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1567 É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO COTIDIANO DOS ADVOGADOS POPULARES Fabio de Sá e Silva TEXTO PARA DISCUSSÃO É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO COTIDIANO DOS ADVOGADOS POPULARES Fabio de Sá e Silva R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 1 5 6 7 Este texto foi produzido no âmbito do projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro mais especificamente como subsídio ao livro do eixo Fortalecimento do Estado das Instituições e da Democracia Técnico de Planejamento e Pesquisa e Coordenador de Estudos sobre Estado e Democracia da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado das Instituições e da Democracia Diest do Ipea e membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Governo Federal Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Ministro Samuel Pinheiro Guimarães Neto Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza para a sociedade pesquisas e estudos realizados por seus técnicos Presidente Marcio Pochmann Diretor de Desenvolvimento Institucional Fernando Ferreira Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais Mário Lisboa Theodoro Diretor de Estudos e Políticas do Estado das Instituições e da Democracia José Celso Pereira Cardoso Júnior Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas João Sicsú Diretora de Estudos e Políticas Regionais Urbanas e Ambientais Liana Maria da Frota Carleial Diretor de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação Regulação e Infraestrutura Márcio Wohlers de Almeida Diretor de Estudos e Políticas Sociais Jorge Abrahão de Castro Chefe de Gabinete Persio Marco Antonio Davison Assessorchefe de Imprensa e Comunicação Daniel Castro URL httpwwwipeagovbr Ouvidoria httpwwwipeagovbrouvidoria Texto para Discussão Publicação cujo objetivo é divulgar resultados de estudos direta ou indiretamente desenvolvidos pelo Ipea os quais por sua relevância levam informações para profissionais es pecializados e estabelecem um espaço para sugestões As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores não exprimindo necessariamente o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estraté gicos da Presidência da República É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele con tidos desde que citada a fonte Reproduções para fins co merciais são proibidas ISSN 14154765 JEL Z Z0 SUMÁRIO SINOPSE ABSTRACT 1 INTRODUÇÃO 7 2 ADVOCACIA POPULAR SITUANDO O REFERENCIAL EMPÍRICO DO TEXTO 10 3 HISTÓRIAS DO COTIDIANO E ESTRUTURA SOCIAL POR QUE E COMO APRENDER SOBRE A JUSTIÇA A PARTIR DE NARRATIVAS DE ADVOGADOS POPULARES 17 4 DIANTE DA LEI TRÊS TENSÕES NA RELAÇÃO ENTRE ADVOGADOS POPULARES E O SISTEMA DE JUSTIÇA 22 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 30 REFERÊNCIAS 32 SINOPSE Este texto busca examinar a qualidade democrática da justiça brasileira ou seja a sua permeabilidade aos interesses e expectativas dos mais diversos grupos sociais sobretudo os mais pobres ou desfavorecidos tomando como base narrativas de advogados populares acerca de sua relação com o sistema de justiça Por advogados populares entendase um segmento organizado da advocacia brasileira que se dedica ao apoio jurídico a movimentos sociais e como consta da própria designação utilizada por seus integrantes à defesa de causas populares A pesquisa de fundo deste texto abordou apenas aqueles advogados populares que trabalham com públicos envolvidos em lutas por terra sem terras quilombolas e indígenas Como achados principais o texto relaciona três tensões que obtiveram maior destaque na fala dos entrevistados uma em torno da definição do direito aplicável a qual diz respeito ao desconhecimento ou à desconsideração de vários elementos do direito positivo favoráveis a esses grupos ou populações outra em torno da parcialidade da justiça que diz respeito aos vínculos orgânicos ou interesses diretos de seus quadros nas questões que eles têm por ofício examinar e uma terceira associada às relações de poder e hierarquia que subsistem nas profissões jurídicas e se refletem mesmo em preconceito no âmbito da justiça contra aqueles que se engajam na advocacia popular Ao final o texto discute as implicações de longo prazo de seu exercício analítico e de seus achados para os debates e proposições voltadas à democratização da justiça ABSTRACTi Peoples lawyers