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Texto de pré-visualização
Gildeci de Oliveira Leite JORGE AMADO da ancestralidade à representação dos orixás JORGE AMADO Universidade do Estado da Bahia UNEB Lourisvaldo Valentim da Silva Reitor Maria Nadja Nunes Bittencourt Diretora da Editora Conselho Editorial Atson Carlos de Souza Fernandes Jose Bites de Carvalho José Cláudio Rocha Liege Maria Sitja Fornari Ligia Pellon de Lima Bulhões Luiz Carlos dos Santos Narcimária do Patrocínio Luz Sandra Regina Soares Wilson Roberto de Mattos Suplentes Diego Gervásio Frías Suarez Gilmar Ferreira Alves Juracy Marques dos Santos Leliana de Souza Mariângela Vieira Lopes Miguel Cerqueira dos Santos Valdélio Santos Silva Gildeci de Oliveira Leite JORGE AMADO da ancestralidade à representação dos orixás 2ª Reimpressão EDUNEB Salvador 2014 2012 Autor Direitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão em forma idêntica resumida ou modificada em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma Depósito Legal na Biblioteca Nacional Reimpresso no Brasil em 2014 Ficha Técnica Coordenação Editorial Ricardo Baroud Coordenação de Design Sidney Silva Editoração Eletrônica e Capa CVY Consultoria e Empreendimentos Ficha Catalográfica Sistema de Bibliotecas da UNEB Editora da Universidade do Estado da Bahia EDUNEB Rua Silveira Martins 2555 Cabula 41150000 Salvador BA editoralistasunebbr wwwunebbr Leite Gildeci de Oliveira Jorge Amado da ancestralidade a representação dos orixás Gildeci de Oliveira Salvador EDUNEB 2012 164p ISBN 9788578871475 Contém referências 1 Amado Jorge 19122002 História e crítica 2 Ficção brasileira CDD B8693 Laroiê Exu Ìbà rabo mo juba Elegbara mo juba Alaketu mo juba Barabô Iya mi axexê Baba m i axexê Olorum mi axexê Bogbo axexê tinu ara mi Kintoo bo orixá aiye Babá Alapalá Ba Mi ô Babá Oju Onilê Ba Mi ô Oxum Muiwa Ba Mi ô Ogun Toshi Ba Mi ô Xangô Ba Mi ô Ogun Ba Mi ô Dedico este livro A minha mãe Oxum E nas águas da ossá Oxum se transformou num peixe Mas a memória de sua beleza ficou inscrita Em cada um dos seixos polidos por seus pés A beleza de Oxum Ficou para sempre nos otás Quando as águas estão altas na lagoa Oxum o peixe nada para as bordas da ossá E ali junto aos seus otás Rememora vaidosa sua beleza PRANDI 2001 p 191 o autor avisa a todos que nenhum vivente aqui nesta obra de ficção se encontra retratado Quis ele fixar apenas aspectos do viver baiano Orelha In AMADO Jorge Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Martins 1966 Se por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino exceto uma é a disciplina literária que deveria ser salva pois todas as ciências estão presentes no monumento literário Barthes 1996 PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO O livro de Gildeci de Oliveira Leite me surpreende pela originalidade e ousadia em suas interpretações sobre a obra de Jorge Amado especificamente o livro Dona Flor e Seus Dois Maridos A escolha não é aleatória mas é estrategicamente importante para marcar a presença da weltanschauung a visão de mundo afrobaiana num dado momento da obra do afamado autor Jorge Amado poderia parafrasear o exministro da Educação Portella durante a abertura 19791980 que proferiu a frase que entrou para a história não sou ministro estou ministro e ter dito eu estou no candomblé mas não sou do candomblé Isto porque já havia constituído sua carreira literária como escritor engajado comprometido com o Partido Comunista e já ter seus livros traduzidos em várias partes do mundo por assim dizer quando então começou a frequentar mais assiduamente o terreiro dirigido por Mãe Senhora a Iyalorixá Oxun Muiwa Iyanasso da tradicional linhagem Axipa O Partido Comunista de então totalitário stalinista não admitia outras diferenças sociais senão as classes a luta de classes visando o poder de Estado Todavia através do viés ideológico de esquerda admitido de promover o popular o candomblé passou a participar das suas criações literárias e ele próprio se envolveu com o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá ao ponto de receber o título de Oba Arolu um dos doze ministros de Xangô que compõem singularmente aquela casa tradicional Esse envolvimento para uns foi motivo de admiração para outros no entanto suscitou e atiçou preconceitos patrulhas ideológicas a ponto de depois de Dona Flor e Seus Dois Maridos como observa Gildeci no livro posterior Tenda dos Milagres falando através do personagem Pedro Arcanjo Oju Oba o autor tenta explicar seu posicionamento estou mas não sou isto é afirmava continuar materialista e devotado as lutas populares o que justificava sua participação no candomblé promovendo uma cultura do povo Por sua vez Gildeci tomou as dores da crítica a esse prestigiado escritor baiano que não deveria nem poderia ser atacado e sofrer por quem desejaria vêlo cair do pedestal Então Gildeci escolheu o caminho original capaz de valorizar a sua obra exatamente por se basear na cosmogonia dos Ilê Axé casa de axé como denominava Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi fundadora do Ilê Axé Opo Afonjá A pressão da censura de uma intelligentsia caracteriza damente marcada pelos preconceitos eurocêntricos fez com que os aspectos da cultura negra na criação literária fossem colocados mais ou menos disfarçadamente É aí então que entra Gildeci que compreendendo a erudição a sofisticação a riqueza milenar da civilização africana reposta na Bahia escolhe fazer emergir integralmente esses valores ora expressos ora latentes na obra do grande escritor No primeiro capítulo desenvolve os aspectos da cosmogonia referente ao orixá Oxun e a relação com a construção da personagem Dona Flor demonstrando os conhecimentos míticos capazes de qualificala como uma omo Oxun filha de Oxun e então relacionar com a dinâmica da narrativa No segundo capítulo referese ao significado de egun e ao orixá Exu na construção do personagem Vadinho Também aqui ele demonstra aspectos da cosmogonia que sustenta o desenvolvimento da narrativa que envolve o personagem e outros coadjuvantes que têm também suporte nas relações abstraídas da constelação dos orixás No terceiro capítulo referese a presença da culinária afrobaiana e no valor do azeite de dendê Valendose da personagem de Dona Flor e de seu orixá Jorge Amado enaltece a culinária afrobaiana desdobrada dos terreiros e que também caracteriza a identidade cultural de um povo Não podemos esquecer de deixar de mencionar que no Congresso Afrobrasileiro de 1935 organizado por Edison Carneiro a comunicação de Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi foi sobre a culinária litúrgica a comida sagrada que constitui as oferendas que promove a circulação de axé e sustenta o poder das comunidades religiosas Depois nas referências bibliográficas nós percebemos o quanto Gildeci se armou para ter bala na agulha e enfrentar o mundo acadêmico e a intelligentsia preconceituosa em geral com orgulho e galhardia que juntamente com seu estilo agradável e escorreito compõem o belo e eficiente trabalho Só posso me congratular e louvar o aparecimento de mais um jovem intelectual preocupado em colaborar a manter o valor profundo da originalidade e singularidade da identidade baiana em meio ao contexto nacional ODARA Ipitanga 29062012 Marco Aurélio Luz PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO A Representação dos Orixás e da Ancestralidade em Dona Flor e Seus Dois Maridos de Jorge Amado Em dezembro do ano de 2003 participei com muito interesse e prazer da defesa da dissertação de mestrado em Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura de Gildeci de Oliveira Leite no auditório do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia Brasil A dissertação intitulada A Representação dos Orixás e da Ancestralidade em Dona Flor e seus Dois Maridos agora se transforma em livro Na pósgraduação o autor teve que desafiar os leitores da obra do insigne escritor brasileiro Jorge Amado leitores que tinham certa dose de pessimismo de equívoco e de preconceito mostrando que não é um equívoco trabalhar aspectos da religiosidade chamada de afrobrasileira numa história de amor e sexo Pois o romance de Jorge Amado é abordado avaliado no seu justo valor não é coisa para dar risada é coisa séria é coisa que descobre o nosso universo mítico cf p 21 Gildeci de Oliveira Leite demonstrou também o seu interesse pelos estudos afro no Brasil o que permitiu uma troca frutífera de conhecimentos entre ele e eu ao longo dos últimos anos Há três motivos principais no interesse despertado pela temática dos orixás e da ancestralidade O primeiro relaciona se com uma abordagem pioneira e inédita da questão do duplo e da metamorfose tratada de maneira tão breve em trabalhos de sociologia psicologia literatura antropologia e de filosofia quando aplicada à questão da herança africana no Novo Mundo O segundo está estreitamente vinculado com a questão da simbologia que também é tratada sob vários enfoques na literatura brasileira sobre o tema Notese aqui que dentro do mundo tão complexo relatado por Jorge Amado o autor do presente livro soube demonstrar que o simbolismo de que se trata não se corresponde com os cânones ocidentais senão que simplesmente é fruto de uma resistência contínua prolongada O terceiro motivo emana da atualidade do tema apesar da grande repressão que sofreram as religiões de origem africana num país como o Brasil Apesar da mutilação das imagens de Exu nas igrejas pelos jesuítas um processo de resistência vem se desenvolvendo até os dias de hoje Como africano mais especificamente beninense não posso ficar indiferente ao trabalho desenvolvido nas próximas linhas deste livro por tocar aspectos fundamentais da cosmologia dos voduns isto é das divindades do meu país de origem O pano de fundo da dissertação é a questão do duplo do simbolismo do meio das cores dos números a questão da androginia da ambiguidade da liberdade sexual do travestismo do gênero a relatividade do bem e do mal a mestiçagem tudo envolvido na trama do mito dos orixás principalmente o de Exu divindade padroeira das encruzilhadas dona da fecundidade de muita sabedoria e outros atributos As diferentes metamorfoses de Exu ou mais especificamente do Lègba beninense com os seus adereços encarnado em Vadinho nas Pombagiras nas Maria Padilhas em Dona Flor e seus Dois Maridos são estudadas com o maior cuidado possível no capítulo 2 O tema da exclusão recíproca também tem destaque Existe uma espécie de ação versus reação dentro do mito Se os homens excluíram Oxum das decisões sobre os destinos do mundo ela os excluiu das decisões sobre a continuidade do universo através da infertilidade da mulher cf p 38 A culinária significa poder e ampliação de território a não subserviência se opondo então ao conceito ocidental de maternidade à visão positivista europeia dominante Resumindo o trabalho de Gildeci sem dúvida apoiado numa interessante bibliografia sobre pensamento social do Brasil e sobre estudos culturais e literários enriquece o tema do diálogo intercultural ÁfricaAmérica é importante nas ciências humanas e sociais contemporâneas porque é instigante permite a multidisciplinaridade e o leitor desfrutará com deleite de cada um dos temas abordados a partir do livro de Jorge Amado Por isso o livro é uma referência fundamental para quem incursiona na temática do africano e seus descendentes no processo de formação da nacionalidade brasileira Não posso concluir esta apresentação sem afirmar E nõ wa mε nu co bö e nõ do gbe tõ mε nós fazemos coisas para o nosso próprio interesse porém recebemos os agradecimentos adágio beninense que se refere à importância de qualquer ato ou gesto com o fim de beneficiar não só o autor do ato ou gesto mas também uma série de pessoas envolvidas com a ideia de crescimento intelectual material e espiritual Isto quer dizer que haverá muitos bebedores de conhecimentos a partir da fonte aberta pelo Gildeci sobre a ancestralidade negra do povo brasileiro Realmente o autor nos proporciona um estudo valioso no longo caminho ainda a ser trilhado na valoração das nossas origens africanas Parabéns e muito sucesso Prof Dr Hippolyte Brice Sogbossi Filólogo e Antropólogo Universidade Federal de Sergipe SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 21 ORA IÊ IÊ Ô OXUM E FLOR DUAS MULHERES DUAS AÇÕES 35 Da maternidade e da felicidade conjugal 35 Um passo atrás um salto à frente dos tempos de solteira da passagem ao casamento da poliandria 50 Da androginia da divisão do trabalho da autoridade no lar da força das Mulheresde Santo 61 Da alegoria do amor da malandragem masculina 69 Da Umbanda e da Pombagira 75 UM EXU VADINHO 87 Situando Exu Vadinho uma Entidade 88 O Carnaval a morte o travestirse e a mandioca símbolo fálico 96 Das qualidades ou categorias do Exuegum Vadinho das iniciações de Vadinho do Enugbajiró a boca coletiva as fronteiras do nome de Vadinho 105 A palavra de Egum seu poder 112 Voltando às ações de Exu com Vadinho em vida 114 Feitos do Exu Vadinho 117 A COZINHA E O AZEITE 135 As Faces da Cozinha lugar de mulher lugar de submissão e de liberdade 135 O Azeite 145 REFERÊNCIAS 152 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 158 GLOSSÁRIO 161 21 APRESENTAÇÃO Uma pergunta que não se calou durante o curso de Mestrado foi o que há de influência das religiões afrobrasileiras no romance Dona Flor e Seus Dois Maridos AMADO 1966 Muitos achavam e ainda acham um equívoco trabalhar aspectos da religiosidade afrobrasileira numa história de amor e sexo Os leitores estão acostumados a ouvir estas e outras opiniões desfavoráveis a respeito do romance e da obra de Jorge Amado Coisa para dar risada O equívoco e o preconceito dessas pessoas fortaleceram a vontade de provar o contrário Ficou corroborada a decisão de mostrar a mitologia afrobrasileira na argamassa da obra além de afirmar a filiação de Jorge Amado ao povo negromestiço e à cultura negromestiça tidos por ele como matriz da identidade brasileira Nem só o branco nem só o negro os dois ao mesmo tempo o mestiço o afrobrasileiro o Candomblé o Xangô1 o Tambor de Mina2 a Umbanda3 o europeu e o africano também o indígena este é o mestiço brasileiro entendido por Gilberto Freyre e na literatura por Jorge Amado sem a proposta de exclusão negra propagada pelo Estado Brasileiro Voltando a falar sobre a presença da mitologia afro brasileira esta norteou os acontecimentos da obra pois guia 1 Religião afrobrasileira do Recife 2 Religião afrobrasileira do Maranhão 3 Religião afrobrasileira dita por Jorge Amado a mais brasileira de todas apud RAILLARD 1992 p 91 22 as ações das personagens que juntamente com o enredo são os objetivos do romance CÂNDIDO 1976 Segundo os antropólogos e iniciados em religiões afrobrasileiras o filho de determinado orixá inquice ou vodum recebe influências de seu pai ou mãe espiritual e das outras divindades que co habitam a cabeça deste indivíduo Somente na ficção pode ser encontrada uma filha de Oxum destoante das características de sua mãe eou das passagens míticas que explicam este orixá Jorge Amado brinca com o leitor ao demonstrar conhecimento de ritos mitos e procedimentos principalmente do Candomblé onde possuía as responsabilidades de Ogã e o alto posto de Obá de Xangô ou como é dito na Bahia de Ministro do Rei Xangô As brincadeiras de Amado permeiam campos semânticos como o maravilhamento o didatismo e até a ironia para com aqueles menos aptos a perceberem a intensa presença da liturgia afrobrasileira em Dona Flor e Seus Dois Maridos O sarcasmo amadiano também pode ser lido como um alerta alguns intelectuais vivendo no Brasil e às vezes até na Bahia conhecem várias mitologias dominam a Grécia distante mas desconhecem o nosso universo mítico Não se pretende aqui determinar as preferências de quem quer que seja Contudo Jorge Amado como marxista e observador da vida popular baiana preferiu falar do seu povo seus costumes e sua fé pois o texto amadiano se instaura como diálogo intertextual com o substrato popular de uma civilização nascida na Bahia os mitos e tradições dos descendentes de príncipes e súditos africanos trazidos como escravos SEIXAS 2003 p 17 Certamente experiências aprendidas pelo menos desde os 15 anos de idade quando 23 conheceu o paidesanto Procópio líder da casa espiritual que mais tarde lhe deu o primeiro título no Candomblé Ogã RUBIN CARNEIRO 1992 O citado Babalaorixá destacouse na resistência contra a perseguição aos terreiros de Candomblé da Bahia e no romance Tenda dos Milagres recebeu justa homenagem Falar do povo e estar junto ao povo eram normas de conduta dos marxistas da geração de Jorge Amado e após a cisão do Partido Comunista do Brasil continuou sendo a orientação da agremiação dirigida por João Amazonas homenageado pelo escritor em Seara Vermelha Ao apresentar uma comunicação4 ao Seminário Permanente de Pesquisadores Baianos da Fundação Clemente Mariani da qual o autor é o mesmo deste trabalho na oportunidade o doutor Ubiratan de Araújo Castro então coordenador da mesa esclareceu a plateia sobre o fato de este comportamento de Amado estar diretamente conectado aos marxistas de sua época O interesse pelas crenças populares é literalmente explicado em Tenda dos Milagres quando o personagem Fraga Neto interroga o Mestre Pedro Archanjo sobre seu materialismo e sua contraditória frequência aos Candomblés A reposta do Mestre foi romper com as crenças populares seria apoiar os opressores do Candomblé e do povo pois mesmo já descrente preferia estar ao lado dos menos favorecidos e contra aqueles que o oprimem Na perspectiva de estar ao lado do proletariado o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos talvez não se encaixe na categoria dos engajados politicamente como por exemplo Tenda dos Milagres apesar de ambos 4 O Título da comunicação foi Tenda dos Milagres identidade cultura ficção e história apresentada em 11 de setembro de 2002 no Seminário Permanente de Autores Baianos da Fundação Clemente Mariani 24 pertencerem ao período inaugurado por Pastores da Noite em 1964 quando aparentemente a luta de classes deixa de ser o tema principal do escritor Com certeza nessa nova fase o Partido não é mais a solução dos problemas ao contrário do que apontaram os destinos de Seara Vermelha 1987 romance de 1946 Pedro Archanjo apesar de ser um libertário não é do PC e em Dona Flor o engajamento parece desaparecer por inteiro Será No período compreendido entre 1995 e 2000 graduandos em Letras da UFBA entre eles o autor deste livro ouviam de professores o quanto Jorge Amado enriqueceu sua escrita transportando o engajamento para as entrelinhas Nos seminários e semanas acadêmicas feitas pelo Diretório Acadêmico Jorge Amado ou até em aulas obrigatórias do curriculum Amado era um exemplo sempre citado por um pequeno número de docentes que o admirava A inquietação em relação às palavras de alguns mestres partia também de um jovem de classe média baixa e oriundo de movimentos sociais de esquerda nos quais era comum ouvir dizer que Jorge Amado havia traído a causa e que havia passado para o outro lado Ao mesmo tempo em que as palavras dos docentes geravam um inquieto entendimento de que os professores poderiam estar desconsiderando a necessidade da propaganda do Partido na obra de Amado eram vistos com adoração o Candomblé e o povodesanto descritos na obra do mais importante escritor brasileiro da contemporaneidade Mas será mesmo que falar de algo discriminado é uma espécie de engajamento Sim A presença das liturgias afro brasileiras na obra é um fato neste romance Consequente mente há uma defesa deste culto portanto uma espécie de 25 engajamento A resistência não se dá como em Tenda dos Mi lagres em Dona Flor somente o belo se faz advogado da mi tologia afrobrasileira Não há discursos brigas ou disputas de espaço em prol do Candomblé eou do povo negromestiço o que existe é uma apropriação desta e de outras liturgias afro brasileiras para construir o romance Esta apropriação não pode ser percebida a olho nu fazse necessária uma convivên cia com estes conceitos uma práxis afrobrasileira A necessidade dessa práxis faz recordar questionamentos do antropólogo Vivaldo Costa Lima quando em visita à biblioteca particular deste no ano de 2001 ele interpelou sobre a relação do estudante com o Candomblé Ao saber que não era iniciado que não tinha passado por todos os rituais de iniciação mas que se tratava de frequentador curioso e atento o pesquisador então disse o quanto isso poderia facilitar as coisas pois aprender sobre Candomblé em tão pouco tempo somente com as leituras livrescas seria impossível Talvez aí um dos motivos de uma série de malentendidos para com a recepção da obra amadiana O texto anunciado como literatura fácil tornase complexo quando se busca entendê lo em suas entranhas Em Amado o fácil e o complexo se misturam pois Dona Flor e Seus Dois Maridos é um livro de fácil entendimento Para os conhecedores da liturgia negro brasileira todavia tornase complexo um brinde de Orunmilá Babá Ifá deus do oráculo no Brasil conhecido como jogo de búzios o grande adivinho o grande Babalaô O exercício ou a metodologia dessa leitura imbuída da religiosidade afrobrasileira principalmente o Candomblé e a Umbanda passa necessariamente por imitar a adivinhação ancestral trazida ao Brasil e aqui transformada em jogo de búzios Os orikis que explicam passagens das vidas dos orixás 26 e que servem como aviso e orientação aos consulentes do jogo de búzios são parte do lastro nesta prática de literatura comparada na busca arqueológica das prováveis fontes do enredo de Dona Flor e Seus Dois Maridos As histórias contadas pelas tias velhas também fazem parte do lastro teórico conceptual explicando acontecimentos do enredo do romance e colocando lado a lado a mitologia sagrada e a obra literária Algumas histórias foram acompanhadas com prazer numa jornada por terreiros de Candomblé e Umbanda em conversas com pessoasdesanto5 e até com entidades Inicialmente e durante muitos anos não aconteceu o que de forma sistemática poderíamos chamar de pesquisa Ocorreu uma série de experiências de homem de fé adepto e filho dos orixás Até o ano de 2000 não houve a preocupação de buscar dados e informações Muitas informações foram conseguidas em obrigações sagradas conversas nos intervalos dos xirês durante a degustação das comidas rituais ou nas consultas ao Jogo de Búzios Tudo tivera início em 1996 com a obrigatoriedade da construção de um projeto como avaliação da disciplina Metodologia da Pesquisa da graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia UFBA A leitura entusiasmada de Dona Flor pelas ruas da Cidade da Bahia trouxe o encantamento necessário para um trabalho que mais tarde seria amadurecido Foi é e sempre será o maravilhamento o mágico dos saberes ancestrais responsável por levar às observações que fazem o espectador respeitoso aprender a ouvir olhar e pouco perguntar um preço alto para os adeptos do Candomblé pois 5 O mesmo que iniciado no Candomblé 27 esta é a forma de aprendizado A interação deve acontecer com poucas perguntas ou nenhuma A regra é sempre observar observar e observar por isso o segredo ritual foi aqui respeitado Tudo que foi dito é o que poderia ter sido dito Por conseguinte este livro visa demonstrar as coisas ditas nas linhas e entrelinhas do texto amadiano mostrando que o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos também é uma obra de afirmação de costumes brasileiros Oxum e Dona Flor são o foco principal para uma proposta que pretende demonstrar a afinidade entre o orixá e a personagem filha iniciouse logo por algo que aparentemente só destoa A excelência da maternidade de Oxum e a incapacidade procriadora de Flor são colocadas em cheque Como é que uma filha de Oxum deusa da maternidade poderia ser infértil Se nesse momento Flor parece fugir das características de sua mãe espiritual o enredo e a mitologia nos abrem sinais de semelhanças Buscando a analogia como ferramenta temse o mito de que Oxum torna as mulheres estéreis em represália aos homens que excluíram a entidade das decisões no início dos tempos O mito deixa evidente a preocupação masculina em ter filhos para propagar suas riquezas e seu nome Vadinho primeiro marido de Flor também possuía o ideal do guerreiro propagador da espécie ideal este fracassado Apesar de ter filhos ser da vontade da personagem Flor seu destino foi a esterilidade e o fado de Vadinho não ter herdeiros Estes fatos levaram à defesa da ideia de que o arquétipo Oxum agia nas entrelinhas do romance contrariando as vontades de sua filha e vingandose do mulherengo Vadinho Assim como os orixás masculinos não tiveram filhos por impedimento 28 de Oxum Flor não deu filhos ao jogador Vadinho acabando ali o reinado do gigolô Mesmo Flor tendo agido de maneira destoante de seu orixá os acontecimentos foram característicos de ações de Oxum O arquétipo desta entidade guiou o enredo A mitologia africana no Brasil conta que Oxum criou os filhos de Oiá mas para Flor a vontade de criar um provável rebento de Vadinho seria uma ação de impotência Apesar de alguns aspectos destoantes de Oxum Flor contraria ditos machistas de Schopenhaeuer sobre a finalidade do casamento ao não ter filhos e conseguir a felicidade conjugal Agora o arquétipo Oxum se aproxima da personagem afinal ela é a mais sedutora das mulheres e exerce a sexualidade desconsiderando o ideal ascético ou as proibições judaicocristãs criticadas por Nietzsche rejeitadas por Vadinho e aceitas por Teodoro Madureira o segundo marido da professora de culinária A preservação dos preconceitos cristãos em relação aos prazeres da cama por parte de Teodoro contribuiu para o surgimento do triângulo amoroso No entanto não houve um planejamento da filha de Oxum os acontecimentos levaram na a este destino pois o arquétipo do orixá de sua cabeça teve vital importância por guiar o enredo Apesar de não ser a responsável direta pela formação do triângulo amoroso Flor já demonstrava sinais da liberdade sexual uma das características das grandes mães ancestrais personalizadas em Oxum e no Brasil atribuídas aos Exus efeminizados as Padilhas e Pombagiras A decisão de entregar se a Vadinho para conseguir a liberdade sem dúvida denota altivez da personagem além de possuir estreita ligação com o mito em que Oxum se deita com Exu para conseguir de Oxalá o direito ao Jogo de Búzios Vale lembrar que Exu é o orixá de 29 Vadinho e Oxalá é o orixá de Teodoro Tanto no mito quanto nesta cena que antecede o casamento de Flor o ato sexual foi a resolução das demandas A moral judaicocristã perde espaço na obra e mesmo sem planejamento Flor amplia suas fronteiras conquistando seu território poliândrico à maneira dos Himalaias com todos os homens numa mesma casa diferente da Nigéria onde as esposas circulam de um lar para o outro tal como aconteceu a Rosa de Oxalá no romance Tenda dos Milagres Não há como negar o caráter andrógino de Flor provedora do sustento da casa mas também de Gabriela e de Rosa de Oxalá Tentando conectar a androginia de Flor com a liturgia negra e com a ancestralidade do povo brasileiro encontramse as protobrasileiras índias Bororós que governam o trabalho Além das citadas índias o texto do antropólogo Júlio Braga 1995 informa que na ilha de Itaparica na comunidade do culto afrodescente de Babaegum as mulheres também são responsáveis pelo sustento familiar Na liturgia nagô as Grandes Mães Ancestrais dão o exemplo da androginia por suas características fálicas Vale lembrar que o sucesso da remuneração das exescravas no Brasil deveuse à venda de seus quitutes favorecendo a superioridade das mulheres e o consequente surgimento de um matriarcado religioso Aliado a este matriarcado são citados exemplos de domínio dos homens pelas mulheres feitasnosanto6 uma característica das religiões afrobrasileiras É evidente que causa algum desconforto afirmar a androginia de Flor através de sua altivez e ao mesmo tempo perceber suas fraquezas Mas até Oxum teve seus momentos de 6 O mesmo que iniciadas 30 dominada e a construção da personagem amadiana se pauta pela representação coletiva deste orixá considerando inclusive o imaginário popular brasileiro com seus conceitos judaico cristãos Entre os mitos será descrito o quanto Oxum se torna subserviente a Xangô tal Flor a Vadinho o que aproxima este mito do contexto amadiano Depois da submissão feminina chegase à rendição final dos machos homem ou divindade ambos possuidores de uma vida desregrada e sustentados pelas mulheres Na ficção Amado nos mostra vários outros exemplos de gigolôs o negro Arigof Mirandão amigos do malandro e o professor Josué de Gabriela Cravo e Canela são alguns deles Na Umbanda os Exus efeminizados por vezes possuem o discurso favorável ao sustento de seus parceiros como a companheira do negro Arigof No que tange à Flor alguns sinais a aproximam desta entidade genuinamente afro brasileira a Pombagira principalmente quando no período da viuvez revelase em sonhos Cínica debochada oferecida tão oferecida puta de dar nojo AMADO 1966 p 240 A fornicação o adultério e o sentimento de culpa cristão fazem da personagem uma representação da Pombagira A aparição deste arquétipo não inviabiliza a representação de Oxum pois muitas das características dos orixás femininos no Brasil foram atribuídas aos Exus efeminizados Complementarmente na visão do Candomblé e da Umbanda todo ser humano pode receber influência de um ou mais orixás principalmente do Exu do dono de sua cabeça7 e na umbanda e em alguns candomblés a Pombagira é uma entidade conhecida como Exu 7 O mesmo que orixá regente 31 de orixás como Iemanjá Nanã e Oxum mãe de Flor Outro acontecimento importante que autoriza buscar o arquétipo Pombagira é o fato de Vadinho após sua morte transformar se em um típico Exu umbandista portanto parceiro sexual de Padilhas e Pombagiras Um Exu Vadinho é o título do segundo capítulo deste livro O nome pareceme sugestivo e pode ser foneticamente articulado com Um Exu Vadio o que não deixaria de ser expressão da verdade diante da vida da personagem A primeira preocupação será situar Exu o que é Exu quem é Exu e por que Vadinho é um Exu Discutindo os conceitos tradicionais de Exu do Candomblé até a Umbanda percebese o quanto Vadinho se parece com seu pai espiritual A semelhança pode ser vista não tãosomente em suas ações típicas de filho que se assemelha aos pais míticos Também temos a confirmação das similitudes quando o Legbasi filho de Legbá ou Exu já se encontra morto e passa a ajudar os amigos O trabalho exercido pelo egum ou defunto encontra correspondente em qualidades de Exu descritas por Santos 1986 Ainda assim Vadinho é um morto alguém que possuiu vida um egum que não tem correspondente exato entre os tipos de eguns estudados no livro de Juana Elbein dos Santos Os nagò e a morte ora parecendo com um Egumagba ora com um Apáàraká Os Egunagba possuem fala e representam os ancestrais de famílias importantes já os Apäàraká são mudos são espíritos novos que por várias razões não puderam chegar ao estado de egbá e cujos ritos de formação não foram acabados SANTOS 1986 p 127 Portanto Vadinho é um Exu umbandista que já possuiu vida e foi um pecador este é Vadinho uma entidade brasileira conservando características do Exu tradicional e dos eguns tradicionais 32 A ancestralidade é lembrada até na morte de Vadinho Tendo morrido durante o carnaval já estabeleceu uma interação com seu pai mítico visto que na Bahia adeptos de religiões afro brasileiras declaram ser esta festa a do Rei das Encruzilhadas ou do diabo na voz preconceituosa e equivocada dos inquisidores da cultura O horário da abertura da festa meio dia provoca novamente dizeres baianos que declaram ser esta a hora do demo confundido com Legbará A morte na rua espaço de Exu é consagrada com a vestimenta de baiana e uma raiz de mandioca por debaixo da anágua O que para olhos pouco experimentados parece apenas uma brincadeira amadiana é na verdade similar ao ritual de Legbá Exu para os Fon Entre os Fon os Legbasi em rituais específicos vestem uma saia de ráfia e amarram um falo de madeira por debaixo para depois mostrálo de maneira erótica Em Maragojipe cidade do recôncavo baiano foi presenciado em torno dos anos 1950 negromestiços fazerem o mesmo que Vadinho e os Legbasi Não há como afirmar de onde veio a inspiração amadiana se do Recôncavo baiano ou diretamente do Benin mas se pode dizer que a identidade negra se fez presente Em A cozinha e o azeite o debate é em torno da cozinha suas faces e seus temperos Em relação aos condimentos a discussão foi centrada especificamente no azeite elemento negro de vital importância da culinária baiana que mereceu destaque em Dona Flor e Seus Dois Maridos Não é novidade a crítica veemente exercida sobre Jorge Amado a respeito de suas personagens femininas alguns insistindo em dizer que Amado entende a mulher como um objeto de cama e mesa Sobre a liberdade sexual de Flor há correspondentes na ancestralidade e nas mitologias afrobrasileiras E sobre a comida Cozinha é mesmo lugar de mulher Para os Candomblés da Bahia é sim 33 Não obstante a face da cozinha desde os tempos imemoriais africanos quando Oxum detinha este poder é diferente do conceito de subserviência aprendido pelas sociedades judaico cristãs Serão vistas situações que demonstram quanto a cozinha negra significa poder e ampliação de território permitidos somente às mulheres e em raros momentos aos homens de orixá feminino Neste contexto Oxum é a rainha da cozinha como Flor dirigindo sua casa e suas finanças a partir da culinária Para Flor e para sua mãe Oxum a palavra cozinheira não denota subserviência A primeira era saudada e convidada por seus clientes para os salões das festas Querino 1922 relata costumes ancestrais parecidos quando as boas cozinheiras eram chamadas à sala para receber as felicitações Oxum tem a cozinha como seu território espaço de mando sem ela as comidas sagradas não se completam Algumas mulheres baianas fizeram fama e se mantiveram com seus quitutes a exemplo de Dona Olga do Alaqueto todas como Flor filhas de orixá O azeitededendê que segundo Lody 1992 é a identidade maior do povo negro foi colocado por Jorge Amado como elemento imprescindível a quaisquer alimentações Através da personagem Mirandão a defesa do azeite transformase na resistência de uma identidade não apenas uma questão de gosto culinário Mesmo colocando o azeite em evidência Amado usa como pretexto uma festa em homenagem aos orixás para ritualmente inserir a culinária conventual portuguesa com seus doces Não só registra a existência destas iguarias europeias em rituais afrobrasileiros como também confirma 34 mais uma vez sua tese da miscigenação Afinal mesmo as comidas de azeite em sua maioria são pratos europeus ou indígenas modificados com o dendê africano e a malagueta sulamericana Mestiçagem de cama e mesa 35 ORA IÊ IÊ Ô OXUM E FLOR DUAS MULHERES DUAS AÇÕES Nesse primeiro momento apresento a relação existente entre o arquétipo Oxum e a construção da personagem Dona Flor Logo de início é travada a discussão a respeito do maior atributo de Oxum a maternidade além da incapacidade procriadora de sua filha Flor Na continuação da análise são verificados aspectos do comportamento sexual de Flor e de Oxum e a relação desta mulher e do orixá com o trabalho Depois o amor é abordado como atribuição de Oxum e avaliado o quanto esta característica aproxima a submissa Flor de sua mãe mítica Por último é chamado ao diálogo o arquétipo umbandista Pombagira relacionado com a protagonista da obra Da maternidade e da felicidade conjugal Na mulher tudo é enigma e tudo tem uma só so lução a prenhez O homem é para a mulher um meio o fim é sempre o filho Que é porém a mu lher para o homem NIETZSCHE 2000 p 63 A personagem principal do romance amadiano Dona Flor e Seus Dois Maridos a quituteira que empresta seu nome à obra não conseguiu encaminhar a solução do enigma feminino proposto na citação do Assim Falou Zaratustra de 36 Nietzsche 2000 A filha eou descendente do orixá Oxum não teve filhos Os pequenos de sua companhia foram os afilhados e os Ibejis orixás crianças de devoção do primeiro marido Oxum arquétipo norteador de ações e acontecimentos pertinentes à pessoa ficcional Dona Flor é a matrona da gravidez guardiã de todas as crianças a mais eminente das Iyá símbolo feminino rainha excelsa SANTOS 1986 p 85 Flor filha da referida rainha mítica destoava de sua mãe Iyá principalmente no que tange ao poder da procriação e à excelência da maternidade posto que a mulher ficcional em questão nunca pôde ter filhos e se Vadinho o primeiro marido inicialmente foi o meio da jovem cozinheira o fim um ou mais filhos fora amputado pelo destino fado direcionado por particularidades de sua mãe espiritual e grande mãe ancestral da humanidade SANTOS 1986 Represália aos desmandos de Vadinho tal e qual fez Oxum com os orixás masculinos quando estes no início dos tempos excluíram as mulheres das decisões segundo o mito conta Sobre a retaliação de Oxum conta o mito da esterilidade intitulado Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens que Logo que o mundo foi criado todos os orixás vieram para a Terra e começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles em conciliábulos nos quais somente os homens podiam participar Oxum não se conformava com essa situação Ressentida pela exclusão ela vingouse dos orixás masculinos Condenou todas as mulheres à esterilidade de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido da fertilidade era fadada ao fracasso Por isso os homens foram consultar Olodumaré 37 Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses sem novos braços para criar novas riquezas e fazer guerras e sem descendentes para não deixar morrer suas memórias Olodumaré soube então que Oxum fora excluída das reuniões Ele aconselhou os orixás a convidála e às outras mulheres pois sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade nada poderia ir adiante Os orixás seguiram os sábios conselhos de Olodumaré e assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso As mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na terra prosperou PRANDI 2001 p 345 É verdade que se fosse continuada a procura por justificativas na mitologia dos orixás seriam achadas mais explicações para uma filha de Oxum ficcional ou não ficcional não poder exercer a maior atribuição de sua mãe a procriação Sem falar dos esclarecimentos de pessoasfeitasde santo8 dizendo que filhas de Oxum são muito férteis ou nada férteis de acordo com seus destinos e os desígnios do orixá dona da genitália feminina dos órgãos do aparelho reprodutor feminino e do ciclo menstrual Além do mais a demonstração de força feita pela Iyá aos orixás masculinos no início da criação foi a mesma desferida a Vadinho um apaixonado por crianças e desejoso de colocar seu nome para prosseguir na sociedade O protótipo do orixá direcionou a sina da personagem sua filha impedindo a 8 Expressão utilizada pelos adeptos do candomblé para designar os iniciados e que lembra a expressão povodesanto utilizada por Edison Carneiro 38 implementação de fraquezas de Flor e a satisfação do homem através da prole Dona Flor jamais pegara menino mas sabia ser culpa sua e não do marido A doutora Lourdes Burgos sua médica lhe explicara e o doutor Jair havia confirmado e proposto ligeira operação ca paz de tornála fecunda quem sabe AMADO 1966 p 142 O mito da esterilidade se remete ao que segundo Deleuze Nietzsche chamava de empréstimo da aparência das forças precedentes contra as quais luta DELEUZE 1975 p 4 acontecimento imprescindível para a sobrevivência de qualquer força Se os homens excluíram Oxum das decisões sobre os destinos do mundo ela os excluiu das decisões sobre a continuidade do universo através da infertilidade da mulher Uma ação afirmativa que surgiu inspirada e motivada por uma afirmação precedente na visão de Nietzsche Ainda com o mito da esterilidade podese reconhecer a altivez feminina na obra amadiana através da ânima a noiva inseparável da afirmação dionisíaca DELEUZE 1975 p 17 Potência afirmativa que difere da potência feminina infernal negativa e moralizante a mãe terrível a mãe do bem e do mal aquela que deprecia e nega a vida NIETZSCHE apud DELEUZE 1975 p 17 com as suas proibições judaico cristãs Mesmo sendo mãe Oxum se opõe às lições da moral do cristianismo Impõese como guerreira ao contrário da mulher Flor limitada à moral católica de seu tempo Feliz por ser submissa buscando adaptarse a seu marido a seu senhor caber justa e certa em sua medida AMADO 1966 p 316 39 Até que se entenda Dona Flor como modelo da mulher dominada um leitor mais atento e conhecedor do universo religioso afrobrasileiro encontrará características de Oxum conduzindo o destino da personagem e enfrentando o clã masculino Isto pode ser facilmente compreendido posto que Flor de acordo com o pensamento de Nietzsche apud Deleuze 1975 é a vontade que obedece e Oxum é a vontade de poder elemento diferencial da força que comanda e guia ações É fato que o mito fala de ressentimento e vingança qualidades que poderiam negar a força ativa do arquétipo Oxum na mitologia e nos destinos da obra Entretanto o devir ativo é garantido pelo eterno retorno síntese iniciada com a vontade de poder que por sua vez é a diferença da quantidade das forças contrárias mais a qualidade reativa ou ativa de cada força O eterno retorno nietzscheano realiza a transmutação dos valores ou transvalorização colocando a afirmação em lugar da negação Indo aos acontecimentos dirseia que a ação dos orixás masculinos inicialmente era força ativa pois afirmava os seus valores A reação de Oxum no princípio força reativa tornou se força ativa com a afirmação dos direitos e dos valores da mulher Na história amadiana a força ativa a vontade de poder afirmativa mostrou sua eficiência levando seu exercício até o fim inviabilizando a concepção para Vadinho e Flor através da esterilidade da protagonista Foram as características do arquétipo que reagiram à força demolidora de Vadinho depois transmutada e transformada em força negativa ao mesmo tempo em que a força negativa arquetípica de Flor se transmutou em positiva com o evento eterno retorno que transmuda o negativo faz do pesadelo algo leve faz passar o 40 negativo para o lado da afirmação faz da negação um poder de afirmar DELEUZE 1976 p 71 O edificar do cruzamento das entrelinhas do mito da esterilidade e do romance Dona Flor e seus Dois Maridos DF levará à lembrança da má conduta de Vadinho para com seu casamento e sua consorte Então ele a empurrou e ela caiu por cima de umas cadeiras gritando assassino miserável e ele a esbofeteou Uma duas quatro bofetadas O estalo dos tapas levantou na rua o coro de revolta das comadres AMADO 1966 p 170 Apesar dos maus tratos sofridos a esposa satisfazia ao malandro em tudo exceto com um filho desejo reprimido pelo homem educado para a guerra ou para a vida libertina que entendia a mulher como prazer do guerreiro NIETZSCHE 2000 p 62 e geradora de filhos robustos No mito da esterilidade os orixás masculinos também se comportaram mal sendo dominados pela ação feminil da mesma forma que o destino ou a representação de Oxum freou os anseios de Vadinho em ter um herdeiro A cobrança em relação à esterilidade da mulher parecia velada no amor do guerreiro às crianças de meninos ah como ele gostava AMADO 1966 p 143 sem contudo diminuir o sentimento de impotência e culpa entranhados em Flor Ela não podia dar a solução ao desejo do marido a prenhez A doença foi a ação escrita pelo narrador onipresente e inscrita pelo mito da esterilidade aos desmandos do homem O arquétipo da Iyálodê a maior entre as mulheres Oxum se antecipou neutralizando as fraquezas de sua filha impedindo o livrearbítrio da personagem conforme deixa 41 implícito o narrador Para satisfazer ao marido Flor chegou a pensar em algumas ações que denotariam a mulher de seu tempo mulher da classe média baiana de meados do século XX9 e não uma diminuição do papel feminino por parte do autor visto que na obra a insubmissão é dos ditos de Oxum escritos pelo narrador não da pessoa ficcional apequenada pela sociedade preconceituosa e rigidamente moralista Flor queria ser um brinquedo puro e fino como diamante abrilhantado pelas virtudes de um mundo que não existe NIETZSCHE 2000 p 63 mundo de um Vadinho perfeito Todavia a jovem senhora não teve toda a independência anunciada aos personagens amadianos A personagem não agiu livremente teve a interferência do arquétipo da Yalodê em seu destino desfazendo a tese da liberdade de ação conferida às criaturas de Jorge Amado Caso a liberdade fosse dada haveria mais cenas de submissão Quem sabe Flor criaria filhos do mulherengo e então seria conectada com a verdade de outros mitos de Oxum já que são várias as Oxuns10 e suas equivalências em outras nações de candomblé11 além da nação Nagô e de várias qualidades e não se sabe se há 9 Este período pode ser comprovado por alguns acontecimentos como a notoriedade de Dorival Caymmi e a importância do Rádio 10 Seguindo o falar de pessoas escolarizadas do povodesanto e que fazem a forma padrão do plural em língua portuguesa foram colocadas estas e outras palavras de origem iorubana com o plural do português O termo Axé não terá o plural em português visto que não foi encontrada esta forma entre os citados falantes a mesma observação serve para a não colo cação do artigo definido feminino antes da palavra orixá 11 O candomblé teve sua origem no Nordeste brasileiro do século XIX PRANDI 1997 e segundo Nina Rodrigues cf AUGRAS 1983a nas matas do Urubu Pirajá em 1826 havia um quilombo que se mantinha com a ajuda de uma casa de fetiche chamada candomblé Pirajá é um bairro da Cidade do Salvador conhecido também por ter abrigado a luta pela independência da Província e até hoje por possuir o Parque São Bartolomeu santuário de realizações religiosas afrobrasileiros atualmente prejudicadas pelo desmatamento e pela falta de segurança 42 uma Oxum específica de Flor ou se a existência coletiva de Oxum contribuiu para a construção da personagem e dos acontecimentos em torno do ente ficcional hipótese que merece maior crença Vale lembrar que há as famílias de orixás12 nas quais se abrigam várias qualidades da mesma entidade e cada qual com atribuições e características específicas podendo várias delas influenciar a personalidade de Flor Análogo ao caso de uma Flor mais altiva a busca de um filho não iria invalidar sua altivez Este desejo também não distaria do orixá de seu ori ou de sua cabeça A prenhez poderia não significar submissão ao marido sendo desejo de mulher propagação de sua existência e demonstração de força assim poderia agir uma Oxum nunca a Flor amadiana destoando do arquétipo Oxum enquanto Yalodê Novamente recorrendo à mitologia Santos 1986 relata o nascimento de Osetuá filho de Oxum e responsável pela volta da paz e normalidade nas atividades sagradas de todos os orixás após várias exigências da entidade dona da situação que mereceu a obediência de todo o panteão nagô O nascimento de Osetuá confirma a força da mulher que desejou ter um filho unicamente para sua autosatisfação afirmando sua autoridade e não para o contentamento do guerreiro Ao contrário neste mito os guerreiros digo os orixás masculinos são obrigados a utilizar todo o seu Axé para garantirem que o filho de Oxum já em seu útero fosse um menino condição imposta pela rainha para ela fazer o mundo voltar ao seu curso normal O mais interessante é não ter sido mencionado um parceiro de Oxum pai de Osetuá Assistese talvez no mundo sagrado a uma produção independente avant la lettre 12 Esta informação foi obtida do filólogo e antropólogo beninense Hippolyte Brice Sogbossi em dezembro de 2002 43 Já com Dona Flor é vista a evidência de querer proporcionar o prazer ao guerreiro Ela e as amigas discutiam a possibilidade de um filho apaziguar a sua vida e acomodar o incorrigível marido No entanto a verdade ficcional reservou a Vadinho o dissabor de não ter descendentes e à filha de Oxum a esterilidade Quanto a criar filhos que não lhes pertenciam Flor e Oxum nunca fariam oposição pois Oiá teve dezesseis filhos com Oxóssi Oxum que era a primeira esposa de Oxóssi e que não tinha filhos foi quem criou todos os fi lhos de Oiá PRANDI 2001 p 213 Assim é que Flor se propôs a criar o filho de Dionísia de Oxóssi quando ainda achava tratarse de um herdeiro de Vadinho Para a Yalodê criar os rebentos de Oxóssi com Oiá não constituía servilismo era apenas uma atribuição de sua natureza pois ela é também Olotoju awo Omo a que olha e cuida de todas as crianças Mas para Flor a sujeição se consolidaria juntamente com a caridade cristã tão criticadas por Nietzsche Aqui temos a manifestação da consciência de Flor algo que para Nietzsche segundo Deleuze 1975 p 32 só existe do escravo em relação ao senhor que não tem que ser consciente O sentimento de culpa por causa da esterilidade fez com que Flor buscasse o possível filho de Vadinho para criar como seu e agradar ao guerreiro Porém o mito da esterilidade confirmou a intervenção de características de Oxum na verossimilhança do enredo junto a Flor e Vadinho A doença mesmo sem ser explicitada 44 na obra parece terse estendido ao marido de Flor homem de vastos relacionamentos e nenhum filho ao contrário do mestre Pedro Archanjo seu irmão de cabeça filho do mesmo orixá e pródigo fazedor de filhos a povoar os espaços do romance amadiano Tenda dos Milagres No romance DF AMADO 1966 p 494 filhos de Vadinho foram citados apenas como metáfora de poderes de Exu quando seu espírito travava a batalha final para permanecer na terra dizendo o narrador que as donzelas da cidade desnudaramse e saíram a se oferecer nas ruas e nas praças Logo nasciam os filhos aos milhares todos filhos de Vadinho É claro que a realidade ficcional não atribui filhos ao falecido boêmio apenas mostra a força de Exu no momento da luta para manter o egum de seu filho na terra O boêmio não tivera nenhum relacionamento com essas donzelas desnudas que jamais tiveram filhos A força do mito mostrou seu efeito o homem não propagaria seu nome através de sua prole seria um guerreiro incompleto Também no enredo amadiano o mito agiu sem a consciência escrava e com vontade de poder afirmativa Com Flor ao contrário de Oxum prevaleciam ditos sobre a mulher como a felicidade do homem é eu quero a felicidade da mulher é ele quer NIETZSCHE 2000 p 3 Assim há também como entendêla enquanto uma pessoa ficcional inserida em um tempo e em uma sociedade machista e preconceituosa em que a presença de um filho se fazia necessária Em todos os tempos inclusive hoje para o africano a progenitura constitui elemento essencial à boa existência do araaiê corpo do mundo dos vivos e à preservação da memória dos araorun corpo do mundo dos mortos LUZ 2000 como claramente demonstram os já citados versos onde aparece a preocupação com o futuro e a concepção de filhos 45 Por isso os homens foram consultar Olodumare Estavam muito alarmados e não sabiam o que fa zersem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses sem novos braços para criar novas riquezas e fazer guerras e sem descenden tes para não deixar morrer suas memórias PRANDI 2001 p 345 Schopenhauer 2001 em a Metafísica do Amor afirma que a procriação é a finalidade inconsciente de todo casal e que o amor se extingue quando a mulher é estéril Mas Dona Flor era estéril e o casamento dela continuava vivo e cheio de ardor apesar das aventuras do parceiro inconstância justificada por Schopenhauer ao declarar que o instinto do homem era proliferar a espécie Proliferação sem êxito do homem em questão apesar de desejada por ele Podese até entender que no primeiro casamento de Flor uma criança era o verdadeiro alvo do romance embora os envolvidos não tivessem consciência disso mas o bem querer não se esvaziou com a certeza da esterilidade da mulher SCHOPENHAUER 2001 p 84 Novamente contrariando os ditos de Schopenhauer o gozo de amor não foi seguido de uma estranha decepção O pósgozo de Vadinho e o de Flor eram acompanhados de carícias e ais de felicidade dizendo que a ausência de uma criança não poderia gerar a aversão e o fim do casamento Ainda acerca da procriação Foucault em A mulher os rapazes da história da sexualidade 1997 p 13 diz que Musonius acrescenta que a procriação pode ser uma coisa importante mas não poderia por si só justificar o casamento ele lembra que os homens poderiam muito bem fazer como os animais se se tratasse somente de ter uma progenitura unir se e logo separarse Felizmente o casamento é mais que uma 46 instituição para a progenitura e Flor atestou esta tese ao ser estéril e casarse duas vezes Agora o arquétipo Oxum está totalmente incorporado à personagem pois se é verdade que Oxum é mãe ancestral ela é também dona do mais doce mel sedutor Seu leito é ninho de satisfação e sua interpretação da moral é a interpretação da fortuna livre do ideal ascético nietzscheano ou das proibições judaicocristãs Além do mais para Vadinho vadiação palavra que ele utilizava para denominar o ato sexual era coisa de Deus por isso deveria ser feita com frequência sem cerimônia para o prazer e não apenas para a progenitura mesmo desejando um filho Nietzsche pode ser novamente chamado ao diálogo para ser identificada no filho de Exu a presença do Deus alegre e dançarino sem ressentimento e sem influência do sacerdote ascético aquele que deprime e constrange a vida Enquanto para a maioria das pessoas ficcionais do romance o sentimento de culpa grande estratagema de que se utilizou o sacerdote ascético para fazer ressoar na alma humana toda a espécie de música pungente NIETZSCHE 1999 p 129 e o pecado impediram a realização de uma vida alegre e sadia para Vadinho a alegria constituíase fôlego de vida chegando a contaminar Flor principalmente quando em quatro paredes percorria os limites do leito Afinal o criador após separar os dois sexos quis reaproximálos implantando um violento desejo de conjunção e de união MUSONIUS apud FOUCAULT 1997 p 14 Infelizmente alguns guardiões do cristianismo preferem enxergar impureza e indecência nas coisas de Deus escolhendo a tristeza ao invés da felicidade A alegria de Vadinho também é originada do próprio Amado pois de acordo com Seixas 1996 p 85 a 47 literatura para Jorge Amado não é um catecismo onde se diz como devemos rezar ela é um jogo que nos convida ao riso A literatura amadiana gera suavemente a desconstrução de valores constituídos Não obstante alguns entendem esta literatura como fácil vulgar e apenas deliciosos divertimentos para adulto SEIXAS 1996 p 86 Entretanto diznos Seixas 1996 p 93 que retirada a tinta da escrita fácil e divertida pelo leitor atento na busca do que se esconde por sob as cores luminosas surge o cerne de sua alegoria como a moral da fábula A partir desta constatação avistase a alegria consolidando a demolição da tristeza castradora e do ideal ascético Também entre mitos que explicam a religião tradicional nagô percebese a presença da liberdade sexual e da alegria Ao contrário do terrível pecado original as relações sexuais na mitologia iorubana são praticadas pelos seres humanos e pelos deuses como por Oxum segundo os mitos PRANDI 2001 mulher de Xangô de Ogum de Oxóssi e de Orunmilá tudo a seu tempo e dentro de sua existência coletiva Apesar de possuir períodos de abstinência sexual o sentimento de culpa e o pecado dogmas do cristianismo não são atribuídos nem com outros léxicos àqueles que exercem a sexualidade dentro da citada mitologia e no candomblé tradicional nagô PRANDI 1997 merecendo ressalva para a afrodescendente umbanda e para os candomblés umbandizados Por isso um Vadinho alegre filho de Exu com seu símbolo fálico e Flor filha de Oxum dona da genitália feminina união estrategicamente construída pelo narrador sexólogo num casamento que apesar das adversidades possuía um cotidiano conjugal razoavelmente feliz e fora dos padrões 48 de comportamento da época da narrativa ainda com todas as limitações de Flor A prova disto é que com Teodoro as relações sexuais além de terem dia e hora marcados deveriam vir acompanhadas de roupas e de um lençol preservando a castidade da esposa já viúva do primeiro marido Com Vadinho a nudez e os elogios à genitália da quituteira eram praticados sem medos e delimitações No farmacêutico os ideais cristãos tão criticados por Nietzsche e desprezados por Vadinho permaneciam vivos Sua esposa vivia desejando ser despudoradamente possuída mas para Teodoro não se podia ter relação com a mesma mulher ao mesmo tempo como esposa e como amante PLUTARCO apud FOUCAULT 1997 p 53 como com a prostituta a qual encontrava uma vez por semana antes do casamento com Flor Apoiada por Vadinho e incorporando características de Oxum a tímida professora de culinária e o primeiro marido mostraram possuir a híbris a violação soberba das leis divinas NIETZSCHE 1999 cristãs O divino negro fonte de inspiração para a obra e as personagens compreendiam o belo como uma promessa de felicidade STENDHAL apud NIETZSCHE 1999 p 95 não como abstinência da vida Por fim o arquétipo Oxum transformou Dona Flor numa mulher plena feliz A nova vida de Flor compôs o sorriso do deus brincalhão nietzscheano demoliu ideais cristãos sem tirá la do cristianismo Faz Vadinho redimirse catolicamente de seus erros manifestando sua consciência escrava Nietzsche e pedindo que a mulher abandonasse a moral católica e o tivesse para a cama e Teodoro para as contas só aí Flor é constituída dirigente da relação 49 Mais uma vez o eterno retorno nietzscheano transmuta as forças Vadinho tornase força reativa e Flor força ativa invertendo as posições transformando Flor em elemento dominante Neste episódio o arquétipo Oxum é responsável por viabilizar a inversão do controle do casamento ele o arquétipo levou o guerreiro à sujeição tradicionalmente imposta à mulher uma espécie de afirmação do poder feminino sem relação com o adultério pecado conceito cristão Vadinho agora ocupava a posição passiva antes de Flor fato ocorrido sem nenhuma pressão da cozinheira apenas o amor revelou se uma arma e estratégia do arquétipo Oxum sensibilizando o falecido fazendoo desejar para a esposa aquilo que achava melhor para ela uma espécie de compensação pelos maus tratos a acolhida dos dois maridos Somos teus dois maridos tuas duas faces teu sim teu não Para