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Michael Tomasello Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano Tradução CLAUDIA BERLINER Martins Fontes São Paulo 2003 Michael Tomasello é codiretor do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig Alemanha É autor de First Verbs e coautor de Primate Cognition Suas pesquisas enfocam principalmente crianças de 1 a 4 anos e primatas Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título THE CULTURAL ORIGINS OF HUMAN COGNITION por Harvard University Press Copyright 1999 by Michael Tomasello Copyright 2003 Livraria Martins Fontes Editora Ltda São Paulo para a presente edição 1ª edição fevereiro de 2003 Tradução CLAUDIA BERLINER Preparação do original Lucia Aparecida dos Santos Revisão gráfica Maria Regina Ribeiro Machado Célia Regina Camargo Produção gráfica Geraldo Alves PaginaçãoFotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Tomasello Michael Origens culturais da aquisição do conhecimento humano Michael Tomasello tradução Claudia Berliner São Paulo Martins Fontes 2003 Coleção tópicos Título original The cultural origins of human cognition Bibliografia ISBN 8533617313 1 Cognição e cultura 2 Cognição em crianças I Título II Série 030347 CDD153 Índices para catálogo sistemático 1 Conhecimento e cultura Psicologia 153 Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda Rua Conselheiro Ramalho 330340 01325000 São Paulo SP Brasil Tel 11 32413677 Fax 1131056867 email infomartinsfontescombr httpwwwmartinsfontescombr ÍNDICE Agradecimentos VII 1 Um enigma e uma hipótese 1 2 Herança biológica e cultural 17 3 Atenção conjunta e aprendizagem cultural 77 4 Comunicação lingüística e representação simbólica 131 5 Construções lingüísticas e cognição de eventos 187 6 Discurso e redescrição representacional 225 7 Cognição cultural 281 Referências bibliográficas 305 Índice analítico 331 AGRADECIMENTOS Cada ser humano só é capaz de criar artefatos culturalmente significativos se receber de outros seres humanos e de instituições sociais um montante significativo de assistência No meu caso só pude escrever este livro sejam quais forem suas falhas e por mais limitada que seja sua importância cultural porque recebi assistência direta das seguintes pessoas e instituições e obviamente assistência indireta de todas as outras pessoas que nos últimos 2500 anos da civilização ocidental ensinaram e escreveram sobre os enigmas básicos da cognição humana A licença de um ano durante o qual escrevi a maior parte do livro foi custeada pela Fundação Guggenheim pela Emory University dr Steven Sanderson deão do Emory College e pela Max Planck Gesellschaft Minhas pesquisas empíricas na última década ou mais foram patrocinadas pela Spencer Foundation pela National Science Foundation Departamento de Comportamento Animal e pelo National Institute of Child Health and Human Development Gostaria de expressar minha mais profunda gratidão a todas essas pessoas e instituições Espero que elas sintam ter feito um bom emprego de seu dinheiro Tirei imenso proveito de discussões sobre muitos dos temas deste livro com vários amigos e colegas De especial importância foram as discussões que tive com Philippe Rochat Josep Call Malinda Carpenter Nameera Akhtar Gina ContiRamsden Elena Lieven Trícia Striano Holger Diessel Nancy Budwig e Ann Kruger Todas essas pessoas também leram partes do manuscrito ou todo ele e fizeram comentários extremamente úteis Agradeço também a Michael Cole e Katherine Nelson que revisaram o manuscrito para a Harvard University Press e cujas observações também foram muito proveitosas e oportunas Finalmente gostaria de agradecer a Katharina Haberl e Anke Förster seu apoio editorial na frente doméstica em Leipzig e a Elizabeth Knoll e Camille Smith seu apoio editorial na Harvard University Press 1 UM ENIGMA E UMA HIPÓTESE Todas as maiores realizações da mente vão muito além do poder de um indivíduo só CHARLES SANDERS PEIRCE Em algum lugar da África há uns 6 milhões de anos num evento evolucionário rotineiro uma população de grandes macacos tornouse isolada quanto à reprodução de seus coespecíficos Esse novo grupo evoluiu e dividiuse em outros grupos levando ao surgimento de várias espécies diferentes de macacos bípedes do gênero Australopithecus Todas essas novas espécies acabaram morrendo exceto uma que sobreviveu até cerca de 2 milhões de anos atrás época em que já tinha mudado tanto que precisava não só de uma nova designação de espécie mas de uma nova designação de gênero Homo Comparado com seus ancestrais australopitecos que tinham 120 m de altura cérebros do tamanho do cérebro do macaco e não dispunham de ferramentas de pedra o Homo era fisicamente maior tinha um cérebro maior e fazia ferramentas de pedra Não demorou muito para que o Homo começasse a viajar pelo mundo afora embora em nenhuma de suas incursões para fora da África tenha conseguido estabelecer populações que sobrevivessem de modo permanente Então ainda em algum canto da África há cerca de 200 mil anos uma população de Homo deu início a uma nova e diferente trajetória evolucionária Começou a viver na África de uma maneira nova e depois se espalhou pelo mundo sobrepondose a todas as outras populações de Homo e deixando descendentes hoje conhecidos como Homo sapiens ver Figura 11 Os indivíduos dessa nova espécie tinham uma certa quantidade de características físicas inéditas dentre as quais cérebros um pouco maiores mas o mais notável foram as novas habilidades cognitivas e os produtos que eles criaram Começaram a produzir uma pletora de novas ferramentas de pedra adaptadas a fins específicos sendo que cada população da espécie criou sua própria indústria no uso de ferramentas a ponto de algumas populacoes criarem coisas como processos computadorizados de manufatura Começaram a usar símbolos para se comunicar e para estruturar sua vida social incluindo não só símbolos linguísticos mas também símbolos artísticos na forma de pedras talhadas e pintura de cavernas a ponto de algumas populações criarem coisas como linguagem escrita dinheiro notação matemática e arte Inauguraram novos tipos de práticas e organizações sociais do enterro cerimonioso dos mortos à domesticação de plantas e animais a ponto de algumas populações criarem coisas como instituições religiosas governamentais educacionais e comerciais formalizadas O enigma básico é este Os 6 milhões de anos que separam os seres humanos de outros grandes macacos é um tempo muito curto do ponto de vista da evolução sendo que os humanos e os chimpanzés têm em comum algo em torno de 99 de seu material genético o mesmo grau de parentesco de outros gêneros irmãos como leões e tigres cavalos e zebras e ratazanas e camundongos King e Wilson 1975 Nosso problema é portanto um problema de tempo O fato é que simplesmente não houve tempo suficiente para que os processos normais de evolução biológica que envolvem variação genética e seleção natural criassem uma por uma todas as habilidades cognitivas necessárias para que os humanos modernos inventassem e conservassem complexas aptidões e tecnologias no uso de ferramentas complexas formas de comunicação e representação simbólica e complexas organizações e instituições sociais E o enigma só aumentará se levarmos a sério as pesquisas atuais em paleoantropologia segundo as quais a foi apenas nos últimos 2 milhões de anos que a linhagem humana deixou de apresentar apenas habilidades cognitivas típicas de grandes macacos e b os primeiros sinais contundentes de habilidades cognitivas únicas da espécie surgiram apenas no último quarto de milhão de anos com o moderno Homo sapiens Foley e Lahr 1997 Klein 1989 Stringer e McKie 1996 Há uma única solução possível para esse enigma Ou seja há um único mecanismo biológico conhecido que poderia ocasionar esse tipo de mudanças no comportamento e na cognição em tão pouco tempo quer pensemos esse tempo em termos de 6 milhões 2 milhões ou um quarto de milhão de anos Esse mecanismo biológico é a transmissão social ou cultural que funciona em escalas de tempo de magnitudes bem mais rápidas do que as da evolução orgânica Em termos gerais a transmissão cultural é um processo evolucionário razoavelmente comum que permite que cada organismo poupe muito tempo e esforço para não falar de riscos na exploração do conhecimento e das habilidades já existentes dos coespecíficos A transmissão cultural inclui coisas como um filhote de passarinho imitar o canto típico da espécie cantado por seus pais filhotes de rato comerem apenas os alimentos comidos por suas mães formigas localizarem comida seguindo os rastros de feromônio dos coespecíficos jovens chimpanzés aprenderem as práticas de uso de ferramentas dos adultos com que convivem e crianças humanas adquirirem as convenções linguísticas dos outros membros de seu grupo social Mundinger 1980 Heyes e Galef 1996 Contudo a despeito do fato de todos esses processos poderem ser agrupados sob a rubrica geral de transmissão cultural os mecanismos comportamentais e cognitivos precisos implicados nos diferentes casos são vários e diversos incluindo tudo desde os pais provocarem padrões fixos de ação em seus rebentos até a transmissão de habilidades por aprendizagem por imitação e educação o que sugere a possibilidade de subtipos significativos de processos de transmissão cultural Tomasello 1990 1994 Uma hipótese razoável seria portanto que o incrível conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestado pelos homens modernos é o resultado de algum tipo de modo ou modos de transmissão cultural únicos da espécie Existem evidências irrefutáveis de que os seres humanos têm de fato modos de transmissão cultural únicos da espécie Um fato ainda mais importante é que as tradições e os artefatos culturais dos seres humanos acumulam modificações ao longo do tempo de uma maneira que não ocorre nas outras espécies animais é a chamada evolução cultural cumulativa Basicamente nenhum dos mais complexos artefatos ou práticas sociais humanos incluindo fabricação de ferramentas comunicação simbólica e instituições sociais foi inventado num único momento ao mesmo tempo e de uma vez por todas por algum indivíduo ou grupo de indivíduos Pelo contrário o que aconteceu foi que algum indivíduo ou grupo de indivíduos primeiro inventou uma versão primitiva do artefato ou prática e depois um usuário ou usuários posteriores fizeram uma modificação um aperfeiçoamento que outros então talvez adotaram sem nenhuma alteração por muitas gerações até que algum outro indivíduo ou grupo de indivíduos fez outra modificação que então foi aprendida e usada por outros e assim por diante ao longo do tempo histórico de acordo com o que às vezes é denominado efeito catraca Tomasello Kruger e Ratner 1993 O processo de evolução cultural cumulativa exige não só invenção criativa mas também e de modo igualmente importante transmissão social confiável que possa funcionar como uma catraca para impedir o resvalo para trás de maneira que o recéminventado artefato ou prática preserve sua forma nova e melhorada de modo bastante fiel pelo menos até que surja uma outra modificação ou melhoria Talvez cause surpresa saber que para muitas espécies animais o feito dificultoso não é o componente criativo e sim o componente estabilizador da catraca Por isso muitos primatas nãohumanos produzem regularmente inovações e novidades comportamentais inteligentes mas seus companheiros de grupo não participam do tipo de aprendizagem social que possibilitaria à catraca cultural fazer seu trabalho no transcurso do tempo Kummer e Goodall 1985 Portanto o fato básico é que seres humanos são capazes de combinar seus recursos cognitivos de maneiras 7 diferentes das de outras espécies animais Nesse sentido Tomasello Kruger e Ratner 1993 distinguiram a aprendizagem cultural humana de formas mais difundidas de aprendizagem social identificando três tipos básicos aprendizagem por imitação aprendizagem por instrução e aprendizagem por colaboração Esses três tipos de aprendizagem cultural tornamse possíveis devido a uma única e muito especial forma de cognição social qual seja a capacidade de cada organismo compreender os coespecíficos como seres iguais a ele com vidas mentais e intencionais iguais às dele Essa compreensão permite aos indivíduos imaginaremse na pele mental de outra pessoa de modo que não só aprendem do outro mas através do outro Essa compreensão dos outros como seres tão intencionais como simesmo é crucial na aprendizagem cultural humana porque os artefatos culturais e a prática social prototipicamente exemplificados pelo uso de ferramentas e de símbolos linguísticos apontam invariavelmente para além deles mesmos para outras entidades externas ferramentas apontam para os problemas que elas foram feitas para resolver e símbolos linguísticos apontam para as situações comunicativas que eles se destinam a representar Portanto para aprender socialmente o uso convencional de uma ferramenta ou de um símbolo as crianças têm de chegar a entender por que para que fim exterior a outra pessoa está usando a ferramenta ou o símbolo ou seja têm de chegar a entender o significado intencional do uso da ferramenta ou prática simbólica para que serve o que nós os usuários dessa ferramenta ou desse símbolo fazemos com ela ou ele Processos de aprendizagem cultural são formas especialmente poderosas de aprendizagem social porque constituem a formas especialmente confiáveis de trans 8 missão cultural criando uma catraca cultural particularmente poderosa e b formas especialmente poderosas de criatividade e inventividade sociocolaborativa ou seja processos de sociogênese nos quais vários indivíduos criam algo juntos algo que nenhum indivíduo poderia ter criado sozinho Esse poder especial originase diretamente do fato de que quando um ser humano está aprendendo através de outro ele se identifica com esse outro e com seus estados intencionais e às vezes mentais Apesar de haver algumas observações que sugerem que alguns primatas nãohumanos são em determinadas situações capazes de compreender coespecíficos como agentes intencionais e de aprender a partir deles de uma maneira que lembra algumas formas de aprendizagem cultural humana o peso esmagador das evidências empíricas sugere que apenas os seres humanos compreendem os coespecíficos como agentes intencionais iguais a eles mesmos e portanto apenas os seres humanos envolvemse numa aprendizagem cultural Tomasello 1996b 1998 Tomasello e Call 1997 ver Capítulo 2 Em relação a isso vale notar também que na ontogênese humana existe uma síndrome muito específica decorrente de causas biológicas o autismo na qual os indivíduos mais gravemente afetados são incapazes tanto de compreender as outras pessoas como agentes mentaisintencionais iguais a eles mesmos como também de se envolver em habilidades de aprendizagem cultural típicas da espécie Hobson 1993 BaronCohen 1993 Sigman e Capps 1997 Carpenter e Tomasello A sequência completa dos hipotéticos acontecimentos evolutivos é a seguinte seres humanos desenvolveram uma nova forma de cognição social que favoreceu algumas novas maneiras de aprendizagem cultural que 9 favoreceram alguns novos processos de sociogênese e evolução cultural cumulativa Esse resumo resolve nosso problema do tempo porque postula uma e só uma adaptação biológica que poderia ter acontecido em qualquer momento da evolução humana até mesmo muito recentemente Os processos culturais que essa adaptação desencadeou não criaram novas habilidades cognitivas do nada mas tomaram habilidades cognitivas individuais existentes como aquelas que a maioria dos primatas possui para lidar com espaço objetos ferramentas quantidades categorias relações sociais comunicação e aprendizagem social e as transformaram em novas habilidades cognitivas culturais com uma dimensão sociocoletiva Essas transformações ocorreram não no tempo evolucionário mas no tempo histórico em que muito pode acontecer em vários milhares de anos A evolução cultural cumulativa é portanto a explicação para muitas das mais impressionantes realizações cognitivas dos seres humanos Contudo para avaliar plenamente o papel dos processos históricoculturais na constituição da cognição humana moderna temos de olhar para o que acontece durante a ontogênese humana O mais importante é que a evolução cultural cumulativa garante que a ontogênese cognitiva humana ocorra num meio de artefatos e práticas sociais sempre novos que em qualquer tempo representam algo que reúne toda a sabedoria coletiva de todo o grupo social ao longo de toda a sua história cultural As crianças são capazes de participar plenamente dessa coletividade cognitiva a partir de mais ou menos os nove meses de idade quando pela primeira vez começam a fazer tentativas de compartilhar a atenção e de aprender imitativamente de e através de seus coespecíficos ver Capítulo 3 Essas ativa 10 des de atenção conjunta que assim principiam representam nada mais que o surgimento ontogenético da adaptação sociocognitiva única dos seres humanos para se identificar com outras pessoas e dessa forma compreendêlas como agentes intencionais iguais a eles mesmos Essa nova compreensão e essas novas atividades formam pois a base dos primórdios da entrada das crianças no mundo da cultura O resultado disso é que cada criança que compreende seus coespecíficos como seres mentaisintencionais iguais a ela mesma ou seja cada criança que possui a chave sociocognitiva dos produtos cognitivos historicamente constituídos de seu grupo social pode agora participar da coletividade conhecida como cognição humana e podese dizer como Isaac Newton que ela vê tão longe porque está de pé sobre os ombros de gigantes Devemos contrastar essa situação típica da espécie com crianças autistas que crescem no meio de produtos culturais cumulativos mas não são capazes de tirar vantagem da sabedoria coletiva expressa neles porque por razões biológicas não possuem as habilidades sociocognitivas necessárias e uma criança selvagem imaginária que crescesse numa ilha deserta com um cérebro um corpo e órgãos dos sentidos normais mas sem nenhum acesso a ferramentas outros artefatos materiais linguagem símbolos gráficos escrita algarismos arábicos desenhos pessoas para lhe ensinarem coisas pessoas cujo comportamento pudesse observar e imitar ou pessoas com quem pudesse colaborar 11 A criança autista disporia de ombros cognitivos para subir se pudesse fazêlo ao passo que para a criança selvagem imaginária esses ombros não existem Em ambos os casos o resultado é ou poderia ser o mesmo algo diferente das habilidades cognitivas típicas da espécie Mas crescer num mundo cultural tem implicações cognitivas que vão até mesmo além disso Crescer num mundo cultural apossandose da chave sociocognitiva que dá acesso a esse mundo na verdade serve para criar certas formas únicas de representação cognitiva Nesse processo o mais importante é que as crianças humanas usam suas habilidades de aprendizagem cultural para adquirir símbolos linguísticos e outros símbolos comunicativos Os símbolos linguísticos são artefatos simbólicos particularmente importantes para crianças em desenvolvimento porque neles estão incorporados os meios pelos quais as gerações anteriores de seres humanos de um grupo social consideraram proveitoso categorizar e interpretar o mundo para fins de comunicação interpessoal Por exemplo em diferentes situações comunicativas um mesmo objeto pode ser interpretado como um cão um animal um bichinho de estimação ou uma peste um mesmo acontecimento pode ser interpretado como correr moverse fugir ou sobreviver um mesmo lugar pode ser interpretado como a costa o litoral a praia ou a areia dependendo dos objetivos comunicativos do falante À medida que a criança vai dominando os símbolos linguísticos de sua cultura ela adquire a capacidade de adotar simultaneamente múltiplos pontos de vista sobre uma mesma situação perceptual Enquanto representações cognitivas perspectivadas os símbolos linguísticos baseiamse não no registro de experiências sensoriais ou motoras diretas como é o caso das representa oções cognitivas de outras espécies animais e dos bebês humanos mas nas várias maneiras como os indivíduos escolhem interpretar as coisas a partir de uma quantidade de outras maneiras como as poderiam ter interpretado e que estão incorporadas nos outros símbolos linguísticos disponíveis que poderiam ter escolhido mas não escolheram Portanto os símbolos linguísticos libertam a cognição humana da situação perceptual imediata não só porque permitem referirse a coisas exteriores a essa situação deslocamento Hockett 1960 mas sobretudo por permitirem várias representações simultâneas de cada uma e na verdade de todas as situações perceptuais possíveis Mais tarde quando as crianças se tornam mais hábeis em sua língua materna abremse novas possibilidades de interpretar coisas de diferentes maneiras Por exemplo as línguas naturais contêm recursos cognitivos para dividir o mundo em coisas tais como eventos e seus participantes que podem desempenhar muitos e variados papéis nesses eventos e para formar categorias abstratas de tipos de eventos e de participantes Além disso as línguas naturais também contêm recursos cognitivos para interpretar eventos ou situações como um todo em termos comparativos isto é para criar os vários tipos de analogias e metáforas tão importantes para a cognição adulta ver por exemplo um átomo como um sistema solar o amor como uma jornada ou a raiva como calor Lakoff 1987 Gentner e Markman 1997 ver Capítulo 5 Ademais o aperfeiçoamento das habilidades de comunicação linguística das crianças dá a elas a possibilidade de participar de interações discursivas complexas nas quais os pontos de vista explicitamente simbolizados dos interagentes se chocam e por isso têm de ser negociados e resolvidos Esses tipos de interações podem levar as crianças a começar a construir algo como uma teoria da mente de seus parceiros de comunicação e em alguns casos especiais de discurso pedagógico internalizar as instruções do adulto e começar assim a se autoregular e refletir sobre seu próprio pensar conduzindo talvez a certos tipos de metacognição e redescisão representacional KarmiloffSmith 1992 A internalização de interações discursivas que contenham vários pontos de vista conflitousos pode até ser identificada com certos tipos de processos de pensamento dialógicos exclusivamente humanos Vigotski 1978 Neste livro sumariado nas páginas precedentes tento detalhar essas linhas gerais de argumentação Ou seja minha hipótese é que a cognição humana tem as qualidades únicas da espécie que tem porque Filogeneticamente os seres humanos modernos desenvolveram a capacidade de identificarse com seus coespecíficos o que levou a uma compreensão destes como seres mentais e intencionais iguais a eles mesmos Historicamente isso favoreceu novas formas de aprendizagem cultural e sociogênese que levou a artefatos culturais e tradições comportamentais que acumularam modificações ao longo do tempo histórico Ontogeneticamente as crianças humanas crescem no meio desses artefatos e tradições social e historicamente constituídos o que faculta a elas a beneficiarse do conhecimento e das habilidades acumuladas de seus grupos sociais b adquirir e usar representações cognitivas perspectivas na forma de símbolos linguísticos e analogias e metáfo ras construídas a partir desses símbolos e c internalizar certos tipos de interações discursivas o que promove a capacidade de metacognição redescisição representacional e pensamento dialógico Gostaria de ressaltar desde o princípio que enfoco apenas os aspectos da cognição humana exclusivos da espécie É claro que a cognição humana é constituída em grande parte por aquelas coisas que aparecem como títulos de capítulo nos manuais tradicionais de Psicologia Cognitiva percepção memória atenção categorização etc Mas esses são processos cognitivos que os seres humanos compartilham com outros primatas Tomasello e Call 1997 Tomasello 1998 Essa minha exposição apenas os pressupõe enfocando à maneira de Vigotski os processos evolucionários históricos e ontogenéticos que provavelmente transformaram essas habilidades fundamentais na versão especial da cognição dos primatas que é a cognição humana Gostaria também de ressaltar que tratarei apenas de modo breve e um tanto indireto dos processos biológicos e históricos envolvidos na evolução da cognição humana sobretudo porque os acontecimentos de interesse ocorreram num passado evolucionário e histórico muito distante e nossa informação a respeito deles é muito escassa Capítulo 2 Por outro lado discutirei mais detalhadamente a ontogênese cognitiva humana sobre a qual sabemos bastante depois de várias décadas de observação e experimentação diretas e os processos por meio dos quais as crianças humanas exploram e utilizam ativamente suas heranças biológicas e culturais Capítulos 36 Infelizmente é muito provável que no clima intelectual hoje predominante minhas colocações sejam tomadas por alguns teóricos como essencialmente genéticas a adaptação sociocognitiva característica dos homens modernos é um tipo de bala mágica que diferencia os seres humanos de outras espécies primatas Mas essa é uma concepção equivocada que basicamente ignora todo o trabalho sociocultural que tem de ser realizado por indivíduos e por grupos tanto no tempo histórico como no tempo ontogenético para criar habilidades cognitivas e produtos exclusivamente humanos De um ponto de vista histórico um quarto de milhão de anos é um tempo muito longo durante o qual muito pode ser realizado culturalmente e todos aqueles que convivem com crianças pequenas sabem quantas experiências de aprendizagem podem ocorrer no transcurso de vários anos ou até de vários dias ou várias horas de envolvimento contínuo e ativo com o meio Por isso qualquer investigação séria em cognição humana tem de incluir alguma exposição desses processos históricos e ontogenéticos possibilitados mas não determinados pela adaptação biológica dos seres humanos a uma forma especial de cognição social Com efeito meu argumento central neste livro é que são esses processos e não de modo direto adaptações biológicas especializadas os responsáveis pela criação de muitos se não de todos os produtos e processos cognitivos mais definidos e importantes da espécie Homo sapiens Nesse sentido vale a pena notar que levar esses processos a sério nos permite explicar não só o caráter universal da cognição humana única como a criação e o uso de artefatos materiais simbólicos e institucionais com histórias acumuladas mas também as singularidades de culturas particulares que por meio desses mesmos processos históricos e ontogenéticos desenvolveram para si uma variedade de habilidades cognitivas e produtos culturalmente únicos durante os últimos vários milênios de história humana significativas de aprendizagem e cognição individual o que costuma resultar em adaptações comportamentais e cognitivas mais flexíveis Adaptações comportamentaiscognitivas flexíveis intimamente sintonizadas com o ambiente local são particularmente úteis para organismos cujas populações vivem em nichos ambientais diversificados ou cujos nichos ambientais mudam relativamente rápido ao longo do tempo Bruner 1972 Em algumas espécies animais o organismo em desenvolvimento adquire individualmente informação não só de seu meio físico mas também de seu meio social ou de aspectos de seu meio físico que foram modificados de maneira significativa por seus coespecíficos Por exemplo como foi mencionado acima algumas espécies de pássaros adquirem o canto típico de sua espécie escutando o canto dos pais e alguns insetos são capazes de encontrar comida em seu primeiro dia no meio externo porque sabem instintivamente como seguir os rastros de feromônio deixados por seus coespecíficos Mundinger 1980 Heyes e Galef 1996 Em sua definição mais ampla empregada por muitos biólogos evolucionistas esse processo é chamado de transmissão cultural ou herança cultural e ele produz tradições culturais O reconhecimento recente da importância da transmissão cultural para muitas espécies animais levou à criação da Teoria da Herança Dual Dual Inheritance Theory segundo a qual os fenótipos maduros de muitas espécies dependem do que herdaram de seus antepassados tanto biológica como culturalmente Boyd e Richerson 1985 Durham 1991 É claro que os seres humanos são a espécie prototípica para a Teoria da Herança Dual já que o desenvolvimento humano normal depende de maneira crucial tanto da herança biológica como da herança cultural O que eu afirmo é que no âmbito cognitivo a herança biológica dos homens é muito parecida com a de outros primatas Há apenas uma diferença fundamental que consiste no fato de que os seres humanos se identificam com seus coespecíficos mais profundamente que outros primatas Essa identificação não é algo misterioso mas simplesmente o processo por meio do qual a criança humana entende que as outras pessoas são seres iguais a ela mesma diferentemente dos objetos inanimados por exemplo e por isso ela às vezes tenta entender as coisas do ponto de vista deles Durante os primórdios da ontogênese num processo que será destrinçado mais detalhadamente nos próximos capítulos a criança acaba percebendo a si mesma como um agente intencional ou seja um ser cujas estratégias comportamentais e de atenção são organizadas em função de metas e por isso ela automaticamente vê os outros seres com quem se identifica da mesma maneira Num momento posterior da ontogênese a criança percebe a si mesma como um agente mental ou seja um ser com pensamentos e crenças que podem diferir dos de outras pessoas bem como da realidade e portanto dali em diante ela verá os coespecíficos nesses novos termos Para efeito de minha exposição irei me referir a esses processos de forma geral como compreender os outros como agentes intencionais ou mentais iguais a si mesmo Essa única diferença cognitiva provoca muitos efeitos em cascata porque torna possíveis algumas formas novas e particularmente poderosas de herança cultural Compreender as outras pessoas como agentes intencionais iguais a si mesmo torna possíveis a processos de sociogênese por meio dos quais vários indivíduos colaboram entre si para criar artefatos e práticas culturais com histórias acumuladas e b processos de aprendizagem cultural e internalização por meio dos quais indivíduos em desenvolvimento aprendem a usar e depois internalizam aspectos dos produtos criados pela colaboração entre coespecíficos Isso significa que a maioria se não todas as habilidades cognitivas exclusivas da espécie dos seres humanos não se deve diretamente a uma herança biológica única mas resulta antes de uma variedade de processos históricos e ontogenéticos desencadeados por aquela capacidade cognitiva exclusivamente humana e biologicamente herdada Herança biológica Seres humanos são primatas Eles têm os mesmos órgãos dos sentidos básicos a mesma estrutura corporal básica e a mesma estrutura cerebral básica de todos os outros primatas Portanto caso queiramos caracterizar as bases evolucionárias da cognição humana temos de começar com os primatas em geral No que a isso se refere há duas questões de central importância a Em que a cognição dos primatas difere da de outros mamíferos e b Em que a cognição dos homens difere da de outros primatas Minhas respostas a essas duas perguntas baseiamse na pesquisa de Tomasello e Call 1997 em que se encontram análises mais detalhadas dos estudos empíricos e dos argumentos teóricos relevantes bem como um conjunto mais completo de referências Devese dizer logo de início que obviamente outras respostas a essas perguntas também são possíveis ver por exemplo Byrne 1995 para algumas idéias diferentes Cognição dos mamíferos e dos primatas Todos os mamíferos vivem basicamente no mesmo mundo sensóriomotor de objetos permanentes dispostos num espaço representacional primatas incluindo os humanos não têm aptidões especiais a esse respeito Além disso muitas espécies de mamíferos e basicamente todos os primatas também representam cognitivamente relações categoriais e quantitativas entre objetos Essas habilidades cognitivas evidenciamse por sua capacidade de fazer coisas tais como lembrar o que está onde em seus ambientes locais por exemplo que frutas estão em que árvores em que épocas fazer desvios e tomar atalhos novos ao percorrer o espaço seguir os movimentos visíveis e invisíveis de objetos isto é passar pelos testes piagetianos rigorosamente controlados de permanência do objeto alguns Fase 6 categorizar objetos com base em similaridades perceptuais compreender e portanto combinar pequenas quantidades de objetos usar a perspicácia para solucionar problemas E existem muitos indícios que sugerem que mamíferos não adquirem essas habilidades por alguma conexão behaviorista entre estímulo e resposta ou por alguma forma simples de memória mecânica mas que na verdade compreendem e representam cognitivamente espaços e objetos e categorias e quantidades de objetos de uma forma que possibilita inferências criativas e resolução perspicaz de problemas De modo similar todos os mamíferos vivem basicamente no mesmo mundo social de coespecíficos individualmente reconhecidos com suas relações verticais dominação e horizontais associativas e têm a capacidade de predizer o comportamento dos coespecíficos em muitas situações baseandose numa variedade de pistas e insights Essas habilidades cognitivas evidenciamse pela sua capacidade de fazer coisas tais como reconhecer indivíduos em seu grupo social estabelecer relações diretas com outros indivíduos baseandose em coisas tais como parentesco amizade e dominação predizer o comportamento de indivíduos baseandose em coisas tais como seu estado emocional e a direção de sua locomoção usar muitos tipos de estratégias comunicativas e sociais para vencer outros membros do grupo na disputa por recursos valiosos cooperar com coespecíficos na resolução de problemas e na formação de coligações e alianças sociais envolverse em várias formas de aprendizagem social nas quais aprendem coisas valiosas dos coespecíficos E há também muitos indícios que sugerem que individualmente os mamíferos não agem cegamente em sociedade mas na verdade compreendem e representam cognitivamente o que estão fazendo quando interagem com os outros membros do grupo dessas várias maneiras complexas Contudo há uma exceção a essa similaridade cognitiva geral entre mamíferos e ela diz respeito à compreensão por parte dos primatas de categorias relacionais que se manifestam nos terrenos físico e social No terreno social os primatas mas não os outros mamíferos têm certa compreensão das relações sociais entre terceiros que se estabelecem entre outros indivíduos por exemplo entendem as relações de parentesco e de dominação que terceiros mantêm entre si Por isso os primatas são seletivos na escolha de seus parceiros de coligações escolhendo por exemplo como aliado um indivíduo que seja dominante em relação a seu adversário potencial indicando assim sua compreensão das posições de dominação relativa daqueles dois indivíduos Também buscam retaliar ataques cometidos contra eles não apenas contra o atacante mas também em certas circunstâncias contra parentes do atacante evidenciando nesse caso uma compreensão das relações de parentesco entre terceiros Existem até alguns indícios de que os primatas entendem categorias inteiras de relações sociais entre terceiros que envolvem indivíduos diferentes por exemplo várias situações diferentes da relação mãefilho Dasser 1988a 1988b Outros mamíferos não demonstram esse tipo de compreensão Tomasello e Call 1997 Portanto a hipótese é que embora todos os mamíferos reconheçam indivíduos e estabeleçam relações com eles apenas os primatas compreendem relações sociais externas nas quais eles mesmos não estejam diretamente envolvidos No terreno físico os primatas comparados com outros mamíferos têm uma habilidade especial para lidar com categorias relacionais Por exemplo os primatas são relativamente habilidosos em tarefas nas quais têm de escolher entre um conjunto de pares de objetos quais deles mantêm entre si a mesma relação que alguma amos tra experimental por exemplo os componentes do par escolhido são idênticos entre si e não diferentes da mesma maneira que os componentes da amostra experimental Thomas 1986 O interessante contudo é que os primatas precisam de centenas às vezes de milhares de tentativas para realizar com sucesso essas tarefas o que contrasta fortemente com sua compreensão aparentemente fácil das relações sociais entre terceiros que também supõem a compreensão de categorias relacionais De acordo com a linha de raciocínio geral de Humphrey 1976 uma hipótese é que os primatas desenvolveram a capacidade de compreender categorias de relações sociais entre terceiros e que em laboratório podemos às vezes ter acesso a essa capacidade usando objetos físicos no lugar de objetos sociais se treinarmos indivíduos por um tempo suficiente Com efeito é difícil pensar em problemas específicos do mundo físico para os quais a compreensão de categorias relacionais possa ser útil de maneira direta ao passo que no mundo social existem muitos tipos de situações nas quais a compreensão de relações sociais entre terceiros e de categorias relacionais pode contribuir de modo imediato para uma ação social mais eficaz A compreensão de categorias relacionais em geral é portanto a grande habilidade que diferencia a cognição dos primatas da de outros mamíferos Essa hipótese é importante neste contexto porque a compreensão de categorias relacionais é um precursor evolucionário potencial uma espécie de meio de caminho da capacidade cognitiva exclusivamente humana de compreender as relações intencionais que os seres animados mantêm com o mundo externo e as relações causais que os objetos inanimados e os acontecimentos mantêm entre si Compreensão humana da intencionalidade e da causalidade É muito difundida a crença de que primatas nãohumanos compreendem a intencionalidade dos coespecíficos e a causalidade de objetos inanimados e de acontecimentos Não acho que eles possuam essa compreensão e para chegar a tal conclusão negativa discuti e revisei exaustivamente os dados disponíveis Tomasello 1990 1994 1996b Tomasello Kruger e Ratner 1993 Tomasello e Call 1994 1997 Contudo devese ressaltar reiteradamente se necessário que minha conclusão negativa sobre a cognição dos primatas nãohumanos é bastante específica e delimitada Primatas nãohumanos definitivamente não dispõem de uma compreensão de todos os tipos de acontecimentos físicos e sociais complexos eles possuem e usam muitos tipos de conceitos e de representações cognitivas diferenciam claramente objetos animados de inanimados e em suas interações com seu meio empregam muitas estratégias complexas e perspicazes de resolução de problemas como foi mencionado acima O que eles não fazem é ver o mundo com relação às forças intermediárias e muitas vezes ocultas às causas e aos estados intencionaismentais subjacentes tão importantes para o pensamento humano Em suma os primatas nãohumanos são seres intencionais e causais só que não entendem o mundo em termos intencionais e causais No âmbito social os dados relativos à compreensão por parte dos primatas nãohumanos da intencionalidadementalidade dos outros seres animados originamse de estudos tanto experimentais como naturalistas Primeiro Premack e Woodruff 1978 fizeram a chimpanzé Sa rah escolher figuras para completar as sequências de vídeo de ações humanas intencionais por exemplo ela tinha de escolher a figura de uma chave quando o homem no vídeo tentava sair por uma porta fechada Seu êxito na realização da tarefa levou a inferir que ela conhecia o objetivo do homem nas ações exibidas Contudo SavageRumbaugh Rumbaugh e Boysen 1978 obtiveram resultados semelhantes usando como estímulo associações simples por exemplo os macacos deles também escolheram a figura de uma chave quando lhes foi mostrada a figura de uma fechadura sem ocorrência de nenhuma ação humana Isso levanta a possibilidade de afirmar que o que Sarah fez era algo cognitivamente mais simples Premack 1986 relatou que num estudo subsequente não conseguiu treinar Sarah para que ela discriminasse vídeos de humanos envolvidos em ações intencionais de vídeos de ações nãointencionais e Povinelli et al 1998 relata achados negativos semelhantes associados aos resultados de Call e Tomasello 1998 O outro estudo experimental importante é o de Povinelli Nelson e Boysen 1990 que concluíram que os chimpanzés preferiam pedir comida de uma pessoa que presenciara sua ocultação a pedila a uma pessoa que não presenciara sua ocultação a inferência era que eles conseguiam discriminar um humano ciente de um ignorante O problema nesse caso é que os macacos desse estudo só aprenderam a fazer isso depois de inúmeras tentativas com feedback sobre seu acerto depois de cada tentativa Heyes 1993 Povinelli 1994 E esse também é o problema do estudo de Woodruff e Premack 1979 no qual chimpanzés aprenderam depois de muitas tentativas com feedback a conduzir os humanos para a caixa sem comida a fim de que eles mesmos pudessem ficar com aquela com comi da o que alguns chamam de tapeação O problema é que os chimpanzés desses estudos não pareciam vir para o experimento com um conhecimento da intencionalidade ou mentalidade dos outros mas aprenderam como se comportar para obter o que queriam no desenrolar do experimento Num estudo em que a aprendizagem durante o experimento foi eliminada Call e Tomasello 1999 concluíram que os chimpanzés não demonstraram nenhuma compreensão das falsas crenças dos outros Pelo fato de esses experimentos serem artificiais em vários sentidos outros investigadores voltaramse para o comportamento natural dos primatas nãohumanos em busca de provas positivas da compreensão da intencionalidade envolvendo sobretudo estratégias sociais que supostamente se apóiam na manipulação dos estados mentais de coespecíficos com o intuito de tapear O problema nesse caso é que quase todas as observações relatadas são anedotas que carecem de observações de controle apropriadas para excluir explicações alternativas Byrne e Whiten 1988 Mas mesmo em casos confiáveis replicáveis não fica claro o que acontece cognitivamente Por exemplo De Waal 1986 observou um chimpanzé fêmea estender a mão para um outro num aparente gesto de conciliação em várias ocasiões mas quando o outro se aproximava ela o atacava Este poderia ser um caso de tapeação de tipo humano a perpetradora queria que o outro acreditasse que ela tinha boas intenções quando na verdade não tinha Mas também se poderia pensar que a perpetradora queria que o outro se aproximasse dela para que pudesse atacálo e por isso teve um comportamento que no passado fez coespecíficos se aproximarem em outros contextos A adoção de um comportamento social num contexto novo é claramente uma es tratégia social muito inteligente e talvez perspicaz para manipular o comportamento dos outros mas não fica claro que ela pressuponha a compreensão e a manipulação dos estados mentais ou intencionais dos outros Mencionarei a seguir alguns outros comportamentos sociais que os primatas nãohumanos em seu hábitat natural não realizam alguns macacos criados em meios culturais humanos fazem alguns deles ver discussão abaixo Em seus hábitats naturais primatas nãohumanos