constitute an organized segment of the Brazilian bar that provides legal assistance to social movements and as it is said in the very way this population designates itself advocates for the causes of the people This article discusses whether the Brazilian justice system is permeable to the interests and expectations of the various social groups especially the poor and disadvantaged To do so the article examines i The versions in English of the abstracts of this series have not been edited by Ipeas editorial department As versões em língua inglesa das sinopses abstracts desta coleção não são objeto de revisão pelo Editorial do Ipea narratives about the everyday experiences of socalled peoples lawyers within the justice system with a special focus on lawyers who advocate for groups involved in struggles for land the landless the z and the indigenous peoples As its main findings the article presents three crucial tensions that peoples lawyers face and that were more salient in the data analysis One gravitates around the definition of the applicable law and refers to what lawyers consider to be an unawareness of or a disregard for legal rules that are favorable to their client groups by justice officials Another tension gravitates around biases in the justice system and refers to the perception among peoples lawyers that justice officials have strong links or common interests with the issues or actors that they are supposed to be ruling against such as big landowners The last one refers to the relationships of power and hierarchy that subsist in the Brazilian legal profession and amount to actual prejudice against peoples lawyers within the bar In light of these findings the article argues that the democratization of the justice system is an integral part of the structure of opportunities for the development of public interest law advocacy and suggests an academic and political agenda around that issue in Brazil Texto para Discussão 1 5 6 7 7 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares 1 INTRODUÇÃO A partir da segunda metade do século XX o sistema de justiça passou a desempenhar um papel de grande relevo no fortalecimento das democracias A despeito das ressalvas contra os riscos de violação do princípio da separação de poderes SCALIA 1997 GLAZER 1975 de um indevido encantamento com o mito dos direitos SCHEINGOLD 1978 ou do caráter ilusório do poder político dos tribunais frente aos vários constrangimentos sociais políticos e institucionais existentes para que suas decisões ganhem efetividade ROSENBERG 2001 a literatura produzida pela sociologia jurídica e por vários ramos da ciência política ao longo das últimas quatro ou cinco décadas atribui ao menos três possibilidades para que a atuação da Justiça venha a auxiliar na democratização do Estado e da própria sociedade o avanço do liberalismo político com a proteção a minorias e a promoção de liberdades civis1 a afirmação de novos direitos a partir da interpretação de categorias clássicas do direito posto2 e o que é de particular importância para países que vivenciaram processos recentes de redemocratização como o Brasil a efetivação de direitos e garantias já previstos no sistema jurídico os quais pela inércia do sistema político e das instituições governamentais permanecem represados na sua dimensão formal3 1 Esta é a conclusão de Halliday Karpik e Feeley em pesquisa comparada sobre o complexo formado por instituições da justiça operadores e acadêmicos de direito nas mais variadas realidades nacionais Como anotam esses autores todos os estudos contemporâneos sobre o constitucionalismo na Ásia na América Latina na Austrália na Europa e em outras partes do mundo reconhecem um papel político para os judiciários Em consequência estudantes de política comparada enfim vieram a descobrir a importância dos Tribunais e de maneira mais geral a importância do direito e das instituições jurídicas para a estabilidade e o sucesso político HOLLIDAY KARPIK FEELEY 2009 p 06 2 O exemplo sempre invocado é a decisão da Suprema Corte norteamericana que ordenou a desagregação escolar nos estados interpretando o alcance da 14a Emenda à Constituição dos Estados Unidos Brown v Board of Education Mas desde os anos 1990 o Brasil também vem registrando inúmeras experiências similares como foi o caso da decisão na qual o Superior Tribunal de Justiça STJ considerou que a ocupação de