ser feliz precisas de nós dois Quan do era só eu tinhas meu amor e te faltava tudo como sofrias Quando foi só ele tinhas de tudo nada te faltava sofrias ainda mais Agora sim és dona Flor inteira como deves ser AMADO 1966 p 484 A sensibilização de Vadinho através do amor foi uma ação do arquétipo Oxum Flor em nada contribuiu intencionalmente para a inversão do poder o que ela desejava era ser novamente só de Vadinho Para assegurar a permanência do malandro ao seu lado na hora em que o morto estava sendo mandado embora pelos orixás por causa de ebó encomendado pela cozinheira o duplo13 da quituteira Florípedes existente no orun fez a intervenção no plano espiritual deixando Vadinho 13 Segundo a mitologia nagô todos têm um duplo de si no orun mundo espiritual LUZ 2000 SANTOS 1986 e no romance quem interveio para salvar o espírito de Vadinho foi a imagem de Flor no plano espiritual o que leva a crer ser o seu duplo espiritual 50 ficar e garantindo a felicidade de seu duplo no aiê Para não pecar em demasia ela optou por pecar só com o finado marido ao invés de procurálo em todos os homens conforme fala da personagem AMADO 1966 p 492493 Se não o tiver comigo irei em desespero procurálo em quanto homem passe em minha frente buscarei seu gosto em cada boca ululante esfomeada loba correrei as ruas Minha virtude é ele O que parece ficar claro é que a maior entre as mulheres arquitetou tudo Enquanto Flor sofria e desejava ter filhos e um marido enquadrado nos padrões sociais o arquétipo Oxum contrariava as vontades da personagem com a ausência de filhos e permitindo os desmandos de Vadinho até leválo à sensibilização e entrega O filho de Exu foi levado ao servilismo pelas circunstâncias dos acontecimentos confirmando mais uma vez a vontade de poder demolidora do arquétipo Oxum na construção do enredo No final Flor teve dois fiéis maridos Teodoro fiel por sua natureza e Vadinho por impossibilidade de realizar o amor com outro ser vivente Pela astúcia do arquétipo tratava se de um egum14 materializado somente para Flor Um passo atrás um salto à frente dos tempos de sol teira da passagem ao casamento da poliandria Todo mundo em certa medida usufrui do prazer da mesa do vinho e do amor mas nem todos o fa zem como convém auch hos dei ARISTÓTELES apud FOUCAULT 1998 p50 14 A palavra iorubana Égún foi escrita de acordo com a fonética portuguesa egum a exem plo de Braga 1995 Prandi 2003 e outros 51 Os acontecimentos que antecederam o casamento de Dona Flor já possuíam iniciativas que conduziram a pensar nas fronteiras entre a altivez de Oxum a mulher de seu tempo e características da ancestralidade do povo brasileiro Neste meio tempo fazse necessário visitar a personagem Dona Rozilda mãe de Flor mulher amarga responsável pela educação dos filhos a sonhar com casamento rico para Flor e Rosália suas filhas o que garantiria a própria ascensão social e o conforto pretendidos Badinter 1985 p 17 em Um Amor Conquistado O Mito do Amor Materno diz que o amor materno não é inato e qualquer pessoa que não a mãe o pai a ama etc pode maternar uma criança Badinter 1985 p 17 complementa o discurso sobre a maternidade ao afirmar que não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus deveres maternais A moral os valores sociais ou religiosos podem ser incitadores tão poderosos quanto o desejo da mãe Unindo estas declarações ao significado figurativo da palavra materno afetuoso dedicado carinhoso FERREIRA 1986 p 1103 logo será notado que Dona Rozilda era desprovida de tais sentimentos e que Badinter poderia têla como exemplo de mãe não maternal porque a natureza de Dona Rozilda era consagrada a infernar o próximo Quando não estava contrariando alguém sentiase vazia AMADO 1966 p 58 Do azedume de Dona Rozilda nem a família escapava em especial as filhas moeda de troca para o bemestar da megera através de um bom consórcio com homem rico independente de amor ou coisa parecida A ganância da mãe desprovida de amor materno lembra conveniências financeiras de várias sociedades e em especial os ancestrais portugueses 52 que desde o primeiro século da colonização realizavam casamentos de tio com sobrinha de primo com prima FREYRE 2001 p 396 com o único intuito de garantir a não dispersão dos bens Rozilda queria assegurar que a plebeia Flor se cassasse com um de seus ricos pretendentes Todavia a menina afirmava só caso com homem que eu ame AMADO 1966 p 80 contrariando a tradição dos casamentos arranjados existentes desde os primórdios da colonização Esta posição de Flor transfere ao texto literário um momento de rompimento da obediência feminina característica de algumas mulheres amadianas como Gabriela protagonista do romance com o mesmo nome Rosa de Oxalá e Majé Bassã estas duas últimas personagens do romance Tenda dos Milagres Enfrentar as ordens de Dona Rozilda mesmo com diplomacia à maneira de Oxum foi novamente uma demonstração da força ativa nietzscheana característica da Yalodê Para solucionar a peleja Flor deixou que o filho de Exu a possuísse afinal ela abriu as coxas e deixou que ele a comesse como há muito lhe pedia e suplicava AMADO 1966 122 Pode até ficar a dúvida se nos caminhos para o casamento houve vitória da lábia de Vadinho ou se a força afirmativa agiu através de Flor para libertála da tirania da mãe e cair no jugo do cônjuge depois conseguindo sobressairse ou possuir dois maridos Entretanto não há dúvida de que a intrepidez do arquétipo Oxum justifica tal realização visto que as pessoas se iludem com os aspectos de vaidade da faceirice do erotismo de Oxum e não se aperce bem como ela é poderosa Oxum preside sobre os mistérios da vida Filha predileta de Oxalá Ela intermedeia as ações e nessa condição é a contrapartida feminina de Exu TAVARES 2000 p 51 53 A perda da virgindade autorizava casamentos entre diferentes tipos religiosos e comportamentais até na Espanha e em Portugal do século XVI o que também era válido para uma limitada e rancorosa Dona Rozilda FREYRE 2001 p 307 Certamente representando o arquétipo Oxum Dona Flor se entregaria por vontade própria a Vadinho filho de Exu No mito Oxum deitase com Exu para aprender o jogo de búzios PRANDI 2001 p 337 Verificamse semelhanças e diferenças com o episódio da perda da virgindade que autorizou o primeiro casamento da viúva Obatalá o Senhor do Pano Branco aprendeu com Orunmilá a arte da adivinhação Orunmilá jamais ensinou para ninguém Só os babalaôs podem jogar com o Opelê a cadeia de Ifá Obatalá dizia que seu conhecimento era resultado da confiança que Orunmilá deposi tara nele e portanto negavase a passar adiante essa arte Entre os que queriam tal conhecimento estava Oxum a bonita esposa de Xangô Um dia Obatalá saiu da cidade e foi banharse num rio próximo Deixou sua roupa sobre a moita e foi para a água Enquanto Obatalá se banhava Exu pegou as roupas de Obatalá e foise embora Foi dançando alegre e feliz com sua brincadeira Obatalá ficou angustiado sem saber o que fazer Oxum que vinha andando pela trilha em direção ao rio viu Obatalá naquele estado e logo perguntoulhe o que havia acontecido Ele contou tudo 54 Oxum lhe disse então que iria até Exu para trazer as roupas de volta Em troca porém ela exigiu os conhecimentos da adivinhação Ele negou ela insistiu Obatalá concordou Fizeram o trato Oxum então foi à procura de Exu e finalmente o encontrou numa encruzilhada comendo ebós Quando ele a viu ficou endoidecido por sua beleza e porque Exu é como é tentou imediatamente ter relações sexuais com ela Oxum rejeitou Exu e exigiu as roupas que ele rou bara Até que finalmente eles fizeram um acordo Oxum deitouse com Exu e em troca recebeu as roupas furtadas Voltou para a margem do rio onde a esperava Obatalá Obatalá recebeu as roupas e as vestiu e honrando sua palavra ensinou Oxum a jogar búzios e obis Desde então Oxum tem também o segredo do orá culo PRANDI 2001 p 339 Entre as semelhanças há o ato sexual como solução de problemas da mulher ficcional e do arquétipo responsável por sua construção Oxum dormiu com Exu para receber de Obatalá ou Oxalá o poder da adivinhação Flor precipitouse e foi passar a tarde em Itapuã com Vadinho para conseguir sua liberdade diante da mãe Para a visão judaicocristã dois atos levianos Entretanto Nietzsche 2000 p 58 diz que coisas que um povo chama boas eram para outros vergonhosas e desprezíveis foi o que vi Muitas coisas aqui qualificadas de más em outro lugar os enfeitavam com o manto de púrpura dos homens Certamente conseguir para si o poder da adivinhação e estendêlo às 55 mulheres foi e é motivo de honrarias para Oxum Por isso os métodos da deusa talvez não tenham sido tão questionados pelos nagô15 tradicionais Nem tampouco podemos julgála por um ato insolado Em vários terreiros de candomblé da Bahia atribuise a Oxum a conquista feminina do direito ao jogo de búzios Mãe Senhora grande Ialorixá de um dos mais tradicionais terreiros de candomblé do Brasil o Ilê Axé Opô Afonjá já pensava nessa independência das mulheres em relação aos adivinhos A Ialorixá ensinava às suas filhasde santo o jogo de quatro búzios para que elas não confiassem nos homens antes detentores exclusivos do direito ao oráculo TAVARES 1996 Guardadas as devidas proporções e sem a conquista coletiva de Oxum Flor realizou uma ação audaciosa embora as donzelas apaixonadas da literatura e da vida nãoficcional tenham feito coisas parecidas muito antes a exemplo de Julieta amante de Romeu membro de família rival à sua no drama de Shakespeare Ao realizar a analogia do mito com os caminhos para o casamento de Flor e considerar o caráter plurissignificativo existente em toda obra literária entendese que o narrador por força do mito teria feito a cozinheira assumir características da independência sexual de Oxum Tais características eram e são desconhecidas do imaginário popular nãoficcional emprestadas no Brasil aos Exus efeminizados PRANDI 2003 sobre os quais discutirseá logo a seguir e subtraídas de algumas deusas nagô ao serem associadas às santas católicas maniqueístas por natureza A perda da virgindade revela se mais uma ação do arquétipo Yalodê direcionando os 15 Aqui será conservada a forma nagô no singular a exemplo de Juana Elbein dos Santos que não usa o plural aportuguesado em seu livro Os Nagô e a Morte 1986 56 destinos da personagem sem excluir o conflito entre o desejo de felicidade a vontade de poder afirmativo e os ideais do sacerdote ascético É dito isto pois apesar de ter ocorrido a demolição do dogma da grinalda e da flor de laranjeira do vestido branco do casamento abençoado e virgem foi a reparação da destruição deste dogma que fez dona Rozilda lavar as mãos para o enlace da filha O casamento como ato de reparação portanto Deve ficar claro que nada disso foi planejado pela personagem Apenas as semelhanças autorizam algumas verdades e as verdades são sempre uma interpretação Assim os veredictos dependem do olhar de onde se olha e para onde se olha Partindo das mitologias africanas e afrodescendentes olhando estas mitologias nas entrelinhas do romance virão outros sinais que autorizam ligar este episódio do enredo amadiano ao mito ora discutido São assinalações da mesma natureza da coisa assinalada credenciando o leitor a lembrar que Teodoro é filho de Oxalá ou Obatalá Vadinho filho de Exu e Flor redundante dizer filha de Oxum A tríade do mito é reinventada no romance revelando a ideia de coerência na escolha dos orixás desses personagens por parte do narrador Apesar de as mitologias oferecerem outras tríades com Oxum envolvida essa trindade apresenta grande simpatia ou semelhança com o enredo Nessa trilogia Oxum representa a síntese das forças contrárias de Exu elemento fogo orixá brincalhão Senhor dos Caminhos com Oxalá elemento água orixá velho pouco afeito a brincadeiras Dois mundos diferentes de dois orixás antagônicos como antagônicos são Vadinho e Teodoro A maior entre as mulheres coordenou o enfrentamento de forças reativas transmutandoas em ativas 57 sinais de devirativo Oxum conseguiu satisfazer as forças contrárias de Exu e Oxalá respectivamente desnudando se para um e vestindo outro através do sexo e da devolução das roupas Ao final recebeu o saber como prêmio elemento essencial para o exercício do poder O devirativo beneficiou a todos contemplando os envolvidos na trama sagrada No romance Flor entra numa tempestade ao casar se com Vadinho O casamento com Teodoro tornouse bonança excessiva levou a cozinheira ao tédio e à insatisfação sexual Então como já discutido no arremate a protagonista consegue o equilíbrio entre a tempestade e a bonança conduzindo o pensamento ao devirativo proporcionado pelo arquétipo da Yalodê Na obra ficcional o devirativo nietzscheano é caracterizado pela satisfação da cozinheira de Teodoro e de Vadinho No mito anterior a trindade consegue a satisfação os homens são brindados com os feitos de Oxum elemento central da narrativa sagrada e esta se brinda com os resultados alcançados Na narrativa amadiana a filha de Oxum é a personagem central que brinda os dois maridos e é brindada com a poliandria um triângulo amoroso livre de ressentimentos e sentimentos de culpa somente após a já demonstrada insistência de Vadinho Para ser feliz precisas de nós dois AMADO 1966 p 484 A moral cristã perde seu espaço é questionada e agredida por alguém crente dos dogmas cristãos como as Pombagiras crentes no cristianismo e transgressoras desta crença Além disso Flor como Oxum frui dois mundos o erudito de Teodoro e o popular de Vadinho fazendo maior seu território O filho de Oxalá apresentoulhe um novo mundo com novas regras e condutas ensinoulhe novas expressões da cultura O 58 mundo de Vadinho ainda se encontrava à disposição da viúva através das comadres dos carurus na casa de Mirandão e da volta do primeiro marido Tratase de uma verdadeira cadeia de Ifá exposta à jovem esposa fazendonos lembrar que o prazer e o poder não se anulam nem se voltam um contra o outro mas verdadeiramente constituem uma interação Com a quituteira o prazer e o poder possuíam sua representação maior na posse de dois maridos nos diferentes conhecimentos e culturas adquiridas dos dois consortes Teodoro o erudito e reservado Vadinho amante da vida popular amigo do cantor Caymmi dançarino a exibir o passo do siriboceta AMADO 1966 p 118 diante da janela de Flor Mesmo o mando de Flor tendo sido consolidado sem a intencionalidade da personagem e pela rendição de Vadinho tal autoridade existiu com fronteiras bastante demarcadas e um território definido a partir de uma realidade inicial dada que é o espaço RAFESTIN 1993 p7 O espaço inicial foi o da mulher subjugada e masoquista tendo o marido por senhor O território conquistado foi o de uma senhora de dois homens e duas realidades distintas senhora sem arrogância e prepotência feliz e realizada uma mulher bem amada Na fanopeia ou imagem destes acontecimentos não há como negar a transição de Flor da condição de ator paradigmático aquele cooptado e dirigido para ator sintagmático RAFESTIN 1993 p33 cooptador de atores paradigmáticos um dirigente uma Yalodê Assim o programa estabelecido o planejamento elemento de todo ator sintagmático é pertencente ao arquétipo Oxum Por mais terrível que pareça à moral judaicocristã a poliandria sistema complementar onde vários maridos 59 compartilham uma esposa LÉVISTRAUSS 1982 p 359 existiu para a Flor do mito amadiano que enfim dominou dois homens pelo coração Contudo não se consolidou a poliandria com Oxum no mito em questão eis uma diferença para com a história amadiana Encontrase isto ao transportar o conceito de poligamia de LéviStrauss para julgar a definição de poliandria LéviStrauss diz que algumas sociedades são poligâmicas de fato e outras porém estabelecem acentuada diferença entre a primeira esposa que é a única verdadeira investida de todos os direitos legados ao estado matrimonial e as demais que às vezes pouco mais são do que concubinas oficiais LÉVISTRAUSS 1982 p 361 Norteandose por este conceito de poligamia atentase que Oxum não praticou de fato a poliandria porque a relação com Exu não chegou a ser duradoura A verdadeira poliandria envolvendo um lar estável onde todos os maridos de uma mulher compartilham a mesma residência é incomum e encontrada principalmente entre os Himalayas GREGERSEN 1983 p 129 e com Dona Flor e Seus Dois Maridos Convivendo na mesma casa com Teodoro e Vadinho Flor tinha Teodoro gozando do status de marido no aiê e Vadinho no orun e no aiê Nem em determinados grupos da Nigéria encontramos tal poliandria dos Himalayas e de Dona Flor No tipo de poliandria de um dos países de origem das entidades iorubás Nigéria a esposa circula de um lar para o outro GREGERSEN 1983 p 130 como a personagem Rosa de Oxalá no romance Tenda dos Milagres a visitar a Tenda dos Milagres atrás de Lídio Corró e com o coração nutrindo um amor irrealizado por Pedro Archanjo além do mais a iaô de Oxalufã era mãe de uma menina com um branco rico 60 Mais uma vez abrese espaço para uma discussão sobre as mulheres em Jorge Amado debate que quase sempre é cheio de acusações sobre os possíveis maus tratos do narrador para com o sexo feminino A respeito deste assunto convém não esquecer tratarse da utilização do engajamento do realismo engajado para denunciar a realidade jamais a depreciação à mulher A realidade ora denunciada é alicerçada na escravidão negra no Brasil Os senhores de escravos não hesitavam em vender membros de casais e filhos para diferentes compradores causando a impossibilidade da formação de famílias consensuais e estáveis DEGLER apud SEGATO 2000 o que influenciou algumas gerações de exescravos e seus descendentes É importante lembrar que algumas atrocidades ao povo negro ainda eram e são cometidas na sociedade brasileira Um autor engajado jamais se omitiria tendo a denúncia como prática Aqui valem mais as pistas semelhanças e diferenças do enredo em relação aos mitos africanos e afrodescendentes e à ancestralidade melhor dizendo aqui valem as similitudes e também as nãosimilitudes Algumas similitudes com certeza revelam o alicerce da obra amadiana na história e nas características das três etnias que compõem o mestiço brasileiro ou o conceito amadiano de nacionalidade As não similitudes o rompimento com modelos da citada realidade revelam maior preocupação com a estética e o fazer literário Da androginia da divisão do trabalho da autoridade no lar da força das MulheresdeSanto Novamente comentando o mito Oxum deitase com Exu para aprender o jogo de búzios para chegar às pistas 61 aos olhos desta sociedade machista e judaicocristã são aqui reveladas inversões de papéis nas relações de poder e sexo Tanto Oxum como Flor assumem posições andróginas posições de iniciativas femininas e masculinas As inversões de papéis não são apenas em relação ao pensar e agir da sociedade brasileira pois o padrão geral do casamento ideal em todas as culturas africanas tradicionais é aquele em que o homem tem mais de uma mulher LÉVISTRAUSS 1982 p 188 Portanto tratam se de sociedades patrilineares machistas e poligínicas como os iorubás PRANDI 2000a Oxum é uma transgressora mesmo em seu país de origem Também no mundo ocidental autodeterminado de civilizado o comum é que os homens possuam relacionamentos extraconjugais duradouros ou não Sobre a androginia não é privilégio inconsciente apenas de Flor16 ou privilégio assumido unicamente de Oxum a Grande Mãe Ancestral da liturgia nagô fala grosso como homem Grande muito Grande mãe no topo da árvore iroko Mãe que sobe alto e olha para a terra Mãe que mata o marido mas dele tem pena AU GRAS 2000 p 20 Ela basta a si própria fala grosso como homem olha do alto da árvore iroko assumindo portanto características bem fálicas o seu marido desempenha papel fecundante qual zangão AUGRAS 2000 p20 A Grande Mãe Ancestral Iyá Mi Oxorongá não se costuma apresentar em singularidade ela se expressa no poder de certos orixás 16 A androginia de Flor consiste no fato de prover o sustento da casa e apesar de ser diri gida por Vadinho no final do romance o malandro vêse obrigado a convencêla a realizar o triângulo amoroso O poder chega às mãos de Florípedes que inconscientemente virou dirigente do triângulo amoroso como já dito anteriormente 62 femininos como Apáoká a jaqueira verdadeira mãe de Oxóssi Oxum Nanã Iemanjá AUGRAS 2000 p 22 Daí a origem do aspecto transgressor de Oxum ficcionalizado em Dona Flor A busca de signos da ancestralidade feminina e da androginia desembocará na divisão do trabalho assunto do circuito da sexualidade que leva o leitor ao malandro Vadinho e ao nãoficcional Brasil dos protobrasileiros índios Bororós onde as mulheres governam a divisão do trabalho entre os sexos lavram o solo LÉVISTRAUSS 1982 p369 Sobre este mesmo aspecto da divisão de trabalho pelo sexo é importante visitar comunidade de Ponta de Areia na Ilha de Itaparica Estado da Bahia local investigado pelo antropólogo Júlio Braga 1995 Em Ponta de Areia também se verificou a tendência para a assunção do sustento familiar por mulheres de sacerdotes do culto afrodescendente de Babáegum17 Este fenômeno afirma a sintonia do narrador de DF com realidades sociais ainda atuais dizendo muito sobre o caráter atemporal da obra de arte Quando é a mulher a responsável por este encargo o grupo doméstico se redefine em função da inver são de papéis que disto resulta O homem nessa circunstância ocupa posição marcadamente infe rior a sua mulher em termos de mando embora essa inferioridade fique quase sempre restrita às relações intragrupais O cuidado que se exerce em manter a situação de superioridade da mulher nos limites das relações internas do grupo doméstico proporciona ao ho mem continuar gozando de certo prestígio entre os demais membros da comunidade Essa situação é em parte facilitada pela própria mulher que ao agir com discrição impede que seu 17 Tratase de culto aos ancestrais masculinos 63 companheiro seja vítima da maledicência geral BRAGA 1995 p 71 Importante lembrar que devido à dedicação de grande parte do tempo produtivo às obrigações espirituais ainda hoje alguns membros do candomblé sem êxito financeiro dependem muito do trabalho de suas companheiras para o sustento parcial ou integral da família Historicamente as mulheresdesanto18 têm tido maior contribuição para o sustento do lar acumulando funções sacerdotais e de trabalhadoras até chegarem a um status quo que as permitisse concentrarse apenas nas funções sacerdotais muitas vezes única maneira de ascensão social PRANDI 1997 Após a Abolição apesar do trabalho remunerado o homem negro não conseguia tanto resultado em suas atividades braçais quanto as mulheres negras que lavavam roupas de ganho e cozinhavam TAVARES 1996 O relativo sucesso da remuneração feminina favoreceu o nascimento de um matriarcado religioso pois as mulheres conseguiam sustentar a casa e juntar dinheiro para comprar suas roças de candomblé Um exemplo da superioridade financeira das mulheres negras exescravas ou descendentes foi a Ebome Sambadiamongo19 filha do Inquice Samba20 correspondência Angola ou bantu do orixá Oxum dos nagô PRANDI 1997 Ao menos até a segunda metade dos anos de 1990 as netas de Edith Apolinária de Santana mantinham guardadas 18 As mulheresdesanto é o termo utilizado para designar a mulher iniciada no candomblé A iniciação consiste na feitura do santo quando o neófito passa por vários processos ritu alísticos até culminar no dia do nome do santo Neste referido dia ocorre uma cerimônia pública quando através da possessão do iniciado o orixá inquice ou vodum diz o seu nome ao público 19 Nome de Edith Apolinária de Santana no candomblé 20 Esta denominação Samba encontrase em Prandi 1997 64 as pedras que serviam para ralar o feijão do acarajé vendido de porta em porta sem os quitutes da atualidade vatapá salada caruru Na Bahia a venda do acarajé em sua origem tinha a escolha restringida a duas opções com ou sem pimenta costume da primeira metade do século XX Como ocorre com as mulheres de Ponta de Areia como ocorreu com Sambadiamongo e com mulheres negras donas da mesma sorte a cozinheira amadiana e sua irmã eram coluna financeira da família nos tempos de solteiras e com Flor o fato se prolongou até o primeiro casamento Esta relação de Flor com o trabalho confirma a sua androginia tomando atitudes de homem da casa pois em sua época era incomum mulheres sustentarem o lar Flor sustentou sua mãe sustentava Vadinho mas não se invertia o exercício de poder exceto nos momentos finais da trama quando Vadinho já era um egum e propôs a divisão das atenções de sua amada com Teodoro Inclusive na época da viuvez os passeios à meianoite continuavam a arrancar o egum de Exu21 dos lençóis de Flor O egum malandro não dispensava as noitadas deixando a viúva e esposa insatisfeita a recordarse dos tempos em que o boêmio era vivo e fazia o mesmo O homem continuava a mandar e a mulher apaixonada obedecia transformandose em força reativa até o momento da transmutação Na religião afrodescendente do Estado do Recife o Xangô os maridos das mulheres do culto quando moram com elas não exercem autoridade no lar nem tomam decisões SEGATO 2000 p 60 Tal prática difere de Dionísia de Oxóssi comadre de Flor subjugada ao seu marido que apesar de brigar pelo que é seu acabou aceitando a traição 21 Como Vadinho encontravase morto e em vida era filho de Exu após a morte passou a ser Egum de Exu segundo a liturgia candomblecista 65 do companheiro pois ameaçou mandar o traidor embora Ameaça só minha comadre qual o homem que não põe chifres na esposa AMADO 1966 p 371 Ainda que não lendo Jorge Amado apenas como documento procurase a representação da ancestralidade e dos orixás as quais no entendimento hoje tornado comum são expressões da defesa de uma identidade Não é realizada a reescrita integral da afirmação bem intencionada do historiador Teixeira22 Jorge Amado é um antropólogo estragado na ficção É crível que Jorge Amado é um pintor de realidades o qual procura pôr arte naquilo que retrata quem sabe para contrariar a literatura enquanto documento ou quem sabe para contrariar o documento como fonte privilegiada da memória cultural Causou estranheza quando Jorge Amado pareceu desconhecer certos preceitos do candomblé como o poder das mulheres filhas de orixá a exemplo de Dionísia de Oxóssi O autor era amigo e leitor de Edison Carneiro23 frequentador dos candomblés da Velha Bahia RAILLARD 1992 Ogã do Pai desanto Procópio RUBIN CARNEIRO 1992 sacerdote com lugar de destaque na resistência nãoficcional à repressão policial aos candomblés e nesta mesma resistência retratada em Tenda dos Milagres 2000 Ministro de Xangô Obá Orolu do Ilê Axé Opo Afonjá candomblé famoso por seu tradicionalismo Temse como certo que Jorge Amado não cometeria tais equívocos por desconhecimento de causa acreditase mais em liberdade de criação Ou ocorreu um 22 Entrevista do historiador Cid Teixeira ao programa Ralando na Área TV Bahia conces sionária da Rede Globo de Televisão na Bahia em 2003 23 Autor de Candomblés da Bahia estudioso do candomblé e companheiro de Jorge Amado na Academia dos Rebeldes 66 rompimento com a realidade das fortes mulheresdesanto e a conexão com a sociedade civil onde as mulheres eram submissas O mais acertado é entender que os candomblés estão inseridos num conjunto maior que é a sociedade de classes recebendo portanto influência desta Assim não há como destacar a possibilidade da existência de mulheresdesanto desprovidas da audácia característica de suas companheiras de religião Há os enganos contra fato não há argumento os quais são propositais enganos para a antropologia e liberdade de criação para a literatura Também como exemplos da autoridade de filhasde santo devem ser citados alguns acontecimentos do terreiro de candomblé da nação Angola Mansu Bandu Kenke do Inkinançaba localizado no bairro de Pirajá bairro periférico da Cidade do Salvador Quando a pesquisa de campo24 foi feita entre 1994 e 1999 a sacerdotisa fundadora da casade santo Sambadiamongo ou Edith Apolinária de Santana25 já se encontrava no mundo da verdade o mundo espiritual do dizer de velhos afrobrasileiros Mas como reza a tradição o seu orixá ou inquice como se diz nas nações angoleiras ainda regia e rege a casa Tratase de uma casa de Samba a equivalência de Oxum para os nagô PRANDI 1997 E como casa de orixá ou inquice feminino com o descendente mítico feminino as mulheres continuaram a exercer maior autoridade que os homens inclusive nas relações familiares Fato explicado por 24 Ao invés de uma pesquisa de campo com todas as formalidades exigidas o que se cha ma aqui de pesquisa de campo foram alguns anos de convivência dentro deste importante templo afrobrasileiro 25 Sambadiamongo era o nome dado a Edith Apolinária de Santana por seu inquice quan do da feitura Todos os iniciados possuem um nome mítico relacionado ao seu orixá inquice ou vodum 67 uma informante e companheira de uma Equede26 da casa esta última neta biológica da falecida Ebome27 ou Ialorixá com a seguinte frase Casa de Santa mulher homem fica preguiçoso e as mulheres mandam Este candomblé guarda importante similitude com a história amadiana tanto Flor como o templo são regidos por Oxum Na casa de Flor casa de Oxum pois o orixá da cabeça do dono da casa é também o dono da casa de seu filho Vadinho era um grande preguiçoso Inicialmente Florípedes não mandava era regida pelo marido com carícias e às vezes com violência A partir da formação do triângulo amoroso Flor passou a ser elemento preponderante fato reconhecido inclusive por Vadinho Nem só comigo nem só com ele com nós dois minha Flor enganadeira Ele também é teu mari do tem tanto direito quanto eu Um bom sujeito esse teu segundo cada vez mais gosto dele Aliás quando cheguei te avisei que a gente ia se dar bem os três AMADO 1966 p 483 No mesmo candomblé ouvese um depoimento sobre o marido de uma filhadesanto da Casa que teria desafiado o orixá de sua esposa O consorte disse que o orixá e a esposa eram o mesmo que ele possuía à noite De acordo com o depoimento o orixá castigou o homem fazendoo perder o emprego e o amor da companheira A entidade transformou a filha em sustentáculo da casa fazendoa trabalhar como costureira para manter o amante e o marido que passou a fazer os trabalhos domésticos servindo à esposa e ao novo consorte 26 As Equedes são membros do candomblé que não são possuídas pelo orixá têm várias funções desde vestir o santo até tocar tambores apesar de não ser comum esta última fun ção 27 A palavra Ebome pode ser encontrada em algumas variações como Ebame sempre signi ficando Mãedesanto ou Ialorixá palavra de origem iorubá mais conhecida popularmente 68 Ainda segundo o depoimento através de seu Erê orixá criança Oxóssi explicou à Ebame que havia sido chamado de mulher O orixá caçador senhor das matas resolveu provar que ele era o homem da casa enquanto o marido de sua filha passou a fazer o papel de empregada do novo casal sem direito a nenhum favor amoroso Este fato pode ser verificado no culto Xangô do Recife onde alguns orixás masculinos não admitem homens dando ordens e habitando a mesma casa de suas filhas SEGATO 2000 e na ficção verificado com Rosa de Oxalá AMADO 2000 mulher independente sem homem que lhe colocasse rédeas Contrariamente ao que aconteceu com a personagem Dionísia de Oxóssi subjugada pelo marido Depoimentos semelhantes são comuns em relação às mulheres filhas de orixás femininos Algumas filhasdesanto do Mansu Bandu Kenke do Inkinançaba e integrantes de uma casa de umbanda também em Pirajá alegam que depois de iniciadas a ira de seus orixás desfez seus casamentos por serem maltratadas pelos maridos Outras iniciadas alegam uma reversão em seu favor nas relações de poder quando os maridos não são iniciados O mais interessante é que no caso dos orixás femininos com exceção da brava Iansã as coisas acontecem numa transição branda pois geralmente após o retorno da reclusão iniciática a situação já se encontra revertida como se sempre tivesse sido assim uma reversão parecida com a rendição de Vadinho anunciada desde o momento de sua volta Vai embora doido ele já está entrando na casa vai fechar a porta Por que hei de ir me diga Ele chega e vai te ver aqui que é que eu vou dizer Tola Ele não me vê só quem me vê és tu minha flor de perdição 69 Mas ele vai deitar na cama Vadinho fez um gesto de lástima impotente Não posso impedir mas apertando um pouco cabe nós três AMADO 1966 p 390 Para depois se consolidar através da já citada fala Somos teus dois maridos tuas duas faces teu sim teu não Para ser feliz precisas de nós dois AMADO 1966 p 484 Da alegoria do amor da malandragem masculina Através das similitudes com a história de Florípedes entendese o triângulo amoroso como um castigo a Vadinho apesar de por ele mesmo proposto Mas o mito Oxum fica pobre por amor a Xangô mostra a Yalodê fazendose subserviente ao orixá da justiça e perdendo todos os seus bens para sustentar o amado Oxum era conhecida como a amante ardorosa Oxum teve muitos amores de quem ganhou presentes preciosíssimos Um dia chegou à aldeia um jovem tocador de tam bor Era Xangô um belo homem que desde logo atraiu o desejo de Oxum Oxum foi se aproximando de Xangô até que um dia ele a tomou numa calorosa relação sexual Mesmo assim Xangô não deixou de humilhar e desdenhar a linda jovem Tempos depois A fama e a fortuna de Xangô lhe fugiram das mãos e ele se viu empobrecido e esquecido 70 Envergonhado ele fugiu dali Mas continuava o glutão de sempre a viver com conforto e prazeres Oxum seguiu sendo sua amante e o consolou sacrificando por ele tudo o que tinha De tudo dispôs Oxum para o conforto de Xangô De tudo desfezse Oxum pelo amor de Xangô Ficou pobre por amor a Xangô Restou a Oxum apenas um vestido branco De tanto lavar a única peça que lhe restara a roupa branca tornouse amarela Desde esse dia Xangô amou Oxum PRANDI 2001 p 336 Com esse mito o pensamento retorna à afirmativa do início do capítulo que são várias as Oxuns de várias qualidades e não se sabe se há uma Oxum específica de Flor ou se a existência coletiva de Oxum contribuiu para a construção da personagem e dos acontecimentos em torno do ente ficcional Esta afirmação pode ser repetida com base no fato de que o mesmo arquétipo que com o mito da esterilidade destoa da Flor submissa a Vadinho amor e algoz justifica o masoquismo da filha de Oxum através da presente narrativa Ou seja se com o mito da esterilidade aparece uma Flor arredia destoante da altiva Oxum no mito Oxum fica pobre por amor a Xangô o arquétipo multifacetado do orixá justifica as ações de submissão da personagem São contradições decorrentes da existência de diferentes momentos das vidas das várias Oxuns Observase que as condutas de Vadinho e do orixá Xangô são parecidas no que tange a conforto e prazeres diferindo apenas no amor que Vadinho já sentia por Flor desde o início ao contrário do orixá da justiça que foi levado a amar sua mulher 71 Mas Vadinho não era de Xangô com certeza se este fosse o orixá do rapaz outro destino o aguardaria Poderia continuar o amante da noite do jogo e das mulheres mas certamente caberia a construção da personagem que não amasse tanto o álcool elemento dos rituais de Exu a ponto de leválo à morte Evidente que comportamentos destoantes da vida boêmia para filhos desses ou de outros orixás justificariam heranças de características dos pais míticos As particularidades dos orixás permanecem nas entrelinhas de vários comportamentos e ações de seres ficcionais e nãoficcionais As relações de poder entre os orixás masculinos e femininos da liturgia nagô nem sempre foram tão desfavoráveis às mulheres O mito Ogum conquista para os homens o poder das mulheres conta que No começo do mundo eram as mulheres que mandavam na Terra e eram elas que dominavam os homens A mulher manejava o homem com o dedo mindi nho PRANDI 2001 p 106 Tudo coordenado por Iansã até que um dia Ogum sob a orientação de Orunmilá conseguiu reverter a situação A ação das mulheres no poder foi aterradora humilhante e injusta Parece que a liturgia nagô encontrou um meio para justificar a direção do mundo sob o domínio dos homens interpelados somente pela Grande Mãe Ancestral A própria Iyá Mi Oxorangá é um exemplo de abuso do poder tal Dona Rozilda e diferente de Dona Flor filha de Oxum uma das representações da Grande Mãe A quituteira possuía características de um poder controlado como o ideário católico das Santas meigas maniqueístas virando a face para receber a segunda bofetada 72 Apenas no leito com Vadinho e às vezes com Teodoro Flor esquecia a noção cristã de pecado Uma das preocupações aqui é selecionar mitos que corroborem de alguma forma para a negação ou afirmação da representação dos orixás e da ancestralidade na obra analisada Daí confrontando o mito Oxum fica pobre por amor a Xangô com a submissão de Flor e posterior domínio sobre Vadinho constatase que o amor responsável pela submissão do orixá e sua filha fez com que o Filho de Exu e o orixá Xangô fossem sensibilizados por suas amadas Este sentimento possuiu significativa parcela de responsabilidade na conquista dos desejos da Yalodê e de sua descendente mítica A percepção do amor enquanto arma não invalida para o caso de Flor a inércia ou falta de intencionalidade para a luta Deve ser reafirmado que as táticas e estratégias são do arquétipo Oxum sem o conhecimento e independente do pedido de sua filha Flor não usou de artimanhas para comover seu amado apenas amou A astúcia foi uma ação do arquétipo Oxum no romance DF também no mito Oxum fica pobre por amor a Xangô Afinal a deusa dos rios recebeu de Olodumaré o amor enquanto atribuição característica e poder Nos dois mitos Oxum é vencedora como Flor ao conquistar seus dois maridos através da alegoria do amor escondida por detrás do leque da Iyá deixando sobressair seus aspectos subservientes e masoquistas No mito da esterilidade o amor próprio e o amor à causa das mulheres é a alegoria Oxum ator sintagmático transformou todos os orixás masculinos em atores paradigmáticos RAFFESTIN 1993 até Olodumaré o deus supremo foi cooptado No mito Oxum fica pobre por amor a Xangô Oxum com persistência conquista 73 seu amado mesmo depois de ele ter consumido todos os bens dela No referido mito em que Oxum é submissa ela revelase ator sintagmático cooptando Xangô para seu território através do amor arma infalível da Iyá Voltando ao mote da divisão do trabalho despertado pelo modo de vida de Xangô no último mito citado é possível compreender o quanto este assunto se encontra ligado ao sexo e à exploração da mulher O negro Arigof amigo de Vadinho e filho de Xangô juntamente com todos os malandros de DF são exemplos de como a mulher pode ser fonte de renda Arigof assume e entende a sua realeza de macho pelo fato de ser sustentado pelas amantes opinião compartilhada com sua amásia Teresa a qual se sentiu ofendida quando numa maré de sorte proporcionada pelo egum de Vadinho o jogador malandro e gigolô quis contribuir com as despesas de casa um tipo de androginia pouco desejada pelas mulheres mas praticada pela branca Teresa arreitada por um negro DF por isso chamada de Teresa Negritude Sentindose frustrada e ofendida a geógrafa fez lhe ver o absurdo e o ridículo da situação a ela Teresa Negritude competia sustentar a casa e o negro macho ela tinha seu orgulho sua honra a defender Um ou outro presente ainda vá mas daí contribuir para o aluguel ah era um despro pósito AMADO 1966 p 488 Os malandros em DF diferem dos coronéis de Gabriela Cravo e Canela 1989que viviam a montar casas em ruas de canto ou em praças centrais para suas amantes As concubinas dos cacaicultores às vezes mantinham jovens rapazes com o dinheiro dos grandes fazendeiros como no exemplo de Glória a sustentar o professor Josué com o dinheiro do Coronel 74 Coriolano Há a possibilidade de o autor terse inspirado em mandriões conhecidos nos tempos da Academia dos Rebeldes nas noites da Velha Bahia as quais declarou ter frequentado apud RAILLARD 1992 Afinal a construção dos personagens do romance podese pautar em modelos da realidade como nos explica o teórico Antônio Cândido em Personagem do Romance 1976 Recorrendo à ancestralidade africana LéviStrauss 1982 p 362 diz que na África é necessário ser rico para obter muitas esposas pois é costume comprar a noiva mas onde ao mesmo tempo o aumento do número de esposas é um meio para aumento da riqueza uma vez que o trabalho feminino tem valor econômico definido Deste modo ocorre a transplantação e a ressignificação de um costume africano em personagens amadianos e em personagens da sociedade Em Ponta de Areia e em observações em candomblés baianos podese notar a confiança no trabalho feminino e também a dependência deste com ou sem poligamia É preciso esclarecer que este tipo de comportamento não é privilégio dos afrobrasileiros Em O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro 1995 há relatos de europeus formadores de criatórios de gentes Estes fiéis escudeiros da coroa portuguesa tinham a nobre e cristã função de fornicar com as índias para produzir vasta mãodeobra As várias consortes dos chefes de criatórios de gentes sustentavam o marido o qual possuía a única função de procriar tudo isto era facilitado pela hospitalidade indígena O incesto não era proibido e até um pouco tolerado pelo clero pois Portugal precisava de braços No que tange aos coronéis fazemse melhores as semelhanças com os senhores que subjugavam suas escravas conforme descrito por Freyre em Casa Grande e Senzala 2001 75 Tal prática era existente na zona do cacau amadiana ou com o mafioso Pelanchi de DF Em ambos os casos o chicote era substituído pelo dinheiro para ludibriar e seduzir as flageladas pela pobreza Permanecendo na zona do cacau Nacib do romance amadiano Gabriela Cravo e Canela 1989 traído de fato mas não de direito o árabe conseguiu provar a ilegalidade do casamento para dizer que por isso o matrimônio nunca teria acontecido e assim não poderia ser corno ampliou os negócios por causa das receitas da jovem cozinheira Gabriela vinda do sertão Os quitutes da sertaneja alimentavam a conta bancária do ilheense árabe e o sonho de comprar umas roças de cacau Até o reto Teodoro teve que aceitar o dinheiro de Flor para fechar o negócio da casa própria Da Umbanda e da Pombagira Tais comportamentos em relação à divisão do trabalho em DF podem causar alguns dissabores mas foi visto que há correspondências mitológicas e nãoficcionais Contudo certamente o maior estranhamento é em relação à coragem de Oxum para realizar ações romper barreiras e transgredir conceitos sociais há muito estabelecidos A imagem que se faz de Oxum entre os menos esclarecidos é a da mulher sensual ingênua dócil e infantil como informa Segato 2000 p 21 sobre o Xangô do Recife É bem verdade que esta imagem de docilidade sensualidade e ingenuidade encontrase também em Flor fortalecendo a ideia da representação coletiva de Oxum pois esses conceitos maniqueístas fazem parte da constituição de Oxum no imaginário popular brasileiro 76 O imaginário popular brasileiro tratou de diabolizar com a orientação e o incentivo dos doutos do cristianismo as características de Oxum referentes à liberdade sexual transgressão e poder de elaborar intervenções Prandi 2003 p 7 diz que muitas características africanas das Grandes Mães inclusive Iemanjá e Oxum foram atenuadas ou apagadas no culto brasileiro dessas deusas e passaram a compor a imagem pecaminosa de Pombagira o Exu efeminizado do Brasil no outro polo do modelo em que Exu reina como senhor do mal Apesar de Darcy Ribeiro elogiar os cultos da umbanda dedicados a Iemanjá e relacionados com a passagem do ano e de qualificar a Rainha do Mar como única santa que fode RIBEIRO 1995 por receber várias oferendas destinadas à resolução da felicidade conjugal a umbanda parece ter promovido em torno da figura de Iemanjá um esvaziamento quase total do conteúdo sexual AUGRAS 2000 p 16 esvaziamento também realizado em torno de Oxum O povo desanto do candomblé vítima da ideologia cristã passou a incorporar características da umbanda embranquecendo o candomblé e substituindo a tradicional noção de tabu pela noção cristã de pecado mais aceita na sociedade brasileira Peter Fry conforme Augras 2000 p 29 relata que uma mãedesanto umbandista incorporou Iemanjá na beira de uma praia carioca e a entidade começou a cantar com uma voz redonda e afinada e com trêmulo de cantora de ópera A melodia era a Ave Maria de Gounod Isto pode ser facilmente explicado com a mesma justificativa para a existência dos Exus de umbanda todos eles foram pessoas vivas no mundo contemporâneo PRANDI 2003 A Iemanjá da umbanda pode ter sido uma cristã recémmorta um egum como Vadinho só 77 que bastante cristianizado Estes são conceitos muito próximos do Espiritismo seguidores do codificador da doutrina Alan Kardec uma religião também influenciadora da formação da umbanda O mesmo movimento de cristianização que diabolizou Exu tratou de embranquecer Oxum retirando seus atributos sexuais por tratarse de pecado diante de Deus Somente Iansã ainda possui junto ao imaginário popular o poder de sedução e iniciativa própria Rainha da sociedade secreta dos eguns guerreira feiticeira Iansã mantém a fama de mulher aguerrida É ela mãe conclamada por muitas mulheres na Bahia em momentos difíceis e de demanda principalmente para ajudar no jugo de seus parceiros ou defenderse do jugo destes Os leitores poderiam esperar uma total concordância entre o conformismo de Flor e as características de Oxum É que no imaginário popular concernente ao período retratado da obra já haviam sido inseridas as referências de Oxum a Santa Luzia e Nossa Senhora das Candeias PRANDI 1997 incorporando valores cristãos já predominantes no candomblé através do sincretismo com o catolicismo A interpretação e o paralelo cristãos sincretizados também são válidos pois o imaginário popular é fonte de inspiração amadiana além de que o autor declarou que a umbanda seria a religião do futuro RAILLARD 1992 p 87 devido a inconveniências do mundo moderno e ao fato de o candomblé não poder adaptarse a elas pois afinal algumas adaptações já seriam umbandizações Com a umbanda nasceram entidades que já foram seres humanos brasileiros Em consonância com o discurso cristão estas entidades genuinamente brasileiras se denominaram 78 diabos ou suas senhoras Pombagiras Padilhas etc A maioria delas foi em vida prostituída ou mulheres sexualmente à frente de seu tempo gozando de intensa vida amorosa o que é imperdoável segundo o cristianismo Uma informante declarou que a Padilha dela em vida era uma professora tinha conhecimentos pessoa elegante Embora prostituta sabia e sabe se portar como uma senhora por isso ela só quer coisas brancas TRINDADE apud AUGRAS 2000 p35 Além de um visível discurso de embranquecimento regra para ascensão social do negro FANON 1983 PRANDI 1997 a profissão da Padilha leva a crer tratarse de uma mulher que gozava de certa liberdade sexual e não uma prostituta no sentido profissional da palavra A pecha da prostituição certamente ocorreu em consequência da discriminação social sofrida O mesmo aconteceria com Florípedes caso seu duplo relacionamento fosse de conhecimento público Apesar da consciência dos poderes e atribuições da Yalodê uma leitura à luz do significado da Pombagira e da Padilha entidades mestiças como o povo brasileiro como a noção amadiana de identidade possui grande ressonância A entidade Pombagira pertencente à Quimbanda lado esquerdo ou maléfico da Umbanda não obstante haver discordâncias quanto a este conceito possui características um pouco condizentes com a história da vida de Flor Na época da viuvez quando ainda estava fechada à alegria de viver negando muitos pretendentes a cozinheira encontrava se cheia de desejos libidinosos revelados nos sonhos Durante os devaneios noturnos a viúva mais parecia uma Pombagira rodeada de homens a oferecerse a todos com seu canto de convite com suas danças de frete a rebolar as ancas os 79 quadris e o busto em meneios lascivos de rameira trazendo os um a um ao centro da roda com umbigadas como a mais oferecida das mulheresfáceis Cínica debochada oferecida tão oferecida puta de dar nojo AMADO 1966 p 240 O conflito interno da viúva fazna acharse a mais leviana das mulheres e viver infeliz por desejar em segredo todos aqueles homens que a galanteavam A representação da Pombagira se confirma com o oferecimento e a lascividade dos sonhos O conflito interno e o sentimento de culpa são também características de Pombagiras Padilhas e Exus da Umbanda divididos entre a vida e a pósvida desregradas e o sentimento de culpa cristão A totalidade dos depoimentos conhecidos sobre as vidas das Pombagiras revela que o povo de Pombagira é formado por espíritos de mulheres que se entregaram à fornicação seja em vida seja depois da morte AUGRAS 2000 p 33 Por esta razão a personagem Magnólia vizinha de Flor esposa de um policial é uma representação de Pombagira ou Padilha fazedora de favores sexuais à polícia soteropolitana e a inúmeros estudantes E Flor mesmo discretamente fornicou traiu o marido constituiu um gigolô que não se importava em dividila com outro e que chamava Teodoro de colega somos os dois casados contigo Colegas de babaca meu bem AMADO 1966 p 401 Numa leitura judaicocristã eou umbandizada portanto também afrodescendente Oxum dá licença para vir a representação da Pombagira Quem sabe se Vadinho não tivesse voltado do orun o destino de Flor não seria oferecerse a um e a outro para obter melhores favores sexuais do que com 80 Teodoro seu antiquado marido prostituindose tal e qual os Exus efeminizados Vadinho disse que voltou para salvar a honra de Flor para impedila de ficar com um e com outro até nesse sentido há a possibilidade de afirmação do arquétipo Pombagira pois ela é a esposa de Exu pai de Vadinho e o próprio morto Vadinho Pensas que vim te desonrar e no entanto vim salvar a tua honra Se eu não viesse eu teu marido com legais direitos diz minha Flor fala a verdade não te enganes que iria suceder se eu não viesse Vim impedir que tomasse um amante e arrastasse teu nome e tua honra pela lama AMADO 1966 p 485 Vadinho já morto transformase num típico Exu da umbanda ou umbandizado para o Candomblé um egum de Exu melhor o espírito que em vida foi filho de Exu Ao re esposar Flor o morto teria transferido para ela o arquétipo da rainha das encruzilhadas ao mesmo tempo em que salva a sua honra matando o desejo de mulher malsatisfeita Flor não foi Pombagira por não se entregar aos pretendentes mas acabou sendo por ter dois maridos e um deles Exu Há de se tomar cuidado para não se entender Oxum como mulher prostituída por ter uma relação com Exu quando ainda era esposa de Xangô Não podemos julgar os orixás por acontecimentos isolados ou com a moral cristã Flor pode ser julgada sob os dogmas do cristianismo pois se encontra inserida em uma sociedade com estes conceitos mas não Oxum apesar de o Candomblé não ser uma reprodução de determinadas religiões africanas e sim uma nova interpretação destas com a ajuda do elemento católico e em alguns casos o indígena brasileiro Que fique claro que agora se aborda Oxum 81 representação nagô tradicional e não conceitos cristianizados deste orixá presentes no imaginário popular na umbanda e em candomblés Além do mais o relacionamento de Oxum foi com um Exu de fato uma entidade nagô com conceitos da moral nagô e quando é feito o confronto de Flor com o Exu efeminizado assumese um olhar judaicocristão o qual constitui conceitos dos guias entidades da Umbanda Não é finalidade confundir pessoa ficcional ou não ficcional e seus erros com o orixá que a governa mostrandoo em uma de suas manifestações apenas quando todos eles são extremamente complexos e polivalentes TAVARES 1996 p 51 Entretanto neste trabalho a proposta é apenas fazer alguns recortes comparando o enredo de DF com as mitologias africanas e afrobrasileiras Assim revela a viabilidade de uma crítica com base nessas mitologias entendendoas como linguagem e como representação na obra de arte Explicar os porquês de determinados acontecimentos e a constituição de cada orixá ou apenas de Oxum é uma proposta fascinante mas impossível na presente escrita e certamente desnecessária pois Dona Flor não é apenas a representação da Oxum nagô A cozinheira é resultante de terse misturado sangue indígena ao negro e ao branco AMADO 1966 227 uma mestiça por isso coubenos a interpretação também à luz do imaginário popular e da Umbanda O próprio Jorge Amado chega a citar o Cão para referirse à batalha final para manutenção de Vadinho no aiê tudo ocorrendo com os relógios marcando meianoite e meiodia horários consagrados ao diabo ao cão entidade do cristianismo e conferido a Exu pelos deturpadores das religiões negras Desta forma espera 82 se que algumas informações fragmentadas dos mitos não reforcem a discriminação à afrobrasilidade Seria importante sempre ter em mente a citação de Nietzsche sobre o que é bom para um povo pode ser ruim para outro Agora o mais relevante é concentrarse nos mitos e lembrar Tavares 1996 p 51 dizendo que a um leigo a quem se explicasse ritual cristão poderia parecer que o cristianismo é uma religião de antropófagos que devora o corpo de um judeu num sacrifício litúrgico aos domingos Portanto para o leigo ou para alguém que compreende o cristianismo como única verdade possível para toda a humanidade os deuses e mitos aqui discutidos são e serão sempre o mal O aparecimento do arquétipo Pombagira não retirou nem inviabilizou o arquétipo Oxum Se a Pombagira incorpora aspectos de Oxum tidos como pecaminosos ela Pombagira ainda é em parte representação deste orixá de origem africana mesmo possuindo aspectos da prostituição e das ações praticadas pelo espírito em vida Estes espíritos quando encarnados geralmente foram filhos de Oxum Iemanjá Nanã ou Ewa orixás da água e as Padilhas filhas de Iansã A mensageira em vida quase sempre foi filha do orixá para o qual exerce a função de mensageira quando morta Assim Flor segundo a liturgia umbandista poderá ser depois de morta uma Pombagira de seu orixá Há vastos depoimentos de casais de amantes transgressores dos conceitos morais cristãos mortos muitas vezes por isso continuando após a morte a saga iniciada em vida como guias da Umbanda Sem falar dos casamentos realizados com espíritos comum entre pactos feitos na umbanda e em candomblés umbandizados ou umbandoblé segundo termo registrado por Prandi 2003 Dentro do 83 mundo ocidental contemporâneo os mórmons realizam casamentos com espíritos desencarnados Mas diferentemente dos mórmons a nova união de Flor com o já desencarnado Vadinho fora motivada apenas pelo desejo de estarem juntos não para salvação das almas Outro aspecto que aproxima muito Flor à Pombagira é a relação com o trabalho Esta entidade da umbanda trabalha sob as ordens dos maridos Exus como Flor trabalhava para Vadinho e até ajudando Teodoro na compra da casa Mas ao mesmo tempo em que recebe ordens dos maridos Exus algumas constituem relacionamentos amorosos poliândricos com a ciência dos parceiros tal Vadinho aconselhando e dando justificativa para o triângulo amoroso A nossa noite é agora Depois meu bem é a vez de meu colega o outro teu marido Com ele nunca mais Como ia poder Nunca mais Vadinho Agora só dois tu não vê logo Meu bem não diga isso Vadinho O que é meu bem Você não se importa que eu te ponha chifres com Teodoro Chifre passou a mão na testa lívida Não não dá para nascer chifres Eu e ele esta mos empatados meu bem os dois temos direito ambos casamos no padre e no juiz não foi Só que ele te gasta pouco é tolo Nosso amor meu bem pode ser perjuro se quiseres para ser ainda mais picante mas é legal e também o dele com certidões e testemunhas não é mesmo Assim se somos ambos teus maridos e com iguais direitos quem engana a quem Só tu Flor enganas aos dois porque a ti tu não te enganas mais AMADO 1966 p 483484 Além disso ocorre ainda a falta de filhos pois não é conhecido depoimento no qual Padilhas e Pombagiras 84 possuam ou tenham em vida possuído filhos ou pelo menos evitase tal discussão Toda essa comparação de Flor com a Pombagira pode levar à atrapalhação Contudo podese pensar cada orixá como um arquétipo que informa e fornece padrões de temperamento e comportamento BARROS TEIXEIRA 2000 p 112 ao filho Porém continuam os autores deve se saber que as pessoas que são filhas de orixá recebem influências de outras entidades secundárias o juntó segundo orixá PRANDI 1997 É comum ouvir das pessoasdesanto que todos crentes ou não recebem influências de vários orixás predominando o dono da cabeça e em menor grau os Exus que acompanham os orixás Daí então outra justificativa para Dona Flor ter na sua construção a representação do arquétipo Pombagira Qualquer ser humano ficcional ou nãoficcional pode ser influenciado ora por um orixá ou guia ora por outro Na obra não há referência a outro orixá de Flor o que deixa apenas a opção secundária de buscar na Pombagira justificativas para o comportamento da personagem visto que na Bahia todo orixá possui seus Exus e o mensageiro da Oxum de Flor poderia ser a Pombagira Assim concluise que a engenharia da construção de Flor e dos acontecimentos em torno dela possui alicerce na ancestralidade e principalmente na mitologia afrobrasileira Seja através do motivo gravidez da submissão ou insubmissão de Flor da tentativa de romper padrões sociais o arquétipo Oxum sempre esteve presente Até quando o arquétipo Pombagira aparece foi necessária uma análise mais profunda de características da 85 ancestralidade africana no Brasil absorvidas pela Pombagira Portanto não há dúvida de que Flor foi construída à luz de seu orixá respeitando o pensamento coletivo sobre Oxum e secundariamente a existência do Exu efeminizado Definitivamente Dona Flor só poderia ser filha de Oxum caso ocorresse o contrário não haveria justificativa para uma série acontecimentos A infertilidade de Flor e sua vocação natural para mãe aceitando criar os filhos alheios acha correspondente em Oxum Sua faceirice e seu amor descabido seu desejo ardente e ao mesmo tempo sua aparente frigidez são com certeza características de filhas deste orixá Desta forma haveria uma dissonância caso o autor designasse outra entidade como mãe da cozinheira Flor 87 UM EXU VADINHO Exu Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que os afrobaianos têm grande tendência