não apontam ou gesticulam indicando objetos externos para os outros não exibem objetos para mostrálos aos outros não tentam levar os outros para certos lugares a fim de que eles observem coisas ali não oferecem ativamente objetos aos outros indivíduos estendendoos com as mãos não ensinam intencionalmente novos comportamentos a outros indivíduos Eles não fazem essas coisas a meu ver porque não entendem que o coespecífico possui estados mentais e intencionais que possam potencialmente ser afetados A hipótese mais plausível é portanto que primatas nãohumanos compreendem coespecíficos como seres animados capazes de se moverem por si sós espontaneamente com efeito esta é a base de sua compreensão social em geral e de sua compreensão das relações sociais entre terceiros em particular mas não entendem os outros como agentes intencionais tentando atingir objetivos ou agentes mentais pensando sobre o mundo Primatas nãohumanos vêem um coespecífico se deslocando na direção do alimento e podem inferir baseados em experiências passadas o que provavelmente irá acontecer em seguida podendo até fazer uso de estratégias sociais inteligentes e perspicazes para interferir no que acontecerá em seguida Mas os seres humanos vêem algo diferente Vêem um coespecífico tentando obter a comida como um objetivo e podem tentar interferir neste e em outros estados mentais e intencionais não só no comportamento No âmbito físico Visalberghi observou recentemente algumas limitações na capacidade dos primatas de se adaptar a novas tarefas de procura de alimentos nas quais seja necessária certa compreensão da causalidade A tarefa básica consiste em o sujeito usar um pau para empurrar comida para fora de um tubo transparente Numa série de tarefas as ferramentas variam sendo algumas curtas demais grossas demais ou não suficientemente rígidas para funcionar apropriadamente A idéia básica é que se um indivíduo compreende a causalidade física presente no funcionamento do pau para extrair a comida do tubo força física transferida da pessoa para o pau para a comida ele deveria ser capaz de prever pelo simples exame perceptual de uma ferramenta sem tentativa e erro se a ferramenta terá ou não efeito sobre a seqüência causal exigida Tanto macacos grandes quanto sajuscapuchinhos tiveram sucesso nessa tarefa com as novas ferramentas mas somente depois de muitas tentativas e erros Numa recente variação da tarefa essas espécies receberam um tubo transparente com uma pequena armadilha na parte inferior de um pedaço do tubo Se os sujeitos avaliassem a força causal da gravidade e a física dos orifícios e paus na movimentação de objetos deveriam aprender a evitar essa armadilha ao tentar empurrar a comida para fora através do tubo isto é deveriam sempre empurrar a comida para a extremidade em que não havia armadilha Mas nem os sajus nem os chimpanzés aprenderam a fazer isso rápido por exemplo os quatro chimpanzés submetidos à experiência comportaramse ao acaso em mais de setenta tentativas Numa última versão do experimento depois que os animais tinham aprendido por tentativa e erro a evitar a armadilha o tubo foi virado de forma que a armadilha ficasse na parte superior do tubo e não oferecesse perigo Os sujeitos de ambas as espécies os chimpanzés num estudo de Reaux 1995 continuavam empurrando o alimento afastandoo da armadilha sem entender que agora ela era inofensiva Crianças de dois ou três anos comportamse de maneira bem mais flexível e adaptada nesses problemas de tubos parecendo entender alguns dos princípios causais em jogo desde as primeiras tentativas ver Visalberghi e Limongelli 1996 para um apanhado geral A conclusão portanto é que primatas nãohumanos têm muitas habilidades cognitivas relacionadas com objetos físicos e acontecimentos incluindo a compreensão de categorias relacionais e sequências básicas de eventos antecedentesconseqüentes mas não percebem ou entendem causas subjacentes como mediadoras das relações dinâmicas entre esses objetos e eventos Por isso não demonstram o tipo de flexibilidade de comportamento e de compreensão dos princípios causais gerais característico desde uma idade muito precoce das crianças humanas quando estas tentam resolver problemas físicos Primatas nãohumanos compreendem muitas relações entre antecedentes e conseqüentes no mundo mas não parecem entender que forças causais medeiam essas relações Para resumir gostaria de explicitar muito claramente o que diferencia a cognição intencionalcausal de outros tipos de cognição Fundamentalmente essa forma de pensar exige que um indivíduo entenda as relações antecedenteconseqüente entre eventos externos sem estar diretamente envolvido neles que é algo que os primatas são evidentemente capazes de fazer Mas além disso a compreensão da intencionalidade e da causalidade exige que o indivíduo entenda as forças mediadoras nesses eventos externos que explicam por quê uma determinada seqüência antecedenteconseqüente ocorre como ocorre e essas forças mediadoras por definição não são observáveis de maneira direta Essa compreensão parece ser exclusiva dos humanos Portanto para os humanos o peso de uma pedra que cai força a tora a se lascar o objetivo de conseguir alimento força o organismo a olhar debaixo da tora E mais importante em ambos os casos pode haver outros eventos antecedentes que desemboquem no mesmo resultado sempre que a mesma força mediadora estiver presente Esse ponto é importante porque demonstra que o componente central em tudo isso não é um evento antecedente específico como na aprendizagem por associação mas a força causal ou intencional subjacente que pode ser induzida por vários eventos antecedentes diferentes É possível ver isso claramente na Figura 21 que representa uma situação causal física diferentes eventos físicos que criam uma força que causa a queda de uma fruta e uma situação causal social diferentes eventos sociais que criam um estado psicológico que causa a fuga de um indivíduo É óbvio que a maneira específica como essas forças trabalham é muito diferente na causalidade de objetos inanimados e na intencionalidade de seres anima Vento Coespecífico sobe na árvore Manipulação do próprio sujeito Galho vibra força física Fruta cai Pedra cai Predador aparece Barulho Sujeito assustado força psicológica Sujeito foge Figura 21 Representação gráfica de um evento físico alto e de um evento social baixo Em ambos os casos vários eventos antecedentes diferentes podem produzir a força que causa o evento conseqüente dos casos a compreensão intencionalcausal permite que um indivíduo preveja e controle eventos mesmo quando o antecedente usual deles não está presente isto é se houver algum outro evento que sirva para instigar a força mediadora Por exemplo um indivíduo pode criar um modo novo de distrair um rival daquilo pelo qual estão competindo por exemplo colocando comida na direção contrária ou uma ferramenta nova para gerar a força necessária para movimentar um obstáculo Inversamente se um evento ocorre numa circunstância em que a força mediadora está bloqueada por algum motivo podese prever que seu conseqüente usual não sucederá Por exemplo um indivíduo poderia bloquear o acesso visual de um rival ao objeto pelo qual competem ou poderia impedir uma pedra de rolar montanha abaixo colocando outra pedra debaixo dela A compreensão causal e intencional dos humanos tem portanto conseqüências imediatas para a ação efetiva na medida em que abre a possibilidade de encontrar modos novos de manipular ou suprimir as forças mediadoras A segunda vantagem da compreensão intencionalcausal decorre de sua poderosa função transformadora em processos de aprendizagem social Ou seja compreender o comportamento de outras pessoas como intencional eou mental torna diretamente possíveis certas formas de aprendizagem cultural e de sociogênese muito poderosas e essas formas de aprendizagem social são diretamente responsáveis pelas formas especiais de herança cultural características dos seres humanos No entanto para avaliar o alcance dessa afirmação temos de olhar de mais perto os processos de transmissão cultural característicos de nossos parentes primatas mais próximos e em seguida comparálos com o caso humano Cultura primata nãohumana Existem muitas formas diferentes de herança e de transmissão cultural que dependem dos mecanismos de aprendizagem social envolvidos Entre os mais comumente citados estão Exposição os jovens podem ser expostos a novas experiências de aprendizagem porque se encontram fisicamente perto dos coespecíficos sem aprender nada do comportamento dos coespecíficos de forma direta como quando um jovem segue sua mãe e acaba caindo na água aprendendo assim a se locomover em meio líquido Intensificação do estímulo os jovens podem ser atraídos por objetos com que outros estão interagindo e então aprender coisas sobre esses objetos por conta própria como quando um jovem chimpanzé é atraído por um pau que sua mãe descartou e a atração coloca em movimento certas experiências individuais de aprendizagem com o pau Mímica os jovens fazem especializações adaptativas por meio da reprodução do comportamento dos coespecíficos sem que haja uma apreciação de sua eficácia instrumental e sempre dentro de um campo comportamental extremamente especializado como quando alguma espécie de pássaros adquire as vocalizações típicas da espécie ou como no balbucio prélinguístico dos bebês humanos Aprendizagem por imitação os jovens na verdade reproduzem o comportamento ou a estratégia comportamental do demonstrador com vistas ao mesmo objetivo do demonstrador Com efeito para realmente explicar as diferenças de aprendizagem social entre primatas humanos e nãohumanos teremos de distinguir alguns outros processos que ficam mais claros quando contextualizados Lavagem de batatas por macacos O caso mais comumente citado de uma tradição cultural de um primata nãohumano é o da lavagem de batatas por um macaco japonês Kawamura 1959 Kawai 1965 A história é a seguinte Em 1953 observaram uma fêmea de dezoito meses de idade chamada Imo pegar pedaços de batatadoce fornecidos a ela e ao resto do bando por pesquisadores e tirar a terra deles num riacho próximo Cerca de três meses depois de ela ter começado a lavar suas batatas a mesma prática foi observada na mãe de Imo e em dois de seus companheiros e depois em suas mães Durante os dois anos seguintes sete outros macacos jovens também começaram a lavar batatas e passados três anos da primeira lavagem de batatas por Imo cerca de 40 do bando estava fazendo o mesmo O fato de terem sido os macacos mais próximos a Imo que primeiro aprenderam o comportamento e em seguida os mais próximos destes foi considerado significativo sugerindo que o meio de propagação desse comportamento era alguma forma de imitação na qual um indivíduo efetivamente copiava o comportamento de outro A interpretação dessas observações quanto à cultura e imitação apresenta contudo pelo menos dois problemas O primeiro problema é que lavar batatas é um comportamento bem menos incomum entre macacos do que se pensou originalmente Constatase que tirar terra da comida é algo que muitos macacos fazem naturalmente o que de fato foi observado nos macacos de Koshima antes do aparecimento da lavagem Portanto não surpreende que também se tenha observado a lavagem de batatas em quatro outros bandos de macacos japoneses abastecidos por humanos pouco depois das observações de Koshima Kawai 1965 incluindo pelo menos quatro indivíduos que aprenderam por conta própria Além disso em cativeiro indivíduos de outra espécie de macacos aprenderam bastante rápido por conta própria a lavar sua comida quando lhes eram fornecidos frutos sujos de terra e vasilhas de água Visalberghi e Fragaszy 1990 O segundo problema está relacionado com o padrão de disseminação do comportamento de lavagem de batatas dentro do grupo O fato é que a disseminação do comportamento foi relativamente lenta com uma média de mais de dois anos para a aquisição pelos membros do grupo que o aprenderam Galef 1992 Além disso a velocidade de disseminação não aumentou com o aumento do número de usuários Se o mecanismo de transmissão fosse a imitação seria de esperar um aumento na velocidade de propagação na medida em que há mais demonstradores disponíveis para serem observados por unidade de tempo Em contraposição se estivessem operando processos de aprendizagem individual seria de esperar uma velocidade de disseminação mais lenta e estável o que na realidade se observou O fato de os amigos e parentes de Imo terem sido os primeiros a aprender o comportamento pode deverse ao fato de que amigos e parentes costumam estar próximos uns dos outros e assim é provável que os amigos de Imo a tenham seguido até a água com mais frequência nos momentos de alimentação do que outros membros do grupo o que aumenta suas chances de descoberta individual Uso de ferramentas por chimpanzé Talvez a melhor espécie a ser examinada no presente contexto seja o parente primata mais próximo dos humanos o chimpanzé que é de longe o mais cultural dos primatas nãohumanos McGrew 1992 1998 Boesch 1996 Chimpanzés em seus hábitats naturais apresentam uma quantidade de tradições comportamentais específicas de cada população que praticamente todos os membros do grupo adquirem e que persistem ao longo das gerações incluindo coisas como escolha de alimento uso de ferramentas e expressão gestual Por uma série de razões as explicações genéticas para essas diferenças de comportamento entre populações são duvidosas por exemplo populações que vivem perto umas das outras não são mais semelhantes que populações que vivem isoladas e portanto elas costumam ser tratadas como tradições culturais dos chimpanzés ver por exemplo Wrangham et al 1994 O caso mais conhecido é o uso de ferramentas pelo chimpanzé Por exemplo chimpanzés de certas populações da África oriental capturam cupins perfurando cupinzeiros com pequenos paus finos Outras populações de chimpanzés na África ocidental no entanto simplesmente destroem os cupinzeiros com grandes paus e tentam apanhar os insetos com a mão Pesquisadores de campo como Boesch 1993 e McGrew 1992 afirmaram que práticas específicas de uso de ferramentas como essas são culturalmente transmitidas entre os indivíduos das várias comunidades Mas existe uma explicação alternativa que também é bastante plausível O fato é que os cupinzeiros da África ocidental são mais moles devido à grande quantidade de chuvas que os da África oriental A estratégia de destruir o cupinzeiro com um pau grande portanto só é possível para as populações ocidentais Logo segundo essa hipótese existiram diferenças grupais de comportamento que se parecem superficialmente com as diferenças culturais humanas mas sem a presença de qualquer tipo de aprendizagem social Nesses casos a cultura é simplesmente o resultado de aprendizagens individuais impostas pelas diferentes ecologias locais das diferentes populações por isso esse processo é chamado simplesmente de modelagem ambiental Embora a modelagem ambiental provavelmente explique em parte as diferenças grupais de comportamento de todos os primatas incluindo os humanos análises ecológicas profundas feitas por Boesch et al 1994 tornam essa explicação improvável para dar conta de todas as diferenças de comportamento entre diferentes grupos de chimpanzés Análises experimentais também confirmam que no uso de ferramentas pelos chimpanzés há mais que modelagem ambiental em operação Tomasello 1996a revisou todos os estudos experimentais sobre aprendizagem social de uso de ferramentas por chimpanzés e concluiu que esses primatas são muito capazes na aprendizagem das potencialidades dinâmicas dos objetos que eles descobrem olhando como os outros os manipulam mas não são habilidosos em aprender dos outros uma nova estratégia comportamental per se Por exemplo se uma mãe empurra um tronco e come os insetos que se encontram debaixo dele é muito provável que seu filho faça o mesmo Isso simplesmente ocorre porque o filho aprendeu pelo ato da mãe que existem insetos debaixo do tronco fato que ele desconhecia e provavelmente não teria descoberto por conta própria Mas ele não aprendeu da mãe como empurrar um tronco ou comer insetos estas são coisas que ele já sabia fazer ou poderia aprender a fazer por conta própria Portanto os jovens teriam aprendido a mesma coisa se fosse o vento e não a mãe que tivesse empurrado o tronco e exposto as formigas Chamam isso de aprendizagem por emulação porque é uma aprendizagem que focaliza os eventos ambientais envolvidos as mudanças de estado do meio provocadas pelo outro e não o comportamento ou a estratégia comportamental de um coespecífico Tomasello 1990 1996a A aprendizagem por emulação é um processo de aprendizagem muito inteligente e criativo que em certas circunstâncias é uma estratégia mais adaptativa que a aprendizagem por imitação Por exemplo Nagell Olguin e Tomasello 1993 apresentaram a chimpanzés e a crianças humanas de dois anos uma ferramenta parecida com um ancinho e um objeto fora do alcance deles Havia duas maneiras de usar a ferramenta cujo resultado era conseguir pegar o objeto Para cada espécie um grupo de sujeitos observou um demonstrador empregar um dos métodos de uso da ferramenta menos eficiente e outro grupo observou o outro método de uso da ferramenta mais eficiente O resultado obtido foi que enquanto as crianças humanas em geral copiavam o método do demonstrador em cada uma das duas condições de observação aprendizagem por imitação os chimpanzés fizeram um monte de coisas diferentes para alcançar o objeto e todas elas eram do mesmo tipo independentemente da demonstração que observaram aprendizagem por emulação O ponto interessante é que muitas crianças insistiram nessa reprodução do comportamento do adulto mesmo no caso do método menos eficiente o que nesse caso redundou em desempenhos menos eficientes que os dos chimpanzés Portanto a aprendizagem por imitação não é uma estratégia de aprendizagem superior ou mais inteligente que a aprendizagem por emulação é simplesmente uma estratégia mais social que em certas circunstâncias e para certos comportamentos tem certas vantagens Essa explicação pela aprendizagem por emulação também se aplica a outros estudos de aprendizagem social do uso de ferramentas pelos chimpanzés como os de Whiten et al 1996 e Russon e Galdikas 1993 Chimpanzés são pois muito inteligentes e criativos no uso de ferramentas e na compreensão de modificações do meio provocadas pelo uso que outros fazem de ferramentas mas não parecem entender o comportamento instrumental de coespecíficos da mesma maneira que os humanos Para os humanos o objetivo ou a intenção do demonstrador é um elemento central do que percebem e o objetivo é de fato entendido como algo separado dos vários meios comportamentais que podem ser empregados para alcançar o objetivo A capacidade do observador de separar meios de fins serve para destacar o método ou a estratégia de uso da ferramenta do demonstrador como uma entidade independente o comportamento que ele está usando é um tentativa de realizar o objetivo dada a possibilidade de existirem outros meios para realizálo Devido à ausência dessa capacidade de entender objetivos e meios comportamentais como coisas separáveis nas ações dos outros em suas observa ções os chimpanzés enfocam as mudanças de estado incluindo mudanças de posição espacial dos objetos envolvidos na demonstração e as ações do demonstrador com efeito não passam de outros movimentos físicos Os estados intencionais do demonstrador e portanto seus métodos comportamentais como entidades comportamentais distintas simplesmente não fazem parte de sua experiência Expressão gestual dos chimpanzés O outro caso bem conhecido é o da comunicação gestual dos chimpanzés Embora haja poucos estudos sistemáticos de gestos dos chimpanzés em contexto selvagem tudo indica que existam alguns comportamentos específicos de populações que podem ser chamados de culturais Goodall 1986 Tomasello 1990 Nishida 1980 Com animais em cativeiro foi feito um trabalho bem mais sistemático em que se documentaram os gestos específicos usados por indivíduos específicos ao longo do tempo possibilitando inferências sobre os processos de aprendizagem social envolvidos Numa série de estudos Tomasello e colaboradores investigaram se os jovens adquirem seus sinais gestuais por aprendizagem por imitação ou por um processo de ritualização ontogenética Tomasello et al 1985 1989 1994 1997 Na ritualização ontogenética um sinal comunicativo é criado por dois organismos cada qual modelando o comportamento do outro em situações repetidas de interação social Por exemplo um bebê pode começar a mamar indo direto para o seio da mãe talvez agarrando o braço dela ou mexendo nele no processo Em algum encontro futuro a mãe pode vir a antecipar os iminentes esforços comportamentais do bebê ao primeiro toque de seu braço tornandose assim receptiva em relação a isso levando o bebê numa próxima ocasião a abreviar ainda mais seu comportamento por um simples toque do braço enquanto espera por uma resposta o toque do braço sendo o que se chama de movimento intencional Notese que aqui nada indica que um indivíduo esteja tentando reproduzir o comportamento de outro há apenas uma interação social recíproca em encontros repetidos que acaba eventualmente resultando num sinal comunicativo Esta é provavelmente a maneira como a maioria dos bebês humanos aprende o gesto braços para cima para pedir que os adultos os peguem no colo ou seja primeiro como uma tentativa direta de subir no corpo do adulto e depois quando o adulto antecipa o desejo deles e os pega no colo como uma versão abreviada ritualizada dessa atividade de se alçar realizada com objetivos exclusivamente comunicativos Lock 1978 Todos os dados disponíveis sugerem que a ritualização ontogenética e não a aprendizagem por imitação seja responsável pela aquisição de gestos comunicativos por parte dos chimpanzés Primeiro há um certo número de sinais idiossincráticos que são usados apenas por um indivíduo ver também Goodall 1986 esses sinais não poderiam ter sido aprendidos por processos imitativos e portanto tiveram de ser inventados e ritualizados individualmente Em segundo lugar análises longitudinais mostraram por meio de comparações tanto qualitativas como quantitativas que existe uma grande variabilidade individual tanto numa mesma geração como em diferentes na expressão gestual dos chimpanzés sugerindo algo diferente da aprendizagem por imitação que ge ralmente produz homogeneidade de comportamento Também é importante ressaltar que os gestos usados em comum por muitos jovens são também usados com bastante frequência por jovens cativos criados em grupos coetâneos sem nenhuma oportunidade de observar coespecíficos mais velhos Por fim num estudo experimental Tomasello e colaboradores 1997 retiraram um indivíduo do grupo e ensinaramlhe outros sinais arbitrários por meio dos quais ele conseguia que um humano lhe desse o alimento desejado Quando foi devolvido ao grupo e usou esses mesmos gestos para que um humano lhe desse alimento não houve nenhum caso de outro indivíduo reproduzir nenhum dos novos gestos embora todos os outros indivíduos estivessem observando aquele que gesticulava e estivessem altamente motivados pelo alimento A conclusão evidente é que jovens chimpanzés adquirem a maioria se não a totalidade de seus gestos ritualizandoos individualmente entre si A explicação desse processo de aprendizagem é análoga à explicação da aprendizagem por emulação no caso do uso de ferramentas Como a aprendizagem por emulação a ritualização ontogenética não exige que os indivíduos compreendam o comportamento dos outros como sepAlternatively in meios e fins da mesma maneira como ocorre na aprendizagem por imitação Aprender imitativamente um toque do braço como uma solicitação de amamentação exigiria que um bebê observasse outro bebê usando um toque do braço e soubesse qual é o objetivo dele ou seja mamar de modo que quando tivesse o mesmo objetivo pudesse usar os mesmos meios comportamentais Ritualizar um toque do braço em contraposição exige apenas que o bebê antecipe o comportamento futuro de um coespecífico num contexto em que ele o bebê já tem o objetivo de mamar Portanto como a aprendizagem por emulação a ritualização ontogenética é um processo de aprendizagem social muito inteligente e criativo muito importante em todas as espécies sociais incluindo os humanos Mas não é um processo de aprendizagem por meio do qual os indivíduos tentam reproduzir as estratégias comportamentais dos outros Ensinar chimpanzés Portanto esses dois terrenos nos fornecem duas fontes muito diferentes de dados sobre a aprendizagem social de primatas nãohumanos No caso do uso de ferramentas é muito provável que os chimpanzés adquiram as habilidades no uso de ferramentas às quais estão expostos por um processo de aprendizagem por emulação No caso dos sinais gestuais é muito provável que adquiram seus gestos comunicativos por meio de um processo de ritualização ontogenética Tanto a aprendizagem por emulação como a ritualização ontogenética exigem aptidões de cognição e de aprendizagem social cada qual a seu modo mas nenhuma delas exige aptidões para aprendizagem por imitação em que o aprendiz a compreende tanto o objetivo do demonstrador como a estratégia que está sendo usada para atingir o objetivo e depois b de alguma maneira ajusta esse objetivo e essa estratégia aos seus próprios Com efeito a aprendizagem por emulação e a ritualização ontogenética são precisamente os tipos de aprendizagem social que se esperam de organismos muito inteligentes e rápidos para aprender mas que não vêem os outros como agentes intencionais a quem têm de se ajustar O outro processo importante presente na transmissão cultural da forma como ela é tradicionalmente definida é o ensino Embora a aprendizagem social se dê de baixo para cima já que indivíduos ignorantes ou inaptos tentam tornarse mais cultos ou aptos o ensino vem de cima para baixo já que indivíduos cultos ou aptos tentam transmitir conhecimento ou aptidões a outros O problema nesse caso é que existem muito poucos estudos sistemáticos sobre o ensino de primatas nãohumanos O estudo mais profundo é o de Boesch 1991 no qual mães e bebês chimpanzés foram observados no contexto do uso de ferramentas quebra de nozes Boesch descobriu que mães fazem um certo número de coisas que servem para facilitar as atividades dos bebês com a ferramenta e as nozes como deixar estes objetos ociosos para que o bebê possa usálos enquanto ela vai apanhar mais nozes o que ela não faria se outro adulto estivesse presente Mas a interpretação da intenção da mãe em tais casos não é nada evidente Além disso na categoria de instrução ativa em que a mãe pareceria estar tentando instruir seu filho ativamentemente Boesch observou apenas duas possíveis situações ao longo de muitos anos de observação Essas duas situações também são difíceis de interpretar no sentido de a mãe ter ou não ter o objetivo de ajudar o pequeno a aprender a usar a ferramenta Por outro lado embora haja muita variabilidade entre diferentes sociedades de uma maneira ou de outra em todas as culturas os humanos adultos instruem ativamente seus filhos de maneira regular Kruger e Tomasello 1996 Junto com a aprendizagem por imitação o processo de instrução ativa sem dúvida também é crucial para o padrão exclusivamente humano de evolução cultural zir o fim e os meios das ações novas isto é não as aprendiam imitativamente Em contraposição os chimpanzés aculturados e as crianças humanas aprenderam imitativamente as ações novas com muito mais frequência e nessa aprendizagem não diferiram uns dos outros De maneira similar alguns chimpanzés criados por humanos às vezes aprendem a apontar de uma maneira que os humanos entendem como comunicativa e até mesmo a usar algo que se parece com símbolos lingüísticos humanos através de ricas interações sociais com humanos mas sem nenhum treinamento sistemático per se SavageRumbaugh et al 1986 Esses estudos mostram que macacos criados por seres humanos num meio cultural parecido com o humano às vezes com e às vezes sem treinamento explícito podem desenvolver algumas aptidões semelhantes às humanas que eles não desenvolvem em seus hábitats naturais ou em condições de cativeiro mais típicas Ainda não se sabe quais são exatamente os fatores efetivos que produzem esses resultados mas uma hipótese plausível é que em meios culturais semelhantes aos humanos os macacos recebem uma espécie de socialização da atenção Ou seja os macacos em seus hábitats naturais não encontram ninguém que lhes aponte ou mostre coisas os ensine ou de forma geral expresse intenções no que tange à sua atenção ou outros estados intencionais Num meio cultural semelhante ao humano em contrapartida eles estão constantemente interagindo com humanos que lhes mostram coisas apontam para coisas estimulam e até reforçam a imitação e lhes ensinam aptidões especiais situações estas que envolvem um triângulo referencial entre humano macaco e alguma terceira entidade Talvez seja esta socialização no triângulo 28 referencial do tipo que a maioria das crianças humanas recebe a responsável pelas realizações cognitivas especiais desses macacos especiais Mas é importante salientar que macacos criados em meios culturais humanos nem por isso se tornam seres humanos Embora os cientistas não tenham examinado em profundidade as limitações das habilidades cognitivas dos macacos criados por humanos algumas diferenças em relação às crianças humanas aparecem de imediato Por exemplo ainda parece ser raro encontrar um macaco aculturado que simplesmente mostre algo para um companheiro humano ou macaco de modo declarativo ou que aponte para algo apenas para compartilhar a atenção para aquilo Eles não participam de prolongadas interações de atenção conjunta da mesma maneira que as crianças humanas Carpenter Tomasello e SavageRumbaugh 1995 e quando comparadas com as aptidões das crianças humanas suas aptidões para a linguagem humana são consideravelmente limitadas Tomasello 1994 Nas tarefas em que têm de cooperar com coespecíficos sem um treinamento humano específico as aptidões dos macacos para a aprendizagem colaborativa são curiosamente limitadas e quase não há nenhum comportamento de macacos aculturados se é que há algum que se poderia chamar de ensino intencional ver Call e Tomasello 1996 para apanhado geral A conclusão mais plausível portanto é que as aptidões para a aprendizagem que os chimpanzés desenvolvem no meio selvagem na ausência de interação com humanos isto é aptidões que envolvem aprendizagem individual suplementada por aprendizagem por emulação e ritualização são suficientes para criar e manter as atividades culturais típicas de sua espécie mas não são 29 suficientes para criar e manter atividades culturais semelhantes às humanas em que encontramos o efeito catraca e a evolução cultural cumulativa E talvez valha a pena notar que em seu hábitat natural e até onde se sabe jamais se observou na espécie irmã dos chimpanzés os bonobos Pan paniscus nada que se pareça com as tradições comportamentais específicas de populações dos chimpanzés o que sugere que o ancestral comum aos humanos e a essas duas espécies irmãs tampouco possuía aptidões culturais bem desenvolvidas O fato de que chimpanzés e bonobos criados desde pequenos e por muitos anos em meio cultural humano possam desenvolver certos aspectos da cognição social humana e da aprendizagem cultural demonstra de forma particularmente contundente o poder de processos culturais na ontogênese e o fato de que outras espécies animais não respondam dessa maneira demonstra as impressionantes aptidões para a aprendizagem social dos grandes macacos Mas responder a uma cultura e criar uma cultura de novo são duas coisas diferentes Evolução cultural humana Concluise pois que embora os chimpanzés evidentemente criem e mantenham tradições culturais em sentido amplo estas provavelmente se apóiam em processos de cognição social e de aprendizagem social diferentes das tradições culturais dos seres humanos Em certos casos essa diferença entre os processos não provoca nenhum diferença concreta quanto à organização social transmissão da informação ou cognição Mas em outros casos surge uma diferença crucial e esta se manifesta em processos de evolução cultural ou seja processos por meio dos quais uma tradição cultural acumula modificações ao longo do tempo Evolução cultural cumulativa e o efeito catraca Algumas tradições culturais acumulam as modificações feitas por diferentes indivíduos no transcurso do tempo de modo tal que elas se tornam mais complexas abrangendo um espectro mais amplo de funções adaptativas o que pode ser chamado de evolução cultural cumulativa ou de efeito catraca ver Figura 22 Por exemplo a maneira como os seres humanos usam objetos com função de martelo evoluiu significativamente ao longo da história humana No registro de artefatos podem ser encontradas várias ferramentas parecidas com martelos que gradualmente foram ampliando sua esfera funcional à medida que iam sendo modificadas para dar conta de novas exigências indo de simples pedras a ferramentas complexas compostas de uma pedra amarrada a um pau até os vários tipos de martelos modernos de metal ou mesmo martelos mecânicos alguns dos quais também servem para extração de pregos Basalla 1988 Embora não disponhamos de um registro tão detalhado como no caso desses artefatos provavelmente também foi isso que aconteceu com algumas convenções culturais e rituais por exemplo as línguas humanas e os rituais religiosos que também foram se tornando mais complexos ao longo do tempo à medida que iam sendo modificados para dar conta de novas necessidades comunicativas e sociais Esse processo é mais característico de algumas culturas humanas que de ou 30 tras ou de alguns tipos de atividades que de outros mas todas as culturas parecem ter pelo menos alguns artefatos produzidos pelo efeito catraca Não parece haver nenhum comportamento de outra espécie animal nem mesmo dos chimpanzés que revele uma evolução cultural cumulativa Boesch e Tomasello 1998 Tomasello e colaboradores 1993 afirmam que a evolução cultural cumulativa depende da aprendizagem por imitação e talvez da instrução ativa por parte dos adultos e não se dá por meio de formas mais fracas de aprendizagem social tais como intensificação local aprendizagem por emulação ritualização ontogenética ou qualquer forma de aprendizagem individual O argumento deles é que a evolução cultural cumulativa depende de dois processos inovação e imitação provavelmente suplementados por instrução que têm de ocorrer num processo dialético ao longo do tempo de modo que um passo do processo propicie o próximo Por isso se um chimpanzé inventar uma maneira mais eficiente de capturar cupins usando um pau de modo inovador para que mais cupins subam por ele os jovens que aprenderam a capturar cupins por emulação com esse indivíduo não poderiam reproduzir essa variante de modo preciso porque não estariam enfocando as técnicas comportamentais do inovador Usariam seu próprio método de captura para fazer com que mais cupins subissem pelo pau e todos os outros indivíduos que os observassem também usariam seus próprios métodos de maneira que a nova estratégia simplesmente desapareceria com seu inventor É essa precisamente a hipótese de Kummer e Goodall 1985 para quem muitos atos de inteligência criativa por parte de primatas nãohumanos passam despercebidos dos humanos porque não são fielmente preservados 31 GERAÇÃO 1 Artefato aprendizagem cultural das crianças GERAÇÃO 2 Artefato criação individual ou colaborativa modificação 1 aprendizagem cultural das crianças GERAÇÃO 3 Artefato modificado criação individual ou colaborativa modificação 2 aprendizagem cultural das crianças GERAÇÃO 4 Artefato modificado Figura 22 Diagrama simplificado do efeito catraca em funcionamento para produzir um artefato com modificações cumulativas tamento futuro de um coespecífico num contexto em que ele o bebê já tem o objetivo de mamar Portanto como a aprendizagem por emulação a ritualização ontogenética é um processo de aprendizagem social muito inteligente e criativo muito importante em todas as espécies sociais incluindo os humanos Mas não é um processo de aprendizagem por meio do qual os indivíduos tentam reproduzir as estratégias comportamentais dos outros Ensinar chimpanzés Portanto esses dois terrenos nos fornecem duas fontes muito diferentes de dados sobre a aprendizagem social de primatas nãohumanos No caso do uso de ferramentas é muito provável que os chimpanzés adquiram as habilidades no uso de ferramentas às quais estão expostos por um processo de aprendizagem por emulação No caso dos sinais gestuais é muito provável que adquiram seus gestos comunicativos por meio de um processo de ritualização ontogenética Tanto a aprendizagem por emulação como a ritualização ontogenética exigem aptidões de cognição e de aprendizagem social cada qual a seu modo mas nenhuma delas exige aptidões para aprendizagem por imitação em que o aprendiz a compreende tanto o objetivo do demonstrador como a estratégia que está sendo usada para atingir o objetivo e depois b de alguma maneira ajusta esse objetivo e essa estratégia aos seus próprios Com efeito a aprendizagem por emulação e a ritualização ontogenética são precisamente os tipos de aprendizagem social que se esperam de organismos muito inteligentes e rápidos para aprender mas que não vêem os outros como agentes intencionais a quem têm de se ajustar O outro processo importante presente na transmissão cultural da forma como ela é tradicionalmente definida é o ensino Embora a aprendizagem social se dê de baixo para cima já que indivíduos ignorantes ou inaptos tentam tornarse mais cultos ou aptos o ensino vem de cima para baixo já que indivíduos cultos ou aptos tentam transmitir conhecimento ou aptidões a outros O problema nesse caso é que existem muito poucos estudos sistemáticos sobre o ensino de primatas nãohumanos O estudo mais profundo é o de Boesch 1991 no qual mães e bebês chimpanzés foram observados no contexto do uso de ferramentas quebra de nozes Boesch descobriu que mães fazem um certo número de coisas que servem para facilitar as atividades dos bebês com a ferramenta e as nozes como deixar estes objetos ociosos para que o bebê possa usálos enquanto ela vai apanhar mais nozes o que ela não faria se outro adulto estivesse presente Mas a interpretação da intenção da mãe em tais casos não é nada evidente Além disso na categoria de instrução ativa em que a mãe pareceria estar tentando instruir seu filho ativamentemente Boesch observou apenas duas possíveis situações ao longo de muitos anos de observação Essas duas situações também são difíceis de interpretar no sentido de a mãe ter ou não ter o objetivo de ajudar o pequeno a aprender a usar a ferramenta Por outro lado embora haja muita variabilidade entre diferentes sociedades de uma maneira ou de outra em todas as culturas os humanos adultos instruem ativamente seus filhos de maneira regular Kruger e Tomasello 1996 Junto com a aprendizagem por imitação o processo de instrução ativa sem dúvida também é crucial para o padrão exclusivamente humano de evolução cultural Macacos aculturados Podese objetar que na literatura existe uma certa quantidade de observações muito convincentes de aprendizagem por imitação por parte de chimpanzés e de fato elas existem No entanto é interessante notar que todos os casos claros envolvem basicamente chimpanzés que tiveram um intenso contato com humanos Em muitos casos isso adotou a forma de instrução intencional incluindo a estimulação pelos humanos do comportamento e da atenção e até o reforço direto por imitação durante muitos meses por exemplo Hayes e Hayes 1952 forneceram ao seu chimpanzé Vicki vários meses de treinamento sistemático e Custance Whiten e Bard 1995 forneceram a seus dois chimpanzés quatro meses de treinamento sistemático Isso levanta a possibilidade de que aptidões de aprendizagem por imitação possam ser influenciadas ou até facilitadas por certos tipos de interação social durante a ontogênese precoce A confirmação desse ponto de vista é fornecida por um estudo de Tomasello SavageRumbaugh e Kruger 1993 Esse estudo comparou as aptidões para aprendizagem por imitação de chimpanzés cativos criados pela mãe chimpanzés aculturados criados como crianças humanas e expostos a um sistema de comunicação semelhante à linguagem e crianças humanas de dois anos de idade Mostrouse a cada sujeito vinte e quatro diferentes ações novas com objetos e o comportamento de cada sujeito em cada teste foi computado conforme reproduzisse com sucesso 1 o resultado final da ação demonstrada eou 2 os meios comportamentais usados pelo demonstrador O principal resultado foi que os chimpanzés criados pela mãe quase nunca conseguiam reprodu no grupo Por outro lado se os observadores fossem capazes de aprender por imitação poderiam adotar a nova variante estratégica para a captura de cupins de modo mais ou menos fiel Esse novo comportamento os situaria então num novo espaço cognitivo por assim dizer no qual poderiam pensar sobre a tarefa e em como resolvêla de uma maneira semelhante à do inovador colocandose na sua pele cognitiva Todos os indivíduos que assim fizessem provavelmente passariam então a ter condições de inventar outras variantes baseadas na primeira que outros adotariam fielmente ou também modificariam A metáfora da catraca nesse contexto pretende dar conta do fato de que a aprendizagem por imitação com ou sem instrução ativa propicia o tipo de transmissão fiel necessária para manter a nova variante dentro do grupo proporcionando assim uma plataforma para as futuras inovações com as próprias inovações variando em função de elas serem individuais ou sociaiscooperativas Em geral portanto podese dizer que as tradições culturais humanas distinguemse das tradições culturais dos chimpanzés bem como dos outros poucos casos de cultura observados em outras espécies de primatas precisamente pelo fato de acumularem modificações ao longo do tempo ou seja pelo fato de terem histórias culturais Acumulam modificações e têm histórias porque os processos de aprendizagem cultural que a elas subjazem são particularmente poderosos E esses processos de aprendizagem cultural são particularmente poderosos porque se baseiam na adaptação cognitiva exclusivamente humana para compreender os outros como seres intencionais iguais a si mesmo que criam formas de aprendizagem social que agem como uma catraca preservando fielmente estratégias recéminovadas no grupo social até que haja outra inovação para substituílas Devo reconhecer que as coisas talvez não sejam tão preto no branco como acabei de expor Num artigo muito interessante intitulado Por que a cultura é comum mas a evolução cultural é rara Boyd e Richerson 1996 lançam a hipótese de que os humanos e outros primatas participam dos mesmos tipos de aprendizagem social e por imitação mas que deve haver uma diferença quantitativa Assim os chimpanzés talvez tenham certas capacidades de aprendizagem por imitação mas usamnas de modo menos coerente que os humanos ou numa menor quantidade de contextos que os humanos ou talvez apenas alguns chimpanzés disponham individualmente dessas capacidades Boyd e Richerson afirmam que a raridade dos processoschave