terra com o objetivo de pressionar pela realização de reforma agrária constitui forma legítima de ação política não um crime de esbulho Habeas Corpus HC 4399SP ou como lembra Santos 2007 p 20 das sucessivas decisões proferidas por tribunais estaduais em favor de companheiros homossexuais mesmo sem a existência de lei que trate diretamente dessa questão Mais recentemente a ampliação de direitos de homossexuais apontada por Santos alcançou o STJ Em abril de 2010 a 4a Turma do Tribunal concordou em atribuir a guarda de filho menor adotado por uma homossexual à sua parceira o que muitos perceberam como um sinal de que num futuro próximo casais homossexuais poderão pleitear a adoção de crianças 3 Referindose ao caso brasileiro por exemplo Santos enfatiza que a exaltante construção jurídicoinstitucional da Constituição de 1988 tende a aumentar as expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos e as garantias consignadas na Constituição de tal forma que a execução deficiente ou mesmo inexistente de muitas políticas sociais pode transformarse num motivo de recurso aos tribunais SANTOS 2007 p 18 Assim conclui o sociólogo português a redemocratização e o novo marco constitucional darão maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos 2007 p 18 8 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Talvez não por coincidência a documentação de todas essas formas democratizantes de atuação da justiça foi acompanhada de crescentes reivindicações no meio acadêmico e social pela democratização da própria justiça A literatura produzida a esse propósito é por sua vez igualmente ampla e diversificada Alguns autores reclamam da falta de mecanismos para que os pobres e desfavorecidos possam ter acesso não apenas ao direito de defesa mas também à capacidade de mobilizar ativamente as instituições da justiça Nessa linha a principal recomendação é a da ampliação do acesso a serviços jurídicos a mecanismos de representação de interesses coletivos e difusos em favor desses públicos ou numa palavra a ampliação do acesso à justiça CAPELLETTI GARTH 1978 1988 Outros localizam no formalismo dos profissionais do direito e na insensibilidade de uma cultura jurídica de forte inspiração liberalburguesa alguns dos maiores entraves para que as instituições da justiça venham a ser mais responsivas às demandas de setores populares AGUIAR RAMOS 1993 FARIA 1987 1988 1989 1991 SOUSA JÚNIOR 2002 O caminho para uma justiça democrática nesse caso não poderia ser trilhado sem mudanças no ensino do Direito e sem uma valorização maior de elementos didáticopedagógicos que aproximem bacharéis e sociedade como a extensão universitária PORTO 1999 OLIVEIRA 2004 SÁ E SILVA 20074 Há ainda quem questione não apenas a formação inicial dos profissionais do direito mas também os seus processos de recrutamento e a formação pelas carreiras da Justiça Em relatório de pesquisa elaborado no âmbito do Observatório da Justiça Portuguesa com análises comparativas envolvendo experiências de toda a Europa Gomes e Pedroso GOMES PEDROSO 2001 p 177178 anotam que em todas elas o tema do recrutamento e formação de magistrados revelouse central no debate sobre o sistema judicial em primeiro lugar por causa da pressão social e política para a inversão da tendência negativa de resposta dos tribunais às transformações primeiro de ordem quantitativa e depois qualitativa da procura social que lhes é dirigida Na conclusão tais autores esboçam uma proposta de renovação para o recrutamento e a formação de magistrados a qual teria como princípios a garantia de um recrutamento plural e diversificado nas competências e saberes dos candidatos o desenvolvimento de 4 A referência aqui é ao Brasil mas há paralelos no estrangeiro Num texto relativamente recente por exemplo Kim Economides critica os debates tradicionais sobre acesso à justiça porque segundo ele tais debates consideram apenas o volume e a natureza da demanda por serviços jurídicos quando na verdade seria preciso também discutir a qualidade do acesso promovido explorandose assim as compreensões de justiça compartilhadas pela profissão jurídica e a ética jurídica bem como o papel que as Faculdades de Direito e o ensino jurídico cumprem na formulação destas ECONOMI DES 2003 p 01 Texto para Discussão 1 5 6 7 9 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares apurada formação técnica e elevada sensibilidade social