a confundir com o diabo Tenho ouvido mesmo de negros afri canos que todos os santos podem se servir de Exu para mandar tentar ou perseguir a uma pessoa Em uma altercação qualquer de negros em que quase sempre levantam uma celeuma enorme pelo moti vo mais fútil não é raro entre nós ouvirse gritar pelos mais prudentes Fulano olha Exu Precisa mente como diriam velhas beatas Olha a tentação do demônio No entanto sou levado a crer que esta identificação é apenas o produto de uma influên cia do ensino católico RODRIGUES 1935 apud PRANDI 2003 p 8 Vadinho filho de Exu ou o próprio Exu Os dois de acordo com liturgias afrobrasileiras Neste capítulo são utilizados conceitos umbandistas para provar a existência do Exu Vadinho Ao mesmo tempo os conceitos tradicionais explicados por Santos 1986 e Luz 2000 continuarão como operadores do discurso Sendo um Exu umbandista Vadinho também é um egun um espírito de morto um ancestral masculino e como tal preserva características próprias conservando sua relação com os conceitos mais tradicionais da afrodescendência Alguns feitos e ações do Exu Vadinho são imediatamente conectados com atribuições de egum e do Exu tradicional afinal este também possui marcas na entidade brasileira Sem perder de vista o caráter festivo de Exu é lançado um olhar para as circunstâncias da morte do malandro quando são vistos alguns correspondentes religiosos e ancestrais Todo 88 este trabalho tem a intenção de comprovar o quanto Vadinho é Exu o quanto as características deste orixá norteiam a construção deste personagem e de sua história Situando Exu Vadinho uma Entidade Para entender Vadinho como Exu e não apenas filho dele fazse necessário penetrar em alguns conceitos da Umbanda e do Candomblé No capítulo anterior foi reproduzido um depoimento sobre uma Iemanjá que cantava uma Ave Maria na beira de uma praia carioca FRY apud AUGRAS 2000 p 29 e explicandose disse poder tratarse de um espírito desencarnado ou um egum assumindo desígnios da Rainha do Mar O egum de Iemanjá teria evoluído e passou a trabalhar como Iemanjá por pleno merecimento como acontece aos Exus da Umbanda que em vida foram malfeitores Estes discursos de evolução do espírito e assunção de atribuições das entidades míticas nagô são características da Umbanda sendo muito comuns entre as pessoas desta religião Por várias vezes foram ouvidos depoimentos em uma casa de Umbanda de Salvador no bairro de Pirajá sobre a evolução espiritual da Padilha Alice Sete Rosas um Exu da Casa28 A própria entidade dizia que por seus bons préstimos era já quase merecedora das atribuições de Iansã orixá ao qual estava diretamente subordinada As declarações da entidade eram completadas com a certeza de que na próxima encarnação viria dando o ilá ou brado de Iansã a deusa dos raios e uma das mulheres de Xangô 28 Resultados obtidos entre 1993 e 1994 Se a partir da voz de Prandi podese falar de can domblés umbandizados esta casa de umbanda é uma umbanda candomblecizada 89 Essas observações se conectam com a afirmativa de que a umbanda é uma religião de espíritos humanos que um dia viveram na Terra os guias Embora se reverenciem os orixás são os guias que fazem o trabalho mágico são eles os responsáveis pela dinâmica das celebrações PRANDI 2003 p 10 dos rituais e pela realização de desejos dos fiéis atividade realizada por Vadinho após voltar do mundo dos mortos Tal e qual as Padilhas e Pombagiras os Exus masculinos da Umbanda como dito anteriormente tiveram existência humana diabo que foi de carne e osso espírito guia exus foram homens de questionável conduta assaltantes assassinos ladrões contrabandistas traficantes vagabundos malandros aproveitadores proxenetas bandidos de toda laia homens do diabo por certo gente ruim figuras do mal PRANDI 2003 p 10 Ainda então doceamargos gigolôs como Vadinho eis um Exu de Umbanda e de candomblés umbandizados É um conceito destoante do candomblé tradicional que vê Exu como um orixá e não um espírito de morto O primeiro marido de Flor é um misto de conceitos embranquecidos e conceitos nagô um Exu amadiano calcado no imaginário coletivo na miscigenação Como o povo brasileiro também este tipo de Exu é um mestiço Para Freyre 2001 e Jorge Amado esta mistura forma a identidade brasileira Fazse importante lembrar que o próprio candomblé não é uma religião africana cristalizada e transferida para o Brasil Tratase de uma religião brasileira baiana formada pelo sincretismo entre religiões africanas o catolicismo e em alguns casos com penetração de entidades indígenas os caboclos As referências de Exu ao diabo não são privilégios de 90 umbandistas datam de bem antes da formação do candomblé e da Umbanda Comparar Vadinho aos Exus umbandistas não é desconhecer o lugar de fala de Jorge Amado jovem frequentador de candomblés RAILLARD 1992 e Obá Ministro de Xangô do tradicional Ilê Axé Opo Afonjá É de conhecimento geral que o morto Vadinho é qualificado na obra como um Babá de Exu espírito que em vida foi filho de Exu mas que após a morte age como seu pai espiritual uma entidade com atribuições de Exu um típico Exu de Umbanda e de candomblés menos tradicionais ou umbandizados Portanto a comunicação com conceitos da Umbanda não quer afirmar ser esta a seara amadiana autor que mostra as várias faces de Exu representadas em Vadinho desde os conceitos nagô tradicionais até a diabolização presente em candomblés no imaginário e principalmente na Umbanda Assim o discurso umbandista entra aqui como uma contribuição uma leitura do endiabrado Vadinho Necessário revelar a responsabilidade do caráter maléfico e maniqueísta do arquétipo Exu ao olhar civilizador à sua mistura com o cristianismo ao proposital movimento de associação com o diabo divindade cristã Sim necessário por ser revelação da verdade pois o negro e a cor negra têm sido historicamente associados ao mal e ao diabo forçando o próprio negro a criar mecanismos de embranquecimento como forma de adquirir uma posição social menos desconfortável FANON 1983 A Umbanda é um exemplo de branqueamento exacerbando a diabolização de Exu e muitas vezes assumindo a diabolização como forma de garantia de êxito nos trabalhos mágicos concepção da Quimbanda linha 91 negra da Umbanda Bastante próxima de conceitos católicos e kardecistas respectivamente a exemplo do sincretismo e da ideia de evolução do espírito a Umbanda possui ainda o lado branco lado do bem e das coisas boas Vadinho mesmo com características umbandizadas conserva o caráter não maniqueísta de Exu O ExuVadinho e todos os Exusegum possuem características e desígnios do Exu orixá nagô e do cristianismo pois como invenção brasileira também é miscigenado Mesmo umbandizado e deturpado o Exu revelase a mais negra das entidades umbandistas mas que fique claro negra no sentido de maior proximidade do arquétipo nagô não negra no sentido umbandista que é sinônimo de mal ao contrário de bem e branco A palavra negro é utilizada enquanto desconstrutora de todo este maniqueísmo judaico cristão de bem versus mal O Exu da Umbanda conserva muitas características do conceito primordial como Vadinho demonstrando capacidade de transitar entre os dois mundos paralelos o orun mundo espiritual e o aiê mundo material O orixá dono do pênis patrono da sexualidade responsável por encontrar um lugar adequado para a genitália feminina dificilmente seria aceito pelo cristianismo com suas religiões que preferem depreciar a vida plena ao invés de viver a felicidade As características da sexualidade do Exu nagô foram conservadas no Exu do candomblé no Exu umbandista e transferidas aos filhos de Exu em Jorge Amado Pedro Archanjo pródigo fazedor de filhos do romance Tenda dos Milagres Quincas da obra A morte e a morte de Quincas Berro DÁgua 1996 juntamse a Vadinho depravados 92 e mulherengos chocando e encantando personagens da sociedade ficcional e nãoficcional As doutrinas cristãs até hoje ou principalmente hoje com o propagar através da mídia e a tentativa da globalização em favor de uma hegemonia cristã têmse preocupado excessivamente em depreciar o outro em excluir o outro de toda a expressão do bem dividindo o mundo com sua visão maniqueísta bem versus mal O eucristão intolerante será sempre o bem e o outro ou outro cabo no dizer de Derrida 1995 será o mal Dona Rozilda mãe de Dona Flor é um exemplo do eucristão intolerante A personagem não consegue enxergar seu amargor e descontentamento com a felicidade do outro como uma expressão do mal Contudo a felicidade e o modo de vida de seu genro para ela são expressões inequívocas do demônio Na sociedade brasileira e consequentemente no romance amadiano Exu mesmo no candomblé recebeu características diabólicas efeito do cristianismo doutrina que realiza uma dupla sujeição FOUCAULT 2002 p 43 daqueles que verbalizam o discurso ao próprio conteúdo verbalizado e deste conteúdo ao grupo que o representa FOUCAULT 2002 p 43 A sujeição fezse tão grande a ponto de até na África contemporânea a diabolização de Exu ser algo existente semente plantada pelos missionários nos séculos XVIII e XIX em suas viagens pelo continente africano Sacerdotes de Cristo compararam Exu a Príapo por seu descomunal falo representado em suas estátuas e ao diabo entidade judaico cristã por ser um orixá que contraria as regras mais gerais de conduta aceitas socialmente PRANDI 2003 p 1 como seu filho ficcional amadiano Vadinho Os missionários e viajantes 93 cristãos dos séculos XVIII e XIX insistiam em afirmar ser Exu uma entidade sexualizada e demoníaca PRANDI 2003 p 1 Provavelmente queriam afirmar demoníaca por ser sexualizada Também em alguns candomblés é comum ouvir de velhos sacerdotes e sacerdotisas que se vai dar comida ao diabo para não deixar que ele incomode para afastálo Afirmações deste gênero constituem uma flagrante contradição com a função de Exu guardião e garantia única do bom andamento de toda atividade sagrada iorubá SANTOS 1986 p 198 contradições propagadas desde os primórdios do candomblé no qual até hoje há o sincretismo com o diabo PRANDI 1997 AUGRAS 1983a Na obra amadiana Vadinho possui características do Exu diabolizado e do Exu nagô pois o próprio Exudiabo conserva características do arquétipo nagô Assim o narrador transporta ou demonstra a realidade na literatura afinal toda literatura é realista na medida em que demonstra a realidade BARTHES 1996 As diabolizações são visões de Exu contidas no imaginário popular entendimentos de Exu inseridos no coletivo da sociedade brasileira independente de credo ou religião individual Paralelamente às comparações de Vadinho com Exu realizase o adentramento no conceito nagô tradicional deste orixá intercalando com o Exu diabolizado seja candomblecista ou umbandista Os Exus umbandizados são Exuscristãos tal afirmativa é justificada com base em investigações de campo e em escritos já divulgados por antropólogos os quais comprovam a preexistência humana destas entidades Se há Exus umbandistas que foram brasileiros e são brasileiros dominados pelo discurso cristão mesmo sem o devido 94 respeito à doutrina cristã o que lhes resultou no título e nas funções de diabo após a morte estes Exus que um dia foram matéria são cristãos como Vadinho um cristão relapso um pecador alguém que questionava e questiona o impedimento da felicidade pelos dogmas da Igreja Católica e suas dissidentes protestantes O discurso dessas entidades que um dia quase sempre em tempos não tão distantes foram de carne e osso serve como uma espécie de interpelação das religiões cristãs Ainda assim há o respeito ou ironia nas falas de fiéis e de Exus que declaram suas marcas cristãs estes últimos às vezes referindose ao deus judaicocristão como o pai de vocês aquele homem o lá de cima Como Vadinho a sexualizar o anjo e a Santa em uma conversa com Dom Clemente Que Deus me perdoe padre Mas não parece que o anjo está fretando a santa Desculpe Dom Clemente mas é que esse anjo tem uma cara manjada de gigolô Nem parece anjo Espie o olho dele olho de frete AMA DO 1966 p 56 As palavras de Vadinho parecem uma espécie de fascismo da língua uma obrigação de dizer que se encontra arrependido do pecado apesar de pecar Um Deus me perdoe que pode ser transformado em reminiscências de Boca do Inferno A língua como desempenho de toda linguagem BARTHES 1996 p 14 manifesta seu poder de persuasão seu fascismo não impedindo o pronunciamento não impedindo Vadinho ou os Exus umbandizados de desconstruírem o cristianismo mas obrigandoos a reconhecer a doutrina cristã Tal reconhecimento do cristianismo se processa com Vadinho 95 clamando por perdão a Deus como os Exus umbandizados respeitando os Santos Católicos sincretizados com os orixás aos quais estão ligados ou desejando evoluir à maneira kardecista Esta miscigenação religiosa e cultural caracteriza a sociedade brasileira o enredo de Dona Flor e Seus Dois Maridos e principalmente a morte de Vadinho O gigolô transformouse em um Exu à maneira umbandista ou um egum de Exu na definição mais tradicional do candomblé um espírito que em vida foi filho de Exu e que mesmo depois da morte conserva suas características de araaiê corpo do mundo dos vivos continua frequentando cassinos louco por farras mulheres em especial por Dona Flor O diálogo com Dom Clemente quando o gigolô era um araaiê consolida o entendimento de ser o cristianismo uma característica do Exu Vadinho entidade na qual se transformou após a sua morte de acordo com a liturgia umbandista Com isto não se afirma que Jorge Amado é preconceituoso vendo Exu à maneira cristã embranquecida colocando máscaras brancas em peles negras FANON 1983 escondendo a negritude da entidade O que há é a demonstração da realidade a assunção da miscigenação cultural com todos os aspectos O que ocorre com o aparecimento de características cristãs no Exu amadiano de Dona Flor e Seus Dois Maridos é a tentativa do paralelismo entre a linguagem e a realidade do imaginário popular algo que caracteriza a literatura BARTHES 1996 e que por sua vez é impossível Afinal como já foi reproduzido de Barthes a literatura apenas demonstra a realidade Este paralelismo ou esta demonstração relacionados a Exu consiste em levar para as páginas da literatura as versões desta divindade melhor levar o Exu do imaginário popular e do tradicionalismo nagô 96 atraente tentador transgressor fiel bemfeitor diabólico fôlego de vida sinônimo de liberdade de questionamento e de ofensa à moral da tristeza Não demonstrar isso seria fugir à proposta de uma literatura alicerçada no real A própria Dona Rozilda sogra e desafeto de Vadinho o chamou de demônio quando Dom Clemente o qualificava de anjo transviado na missa de sétimo dia do boêmio Como voz maior da moralidade e da repressão cristã na obra em questão uma espécie de sacerdote do ideal ascético NIETZSCHE 1999 o discurso de dona Rozilda reforça a diabolização de seu genro Algo transviado está fora do caminho desviado como o anjo Lúcifer em relação a Deus Mesmo os anjos transviados têm seu as sento ao lado de Deus em sua glória Anjo Tesconjuo Era um demônio do infer no rosnou dona Rozilda AMADO 1966 p 57 O Carnaval a morte o travestirse e a mandioca sím bolo fálico Continuando a pensar na morte de Vadinho e no arquétipo Exu devese recordar o dia da passagem do personagem ao orun um Domingo de Carnaval pela manhã mais um signo 97 das diabruras do boêmio Em vários depoimentos de idosos29 todos com mais de setenta anos portanto aptos a terem sido contemporâneos da época que inspira a construção do tempo ficcional do referido romance foi encontrada a definição do Carnaval como sendo festa da carne do diabo das luxúrias e do pecado Definição exceto a referência ao diabo concernente com o dicionário de Ferreira 1986 p354 o qual assim define o Carnaval festejos populares e em manifestações sincréticas oriundas de ritos e costumes pagãos como as festas dionisíacas as saturnais as lupercais e se caracterizavam pela alegria desabrida pela liberdade de atitudes críticas e eróticas Aliado ao discurso do Carnaval diabólico repetido por alguns velhos pais e mãesdesanto e jovens filhos e filhasde santo o domingo é dia de todos os santos dia consagrado a todos os orixás em versões do calendário afrobaiano inclusive a Exu Portanto Vadinho morre em um dia destinado também a seu orixá e é enterrado numa segundafeira dia dedicado a Exu por ser o primeiro dia útil da semana dia de trabalho Outro fato que une o Carnaval ao arquétipo cristianizado de Exu pelo menos em candomblés e Umbandas da Cidade do Salvador e Recôncavo baiano é a preocupação em fazer oferendas ao Dono da Rua Exu antes da folia para livrar se dos inimigos ocultos e para tudo ocorrer em paz Nesta 29 Acostumeime a ouvir desde muito criança depoimentos sobre o caráter diabólico do Carnaval Com certeza a maior informante digo orientadora sobre os perigos espiritu ais do Carnaval foi a senhora Vélia Pita de Oliveira 22121921 a 06101996 minha avó materna A importância do depoimento de minha saudosa vó Vélia é fundamentada em seu histórico religioso medium filha das águas e do Caboclo Boiadeiro filha biológica de uma zeladora e praticante das Sessões de Mesa Branca Dona Vélia inicialmente católica chegou a frequentar igrejas missionárias levandome para os cultos aos quais nunca aderi Já pelos idos de 1990 chegou a me revelar a religião de sua mãe Dona Isaura Chaves Pita membro da Sessão do Caboclo Tupinambá entidade que recebia O motivo para tão tardia revelação da religião de sua mãe para um neto próximo com o qual conversava quase todos os dias abre espaço para uma nova discussão com certeza geradora de um outro trabalho 98 inquietação do povodesanto os depoimentos exibem o cuidado equivocado de acalmar Exu pois o Carnaval sendo a festa do diabo seria também festa de Elegbará festa de Vadinho seu filho Junto com o desejo de acalmar o Exu diabocristão vem a leitura de um pedido de amparo vontade concernente com a tradição iorubana onde todas as casas possuem ou possuíam um Exu protetor É muito comum na Bahia vários blocos carnavalescos abrirem seus trabalhos para os dias do Carnaval com o Padê de Exu30 As farofas rituais os acaças31 são oferecidos ao Senhor dos Caminhos para que leve a todos os orixás os pedidos de paz e sucesso Coincidentemente o Carnaval que marcou a passagem de Vadinho para o orun mundo dos mortos e seu consequente nascimento enquanto Exu foi aberto com a presença do boêmio no dia anterior à sua morte Sábado de Carnaval A abertura oficial da folia deuse no Bar triunfo na Praça da Municipal AMADO 1966 p 22 palco de grandes acontecimentos da Velha Salvador nãoficcional ARAÚJO 1999 ao meio dia hora consagrada a Exu pois para alguns baianos é a hora do diabo na Bahia para alguns adeptos de religiões afro hora de Exu equivocadamente comparado ao diabo Sendo assim muitos rituais a Exu são feitos ao meiodia meianoite ou às 1800 horas Os poderes destas horas grandes são contados em músicas dedicadas ao Exudiabo 30 Lody 1992 p 81 em Tem dendê Tem Axé explica que o Padê é o grande encontro encontrar com reunião vir junto e Exu é o grande articulador do encontro promovido pelos homens ao acionálo pelos cânticos danças orikis saudações e principalmente pela comida Entre as comidas a farofa caracteriza o fundamento o padê LODY 1992 p 82 31 Massa feita de milho branco e enrolada em palha de bananeira à maneira de um abará 99 O sino da igrejinha faz delém dem dom bis Deu meianoite o galo já cantou A Pombagira alternam os nomes dos Exus é dona da gira Fazendo gira que Ogum mandou alternam se os nomes dos orixás32 Por outro lado é proibida a exposição pública de pessoas em processo ritualístico durante as horas grandes Aconselhase estar em completa clausura dentro do Terreiro No caso de obrigações que permitam a estadia fora do templo é recomendado estar em casa durante as horas grandes e em último caso estando na rua é dever evitar ambientes como bares e congêneres e estar a céu aberto guardandose alguns minutos antes e depois destes horários em lugares cobertos para depois seguir em frente Embora em menor frequência devido à interferência evangélica é comum ouvir em lares da Bahia recomendações de mães aflitas dizendo que não saiam ao meiodia meia noite e às dezoito horas em ponto no dizer popular seis horas da noite horas perigosas horas do cão Com exceção da meianoite as demais horas perigosas são dedicadas à execução radiofônica da Ave Maria e do Hino ao Senhor do Bonfim como forma de reflexão e pedido de amparo costume já abalado pela intolerância evangélica dona de muitos meios de comunicação de massa Meiodia também é hora preferida para fazer oferendas a Exu em umbandas e candomblés consolidando a visão diabolizante da entidade Pode parecer muito destoante que um filho de Exu morra em pleno Carnaval festa da alegria e aberta às 12 horas em ponto hora mística de descomunal poder e ligada a seu 32 Música de Exu cantada em umbandas e em candomblés menos tradicionais da Bahia 100 pai Além disso o Carnaval é uma festa muito parecida com o Exu orixá Nagô por ser um exemplo de dinamismo alegria em que ocorre a deshierarquização característica desta festa FERRARA 1990 e quando as pessoas trabalham dando alegria aos outros onde várias linguagens se comunicam lembrando que Exu está profundamente relacionado com a boca em sua função de Enúgbarijo boca coletiva SANTOS 1986 p 211 Mais estranha é a causa da morte de Vadinho cachaça ingrediente presente nos mais populares rituais de Exu O que teria acontecido para um elemento consagrado a Exu ser tão nocivo ao seu filho Fica mais surpreendente quando se toma conhecimento de que todo filho de determinado orixá é descendente mítico deste orixá SANTOS 1986 e que de acordo com as crenças populares os seres humanos a eles os orixás consagrados herdam LEPINE 2000 p 141 suas características sendo normal que Vadinho fosse fascinado por bebidas alcoólicas por sexo Exu é o patrono da sexualidade SANTOS 1986 e que possuísse alegria elegbariana33 Mas como explicar a morte de Vadinho em plena alegria fazendo gestos obcenos sob sua anágua branca e engomada enorme raiz de mandioca e a cada passo suspendia as saias e exibia o troféu descomunal e pornográfico fazendo as mulheres esconderem nas mãos o rosto AMADO 1966 p 23 Sobre este costume maragojipano e afrodescendente haverá discussão mais adiante O narrador não oferece uma explicação mítica apenas diz que o jovem morreu por causa do excesso de álcool A 33 Elegbará é outro título de Exu Senhor do Poder um fiel companheiro de Ogum SAN TOS 1986 p 134 101 preocupação com a representação dos orixás e da ancestralidade em DF induz à busca de pistas na obra para esclarecer tais acontecimentos Agora aos porquês É comum ouvir do povodesanto explicações sobre obrigação de estar em dias com o orixá para que as oferendas sejam retribuídas na forma de saúde vigor prosperidade LEPINE 2000 p144 num completo bemestar Estar em dia com o orixá significa cumprir todos os rituais oferecer todas as oferendas indicadas respeitar todos os tabus A respeito da relação de Vadinho com o seu orixá foi informado que ele era filho de Exu e iniciado no candomblé pois era filhopequeno do Mestre Didi personagem ficcional Mesmo que em grau menor Vadinho era iniciado possuía um paipequeno espécie de padrinho auxiliar e substituto do pai ou mãedesanto nos rituais da iniciação e posteriormente em outras atividades rituais relacionadas com o filhodesanto Tratandose de um iniciado o romance carece de maiores explicações sobre atos iniciáticos de Vadinho e suas obrigações para com seu eledá seu criador espiritual Tudo indica que apesar de iniciado Vadinho não cumpria as obrigações com seu pai reduzindo seu compromisso ao caruru anual dos Ibejis obrigação levada adiante por Flor mesmo após a morte do marido Com certeza o não cumprimento das obrigações rituais seria uma justificativa para punições de seu orixá RODRIGUES CAROSO 1999 levandoo à morte prematura algo terrível para o nagô tradicional LUZ 2000 Mas Exu não parecia estar aborrecido com seu filho a ponto de tamanho 102 castigo levar o boêmio antecipadamente para o orun Entretanto com o alicerce em explicações míticas é chegado ao que o povodesanto chama de quizila ou proibições do Santo de forma que alguns alimentos próprios do orixá podem ser proibidos aos filhos e a quizila de Vadinho poderia ser a cachaça degradadora de qualquer organismo no plano físico Em candomblés da Bahia há quizilas genéricas para todos os componentes de uma mesma casa irmanados miticamente Em 1995 no Mansu Bandu Kenke do Inquinançaba o descumprimento de uma quizila por um membro de casa levou todos a terem distúrbios intestinais Não cabe julgar a fé ou o efeito psicológico destas proibições o acontecimento presenciado e ora relatado serve aqui para justificar que caso a cachaça fosse quizila de Vadinho ela degradaria o filho de Exu mesmo a cachaça sendo elemento ritual de seu pai espiritual No capítulo anterior discutiuse a possibilidade de tudo ter sido arquitetado pelo arquétipo Oxum como uma espécie de compensação pelos abusos desferidos à sua filha Não que Oxum tenha arquitetado a morte de Vadinho mas previsto antecipadamente uma possibilidade de interpretação bastante válida Apesar de Vadinho ter morrido em berço esplêndido na rua espaço de seu pai assim como Pedro Archanjo de Tenda dos Milagres 2000 também filho de Exu não há como esquecer que o malandro morreu travestido vestido de mulher com os amigos aproveitando o Carnaval mas ao mesmo tempo desprovido das características do vestir masculino A indumentária de Vadinho rememora o ritual praticado no Festival Gelede quando os homens nagô pedem clemência às mães ancestrais para que tudo ocorra bem para as plantações e a vida SANTOS 1986 PRANDI 2003 Vestirse de 103 mulher conota o desfazimento de características masculinas Atualmente no Carnaval baiano homens se travestem abrigados em blocos carnavalescos como As Muquiranas As Sapatonas e outros O travestirse de Vadinho é mais uma pista da redenção masculina e força afirmativa do arquétipo Oxum sendo isto confirmado mais tarde com a volta do defunto e a proposição do triângulo amoroso São várias conexões com a liturgia nagô e as religiões afrodescendentes num livro que se diz apenas uma história moral e de amor Segundo Barthes 1996 há muitos saberes assumidos pela literatura Este é o caso de Jorge Amado Nas mãos do leitor são colocadas enciclopédias com saberes expostos e escondidos nas entrelinhas Afinal como diz Barthes 1996 literatura faz girar os saberes e ela é verdadeiramente enciclopédia ibidem Mantendo o foco na cena em que Vadinho exibe a raiz de mandioca amarrada por debaixo da anágua durante as danças carnavalescas o doutor Cid Seixas34 contou ter presenciado quando criança este mesmo comportamento em Maragojipe Na cidade do Recôncavo baiano rica em população afrodescendente homens faziam o mesmo que Vadinho exibindo raiz de mandioca amarrada por debaixo de saias em brincadeiras eróticas virando motivo de riso molequeira Na África segundo Verger 1998 p79 entre os Fon do ex Daomé os Legbá equivalência de Exu quando se manifestam através dos legbasi durante as festas para os voduns Hevioso e Sapatá vestemse com uma saia de ráfia tinturada e escondem por debaixo um enorme falo de madeira que levantam de vez em quando em mímicas eróticas Além disto portam 34 Conversas durante a orientação da dissertação de mestrado que deu origem a este livro 104 uma espécie de espanta moscas com um bastão em forma de falo com o qual brincam colocando sob o nariz dos turistas A presente informação compõe outra possibilidade do travestir se de Vadinho pois as saias dos legbasi não tinham conexão com o travestirse perante as mães ancestrais Mas quem sabe as brincadeiras de Vadinho e de maragojipenses tenham sido trazidas pelos ancestrais legbasi do exDaomé atualmente República do Benin Acreditandose nessa possibilidade não cairia por terra a interpretação à luz dos festivais Gelede As saias dos legbasi não informam feminilidade como a saia de Vadinho informa apesar do conteúdo sarcástico e machista Em Vadinho há a união de aspectos da redenção às mães ancestrais com a afirmação de aspectos de Exu a mandioca o símbolo fálico o erotismo picante Não é afirmada a arqueologia desta passagem amadiana o mais provável é que Jorge Amado como Cid Seixas tenha presenciado ou tido notícias dessas brincadeiras em algum canto da Bahia não inviabilizando a possibilidade do conhecimento do costume dos Legbasi por parte do narrador Com o caminho progressivo vêse ainda hoje nos Carnavais salvadorenses35 rapazes dos blocos de travestidos indo mais além que a exibição de representações da genitália masculina No outro extremo entre os travestidos é comum encontrar atos de libertação homossexual que têm seu ponto mais alto na Segundafeira de Carnaval com a lavagem das escadarias do monumento ao Poeta dos Escravos na Praça Castro Alves um dos centros nervosos da grande festa que na 35 O mesmo que soteropolitano 105 segundafeira do referido evento se transforma num palco de afirmação homossexual Das qualidades ou categorias do Exuegum Vadinho das iniciações de Vadinho do Enugbajiró a boca coletiva as fronteiras do nome de Vadinho Quando araaiê não há como duvidar que o comportamento de Vadinho condizia com o de um filho de Exu atestando a tese de que as características dos Eledá36 das personagens guiam a obra malandro alegre amigo às vezes cruel com Dona Flor chegando a surrála em busca de dinheiro ambíguo como Exu Infelizmente pouco afeiçoado ao trabalho diferente de seu pai espiritual trabalhador incansável desbravador de caminhos desconstrutor e construtor de obstáculos O fato de Vadinho ser pouco afeito ao trabalho vai destoar também de suas ações de araorun trabalhando em prol dos amigos como um Exu Mais à frente está inserido fragmento de um mito em que Exu não tinha profissão e passou 16 anos observando Oxalá período em que aprendeu a trabalhar Assim com estas marcas e similitudes buscam se outras interpretações para a preguiça e malandragem do araaiê Vadinho O tempo de vida do boêmio assemelhase ao tempo da aprendizagem e da observação pois logo se vê que suas experiências de araaiê serviram para o trabalhador Vadinho araorun Filho indesejado pelo pai biológico estorvo à ascensão social de seu genitor rejeitado como Exu por diferentes motivos mas rejeitado como seu Eledá Desta forma Elegbará 36 Não será feito o plural da palavra de forma aportuguesada 106 foi herdeiro benquisto por Orunmilá desejado fora de época contrariando os avisos de Oxalá para em seguida ser rejeitado Vadinho fruto de arroubos da juventude de um branco com uma pobre empregada doméstica viuse despachado pelo pai aos 17 anos de idade depois de ter sido ludibriado por sua amante mãe de um colega de escola A doidivanas o fez acreditar ser o primeiro e único namorado extraconjugal e que mantinha aquele relacionamento por amor desejando ser salva das garras do terrível marido Vadinho logo providenciou a fuga do internato para salvar a pobre senhora a qual ao vêlo invadir sua casa o repeliu Ofendido o jovem e inexperiente Guimarães aplicou algumas bofetadas na adúltera gerando um escândalo para a sociedade salvadorense O escândalo do caso de Vadinho foi o pretexto utilizado pelo pai casado com a grande fortuna de sua esposa para colocar em dúvida a sua paternidade e a honestidade da falecida mãe do herói malandro Waldomiro Guimarães Filho gerado em momento impróprio como Elegbará Através de um grande escândalo amoroso Vadinho foi inserido na vida noturna da Cidade acontecimento comum às vidas e pósvidas de Exus umbandizados A Padilha Sete Saias entidade que incorporava no médium Jorge de Tupinanbá37 homem de candomblé na Cidade do Salvador filho do orixá Oxóssi com o juntó Iansã algumas vezes relatou a sua própria morte38 Vítima de inúmeras surras de seu companheiro relegada ao papel de empregada e mero objeto de satisfação sexual do marido a Padilha ainda em 37 Após ter escrito este texto soubese a informação que o Jovem Jorge de Tupinambá já havia falecido Notícia recebida de um conhecido em comum durante compras na barraca Palácio de Oxossi na Feira de São Joaquim em Salvador 38 Depoimento colhido entre 1993 e 1994 107 vida e com outro nome viuse nos braços de outro O casal de amantes foi assassinado no leito durante o ato de amor tendo uma lâmina fatal atravessada de uma só vez das costas de seu companheiro até a dela Os dois permaneceram juntos após a morte e formaram uma dupla de ação espiritual ele o Exu Sete Facadas ela Maleina Sete Saias O Exu efemenizado ou como atualmente parte do povodesanto chama a Exua que em vida foi pernambucana é um grande exemplo de como as relações amorosas e os escândalos são a porta de entrada para uma vida de Exu umbandizado ou uma vida desregrada como a de Vadinho É de bom tom lembrar que todos os depoimentos descritos até aqui foram relatados na primeira metade da década de 1990 do século XX e as pessoas receptoras das entidades não eram leitoras de Jorge Amado Além do mais os depoimentos foram colhidos sem a intenção utilizada no presente trabalho Ao invés de depoimentos palavras que soam como algo intencionalmente colhido e sugerido pelos ouvintes melhor chamálos de conversas ouvidas batepapos informais de frequentadores e membros de religiões afrobrasileiras A julgar pelo número de tumultos amorosos ocorridos na obra de Jorge Amado deduzse que no Brasil estes eventos sempre foram motivos de arruaças e notas de toda a comunidade interessada em hostilizar a traidora e o traído Isto confirma a possibilidade do teor de exatidão em depoimentos desses Exus que foram pessoas que um dia tiveram vida PRANDI 2003 A Padilha Sete Saias também chamada de Maleina nome da vida de araaiê instiga a busca do real e das fontes de sua história Histórias comuns confirmadas em Jorge Amado e num Brasil patriarcal acostumado a assassinar as mulheres adúlteras e a 108 fazer de tudo isto um grande alvoroço prato cheio até para os jornais principalmente quando com pessoas famosas a exemplo do escritor Euclides da Cunha autor de Os Sertões traído por Dona Ana Este episódio da vida euclidiana gerou livros e artigos além de uma minissérie televisiva de grande sucesso no final dos anos 90 Contudo a raiva e a violência do traído não têm ficado somente no âmbito masculino Darcy Ribeiro 1995 relata a violência das Sinhazinhas para com as negras obrigadas a conceder favores sexuais aos senhores As Sinhás expressavam suas raivas com mutilações nos rostos seios olhos e principalmente arrancando os dentes das escravas Permanecendo no escândalo são evocados conceitos arquetípicos do Exu nagô O Enugbajiró SANTOS 1986 a boca coletiva fazse presente tornando seu filho conhecido de todos inclusive da noite espaço dos reis e rainhas das encruzilhadas afrobrasileiras A narrativa guarda importantes laços de estreitamento com a função de Exu boca coletiva patrono da comunicação Além do Carnaval foram observados outros atos iniciáticos e fundadores de períodos das vidas de Vadinho elegbarianamente ligados à comunicação O primeiro deles é o escândalo ora discutido que chamou a atenção da nata da sociedade salvadorense em pleno Largo da Graça39 chegando aos ouvidos de toda a elite da Cidade do Salvador ou da Velha Cidade da Bahia e introduzindo o jovem rapaz na vida boêmia Na época de solteiro o boêmio promoveu uma serenata à beira da janela de Flor depois da meianoite Durante a música todas as janelas da Ladeira do Alvo se abriram para ouvir a 39 O bairro da Graça é um dos mais caros e tradicionais da Cidade do Salvador ainda hoje 109 tentativa de desagravar a namorada curar suas tristezas apaziguar seu sono trazerlhe o consolo da música prova de seu amor AMADO 1966 p 117 após a monumental surra que a virgem havia recebido da mãe por terse encontrado com o namorado De fato foi uma espécie de boca coletiva comunicando o amor de Vadinho a Flor através de personagens com correspondentes na Bahia nãoficcional como Walter da Silveira com sua flauta e ao violão Dorival Caymmi todos entoando modinha de Cândido das Neves AMADO 1966 p 116117 No entanto o escândalo se consolidou com os resultados da serenata logo após Flor entregouse a Vadinho ao som do mar de Itapuã O alvoroço foi geral toda a Ladeira do Alvo ficou sabendo do mal passo de Flor decerto incentivado pela surra e pela serenata do namorado Estava iniciada a vida de Vadinho enquanto companheiro de Flor Do lado oposto à introdução de Vadinho na vida noturna seu despertar enquanto filho de Exu o poema em homenagem ao defunto consolida a memória do boêmio introduzindoo no rol dos homens memoráveis Elegia à definitiva morte de Waldomiro dos Santos Guimarães Vadinho para as putas e os amigos AMADO 1966 p 43 Foram vários os supostos autores do poema que rompeu os limites da Cidade do Salvador transformandose em objeto de discussões entre letrados e amigos do homenageado Até mesmo com algo em sua homenagem a irreverência de Exu e sua capacidade de promover a desordem e a ordem TRINDADE 1981 ressoaram nas confusões e nos tapas que tentavam afirmar a autoria do poema divulgando com mais intensidade o trabalho Mais tarde foi descoberto que Godofredo Filho era o verdadeiro autor da façanha 110 Façanha mesmo foi a vinda do famoso na vida ficcional e nãoficcional cantor Sílvio Caldas para a residência do casal que virou notícia dos principais jornais da cidade Vadinho tornarase amigo da celebridade em sua viagem ao Rio de Janeiro A estada do cantor em Salvador transformou a casa dos Guimarães em palco de shows e repositório de repórteres a divulgar o evento e enaltecer o jovem casal Estava Vadinho introduzido no mundo midiático mundo do patrono Exu acontecimento cronologicamente anterior à sua morte e ao poema em sua homenagem O arquétipo Exu ao realizar suas funções de Engbajiró implementou a compensação pela falta de filhos do boêmio O fato de não ter filho não apagou a memória de Vadinho que ficou eternizada na boca do povo e nos escritos de Godofredo Filho Ser lembrado após a morte era ideal de todo africano précolonial LUZ 2000 e um grande feito para um malandro baiano e filho de orixá Afinal para o nagô a morte não significa absolutamente a extinção total ou aniquilamento conceitos que verdadeiramente o aterraram Morrer é uma mudança de estado de plano de existência e de status SANTOS 1986 p 221 Contudo ao mesmo tempo em que a morte não é o fim é importante cumprir o ciclo designado por seu destino na confecção mítica de seu ori cabeça Estar maduro para a morte e não morrer antes do tempo é desejo de todo nagô tradicional e certamente de Vadinho um amante da vida e das alegrias de viver Complementarmente para o nagô o importante é estar vivo é cumprir todo o ciclo enquanto ara aiê até a mudança do plano de existência pois o paraíso é aqui neste mundo no aiê Alguns espíritos inconformados com a morte prematura reencarnam para logo morrerem como 111 é o caso do Abiku aquele que nasce para a morte pois bom mesmo é estar vivo PRANDI 2000a Vadinho não consegue voltar como um Abiku e de nada adiantaria ser uma criança sem poder possuir sua amada Virou um egum um irumaléancestre entidade associada às histórias dos seres humanos à sua própria história de araaiê e para a umbanda repetimos um Exu SANTOS 1986 p 102 Mas em que categoria de egum estaria encaixado Vadinho Santos 1986 p127 descreve dois tipos de egum Os Egun agba possuem fala e representam os ancestrais de famílias importantes já os Apäàraká são mudos são espíritos novos que por várias razões não puderam chegar ao estado de egbá e cujos ritos de formação não foram acabados A personagem não se enquadra completamente em nenhum dos dois tipos descritos pela pesquisadora JE dos Santos O egum amadiano fala é de família importante apesar de desprezado o que o faz próximo das características do Egunagba Ele é um espírito novo como os mudos Apáàraká mas não se trata de um espírito mudo Tratandose de conceitos nagô tradicionais os valores capitalistas são inexistentes o conceito de família importante é discutível retirando a família de Vadinho da semântica importante dentro dos cultos de Egungun o culto dos ancestrais masculinos Com essas impossibilidades de classificar o egum Vadinho em um tipo nagô mais uma vez confirmase a tese do Exu umbandista O egum amadiano toma emprestadas características dos Egunagba dos Apaaraká e dos obsessores kardecistas culminando num Exu à moda umbandista um egum com atribuições de Exu sem o exarcebado discurso do embranquecimento mas em vida um cristão oscilando entre o 112 respeito e o sarcasmo ao cristianismo Dentro da narrativa ora discutida o espírito do morto Vadinho é qualificado como um egun rebelde ao qual ninguém oferecera roupas coloridas nem o sangue dos galos e ovelhas nem um bode inteiro nem sequer uma conquém AMADO 1966 p 417 O babá de Exu AMADO 1966 p 417 ou o egum de Exu difere das categorias tradicionais dos eguns nagô não se veste como estes nem recebeu alimentação ritual para fazer a longa viagem ao orun o que justifica as queixas de Vadinho em relação ao percurso de volta Não posso estar indo e voltando Ou tu pensa que é uma viaginha de brinquedo como ir daqui a Santo Amaro ou a Feira de Santana AMADO 1966 p 390 Todavia as leituras aqui propostas não deixam de comentar exemplos nagô orientados por Juana Elbein dos Santos 1986 e Marco Aurélio Luz 2000 que podem até inspirar em nós um discurso de africanização entretanto são percepções de arquétipos africanos no enredo da obra as quais também são encontradas no sincrético candomblé e na embranquecida umbanda Por isso mais à frente são retomados os tipos de Exu revelados nas ações do Exu Vadinho afinal símbolos de Exu não são um significado constante pois a sua interpretação está sempre em relação a um contexto Sua mensagem está sempre em função de outros acontecimentos SANTOS 1986 p 23 A palavra de Egum seu poder Se há as citadas diferenças entre os Eguns tradicionais e o nosso Babá de Exu a força da palavra os une aproximaos igualaos em seus poderes A palavra de egum tem força de lei 113 e suas mensagens são materializadas pela voz SANTOS 1986 p128 como Vadinho prevendo e afirmando o futuro para Flor resistente ao amor do primeiro marido Tu vai me dar quando menos tu espere como da outra vez E tu sabe por quê Por quê Porque tu gosta de mim e no fundo lá bem no fundo onde nem tu mesmo enxerga tu tá doidi nha para me dar AMADO 1966 p 404 Essa força de lei o poder da palavra também se faz presente entre os orixás inquices voduns encantados guias e caboclos Ao mesmo tempo em que o Babá de Exu prevê a aceitação de seus favores amorosos por Flor ele dá um jeitinho para viabilizar a decisão da cozinheira apressar a volta aos bons tempos do leito Mal sentara no entanto e já o trapaceiro lhe descia a mão pela cintura até a ânfora do ventre Levan touse indignada Tu não presta mesmo Cheguei a pensar que tu falava de coração que tu era homem de palavra E logo tu desmente tu vai metendo a mão E por acaso estou te pegando a muque te to mando à força não vou te comer a pulso mas isso não quer dizer que não faça tudo tudo que não use todos os recursos para que você me dê de sua própria vontade AMADO 1966 p 406 Agindo entre a firmeza de egum e a ambivalência de Exu o Babá de Exu mais uma vez manifesta sua proximidade com os Exus umbandizados tidos como trapaceiros diabólicos e paradoxalmente homens de palavra e amantes das reinações As reinações o caráter trickster PRANDI 1997 2000b 2003 TRINDADE 1981 RODRIGUES CAROSO 1999 poderoso brincalhão e malandro são atribuições e características do Exu Vadinho 114 Voltando às ações de Exu com Vadinho em vida Em vida mesmo impregnado de toda malandragem e preguiça os aspectos de Elegbará Senhor do Poder alicerçaram algumas ações do personagem conotando a encarnação do desafio da vontade e da irreverência para melhorar a sorte dos homens TRINDADE 1981 p 3 Célia Zambeta professora sempre desempregada alcançou um emprego graças à ação de Vadinho junto a Andreza de Oxum responsável por conseguir das autoridades educacionais o favorecimento para a mal agradecida professora que iria desmascarar a farsa do Vadinho rico e bemsucedido ilusão que encantou dona Rozilda a ambiciosa mãe de Flor Se nas religiões afrodescendentes Exu é aquele que abre caminhos para suavizar a vida também podendo dificultá la Vadinho ainda vivo já se afirmara enquanto Rei da Encruzilhada Dono da Rua e realizador de desejos A ingrata professora Célia era acometida de um mal comum a muitos brasileiros e a qualquer país capitalista o desemprego Hoje a grande procura pelas entidades das religiões afrobrasileiras devese principalmente para a abertura de caminhos a conquista de uma vida menos sofrida e o emprego ou a melhoria deste é a alavanca impulsionadora entre as classes menos favorecidas Para livrarse de obstáculos uma das indicações pode ser o ebó de Exu juntamente com a limpeza de corpo No caso da personagem Célia o ebó foi representado pelas articulações de Vadinho A realização das providências se consolidou através de uma filha de Oxum a negra Andreza cozinheira qualificada a servir seu sarapatel para malandros como Mirandão Waldomiro e para pessoas influentes na política e no governo estadual como o poeta Godofredo Filho 115 Godô para Andreza O escritor era parente próximo e amigo íntimo do Diretor de Educação pedido seu era ordem AMADO 1966 p 101 como realmente foi É verdade que a viabilização final do pedido em favor da malamada professora foi de Andreza filha de Oxum portanto uma graça conseguida pela maior entre as mulheres Oxum Mas Vadinho e Exu onde ficam nessa história Meros transportadores de recados Talvez para uma leitura simplista e equivocada sejam eles Exu e Vadinho meros transportadores Transportar o recado é tarefa da mais alta importância na liturgia nagô e entre as crenças afrobrasileiras O recado levado por Vadinho foi o Axé energia imprescindível para as realizações mágicas E o Axé foi veiculado através da oferenda neste caso a amizade de Vadinho para com Andreza comovendo a negra que pediu a Godofredo que pediu ao Diretor de Educação Neste momento da trama Vadinho incorpora importante título de seu pai espiritual Ojiseébo encarregadoetransportadordeoferendas SANTOS 1986 intercessor de pedidos aos outros orixás e a Olorum o deus supremo Momento singular da narrativa ao mesmo tempo em que ocorre a atuação do Ojiseébo a cena dramática em seu sentido patético evoca outros títulos do Senhor do Poder do Rei das Encruzilhadas A lábia elegbariana recorda a atribuição do Enugbajiró a boca coletiva contando o problema de Célia à pobre Andreza nobre filha de Oxum a perfumar sua casa com folhas de patichuli folha atribuída ao seu orixá por algumas casas de candomblé e umbanda da Bahia além das folhas de pitanga Até a década de 80 antes da popularização dos cheirinhos químicos as folhas eram ornamento e aroma comum em residências das camadas menos favorecidas salvadorenses Atualmente tais procedimentos ocupam 116 lugar de destaque em Sessões de Mesa Branca40 e em algumas residências durante o Natal quando as feiras populares41 enchemse de folhas de pitanga Além de Enugbajiró Vadinho mais uma vez foi o hábil malandro comovendo Andreza e arrancando o compromisso do amável Godô logo abaixo uma parte da cena em que se finge sorumbático Andreza de amarelo colares nos braços e no pes coço era a própria Oxum conte meu branco não fique jururu Vadinho desfiou o rosário de desditos da profes sora primária uma infeliz Sentada à cabeceira a negra Andreza sentiase comovida com o relato será que Godô não podia dar uma palavra se mexer pela pobrezinha O poeta Godofredo prometeu interceder Não esclareceu ser paren te próximo e amigo íntimo do Diretor de Educa ção pedido seu era ordem executada Queria apenas devolver o sorriso de Andreza sem seu sorriso era triste a noite e o mundo deserto e frio AMADO 1966 p 101 Emprego conseguido e azar quebrado Célia teria provisoriamente transferido a urucubaca AMADO 1966 p 100 má sorte para Vadinho que nada acertou nas roletas após o pedido feito por Dona Rozilda em favor da zambeta mirrada e ainda por cima com esse azar AMADO 1966 40 Sessões realizadas por alguns terreiros de candomblés e casas de umbanda nas quais prevalecem as orações católicas misturadas às marchas da umbanda e às vezes músicas das tradições de orixás voduns e inquices Todo ritual é encenado em torno de uma mesa co berta com toalha branca flores alfazema folhas especiais contando com a total ausência de azeite nos alimentos destinados aos orixás e ao público como a todo e qualquer elemento ritual 41 Entre as feiras populares de Salvador podemse destacar a Feira de São Joaquim antiga Feira de Água de Meninos a Feira das Sete Portas localizada no bairro que leva o mesmo nome a Feira do Japão no bairro da Liberdade famosa pelas manifestações culturais ne gras e tantos outros arremedos de feiras como a do bairro de São Caetano improvisada à beira do trânsito ao lado do supermercado Bom Preço e a feirinha do bairro de Pirajá na Rua Velha 117 p 100 Os acontecimentos e a ação de Vadinho tiveram o efeito de um ebó a limpeza de corpo livrando das influências negativas e a abertura de caminhos através do emprego uma leitura calcada no ocorrido e nas funções de Exu Outra importante similitude da ambivalência de Exu e Vadinho aconteceu quando o boêmio após surrar Flor para conseguir dinheiro e destinálo ao jogo acabou dando toda a quantia ao amigo cigano o taxista A mãe do chofer acabara de morrer e o filho desesperado não tinha como providenciar o enterro De um lado o maldoso Vadinho arrancando o dinheiro da esposa para imediatamente comoverse com a dor do amigo ambiguidades de Exu Feitos do Exu Vadinho Vadinho era às vezes bondoso às vezes maléfico às vezes doce e também contendo o ardor das pimentas ingrediente de ebós de Legbará42 Nas noites de perdição da Bahia nos cassinos o já morto Waldomiro era constantemente lembrado principalmente por seus feitos Odara feliz alegre Amigo das prostitutas por várias vezes alimentou Claudette velha meretriz com quase setenta anos de idade quase calva uns ralos cabelos cacos de dentes olhos de catarata já não tinha como professar o honrado ofício AMADO 1966 p 318 Claudette após a morte de Vadinho vivia de roleta em roleta pedindo esmola Agora apenas se recordava do amigo vitorioso no jogo quando as vagabundas o carregavam em procissão AMADO 1966 p 399 Lembravase principalmente das contribuições financeiras do filho de Exu 42 Elegbará Legbará Legbá Bará são títulos e equivalências de Exu 118 Novamente o narrador demonstra a ambivalência deste orixá aproximando o irresponsável jogador daquele responsável por providenciar a paz e a tranquilidade de todos os seres humanos A História do modo como Exu se tornou o decano de todos os orixás SANTOS 1986 p 176178 prova como o jovem Exu ganhou respeito de Olorum recebendo o direito à consideração de todos os orixás inclusive os mais velhos ao ser transformado no mensageiro de Olorum Assim disse o Deus Supremo aos orixás Quando vocês chegarem aos seus lugares de morada para onde retornarão tudo o que devem fazer aquele que foi seu líder que carregou o emblema Egán em sua cabeça é a quem vocês devem procurar e falar Ele deverá trazerme todas as sugestões de vocês porque hoje vocês mostraram que aquele que os guiou para que pudessem submeterse suas sugestões antes de as pôr em execução é ele SANTOS 1986 p 178 Ao final do itan Exu Odara é saudado como aquele que quando todos vocês se levantam ao qual é preciso fazer apelo para que lhes providencie o alimento para que lhes providencie a bebida SANTOS 1986 p 180 A prostituta amadiana Madame Claudette inconscientemente teria invocado a ajuda do ExuVadinho um Odara Lembrando e desejando que o jogador ainda fosse vivo faz algo condenável para espiritualistas da Bahia não 119 ficcional É muito comum ouvir em conversas do povode santo e de católicos da Bahia o medo e o respeito para com os mortos mesmo os saudosos e amados Numa conversa sobre a falecida Sambadiamongo um de seus bisnetos43 fazia questão de frisar o respeito pela bisavó sempre lembrando Sambadiamongo que em vida foi minha bisavó foi não é mais44 Acreditase que chamando o nome ou desejando a presença do morto estáse invocando o mesmo tirandoo do seu lugar e provocando o desequilíbrio das forças espirituais A crença na possibilidade do chamamento indevido de um morto é tão grande entre adeptos de religiões afro na Bahia que ao lembrar e pronunciar o nome de um morto um que em vida foi querido ou não alguns mais prevenidos pronunciam palavras sagradas em língua africana com a finalidade de manter o morto em seu lugar Até não adeptos dos cultos afrobrasileiros ou adeptos complementando as palavras africanas ou por desconhecimento destas ainda dizem o mais fácil e costumeiro Deus que conserve ele por lá ou Coloque sua alma onde ele merecer com outras variações no mesmo sentido Aliás a volta de Vadinho do orun deveuse ao chamamento de Flor como o próprio egum ou Exu proclamava Diferente não aconteceu à madame Claudette desesperada sem ter como se alimentar e já à beira do despejo por falta de pagamento do 43 Tratase de um filho da Kóta Jacy equivalência de equede para os candomblés de Ketu Tia Jacy como também é chamada é prima biológica de Edith Apolinária de Santana Sambadiamongo mas a considerava como avó 44 Entre tantos depoimentos do gênero destacamos a fala do Ogã Deco em uma festa da Padilha Sete Rosas no dia 07 de junho de 2003 em uma casa de umbanda de Pirajá dirigida pela senhora Cristina 120 aluguel despropositadamente invoca a entidade sendo logo atendida porque nas religiões mágicas a palavra de fato tem poder No momento exato em que recordou então suce deu ia Chastinet o crupiê perfeito recolher e pa gar a última bola as mãos cheias de fichas de cem de duzentos de quinhentos quando lhe deu uma coisa como se lhe atravessassem o corpo Soltou um grito rouco e breve suspendeu os braços e abriu as mãos as fichas rolaram no tapete Ativos os malandros se precipitaram foi uma confusão de homens e mulheres curvados na dis puta Só Madame Claudette de tão confusa e em desespero nem teve forças para se atirar naquele rolo ficou parada No decote de pelancas sentiu Madame Claudete a mão lhe colocar uma das grandes das de madrepé rola das de quinhentos dinheiro de sobra para pa gar o quarto e garantir uma quinzena de almoços A seu dispor Madama a seu serviço pareceulhe ouvir aquela voz de astúcia e picardia Merci mon chourespondeu no costume antigo AMADO 1966 p 399 Outros amigos do defunto também foram ajudados pela entidade Primeiro o negro Arigof filho de Xangô que sofria de coisafeita ebó de antiga amante vingança por ter batido na mulher abandonada ação mágica muito comum no mundo das religiões afrobrasileiras O desespero amoroso também é um grande motivador da procura de trabalhos mágicos tanto pela vítima do adultério como pelo vitimador Em seguida o velho Anacreon mestre do jogo que iniciara o egum na época de araaiê na arte dos cassinos Mirandão e o jornalista Giovanni jogador já livre do vício receberam a ajuda de Vadinho Os três têm em comum com madame Claudette a pobreza o miserê e a lembrança 121 de Vadinho a recordação o chamamento inconsciente da entidade tabu entre as religiões afrobrasileiras Para todos os amigos a voz do jogador se manifestara Arigof durante sua caminhada lembrouse dos tempos de Vadinho araaiê o colega boêmio lhe emprestou dinheiro proporcionando ao filho de Xangô ganhar 96 contos um número múltiplo de 12 número atribuído ao orixá Xangô com sua corte de 12 ministros os obás como fora Jorge Amado e um de seus pratos sagrados com ingredientes em número de 12 Enquanto entidade Vadinho fizera o filho de Xangô ganhar 12 vezes ao apostar na dama deixando 12 reis no fundo da caixa AMADO 1966 p 426 Com estes acontecimentos a narrativa diz que Arigof sorriu quebrara o azar rompera o ebó e fora buscar a sorte com as mãos e os dentes e com a lembrança de Vadinho AMADO 1966 p 424 Numa leitura religiosa o Exu teria as suas vezes sem deixar de homenagear o orixá da justiça e para parte do imaginário das religiões afro brasileiras orixá do dinheiro evidenciando positivamente o número 12 O velho Anacreon teve sua mensagem através de um sonho durante um raro cochilo Mirandão deveria jogar o 17 número preferido de Vadinho e diretamente associado a Exu em casas de culto afrobrasileiro Comumente em rituais relacionados a Exu e Ogum os ingredientes são colocados em número de sete seus múltiplos ou números terminados com sete Em trabalhos mágicos relacionados a Exu certos casos exigem quantias ao menos terminadas com o numeral sete como R 1777 dezessete reais e setenta e sete centavos ritualmente ligando tudo ao orixá mensageiro Assustado com o ganho fácil e a voz do finado Vadinho Mirandão desiste 122 do jogo e o egum telefona para o amigo jornalista Giovanni É Vadinho quem fala Giovanni Venha correndo no Pálace e jogue no dezessete AMADO 1966 p 455 Sem se lembrar que Vadinho estava morto seguiu as ordens e não se arrependeu O homem da comunicação reinado de Exu foi o mais felizardo de todos herdeiro da força do sete de Legbará abriu os caminhos constituindo patrimônio com o dinheiro do jogo A importância do número sete para Exu se faz tão grande entre as religiões afrobrasileiras a ponto de entidades levarem este número no nome Seu Sete Sete Facadas Sete Encruzilhadas etc Entre as Padilhas têmse Sete Estradas Sete Saias Sete Rosas etc No romance Dona Flor e Seus Dois Maridos a importância não se fez menor pois Vadinho foi iniciado no jogo aos 17 anos de idade após sete anos do dia em que conheceu Flor atendeu ao pedido da aniversariante levandoa para conhecer o Palace lugar inapropriado para mulheres de respeito segundo Vadinho aos sete anos de casada Flor ficou viúva depois da missa de sétimo dia Flor reabriu a Escola de Culinária Sabor e Arte a segunda luade mel de Flor durou sete dias Continuando a afirmação da importante presença do sete na obra e o entendimento da relevância deste número para o universo religioso afrobrasileiro será visto que o mafioso Pelancchi assustado com os prejuízos causados pelo Exu Vadinho foi em busca de Mãe Otávia de Kisimbi que com suas rezas banhos de folhas e galos sacrificados com as penas postas nas encruzilhadas AMADO 1966 p 477 defendeu Pelancchi