de aprendizagem social poderia tornar a evolução cultural de tipo cumulativo impossível O problema básico nesse caso seria que a catraca está muito corrediça e por exemplo ainda que um indivíduo aprendesse por imitação a inovação de outro nenhum outro conseguiria imitálo ou os indivíduos que tentassem imitálo só o fizessem de maneira muito imperfeita Portanto eles argumentam que há uma diferença quantitativa na capacidade de aprendizagem social que leva a uma diferença qualitativa nas trajetórias históricas das tradições culturais resultantes Em ambos os casos contudo quer a diferença entre a capacidade de aprendizagem social dos humanos e dos macacos seja mais qualitativa e absoluta ou mais quantitativa e relativa o efeito é que os seres humanos costumam dispor de capacidades de aprendizagem sociocognitiva e cultural para criar enquanto espécie produtos cognitivos únicos baseados na evolução cultural cumulativa A sociogênese da linguagem e da matemática O processo de evolução cultural cumulativa pode ser visto como uma forma particularmente poderosa de inventividade colaborativa ou sociogênese Nas sociedades humanas existem duas formas básicas de sociogênese nas quais algo novo é criado através da interação social de dois ou mais indivíduos em interação cooperativa e em muitos casos o novo produto não poderia ter sido inventado por nenhum dos indivíduos isoladamente A primeira forma de sociogênese é simplesmente a forma decorrente do efeito catraca descrito acima para coisas como martelos e símbolos linguísticos Um indivíduo depara com um artefato ou uma prática cultural herdados de outros numa situação nova para a qual o artefato não parece plenamente adequado Ele então avalia a maneira como se supõe que o artefato funcione a intencionalidade do inventor relaciona isso com a situação presente e então realiza uma modificação do artefato Nesse caso a colaboração não é real no sentido de dois ou mais indivíduos estarem simultaneamente presentes e colaborando mas antes virtual no sentido de que ela se dá no tempo histórico quando aquele determinado indivíduo imagina a função que o artefato supostamente tinha para os usuários anteriores e como ele tem de ser modificado para se adaptar à situação atual O segundo tipo de sociogênese é a colaboração simultânea de dois ou mais indivíduos ao tentarem resolver juntos um problema A simultaneidade não é absoluta nesses casos uma vez que o que costuma acontecer é que os indivíduos se envolvem em algum tipo de interação dialógica na qual um responde às sugestões inventivas do outro e assim por diante até que se chega a um produto que nenhum dos dois poderia ter inventado sozinho Portanto a colaboração não é virtual mas real e por isso tem certas qualidades especiais por exemplo quanto ao tipo de feedback imediato que um indivíduo possa receber para suas sugestões criativas Ambas as formas de colaboração podem ocorrer juntas é claro como quando um pequeno grupo de pessoas tenta modificar colaborativamente um artefato ou uma prática que herdaram de outros a fim de satisfazer novas exigências e na verdade essa provavelmente seja a situação típica Muitas das importantes mudanças culturais abrangentes envolvendo coisas como sistemas religiosos governamentais ou econômicos também resultam da cooperação tanto simultânea como sucessiva ao longo de várias gerações de muitas pessoas e de uma maneira que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas pretendia ou teria previsto este poderia ser um terceiro tipo de colaboração Por exemplo as economias de mercado embora se baseiem em atos intencionais individuais não são um resultado cultural que alguma pessoa tivesse imaginado ou pretendido inicialmente Esses processos em nível grupal não são bem entendidos de um ponto de vista psicológico mas sem dúvida interagem com o nível intencional de maneira interessante e significativa ver Hutchins 1995 Podese observar claramente o processo de sociogênese em dois campos cognitivos muito importantes a linguagem e a matemática Começarei pela linguagem Embora em geral todas as línguas tenham algumas características comuns em termos concretos cada uma dos milhares de línguas do mundo tem seu próprio inventário de símbolos linguísticos incluindo construções linguísticas complexas que permitem a seus usuários compartilhar simbolicamente experiências entre si Esse in ventário de símbolos e construções fundamentase em estruturas universais da cognição humana da comunicação humana e na mecânica do aparelho fonoauditivo As particularidades de cada língua provêm de diferenças entre os vários povos do mundo no que se refere ao tipo de coisas sobre as quais eles acham importante falar e às maneiras como consideram útil falar sobre elas além de vários acidentes históricos evidentemente O ponto crucial para o que aqui nos interessa é que todos os símbolos e as construções de uma dada língua não foram inventados de uma só vez e depois de inventados geralmente não permanecem idênticos por muito tempo Pelo contrário os símbolos e as construções linguísticas evoluem mudam e acumulam modificações ao longo do tempo histórico à medida que os homens os utilizam entre si ou seja através de processos de sociogênese A dimensão mais importante do processo histórico no presente contexto é a gramatação ou sintatização em que por exemplo durante a evolução palavras independentes tornamse marcadores gramaticais e estruturas discursivas soltas e organizadas de modo redundante se congelam em construções sintáticas fixas e organizadas de forma menos redundante ver Traugott e Heine 1991a 1991b Hopper e Traugott 1993 Alguns exemplos podem ajudar a esclarecer esse ponto O marcador do futuro em praticamente todas as línguas foi gramaticalizado a partir de palavras independentes que significavam coisas como volição ou movimento em direção a um objetivo Assim em inglês o verbo original era will como em I will it to happen quero que isso aconteça que se gramaticalizou em It will happen isso acontece tendo o componente volitivo sido apagado Similarmente o emprego original de go era para movimento como em Im going to the store Estou indo para a loja e isso foi gramaticalizado tornandose Im going to send it tomorrow vou mandarmandarei isso amanhã tendo o movimento sido apagado ver também come como em Come Thursday I will be 46 Venha quinta vou fazer 46 O passado perfeito do inglês com o uso de have provavelmente derivou de frases como I have a broken finger literalmente tenho um dedo quebrado ou 1 have the prisoners bound literalmente tenho os prisioneiros amarrados em que have é um verbo de posse transformandose em algo como I have broken a finger quebrei um dedo em que o significado de posse de have é apagado e agora apenas indica o aspecto perfectivo Expressões em inglês como on the top of e in the side of evoluíram para on top of e inside of e por fim para atop e inside Em algumas línguas embora não em inglês conectivos como essas preposições espaciais também podem vir a se apor a substantivos como marcadores de caso neste exemplo como possíveis marcadores de lugar Sequências discursivas soltas como He pulled the door and it opened Ele puxou a porta e ela abriu podem ser sintatizadas em He pulled the door open uma construção resultativa Sequências discursivas soltas como My boyfriend He plays piano He plays in a band Meu namorado Ele toca piano Ele toca numa banda podem transformarse em My boyfriend plays piano in a band Ou similarmente My boyfriend He rides horses He bets on them Meu namorado Ele anda a cavalo Ele aposta neles podem transformarse em My boyfriend who rides horses bets on them De modo similar se alguém exprime a crença de que Mary vai se casar com John outra pessoa pode responder com uma aquiescência Acho isso seguida da repetição da crença expressa de que Mary vai se casar com John que pode ser sintetizada na afirmação única de que Acho que Mary vai se casar com John Frases complexas também podem derivar de seqüências discursivas compostas de expressões inicialmente separadas como em I want it I buy it Eu quero isso Eu compro isso que evolui para I want to buy it A investigação sistemática dos processos de gramatização e sintatização está apenas engatinhando ver Givón 1979 1995 e com efeito a idéia de que as línguas evoluíram de formas estruturalmente mais simples para formas estruturalmente mais complexas por meio de processos de gramatização é um tanto recente nesse contexto os lingüistas costumam pensar esses processos apenas como fontes de mudanças Mas a gramatização e a sintatização são capazes de produzir importantes mudanças na estrutura lingüística em períodos relativamente curtos de tempo por exemplo a principal diversificação das línguas românicas aconteceu durante algumas centenas de anos e por isso não vejo razão pela qual também não pudessem funcionar para tornar uma língua simples sintaticamente mais complexa em alguns milhares de anos Saber exatamente como a gramatização e a sintatização se dão nas interações concretas entre seres humanos isolados e grupos de seres humanos e como esses processos se relacionam com os outros processos de sociogênese por meio dos quais a interação social humana modifica artefatos culturais é uma questão para pesquisas lingüísticas futuras Uma possível implicação dessa idéia é que os primeiros homens modernos que surgiram na África há uns 200 mil anos foram os indivíduos que primeiro começaram a se comunicar simbolicamente talvez usando algumas formas simbólicas simples análogas às usadas por crianças humanas Em seguida eles se dispersaram pelo mundo de modo que todas as línguas atuais derivam em última instância daquela única protolíngua no entanto se aquela protolíngua era muito simples nesse processo cada cultura pode ter sintetizado e gramatizado seqüências discursivas de maneiras fundamentalmente diferentes e desde muito cedo Em resposta àqueles teóricos para quem essa hipótese é forçada basta observar a escrita alfabética para encontrar uma invenção cultural que aconteceu uma única vez que guardou algumas de suas características essenciais ao mesmo tempo que adquiriu formas diferentes nas diversas culturas e isso aconteceu em apenas alguns milênios e não em muitíssimos milênios como teria sido o caso das línguas naturais O caso do outro pilar intelectual da civilização ocidental a matemática é curiosamente diferente do caso da linguagem embora apresente certa similaridade mas também algumas diferenças para com a escrita Assim como a linguagem a matemática fundamentase claramente em maneiras universalmente humanas de experimentar o mundo muitas das quais são compartilhadas com outros primatas e também em alguns processos de criação cultural e sociogênese Mas nesse caso as diver gências entre culturas são muito maiores do que no caso das línguas faladas Todas as culturas têm formas complexas de comunicação lingüística com variações de complexidade praticamente negligenciáveis mas algumas culturas dispõem de sistemas matemáticos altamente complexos praticados apenas por alguns de seus membros enquanto outras dispõem apenas de sistemas bastante simples de algarismos e contagem Saxe 1981 É por causa dessa grande variação que ninguém afirmou até hoje que a estrutura da moderna matemática complexa é um módulo inato como fizeram no caso da linguagem embora fosse logicamente possível propor de acordo com os princípios e parâmetros de Chomsky uma teoria segundo a qual certas variáveis ambientais que não estão presentes em determinadas culturas em outras possam desencadear certas estruturas matemáticas inatas Em geral não é difícil deduzir as razões que explicam as grandes diferenças culturais entre as práticas matemáticas Primeiro pessoas e culturas diferentes têm diferentes necessidades matemáticas A maioria das culturas e das pessoas precisa manter o controle sobre seus bens ou suas mercadorias para o que bastam poucas palavras que expressem números na língua natural Quando uma cultura ou uma pessoa precisam contar objetos ou medir coisas de modo mais preciso por exemplo em complexos projetos de engenharia ou coisas semelhantes surge a necessidade de uma matemática mais complexa A ciência moderna praticada por um pequeno grupo de pessoas em algumas culturas apresenta todo um conjunto de novos problemas que exigem técnicas matemáticas complexas para sua solução Mas e é essa a analogia com a escrita tal como a conhecemos atualmente a matemática complexa só se efetiva por meio do uso de certas formas de símbolos gráficos O sistema arábico de numeração em particular é muito superior aos sistemas ocidentais mais antigos quando se trata de matemática complexa por exemplo os algarismos romanos e o uso no Ocidente dos algarismos arábicos que incluem o zero e do sistema decimal em que o lugar do algarismo indica sua ordem de valor abriu novos horizontes para os cientistas e outras pessoas no que tange às operações matemáticas Danzig 1954 A história da matemática é uma área de estudos na qual um exame minucioso revelou uma miríade de maneiras complexas pelas quais indivíduos e grupos de indivíduos tomam o que recebem das gerações anteriores e fazem as modificações necessárias para lidar com novas práticas e novos problemas científicos mais eficientemente Eves 1961 Alguns historiadores da matemática detalharam alguns dos processos específicos por meio dos quais foram inventados utilizados e modificados símbolos e técnicas especificamente matemáticos cf Danzig 1954 Eves 1961 Damerow 1998 Para citar apenas um exemplo bem conhecido Descartes inventou o sistema de coordenadas cartesianas em que combinou de maneira criativa algumas das técnicas espaciais usadas em geometria com algumas técnicas mais aritméticas de outras áreas da matemática de seu tempo sendo o cálculo infinitesimal uma variação desse tema A adoção dessa técnica por outros cientistas e matemáticos ampliou o universo matemático quase imediatamente modificando a matemática ocidental para sempre De modo geral portanto a sociogênese da moderna matemática ocidental tal como é praticada por uma minoria de pessoas nessas culturas pode ser vista como função tanto das necessidades matemáticas de um determinado grupo como dos recursos culturais disponíveis Para isso é necessária e fundamental pelo menos a compreensão que os primatas têm de pequenas quantidades mas a matemática moderna sem dúvida exige bem mais que isso Minha hipótese a ser elaborada no Capítulo 6 é que apoiandose no senso básico que os primatas têm da quantidade os seres humanos usam ademais suas fantásticas capacidades de perspectivação e de interpretações alternativas de objetos e coleções de objetos concretos que têm sua base social em capacidades de perspectivação e de comunicação lingüística para construir a matemática complexa Em algumas culturas o recrutamento dessas capacidades para fins matemáticos é mais necessário que em outras No caso tanto da linguagem como da matemática portanto a estrutura do campo tal como ele se apresenta atualmente tem uma história cultural na verdade várias diferentes histórias culturais e existem processos de sociogênese que historiadores da lingüística e historiadores da matemática têm a oportunidade de estudar embora a maioria desses estudiosos não se interesse diretamente por questões de psicologia As diferenças entre ambos os casos são instrutivas Embora a complexidade adote diferentes formas nas línguas modernas a linguagem complexa é um universal entre todos os povos do mundo quer porque a invenção original de muitos dos símbolos falados que tornam a linguagem possível ocorreu antes de os humanos modernos se dispersarem em diferentes populações quer porque a capacidade de criar símbolos falados é tão natural para os humanos que todos os diversos grupos os inventaram de maneira semelhante embora não idêntica depois de se dispersarem A matemática complexa não é universal entre as culturas ou mesmo entre as pessoas das culturas que a possuem supostamente porque as necessidades culturais de matemática complexa eou a invenção dos recursos culturais necessários só surgiram depois que os povos modernos começaram a viver em diferentes populações e aparentemente essas necessidades eou recursos não estão universalmente presentes em todos os povos do mundo atual Portanto um dos principais fatos sobre a linguagem que levou alguns lingüistas a levantar a hipótese de que certas estruturas lingüísticas modernas são inatas o fato de serem universais e exclusivas da espécie ao passo que muitas matemáticas e outras habilidades cognitivas não o são cf Pinker 1994 pode simplesmente ser o resultado de caprichos da história cultural humana no sentido de por alguma razão as aptidões para a comunicação lingüística terem se desenvolvido antes de os homens modernos se dispersarem em populações isoladas O lugar em que as necessidades intelectuais se encontram diretamente com os recursos culturais é sem dúvida a ontogênese humana Com efeito sociogênese e história cultural podem ser entendidas como uma série de ontogêneses em que os membros maduros e imaturos de uma cultura aprendem a agir com eficiência ao se verem expostos a problemas e providos de recursos como por exemplo interações sociais com peritos em solução de problemas As habilidades cognitivas mais básicas necessárias para a aquisição da linguagem e a aprendizagem da matemática complexa como dois exemplos particularmente interessantes estão universalmente disponíveis para os seres humanos Mas as várias e diferentes estruturas desses dois artefatos culturais tal como se ma nifestam nas tão diferentes sociedades humanas do mundo não estão e não podem estar diretamente codificadas nos genes fora da história O modelo geral seria portanto de que os seres humanos têm capacidades cognitivas que resultam da herança biológica em ação no tempo filogenético eles usam essas aptidōes para explorar recursos culturais que evoluíram no tempo histórico e fazem isso durante o tempo ontogenético Ontogênese humana Na esteira de Vigotski e de muitos outros psicólogos culturais sustento que muitas das mais interessantes e importantes realizações cognitivas do homem como linguagem e matemática demandam tempo e processos históricos para sua efetivação mesmo que a maioria dos cientistas cognitivistas ignore por completo esses processos históricos Além disso eu afirmaria junto com outros psicólogos do desenvolvimento que muitas das mais interessantes e importantes competências cognitivas do homem demandam tempo e processos ontogenéticos significativos para sua efetivação mesmo que esses processos também sejam ignorados por muitos cientistas cognitivistas A subestimação por parte dos cientistas cognitivistas da ontogênese e de seu papel formativo na criação de formas maduras de cognição humana devese em grande parte à sua sobrevalorização de um debate filosófico revelho que sobreviveu à sua pertinência se é que um dia foi pertinente Elman et al 1997 Portanto antes de expor em detalhes a ontogênese cognitiva humana farei uma breve referência a esse debate Nativismo filosófico e desenvolvimento As discussōes modernas sobre natureza versus educação e inato versus adquirido estruturamse com base nos debates ocorridos na Europa do século XVIII entre filósofos racionalistas e empiristas em torno da mente humana e das qualidades morais do homem Esses debates modelares ocorreram antes de Charles Darwin fornecer à comunidade científica novas maneiras de pensar os processos biológicos A introdução dos modos darwinistas de pensar a filogênese e o papel da ontogênese na filogênese deveriam ter tornado esse debate obsoleto Mas não foi isso o que aconteceu e na verdade o surgimento da genética moderna deulhe novo alento material na forma do debate genes versus ambiente O motivo pelo qual o debate não morreu é que ele é o modo natural de responder à pergunta o que determina o traço X nos seres humanos adultos Formular dessa maneira a pergunta admite até tentativas de quantificar a contribuição relativa dos genes e do ambiente num determinado traço de um adulto tal como inteligência Scarr e McCarthy 1983 Formular e responder à pergunta dessa maneira equivale a perguntar o que determinou a deflagração da Revolução Francesa e em seguida quantificar a contribuição relativa da economia da política da religião etc Mas pensar darwinianamente é pensar um processo no qual não faz sentido pensar categorias de fatores em algum agora estático e atemporal Embora haja processos invariantes como a variação genética e a seleção natural se perguntarmos como determinada espécie veio a ser o que é agora ou como a Revolução Francesa aconteceu a resposta é uma narrativa que se desenrola no tempo com vários processos funcionando de diferentes maneiras em diferentes pontos ao longo do trajeto Essa maneira darwinista de pensar é aquela que deveríamos usar se quisermos entender a filogênese e a ontogênese dos seres humanos Na filogênese a Natureza seleciona vias ontogenéticas que levam a certos resultados no fenótipo sexualmente maduro Repito a Natureza seleciona vias ontogenéticas que levam a certos resultados fenotípicos Para sua realização essas vias dependem em maior ou menor medida da exploração de materiais e informações exógenos e os mamíferos em geral e os primatas e humanos em particular desenvolveram muitas vias ontogenéticas que simplesmente não surgiriam sem esses materiais e essas informações exógenos Mas independentemente do grau de material exógeno envolvido e em qualquer trama ontogenética nosso objetivo enquanto desenvolvimentistas sejam biólogos ou psicólogos é compreender toda a trajetória de um determinado fenômeno e como ele funciona Nem é preciso dizer que não existe ninguém que se autodenomine biólogo e que também se denomine nativista Quando biólogos desenvolvimentistas olham para o embrião em desenvolvimento de nada lhes serve o conceito de inatismo Eles não subestimam a influência dos genes o papel essencial do genoma é um fato indiscutível mas o juízo categórico de que uma característica é inata simplesmente não ajuda na compreensão do processo Por exemplo de nada serviria para os biólogos dizer que o surgimento dos rudimentos de membros na décima semana do desenvolvimento embrionário humano é inato Se estivermos interessados em todo o processo por meio do qual os membros se formam no desenvolvimento embrionário temos primeiro de mapear as etapas do desenvolvimento dos membros e depois determinar de que maneira os processos de síntese de proteínas de diferenciação celular a interação do organismo com enzimas intrauterinas etc participam em vários momentos da progressão Se quiséssemos rotular de inatos processos que compartilham um certo número de características por exemplo dependerem muito pouco da existência de enzimas intrauterinas para sua operação poderíamos certamente fazer isso o que poderia ser útil para certos propósitos De modo geral no entanto tal rotulação é simplesmente inútil para a compreensão dos processos ontogenéticos envolvidos cf o argumento de Wittgenstein 1953 de que problemas filosóficos mal formulados não são resolvidos simplesmente nos curamos deles Contudo na ciência cognitiva sempre houve uma linha nativista que coloca a questão basicamente nos mesmos termos que os filósofos europeus do século XVIII como se o processo de pensamento darwinista não tivesse tido nenhum ou quase nenhum impacto cf Chomsky 1980 Fodor 1983 Uma vez que esses teóricos não costumam estudar diretamente os processos genéticos mas procuram antes inferilos apenas a partir de considerações lógicas essa perspectiva teórica talvez devesse ser chamada de nativismo filosófico Isso não significa que a investigação dos aspectos inatos da cognição humana não tenha levado a algumas conclusões muito importantes Para dar apenas um exemplo essa investigação estabeleceu que o processo ontogenético concebido por Piaget como decisivo para a compreensão que as crianças têm dos objetos no espaço ou seja a manipulação manual dos objetos não pode ser um ingrediente decisivo pois as crianças compreendem objetos no espaço antes de os terem manipulado manualmente Spelke 1990 Baillargeon 1995 Essa exclusão de um processo developmental potencial é uma descoberta científica significativa Mas essa descoberta não deveria encerrar o processo de investigação não deveríamos dizer simplesmente que X é inato e portanto nada mais temos para pesquisar mas antes deveria nos levar a indagar outras coisas por exemplo o papel da experiência visual na ausência de manipulações manuais para o desenvolvimento de um conceito de objeto Tal procedimento é o adotado pelos biólogos desenvolvimentistas embora eles evidentemente tenham à sua disposição métodos mais poderosos uma vez que são capazes de intervir na ontogênese de embriões animais de uma maneira que não pode ser empregada com crianças humanas Mas sejam quais forem os meios por exemplo estudar o conceito de objeto em crianças cegas o objetivo não é decidir se alguma estrutura é ou não inata mas antes determinar os processos presentes em seu desenvolvimento A investigação dos aspectos inatos da cognição humana é cientificamente útil na medida e tãosomente na medida em que nos ajuda a entender os processos desenvolvimentais em funcionamento durante a ontogênese humana incluindo todos os fatores que desempenham algum papel em que momento desempenham um papel e precisamente como desempenham seu papel As linhas individual e cultural de desenvolvimento Em vez de inato versus adquirido prefiro outra dicotomia que alguns podem considerar igualmente problemática a dicotomia vigotskiana entre as linhas individual e cultural de desenvolvimento Essa distinção é essencialmente aquela que existe entre herança biológica e herança cultural embora diga respeito à ontogênese e não à filogênese De acordo com a minha interpretação dessa distinção a linha individual do desenvolvimento cognitivo o que Vigotski chama de linha natural concerne àquelas coisas que o organismo conhece e aprende por conta própria sem a influência direta de outras pessoas ou de seus artefatos ao passo que a linha cultural de desenvolvimento cognitivo concerne àquelas coisas que o organismo conhece e aprende por meio de atos nos quais tenta ver o mundo através da perspectiva de outras pessoas incluindo as perspectivas incorporadas nos artefatos Devo ressaltar que esse é um modo um tanto idiossincrático de conceituar a herança e o desenvolvimento culturais bem mais restrito que as conceituações da maioria dos psicólogos culturais Não estou considerando herança cultural aquelas coisas que o organismo sabe e aprende por conta própria a partir de seu meio cultural particular ou habitus por exemplo a aprendizagem que a criança faz sobre a disposição e organização das casas em seu ambiente local Kruger e Tomasello 1996 Minha definição mais restrita de herança cultural e portanto aprendizagem cultural e linha cultural de desenvolvimento enfoca os fenômenos intencionais nos quais um organismo adota o comportamento ou a perspectiva de um outro em relação a uma terceira entidade O problema evidentemente é que essas duas linhas de desenvolvimento entrelaçamse de forma inextricável desde muito cedo no desenvolvimento humano e praticamente qualquer ato cognitivo das crianças a partir de certa idade incorpora elementos de ambas Por exemplo em capítulos posteriores irei demonstrar que crianças entre um e três anos são em muitos sentidos máquinas de imitação já que sua resposta natural a muitas situações é fazer o que estão fazendo as pessoas à sua volta e na verdade o que criam individualmente por conta própria é muito limitado na maioria das situações Contudo alguns dos mais interessantes aspectos do desenvolvimento durante esse período concernem precisamente a interações entre as linhas individual e cultural de desenvolvimento na medida em que a criança se apropria das convenções culturais que aprendeu via imitação ou alguma outra forma de aprendizagem cultural realiza um salto criativo que vai além delas e deduz sozinha alguma relação categorial ou analógica tendo como base as aptidões gerais de categorização dos primatas É verdade que esses mesmos saltos criativos às vezes dependem de forma mais ou menos direta de alguma ferramenta cultural como linguagem símbolos matemáticos ou imagens icônicas convencionais que ajudam as crianças a perceber relações categoriais ou analógicas No entanto todos os dados apontam para o fato de que por volta dos quatro ou cinco anos o equilíbrio entre a tendência das crianças a imitar os outros e sua tendência a usar as próprias estratégias cognitivas criativas se altera uma vez que nessa idade elas já internalizaram muitos pontos de vista diferentes sobretudo por meio do discurso linguístico o que lhes permite refletir e planejar sozinhas de maneira mais autoregulada embora novamente as ferramentas com que fazem isso sejam às vezes culturais na origem Muitos psicólogos culturais acham que tentar fazer essa distinção é desnecessário porque o individual e o cultural são parte do mesmo processo desenvolvimental e em qualquer idade a criança possui conhecimento e aptidões que são o resultado de um longo processo dia lético que envolve ambos os fatores Concordo em certa medida com essa crítica mas continuo achando que tentar isolar e avaliar os efeitos da adaptação exclusivamente humana à cultura durante a ontogênese humana é um projeto útil É útil em primeiro lugar porque nos ajuda a responder à questão comparativaevolucionária de como e por que os seres humanos diferem cognitivamente de seus parentes primatas mais próximos que se desenvolvem da maneira típica de sua espécie sem nada que se pareça com a versão humana da linha cultural de desenvolvimento na qual artefatos e práticas sociais historicamente constituídos são internalizados pelo jovem em desenvolvimento Além disso é útil porque ajuda a captar o que talvez seja a tensão dialética do desenvolvimento cognitivo humano a tensão entre fazer coisas convencionalmente o que tem muitas vantagens óbvias e fazer coisas criativamente o que também tem suas próprias vantagens O modelo da herança dual Pelo fato de o modo humano de organização cultural ser tão peculiar quando comparado com o de outras espécies animais pelo fato de que a criação de animais nãohumanos num contexto cultural não os transforma magicamente em seres culturais semelhantes aos humanos e pelo fato de haver alguns humanos com déficits biológicos que não participam plenamente de suas culturas a conclusão inelutável é que cada ser humano possui uma capacidade biologicamente herdada de viver culturalmente Essa capacidade que caracteriza como a capacidade de compreender os coespecíficos como agentes intencionaismentais iguais a si próprio começa a se tornar uma realidade por volta dos nove meses de idade como veremos no Capítulo 3 Ao comparar sistematicamente os humanos e seus parentes primatas mais próximos tentei demonstrar que essa capacidade é fácil de identificar altamente distintiva e exclusiva da espécie embora tudo leve a crer que se baseie na adaptação ao pensamento relacional que distingue a cognição dos primatas da dos outros mamíferos em geral As condições adaptativas sob as quais essa aptidão sociocognitiva exclusiva da espécie evoluiu são desconhecidas até o presente momento mas uma hipótese é que ela só evoluiu com o moderno Homo sapiens e que ela é de fato a principal característica cognitiva que distingue os seres modernos dos prémodernos Essa ínfima diferença biológica entre os humanos e seus parentes primatas mais próximos teve e continua a ter consequências cognitivas enormes Além de possibilitar que os humanos interajam de forma mais flexível e efetiva com vários tipos de entidades e eventos de seu meio também abre caminho para a forma exclusivamente humana de herança cultural A herança cultural humana enquanto processo está assentada nos pilares indissociáveis da sociogênese por meio da qual a maioria dos artefatos e das práticas culturais é criada e da aprendizagem cultural por meio da qual essas criações e as intenções e perspectivas humanas que existem por trás delas são internalizadas por crianças em desenvolvimento como veremos em capítulos posteriores Juntas a sociogênese e a aprendizagem cultural facultam aos seres humanos produzir artefatos materiais e simbólicos que se apóiam uns nos outros acumulando assim modificações ao longo do tempo histórico o efeito catraca de modo tal que o desenvolvimento cognitivo das crianças humanas se dá no contexto de algo que se assemelha a toda a história cultural de seu grupo social Isso não significa que os processos socioculturais possam criar novos produtos culturais e habilidades cognitivas a partir do nada Chimpanzés são criaturas muito sofisticadas cognitivamente e sem dúvida há cerca de 6 milhões de anos os ancestrais comuns aos homens e aos chimpanzés também o eram Os processos de sociogênese e de aprendizagem cultural têm como fundamento habilidades cognitivas básicas relativas ao espaço a objetos categorias quantidades relações sociais comunicação e várias outras aptidões que todos os primatas possuem Mas os processos culturais humanos levam essas habilidades cognitivas fundamentais para novas e surpreendentes direções e o fazem muito rapidamente do ponto de vista evolucionário A alternativa a essa perspectiva teórica é tentar explicar cada aspecto da cognição humana próprio da espécie invocando a cada vez bases genéticas para cada habilidade cognitiva específica Por exemplo ao tentar explicar a evolução da linguagem podese supor que houve um evento genético ou vários eventos genéticos na história humana recente que deram às línguas modernas suas estruturas e que esse evento genético não teria basicamente nenhuma relação com outros eventos desse tipo relativos a outros módulos inatos tipicamente humanos concernentes à matemática e a coisas semelhantes cf Tooby e Cosmides 1989 Pinker 1994 1997 Embora casos individuais sempre possam dar lugar a debates essa estratégia explicativa não é insensata se nossa única preocupação forem módulos cognitivos exclusivamente humanos Mas com a multiplicação do número de módulos inatos o problema do tempo tornase premente Temos no máximo apenas 6 milhões de anos mas mais provavelmente apenas um quarto de milhão de anos para criar a cognição exclusivamente humana e isso simplesmente não seria suficiente em nenhum roteiro evolucionário plausível para que a variação genética e a seleção natural criassem módulos cognitivos exclusivamente humanos muito diferentes e independentes entre si A grande vantagem da explicação aqui apresentada é que há apenas uma adaptação biológica importante que poderia ter ocorrido em qualquer tempo da evolução humana até mesmo muito recentemente e portanto a questão decisiva do tempo evolucionário que tanto incomoda abordagens de base mais genética simplesmente não se coloca 3 ATENÇÃO CONJUNTA E APRENDIZAGEM CULTURAL Quem considerar as coisas em seus primórdios terá a melhor visão delas ARISTÓTELES A conclusão que podemos tirar da comparação entre primatas humanos e nãohumanos é que a compreensão dos coespecíficos como seres intencionais iguais a si próprio é uma competência cognitiva exclusivamente humana que explica quer diretamente por si só ou indiretamente através dos processos culturais muitas das características únicas da cognição humana Mas essa competência cognitiva não surge de uma vez por todas na ontogênese humana passando a funcionar de maneira homogênea dali em diante Pelo contrário a compreensão humana dos outros como seres intencionais surge inicialmente por volta dos nove meses de idade mas seu verdadeiro poder manifestase apenas gradualmente à medida que as crianças passam a utilizar ativamente as ferramentas culturais que essa compreensão lhes permite dominar sobretudo a linguagem Por isso para compreender plenamente a adaptação humana à cultura precisamos acompanhar o curso desse desenvolvimento por algum tempo o que pretendemos fazer nos Capítulos 46 Neste capítulo descrevo e tento explicar o que acontece aos nove meses de idade Cognição na primeira infância Tudo indica que os humanos neonatos são extremamente frágeis e criaturas quase totalmente desamparadas São incapazes de se alimentar de sentar ou se locomover independentemente ou de estender os braços e agarrar objetos Têm pouquíssima acuidade visual e por certo não sabem praticamente nada das atividades culturais e lingüísticas que ocorrem à sua volta Entendese portanto por que William James 1890 na virada do século XIX para o XX supôs que o mundo de experiência do recémnascido fosse uma confusão colorida e sussurrante Nas últimas duas décadas no entanto psicólogos do desenvolvimento descobriram que recémnascidos e crianças muito pequenas possuem certo número de competências cognitivas que não aparecem prontamente em seu comportamento manifesto Tratase de uma verdade no que se refere à compreensão de objetos à compreensão das outras pessoas e à autocompreensão Compreender objetos Em suas obras clássicas sobre a infância Piaget 1952 1954 elaborou uma teoria da cognição infantil que é o ponto de partida de todas as teorias subseqüentes Piaget notou que por volta dos quatro meses de idade os bebês começam a estender os braços na direção de objetos e a agarrálos por volta dos oito meses começam a procurar objetos que desapareceram chegando a remover obstáculos em suas tentativas de agarrálos e entre doze e dezoito meses começam a seguir o deslocamento espacial de objetos visíveis e invisíveis para novas localizações e a compreender algo das relações espaciais temporais e causais entre objetos Piaget supôs que todas essas mudanças desenvolvimentais no comportamento sensóriomotor fossem o resultado das manipulações ativas e das explorações de objetos que as crianças realizam à medida que constroem a realidade por meio de linhas convergentes de informação sensorial e motora O grande questionamento das idéias piagetianas veio de pesquisadores que descobriram que bebês humanos têm certa compreensão de um mundo físico com existência independente numa idade que coincide com suas mais primitivas manipulações de objetos antes de terem tido tempo de usar essas manipulações para construir esse mundo Por exemplo Baillargeon e colaboradores ver 1995 para um apanhado verificaram que se os pesquisadores não pedirem às crianças pequenas para manipularem objetos mas apenas para assistir a cenas e olhar por mais tempo quando suas expectativas forem contrariadas elas revelam uma compreensão de objetos como entidades independentes que existem mesmo quando não estão sendo observadas por volta dos três ou quatro meses de idade mais ou menos na época de suas primeiras manipulações manuais deliberadas Usando essa mesma metodologia Spelke e colaboradores 1992 mostraram ademais que nessa mesma idade precoce as crianças entendem vários outros princípios que governam o comportamento dos objetos como o fato de que objetos não podem estar em dois lugares ao mesmo tempo que objetos não podem passar um através do outro e assim por diante E mais uma vez as crianças parecem entender esses princípios antes de terem tido muita experiência com a manipulação de objetos Em momentos posteriores de seu primeiro ano de vida as crian ças humanas manifestam outros tipos de compreensão de objetos no espaço por exemplo antes de seu primeiro aniversário conseguem categorizar objetos perceptualmente estimar pequenas quantidades e continuar atentas a elas a despeito da oclusão perceptual girar objetos mentalmente e percorrer o espaço de maneiras que sugerem algo parecido com um mapa cognitivo cf Haith e Benson 1997 para um apanhado Essa nova maneira de avaliar a cognição infantil quanto ao comportamento visual cf Haith e Benson 1997 coloca questões metodológicas mas o importante para nossos propósitos é que todas estas são habilidades cognitivas que primatas nãohumanos possuem Como foi detalhado no Capítulo 2 primatas nãohumanos possuem aptidões no que se refere a permanência do objeto mapeamento cognitivo categorização perceptual estimativa de pequenas quantidades e giro mental de objetos provavelmente porque em termos gerais têm uma compreensão representacional de objetos no espaço do mesmo tipo da dos humanos Portanto as crianças humanas estão simplesmente exprimindo sua herança primata a única ressalva é que por nascerem num estado de tamanha imaturidade perceptual e motora levam algum tempo para fazêlo Compreender outras pessoas Não existe tanta pesquisa sobre a compreensão de outras pessoas pelos bebês É óbvio que os bebês humanos são criaturas muito sociais desde o momento em que nascem quando não antes Poucas horas depois de nascer os bebês humanos olham preferencialmente para desenhos esquemáticos de rostos humanos em comparação com outros padrões perceptuais Fantz 1963 ainda no útero parecem estar em processo de se acostumar com a voz materna Decasper e Fifer 1980 e desde muito cedo os bebês reconhecem muito claramente outras pessoas como seres animados diferentes de objetos físicos Legerstee 1991 tudo isso dentro do padrão primata geral Contudo há dois comportamentos sociais que podem sugerir que os bebês humanos não são apenas sociais como outros primatas mas antes ultrasociais Primeiro como descrito por Trevarthen 1979 e outros pouco depois de nascerem os bebês humanos entabulam protoconversas com quem cuida deles Protoconversas são interações sociais nas quais o pai e o filho concentram um no outro a atenção muitas vezes num faceaface que inclui olhar tocar e vocalizar de uma maneira que serve para expressar e compartilhar emoções básicas Além disso essas protoconversas têm uma estrutura claramente alternada Embora haja diferenças na maneira como essas interações ocorrem em diferentes culturas particularmente na natureza e quantidade do faceaface visual de uma forma ou outra parecem ser uma característica universal da interação adultocriança na espécie humana Trevarthen 1993a 1993b Keller Schölmerich e EiblEibesfeldt 1988 Alguns pesquisadores especialmente Trevarthen acham que essas interações precoces são intersubjetivas mas a meu ver elas não podem ser intersubjetivas antes que a criança entenda os outros como sujeitos da experiência o que não fará antes dos nove meses de idade ver próxima seção No entanto essas primeiras interações são profundamente sociais pelo fato de terem conteúdo emocional e estrutura alternada Em segundo lugar no contexto dessas interações sociais precoces os neonatos humanos imitam alguns movimentos corporais dos adultos sobretudo alguns movimentos da boca e da cabeça Meltzoff e Moore cf 1977 1989 verificaram que pouco depois do nascimento os bebês humanos reproduzem coisas como protrusões da língua aberturas da boca e movimentos de cabeça Embora essas ações sejam comportamentos que os bebês já sabem realizar e portanto é só a sua freqüência que aumenta na presença de um estímulo semelhante como algumas espécies de pássaros imitam as produções vocais dos adultos desde muito cedo em seu desenvolvimento Meltzoff e Moore 1994 verificaram que bebês de seis semanas conseguiam modificar um de seus comportamentos naturais protrusões da língua para tornálo semelhante ao comportamento de um adulto movendo a língua de um lado da boca para o outro com bastante empenho É possível portanto que a imitação neonatal reflita uma