e a preocupação de que os conteúdos jurídicos e não jurídicos da formação privilegiem uma cultura de cidadania 2001 p 177178 Há por fim quem suscite questionamentos sobre a gestão dos tribunais e das instituições que integram o sistema de justiça sob o argumento de que a democratização da Justiça depende antes de tudo de sua maior proximidade em relação aos cidadãos Aqui a aposta recai não apenas sobre práticas oficiais pouco ortodoxas como a justiça itinerante ou a justiça restaurativa mas também sobre experiências populares de administração da justiça como a justiça comunitária FOLEY 2003 e as promotoras legais populares TOKARSKI 2007 SANTOS 2007 Apesar da amplitude de temas e enfoques podese dizer que essa agenda de pesquisas e debates opera sobre duas grandes premissas A primeira é que o caráter democrático da Justiça reside em sua capacidade de receber e processar as demandas dos mais variados grupos sociais sobretudo os mais vulneráveis produzindo decisões que ajudem a fortalecer junto a esses segmentos um sentido de pertencimento a uma comunidade política na qual somos todos iguais em respeito e consideração A segunda é que para usar uma conhecida expressão de Carvalho 2002 na luta por tornar a Justiça brasileira mais democrática resta ainda um longo caminho a percorrer Há pois em toda essa literatura um notável contraste entre de um lado demandas e expectativas legítimas dos cidadãos e de outro um arcabouço institucional opaco e insensível que além de não corresponder a essas demandas as esmaga pela sua linguagem esotérica pela sua presença arrogante pela sua maneira cerimonial de vestir pelos seus edifícios esmagadores pelas suas labirínticas secretarias etc SANTOS 2007 p 31 Para examinar algumas dessas questões este artigo toma como unidade de análise a experiência cotidiana que os advogados populares mantêm com a justiça5 A premissa teórica e metodológica que sustenta esse exercício é a de que examinando se temas salientes e comuns na experiência desses profissionais é possível identificar obstáculos ou desafios pendentes para a construção de um sistema de justiça receptivo 5 Por advogados populares entendase um segmento organizado da advocacia brasileira que se dedica ao apoio jurídico a movimentos sociais e como consta da própria designação utilizada por seus integrantes à defesa de causas populares 10 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 e atrativo às demandas dos de baixo6 Com isso pretendese desenvolver um tipo de abordagem que complemente tanto as análises baseadas nos produtos da justiça como as sentenças ou acórdãos as quais embora consigam identificar a hostilidade do sistema em relação a certos grupos sociais não captam os mecanismos pelos quais essa hostilidade opera e se reproduz quanto as análises de ordem mais etnográfica as quais embora consigam construir narrativas detalhadas a respeito desses mecanismos têm baixíssimo grau de generalidade temporal e geográfica A primeira seção descreve o surgimento e a atuação dos advogados populares com vistas a situar melhor o referencial empírico do texto Dada a escassez de referências sobre este tema na literatura essa seção também faz uso de fontes primárias tais como trechos de entrevistas ou notas de campo A segunda seção expande as considerações metodológicas aqui brevemente delineadas indicando por que e como é possível aprender sobre a Justiça a partir de narrativas de advogados populares algo que em princípio pode soar inusitado para alguns dos leitores A terceira seção concentra a parte mais analítica e substantiva do texto nela se identificam sob a perspectiva democrática três tensões na relação entre os advogados populares e a justiça uma tensão em torno da definição do direito aplicável uma tensão em torno da parcialidade do sistema e uma tensão em torno da distribuição de poder simbólico nas profissões jurídicas A quarta seção por fim resume os argumentos do texto e lança desafios analíticos e políticos para o futuro do debate sobre a democratização da justiça brasileira 2 ADVOCACIA POPULAR SITUANDO O REFERENCIAL EMPÍRICO DO TEXTO Embora os chamados advogados populares existam há mais de duas décadas no Brasil e apesar de um deles Darcy Frigo ter se tornado em 2001 o primeiro brasileiro a 6 A expressão de baixo é invocada neste texto com duas conotações centrais em primeiro lugar uma conotação socio demográfica designando