições sociais são descendentes das raças que mais e melhor contribuíram para o desenvolvimento do Brasil Essa perspectiva racializante naturaliza as diferenças reconfigurando as relações de poder306 Entender esse processo é essencial para perceber as redes de significação discriminatórias que orientam as ações das pessoas ainda hoje perante a população negra e sua cultura Segundo Edward Said307 existe uma profunda diferença entre o ato de estudar o outro para conhecêlo para alargar horizontes e tecer boas relações de convivência entre o eu e o outro e estudar e conhecer esse outro para poder dominálo colonizálo definir suas possibilidades históricas políticas e culturais O movimento negro surgido em finais dos anos 1970 estava atento a isto e buscou referenciarse em uma complexa rede de discursividades que legitimassem as suas pautas políticas Em meio ao processo de descolonização da África aos movimentos pelos direitos civis nos EUA às críticas de intelectuais que põem na 306 SCHWARCZ Lilia Moritz O Espetáculo Das Raças cientistas instituições e questão racial no Brasil 18701930 São Paulo Companhia das Letras 1993 307 SAID Edward Orientalismo o oriente como invenção do ocidente São Paulo Companhia das Letras 2007 169 agenda pública as violências material e simbólica das formas de dominação das sociedades modernas ocidentais em meio às teorias sobre a educação como instância legitimadora ou transformadora de desigualdades sociais surgem textos argumentos e ideias que nutriram o nascente MNU e suas críticas ao Estado brasileiro suas propostas e definições conceituais Dentre suas pautas políticas está a briga pelo universo simbólico e semântico pela representação da identidade cultural negra e a sua dignidade na História Assim julgam os militantes negros do século XX no Brasil há a permanência de um racismo velado que deslegitima social econômica e politicamente a identidade cultural negra Mas este racismo foi construído historicamente é portanto uma construção cultural suscetível de eliminação Nesta luta o MNU assumia postura contra a manipulação ideológica e exploração da cultura afrobrasileira ao passo que se empenhava por sua valorização e uso como instrumento de atuação política Mais do que posicionamentos do MNU estas propostas marcam zonas de interdiscursos Ora aproximações discursivas entre o MNU e uma estabelecida tradição de estudos afrobrasileiros para negaremse ora aproximações entre o MNU e novos estudiosos da cultura afrobrasileira para afirmaremse Desse modo a historicidade do conceito de cultura afrobrasileira mostra que este termo é polissêmico Corresponde não só às práticas culturais em si mas também aos discursos sobre tais práticas O conceito de cultura afrobrasileira como discursividade é algo aberto às significações múltiplas sendo apropriado e ressignificado por diferentes sujeitos com diferentes intenções em momentos distintos da história Essas significações denotam histórias de lutas entre formas de dominação e de libertação entre colonização x descolonização políticocultural Enfim a história da cultura afrobrasileira enquanto discursividade denota poderes O posicionamento estratégico do MNU em seus textos contra a manipulação ideológica e a exploração da cultura afrobrasileira nos instigou a historicizar este processo contra o qual o movimento se coloca oficialmente Percebemos haver a formação e atualização de uma tradição de pensamento colonizadora dominadora sobre a cultura afrobrasileira que foi alimentada por vários intelectuais Tivemos de selecionar e decidimos pelos inauguradores dos paradigmas interpretativos sobre a cultura afrobrasileira Aqueles autores que com muita originalidade e rearranjos teóricometodológicos forjaram narrativas sistemas de explicação e plasmaram as representações sobre o tema que se tornaram clássicas Constatamos que mudanças paradigmáticas mudanças de referenciais teóricometodológicos não consistem 170 necessariamente em mudança de visão de mundo em relação a um determinado tema Autores como Nina Rodrigues Gilberto Freyre e Florestan Fernandes partiam do pressuposto que a cultura afrobrasileira é quando comparada à cultura do branco ocidental cristã moderna capitalista neoliberal racista etc uma cultura menor menos enraizada ou estruturada etc Estes autores não conseguiam compreender a lógica própria do objeto ao qual se propunham a estudar Eles realizaram operações simbólicas e conceituais que identificam e classificam a produção cultural afrodescendente no Brasil pela carência plasticidade infantilidade alienação