tendência dos bebês não só de imitar movimentos conhecidos mas em certo sentido de se identificar com coespecíficos Meltzoff e Gopnik 1993 Se isso for verdade estaria de acordo com as idéias de Stern 1985 segundo as quais imitar os estados emocionais dos adultos por meio da sintonização afetiva também reflete um profundo processo de identificação Não é certo que os primatas se envolvam em protoconversas ou mímica neonatal da mesma maneira que os humanos Na sua grande maioria mães e filhos primatas nãohumanos não se envolvem no tipo de intenso faceaface característico das mães e dos filhos ocidentais de classe média mas ainda assim mantêm contato físico constante e portanto assim como as interações de algumas mães e filhos nãoocidentais talvez reflitam protoconversas de outro tipo Existe um estudo de um único bebê chimpanzé criado por humanos que imitava a protrusão da língua de maneira muito parecida com os bebês humanos Myowa 1996 mas não existem estudos de chimpanzés imitando outros tipos de ações ou fazendo ajustes para reproduzir movimentos novos Portanto ainda não se sabe se bebês humanos muito pequenos são sociais de uma maneira que é única da espécie ou se a singularidade social humana só se revela posteriormente com nove meses de idade ou mais Seja como for não é uma hipótese absurda dizer que os bebês humanos revelam uma sintonia social particularmente poderosa com seus cuidadores logo depois do nascimento o que se reflete em sua tendência para interagir tanto de modo reciprocamente sensível em protoconversas como de modos que exigem operações de harmonização quando tentam reproduzir comportamentos adultos Compreender a si mesmo Quando os bebês interagem com seus meios físico e social também vivenciam a si mesmos de várias maneiras De particular importância é o fato de que ao direcionar comportamentos para entidades externas as crianças vivenciam seus próprios objetivos comportamentais bem como o efeito de suas ações sobre o meio na medida em que as entidades externas colaboram com suas atividades direcionadas para um objetivo ou a elas resistem o assim chamado self ecológico Neisser 1988 1995 Russell 1997 Dessa forma as crianças aprendem algo sobre suas próprias capacidades e limitações comportamentais em certas situações por exemplo quando desistem de alcançar objetos que estão longe demais ou que exigiriam um ajuste postural desestabilizador Rochat e Barry 1998 Nesse mesmo sentido quando as crianças exploram seus próprios corpos vivenciam uma correspondência entre projeto comportamental e feedback perceptual diferente de todo o resto de sua experiência Rochat e Morgan 1995 Embora haja pouquíssimas pesquisas desse tipo com primatas nãohumanos existem estudos mostrando que algumas espécies sabem o suficiente sobre suas próprias aptidões para cair fora de tarefas que excedam suas capacidades Smith e Washburn 1997 e é comum observar que primatas nãohumanos têm alguma idéia de suas próprias capacidades e limitações motoras quando percorrem o espaço em meios não totalmente conhecidos Povinelli e Cant 1996 Portanto é muito provável que o senso que os bebês humanos têm de um self ecológico seja algo que compartilhem com seus parentes primatas Existem pouquíssimas pesquisas voltadas especificamente para a compreensão que as crianças pequenas têm de si mesmas como agentes sociais em parte porque não se sabe ao certo o que um senso de self social significa nessa tenra idade A revolução dos nove meses Entre nove e doze meses de idade os bebês humanos começam a se envolver num conjunto de novos comportamentos que parecem indicar certa revolução na maneira como entendem seus mundos sobretudo seus mundos sociais Se há alguma dúvida quanto a saber se a cognição social das crianças é diferente da de outros primatas nos meses que precedem essa revolução depois dela a dúvida desaparece Aos nove meses os bebês humanos começam a realizar um semnúmero dos assim chamados comportamentos de atenção conjunta que parecem indicar uma compreensão emergente das outras pessoas como agentes intencionais iguais a si próprio cujas relações com entidades externas podem ser acompanhadas dirigidas ou compartilhadas Tomasello 1995a Nesta seção descreverei esse novo grupo de comportamentos na próxima tentarei explicar suas origens ontogenéticas e na seção final do capítulo mostrarei como eles desembocam de forma bastante natural nos processos de aprendizagem cultural que servem para lançar as crianças no mundo da cultura plexo de habilidades e interações sociais cf Moore e Dunham eds 1995 A situação prototípica nessa idade é a dos bebês pela primeira vez começarem a olhar de modo flexível e confiável para onde os adultos estão olhando acompanhamento do olhar se envolver com eles em sessões relativamente longas de interação social mediada por um objeto envolvimento conjunto usar os adultos como pontos de referência social referência social e agir sobre os objetos da maneira como os adultos estão agindo sobre eles aprendizagem por imitação Em suma é nessa idade que pela primeira vez os bebês começam a sintonizar com a atenção e o comportamento dos adultos em relação a entidades exteriores Num comportamento relacionado com o anterior por volta dessa mesma idade as crianças também começam a dirigir ativamen te a atenção e o comportamento dos adultos para entidades exteriores usando gestos deícticos como apontar para um objeto ou segurálo para mostrálo a alguém Esses comportamentos comunicativos representam a tentativa das crianças de fazer com que os adultos sintonizem com a sua atenção para alguma entidade exterior Superando ritualizações diádicas como levantar os braços como pedido para ser pego no colo parecidas em vários sentidos com as ritualizações diádicas dos chimpanzés como foi descrito no Capítulo 2 esses gestos deícticos são claramente triádicos no sentido de que indicam para um adulto alguma entidade externa Importante também é o fato de que esses primeiros gestos deícticos são tanto imperativos tentativas de fazer com que o adulto faça algo com relação a um objeto ou evento como declarativos simples tentativas de fazer o adulto prestar atenção a algum objeto ou evento Os gestos declarativos são de especial importância por que indicam de forma particularmente clara que a criança não quer apenas que algo aconteça mas realmente deseja compartilhar a atenção com um adulto É por isso que alguns teóricos entre os quais me incluo asseveram que o simples ato de apontar para um objeto para alguém com o único intuito de compartilhar a atenção dedicada a ele é um comportamento comunicativo exclusivamente humano cf Gómez Sarriá e Tamarit 1993 cuja ausência é também um importante elemento diagnóstico da síndrome do autismo infantil cf BaronCohen 1993 A partir de conclusões relativamente coerentes de muitos estudos já faz algum tempo que se sabe que todos esses vários comportamentos tanto aqueles em que a criança sintoniza com o adulto como aqueles em que tenta fazer com que o adulto sintonize com ela surgem de maneira típica entre nove e doze meses de idade Recentemente contudo Carpenter Nagell e Tomasello 1998 investigaram especificamente essa questão acompanhando o desenvolvimento sociocognitivo de vinte e quatro crianças de nove a quinze meses de idade Em intervalos mensais essas crianças eram avaliadas por meio de nove medidas diferentes de atenção conjunta envolvimento conjunto acompanhamento do olhar acompanhamento do ato de apontar imitação de atos instrumentais imitação de atos arbitrários resposta a obstáculos sociais uso de gestos imperativos e uso de gestos declarativos incluindo gestos proximais tais como mostrar e gestos distais tais como apontar Em cada caso foram usados critérios muito rígidos para garantir que as crianças estivessem de fato tentando ou acompanhar ou dirigir a atenção ou o comportamento do adulto por exemplo alternando a atenção entre o objetivo e o adulto e não apenas respondendo a um estímulo discriminativo As con conclusões mais importantes para o presente contexto foram as seguintes Individualmente consideradas cada uma das nove capacidades de atenção conjunta manifestouse na maioria das crianças entre nove e doze meses de idade Todas essas aptidões manifestaramse numa sincronia desenvolvimental semelhante em cada criança com quase 80 de crianças dominando as nove tarefas num espaço de tempo de quatro meses Intercorrelações das idades de manifestação para todas as aptidões ainda que apenas moderadas já que a manifestação quase simultânea das aptidões acarretou pouca variabilidade individual Um fato importante é que a defasagem observada no desenvolvimento de certas crianças tinha uma explicação clara já que havia uma ordem de tarefas bastante coerente para todas as crianças Vinte das vinte e quatro crianças realizaram primeiro tarefas que exigiam compartilharverificar a atenção do adulto bem próximo por exemplo simplesmente olhar para o adulto durante envolvimento conjunto depois tarefas que exigiam acompanhar a atenção que o adulto dirigia a entidades distais externas por exemplo acompanhar o olhar e por fim tarefas que exigiam direcionar a atenção do adulto para entidades externas por exemplo apontar para que um adulto olhasse para uma entidade distal A Figura 31 expõe essas três situações A explicação para essa ordem é que as tarefas de compartilharverificar exigem apenas que a criança olhe para o rosto do adulto nesse caso as crianças só tinham de saber que o adulto estava presente e prestando atenção Em contraposição as tarefas nas quais as crianças ou bem acompanhavam ou então direcionavam a atenção do adulto exigiam que a criança mirasse precisamente para o que prendia a atenção do adulto com compreensão acompanhar a atenção ou o comportamento do adulto precedendo a produção direcionar a atenção ou o comportamento do adulto É claro que saber qual a entidade externa que chama a atenção do adulto exige capacidades de atenção conjunta mais precisas do que simplesmente saber que um adulto está prestando atenção à interação como um todo Portanto a conclusão é que em praticamente todas as crianças toda a panóplia de capacidades de atenção conjunta manifestase numa sincronia desenvolvimental bastante semelhante de modo moderadamente correlacionado com um padrão de ordem altamente coerente em todas as crianças que reflete os diferentes níveis de especificidade na atenção conjunta exigida Figura 31 Três tipos principais de interação de atenção conjunta e suas respectivas idades de manifestação no estudo de Carpenter Nagell e Tomasello 1998 Aproximadamente 80 dos sujeitos nas respectivas faixas etárias As conclusões desse estudo são pois coerentes de modo geral com todo um conjunto de estudos nos quais uma ou mais dessas habilidades sociocognitivas precoces são investigadas isoladamente literatura revista em detalhes por Carpenter Nagell e Tomasello 1998 O que esse estudo demonstra com especial clareza é que a manifestação das capacidades de atenção conjunta entre nove e doze meses de idade é um fenômeno desenvolvimental coerente que exige uma explicação desenvolvimental coerente Tal idéia é reforçada pelos vários conjuntos de diferentes estudos de Gergely e colaboradores Gergely et al 1995 Csibra et al Esses pesquisadores mostraram para crianças de nove meses um pontinho numa tela movendose de uma maneira que para os adultos era claramente direcionada para um lugar específico daquela mesma tela tendo de contornar um obstáculo para chegar lá As crianças demonstraram claramente que viam os movimentos do pontinho como dirigidos a um objetivo sua habituação diminuía se ele fazia movimentos idênticos quando o obstáculo era removido tornando o desviofantasma desnecessário mas permaneciam habituados ao comportamento do pontinho por mais variáveis que fossem suas trajetórias enquanto estivesse dirigido para o mesmo objetivo O importante é que bebês de seis meses não demonstraram essa mesma sensibilidade para os objetivos dos atores Rochat Morgan e Carpenter 1997 encontraram evidências semelhantes de compreensão de ações intencionais em crianças de nove meses mas não em crianças de seis numa situação em que as crianças viam uma bola em movimento perseguindo outra na direção de um objetivo Essas conclusões envolvendo habituação e técnicas preferenciais de olhar dos bebês fornecem fortes evidências convergentes da importância dos nove meses de idade no desenvolvimento sociocognitivo das crianças empregando como medida da cognição infantil respostas comportamentais de um tipo muito diferente dos comportamentos de atenção conjunta que as crianças manifestam naturalmente temente repetir esses resultados tiveram um sucesso relativo e o que é mais importante nenhum deles interpreta os comportamentos interativos da criança como outra coisa senão análise de contingência social Rochat e Striano 1999 Nadel e TremblayLeveau 1999 Muir e Hains 1999 Além disso parece claro que bebês de cinco meses dispõem de todas as habilidades motoras necessárias para acompanhar o olhar dos outros seguem visualmente objetos em movimento e para apontar para eles estendem o braço para alcançar objetos e também o dedo indicador com bastante frequência portanto só as limitações motoras não explicam por que bebês pequenos caso sejam tão sofisticados socialmente não realizam comportamentos triádicos de atenção conjunta assim como as limitações motoras não explicam o fracasso dos bebês em estudos de tempo de permanência do olhar envolvendo ações intencionais cujas exigências comportamentais são mínimas cf Gergely et al 1995 Outros teóricos nativistas por exemplo BaronCohen 1995 acham que os bebês vêm préprogramados com vários módulos sociocognitivos independentes entre os quais um Detector da Direção do Olho um Detector de Intenção e um Mecanismo de Atenção Compartilhada Na opinião de BaronCohen cada um desses módulos tem uma cronologia desenvolvimental predeterminada que não é afetada nem pela ontogênese dos outros módulos nem pelas interações do organismo com o meio social As crianças não nascem sabendo sobre as outras pessoas mas elas tampouco têm de aprender sobre elas os módulos cognitivos apropriados simplesmente amadurecem conforme sua cronologia inelutável durante os primeiros meses de vida O problema nesse caso é que os dados simplesmente não batem com essa idéia As evidências fornecidas pelo estudo de Carpenter Nagell e Tomasello 1998 e evidências indiretas fornecidas por outros estudos mostram que as aptidões fundamentais no que a isso se refere acompanhamento do olhar compreensão de ações intencionais e envolvimento conjunto emergem numa sincronia desenvolvimental muito precisa e de modo correlacionado entre nove e doze meses de idade Esses fatos não concordam com a explicação que afirma a existência de vários módulos independentes assim como tampouco há suporte empírico para a idéia de que a manifestação dessas aptidões não exige algum tipo de interação social com outros cf também a crítica de Baldwin e Moses 1994 Outros teóricos acham que as interações triádicas dos bebês entre nove e doze meses representam seqüências comportamentais aprendidas Em particular Moore 1996 Barresi e Moore 1996 acha que os comportamentos que se manifestam entre nove e doze meses são aptidões comportamentais independentes cada uma das quais com seus próprios estímulos críticos contingências ambientais e história de aprendizagem que não dependem de sofisticadas habilidades sociocognitivas Por exemplo as crianças aprendem a acompanhar o olhar virandose talvez a princípio acidentalmente na direção dos adultos e quem sabe encontrando algo interessante para ver ali Olham para o rosto do adulto nessas interações e em outras semelhantes porque os sorrisos e estímulos do adulto também são recompensadores Para explicar a sincronia desenvolvimental e a interrelação das diferentes habilidades sociocognitivas Moore invoca a emergência de uma nova habilidade de processamento da informação que permite fixar a atenção em duas coisas simultaneamente O problema é que até onde sei dessa nova experiência de ser autor dos próprios atos emerge uma nova compreensão dos outros como resultado direto Tal abordagem pode portanto ser pensada como uma versão de um modelo de simulação de acordo com o qual em certo sentido os indivíduos entendem os outros por analogia consigo mesmos já que os outros são como eu de uma maneira que não fazem pelo menos não do mesmo jeito com objetos inanimados já que eles são bem menos como eu O vínculo entre mim e o outro Apoianose sobretudo em conclusões de pesquisas sobre imitação neonatal Meltzoff e Gopnik 1993 propõem que desde o nascimento os bebês entendem que outras pessoas são como eu embora ainda tenham muito a aprender sobre aspectos específicos ver também Gopnik e Meltzoff 1997 Mas não há no estudo deles nenhuma explicação em que essa atitude como eu desempenhe um papel essencial nos subseqüentes desenvolvimentos sociocognitivos e em particular não a vinculam especificamente à emergência dos comportamentos de atenção conjunta entre nove e doze meses de idade Com efeito enquanto adeptos de uma versão da teoria da teoria Meltzoff e Gopnik acham que os bebês acabam entendendo os outros usando o mesmo tipo de teorização protocientífica que empregam em todos os outros campos da cognição A atitude como eu não desempenha um papel efetivo nesse processo e os novos desenvolvimentos aos nove meses são apenas resultado da observação direta do comportamento dos outros e de inferências sobre ele com efeito Gopnik 1993 afirma que conhecemos os estados intencionais dos outros tão bem como conhecemos os nossos e em certos casos ainda melhor Sem discordar de Meltzoff e Gopnik minha opinião é que a compreensão precoce que os bebês têm das outras pessoas como como eu é de fato o resultado de uma adaptação biológica exclusivamente humana embora ainda não se conheça com precisão a idade exata em que ela se manifesta na ontogênese e a quantidade e os tipos de experiências pessoais necessárias na trajetória desenvolvimental típica da espécie cf Barresi e Moore 1996 Essa compreensão que de qualquer forma está presente nos primeiros meses de vida é portanto um elementochave para a possibilidade de o bebê vir a entender os outros como agentes intencionais aos nove meses de idade Ou melhor tornase um elementochave quando o outro fator indispensável entra em cena e esse outro fator explica por que nove meses é uma idade especial Esse outro fator é a nova compreensão que o bebê tem de suas próprias ações intencionais Já que os outros são como eu qualquer nova compreensão de meu próprio funcionamento leva imediatamente a uma nova compreensão do funcionamento deles simulo em maior ou menor medida o funcionamento psicológico das outras pessoas por analogia com o meu que conheço de forma mais direta e imediata Em conseqüência a hipótese específica é que quando os bebês atingem uma nova compreensão de suas próprias ações intencionais passam a usar sua atitude como eu para entender o comportamento dos outros dessa mesma maneira E há evidências que comprovam que oito ou nove meses é de fato uma idade especial para a compreensão que os bebês têm de suas próprias ações intencionais do aqueles comportamentos de atenção conjunta que exigem que a criança pequena determine precisamente o que prende a atenção do adulto ou o que ele está fazendo pois mostram uma clara compreensão da atenção do adulto Mas as crianças pequenas ainda têm muito a aprender sobre as outras pessoas e como elas funcionam Em particular veremos em capítulos posteriores que ao adquirirem suas aptidões de comunicação linguística as crianças pequenas aprendem muito sobre como acompanhar e direcionar a atenção do adulto de modo bastante preciso E é claro crianças de um ano de idade não sabem o suficiente sobre a conexão existente entre percepção e ação para intervir com eficácia no processo por exemplo dando pistas perceptuais falsas para enganar o adulto e fazer com que este realize seus desejos essa aptidão precisa de mais uns dois ou três anos de prática na interação com os outros O que aqui verificamos são os primórdios do processo A questão que então se coloca é se a emergência da atenção conjunta é de fato uma revolução na compreensão que a criança pequena tem das outras pessoas de onde ela vem Forneci algumas evidências de que desde muito cedo no desenvolvimento os bebês humanos são sociais de maneiras que outros primatas não são como se verifica por seu envolvimento em protoconversas e mímica neonatal mas isso não envolve atenção conjunta ou qualquer outra forma de compreensão dos outros como agentes intencionais Portanto a questão que se coloca é como esses desenvolvimentos sociocognitivos iniciais e posteriores se relacionam se é que se relacionam e por que culminam na compreensão dos outros como agentes intencionais precisamente aos nove meses de idade Uma explicação da revolução dos nove meses pela simulação Cientistas sociais de Vico e Dilthey a Cooley e Mead enfatizaram que nossa compreensão dos outros está assentada numa fonte especial de conhecimento que não está disponível quando tentamos entender o funcionamento de objetos inanimados ou seja a analogia com nós mesmos O pontochave teórico é que temos fontes de informação sobre nós mesmos e nossos funcionamentos que não estão disponíveis para nenhuma entidade externa seja do tipo que for Ao agir tenho à minha disposição a vivência interna de um objetivo e da luta por um objetivo bem como várias formas de propriocepção correlacionadas com exterocepção de meu comportamento quando ajo com vistas a um objetivo que servem para relacionar objetivo com meios comportamentais Na medida em que entendo uma entidade externa como sendo como eu e por isso posso atribuir a ela um tipo de funcionamento interno igual ao meu posso nessa medida obter sobre seu funcionamento um conhecimento suplementar de um tipo especial É de supor que a analogia é mais próxima e mais natural quando aplicada a outras pessoas Minha tentativa teórica é usar esse entendimento geral sobre a relação entre autocompreensão e compreensão dos outros para explicar a revolução sociocognitiva dos nove meses O argumento mais costumeiro é que ao tentarem entender os outros os bebês humanos aplicam o que já vivenciaram de si mesmos e essa vivência de si mesmo muda no começo do desenvolvimento sobretudo no que tange ao senso da autoria dos próprios atos selfagency A hipótese é que com a emergência O eu tornase intencional Nos primeiros meses de vida os bebês entendem que suas ações comportamentais conseguem resultados no meio externo mas não parecem saber como ou por que isso acontece Piaget 1952 1954 imaginou vários experimentos inteligentes nos quais as crianças produziam interessantes efeitos sobre móveis brinquedos e objetos domésticos e depois tinham a oportunidade de reproduzir esses efeitos às vezes em circunstâncias levemente modificadas que exigiam uma acomodação por parte da criança Nos primeiros seis a oito meses de vida as crianças de Piaget basicamente repetiam comportamentos que reproduzissem resultados interessantes mas faziam muito poucas acomodações às exigências das situações Por exemplo se a criança conseguia sacudir um chocalho e produzir um som e uma imagem interessantes porque sua mão estava amarrada por meio de um barbante ao chocalho suspenso a retirada do barbante não produzia nenhuma mudança de comportamento a criança fazia os mesmos movimentos do braço Piaget observou muitos outros exemplos desse pensamento mágico sobre como as ações produzem resultados no mundo externo Mas por volta dos oito meses as crianças de Piaget pareciam manifestar uma nova compreensão das relações entre ação e resultado Os novos comportamentos que evidenciavam essa nova compreensão eram a o uso de múltiplos meios comportamentais para o mesmo objetivo e b o reconhecimento e uso de intermediários comportamentais na tentativa de atingir objetivos Por exemplo quando as crianças queriam alcançar um brinquedo e Piaget colocava no meio do caminho um travesseiro como obstáculo antes dos oito meses ou bem a criança começava a interagir com o travesseiro esquecendo do brinquedo original ou então continuava concentrada no brinquedo e simplesmente se frustrava mas aos oito meses as crianças reagiam à intervenção do travesseiro parando em seguida removendo ou jogando o travesseiro para o lado e depois avançando deliberadamente para agarrar o brinquedo A atitude oposta à da remoção de obstáculos era o uso de intermediários em geral intermediários humanos para atingir os objetivos Por exemplo quando a criança queria fazer funcionar um brinquedo e não conseguia empurrava a mão do adulto na direção do brinquedo e esperava pelo resultado em muitos poucos casos tentavam usar intermediários inanimados como ferramentas mas em geral estas eram usadas alguns meses mais tarde Embora seja lícito dizer que antes dos oito meses as crianças agem intencionalmente no sentido geral de uma ação dirigida a um objetivo o uso de múltiplos meios para um mesmo fim e o uso de intermediários indicam um novo nível de funcionamento intencional Frye 1991 Um meio que tenha sido útil para alcançar um objetivo numa circunstância pode ser substituído por outro em outra circunstância a criança tem de escolher E pode chegar a acontecer que um comportamento que numa certa ocasião era um fim em si mesmo por exemplo jogar um travesseiro no chão é agora apenas um meio para atingir um fim maior pegar o brinquedo A implicação disso é que agora as crianças têm uma nova compreensão das diversas funções de meios e fins no ato comportamental Diferenciam o objetivo que perseguem dos meios comportamentais usados para atingir o objetivo de modo muito mais claro do que em suas ações sen sóriomotoras anteriores Quando a criança remove um obstáculo e avança sem hesitação na direção do objetivo é plausível supor que ela tinha antes um objetivo claro na cabeça provavelmente na forma de um ordenamento imaginado das coisas no mundo manteve esse objetivo na cabeça durante o tempo em que estava removendo o obstáculo e diferenciou claramente esse objetivo dos vários meios comportamentais entre os quais tinha de escolher para atingir o objetivo Simulando as ações intencionais dos outros Piaget 1954 supôs que inicialmente as crianças atribuem poder causal a entidades diferentes delas mesmas através de outras pessoas É muito provável que as pessoas sejam as primeiras fontes objetificadas de causalidade porque ao imitar o outro o sujeito consegue rapidamente atribuir à ação de seu modelo uma eficácia análoga à própria p 360 Essa abordagem geral também constitui a essência de minha exposição embora Piaget em seu tratamento um tanto superficial do tema não tenha feito a distinção fundamental entre compreensão dos outros como fontes de movimento e poder autônomo ou seja como seres animados e compreensão dos outros como seres que fazem escolhas comportamentais e perceptuais ou seja como seres intencionais Com efeito a meu ver os bebês humanos provavelmente entendem os outros como seres animados com capacidade de movimento autônomo bem antes dos oito ou nove meses de maneira semelhante a todos os primatas porque essa compreensão não depende de nenhum tipo de identificação consigo mesmo ou de atribuição de intencionalidade o movimento gerado autonomamente pode ser percebido diretamente e diferenciado do movimento que é produzido por agentes externos Mas compreender os outros como seres intencionais com objetivos atenção e poder de tomar decisões é algo totalmente diferente Tratase de uma distinção fundamental Consideremos as conclusões de Leslie 1984 e Woodward 1998 Bebês de cinco a seis meses de idade demonstram surpresa quando observam a mão de outras pessoas fazendo coisas que elas normalmente não fazem Nessa idade portanto as crianças parecem saber que os outros são seres animados com capacidade de movimento autônomo e que se comportam de certas maneiras Isso corresponde precisamente ao modo como os bebês entendem suas próprias ações nessa idade ou seja como procedimentos que fazem coisas acontecer ver acima Mas compreender os outros como seres animados isto é como seres que fazem coisas acontecer não é a mesma coisa que compreender os outros como agentes intencionais com um funcionamento que interrelaciona objetivo atenção e estratégia comportamental Conforme a teoria da simulação que estamos discutindo para isso são necessários desenvolvimentos que levem a criança a diferenciar objetivos de meios comportamentais em suas próprias ações sensóriomotoras É essa diferenciação que inaugura a possibilidade de compreender os outros não só como fontes de capacidade animada mas como indivíduos que têm objetivos e fazem escolhas entre as várias estratégias comportamentais e perceptuais que levam a esses objetivos Isso fornece a dimensão diretiva ou até temática da intencionalidade que inexiste quando as crianças apenas entendem que os outros têm a capacidade de fazer coisas acontecerem de maneira global Conforme essa teoria portanto os bebês humanos se identificam com outros seres humanos desde muito cedo na ontogênese e isso se baseia numa herança biológica exclusivamente humana que pode exigir ou não interações mais amplas com o meio social Enquanto as crianças apenas entendem a si mesmas como seres animados com capacidade para fazer coisas acontecerem de alguma maneira generalizada o que acontece nos primeiros sete ou oito meses de vida é também assim que elas entendem as outras pessoas Quando por volta dos oito ou nove meses começam a compreender a si mesmas como agentes intencionais no sentido de reconhecerem que têm objetivos claramente separados de meios comportamentais passam a compreender os outros dessa mesma maneira Essa compreensão também pavimenta o caminho para a compreensão das escolhas perceptuais que os outros fazem a atenção como distinta da percepção apesar de não dispormos até agora de muitos elementos para compreender esse processo Embora não devêssemos levar essa idéia muito mais longe aqui também é possível que as crianças façam algumas dessas simulações talvez de modo um tanto inapropriado com objetos inanimados e que essa seja a fonte da compreensão que elas têm de como alguns eventos físicos forçam outros a acontecer a primeira bola de bilhar empurra a segunda com o mesmo tipo de força que sinto quando eu a empurro Piaget 1954 Talvez esse tipo de simulação seja mais frágil para as crianças que a simulação das outras pessoas porque a analogia entre elas mesmas e objetos inanimados é mais frágil Devo dizer que foram feitas muitas objeções à teoria da simulação devido a um malentendido pelo menos a meu ver A teoria da simulação é muitas vezes entendida no sentido de que primeiro as crianças têm de ser capazes de conceituar seus próprios estados intencionais e só depois podem usálos para simular a perspectiva alheia E não é isso que parece ocorrer na prática as crianças não conceituam seus próprios estados mentais antes de conceituar os estados mentais dos outros Gopnik 1993 assim como não falam deles primeiro Bartsch e Wellman 1995 Mas isso não constitui problema se a simulação não for entendida como um processo explícito no qual a criança conceitua algum conteúdo mental consciente de que esse conteúdo mental lhe é próprio e depois o atribui a outra pessoa numa situação específica Minha hipótese é simplesmente que as crianças fazem o juízo categórico de que os outros são como eu e portanto também devem funcionar como eu Em nenhum momento afirmo que em situações específicas as crianças têm mais facilidade para ter acesso consciente a seus próprios estados mentais do que para discernir os possíveis estados mentais específicos de outra pessoa elas simplesmente percebem o modo geral de funcionamento do outro por meio de uma analogia consigo mesmas ao passo que sua aptidão para determinar estados mentais específicos em circunstâncias específicas depende de muitos fatores No caso mais simples a criança simplesmente vê ou imagina a disposição do outro para o objetivo que este pretende alcançar de maneira muito semelhante àquela que imagina para si mesma e então vê o comportamento da outra pessoa direcionado para o objetivo de maneira muito semelhante a como vê o próprio Chimpanzés e crianças autistas Se voltarmos agora a examinar nossos parentes primatas mais próximos poderemos concluir o seguinte Chimpanzés e alguns outros primatas nãohumanos entendem claramente algo da eficácia de suas próprias ações sobre o meio e sem dúvida se envolvem em muitos tipos de ações sensóriomotoras intencionais nas quais usam diferentes meios para atingir um mesmo fim removem obstáculos e usam intermediários tais como ferramentas Se eles não entendem os outros como agentes intencionais como a meu ver eles não fazem então não pode ser por causa desse fator Pelo contrário a razão pela qual eles não entendem os outros dessa maneira é na minha opinião o outro fator eles não se identificam com coespecíficos da mesma maneira como os humanos o fazem Embora isso seja pura especulação podese formular a hipótese de que essa também seja a fonte de sua dificuldade com problemas físicos nos quais têm de tentar entender as relações causais entre as ações de objetos inanimados eles não tentam se identificar ainda que de modo imperfeito com os objetos envolvidos Um detalhe interessante dessa história nos é fornecido por macacos aculturados que parecem adquirir certas capacidades de atenção conjunta semelhantes às humanas como apontar de modo imperativo para humanos e aprender por imitação algumas habilidades instrumentais ver Capítulo 2 Mas esses macacos ainda assim não apontam para outros ou usam seus outros sinais comunicativos de modo declarativo ou seja apenas para compartilhar a atenção e eles não se envolvem em várias outras atividades que incluem cooperação e ensino A presente hipótese é que embora esses indivíduos possam aprender algo sobre como os humanos são agentes animados eficazes em seu meio que têm de estar em contato para satisfazer praticamente todas as necessidades e os desejos não há treinamento que possa lhes dar a predisposição biológica unicamente humana de se identificar com os outros de maneira humana Se afirmamos que os seres humanos herdam biologicamente uma habilidade especial para se identificar com coespecíficos é natural que nos voltemos para indivíduos que têm algum tipo de déficit biológico nessa habilidade e estes são obviamente as crianças autistas Sabese que as crianças autistas apresentam graves problemas de atenção conjunta e de perspectiva Por exemplo apresentam uma série de déficits na habilidade de prestar atenção a objetos junto com outras pessoas Loveland e Landry 1986 Mundy Sigman e Kasari 1990 produzem muitos poucos gestos declarativos BaronCohen 1993 e quase não se envolvem em jogos simbólicos ou de fazdeconta que em muitos casos implicam assumir o papel do outro Algumas crianças autistas com bom desempenho conseguem acompanhar o olhar alheio mas crianças autistas com desempenho mais baixo praticamente não conseguem se acomodar à perspectiva perceptual alheia Loveland et al 1991 A conclusão geral de Langdell citado em BaronCohen 1988 é que as crianças autistas consideradas no seu conjunto têm dificuldade em adotar o ponto de vista de outra pessoa e Loveland 1993 as caracteriza como basicamente aculturais Atualmente não se conhece a origem dos problemas das crianças autistas existem muitas teorias contraditórias mas uma das hipóteses é que elas têm dificuldade para se identificar com outras pessoas e essa dificuldade pode assumir diversas formas dependendo de coisas tais como o momento desenvolvimental em que a doença se manifesta e sua severidade além das outras capacidades cognitivas de que o indivíduo disponha ou não para compensar os déficits Apredizagem cultural precoce A compreensão humana de coespecíficos como agentes intencionais é portanto uma habilidade cognitiva que emana tanto da identificação humana com coespecíficos que se manifesta muito cedo na infância e é exclusiva da espécie como da organização intencional de suas próprias ações sensóriomotoras compartilhada com outros primatas e que se manifesta por volta dos oito ou nove meses de idade Essas duas habilidades são biologicamente herdadas no sentido de que suas trajetórias desenvolvimentais normais ocorrem em vários ambientes diferentes dentro de um intervalo normal ambientes estes que sem dúvida incluem coespecíficos Essa forma exclusivamente humana de compreensão social tem vários efeitos profundos sobre a maneira como as crianças humanas interagem com os adultos e entre si Nesse contexto o mais importante desses efeitos é que ela inscreve a criança nas formas exclusivamente humanas de herança cultural Crianças que entendem que os outros têm relações intencionais com o mundo semelhantes a suas próprias relações intencionais com o mundo podem tentar tirar vantagem do modo como outros indivíduos imaginaram atingir seus objetivos Nesse sentido as crianças também são capazes de sintonizar com a dimensão intencional dos artefatos que as pessoas criaram para mediar suas estratégias comportamentais e de atenção em situações específicas voltadas para determinados objetivos O que se afirma portanto é que apesar do rico meio cultural em que as crianças nascem se não entenderem os outros como agentes intencionais como é típico dos bebês humanos antes dos nove meses de idade dos primatas nãohumanos e da maioria das pessoas com autismo elas não serão capazes de tirar vantagem das habilidades cognitivas e do conhecimento dos coespecíficos que se manifestam nesse meio cultural A partir do momento em que os bebês começam a aprender culturalmente dos outros esse processo tem algumas consequências surpreendentes em relação a como aprendem a interagir com objetos e artefatos a como aprendem a se comunicar gestualmente com os outros e a como aprendem a pensar sobre si mesmos Cultura como nicho ontogenético Nunca devemos esquecer que os organismos herdam seu meio ambiente assim como herdam seus genomas Os peixes estão designados para funcionar na água formigas estão designadas para funcionar em formigueiros Os seres humanos estão designados para viver num certo tipo de ambiente social e sem ele os jovens não se desenvolveriam normalmente supondo que pudessem sobreviver nem social nem cognitivamente Esse tipo de ambiente social é o que chamamos de cultura e nada mais é que o nicho ontogenético típico e exclusivo da espécie para o desenvolvimento humano Gauvain 1995 Vou distinguir duas maneiras pelas quais o ambiente cultural humano cria o contexto para o desenvolvimento cognitivo das crianças enquanto habitus cognitivo e enquanto fonte de instrução ativa por parte dos adultos Em seguida vou expor como as crianças aprendem no do e por meio desse ambiente Em primeiro lugar as pessoas de um dado grupo social vivem de certa maneira preparam e comem alimentos de certa maneira têm um certo conjunto de modos de vida vão a certos lugares e fazem certas coisas Pelo fato de os bebês e de as crianças humanas serem totalmente dependentes dos adultos comem dessas maneiras vivem desses modos e acompanham os adultos quando estes vão para esses lugares e fazem essas coisas Em termos gerais podemos chamar tudo isso de habitus do desenvolvimento das crianças Bourdieu 1977 Participar das práticas normais das pessoas entre as quais ela cresce seja qual for o nível de participação e de aptidão significa que a criança vive certas experiências e não outras O habitus particular em que uma criança nasce determina o tipo de interações sociais que terá o tipo de objetos físicos que estarão à sua disposição o tipo de experiências de aprendizagem e de oportunidades que encontrará e o tipo de inferências que poderá fazer sobre o modo de vida dos que a rodeiam Portanto o habitus tem efeitos diretos sobre o desenvolvimento cognitivo quanto à matériaprima com que a criança tem de trabalhar e é fácil imaginar nem que seja em nossos pesadelos o desastre que se abateria sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças se elas fossem privadas de certas parcelas dessa matériaprima Embora o habitus de grupos de seres humanos e o habitus de grupos de chimpanzés sejam claramente diferentes é muito provável que os processos de aprendizagem e inferência individual que afetam o desenvolvimento cognitivo de ambas as espécies em seus modos de vida sejam semelhantes em vários sentidos Jovens chimpanzés também comem o que suas mães comem vão para onde suas mães vão e dormem onde suas mães dormem Contudo afora isso os adultos humanos assumem um papel mais ativo intervencionista no desenvolvimento de seus filhos do que outros primatas e animais Ainda que no tocante a muitas aptidões culturais os adultos adotem uma atitude de laissezfaire e a extensão disso difere de modo significativo de uma cultura para outra em todas as sociedades humanas há algumas coisas que os adultos sentem que devem ajudar as crianças a aprender Em alguns casos fornecem mera assistência que conforme Wood Bruner e Ross 1976 pode ser chamada de andaimaria Os adultos ficam olhando as crianças lutarem para dominar certa habilidade fazem várias coisas para tornar a tarefa mais simples ou chamar a atenção da criança para certos aspectoschave da tarefa ou eles mesmos fazem uma parte da tarefa para que a criança não fique assoberbada por um excesso de variáveis Em algumas culturas esse tipo de formato educativo simplesmente adota a forma do adulto mandando a criança sentar e olhar enquanto ele tece um tapete prepara a refeição ou trabalha um jardim Greenfield e Lave 1982 Mas em todas as sociedades humanas considerase que algumas tarefas ou parcelas de conhecimento são tão importantes que os adultos têm de ensinálas diretamente aos jovens Kruger e Tomasello 1996 Estas variam de atividades de sustento extremamente importantes até a memorização dos ancestrais da família ou de rituais religiosos O ponto principal é que tanto na andaimaria quanto na instrução direta o adulto se interessa pela aquisição por parte da criança de uma habilidade ou parcela de conhecimento e em mui Atenção conjunta e cognição social Existem atualmente muitas controvérsias quanto à natureza da cognição social infantil que subjaz a esses comportamentos triádicos emergentes Alguns teóricos acham que os bebês humanos têm uma cognição social semelhante à dos adultos desde o nascimento e que a emergência de comportamentos de atenção conjunta dos nove aos doze meses apenas reflete o desenvolvimento de aptidões de desempenho comportamental que permitem manifestar essa cognição em comportamentos abertos Por exemplo Trevarthen 1979 1993a afirmou que os bebês nascem com uma mente dialógica com um senso inato do outro virtual e apenas precisam adquirir as habilidades motoras necessárias para exprimir esse conhecimento em termos comportamentais Os dados que Trevarthen usa para fundamentar sua idéia são as complexas interações sociais diádicas dos bebês nos primeiros meses que ele denominou de intersubjetividade primária O que impressiona no estudo de Murray e Trevarthen 1985 é que bebês de dois meses pareciam revelar uma delicada sensibilidade para as contingências de interações sociais com outros que ele interpreta como evidência de que o bebê entende a subjetividade do outro Contudo vários pesquisadores que tentaram recen