o que se convencionou chamar de base da pirâmide social brasileira Nesse sentido aludese a setores carentes ou até mesmo desprovidos de recursos materiais e simbólicos tidos como de grande importância na reprodução das sociedades capitalistas Em segundo lugar uma conotação sociopolítica a qual entende a presença desses segmentos na esfera pública como dado fundamental na construção de alternativas de futuro para as sociedades capita listas e eventualmente para a construção de um futuro não capitalista Neste último sentido ver a recente sugestão de Santos e RodriguezGaravito 2006 sobre a existência de uma globalização desde baixo Texto para Discussão 1 5 6 7 11 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares receber o prêmio Robert F Kennedy por seu trabalho em defesa dos direitos humanos7 a história desse segmento socioprofissional permanece desconhecida pela maior parte da comunidade sociojurídica8 As poucas referências disponíveis na literatura permitem identificar a emergência dos primeiros advogados populares em meados dos anos 1980 em meio à confluência de vários fenômenos9 Em primeiro lugar o país vivia o declínio da ditadura militar e o estabelecimento de uma ordem democrática o que deu nova dignidade política ao direito e às instituições jurídicas Se durante a ditadura militar a atuação jurídica de corte progressista estava oficialmente limitada a medidas mais discretas por exemplo o uso de habeas corpus em favor de presos e desaparecidos políticos no contexto da restauração democrática os advogados foram liberados para exercitar várias outras formas de atuação dentro e fora dos tribunais Em segundo lugar o país assistia à emergência de vários movimentos sociais que protestavam contra a desigualdade estrutural inerente ao modelo de desenvolvimento adotado pelo regime militar com sua fórmula de deixar crescer o bolo para depois dividilo Em áreas urbanas esses movimentos reivindicavam políticas em diversos setores como habitação transporte e comunicação social caso dos movimentos por rádios comunitárias além de novos contornos para as relações de trabalho No campo o foco era na luta contra o latifúndio entendido não apenas em seu sentido econômico mas também político ou seja em seu papel determinante na reprodução de esquemas de poder em nível local O legado da entrada desses novos personagens na cena sociopolítica como definido por Sader 1988 é bem conhecido Em poucos anos o movimento sindical radicado no ABC paulista daria origem ao Partido dos 7 Ver Sem Terra em Washington Revista Istoé ed 1677 8 Algumas exceções são Junqueira 2002 Gorsdorf 2005 Engelmann 2006 Luz 2008 Abrão e Torelly 2009 e Santos e Carlet 2010 Para análises mais gerais sobre os serviços jurídicos alternativos emergentes na década de 1980 e que apresentam vários paralelos com a advocacia popular ver Thome 1984 e Campilongo 1994 9 Em pesquisa recente também baseada em entrevistas com advogados e advogadas populares Carlet Slsn verificou nestes uma tendência de localizar a origem de sua atuação em pontos bem mais distantes no tempo referindose a perso nagens como Luiz Gama ou a Francisco Julião como alguns dos primeiros advogados populares Parece residir nisso uma tentativa de estender o significado histórico e político de uma experiência talvez até mesmo em busca de fortalecimento de identidade socioprofissional De um ponto de vista analítico no entanto parece claro que a advocacia popular entendida como um segmento organizado vinculado a movimentos sociais e populares conjugando deliberadamente estratégias jurídicas e políticas trabalhando com causas coletivas e atuando não apenas defensivamente mas também na busca pela expansão de direitos não pode ser localizada antes dos anos 1970 12 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Trabalhadores PT tendo como grande liderança o então líder sindical Luis Inácio Lula da Silva No campo a mobilização em favor da reforma agrária daria origem ao importante Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST Em terceiro lugar as profissões jurídicas atravessavam um curioso processo de diversificação no qual se tornaram visíveis várias fraturas ideológicas não apenas no âmbito da advocacia mas também da magistratura10 Em parte isso se deveu ao próprio retorno das liberdades civis o que franqueou às faculdades e aos profissionais do direito a possibilidade de estabelecer