pelos quatro cantos e pelas sete portas Pelancchi apenas acreditava que eram forças sobrenaturais 123 que realizavam o trabalho não houve de parte dele nenhuma referência a Vadinho Com todo cuidado e revelando só até onde é possível revelar os rituais Jorge Amado descreve uma típica limpeza de corpo e o que popularmente é conhecido como ebó de Exu com a finalidade de se livrar dos males e abrir caminhos no caso da personagem Pelancchi Interessante notar o respeito e uma certa defesa de Mãe Otávia e consequentemente do candomblé pois entre todos os místicos procurados foi a única que se prontificou a resolver os problemas que não prometeu milagres e apenas lhe disse para esperar os resultados Mas o rei do bicho tinha pressa foi bater em outras freguesias AMADO 1966 p 477 Foram sete freguesias além de mãe Otávia a Vidente Aspásia Josete Marcos Arcanjo São Miguel de Carvalho Doutora Nair Sabá Madame Deborah Teobaldo Príncipe de Bagdá Cardoso e Sª este último charlatão que tomou os amores de Zulmira secretária e amante de Pelancchi O egum de Vadinho um Exu Odara providenciou o alimento a bebida os cigarros e a moradia de Madama Claudette ganhos financeiros para Arigof Giovanni Anaceon e Mirandão As características as qualidades ou categorias de Exu se interrelacionam na mitologia e em Vadinho pois se é o Exu Odara que tudo providencia é também o Exu umbandista que abre caminhos sendo odara porque é bom feliz alegre e proporcionador de alegrias Usando o recurso cinematográfico do zoom será focalizado exatamente quando o crupiê soltou um grito rouco e breve deixando cair as fichas no chão tudo isto porque lhe deu uma coisa como se algo atravessasse o corpo com certeza o espírito de Vadinho A tessitura os sons e a organização deste zoom podem ser aparentemente um pretexto para deixar 124 cair a salvação financeira de Madame Claudette Contudo penetrando no cotidiano de católicos candomblecistas espíritas umbandistas e de crentes no mundo não físico baiano mais uma vez a conexão amadiana com tradições afro brasileiras será comprovada Egum alma penada espírito do outro mundo espírito de morto má influência espírito zombeteiro encosto ou um aviso de encantados caboclos guias e orixás desencadeado através do arrepio do sentirse trêmulo do tremer repentino do corpo Tudo isto pode ser atribuído ao acontecido com o crupiê muito comum numa Bahia mística e crente de seus antepassados e de seus espíritos segundo contam velhos e novos baianos ainda concernente com o cotidiano deste início de século XXI Não fora Claudette quem sentira o arrepio do tinhoso Vadinho mas ouvira sua voz despercebida pela idade da Madama O egum de Vadinho agiu como muitos espíritos no dizer de pessoas nãoficcionais mais um resgate de elementos da fé baiana em especial a fé afrobaiana O espírito realizou sua intervenção no mundo físico para ajudar alguns araaiê Em Ancestralidade Afrobrasileira o culto de babá egum Braga 1995 p 29 fala que muitas coisas estranhas aconteceram na cadeia durante a detenção de Eduardo Daniel de Paula pela repressão policial aos cultos afros na Bahia prisão ocorrida em 19 de junho de 1940 Vovô Eduardo era líder do maior culto aos ancestrais no Brasil localizado na Ilha de Itaparica com descendentes ainda vivos hoje Os acontecimentos na cadeia causaram pânico no delegado que com medo liberou o velhinho de 96 anos de idade juntamente com sua esposa Certamente os espíritos cobravam 125 seu sacerdote de volta como Vadinho interveio para ajudar Madame Claudette Em Tenda dos Milagres 2000 o sobrenatural também realiza sua intervenção com um correspondente direto na Bahia nãoficcional Tratase do episódio em que o delegado Pedrito Gordo é tangido por Ogum incorporado em um de seus capangas durante invasão ao terreiro do paidesanto Procópio Na vida nãoficcional quem incorporou Ogum foi o delegado Pedro Gordilho parando as perseguições e fazendo o santo45 LUZ 2000 Estes fatos amadianos e históricos assim como as observações da vida baiana aqui informadas reforçam a tese do alicerce do romance DF na ancestralidade nos costumes e na religiosidade afrobrasileiros A vacilação do crupiê com as fichas do jogo é uma construção perfeitamente conectada com o que se compreende da espiritualidade baiana e afrobrasileira Sem desistir do zoom mais uma vez pensando na coisa na agonia como se algo atravessasse o corpo do crupiê a fanopeia a imagem mais imediata proveniente das religiões afrobrasileiras são os barraventos os tombos agitações e agonias sofridos pelos filhos de orixás em momentos imediatamente anteriores à manifestação à incorporação da entidade É comum entidades entre elas principalmente Exus e caboclos fazerem com que seus filhos percam o controle de seus corpos antes da manifestação e do apoderarse total da matéria como o crupiê que sem querer suspendeu os braços e abriu as mãos deixando as fichas rolarem sobre o tapete Se a cena do transe total não pode ser comparada com o zoom em análise pois o crupiê não incorporou a entidade 45 Ser iniciado no candomblé 126 Vadinho ao menos o que podemos chamar de prétranses mantém uma relação com o descontrole do crupiê Mais próximo do que o prétranse ou o preparo do corpo do filho pela entidade para recepcionar a própria entidade seria a chimba o castigo Às vezes em candomblés e terreiro de umbanda por merecimento os médiuns são levados a praticarem punições corporais contra si próprios sem terem nenhum controle sobre os atos Não é incomum que as reprimendas sejam efetuadas pelas próprias mãos do filho rebelde as quais por exemplo aplicam bofetadas como o crupiê a suspender os braços e abrir as mãos sem vontade própria No caso amadiano o castigo foi algo providenciado pela entidade Vadinho melhor ao invés de castigo uma bênção para Claudette bem de um mal de outro ambiguidades de Exu e do mundo Os trabalhos mágicos da entidade Vadinho poderiam ter ocorrido em rodas de candomblé e umbanda de Salvador Ouvir vozes de espíritos sonhar com palpites para o jogo e com espíritos dando conselhos fazem parte do imaginário do povodesanto e de crentes no mundo espiritual Apesar de a roleta ter sido empenada para não dar o 17 o número aparecia A insistência para apostar contra os palpites de Vadinho não impedia que as fichas mudassem seus roteiros no ar indo para os prognósticos de Exu que direcionava as apostas Vadinho agia como um deus induzindo as ações dos homens fazendo os de marionetes E a mão de Arigof independente de sua vontade como se obedecesse a uma força superior depositou as fichas na dama AMADO 1966 p 424 uma entidade em seus afazeres e atribuições Tanta agitação tanto quefazer não destoaria do Vadinho araaiê fiscal de parques e jardins da Prefeitura Municipal de 127 Salvador e que nunca trabalhava vivia somente para a noite Claro que sim não obstante Vadinho continuar na noite baiana a rondar os cabarés O que ocorreu foi a mudança do conceito de trabalho Viver somente para o jogo para a farra e para as ruas não alimentava Flor nem sustentava sua casa Apenas raros momentos de extrema sorte ocasionavam contribuições ao orçamento como ocorreu ao negro Arigof já mencionado a contribuir com Zaíra Negritude sua amásia Nas relações de araorun Vadinho revelase grande trabalhador como seu pai espiritual abrindo caminhos a promover a felicidade dos amigos e o infortúnio dos inimigos Frequentar os cassinos virou algo obrigatório pois aqueles cujos destinos desejava melhorar encontravamse ou deveriam estar nos cassinos fonte de renda e local de domínio da entidade Vadinho Afinal os Exus da umbanda se prevalecem de suas experiências adquiridas enquanto araaiê Como Exu Vadinho levou um tempo tempo de araaiê aprendendo o trabalho para depois pôlo em prática Segue um mito falando do aprendizado de Exu Exu ganha poder sobre as encruzilhadas Exu não tinha riqueza não tinha fazenda não ti nha rio Não tinha profissão nem artes nem missão Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro Então um dia Exu passou a ir à casa de Oxalá Na casa de Oxalá Exu se distraía Vendo o velho fabricando os seres humanos Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos Exu prestava muito atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava as mãos os pés a boca os olhos o pênis dos ho mens 128 as mãos os pés a boca os olhos a vagina das mu lheres Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá Exu não perguntava Exu observava Exu prestava atenção Exu aprendeu tudo Um dia Oxalá disse a Exu para ir postarse na en cruzilhada Assim quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar alguma coisa a Exu Exu ganhou uma rendosa profissão ganhou seu lugar sua casa Exu ficou rico e poderoso Ninguém pode mais passar pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exu PRANDI 2001 p 4041 Também como no mito Vadinho foi discípulo de alguém mais velho Anacreon e nas ruas aperfeiçoou seu aprendizado Entretanto a similitude mais consistente entre o atual mito e o romance Dona Flor e Seus Dois Marudos é o fato de Exu ter sido guardião da casa de Oxalá assim como Vadinho teria guardado a casa para Teodoro pois somente no segundo casamento a compra da casa foi definida O conceito de guardador em questão engloba aquele que vigia para os respectivos donos também o que guarda ou observa certos preceitos ou ainda o que guarda a quem compete guardar ou vigiar alguma coisa FERREIRA 1986 p 874 Afinal a fala é sobre Exu aquele que conta e dá conta de toda movimentação da energia sagrada chamada Axé Quanto ao primeiro conceito de guardador tratase da aceitação do ExuVadinho como vigilante da casa de Oxum e Oxalá Dizse casa de Oxum e Oxalá baseado na premissa 129 já aqui mencionada de que os bens materiais dos filhos de orixás e guias são também propriedade de seus pais míticos Ocorre que às vezes bens materiais dos orixás e guias e outras entidades não são atribuídos aos seus filhos como os paramentos utilizados pelas entidades Quando necessário alguns bens obtêm registro civil somente por exigência das sociedades modernas como é o caso dos terrenos de terreiros de candomblés propriedade sagrada dirigida pelos homens a mando e com a permissão dos orixás pacto entre guardadores espirituais e fiéis guardadores no plano físico Vadinho tendo pertencido aos dois modos de existência araaiê e araorun foi protetor civil homem da casa coordenada por Flor e protetor espiritual passando a maior parte do tempo na rua nos cassinos e nos cabarés nas encruzilhadas da vida que deram sentido ao Waldomiro araaiê e ao Waldomiro araorun A casa que durante o primeiro casamento foi alugada por Flor pouco foi do boêmio sempre habitando a rua com maior frequência guardando o imóvel para os verdadeiros donos Essas condutas do homem e da entidade Vadinho e suas relações com os espaços casa e rua são típicos daquele que guarda e observa certos preceitos FERREIRA 1986 p 874 Certamente os preceitos sobre o espaço de Exu sobre suas atribuições referente ao seu modo de vida tão bem percebido pelo narrador alicerçado no diaadia do povodesanto e justificado na farta literatura antropológica Além do mito Exu ganha poder sobre as encruzilhadas Prandi 2001 p 66 67 relata através do mito Exu atrapalhase com as palavras que por determinação de Orunmilá Exu iria viver fora de casa na rua Não há como reclamar se o guardar de Vadinho excedeu os limites da distância exigida entre o objeto guardado 130 e seu protetor As quebras das convenções são acontecimentos pertinentes às travessuras do ExuVadinho e de Exu como um todo transgressores sociais faltando com o respeito até a Oxalá a exemplo do mito em que Exu esconde as roupas de Oxalá e dos acontecimentos construídos pelo narrador do romance DF Na obra a hierarquia dos orixás por vezes é ignorada deixando prevalecer o aspecto trickster de Exu o mais novo dos orixás que se transformou em decano um odara conforme mito relatado por Santos 1986 História do modo como Exu se tornou o decano de todos os orixás e já transcrito neste trabalho Este desrespeito hierárquico possui correspondente nos acontecimentos sagrados de acordo com o lido nas linhas imediatamente anteriores Exu é quem guarda a quem compete guardar ou vigiar conceito de guardador FERREIRA 1986 p 874 É Exu quem habita a frente das residências protegendo toda a família É Exu quem possui assentamento na porteira das casas de candomblé e umbanda comumente batizado de Exu da Porteira às vezes possuindo um nome mantido em segredo pelas pessoas da casa É Exu quem em residências baianas se faz lembrado com uma vela acesa às segundasfeiras na porta de casa no quintal embaixo de uma árvore Ainda é ele ou seu irmão Ogum que recebe uma quartinha46 cheia de água atrás da porta da frente de casas baianas com a qual todos os dias ritualmente o fiel despacha a porta molhando o chão três vezes Foi Exu que segundo Dionísia de Oxossi fechou os caminhos para o Príncipe gigolô especialista em viúvas e pretendente a cercar Flor O próprio Vadinho após sua volta disse que mandou Mirandão seu amigo e companheiro de farras vivo para desmascarar o Príncipe Estas cenas levam a 46 Espécie de recipiente parecido com um jarro feito de barro 131 alguns desdobramentos que novamente confirmam a tese do ExuVadinho do guardador Exu O narrador diz que Dionísia de Oxóssi comadre de Flor e de seu primeiro marido informara ter descoberto através do Jogo de Búzios que Exu estava fechando os caminhos para o tal pretendente de sua comadre Não há no enredo informação sobre qual Exu que qualidade de Exu impedia tal ação Vadinho já de volta declara ter enviado Mirandão para desmascarar o explorador de viúvas Numa leitura imbuída de pressupostos religiosos afrobrasileiros que é a proposta deste trabalho surgem as possibilidades discutidas a seguir Primeiro apostar em erros de leitura do oráculo do Jogo de Búzios e com base nas declarações do egum ação possível no mundo nãoficcional afrobrasileiro entenderseia que aquilo que Mestre Didi viu no Jogo de Ifá foi o egum de Vadinho e não um Exu a fechar os caminhos de Flor Possível acontecer tal erro na realidade nãoficcional visto que Exu responde como léseorixá e léseegum SANTOS 1986 Contudo tratando se de competente personalidade da liturgia afrobrasileira transferida para o mundo ficcional amadiano com os mesmos louros e competência tal possibilidade de erro da personagem ficcional é desacreditada Apostando na possibilidade de uma leitura correta do Jogo de Búzios restam duas possibilidades Ou o Exu eledá pai de Vadinho apareceu no Jogo de Búzios ou Vadinho apareceu no oráculo de Ifá já como um Exu reforçando a tese de existência do ExuVadinho 132 Verdadeiramente essas duas possibilidades confirmam a existência do ExuVadinho uma entidade à moda umbandista Se o Exu eledá de Vadinho veio dar a mensagem pelos Búzios dizendo estarem fechados os caminhos para os pretendentes e depois Vadinho confirmou sua intervenção no plano espiritual para impedir o êxito do malfeitor junto à Florípedes não fica a dúvida sobre uma ação combinada O agir foi de um conjunto de membros no caso espíritos de uma mesma equipe uma falange no dizer umbandista com características próprias e algo em comum entre os membros todos do mesmo tipo de entidade Exus como o eledá de Vadinho e o próprio finado marido de Flor Portanto com base nesses fios da narrativa confirmase novamente a existência do ExuVadinho pois mesmo não tendo aparecido no Jogo de Búzios já como um Exu fica evidente a possibilidade de uma ação de Vadinho enquanto membro de uma Falange de Exus Mas por que será que os caminhos não estavam fechados para o pacato Teodoro motivo de risos e chacotas por parte de Vadinho que chegou a dopar o farmacêutico dandolhe calmante endereçado a Flor e ao fim da trama dizendo a Flor que ela precisava dos dois A narrativa não apresenta tantos porquês mas à luz das liturgias afrodescendentes no Brasil podese entender a mítica união entre Oxum e Oxalá filha e pai inseparáveis Entre os mitos contase que Oxalá tinha três esposas e uma delas era filha mítica de Oxum a principal e mais dedicada As outras esposas viviam a invejar a filha de Oxum criando mil armadilhas para colocála em má situação até que um dia conseguiram fazer com que a esposa principal infringisse um tabu de Oxalá ao parecer estar menstruada e suja do fluxo menstrual na frente do velho orixá Com a intervenção de Oxum que abrigara sua filha após a expulsão da 133 casa de Oxalá a esposa do Obarixá teve o sangue transformado em penas do pássaro ecodidé Penas que o próprio Oxalá considerava um riquíssimo objeto de adorno PRANDI 2001 p 331 Finalmente a situação foi revertida e a esposa teve o seu prestígio restabelecido Há algumas variações deste mito colocando no lugar da esposa uma equede47 de Oxalá filha de Oxum mas o fato é que Oxalá em sinal de respeito a Oxum usa a pena vermelha do ecodidé e todo iaô também usa por determinação do orixá Outros mitos contam dos cuidados de Oxum para com Oxalá sempre bondosa e atenciosa com o orixá velho Em terreiros de candomblé da Bahia a exemplo do Mansu Bandu é encenada uma passagem das vidas de Oxum e Oxalá durante o xirê48 ladeado por Oxum Oxalá é banhado simbolicamente através de mímicas Os carinhos de Oxum são retribuídos com a proteção Portanto se não há no romance uma justificativa para Exu não fechar os caminhos para Teodoro a abertura da obra permite atribuir à união mítica e assexuada entre Oxum e Oxalá o motivo do não impedimento e consequente aceitação do relacionamento por parte de Vadinho Afinal o relacionamento de Teodoro e Flor mais se aproxima de uma convivência fraterna e amigável do que de uma união carnal Flor fazia muito bem a Teodoro e ele a ela da mesma maneira como são recíprocos os cuidados de Oxum e Oxalá Talvez compreendendo isto Vadinho afirmara que Flor precisava dos dois homens Certamente não tenha ficado dúvida alguma sobre a filiação mítica de Vadinho a Exu As características do Senhor 47 Tratase de um cargo feminino dentro do candomblé Elas não recebem orixás e cuidam destes e de seus paramentos além de outras atribuições sagradas 48 Tratase dos cânticos aos orixás entoados para reverenciálos 134 dos Caminhos construíram o malandro amadiano quando vivo ou após a morte já uma entidade Exu Egum Legbasi filho de Legbá ou Exu Vadinho é tudo isto e há como comprovar através de seus feitos e desfeitos sendo malandro e praticando seu aprendizado para depois utilizálo após a morte Laroiê Exu Laroiê Vadinho diria algum cultuador dos ExusEguns se em seu jogo de Búzios ou em seu copo de vidência49 visse uma entidade com todas estas características construídas por Jorge Amado e aqui comentadas 49 Alguns videntes consultam o mundo espiritual através de um copo com água ritualmen te preparado 135 A COZINHA E O AZEITE Sendo o autor em matéria de culinária apenas co milão deve ele agradecer as suas boas amigas dona Carmem Dias dona Dorothy Alves e dona Alda Ferraz três mestras da grande arte que fornece ram receitas para a Escola de Dona Flor 50 As faces da cozinha em Dona Flor e Seus Dois Maridos é o tema abordado neste capítulo concomitantemente à possibilidade de valorização do ato de cozinhar Em seguida se direcionará pelos caminhos do azeitededendê comprovando a sua identidade negra afirmada através de DF sem diminuir contudo a importância das comidas de origem europeia que não tiveram o dendê adicionado As Faces da Cozinha lugar de mulher lugar de sumis são e de liberdade Também entre a maioria dos protobrasileiros os índios as mulheres são responsáveis pelo preparo dos alimentos No Brasil a cozinha sempre foi lugar de mulher expressão pouco elegante e depreciadora relegando as mulheres ao papel menor cozinhar lavar cozer Este pensamento pode ser lido na letra da música de Mário Lago que declama Amélia não tinha a menor vaidade Amélia que era mulher de verdade já 50 MARTINS Editora Orelha In AMADO Jorge Dona Flor e Seus Dois Maridos São Paulo Martins 1966 136 eternizada como símbolo da mulher subjugada Nos anos finais do século XX e neste início de século XXI ainda se constata que os menores salários da arte culinária são destinados às cozinheiras enquanto os chefes de cozinha recebem quantias bem mais rentáveis e enobrecem a arte de cozinhar Entre as mulheres de Salvador as de etnia negra ocupam espaço significativo em frente aos fogões seja por não lhes restar outra opção ou por preservar e fazer jus à fama de boas cozinheiras como as ancestrais que transformaram a culinária portuguesa com o africano dendê ou a sulamericana malagueta Desde as primeiras levas de escravas negras trazidas ao Brasil já no século XVI a cozinha era espaço garantido às cativas independente de origem étnica e tradição culinária o que não permite precisar a influência africana de muitos quitutes afro brasileiros LIMA 1999 CASCUDO 1964 alguns já levados de volta ao continente mãe e lá chamados de comida brasileira CASCUDO 1964 entendidas como pertencentes à culinária americana Ao contrário de dona Flor a cozinha não era escolha das negras escravas Não obstante esta atribuição era elemento amenizador da escravidão e até proporcionava alforrias Ser da cozinha poderia e pode ser ambíguo cabendo uma carga depreciativa ou enobrecedora Cascudo 1964 p 19 declara que algumas mulheres negras desabafavam dizendo Sou negra mas não sou da cozinha expressão que hoje encontra lugar em um reggae da banda Morrão Fumegante dizendo Quem sabe um dia eu saio da cozinha colocando a cozinha no campo semântico de inferioridade Inversamente ao significado depreciativo de cozinha dona Flor os candomblés tradicionais e a cultura iorubá através de Oxum dona dos 137 temperos em terreiros baianos apropriamse deste lugar como espaço de mando e território de realização pessoal A morte do pai de Flor Gil fez com que dona Rozilda sua mãe colocasse as filhas para trabalhar no intuito de manter as aparências do status visto que o relembrado Gil o tal molengas sem vontade deixou a família em sérias aperturas em precária situação AMADO 1966 p 64 Dona Rozilda queria as filhas em casa recatadas ajudando com o trabalho e com o comportamento a manter aquela aparência de conforto a afivelar aquela máscara de gente senão opulenta pelo me nos remediada e de boa educação AMADO 1966 p 71 As aparências a necessidade de aparentar certa fidalguia também estiveram presentes na Bahia dos vicereis com os seus fidalgos e burgueses ricos vestidos sempre de seda de Gênova de linho e algodão da Holanda e da Inglaterra e até de tecidos de ouro importados de Paris e de Lião FREYRE 2001 p 112 Os fidalgos da Bahia ostentavam todo este luxo e viviam em eterna dieta por falta de mantimentos e por viverem eternamente endividados São hábitos existentes numa Bahia contemporânea que ainda conserva o pensamento Prefiro comer ovo duro do que passar vergonha fazendo alusão ao culto às aparências e tendo a fome como contrapartida Os nobres do Pará no século XVII não levavam suas filhas às missas dominicais por falta de roupas adequadas FREYRE 2001 roupas de ver Deus por certo vestimentas para o momento especial a missa Males não sofridos pelas filhas de dona Rozilda Com as meninas de DF comida não era regrada e as roupas sempre elegantes feitas em casa por Rosália As vestimentas de ver Deus eram utilizadas constantemente 138 pelas pobretonas apesar dos sacrifícios e da vida de aparência burguesa que trabalhavam para se manter Sim eram elas as meninas com suas prendas sob a férrea direção de dona Rozilda as autoras daquele milagre de sobrevivência AMADO 1966 p 72 Enquanto a irmã de Flor agia junto à máquina de costura Flor mostrava seus dotes culinários aprendidos com sua tia Lita cozinhando para casas elegantes e depois abrindo a Escola de Culinária Sabor e Arte cacófoco erótico lembrado pelo narrador de DF através de Vadinho Escola de culinária Sabor e Arte repetiu Sabor e Arte Ah quero saborearte AMADO 1966 p 103 Apesar do jugo de sua mãe Flor gostava de cozinhar A quituteira amadiana não possuía insatisfação e recalques pela profissão pelo ofício aparentemente pouco nobre Se era a costura o forte de Rosália era a cozinha o fraco da menina mais moça nascera com a ciência do ponto exato com o dom dos temperos Desde pequena fazia bolos e quitutes sempre rondando o fogão aprendendo os mistérios da arte suprema com tia Lita uma exigente AMADO 1966 p 72 Ciência do ponto exato dom dos temperos novamente ecoam as vozes do povo baiano quiçá brasileiro presentes no referido texto amadiano Comumente ouvese na Bahia que alguma pessoa possui ou não mão boa para realizar determinada tarefa principalmente referente à cozinha Muitas crenças circundam os alimentos e sua preparação Costumase atribuir a uma visita inesperada a culpa por solar um bolo assando no forno ou ainda quando se estava preparando sua massa Querino 1922 p 45 observa 139 Somente o cozinheiro baiano possui o segredo de tornar uma refeição saborosa e por isto de fácil ingestão Talvez mais uma crença sendo Flor baiana e Querino um narrador do cotidiano da terra as palavras deterministas do narrador de DF sobre a relação da cozinheira com a cozinha achamse inseridas na realidade nãoficcional então representadas na narrativa amadiana Se há uma carga semântica negativa no fato de afirmar que Flor nascera com a ciência do ponto exato AMADO 1966 p 72 o ilá ou brado de Oxum rompe com a representação negativa da mulher na cozinha sempre em torno dos afazeres domésticos Conta o mito PRANDI 2001 que Oxum era responsável pelos alimentos sagrados desde o início dos tempos e que somente a ela era permitido cozinhar para os orixás A atribuição de cozinheira fazia de Oxum uma mulher detentora de poder e respeitada por tal empresa pois sem ela não haveria alimentação e a dinâmica do Axé energia sagrada estaria prejudicada Portanto percebese a cozinha enquanto elemento de valoração positiva fazendo da cozinheira o ator sintagmático RAFESTIN 1993 detentor de outros atores os paradigmáticos passíveis de serem cooptados Flor mesmo sendo uma cozinheira frequentava as altas rodas e não era depreciada por suas alunas eou clientes Os quitutes da mestiça garantiram sua sobrevivência ainda depois de casada com um marido irresponsável e descumpridor de suas obrigações financeiras Em alguns candomblés de Salvador dizse que as filhas de Oxum são as melhores cozinheiras e que Oxum é a responsável pela cozinha seus segredos e Axé Por isso no preparo dos alimentos sagrados tem que haver sempre uma iaô sua para que todo o ritual tenha andamento Também no candomblé 140 como nos mitos e no romance DF a cozinha dista do valor depreciativo relegado às mulheres da sociedade brasileira Em DF até Andreza de Oxum uma pobre cozinheira negra consegue atrair em torno de si personalidades como o poeta Godofredo Filho apaixonado pelo sarapatel da filha de orixá Não há como negar que embora havendo uma representação da cozinha como não depreciativa Flor e Andreza de Oxum encontramse numa sociedade que encara este território como face subalterna Da mesma forma acontece com o candomblé que apesar de ter suas especificidades está incluído numa sociedade maior a sociedade brasileira recebendo influências desta e interagindo Foi comentada a importância da cozinha na religião afrobaiana e mostrouse o quanto as cozinheiras de DF conseguem transpor este significado para suas vidas cotidianas sendo Flor apenas uma filha de Oxum e Andreza conhecida por ser filha iniciada deste mesmo orixá Quem participar de uma obrigação ou ritual sagrado do candomblé Mansu Bandu Kenke do Inquinaçaba poderá compreender melhor o significado afrobaiano da presença das mulheres na cozinha Em um destes rituais momento em que os animais sacrificados estavam sendo tratados ritualmente um filho de Oxum reclamou seu lugar naquelas tarefas dizendo Eu também sou iabá sou filho de Oxum posso tratar os bichos Aquele que reclamava seu lugar junto às mulheres nas tarefas feitas do Mansu Bandu era do sexo masculino entretanto reclamava seus direitos na cozinha por ser filho de um eledá feminino corporificava uma mulher Oxum Assim estaria segundo ele autorizado para aquelas tarefas apesar de homem pois era descendente mítico de um orixá feminino Por isso se sentia um pouco mulher e liberado para as tarefas femininas 141 A introdução da mestiça dona Flor no mundo da cozinha profissional afirma a semelhança da história amadiana com o cotidiano nãoficcional da Cidade do Salvador Segundo Brandão 1965 e Cascudo 1964 o catedrático de grego professor Luís dos Santos Vilhena confessavase horrorizado em ver que em 1802 as famílias abastadas mandavam muitos escravos de ganho para venderem iguarias nas ruas obtendo grande sucesso com os mocotós carurus vatapás mingaus pamonhas canjicas acaçás abarás acarajés arroz de coco feijão angus de coco etc Sucesso semelhante obtém Florípedes com as delícias afrobrasileiras e os doces da cozinha europeia e talvez a maior diferença esteja justamente no fato de Flor além de não ser escrava e não vender em tabuleiros ambulantes não ser de família abastada precisando dos proventos de suas receitas Quando se diz haver uma diferença que poderia interceptar as conexões os sinais de similitude não se fecham Cascudo 1964 não acredita que as famílias que utilizavam seus escravos de ganho eram abastadas pois se trata do período em que a família real se transferira para o Rio de Janeiro e muitos funcionários públicos daqui tiveram suas economias declinadas Na verdade assim como Flor as famílias estavam em decadência financeira Talvez na obra amadiana a cozinha continue guardando uma carga semântica negativa alimentando discursos antiamadianos que insistem em falar do pouco zelo do autor para com as mulheres seja com Gabriela do romance Gabriela Cravo e Canela 1989 Andreza de Oxum e Flor do romance DF todas donas de sortes parecidas representações de mulheres negras e mestiças mantendose somente com a arte de cozinhar Uma profissão menor 142 Entre os critérios de escolha das cozinheiras estava a aparência pessoal da escrava que poderia ser obrigada a servir na cama do senhor uma ordem dada com um simples olhar FREYRE 2001 Apesar da existência de alguns senhores que se apaixonavam por suas peças51 havia aqueles que apenas por regojizo perante sua culinária promoviam homenagens às fadas negras e até lhes davam alforria concedendo certos privilégios ficando o senhor bem perante alguns membros da igreja e satisfazendo a cozinheira que acabava ficando por ali mesmo após sua liberdade CASCUDO 1964 BRANDÃO 1965 QUERINO 1922 Os senhorios de áreas afastadas muitas vezes em momentos de regozijo concediam cartas de liber dade aos escravizados que lhe saciavam a intempe rança da gula com a diversidade de iguarias cada qual mais seleta quando não preferiam contemplá los ou dar expansão aos seus sentimentos de fi lantropia em alguma das verbas do testamento QUERINO 1922 p 24 Então a cozinha que inicialmente poderia ser martírio tornase elemento de cooptação do senhor como aconteceu com Gabriela manhosamente fazendo Nacib depender de sua culinária para os sucessos de seus negócios ou ainda Flor conquistando a alta sociedade soteropolitana sem ser inferiorizada A quituteira de DF frequentava os salões das festas para as quais cozinhava além de ser tratada como igual pelas madames em busca de seus ensinamentos e pratos apetitosos Com essas informações não cabem mais acusações ao autor que teria deixado personagens inferiorizadas por serem 51 Maneira como os escravos eram chamados por se tratar de mercadorias 143 cozinheiras Do autor comilão as personagens Gabriela Andreza e Flor recebem uma saudação acompanhada de cântico em honra da cozinheira que era convidada a comparecer à sala do festim e assistir à homenagem dos convivas QUERINO 1922 p 2425 Por um momento a negra cozinheira tinha seus quinze minutos de fama Tempo prolongado com Florípedes cozinheira e professora de culinária com escola povoada por moças e senhoras da nata da sociedade Novamente o narrador torna presentes experiências do autor existentes numa Bahia do século XX pois conforme Querino 1922 p 25 até as moças de família abastardas se exercitavam nos trabalhos culinários afim de mais tarde dirigirem sabiamente o arranjamento das refeições quotidianas ou o preparo dos finos mingaus das mesas de banquete De mãos dadas com a história Jorge Amado deixa de ser um simples comilão utilizandose das tradições culinárias baianas e das relações de trabalho em torno destas para incrementar a história de Dona Flor uma filha de Oxum posto que na obra as meninas ricas frequentavam a Escola da protagonista como as moças descritas por Querino Aproveitando o clichê a vida imita a arte na Salvador contemporânea nãoficcional temos mulheres cozinheiras conhecedoras como dona Flor dos quitutes afrobrasileiros que se tornaram destaques por seu sucesso de público e renda Algumas somente com o acarajé e o abará conseguiram notoriedade nacional como é o caso de Dinha Cyra e Regina do acarajé Dadá tornouse a cozinheira mais conhecida do Brasil uma personagem que pulou das linhas amadianas para a realidade Estes fenômenos são frutos da insistência da mulher negra em ganhar seu sustento com o saber e a criatividade ancestrais Sucesso garantido posto 144 que a Bahia encerra superioridade a excelên cia a primazia na arte culinária do país pois que o elemento africano com a sua condimentação requintada de exóticos adubos alterou profun damente as iguarias portuguesas resultando daí um produto todo nacional saboroso agradável ao paladar mais exigente o que excede a justificada fama que precede a cozinha bahiana QUERINO 1922 p 23 Porém os antecessores de Dinha Cira Regina Dadá e elas próprias possuem outra importante semelhança com as cozinheiras amadianas todas são filhas de orixá eou adeptas do candomblé tal Dona Olga do Alaqueto52 e a já citada Sambadiamongo53 E esta religião juntamente com as sociedades secretas foi a responsável por conservar os alimentos da culinária africana na mesa brasileira CASCUDO 1964 O próprio narrador faz questão de intercalar receitas sagradas com seu enredo colocando elementos desta culinária religiosa em festas e comemorações dos eventos sociais de Dona Flor pois a comida de Santo também é comida que gente come e principalmente Vadinho um filho de Exu orixá que come tudo que a boca come São muitos os exemplos de mulheres como Flor que conseguiram a autonomia financeira pelos dotes culinários doceiras quituteiras e principalmente baianas do acarajé As baianas com suas miçangas conseguem sustentar famílias enormes e em alguns casos os maridos viram meros ajudantes de suas esposas 52 Famosa Ialorixá que durante muito tempo se manteve com a cozinha ancestral 53 Ebome ou Ialorixá fundadora do Mansu Mandu Kenke do Inkinaçaba localizado no bairro de Pirajá em Salvador 145 O Azeite Num desperdício de comida ali se exibiam os quitutes baianos vatapá e efó abará e caruru moquecas de siri mole de camarão de peixe acarajé e acaçá galinha de xinxim e arroz de haussá além de montes de frangos perus assados pernis de porco posta de peixe frito para algum ignorante que não apreciasse o azeite de dendê pois como considerava Mi randão de boca cheia e com desprezo há todo tipo de bruto nesse mundo sujeitos capazes de qualquer ignonímia AMADO 1966 p 85 Assim aumenta nos rituais religiosos um de sejo nivelador por parte dos adeptos de subs tituir o dendê pelo azeite doce em expressão usual meu Santo não tem dendê ou meu Santo não leva dendê LODY 1992 p 12 Impossível negar que até na Bahia não deixa de haver quem considere a comida de azeite pouco nobre não merecedora de alimentar salões das chamadas classes privilegiadas pois o azeite sendo coisa de negro se transformaria em algo degradante às mesas nobres Fazer uma personagem declarar ser ignorante aquele que não apreciava azeitededendê à primeira vista parece apenas uma questão de escolha ou preferência por esta ou aquela culinária Contudo tratandose de Jorge Amado e do romance DF é maior o desejo de acreditar haver algo mais nas entrelinhas da comilança do mestre Mirandão Sem muito esforço percebese que há uma inversão de papéis sociais transcritos nas palavras de Mirandão há 146 todo tipo de bruto nesse mundo Para uma parcela do Brasil que se quer apenas branca seria ignorância e de péssimo tom a comida de azeite coisa de negros por isso menor comida de gente que fala de boca cheia como Mirandão Nesta cena não há alusão depreciativa qualquer pessoa irritada poderia perder a compostura e esquecer o mínimo da etiqueta recomendada durante a mastigação dos alimentos Realmente azeite é coisa de negro e o dendê foi trazido ao Brasil pelos traficantes de escravos LODY 1992 A marca negra na comida brasileira é determinada pelo dendê mas acima de tudo ser ou não ser do azeite é uma identidade um modo de vida uma religiosidade Lody 1992 em Tem Dendê Tem Axé deixa bem clara a oposição entre o negro e o nãonegro representada pelo fato de possuir ou não possuir azeite Em algumas religiões afro brasileiras quando não se fazem os rituais com o azeite é dito que só foram utilizadas coisas brancas nada de azeite pois o dendê teria o conteúdo maléfico a lembrança negra Desta forma algumas casas de religiões afrobrasileiras fazem questão de se denominarem Mesa Branca ou que só trabalham com coisas brancas que não são do azeite como forma de afirmar a realização de práticas apenas do bem Aí o maniqueísmo cristão já invadiu a seara negra Em contraposição a esse embranquecimento há os que afirmam Eu sou do azeite Não há orixá de mesa branca atribuindo aos embranquecedores o status de ignorantes como Mirandão em sua censura aos que não comem comida de azeite Por isso as palavras de Mirandão transformaramse em alegoria em representação da afirmação do azeite como comida de primeira linhagem 147 A alteridade do azeite na cena de Mirandão é reforçada visto que a comilança era uma festa anual em homenagem e retribuição aos orixás por graça alcançada pelo Major Tiririca ao ter sua esposa curada Então se era para afirmar a comida afrobrasileira por que o autor não inseriu uma festa ritual com todos os seus quitutes e cânticos Bom não há como adivinhar mas há uma possibilidade Desfazendo o hiato entre autor e narrador novamente lembramse as responsabilidades e atribuições de Jorge Amado junto ao candomblé Ogã Obá de Xangô autor da lei que proporcionou a liberdade de culto afro defensor do povodesanto seu povo e ele mesmo apesar de se declarar descrente Tais atribuições e compromissos poderiam limitar a descrição de certos rituais pertinentes somente aos iniciados eou iniciandos Na festa do Major Tiririca havia muitos pratos considerados sagrados comidas de santos orixás voduns e inquices Estas comidas também servem de alimentos aos seres humanos ora por fazerem parte de um ritual ou apenas como alimento sem conexão com o sagrado Comumente comemse em restaurantes pratos que para os candomblés são sagrados Nas ruas de Salvador a baiana do acarajé cartão postal mais constante da cidade compartilha e comercializa alimentos dedicados a Ogum Xangô Iansã e aos Exus efeminizados o acarajé de Iansã também servido a Padilha e Pombagira ao adicionar a pimenta o abará de Ogum e o de Xangô perdem o conteúdo sagrado ao não serem manipulados ritualmente As diferenças são estabelecidas na ausência ou presença de cânticos sagrados de recipientes apropriados na maneira de manipular as comidas Jorge Amado não nos revela estes segredos dos candomblés contudo a afirmação da identidade 148 permanece sem exclusão do elemento europeu pois na festa havia a comida sem azeite Assim sem os tambores as velas os cânticos danças e gestos específicos podese realmente afirmar que não havia um ritual sagrado na festa do Major Tiririca Mas há como assegurar que os alimentos não eram servidos ritualmente Em muitos lares da Bahia festas parecidas com a do Major são realizadas Um exemplo são os carurus dedicados aos Ibejis aos Erês ou a São Cosme e São Damião Em algumas festas mais preocupadas em atender o grande público além das comidas de azeite fazem a doçaria já incorporada aos pratos dos orixás crianças que como todos os pequenos adoram as guloseimas O respeito à diversidade e até às vontades alimentares do povo também acontece nas homenagens aos orixás como o Major Tiririca o fez ao colocar a doçaria conventual condenada por Mirandão Contudo respondendo à velha pergunta havia ou não a prática de um ritual na maneira de servir os alimentos durante a festa de Tiririca No romance não é mostrado o ritual realizado dentro dos candomblés com toda a encenação sagrada Não obstante um ritual é praticado na festa de Tiririca como nos carurus de Ibejis nas feijoadas de Ogum realizadas por fiéis não iniciados ou até pelos iniciados que transferem parte do culto para suas residências Antes de qualquer coisa deve ser lembrado que as religiões afrobrasileiras dependem de um espaço ou território sacralizado para realização de seus rituais e nem sempre as residências dos adeptos possuem todos os elementos sacros fazendo surgir um ritual às vezes menos completo por falta de local apropriado 149 Apesar de na cena da casa de Tiririca não se saber da existência de rituais secretos ocorre algo parecido com os intervalos das grandes festas públicas nos candomblés baianos Após os cânticos aos orixás o xirê as comidas sagradas são compartilhadas com o povo a distribuição de parte dos alimentos sagrados completa o Axé Várias autoridades do candomblé na Bahia dizem que é preciso dar comida primeiramente ao orixá mas também é necessário distribuir ao povo para que o Axé se fortifique para que as energias cresçam Então na festa do Major Tiririca como em vários rituais caseiros temse a presença da distribuição sagrada dos alimentos como forma de agradecimento e ampliação da energia Axé Desta forma Amado revela uma outra face da cozinha e insere o azeite no rol das grandes especiarias Se foi ele o primeiro a elogiar os traços negróides é também ele que em Tenda dos Milagres Gabriela Cravo e Canela e Dona Flor enaltece a comida de azeite sem desconsiderar a existência da cozinha europeia Basta lembrar que os quitutes de Gabriela enriqueceram Nacib que Pedro Archanjo fez fama com livro sobre culinária baiana tal como Querino na vida real e que Dona Flor desde solteira transformase em coluna financeira da casa apenas com seus dotes culinários Verificar os sinais da ancestralidade brasileira e as marcas das religiões afrobrasileiras na construção do enredo e das personagens foi a meta principal deste trabalho Subsidiariamente provouse que o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos é uma obra comprometida com a cultura e a identidade do povo baiano e brasileiro Temse uma obra 150 filiada a uma linha política FERREIRA 1986 p 653 à política da valorização da identidade brasileira Portanto o texto pode provar não se tratar de uma mera história de amor com toques de sensualidade e esoterismo O conhecimento de elementos da cultura brasileira e principalmente da mitologia dos orixás e de BabaEgum o culto aos ancestrais ficou demonstrado nas linhas e entrelinhas do romance ora analisado É preciso pensar numa nova leitura de Jorge Amado buscar a capacitação para enxergar o belo o maravilhoso e o fantástico que se apresenta também para além das leituras superficiais O embasamento para tais interpretações pode ser encontrado nas ruas da velha Cidade da Bahia nos candomblés de orixás nos cultos de BabaEgum nos salões de festas de umbanda e nos escritos antropológicos O primeiro passo deve ser a admissão do desconhecimento da causa ou do universo formador da cultura e das religiões afrobrasileiras Somente a assunção do desconhecimento pode levar à possibilidade de conhecer e fazer com que alguns pesquisadores retirem Jorge Amado do rol dos escritores considerados fáceis Amado não queria ter sido difícil e reduzir o acesso à sua obra Ele consegue superar as expectativas possui um texto de fácil encantamento e com cada centímetro de entrelinha aberto a uma profunda verticalidade Dona Flor e Seus Dois Maridos prova isto fazendo ecoar vozes formadoras da nacionalidade de costumes e religiosidade Há tudo isso claramente em Tenda dos Milagres romance posterior a DF mas em DF parece que o autor resolveu ser mais sofisticado ao mesmo tempo em que foi acessível são dois textos num só O primeiro texto é um link para um hipertexto acessado 151 com a senha correta Aberta a janela a navegação gira em sentido antihorário como no xirê no intuito de favorecer aos antepassados à ancestralidade Nesse sentido as representações coletivas de Oxum Exu Oxalá Xangô e dos BabaEgum foram identificadas na obra como construtoras do enredo Os conceitos de cozinha e o azeite traçaram uma nova possibilidade de leitura de questões encarceradas em discursos preconceituosos e guetistas Também algumas representações contemporâneas da nossa sociedade revelaram similitudes Na verdade os candomblés as mulheresdesanto e as grandes cozinheiras entre outras são reinvenções da ancestralidade e das mitologias narradas por entre as linhas de DF por isso as similitudes e as correspondências Não adianta aqui conjeturar uma Florípedes um Vadinho um Teodoro e ainda e até um negro Arigof sendo filhos de outros orixás senão aqueles dados pelo autor Mas certamente a mudança dos orixás donos das cabeças das personagens mudaria as atitudes destas eou em torno delas e consequentemente a trama da obra A partir de uma crítica literária comprometida com uma crítica da cultura cumpriuse o papel de desvendar alguns mistérios de Dona Flor e Seus Dois Maridos ou ao menos apontarlhe possibilidades de leitura No mínimo ficam a mensagem e o incentivo para ler Jorge Amado sempre olhando os links com a cultura mestiça e as religiões afrobrasileiras 153 REFERÊNCIAS AMADO Jorge Tenda dos milagres Rio de Janeiro Record 2000 Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Martins 1966 ARAÚJO Ubiratan Castro de Org Salvador era assim memórias da Cidade Salvador IGHB 1999 ARISTÓTELES A poética São Paulo Nova Cultural 1996 AUGRAS Monique De Iyá Mi a Pomabagira transformações e símbolos da libido In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p 1744 As religiões de origem africana no contexto brasileiro In O duplo e a metamorfose a identidade mítica em comunidades nagô Petrólpolis Vozes 1983a p 2354 Os modelos míticos In O duplo e a metamorfose a identidade mítica em comunidades nagô Petrópolis Vozes 1983b p 93182 BADINTER Elisabeth Um amor conquistado o mito do amor materno Tradução de Waltensir Dutra Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 154 BARROS José Flávio Pessoa TEIXEIRA Maria Lina Leão O código do corpo inscrições e marcas dos Orixás In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p103138 BARTHES Roland Aula Tradução de Leyla PerroneMoisés 7 ed São Paulo Cultrix 1996 BRANDÃO Darwin A cozinha baiana 2 ed Rio de Janeiro Letras e Artes 1965 CÂNDIDO Antônio et al A personagem de ficção São Paulo Perspectiva 1976 CARNEIRO Edison Candomblés da Bahia 5 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1977 CASCUDO Luís da Câmara A cozinha africana no Brasil Luanda sn 1964 CASTRO Yeda Pessoa de Falares africanos na Bahia um vocabulário afrobrasileiro Rio de Janeiro Top books 2001 DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Rio de Janeiro Ed Rio 1975 DERRIDA Jacques O outro cabo Coimbra Reitoria da Universidade Ed A Mar Arte 1995 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Tradução de Maria Adriana S Caldas Rio de Janeiro Fator 1983 FERRARA Lucrecia DAllesio As máscaras da cidade Revista USP São Paulo n 5 p 310 maio 1990 155 FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural do Collège de France Pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio 8 edição São Paulo Loyola 2002 FOUCAULT Michel A mulheros rapazes da história da sexualidade São Paulo Paz e Terra 1997 FREYRE Gilberto Casa grande senzala 45 ed Rio de Janeiro Record 2001 GREGERSEN Edgar Práticas sexuais São Paulo Livraria Roca 1983 LEITE Gildeci de Oliveira Tenda dos milagres identidade cultura ficção e história In SEMINÁRIO PERMANENTE DE PESQUISADORES BAIANOS 2003 Salvador LEPINE Claude Os estereótipos da personalidade no candomblé nagô In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p139164 LÉVI STRAUSS Claude A família In SHAPIRO Harry L Homem cultura e sociedade São Paulo Martins Fontes 1982 p 355380 LIMA Vivaldo Costa As dietas africanas no sistema alimentar brasileiro In CAROSO Carlos BACELAR 156 Jefferson Faces da tradição afrobrasileira religiosidade sincretismo antisincretismo reafricanização práticas terapêuticas etnobotânica e comida Rio de Janeiro Pallas 1999 p 319326 LODY Raul Tem dendê tem axé etnografia do dendezeiro Rio de Janeiro Pallas 1992 LUZ Marco Aurélio Agadá dinâmica da civilização africanobrasileira 2 ed Salvador EDUFBA 2000 MARTINS Editora Orelha In AMADO Jorge Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Martins Editora 1966 NIETZSCHE Friedrich Assim Falou Zaratustra São Paulo Martin Claret 2000 Genealogia da moral uma polêmica Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1999 PRANDI Reginaldo Mitologia dos orixás São Paulo Schwarcs 2001 PRANDI Reginaldo Conceitos de vida e de morte no ritual do axexê tradição e tendências recentes dos ritos funerários no candomblé In MARTINS Cléo LODY Raul Faraimará o caçador traz alegria Rio de Janeiro Pallas 2000a p 174 184 De africano a afrobrasileiro etnia identidade religião Revista USP São Paulo n 46 p 52 65 junago 2000b Deuses africanos no Brasil In Herdeiras do axé São Paulo Hucitec 1997 p 150 157 Exu de mensageiro a diabo Disponível em http wwwfflchuspbrsociologiaprandiexudiartf Acesso em 30 mar 2003 QUERINO Manoel A arte culinária na Bahia Salvador Progresso 1922 RAFFESTIN Claude Por uma geografia do poder São Paulo Ática 1993 RAILLARD Alice Conversando com Jorge Amado Rio de Janeiro Record 1992 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro São Paulo Cia das Letras 1995 RODRIGUES Núbia CAROSO Carlos Exu na tradição terapêutica religiosa afrobrasileira In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Faces da tradição afrobrasileira religiosidade sincretismo antisincretismo reafricanização práticas terapêuticas etnobotânica e comida Rio Janeiro Pallas Salvador CEAO 1999 p 239256 RUBIN Rosane CARNEIRO Maried Jorge Amado 80 anos de vida e obra Salvador Fundação Casa de Jorge Amado 1992 SANTOS Juana Elbein dos Os Nagô e a morte Petrópolis Vozes 1986 SCHOPENHAUER Arthur Metafísica do amor In Da morte metafísica do amor do sofrimento do mundo São Paulo Martin Claret 2001 p 77110 158 SEGATO Laura Inventando a natureza família sexo e gênero no Xangô do Recife In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p 4562 SEIXAS Cid O sumiço da santa síntese do romance urbano de Jorge Amado In Triste Bahia Oh Quão dessemelhante Salvador EGBA 1996 p 8393 SEIXAS Cid O jeito da gesta crioula Jorge Amado e o canto épico da mestiçagem In CONGRESSO DA ABRALIC 7 2000 Salvador SEIXAS Cid Cadernos de sala de aula três temas dos anos trinta Feira de Santana UEFS 2003 TAVARES Ildásio Candomblés na Bahia Salvador Palmares 2000 TAVARES Ildásio Nossos colonizadores africanos Salvador Edufba 1996 TRINDADE Liana M Salvia Exu poder e magia In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Olòórisá escritos sobre a religião dos orixás São Paulo Ágora 1981 p 110 VERGER Pierre Fatumbi Orixás Rio de Janeiro Corrupio 1998 159 GLOSSÁRIO Abará Bolinho feito de massa de feijão fradinho cebola e cama rão seco e cozido com azeite de dendê envolto em folhas de bananeira Seu formato não é redondo Possui uma base retangular com as partes superiores formadas por junção de quadro triângulos pouco regulares Esta figura é originada a partir da maneira como a folha da bananei ra é enrolada para envolver e guardar a massa do abará Enquanto a massa do acarajé é frita o abará é cozido na parte superior do cuscuzeiro Abiku Aquele que nasce para a morte Acaçá Bolinho feito de massa de milho branco ou vermelho co zido envolto em palhas de bananeira Geralmente o acaçá acompanha ou complementa outras comidas oferecidas aos diversos orixás e ancestrais Possui o mesmo formato do abará Acarajé Bolo de feito de massa de feijão fradinho temperado com cebola frito em azeitededendê Geralmente oferecido à Iansã e Exu sendo oferenda mais identificada com Iansã Apáoká A Jaqueira mãe de Oxóssi SANTOS 1986 Babalaô O adivinho sacerdote do Ifá no Brasil seria o sacerdote que tem autorização para usar o jogo de búzios contudo a reinterpretação brasileira deu estes poderes também ao Babalaorixá Pai de Santo e à Ialaorixá Mãe de Santo Ele o Babalaô é o pai do segredo Barraventos Momento que antecede o transe e que o médium é sacu dido eou desestabilizado pela entidade levando o mé dium a desequilibrarse Pode acontecer a incorporação logo em seguida ou não Chimba Castigo recebido por cometer alguma falta com o orixá inquice vodun ou caboclo Obarixá Na Bahia atribuição dada a Xangô e também a Oxalá Orixá Rei Ecodidé Um papagaio africano 160 Babalorixá Paidesanto Candomblé Religião afrobrasileira característica da Bahia Caruru Alimento feito à base de quiabos cebola azeitededendê e camarão Nos carurus de São Cosme e São Damião pos suem diversas outras comidas representativas dos orixás que são servidas conjuntamente Dono de sua cabeça O mesmo que o orixá regente o Eledá Ebó Sacrifício ou oferenda feita com determinada intenção Eledá Orixá dono da cabeça Equede Cargo hierárquico feminino espécie de auxiliar direta dos orixás voduns inquices a encarregada de cuidar dos participantes das danças possuídos pelas entidades LODY 1992 Feitasnosanto O mesmo que iniciadas Filhasdesanto Adeptas de religiões afrobrasileiras Ibejis Orixás crianças Iaô O iaô ou a iaô do camdomblé originalmente significa a esposa do orixá que no Brasil confundese com filho ou filha do orixá A denominação esposa serve para o sexo masculino e feminino e não possui relação alguma com possessão sexual Iemanjá No Brasil orixá Rainha do Mar Ifá Oráculo advinhatório e a própria entidade patrona do oráculo Orunmilá Babá Ifá significa Orunmilá Pai do Segredo Ilá Brado dos orixás que identifica sua presença Ilê Axé Opo Afonjá Terreiro de Candomblé famoso por seu tradicionalismo situado em Salvador Bahia no bairro São Gonçalo do Retiro e atualmente dirigido por Mãe Stella de Oxóssi Inquice Equivalência da palavra orixá dos Terreiros nagô Ketu nos Terreiros de Angola Irmão de cabeça Pessoa que possui o mesmo orixá inquice ou vodum de outro o irmão independente de serem filhos do mesmo terreiro ou casa de axé Iyá Mãe Iyá Mi Oxorongá As Grandes Mães Ancestrais 161 Juntó Na Bahia é o nome dado ao segundo orixá da pessoa Por exemplo alguém pode ser de Xangô com Ogum portan to Ogum é o Juntó desta pessoa Mansu Bandu Kenke do Inquinasaba Terreiro de Candomblé da Nação Angola situado na Ci dade do Salvador no bairro de Pirajá Este Terreiro foi dirigido e fundado por Edith Apolinária de Santana Sambadiamongo no Candomblé a referida Ebome foi iniciada no BateFolha mais tradicional Terreiro de An gola do Brasil Nanã Orixá feminino e uma das esposas de Oxalá Obá de Xangô Um dos ministros da corte de Xangô Obatalá Senhor do Pano Branco um título de Oxalufã Obi Fruta usada em oferenda aos orixás inquices e voduns e pode ser branca ou vermelha de duas ou quatro divisões Ogã Sacerdote que não recebe orixá e possui variadas funções desde músico sagrado até a responsabilidade do sacrifício de animais Apenas pessoas do sexo masculino podem ser ogãs Ogum Orixá da Guerra ferreiro deus do fogo artificial irmão mais velho de Exu Oiá Equivalência de Iansã deusa dos raios e uma das mulhe res de Xangô Olotoju Awo Omo Um dos títulos de Oxum a que olha e cuida de todas as crianças Opelê Também chamado de Opelê Ifá sendo o principal objeto do Oluô É uma corrente contendo frutos contas búzios e demais complementos LODY 1992 p 115 Tratase de um oráculo adivinhatório Ori Cabeça Oriki Reza Texto sagrado que relata características e feitos dos orixás LODY 1992 p 115 Orixá Categoria de divindades dos Yorubás genericamente também dos Nagôs São Ligados à vida e à natureza Ocu pam diferentes patronatos recebendo cultos específicos coerentes com suas funções de mando e poder LODY 1992 p 115 Orunmilá Babá Ifá Deus do Oráculo Ifá Osetuá Entidade filho de Oxumum Exu 162 Oxóssi Orixá caçador representado com arco e flecha O prove dor do alimento e da família Odara Além de significar bom bonito esplêndido muito bom Também é o nome de um Exu Oxum Orixá deusa dos rios Padilha Exu feminino no Brasil Pessoasdosanto Gente de candomblé ou de outra religião afrobrasileira apenas com os ritos de iniciação Pessoasfeitasde santo Iniciados no candomblé Pombagira Exu feminino no Brasil Quizila Tabu interdição religiosa a exemplo de não poder co mer abóbora para quem é de iansã ou amendoim para quem é de oxóssi repugnância antipatia CASTRO 2001 p 329 Samba Inquice da nação Angola Tambor da Mina Religião afrobrasileira originada do Recife Umbanda Religião afrobrasileira que possui influências dos orixás africanos do kardecismo do cristianismo e de espíritos ameríndios Urucubaca Na Bahia é sinônimo de má sorte Urucubaca Má sorte azar CASTRO 2001 Vatapá Alimento afrobrasileiro feito de farinha de trigo cama rão cebola e outros ingredientes Encontrase neste ali mento as representações negras ameríndias e europeias Vodum Divindade dos Fon semelhante aos orixás LODY 1992 p 118 Xangô Deus guerreiro herói dos Yorubá LODY 1992 p 118 Orixá da justiça e no Brasil também é o orixá do dinheiro Xangô O Religião afrobrasileira originada do Maranhão Xirê Cânticos rituais aos orixás Yalodê Um título de Oxum maior entre as mulheres Formato 150 x 210 mm Fonte Minion Pro 12 Miolo papel Polén Soft 80 gm2 Capa papel supremo 250 gm2 Impresso novembro 2014 Sobre o autor Gildeci de oliveira Leite Mestre em Letras e Linguística UFBA e Especialista em Educação ABEC Professor da Universidade do Estado da Bahia UNEB em Seabra Leciona Literatura Brasileira e Baiana Editor da Seara Revista Virtual wwwsearaunebbr Pesquisador em literatura e cultura baianas Publicou artigos em periódicos especializados e trabalhos em anais de eventos Possui capítulos de livros publicados e um livro virtual wwwedunebunebbr ISBN 9788578871475
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Texto de pré-visualização