e grosseria de seus conteúdos e formas São tomados como práticas culturais autenticamente negras a dança a música a festa a escultura a culinária o candomblé a capoeira etc afirmase indiretamente que só se é negro dentro destes nichos culturais dentro desses lugares simbólicos Não se estende a noção de cultura afrobrasileira a outras práticas experiências históricas e visões de mundo Ela é definida pela superficialidade de suas linhas e socialmente desclassificada no dizer do intelectual branco São as danças lascivas as músicas desordenadas as festas desorganizadas as esculturas grosseiras a culinária simples e colorida a religião fetichista o lúdico agressivo No olhar e no dizer colonizador do branco a cultura afrobrasileira é instintiva e não racional Ela deve ficar adormecida sob os lençóis ou enfeitando as coloridas e folclóricas pinturas e fotografias que deverão permanecer guardadas durante todo o ano para não por o país a perder Ela só seria chamada quando necessário à espetacularização e lucratividade do Estado brasileiro e das classes dominantes Uma discussão datada mas que torna clássicas as representações de lugares simbólicos que serão retomados posteriormente por uma grande série de intelectuais brasileiros pela mídia pelas instituições escolares pela indústria cultural etc O processo de estereotipização da cultura afrobrasileira gera lucros para os cidadãos não negros e para o Estado brasileiro ao passo que deslegitima as pautas políticas da população negra Era contra isso que o MNU se posicionava Definidos os nichos autênticos de cultura negra limitase simbolicamente o acesso dos negros a outros espaços de saber e poder limitamse as possibilidades históricas antropológicas e sociais Negase a memória de outras experiências históricas e socioculturais dos negros no Brasil pois tratase de uma perspectiva cultural determinista Não se deve esquecer que num contexto de liberalismo a sociedade burguesa entende como cultura os saberes científicos tecnológicos artísticos e filosóficos produzidos pelas classes dominantes o que pressupõe uma divisão social 171 entre saberes intelectuais e manuais cuja distinção efetivase pela educação formal para ter competência de produzir uma boa cultura308 Nessa perspectiva distintamente da arte a cultura afrobrasileira estaria no campo do folclore Não objetivamos com este trabalho inferiorizar ou desconsiderar o vestuário a gastronomia309 a música a dança a escultura o candomblé enquanto práticas culturais afrobrasileiras Não consideramos que esses lugares simbólicos sejam destituídos de inteligência ou que não haja neles a realização de complexas operações mentais Longe disso Nossa inquietação corresponde ao momento em que esses lugares simbólicos se tornam discursivamente as únicas experiências possíveis sendo tomados como critérios de autenticidade da identidade cultural negra no Brasil Pior ainda sendo incompreendidos e depreciados Uma vez identificadas as intenções estratégias e consequências dessa rede discursiva o próprio MNU ponderoua como uma discussão datada historicamente que não poderia continuar sendo perpetuada no imaginário nacional Afinal sabiam os militantes já se dispunha de outros referencias que ressignificavam o saber e as relações de poder em relação ao tema No Programa de Ação do MNU o movimento convidava historiadores antropólogos e outros cientistas sociais preocupados com a causa do negro para estabelecer diálogos e parceria num intenso revisionismo do nacional No livro Cafundó Peter Fry Carlos Vogt e Robert Slenes assumem que consideram legítima a causa do MNU e que decidiram se aproximar do movimento contribuindo através de pesquisas científicas com as suas pautas políticas Nestes encontros e negociação de sentidos o conceito de cultura afrobrasileira é reformulado Esta cultura passa a ser definida como um conjunto de práticas que articulam memórias de experiências vividas no continente africano adaptadas às expectativas de vida e dignidade humanas construídas pelos africanos e seus descendentes no Brasil sob as agruras vividas no cativeiro A cultura ganha nova 308 CHAUÍ Marilena Política Cultural Porto Alegre Mercado Aberto 1985 309 O termo gastronomia não é contemporâneo ao período de produção de Nina Rodrigues Freyre e Fernandes mas sim como já dito o termo culinária Contudo hoje adotamos o termo gastronomia pois este termo indica não só o ato de produzir receitas mas também a variedade de saberes fazeres e significações que circundam a produção dessas mesmas receitas Consideramos também que o termo