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Michael Tomasello Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano Tradução CLAUDIA BERLINER Martins Fontes São Paulo 2003 Michael Tomasello é codiretor do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig Alemanha É autor de First Verbs e coautor de Primate Cognition Suas pesquisas enfocam principalmente crianças de 1 a 4 anos e primatas Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título THE CULTURAL ORIGINS OF HUMAN COGNITION por Harvard University Press Copyright 1999 by Michael Tomasello Copyright 2003 Livraria Martins Fontes Editora Ltda São Paulo para a presente edição 1ª edição fevereiro de 2003 Tradução CLAUDIA BERLINER Preparação do original Lucia Aparecida dos Santos Revisão gráfica Maria Regina Ribeiro Machado Célia Regina Camargo Produção gráfica Geraldo Alves PaginaçãoFotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Tomasello Michael Origens culturais da aquisição do conhecimento humano Michael Tomasello tradução Claudia Berliner São Paulo Martins Fontes 2003 Coleção tópicos Título original The cultural origins of human cognition Bibliografia ISBN 8533617313 1 Cognição e cultura 2 Cognição em crianças I Título II Série 030347 CDD153 Índices para catálogo sistemático 1 Conhecimento e cultura Psicologia 153 Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda Rua Conselheiro Ramalho 330340 01325000 São Paulo SP Brasil Tel 11 32413677 Fax 1131056867 email infomartinsfontescombr httpwwwmartinsfontescombr ÍNDICE Agradecimentos VII 1 Um enigma e uma hipótese 1 2 Herança biológica e cultural 17 3 Atenção conjunta e aprendizagem cultural 77 4 Comunicação lingüística e representação simbólica 131 5 Construções lingüísticas e cognição de eventos 187 6 Discurso e redescrição representacional 225 7 Cognição cultural 281 Referências bibliográficas 305 Índice analítico 331 AGRADECIMENTOS Cada ser humano só é capaz de criar artefatos culturalmente significativos se receber de outros seres humanos e de instituições sociais um montante significativo de assistência No meu caso só pude escrever este livro sejam quais forem suas falhas e por mais limitada que seja sua importância cultural porque recebi assistência direta das seguintes pessoas e instituições e obviamente assistência indireta de todas as outras pessoas que nos últimos 2500 anos da civilização ocidental ensinaram e escreveram sobre os enigmas básicos da cognição humana A licença de um ano durante o qual escrevi a maior parte do livro foi custeada pela Fundação Guggenheim pela Emory University dr Steven Sanderson deão do Emory College e pela Max Planck Gesellschaft Minhas pesquisas empíricas na última década ou mais foram patrocinadas pela Spencer Foundation pela National Science Foundation Departamento de Comportamento Animal e pelo National Institute of Child Health and Human Development Gostaria de expressar minha mais profunda gratidão a todas essas pessoas e instituições Espero que elas sintam ter feito um bom emprego de seu dinheiro Tirei imenso proveito de discussões sobre muitos dos temas deste livro com vários amigos e colegas De especial importância foram as discussões que tive com Philippe Rochat Josep Call Malinda Carpenter Nameera Akhtar Gina ContiRamsden Elena Lieven Trícia Striano Holger Diessel Nancy Budwig e Ann Kruger Todas essas pessoas também leram partes do manuscrito ou todo ele e fizeram comentários extremamente úteis Agradeço também a Michael Cole e Katherine Nelson que revisaram o manuscrito para a Harvard University Press e cujas observações também foram muito proveitosas e oportunas Finalmente gostaria de agradecer a Katharina Haberl e Anke Förster seu apoio editorial na frente doméstica em Leipzig e a Elizabeth Knoll e Camille Smith seu apoio editorial na Harvard University Press 1 UM ENIGMA E UMA HIPÓTESE Todas as maiores realizações da mente vão muito além do poder de um indivíduo só CHARLES SANDERS PEIRCE Em algum lugar da África há uns 6 milhões de anos num evento evolucionário rotineiro uma população de grandes macacos tornouse isolada quanto à reprodução de seus coespecíficos Esse novo grupo evoluiu e dividiuse em outros grupos levando ao surgimento de várias espécies diferentes de macacos bípedes do gênero Australopithecus Todas essas novas espécies acabaram morrendo exceto uma que sobreviveu até cerca de 2 milhões de anos atrás época em que já tinha mudado tanto que precisava não só de uma nova designação de espécie mas de uma nova designação de gênero Homo Comparado com seus ancestrais australopitecos que tinham 120 m de altura cérebros do tamanho do cérebro do macaco e não dispunham de ferramentas de pedra o Homo era fisicamente maior tinha um cérebro maior e fazia ferramentas de pedra Não demorou muito para que o Homo começasse a viajar pelo mundo afora embora em nenhuma de suas incursões para fora da África tenha conseguido estabelecer populações que sobrevivessem de modo permanente Então ainda em algum canto da África há cerca de 200 mil anos uma população de Homo deu início a uma nova e diferente trajetória evolucionária Começou a viver na África de uma maneira nova e depois se espalhou pelo mundo sobrepondose a todas as outras populações de Homo e deixando descendentes hoje conhecidos como Homo sapiens ver Figura 11 Os indivíduos dessa nova espécie tinham uma certa quantidade de características físicas inéditas dentre as quais cérebros um pouco maiores mas o mais notável foram as novas habilidades cognitivas e os produtos que eles criaram Começaram a produzir uma pletora de novas ferramentas de pedra adaptadas a fins específicos sendo que cada população da espécie criou sua própria indústria no uso de ferramentas a ponto de algumas populacoes criarem coisas como processos computadorizados de manufatura Começaram a usar símbolos para se comunicar e para estruturar sua vida social incluindo não só símbolos linguísticos mas também símbolos artísticos na forma de pedras talhadas e pintura de cavernas a ponto de algumas populações criarem coisas como linguagem escrita dinheiro notação matemática e arte Inauguraram novos tipos de práticas e organizações sociais do enterro cerimonioso dos mortos à domesticação de plantas e animais a ponto de algumas populações criarem coisas como instituições religiosas governamentais educacionais e comerciais formalizadas O enigma básico é este Os 6 milhões de anos que separam os seres humanos de outros grandes macacos é um tempo muito curto do ponto de vista da evolução sendo que os humanos e os chimpanzés têm em comum algo em torno de 99 de seu material genético o mesmo grau de parentesco de outros gêneros irmãos como leões e tigres cavalos e zebras e ratazanas e camundongos King e Wilson 1975 Nosso problema é portanto um problema de tempo O fato é que simplesmente não houve tempo suficiente para que os processos normais de evolução biológica que envolvem variação genética e seleção natural criassem uma por uma todas as habilidades cognitivas necessárias para que os humanos modernos inventassem e conservassem complexas aptidões e tecnologias no uso de ferramentas complexas formas de comunicação e representação simbólica e complexas organizações e instituições sociais E o enigma só aumentará se levarmos a sério as pesquisas atuais em paleoantropologia segundo as quais a foi apenas nos últimos 2 milhões de anos que a linhagem humana deixou de apresentar apenas habilidades cognitivas típicas de grandes macacos e b os primeiros sinais contundentes de habilidades cognitivas únicas da espécie surgiram apenas no último quarto de milhão de anos com o moderno Homo sapiens Foley e Lahr 1997 Klein 1989 Stringer e McKie 1996 Há uma única solução possível para esse enigma Ou seja há um único mecanismo biológico conhecido que poderia ocasionar esse tipo de mudanças no comportamento e na cognição em tão pouco tempo quer pensemos esse tempo em termos de 6 milhões 2 milhões ou um quarto de milhão de anos Esse mecanismo biológico é a transmissão social ou cultural que funciona em escalas de tempo de magnitudes bem mais rápidas do que as da evolução orgânica Em termos gerais a transmissão cultural é um processo evolucionário razoavelmente comum que permite que cada organismo poupe muito tempo e esforço para não falar de riscos na exploração do conhecimento e das habilidades já existentes dos coespecíficos A transmissão cultural inclui coisas como um filhote de passarinho imitar o canto típico da espécie cantado por seus pais filhotes de rato comerem apenas os alimentos comidos por suas mães formigas localizarem comida seguindo os rastros de feromônio dos coespecíficos jovens chimpanzés aprenderem as práticas de uso de ferramentas dos adultos com que convivem e crianças humanas adquirirem as convenções linguísticas dos outros membros de seu grupo social Mundinger 1980 Heyes e Galef 1996 Contudo a despeito do fato de todos esses processos poderem ser agrupados sob a rubrica geral de transmissão cultural os mecanismos comportamentais e cognitivos precisos implicados nos diferentes casos são vários e diversos incluindo tudo desde os pais provocarem padrões fixos de ação em seus rebentos até a transmissão de habilidades por aprendizagem por imitação e educação o que sugere a possibilidade de subtipos significativos de processos de transmissão cultural Tomasello 1990 1994 Uma hipótese razoável seria portanto que o incrível conjunto de habilidades cognitivas e de produtos manifestado pelos homens modernos é o resultado de algum tipo de modo ou modos de transmissão cultural únicos da espécie Existem evidências irrefutáveis de que os seres humanos têm de fato modos de transmissão cultural únicos da espécie Um fato ainda mais importante é que as tradições e os artefatos culturais dos seres humanos acumulam modificações ao longo do tempo de uma maneira que não ocorre nas outras espécies animais é a chamada evolução cultural cumulativa Basicamente nenhum dos mais complexos artefatos ou práticas sociais humanos incluindo fabricação de ferramentas comunicação simbólica e instituições sociais foi inventado num único momento ao mesmo tempo e de uma vez por todas por algum indivíduo ou grupo de indivíduos Pelo contrário o que aconteceu foi que algum indivíduo ou grupo de indivíduos primeiro inventou uma versão primitiva do artefato ou prática e depois um usuário ou usuários posteriores fizeram uma modificação um aperfeiçoamento que outros então talvez adotaram sem nenhuma alteração por muitas gerações até que algum outro indivíduo ou grupo de indivíduos fez outra modificação que então foi aprendida e usada por outros e assim por diante ao longo do tempo histórico de acordo com o que às vezes é denominado efeito catraca Tomasello Kruger e Ratner 1993 O processo de evolução cultural cumulativa exige não só invenção criativa mas também e de modo igualmente importante transmissão social confiável que possa funcionar como uma catraca para impedir o resvalo para trás de maneira que o recéminventado artefato ou prática preserve sua forma nova e melhorada de modo bastante fiel pelo menos até que surja uma outra modificação ou melhoria Talvez cause surpresa saber que para muitas espécies animais o feito dificultoso não é o componente criativo e sim o componente estabilizador da catraca Por isso muitos primatas nãohumanos produzem regularmente inovações e novidades comportamentais inteligentes mas seus companheiros de grupo não participam do tipo de aprendizagem social que possibilitaria à catraca cultural fazer seu trabalho no transcurso do tempo Kummer e Goodall 1985 Portanto o fato básico é que seres humanos são capazes de combinar seus recursos cognitivos de maneiras 7 diferentes das de outras espécies animais Nesse sentido Tomasello Kruger e Ratner 1993 distinguiram a aprendizagem cultural humana de formas mais difundidas de aprendizagem social identificando três tipos básicos aprendizagem por imitação aprendizagem por instrução e aprendizagem por colaboração Esses três tipos de aprendizagem cultural tornamse possíveis devido a uma única e muito especial forma de cognição social qual seja a capacidade de cada organismo compreender os coespecíficos como seres iguais a ele com vidas mentais e intencionais iguais às dele Essa compreensão permite aos indivíduos imaginaremse na pele mental de outra pessoa de modo que não só aprendem do outro mas através do outro Essa compreensão dos outros como seres tão intencionais como simesmo é crucial na aprendizagem cultural humana porque os artefatos culturais e a prática social prototipicamente exemplificados pelo uso de ferramentas e de símbolos linguísticos apontam invariavelmente para além deles mesmos para outras entidades externas ferramentas apontam para os problemas que elas foram feitas para resolver e símbolos linguísticos apontam para as situações comunicativas que eles se destinam a representar Portanto para aprender socialmente o uso convencional de uma ferramenta ou de um símbolo as crianças têm de chegar a entender por que para que fim exterior a outra pessoa está usando a ferramenta ou o símbolo ou seja têm de chegar a entender o significado intencional do uso da ferramenta ou prática simbólica para que serve o que nós os usuários dessa ferramenta ou desse símbolo fazemos com ela ou ele Processos de aprendizagem cultural são formas especialmente poderosas de aprendizagem social porque constituem a formas especialmente confiáveis de trans 8 missão cultural criando uma catraca cultural particularmente poderosa e b formas especialmente poderosas de criatividade e inventividade sociocolaborativa ou seja processos de sociogênese nos quais vários indivíduos criam algo juntos algo que nenhum indivíduo poderia ter criado sozinho Esse poder especial originase diretamente do fato de que quando um ser humano está aprendendo através de outro ele se identifica com esse outro e com seus estados intencionais e às vezes mentais Apesar de haver algumas observações que sugerem que alguns primatas nãohumanos são em determinadas situações capazes de compreender coespecíficos como agentes intencionais e de aprender a partir deles de uma maneira que lembra algumas formas de aprendizagem cultural humana o peso esmagador das evidências empíricas sugere que apenas os seres humanos compreendem os coespecíficos como agentes intencionais iguais a eles mesmos e portanto apenas os seres humanos envolvemse numa aprendizagem cultural Tomasello 1996b 1998 Tomasello e Call 1997 ver Capítulo 2 Em relação a isso vale notar também que na ontogênese humana existe uma síndrome muito específica decorrente de causas biológicas o autismo na qual os indivíduos mais gravemente afetados são incapazes tanto de compreender as outras pessoas como agentes mentaisintencionais iguais a eles mesmos como também de se envolver em habilidades de aprendizagem cultural típicas da espécie Hobson 1993 BaronCohen 1993 Sigman e Capps 1997 Carpenter e Tomasello A sequência completa dos hipotéticos acontecimentos evolutivos é a seguinte seres humanos desenvolveram uma nova forma de cognição social que favoreceu algumas novas maneiras de aprendizagem cultural que 9 favoreceram alguns novos processos de sociogênese e evolução cultural cumulativa Esse resumo resolve nosso problema do tempo porque postula uma e só uma adaptação biológica que poderia ter acontecido em qualquer momento da evolução humana até mesmo muito recentemente Os processos culturais que essa adaptação desencadeou não criaram novas habilidades cognitivas do nada mas tomaram habilidades cognitivas individuais existentes como aquelas que a maioria dos primatas possui para lidar com espaço objetos ferramentas quantidades categorias relações sociais comunicação e aprendizagem social e as transformaram em novas habilidades cognitivas culturais com uma dimensão sociocoletiva Essas transformações ocorreram não no tempo evolucionário mas no tempo histórico em que muito pode acontecer em vários milhares de anos A evolução cultural cumulativa é portanto a explicação para muitas das mais impressionantes realizações cognitivas dos seres humanos Contudo para avaliar plenamente o papel dos processos históricoculturais na constituição da cognição humana moderna temos de olhar para o que acontece durante a ontogênese humana O mais importante é que a evolução cultural cumulativa garante que a ontogênese cognitiva humana ocorra num meio de artefatos e práticas sociais sempre novos que em qualquer tempo representam algo que reúne toda a sabedoria coletiva de todo o grupo social ao longo de toda a sua história cultural As crianças são capazes de participar plenamente dessa coletividade cognitiva a partir de mais ou menos os nove meses de idade quando pela primeira vez começam a fazer tentativas de compartilhar a atenção e de aprender imitativamente de e através de seus coespecíficos ver Capítulo 3 Essas ativa 10 des de atenção conjunta que assim principiam representam nada mais que o surgimento ontogenético da adaptação sociocognitiva única dos seres humanos para se identificar com outras pessoas e dessa forma compreendêlas como agentes intencionais iguais a eles mesmos Essa nova compreensão e essas novas atividades formam pois a base dos primórdios da entrada das crianças no mundo da cultura O resultado disso é que cada criança que compreende seus coespecíficos como seres mentaisintencionais iguais a ela mesma ou seja cada criança que possui a chave sociocognitiva dos produtos cognitivos historicamente constituídos de seu grupo social pode agora participar da coletividade conhecida como cognição humana e podese dizer como Isaac Newton que ela vê tão longe porque está de pé sobre os ombros de gigantes Devemos contrastar essa situação típica da espécie com crianças autistas que crescem no meio de produtos culturais cumulativos mas não são capazes de tirar vantagem da sabedoria coletiva expressa neles porque por razões biológicas não possuem as habilidades sociocognitivas necessárias e uma criança selvagem imaginária que crescesse numa ilha deserta com um cérebro um corpo e órgãos dos sentidos normais mas sem nenhum acesso a ferramentas outros artefatos materiais linguagem símbolos gráficos escrita algarismos arábicos desenhos pessoas para lhe ensinarem coisas pessoas cujo comportamento pudesse observar e imitar ou pessoas com quem pudesse colaborar 11 A criança autista disporia de ombros cognitivos para subir se pudesse fazêlo ao passo que para a criança selvagem imaginária esses ombros não existem Em ambos os casos o resultado é ou poderia ser o mesmo algo diferente das habilidades cognitivas típicas da espécie Mas crescer num mundo cultural tem implicações cognitivas que vão até mesmo além disso Crescer num mundo cultural apossandose da chave sociocognitiva que dá acesso a esse mundo na verdade serve para criar certas formas únicas de representação cognitiva Nesse processo o mais importante é que as crianças humanas usam suas habilidades de aprendizagem cultural para adquirir símbolos linguísticos e outros símbolos comunicativos Os símbolos linguísticos são artefatos simbólicos particularmente importantes para crianças em desenvolvimento porque neles estão incorporados os meios pelos quais as gerações anteriores de seres humanos de um grupo social consideraram proveitoso categorizar e interpretar o mundo para fins de comunicação interpessoal Por exemplo em diferentes situações comunicativas um mesmo objeto pode ser interpretado como um cão um animal um bichinho de estimação ou uma peste um mesmo acontecimento pode ser interpretado como correr moverse fugir ou sobreviver um mesmo lugar pode ser interpretado como a costa o litoral a praia ou a areia dependendo dos objetivos comunicativos do falante À medida que a criança vai dominando os símbolos linguísticos de sua cultura ela adquire a capacidade de adotar simultaneamente múltiplos pontos de vista sobre uma mesma situação perceptual Enquanto representações cognitivas perspectivadas os símbolos linguísticos baseiamse não no registro de experiências sensoriais ou motoras diretas como é o caso das representa oções cognitivas de outras espécies animais e dos bebês humanos mas nas várias maneiras como os indivíduos escolhem interpretar as coisas a partir de uma quantidade de outras maneiras como as poderiam ter interpretado e que estão incorporadas nos outros símbolos linguísticos disponíveis que poderiam ter escolhido mas não escolheram Portanto os símbolos linguísticos libertam a cognição humana da situação perceptual imediata não só porque permitem referirse a coisas exteriores a essa situação deslocamento Hockett 1960 mas sobretudo por permitirem várias representações simultâneas de cada uma e na verdade de todas as situações perceptuais possíveis Mais tarde quando as crianças se tornam mais hábeis em sua língua materna abremse novas possibilidades de interpretar coisas de diferentes maneiras Por exemplo as línguas naturais contêm recursos cognitivos para dividir o mundo em coisas tais como eventos e seus participantes que podem desempenhar muitos e variados papéis nesses eventos e para formar categorias abstratas de tipos de eventos e de participantes Além disso as línguas naturais também contêm recursos cognitivos para interpretar eventos ou situações como um todo em termos comparativos isto é para criar os vários tipos de analogias e metáforas tão importantes para a cognição adulta ver por exemplo um átomo como um sistema solar o amor como uma jornada ou a raiva como calor Lakoff 1987 Gentner e Markman 1997 ver Capítulo 5 Ademais o aperfeiçoamento das habilidades de comunicação linguística das crianças dá a elas a possibilidade de participar de interações discursivas complexas nas quais os pontos de vista explicitamente simbolizados dos interagentes se chocam e por isso têm de ser negociados e resolvidos Esses tipos de interações podem levar as crianças a começar a construir algo como uma teoria da mente de seus parceiros de comunicação e em alguns casos especiais de discurso pedagógico internalizar as instruções do adulto e começar assim a se autoregular e refletir sobre seu próprio pensar conduzindo talvez a certos tipos de metacognição e redescisão representacional KarmiloffSmith 1992 A internalização de interações discursivas que contenham vários pontos de vista conflitousos pode até ser identificada com certos tipos de processos de pensamento dialógicos exclusivamente humanos Vigotski 1978 Neste livro sumariado nas páginas precedentes tento detalhar essas linhas gerais de argumentação Ou seja minha hipótese é que a cognição humana tem as qualidades únicas da espécie que tem porque Filogeneticamente os seres humanos modernos desenvolveram a capacidade de identificarse com seus coespecíficos o que levou a uma compreensão destes como seres mentais e intencionais iguais a eles mesmos Historicamente isso favoreceu novas formas de aprendizagem cultural e sociogênese que levou a artefatos culturais e tradições comportamentais que acumularam modificações ao longo do tempo histórico Ontogeneticamente as crianças humanas crescem no meio desses artefatos e tradições social e historicamente constituídos o que faculta a elas a beneficiarse do conhecimento e das habilidades acumuladas de seus grupos sociais b adquirir e usar representações cognitivas perspectivas na forma de símbolos linguísticos e analogias e metáfo ras construídas a partir desses símbolos e c internalizar certos tipos de interações discursivas o que promove a capacidade de metacognição redescisição representacional e pensamento dialógico Gostaria de ressaltar desde o princípio que enfoco apenas os aspectos da cognição humana exclusivos da espécie É claro que a cognição humana é constituída em grande parte por aquelas coisas que aparecem como títulos de capítulo nos manuais tradicionais de Psicologia Cognitiva percepção memória atenção categorização etc Mas esses são processos cognitivos que os seres humanos compartilham com outros primatas Tomasello e Call 1997 Tomasello 1998 Essa minha exposição apenas os pressupõe enfocando à maneira de Vigotski os processos evolucionários históricos e ontogenéticos que provavelmente transformaram essas habilidades fundamentais na versão especial da cognição dos primatas que é a cognição humana Gostaria também de ressaltar que tratarei apenas de modo breve e um tanto indireto dos processos biológicos e históricos envolvidos na evolução da cognição humana sobretudo porque os acontecimentos de interesse ocorreram num passado evolucionário e histórico muito distante e nossa informação a respeito deles é muito escassa Capítulo 2 Por outro lado discutirei mais detalhadamente a ontogênese cognitiva humana sobre a qual sabemos bastante depois de várias décadas de observação e experimentação diretas e os processos por meio dos quais as crianças humanas exploram e utilizam ativamente suas heranças biológicas e culturais Capítulos 36 Infelizmente é muito provável que no clima intelectual hoje predominante minhas colocações sejam tomadas por alguns teóricos como essencialmente genéticas a adaptação sociocognitiva característica dos homens modernos é um tipo de bala mágica que diferencia os seres humanos de outras espécies primatas Mas essa é uma concepção equivocada que basicamente ignora todo o trabalho sociocultural que tem de ser realizado por indivíduos e por grupos tanto no tempo histórico como no tempo ontogenético para criar habilidades cognitivas e produtos exclusivamente humanos De um ponto de vista histórico um quarto de milhão de anos é um tempo muito longo durante o qual muito pode ser realizado culturalmente e todos aqueles que convivem com crianças pequenas sabem quantas experiências de aprendizagem podem ocorrer no transcurso de vários anos ou até de vários dias ou várias horas de envolvimento contínuo e ativo com o meio Por isso qualquer investigação séria em cognição humana tem de incluir alguma exposição desses processos históricos e ontogenéticos possibilitados mas não determinados pela adaptação biológica dos seres humanos a uma forma especial de cognição social Com efeito meu argumento central neste livro é que são esses processos e não de modo direto adaptações biológicas especializadas os responsáveis pela criação de muitos se não de todos os produtos e processos cognitivos mais definidos e importantes da espécie Homo sapiens Nesse sentido vale a pena notar que levar esses processos a sério nos permite explicar não só o caráter universal da cognição humana única como a criação e o uso de artefatos materiais simbólicos e institucionais com histórias acumuladas mas também as singularidades de culturas particulares que por meio desses mesmos processos históricos e ontogenéticos desenvolveram para si uma variedade de habilidades cognitivas e produtos culturalmente únicos durante os últimos vários milênios de história humana significativas de aprendizagem e cognição individual o que costuma resultar em adaptações comportamentais e cognitivas mais flexíveis Adaptações comportamentaiscognitivas flexíveis intimamente sintonizadas com o ambiente local são particularmente úteis para organismos cujas populações vivem em nichos ambientais diversificados ou cujos nichos ambientais mudam relativamente rápido ao longo do tempo Bruner 1972 Em algumas espécies animais o organismo em desenvolvimento adquire individualmente informação não só de seu meio físico mas também de seu meio social ou de aspectos de seu meio físico que foram modificados de maneira significativa por seus coespecíficos Por exemplo como foi mencionado acima algumas espécies de pássaros adquirem o canto típico de sua espécie escutando o canto dos pais e alguns insetos são capazes de encontrar comida em seu primeiro dia no meio externo porque sabem instintivamente como seguir os rastros de feromônio deixados por seus coespecíficos Mundinger 1980 Heyes e Galef 1996 Em sua definição mais ampla empregada por muitos biólogos evolucionistas esse processo é chamado de transmissão cultural ou herança cultural e ele produz tradições culturais O reconhecimento recente da importância da transmissão cultural para muitas espécies animais levou à criação da Teoria da Herança Dual Dual Inheritance Theory segundo a qual os fenótipos maduros de muitas espécies dependem do que herdaram de seus antepassados tanto biológica como culturalmente Boyd e Richerson 1985 Durham 1991 É claro que os seres humanos são a espécie prototípica para a Teoria da Herança Dual já que o desenvolvimento humano normal depende de maneira crucial tanto da herança biológica como da herança cultural O que eu afirmo é que no âmbito cognitivo a herança biológica dos homens é muito parecida com a de outros primatas Há apenas uma diferença fundamental que consiste no fato de que os seres humanos se identificam com seus coespecíficos mais profundamente que outros primatas Essa identificação não é algo misterioso mas simplesmente o processo por meio do qual a criança humana entende que as outras pessoas são seres iguais a ela mesma diferentemente dos objetos inanimados por exemplo e por isso ela às vezes tenta entender as coisas do ponto de vista deles Durante os primórdios da ontogênese num processo que será destrinçado mais detalhadamente nos próximos capítulos a criança acaba percebendo a si mesma como um agente intencional ou seja um ser cujas estratégias comportamentais e de atenção são organizadas em função de metas e por isso ela automaticamente vê os outros seres com quem se identifica da mesma maneira Num momento posterior da ontogênese a criança percebe a si mesma como um agente mental ou seja um ser com pensamentos e crenças que podem diferir dos de outras pessoas bem como da realidade e portanto dali em diante ela verá os coespecíficos nesses novos termos Para efeito de minha exposição irei me referir a esses processos de forma geral como compreender os outros como agentes intencionais ou mentais iguais a si mesmo Essa única diferença cognitiva provoca muitos efeitos em cascata porque torna possíveis algumas formas novas e particularmente poderosas de herança cultural Compreender as outras pessoas como agentes intencionais iguais a si mesmo torna possíveis a processos de sociogênese por meio dos quais vários indivíduos colaboram entre si para criar artefatos e práticas culturais com histórias acumuladas e b processos de aprendizagem cultural e internalização por meio dos quais indivíduos em desenvolvimento aprendem a usar e depois internalizam aspectos dos produtos criados pela colaboração entre coespecíficos Isso significa que a maioria se não todas as habilidades cognitivas exclusivas da espécie dos seres humanos não se deve diretamente a uma herança biológica única mas resulta antes de uma variedade de processos históricos e ontogenéticos desencadeados por aquela capacidade cognitiva exclusivamente humana e biologicamente herdada Herança biológica Seres humanos são primatas Eles têm os mesmos órgãos dos sentidos básicos a mesma estrutura corporal básica e a mesma estrutura cerebral básica de todos os outros primatas Portanto caso queiramos caracterizar as bases evolucionárias da cognição humana temos de começar com os primatas em geral No que a isso se refere há duas questões de central importância a Em que a cognição dos primatas difere da de outros mamíferos e b Em que a cognição dos homens difere da de outros primatas Minhas respostas a essas duas perguntas baseiamse na pesquisa de Tomasello e Call 1997 em que se encontram análises mais detalhadas dos estudos empíricos e dos argumentos teóricos relevantes bem como um conjunto mais completo de referências Devese dizer logo de início que obviamente outras respostas a essas perguntas também são possíveis ver por exemplo Byrne 1995 para algumas idéias diferentes Cognição dos mamíferos e dos primatas Todos os mamíferos vivem basicamente no mesmo mundo sensóriomotor de objetos permanentes dispostos num espaço representacional primatas incluindo os humanos não têm aptidões especiais a esse respeito Além disso muitas espécies de mamíferos e basicamente todos os primatas também representam cognitivamente relações categoriais e quantitativas entre objetos Essas habilidades cognitivas evidenciamse por sua capacidade de fazer coisas tais como lembrar o que está onde em seus ambientes locais por exemplo que frutas estão em que árvores em que épocas fazer desvios e tomar atalhos novos ao percorrer o espaço seguir os movimentos visíveis e invisíveis de objetos isto é passar pelos testes piagetianos rigorosamente controlados de permanência do objeto alguns Fase 6 categorizar objetos com base em similaridades perceptuais compreender e portanto combinar pequenas quantidades de objetos usar a perspicácia para solucionar problemas E existem muitos indícios que sugerem que mamíferos não adquirem essas habilidades por alguma conexão behaviorista entre estímulo e resposta ou por alguma forma simples de memória mecânica mas que na verdade compreendem e representam cognitivamente espaços e objetos e categorias e quantidades de objetos de uma forma que possibilita inferências criativas e resolução perspicaz de problemas De modo similar todos os mamíferos vivem basicamente no mesmo mundo social de coespecíficos individualmente reconhecidos com suas relações verticais dominação e horizontais associativas e têm a capacidade de predizer o comportamento dos coespecíficos em muitas situações baseandose numa variedade de pistas e insights Essas habilidades cognitivas evidenciamse pela sua capacidade de fazer coisas tais como reconhecer indivíduos em seu grupo social estabelecer relações diretas com outros indivíduos baseandose em coisas tais como parentesco amizade e dominação predizer o comportamento de indivíduos baseandose em coisas tais como seu estado emocional e a direção de sua locomoção usar muitos tipos de estratégias comunicativas e sociais para vencer outros membros do grupo na disputa por recursos valiosos cooperar com coespecíficos na resolução de problemas e na formação de coligações e alianças sociais envolverse em várias formas de aprendizagem social nas quais aprendem coisas valiosas dos coespecíficos E há também muitos indícios que sugerem que individualmente os mamíferos não agem cegamente em sociedade mas na verdade compreendem e representam cognitivamente o que estão fazendo quando interagem com os outros membros do grupo dessas várias maneiras complexas Contudo há uma exceção a essa similaridade cognitiva geral entre mamíferos e ela diz respeito à compreensão por parte dos primatas de categorias relacionais que se manifestam nos terrenos físico e social No terreno social os primatas mas não os outros mamíferos têm certa compreensão das relações sociais entre terceiros que se estabelecem entre outros indivíduos por exemplo entendem as relações de parentesco e de dominação que terceiros mantêm entre si Por isso os primatas são seletivos na escolha de seus parceiros de coligações escolhendo por exemplo como aliado um indivíduo que seja dominante em relação a seu adversário potencial indicando assim sua compreensão das posições de dominação relativa daqueles dois indivíduos Também buscam retaliar ataques cometidos contra eles não apenas contra o atacante mas também em certas circunstâncias contra parentes do atacante evidenciando nesse caso uma compreensão das relações de parentesco entre terceiros Existem até alguns indícios de que os primatas entendem categorias inteiras de relações sociais entre terceiros que envolvem indivíduos diferentes por exemplo várias situações diferentes da relação mãefilho Dasser 1988a 1988b Outros mamíferos não demonstram esse tipo de compreensão Tomasello e Call 1997 Portanto a hipótese é que embora todos os mamíferos reconheçam indivíduos e estabeleçam relações com eles apenas os primatas compreendem relações sociais externas nas quais eles mesmos não estejam diretamente envolvidos No terreno físico os primatas comparados com outros mamíferos têm uma habilidade especial para lidar com categorias relacionais Por exemplo os primatas são relativamente habilidosos em tarefas nas quais têm de escolher entre um conjunto de pares de objetos quais deles mantêm entre si a mesma relação que alguma amos tra experimental por exemplo os componentes do par escolhido são idênticos entre si e não diferentes da mesma maneira que os componentes da amostra experimental Thomas 1986 O interessante contudo é que os primatas precisam de centenas às vezes de milhares de tentativas para realizar com sucesso essas tarefas o que contrasta fortemente com sua compreensão aparentemente fácil das relações sociais entre terceiros que também supõem a compreensão de categorias relacionais De acordo com a linha de raciocínio geral de Humphrey 1976 uma hipótese é que os primatas desenvolveram a capacidade de compreender categorias de relações sociais entre terceiros e que em laboratório podemos às vezes ter acesso a essa capacidade usando objetos físicos no lugar de objetos sociais se treinarmos indivíduos por um tempo suficiente Com efeito é difícil pensar em problemas específicos do mundo físico para os quais a compreensão de categorias relacionais possa ser útil de maneira direta ao passo que no mundo social existem muitos tipos de situações nas quais a compreensão de relações sociais entre terceiros e de categorias relacionais pode contribuir de modo imediato para uma ação social mais eficaz A compreensão de categorias relacionais em geral é portanto a grande habilidade que diferencia a cognição dos primatas da de outros mamíferos Essa hipótese é importante neste contexto porque a compreensão de categorias relacionais é um precursor evolucionário potencial uma espécie de meio de caminho da capacidade cognitiva exclusivamente humana de compreender as relações intencionais que os seres animados mantêm com o mundo externo e as relações causais que os objetos inanimados e os acontecimentos mantêm entre si Compreensão humana da intencionalidade e da causalidade É muito difundida a crença de que primatas nãohumanos compreendem a intencionalidade dos coespecíficos e a causalidade de objetos inanimados e de acontecimentos Não acho que eles possuam essa compreensão e para chegar a tal conclusão negativa discuti e revisei exaustivamente os dados disponíveis Tomasello 1990 1994 1996b Tomasello Kruger e Ratner 1993 Tomasello e Call 1994 1997 Contudo devese ressaltar reiteradamente se necessário que minha conclusão negativa sobre a cognição dos primatas nãohumanos é bastante específica e delimitada Primatas nãohumanos definitivamente não dispõem de uma compreensão de todos os tipos de acontecimentos físicos e sociais complexos eles possuem e usam muitos tipos de conceitos e de representações cognitivas diferenciam claramente objetos animados de inanimados e em suas interações com seu meio empregam muitas estratégias complexas e perspicazes de resolução de problemas como foi mencionado acima O que eles não fazem é ver o mundo com relação às forças intermediárias e muitas vezes ocultas às causas e aos estados intencionaismentais subjacentes tão importantes para o pensamento humano Em suma os primatas nãohumanos são seres intencionais e causais só que não entendem o mundo em termos intencionais e causais No âmbito social os dados relativos à compreensão por parte dos primatas nãohumanos da intencionalidadementalidade dos outros seres animados originamse de estudos tanto experimentais como naturalistas Primeiro Premack e Woodruff 1978 fizeram a chimpanzé Sa rah escolher figuras para completar as sequências de vídeo de ações humanas intencionais por exemplo ela tinha de escolher a figura de uma chave quando o homem no vídeo tentava sair por uma porta fechada Seu êxito na realização da tarefa levou a inferir que ela conhecia o objetivo do homem nas ações exibidas Contudo SavageRumbaugh Rumbaugh e Boysen 1978 obtiveram resultados semelhantes usando como estímulo associações simples por exemplo os macacos deles também escolheram a figura de uma chave quando lhes foi mostrada a figura de uma fechadura sem ocorrência de nenhuma ação humana Isso levanta a possibilidade de afirmar que o que Sarah fez era algo cognitivamente mais simples Premack 1986 relatou que num estudo subsequente não conseguiu treinar Sarah para que ela discriminasse vídeos de humanos envolvidos em ações intencionais de vídeos de ações nãointencionais e Povinelli et al 1998 relata achados negativos semelhantes associados aos resultados de Call e Tomasello 1998 O outro estudo experimental importante é o de Povinelli Nelson e Boysen 1990 que concluíram que os chimpanzés preferiam pedir comida de uma pessoa que presenciara sua ocultação a pedila a uma pessoa que não presenciara sua ocultação a inferência era que eles conseguiam discriminar um humano ciente de um ignorante O problema nesse caso é que os macacos desse estudo só aprenderam a fazer isso depois de inúmeras tentativas com feedback sobre seu acerto depois de cada tentativa Heyes 1993 Povinelli 1994 E esse também é o problema do estudo de Woodruff e Premack 1979 no qual chimpanzés aprenderam depois de muitas tentativas com feedback a conduzir os humanos para a caixa sem comida a fim de que eles mesmos pudessem ficar com aquela com comi da o que alguns chamam de tapeação O problema é que os chimpanzés desses estudos não pareciam vir para o experimento com um conhecimento da intencionalidade ou mentalidade dos outros mas aprenderam como se comportar para obter o que queriam no desenrolar do experimento Num estudo em que a aprendizagem durante o experimento foi eliminada Call e Tomasello 1999 concluíram que os chimpanzés não demonstraram nenhuma compreensão das falsas crenças dos outros Pelo fato de esses experimentos serem artificiais em vários sentidos outros investigadores voltaramse para o comportamento natural dos primatas nãohumanos em busca de provas positivas da compreensão da intencionalidade envolvendo sobretudo estratégias sociais que supostamente se apóiam na manipulação dos estados mentais de coespecíficos com o intuito de tapear O problema nesse caso é que quase todas as observações relatadas são anedotas que carecem de observações de controle apropriadas para excluir explicações alternativas Byrne e Whiten 1988 Mas mesmo em casos confiáveis replicáveis não fica claro o que acontece cognitivamente Por exemplo De Waal 1986 observou um chimpanzé fêmea estender a mão para um outro num aparente gesto de conciliação em várias ocasiões mas quando o outro se aproximava ela o atacava Este poderia ser um caso de tapeação de tipo humano a perpetradora queria que o outro acreditasse que ela tinha boas intenções quando na verdade não tinha Mas também se poderia pensar que a perpetradora queria que o outro se aproximasse dela para que pudesse atacálo e por isso teve um comportamento que no passado fez coespecíficos se aproximarem em outros contextos A adoção de um comportamento social num contexto novo é claramente uma es tratégia social muito inteligente e talvez perspicaz para manipular o comportamento dos outros mas não fica claro que ela pressuponha a compreensão e a manipulação dos estados mentais ou intencionais dos outros Mencionarei a seguir alguns outros comportamentos sociais que os primatas nãohumanos em seu hábitat natural não realizam alguns macacos criados em meios culturais humanos fazem alguns deles ver discussão abaixo Em seus hábitats naturais primatas nãohumanos