Gildeci de Oliveira Leite JORGE AMADO da ancestralidade à representação dos orixás JORGE AMADO Universidade do Estado da Bahia UNEB Lourisvaldo Valentim da Silva Reitor Maria Nadja Nunes Bittencourt Diretora da Editora Conselho Editorial Atson Carlos de Souza Fernandes Jose Bites de Carvalho José Cláudio Rocha Liege Maria Sitja Fornari Ligia Pellon de Lima Bulhões Luiz Carlos dos Santos Narcimária do Patrocínio Luz Sandra Regina Soares Wilson Roberto de Mattos Suplentes Diego Gervásio Frías Suarez Gilmar Ferreira Alves Juracy Marques dos Santos Leliana de Souza Mariângela Vieira Lopes Miguel Cerqueira dos Santos Valdélio Santos Silva Gildeci de Oliveira Leite JORGE AMADO da ancestralidade à representação dos orixás 2ª Reimpressão EDUNEB Salvador 2014 2012 Autor Direitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão em forma idêntica resumida ou modificada em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma Depósito Legal na Biblioteca Nacional Reimpresso no Brasil em 2014 Ficha Técnica Coordenação Editorial Ricardo Baroud Coordenação de Design Sidney Silva Editoração Eletrônica e Capa CVY Consultoria e Empreendimentos Ficha Catalográfica Sistema de Bibliotecas da UNEB Editora da Universidade do Estado da Bahia EDUNEB Rua Silveira Martins 2555 Cabula 41150000 Salvador BA editoralistasunebbr wwwunebbr Leite Gildeci de Oliveira Jorge Amado da ancestralidade a representação dos orixás Gildeci de Oliveira Salvador EDUNEB 2012 164p ISBN 9788578871475 Contém referências 1 Amado Jorge 19122002 História e crítica 2 Ficção brasileira CDD B8693 Laroiê Exu Ìbà rabo mo juba Elegbara mo juba Alaketu mo juba Barabô Iya mi axexê Baba m i axexê Olorum mi axexê Bogbo axexê tinu ara mi Kintoo bo orixá aiye Babá Alapalá Ba Mi ô Babá Oju Onilê Ba Mi ô Oxum Muiwa Ba Mi ô Ogun Toshi Ba Mi ô Xangô Ba Mi ô Ogun Ba Mi ô Dedico este livro A minha mãe Oxum E nas águas da ossá Oxum se transformou num peixe Mas a memória de sua beleza ficou inscrita Em cada um dos seixos polidos por seus pés A beleza de Oxum Ficou para sempre nos otás Quando as águas estão altas na lagoa Oxum o peixe nada para as bordas da ossá E ali junto aos seus otás Rememora vaidosa sua beleza PRANDI 2001 p 191 o autor avisa a todos que nenhum vivente aqui nesta obra de ficção se encontra retratado Quis ele fixar apenas aspectos do viver baiano Orelha In AMADO Jorge Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Martins 1966 Se por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino exceto uma é a disciplina literária que deveria ser salva pois todas as ciências estão presentes no monumento literário Barthes 1996 PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO O livro de Gildeci de Oliveira Leite me surpreende pela originalidade e ousadia em suas interpretações sobre a obra de Jorge Amado especificamente o livro Dona Flor e Seus Dois Maridos A escolha não é aleatória mas é estrategicamente importante para marcar a presença da weltanschauung a visão de mundo afrobaiana num dado momento da obra do afamado autor Jorge Amado poderia parafrasear o exministro da Educação Portella durante a abertura 19791980 que proferiu a frase que entrou para a história não sou ministro estou ministro e ter dito eu estou no candomblé mas não sou do candomblé Isto porque já havia constituído sua carreira literária como escritor engajado comprometido com o Partido Comunista e já ter seus livros traduzidos em várias partes do mundo por assim dizer quando então começou a frequentar mais assiduamente o terreiro dirigido por Mãe Senhora a Iyalorixá Oxun Muiwa Iyanasso da tradicional linhagem Axipa O Partido Comunista de então totalitário stalinista não admitia outras diferenças sociais senão as classes a luta de classes visando o poder de Estado Todavia através do viés ideológico de esquerda admitido de promover o popular o candomblé passou a participar das suas criações literárias e ele próprio se envolveu com o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá ao ponto de receber o título de Oba Arolu um dos doze ministros de Xangô que compõem singularmente aquela casa tradicional Esse envolvimento para uns foi motivo de admiração para outros no entanto suscitou e atiçou preconceitos patrulhas ideológicas a ponto de depois de Dona Flor e Seus Dois Maridos como observa Gildeci no livro posterior Tenda dos Milagres falando através do personagem Pedro Arcanjo Oju Oba o autor tenta explicar seu posicionamento estou mas não sou isto é afirmava continuar materialista e devotado as lutas populares o que justificava sua participação no candomblé promovendo uma cultura do povo Por sua vez Gildeci tomou as dores da crítica a esse prestigiado escritor baiano que não deveria nem poderia ser atacado e sofrer por quem desejaria vêlo cair do pedestal Então Gildeci escolheu o caminho original capaz de valorizar a sua obra exatamente por se basear na cosmogonia dos Ilê Axé casa de axé como denominava Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi fundadora do Ilê Axé Opo Afonjá A pressão da censura de uma intelligentsia caracteriza damente marcada pelos preconceitos eurocêntricos fez com que os aspectos da cultura negra na criação literária fossem colocados mais ou menos disfarçadamente É aí então que entra Gildeci que compreendendo a erudição a sofisticação a riqueza milenar da civilização africana reposta na Bahia escolhe fazer emergir integralmente esses valores ora expressos ora latentes na obra do grande escritor No primeiro capítulo desenvolve os aspectos da cosmogonia referente ao orixá Oxun e a relação com a construção da personagem Dona Flor demonstrando os conhecimentos míticos capazes de qualificala como uma omo Oxun filha de Oxun e então relacionar com a dinâmica da narrativa No segundo capítulo referese ao significado de egun e ao orixá Exu na construção do personagem Vadinho Também aqui ele demonstra aspectos da cosmogonia que sustenta o desenvolvimento da narrativa que envolve o personagem e outros coadjuvantes que têm também suporte nas relações abstraídas da constelação dos orixás No terceiro capítulo referese a presença da culinária afrobaiana e no valor do azeite de dendê Valendose da personagem de Dona Flor e de seu orixá Jorge Amado enaltece a culinária afrobaiana desdobrada dos terreiros e que também caracteriza a identidade cultural de um povo Não podemos esquecer de deixar de mencionar que no Congresso Afrobrasileiro de 1935 organizado por Edison Carneiro a comunicação de Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi foi sobre a culinária litúrgica a comida sagrada que constitui as oferendas que promove a circulação de axé e sustenta o poder das comunidades religiosas Depois nas referências bibliográficas nós percebemos o quanto Gildeci se armou para ter bala na agulha e enfrentar o mundo acadêmico e a intelligentsia preconceituosa em geral com orgulho e galhardia que juntamente com seu estilo agradável e escorreito compõem o belo e eficiente trabalho Só posso me congratular e louvar o aparecimento de mais um jovem intelectual preocupado em colaborar a manter o valor profundo da originalidade e singularidade da identidade baiana em meio ao contexto nacional ODARA Ipitanga 29062012 Marco Aurélio Luz PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO A Representação dos Orixás e da Ancestralidade em Dona Flor e Seus Dois Maridos de Jorge Amado Em dezembro do ano de 2003 participei com muito interesse e prazer da defesa da dissertação de mestrado em Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura de Gildeci de Oliveira Leite no auditório do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia Brasil A dissertação intitulada A Representação dos Orixás e da Ancestralidade em Dona Flor e seus Dois Maridos agora se transforma em livro Na pósgraduação o autor teve que desafiar os leitores da obra do insigne escritor brasileiro Jorge Amado leitores que tinham certa dose de pessimismo de equívoco e de preconceito mostrando que não é um equívoco trabalhar aspectos da religiosidade chamada de afrobrasileira numa história de amor e sexo Pois o romance de Jorge Amado é abordado avaliado no seu justo valor não é coisa para dar risada é coisa séria é coisa que descobre o nosso universo mítico cf p 21 Gildeci de Oliveira Leite demonstrou também o seu interesse pelos estudos afro no Brasil o que permitiu uma troca frutífera de conhecimentos entre ele e eu ao longo dos últimos anos Há três motivos principais no interesse despertado pela temática dos orixás e da ancestralidade O primeiro relaciona se com uma abordagem pioneira e inédita da questão do duplo e da metamorfose tratada de maneira tão breve em trabalhos de sociologia psicologia literatura antropologia e de filosofia quando aplicada à questão da herança africana no Novo Mundo O segundo está estreitamente vinculado com a questão da simbologia que também é tratada sob vários enfoques na literatura brasileira sobre o tema Notese aqui que dentro do mundo tão complexo relatado por Jorge Amado o autor do presente livro soube demonstrar que o simbolismo de que se trata não se corresponde com os cânones ocidentais senão que simplesmente é fruto de uma resistência contínua prolongada O terceiro motivo emana da atualidade do tema apesar da grande repressão que sofreram as religiões de origem africana num país como o Brasil Apesar da mutilação das imagens de Exu nas igrejas pelos jesuítas um processo de resistência vem se desenvolvendo até os dias de hoje Como africano mais especificamente beninense não posso ficar indiferente ao trabalho desenvolvido nas próximas linhas deste livro por tocar aspectos fundamentais da cosmologia dos voduns isto é das divindades do meu país de origem O pano de fundo da dissertação é a questão do duplo do simbolismo do meio das cores dos números a questão da androginia da ambiguidade da liberdade sexual do travestismo do gênero a relatividade do bem e do mal a mestiçagem tudo envolvido na trama do mito dos orixás principalmente o de Exu divindade padroeira das encruzilhadas dona da fecundidade de muita sabedoria e outros atributos As diferentes metamorfoses de Exu ou mais especificamente do Lègba beninense com os seus adereços encarnado em Vadinho nas Pombagiras nas Maria Padilhas em Dona Flor e seus Dois Maridos são estudadas com o maior cuidado possível no capítulo 2 O tema da exclusão recíproca também tem destaque Existe uma espécie de ação versus reação dentro do mito Se os homens excluíram Oxum das decisões sobre os destinos do mundo ela os excluiu das decisões sobre a continuidade do universo através da infertilidade da mulher cf p 38 A culinária significa poder e ampliação de território a não subserviência se opondo então ao conceito ocidental de maternidade à visão positivista europeia dominante Resumindo o trabalho de Gildeci sem dúvida apoiado numa interessante bibliografia sobre pensamento social do Brasil e sobre estudos culturais e literários enriquece o tema do diálogo intercultural ÁfricaAmérica é importante nas ciências humanas e sociais contemporâneas porque é instigante permite a multidisciplinaridade e o leitor desfrutará com deleite de cada um dos temas abordados a partir do livro de Jorge Amado Por isso o livro é uma referência fundamental para quem incursiona na temática do africano e seus descendentes no processo de formação da nacionalidade brasileira Não posso concluir esta apresentação sem afirmar E nõ wa mε nu co bö e nõ do gbe tõ mε nós fazemos coisas para o nosso próprio interesse porém recebemos os agradecimentos adágio beninense que se refere à importância de qualquer ato ou gesto com o fim de beneficiar não só o autor do ato ou gesto mas também uma série de pessoas envolvidas com a ideia de crescimento intelectual material e espiritual Isto quer dizer que haverá muitos bebedores de conhecimentos a partir da fonte aberta pelo Gildeci sobre a ancestralidade negra do povo brasileiro Realmente o autor nos proporciona um estudo valioso no longo caminho ainda a ser trilhado na valoração das nossas origens africanas Parabéns e muito sucesso Prof Dr Hippolyte Brice Sogbossi Filólogo e Antropólogo Universidade Federal de Sergipe SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 21 ORA IÊ IÊ Ô OXUM E FLOR DUAS MULHERES DUAS AÇÕES 35 Da maternidade e da felicidade conjugal 35 Um passo atrás um salto à frente dos tempos de solteira da passagem ao casamento da poliandria 50 Da androginia da divisão do trabalho da autoridade no lar da força das Mulheresde Santo 61 Da alegoria do amor da malandragem masculina 69 Da Umbanda e da Pombagira 75 UM EXU VADINHO 87 Situando Exu Vadinho uma Entidade 88 O Carnaval a morte o travestirse e a mandioca símbolo fálico 96 Das qualidades ou categorias do Exuegum Vadinho das iniciações de Vadinho do Enugbajiró a boca coletiva as fronteiras do nome de Vadinho 105 A palavra de Egum seu poder 112 Voltando às ações de Exu com Vadinho em vida 114 Feitos do Exu Vadinho 117 A COZINHA E O AZEITE 135 As Faces da Cozinha lugar de mulher lugar de submissão e de liberdade 135 O Azeite 145 REFERÊNCIAS 152 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 158 GLOSSÁRIO 161 21 APRESENTAÇÃO Uma pergunta que não se calou durante o curso de Mestrado foi o que há de influência das religiões afrobrasileiras no romance Dona Flor e Seus Dois Maridos AMADO 1966 Muitos achavam e ainda acham um equívoco trabalhar aspectos da religiosidade afrobrasileira numa história de amor e sexo Os leitores estão acostumados a ouvir estas e outras opiniões desfavoráveis a respeito do romance e da obra de Jorge Amado Coisa para dar risada O equívoco e o preconceito dessas pessoas fortaleceram a vontade de provar o contrário Ficou corroborada a decisão de mostrar a mitologia afrobrasileira na argamassa da obra além de afirmar a filiação de Jorge Amado ao povo negromestiço e à cultura negromestiça tidos por ele como matriz da identidade brasileira Nem só o branco nem só o negro os dois ao mesmo tempo o mestiço o afrobrasileiro o Candomblé o Xangô1 o Tambor de Mina2 a Umbanda3 o europeu e o africano também o indígena este é o mestiço brasileiro entendido por Gilberto Freyre e na literatura por Jorge Amado sem a proposta de exclusão negra propagada pelo Estado Brasileiro Voltando a falar sobre a presença da mitologia afro brasileira esta norteou os acontecimentos da obra pois guia 1 Religião afrobrasileira do Recife 2 Religião afrobrasileira do Maranhão 3 Religião afrobrasileira dita por Jorge Amado a mais brasileira de todas apud RAILLARD 1992 p 91 22 as ações das personagens que juntamente com o enredo são os objetivos do romance CÂNDIDO 1976 Segundo os antropólogos e iniciados em religiões afrobrasileiras o filho de determinado orixá inquice ou vodum recebe influências de seu pai ou mãe espiritual e das outras divindades que co habitam a cabeça deste indivíduo Somente na ficção pode ser encontrada uma filha de Oxum destoante das características de sua mãe eou das passagens míticas que explicam este orixá Jorge Amado brinca com o leitor ao demonstrar conhecimento de ritos mitos e procedimentos principalmente do Candomblé onde possuía as responsabilidades de Ogã e o alto posto de Obá de Xangô ou como é dito na Bahia de Ministro do Rei Xangô As brincadeiras de Amado permeiam campos semânticos como o maravilhamento o didatismo e até a ironia para com aqueles menos aptos a perceberem a intensa presença da liturgia afrobrasileira em Dona Flor e Seus Dois Maridos O sarcasmo amadiano também pode ser lido como um alerta alguns intelectuais vivendo no Brasil e às vezes até na Bahia conhecem várias mitologias dominam a Grécia distante mas desconhecem o nosso universo mítico Não se pretende aqui determinar as preferências de quem quer que seja Contudo Jorge Amado como marxista e observador da vida popular baiana preferiu falar do seu povo seus costumes e sua fé pois o texto amadiano se instaura como diálogo intertextual com o substrato popular de uma civilização nascida na Bahia os mitos e tradições dos descendentes de príncipes e súditos africanos trazidos como escravos SEIXAS 2003 p 17 Certamente experiências aprendidas pelo menos desde os 15 anos de idade quando 23 conheceu o paidesanto Procópio líder da casa espiritual que mais tarde lhe deu o primeiro título no Candomblé Ogã RUBIN CARNEIRO 1992 O citado Babalaorixá destacouse na resistência contra a perseguição aos terreiros de Candomblé da Bahia e no romance Tenda dos Milagres recebeu justa homenagem Falar do povo e estar junto ao povo eram normas de conduta dos marxistas da geração de Jorge Amado e após a cisão do Partido Comunista do Brasil continuou sendo a orientação da agremiação dirigida por João Amazonas homenageado pelo escritor em Seara Vermelha Ao apresentar uma comunicação4 ao Seminário Permanente de Pesquisadores Baianos da Fundação Clemente Mariani da qual o autor é o mesmo deste trabalho na oportunidade o doutor Ubiratan de Araújo Castro então coordenador da mesa esclareceu a plateia sobre o fato de este comportamento de Amado estar diretamente conectado aos marxistas de sua época O interesse pelas crenças populares é literalmente explicado em Tenda dos Milagres quando o personagem Fraga Neto interroga o Mestre Pedro Archanjo sobre seu materialismo e sua contraditória frequência aos Candomblés A reposta do Mestre foi romper com as crenças populares seria apoiar os opressores do Candomblé e do povo pois mesmo já descrente preferia estar ao lado dos menos favorecidos e contra aqueles que o oprimem Na perspectiva de estar ao lado do proletariado o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos talvez não se encaixe na categoria dos engajados politicamente como por exemplo Tenda dos Milagres apesar de ambos 4 O Título da comunicação foi Tenda dos Milagres identidade cultura ficção e história apresentada em 11 de setembro de 2002 no Seminário Permanente de Autores Baianos da Fundação Clemente Mariani 24 pertencerem ao período inaugurado por Pastores da Noite em 1964 quando aparentemente a luta de classes deixa de ser o tema principal do escritor Com certeza nessa nova fase o Partido não é mais a solução dos problemas ao contrário do que apontaram os destinos de Seara Vermelha 1987 romance de 1946 Pedro Archanjo apesar de ser um libertário não é do PC e em Dona Flor o engajamento parece desaparecer por inteiro Será No período compreendido entre 1995 e 2000 graduandos em Letras da UFBA entre eles o autor deste livro ouviam de professores o quanto Jorge Amado enriqueceu sua escrita transportando o engajamento para as entrelinhas Nos seminários e semanas acadêmicas feitas pelo Diretório Acadêmico Jorge Amado ou até em aulas obrigatórias do curriculum Amado era um exemplo sempre citado por um pequeno número de docentes que o admirava A inquietação em relação às palavras de alguns mestres partia também de um jovem de classe média baixa e oriundo de movimentos sociais de esquerda nos quais era comum ouvir dizer que Jorge Amado havia traído a causa e que havia passado para o outro lado Ao mesmo tempo em que as palavras dos docentes geravam um inquieto entendimento de que os professores poderiam estar desconsiderando a necessidade da propaganda do Partido na obra de Amado eram vistos com adoração o Candomblé e o povodesanto descritos na obra do mais importante escritor brasileiro da contemporaneidade Mas será mesmo que falar de algo discriminado é uma espécie de engajamento Sim A presença das liturgias afro brasileiras na obra é um fato neste romance Consequente mente há uma defesa deste culto portanto uma espécie de 25 engajamento A resistência não se dá como em Tenda dos Mi lagres em Dona Flor somente o belo se faz advogado da mi tologia afrobrasileira Não há discursos brigas ou disputas de espaço em prol do Candomblé eou do povo negromestiço o que existe é uma apropriação desta e de outras liturgias afro brasileiras para construir o romance Esta apropriação não pode ser percebida a olho nu fazse necessária uma convivên cia com estes conceitos uma práxis afrobrasileira A necessidade dessa práxis faz recordar questionamentos do antropólogo Vivaldo Costa Lima quando em visita à biblioteca particular deste no ano de 2001 ele interpelou sobre a relação do estudante com o Candomblé Ao saber que não era iniciado que não tinha passado por todos os rituais de iniciação mas que se tratava de frequentador curioso e atento o pesquisador então disse o quanto isso poderia facilitar as coisas pois aprender sobre Candomblé em tão pouco tempo somente com as leituras livrescas seria impossível Talvez aí um dos motivos de uma série de malentendidos para com a recepção da obra amadiana O texto anunciado como literatura fácil tornase complexo quando se busca entendê lo em suas entranhas Em Amado o fácil e o complexo se misturam pois Dona Flor e Seus Dois Maridos é um livro de fácil entendimento Para os conhecedores da liturgia negro brasileira todavia tornase complexo um brinde de Orunmilá Babá Ifá deus do oráculo no Brasil conhecido como jogo de búzios o grande adivinho o grande Babalaô O exercício ou a metodologia dessa leitura imbuída da religiosidade afrobrasileira principalmente o Candomblé e a Umbanda passa necessariamente por imitar a adivinhação ancestral trazida ao Brasil e aqui transformada em jogo de búzios Os orikis que explicam passagens das vidas dos orixás 26 e que servem como aviso e orientação aos consulentes do jogo de búzios são parte do lastro nesta prática de literatura comparada na busca arqueológica das prováveis fontes do enredo de Dona Flor e Seus Dois Maridos As histórias contadas pelas tias velhas também fazem parte do lastro teórico conceptual explicando acontecimentos do enredo do romance e colocando lado a lado a mitologia sagrada e a obra literária Algumas histórias foram acompanhadas com prazer numa jornada por terreiros de Candomblé e Umbanda em conversas com pessoasdesanto5 e até com entidades Inicialmente e durante muitos anos não aconteceu o que de forma sistemática poderíamos chamar de pesquisa Ocorreu uma série de experiências de homem de fé adepto e filho dos orixás Até o ano de 2000 não houve a preocupação de buscar dados e informações Muitas informações foram conseguidas em obrigações sagradas conversas nos intervalos dos xirês durante a degustação das comidas rituais ou nas consultas ao Jogo de Búzios Tudo tivera início em 1996 com a obrigatoriedade da construção de um projeto como avaliação da disciplina Metodologia da Pesquisa da graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia UFBA A leitura entusiasmada de Dona Flor pelas ruas da Cidade da Bahia trouxe o encantamento necessário para um trabalho que mais tarde seria amadurecido Foi é e sempre será o maravilhamento o mágico dos saberes ancestrais responsável por levar às observações que fazem o espectador respeitoso aprender a ouvir olhar e pouco perguntar um preço alto para os adeptos do Candomblé pois 5 O mesmo que iniciado no Candomblé 27 esta é a forma de aprendizado A interação deve acontecer com poucas perguntas ou nenhuma A regra é sempre observar observar e observar por isso o segredo ritual foi aqui respeitado Tudo que foi dito é o que poderia ter sido dito Por conseguinte este livro visa demonstrar as coisas ditas nas linhas e entrelinhas do texto amadiano mostrando que o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos também é uma obra de afirmação de costumes brasileiros Oxum e Dona Flor são o foco principal para uma proposta que pretende demonstrar a afinidade entre o orixá e a personagem filha iniciouse logo por algo que aparentemente só destoa A excelência da maternidade de Oxum e a incapacidade procriadora de Flor são colocadas em cheque Como é que uma filha de Oxum deusa da maternidade poderia ser infértil Se nesse momento Flor parece fugir das características de sua mãe espiritual o enredo e a mitologia nos abrem sinais de semelhanças Buscando a analogia como ferramenta temse o mito de que Oxum torna as mulheres estéreis em represália aos homens que excluíram a entidade das decisões no início dos tempos O mito deixa evidente a preocupação masculina em ter filhos para propagar suas riquezas e seu nome Vadinho primeiro marido de Flor também possuía o ideal do guerreiro propagador da espécie ideal este fracassado Apesar de ter filhos ser da vontade da personagem Flor seu destino foi a esterilidade e o fado de Vadinho não ter herdeiros Estes fatos levaram à defesa da ideia de que o arquétipo Oxum agia nas entrelinhas do romance contrariando as vontades de sua filha e vingandose do mulherengo Vadinho Assim como os orixás masculinos não tiveram filhos por impedimento 28 de Oxum Flor não deu filhos ao jogador Vadinho acabando ali o reinado do gigolô Mesmo Flor tendo agido de maneira destoante de seu orixá os acontecimentos foram característicos de ações de Oxum O arquétipo desta entidade guiou o enredo A mitologia africana no Brasil conta que Oxum criou os filhos de Oiá mas para Flor a vontade de criar um provável rebento de Vadinho seria uma ação de impotência Apesar de alguns aspectos destoantes de Oxum Flor contraria ditos machistas de Schopenhaeuer sobre a finalidade do casamento ao não ter filhos e conseguir a felicidade conjugal Agora o arquétipo Oxum se aproxima da personagem afinal ela é a mais sedutora das mulheres e exerce a sexualidade desconsiderando o ideal ascético ou as proibições judaicocristãs criticadas por Nietzsche rejeitadas por Vadinho e aceitas por Teodoro Madureira o segundo marido da professora de culinária A preservação dos preconceitos cristãos em relação aos prazeres da cama por parte de Teodoro contribuiu para o surgimento do triângulo amoroso No entanto não houve um planejamento da filha de Oxum os acontecimentos levaram na a este destino pois o arquétipo do orixá de sua cabeça teve vital importância por guiar o enredo Apesar de não ser a responsável direta pela formação do triângulo amoroso Flor já demonstrava sinais da liberdade sexual uma das características das grandes mães ancestrais personalizadas em Oxum e no Brasil atribuídas aos Exus efeminizados as Padilhas e Pombagiras A decisão de entregar se a Vadinho para conseguir a liberdade sem dúvida denota altivez da personagem além de possuir estreita ligação com o mito em que Oxum se deita com Exu para conseguir de Oxalá o direito ao Jogo de Búzios Vale lembrar que Exu é o orixá de 29 Vadinho e Oxalá é o orixá de Teodoro Tanto no mito quanto nesta cena que antecede o casamento de Flor o ato sexual foi a resolução das demandas A moral judaicocristã perde espaço na obra e mesmo sem planejamento Flor amplia suas fronteiras conquistando seu território poliândrico à maneira dos Himalaias com todos os homens numa mesma casa diferente da Nigéria onde as esposas circulam de um lar para o outro tal como aconteceu a Rosa de Oxalá no romance Tenda dos Milagres Não há como negar o caráter andrógino de Flor provedora do sustento da casa mas também de Gabriela e de Rosa de Oxalá Tentando conectar a androginia de Flor com a liturgia negra e com a ancestralidade do povo brasileiro encontramse as protobrasileiras índias Bororós que governam o trabalho Além das citadas índias o texto do antropólogo Júlio Braga 1995 informa que na ilha de Itaparica na comunidade do culto afrodescente de Babaegum as mulheres também são responsáveis pelo sustento familiar Na liturgia nagô as Grandes Mães Ancestrais dão o exemplo da androginia por suas características fálicas Vale lembrar que o sucesso da remuneração das exescravas no Brasil deveuse à venda de seus quitutes favorecendo a superioridade das mulheres e o consequente surgimento de um matriarcado religioso Aliado a este matriarcado são citados exemplos de domínio dos homens pelas mulheres feitasnosanto6 uma característica das religiões afrobrasileiras É evidente que causa algum desconforto afirmar a androginia de Flor através de sua altivez e ao mesmo tempo perceber suas fraquezas Mas até Oxum teve seus momentos de 6 O mesmo que iniciadas 30 dominada e a construção da personagem amadiana se pauta pela representação coletiva deste orixá considerando inclusive o imaginário popular brasileiro com seus conceitos judaico cristãos Entre os mitos será descrito o quanto Oxum se torna subserviente a Xangô tal Flor a Vadinho o que aproxima este mito do contexto amadiano Depois da submissão feminina chegase à rendição final dos machos homem ou divindade ambos possuidores de uma vida desregrada e sustentados pelas mulheres Na ficção Amado nos mostra vários outros exemplos de gigolôs o negro Arigof Mirandão amigos do malandro e o professor Josué de Gabriela Cravo e Canela são alguns deles Na Umbanda os Exus efeminizados por vezes possuem o discurso favorável ao sustento de seus parceiros como a companheira do negro Arigof No que tange à Flor alguns sinais a aproximam desta entidade genuinamente afro brasileira a Pombagira principalmente quando no período da viuvez revelase em sonhos Cínica debochada oferecida tão oferecida puta de dar nojo AMADO 1966 p 240 A fornicação o adultério e o sentimento de culpa cristão fazem da personagem uma representação da Pombagira A aparição deste arquétipo não inviabiliza a representação de Oxum pois muitas das características dos orixás femininos no Brasil foram atribuídas aos Exus efeminizados Complementarmente na visão do Candomblé e da Umbanda todo ser humano pode receber influência de um ou mais orixás principalmente do Exu do dono de sua cabeça7 e na umbanda e em alguns candomblés a Pombagira é uma entidade conhecida como Exu 7 O mesmo que orixá regente 31 de orixás como Iemanjá Nanã e Oxum mãe de Flor Outro acontecimento importante que autoriza buscar o arquétipo Pombagira é o fato de Vadinho após sua morte transformar se em um típico Exu umbandista portanto parceiro sexual de Padilhas e Pombagiras Um Exu Vadinho é o título do segundo capítulo deste livro O nome pareceme sugestivo e pode ser foneticamente articulado com Um Exu Vadio o que não deixaria de ser expressão da verdade diante da vida da personagem A primeira preocupação será situar Exu o que é Exu quem é Exu e por que Vadinho é um Exu Discutindo os conceitos tradicionais de Exu do Candomblé até a Umbanda percebese o quanto Vadinho se parece com seu pai espiritual A semelhança pode ser vista não tãosomente em suas ações típicas de filho que se assemelha aos pais míticos Também temos a confirmação das similitudes quando o Legbasi filho de Legbá ou Exu já se encontra morto e passa a ajudar os amigos O trabalho exercido pelo egum ou defunto encontra correspondente em qualidades de Exu descritas por Santos 1986 Ainda assim Vadinho é um morto alguém que possuiu vida um egum que não tem correspondente exato entre os tipos de eguns estudados no livro de Juana Elbein dos Santos Os nagò e a morte ora parecendo com um Egumagba ora com um Apáàraká Os Egunagba possuem fala e representam os ancestrais de famílias importantes já os Apäàraká são mudos são espíritos novos que por várias razões não puderam chegar ao estado de egbá e cujos ritos de formação não foram acabados SANTOS 1986 p 127 Portanto Vadinho é um Exu umbandista que já possuiu vida e foi um pecador este é Vadinho uma entidade brasileira conservando características do Exu tradicional e dos eguns tradicionais 32 A ancestralidade é lembrada até na morte de Vadinho Tendo morrido durante o carnaval já estabeleceu uma interação com seu pai mítico visto que na Bahia adeptos de religiões afro brasileiras declaram ser esta festa a do Rei das Encruzilhadas ou do diabo na voz preconceituosa e equivocada dos inquisidores da cultura O horário da abertura da festa meio dia provoca novamente dizeres baianos que declaram ser esta a hora do demo confundido com Legbará A morte na rua espaço de Exu é consagrada com a vestimenta de baiana e uma raiz de mandioca por debaixo da anágua O que para olhos pouco experimentados parece apenas uma brincadeira amadiana é na verdade similar ao ritual de Legbá Exu para os Fon Entre os Fon os Legbasi em rituais específicos vestem uma saia de ráfia e amarram um falo de madeira por debaixo para depois mostrálo de maneira erótica Em Maragojipe cidade do recôncavo baiano foi presenciado em torno dos anos 1950 negromestiços fazerem o mesmo que Vadinho e os Legbasi Não há como afirmar de onde veio a inspiração amadiana se do Recôncavo baiano ou diretamente do Benin mas se pode dizer que a identidade negra se fez presente Em A cozinha e o azeite o debate é em torno da cozinha suas faces e seus temperos Em relação aos condimentos a discussão foi centrada especificamente no azeite elemento negro de vital importância da culinária baiana que mereceu destaque em Dona Flor e Seus Dois Maridos Não é novidade a crítica veemente exercida sobre Jorge Amado a respeito de suas personagens femininas alguns insistindo em dizer que Amado entende a mulher como um objeto de cama e mesa Sobre a liberdade sexual de Flor há correspondentes na ancestralidade e nas mitologias afrobrasileiras E sobre a comida Cozinha é mesmo lugar de mulher Para os Candomblés da Bahia é sim 33 Não obstante a face da cozinha desde os tempos imemoriais africanos quando Oxum detinha este poder é diferente do conceito de subserviência aprendido pelas sociedades judaico cristãs Serão vistas situações que demonstram quanto a cozinha negra significa poder e ampliação de território permitidos somente às mulheres e em raros momentos aos homens de orixá feminino Neste contexto Oxum é a rainha da cozinha como Flor dirigindo sua casa e suas finanças a partir da culinária Para Flor e para sua mãe Oxum a palavra cozinheira não denota subserviência A primeira era saudada e convidada por seus clientes para os salões das festas Querino 1922 relata costumes ancestrais parecidos quando as boas cozinheiras eram chamadas à sala para receber as felicitações Oxum tem a cozinha como seu território espaço de mando sem ela as comidas sagradas não se completam Algumas mulheres baianas fizeram fama e se mantiveram com seus quitutes a exemplo de Dona Olga do Alaqueto todas como Flor filhas de orixá O azeitededendê que segundo Lody 1992 é a identidade maior do povo negro foi colocado por Jorge Amado como elemento imprescindível a quaisquer alimentações Através da personagem Mirandão a defesa do azeite transformase na resistência de uma identidade não apenas uma questão de gosto culinário Mesmo colocando o azeite em evidência Amado usa como pretexto uma festa em homenagem aos orixás para ritualmente inserir a culinária conventual portuguesa com seus doces Não só registra a existência destas iguarias europeias em rituais afrobrasileiros como também confirma 34 mais uma vez sua tese da miscigenação Afinal mesmo as comidas de azeite em sua maioria são pratos europeus ou indígenas modificados com o dendê africano e a malagueta sulamericana Mestiçagem de cama e mesa 35 ORA IÊ IÊ Ô OXUM E FLOR DUAS MULHERES DUAS AÇÕES Nesse primeiro momento apresento a relação existente entre o arquétipo Oxum e a construção da personagem Dona Flor Logo de início é travada a discussão a respeito do maior atributo de Oxum a maternidade além da incapacidade procriadora de sua filha Flor Na continuação da análise são verificados aspectos do comportamento sexual de Flor e de Oxum e a relação desta mulher e do orixá com o trabalho Depois o amor é abordado como atribuição de Oxum e avaliado o quanto esta característica aproxima a submissa Flor de sua mãe mítica Por último é chamado ao diálogo o arquétipo umbandista Pombagira relacionado com a protagonista da obra Da maternidade e da felicidade conjugal Na mulher tudo é enigma e tudo tem uma só so lução a prenhez O homem é para a mulher um meio o fim é sempre o filho Que é porém a mu lher para o homem NIETZSCHE 2000 p 63 A personagem principal do romance amadiano Dona Flor e Seus Dois Maridos a quituteira que empresta seu nome à obra não conseguiu encaminhar a solução do enigma feminino proposto na citação do Assim Falou Zaratustra de 36 Nietzsche 2000 A filha eou descendente do orixá Oxum não teve filhos Os pequenos de sua companhia foram os afilhados e os Ibejis orixás crianças de devoção do primeiro marido Oxum arquétipo norteador de ações e acontecimentos pertinentes à pessoa ficcional Dona Flor é a matrona da gravidez guardiã de todas as crianças a mais eminente das Iyá símbolo feminino rainha excelsa SANTOS 1986 p 85 Flor filha da referida rainha mítica destoava de sua mãe Iyá principalmente no que tange ao poder da procriação e à excelência da maternidade posto que a mulher ficcional em questão nunca pôde ter filhos e se Vadinho o primeiro marido inicialmente foi o meio da jovem cozinheira o fim um ou mais filhos fora amputado pelo destino fado direcionado por particularidades de sua mãe espiritual e grande mãe ancestral da humanidade SANTOS 1986 Represália aos desmandos de Vadinho tal e qual fez Oxum com os orixás masculinos quando estes no início dos tempos excluíram as mulheres das decisões segundo o mito conta Sobre a retaliação de Oxum conta o mito da esterilidade intitulado Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens que Logo que o mundo foi criado todos os orixás vieram para a Terra e começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles em conciliábulos nos quais somente os homens podiam participar Oxum não se conformava com essa situação Ressentida pela exclusão ela vingouse dos orixás masculinos Condenou todas as mulheres à esterilidade de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido da fertilidade era fadada ao fracasso Por isso os homens foram consultar Olodumaré 37 Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses sem novos braços para criar novas riquezas e fazer guerras e sem descendentes para não deixar morrer suas memórias Olodumaré soube então que Oxum fora excluída das reuniões Ele aconselhou os orixás a convidála e às outras mulheres pois sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade nada poderia ir adiante Os orixás seguiram os sábios conselhos de Olodumaré e assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso As mulheres tornaram a gerar filhos e a vida na terra prosperou PRANDI 2001 p 345 É verdade que se fosse continuada a procura por justificativas na mitologia dos orixás seriam achadas mais explicações para uma filha de Oxum ficcional ou não ficcional não poder exercer a maior atribuição de sua mãe a procriação Sem falar dos esclarecimentos de pessoasfeitasde santo8 dizendo que filhas de Oxum são muito férteis ou nada férteis de acordo com seus destinos e os desígnios do orixá dona da genitália feminina dos órgãos do aparelho reprodutor feminino e do ciclo menstrual Além do mais a demonstração de força feita pela Iyá aos orixás masculinos no início da criação foi a mesma desferida a Vadinho um apaixonado por crianças e desejoso de colocar seu nome para prosseguir na sociedade O protótipo do orixá direcionou a sina da personagem sua filha impedindo a 8 Expressão utilizada pelos adeptos do candomblé para designar os iniciados e que lembra a expressão povodesanto utilizada por Edison Carneiro 38 implementação de fraquezas de Flor e a satisfação do homem através da prole Dona Flor jamais pegara menino mas sabia ser culpa sua e não do marido A doutora Lourdes Burgos sua médica lhe explicara e o doutor Jair havia confirmado e proposto ligeira operação ca paz de tornála fecunda quem sabe AMADO 1966 p 142 O mito da esterilidade se remete ao que segundo Deleuze Nietzsche chamava de empréstimo da aparência das forças precedentes contra as quais luta DELEUZE 1975 p 4 acontecimento imprescindível para a sobrevivência de qualquer força Se os homens excluíram Oxum das decisões sobre os destinos do mundo ela os excluiu das decisões sobre a continuidade do universo através da infertilidade da mulher Uma ação afirmativa que surgiu inspirada e motivada por uma afirmação precedente na visão de Nietzsche Ainda com o mito da esterilidade podese reconhecer a altivez feminina na obra amadiana através da ânima a noiva inseparável da afirmação dionisíaca DELEUZE 1975 p 17 Potência afirmativa que difere da potência feminina infernal negativa e moralizante a mãe terrível a mãe do bem e do mal aquela que deprecia e nega a vida NIETZSCHE apud DELEUZE 1975 p 17 com as suas proibições judaico cristãs Mesmo sendo mãe Oxum se opõe às lições da moral do cristianismo Impõese como guerreira ao contrário da mulher Flor limitada à moral católica de seu tempo Feliz por ser submissa buscando adaptarse a seu marido a seu senhor caber justa e certa em sua medida AMADO 1966 p 316 39 Até que se entenda Dona Flor como modelo da mulher dominada um leitor mais atento e conhecedor do universo religioso afrobrasileiro encontrará características de Oxum conduzindo o destino da personagem e enfrentando o clã masculino Isto pode ser facilmente compreendido posto que Flor de acordo com o pensamento de Nietzsche apud Deleuze 1975 é a vontade que obedece e Oxum é a vontade de poder elemento diferencial da força que comanda e guia ações É fato que o mito fala de ressentimento e vingança qualidades que poderiam negar a força ativa do arquétipo Oxum na mitologia e nos destinos da obra Entretanto o devir ativo é garantido pelo eterno retorno síntese iniciada com a vontade de poder que por sua vez é a diferença da quantidade das forças contrárias mais a qualidade reativa ou ativa de cada força O eterno retorno nietzscheano realiza a transmutação dos valores ou transvalorização colocando a afirmação em lugar da negação Indo aos acontecimentos dirseia que a ação dos orixás masculinos inicialmente era força ativa pois afirmava os seus valores A reação de Oxum no princípio força reativa tornou se força ativa com a afirmação dos direitos e dos valores da mulher Na história amadiana a força ativa a vontade de poder afirmativa mostrou sua eficiência levando seu exercício até o fim inviabilizando a concepção para Vadinho e Flor através da esterilidade da protagonista Foram as características do arquétipo que reagiram à força demolidora de Vadinho depois transmutada e transformada em força negativa ao mesmo tempo em que a força negativa arquetípica de Flor se transmutou em positiva com o evento eterno retorno que transmuda o negativo faz do pesadelo algo leve faz passar o 40 negativo para o lado da afirmação faz da negação um poder de afirmar DELEUZE 1976 p 71 O edificar do cruzamento das entrelinhas do mito da esterilidade e do romance Dona Flor e seus Dois Maridos DF levará à lembrança da má conduta de Vadinho para com seu casamento e sua consorte Então ele a empurrou e ela caiu por cima de umas cadeiras gritando assassino miserável e ele a esbofeteou Uma duas quatro bofetadas O estalo dos tapas levantou na rua o coro de revolta das comadres AMADO 1966 p 170 Apesar dos maus tratos sofridos a esposa satisfazia ao malandro em tudo exceto com um filho desejo reprimido pelo homem educado para a guerra ou para a vida libertina que entendia a mulher como prazer do guerreiro NIETZSCHE 2000 p 62 e geradora de filhos robustos No mito da esterilidade os orixás masculinos também se comportaram mal sendo dominados pela ação feminil da mesma forma que o destino ou a representação de Oxum freou os anseios de Vadinho em ter um herdeiro A cobrança em relação à esterilidade da mulher parecia velada no amor do guerreiro às crianças de meninos ah como ele gostava AMADO 1966 p 143 sem contudo diminuir o sentimento de impotência e culpa entranhados em Flor Ela não podia dar a solução ao desejo do marido a prenhez A doença foi a ação escrita pelo narrador onipresente e inscrita pelo mito da esterilidade aos desmandos do homem O arquétipo da Iyálodê a maior entre as mulheres Oxum se antecipou neutralizando as fraquezas de sua filha impedindo o livrearbítrio da personagem conforme deixa 41 implícito o narrador Para satisfazer ao marido Flor chegou a pensar em algumas ações que denotariam a mulher de seu tempo mulher da classe média baiana de meados do século XX9 e não uma diminuição do papel feminino por parte do autor visto que na obra a insubmissão é dos ditos de Oxum escritos pelo narrador não da pessoa ficcional apequenada pela sociedade preconceituosa e rigidamente moralista Flor queria ser um brinquedo puro e fino como diamante abrilhantado pelas virtudes de um mundo que não existe NIETZSCHE 2000 p 63 mundo de um Vadinho perfeito Todavia a jovem senhora não teve toda a independência anunciada aos personagens amadianos A personagem não agiu livremente teve a interferência do arquétipo da Yalodê em seu destino desfazendo a tese da liberdade de ação conferida às criaturas de Jorge Amado Caso a liberdade fosse dada haveria mais cenas de submissão Quem sabe Flor criaria filhos do mulherengo e então seria conectada com a verdade de outros mitos de Oxum já que são várias as Oxuns10 e suas equivalências em outras nações de candomblé11 além da nação Nagô e de várias qualidades e não se sabe se há 9 Este período pode ser comprovado por alguns acontecimentos como a notoriedade de Dorival Caymmi e a importância do Rádio 10 Seguindo o falar de pessoas escolarizadas do povodesanto e que fazem a forma padrão do plural em língua portuguesa foram colocadas estas e outras palavras de origem iorubana com o plural do português O termo Axé não terá o plural em português visto que não foi encontrada esta forma entre os citados falantes a mesma observação serve para a não colo cação do artigo definido feminino antes da palavra orixá 11 O candomblé teve sua origem no Nordeste brasileiro do século XIX PRANDI 1997 e segundo Nina Rodrigues cf AUGRAS 1983a nas matas do Urubu Pirajá em 1826 havia um quilombo que se mantinha com a ajuda de uma casa de fetiche chamada candomblé Pirajá é um bairro da Cidade do Salvador conhecido também por ter abrigado a luta pela independência da Província e até hoje por possuir o Parque São Bartolomeu santuário de realizações religiosas afrobrasileiros atualmente prejudicadas pelo desmatamento e pela falta de segurança 42 uma Oxum específica de Flor ou se a existência coletiva de Oxum contribuiu para a construção da personagem e dos acontecimentos em torno do ente ficcional hipótese que merece maior crença Vale lembrar que há as famílias de orixás12 nas quais se abrigam várias qualidades da mesma entidade e cada qual com atribuições e características específicas podendo várias delas influenciar a personalidade de Flor Análogo ao caso de uma Flor mais altiva a busca de um filho não iria invalidar sua altivez Este desejo também não distaria do orixá de seu ori ou de sua cabeça A prenhez poderia não significar submissão ao marido sendo desejo de mulher propagação de sua existência e demonstração de força assim poderia agir uma Oxum nunca a Flor amadiana destoando do arquétipo Oxum enquanto Yalodê Novamente recorrendo à mitologia Santos 1986 relata o nascimento de Osetuá filho de Oxum e responsável pela volta da paz e normalidade nas atividades sagradas de todos os orixás após várias exigências da entidade dona da situação que mereceu a obediência de todo o panteão nagô O nascimento de Osetuá confirma a força da mulher que desejou ter um filho unicamente para sua autosatisfação afirmando sua autoridade e não para o contentamento do guerreiro Ao contrário neste mito os guerreiros digo os orixás masculinos são obrigados a utilizar todo o seu Axé para garantirem que o filho de Oxum já em seu útero fosse um menino condição imposta pela rainha para ela fazer o mundo voltar ao seu curso normal O mais interessante é não ter sido mencionado um parceiro de Oxum pai de Osetuá Assistese talvez no mundo sagrado a uma produção independente avant la lettre 12 Esta informação foi obtida do filólogo e antropólogo beninense Hippolyte Brice Sogbossi em dezembro de 2002 43 Já com Dona Flor é vista a evidência de querer proporcionar o prazer ao guerreiro Ela e as amigas discutiam a possibilidade de um filho apaziguar a sua vida e acomodar o incorrigível marido No entanto a verdade ficcional reservou a Vadinho o dissabor de não ter descendentes e à filha de Oxum a esterilidade Quanto a criar filhos que não lhes pertenciam Flor e Oxum nunca fariam oposição pois Oiá teve dezesseis filhos com Oxóssi Oxum que era a primeira esposa de Oxóssi e que não tinha filhos foi quem criou todos os fi lhos de Oiá PRANDI 2001 p 213 Assim é que Flor se propôs a criar o filho de Dionísia de Oxóssi quando ainda achava tratarse de um herdeiro de Vadinho Para a Yalodê criar os rebentos de Oxóssi com Oiá não constituía servilismo era apenas uma atribuição de sua natureza pois ela é também Olotoju awo Omo a que olha e cuida de todas as crianças Mas para Flor a sujeição se consolidaria juntamente com a caridade cristã tão criticadas por Nietzsche Aqui temos a manifestação da consciência de Flor algo que para Nietzsche segundo Deleuze 1975 p 32 só existe do escravo em relação ao senhor que não tem que ser consciente O sentimento de culpa por causa da esterilidade fez com que Flor buscasse o possível filho de Vadinho para criar como seu e agradar ao guerreiro Porém o mito da esterilidade confirmou a intervenção de características de Oxum na verossimilhança do enredo junto a Flor e Vadinho A doença mesmo sem ser explicitada 44 na obra parece terse estendido ao marido de Flor homem de vastos relacionamentos e nenhum filho ao contrário do mestre Pedro Archanjo seu irmão de cabeça filho do mesmo orixá e pródigo fazedor de filhos a povoar os espaços do romance amadiano Tenda dos Milagres No romance DF AMADO 1966 p 494 filhos de Vadinho foram citados apenas como metáfora de poderes de Exu quando seu espírito travava a batalha final para permanecer na terra dizendo o narrador que as donzelas da cidade desnudaramse e saíram a se oferecer nas ruas e nas praças Logo nasciam os filhos aos milhares todos filhos de Vadinho É claro que a realidade ficcional não atribui filhos ao falecido boêmio apenas mostra a força de Exu no momento da luta para manter o egum de seu filho na terra O boêmio não tivera nenhum relacionamento com essas donzelas desnudas que jamais tiveram filhos A força do mito mostrou seu efeito o homem não propagaria seu nome através de sua prole seria um guerreiro incompleto Também no enredo amadiano o mito agiu sem a consciência escrava e com vontade de poder afirmativa Com Flor ao contrário de Oxum prevaleciam ditos sobre a mulher como a felicidade do homem é eu quero a felicidade da mulher é ele quer NIETZSCHE 2000 p 3 Assim há também como entendêla enquanto uma pessoa ficcional inserida em um tempo e em uma sociedade machista e preconceituosa em que a presença de um filho se fazia necessária Em todos os tempos inclusive hoje para o africano a progenitura constitui elemento essencial à boa existência do araaiê corpo do mundo dos vivos e à preservação da memória dos araorun corpo do mundo dos mortos LUZ 2000 como claramente demonstram os já citados versos onde aparece a preocupação com o futuro e a concepção de filhos 45 Por isso os homens foram consultar Olodumare Estavam muito alarmados e não sabiam o que fa zersem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses sem novos braços para criar novas riquezas e fazer guerras e sem descenden tes para não deixar morrer suas memórias PRANDI 2001 p 345 Schopenhauer 2001 em a Metafísica do Amor afirma que a procriação é a finalidade inconsciente de todo casal e que o amor se extingue quando a mulher é estéril Mas Dona Flor era estéril e o casamento dela continuava vivo e cheio de ardor apesar das aventuras do parceiro inconstância justificada por Schopenhauer ao declarar que o instinto do homem era proliferar a espécie Proliferação sem êxito do homem em questão apesar de desejada por ele Podese até entender que no primeiro casamento de Flor uma criança era o verdadeiro alvo do romance embora os envolvidos não tivessem consciência disso mas o bem querer não se esvaziou com a certeza da esterilidade da mulher SCHOPENHAUER 2001 p 84 Novamente contrariando os ditos de Schopenhauer o gozo de amor não foi seguido de uma estranha decepção O pósgozo de Vadinho e o de Flor eram acompanhados de carícias e ais de felicidade dizendo que a ausência de uma criança não poderia gerar a aversão e o fim do casamento Ainda acerca da procriação Foucault em A mulher os rapazes da história da sexualidade 1997 p 13 diz que Musonius acrescenta que a procriação pode ser uma coisa importante mas não poderia por si só justificar o casamento ele lembra que os homens poderiam muito bem fazer como os animais se se tratasse somente de ter uma progenitura unir se e logo separarse Felizmente o casamento é mais que uma 46 instituição para a progenitura e Flor atestou esta tese ao ser estéril e casarse duas vezes Agora o arquétipo Oxum está totalmente incorporado à personagem pois se é verdade que Oxum é mãe ancestral ela é também dona do mais doce mel sedutor Seu leito é ninho de satisfação e sua interpretação da moral é a interpretação da fortuna livre do ideal ascético nietzscheano ou das proibições judaicocristãs Além do mais para Vadinho vadiação palavra que ele utilizava para denominar o ato sexual era coisa de Deus por isso deveria ser feita com frequência sem cerimônia para o prazer e não apenas para a progenitura mesmo desejando um filho Nietzsche pode ser novamente chamado ao diálogo para ser identificada no filho de Exu a presença do Deus alegre e dançarino sem ressentimento e sem influência do sacerdote ascético aquele que deprime e constrange a vida Enquanto para a maioria das pessoas ficcionais do romance o sentimento de culpa grande estratagema de que se utilizou o sacerdote ascético para fazer ressoar na alma humana toda a espécie de música pungente NIETZSCHE 1999 p 129 e o pecado impediram a realização de uma vida alegre e sadia para Vadinho a alegria constituíase fôlego de vida chegando a contaminar Flor principalmente quando em quatro paredes percorria os limites do leito Afinal o criador após separar os dois sexos quis reaproximálos implantando um violento desejo de conjunção e de união MUSONIUS apud FOUCAULT 1997 p 14 Infelizmente alguns guardiões do cristianismo preferem enxergar impureza e indecência nas coisas de Deus escolhendo a tristeza ao invés da felicidade A alegria de Vadinho também é originada do próprio Amado pois de acordo com Seixas 1996 p 85 a 47 literatura para Jorge Amado não é um catecismo onde se diz como devemos rezar ela é um jogo que nos convida ao riso A literatura amadiana gera suavemente a desconstrução de valores constituídos Não obstante alguns entendem esta literatura como fácil vulgar e apenas deliciosos divertimentos para adulto SEIXAS 1996 p 86 Entretanto diznos Seixas 1996 p 93 que retirada a tinta da escrita fácil e divertida pelo leitor atento na busca do que se esconde por sob as cores luminosas surge o cerne de sua alegoria como a moral da fábula A partir desta constatação avistase a alegria consolidando a demolição da tristeza castradora e do ideal ascético Também entre mitos que explicam a religião tradicional nagô percebese a presença da liberdade sexual e da alegria Ao contrário do terrível pecado original as relações sexuais na mitologia iorubana são praticadas pelos seres humanos e pelos deuses como por Oxum segundo os mitos PRANDI 2001 mulher de Xangô de Ogum de Oxóssi e de Orunmilá tudo a seu tempo e dentro de sua existência coletiva Apesar de possuir períodos de abstinência sexual o sentimento de culpa e o pecado dogmas do cristianismo não são atribuídos nem com outros léxicos àqueles que exercem a sexualidade dentro da citada mitologia e no candomblé tradicional nagô PRANDI 1997 merecendo ressalva para a afrodescendente umbanda e para os candomblés umbandizados Por isso um Vadinho alegre filho de Exu com seu símbolo fálico e Flor filha de Oxum dona da genitália feminina união estrategicamente construída pelo narrador sexólogo num casamento que apesar das adversidades possuía um cotidiano conjugal razoavelmente feliz e fora dos padrões 48 de comportamento da época da narrativa ainda com todas as limitações de Flor A prova disto é que com Teodoro as relações sexuais além de terem dia e hora marcados deveriam vir acompanhadas de roupas e de um lençol preservando a castidade da esposa já viúva do primeiro marido Com Vadinho a nudez e os elogios à genitália da quituteira eram praticados sem medos e delimitações No farmacêutico os ideais cristãos tão criticados por Nietzsche e desprezados por Vadinho permaneciam vivos Sua esposa vivia desejando ser despudoradamente possuída mas para Teodoro não se podia ter relação com a mesma mulher ao mesmo tempo como esposa e como amante PLUTARCO apud FOUCAULT 1997 p 53 como com a prostituta a qual encontrava uma vez por semana antes do casamento com Flor Apoiada por Vadinho e incorporando características de Oxum a tímida professora de culinária e o primeiro marido mostraram possuir a híbris a violação soberba das leis divinas NIETZSCHE 1999 cristãs O divino negro fonte de inspiração para a obra e as personagens compreendiam o belo como uma promessa de felicidade STENDHAL apud NIETZSCHE 1999 p 95 não como abstinência da vida Por fim o arquétipo Oxum transformou Dona Flor numa mulher plena feliz A nova vida de Flor compôs o sorriso do deus brincalhão nietzscheano demoliu ideais cristãos sem tirá la do cristianismo Faz Vadinho redimirse catolicamente de seus erros manifestando sua consciência escrava Nietzsche e pedindo que a mulher abandonasse a moral católica e o tivesse para a cama e Teodoro para as contas só aí Flor é constituída dirigente da relação 49 Mais uma vez o eterno retorno nietzscheano transmuta as forças Vadinho tornase força reativa e Flor força ativa invertendo as posições transformando Flor em elemento dominante Neste episódio o arquétipo Oxum é responsável por viabilizar a inversão do controle do casamento ele o arquétipo levou o guerreiro à sujeição tradicionalmente imposta à mulher uma espécie de afirmação do poder feminino sem relação com o adultério pecado conceito cristão Vadinho agora ocupava a posição passiva antes de Flor fato ocorrido sem nenhuma pressão da cozinheira apenas o amor revelou se uma arma e estratégia do arquétipo Oxum sensibilizando o falecido fazendoo desejar para a esposa aquilo que achava melhor para ela uma espécie de compensação pelos maus tratos a acolhida dos dois maridos Somos teus dois maridos tuas duas faces teu sim teu não Para ser feliz precisas de nós dois Quan do era só eu tinhas meu amor e