conexões livres com o chamado pensamento crítico em voga na Europa e mesmo em outros pontos da América Latina Tornaramse correntes então nesses meios as referências ao direito alternativo de Barcelona que adota uma postura gramsciana para o estudo do sistema jurídico à critique du droit de Mialle a qual caminha na linha de uma abordagem marxista mais clássica sobre o direito e as instituições jurídicas e à abordagem linguística de Warat orientada para a desconstrução do que ele próprio chamava de senso comum teórico dos juristas de ofício11 A despeito das diferenças entre essas escolas de pensamento e as muitas outras que se mostraram influentes naquela época todas elas ofereceram às novas gerações de advogados um importante combustível intelectual com o qual eles puderam reavaliar sua própria compreensão do direito Por fim há que se destacar a percepção crescente por parte dos setores populares e das organizações sociais sindicatos partidos políticos e Igreja Católica de que o direito era um espaço de disputa que merecia ser ocupado embora houvesse e ainda haja natural divergência sobre como ele deve ser ocupado e em que termos a disputa em torno dele deve ser travada O caso mais emblemático no qual aliás muitos enxergam o surgimento da advocacia popular é o da Igreja Católica12 Um advogado 10 Para aludir a esse fenômeno Ruivo 1989 utiliza a provocativa expressão conversão profissional 11 Sobre essas três vertentes críticas ver respectivamente Arruda Júnior 1991 1992 Mialle 1980 e Warat 1994 1995 Para uma ampla e cartográfica discussão sobre o pensamento jurídico crítico no Brasil a partir do final dos anos 1970 ver Wolkmer 2002 12 É importante incluir nessa lista ainda pela frequente menção nas entrevistas a advogados populares entre 30 e 35 anos o papel do movimento estudantil de direito que entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990 promoveu importantes debates sobre o sentido da mobilização dos estudantes de direito num contexto democrático Porção significativa dos partici pantes desses debates defendeu à época que a nova tarefa a cumprir seria apoiar as lutas dos movimentos sociais e investir em atividades de extensão ou seja voltadas a promover o diálogo entre as escolas de Direito e a sociedade Assim a noção de assessorias jurídicas universitárias populares AJUPs ganhou força nos Encontros Nacionais de Estudantes de Direito ENEDs principal atividade do movimento de área em direito nos quais mais tarde seria criada a Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias RENAJU A melhor documentação dessa história encontrase em Luz 2008 Texto para Discussão 1 5 6 7 13 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares popular entrevistado por Carlet Slsn assim define os fatos ou demandas que haviam contribuído para a organização desse grupo os advogados populares A advocacia sempre teve no Brasil de um modo geral um perfil conservador e atrelado àqueles que possuem poder econômico porque também sempre foi vista como uma atividade para gerar lucro o mais rápido possível e para se melhorar de vida Então eu acredito que o fator motivador principal da organização dos advogados populares foi justamente a luta social a luta dos movimentos sociais No caso do campo por exemplo a luta dos trabalhadores rurais pelo acesso à terra Nos momentos em que esses trabalhadores eram vítimas de violência como assassinatos ameaças de morte e despejos acabavam recorrendo à Igreja e aos Sindicatos Então as demandas eram apresentadas inicialmente para a Igreja onde havia a CPT Comissão Pastoral da Terra e essas entidades procuravam advogados que tinham sensibilidade com essa questão para poderem fazer a defesa dos trabalhadores Lembro que na época um dos primeiros advogados que veio para cá em 1982 foi o inclusive depois assassinado aqui em ele foi o primeiro advogado da CPT aqui Ainda antes dele chegou a haver um advogado popular que foi o era inclusive do partido e fazia a defesa dos trabalhadores rurais na região Foi assassinado em 1987 Depois tivemos o advogado também assassinado mas em 1989 Então veja que era a demanda dos movimentos sociais naquele momento em que sofriam uma repressão violenta colocada às entidades que de certa forma faziam assessoria jurídica e essas entidades por sua vez percebendo a necessidade de fazer a defesa dos direitos dos trabalhadores contratavam advogados ou por dentro