não apontam ou gesticulam indicando objetos externos para os outros não exibem objetos para mostrálos aos outros não tentam levar os outros para certos lugares a fim de que eles observem coisas ali não oferecem ativamente objetos aos outros indivíduos estendendoos com as mãos não ensinam intencionalmente novos comportamentos a outros indivíduos Eles não fazem essas coisas a meu ver porque não entendem que o coespecífico possui estados mentais e intencionais que possam potencialmente ser afetados A hipótese mais plausível é portanto que primatas nãohumanos compreendem coespecíficos como seres animados capazes de se moverem por si sós espontaneamente com efeito esta é a base de sua compreensão social em geral e de sua compreensão das relações sociais entre terceiros em particular mas não entendem os outros como agentes intencionais tentando atingir objetivos ou agentes mentais pensando sobre o mundo Primatas nãohumanos vêem um coespecífico se deslocando na direção do alimento e podem inferir baseados em experiências passadas o que provavelmente irá acontecer em seguida podendo até fazer uso de estratégias sociais inteligentes e perspicazes para interferir no que acontecerá em seguida Mas os seres humanos vêem algo diferente Vêem um coespecífico tentando obter a comida como um objetivo e podem tentar interferir neste e em outros estados mentais e intencionais não só no comportamento No âmbito físico Visalberghi observou recentemente algumas limitações na capacidade dos primatas de se adaptar a novas tarefas de procura de alimentos nas quais seja necessária certa compreensão da causalidade A tarefa básica consiste em o sujeito usar um pau para empurrar comida para fora de um tubo transparente Numa série de tarefas as ferramentas variam sendo algumas curtas demais grossas demais ou não suficientemente rígidas para funcionar apropriadamente A idéia básica é que se um indivíduo compreende a causalidade física presente no funcionamento do pau para extrair a comida do tubo força física transferida da pessoa para o pau para a comida ele deveria ser capaz de prever pelo simples exame perceptual de uma ferramenta sem tentativa e erro se a ferramenta terá ou não efeito sobre a seqüência causal exigida Tanto macacos grandes quanto sajuscapuchinhos tiveram sucesso nessa tarefa com as novas ferramentas mas somente depois de muitas tentativas e erros Numa recente variação da tarefa essas espécies receberam um tubo transparente com uma pequena armadilha na parte inferior de um pedaço do tubo Se os sujeitos avaliassem a força causal da gravidade e a física dos orifícios e paus na movimentação de objetos deveriam aprender a evitar essa armadilha ao tentar empurrar a comida para fora através do tubo isto é deveriam sempre empurrar a comida para a extremidade em que não havia armadilha Mas nem os sajus nem os chimpanzés aprenderam a fazer isso rápido por exemplo os quatro chimpanzés submetidos à experiência comportaramse ao acaso em mais de setenta tentativas Numa última versão do experimento depois que os animais tinham aprendido por tentativa e erro a evitar a armadilha o tubo foi virado de forma que a armadilha ficasse na parte superior do tubo e não oferecesse perigo Os sujeitos de ambas as espécies os chimpanzés num estudo de Reaux 1995 continuavam empurrando o alimento afastandoo da armadilha sem entender que agora ela era inofensiva Crianças de dois ou três anos comportamse de maneira bem mais flexível e adaptada nesses problemas de tubos parecendo entender alguns dos princípios causais em jogo desde as primeiras tentativas ver Visalberghi e Limongelli 1996 para um apanhado geral A conclusão portanto é que primatas nãohumanos têm muitas habilidades cognitivas relacionadas com objetos físicos e acontecimentos incluindo a compreensão de categorias relacionais e sequências básicas de eventos antecedentesconseqüentes mas não percebem ou entendem causas subjacentes como mediadoras das relações dinâmicas entre esses objetos e eventos Por isso não demonstram o tipo de flexibilidade de comportamento e de compreensão dos princípios causais gerais característico desde uma idade muito precoce das crianças humanas quando estas tentam resolver problemas físicos Primatas nãohumanos compreendem muitas relações entre antecedentes e conseqüentes no mundo mas não parecem entender que forças causais medeiam essas relações Para resumir gostaria de explicitar muito claramente o que diferencia a cognição intencionalcausal de outros tipos de cognição Fundamentalmente essa forma de pensar exige que um indivíduo entenda as relações antecedenteconseqüente entre eventos externos sem estar diretamente envolvido neles que é algo que os primatas são evidentemente capazes de fazer Mas além disso a compreensão da intencionalidade e da causalidade exige que o indivíduo entenda as forças mediadoras nesses eventos externos que explicam por quê uma determinada seqüência antecedenteconseqüente ocorre como ocorre e essas forças mediadoras por definição não são observáveis de maneira direta Essa compreensão parece ser exclusiva dos humanos Portanto para os humanos o peso de uma pedra que cai força a tora a se lascar o objetivo de conseguir alimento força o organismo a olhar debaixo da tora E mais importante em ambos os casos pode haver outros eventos antecedentes que desemboquem no mesmo resultado sempre que a mesma força mediadora estiver presente Esse ponto é importante porque demonstra que o componente central em tudo isso não é um evento antecedente específico como na aprendizagem por associação mas a força causal ou intencional subjacente que pode ser induzida por vários eventos antecedentes diferentes É possível ver isso claramente na Figura 21 que representa uma situação causal física diferentes eventos físicos que criam uma força que causa a queda de uma fruta e uma situação causal social diferentes eventos sociais que criam um estado psicológico que causa a fuga de um indivíduo É óbvio que a maneira específica como essas forças trabalham é muito diferente na causalidade de objetos inanimados e na intencionalidade de seres anima Vento Coespecífico sobe na árvore Manipulação do próprio sujeito Galho vibra força física Fruta cai Pedra cai Predador aparece Barulho Sujeito assustado força psicológica Sujeito foge Figura 21 Representação gráfica de um evento físico alto e de um evento social baixo Em ambos os casos vários eventos antecedentes diferentes podem produzir a força que causa o evento conseqüente dos casos a compreensão intencionalcausal permite que um indivíduo preveja e controle eventos mesmo quando o antecedente usual deles não está presente isto é se houver algum outro evento que sirva para instigar a força mediadora Por exemplo um indivíduo pode criar um modo novo de distrair um rival daquilo pelo qual estão competindo por exemplo colocando comida na direção contrária ou uma ferramenta nova para gerar a força necessária para movimentar um obstáculo Inversamente se um evento ocorre numa circunstância em que a força mediadora está bloqueada por algum motivo podese prever que seu conseqüente usual não sucederá Por exemplo um indivíduo poderia bloquear o acesso visual de um rival ao objeto pelo qual competem ou poderia impedir uma pedra de rolar montanha abaixo colocando outra pedra debaixo dela A compreensão causal e intencional dos humanos tem portanto conseqüências imediatas para a ação efetiva na medida em que abre a possibilidade de encontrar modos novos de manipular ou suprimir as forças mediadoras A segunda vantagem da compreensão intencionalcausal decorre de sua poderosa função transformadora em processos de aprendizagem social Ou seja compreender o comportamento de outras pessoas como intencional eou mental torna diretamente possíveis certas formas de aprendizagem cultural e de sociogênese muito poderosas e essas formas de aprendizagem social são diretamente responsáveis pelas formas especiais de herança cultural características dos seres humanos No entanto para avaliar o alcance dessa afirmação temos de olhar de mais perto os processos de transmissão cultural característicos de nossos parentes primatas mais próximos e em seguida comparálos com o caso humano Cultura primata nãohumana Existem muitas formas diferentes de herança e de transmissão cultural que dependem dos mecanismos de aprendizagem social envolvidos Entre os mais comumente citados estão Exposição os jovens podem ser expostos a novas experiências de aprendizagem porque se encontram fisicamente perto dos coespecíficos sem aprender nada do comportamento dos coespecíficos de forma direta como quando um jovem segue sua mãe e acaba caindo na água aprendendo assim a se locomover em meio líquido Intensificação do estímulo os jovens podem ser atraídos por objetos com que outros estão interagindo e então aprender coisas sobre esses objetos por conta própria como quando um jovem chimpanzé é atraído por um pau que sua mãe descartou e a atração coloca em movimento certas experiências individuais de aprendizagem com o pau Mímica os jovens fazem especializações adaptativas por meio da reprodução do comportamento dos coespecíficos sem que haja uma apreciação de sua eficácia instrumental e sempre dentro de um campo comportamental extremamente especializado como quando alguma espécie de pássaros adquire as vocalizações típicas da espécie ou como no balbucio prélinguístico dos bebês humanos Aprendizagem por imitação os jovens na verdade reproduzem o comportamento ou a estratégia comportamental do demonstrador com vistas ao mesmo objetivo do demonstrador Com efeito para realmente explicar as diferenças de aprendizagem social entre primatas humanos e nãohumanos teremos de distinguir alguns outros processos que ficam mais claros quando contextualizados Lavagem de batatas por macacos O caso mais comumente citado de uma tradição cultural de um primata nãohumano é o da lavagem de batatas por um macaco japonês Kawamura 1959 Kawai 1965 A história é a seguinte Em 1953 observaram uma fêmea de dezoito meses de idade chamada Imo pegar pedaços de batatadoce fornecidos a ela e ao resto do bando por pesquisadores e tirar a terra deles num riacho próximo Cerca de três meses depois de ela ter começado a lavar suas batatas a mesma prática foi observada na mãe de Imo e em dois de seus companheiros e depois em suas mães Durante os dois anos seguintes sete outros macacos jovens também começaram a lavar batatas e passados três anos da primeira lavagem de batatas por Imo cerca de 40 do bando estava fazendo o mesmo O fato de terem sido os macacos mais próximos a Imo que primeiro aprenderam o comportamento e em seguida os mais próximos destes foi considerado significativo sugerindo que o meio de propagação desse comportamento era alguma forma de imitação na qual um indivíduo efetivamente copiava o comportamento de outro A interpretação dessas observações quanto à cultura e imitação apresenta contudo pelo menos dois problemas O primeiro problema é que lavar batatas é um comportamento bem menos incomum entre macacos do que se pensou originalmente Constatase que tirar terra da comida é algo que muitos macacos fazem naturalmente o que de fato foi observado nos macacos de Koshima antes do aparecimento da lavagem Portanto não surpreende que também se tenha observado a lavagem de batatas em quatro outros bandos de macacos japoneses abastecidos por humanos pouco depois das observações de Koshima Kawai 1965 incluindo pelo menos quatro indivíduos que aprenderam por conta própria Além disso em cativeiro indivíduos de outra espécie de macacos aprenderam bastante rápido por conta própria a lavar sua comida quando lhes eram fornecidos frutos sujos de terra e vasilhas de água Visalberghi e Fragaszy 1990 O segundo problema está relacionado com o padrão de disseminação do comportamento de lavagem de batatas dentro do grupo O fato é que a disseminação do comportamento foi relativamente lenta com uma média de mais de dois anos para a aquisição pelos membros do grupo que o aprenderam Galef 1992 Além disso a velocidade de disseminação não aumentou com o aumento do número de usuários Se o mecanismo de transmissão fosse a imitação seria de esperar um aumento na velocidade de propagação na medida em que há mais demonstradores disponíveis para serem observados por unidade de tempo Em contraposição se estivessem operando processos de aprendizagem individual seria de esperar uma velocidade de disseminação mais lenta e estável o que na realidade se observou O fato de os amigos e parentes de Imo terem sido os primeiros a aprender o comportamento pode deverse ao fato de que amigos e parentes costumam estar próximos uns dos outros e assim é provável que os amigos de Imo a tenham seguido até a água com mais frequência nos momentos de alimentação do que outros membros do grupo o que aumenta suas chances de descoberta individual Uso de ferramentas por chimpanzé Talvez a melhor espécie a ser examinada no presente contexto seja o parente primata mais próximo dos humanos o chimpanzé que é de longe o mais cultural dos primatas nãohumanos McGrew 1992 1998 Boesch 1996 Chimpanzés em seus hábitats naturais apresentam uma quantidade de tradições comportamentais específicas de cada população que praticamente todos os membros do grupo adquirem e que persistem ao longo das gerações incluindo coisas como escolha de alimento uso de ferramentas e expressão gestual Por uma série de razões as explicações genéticas para essas diferenças de comportamento entre populações são duvidosas por exemplo populações que vivem perto umas das outras não são mais semelhantes que populações que vivem isoladas e portanto elas costumam ser tratadas como tradições culturais dos chimpanzés ver por exemplo Wrangham et al 1994 O caso mais conhecido é o uso de ferramentas pelo chimpanzé Por exemplo chimpanzés de certas populações da África oriental capturam cupins perfurando cupinzeiros com pequenos paus finos Outras populações de chimpanzés na África ocidental no entanto simplesmente destroem os cupinzeiros com grandes paus e tentam apanhar os insetos com a mão Pesquisadores de campo como Boesch 1993 e McGrew 1992 afirmaram que práticas específicas de uso de ferramentas como essas são culturalmente transmitidas entre os indivíduos das várias comunidades Mas existe uma explicação alternativa que também é bastante plausível O fato é que os cupinzeiros da África ocidental são mais moles devido à grande quantidade de chuvas que os da África oriental A estratégia de destruir o cupinzeiro com um pau grande portanto só é possível para as populações ocidentais Logo segundo essa hipótese existiram diferenças grupais de comportamento que se parecem superficialmente com as diferenças culturais humanas mas sem a presença de qualquer tipo de aprendizagem social Nesses casos a cultura é simplesmente o resultado de aprendizagens individuais impostas pelas diferentes ecologias locais das diferentes populações por isso esse processo é chamado simplesmente de modelagem ambiental Embora a modelagem ambiental provavelmente explique em parte as diferenças grupais de comportamento de todos os primatas incluindo os humanos análises ecológicas profundas feitas por Boesch et al 1994 tornam essa explicação improvável para dar conta de todas as diferenças de comportamento entre diferentes grupos de chimpanzés Análises experimentais também confirmam que no uso de ferramentas pelos chimpanzés há mais que modelagem ambiental em operação Tomasello 1996a revisou todos os estudos experimentais sobre aprendizagem social de uso de ferramentas por chimpanzés e concluiu que esses primatas são muito capazes na aprendizagem das potencialidades dinâmicas dos objetos que eles descobrem olhando como os outros os manipulam mas não são habilidosos em aprender dos outros uma nova estratégia comportamental per se Por exemplo se uma mãe empurra um tronco e come os insetos que se encontram debaixo dele é muito provável que seu filho faça o mesmo Isso simplesmente ocorre porque o filho aprendeu pelo ato da mãe que existem insetos debaixo do tronco fato que ele desconhecia e provavelmente não teria descoberto por conta própria Mas ele não aprendeu da mãe como empurrar um tronco ou comer insetos estas são coisas que ele já sabia fazer ou poderia aprender a fazer por conta própria Portanto os jovens teriam aprendido a mesma coisa se fosse o vento e não a mãe que tivesse empurrado o tronco e exposto as formigas Chamam isso de aprendizagem por emulação porque é uma aprendizagem que focaliza os eventos ambientais envolvidos as mudanças de estado do meio provocadas pelo outro e não o comportamento ou a estratégia comportamental de um coespecífico Tomasello 1990 1996a A aprendizagem por emulação é um processo de aprendizagem muito inteligente e criativo que em certas circunstâncias é uma estratégia mais adaptativa que a aprendizagem por imitação Por exemplo Nagell Olguin e Tomasello 1993 apresentaram a chimpanzés e a crianças humanas de dois anos uma ferramenta parecida com um ancinho e um objeto fora do alcance deles Havia duas maneiras de usar a ferramenta cujo resultado era conseguir pegar o objeto Para cada espécie um grupo de sujeitos observou um demonstrador empregar um dos métodos de uso da ferramenta menos eficiente e outro grupo observou o outro método de uso da ferramenta mais eficiente O resultado obtido foi que enquanto as crianças humanas em geral copiavam o método do demonstrador em cada uma das duas condições de observação aprendizagem por imitação os chimpanzés fizeram um monte de coisas diferentes para alcançar o objeto e todas elas eram do mesmo tipo independentemente da demonstração que observaram aprendizagem por emulação O ponto interessante é que muitas crianças insistiram nessa reprodução do comportamento do adulto mesmo no caso do método menos eficiente o que nesse caso redundou em desempenhos menos eficientes que os dos chimpanzés Portanto a aprendizagem por imitação não é uma estratégia de aprendizagem superior ou mais inteligente que a aprendizagem por emulação é simplesmente uma estratégia mais social que em certas circunstâncias e para certos comportamentos tem certas vantagens Essa explicação pela aprendizagem por emulação também se aplica a outros estudos de aprendizagem social do uso de ferramentas pelos chimpanzés como os de Whiten et al 1996 e Russon e Galdikas 1993 Chimpanzés são pois muito inteligentes e criativos no uso de ferramentas e na compreensão de modificações do meio provocadas pelo uso que outros fazem de ferramentas mas não parecem entender o comportamento instrumental de coespecíficos da mesma maneira que os humanos Para os humanos o objetivo ou a intenção do demonstrador é um elemento central do que percebem e o objetivo é de fato entendido como algo separado dos vários meios comportamentais que podem ser empregados para alcançar o objetivo A capacidade do observador de separar meios de fins serve para destacar o método ou a estratégia de uso da ferramenta do demonstrador como uma entidade independente o comportamento que ele está usando é um tentativa de realizar o objetivo dada a possibilidade de existirem outros meios para realizálo Devido à ausência dessa capacidade de entender objetivos e meios comportamentais como coisas separáveis nas ações dos outros em suas observa ções os chimpanzés enfocam as mudanças de estado incluindo mudanças de posição espacial dos objetos envolvidos na demonstração e as ações do demonstrador com efeito não passam de outros movimentos físicos Os estados intencionais do demonstrador e portanto seus métodos comportamentais como entidades comportamentais distintas simplesmente não fazem parte de sua experiência Expressão gestual dos chimpanzés O outro caso bem conhecido é o da comunicação gestual dos chimpanzés Embora haja poucos estudos sistemáticos de gestos dos chimpanzés em contexto selvagem tudo indica que existam alguns comportamentos específicos de populações que podem ser chamados de culturais Goodall 1986 Tomasello 1990 Nishida 1980 Com animais em cativeiro foi feito um trabalho bem mais sistemático em que se documentaram os gestos específicos usados por indivíduos específicos ao longo do tempo possibilitando inferências sobre os processos de aprendizagem social envolvidos Numa série de estudos Tomasello e colaboradores investigaram se os jovens adquirem seus sinais gestuais por aprendizagem por imitação ou por um processo de ritualização ontogenética Tomasello et al 1985 1989 1994 1997 Na ritualização ontogenética um sinal comunicativo é criado por dois organismos cada qual modelando o comportamento do outro em situações repetidas de interação social Por exemplo um bebê pode começar a mamar indo direto para o seio da mãe talvez agarrando o braço dela ou mexendo nele no processo Em algum encontro futuro a mãe pode vir a antecipar os iminentes esforços comportamentais do bebê ao primeiro toque de seu braço tornandose assim receptiva em relação a isso levando o bebê numa próxima ocasião a abreviar ainda mais seu comportamento por um simples toque do braço enquanto espera por uma resposta o toque do braço sendo o que se chama de movimento intencional Notese que aqui nada indica que um indivíduo esteja tentando reproduzir o comportamento de outro há apenas uma interação social recíproca em encontros repetidos que acaba eventualmente resultando num sinal comunicativo Esta é provavelmente a maneira como a maioria dos bebês humanos aprende o gesto braços para cima para pedir que os adultos os peguem no colo ou seja primeiro como uma tentativa direta de subir no corpo do adulto e depois quando o adulto antecipa o desejo deles e os pega no colo como uma versão abreviada ritualizada dessa atividade de se alçar realizada com objetivos exclusivamente comunicativos Lock 1978 Todos os dados disponíveis sugerem que a ritualização ontogenética e não a aprendizagem por imitação seja responsável pela aquisição de gestos comunicativos por parte dos chimpanzés Primeiro há um certo número de sinais idiossincráticos que são usados apenas por um indivíduo ver também Goodall 1986 esses sinais não poderiam ter sido aprendidos por processos imitativos e portanto tiveram de ser inventados e ritualizados individualmente Em segundo lugar análises longitudinais mostraram por meio de comparações tanto qualitativas como quantitativas que existe uma grande variabilidade individual tanto numa mesma geração como em diferentes na expressão gestual dos chimpanzés sugerindo algo diferente da aprendizagem por imitação que ge ralmente produz homogeneidade de comportamento Também é importante ressaltar que os gestos usados em comum por muitos jovens são também usados com bastante frequência por jovens cativos criados em grupos coetâneos sem nenhuma oportunidade de observar coespecíficos mais velhos Por fim num estudo experimental Tomasello e colaboradores 1997 retiraram um indivíduo do grupo e ensinaramlhe outros sinais arbitrários por meio dos quais ele conseguia que um humano lhe desse o alimento desejado Quando foi devolvido ao grupo e usou esses mesmos gestos para que um humano lhe desse alimento não houve nenhum caso de outro indivíduo reproduzir nenhum dos novos gestos embora todos os outros indivíduos estivessem observando aquele que gesticulava e estivessem altamente motivados pelo alimento A conclusão evidente é que jovens chimpanzés adquirem a maioria se não a totalidade de seus gestos ritualizandoos individualmente entre si A explicação desse processo de aprendizagem é análoga à explicação da aprendizagem por emulação no caso do uso de ferramentas Como a aprendizagem por emulação a ritualização ontogenética não exige que os indivíduos compreendam o comportamento dos outros como sepAlternatively in meios e fins da mesma maneira como ocorre na aprendizagem por imitação Aprender imitativamente um toque do braço como uma solicitação de amamentação exigiria que um bebê observasse outro bebê usando um toque do braço e soubesse qual é o objetivo dele ou seja mamar de modo que quando tivesse o mesmo objetivo pudesse usar os mesmos meios comportamentais Ritualizar um toque do braço em contraposição exige apenas que o bebê antecipe o comportamento futuro de um coespecífico num contexto em que ele o bebê já tem o objetivo de mamar Portanto como a aprendizagem por emulação a ritualização ontogenética é um processo de aprendizagem social muito inteligente e criativo muito importante em todas as espécies sociais incluindo os humanos Mas não é um processo de aprendizagem por meio do qual os indivíduos tentam reproduzir as estratégias comportamentais dos outros Ensinar chimpanzés Portanto esses dois terrenos nos fornecem duas fontes muito diferentes de dados sobre a aprendizagem social de primatas nãohumanos No caso do uso de ferramentas é muito provável que os chimpanzés adquiram as habilidades no uso de ferramentas às quais estão expostos por um processo de aprendizagem por emulação No caso dos sinais gestuais é muito provável que adquiram seus gestos comunicativos por meio de um processo de ritualização ontogenética Tanto a aprendizagem por emulação como a ritualização ontogenética exigem aptidões de cognição e de aprendizagem social cada qual a seu modo mas nenhuma delas exige aptidões para aprendizagem por imitação em que o aprendiz a compreende tanto o objetivo do demonstrador como a estratégia que está sendo usada para atingir o objetivo e depois b de alguma maneira ajusta esse objetivo e essa estratégia aos seus próprios Com efeito a aprendizagem por emulação e a ritualização ontogenética são precisamente os tipos de aprendizagem social que se esperam de organismos muito inteligentes e rápidos para aprender mas que não vêem os outros como agentes intencionais a quem têm de se ajustar O outro processo importante presente na transmissão cultural da forma como ela é tradicionalmente definida é o ensino Embora a aprendizagem social se dê de baixo para cima já que indivíduos ignorantes ou inaptos tentam tornarse mais cultos ou aptos o ensino vem de cima para baixo já que indivíduos cultos ou aptos tentam transmitir conhecimento ou aptidões a outros O problema nesse caso é que existem muito poucos estudos sistemáticos sobre o ensino de primatas nãohumanos O estudo mais profundo é o de Boesch 1991 no qual mães e bebês chimpanzés foram observados no contexto do uso de ferramentas quebra de nozes Boesch descobriu que mães fazem um certo número de coisas que servem para facilitar as atividades dos bebês com a ferramenta e as nozes como deixar estes objetos ociosos para que o bebê possa usálos enquanto ela vai apanhar mais nozes o que ela não faria se outro adulto estivesse presente Mas a interpretação da intenção da mãe em tais casos não é nada evidente Além disso na categoria de instrução ativa em que a mãe pareceria estar tentando instruir seu filho ativamentemente Boesch observou apenas duas possíveis situações ao longo de muitos anos de observação Essas duas situações também são difíceis de interpretar no sentido de a mãe ter ou não ter o objetivo de ajudar o pequeno a aprender a usar a ferramenta Por outro lado embora haja muita variabilidade entre diferentes sociedades de uma maneira ou de outra em todas as culturas os humanos adultos instruem ativamente seus filhos de maneira regular Kruger e Tomasello 1996 Junto com a aprendizagem por imitação o processo de instrução ativa sem dúvida também é crucial para o padrão exclusivamente humano de evolução cultural zir o fim e os meios das ações novas isto é não as aprendiam imitativamente Em contraposição os chimpanzés aculturados e as crianças humanas aprenderam imitativamente as ações novas com muito mais frequência e nessa aprendizagem não diferiram uns dos outros De maneira similar alguns chimpanzés criados por humanos às vezes aprendem a apontar de uma maneira que os humanos entendem como comunicativa e até mesmo a usar algo que se parece com símbolos lingüísticos humanos através de ricas interações sociais com humanos mas sem nenhum treinamento sistemático per se SavageRumbaugh et al 1986 Esses estudos mostram que macacos criados por seres humanos num meio cultural parecido com o humano às vezes com e às vezes sem treinamento explícito podem desenvolver algumas aptidões semelhantes às humanas que eles não desenvolvem em seus hábitats naturais ou em condições de cativeiro mais típicas Ainda não se sabe quais são exatamente os fatores efetivos que produzem esses resultados mas uma hipótese plausível é que em meios culturais semelhantes aos humanos os macacos recebem uma espécie de socialização da atenção Ou seja os macacos em seus hábitats naturais não encontram ninguém que lhes aponte ou mostre coisas os ensine ou de forma geral expresse intenções no que tange à sua atenção ou outros estados intencionais Num meio cultural semelhante ao humano em contrapartida eles estão constantemente interagindo com humanos que lhes mostram coisas apontam para coisas estimulam e até reforçam a imitação e lhes ensinam aptidões especiais situações estas que envolvem um triângulo referencial entre humano macaco e alguma terceira entidade Talvez seja esta socialização no triângulo 28 referencial do tipo que a maioria das crianças humanas recebe a responsável pelas realizações cognitivas especiais desses macacos especiais Mas é importante salientar que macacos criados em meios culturais humanos nem por isso se tornam seres humanos Embora os cientistas não tenham examinado em profundidade as limitações das habilidades cognitivas dos macacos criados por humanos algumas diferenças em relação às crianças humanas aparecem de imediato Por exemplo ainda parece ser raro encontrar um macaco aculturado que simplesmente mostre algo para um companheiro humano ou macaco de modo declarativo ou que aponte para algo apenas para compartilhar a atenção para aquilo Eles não participam de prolongadas interações de atenção conjunta da mesma maneira que as crianças humanas Carpenter Tomasello e SavageRumbaugh 1995 e quando comparadas com as aptidões das crianças humanas suas aptidões para a linguagem humana são consideravelmente limitadas Tomasello 1994 Nas tarefas em que têm de cooperar com coespecíficos sem um treinamento humano específico as aptidões dos macacos para a aprendizagem colaborativa são curiosamente limitadas e quase não há nenhum comportamento de macacos aculturados se é que há algum que se poderia chamar de ensino intencional ver Call e Tomasello 1996 para apanhado geral A conclusão mais plausível portanto é que as aptidões para a aprendizagem que os chimpanzés desenvolvem no meio selvagem na ausência de interação com humanos isto é aptidões que envolvem aprendizagem individual suplementada por aprendizagem por emulação e ritualização são suficientes para criar e manter as atividades culturais típicas de sua espécie mas não são 29 suficientes para criar e manter atividades culturais semelhantes às humanas em que encontramos o efeito catraca e a evolução cultural cumulativa E talvez valha a pena notar que em seu hábitat natural e até onde se sabe jamais se observou na espécie irmã dos chimpanzés os bonobos Pan paniscus nada que se pareça com as tradições comportamentais específicas de populações dos chimpanzés o que sugere que o ancestral comum aos humanos e a essas duas espécies irmãs tampouco possuía aptidões culturais bem desenvolvidas O fato de que chimpanzés e bonobos criados desde pequenos e por muitos anos em meio cultural humano possam desenvolver certos aspectos da cognição social humana e da aprendizagem cultural demonstra de forma particularmente contundente o poder de processos culturais na ontogênese e o fato de que outras espécies animais não respondam dessa maneira demonstra as impressionantes aptidões para a aprendizagem social dos grandes macacos Mas responder a uma cultura e criar uma cultura de novo são duas coisas diferentes Evolução cultural humana Concluise pois que embora os chimpanzés evidentemente criem e mantenham tradições culturais em sentido amplo estas provavelmente se apóiam em processos de cognição social e de aprendizagem social diferentes das tradições culturais dos seres humanos Em certos casos essa diferença entre os processos não provoca nenhum diferença concreta quanto à organização social transmissão da informação ou cognição Mas em outros casos surge uma diferença crucial e esta se manifesta em processos de evolução cultural ou seja processos por meio dos quais uma tradição cultural acumula modificações ao longo do tempo Evolução cultural cumulativa e o efeito catraca Algumas tradições culturais acumulam as modificações feitas por diferentes indivíduos no transcurso do tempo de modo tal que elas se tornam mais complexas abrangendo um espectro mais amplo de funções adaptativas o que pode ser chamado de evolução cultural cumulativa ou de efeito catraca ver Figura 22 Por exemplo a maneira como os seres humanos usam objetos com função de martelo evoluiu significativamente ao longo da história humana No registro de artefatos podem ser encontradas várias ferramentas parecidas com martelos que gradualmente foram ampliando sua esfera funcional à medida que iam sendo modificadas para dar conta de novas exigências indo de simples pedras a ferramentas complexas compostas de uma pedra amarrada a um pau até os vários tipos de martelos modernos de metal ou mesmo martelos mecânicos alguns dos quais também servem para extração de pregos Basalla 1988 Embora não disponhamos de um registro tão detalhado como no caso desses artefatos provavelmente também foi isso que aconteceu com algumas convenções culturais e rituais por exemplo as línguas humanas e os rituais religiosos que também foram se tornando mais complexos ao longo do tempo à medida que iam sendo modificados para dar conta de novas necessidades comunicativas e sociais Esse processo é mais característico de algumas culturas humanas que de ou 30 tras ou de alguns tipos de atividades que de outros mas todas as culturas parecem ter pelo menos alguns artefatos produzidos pelo efeito catraca Não parece haver nenhum comportamento de outra espécie animal nem mesmo dos chimpanzés que revele uma evolução cultural cumulativa Boesch e Tomasello 1998 Tomasello e colaboradores 1993 afirmam que a evolução cultural cumulativa depende da aprendizagem por imitação e talvez da instrução ativa por parte dos adultos e não se dá por meio de formas mais fracas de aprendizagem social tais como intensificação local aprendizagem por emulação ritualização ontogenética ou qualquer forma de aprendizagem individual O argumento deles é que a evolução cultural cumulativa depende de dois processos inovação e imitação provavelmente suplementados por instrução que têm de ocorrer num processo dialético ao longo do tempo de modo que um passo do processo propicie o próximo Por isso se um chimpanzé inventar uma maneira mais eficiente de capturar cupins usando um pau de modo inovador para que mais cupins subam por ele os jovens que aprenderam a capturar cupins por emulação com esse indivíduo não poderiam reproduzir essa variante de modo preciso porque não estariam enfocando as técnicas comportamentais do inovador Usariam seu próprio método de captura para fazer com que mais cupins subissem pelo pau e todos os outros indivíduos que os observassem também usariam seus próprios métodos de maneira que a nova estratégia simplesmente desapareceria com seu inventor É essa precisamente a hipótese de Kummer e Goodall 1985 para quem muitos atos de inteligência criativa por parte de primatas nãohumanos passam despercebidos dos humanos porque não são fielmente preservados 31 GERAÇÃO 1 Artefato aprendizagem cultural das crianças GERAÇÃO 2 Artefato criação individual ou colaborativa modificação 1 aprendizagem cultural das crianças GERAÇÃO 3 Artefato modificado criação individual ou colaborativa modificação 2 aprendizagem cultural das crianças GERAÇÃO 4 Artefato modificado Figura 22 Diagrama simplificado do efeito catraca em funcionamento para produzir um artefato com modificações cumulativas tamento futuro de um coespecífico num contexto em que ele o bebê já tem o objetivo de mamar Portanto como a aprendizagem por emulação a ritualização ontogenética é um processo de aprendizagem social muito inteligente e criativo muito importante em todas as espécies sociais incluindo os humanos Mas não é um processo de aprendizagem por meio do qual os indivíduos tentam reproduzir as estratégias comportamentais dos outros Ensinar chimpanzés Portanto esses dois terrenos nos fornecem duas fontes muito diferentes de dados sobre a aprendizagem social de primatas nãohumanos No caso do uso de ferramentas é muito provável que os chimpanzés adquiram as habilidades no uso de ferramentas às quais estão expostos por um processo de aprendizagem por emulação No caso dos sinais gestuais é muito provável que adquiram seus gestos comunicativos por meio de um processo de ritualização ontogenética Tanto a aprendizagem por emulação como a ritualização ontogenética exigem aptidões de cognição e de aprendizagem social cada qual a seu modo mas nenhuma delas exige aptidões para aprendizagem por imitação em que o aprendiz a compreende tanto o objetivo do demonstrador como a estratégia que está sendo usada para atingir o objetivo e depois b de alguma maneira ajusta esse objetivo e essa estratégia aos seus próprios Com efeito a aprendizagem por emulação e a ritualização ontogenética são precisamente os tipos de aprendizagem social que se esperam de organismos muito inteligentes e rápidos para aprender mas que não vêem os outros como agentes intencionais a quem têm de se ajustar O outro processo importante presente na transmissão cultural da forma como ela é tradicionalmente definida é o ensino Embora a aprendizagem social se dê de baixo para cima já que indivíduos ignorantes ou inaptos tentam tornarse mais cultos ou aptos o ensino vem de cima para baixo já que indivíduos cultos ou aptos tentam transmitir conhecimento ou aptidões a outros O problema nesse caso é que existem muito poucos estudos sistemáticos sobre o ensino de primatas nãohumanos O estudo mais profundo é o de Boesch 1991 no qual mães e bebês chimpanzés foram observados no contexto do uso de ferramentas quebra de nozes Boesch descobriu que mães fazem um certo número de coisas que servem para facilitar as atividades dos bebês com a ferramenta e as nozes como deixar estes objetos ociosos para que o bebê possa usálos enquanto ela vai apanhar mais nozes o que ela não faria se outro adulto estivesse presente Mas a interpretação da intenção da mãe em tais casos não é nada evidente Além disso na categoria de instrução ativa em que a mãe pareceria estar tentando instruir seu filho ativamentemente Boesch observou apenas duas possíveis situações ao longo de muitos anos de observação Essas duas situações também são difíceis de interpretar no sentido de a mãe ter ou não ter o objetivo de ajudar o pequeno a aprender a usar a ferramenta Por outro lado embora haja muita variabilidade entre diferentes sociedades de uma maneira ou de outra em todas as culturas os humanos adultos instruem ativamente seus filhos de maneira regular Kruger e Tomasello 1996 Junto com a aprendizagem por imitação o processo de instrução ativa sem dúvida também é crucial para o padrão exclusivamente humano de evolução cultural Macacos aculturados Podese objetar que na literatura existe uma certa quantidade de observações muito convincentes de aprendizagem por imitação por parte de chimpanzés e de fato elas existem No entanto é interessante notar que todos os casos claros envolvem basicamente chimpanzés que tiveram um intenso contato com humanos Em muitos casos isso adotou a forma de instrução intencional incluindo a estimulação pelos humanos do comportamento e da atenção e até o reforço direto por imitação durante muitos meses por exemplo Hayes e Hayes 1952 forneceram ao seu chimpanzé Vicki vários meses de treinamento sistemático e Custance Whiten e Bard 1995 forneceram a seus dois chimpanzés quatro meses de treinamento sistemático Isso levanta a possibilidade de que aptidões de aprendizagem por imitação possam ser influenciadas ou até facilitadas por certos tipos de interação social durante a ontogênese precoce A confirmação desse ponto de vista é fornecida por um estudo de Tomasello SavageRumbaugh e Kruger 1993 Esse estudo comparou as aptidões para aprendizagem por imitação de chimpanzés cativos criados pela mãe chimpanzés aculturados criados como crianças humanas e expostos a um sistema de comunicação semelhante à linguagem e crianças humanas de dois anos de idade Mostrouse a cada sujeito vinte e quatro diferentes ações novas com objetos e o comportamento de cada sujeito em cada teste foi computado conforme reproduzisse com sucesso 1 o resultado final da ação demonstrada eou 2 os meios comportamentais usados pelo demonstrador O principal resultado foi que os chimpanzés criados pela mãe quase nunca conseguiam reprodu no grupo Por outro lado se os observadores fossem capazes de aprender por imitação poderiam adotar a nova variante estratégica para a captura de cupins de modo mais ou menos fiel Esse novo comportamento os situaria então num novo espaço cognitivo por assim dizer no qual poderiam pensar sobre a tarefa e em como resolvêla de uma maneira semelhante à do inovador colocandose na sua pele cognitiva Todos os indivíduos que assim fizessem provavelmente passariam então a ter condições de inventar outras variantes baseadas na primeira que outros adotariam fielmente ou também modificariam A metáfora da catraca nesse contexto pretende dar conta do fato de que a aprendizagem por imitação com ou sem instrução ativa propicia o tipo de transmissão fiel necessária para manter a nova variante dentro do grupo proporcionando assim uma plataforma para as futuras inovações com as próprias inovações variando em função de elas serem individuais ou sociaiscooperativas Em geral portanto podese dizer que as tradições culturais humanas distinguemse das tradições culturais dos chimpanzés bem como dos outros poucos casos de cultura observados em outras espécies de primatas precisamente pelo fato de acumularem modificações ao longo do tempo ou seja pelo fato de terem histórias culturais Acumulam modificações e têm histórias porque os processos de aprendizagem cultural que a elas subjazem são particularmente poderosos E esses processos de aprendizagem cultural são particularmente poderosos porque se baseiam na adaptação cognitiva exclusivamente humana para compreender os outros como seres intencionais iguais a si mesmo que criam formas de aprendizagem social que agem como uma catraca preservando fielmente estratégias recéminovadas no grupo social até que haja outra inovação para substituílas Devo reconhecer que as coisas talvez não sejam tão preto no branco como acabei de expor Num artigo muito interessante intitulado Por que a cultura é comum mas a evolução cultural é rara Boyd e Richerson 1996 lançam a hipótese de que os humanos e outros primatas participam dos mesmos tipos de aprendizagem social e por imitação mas que deve haver uma diferença quantitativa Assim os chimpanzés talvez tenham certas capacidades de aprendizagem por imitação mas usamnas de modo menos coerente que os humanos ou numa menor quantidade de contextos que os humanos ou talvez apenas alguns chimpanzés disponham individualmente dessas capacidades Boyd e Richerson afirmam que a raridade dos processoschave