te faltava tudo como sofrias Quando foi só ele tinhas de tudo nada te faltava sofrias ainda mais Agora sim és dona Flor inteira como deves ser AMADO 1966 p 484 A sensibilização de Vadinho através do amor foi uma ação do arquétipo Oxum Flor em nada contribuiu intencionalmente para a inversão do poder o que ela desejava era ser novamente só de Vadinho Para assegurar a permanência do malandro ao seu lado na hora em que o morto estava sendo mandado embora pelos orixás por causa de ebó encomendado pela cozinheira o duplo13 da quituteira Florípedes existente no orun fez a intervenção no plano espiritual deixando Vadinho 13 Segundo a mitologia nagô todos têm um duplo de si no orun mundo espiritual LUZ 2000 SANTOS 1986 e no romance quem interveio para salvar o espírito de Vadinho foi a imagem de Flor no plano espiritual o que leva a crer ser o seu duplo espiritual 50 ficar e garantindo a felicidade de seu duplo no aiê Para não pecar em demasia ela optou por pecar só com o finado marido ao invés de procurálo em todos os homens conforme fala da personagem AMADO 1966 p 492493 Se não o tiver comigo irei em desespero procurálo em quanto homem passe em minha frente buscarei seu gosto em cada boca ululante esfomeada loba correrei as ruas Minha virtude é ele O que parece ficar claro é que a maior entre as mulheres arquitetou tudo Enquanto Flor sofria e desejava ter filhos e um marido enquadrado nos padrões sociais o arquétipo Oxum contrariava as vontades da personagem com a ausência de filhos e permitindo os desmandos de Vadinho até leválo à sensibilização e entrega O filho de Exu foi levado ao servilismo pelas circunstâncias dos acontecimentos confirmando mais uma vez a vontade de poder demolidora do arquétipo Oxum na construção do enredo No final Flor teve dois fiéis maridos Teodoro fiel por sua natureza e Vadinho por impossibilidade de realizar o amor com outro ser vivente Pela astúcia do arquétipo tratava se de um egum14 materializado somente para Flor Um passo atrás um salto à frente dos tempos de sol teira da passagem ao casamento da poliandria Todo mundo em certa medida usufrui do prazer da mesa do vinho e do amor mas nem todos o fa zem como convém auch hos dei ARISTÓTELES apud FOUCAULT 1998 p50 14 A palavra iorubana Égún foi escrita de acordo com a fonética portuguesa egum a exem plo de Braga 1995 Prandi 2003 e outros 51 Os acontecimentos que antecederam o casamento de Dona Flor já possuíam iniciativas que conduziram a pensar nas fronteiras entre a altivez de Oxum a mulher de seu tempo e características da ancestralidade do povo brasileiro Neste meio tempo fazse necessário visitar a personagem Dona Rozilda mãe de Flor mulher amarga responsável pela educação dos filhos a sonhar com casamento rico para Flor e Rosália suas filhas o que garantiria a própria ascensão social e o conforto pretendidos Badinter 1985 p 17 em Um Amor Conquistado O Mito do Amor Materno diz que o amor materno não é inato e qualquer pessoa que não a mãe o pai a ama etc pode maternar uma criança Badinter 1985 p 17 complementa o discurso sobre a maternidade ao afirmar que não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus deveres maternais A moral os valores sociais ou religiosos podem ser incitadores tão poderosos quanto o desejo da mãe Unindo estas declarações ao significado figurativo da palavra materno afetuoso dedicado carinhoso FERREIRA 1986 p 1103 logo será notado que Dona Rozilda era desprovida de tais sentimentos e que Badinter poderia têla como exemplo de mãe não maternal porque a natureza de Dona Rozilda era consagrada a infernar o próximo Quando não estava contrariando alguém sentiase vazia AMADO 1966 p 58 Do azedume de Dona Rozilda nem a família escapava em especial as filhas moeda de troca para o bemestar da megera através de um bom consórcio com homem rico independente de amor ou coisa parecida A ganância da mãe desprovida de amor materno lembra conveniências financeiras de várias sociedades e em especial os ancestrais portugueses 52 que desde o primeiro século da colonização realizavam casamentos de tio com sobrinha de primo com prima FREYRE 2001 p 396 com o único intuito de garantir a não dispersão dos bens Rozilda queria assegurar que a plebeia Flor se cassasse com um de seus ricos pretendentes Todavia a menina afirmava só caso com homem que eu ame AMADO 1966 p 80 contrariando a tradição dos casamentos arranjados existentes desde os primórdios da colonização Esta posição de Flor transfere ao texto literário um momento de rompimento da obediência feminina característica de algumas mulheres amadianas como Gabriela protagonista do romance com o mesmo nome Rosa de Oxalá e Majé Bassã estas duas últimas personagens do romance Tenda dos Milagres Enfrentar as ordens de Dona Rozilda mesmo com diplomacia à maneira de Oxum foi novamente uma demonstração da força ativa nietzscheana característica da Yalodê Para solucionar a peleja Flor deixou que o filho de Exu a possuísse afinal ela abriu as coxas e deixou que ele a comesse como há muito lhe pedia e suplicava AMADO 1966 122 Pode até ficar a dúvida se nos caminhos para o casamento houve vitória da lábia de Vadinho ou se a força afirmativa agiu através de Flor para libertála da tirania da mãe e cair no jugo do cônjuge depois conseguindo sobressairse ou possuir dois maridos Entretanto não há dúvida de que a intrepidez do arquétipo Oxum justifica tal realização visto que as pessoas se iludem com os aspectos de vaidade da faceirice do erotismo de Oxum e não se aperce bem como ela é poderosa Oxum preside sobre os mistérios da vida Filha predileta de Oxalá Ela intermedeia as ações e nessa condição é a contrapartida feminina de Exu TAVARES 2000 p 51 53 A perda da virgindade autorizava casamentos entre diferentes tipos religiosos e comportamentais até na Espanha e em Portugal do século XVI o que também era válido para uma limitada e rancorosa Dona Rozilda FREYRE 2001 p 307 Certamente representando o arquétipo Oxum Dona Flor se entregaria por vontade própria a Vadinho filho de Exu No mito Oxum deitase com Exu para aprender o jogo de búzios PRANDI 2001 p 337 Verificamse semelhanças e diferenças com o episódio da perda da virgindade que autorizou o primeiro casamento da viúva Obatalá o Senhor do Pano Branco aprendeu com Orunmilá a arte da adivinhação Orunmilá jamais ensinou para ninguém Só os babalaôs podem jogar com o Opelê a cadeia de Ifá Obatalá dizia que seu conhecimento era resultado da confiança que Orunmilá deposi tara nele e portanto negavase a passar adiante essa arte Entre os que queriam tal conhecimento estava Oxum a bonita esposa de Xangô Um dia Obatalá saiu da cidade e foi banharse num rio próximo Deixou sua roupa sobre a moita e foi para a água Enquanto Obatalá se banhava Exu pegou as roupas de Obatalá e foise embora Foi dançando alegre e feliz com sua brincadeira Obatalá ficou angustiado sem saber o que fazer Oxum que vinha andando pela trilha em direção ao rio viu Obatalá naquele estado e logo perguntoulhe o que havia acontecido Ele contou tudo 54 Oxum lhe disse então que iria até Exu para trazer as roupas de volta Em troca porém ela exigiu os conhecimentos da adivinhação Ele negou ela insistiu Obatalá concordou Fizeram o trato Oxum então foi à procura de Exu e finalmente o encontrou numa encruzilhada comendo ebós Quando ele a viu ficou endoidecido por sua beleza e porque Exu é como é tentou imediatamente ter relações sexuais com ela Oxum rejeitou Exu e exigiu as roupas que ele rou bara Até que finalmente eles fizeram um acordo Oxum deitouse com Exu e em troca recebeu as roupas furtadas Voltou para a margem do rio onde a esperava Obatalá Obatalá recebeu as roupas e as vestiu e honrando sua palavra ensinou Oxum a jogar búzios e obis Desde então Oxum tem também o segredo do orá culo PRANDI 2001 p 339 Entre as semelhanças há o ato sexual como solução de problemas da mulher ficcional e do arquétipo responsável por sua construção Oxum dormiu com Exu para receber de Obatalá ou Oxalá o poder da adivinhação Flor precipitouse e foi passar a tarde em Itapuã com Vadinho para conseguir sua liberdade diante da mãe Para a visão judaicocristã dois atos levianos Entretanto Nietzsche 2000 p 58 diz que coisas que um povo chama boas eram para outros vergonhosas e desprezíveis foi o que vi Muitas coisas aqui qualificadas de más em outro lugar os enfeitavam com o manto de púrpura dos homens Certamente conseguir para si o poder da adivinhação e estendêlo às 55 mulheres foi e é motivo de honrarias para Oxum Por isso os métodos da deusa talvez não tenham sido tão questionados pelos nagô15 tradicionais Nem tampouco podemos julgála por um ato insolado Em vários terreiros de candomblé da Bahia atribuise a Oxum a conquista feminina do direito ao jogo de búzios Mãe Senhora grande Ialorixá de um dos mais tradicionais terreiros de candomblé do Brasil o Ilê Axé Opô Afonjá já pensava nessa independência das mulheres em relação aos adivinhos A Ialorixá ensinava às suas filhasde santo o jogo de quatro búzios para que elas não confiassem nos homens antes detentores exclusivos do direito ao oráculo TAVARES 1996 Guardadas as devidas proporções e sem a conquista coletiva de Oxum Flor realizou uma ação audaciosa embora as donzelas apaixonadas da literatura e da vida nãoficcional tenham feito coisas parecidas muito antes a exemplo de Julieta amante de Romeu membro de família rival à sua no drama de Shakespeare Ao realizar a analogia do mito com os caminhos para o casamento de Flor e considerar o caráter plurissignificativo existente em toda obra literária entendese que o narrador por força do mito teria feito a cozinheira assumir características da independência sexual de Oxum Tais características eram e são desconhecidas do imaginário popular nãoficcional emprestadas no Brasil aos Exus efeminizados PRANDI 2003 sobre os quais discutirseá logo a seguir e subtraídas de algumas deusas nagô ao serem associadas às santas católicas maniqueístas por natureza A perda da virgindade revela se mais uma ação do arquétipo Yalodê direcionando os 15 Aqui será conservada a forma nagô no singular a exemplo de Juana Elbein dos Santos que não usa o plural aportuguesado em seu livro Os Nagô e a Morte 1986 56 destinos da personagem sem excluir o conflito entre o desejo de felicidade a vontade de poder afirmativo e os ideais do sacerdote ascético É dito isto pois apesar de ter ocorrido a demolição do dogma da grinalda e da flor de laranjeira do vestido branco do casamento abençoado e virgem foi a reparação da destruição deste dogma que fez dona Rozilda lavar as mãos para o enlace da filha O casamento como ato de reparação portanto Deve ficar claro que nada disso foi planejado pela personagem Apenas as semelhanças autorizam algumas verdades e as verdades são sempre uma interpretação Assim os veredictos dependem do olhar de onde se olha e para onde se olha Partindo das mitologias africanas e afrodescendentes olhando estas mitologias nas entrelinhas do romance virão outros sinais que autorizam ligar este episódio do enredo amadiano ao mito ora discutido São assinalações da mesma natureza da coisa assinalada credenciando o leitor a lembrar que Teodoro é filho de Oxalá ou Obatalá Vadinho filho de Exu e Flor redundante dizer filha de Oxum A tríade do mito é reinventada no romance revelando a ideia de coerência na escolha dos orixás desses personagens por parte do narrador Apesar de as mitologias oferecerem outras tríades com Oxum envolvida essa trindade apresenta grande simpatia ou semelhança com o enredo Nessa trilogia Oxum representa a síntese das forças contrárias de Exu elemento fogo orixá brincalhão Senhor dos Caminhos com Oxalá elemento água orixá velho pouco afeito a brincadeiras Dois mundos diferentes de dois orixás antagônicos como antagônicos são Vadinho e Teodoro A maior entre as mulheres coordenou o enfrentamento de forças reativas transmutandoas em ativas 57 sinais de devirativo Oxum conseguiu satisfazer as forças contrárias de Exu e Oxalá respectivamente desnudando se para um e vestindo outro através do sexo e da devolução das roupas Ao final recebeu o saber como prêmio elemento essencial para o exercício do poder O devirativo beneficiou a todos contemplando os envolvidos na trama sagrada No romance Flor entra numa tempestade ao casar se com Vadinho O casamento com Teodoro tornouse bonança excessiva levou a cozinheira ao tédio e à insatisfação sexual Então como já discutido no arremate a protagonista consegue o equilíbrio entre a tempestade e a bonança conduzindo o pensamento ao devirativo proporcionado pelo arquétipo da Yalodê Na obra ficcional o devirativo nietzscheano é caracterizado pela satisfação da cozinheira de Teodoro e de Vadinho No mito anterior a trindade consegue a satisfação os homens são brindados com os feitos de Oxum elemento central da narrativa sagrada e esta se brinda com os resultados alcançados Na narrativa amadiana a filha de Oxum é a personagem central que brinda os dois maridos e é brindada com a poliandria um triângulo amoroso livre de ressentimentos e sentimentos de culpa somente após a já demonstrada insistência de Vadinho Para ser feliz precisas de nós dois AMADO 1966 p 484 A moral cristã perde seu espaço é questionada e agredida por alguém crente dos dogmas cristãos como as Pombagiras crentes no cristianismo e transgressoras desta crença Além disso Flor como Oxum frui dois mundos o erudito de Teodoro e o popular de Vadinho fazendo maior seu território O filho de Oxalá apresentoulhe um novo mundo com novas regras e condutas ensinoulhe novas expressões da cultura O 58 mundo de Vadinho ainda se encontrava à disposição da viúva através das comadres dos carurus na casa de Mirandão e da volta do primeiro marido Tratase de uma verdadeira cadeia de Ifá exposta à jovem esposa fazendonos lembrar que o prazer e o poder não se anulam nem se voltam um contra o outro mas verdadeiramente constituem uma interação Com a quituteira o prazer e o poder possuíam sua representação maior na posse de dois maridos nos diferentes conhecimentos e culturas adquiridas dos dois consortes Teodoro o erudito e reservado Vadinho amante da vida popular amigo do cantor Caymmi dançarino a exibir o passo do siriboceta AMADO 1966 p 118 diante da janela de Flor Mesmo o mando de Flor tendo sido consolidado sem a intencionalidade da personagem e pela rendição de Vadinho tal autoridade existiu com fronteiras bastante demarcadas e um território definido a partir de uma realidade inicial dada que é o espaço RAFESTIN 1993 p7 O espaço inicial foi o da mulher subjugada e masoquista tendo o marido por senhor O território conquistado foi o de uma senhora de dois homens e duas realidades distintas senhora sem arrogância e prepotência feliz e realizada uma mulher bem amada Na fanopeia ou imagem destes acontecimentos não há como negar a transição de Flor da condição de ator paradigmático aquele cooptado e dirigido para ator sintagmático RAFESTIN 1993 p33 cooptador de atores paradigmáticos um dirigente uma Yalodê Assim o programa estabelecido o planejamento elemento de todo ator sintagmático é pertencente ao arquétipo Oxum Por mais terrível que pareça à moral judaicocristã a poliandria sistema complementar onde vários maridos 59 compartilham uma esposa LÉVISTRAUSS 1982 p 359 existiu para a Flor do mito amadiano que enfim dominou dois homens pelo coração Contudo não se consolidou a poliandria com Oxum no mito em questão eis uma diferença para com a história amadiana Encontrase isto ao transportar o conceito de poligamia de LéviStrauss para julgar a definição de poliandria LéviStrauss diz que algumas sociedades são poligâmicas de fato e outras porém estabelecem acentuada diferença entre a primeira esposa que é a única verdadeira investida de todos os direitos legados ao estado matrimonial e as demais que às vezes pouco mais são do que concubinas oficiais LÉVISTRAUSS 1982 p 361 Norteandose por este conceito de poligamia atentase que Oxum não praticou de fato a poliandria porque a relação com Exu não chegou a ser duradoura A verdadeira poliandria envolvendo um lar estável onde todos os maridos de uma mulher compartilham a mesma residência é incomum e encontrada principalmente entre os Himalayas GREGERSEN 1983 p 129 e com Dona Flor e Seus Dois Maridos Convivendo na mesma casa com Teodoro e Vadinho Flor tinha Teodoro gozando do status de marido no aiê e Vadinho no orun e no aiê Nem em determinados grupos da Nigéria encontramos tal poliandria dos Himalayas e de Dona Flor No tipo de poliandria de um dos países de origem das entidades iorubás Nigéria a esposa circula de um lar para o outro GREGERSEN 1983 p 130 como a personagem Rosa de Oxalá no romance Tenda dos Milagres a visitar a Tenda dos Milagres atrás de Lídio Corró e com o coração nutrindo um amor irrealizado por Pedro Archanjo além do mais a iaô de Oxalufã era mãe de uma menina com um branco rico 60 Mais uma vez abrese espaço para uma discussão sobre as mulheres em Jorge Amado debate que quase sempre é cheio de acusações sobre os possíveis maus tratos do narrador para com o sexo feminino A respeito deste assunto convém não esquecer tratarse da utilização do engajamento do realismo engajado para denunciar a realidade jamais a depreciação à mulher A realidade ora denunciada é alicerçada na escravidão negra no Brasil Os senhores de escravos não hesitavam em vender membros de casais e filhos para diferentes compradores causando a impossibilidade da formação de famílias consensuais e estáveis DEGLER apud SEGATO 2000 o que influenciou algumas gerações de exescravos e seus descendentes É importante lembrar que algumas atrocidades ao povo negro ainda eram e são cometidas na sociedade brasileira Um autor engajado jamais se omitiria tendo a denúncia como prática Aqui valem mais as pistas semelhanças e diferenças do enredo em relação aos mitos africanos e afrodescendentes e à ancestralidade melhor dizendo aqui valem as similitudes e também as nãosimilitudes Algumas similitudes com certeza revelam o alicerce da obra amadiana na história e nas características das três etnias que compõem o mestiço brasileiro ou o conceito amadiano de nacionalidade As não similitudes o rompimento com modelos da citada realidade revelam maior preocupação com a estética e o fazer literário Da androginia da divisão do trabalho da autoridade no lar da força das MulheresdeSanto Novamente comentando o mito Oxum deitase com Exu para aprender o jogo de búzios para chegar às pistas 61 aos olhos desta sociedade machista e judaicocristã são aqui reveladas inversões de papéis nas relações de poder e sexo Tanto Oxum como Flor assumem posições andróginas posições de iniciativas femininas e masculinas As inversões de papéis não são apenas em relação ao pensar e agir da sociedade brasileira pois o padrão geral do casamento ideal em todas as culturas africanas tradicionais é aquele em que o homem tem mais de uma mulher LÉVISTRAUSS 1982 p 188 Portanto tratam se de sociedades patrilineares machistas e poligínicas como os iorubás PRANDI 2000a Oxum é uma transgressora mesmo em seu país de origem Também no mundo ocidental autodeterminado de civilizado o comum é que os homens possuam relacionamentos extraconjugais duradouros ou não Sobre a androginia não é privilégio inconsciente apenas de Flor16 ou privilégio assumido unicamente de Oxum a Grande Mãe Ancestral da liturgia nagô fala grosso como homem Grande muito Grande mãe no topo da árvore iroko Mãe que sobe alto e olha para a terra Mãe que mata o marido mas dele tem pena AU GRAS 2000 p 20 Ela basta a si própria fala grosso como homem olha do alto da árvore iroko assumindo portanto características bem fálicas o seu marido desempenha papel fecundante qual zangão AUGRAS 2000 p20 A Grande Mãe Ancestral Iyá Mi Oxorongá não se costuma apresentar em singularidade ela se expressa no poder de certos orixás 16 A androginia de Flor consiste no fato de prover o sustento da casa e apesar de ser diri gida por Vadinho no final do romance o malandro vêse obrigado a convencêla a realizar o triângulo amoroso O poder chega às mãos de Florípedes que inconscientemente virou dirigente do triângulo amoroso como já dito anteriormente 62 femininos como Apáoká a jaqueira verdadeira mãe de Oxóssi Oxum Nanã Iemanjá AUGRAS 2000 p 22 Daí a origem do aspecto transgressor de Oxum ficcionalizado em Dona Flor A busca de signos da ancestralidade feminina e da androginia desembocará na divisão do trabalho assunto do circuito da sexualidade que leva o leitor ao malandro Vadinho e ao nãoficcional Brasil dos protobrasileiros índios Bororós onde as mulheres governam a divisão do trabalho entre os sexos lavram o solo LÉVISTRAUSS 1982 p369 Sobre este mesmo aspecto da divisão de trabalho pelo sexo é importante visitar comunidade de Ponta de Areia na Ilha de Itaparica Estado da Bahia local investigado pelo antropólogo Júlio Braga 1995 Em Ponta de Areia também se verificou a tendência para a assunção do sustento familiar por mulheres de sacerdotes do culto afrodescendente de Babáegum17 Este fenômeno afirma a sintonia do narrador de DF com realidades sociais ainda atuais dizendo muito sobre o caráter atemporal da obra de arte Quando é a mulher a responsável por este encargo o grupo doméstico se redefine em função da inver são de papéis que disto resulta O homem nessa circunstância ocupa posição marcadamente infe rior a sua mulher em termos de mando embora essa inferioridade fique quase sempre restrita às relações intragrupais O cuidado que se exerce em manter a situação de superioridade da mulher nos limites das relações internas do grupo doméstico proporciona ao ho mem continuar gozando de certo prestígio entre os demais membros da comunidade Essa situação é em parte facilitada pela própria mulher que ao agir com discrição impede que seu 17 Tratase de culto aos ancestrais masculinos 63 companheiro seja vítima da maledicência geral BRAGA 1995 p 71 Importante lembrar que devido à dedicação de grande parte do tempo produtivo às obrigações espirituais ainda hoje alguns membros do candomblé sem êxito financeiro dependem muito do trabalho de suas companheiras para o sustento parcial ou integral da família Historicamente as mulheresdesanto18 têm tido maior contribuição para o sustento do lar acumulando funções sacerdotais e de trabalhadoras até chegarem a um status quo que as permitisse concentrarse apenas nas funções sacerdotais muitas vezes única maneira de ascensão social PRANDI 1997 Após a Abolição apesar do trabalho remunerado o homem negro não conseguia tanto resultado em suas atividades braçais quanto as mulheres negras que lavavam roupas de ganho e cozinhavam TAVARES 1996 O relativo sucesso da remuneração feminina favoreceu o nascimento de um matriarcado religioso pois as mulheres conseguiam sustentar a casa e juntar dinheiro para comprar suas roças de candomblé Um exemplo da superioridade financeira das mulheres negras exescravas ou descendentes foi a Ebome Sambadiamongo19 filha do Inquice Samba20 correspondência Angola ou bantu do orixá Oxum dos nagô PRANDI 1997 Ao menos até a segunda metade dos anos de 1990 as netas de Edith Apolinária de Santana mantinham guardadas 18 As mulheresdesanto é o termo utilizado para designar a mulher iniciada no candomblé A iniciação consiste na feitura do santo quando o neófito passa por vários processos ritu alísticos até culminar no dia do nome do santo Neste referido dia ocorre uma cerimônia pública quando através da possessão do iniciado o orixá inquice ou vodum diz o seu nome ao público 19 Nome de Edith Apolinária de Santana no candomblé 20 Esta denominação Samba encontrase em Prandi 1997 64 as pedras que serviam para ralar o feijão do acarajé vendido de porta em porta sem os quitutes da atualidade vatapá salada caruru Na Bahia a venda do acarajé em sua origem tinha a escolha restringida a duas opções com ou sem pimenta costume da primeira metade do século XX Como ocorre com as mulheres de Ponta de Areia como ocorreu com Sambadiamongo e com mulheres negras donas da mesma sorte a cozinheira amadiana e sua irmã eram coluna financeira da família nos tempos de solteiras e com Flor o fato se prolongou até o primeiro casamento Esta relação de Flor com o trabalho confirma a sua androginia tomando atitudes de homem da casa pois em sua época era incomum mulheres sustentarem o lar Flor sustentou sua mãe sustentava Vadinho mas não se invertia o exercício de poder exceto nos momentos finais da trama quando Vadinho já era um egum e propôs a divisão das atenções de sua amada com Teodoro Inclusive na época da viuvez os passeios à meianoite continuavam a arrancar o egum de Exu21 dos lençóis de Flor O egum malandro não dispensava as noitadas deixando a viúva e esposa insatisfeita a recordarse dos tempos em que o boêmio era vivo e fazia o mesmo O homem continuava a mandar e a mulher apaixonada obedecia transformandose em força reativa até o momento da transmutação Na religião afrodescendente do Estado do Recife o Xangô os maridos das mulheres do culto quando moram com elas não exercem autoridade no lar nem tomam decisões SEGATO 2000 p 60 Tal prática difere de Dionísia de Oxóssi comadre de Flor subjugada ao seu marido que apesar de brigar pelo que é seu acabou aceitando a traição 21 Como Vadinho encontravase morto e em vida era filho de Exu após a morte passou a ser Egum de Exu segundo a liturgia candomblecista 65 do companheiro pois ameaçou mandar o traidor embora Ameaça só minha comadre qual o homem que não põe chifres na esposa AMADO 1966 p 371 Ainda que não lendo Jorge Amado apenas como documento procurase a representação da ancestralidade e dos orixás as quais no entendimento hoje tornado comum são expressões da defesa de uma identidade Não é realizada a reescrita integral da afirmação bem intencionada do historiador Teixeira22 Jorge Amado é um antropólogo estragado na ficção É crível que Jorge Amado é um pintor de realidades o qual procura pôr arte naquilo que retrata quem sabe para contrariar a literatura enquanto documento ou quem sabe para contrariar o documento como fonte privilegiada da memória cultural Causou estranheza quando Jorge Amado pareceu desconhecer certos preceitos do candomblé como o poder das mulheres filhas de orixá a exemplo de Dionísia de Oxóssi O autor era amigo e leitor de Edison Carneiro23 frequentador dos candomblés da Velha Bahia RAILLARD 1992 Ogã do Pai desanto Procópio RUBIN CARNEIRO 1992 sacerdote com lugar de destaque na resistência nãoficcional à repressão policial aos candomblés e nesta mesma resistência retratada em Tenda dos Milagres 2000 Ministro de Xangô Obá Orolu do Ilê Axé Opo Afonjá candomblé famoso por seu tradicionalismo Temse como certo que Jorge Amado não cometeria tais equívocos por desconhecimento de causa acreditase mais em liberdade de criação Ou ocorreu um 22 Entrevista do historiador Cid Teixeira ao programa Ralando na Área TV Bahia conces sionária da Rede Globo de Televisão na Bahia em 2003 23 Autor de Candomblés da Bahia estudioso do candomblé e companheiro de Jorge Amado na Academia dos Rebeldes 66 rompimento com a realidade das fortes mulheresdesanto e a conexão com a sociedade civil onde as mulheres eram submissas O mais acertado é entender que os candomblés estão inseridos num conjunto maior que é a sociedade de classes recebendo portanto influência desta Assim não há como destacar a possibilidade da existência de mulheresdesanto desprovidas da audácia característica de suas companheiras de religião Há os enganos contra fato não há argumento os quais são propositais enganos para a antropologia e liberdade de criação para a literatura Também como exemplos da autoridade de filhasde santo devem ser citados alguns acontecimentos do terreiro de candomblé da nação Angola Mansu Bandu Kenke do Inkinançaba localizado no bairro de Pirajá bairro periférico da Cidade do Salvador Quando a pesquisa de campo24 foi feita entre 1994 e 1999 a sacerdotisa fundadora da casade santo Sambadiamongo ou Edith Apolinária de Santana25 já se encontrava no mundo da verdade o mundo espiritual do dizer de velhos afrobrasileiros Mas como reza a tradição o seu orixá ou inquice como se diz nas nações angoleiras ainda regia e rege a casa Tratase de uma casa de Samba a equivalência de Oxum para os nagô PRANDI 1997 E como casa de orixá ou inquice feminino com o descendente mítico feminino as mulheres continuaram a exercer maior autoridade que os homens inclusive nas relações familiares Fato explicado por 24 Ao invés de uma pesquisa de campo com todas as formalidades exigidas o que se cha ma aqui de pesquisa de campo foram alguns anos de convivência dentro deste importante templo afrobrasileiro 25 Sambadiamongo era o nome dado a Edith Apolinária de Santana por seu inquice quan do da feitura Todos os iniciados possuem um nome mítico relacionado ao seu orixá inquice ou vodum 67 uma informante e companheira de uma Equede26 da casa esta última neta biológica da falecida Ebome27 ou Ialorixá com a seguinte frase Casa de Santa mulher homem fica preguiçoso e as mulheres mandam Este candomblé guarda importante similitude com a história amadiana tanto Flor como o templo são regidos por Oxum Na casa de Flor casa de Oxum pois o orixá da cabeça do dono da casa é também o dono da casa de seu filho Vadinho era um grande preguiçoso Inicialmente Florípedes não mandava era regida pelo marido com carícias e às vezes com violência A partir da formação do triângulo amoroso Flor passou a ser elemento preponderante fato reconhecido inclusive por Vadinho Nem só comigo nem só com ele com nós dois minha Flor enganadeira Ele também é teu mari do tem tanto direito quanto eu Um bom sujeito esse teu segundo cada vez mais gosto dele Aliás quando cheguei te avisei que a gente ia se dar bem os três AMADO 1966 p 483 No mesmo candomblé ouvese um depoimento sobre o marido de uma filhadesanto da Casa que teria desafiado o orixá de sua esposa O consorte disse que o orixá e a esposa eram o mesmo que ele possuía à noite De acordo com o depoimento o orixá castigou o homem fazendoo perder o emprego e o amor da companheira A entidade transformou a filha em sustentáculo da casa fazendoa trabalhar como costureira para manter o amante e o marido que passou a fazer os trabalhos domésticos servindo à esposa e ao novo consorte 26 As Equedes são membros do candomblé que não são possuídas pelo orixá têm várias funções desde vestir o santo até tocar tambores apesar de não ser comum esta última fun ção 27 A palavra Ebome pode ser encontrada em algumas variações como Ebame sempre signi ficando Mãedesanto ou Ialorixá palavra de origem iorubá mais conhecida popularmente 68 Ainda segundo o depoimento através de seu Erê orixá criança Oxóssi explicou à Ebame que havia sido chamado de mulher O orixá caçador senhor das matas resolveu provar que ele era o homem da casa enquanto o marido de sua filha passou a fazer o papel de empregada do novo casal sem direito a nenhum favor amoroso Este fato pode ser verificado no culto Xangô do Recife onde alguns orixás masculinos não admitem homens dando ordens e habitando a mesma casa de suas filhas SEGATO 2000 e na ficção verificado com Rosa de Oxalá AMADO 2000 mulher independente sem homem que lhe colocasse rédeas Contrariamente ao que aconteceu com a personagem Dionísia de Oxóssi subjugada pelo marido Depoimentos semelhantes são comuns em relação às mulheres filhas de orixás femininos Algumas filhasdesanto do Mansu Bandu Kenke do Inkinançaba e integrantes de uma casa de umbanda também em Pirajá alegam que depois de iniciadas a ira de seus orixás desfez seus casamentos por serem maltratadas pelos maridos Outras iniciadas alegam uma reversão em seu favor nas relações de poder quando os maridos não são iniciados O mais interessante é que no caso dos orixás femininos com exceção da brava Iansã as coisas acontecem numa transição branda pois geralmente após o retorno da reclusão iniciática a situação já se encontra revertida como se sempre tivesse sido assim uma reversão parecida com a rendição de Vadinho anunciada desde o momento de sua volta Vai embora doido ele já está entrando na casa vai fechar a porta Por que hei de ir me diga Ele chega e vai te ver aqui que é que eu vou dizer Tola Ele não me vê só quem me vê és tu minha flor de perdição 69 Mas ele vai deitar na cama Vadinho fez um gesto de lástima impotente Não posso impedir mas apertando um pouco cabe nós três AMADO 1966 p 390 Para depois se consolidar através da já citada fala Somos teus dois maridos tuas duas faces teu sim teu não Para ser feliz precisas de nós dois AMADO 1966 p 484 Da alegoria do amor da malandragem masculina Através das similitudes com a história de Florípedes entendese o triângulo amoroso como um castigo a Vadinho apesar de por ele mesmo proposto Mas o mito Oxum fica pobre por amor a Xangô mostra a Yalodê fazendose subserviente ao orixá da justiça e perdendo todos os seus bens para sustentar o amado Oxum era conhecida como a amante ardorosa Oxum teve muitos amores de quem ganhou presentes preciosíssimos Um dia chegou à aldeia um jovem tocador de tam bor Era Xangô um belo homem que desde logo atraiu o desejo de Oxum Oxum foi se aproximando de Xangô até que um dia ele a tomou numa calorosa relação sexual Mesmo assim Xangô não deixou de humilhar e desdenhar a linda jovem Tempos depois A fama e a fortuna de Xangô lhe fugiram das mãos e ele se viu empobrecido e esquecido 70 Envergonhado ele fugiu dali Mas continuava o glutão de sempre a viver com conforto e prazeres Oxum seguiu sendo sua amante e o consolou sacrificando por ele tudo o que tinha De tudo dispôs Oxum para o conforto de Xangô De tudo desfezse Oxum pelo amor de Xangô Ficou pobre por amor a Xangô Restou a Oxum apenas um vestido branco De tanto lavar a única peça que lhe restara a roupa branca tornouse amarela Desde esse dia Xangô amou Oxum PRANDI 2001 p 336 Com esse mito o pensamento retorna à afirmativa do início do capítulo que são várias as Oxuns de várias qualidades e não se sabe se há uma Oxum específica de Flor ou se a existência coletiva de Oxum contribuiu para a construção da personagem e dos acontecimentos em torno do ente ficcional Esta afirmação pode ser repetida com base no fato de que o mesmo arquétipo que com o mito da esterilidade destoa da Flor submissa a Vadinho amor e algoz justifica o masoquismo da filha de Oxum através da presente narrativa Ou seja se com o mito da esterilidade aparece uma Flor arredia destoante da altiva Oxum no mito Oxum fica pobre por amor a Xangô o arquétipo multifacetado do orixá justifica as ações de submissão da personagem São contradições decorrentes da existência de diferentes momentos das vidas das várias Oxuns Observase que as condutas de Vadinho e do orixá Xangô são parecidas no que tange a conforto e prazeres diferindo apenas no amor que Vadinho já sentia por Flor desde o início ao contrário do orixá da justiça que foi levado a amar sua mulher 71 Mas Vadinho não era de Xangô com certeza se este fosse o orixá do rapaz outro destino o aguardaria Poderia continuar o amante da noite do jogo e das mulheres mas certamente caberia a construção da personagem que não amasse tanto o álcool elemento dos rituais de Exu a ponto de leválo à morte Evidente que comportamentos destoantes da vida boêmia para filhos desses ou de outros orixás justificariam heranças de características dos pais míticos As particularidades dos orixás permanecem nas entrelinhas de vários comportamentos e ações de seres ficcionais e nãoficcionais As relações de poder entre os orixás masculinos e femininos da liturgia nagô nem sempre foram tão desfavoráveis às mulheres O mito Ogum conquista para os homens o poder das mulheres conta que No começo do mundo eram as mulheres que mandavam na Terra e eram elas que dominavam os homens A mulher manejava o homem com o dedo mindi nho PRANDI 2001 p 106 Tudo coordenado por Iansã até que um dia Ogum sob a orientação de Orunmilá conseguiu reverter a situação A ação das mulheres no poder foi aterradora humilhante e injusta Parece que a liturgia nagô encontrou um meio para justificar a direção do mundo sob o domínio dos homens interpelados somente pela Grande Mãe Ancestral A própria Iyá Mi Oxorangá é um exemplo de abuso do poder tal Dona Rozilda e diferente de Dona Flor filha de Oxum uma das representações da Grande Mãe A quituteira possuía características de um poder controlado como o ideário católico das Santas meigas maniqueístas virando a face para receber a segunda bofetada 72 Apenas no leito com Vadinho e às vezes com Teodoro Flor esquecia a noção cristã de pecado Uma das preocupações aqui é selecionar mitos que corroborem de alguma forma para a negação ou afirmação da representação dos orixás e da ancestralidade na obra analisada Daí confrontando o mito Oxum fica pobre por amor a Xangô com a submissão de Flor e posterior domínio sobre Vadinho constatase que o amor responsável pela submissão do orixá e sua filha fez com que o Filho de Exu e o orixá Xangô fossem sensibilizados por suas amadas Este sentimento possuiu significativa parcela de responsabilidade na conquista dos desejos da Yalodê e de sua descendente mítica A percepção do amor enquanto arma não invalida para o caso de Flor a inércia ou falta de intencionalidade para a luta Deve ser reafirmado que as táticas e estratégias são do arquétipo Oxum sem o conhecimento e independente do pedido de sua filha Flor não usou de artimanhas para comover seu amado apenas amou A astúcia foi uma ação do arquétipo Oxum no romance DF também no mito Oxum fica pobre por amor a Xangô Afinal a deusa dos rios recebeu de Olodumaré o amor enquanto atribuição característica e poder Nos dois mitos Oxum é vencedora como Flor ao conquistar seus dois maridos através da alegoria do amor escondida por detrás do leque da Iyá deixando sobressair seus aspectos subservientes e masoquistas No mito da esterilidade o amor próprio e o amor à causa das mulheres é a alegoria Oxum ator sintagmático transformou todos os orixás masculinos em atores paradigmáticos RAFFESTIN 1993 até Olodumaré o deus supremo foi cooptado No mito Oxum fica pobre por amor a Xangô Oxum com persistência conquista 73 seu amado mesmo depois de ele ter consumido todos os bens dela No referido mito em que Oxum é submissa ela revelase ator sintagmático cooptando Xangô para seu território através do amor arma infalível da Iyá Voltando ao mote da divisão do trabalho despertado pelo modo de vida de Xangô no último mito citado é possível compreender o quanto este assunto se encontra ligado ao sexo e à exploração da mulher O negro Arigof amigo de Vadinho e filho de Xangô juntamente com todos os malandros de DF são exemplos de como a mulher pode ser fonte de renda Arigof assume e entende a sua realeza de macho pelo fato de ser sustentado pelas amantes opinião compartilhada com sua amásia Teresa a qual se sentiu ofendida quando numa maré de sorte proporcionada pelo egum de Vadinho o jogador malandro e gigolô quis contribuir com as despesas de casa um tipo de androginia pouco desejada pelas mulheres mas praticada pela branca Teresa arreitada por um negro DF por isso chamada de Teresa Negritude Sentindose frustrada e ofendida a geógrafa fez lhe ver o absurdo e o ridículo da situação a ela Teresa Negritude competia sustentar a casa e o negro macho ela tinha seu orgulho sua honra a defender Um ou outro presente ainda vá mas daí contribuir para o aluguel ah era um despro pósito AMADO 1966 p 488 Os malandros em DF diferem dos coronéis de Gabriela Cravo e Canela 1989que viviam a montar casas em ruas de canto ou em praças centrais para suas amantes As concubinas dos cacaicultores às vezes mantinham jovens rapazes com o dinheiro dos grandes fazendeiros como no exemplo de Glória a sustentar o professor Josué com o dinheiro do Coronel 74 Coriolano Há a possibilidade de o autor terse inspirado em mandriões conhecidos nos tempos da Academia dos Rebeldes nas noites da Velha Bahia as quais declarou ter frequentado apud RAILLARD 1992 Afinal a construção dos personagens do romance podese pautar em modelos da realidade como nos explica o teórico Antônio Cândido em Personagem do Romance 1976 Recorrendo à ancestralidade africana LéviStrauss 1982 p 362 diz que na África é necessário ser rico para obter muitas esposas pois é costume comprar a noiva mas onde ao mesmo tempo o aumento do número de esposas é um meio para aumento da riqueza uma vez que o trabalho feminino tem valor econômico definido Deste modo ocorre a transplantação e a ressignificação de um costume africano em personagens amadianos e em personagens da sociedade Em Ponta de Areia e em observações em candomblés baianos podese notar a confiança no trabalho feminino e também a dependência deste com ou sem poligamia É preciso esclarecer que este tipo de comportamento não é privilégio dos afrobrasileiros Em O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro 1995 há relatos de europeus formadores de criatórios de gentes Estes fiéis escudeiros da coroa portuguesa tinham a nobre e cristã função de fornicar com as índias para produzir vasta mãodeobra As várias consortes dos chefes de criatórios de gentes sustentavam o marido o qual possuía a única função de procriar tudo isto era facilitado pela hospitalidade indígena O incesto não era proibido e até um pouco tolerado pelo clero pois Portugal precisava de braços No que tange aos coronéis fazemse melhores as semelhanças com os senhores que subjugavam suas escravas conforme descrito por Freyre em Casa Grande e Senzala 2001 75 Tal prática era existente na zona do cacau amadiana ou com o mafioso Pelanchi de DF Em ambos os casos o chicote era substituído pelo dinheiro para ludibriar e seduzir as flageladas pela pobreza Permanecendo na zona do cacau Nacib do romance amadiano Gabriela Cravo e Canela 1989 traído de fato mas não de direito o árabe conseguiu provar a ilegalidade do casamento para dizer que por isso o matrimônio nunca teria acontecido e assim não poderia ser corno ampliou os negócios por causa das receitas da jovem cozinheira Gabriela vinda do sertão Os quitutes da sertaneja alimentavam a conta bancária do ilheense árabe e o sonho de comprar umas roças de cacau Até o reto Teodoro teve que aceitar o dinheiro de Flor para fechar o negócio da casa própria Da Umbanda e da Pombagira Tais comportamentos em relação à divisão do trabalho em DF podem causar alguns dissabores mas foi visto que há correspondências mitológicas e nãoficcionais Contudo certamente o maior estranhamento é em relação à coragem de Oxum para realizar ações romper barreiras e transgredir conceitos sociais há muito estabelecidos A imagem que se faz de Oxum entre os menos esclarecidos é a da mulher sensual ingênua dócil e infantil como informa Segato 2000 p 21 sobre o Xangô do Recife É bem verdade que esta imagem de docilidade sensualidade e ingenuidade encontrase também em Flor fortalecendo a ideia da representação coletiva de Oxum pois esses conceitos maniqueístas fazem parte da constituição de Oxum no imaginário popular brasileiro 76 O imaginário popular brasileiro tratou de diabolizar com a orientação e o incentivo dos doutos do cristianismo as características de Oxum referentes à liberdade sexual transgressão e poder de elaborar intervenções Prandi 2003 p 7 diz que muitas características africanas das Grandes Mães inclusive Iemanjá e Oxum foram atenuadas ou apagadas no culto brasileiro dessas deusas e passaram a compor a imagem pecaminosa de Pombagira o Exu efeminizado do Brasil no outro polo do modelo em que Exu reina como senhor do mal Apesar de Darcy Ribeiro elogiar os cultos da umbanda dedicados a Iemanjá e relacionados com a passagem do ano e de qualificar a Rainha do Mar como única santa que fode RIBEIRO 1995 por receber várias oferendas destinadas à resolução da felicidade conjugal a umbanda parece ter promovido em torno da figura de Iemanjá um esvaziamento quase total do conteúdo sexual AUGRAS 2000 p 16 esvaziamento também realizado em torno de Oxum O povo desanto do candomblé vítima da ideologia cristã passou a incorporar características da umbanda embranquecendo o candomblé e substituindo a tradicional noção de tabu pela noção cristã de pecado mais aceita na sociedade brasileira Peter Fry conforme Augras 2000 p 29 relata que uma mãedesanto umbandista incorporou Iemanjá na beira de uma praia carioca e a entidade começou a cantar com uma voz redonda e afinada e com trêmulo de cantora de ópera A melodia era a Ave Maria de Gounod Isto pode ser facilmente explicado com a mesma justificativa para a existência dos Exus de umbanda todos eles foram pessoas vivas no mundo contemporâneo PRANDI 2003 A Iemanjá da umbanda pode ter sido uma cristã recémmorta um egum como Vadinho só 77 que bastante cristianizado Estes são conceitos muito próximos do Espiritismo seguidores do codificador da doutrina Alan Kardec uma religião também influenciadora da formação da umbanda O mesmo movimento de cristianização que diabolizou Exu tratou de embranquecer Oxum retirando seus atributos sexuais por tratarse de pecado diante de Deus Somente Iansã ainda possui junto ao imaginário popular o poder de sedução e iniciativa própria Rainha da sociedade secreta dos eguns guerreira feiticeira Iansã mantém a fama de mulher aguerrida É ela mãe conclamada por muitas mulheres na Bahia em momentos difíceis e de demanda principalmente para ajudar no jugo de seus parceiros ou defenderse do jugo destes Os leitores poderiam esperar uma total concordância entre o conformismo de Flor e as características de Oxum É que no imaginário popular concernente ao período retratado da obra já haviam sido inseridas as referências de Oxum a Santa Luzia e Nossa Senhora das Candeias PRANDI 1997 incorporando valores cristãos já predominantes no candomblé através do sincretismo com o catolicismo A interpretação e o paralelo cristãos sincretizados também são válidos pois o imaginário popular é fonte de inspiração amadiana além de que o autor declarou que a umbanda seria a religião do futuro RAILLARD 1992 p 87 devido a inconveniências do mundo moderno e ao fato de o candomblé não poder adaptarse a elas pois afinal algumas adaptações já seriam umbandizações Com a umbanda nasceram entidades que já foram seres humanos brasileiros Em consonância com o discurso cristão estas entidades genuinamente brasileiras se denominaram 78 diabos ou suas senhoras Pombagiras Padilhas etc A maioria delas foi em vida prostituída ou mulheres sexualmente à frente de seu tempo gozando de intensa vida amorosa o que é imperdoável segundo o cristianismo Uma informante declarou que a Padilha dela em vida era uma professora tinha conhecimentos pessoa elegante Embora prostituta sabia e sabe se portar como uma senhora por isso ela só quer coisas brancas TRINDADE apud AUGRAS 2000 p35 Além de um visível discurso de embranquecimento regra para ascensão social do negro FANON 1983 PRANDI 1997 a profissão da Padilha leva a crer tratarse de uma mulher que gozava de certa liberdade sexual e não uma prostituta no sentido profissional da palavra A pecha da prostituição certamente ocorreu em consequência da discriminação social sofrida O mesmo aconteceria com Florípedes caso seu duplo relacionamento fosse de conhecimento público Apesar da consciência dos poderes e atribuições da Yalodê uma leitura à luz do significado da Pombagira e da Padilha entidades mestiças como o povo brasileiro como a noção amadiana de identidade possui grande ressonância A entidade Pombagira pertencente à Quimbanda lado esquerdo ou maléfico da Umbanda não obstante haver discordâncias quanto a este conceito possui características um pouco condizentes com a história da vida de Flor Na época da viuvez quando ainda estava fechada à alegria de viver negando muitos pretendentes a cozinheira encontrava se cheia de desejos libidinosos revelados nos sonhos Durante os devaneios noturnos a viúva mais parecia uma Pombagira rodeada de homens a oferecerse a todos com seu canto de convite com suas danças de frete a rebolar as ancas os 79 quadris e o busto em meneios lascivos de rameira trazendo os um a um ao centro da roda com umbigadas como a mais oferecida das mulheresfáceis Cínica debochada oferecida tão oferecida puta de dar nojo AMADO 1966 p 240 O conflito interno da viúva fazna acharse a mais leviana das mulheres e viver infeliz por desejar em segredo todos aqueles homens que a galanteavam A representação da Pombagira se confirma com o oferecimento e a lascividade dos sonhos O conflito interno e o sentimento de culpa são também características de Pombagiras Padilhas e Exus da Umbanda divididos entre a vida e a pósvida desregradas e o sentimento de culpa cristão A totalidade dos depoimentos conhecidos sobre as vidas das Pombagiras revela que o povo de Pombagira é formado por espíritos de mulheres que se entregaram à fornicação seja em vida seja depois da morte AUGRAS 2000 p 33 Por esta razão a personagem Magnólia vizinha de Flor esposa de um policial é uma representação de Pombagira ou Padilha fazedora de favores sexuais à polícia soteropolitana e a inúmeros estudantes E Flor mesmo discretamente fornicou traiu o marido constituiu um gigolô que não se importava em dividila com outro e que chamava Teodoro de colega somos os dois casados contigo Colegas de babaca meu bem AMADO 1966 p 401 Numa leitura judaicocristã eou umbandizada portanto também afrodescendente Oxum dá licença para vir a representação da Pombagira Quem sabe se Vadinho não tivesse voltado do orun o destino de Flor não seria oferecerse a um e a outro para obter melhores favores sexuais do que com 80 Teodoro seu antiquado marido prostituindose tal e qual os Exus efeminizados Vadinho disse que voltou para salvar a honra de Flor para impedila de ficar com um e com outro até nesse sentido há a possibilidade de afirmação do arquétipo Pombagira pois ela é a esposa de Exu pai de Vadinho e o próprio morto Vadinho Pensas que vim te desonrar e no entanto vim salvar a tua honra Se eu não viesse eu teu marido com legais direitos diz minha Flor fala a verdade não te enganes que iria suceder se eu não viesse Vim impedir que tomasse um amante e arrastasse teu nome e tua honra pela lama AMADO 1966 p 485 Vadinho já morto transformase num típico Exu da umbanda ou umbandizado para o Candomblé um egum de Exu melhor o espírito que em vida foi filho de Exu Ao re esposar Flor o morto teria transferido para ela o arquétipo da rainha das encruzilhadas ao mesmo tempo em que salva a sua honra matando o desejo de mulher malsatisfeita Flor não foi Pombagira por não se entregar aos pretendentes mas acabou sendo por ter dois maridos e um deles Exu Há de se tomar cuidado para não se entender Oxum como mulher prostituída por ter uma relação com Exu quando ainda era esposa de Xangô Não podemos julgar os orixás por acontecimentos isolados ou com a moral cristã Flor pode ser julgada sob os dogmas do cristianismo pois se encontra inserida em uma sociedade com estes conceitos mas não Oxum apesar de o Candomblé não ser uma reprodução de determinadas religiões africanas e sim uma nova interpretação destas com a ajuda do elemento católico e em alguns casos o indígena brasileiro Que fique claro que agora se aborda Oxum 81 representação nagô tradicional e não conceitos cristianizados deste orixá presentes no imaginário popular na umbanda e em candomblés Além do mais o relacionamento de Oxum foi com um Exu de fato uma entidade nagô com conceitos da moral nagô e quando é feito o confronto de Flor com o Exu efeminizado assumese um olhar judaicocristão o qual constitui conceitos dos guias entidades da Umbanda Não é finalidade confundir pessoa ficcional ou não ficcional e seus erros com o orixá que a governa mostrandoo em uma de suas manifestações apenas quando todos eles são extremamente complexos e polivalentes TAVARES 1996 p 51 Entretanto neste trabalho a proposta é apenas fazer alguns recortes comparando o enredo de DF com as mitologias africanas e afrobrasileiras Assim revela a viabilidade de uma crítica com base nessas mitologias entendendoas como linguagem e como representação na obra de arte Explicar os porquês de determinados acontecimentos e a constituição de cada orixá ou apenas de Oxum é uma proposta fascinante mas impossível na presente escrita e certamente desnecessária pois Dona Flor não é apenas a representação da Oxum nagô A cozinheira é resultante de terse misturado sangue indígena ao negro e ao branco AMADO 1966 227 uma mestiça por isso coubenos a interpretação também à luz do imaginário popular e da Umbanda O próprio Jorge Amado chega a citar o Cão para referirse à batalha final para manutenção de Vadinho no aiê tudo ocorrendo com os relógios marcando meianoite e meiodia horários consagrados ao diabo ao cão entidade do cristianismo e conferido a Exu pelos deturpadores das religiões negras Desta forma espera 82 se que algumas informações fragmentadas dos mitos não reforcem a discriminação à afrobrasilidade Seria importante sempre ter em mente a citação de Nietzsche sobre o que é bom para um povo pode ser ruim para outro Agora o mais relevante é concentrarse nos mitos e lembrar Tavares 1996 p 51 dizendo que a um leigo a quem se explicasse ritual cristão poderia parecer que o cristianismo é uma religião de antropófagos que devora o corpo de um judeu num sacrifício litúrgico aos domingos Portanto para o leigo ou para alguém que compreende o cristianismo como única verdade possível para toda a humanidade os deuses e mitos aqui discutidos são e serão sempre o mal O aparecimento do arquétipo Pombagira não retirou nem inviabilizou o arquétipo Oxum Se a Pombagira incorpora aspectos de Oxum tidos como pecaminosos ela Pombagira ainda é em parte representação deste orixá de origem africana mesmo possuindo aspectos da prostituição e das ações praticadas pelo espírito em vida Estes espíritos quando encarnados geralmente foram filhos de Oxum Iemanjá Nanã ou Ewa orixás da água e as Padilhas filhas de Iansã A mensageira em vida quase sempre foi filha do orixá para o qual exerce a função de mensageira quando morta Assim Flor segundo a liturgia umbandista poderá ser depois de morta uma Pombagira de seu orixá Há vastos depoimentos de casais de amantes transgressores dos conceitos morais cristãos mortos muitas vezes por isso continuando após a morte a saga iniciada em vida como guias da Umbanda Sem falar dos casamentos realizados com espíritos comum entre pactos feitos na umbanda e em candomblés umbandizados ou umbandoblé segundo termo registrado por Prandi 2003 Dentro do 83 mundo ocidental contemporâneo os mórmons realizam casamentos com espíritos desencarnados Mas diferentemente dos mórmons a nova união de Flor com o já desencarnado Vadinho fora motivada apenas pelo desejo de estarem juntos não para salvação das almas Outro aspecto que aproxima muito Flor à Pombagira é a relação com o trabalho Esta entidade da umbanda trabalha sob as ordens dos maridos Exus como Flor trabalhava para Vadinho e até ajudando Teodoro na compra da casa Mas ao mesmo tempo em que recebe ordens dos maridos Exus algumas constituem relacionamentos amorosos poliândricos com a ciência dos parceiros tal Vadinho aconselhando e dando justificativa para o triângulo amoroso A nossa noite é agora Depois meu bem é a vez de meu colega o outro teu marido Com ele nunca mais Como ia poder Nunca mais Vadinho Agora só dois tu não vê logo Meu bem não diga isso Vadinho O que é meu bem Você não se importa que eu te ponha chifres com Teodoro Chifre passou a mão na testa lívida Não não dá para nascer chifres Eu e ele esta mos empatados meu bem os dois temos direito ambos casamos no padre e no juiz não foi Só que ele te gasta pouco é tolo Nosso amor meu bem pode ser perjuro se quiseres para ser ainda mais picante mas é legal e também o dele com certidões e testemunhas não é mesmo Assim se somos ambos teus maridos e com iguais direitos quem engana a quem Só tu Flor enganas aos dois porque a ti tu não te enganas mais AMADO 1966 p 483484 Além disso ocorre ainda a falta de filhos pois não é conhecido depoimento no qual Padilhas e Pombagiras 84 possuam ou tenham em vida possuído filhos ou pelo menos evitase tal discussão Toda essa comparação de Flor com a Pombagira pode levar à atrapalhação Contudo podese pensar cada orixá como um arquétipo que informa e fornece padrões de temperamento e comportamento BARROS TEIXEIRA 2000 p 112 ao filho Porém continuam os autores deve se saber que as pessoas que são filhas de orixá recebem influências de outras entidades secundárias o juntó segundo orixá PRANDI 1997 É comum ouvir das pessoasdesanto que todos crentes ou não recebem influências de vários orixás predominando o dono da cabeça e em menor grau os Exus que acompanham os orixás Daí então outra justificativa para Dona Flor ter na sua construção a representação do arquétipo Pombagira Qualquer ser humano ficcional ou nãoficcional pode ser influenciado ora por um orixá ou guia ora por outro Na obra não há referência a outro orixá de Flor o que deixa apenas a opção secundária de buscar na Pombagira justificativas para o comportamento da personagem visto que na Bahia todo orixá possui seus Exus e o mensageiro da Oxum de Flor poderia ser a Pombagira Assim concluise que a engenharia da construção de Flor e dos acontecimentos em torno dela possui alicerce na ancestralidade e principalmente na mitologia afrobrasileira Seja através do motivo gravidez da submissão ou insubmissão de Flor da tentativa de romper padrões sociais o arquétipo Oxum sempre esteve presente Até quando o arquétipo Pombagira aparece foi necessária uma análise mais profunda de características da 85 ancestralidade africana no Brasil absorvidas pela Pombagira Portanto não há dúvida de que Flor foi construída à luz de seu orixá respeitando o pensamento coletivo sobre Oxum e secundariamente a existência do Exu efeminizado Definitivamente Dona Flor só poderia ser filha de Oxum caso ocorresse o contrário não haveria justificativa para uma série acontecimentos A infertilidade de Flor e sua vocação natural para mãe aceitando criar os filhos alheios acha correspondente em Oxum Sua faceirice e seu amor descabido seu desejo ardente e ao mesmo tempo sua aparente frigidez são com certeza características de filhas deste orixá Desta forma haveria uma dissonância caso o autor designasse outra entidade como mãe da cozinheira Flor 87 UM EXU VADINHO Exu Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que os afrobaianos têm grande tendência a confundir com o diabo Tenho ouvido mesmo de negros afri canos