culinária folcloriza torna estático o saber gastronômico afrobrasileiro Notese que ainda hoje cotidianamente muitas pessoas usam expressões como gastronomia alemã francesa ou italiana e culinária africana e afrobrasileira O estabelecimento e difusão dessas expressões não são processo inocentes Embora o uso dessas expressões possa ser inconsciente elas diferenciam hierarquizando e reconstruindo semanticamente relações de poder 172 dimensão temporal É dinâmica mutável transformada e transformadora É contextual sociológica histórica e política Os lugares simbólicos da cultura afrobrasileira são ampliados não fragmentos de línguas africanas mas formas de linguagem complexos sistemas de significação do mundo construção de conceitos e visões de mundo Não apenas o candomblé mas todas as religiosidades onde há a presença de elementos africanos ressignificados inclusive em vivências de origem cristãs Não somente os aglomerados negros da festa e do lúdico mas o aglomerado familiar afetivo a linhagem Não somente a casa a choupana ou qualquer outro objeto material por si só mas a construção espacial as extensões e elos invisíveis entre o mundo físico e o espiritual Fry Vogt e Slenes não dispensam os lugares simbólicos clássicos como a dança música gastronomia etc mas afirmam que é preciso buscar conhecer os sentidos mais profundos presentes na lógica que orienta essas ações dos cidadãos negros dentro dessas práticas conforme uma perspectiva afrocentrada Essa busca se configurou na bandeira de luta levantada pelo MNU no fomento às novas pesquisas publicações e produções de materiais didáticos vídeos etc por parte de intelectuais ativistas negros e não negros No Programa de Ação do MNU também é definido o conceito de cultura afrobrasileira onde se percebe total interdiscursividade entre esses novos cientistas sociais e o MNU310 Para o movimento ela é dinâmica e entendida como instância mediadora de relações políticas no cotidiano Ela tem lógica própria sentidos profundos originalidade e não essencialidade estando aberta a novas interações culturais mas sempre sendo transformada e transformando os sujeitos negros a partir de suas experiências e necessidades concretas Esclarecidas essas noções o MNU se empenhou em estabelecêlas também como princípios orientadores das políticas públicas do Estado brasileiro através da educação O movimento exigia que a educação no Brasil fosse reformulada de modo que deixasse de ser instrumento de legitimação ideológica das classes dominantes e passasse a ser um instrumento libertador democrático ético e estético na própria reestruturação do Estado brasileiro Os militantes se empenharam em pesquisas científicas uma vez que são legitimadoras de ações políticas para denunciar as abordagens racistas fortemente presentes nos currículos nas instituições escolares e nos 310 Não queremos dizer com isso que o MNU foi apenas influenciado por esses acadêmicos Na verdade o que constatamos é que as influências foram mútuas Fica difícil dizer quem definiu o que primeiro Aliás isso sequer foi preocupação dos referidos sujeitos tampouco é a nossa Preferimos pensar numa sistemática de diálogos e negociações de sentidos onde a discursividade que sempre aberta circula e é apropriada e reapropriada Temporalmente tanto a fundação do MNU como o início dessas pesquisas históricas de cunho cultural feita por Fry Vogt e Slenes datam de 1978 173 livros didáticos por exemplo Promoveram encontros debates exigiram mudanças e elaboraram propostas de e para o ensino Projetavase através da militância uma nova configuração curricular para o Ensino de história Nessas ações a instituição MNU não estava sozinha Ao seu lado as instituições de caráter cultural agremiações carnavalescas e lideranças religiosas tiveram participação ativa Produziamse narrativas que redignificassem a identidade negra através de músicas sambaenredos peças de teatro poesias etc Uma das ações mais significativas neste sentido foi o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste ENNNE cujo tema era O negro e a educação A educação foi eleita como via de transformação na mentalidade da sociedade brasileira Fato que reorientaria não só representações mas também ações e relações pessoais no cotidiano das pessoas em relação à cultura negra Foram vários os esforços para a criação de uma Lei que operasse em nível nacional Enquanto isso várias experiências de legalização da proposta foram vivenciadas por alguns estados e municípios brasileiros No entanto as pressões do movimento ao governo federal não cessavam A