de aprendizagem social poderia tornar a evolução cultural de tipo cumulativo impossível O problema básico nesse caso seria que a catraca está muito corrediça e por exemplo ainda que um indivíduo aprendesse por imitação a inovação de outro nenhum outro conseguiria imitálo ou os indivíduos que tentassem imitálo só o fizessem de maneira muito imperfeita Portanto eles argumentam que há uma diferença quantitativa na capacidade de aprendizagem social que leva a uma diferença qualitativa nas trajetórias históricas das tradições culturais resultantes Em ambos os casos contudo quer a diferença entre a capacidade de aprendizagem social dos humanos e dos macacos seja mais qualitativa e absoluta ou mais quantitativa e relativa o efeito é que os seres humanos costumam dispor de capacidades de aprendizagem sociocognitiva e cultural para criar enquanto espécie produtos cognitivos únicos baseados na evolução cultural cumulativa A sociogênese da linguagem e da matemática O processo de evolução cultural cumulativa pode ser visto como uma forma particularmente poderosa de inventividade colaborativa ou sociogênese Nas sociedades humanas existem duas formas básicas de sociogênese nas quais algo novo é criado através da interação social de dois ou mais indivíduos em interação cooperativa e em muitos casos o novo produto não poderia ter sido inventado por nenhum dos indivíduos isoladamente A primeira forma de sociogênese é simplesmente a forma decorrente do efeito catraca descrito acima para coisas como martelos e símbolos linguísticos Um indivíduo depara com um artefato ou uma prática cultural herdados de outros numa situação nova para a qual o artefato não parece plenamente adequado Ele então avalia a maneira como se supõe que o artefato funcione a intencionalidade do inventor relaciona isso com a situação presente e então realiza uma modificação do artefato Nesse caso a colaboração não é real no sentido de dois ou mais indivíduos estarem simultaneamente presentes e colaborando mas antes virtual no sentido de que ela se dá no tempo histórico quando aquele determinado indivíduo imagina a função que o artefato supostamente tinha para os usuários anteriores e como ele tem de ser modificado para se adaptar à situação atual O segundo tipo de sociogênese é a colaboração simultânea de dois ou mais indivíduos ao tentarem resolver juntos um problema A simultaneidade não é absoluta nesses casos uma vez que o que costuma acontecer é que os indivíduos se envolvem em algum tipo de interação dialógica na qual um responde às sugestões inventivas do outro e assim por diante até que se chega a um produto que nenhum dos dois poderia ter inventado sozinho Portanto a colaboração não é virtual mas real e por isso tem certas qualidades especiais por exemplo quanto ao tipo de feedback imediato que um indivíduo possa receber para suas sugestões criativas Ambas as formas de colaboração podem ocorrer juntas é claro como quando um pequeno grupo de pessoas tenta modificar colaborativamente um artefato ou uma prática que herdaram de outros a fim de satisfazer novas exigências e na verdade essa provavelmente seja a situação típica Muitas das importantes mudanças culturais abrangentes envolvendo coisas como sistemas religiosos governamentais ou econômicos também resultam da cooperação tanto simultânea como sucessiva ao longo de várias gerações de muitas pessoas e de uma maneira que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas pretendia ou teria previsto este poderia ser um terceiro tipo de colaboração Por exemplo as economias de mercado embora se baseiem em atos intencionais individuais não são um resultado cultural que alguma pessoa tivesse imaginado ou pretendido inicialmente Esses processos em nível grupal não são bem entendidos de um ponto de vista psicológico mas sem dúvida interagem com o nível intencional de maneira interessante e significativa ver Hutchins 1995 Podese observar claramente o processo de sociogênese em dois campos cognitivos muito importantes a linguagem e a matemática Começarei pela linguagem Embora em geral todas as línguas tenham algumas características comuns em termos concretos cada uma dos milhares de línguas do mundo tem seu próprio inventário de símbolos linguísticos incluindo construções linguísticas complexas que permitem a seus usuários compartilhar simbolicamente experiências entre si Esse in ventário de símbolos e construções fundamentase em estruturas universais da cognição humana da comunicação humana e na mecânica do aparelho fonoauditivo As particularidades de cada língua provêm de diferenças entre os vários povos do mundo no que se refere ao tipo de coisas sobre as quais eles acham importante falar e às maneiras como consideram útil falar sobre elas além de vários acidentes históricos evidentemente O ponto crucial para o que aqui nos interessa é que todos os símbolos e as construções de uma dada língua não foram inventados de uma só vez e depois de inventados geralmente não permanecem idênticos por muito tempo Pelo contrário os símbolos e as construções linguísticas evoluem mudam e acumulam modificações ao longo do tempo histórico à medida que os homens os utilizam entre si ou seja através de processos de sociogênese A dimensão mais importante do processo histórico no presente contexto é a gramatação ou sintatização em que por exemplo durante a evolução palavras independentes tornamse marcadores gramaticais e estruturas discursivas soltas e organizadas de modo redundante se congelam em construções sintáticas fixas e organizadas de forma menos redundante ver Traugott e Heine 1991a 1991b Hopper e Traugott 1993 Alguns exemplos podem ajudar a esclarecer esse ponto O marcador do futuro em praticamente todas as línguas foi gramaticalizado a partir de palavras independentes que significavam coisas como volição ou movimento em direção a um objetivo Assim em inglês o verbo original era will como em I will it to happen quero que isso aconteça que se gramaticalizou em It will happen isso acontece tendo o componente volitivo sido apagado Similarmente o emprego original de go era para movimento como em Im going to the store Estou indo para a loja e isso foi gramaticalizado tornandose Im going to send it tomorrow vou mandarmandarei isso amanhã tendo o movimento sido apagado ver também come como em Come Thursday I will be 46 Venha quinta vou fazer 46 O passado perfeito do inglês com o uso de have provavelmente derivou de frases como I have a broken finger literalmente tenho um dedo quebrado ou 1 have the prisoners bound literalmente tenho os prisioneiros amarrados em que have é um verbo de posse transformandose em algo como I have broken a finger quebrei um dedo em que o significado de posse de have é apagado e agora apenas indica o aspecto perfectivo Expressões em inglês como on the top of e in the side of evoluíram para on top of e inside of e por fim para atop e inside Em algumas línguas embora não em inglês conectivos como essas preposições espaciais também podem vir a se apor a substantivos como marcadores de caso neste exemplo como possíveis marcadores de lugar Sequências discursivas soltas como He pulled the door and it opened Ele puxou a porta e ela abriu podem ser sintatizadas em He pulled the door open uma construção resultativa Sequências discursivas soltas como My boyfriend He plays piano He plays in a band Meu namorado Ele toca piano Ele toca numa banda podem transformarse em My boyfriend plays piano in a band Ou similarmente My boyfriend He rides horses He bets on them Meu namorado Ele anda a cavalo Ele aposta neles podem transformarse em My boyfriend who rides horses bets on them De modo similar se alguém exprime a crença de que Mary vai se casar com John outra pessoa pode responder com uma aquiescência Acho isso seguida da repetição da crença expressa de que Mary vai se casar com John que pode ser sintetizada na afirmação única de que Acho que Mary vai se casar com John Frases complexas também podem derivar de seqüências discursivas compostas de expressões inicialmente separadas como em I want it I buy it Eu quero isso Eu compro isso que evolui para I want to buy it A investigação sistemática dos processos de gramatização e sintatização está apenas engatinhando ver Givón 1979 1995 e com efeito a idéia de que as línguas evoluíram de formas estruturalmente mais simples para formas estruturalmente mais complexas por meio de processos de gramatização é um tanto recente nesse contexto os lingüistas costumam pensar esses processos apenas como fontes de mudanças Mas a gramatização e a sintatização são capazes de produzir importantes mudanças na estrutura lingüística em períodos relativamente curtos de tempo por exemplo a principal diversificação das línguas românicas aconteceu durante algumas centenas de anos e por isso não vejo razão pela qual também não pudessem funcionar para tornar uma língua simples sintaticamente mais complexa em alguns milhares de anos Saber exatamente como a gramatização e a sintatização se dão nas interações concretas entre seres humanos isolados e grupos de seres humanos e como esses processos se relacionam com os outros processos de sociogênese por meio dos quais a interação social humana modifica artefatos culturais é uma questão para pesquisas lingüísticas futuras Uma possível implicação dessa idéia é que os primeiros homens modernos que surgiram na África há uns 200 mil anos foram os indivíduos que primeiro começaram a se comunicar simbolicamente talvez usando algumas formas simbólicas simples análogas às usadas por crianças humanas Em seguida eles se dispersaram pelo mundo de modo que todas as línguas atuais derivam em última instância daquela única protolíngua no entanto se aquela protolíngua era muito simples nesse processo cada cultura pode ter sintetizado e gramatizado seqüências discursivas de maneiras fundamentalmente diferentes e desde muito cedo Em resposta àqueles teóricos para quem essa hipótese é forçada basta observar a escrita alfabética para encontrar uma invenção cultural que aconteceu uma única vez que guardou algumas de suas características essenciais ao mesmo tempo que adquiriu formas diferentes nas diversas culturas e isso aconteceu em apenas alguns milênios e não em muitíssimos milênios como teria sido o caso das línguas naturais O caso do outro pilar intelectual da civilização ocidental a matemática é curiosamente diferente do caso da linguagem embora apresente certa similaridade mas também algumas diferenças para com a escrita Assim como a linguagem a matemática fundamentase claramente em maneiras universalmente humanas de experimentar o mundo muitas das quais são compartilhadas com outros primatas e também em alguns processos de criação cultural e sociogênese Mas nesse caso as diver gências entre culturas são muito maiores do que no caso das línguas faladas Todas as culturas têm formas complexas de comunicação lingüística com variações de complexidade praticamente negligenciáveis mas algumas culturas dispõem de sistemas matemáticos altamente complexos praticados apenas por alguns de seus membros enquanto outras dispõem apenas de sistemas bastante simples de algarismos e contagem Saxe 1981 É por causa dessa grande variação que ninguém afirmou até hoje que a estrutura da moderna matemática complexa é um módulo inato como fizeram no caso da linguagem embora fosse logicamente possível propor de acordo com os princípios e parâmetros de Chomsky uma teoria segundo a qual certas variáveis ambientais que não estão presentes em determinadas culturas em outras possam desencadear certas estruturas matemáticas inatas Em geral não é difícil deduzir as razões que explicam as grandes diferenças culturais entre as práticas matemáticas Primeiro pessoas e culturas diferentes têm diferentes necessidades matemáticas A maioria das culturas e das pessoas precisa manter o controle sobre seus bens ou suas mercadorias para o que bastam poucas palavras que expressem números na língua natural Quando uma cultura ou uma pessoa precisam contar objetos ou medir coisas de modo mais preciso por exemplo em complexos projetos de engenharia ou coisas semelhantes surge a necessidade de uma matemática mais complexa A ciência moderna praticada por um pequeno grupo de pessoas em algumas culturas apresenta todo um conjunto de novos problemas que exigem técnicas matemáticas complexas para sua solução Mas e é essa a analogia com a escrita tal como a conhecemos atualmente a matemática complexa só se efetiva por meio do uso de certas formas de símbolos gráficos O sistema arábico de numeração em particular é muito superior aos sistemas ocidentais mais antigos quando se trata de matemática complexa por exemplo os algarismos romanos e o uso no Ocidente dos algarismos arábicos que incluem o zero e do sistema decimal em que o lugar do algarismo indica sua ordem de valor abriu novos horizontes para os cientistas e outras pessoas no que tange às operações matemáticas Danzig 1954 A história da matemática é uma área de estudos na qual um exame minucioso revelou uma miríade de maneiras complexas pelas quais indivíduos e grupos de indivíduos tomam o que recebem das gerações anteriores e fazem as modificações necessárias para lidar com novas práticas e novos problemas científicos mais eficientemente Eves 1961 Alguns historiadores da matemática detalharam alguns dos processos específicos por meio dos quais foram inventados utilizados e modificados símbolos e técnicas especificamente matemáticos cf Danzig 1954 Eves 1961 Damerow 1998 Para citar apenas um exemplo bem conhecido Descartes inventou o sistema de coordenadas cartesianas em que combinou de maneira criativa algumas das técnicas espaciais usadas em geometria com algumas técnicas mais aritméticas de outras áreas da matemática de seu tempo sendo o cálculo infinitesimal uma variação desse tema A adoção dessa técnica por outros cientistas e matemáticos ampliou o universo matemático quase imediatamente modificando a matemática ocidental para sempre De modo geral portanto a sociogênese da moderna matemática ocidental tal como é praticada por uma minoria de pessoas nessas culturas pode ser vista como função tanto das necessidades matemáticas de um determinado grupo como dos recursos culturais disponíveis Para isso é necessária e fundamental pelo menos a compreensão que os primatas têm de pequenas quantidades mas a matemática moderna sem dúvida exige bem mais que isso Minha hipótese a ser elaborada no Capítulo 6 é que apoiandose no senso básico que os primatas têm da quantidade os seres humanos usam ademais suas fantásticas capacidades de perspectivação e de interpretações alternativas de objetos e coleções de objetos concretos que têm sua base social em capacidades de perspectivação e de comunicação lingüística para construir a matemática complexa Em algumas culturas o recrutamento dessas capacidades para fins matemáticos é mais necessário que em outras No caso tanto da linguagem como da matemática portanto a estrutura do campo tal como ele se apresenta atualmente tem uma história cultural na verdade várias diferentes histórias culturais e existem processos de sociogênese que historiadores da lingüística e historiadores da matemática têm a oportunidade de estudar embora a maioria desses estudiosos não se interesse diretamente por questões de psicologia As diferenças entre ambos os casos são instrutivas Embora a complexidade adote diferentes formas nas línguas modernas a linguagem complexa é um universal entre todos os povos do mundo quer porque a invenção original de muitos dos símbolos falados que tornam a linguagem possível ocorreu antes de os humanos modernos se dispersarem em diferentes populações quer porque a capacidade de criar símbolos falados é tão natural para os humanos que todos os diversos grupos os inventaram de maneira semelhante embora não idêntica depois de se dispersarem A matemática complexa não é universal entre as culturas ou mesmo entre as pessoas das culturas que a possuem supostamente porque as necessidades culturais de matemática complexa eou a invenção dos recursos culturais necessários só surgiram depois que os povos modernos começaram a viver em diferentes populações e aparentemente essas necessidades eou recursos não estão universalmente presentes em todos os povos do mundo atual Portanto um dos principais fatos sobre a linguagem que levou alguns lingüistas a levantar a hipótese de que certas estruturas lingüísticas modernas são inatas o fato de serem universais e exclusivas da espécie ao passo que muitas matemáticas e outras habilidades cognitivas não o são cf Pinker 1994 pode simplesmente ser o resultado de caprichos da história cultural humana no sentido de por alguma razão as aptidões para a comunicação lingüística terem se desenvolvido antes de os homens modernos se dispersarem em populações isoladas O lugar em que as necessidades intelectuais se encontram diretamente com os recursos culturais é sem dúvida a ontogênese humana Com efeito sociogênese e história cultural podem ser entendidas como uma série de ontogêneses em que os membros maduros e imaturos de uma cultura aprendem a agir com eficiência ao se verem expostos a problemas e providos de recursos como por exemplo interações sociais com peritos em solução de problemas As habilidades cognitivas mais básicas necessárias para a aquisição da linguagem e a aprendizagem da matemática complexa como dois exemplos particularmente interessantes estão universalmente disponíveis para os seres humanos Mas as várias e diferentes estruturas desses dois artefatos culturais tal como se ma nifestam nas tão diferentes sociedades humanas do mundo não estão e não podem estar diretamente codificadas nos genes fora da história O modelo geral seria portanto de que os seres humanos têm capacidades cognitivas que resultam da herança biológica em ação no tempo filogenético eles usam essas aptidōes para explorar recursos culturais que evoluíram no tempo histórico e fazem isso durante o tempo ontogenético Ontogênese humana Na esteira de Vigotski e de muitos outros psicólogos culturais sustento que muitas das mais interessantes e importantes realizações cognitivas do homem como linguagem e matemática demandam tempo e processos históricos para sua efetivação mesmo que a maioria dos cientistas cognitivistas ignore por completo esses processos históricos Além disso eu afirmaria junto com outros psicólogos do desenvolvimento que muitas das mais interessantes e importantes competências cognitivas do homem demandam tempo e processos ontogenéticos significativos para sua efetivação mesmo que esses processos também sejam ignorados por muitos cientistas cognitivistas A subestimação por parte dos cientistas cognitivistas da ontogênese e de seu papel formativo na criação de formas maduras de cognição humana devese em grande parte à sua sobrevalorização de um debate filosófico revelho que sobreviveu à sua pertinência se é que um dia foi pertinente Elman et al 1997 Portanto antes de expor em detalhes a ontogênese cognitiva humana farei uma breve referência a esse debate Nativismo filosófico e desenvolvimento As discussōes modernas sobre natureza versus educação e inato versus adquirido estruturamse com base nos debates ocorridos na Europa do século XVIII entre filósofos racionalistas e empiristas em torno da mente humana e das qualidades morais do homem Esses debates modelares ocorreram antes de Charles Darwin fornecer à comunidade científica novas maneiras de pensar os processos biológicos A introdução dos modos darwinistas de pensar a filogênese e o papel da ontogênese na filogênese deveriam ter tornado esse debate obsoleto Mas não foi isso o que aconteceu e na verdade o surgimento da genética moderna deulhe novo alento material na forma do debate genes versus ambiente O motivo pelo qual o debate não morreu é que ele é o modo natural de responder à pergunta o que determina o traço X nos seres humanos adultos Formular dessa maneira a pergunta admite até tentativas de quantificar a contribuição relativa dos genes e do ambiente num determinado traço de um adulto tal como inteligência Scarr e McCarthy 1983 Formular e responder à pergunta dessa maneira equivale a perguntar o que determinou a deflagração da Revolução Francesa e em seguida quantificar a contribuição relativa da economia da política da religião etc Mas pensar darwinianamente é pensar um processo no qual não faz sentido pensar categorias de fatores em algum agora estático e atemporal Embora haja processos invariantes como a variação genética e a seleção natural se perguntarmos como determinada espécie veio a ser o que é agora ou como a Revolução Francesa aconteceu a resposta é uma narrativa que se desenrola no tempo com vários processos funcionando de diferentes maneiras em diferentes pontos ao longo do trajeto Essa maneira darwinista de pensar é aquela que deveríamos usar se quisermos entender a filogênese e a ontogênese dos seres humanos Na filogênese a Natureza seleciona vias ontogenéticas que levam a certos resultados no fenótipo sexualmente maduro Repito a Natureza seleciona vias ontogenéticas que levam a certos resultados fenotípicos Para sua realização essas vias dependem em maior ou menor medida da exploração de materiais e informações exógenos e os mamíferos em geral e os primatas e humanos em particular desenvolveram muitas vias ontogenéticas que simplesmente não surgiriam sem esses materiais e essas informações exógenos Mas independentemente do grau de material exógeno envolvido e em qualquer trama ontogenética nosso objetivo enquanto desenvolvimentistas sejam biólogos ou psicólogos é compreender toda a trajetória de um determinado fenômeno e como ele funciona Nem é preciso dizer que não existe ninguém que se autodenomine biólogo e que também se denomine nativista Quando biólogos desenvolvimentistas olham para o embrião em desenvolvimento de nada lhes serve o conceito de inatismo Eles não subestimam a influência dos genes o papel essencial do genoma é um fato indiscutível mas o juízo categórico de que uma característica é inata simplesmente não ajuda na compreensão do processo Por exemplo de nada serviria para os biólogos dizer que o surgimento dos rudimentos de membros na décima semana do desenvolvimento embrionário humano é inato Se estivermos interessados em todo o processo por meio do qual os membros se formam no desenvolvimento embrionário temos primeiro de mapear as etapas do desenvolvimento dos membros e depois determinar de que maneira os processos de síntese de proteínas de diferenciação celular a interação do organismo com enzimas intrauterinas etc participam em vários momentos da progressão Se quiséssemos rotular de inatos processos que compartilham um certo número de características por exemplo dependerem muito pouco da existência de enzimas intrauterinas para sua operação poderíamos certamente fazer isso o que poderia ser útil para certos propósitos De modo geral no entanto tal rotulação é simplesmente inútil para a compreensão dos processos ontogenéticos envolvidos cf o argumento de Wittgenstein 1953 de que problemas filosóficos mal formulados não são resolvidos simplesmente nos curamos deles Contudo na ciência cognitiva sempre houve uma linha nativista que coloca a questão basicamente nos mesmos termos que os filósofos europeus do século XVIII como se o processo de pensamento darwinista não tivesse tido nenhum ou quase nenhum impacto cf Chomsky 1980 Fodor 1983 Uma vez que esses teóricos não costumam estudar diretamente os processos genéticos mas procuram antes inferilos apenas a partir de considerações lógicas essa perspectiva teórica talvez devesse ser chamada de nativismo filosófico Isso não significa que a investigação dos aspectos inatos da cognição humana não tenha levado a algumas conclusões muito importantes Para dar apenas um exemplo essa investigação estabeleceu que o processo ontogenético concebido por Piaget como decisivo para a compreensão que as crianças têm dos objetos no espaço ou seja a manipulação manual dos objetos não pode ser um ingrediente decisivo pois as crianças compreendem objetos no espaço antes de os terem manipulado manualmente Spelke 1990 Baillargeon 1995 Essa exclusão de um processo developmental potencial é uma descoberta científica significativa Mas essa descoberta não deveria encerrar o processo de investigação não deveríamos dizer simplesmente que X é inato e portanto nada mais temos para pesquisar mas antes deveria nos levar a indagar outras coisas por exemplo o papel da experiência visual na ausência de manipulações manuais para o desenvolvimento de um conceito de objeto Tal procedimento é o adotado pelos biólogos desenvolvimentistas embora eles evidentemente tenham à sua disposição métodos mais poderosos uma vez que são capazes de intervir na ontogênese de embriões animais de uma maneira que não pode ser empregada com crianças humanas Mas sejam quais forem os meios por exemplo estudar o conceito de objeto em crianças cegas o objetivo não é decidir se alguma estrutura é ou não inata mas antes determinar os processos presentes em seu desenvolvimento A investigação dos aspectos inatos da cognição humana é cientificamente útil na medida e tãosomente na medida em que nos ajuda a entender os processos desenvolvimentais em funcionamento durante a ontogênese humana incluindo todos os fatores que desempenham algum papel em que momento desempenham um papel e precisamente como desempenham seu papel As linhas individual e cultural de desenvolvimento Em vez de inato versus adquirido prefiro outra dicotomia que alguns podem considerar igualmente problemática a dicotomia vigotskiana entre as linhas individual e cultural de desenvolvimento Essa distinção é essencialmente aquela que existe entre herança biológica e herança cultural embora diga respeito à ontogênese e não à filogênese De acordo com a minha interpretação dessa distinção a linha individual do desenvolvimento cognitivo o que Vigotski chama de linha natural concerne àquelas coisas que o organismo conhece e aprende por conta própria sem a influência direta de outras pessoas ou de seus artefatos ao passo que a linha cultural de desenvolvimento cognitivo concerne àquelas coisas que o organismo conhece e aprende por meio de atos nos quais tenta ver o mundo através da perspectiva de outras pessoas incluindo as perspectivas incorporadas nos artefatos Devo ressaltar que esse é um modo um tanto idiossincrático de conceituar a herança e o desenvolvimento culturais bem mais restrito que as conceituações da maioria dos psicólogos culturais Não estou considerando herança cultural aquelas coisas que o organismo sabe e aprende por conta própria a partir de seu meio cultural particular ou habitus por exemplo a aprendizagem que a criança faz sobre a disposição e organização das casas em seu ambiente local Kruger e Tomasello 1996 Minha definição mais restrita de herança cultural e portanto aprendizagem cultural e linha cultural de desenvolvimento enfoca os fenômenos intencionais nos quais um organismo adota o comportamento ou a perspectiva de um outro em relação a uma terceira entidade O problema evidentemente é que essas duas linhas de desenvolvimento entrelaçamse de forma inextricável desde muito cedo no desenvolvimento humano e praticamente qualquer ato cognitivo das crianças a partir de certa idade incorpora elementos de ambas Por exemplo em capítulos posteriores irei demonstrar que crianças entre um e três anos são em muitos sentidos máquinas de imitação já que sua resposta natural a muitas situações é fazer o que estão fazendo as pessoas à sua volta e na verdade o que criam individualmente por conta própria é muito limitado na maioria das situações Contudo alguns dos mais interessantes aspectos do desenvolvimento durante esse período concernem precisamente a interações entre as linhas individual e cultural de desenvolvimento na medida em que a criança se apropria das convenções culturais que aprendeu via imitação ou alguma outra forma de aprendizagem cultural realiza um salto criativo que vai além delas e deduz sozinha alguma relação categorial ou analógica tendo como base as aptidões gerais de categorização dos primatas É verdade que esses mesmos saltos criativos às vezes dependem de forma mais ou menos direta de alguma ferramenta cultural como linguagem símbolos matemáticos ou imagens icônicas convencionais que ajudam as crianças a perceber relações categoriais ou analógicas No entanto todos os dados apontam para o fato de que por volta dos quatro ou cinco anos o equilíbrio entre a tendência das crianças a imitar os outros e sua tendência a usar as próprias estratégias cognitivas criativas se altera uma vez que nessa idade elas já internalizaram muitos pontos de vista diferentes sobretudo por meio do discurso linguístico o que lhes permite refletir e planejar sozinhas de maneira mais autoregulada embora novamente as ferramentas com que fazem isso sejam às vezes culturais na origem Muitos psicólogos culturais acham que tentar fazer essa distinção é desnecessário porque o individual e o cultural são parte do mesmo processo desenvolvimental e em qualquer idade a criança possui conhecimento e aptidões que são o resultado de um longo processo dia lético que envolve ambos os fatores Concordo em certa medida com essa crítica mas continuo achando que tentar isolar e avaliar os efeitos da adaptação exclusivamente humana à cultura durante a ontogênese humana é um projeto útil É útil em primeiro lugar porque nos ajuda a responder à questão comparativaevolucionária de como e por que os seres humanos diferem cognitivamente de seus parentes primatas mais próximos que se desenvolvem da maneira típica de sua espécie sem nada que se pareça com a versão humana da linha cultural de desenvolvimento na qual artefatos e práticas sociais historicamente constituídos são internalizados pelo jovem em desenvolvimento Além disso é útil porque ajuda a captar o que talvez seja a tensão dialética do desenvolvimento cognitivo humano a tensão entre fazer coisas convencionalmente o que tem muitas vantagens óbvias e fazer coisas criativamente o que também tem suas próprias vantagens O modelo da herança dual Pelo fato de o modo humano de organização cultural ser tão peculiar quando comparado com o de outras espécies animais pelo fato de que a criação de animais nãohumanos num contexto cultural não os transforma magicamente em seres culturais semelhantes aos humanos e pelo fato de haver alguns humanos com déficits biológicos que não participam plenamente de suas culturas a conclusão inelutável é que cada ser humano possui uma capacidade biologicamente herdada de viver culturalmente Essa capacidade que caracteriza como a capacidade de compreender os coespecíficos como agentes intencionaismentais iguais a si próprio começa a se tornar uma realidade por volta dos nove meses de idade como veremos no Capítulo 3 Ao comparar sistematicamente os humanos e seus parentes primatas mais próximos tentei demonstrar que essa capacidade é fácil de identificar altamente distintiva e exclusiva da espécie embora tudo leve a crer que se baseie na adaptação ao pensamento relacional que distingue a cognição dos primatas da dos outros mamíferos em geral As condições adaptativas sob as quais essa aptidão sociocognitiva exclusiva da espécie evoluiu são desconhecidas até o presente momento mas uma hipótese é que ela só evoluiu com o moderno Homo sapiens e que ela é de fato a principal característica cognitiva que distingue os seres modernos dos prémodernos Essa ínfima diferença biológica entre os humanos e seus parentes primatas mais próximos teve e continua a ter consequências cognitivas enormes Além de possibilitar que os humanos interajam de forma mais flexível e efetiva com vários tipos de entidades e eventos de seu meio também abre caminho para a forma exclusivamente humana de herança cultural A herança cultural humana enquanto processo está assentada nos pilares indissociáveis da sociogênese por meio da qual a maioria dos artefatos e das práticas culturais é criada e da aprendizagem cultural por meio da qual essas criações e as intenções e perspectivas humanas que existem por trás delas são internalizadas por crianças em desenvolvimento como veremos em capítulos posteriores Juntas a sociogênese e a aprendizagem cultural facultam aos seres humanos produzir artefatos materiais e simbólicos que se apóiam uns nos outros acumulando assim modificações ao longo do tempo histórico o efeito catraca de modo tal que o desenvolvimento cognitivo das crianças humanas se dá no contexto de algo que se assemelha a toda a história cultural de seu grupo social Isso não significa que os processos socioculturais possam criar novos produtos culturais e habilidades cognitivas a partir do nada Chimpanzés são criaturas muito sofisticadas cognitivamente e sem dúvida há cerca de 6 milhões de anos os ancestrais comuns aos homens e aos chimpanzés também o eram Os processos de sociogênese e de aprendizagem cultural têm como fundamento habilidades cognitivas básicas relativas ao espaço a objetos categorias quantidades relações sociais comunicação e várias outras aptidões que todos os primatas possuem Mas os processos culturais humanos levam essas habilidades cognitivas fundamentais para novas e surpreendentes direções e o fazem muito rapidamente do ponto de vista evolucionário A alternativa a essa perspectiva teórica é tentar explicar cada aspecto da cognição humana próprio da espécie invocando a cada vez bases genéticas para cada habilidade cognitiva específica Por exemplo ao tentar explicar a evolução da linguagem podese supor que houve um evento genético ou vários eventos genéticos na história humana recente que deram às línguas modernas suas estruturas e que esse evento genético não teria basicamente nenhuma relação com outros eventos desse tipo relativos a outros módulos inatos tipicamente humanos concernentes à matemática e a coisas semelhantes cf Tooby e Cosmides 1989 Pinker 1994 1997 Embora casos individuais sempre possam dar lugar a debates essa estratégia explicativa não é insensata se nossa única preocupação forem módulos cognitivos exclusivamente humanos Mas com a multiplicação do número de módulos inatos o problema do tempo tornase premente Temos no máximo apenas 6 milhões de anos mas mais provavelmente apenas um quarto de milhão de anos para criar a cognição exclusivamente humana e isso simplesmente não seria suficiente em nenhum roteiro evolucionário plausível para que a variação genética e a seleção natural criassem módulos cognitivos exclusivamente humanos muito diferentes e independentes entre si A grande vantagem da explicação aqui apresentada é que há apenas uma adaptação biológica importante que poderia ter ocorrido em qualquer tempo da evolução humana até mesmo muito recentemente e portanto a questão decisiva do tempo evolucionário que tanto incomoda abordagens de base mais genética simplesmente não se coloca 3 ATENÇÃO CONJUNTA E APRENDIZAGEM CULTURAL Quem considerar as coisas em seus primórdios terá a melhor visão delas ARISTÓTELES A conclusão que podemos tirar da comparação entre primatas humanos e nãohumanos é que a compreensão dos coespecíficos como seres intencionais iguais a si próprio é uma competência cognitiva exclusivamente humana que explica quer diretamente por si só ou indiretamente através dos processos culturais muitas das características únicas da cognição humana Mas essa competência cognitiva não surge de uma vez por todas na ontogênese humana passando a funcionar de maneira homogênea dali em diante Pelo contrário a compreensão humana dos outros como seres intencionais surge inicialmente por volta dos nove meses de idade mas seu verdadeiro poder manifestase apenas gradualmente à medida que as crianças passam a utilizar ativamente as ferramentas culturais que essa compreensão lhes permite dominar sobretudo a linguagem Por isso para compreender plenamente a adaptação humana à cultura precisamos acompanhar o curso desse desenvolvimento por algum tempo o que pretendemos fazer nos Capítulos 46 Neste capítulo descrevo e tento explicar o que acontece aos nove meses de idade Cognição na primeira infância Tudo indica que os humanos neonatos são extremamente frágeis e criaturas quase totalmente desamparadas São incapazes de se alimentar de sentar ou se locomover independentemente ou de estender os braços e agarrar objetos Têm pouquíssima acuidade visual e por certo não sabem praticamente nada das atividades culturais e lingüísticas que ocorrem à sua volta Entendese portanto por que William James 1890 na virada do século XIX para o XX supôs que o mundo de experiência do recémnascido fosse uma confusão colorida e sussurrante Nas últimas duas décadas no entanto psicólogos do desenvolvimento descobriram que recémnascidos e crianças muito pequenas possuem certo número de competências cognitivas que não aparecem prontamente em seu comportamento manifesto Tratase de uma verdade no que se refere à compreensão de objetos à compreensão das outras pessoas e à autocompreensão Compreender objetos Em suas obras clássicas sobre a infância Piaget 1952 1954 elaborou uma teoria da cognição infantil que é o ponto de partida de todas as teorias subseqüentes Piaget notou que por volta dos quatro meses de idade os bebês começam a estender os braços na direção de objetos e a agarrálos por volta dos oito meses começam a procurar objetos que desapareceram chegando a remover obstáculos em suas tentativas de agarrálos e entre doze e dezoito meses começam a seguir o deslocamento espacial de objetos visíveis e invisíveis para novas localizações e a compreender algo das relações espaciais temporais e causais entre objetos Piaget supôs que todas essas mudanças desenvolvimentais no comportamento sensóriomotor fossem o resultado das manipulações ativas e das explorações de objetos que as crianças realizam à medida que constroem a realidade por meio de linhas convergentes de informação sensorial e motora O grande questionamento das idéias piagetianas veio de pesquisadores que descobriram que bebês humanos têm certa compreensão de um mundo físico com existência independente numa idade que coincide com suas mais primitivas manipulações de objetos antes de terem tido tempo de usar essas manipulações para construir esse mundo Por exemplo Baillargeon e colaboradores ver 1995 para um apanhado verificaram que se os pesquisadores não pedirem às crianças pequenas para manipularem objetos mas apenas para assistir a cenas e olhar por mais tempo quando suas expectativas forem contrariadas elas revelam uma compreensão de objetos como entidades independentes que existem mesmo quando não estão sendo observadas por volta dos três ou quatro meses de idade mais ou menos na época de suas primeiras manipulações manuais deliberadas Usando essa mesma metodologia Spelke e colaboradores 1992 mostraram ademais que nessa mesma idade precoce as crianças entendem vários outros princípios que governam o comportamento dos objetos como o fato de que objetos não podem estar em dois lugares ao mesmo tempo que objetos não podem passar um através do outro e assim por diante E mais uma vez as crianças parecem entender esses princípios antes de terem tido muita experiência com a manipulação de objetos Em momentos posteriores de seu primeiro ano de vida as crian ças humanas manifestam outros tipos de compreensão de objetos no espaço por exemplo antes de seu primeiro aniversário conseguem categorizar objetos perceptualmente estimar pequenas quantidades e continuar atentas a elas a despeito da oclusão perceptual girar objetos mentalmente e percorrer o espaço de maneiras que sugerem algo parecido com um mapa cognitivo cf Haith e Benson 1997 para um apanhado Essa nova maneira de avaliar a cognição infantil quanto ao comportamento visual cf Haith e Benson 1997 coloca questões metodológicas mas o importante para nossos propósitos é que todas estas são habilidades cognitivas que primatas nãohumanos possuem Como foi detalhado no Capítulo 2 primatas nãohumanos possuem aptidões no que se refere a permanência do objeto mapeamento cognitivo categorização perceptual estimativa de pequenas quantidades e giro mental de objetos provavelmente porque em termos gerais têm uma compreensão representacional de objetos no espaço do mesmo tipo da dos humanos Portanto as crianças humanas estão simplesmente exprimindo sua herança primata a única ressalva é que por nascerem num estado de tamanha imaturidade perceptual e motora levam algum tempo para fazêlo Compreender outras pessoas Não existe tanta pesquisa sobre a compreensão de outras pessoas pelos bebês É óbvio que os bebês humanos são criaturas muito sociais desde o momento em que nascem quando não antes Poucas horas depois de nascer os bebês humanos olham preferencialmente para desenhos esquemáticos de rostos humanos em comparação com outros padrões perceptuais Fantz 1963 ainda no útero parecem estar em processo de se acostumar com a voz materna Decasper e Fifer 1980 e desde muito cedo os bebês reconhecem muito claramente outras pessoas como seres animados diferentes de objetos físicos Legerstee 1991 tudo isso dentro do padrão primata geral Contudo há dois comportamentos sociais que podem sugerir que os bebês humanos não são apenas sociais como outros primatas mas antes ultrasociais Primeiro como descrito por Trevarthen 1979 e outros pouco depois de nascerem os bebês humanos entabulam protoconversas com quem cuida deles Protoconversas são interações sociais nas quais o pai e o filho concentram um no outro a atenção muitas vezes num faceaface que inclui olhar tocar e vocalizar de uma maneira que serve para expressar e compartilhar emoções básicas Além disso essas protoconversas têm uma estrutura claramente alternada Embora haja diferenças na maneira como essas interações ocorrem em diferentes culturas particularmente na natureza e quantidade do faceaface visual de uma forma ou outra parecem ser uma característica universal da interação adultocriança na espécie humana Trevarthen 1993a 1993b Keller Schölmerich e EiblEibesfeldt 1988 Alguns pesquisadores especialmente Trevarthen acham que essas interações precoces são intersubjetivas mas a meu ver elas não podem ser intersubjetivas antes que a criança entenda os outros como sujeitos da experiência o que não fará antes dos nove meses de idade ver próxima seção No entanto essas primeiras interações são profundamente sociais pelo fato de terem conteúdo emocional e estrutura alternada Em segundo lugar no contexto dessas interações sociais precoces os neonatos humanos imitam alguns movimentos corporais dos adultos sobretudo alguns movimentos da boca e da cabeça Meltzoff e Moore cf 1977 1989 verificaram que pouco depois do nascimento os bebês humanos reproduzem coisas como protrusões da língua aberturas da boca e movimentos de cabeça Embora essas ações sejam comportamentos que os bebês já sabem realizar e portanto é só a sua freqüência que aumenta na presença de um estímulo semelhante como algumas espécies de pássaros imitam as produções vocais dos adultos desde muito cedo em seu desenvolvimento Meltzoff e Moore 1994 verificaram que bebês de seis semanas conseguiam modificar um de seus comportamentos naturais protrusões da língua para tornálo semelhante ao comportamento de um adulto movendo a língua de um lado da boca para o outro com bastante empenho É possível portanto que a imitação neonatal reflita uma