que todos os santos podem se servir de Exu para mandar tentar ou perseguir a uma pessoa Em uma altercação qualquer de negros em que quase sempre levantam uma celeuma enorme pelo moti vo mais fútil não é raro entre nós ouvirse gritar pelos mais prudentes Fulano olha Exu Precisa mente como diriam velhas beatas Olha a tentação do demônio No entanto sou levado a crer que esta identificação é apenas o produto de uma influên cia do ensino católico RODRIGUES 1935 apud PRANDI 2003 p 8 Vadinho filho de Exu ou o próprio Exu Os dois de acordo com liturgias afrobrasileiras Neste capítulo são utilizados conceitos umbandistas para provar a existência do Exu Vadinho Ao mesmo tempo os conceitos tradicionais explicados por Santos 1986 e Luz 2000 continuarão como operadores do discurso Sendo um Exu umbandista Vadinho também é um egun um espírito de morto um ancestral masculino e como tal preserva características próprias conservando sua relação com os conceitos mais tradicionais da afrodescendência Alguns feitos e ações do Exu Vadinho são imediatamente conectados com atribuições de egum e do Exu tradicional afinal este também possui marcas na entidade brasileira Sem perder de vista o caráter festivo de Exu é lançado um olhar para as circunstâncias da morte do malandro quando são vistos alguns correspondentes religiosos e ancestrais Todo 88 este trabalho tem a intenção de comprovar o quanto Vadinho é Exu o quanto as características deste orixá norteiam a construção deste personagem e de sua história Situando Exu Vadinho uma Entidade Para entender Vadinho como Exu e não apenas filho dele fazse necessário penetrar em alguns conceitos da Umbanda e do Candomblé No capítulo anterior foi reproduzido um depoimento sobre uma Iemanjá que cantava uma Ave Maria na beira de uma praia carioca FRY apud AUGRAS 2000 p 29 e explicandose disse poder tratarse de um espírito desencarnado ou um egum assumindo desígnios da Rainha do Mar O egum de Iemanjá teria evoluído e passou a trabalhar como Iemanjá por pleno merecimento como acontece aos Exus da Umbanda que em vida foram malfeitores Estes discursos de evolução do espírito e assunção de atribuições das entidades míticas nagô são características da Umbanda sendo muito comuns entre as pessoas desta religião Por várias vezes foram ouvidos depoimentos em uma casa de Umbanda de Salvador no bairro de Pirajá sobre a evolução espiritual da Padilha Alice Sete Rosas um Exu da Casa28 A própria entidade dizia que por seus bons préstimos era já quase merecedora das atribuições de Iansã orixá ao qual estava diretamente subordinada As declarações da entidade eram completadas com a certeza de que na próxima encarnação viria dando o ilá ou brado de Iansã a deusa dos raios e uma das mulheres de Xangô 28 Resultados obtidos entre 1993 e 1994 Se a partir da voz de Prandi podese falar de can domblés umbandizados esta casa de umbanda é uma umbanda candomblecizada 89 Essas observações se conectam com a afirmativa de que a umbanda é uma religião de espíritos humanos que um dia viveram na Terra os guias Embora se reverenciem os orixás são os guias que fazem o trabalho mágico são eles os responsáveis pela dinâmica das celebrações PRANDI 2003 p 10 dos rituais e pela realização de desejos dos fiéis atividade realizada por Vadinho após voltar do mundo dos mortos Tal e qual as Padilhas e Pombagiras os Exus masculinos da Umbanda como dito anteriormente tiveram existência humana diabo que foi de carne e osso espírito guia exus foram homens de questionável conduta assaltantes assassinos ladrões contrabandistas traficantes vagabundos malandros aproveitadores proxenetas bandidos de toda laia homens do diabo por certo gente ruim figuras do mal PRANDI 2003 p 10 Ainda então doceamargos gigolôs como Vadinho eis um Exu de Umbanda e de candomblés umbandizados É um conceito destoante do candomblé tradicional que vê Exu como um orixá e não um espírito de morto O primeiro marido de Flor é um misto de conceitos embranquecidos e conceitos nagô um Exu amadiano calcado no imaginário coletivo na miscigenação Como o povo brasileiro também este tipo de Exu é um mestiço Para Freyre 2001 e Jorge Amado esta mistura forma a identidade brasileira Fazse importante lembrar que o próprio candomblé não é uma religião africana cristalizada e transferida para o Brasil Tratase de uma religião brasileira baiana formada pelo sincretismo entre religiões africanas o catolicismo e em alguns casos com penetração de entidades indígenas os caboclos As referências de Exu ao diabo não são privilégios de 90 umbandistas datam de bem antes da formação do candomblé e da Umbanda Comparar Vadinho aos Exus umbandistas não é desconhecer o lugar de fala de Jorge Amado jovem frequentador de candomblés RAILLARD 1992 e Obá Ministro de Xangô do tradicional Ilê Axé Opo Afonjá É de conhecimento geral que o morto Vadinho é qualificado na obra como um Babá de Exu espírito que em vida foi filho de Exu mas que após a morte age como seu pai espiritual uma entidade com atribuições de Exu um típico Exu de Umbanda e de candomblés menos tradicionais ou umbandizados Portanto a comunicação com conceitos da Umbanda não quer afirmar ser esta a seara amadiana autor que mostra as várias faces de Exu representadas em Vadinho desde os conceitos nagô tradicionais até a diabolização presente em candomblés no imaginário e principalmente na Umbanda Assim o discurso umbandista entra aqui como uma contribuição uma leitura do endiabrado Vadinho Necessário revelar a responsabilidade do caráter maléfico e maniqueísta do arquétipo Exu ao olhar civilizador à sua mistura com o cristianismo ao proposital movimento de associação com o diabo divindade cristã Sim necessário por ser revelação da verdade pois o negro e a cor negra têm sido historicamente associados ao mal e ao diabo forçando o próprio negro a criar mecanismos de embranquecimento como forma de adquirir uma posição social menos desconfortável FANON 1983 A Umbanda é um exemplo de branqueamento exacerbando a diabolização de Exu e muitas vezes assumindo a diabolização como forma de garantia de êxito nos trabalhos mágicos concepção da Quimbanda linha 91 negra da Umbanda Bastante próxima de conceitos católicos e kardecistas respectivamente a exemplo do sincretismo e da ideia de evolução do espírito a Umbanda possui ainda o lado branco lado do bem e das coisas boas Vadinho mesmo com características umbandizadas conserva o caráter não maniqueísta de Exu O ExuVadinho e todos os Exusegum possuem características e desígnios do Exu orixá nagô e do cristianismo pois como invenção brasileira também é miscigenado Mesmo umbandizado e deturpado o Exu revelase a mais negra das entidades umbandistas mas que fique claro negra no sentido de maior proximidade do arquétipo nagô não negra no sentido umbandista que é sinônimo de mal ao contrário de bem e branco A palavra negro é utilizada enquanto desconstrutora de todo este maniqueísmo judaico cristão de bem versus mal O Exu da Umbanda conserva muitas características do conceito primordial como Vadinho demonstrando capacidade de transitar entre os dois mundos paralelos o orun mundo espiritual e o aiê mundo material O orixá dono do pênis patrono da sexualidade responsável por encontrar um lugar adequado para a genitália feminina dificilmente seria aceito pelo cristianismo com suas religiões que preferem depreciar a vida plena ao invés de viver a felicidade As características da sexualidade do Exu nagô foram conservadas no Exu do candomblé no Exu umbandista e transferidas aos filhos de Exu em Jorge Amado Pedro Archanjo pródigo fazedor de filhos do romance Tenda dos Milagres Quincas da obra A morte e a morte de Quincas Berro DÁgua 1996 juntamse a Vadinho depravados 92 e mulherengos chocando e encantando personagens da sociedade ficcional e nãoficcional As doutrinas cristãs até hoje ou principalmente hoje com o propagar através da mídia e a tentativa da globalização em favor de uma hegemonia cristã têmse preocupado excessivamente em depreciar o outro em excluir o outro de toda a expressão do bem dividindo o mundo com sua visão maniqueísta bem versus mal O eucristão intolerante será sempre o bem e o outro ou outro cabo no dizer de Derrida 1995 será o mal Dona Rozilda mãe de Dona Flor é um exemplo do eucristão intolerante A personagem não consegue enxergar seu amargor e descontentamento com a felicidade do outro como uma expressão do mal Contudo a felicidade e o modo de vida de seu genro para ela são expressões inequívocas do demônio Na sociedade brasileira e consequentemente no romance amadiano Exu mesmo no candomblé recebeu características diabólicas efeito do cristianismo doutrina que realiza uma dupla sujeição FOUCAULT 2002 p 43 daqueles que verbalizam o discurso ao próprio conteúdo verbalizado e deste conteúdo ao grupo que o representa FOUCAULT 2002 p 43 A sujeição fezse tão grande a ponto de até na África contemporânea a diabolização de Exu ser algo existente semente plantada pelos missionários nos séculos XVIII e XIX em suas viagens pelo continente africano Sacerdotes de Cristo compararam Exu a Príapo por seu descomunal falo representado em suas estátuas e ao diabo entidade judaico cristã por ser um orixá que contraria as regras mais gerais de conduta aceitas socialmente PRANDI 2003 p 1 como seu filho ficcional amadiano Vadinho Os missionários e viajantes 93 cristãos dos séculos XVIII e XIX insistiam em afirmar ser Exu uma entidade sexualizada e demoníaca PRANDI 2003 p 1 Provavelmente queriam afirmar demoníaca por ser sexualizada Também em alguns candomblés é comum ouvir de velhos sacerdotes e sacerdotisas que se vai dar comida ao diabo para não deixar que ele incomode para afastálo Afirmações deste gênero constituem uma flagrante contradição com a função de Exu guardião e garantia única do bom andamento de toda atividade sagrada iorubá SANTOS 1986 p 198 contradições propagadas desde os primórdios do candomblé no qual até hoje há o sincretismo com o diabo PRANDI 1997 AUGRAS 1983a Na obra amadiana Vadinho possui características do Exu diabolizado e do Exu nagô pois o próprio Exudiabo conserva características do arquétipo nagô Assim o narrador transporta ou demonstra a realidade na literatura afinal toda literatura é realista na medida em que demonstra a realidade BARTHES 1996 As diabolizações são visões de Exu contidas no imaginário popular entendimentos de Exu inseridos no coletivo da sociedade brasileira independente de credo ou religião individual Paralelamente às comparações de Vadinho com Exu realizase o adentramento no conceito nagô tradicional deste orixá intercalando com o Exu diabolizado seja candomblecista ou umbandista Os Exus umbandizados são Exuscristãos tal afirmativa é justificada com base em investigações de campo e em escritos já divulgados por antropólogos os quais comprovam a preexistência humana destas entidades Se há Exus umbandistas que foram brasileiros e são brasileiros dominados pelo discurso cristão mesmo sem o devido 94 respeito à doutrina cristã o que lhes resultou no título e nas funções de diabo após a morte estes Exus que um dia foram matéria são cristãos como Vadinho um cristão relapso um pecador alguém que questionava e questiona o impedimento da felicidade pelos dogmas da Igreja Católica e suas dissidentes protestantes O discurso dessas entidades que um dia quase sempre em tempos não tão distantes foram de carne e osso serve como uma espécie de interpelação das religiões cristãs Ainda assim há o respeito ou ironia nas falas de fiéis e de Exus que declaram suas marcas cristãs estes últimos às vezes referindose ao deus judaicocristão como o pai de vocês aquele homem o lá de cima Como Vadinho a sexualizar o anjo e a Santa em uma conversa com Dom Clemente Que Deus me perdoe padre Mas não parece que o anjo está fretando a santa Desculpe Dom Clemente mas é que esse anjo tem uma cara manjada de gigolô Nem parece anjo Espie o olho dele olho de frete AMA DO 1966 p 56 As palavras de Vadinho parecem uma espécie de fascismo da língua uma obrigação de dizer que se encontra arrependido do pecado apesar de pecar Um Deus me perdoe que pode ser transformado em reminiscências de Boca do Inferno A língua como desempenho de toda linguagem BARTHES 1996 p 14 manifesta seu poder de persuasão seu fascismo não impedindo o pronunciamento não impedindo Vadinho ou os Exus umbandizados de desconstruírem o cristianismo mas obrigandoos a reconhecer a doutrina cristã Tal reconhecimento do cristianismo se processa com Vadinho 95 clamando por perdão a Deus como os Exus umbandizados respeitando os Santos Católicos sincretizados com os orixás aos quais estão ligados ou desejando evoluir à maneira kardecista Esta miscigenação religiosa e cultural caracteriza a sociedade brasileira o enredo de Dona Flor e Seus Dois Maridos e principalmente a morte de Vadinho O gigolô transformouse em um Exu à maneira umbandista ou um egum de Exu na definição mais tradicional do candomblé um espírito que em vida foi filho de Exu e que mesmo depois da morte conserva suas características de araaiê corpo do mundo dos vivos continua frequentando cassinos louco por farras mulheres em especial por Dona Flor O diálogo com Dom Clemente quando o gigolô era um araaiê consolida o entendimento de ser o cristianismo uma característica do Exu Vadinho entidade na qual se transformou após a sua morte de acordo com a liturgia umbandista Com isto não se afirma que Jorge Amado é preconceituoso vendo Exu à maneira cristã embranquecida colocando máscaras brancas em peles negras FANON 1983 escondendo a negritude da entidade O que há é a demonstração da realidade a assunção da miscigenação cultural com todos os aspectos O que ocorre com o aparecimento de características cristãs no Exu amadiano de Dona Flor e Seus Dois Maridos é a tentativa do paralelismo entre a linguagem e a realidade do imaginário popular algo que caracteriza a literatura BARTHES 1996 e que por sua vez é impossível Afinal como já foi reproduzido de Barthes a literatura apenas demonstra a realidade Este paralelismo ou esta demonstração relacionados a Exu consiste em levar para as páginas da literatura as versões desta divindade melhor levar o Exu do imaginário popular e do tradicionalismo nagô 96 atraente tentador transgressor fiel bemfeitor diabólico fôlego de vida sinônimo de liberdade de questionamento e de ofensa à moral da tristeza Não demonstrar isso seria fugir à proposta de uma literatura alicerçada no real A própria Dona Rozilda sogra e desafeto de Vadinho o chamou de demônio quando Dom Clemente o qualificava de anjo transviado na missa de sétimo dia do boêmio Como voz maior da moralidade e da repressão cristã na obra em questão uma espécie de sacerdote do ideal ascético NIETZSCHE 1999 o discurso de dona Rozilda reforça a diabolização de seu genro Algo transviado está fora do caminho desviado como o anjo Lúcifer em relação a Deus Mesmo os anjos transviados têm seu as sento ao lado de Deus em sua glória Anjo Tesconjuo Era um demônio do infer no rosnou dona Rozilda AMADO 1966 p 57 O Carnaval a morte o travestirse e a mandioca sím bolo fálico Continuando a pensar na morte de Vadinho e no arquétipo Exu devese recordar o dia da passagem do personagem ao orun um Domingo de Carnaval pela manhã mais um signo 97 das diabruras do boêmio Em vários depoimentos de idosos29 todos com mais de setenta anos portanto aptos a terem sido contemporâneos da época que inspira a construção do tempo ficcional do referido romance foi encontrada a definição do Carnaval como sendo festa da carne do diabo das luxúrias e do pecado Definição exceto a referência ao diabo concernente com o dicionário de Ferreira 1986 p354 o qual assim define o Carnaval festejos populares e em manifestações sincréticas oriundas de ritos e costumes pagãos como as festas dionisíacas as saturnais as lupercais e se caracterizavam pela alegria desabrida pela liberdade de atitudes críticas e eróticas Aliado ao discurso do Carnaval diabólico repetido por alguns velhos pais e mãesdesanto e jovens filhos e filhasde santo o domingo é dia de todos os santos dia consagrado a todos os orixás em versões do calendário afrobaiano inclusive a Exu Portanto Vadinho morre em um dia destinado também a seu orixá e é enterrado numa segundafeira dia dedicado a Exu por ser o primeiro dia útil da semana dia de trabalho Outro fato que une o Carnaval ao arquétipo cristianizado de Exu pelo menos em candomblés e Umbandas da Cidade do Salvador e Recôncavo baiano é a preocupação em fazer oferendas ao Dono da Rua Exu antes da folia para livrar se dos inimigos ocultos e para tudo ocorrer em paz Nesta 29 Acostumeime a ouvir desde muito criança depoimentos sobre o caráter diabólico do Carnaval Com certeza a maior informante digo orientadora sobre os perigos espiritu ais do Carnaval foi a senhora Vélia Pita de Oliveira 22121921 a 06101996 minha avó materna A importância do depoimento de minha saudosa vó Vélia é fundamentada em seu histórico religioso medium filha das águas e do Caboclo Boiadeiro filha biológica de uma zeladora e praticante das Sessões de Mesa Branca Dona Vélia inicialmente católica chegou a frequentar igrejas missionárias levandome para os cultos aos quais nunca aderi Já pelos idos de 1990 chegou a me revelar a religião de sua mãe Dona Isaura Chaves Pita membro da Sessão do Caboclo Tupinambá entidade que recebia O motivo para tão tardia revelação da religião de sua mãe para um neto próximo com o qual conversava quase todos os dias abre espaço para uma nova discussão com certeza geradora de um outro trabalho 98 inquietação do povodesanto os depoimentos exibem o cuidado equivocado de acalmar Exu pois o Carnaval sendo a festa do diabo seria também festa de Elegbará festa de Vadinho seu filho Junto com o desejo de acalmar o Exu diabocristão vem a leitura de um pedido de amparo vontade concernente com a tradição iorubana onde todas as casas possuem ou possuíam um Exu protetor É muito comum na Bahia vários blocos carnavalescos abrirem seus trabalhos para os dias do Carnaval com o Padê de Exu30 As farofas rituais os acaças31 são oferecidos ao Senhor dos Caminhos para que leve a todos os orixás os pedidos de paz e sucesso Coincidentemente o Carnaval que marcou a passagem de Vadinho para o orun mundo dos mortos e seu consequente nascimento enquanto Exu foi aberto com a presença do boêmio no dia anterior à sua morte Sábado de Carnaval A abertura oficial da folia deuse no Bar triunfo na Praça da Municipal AMADO 1966 p 22 palco de grandes acontecimentos da Velha Salvador nãoficcional ARAÚJO 1999 ao meio dia hora consagrada a Exu pois para alguns baianos é a hora do diabo na Bahia para alguns adeptos de religiões afro hora de Exu equivocadamente comparado ao diabo Sendo assim muitos rituais a Exu são feitos ao meiodia meianoite ou às 1800 horas Os poderes destas horas grandes são contados em músicas dedicadas ao Exudiabo 30 Lody 1992 p 81 em Tem dendê Tem Axé explica que o Padê é o grande encontro encontrar com reunião vir junto e Exu é o grande articulador do encontro promovido pelos homens ao acionálo pelos cânticos danças orikis saudações e principalmente pela comida Entre as comidas a farofa caracteriza o fundamento o padê LODY 1992 p 82 31 Massa feita de milho branco e enrolada em palha de bananeira à maneira de um abará 99 O sino da igrejinha faz delém dem dom bis Deu meianoite o galo já cantou A Pombagira alternam os nomes dos Exus é dona da gira Fazendo gira que Ogum mandou alternam se os nomes dos orixás32 Por outro lado é proibida a exposição pública de pessoas em processo ritualístico durante as horas grandes Aconselhase estar em completa clausura dentro do Terreiro No caso de obrigações que permitam a estadia fora do templo é recomendado estar em casa durante as horas grandes e em último caso estando na rua é dever evitar ambientes como bares e congêneres e estar a céu aberto guardandose alguns minutos antes e depois destes horários em lugares cobertos para depois seguir em frente Embora em menor frequência devido à interferência evangélica é comum ouvir em lares da Bahia recomendações de mães aflitas dizendo que não saiam ao meiodia meia noite e às dezoito horas em ponto no dizer popular seis horas da noite horas perigosas horas do cão Com exceção da meianoite as demais horas perigosas são dedicadas à execução radiofônica da Ave Maria e do Hino ao Senhor do Bonfim como forma de reflexão e pedido de amparo costume já abalado pela intolerância evangélica dona de muitos meios de comunicação de massa Meiodia também é hora preferida para fazer oferendas a Exu em umbandas e candomblés consolidando a visão diabolizante da entidade Pode parecer muito destoante que um filho de Exu morra em pleno Carnaval festa da alegria e aberta às 12 horas em ponto hora mística de descomunal poder e ligada a seu 32 Música de Exu cantada em umbandas e em candomblés menos tradicionais da Bahia 100 pai Além disso o Carnaval é uma festa muito parecida com o Exu orixá Nagô por ser um exemplo de dinamismo alegria em que ocorre a deshierarquização característica desta festa FERRARA 1990 e quando as pessoas trabalham dando alegria aos outros onde várias linguagens se comunicam lembrando que Exu está profundamente relacionado com a boca em sua função de Enúgbarijo boca coletiva SANTOS 1986 p 211 Mais estranha é a causa da morte de Vadinho cachaça ingrediente presente nos mais populares rituais de Exu O que teria acontecido para um elemento consagrado a Exu ser tão nocivo ao seu filho Fica mais surpreendente quando se toma conhecimento de que todo filho de determinado orixá é descendente mítico deste orixá SANTOS 1986 e que de acordo com as crenças populares os seres humanos a eles os orixás consagrados herdam LEPINE 2000 p 141 suas características sendo normal que Vadinho fosse fascinado por bebidas alcoólicas por sexo Exu é o patrono da sexualidade SANTOS 1986 e que possuísse alegria elegbariana33 Mas como explicar a morte de Vadinho em plena alegria fazendo gestos obcenos sob sua anágua branca e engomada enorme raiz de mandioca e a cada passo suspendia as saias e exibia o troféu descomunal e pornográfico fazendo as mulheres esconderem nas mãos o rosto AMADO 1966 p 23 Sobre este costume maragojipano e afrodescendente haverá discussão mais adiante O narrador não oferece uma explicação mítica apenas diz que o jovem morreu por causa do excesso de álcool A 33 Elegbará é outro título de Exu Senhor do Poder um fiel companheiro de Ogum SAN TOS 1986 p 134 101 preocupação com a representação dos orixás e da ancestralidade em DF induz à busca de pistas na obra para esclarecer tais acontecimentos Agora aos porquês É comum ouvir do povodesanto explicações sobre obrigação de estar em dias com o orixá para que as oferendas sejam retribuídas na forma de saúde vigor prosperidade LEPINE 2000 p144 num completo bemestar Estar em dia com o orixá significa cumprir todos os rituais oferecer todas as oferendas indicadas respeitar todos os tabus A respeito da relação de Vadinho com o seu orixá foi informado que ele era filho de Exu e iniciado no candomblé pois era filhopequeno do Mestre Didi personagem ficcional Mesmo que em grau menor Vadinho era iniciado possuía um paipequeno espécie de padrinho auxiliar e substituto do pai ou mãedesanto nos rituais da iniciação e posteriormente em outras atividades rituais relacionadas com o filhodesanto Tratandose de um iniciado o romance carece de maiores explicações sobre atos iniciáticos de Vadinho e suas obrigações para com seu eledá seu criador espiritual Tudo indica que apesar de iniciado Vadinho não cumpria as obrigações com seu pai reduzindo seu compromisso ao caruru anual dos Ibejis obrigação levada adiante por Flor mesmo após a morte do marido Com certeza o não cumprimento das obrigações rituais seria uma justificativa para punições de seu orixá RODRIGUES CAROSO 1999 levandoo à morte prematura algo terrível para o nagô tradicional LUZ 2000 Mas Exu não parecia estar aborrecido com seu filho a ponto de tamanho 102 castigo levar o boêmio antecipadamente para o orun Entretanto com o alicerce em explicações míticas é chegado ao que o povodesanto chama de quizila ou proibições do Santo de forma que alguns alimentos próprios do orixá podem ser proibidos aos filhos e a quizila de Vadinho poderia ser a cachaça degradadora de qualquer organismo no plano físico Em candomblés da Bahia há quizilas genéricas para todos os componentes de uma mesma casa irmanados miticamente Em 1995 no Mansu Bandu Kenke do Inquinançaba o descumprimento de uma quizila por um membro de casa levou todos a terem distúrbios intestinais Não cabe julgar a fé ou o efeito psicológico destas proibições o acontecimento presenciado e ora relatado serve aqui para justificar que caso a cachaça fosse quizila de Vadinho ela degradaria o filho de Exu mesmo a cachaça sendo elemento ritual de seu pai espiritual No capítulo anterior discutiuse a possibilidade de tudo ter sido arquitetado pelo arquétipo Oxum como uma espécie de compensação pelos abusos desferidos à sua filha Não que Oxum tenha arquitetado a morte de Vadinho mas previsto antecipadamente uma possibilidade de interpretação bastante válida Apesar de Vadinho ter morrido em berço esplêndido na rua espaço de seu pai assim como Pedro Archanjo de Tenda dos Milagres 2000 também filho de Exu não há como esquecer que o malandro morreu travestido vestido de mulher com os amigos aproveitando o Carnaval mas ao mesmo tempo desprovido das características do vestir masculino A indumentária de Vadinho rememora o ritual praticado no Festival Gelede quando os homens nagô pedem clemência às mães ancestrais para que tudo ocorra bem para as plantações e a vida SANTOS 1986 PRANDI 2003 Vestirse de 103 mulher conota o desfazimento de características masculinas Atualmente no Carnaval baiano homens se travestem abrigados em blocos carnavalescos como As Muquiranas As Sapatonas e outros O travestirse de Vadinho é mais uma pista da redenção masculina e força afirmativa do arquétipo Oxum sendo isto confirmado mais tarde com a volta do defunto e a proposição do triângulo amoroso São várias conexões com a liturgia nagô e as religiões afrodescendentes num livro que se diz apenas uma história moral e de amor Segundo Barthes 1996 há muitos saberes assumidos pela literatura Este é o caso de Jorge Amado Nas mãos do leitor são colocadas enciclopédias com saberes expostos e escondidos nas entrelinhas Afinal como diz Barthes 1996 literatura faz girar os saberes e ela é verdadeiramente enciclopédia ibidem Mantendo o foco na cena em que Vadinho exibe a raiz de mandioca amarrada por debaixo da anágua durante as danças carnavalescas o doutor Cid Seixas34 contou ter presenciado quando criança este mesmo comportamento em Maragojipe Na cidade do Recôncavo baiano rica em população afrodescendente homens faziam o mesmo que Vadinho exibindo raiz de mandioca amarrada por debaixo de saias em brincadeiras eróticas virando motivo de riso molequeira Na África segundo Verger 1998 p79 entre os Fon do ex Daomé os Legbá equivalência de Exu quando se manifestam através dos legbasi durante as festas para os voduns Hevioso e Sapatá vestemse com uma saia de ráfia tinturada e escondem por debaixo um enorme falo de madeira que levantam de vez em quando em mímicas eróticas Além disto portam 34 Conversas durante a orientação da dissertação de mestrado que deu origem a este livro 104 uma espécie de espanta moscas com um bastão em forma de falo com o qual brincam colocando sob o nariz dos turistas A presente informação compõe outra possibilidade do travestir se de Vadinho pois as saias dos legbasi não tinham conexão com o travestirse perante as mães ancestrais Mas quem sabe as brincadeiras de Vadinho e de maragojipenses tenham sido trazidas pelos ancestrais legbasi do exDaomé atualmente República do Benin Acreditandose nessa possibilidade não cairia por terra a interpretação à luz dos festivais Gelede As saias dos legbasi não informam feminilidade como a saia de Vadinho informa apesar do conteúdo sarcástico e machista Em Vadinho há a união de aspectos da redenção às mães ancestrais com a afirmação de aspectos de Exu a mandioca o símbolo fálico o erotismo picante Não é afirmada a arqueologia desta passagem amadiana o mais provável é que Jorge Amado como Cid Seixas tenha presenciado ou tido notícias dessas brincadeiras em algum canto da Bahia não inviabilizando a possibilidade do conhecimento do costume dos Legbasi por parte do narrador Com o caminho progressivo vêse ainda hoje nos Carnavais salvadorenses35 rapazes dos blocos de travestidos indo mais além que a exibição de representações da genitália masculina No outro extremo entre os travestidos é comum encontrar atos de libertação homossexual que têm seu ponto mais alto na Segundafeira de Carnaval com a lavagem das escadarias do monumento ao Poeta dos Escravos na Praça Castro Alves um dos centros nervosos da grande festa que na 35 O mesmo que soteropolitano 105 segundafeira do referido evento se transforma num palco de afirmação homossexual Das qualidades ou categorias do Exuegum Vadinho das iniciações de Vadinho do Enugbajiró a boca coletiva as fronteiras do nome de Vadinho Quando araaiê não há como duvidar que o comportamento de Vadinho condizia com o de um filho de Exu atestando a tese de que as características dos Eledá36 das personagens guiam a obra malandro alegre amigo às vezes cruel com Dona Flor chegando a surrála em busca de dinheiro ambíguo como Exu Infelizmente pouco afeiçoado ao trabalho diferente de seu pai espiritual trabalhador incansável desbravador de caminhos desconstrutor e construtor de obstáculos O fato de Vadinho ser pouco afeito ao trabalho vai destoar também de suas ações de araorun trabalhando em prol dos amigos como um Exu Mais à frente está inserido fragmento de um mito em que Exu não tinha profissão e passou 16 anos observando Oxalá período em que aprendeu a trabalhar Assim com estas marcas e similitudes buscam se outras interpretações para a preguiça e malandragem do araaiê Vadinho O tempo de vida do boêmio assemelhase ao tempo da aprendizagem e da observação pois logo se vê que suas experiências de araaiê serviram para o trabalhador Vadinho araorun Filho indesejado pelo pai biológico estorvo à ascensão social de seu genitor rejeitado como Exu por diferentes motivos mas rejeitado como seu Eledá Desta forma Elegbará 36 Não será feito o plural da palavra de forma aportuguesada 106 foi herdeiro benquisto por Orunmilá desejado fora de época contrariando os avisos de Oxalá para em seguida ser rejeitado Vadinho fruto de arroubos da juventude de um branco com uma pobre empregada doméstica viuse despachado pelo pai aos 17 anos de idade depois de ter sido ludibriado por sua amante mãe de um colega de escola A doidivanas o fez acreditar ser o primeiro e único namorado extraconjugal e que mantinha aquele relacionamento por amor desejando ser salva das garras do terrível marido Vadinho logo providenciou a fuga do internato para salvar a pobre senhora a qual ao vêlo invadir sua casa o repeliu Ofendido o jovem e inexperiente Guimarães aplicou algumas bofetadas na adúltera gerando um escândalo para a sociedade salvadorense O escândalo do caso de Vadinho foi o pretexto utilizado pelo pai casado com a grande fortuna de sua esposa para colocar em dúvida a sua paternidade e a honestidade da falecida mãe do herói malandro Waldomiro Guimarães Filho gerado em momento impróprio como Elegbará Através de um grande escândalo amoroso Vadinho foi inserido na vida noturna da Cidade acontecimento comum às vidas e pósvidas de Exus umbandizados A Padilha Sete Saias entidade que incorporava no médium Jorge de Tupinanbá37 homem de candomblé na Cidade do Salvador filho do orixá Oxóssi com o juntó Iansã algumas vezes relatou a sua própria morte38 Vítima de inúmeras surras de seu companheiro relegada ao papel de empregada e mero objeto de satisfação sexual do marido a Padilha ainda em 37 Após ter escrito este texto soubese a informação que o Jovem Jorge de Tupinambá já havia falecido Notícia recebida de um conhecido em comum durante compras na barraca Palácio de Oxossi na Feira de São Joaquim em Salvador 38 Depoimento colhido entre 1993 e 1994 107 vida e com outro nome viuse nos braços de outro O casal de amantes foi assassinado no leito durante o ato de amor tendo uma lâmina fatal atravessada de uma só vez das costas de seu companheiro até a dela Os dois permaneceram juntos após a morte e formaram uma dupla de ação espiritual ele o Exu Sete Facadas ela Maleina Sete Saias O Exu efemenizado ou como atualmente parte do povodesanto chama a Exua que em vida foi pernambucana é um grande exemplo de como as relações amorosas e os escândalos são a porta de entrada para uma vida de Exu umbandizado ou uma vida desregrada como a de Vadinho É de bom tom lembrar que todos os depoimentos descritos até aqui foram relatados na primeira metade da década de 1990 do século XX e as pessoas receptoras das entidades não eram leitoras de Jorge Amado Além do mais os depoimentos foram colhidos sem a intenção utilizada no presente trabalho Ao invés de depoimentos palavras que soam como algo intencionalmente colhido e sugerido pelos ouvintes melhor chamálos de conversas ouvidas batepapos informais de frequentadores e membros de religiões afrobrasileiras A julgar pelo número de tumultos amorosos ocorridos na obra de Jorge Amado deduzse que no Brasil estes eventos sempre foram motivos de arruaças e notas de toda a comunidade interessada em hostilizar a traidora e o traído Isto confirma a possibilidade do teor de exatidão em depoimentos desses Exus que foram pessoas que um dia tiveram vida PRANDI 2003 A Padilha Sete Saias também chamada de Maleina nome da vida de araaiê instiga a busca do real e das fontes de sua história Histórias comuns confirmadas em Jorge Amado e num Brasil patriarcal acostumado a assassinar as mulheres adúlteras e a 108 fazer de tudo isto um grande alvoroço prato cheio até para os jornais principalmente quando com pessoas famosas a exemplo do escritor Euclides da Cunha autor de Os Sertões traído por Dona Ana Este episódio da vida euclidiana gerou livros e artigos além de uma minissérie televisiva de grande sucesso no final dos anos 90 Contudo a raiva e a violência do traído não têm ficado somente no âmbito masculino Darcy Ribeiro 1995 relata a violência das Sinhazinhas para com as negras obrigadas a conceder favores sexuais aos senhores As Sinhás expressavam suas raivas com mutilações nos rostos seios olhos e principalmente arrancando os dentes das escravas Permanecendo no escândalo são evocados conceitos arquetípicos do Exu nagô O Enugbajiró SANTOS 1986 a boca coletiva fazse presente tornando seu filho conhecido de todos inclusive da noite espaço dos reis e rainhas das encruzilhadas afrobrasileiras A narrativa guarda importantes laços de estreitamento com a função de Exu boca coletiva patrono da comunicação Além do Carnaval foram observados outros atos iniciáticos e fundadores de períodos das vidas de Vadinho elegbarianamente ligados à comunicação O primeiro deles é o escândalo ora discutido que chamou a atenção da nata da sociedade salvadorense em pleno Largo da Graça39 chegando aos ouvidos de toda a elite da Cidade do Salvador ou da Velha Cidade da Bahia e introduzindo o jovem rapaz na vida boêmia Na época de solteiro o boêmio promoveu uma serenata à beira da janela de Flor depois da meianoite Durante a música todas as janelas da Ladeira do Alvo se abriram para ouvir a 39 O bairro da Graça é um dos mais caros e tradicionais da Cidade do Salvador ainda hoje 109 tentativa de desagravar a namorada curar suas tristezas apaziguar seu sono trazerlhe o consolo da música prova de seu amor AMADO 1966 p 117 após a monumental surra que a virgem havia recebido da mãe por terse encontrado com o namorado De fato foi uma espécie de boca coletiva comunicando o amor de Vadinho a Flor através de personagens com correspondentes na Bahia nãoficcional como Walter da Silveira com sua flauta e ao violão Dorival Caymmi todos entoando modinha de Cândido das Neves AMADO 1966 p 116117 No entanto o escândalo se consolidou com os resultados da serenata logo após Flor entregouse a Vadinho ao som do mar de Itapuã O alvoroço foi geral toda a Ladeira do Alvo ficou sabendo do mal passo de Flor decerto incentivado pela surra e pela serenata do namorado Estava iniciada a vida de Vadinho enquanto companheiro de Flor Do lado oposto à introdução de Vadinho na vida noturna seu despertar enquanto filho de Exu o poema em homenagem ao defunto consolida a memória do boêmio introduzindoo no rol dos homens memoráveis Elegia à definitiva morte de Waldomiro dos Santos Guimarães Vadinho para as putas e os amigos AMADO 1966 p 43 Foram vários os supostos autores do poema que rompeu os limites da Cidade do Salvador transformandose em objeto de discussões entre letrados e amigos do homenageado Até mesmo com algo em sua homenagem a irreverência de Exu e sua capacidade de promover a desordem e a ordem TRINDADE 1981 ressoaram nas confusões e nos tapas que tentavam afirmar a autoria do poema divulgando com mais intensidade o trabalho Mais tarde foi descoberto que Godofredo Filho era o verdadeiro autor da façanha 110 Façanha mesmo foi a vinda do famoso na vida ficcional e nãoficcional cantor Sílvio Caldas para a residência do casal que virou notícia dos principais jornais da cidade Vadinho tornarase amigo da celebridade em sua viagem ao Rio de Janeiro A estada do cantor em Salvador transformou a casa dos Guimarães em palco de shows e repositório de repórteres a divulgar o evento e enaltecer o jovem casal Estava Vadinho introduzido no mundo midiático mundo do patrono Exu acontecimento cronologicamente anterior à sua morte e ao poema em sua homenagem O arquétipo Exu ao realizar suas funções de Engbajiró implementou a compensação pela falta de filhos do boêmio O fato de não ter filho não apagou a memória de Vadinho que ficou eternizada na boca do povo e nos escritos de Godofredo Filho Ser lembrado após a morte era ideal de todo africano précolonial LUZ 2000 e um grande feito para um malandro baiano e filho de orixá Afinal para o nagô a morte não significa absolutamente a extinção total ou aniquilamento conceitos que verdadeiramente o aterraram Morrer é uma mudança de estado de plano de existência e de status SANTOS 1986 p 221 Contudo ao mesmo tempo em que a morte não é o fim é importante cumprir o ciclo designado por seu destino na confecção mítica de seu ori cabeça Estar maduro para a morte e não morrer antes do tempo é desejo de todo nagô tradicional e certamente de Vadinho um amante da vida e das alegrias de viver Complementarmente para o nagô o importante é estar vivo é cumprir todo o ciclo enquanto ara aiê até a mudança do plano de existência pois o paraíso é aqui neste mundo no aiê Alguns espíritos inconformados com a morte prematura reencarnam para logo morrerem como 111 é o caso do Abiku aquele que nasce para a morte pois bom mesmo é estar vivo PRANDI 2000a Vadinho não consegue voltar como um Abiku e de nada adiantaria ser uma criança sem poder possuir sua amada Virou um egum um irumaléancestre entidade associada às histórias dos seres humanos à sua própria história de araaiê e para a umbanda repetimos um Exu SANTOS 1986 p 102 Mas em que categoria de egum estaria encaixado Vadinho Santos 1986 p127 descreve dois tipos de egum Os Egun agba possuem fala e representam os ancestrais de famílias importantes já os Apäàraká são mudos são espíritos novos que por várias razões não puderam chegar ao estado de egbá e cujos ritos de formação não foram acabados A personagem não se enquadra completamente em nenhum dos dois tipos descritos pela pesquisadora JE dos Santos O egum amadiano fala é de família importante apesar de desprezado o que o faz próximo das características do Egunagba Ele é um espírito novo como os mudos Apáàraká mas não se trata de um espírito mudo Tratandose de conceitos nagô tradicionais os valores capitalistas são inexistentes o conceito de família importante é discutível retirando a família de Vadinho da semântica importante dentro dos cultos de Egungun o culto dos ancestrais masculinos Com essas impossibilidades de classificar o egum Vadinho em um tipo nagô mais uma vez confirmase a tese do Exu umbandista O egum amadiano toma emprestadas características dos Egunagba dos Apaaraká e dos obsessores kardecistas culminando num Exu à moda umbandista um egum com atribuições de Exu sem o exarcebado discurso do embranquecimento mas em vida um cristão oscilando entre o 112 respeito e o sarcasmo ao cristianismo Dentro da narrativa ora discutida o espírito do morto Vadinho é qualificado como um egun rebelde ao qual ninguém oferecera roupas coloridas nem o sangue dos galos e ovelhas nem um bode inteiro nem sequer uma conquém AMADO 1966 p 417 O babá de Exu AMADO 1966 p 417 ou o egum de Exu difere das categorias tradicionais dos eguns nagô não se veste como estes nem recebeu alimentação ritual para fazer a longa viagem ao orun o que justifica as queixas de Vadinho em relação ao percurso de volta Não posso estar indo e voltando Ou tu pensa que é uma viaginha de brinquedo como ir daqui a Santo Amaro ou a Feira de Santana AMADO 1966 p 390 Todavia as leituras aqui propostas não deixam de comentar exemplos nagô orientados por Juana Elbein dos Santos 1986 e Marco Aurélio Luz 2000 que podem até inspirar em nós um discurso de africanização entretanto são percepções de arquétipos africanos no enredo da obra as quais também são encontradas no sincrético candomblé e na embranquecida umbanda Por isso mais à frente são retomados os tipos de Exu revelados nas ações do Exu Vadinho afinal símbolos de Exu não são um significado constante pois a sua interpretação está sempre em relação a um contexto Sua mensagem está sempre em função de outros acontecimentos SANTOS 1986 p 23 A palavra de Egum seu poder Se há as citadas diferenças entre os Eguns tradicionais e o nosso Babá de Exu a força da palavra os une aproximaos igualaos em seus poderes A palavra de egum tem força de lei 113 e suas mensagens são materializadas pela voz SANTOS 1986 p128 como Vadinho prevendo e afirmando o futuro para Flor resistente ao amor do primeiro marido Tu vai me dar quando menos tu espere como da outra vez E tu sabe por quê Por quê Porque tu gosta de mim e no fundo lá bem no fundo onde nem tu mesmo enxerga tu tá doidi nha para me dar AMADO 1966 p 404 Essa força de lei o poder da palavra também se faz presente entre os orixás inquices voduns encantados guias e caboclos Ao mesmo tempo em que o Babá de Exu prevê a aceitação de seus favores amorosos por Flor ele dá um jeitinho para viabilizar a decisão da cozinheira apressar a volta aos bons tempos do leito Mal sentara no entanto e já o trapaceiro lhe descia a mão pela cintura até a ânfora do ventre Levan touse indignada Tu não presta mesmo Cheguei a pensar que tu falava de coração que tu era homem de palavra E logo tu desmente tu vai metendo a mão E por acaso estou te pegando a muque te to mando à força não vou te comer a pulso mas isso não quer dizer que não faça tudo tudo que não use todos os recursos para que você me dê de sua própria vontade AMADO 1966 p 406 Agindo entre a firmeza de egum e a ambivalência de Exu o Babá de Exu mais uma vez manifesta sua proximidade com os Exus umbandizados tidos como trapaceiros diabólicos e paradoxalmente homens de palavra e amantes das reinações As reinações o caráter trickster PRANDI 1997 2000b 2003 TRINDADE 1981 RODRIGUES CAROSO 1999 poderoso brincalhão e malandro são atribuições e características do Exu Vadinho 114 Voltando às ações de Exu com Vadinho em vida Em vida mesmo impregnado de toda malandragem e preguiça os aspectos de Elegbará Senhor do Poder alicerçaram algumas ações do personagem conotando a encarnação do desafio da vontade e da irreverência para melhorar a sorte dos homens TRINDADE 1981 p 3 Célia Zambeta professora sempre desempregada alcançou um emprego graças à ação de Vadinho junto a Andreza de Oxum responsável por conseguir das autoridades educacionais o favorecimento para a mal agradecida professora que iria desmascarar a farsa do Vadinho rico e bemsucedido ilusão que encantou dona Rozilda a ambiciosa mãe de Flor Se nas religiões afrodescendentes Exu é aquele que abre caminhos para suavizar a vida também podendo dificultá la Vadinho ainda vivo já se afirmara enquanto Rei da Encruzilhada Dono da Rua e realizador de desejos A ingrata professora Célia era acometida de um mal comum a muitos brasileiros e a qualquer país capitalista o desemprego Hoje a grande procura pelas entidades das religiões afrobrasileiras devese principalmente para a abertura de caminhos a conquista de uma vida menos sofrida e o emprego ou a melhoria deste é a alavanca impulsionadora entre as classes menos favorecidas Para livrarse de obstáculos uma das indicações pode ser o ebó de Exu juntamente com a limpeza de corpo No caso da personagem Célia o ebó foi representado pelas articulações de Vadinho A realização das providências se consolidou através de uma filha de Oxum a negra Andreza cozinheira qualificada a servir seu sarapatel para malandros como Mirandão Waldomiro e para pessoas influentes na política e no governo estadual como o poeta Godofredo Filho 115 Godô para Andreza O escritor era parente próximo e amigo íntimo do Diretor de Educação pedido seu era ordem AMADO 1966 p 101 como realmente foi É verdade que a viabilização final do pedido em favor da malamada professora foi de Andreza filha de Oxum portanto uma graça conseguida pela maior entre as mulheres Oxum Mas Vadinho e Exu onde ficam nessa história Meros transportadores de recados Talvez para uma leitura simplista e equivocada sejam eles Exu e Vadinho meros transportadores Transportar o recado é tarefa da mais alta importância na liturgia nagô e entre as crenças afrobrasileiras O recado levado por Vadinho foi o Axé energia imprescindível para as realizações mágicas E o Axé foi veiculado através da oferenda neste caso a amizade de Vadinho para com Andreza comovendo a negra que pediu a Godofredo que pediu ao Diretor de Educação Neste momento da trama Vadinho incorpora importante título de seu pai espiritual Ojiseébo encarregadoetransportadordeoferendas SANTOS 1986 intercessor de pedidos aos outros orixás e a Olorum o deus supremo Momento singular da narrativa ao mesmo tempo em que ocorre a atuação do Ojiseébo a cena dramática em seu sentido patético evoca outros títulos do Senhor do Poder do Rei das Encruzilhadas A lábia elegbariana recorda a atribuição do Enugbajiró a boca coletiva contando o problema de Célia à pobre Andreza nobre filha de Oxum a perfumar sua casa com folhas de patichuli folha atribuída ao seu orixá por algumas casas de candomblé e umbanda da Bahia além das folhas de pitanga Até a década de 80 antes da popularização dos cheirinhos químicos as folhas eram ornamento e aroma comum em residências das camadas menos favorecidas salvadorenses Atualmente tais procedimentos ocupam 116 lugar de destaque em Sessões de Mesa Branca40 e em algumas residências durante o Natal quando as feiras populares41 enchemse de folhas de pitanga Além de Enugbajiró Vadinho mais uma vez foi o hábil malandro comovendo Andreza e arrancando o compromisso do amável Godô logo abaixo uma parte da cena em que se finge sorumbático Andreza de amarelo colares nos braços e no pes coço era a própria Oxum conte meu branco não fique jururu Vadinho desfiou o rosário de desditos da profes sora primária uma infeliz Sentada à cabeceira a negra Andreza sentiase comovida com o relato será que Godô não podia dar uma palavra se mexer pela pobrezinha O poeta Godofredo prometeu interceder Não esclareceu ser paren te próximo e amigo íntimo do Diretor de Educa ção pedido seu era ordem executada Queria apenas devolver o sorriso de Andreza sem seu sorriso era triste a noite e o mundo deserto e frio AMADO 1966 p 101 Emprego conseguido e azar quebrado Célia teria provisoriamente transferido a urucubaca AMADO 1966 p 100 má sorte para Vadinho que nada acertou nas roletas após o pedido feito por Dona Rozilda em favor da zambeta mirrada e ainda por cima com esse azar AMADO 1966 40 Sessões realizadas por alguns terreiros de candomblés e casas de umbanda nas quais prevalecem as orações católicas misturadas às marchas da umbanda e às vezes músicas das tradições de orixás voduns e inquices Todo ritual é encenado em torno de uma mesa co berta com toalha branca flores alfazema folhas especiais contando com a total ausência de azeite nos alimentos destinados aos orixás e ao público como a todo e qualquer elemento ritual 41 Entre as feiras populares de Salvador podemse destacar a Feira de São Joaquim antiga Feira de Água de Meninos a Feira das Sete Portas localizada no bairro que leva o mesmo nome a Feira do Japão no bairro da Liberdade famosa pelas manifestações culturais ne gras e tantos outros arremedos de feiras como a do bairro de São Caetano improvisada à beira do trânsito ao lado do supermercado Bom Preço e a feirinha do bairro de Pirajá na Rua Velha 117 p 100 Os acontecimentos e a ação de Vadinho tiveram o efeito de um ebó a limpeza de corpo livrando das influências negativas e a abertura de caminhos através do emprego uma leitura calcada no ocorrido e nas funções de Exu Outra importante similitude da ambivalência de Exu e Vadinho aconteceu quando o boêmio após surrar Flor para conseguir dinheiro e destinálo ao jogo acabou dando toda a quantia ao amigo cigano o taxista A mãe do chofer acabara de morrer e o filho desesperado não tinha como providenciar o enterro De um lado o maldoso Vadinho arrancando o dinheiro da esposa para imediatamente comoverse com a dor do amigo ambiguidades de Exu Feitos do Exu Vadinho Vadinho era às vezes bondoso às vezes maléfico às vezes doce e também contendo o ardor das pimentas ingrediente de ebós de Legbará42 Nas noites de perdição da Bahia nos cassinos o já morto Waldomiro era constantemente lembrado principalmente por seus feitos Odara feliz alegre Amigo das prostitutas por várias vezes alimentou Claudette velha meretriz com quase setenta anos de idade quase calva uns ralos cabelos cacos de dentes olhos de catarata já não tinha como professar o honrado ofício AMADO 1966 p 318 Claudette após a morte de Vadinho vivia de roleta em roleta pedindo esmola Agora apenas se recordava do amigo vitorioso no jogo quando as vagabundas o carregavam em procissão AMADO 1966 p 399 Lembravase principalmente das contribuições financeiras do filho de Exu 42 Elegbará Legbará Legbá Bará são títulos e equivalências de Exu 118 Novamente o narrador demonstra a ambivalência deste orixá aproximando o irresponsável jogador daquele responsável por providenciar a paz e a tranquilidade de todos os seres humanos A História do modo como Exu se tornou o decano de todos os orixás SANTOS 1986 p 176178 prova como o jovem Exu ganhou respeito de Olorum recebendo o direito à consideração de todos os orixás inclusive os mais velhos ao ser transformado no mensageiro de Olorum Assim disse o Deus Supremo aos orixás Quando vocês chegarem aos seus lugares de morada para onde retornarão tudo o que devem fazer aquele que foi seu líder que carregou o emblema Egán em sua cabeça é a quem vocês devem procurar e falar Ele deverá trazerme todas as sugestões de vocês porque hoje vocês mostraram que aquele que os guiou para que pudessem submeterse suas sugestões antes de as pôr em execução é ele SANTOS 1986 p 178 Ao final do itan Exu Odara é saudado como aquele que quando todos vocês se levantam ao qual é preciso fazer apelo para que lhes providencie o alimento para que lhes providencie a bebida SANTOS 1986 p 180 A prostituta amadiana Madame Claudette inconscientemente teria invocado a ajuda do ExuVadinho um Odara Lembrando e desejando que o jogador ainda fosse vivo faz algo condenável para espiritualistas da Bahia não 119 ficcional É muito comum ouvir em conversas do povode santo e de católicos da Bahia o medo e o respeito para com os mortos mesmo os saudosos e amados Numa conversa sobre a falecida Sambadiamongo um de seus bisnetos43 fazia questão de frisar o respeito pela bisavó sempre lembrando Sambadiamongo que em vida foi minha bisavó foi não é mais44 Acreditase que chamando o nome ou desejando a presença do morto estáse invocando o mesmo tirandoo do seu lugar e provocando o desequilíbrio das forças espirituais A crença na possibilidade do chamamento indevido de um morto é tão grande entre adeptos de religiões afro na Bahia que ao lembrar e pronunciar o nome de um morto um que em vida foi querido ou não alguns mais prevenidos pronunciam palavras sagradas em língua africana com a finalidade de manter o morto em seu lugar Até não adeptos dos cultos afrobrasileiros ou adeptos complementando as palavras africanas ou por desconhecimento destas ainda dizem o mais fácil e costumeiro Deus que conserve ele por lá ou Coloque sua alma onde ele merecer com outras variações no mesmo sentido Aliás a volta de Vadinho do orun deveuse ao chamamento de Flor como o próprio egum ou Exu proclamava Diferente não aconteceu à madame Claudette desesperada sem ter como se alimentar e já à beira do despejo por falta de pagamento do 43 Tratase de um filho da Kóta Jacy equivalência de equede para os candomblés de Ketu Tia Jacy como também é chamada é prima biológica de Edith Apolinária de Santana Sambadiamongo mas a considerava como avó 44 Entre tantos depoimentos do gênero destacamos a fala do Ogã Deco em uma festa da Padilha Sete Rosas no dia 07 de junho de 2003 em uma casa de umbanda de Pirajá dirigida pela senhora Cristina 120 aluguel despropositadamente invoca a entidade sendo logo atendida porque nas religiões mágicas a palavra de fato tem poder No momento exato em que recordou então suce deu ia Chastinet o crupiê perfeito recolher e pa gar a última bola as mãos cheias de fichas de cem de duzentos de quinhentos quando lhe deu uma coisa como se lhe atravessassem o corpo Soltou um grito rouco e breve suspendeu os braços e abriu as mãos as fichas rolaram no tapete Ativos os malandros se precipitaram foi uma confusão de homens e mulheres curvados na dis puta Só Madame Claudette de tão confusa e em desespero nem teve forças para se atirar naquele rolo ficou parada No decote de pelancas sentiu Madame Claudete a mão lhe colocar uma das grandes das de madrepé rola das de quinhentos dinheiro de sobra para pa gar o quarto e garantir uma quinzena de almoços A seu dispor Madama a seu serviço pareceulhe ouvir aquela voz de astúcia e picardia Merci mon chourespondeu no costume antigo AMADO 1966 p 399 Outros amigos do defunto também foram ajudados pela entidade Primeiro o negro Arigof filho de Xangô que sofria de coisafeita ebó de antiga amante vingança por ter batido na mulher abandonada ação mágica muito comum no mundo das religiões afrobrasileiras O desespero amoroso também é um grande motivador da procura de trabalhos mágicos tanto pela vítima do adultério como pelo vitimador Em seguida o velho Anacreon mestre do jogo que iniciara o egum na época de araaiê na arte dos cassinos Mirandão e o jornalista Giovanni jogador já livre do vício receberam a ajuda de Vadinho Os três têm em comum com madame Claudette a pobreza o miserê e a lembrança 121 de Vadinho a recordação o chamamento inconsciente da entidade tabu entre as religiões afrobrasileiras Para todos os amigos a voz do jogador se manifestara Arigof durante sua caminhada lembrouse dos tempos de Vadinho araaiê o colega boêmio lhe emprestou dinheiro proporcionando ao filho de Xangô ganhar 96 contos um número múltiplo de 12 número atribuído ao orixá Xangô com sua corte de 12 ministros os obás como fora Jorge Amado e um de seus pratos sagrados com ingredientes em número de 12 Enquanto entidade Vadinho fizera o filho de Xangô ganhar 12 vezes ao apostar na dama deixando 12 reis no fundo da caixa AMADO 1966 p 426 Com estes acontecimentos a narrativa diz que Arigof sorriu quebrara o azar rompera o ebó e fora buscar a sorte com as mãos e os dentes e com a lembrança de Vadinho AMADO 1966 p 424 Numa leitura religiosa o Exu teria as suas vezes sem deixar de homenagear o orixá da justiça e para parte do imaginário das religiões afro brasileiras orixá do dinheiro evidenciando positivamente o número 12 O velho Anacreon teve sua mensagem através de um sonho durante um raro cochilo Mirandão deveria jogar o 17 número preferido de Vadinho e diretamente associado a Exu em casas de culto afrobrasileiro Comumente em rituais relacionados a Exu e Ogum os ingredientes são colocados em número de sete seus múltiplos ou números terminados com sete Em trabalhos mágicos relacionados a Exu certos casos exigem quantias ao menos terminadas com o numeral sete como R 1777 dezessete reais e setenta e sete centavos ritualmente ligando tudo ao orixá mensageiro Assustado com o ganho fácil e a voz do finado Vadinho Mirandão desiste 122 do jogo e o egum telefona para o amigo jornalista Giovanni É Vadinho quem fala Giovanni Venha correndo no Pálace e jogue no dezessete AMADO 1966 p 455 Sem se lembrar que Vadinho estava morto seguiu as ordens e não se arrependeu O homem da comunicação reinado de Exu foi o mais felizardo de todos herdeiro da força do sete de Legbará abriu os caminhos constituindo patrimônio com o dinheiro do jogo A importância do número sete para Exu se faz tão grande entre as religiões afrobrasileiras a ponto de entidades levarem este número no nome Seu Sete Sete Facadas Sete Encruzilhadas etc Entre as Padilhas têmse Sete Estradas Sete Saias Sete Rosas etc No romance Dona Flor e Seus Dois Maridos a importância não se fez menor pois Vadinho foi iniciado no jogo aos 17 anos de idade após sete anos do dia em que conheceu Flor atendeu ao pedido da aniversariante levandoa para conhecer o Palace lugar inapropriado para mulheres de respeito segundo Vadinho aos sete anos de casada Flor ficou viúva depois da missa de sétimo dia Flor reabriu a Escola de Culinária Sabor e Arte a segunda luade mel de Flor durou sete dias Continuando a afirmação da importante presença do sete na obra e o entendimento da relevância deste número para o universo religioso afrobrasileiro será visto que o mafioso Pelancchi assustado com os prejuízos causados pelo Exu Vadinho foi em busca de Mãe Otávia de Kisimbi que com suas rezas banhos de folhas e galos sacrificados com as penas postas nas encruzilhadas AMADO 1966 p 477 defendeu Pelancchi pelos quatro cantos e pelas sete portas Pelancchi apenas acreditava