Marcha Zumbi dos Palmares constitui um marco neste sentido mas a situação só toma corpo em 2001 quando o Estado brasileiro se reconhece como racista perante a ONU e se compromete publicamente em criar políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial Apenas em 2003 é que foi criada a Lei 10639 tornando obrigatório o estudo de história da África dos povos africanos e da cultura afrobrasileira Mas entre a garantia de uma lei e a efetivação de práticas de ensino que a materializem há grandes clivagens Uma longa história de discriminação simbólica não se abandona tão rapidamente Toda uma cultura educativa no Brasil precisa ser mexida formação de professores e gestores escolares produção de materiais didáticos conversas com os alunos e comunidade escolar são algumas medidas necessárias pois a falta delas ainda torna fluida a efetivação da Lei Ora ainda neste sentido outro agravante ainda era que conteúdos selecionar para ensinar Não havia diretrizes específicas para o ensino de história e cultura afrobrasileira Tal fato deixava uma grande abertura para que aquelas velhas noções estereotipadas da cultura afrobrasileira encontrassem um campo vastíssimo e legalmente garantido para perpetuaremse Para os intelectuais ativistas um perigo Foi então que um ano após sancionada a Lei alguns intelectuais negros indígenas e brancos comprometidos com a reconstrução das relações democráticas entre o Estado e a sociedade criaram o Parecer nº 032004 e a Resolução 012004 como documentos reguladores da Lei 10639 Agora sim tinhase nos marcos legais para o 174 Ensino de História a referência clara ao conceito de cultura afrobrasileira pautado nas discussões da historiografia cultural ao modo de Slenes Fry e Vogt e do MNU A partir dessa complexa história de discursividades poderes políticos historiografia e ensino de história referendamos uma postura política Pensamos que seja necessário abandonar as velhas concepções e buscar compreender os significados do que sejam para a própria comunidade negra a sua cultura e suas diversas práticas seu vestuário sua gastronomia seus conceitos e sistemas linguísticos suas danças músicas e demais artes suas formas de religiosidade formas de afeto visões de mundo etc Devemos pensálas em seu dinamismo e poder nas mediações políticas Promover um esforço intelectual para descolonizar os dizeres sobre a cultura afrobrasileira é buscar sua lógica própria em outras histórias outras experiências outras práticas culturais outras possibilidades de ser dizer e fazer da população negra em nosso país Esta operação simbólica demanda muitas outras coisas Compreendidos os sentidos da cultura afrobrasileira construídos e propostos para o ensino de história no Brasil neste início do século XXI é terminar esta dissertação com inquietações e esperanças Uma questão importante que se impõe é sobre como esta proposta oficial tem ou não se efetivado em diferentes realidades escolares nestes anos após a Lei Mas isto convenhamos é tema de pesquisas futuras 175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADICHE Chimmammanda O perigo de uma única história Conferência ministrada em julho de 2009 Oxford Inglaterra Disponível em wwwyoutubecom Acesso em 11 de maio de 2011 ALBERTI Verena e PEREIRA Almicar Histórias do Movimento Negro no Brasil depoimentos ao CPDOC Rio de Janeiro Pallas 2007 ALBUQUERQUE Jr Durval M História a arte de inventar o passado Ensaios de Teoria da História Bauru SP Edusc 2007 ALBUQUERQUE Jr Durval Muniz A invenção do Nordeste e outras artes São Paulo Cortez 2009 ALBUQUERQUE Wlamira R de O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 ALMEIDA Maria das Graças Andrade Ataíde de A construção da verdade autoritária São Paulo HumanitasFFLCHUSP 2001 ALTHUSSER Louis Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado Lisboa Presença 1970 ANDREWS George Negros e Brancos em São Paulo 18881988 Bauru EDUSC 1998 BARBOSA Lúcia Falcão O castelo de Alecrim intelectuais no Recife em 21 de abril de 1960 Tese de Doutorado em História defendida na Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas CFCH 2005 BARBOSA Muryatan Eurocentrismo História e História da África Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africna Vol 1 nº1 junho de 2008 p4663 BATISTA NETO José SANTIAGO Eliete Org Formação de Professores e Prática Pedagógica Recife Ed Universitária da UFPE 2009 BATISTA Maria de Fátima Oliveira A Emergência da lei nº 1063903 e Educação das Relações ÉtnicoRaciais em Pernambuco Dissertação de 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