tendência dos bebês não só de imitar movimentos conhecidos mas em certo sentido de se identificar com coespecíficos Meltzoff e Gopnik 1993 Se isso for verdade estaria de acordo com as idéias de Stern 1985 segundo as quais imitar os estados emocionais dos adultos por meio da sintonização afetiva também reflete um profundo processo de identificação Não é certo que os primatas se envolvam em protoconversas ou mímica neonatal da mesma maneira que os humanos Na sua grande maioria mães e filhos primatas nãohumanos não se envolvem no tipo de intenso faceaface característico das mães e dos filhos ocidentais de classe média mas ainda assim mantêm contato físico constante e portanto assim como as interações de algumas mães e filhos nãoocidentais talvez reflitam protoconversas de outro tipo Existe um estudo de um único bebê chimpanzé criado por humanos que imitava a protrusão da língua de maneira muito parecida com os bebês humanos Myowa 1996 mas não existem estudos de chimpanzés imitando outros tipos de ações ou fazendo ajustes para reproduzir movimentos novos Portanto ainda não se sabe se bebês humanos muito pequenos são sociais de uma maneira que é única da espécie ou se a singularidade social humana só se revela posteriormente com nove meses de idade ou mais Seja como for não é uma hipótese absurda dizer que os bebês humanos revelam uma sintonia social particularmente poderosa com seus cuidadores logo depois do nascimento o que se reflete em sua tendência para interagir tanto de modo reciprocamente sensível em protoconversas como de modos que exigem operações de harmonização quando tentam reproduzir comportamentos adultos Compreender a si mesmo Quando os bebês interagem com seus meios físico e social também vivenciam a si mesmos de várias maneiras De particular importância é o fato de que ao direcionar comportamentos para entidades externas as crianças vivenciam seus próprios objetivos comportamentais bem como o efeito de suas ações sobre o meio na medida em que as entidades externas colaboram com suas atividades direcionadas para um objetivo ou a elas resistem o assim chamado self ecológico Neisser 1988 1995 Russell 1997 Dessa forma as crianças aprendem algo sobre suas próprias capacidades e limitações comportamentais em certas situações por exemplo quando desistem de alcançar objetos que estão longe demais ou que exigiriam um ajuste postural desestabilizador Rochat e Barry 1998 Nesse mesmo sentido quando as crianças exploram seus próprios corpos vivenciam uma correspondência entre projeto comportamental e feedback perceptual diferente de todo o resto de sua experiência Rochat e Morgan 1995 Embora haja pouquíssimas pesquisas desse tipo com primatas nãohumanos existem estudos mostrando que algumas espécies sabem o suficiente sobre suas próprias aptidões para cair fora de tarefas que excedam suas capacidades Smith e Washburn 1997 e é comum observar que primatas nãohumanos têm alguma idéia de suas próprias capacidades e limitações motoras quando percorrem o espaço em meios não totalmente conhecidos Povinelli e Cant 1996 Portanto é muito provável que o senso que os bebês humanos têm de um self ecológico seja algo que compartilhem com seus parentes primatas Existem pouquíssimas pesquisas voltadas especificamente para a compreensão que as crianças pequenas têm de si mesmas como agentes sociais em parte porque não se sabe ao certo o que um senso de self social significa nessa tenra idade A revolução dos nove meses Entre nove e doze meses de idade os bebês humanos começam a se envolver num conjunto de novos comportamentos que parecem indicar certa revolução na maneira como entendem seus mundos sobretudo seus mundos sociais Se há alguma dúvida quanto a saber se a cognição social das crianças é diferente da de outros primatas nos meses que precedem essa revolução depois dela a dúvida desaparece Aos nove meses os bebês humanos começam a realizar um semnúmero dos assim chamados comportamentos de atenção conjunta que parecem indicar uma compreensão emergente das outras pessoas como agentes intencionais iguais a si próprio cujas relações com entidades externas podem ser acompanhadas dirigidas ou compartilhadas Tomasello 1995a Nesta seção descreverei esse novo grupo de comportamentos na próxima tentarei explicar suas origens ontogenéticas e na seção final do capítulo mostrarei como eles desembocam de forma bastante natural nos processos de aprendizagem cultural que servem para lançar as crianças no mundo da cultura plexo de habilidades e interações sociais cf Moore e Dunham eds 1995 A situação prototípica nessa idade é a dos bebês pela primeira vez começarem a olhar de modo flexível e confiável para onde os adultos estão olhando acompanhamento do olhar se envolver com eles em sessões relativamente longas de interação social mediada por um objeto envolvimento conjunto usar os adultos como pontos de referência social referência social e agir sobre os objetos da maneira como os adultos estão agindo sobre eles aprendizagem por imitação Em suma é nessa idade que pela primeira vez os bebês começam a sintonizar com a atenção e o comportamento dos adultos em relação a entidades exteriores Num comportamento relacionado com o anterior por volta dessa mesma idade as crianças também começam a dirigir ativamen te a atenção e o comportamento dos adultos para entidades exteriores usando gestos deícticos como apontar para um objeto ou segurálo para mostrálo a alguém Esses comportamentos comunicativos representam a tentativa das crianças de fazer com que os adultos sintonizem com a sua atenção para alguma entidade exterior Superando ritualizações diádicas como levantar os braços como pedido para ser pego no colo parecidas em vários sentidos com as ritualizações diádicas dos chimpanzés como foi descrito no Capítulo 2 esses gestos deícticos são claramente triádicos no sentido de que indicam para um adulto alguma entidade externa Importante também é o fato de que esses primeiros gestos deícticos são tanto imperativos tentativas de fazer com que o adulto faça algo com relação a um objeto ou evento como declarativos simples tentativas de fazer o adulto prestar atenção a algum objeto ou evento Os gestos declarativos são de especial importância por que indicam de forma particularmente clara que a criança não quer apenas que algo aconteça mas realmente deseja compartilhar a atenção com um adulto É por isso que alguns teóricos entre os quais me incluo asseveram que o simples ato de apontar para um objeto para alguém com o único intuito de compartilhar a atenção dedicada a ele é um comportamento comunicativo exclusivamente humano cf Gómez Sarriá e Tamarit 1993 cuja ausência é também um importante elemento diagnóstico da síndrome do autismo infantil cf BaronCohen 1993 A partir de conclusões relativamente coerentes de muitos estudos já faz algum tempo que se sabe que todos esses vários comportamentos tanto aqueles em que a criança sintoniza com o adulto como aqueles em que tenta fazer com que o adulto sintonize com ela surgem de maneira típica entre nove e doze meses de idade Recentemente contudo Carpenter Nagell e Tomasello 1998 investigaram especificamente essa questão acompanhando o desenvolvimento sociocognitivo de vinte e quatro crianças de nove a quinze meses de idade Em intervalos mensais essas crianças eram avaliadas por meio de nove medidas diferentes de atenção conjunta envolvimento conjunto acompanhamento do olhar acompanhamento do ato de apontar imitação de atos instrumentais imitação de atos arbitrários resposta a obstáculos sociais uso de gestos imperativos e uso de gestos declarativos incluindo gestos proximais tais como mostrar e gestos distais tais como apontar Em cada caso foram usados critérios muito rígidos para garantir que as crianças estivessem de fato tentando ou acompanhar ou dirigir a atenção ou o comportamento do adulto por exemplo alternando a atenção entre o objetivo e o adulto e não apenas respondendo a um estímulo discriminativo As con conclusões mais importantes para o presente contexto foram as seguintes Individualmente consideradas cada uma das nove capacidades de atenção conjunta manifestouse na maioria das crianças entre nove e doze meses de idade Todas essas aptidões manifestaramse numa sincronia desenvolvimental semelhante em cada criança com quase 80 de crianças dominando as nove tarefas num espaço de tempo de quatro meses Intercorrelações das idades de manifestação para todas as aptidões ainda que apenas moderadas já que a manifestação quase simultânea das aptidões acarretou pouca variabilidade individual Um fato importante é que a defasagem observada no desenvolvimento de certas crianças tinha uma explicação clara já que havia uma ordem de tarefas bastante coerente para todas as crianças Vinte das vinte e quatro crianças realizaram primeiro tarefas que exigiam compartilharverificar a atenção do adulto bem próximo por exemplo simplesmente olhar para o adulto durante envolvimento conjunto depois tarefas que exigiam acompanhar a atenção que o adulto dirigia a entidades distais externas por exemplo acompanhar o olhar e por fim tarefas que exigiam direcionar a atenção do adulto para entidades externas por exemplo apontar para que um adulto olhasse para uma entidade distal A Figura 31 expõe essas três situações A explicação para essa ordem é que as tarefas de compartilharverificar exigem apenas que a criança olhe para o rosto do adulto nesse caso as crianças só tinham de saber que o adulto estava presente e prestando atenção Em contraposição as tarefas nas quais as crianças ou bem acompanhavam ou então direcionavam a atenção do adulto exigiam que a criança mirasse precisamente para o que prendia a atenção do adulto com compreensão acompanhar a atenção ou o comportamento do adulto precedendo a produção direcionar a atenção ou o comportamento do adulto É claro que saber qual a entidade externa que chama a atenção do adulto exige capacidades de atenção conjunta mais precisas do que simplesmente saber que um adulto está prestando atenção à interação como um todo Portanto a conclusão é que em praticamente todas as crianças toda a panóplia de capacidades de atenção conjunta manifestase numa sincronia desenvolvimental bastante semelhante de modo moderadamente correlacionado com um padrão de ordem altamente coerente em todas as crianças que reflete os diferentes níveis de especificidade na atenção conjunta exigida Figura 31 Três tipos principais de interação de atenção conjunta e suas respectivas idades de manifestação no estudo de Carpenter Nagell e Tomasello 1998 Aproximadamente 80 dos sujeitos nas respectivas faixas etárias As conclusões desse estudo são pois coerentes de modo geral com todo um conjunto de estudos nos quais uma ou mais dessas habilidades sociocognitivas precoces são investigadas isoladamente literatura revista em detalhes por Carpenter Nagell e Tomasello 1998 O que esse estudo demonstra com especial clareza é que a manifestação das capacidades de atenção conjunta entre nove e doze meses de idade é um fenômeno desenvolvimental coerente que exige uma explicação desenvolvimental coerente Tal idéia é reforçada pelos vários conjuntos de diferentes estudos de Gergely e colaboradores Gergely et al 1995 Csibra et al Esses pesquisadores mostraram para crianças de nove meses um pontinho numa tela movendose de uma maneira que para os adultos era claramente direcionada para um lugar específico daquela mesma tela tendo de contornar um obstáculo para chegar lá As crianças demonstraram claramente que viam os movimentos do pontinho como dirigidos a um objetivo sua habituação diminuía se ele fazia movimentos idênticos quando o obstáculo era removido tornando o desviofantasma desnecessário mas permaneciam habituados ao comportamento do pontinho por mais variáveis que fossem suas trajetórias enquanto estivesse dirigido para o mesmo objetivo O importante é que bebês de seis meses não demonstraram essa mesma sensibilidade para os objetivos dos atores Rochat Morgan e Carpenter 1997 encontraram evidências semelhantes de compreensão de ações intencionais em crianças de nove meses mas não em crianças de seis numa situação em que as crianças viam uma bola em movimento perseguindo outra na direção de um objetivo Essas conclusões envolvendo habituação e técnicas preferenciais de olhar dos bebês fornecem fortes evidências convergentes da importância dos nove meses de idade no desenvolvimento sociocognitivo das crianças empregando como medida da cognição infantil respostas comportamentais de um tipo muito diferente dos comportamentos de atenção conjunta que as crianças manifestam naturalmente temente repetir esses resultados tiveram um sucesso relativo e o que é mais importante nenhum deles interpreta os comportamentos interativos da criança como outra coisa senão análise de contingência social Rochat e Striano 1999 Nadel e TremblayLeveau 1999 Muir e Hains 1999 Além disso parece claro que bebês de cinco meses dispõem de todas as habilidades motoras necessárias para acompanhar o olhar dos outros seguem visualmente objetos em movimento e para apontar para eles estendem o braço para alcançar objetos e também o dedo indicador com bastante frequência portanto só as limitações motoras não explicam por que bebês pequenos caso sejam tão sofisticados socialmente não realizam comportamentos triádicos de atenção conjunta assim como as limitações motoras não explicam o fracasso dos bebês em estudos de tempo de permanência do olhar envolvendo ações intencionais cujas exigências comportamentais são mínimas cf Gergely et al 1995 Outros teóricos nativistas por exemplo BaronCohen 1995 acham que os bebês vêm préprogramados com vários módulos sociocognitivos independentes entre os quais um Detector da Direção do Olho um Detector de Intenção e um Mecanismo de Atenção Compartilhada Na opinião de BaronCohen cada um desses módulos tem uma cronologia desenvolvimental predeterminada que não é afetada nem pela ontogênese dos outros módulos nem pelas interações do organismo com o meio social As crianças não nascem sabendo sobre as outras pessoas mas elas tampouco têm de aprender sobre elas os módulos cognitivos apropriados simplesmente amadurecem conforme sua cronologia inelutável durante os primeiros meses de vida O problema nesse caso é que os dados simplesmente não batem com essa idéia As evidências fornecidas pelo estudo de Carpenter Nagell e Tomasello 1998 e evidências indiretas fornecidas por outros estudos mostram que as aptidões fundamentais no que a isso se refere acompanhamento do olhar compreensão de ações intencionais e envolvimento conjunto emergem numa sincronia desenvolvimental muito precisa e de modo correlacionado entre nove e doze meses de idade Esses fatos não concordam com a explicação que afirma a existência de vários módulos independentes assim como tampouco há suporte empírico para a idéia de que a manifestação dessas aptidões não exige algum tipo de interação social com outros cf também a crítica de Baldwin e Moses 1994 Outros teóricos acham que as interações triádicas dos bebês entre nove e doze meses representam seqüências comportamentais aprendidas Em particular Moore 1996 Barresi e Moore 1996 acha que os comportamentos que se manifestam entre nove e doze meses são aptidões comportamentais independentes cada uma das quais com seus próprios estímulos críticos contingências ambientais e história de aprendizagem que não dependem de sofisticadas habilidades sociocognitivas Por exemplo as crianças aprendem a acompanhar o olhar virandose talvez a princípio acidentalmente na direção dos adultos e quem sabe encontrando algo interessante para ver ali Olham para o rosto do adulto nessas interações e em outras semelhantes porque os sorrisos e estímulos do adulto também são recompensadores Para explicar a sincronia desenvolvimental e a interrelação das diferentes habilidades sociocognitivas Moore invoca a emergência de uma nova habilidade de processamento da informação que permite fixar a atenção em duas coisas simultaneamente O problema é que até onde sei dessa nova experiência de ser autor dos próprios atos emerge uma nova compreensão dos outros como resultado direto Tal abordagem pode portanto ser pensada como uma versão de um modelo de simulação de acordo com o qual em certo sentido os indivíduos entendem os outros por analogia consigo mesmos já que os outros são como eu de uma maneira que não fazem pelo menos não do mesmo jeito com objetos inanimados já que eles são bem menos como eu O vínculo entre mim e o outro Apoianose sobretudo em conclusões de pesquisas sobre imitação neonatal Meltzoff e Gopnik 1993 propõem que desde o nascimento os bebês entendem que outras pessoas são como eu embora ainda tenham muito a aprender sobre aspectos específicos ver também Gopnik e Meltzoff 1997 Mas não há no estudo deles nenhuma explicação em que essa atitude como eu desempenhe um papel essencial nos subseqüentes desenvolvimentos sociocognitivos e em particular não a vinculam especificamente à emergência dos comportamentos de atenção conjunta entre nove e doze meses de idade Com efeito enquanto adeptos de uma versão da teoria da teoria Meltzoff e Gopnik acham que os bebês acabam entendendo os outros usando o mesmo tipo de teorização protocientífica que empregam em todos os outros campos da cognição A atitude como eu não desempenha um papel efetivo nesse processo e os novos desenvolvimentos aos nove meses são apenas resultado da observação direta do comportamento dos outros e de inferências sobre ele com efeito Gopnik 1993 afirma que conhecemos os estados intencionais dos outros tão bem como conhecemos os nossos e em certos casos ainda melhor Sem discordar de Meltzoff e Gopnik minha opinião é que a compreensão precoce que os bebês têm das outras pessoas como como eu é de fato o resultado de uma adaptação biológica exclusivamente humana embora ainda não se conheça com precisão a idade exata em que ela se manifesta na ontogênese e a quantidade e os tipos de experiências pessoais necessárias na trajetória desenvolvimental típica da espécie cf Barresi e Moore 1996 Essa compreensão que de qualquer forma está presente nos primeiros meses de vida é portanto um elementochave para a possibilidade de o bebê vir a entender os outros como agentes intencionais aos nove meses de idade Ou melhor tornase um elementochave quando o outro fator indispensável entra em cena e esse outro fator explica por que nove meses é uma idade especial Esse outro fator é a nova compreensão que o bebê tem de suas próprias ações intencionais Já que os outros são como eu qualquer nova compreensão de meu próprio funcionamento leva imediatamente a uma nova compreensão do funcionamento deles simulo em maior ou menor medida o funcionamento psicológico das outras pessoas por analogia com o meu que conheço de forma mais direta e imediata Em conseqüência a hipótese específica é que quando os bebês atingem uma nova compreensão de suas próprias ações intencionais passam a usar sua atitude como eu para entender o comportamento dos outros dessa mesma maneira E há evidências que comprovam que oito ou nove meses é de fato uma idade especial para a compreensão que os bebês têm de suas próprias ações intencionais do aqueles comportamentos de atenção conjunta que exigem que a criança pequena determine precisamente o que prende a atenção do adulto ou o que ele está fazendo pois mostram uma clara compreensão da atenção do adulto Mas as crianças pequenas ainda têm muito a aprender sobre as outras pessoas e como elas funcionam Em particular veremos em capítulos posteriores que ao adquirirem suas aptidões de comunicação linguística as crianças pequenas aprendem muito sobre como acompanhar e direcionar a atenção do adulto de modo bastante preciso E é claro crianças de um ano de idade não sabem o suficiente sobre a conexão existente entre percepção e ação para intervir com eficácia no processo por exemplo dando pistas perceptuais falsas para enganar o adulto e fazer com que este realize seus desejos essa aptidão precisa de mais uns dois ou três anos de prática na interação com os outros O que aqui verificamos são os primórdios do processo A questão que então se coloca é se a emergência da atenção conjunta é de fato uma revolução na compreensão que a criança pequena tem das outras pessoas de onde ela vem Forneci algumas evidências de que desde muito cedo no desenvolvimento os bebês humanos são sociais de maneiras que outros primatas não são como se verifica por seu envolvimento em protoconversas e mímica neonatal mas isso não envolve atenção conjunta ou qualquer outra forma de compreensão dos outros como agentes intencionais Portanto a questão que se coloca é como esses desenvolvimentos sociocognitivos iniciais e posteriores se relacionam se é que se relacionam e por que culminam na compreensão dos outros como agentes intencionais precisamente aos nove meses de idade Uma explicação da revolução dos nove meses pela simulação Cientistas sociais de Vico e Dilthey a Cooley e Mead enfatizaram que nossa compreensão dos outros está assentada numa fonte especial de conhecimento que não está disponível quando tentamos entender o funcionamento de objetos inanimados ou seja a analogia com nós mesmos O pontochave teórico é que temos fontes de informação sobre nós mesmos e nossos funcionamentos que não estão disponíveis para nenhuma entidade externa seja do tipo que for Ao agir tenho à minha disposição a vivência interna de um objetivo e da luta por um objetivo bem como várias formas de propriocepção correlacionadas com exterocepção de meu comportamento quando ajo com vistas a um objetivo que servem para relacionar objetivo com meios comportamentais Na medida em que entendo uma entidade externa como sendo como eu e por isso posso atribuir a ela um tipo de funcionamento interno igual ao meu posso nessa medida obter sobre seu funcionamento um conhecimento suplementar de um tipo especial É de supor que a analogia é mais próxima e mais natural quando aplicada a outras pessoas Minha tentativa teórica é usar esse entendimento geral sobre a relação entre autocompreensão e compreensão dos outros para explicar a revolução sociocognitiva dos nove meses O argumento mais costumeiro é que ao tentarem entender os outros os bebês humanos aplicam o que já vivenciaram de si mesmos e essa vivência de si mesmo muda no começo do desenvolvimento sobretudo no que tange ao senso da autoria dos próprios atos selfagency A hipótese é que com a emergência O eu tornase intencional Nos primeiros meses de vida os bebês entendem que suas ações comportamentais conseguem resultados no meio externo mas não parecem saber como ou por que isso acontece Piaget 1952 1954 imaginou vários experimentos inteligentes nos quais as crianças produziam interessantes efeitos sobre móveis brinquedos e objetos domésticos e depois tinham a oportunidade de reproduzir esses efeitos às vezes em circunstâncias levemente modificadas que exigiam uma acomodação por parte da criança Nos primeiros seis a oito meses de vida as crianças de Piaget basicamente repetiam comportamentos que reproduzissem resultados interessantes mas faziam muito poucas acomodações às exigências das situações Por exemplo se a criança conseguia sacudir um chocalho e produzir um som e uma imagem interessantes porque sua mão estava amarrada por meio de um barbante ao chocalho suspenso a retirada do barbante não produzia nenhuma mudança de comportamento a criança fazia os mesmos movimentos do braço Piaget observou muitos outros exemplos desse pensamento mágico sobre como as ações produzem resultados no mundo externo Mas por volta dos oito meses as crianças de Piaget pareciam manifestar uma nova compreensão das relações entre ação e resultado Os novos comportamentos que evidenciavam essa nova compreensão eram a o uso de múltiplos meios comportamentais para o mesmo objetivo e b o reconhecimento e uso de intermediários comportamentais na tentativa de atingir objetivos Por exemplo quando as crianças queriam alcançar um brinquedo e Piaget colocava no meio do caminho um travesseiro como obstáculo antes dos oito meses ou bem a criança começava a interagir com o travesseiro esquecendo do brinquedo original ou então continuava concentrada no brinquedo e simplesmente se frustrava mas aos oito meses as crianças reagiam à intervenção do travesseiro parando em seguida removendo ou jogando o travesseiro para o lado e depois avançando deliberadamente para agarrar o brinquedo A atitude oposta à da remoção de obstáculos era o uso de intermediários em geral intermediários humanos para atingir os objetivos Por exemplo quando a criança queria fazer funcionar um brinquedo e não conseguia empurrava a mão do adulto na direção do brinquedo e esperava pelo resultado em muitos poucos casos tentavam usar intermediários inanimados como ferramentas mas em geral estas eram usadas alguns meses mais tarde Embora seja lícito dizer que antes dos oito meses as crianças agem intencionalmente no sentido geral de uma ação dirigida a um objetivo o uso de múltiplos meios para um mesmo fim e o uso de intermediários indicam um novo nível de funcionamento intencional Frye 1991 Um meio que tenha sido útil para alcançar um objetivo numa circunstância pode ser substituído por outro em outra circunstância a criança tem de escolher E pode chegar a acontecer que um comportamento que numa certa ocasião era um fim em si mesmo por exemplo jogar um travesseiro no chão é agora apenas um meio para atingir um fim maior pegar o brinquedo A implicação disso é que agora as crianças têm uma nova compreensão das diversas funções de meios e fins no ato comportamental Diferenciam o objetivo que perseguem dos meios comportamentais usados para atingir o objetivo de modo muito mais claro do que em suas ações sen sóriomotoras anteriores Quando a criança remove um obstáculo e avança sem hesitação na direção do objetivo é plausível supor que ela tinha antes um objetivo claro na cabeça provavelmente na forma de um ordenamento imaginado das coisas no mundo manteve esse objetivo na cabeça durante o tempo em que estava removendo o obstáculo e diferenciou claramente esse objetivo dos vários meios comportamentais entre os quais tinha de escolher para atingir o objetivo Simulando as ações intencionais dos outros Piaget 1954 supôs que inicialmente as crianças atribuem poder causal a entidades diferentes delas mesmas através de outras pessoas É muito provável que as pessoas sejam as primeiras fontes objetificadas de causalidade porque ao imitar o outro o sujeito consegue rapidamente atribuir à ação de seu modelo uma eficácia análoga à própria p 360 Essa abordagem geral também constitui a essência de minha exposição embora Piaget em seu tratamento um tanto superficial do tema não tenha feito a distinção fundamental entre compreensão dos outros como fontes de movimento e poder autônomo ou seja como seres animados e compreensão dos outros como seres que fazem escolhas comportamentais e perceptuais ou seja como seres intencionais Com efeito a meu ver os bebês humanos provavelmente entendem os outros como seres animados com capacidade de movimento autônomo bem antes dos oito ou nove meses de maneira semelhante a todos os primatas porque essa compreensão não depende de nenhum tipo de identificação consigo mesmo ou de atribuição de intencionalidade o movimento gerado autonomamente pode ser percebido diretamente e diferenciado do movimento que é produzido por agentes externos Mas compreender os outros como seres intencionais com objetivos atenção e poder de tomar decisões é algo totalmente diferente Tratase de uma distinção fundamental Consideremos as conclusões de Leslie 1984 e Woodward 1998 Bebês de cinco a seis meses de idade demonstram surpresa quando observam a mão de outras pessoas fazendo coisas que elas normalmente não fazem Nessa idade portanto as crianças parecem saber que os outros são seres animados com capacidade de movimento autônomo e que se comportam de certas maneiras Isso corresponde precisamente ao modo como os bebês entendem suas próprias ações nessa idade ou seja como procedimentos que fazem coisas acontecer ver acima Mas compreender os outros como seres animados isto é como seres que fazem coisas acontecer não é a mesma coisa que compreender os outros como agentes intencionais com um funcionamento que interrelaciona objetivo atenção e estratégia comportamental Conforme a teoria da simulação que estamos discutindo para isso são necessários desenvolvimentos que levem a criança a diferenciar objetivos de meios comportamentais em suas próprias ações sensóriomotoras É essa diferenciação que inaugura a possibilidade de compreender os outros não só como fontes de capacidade animada mas como indivíduos que têm objetivos e fazem escolhas entre as várias estratégias comportamentais e perceptuais que levam a esses objetivos Isso fornece a dimensão diretiva ou até temática da intencionalidade que inexiste quando as crianças apenas entendem que os outros têm a capacidade de fazer coisas acontecerem de maneira global Conforme essa teoria portanto os bebês humanos se identificam com outros seres humanos desde muito cedo na ontogênese e isso se baseia numa herança biológica exclusivamente humana que pode exigir ou não interações mais amplas com o meio social Enquanto as crianças apenas entendem a si mesmas como seres animados com capacidade para fazer coisas acontecerem de alguma maneira generalizada o que acontece nos primeiros sete ou oito meses de vida é também assim que elas entendem as outras pessoas Quando por volta dos oito ou nove meses começam a compreender a si mesmas como agentes intencionais no sentido de reconhecerem que têm objetivos claramente separados de meios comportamentais passam a compreender os outros dessa mesma maneira Essa compreensão também pavimenta o caminho para a compreensão das escolhas perceptuais que os outros fazem a atenção como distinta da percepção apesar de não dispormos até agora de muitos elementos para compreender esse processo Embora não devêssemos levar essa idéia muito mais longe aqui também é possível que as crianças façam algumas dessas simulações talvez de modo um tanto inapropriado com objetos inanimados e que essa seja a fonte da compreensão que elas têm de como alguns eventos físicos forçam outros a acontecer a primeira bola de bilhar empurra a segunda com o mesmo tipo de força que sinto quando eu a empurro Piaget 1954 Talvez esse tipo de simulação seja mais frágil para as crianças que a simulação das outras pessoas porque a analogia entre elas mesmas e objetos inanimados é mais frágil Devo dizer que foram feitas muitas objeções à teoria da simulação devido a um malentendido pelo menos a meu ver A teoria da simulação é muitas vezes entendida no sentido de que primeiro as crianças têm de ser capazes de conceituar seus próprios estados intencionais e só depois podem usálos para simular a perspectiva alheia E não é isso que parece ocorrer na prática as crianças não conceituam seus próprios estados mentais antes de conceituar os estados mentais dos outros Gopnik 1993 assim como não falam deles primeiro Bartsch e Wellman 1995 Mas isso não constitui problema se a simulação não for entendida como um processo explícito no qual a criança conceitua algum conteúdo mental consciente de que esse conteúdo mental lhe é próprio e depois o atribui a outra pessoa numa situação específica Minha hipótese é simplesmente que as crianças fazem o juízo categórico de que os outros são como eu e portanto também devem funcionar como eu Em nenhum momento afirmo que em situações específicas as crianças têm mais facilidade para ter acesso consciente a seus próprios estados mentais do que para discernir os possíveis estados mentais específicos de outra pessoa elas simplesmente percebem o modo geral de funcionamento do outro por meio de uma analogia consigo mesmas ao passo que sua aptidão para determinar estados mentais específicos em circunstâncias específicas depende de muitos fatores No caso mais simples a criança simplesmente vê ou imagina a disposição do outro para o objetivo que este pretende alcançar de maneira muito semelhante àquela que imagina para si mesma e então vê o comportamento da outra pessoa direcionado para o objetivo de maneira muito semelhante a como vê o próprio Chimpanzés e crianças autistas Se voltarmos agora a examinar nossos parentes primatas mais próximos poderemos concluir o seguinte Chimpanzés e alguns outros primatas nãohumanos entendem claramente algo da eficácia de suas próprias ações sobre o meio e sem dúvida se envolvem em muitos tipos de ações sensóriomotoras intencionais nas quais usam diferentes meios para atingir um mesmo fim removem obstáculos e usam intermediários tais como ferramentas Se eles não entendem os outros como agentes intencionais como a meu ver eles não fazem então não pode ser por causa desse fator Pelo contrário a razão pela qual eles não entendem os outros dessa maneira é na minha opinião o outro fator eles não se identificam com coespecíficos da mesma maneira como os humanos o fazem Embora isso seja pura especulação podese formular a hipótese de que essa também seja a fonte de sua dificuldade com problemas físicos nos quais têm de tentar entender as relações causais entre as ações de objetos inanimados eles não tentam se identificar ainda que de modo imperfeito com os objetos envolvidos Um detalhe interessante dessa história nos é fornecido por macacos aculturados que parecem adquirir certas capacidades de atenção conjunta semelhantes às humanas como apontar de modo imperativo para humanos e aprender por imitação algumas habilidades instrumentais ver Capítulo 2 Mas esses macacos ainda assim não apontam para outros ou usam seus outros sinais comunicativos de modo declarativo ou seja apenas para compartilhar a atenção e eles não se envolvem em várias outras atividades que incluem cooperação e ensino A presente hipótese é que embora esses indivíduos possam aprender algo sobre como os humanos são agentes animados eficazes em seu meio que têm de estar em contato para satisfazer praticamente todas as necessidades e os desejos não há treinamento que possa lhes dar a predisposição biológica unicamente humana de se identificar com os outros de maneira humana Se afirmamos que os seres humanos herdam biologicamente uma habilidade especial para se identificar com coespecíficos é natural que nos voltemos para indivíduos que têm algum tipo de déficit biológico nessa habilidade e estes são obviamente as crianças autistas Sabese que as crianças autistas apresentam graves problemas de atenção conjunta e de perspectiva Por exemplo apresentam uma série de déficits na habilidade de prestar atenção a objetos junto com outras pessoas Loveland e Landry 1986 Mundy Sigman e Kasari 1990 produzem muitos poucos gestos declarativos BaronCohen 1993 e quase não se envolvem em jogos simbólicos ou de fazdeconta que em muitos casos implicam assumir o papel do outro Algumas crianças autistas com bom desempenho conseguem acompanhar o olhar alheio mas crianças autistas com desempenho mais baixo praticamente não conseguem se acomodar à perspectiva perceptual alheia Loveland et al 1991 A conclusão geral de Langdell citado em BaronCohen 1988 é que as crianças autistas consideradas no seu conjunto têm dificuldade em adotar o ponto de vista de outra pessoa e Loveland 1993 as caracteriza como basicamente aculturais Atualmente não se conhece a origem dos problemas das crianças autistas existem muitas teorias contraditórias mas uma das hipóteses é que elas têm dificuldade para se identificar com outras pessoas e essa dificuldade pode assumir diversas formas dependendo de coisas tais como o momento desenvolvimental em que a doença se manifesta e sua severidade além das outras capacidades cognitivas de que o indivíduo disponha ou não para compensar os déficits Apredizagem cultural precoce A compreensão humana de coespecíficos como agentes intencionais é portanto uma habilidade cognitiva que emana tanto da identificação humana com coespecíficos que se manifesta muito cedo na infância e é exclusiva da espécie como da organização intencional de suas próprias ações sensóriomotoras compartilhada com outros primatas e que se manifesta por volta dos oito ou nove meses de idade Essas duas habilidades são biologicamente herdadas no sentido de que suas trajetórias desenvolvimentais normais ocorrem em vários ambientes diferentes dentro de um intervalo normal ambientes estes que sem dúvida incluem coespecíficos Essa forma exclusivamente humana de compreensão social tem vários efeitos profundos sobre a maneira como as crianças humanas interagem com os adultos e entre si Nesse contexto o mais importante desses efeitos é que ela inscreve a criança nas formas exclusivamente humanas de herança cultural Crianças que entendem que os outros têm relações intencionais com o mundo semelhantes a suas próprias relações intencionais com o mundo podem tentar tirar vantagem do modo como outros indivíduos imaginaram atingir seus objetivos Nesse sentido as crianças também são capazes de sintonizar com a dimensão intencional dos artefatos que as pessoas criaram para mediar suas estratégias comportamentais e de atenção em situações específicas voltadas para determinados objetivos O que se afirma portanto é que apesar do rico meio cultural em que as crianças nascem se não entenderem os outros como agentes intencionais como é típico dos bebês humanos antes dos nove meses de idade dos primatas nãohumanos e da maioria das pessoas com autismo elas não serão capazes de tirar vantagem das habilidades cognitivas e do conhecimento dos coespecíficos que se manifestam nesse meio cultural A partir do momento em que os bebês começam a aprender culturalmente dos outros esse processo tem algumas consequências surpreendentes em relação a como aprendem a interagir com objetos e artefatos a como aprendem a se comunicar gestualmente com os outros e a como aprendem a pensar sobre si mesmos Cultura como nicho ontogenético Nunca devemos esquecer que os organismos herdam seu meio ambiente assim como herdam seus genomas Os peixes estão designados para funcionar na água formigas estão designadas para funcionar em formigueiros Os seres humanos estão designados para viver num certo tipo de ambiente social e sem ele os jovens não se desenvolveriam normalmente supondo que pudessem sobreviver nem social nem cognitivamente Esse tipo de ambiente social é o que chamamos de cultura e nada mais é que o nicho ontogenético típico e exclusivo da espécie para o desenvolvimento humano Gauvain 1995 Vou distinguir duas maneiras pelas quais o ambiente cultural humano cria o contexto para o desenvolvimento cognitivo das crianças enquanto habitus cognitivo e enquanto fonte de instrução ativa por parte dos adultos Em seguida vou expor como as crianças aprendem no do e por meio desse ambiente Em primeiro lugar as pessoas de um dado grupo social vivem de certa maneira preparam e comem alimentos de certa maneira têm um certo conjunto de modos de vida vão a certos lugares e fazem certas coisas Pelo fato de os bebês e de as crianças humanas serem totalmente dependentes dos adultos comem dessas maneiras vivem desses modos e acompanham os adultos quando estes vão para esses lugares e fazem essas coisas Em termos gerais podemos chamar tudo isso de habitus do desenvolvimento das crianças Bourdieu 1977 Participar das práticas normais das pessoas entre as quais ela cresce seja qual for o nível de participação e de aptidão significa que a criança vive certas experiências e não outras O habitus particular em que uma criança nasce determina o tipo de interações sociais que terá o tipo de objetos físicos que estarão à sua disposição o tipo de experiências de aprendizagem e de oportunidades que encontrará e o tipo de inferências que poderá fazer sobre o modo de vida dos que a rodeiam Portanto o habitus tem efeitos diretos sobre o desenvolvimento cognitivo quanto à matériaprima com que a criança tem de trabalhar e é fácil imaginar nem que seja em nossos pesadelos o desastre que se abateria sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças se elas fossem privadas de certas parcelas dessa matériaprima Embora o habitus de grupos de seres humanos e o habitus de grupos de chimpanzés sejam claramente diferentes é muito provável que os processos de aprendizagem e inferência individual que afetam o desenvolvimento cognitivo de ambas as espécies em seus modos de vida sejam semelhantes em vários sentidos Jovens chimpanzés também comem o que suas mães comem vão para onde suas mães vão e dormem onde suas mães dormem Contudo afora isso os adultos humanos assumem um papel mais ativo intervencionista no desenvolvimento de seus filhos do que outros primatas e animais Ainda que no tocante a muitas aptidões culturais os adultos adotem uma atitude de laissezfaire e a extensão disso difere de modo significativo de uma cultura para outra em todas as sociedades humanas há algumas coisas que os adultos sentem que devem ajudar as crianças a aprender Em alguns casos fornecem mera assistência que conforme Wood Bruner e Ross 1976 pode ser chamada de andaimaria Os adultos ficam olhando as crianças lutarem para dominar certa habilidade fazem várias coisas para tornar a tarefa mais simples ou chamar a atenção da criança para certos aspectoschave da tarefa ou eles mesmos fazem uma parte da tarefa para que a criança não fique assoberbada por um excesso de variáveis Em algumas culturas esse tipo de formato educativo simplesmente adota a forma do adulto mandando a criança sentar e olhar enquanto ele tece um tapete prepara a refeição ou trabalha um jardim Greenfield e Lave 1982 Mas em todas as sociedades humanas considerase que algumas tarefas ou parcelas de conhecimento são tão importantes que os adultos têm de ensinálas diretamente aos jovens Kruger e Tomasello 1996 Estas variam de atividades de sustento extremamente importantes até a memorização dos ancestrais da família ou de rituais religiosos O ponto principal é que tanto na andaimaria quanto na instrução direta o adulto se interessa pela aquisição por parte da criança de uma habilidade ou parcela de conhecimento e em mui Atenção conjunta e cognição social Existem atualmente muitas controvérsias quanto à natureza da cognição social infantil que subjaz a esses comportamentos triádicos emergentes Alguns teóricos acham que os bebês humanos têm uma cognição social semelhante à dos adultos desde o nascimento e que a emergência de comportamentos de atenção conjunta dos nove aos doze meses apenas reflete o desenvolvimento de aptidões de desempenho comportamental que permitem manifestar essa cognição em comportamentos abertos Por exemplo Trevarthen 1979 1993a afirmou que os bebês nascem com uma mente dialógica com um senso inato do outro virtual e apenas precisam adquirir as habilidades motoras necessárias para exprimir esse conhecimento em termos comportamentais Os dados que Trevarthen usa para fundamentar sua idéia são as complexas interações sociais diádicas dos bebês nos primeiros meses que ele denominou de intersubjetividade primária O que impressiona no estudo de Murray e Trevarthen 1985 é que bebês de dois meses pareciam revelar uma delicada sensibilidade para as contingências de interações sociais com outros que ele interpreta como evidência de que o bebê entende a subjetividade do outro Contudo vários pesquisadores que tentaram recen