que eram forças sobrenaturais 123 que realizavam o trabalho não houve de parte dele nenhuma referência a Vadinho Com todo cuidado e revelando só até onde é possível revelar os rituais Jorge Amado descreve uma típica limpeza de corpo e o que popularmente é conhecido como ebó de Exu com a finalidade de se livrar dos males e abrir caminhos no caso da personagem Pelancchi Interessante notar o respeito e uma certa defesa de Mãe Otávia e consequentemente do candomblé pois entre todos os místicos procurados foi a única que se prontificou a resolver os problemas que não prometeu milagres e apenas lhe disse para esperar os resultados Mas o rei do bicho tinha pressa foi bater em outras freguesias AMADO 1966 p 477 Foram sete freguesias além de mãe Otávia a Vidente Aspásia Josete Marcos Arcanjo São Miguel de Carvalho Doutora Nair Sabá Madame Deborah Teobaldo Príncipe de Bagdá Cardoso e Sª este último charlatão que tomou os amores de Zulmira secretária e amante de Pelancchi O egum de Vadinho um Exu Odara providenciou o alimento a bebida os cigarros e a moradia de Madama Claudette ganhos financeiros para Arigof Giovanni Anaceon e Mirandão As características as qualidades ou categorias de Exu se interrelacionam na mitologia e em Vadinho pois se é o Exu Odara que tudo providencia é também o Exu umbandista que abre caminhos sendo odara porque é bom feliz alegre e proporcionador de alegrias Usando o recurso cinematográfico do zoom será focalizado exatamente quando o crupiê soltou um grito rouco e breve deixando cair as fichas no chão tudo isto porque lhe deu uma coisa como se algo atravessasse o corpo com certeza o espírito de Vadinho A tessitura os sons e a organização deste zoom podem ser aparentemente um pretexto para deixar 124 cair a salvação financeira de Madame Claudette Contudo penetrando no cotidiano de católicos candomblecistas espíritas umbandistas e de crentes no mundo não físico baiano mais uma vez a conexão amadiana com tradições afro brasileiras será comprovada Egum alma penada espírito do outro mundo espírito de morto má influência espírito zombeteiro encosto ou um aviso de encantados caboclos guias e orixás desencadeado através do arrepio do sentirse trêmulo do tremer repentino do corpo Tudo isto pode ser atribuído ao acontecido com o crupiê muito comum numa Bahia mística e crente de seus antepassados e de seus espíritos segundo contam velhos e novos baianos ainda concernente com o cotidiano deste início de século XXI Não fora Claudette quem sentira o arrepio do tinhoso Vadinho mas ouvira sua voz despercebida pela idade da Madama O egum de Vadinho agiu como muitos espíritos no dizer de pessoas nãoficcionais mais um resgate de elementos da fé baiana em especial a fé afrobaiana O espírito realizou sua intervenção no mundo físico para ajudar alguns araaiê Em Ancestralidade Afrobrasileira o culto de babá egum Braga 1995 p 29 fala que muitas coisas estranhas aconteceram na cadeia durante a detenção de Eduardo Daniel de Paula pela repressão policial aos cultos afros na Bahia prisão ocorrida em 19 de junho de 1940 Vovô Eduardo era líder do maior culto aos ancestrais no Brasil localizado na Ilha de Itaparica com descendentes ainda vivos hoje Os acontecimentos na cadeia causaram pânico no delegado que com medo liberou o velhinho de 96 anos de idade juntamente com sua esposa Certamente os espíritos cobravam 125 seu sacerdote de volta como Vadinho interveio para ajudar Madame Claudette Em Tenda dos Milagres 2000 o sobrenatural também realiza sua intervenção com um correspondente direto na Bahia nãoficcional Tratase do episódio em que o delegado Pedrito Gordo é tangido por Ogum incorporado em um de seus capangas durante invasão ao terreiro do paidesanto Procópio Na vida nãoficcional quem incorporou Ogum foi o delegado Pedro Gordilho parando as perseguições e fazendo o santo45 LUZ 2000 Estes fatos amadianos e históricos assim como as observações da vida baiana aqui informadas reforçam a tese do alicerce do romance DF na ancestralidade nos costumes e na religiosidade afrobrasileiros A vacilação do crupiê com as fichas do jogo é uma construção perfeitamente conectada com o que se compreende da espiritualidade baiana e afrobrasileira Sem desistir do zoom mais uma vez pensando na coisa na agonia como se algo atravessasse o corpo do crupiê a fanopeia a imagem mais imediata proveniente das religiões afrobrasileiras são os barraventos os tombos agitações e agonias sofridos pelos filhos de orixás em momentos imediatamente anteriores à manifestação à incorporação da entidade É comum entidades entre elas principalmente Exus e caboclos fazerem com que seus filhos percam o controle de seus corpos antes da manifestação e do apoderarse total da matéria como o crupiê que sem querer suspendeu os braços e abriu as mãos deixando as fichas rolarem sobre o tapete Se a cena do transe total não pode ser comparada com o zoom em análise pois o crupiê não incorporou a entidade 45 Ser iniciado no candomblé 126 Vadinho ao menos o que podemos chamar de prétranses mantém uma relação com o descontrole do crupiê Mais próximo do que o prétranse ou o preparo do corpo do filho pela entidade para recepcionar a própria entidade seria a chimba o castigo Às vezes em candomblés e terreiro de umbanda por merecimento os médiuns são levados a praticarem punições corporais contra si próprios sem terem nenhum controle sobre os atos Não é incomum que as reprimendas sejam efetuadas pelas próprias mãos do filho rebelde as quais por exemplo aplicam bofetadas como o crupiê a suspender os braços e abrir as mãos sem vontade própria No caso amadiano o castigo foi algo providenciado pela entidade Vadinho melhor ao invés de castigo uma bênção para Claudette bem de um mal de outro ambiguidades de Exu e do mundo Os trabalhos mágicos da entidade Vadinho poderiam ter ocorrido em rodas de candomblé e umbanda de Salvador Ouvir vozes de espíritos sonhar com palpites para o jogo e com espíritos dando conselhos fazem parte do imaginário do povodesanto e de crentes no mundo espiritual Apesar de a roleta ter sido empenada para não dar o 17 o número aparecia A insistência para apostar contra os palpites de Vadinho não impedia que as fichas mudassem seus roteiros no ar indo para os prognósticos de Exu que direcionava as apostas Vadinho agia como um deus induzindo as ações dos homens fazendo os de marionetes E a mão de Arigof independente de sua vontade como se obedecesse a uma força superior depositou as fichas na dama AMADO 1966 p 424 uma entidade em seus afazeres e atribuições Tanta agitação tanto quefazer não destoaria do Vadinho araaiê fiscal de parques e jardins da Prefeitura Municipal de 127 Salvador e que nunca trabalhava vivia somente para a noite Claro que sim não obstante Vadinho continuar na noite baiana a rondar os cabarés O que ocorreu foi a mudança do conceito de trabalho Viver somente para o jogo para a farra e para as ruas não alimentava Flor nem sustentava sua casa Apenas raros momentos de extrema sorte ocasionavam contribuições ao orçamento como ocorreu ao negro Arigof já mencionado a contribuir com Zaíra Negritude sua amásia Nas relações de araorun Vadinho revelase grande trabalhador como seu pai espiritual abrindo caminhos a promover a felicidade dos amigos e o infortúnio dos inimigos Frequentar os cassinos virou algo obrigatório pois aqueles cujos destinos desejava melhorar encontravamse ou deveriam estar nos cassinos fonte de renda e local de domínio da entidade Vadinho Afinal os Exus da umbanda se prevalecem de suas experiências adquiridas enquanto araaiê Como Exu Vadinho levou um tempo tempo de araaiê aprendendo o trabalho para depois pôlo em prática Segue um mito falando do aprendizado de Exu Exu ganha poder sobre as encruzilhadas Exu não tinha riqueza não tinha fazenda não ti nha rio Não tinha profissão nem artes nem missão Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro Então um dia Exu passou a ir à casa de Oxalá Na casa de Oxalá Exu se distraía Vendo o velho fabricando os seres humanos Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos Exu prestava muito atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava as mãos os pés a boca os olhos o pênis dos ho mens 128 as mãos os pés a boca os olhos a vagina das mu lheres Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá Exu não perguntava Exu observava Exu prestava atenção Exu aprendeu tudo Um dia Oxalá disse a Exu para ir postarse na en cruzilhada Assim quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar alguma coisa a Exu Exu ganhou uma rendosa profissão ganhou seu lugar sua casa Exu ficou rico e poderoso Ninguém pode mais passar pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exu PRANDI 2001 p 4041 Também como no mito Vadinho foi discípulo de alguém mais velho Anacreon e nas ruas aperfeiçoou seu aprendizado Entretanto a similitude mais consistente entre o atual mito e o romance Dona Flor e Seus Dois Marudos é o fato de Exu ter sido guardião da casa de Oxalá assim como Vadinho teria guardado a casa para Teodoro pois somente no segundo casamento a compra da casa foi definida O conceito de guardador em questão engloba aquele que vigia para os respectivos donos também o que guarda ou observa certos preceitos ou ainda o que guarda a quem compete guardar ou vigiar alguma coisa FERREIRA 1986 p 874 Afinal a fala é sobre Exu aquele que conta e dá conta de toda movimentação da energia sagrada chamada Axé Quanto ao primeiro conceito de guardador tratase da aceitação do ExuVadinho como vigilante da casa de Oxum e Oxalá Dizse casa de Oxum e Oxalá baseado na premissa 129 já aqui mencionada de que os bens materiais dos filhos de orixás e guias são também propriedade de seus pais míticos Ocorre que às vezes bens materiais dos orixás e guias e outras entidades não são atribuídos aos seus filhos como os paramentos utilizados pelas entidades Quando necessário alguns bens obtêm registro civil somente por exigência das sociedades modernas como é o caso dos terrenos de terreiros de candomblés propriedade sagrada dirigida pelos homens a mando e com a permissão dos orixás pacto entre guardadores espirituais e fiéis guardadores no plano físico Vadinho tendo pertencido aos dois modos de existência araaiê e araorun foi protetor civil homem da casa coordenada por Flor e protetor espiritual passando a maior parte do tempo na rua nos cassinos e nos cabarés nas encruzilhadas da vida que deram sentido ao Waldomiro araaiê e ao Waldomiro araorun A casa que durante o primeiro casamento foi alugada por Flor pouco foi do boêmio sempre habitando a rua com maior frequência guardando o imóvel para os verdadeiros donos Essas condutas do homem e da entidade Vadinho e suas relações com os espaços casa e rua são típicos daquele que guarda e observa certos preceitos FERREIRA 1986 p 874 Certamente os preceitos sobre o espaço de Exu sobre suas atribuições referente ao seu modo de vida tão bem percebido pelo narrador alicerçado no diaadia do povodesanto e justificado na farta literatura antropológica Além do mito Exu ganha poder sobre as encruzilhadas Prandi 2001 p 66 67 relata através do mito Exu atrapalhase com as palavras que por determinação de Orunmilá Exu iria viver fora de casa na rua Não há como reclamar se o guardar de Vadinho excedeu os limites da distância exigida entre o objeto guardado 130 e seu protetor As quebras das convenções são acontecimentos pertinentes às travessuras do ExuVadinho e de Exu como um todo transgressores sociais faltando com o respeito até a Oxalá a exemplo do mito em que Exu esconde as roupas de Oxalá e dos acontecimentos construídos pelo narrador do romance DF Na obra a hierarquia dos orixás por vezes é ignorada deixando prevalecer o aspecto trickster de Exu o mais novo dos orixás que se transformou em decano um odara conforme mito relatado por Santos 1986 História do modo como Exu se tornou o decano de todos os orixás e já transcrito neste trabalho Este desrespeito hierárquico possui correspondente nos acontecimentos sagrados de acordo com o lido nas linhas imediatamente anteriores Exu é quem guarda a quem compete guardar ou vigiar conceito de guardador FERREIRA 1986 p 874 É Exu quem habita a frente das residências protegendo toda a família É Exu quem possui assentamento na porteira das casas de candomblé e umbanda comumente batizado de Exu da Porteira às vezes possuindo um nome mantido em segredo pelas pessoas da casa É Exu quem em residências baianas se faz lembrado com uma vela acesa às segundasfeiras na porta de casa no quintal embaixo de uma árvore Ainda é ele ou seu irmão Ogum que recebe uma quartinha46 cheia de água atrás da porta da frente de casas baianas com a qual todos os dias ritualmente o fiel despacha a porta molhando o chão três vezes Foi Exu que segundo Dionísia de Oxossi fechou os caminhos para o Príncipe gigolô especialista em viúvas e pretendente a cercar Flor O próprio Vadinho após sua volta disse que mandou Mirandão seu amigo e companheiro de farras vivo para desmascarar o Príncipe Estas cenas levam a 46 Espécie de recipiente parecido com um jarro feito de barro 131 alguns desdobramentos que novamente confirmam a tese do ExuVadinho do guardador Exu O narrador diz que Dionísia de Oxóssi comadre de Flor e de seu primeiro marido informara ter descoberto através do Jogo de Búzios que Exu estava fechando os caminhos para o tal pretendente de sua comadre Não há no enredo informação sobre qual Exu que qualidade de Exu impedia tal ação Vadinho já de volta declara ter enviado Mirandão para desmascarar o explorador de viúvas Numa leitura imbuída de pressupostos religiosos afrobrasileiros que é a proposta deste trabalho surgem as possibilidades discutidas a seguir Primeiro apostar em erros de leitura do oráculo do Jogo de Búzios e com base nas declarações do egum ação possível no mundo nãoficcional afrobrasileiro entenderseia que aquilo que Mestre Didi viu no Jogo de Ifá foi o egum de Vadinho e não um Exu a fechar os caminhos de Flor Possível acontecer tal erro na realidade nãoficcional visto que Exu responde como léseorixá e léseegum SANTOS 1986 Contudo tratando se de competente personalidade da liturgia afrobrasileira transferida para o mundo ficcional amadiano com os mesmos louros e competência tal possibilidade de erro da personagem ficcional é desacreditada Apostando na possibilidade de uma leitura correta do Jogo de Búzios restam duas possibilidades Ou o Exu eledá pai de Vadinho apareceu no Jogo de Búzios ou Vadinho apareceu no oráculo de Ifá já como um Exu reforçando a tese de existência do ExuVadinho 132 Verdadeiramente essas duas possibilidades confirmam a existência do ExuVadinho uma entidade à moda umbandista Se o Exu eledá de Vadinho veio dar a mensagem pelos Búzios dizendo estarem fechados os caminhos para os pretendentes e depois Vadinho confirmou sua intervenção no plano espiritual para impedir o êxito do malfeitor junto à Florípedes não fica a dúvida sobre uma ação combinada O agir foi de um conjunto de membros no caso espíritos de uma mesma equipe uma falange no dizer umbandista com características próprias e algo em comum entre os membros todos do mesmo tipo de entidade Exus como o eledá de Vadinho e o próprio finado marido de Flor Portanto com base nesses fios da narrativa confirmase novamente a existência do ExuVadinho pois mesmo não tendo aparecido no Jogo de Búzios já como um Exu fica evidente a possibilidade de uma ação de Vadinho enquanto membro de uma Falange de Exus Mas por que será que os caminhos não estavam fechados para o pacato Teodoro motivo de risos e chacotas por parte de Vadinho que chegou a dopar o farmacêutico dandolhe calmante endereçado a Flor e ao fim da trama dizendo a Flor que ela precisava dos dois A narrativa não apresenta tantos porquês mas à luz das liturgias afrodescendentes no Brasil podese entender a mítica união entre Oxum e Oxalá filha e pai inseparáveis Entre os mitos contase que Oxalá tinha três esposas e uma delas era filha mítica de Oxum a principal e mais dedicada As outras esposas viviam a invejar a filha de Oxum criando mil armadilhas para colocála em má situação até que um dia conseguiram fazer com que a esposa principal infringisse um tabu de Oxalá ao parecer estar menstruada e suja do fluxo menstrual na frente do velho orixá Com a intervenção de Oxum que abrigara sua filha após a expulsão da 133 casa de Oxalá a esposa do Obarixá teve o sangue transformado em penas do pássaro ecodidé Penas que o próprio Oxalá considerava um riquíssimo objeto de adorno PRANDI 2001 p 331 Finalmente a situação foi revertida e a esposa teve o seu prestígio restabelecido Há algumas variações deste mito colocando no lugar da esposa uma equede47 de Oxalá filha de Oxum mas o fato é que Oxalá em sinal de respeito a Oxum usa a pena vermelha do ecodidé e todo iaô também usa por determinação do orixá Outros mitos contam dos cuidados de Oxum para com Oxalá sempre bondosa e atenciosa com o orixá velho Em terreiros de candomblé da Bahia a exemplo do Mansu Bandu é encenada uma passagem das vidas de Oxum e Oxalá durante o xirê48 ladeado por Oxum Oxalá é banhado simbolicamente através de mímicas Os carinhos de Oxum são retribuídos com a proteção Portanto se não há no romance uma justificativa para Exu não fechar os caminhos para Teodoro a abertura da obra permite atribuir à união mítica e assexuada entre Oxum e Oxalá o motivo do não impedimento e consequente aceitação do relacionamento por parte de Vadinho Afinal o relacionamento de Teodoro e Flor mais se aproxima de uma convivência fraterna e amigável do que de uma união carnal Flor fazia muito bem a Teodoro e ele a ela da mesma maneira como são recíprocos os cuidados de Oxum e Oxalá Talvez compreendendo isto Vadinho afirmara que Flor precisava dos dois homens Certamente não tenha ficado dúvida alguma sobre a filiação mítica de Vadinho a Exu As características do Senhor 47 Tratase de um cargo feminino dentro do candomblé Elas não recebem orixás e cuidam destes e de seus paramentos além de outras atribuições sagradas 48 Tratase dos cânticos aos orixás entoados para reverenciálos 134 dos Caminhos construíram o malandro amadiano quando vivo ou após a morte já uma entidade Exu Egum Legbasi filho de Legbá ou Exu Vadinho é tudo isto e há como comprovar através de seus feitos e desfeitos sendo malandro e praticando seu aprendizado para depois utilizálo após a morte Laroiê Exu Laroiê Vadinho diria algum cultuador dos ExusEguns se em seu jogo de Búzios ou em seu copo de vidência49 visse uma entidade com todas estas características construídas por Jorge Amado e aqui comentadas 49 Alguns videntes consultam o mundo espiritual através de um copo com água ritualmen te preparado 135 A COZINHA E O AZEITE Sendo o autor em matéria de culinária apenas co milão deve ele agradecer as suas boas amigas dona Carmem Dias dona Dorothy Alves e dona Alda Ferraz três mestras da grande arte que fornece ram receitas para a Escola de Dona Flor 50 As faces da cozinha em Dona Flor e Seus Dois Maridos é o tema abordado neste capítulo concomitantemente à possibilidade de valorização do ato de cozinhar Em seguida se direcionará pelos caminhos do azeitededendê comprovando a sua identidade negra afirmada através de DF sem diminuir contudo a importância das comidas de origem europeia que não tiveram o dendê adicionado As Faces da Cozinha lugar de mulher lugar de sumis são e de liberdade Também entre a maioria dos protobrasileiros os índios as mulheres são responsáveis pelo preparo dos alimentos No Brasil a cozinha sempre foi lugar de mulher expressão pouco elegante e depreciadora relegando as mulheres ao papel menor cozinhar lavar cozer Este pensamento pode ser lido na letra da música de Mário Lago que declama Amélia não tinha a menor vaidade Amélia que era mulher de verdade já 50 MARTINS Editora Orelha In AMADO Jorge Dona Flor e Seus Dois Maridos São Paulo Martins 1966 136 eternizada como símbolo da mulher subjugada Nos anos finais do século XX e neste início de século XXI ainda se constata que os menores salários da arte culinária são destinados às cozinheiras enquanto os chefes de cozinha recebem quantias bem mais rentáveis e enobrecem a arte de cozinhar Entre as mulheres de Salvador as de etnia negra ocupam espaço significativo em frente aos fogões seja por não lhes restar outra opção ou por preservar e fazer jus à fama de boas cozinheiras como as ancestrais que transformaram a culinária portuguesa com o africano dendê ou a sulamericana malagueta Desde as primeiras levas de escravas negras trazidas ao Brasil já no século XVI a cozinha era espaço garantido às cativas independente de origem étnica e tradição culinária o que não permite precisar a influência africana de muitos quitutes afro brasileiros LIMA 1999 CASCUDO 1964 alguns já levados de volta ao continente mãe e lá chamados de comida brasileira CASCUDO 1964 entendidas como pertencentes à culinária americana Ao contrário de dona Flor a cozinha não era escolha das negras escravas Não obstante esta atribuição era elemento amenizador da escravidão e até proporcionava alforrias Ser da cozinha poderia e pode ser ambíguo cabendo uma carga depreciativa ou enobrecedora Cascudo 1964 p 19 declara que algumas mulheres negras desabafavam dizendo Sou negra mas não sou da cozinha expressão que hoje encontra lugar em um reggae da banda Morrão Fumegante dizendo Quem sabe um dia eu saio da cozinha colocando a cozinha no campo semântico de inferioridade Inversamente ao significado depreciativo de cozinha dona Flor os candomblés tradicionais e a cultura iorubá através de Oxum dona dos 137 temperos em terreiros baianos apropriamse deste lugar como espaço de mando e território de realização pessoal A morte do pai de Flor Gil fez com que dona Rozilda sua mãe colocasse as filhas para trabalhar no intuito de manter as aparências do status visto que o relembrado Gil o tal molengas sem vontade deixou a família em sérias aperturas em precária situação AMADO 1966 p 64 Dona Rozilda queria as filhas em casa recatadas ajudando com o trabalho e com o comportamento a manter aquela aparência de conforto a afivelar aquela máscara de gente senão opulenta pelo me nos remediada e de boa educação AMADO 1966 p 71 As aparências a necessidade de aparentar certa fidalguia também estiveram presentes na Bahia dos vicereis com os seus fidalgos e burgueses ricos vestidos sempre de seda de Gênova de linho e algodão da Holanda e da Inglaterra e até de tecidos de ouro importados de Paris e de Lião FREYRE 2001 p 112 Os fidalgos da Bahia ostentavam todo este luxo e viviam em eterna dieta por falta de mantimentos e por viverem eternamente endividados São hábitos existentes numa Bahia contemporânea que ainda conserva o pensamento Prefiro comer ovo duro do que passar vergonha fazendo alusão ao culto às aparências e tendo a fome como contrapartida Os nobres do Pará no século XVII não levavam suas filhas às missas dominicais por falta de roupas adequadas FREYRE 2001 roupas de ver Deus por certo vestimentas para o momento especial a missa Males não sofridos pelas filhas de dona Rozilda Com as meninas de DF comida não era regrada e as roupas sempre elegantes feitas em casa por Rosália As vestimentas de ver Deus eram utilizadas constantemente 138 pelas pobretonas apesar dos sacrifícios e da vida de aparência burguesa que trabalhavam para se manter Sim eram elas as meninas com suas prendas sob a férrea direção de dona Rozilda as autoras daquele milagre de sobrevivência AMADO 1966 p 72 Enquanto a irmã de Flor agia junto à máquina de costura Flor mostrava seus dotes culinários aprendidos com sua tia Lita cozinhando para casas elegantes e depois abrindo a Escola de Culinária Sabor e Arte cacófoco erótico lembrado pelo narrador de DF através de Vadinho Escola de culinária Sabor e Arte repetiu Sabor e Arte Ah quero saborearte AMADO 1966 p 103 Apesar do jugo de sua mãe Flor gostava de cozinhar A quituteira amadiana não possuía insatisfação e recalques pela profissão pelo ofício aparentemente pouco nobre Se era a costura o forte de Rosália era a cozinha o fraco da menina mais moça nascera com a ciência do ponto exato com o dom dos temperos Desde pequena fazia bolos e quitutes sempre rondando o fogão aprendendo os mistérios da arte suprema com tia Lita uma exigente AMADO 1966 p 72 Ciência do ponto exato dom dos temperos novamente ecoam as vozes do povo baiano quiçá brasileiro presentes no referido texto amadiano Comumente ouvese na Bahia que alguma pessoa possui ou não mão boa para realizar determinada tarefa principalmente referente à cozinha Muitas crenças circundam os alimentos e sua preparação Costumase atribuir a uma visita inesperada a culpa por solar um bolo assando no forno ou ainda quando se estava preparando sua massa Querino 1922 p 45 observa 139 Somente o cozinheiro baiano possui o segredo de tornar uma refeição saborosa e por isto de fácil ingestão Talvez mais uma crença sendo Flor baiana e Querino um narrador do cotidiano da terra as palavras deterministas do narrador de DF sobre a relação da cozinheira com a cozinha achamse inseridas na realidade nãoficcional então representadas na narrativa amadiana Se há uma carga semântica negativa no fato de afirmar que Flor nascera com a ciência do ponto exato AMADO 1966 p 72 o ilá ou brado de Oxum rompe com a representação negativa da mulher na cozinha sempre em torno dos afazeres domésticos Conta o mito PRANDI 2001 que Oxum era responsável pelos alimentos sagrados desde o início dos tempos e que somente a ela era permitido cozinhar para os orixás A atribuição de cozinheira fazia de Oxum uma mulher detentora de poder e respeitada por tal empresa pois sem ela não haveria alimentação e a dinâmica do Axé energia sagrada estaria prejudicada Portanto percebese a cozinha enquanto elemento de valoração positiva fazendo da cozinheira o ator sintagmático RAFESTIN 1993 detentor de outros atores os paradigmáticos passíveis de serem cooptados Flor mesmo sendo uma cozinheira frequentava as altas rodas e não era depreciada por suas alunas eou clientes Os quitutes da mestiça garantiram sua sobrevivência ainda depois de casada com um marido irresponsável e descumpridor de suas obrigações financeiras Em alguns candomblés de Salvador dizse que as filhas de Oxum são as melhores cozinheiras e que Oxum é a responsável pela cozinha seus segredos e Axé Por isso no preparo dos alimentos sagrados tem que haver sempre uma iaô sua para que todo o ritual tenha andamento Também no candomblé 140 como nos mitos e no romance DF a cozinha dista do valor depreciativo relegado às mulheres da sociedade brasileira Em DF até Andreza de Oxum uma pobre cozinheira negra consegue atrair em torno de si personalidades como o poeta Godofredo Filho apaixonado pelo sarapatel da filha de orixá Não há como negar que embora havendo uma representação da cozinha como não depreciativa Flor e Andreza de Oxum encontramse numa sociedade que encara este território como face subalterna Da mesma forma acontece com o candomblé que apesar de ter suas especificidades está incluído numa sociedade maior a sociedade brasileira recebendo influências desta e interagindo Foi comentada a importância da cozinha na religião afrobaiana e mostrouse o quanto as cozinheiras de DF conseguem transpor este significado para suas vidas cotidianas sendo Flor apenas uma filha de Oxum e Andreza conhecida por ser filha iniciada deste mesmo orixá Quem participar de uma obrigação ou ritual sagrado do candomblé Mansu Bandu Kenke do Inquinaçaba poderá compreender melhor o significado afrobaiano da presença das mulheres na cozinha Em um destes rituais momento em que os animais sacrificados estavam sendo tratados ritualmente um filho de Oxum reclamou seu lugar naquelas tarefas dizendo Eu também sou iabá sou filho de Oxum posso tratar os bichos Aquele que reclamava seu lugar junto às mulheres nas tarefas feitas do Mansu Bandu era do sexo masculino entretanto reclamava seus direitos na cozinha por ser filho de um eledá feminino corporificava uma mulher Oxum Assim estaria segundo ele autorizado para aquelas tarefas apesar de homem pois era descendente mítico de um orixá feminino Por isso se sentia um pouco mulher e liberado para as tarefas femininas 141 A introdução da mestiça dona Flor no mundo da cozinha profissional afirma a semelhança da história amadiana com o cotidiano nãoficcional da Cidade do Salvador Segundo Brandão 1965 e Cascudo 1964 o catedrático de grego professor Luís dos Santos Vilhena confessavase horrorizado em ver que em 1802 as famílias abastadas mandavam muitos escravos de ganho para venderem iguarias nas ruas obtendo grande sucesso com os mocotós carurus vatapás mingaus pamonhas canjicas acaçás abarás acarajés arroz de coco feijão angus de coco etc Sucesso semelhante obtém Florípedes com as delícias afrobrasileiras e os doces da cozinha europeia e talvez a maior diferença esteja justamente no fato de Flor além de não ser escrava e não vender em tabuleiros ambulantes não ser de família abastada precisando dos proventos de suas receitas Quando se diz haver uma diferença que poderia interceptar as conexões os sinais de similitude não se fecham Cascudo 1964 não acredita que as famílias que utilizavam seus escravos de ganho eram abastadas pois se trata do período em que a família real se transferira para o Rio de Janeiro e muitos funcionários públicos daqui tiveram suas economias declinadas Na verdade assim como Flor as famílias estavam em decadência financeira Talvez na obra amadiana a cozinha continue guardando uma carga semântica negativa alimentando discursos antiamadianos que insistem em falar do pouco zelo do autor para com as mulheres seja com Gabriela do romance Gabriela Cravo e Canela 1989 Andreza de Oxum e Flor do romance DF todas donas de sortes parecidas representações de mulheres negras e mestiças mantendose somente com a arte de cozinhar Uma profissão menor 142 Entre os critérios de escolha das cozinheiras estava a aparência pessoal da escrava que poderia ser obrigada a servir na cama do senhor uma ordem dada com um simples olhar FREYRE 2001 Apesar da existência de alguns senhores que se apaixonavam por suas peças51 havia aqueles que apenas por regojizo perante sua culinária promoviam homenagens às fadas negras e até lhes davam alforria concedendo certos privilégios ficando o senhor bem perante alguns membros da igreja e satisfazendo a cozinheira que acabava ficando por ali mesmo após sua liberdade CASCUDO 1964 BRANDÃO 1965 QUERINO 1922 Os senhorios de áreas afastadas muitas vezes em momentos de regozijo concediam cartas de liber dade aos escravizados que lhe saciavam a intempe rança da gula com a diversidade de iguarias cada qual mais seleta quando não preferiam contemplá los ou dar expansão aos seus sentimentos de fi lantropia em alguma das verbas do testamento QUERINO 1922 p 24 Então a cozinha que inicialmente poderia ser martírio tornase elemento de cooptação do senhor como aconteceu com Gabriela manhosamente fazendo Nacib depender de sua culinária para os sucessos de seus negócios ou ainda Flor conquistando a alta sociedade soteropolitana sem ser inferiorizada A quituteira de DF frequentava os salões das festas para as quais cozinhava além de ser tratada como igual pelas madames em busca de seus ensinamentos e pratos apetitosos Com essas informações não cabem mais acusações ao autor que teria deixado personagens inferiorizadas por serem 51 Maneira como os escravos eram chamados por se tratar de mercadorias 143 cozinheiras Do autor comilão as personagens Gabriela Andreza e Flor recebem uma saudação acompanhada de cântico em honra da cozinheira que era convidada a comparecer à sala do festim e assistir à homenagem dos convivas QUERINO 1922 p 2425 Por um momento a negra cozinheira tinha seus quinze minutos de fama Tempo prolongado com Florípedes cozinheira e professora de culinária com escola povoada por moças e senhoras da nata da sociedade Novamente o narrador torna presentes experiências do autor existentes numa Bahia do século XX pois conforme Querino 1922 p 25 até as moças de família abastardas se exercitavam nos trabalhos culinários afim de mais tarde dirigirem sabiamente o arranjamento das refeições quotidianas ou o preparo dos finos mingaus das mesas de banquete De mãos dadas com a história Jorge Amado deixa de ser um simples comilão utilizandose das tradições culinárias baianas e das relações de trabalho em torno destas para incrementar a história de Dona Flor uma filha de Oxum posto que na obra as meninas ricas frequentavam a Escola da protagonista como as moças descritas por Querino Aproveitando o clichê a vida imita a arte na Salvador contemporânea nãoficcional temos mulheres cozinheiras conhecedoras como dona Flor dos quitutes afrobrasileiros que se tornaram destaques por seu sucesso de público e renda Algumas somente com o acarajé e o abará conseguiram notoriedade nacional como é o caso de Dinha Cyra e Regina do acarajé Dadá tornouse a cozinheira mais conhecida do Brasil uma personagem que pulou das linhas amadianas para a realidade Estes fenômenos são frutos da insistência da mulher negra em ganhar seu sustento com o saber e a criatividade ancestrais Sucesso garantido posto 144 que a Bahia encerra superioridade a excelên cia a primazia na arte culinária do país pois que o elemento africano com a sua condimentação requintada de exóticos adubos alterou profun damente as iguarias portuguesas resultando daí um produto todo nacional saboroso agradável ao paladar mais exigente o que excede a justificada fama que precede a cozinha bahiana QUERINO 1922 p 23 Porém os antecessores de Dinha Cira Regina Dadá e elas próprias possuem outra importante semelhança com as cozinheiras amadianas todas são filhas de orixá eou adeptas do candomblé tal Dona Olga do Alaqueto52 e a já citada Sambadiamongo53 E esta religião juntamente com as sociedades secretas foi a responsável por conservar os alimentos da culinária africana na mesa brasileira CASCUDO 1964 O próprio narrador faz questão de intercalar receitas sagradas com seu enredo colocando elementos desta culinária religiosa em festas e comemorações dos eventos sociais de Dona Flor pois a comida de Santo também é comida que gente come e principalmente Vadinho um filho de Exu orixá que come tudo que a boca come São muitos os exemplos de mulheres como Flor que conseguiram a autonomia financeira pelos dotes culinários doceiras quituteiras e principalmente baianas do acarajé As baianas com suas miçangas conseguem sustentar famílias enormes e em alguns casos os maridos viram meros ajudantes de suas esposas 52 Famosa Ialorixá que durante muito tempo se manteve com a cozinha ancestral 53 Ebome ou Ialorixá fundadora do Mansu Mandu Kenke do Inkinaçaba localizado no bairro de Pirajá em Salvador 145 O Azeite Num desperdício de comida ali se exibiam os quitutes baianos vatapá e efó abará e caruru moquecas de siri mole de camarão de peixe acarajé e acaçá galinha de xinxim e arroz de haussá além de montes de frangos perus assados pernis de porco posta de peixe frito para algum ignorante que não apreciasse o azeite de dendê pois como considerava Mi randão de boca cheia e com desprezo há todo tipo de bruto nesse mundo sujeitos capazes de qualquer ignonímia AMADO 1966 p 85 Assim aumenta nos rituais religiosos um de sejo nivelador por parte dos adeptos de subs tituir o dendê pelo azeite doce em expressão usual meu Santo não tem dendê ou meu Santo não leva dendê LODY 1992 p 12 Impossível negar que até na Bahia não deixa de haver quem considere a comida de azeite pouco nobre não merecedora de alimentar salões das chamadas classes privilegiadas pois o azeite sendo coisa de negro se transformaria em algo degradante às mesas nobres Fazer uma personagem declarar ser ignorante aquele que não apreciava azeitededendê à primeira vista parece apenas uma questão de escolha ou preferência por esta ou aquela culinária Contudo tratandose de Jorge Amado e do romance DF é maior o desejo de acreditar haver algo mais nas entrelinhas da comilança do mestre Mirandão Sem muito esforço percebese que há uma inversão de papéis sociais transcritos nas palavras de Mirandão há 146 todo tipo de bruto nesse mundo Para uma parcela do Brasil que se quer apenas branca seria ignorância e de péssimo tom a comida de azeite coisa de negros por isso menor comida de gente que fala de boca cheia como Mirandão Nesta cena não há alusão depreciativa qualquer pessoa irritada poderia perder a compostura e esquecer o mínimo da etiqueta recomendada durante a mastigação dos alimentos Realmente azeite é coisa de negro e o dendê foi trazido ao Brasil pelos traficantes de escravos LODY 1992 A marca negra na comida brasileira é determinada pelo dendê mas acima de tudo ser ou não ser do azeite é uma identidade um modo de vida uma religiosidade Lody 1992 em Tem Dendê Tem Axé deixa bem clara a oposição entre o negro e o nãonegro representada pelo fato de possuir ou não possuir azeite Em algumas religiões afro brasileiras quando não se fazem os rituais com o azeite é dito que só foram utilizadas coisas brancas nada de azeite pois o dendê teria o conteúdo maléfico a lembrança negra Desta forma algumas casas de religiões afrobrasileiras fazem questão de se denominarem Mesa Branca ou que só trabalham com coisas brancas que não são do azeite como forma de afirmar a realização de práticas apenas do bem Aí o maniqueísmo cristão já invadiu a seara negra Em contraposição a esse embranquecimento há os que afirmam Eu sou do azeite Não há orixá de mesa branca atribuindo aos embranquecedores o status de ignorantes como Mirandão em sua censura aos que não comem comida de azeite Por isso as palavras de Mirandão transformaramse em alegoria em representação da afirmação do azeite como comida de primeira linhagem 147 A alteridade do azeite na cena de Mirandão é reforçada visto que a comilança era uma festa anual em homenagem e retribuição aos orixás por graça alcançada pelo Major Tiririca ao ter sua esposa curada Então se era para afirmar a comida afrobrasileira por que o autor não inseriu uma festa ritual com todos os seus quitutes e cânticos Bom não há como adivinhar mas há uma possibilidade Desfazendo o hiato entre autor e narrador novamente lembramse as responsabilidades e atribuições de Jorge Amado junto ao candomblé Ogã Obá de Xangô autor da lei que proporcionou a liberdade de culto afro defensor do povodesanto seu povo e ele mesmo apesar de se declarar descrente Tais atribuições e compromissos poderiam limitar a descrição de certos rituais pertinentes somente aos iniciados eou iniciandos Na festa do Major Tiririca havia muitos pratos considerados sagrados comidas de santos orixás voduns e inquices Estas comidas também servem de alimentos aos seres humanos ora por fazerem parte de um ritual ou apenas como alimento sem conexão com o sagrado Comumente comemse em restaurantes pratos que para os candomblés são sagrados Nas ruas de Salvador a baiana do acarajé cartão postal mais constante da cidade compartilha e comercializa alimentos dedicados a Ogum Xangô Iansã e aos Exus efeminizados o acarajé de Iansã também servido a Padilha e Pombagira ao adicionar a pimenta o abará de Ogum e o de Xangô perdem o conteúdo sagrado ao não serem manipulados ritualmente As diferenças são estabelecidas na ausência ou presença de cânticos sagrados de recipientes apropriados na maneira de manipular as comidas Jorge Amado não nos revela estes segredos dos candomblés contudo a afirmação da identidade 148 permanece sem exclusão do elemento europeu pois na festa havia a comida sem azeite Assim sem os tambores as velas os cânticos danças e gestos específicos podese realmente afirmar que não havia um ritual sagrado na festa do Major Tiririca Mas há como assegurar que os alimentos não eram servidos ritualmente Em muitos lares da Bahia festas parecidas com a do Major são realizadas Um exemplo são os carurus dedicados aos Ibejis aos Erês ou a São Cosme e São Damião Em algumas festas mais preocupadas em atender o grande público além das comidas de azeite fazem a doçaria já incorporada aos pratos dos orixás crianças que como todos os pequenos adoram as guloseimas O respeito à diversidade e até às vontades alimentares do povo também acontece nas homenagens aos orixás como o Major Tiririca o fez ao colocar a doçaria conventual condenada por Mirandão Contudo respondendo à velha pergunta havia ou não a prática de um ritual na maneira de servir os alimentos durante a festa de Tiririca No romance não é mostrado o ritual realizado dentro dos candomblés com toda a encenação sagrada Não obstante um ritual é praticado na festa de Tiririca como nos carurus de Ibejis nas feijoadas de Ogum realizadas por fiéis não iniciados ou até pelos iniciados que transferem parte do culto para suas residências Antes de qualquer coisa deve ser lembrado que as religiões afrobrasileiras dependem de um espaço ou território sacralizado para realização de seus rituais e nem sempre as residências dos adeptos possuem todos os elementos sacros fazendo surgir um ritual às vezes menos completo por falta de local apropriado 149 Apesar de na cena da casa de Tiririca não se saber da existência de rituais secretos ocorre algo parecido com os intervalos das grandes festas públicas nos candomblés baianos Após os cânticos aos orixás o xirê as comidas sagradas são compartilhadas com o povo a distribuição de parte dos alimentos sagrados completa o Axé Várias autoridades do candomblé na Bahia dizem que é preciso dar comida primeiramente ao orixá mas também é necessário distribuir ao povo para que o Axé se fortifique para que as energias cresçam Então na festa do Major Tiririca como em vários rituais caseiros temse a presença da distribuição sagrada dos alimentos como forma de agradecimento e ampliação da energia Axé Desta forma Amado revela uma outra face da cozinha e insere o azeite no rol das grandes especiarias Se foi ele o primeiro a elogiar os traços negróides é também ele que em Tenda dos Milagres Gabriela Cravo e Canela e Dona Flor enaltece a comida de azeite sem desconsiderar a existência da cozinha europeia Basta lembrar que os quitutes de Gabriela enriqueceram Nacib que Pedro Archanjo fez fama com livro sobre culinária baiana tal como Querino na vida real e que Dona Flor desde solteira transformase em coluna financeira da casa apenas com seus dotes culinários Verificar os sinais da ancestralidade brasileira e as marcas das religiões afrobrasileiras na construção do enredo e das personagens foi a meta principal deste trabalho Subsidiariamente provouse que o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos é uma obra comprometida com a cultura e a identidade do povo baiano e brasileiro Temse uma obra 150 filiada a uma linha política FERREIRA 1986 p 653 à política da valorização da identidade brasileira Portanto o texto pode provar não se tratar de uma mera história de amor com toques de sensualidade e esoterismo O conhecimento de elementos da cultura brasileira e principalmente da mitologia dos orixás e de BabaEgum o culto aos ancestrais ficou demonstrado nas linhas e entrelinhas do romance ora analisado É preciso pensar numa nova leitura de Jorge Amado buscar a capacitação para enxergar o belo o maravilhoso e o fantástico que se apresenta também para além das leituras superficiais O embasamento para tais interpretações pode ser encontrado nas ruas da velha Cidade da Bahia nos candomblés de orixás nos cultos de BabaEgum nos salões de festas de umbanda e nos escritos antropológicos O primeiro passo deve ser a admissão do desconhecimento da causa ou do universo formador da cultura e das religiões afrobrasileiras Somente a assunção do desconhecimento pode levar à possibilidade de conhecer e fazer com que alguns pesquisadores retirem Jorge Amado do rol dos escritores considerados fáceis Amado não queria ter sido difícil e reduzir o acesso à sua obra Ele consegue superar as expectativas possui um texto de fácil encantamento e com cada centímetro de entrelinha aberto a uma profunda verticalidade Dona Flor e Seus Dois Maridos prova isto fazendo ecoar vozes formadoras da nacionalidade de costumes e religiosidade Há tudo isso claramente em Tenda dos Milagres romance posterior a DF mas em DF parece que o autor resolveu ser mais sofisticado ao mesmo tempo em que foi acessível são dois textos num só O primeiro texto é um link para um hipertexto acessado 151 com a senha correta Aberta a janela a navegação gira em sentido antihorário como no xirê no intuito de favorecer aos antepassados à ancestralidade Nesse sentido as representações coletivas de Oxum Exu Oxalá Xangô e dos BabaEgum foram identificadas na obra como construtoras do enredo Os conceitos de cozinha e o azeite traçaram uma nova possibilidade de leitura de questões encarceradas em discursos preconceituosos e guetistas Também algumas representações contemporâneas da nossa sociedade revelaram similitudes Na verdade os candomblés as mulheresdesanto e as grandes cozinheiras entre outras são reinvenções da ancestralidade e das mitologias narradas por entre as linhas de DF por isso as similitudes e as correspondências Não adianta aqui conjeturar uma Florípedes um Vadinho um Teodoro e ainda e até um negro Arigof sendo filhos de outros orixás senão aqueles dados pelo autor Mas certamente a mudança dos orixás donos das cabeças das personagens mudaria as atitudes destas eou em torno delas e consequentemente a trama da obra A partir de uma crítica literária comprometida com uma crítica da cultura cumpriuse o papel de desvendar alguns mistérios de Dona Flor e Seus Dois Maridos ou ao menos apontarlhe possibilidades de leitura No mínimo ficam a mensagem e o incentivo para ler Jorge Amado sempre olhando os links com a cultura mestiça e as religiões afrobrasileiras 153 REFERÊNCIAS AMADO Jorge Tenda dos milagres Rio de Janeiro Record 2000 Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Martins 1966 ARAÚJO Ubiratan Castro de Org Salvador era assim memórias da Cidade Salvador IGHB 1999 ARISTÓTELES A poética São Paulo Nova Cultural 1996 AUGRAS Monique De Iyá Mi a Pomabagira transformações e símbolos da libido In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p 1744 As religiões de origem africana no contexto brasileiro In O duplo e a metamorfose a identidade mítica em comunidades nagô Petrólpolis Vozes 1983a p 2354 Os modelos míticos In O duplo e a metamorfose a identidade mítica em comunidades nagô Petrópolis Vozes 1983b p 93182 BADINTER Elisabeth Um amor conquistado o mito do amor materno Tradução de Waltensir Dutra Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 154 BARROS José Flávio Pessoa TEIXEIRA Maria Lina Leão O código do corpo inscrições e marcas dos Orixás In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p103138 BARTHES Roland Aula Tradução de Leyla PerroneMoisés 7 ed São Paulo Cultrix 1996 BRANDÃO Darwin A cozinha baiana 2 ed Rio de Janeiro Letras e Artes 1965 CÂNDIDO Antônio et al A personagem de ficção São Paulo Perspectiva 1976 CARNEIRO Edison Candomblés da Bahia 5 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1977 CASCUDO Luís da Câmara A cozinha africana no Brasil Luanda sn 1964 CASTRO Yeda Pessoa de Falares africanos na Bahia um vocabulário afrobrasileiro Rio de Janeiro Top books 2001 DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Rio de Janeiro Ed Rio 1975 DERRIDA Jacques O outro cabo Coimbra Reitoria da Universidade Ed A Mar Arte 1995 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Tradução de Maria Adriana S Caldas Rio de Janeiro Fator 1983 FERRARA Lucrecia DAllesio As máscaras da cidade Revista USP São Paulo n 5 p 310 maio 1990 155 FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural do Collège de France Pronunciada em 2 de dezembro de 1970 Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio 8 edição São Paulo Loyola 2002 FOUCAULT Michel A mulheros rapazes da história da sexualidade São Paulo Paz e Terra 1997 FREYRE Gilberto Casa grande senzala 45 ed Rio de Janeiro Record 2001 GREGERSEN Edgar Práticas sexuais São Paulo Livraria Roca 1983 LEITE Gildeci de Oliveira Tenda dos milagres identidade cultura ficção e história In SEMINÁRIO PERMANENTE DE PESQUISADORES BAIANOS 2003 Salvador LEPINE Claude Os estereótipos da personalidade no candomblé nagô In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p139164 LÉVI STRAUSS Claude A família In SHAPIRO Harry L Homem cultura e sociedade São Paulo Martins Fontes 1982 p 355380 LIMA Vivaldo Costa As dietas africanas no sistema alimentar brasileiro In CAROSO Carlos BACELAR 156 Jefferson Faces da tradição afrobrasileira religiosidade sincretismo antisincretismo reafricanização práticas terapêuticas etnobotânica e comida Rio de Janeiro Pallas 1999 p 319326 LODY Raul Tem dendê tem axé etnografia do dendezeiro Rio de Janeiro Pallas 1992 LUZ Marco Aurélio Agadá dinâmica da civilização africanobrasileira 2 ed Salvador EDUFBA 2000 MARTINS Editora Orelha In AMADO Jorge Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Martins Editora 1966 NIETZSCHE Friedrich Assim Falou Zaratustra São Paulo Martin Claret 2000 Genealogia da moral uma polêmica Tradução de Paulo César de Souza São Paulo Companhia das Letras 1999 PRANDI Reginaldo Mitologia dos orixás São Paulo Schwarcs 2001 PRANDI Reginaldo Conceitos de vida e de morte no ritual do axexê tradição e tendências recentes dos ritos funerários no candomblé In MARTINS Cléo LODY Raul Faraimará o caçador traz alegria Rio de Janeiro Pallas 2000a p 174 184 De africano a afrobrasileiro etnia identidade religião Revista USP São Paulo n 46 p 52 65 junago 2000b Deuses africanos no Brasil In Herdeiras do axé São Paulo Hucitec 1997 p 150 157 Exu de mensageiro a diabo Disponível em http wwwfflchuspbrsociologiaprandiexudiartf Acesso em 30 mar 2003 QUERINO Manoel A arte culinária na Bahia Salvador Progresso 1922 RAFFESTIN Claude Por uma geografia do poder São Paulo Ática 1993 RAILLARD Alice Conversando com Jorge Amado Rio de Janeiro Record 1992 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro São Paulo Cia das Letras 1995 RODRIGUES Núbia CAROSO Carlos Exu na tradição terapêutica religiosa afrobrasileira In CAROSO Carlos BACELAR Jeferson Faces da tradição afrobrasileira religiosidade sincretismo antisincretismo reafricanização práticas terapêuticas etnobotânica e comida Rio Janeiro Pallas Salvador CEAO 1999 p 239256 RUBIN Rosane CARNEIRO Maried Jorge Amado 80 anos de vida e obra Salvador Fundação Casa de Jorge Amado 1992 SANTOS Juana Elbein dos Os Nagô e a morte Petrópolis Vozes 1986 SCHOPENHAUER Arthur Metafísica do amor In Da morte metafísica do amor do sofrimento do mundo São Paulo Martin Claret 2001 p 77110 158 SEGATO Laura Inventando a natureza família sexo e gênero no Xangô do Recife In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Candomblé religião do corpo e da alma tipos psicológicos nas religiões afrobrasileiras Rio de Janeiro Pallas 2000 p 4562 SEIXAS Cid O sumiço da santa síntese do romance urbano de Jorge Amado In Triste Bahia Oh Quão dessemelhante Salvador EGBA 1996 p 8393 SEIXAS Cid O jeito da gesta crioula Jorge Amado e o canto épico da mestiçagem In CONGRESSO DA ABRALIC 7 2000 Salvador SEIXAS Cid Cadernos de sala de aula três temas dos anos trinta Feira de Santana UEFS 2003 TAVARES Ildásio Candomblés na Bahia Salvador Palmares 2000 TAVARES Ildásio Nossos colonizadores africanos Salvador Edufba 1996 TRINDADE Liana M Salvia Exu poder e magia In MOURA Carlos Eugênio Marcondes de Olòórisá escritos sobre a religião dos orixás São Paulo Ágora 1981 p 110 VERGER Pierre Fatumbi Orixás Rio de Janeiro Corrupio 1998 159 GLOSSÁRIO Abará Bolinho feito de massa de feijão fradinho cebola e cama rão seco e cozido com azeite de dendê envolto em folhas de bananeira Seu formato não é redondo Possui uma base retangular com as partes superiores formadas por junção de quadro triângulos pouco regulares Esta figura é originada a partir da maneira como a folha da bananei ra é enrolada para envolver e guardar a massa do abará Enquanto a massa do acarajé é frita o abará é cozido na parte superior do cuscuzeiro Abiku Aquele que nasce para a morte Acaçá Bolinho feito de massa de milho branco ou vermelho co zido envolto em palhas de bananeira Geralmente o acaçá acompanha ou complementa outras comidas oferecidas aos diversos orixás e ancestrais Possui o mesmo formato do abará Acarajé Bolo de feito de massa de feijão fradinho temperado com cebola frito em azeitededendê Geralmente oferecido à Iansã e Exu sendo oferenda mais identificada com Iansã Apáoká A Jaqueira mãe de Oxóssi SANTOS 1986 Babalaô O adivinho sacerdote do Ifá no Brasil seria o sacerdote que tem autorização para usar o jogo de búzios contudo a reinterpretação brasileira deu estes poderes também ao Babalaorixá Pai de Santo e à Ialaorixá Mãe de Santo Ele o Babalaô é o pai do segredo Barraventos Momento que antecede o transe e que o médium é sacu dido eou desestabilizado pela entidade levando o mé dium a desequilibrarse Pode acontecer a incorporação logo em seguida ou não Chimba Castigo recebido por cometer alguma falta com o orixá inquice vodun ou caboclo Obarixá Na Bahia atribuição dada a Xangô e também a Oxalá Orixá Rei Ecodidé Um papagaio africano 160 Babalorixá Paidesanto Candomblé Religião afrobrasileira característica da Bahia Caruru Alimento feito à base de quiabos cebola azeitededendê e camarão Nos carurus de São Cosme e São Damião pos suem diversas outras comidas representativas dos orixás que são servidas conjuntamente Dono de sua cabeça O mesmo que o orixá regente o Eledá Ebó Sacrifício ou oferenda feita com determinada intenção Eledá Orixá dono da cabeça Equede Cargo hierárquico feminino espécie de auxiliar direta dos orixás voduns inquices a encarregada de cuidar dos participantes das danças possuídos pelas entidades LODY 1992 Feitasnosanto O mesmo que iniciadas Filhasdesanto Adeptas de religiões afrobrasileiras Ibejis Orixás crianças Iaô O iaô ou a iaô do camdomblé originalmente significa a esposa do orixá que no Brasil confundese com filho ou filha do orixá A denominação esposa serve para o sexo masculino e feminino e não possui relação alguma com possessão sexual Iemanjá No Brasil orixá Rainha do Mar Ifá Oráculo advinhatório e a própria entidade patrona do oráculo Orunmilá Babá Ifá significa Orunmilá Pai do Segredo Ilá Brado dos orixás que identifica sua presença Ilê Axé Opo Afonjá Terreiro de Candomblé famoso por seu tradicionalismo situado em Salvador Bahia no bairro São Gonçalo do Retiro e atualmente dirigido por Mãe Stella de Oxóssi Inquice Equivalência da palavra orixá dos Terreiros nagô Ketu nos Terreiros de Angola Irmão de cabeça Pessoa que possui o mesmo orixá inquice ou vodum de outro o irmão independente de serem filhos do mesmo terreiro ou casa de axé Iyá Mãe Iyá Mi Oxorongá As Grandes Mães Ancestrais 161 Juntó Na Bahia é o nome dado ao segundo orixá da pessoa Por exemplo alguém pode ser de Xangô com Ogum portan to Ogum é o Juntó desta pessoa Mansu Bandu Kenke do Inquinasaba Terreiro de Candomblé da Nação Angola situado na Ci dade do Salvador no bairro de Pirajá Este Terreiro foi dirigido e fundado por Edith Apolinária de Santana Sambadiamongo no Candomblé a referida Ebome foi iniciada no BateFolha mais tradicional Terreiro de An gola do Brasil Nanã Orixá feminino e uma das esposas de Oxalá Obá de Xangô Um dos ministros da corte de Xangô Obatalá Senhor do Pano Branco um título de Oxalufã Obi Fruta usada em oferenda aos orixás inquices e voduns e pode ser branca ou vermelha de duas ou quatro divisões Ogã Sacerdote que não recebe orixá e possui variadas funções desde músico sagrado até a responsabilidade do sacrifício de animais Apenas pessoas do sexo masculino podem ser ogãs Ogum Orixá da Guerra ferreiro deus do fogo artificial irmão mais velho de Exu Oiá Equivalência de Iansã deusa dos raios e uma das mulhe res de Xangô Olotoju Awo Omo Um dos títulos de Oxum a que olha e cuida de todas as crianças Opelê Também chamado de Opelê Ifá sendo o principal objeto do Oluô É uma corrente contendo frutos contas búzios e demais complementos LODY 1992 p 115 Tratase de um oráculo adivinhatório Ori Cabeça Oriki Reza Texto sagrado que relata características e feitos dos orixás LODY 1992 p 115 Orixá Categoria de divindades dos Yorubás genericamente também dos Nagôs São Ligados à vida e à natureza Ocu pam diferentes patronatos recebendo cultos específicos coerentes com suas funções de mando e poder LODY 1992 p 115 Orunmilá Babá Ifá Deus do Oráculo Ifá Osetuá Entidade filho de Oxumum Exu 162 Oxóssi Orixá caçador representado com arco e flecha O prove dor do alimento e da família Odara Além de significar bom bonito esplêndido muito bom Também é o nome de um Exu Oxum Orixá deusa dos rios Padilha Exu feminino no Brasil Pessoasdosanto Gente de candomblé ou de outra religião afrobrasileira apenas com os ritos de iniciação Pessoasfeitasde santo Iniciados no candomblé Pombagira Exu feminino no Brasil Quizila Tabu interdição religiosa a exemplo de não poder co mer abóbora para quem é de iansã ou amendoim para quem é de oxóssi repugnância antipatia CASTRO 2001 p 329 Samba Inquice da nação Angola Tambor da Mina Religião afrobrasileira originada do Recife Umbanda Religião afrobrasileira que possui influências dos orixás africanos do kardecismo do cristianismo e de espíritos ameríndios Urucubaca Na Bahia é sinônimo de má sorte Urucubaca Má sorte azar CASTRO 2001 Vatapá Alimento afrobrasileiro feito de farinha de trigo cama rão cebola e outros ingredientes Encontrase neste ali mento as representações negras ameríndias e europeias Vodum Divindade dos Fon semelhante aos orixás LODY 1992 p 118 Xangô Deus guerreiro herói dos Yorubá LODY 1992 p 118 Orixá da justiça e no Brasil também é o orixá do dinheiro Xangô O Religião afrobrasileira originada do Maranhão Xirê Cânticos rituais aos orixás Yalodê Um título de Oxum maior entre as mulheres Formato 150 x 210 mm Fonte Minion Pro 12 Miolo papel Polén Soft 80 gm2 Capa papel supremo 250 gm2 Impresso novembro 2014 Sobre o autor Gildeci de oliveira Leite Mestre em Letras e Linguística UFBA e Especialista em Educação ABEC Professor da Universidade do Estado da Bahia UNEB em Seabra Leciona Literatura Brasileira e Baiana Editor da Seara Revista Virtual wwwsearaunebbr Pesquisador em literatura e cultura baianas Publicou artigos em periódicos especializados e trabalhos em anais de eventos Possui capítulos de livros publicados e um livro virtual wwwedunebunebbr ISBN 9788578871475