da própria CPT ou por meio de convites a alguns advogados para fazerem um trabalho pontual como por exemplo uma audiência um processo um júri Sob a influência desses fatores a advocacia popular se configura a partir de quatro características principais Em primeiro lugar e dada a vinculação histórica de sua gênese com a emergência dos movimentos sociais que na cidade e no campo reclamavam por bens e direitos coletivos os advogados populares tendem a abordar cada um dos casos nos quais trabalham como expressão de padrões estruturais de opressão das sociedades capitalistas Como um expoente da advocacia popular já escreveu os que procuram os serviços dos advogados populares rarissimamente estão sozinhos Eles pertencem de regra a uma coletividade qualquer que ultrapassa o indivíduo a família o grupo a categoria profissional a qual se encontra na mesma situação dele as Sua principal característica é a da pobreza da carência ou em alguns casos da miséria ALFONSÍN 2005 p 84 Em segundo lugar e ainda devido à sua vinculação genética com a entrada dos movimentos sociais em cena a partir da década de 1980 os advogados populares utilizam uma medida bastante peculiar de sucesso Em vez da busca por resultados 14 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 favoráveis em processos judiciais como seria natural esperar de um típico prestador de serviços jurídicos eles parecem mais preocupados em contribuir para o empoderamento de uma ação social em curso Esse traço ideológico se manifesta de duas maneiras Por um lado no que se poderia chamar de seleção da clientela Alfonsín 2005 p 84 anota que os advogados populares prestam serviço eminentemente a organizações informais e formais movimentos populares como o MST Movimento do Sem Terra MMTR Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais MPA Movimento dos Pequenos Agricultores MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MNLM Movimento Nacional de Luta pela Moradia CPT Comissão Pastoral da Terra CEBs Comunidades Eclesiais de Base MTD Movimento dos Trabalhadores Desempregados Movimentos e Comissões de Direitos Humanos Sindicatos Rurais e Pastorais grupos de pessoas dedicadas à defesa de direitos humanos violados pela tortura pelo racismo pelas prisões ilegais ou à defesa de crianças e adolescentes de homossexuais do direito à livre expressão através de rádios comunitárias entre outras Tratase com isso de dar apoio aos que ou já estão organizados ou estão em processo de organização para combater injustiças sistêmicas Por outro lado a perspectiva de empoderamento de ação social também se revela pela garantia de protagonismo dos clientes na condução dos casos Uma das entrevistadas nesta pesquisa conta que é muito comum os militantes acompanharem monitorarem os processos em que estão envolvidos seja nas possessórias nas ações criminais e até mesmo nas ações de desapropriação que o Incra promove Eles acompanham o andamento processual pelos sites dos Tribunais vão aos cartórios estão cada vez mais apropriados do labirinto judicial Na advocacia tradicional isso seria visto como fator de desconfiança na relação entre cliente e advogado Na advocacia popular representa mais um elemento do processo de organização dos clientes o qual os advogados buscam fortalecer JUNQUEIRA 2002 p 202 A própria expressão clientes nesse aspecto é frequentemente rejeitada pelos advogados populares Em texto produzido em conjunto com Santos e Carlet ela própria uma exadvogada popular utiliza a expressão destinatários da advocacia popular para se referir aos movimentos e grupos defendidos por esses profissionais SANTOS CARLET 2010 Texto para Discussão 1 5 6 7 15 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Em terceiro lugar e porque têm plena consciência das fraturas ideológicas existentes no âmbito das profissões jurídicas os advogados populares tendem a considerar as estratégias jurídicas como insuficientes para produzir as mudanças estruturais que enxergam como necessárias Por um lado isso resulta na decisão deliberada de associar estratégias jurídicas a estratégias extrajurídicas como as de educação jurídica popular articulação com outros atores ou instituições da justiça articulação com atores ou instituições do sistema político ou construção de redes junto a outras organizações da sociedade civil Por outro lado isso se traduz na ideia de que o campo de trabalho de um advogado popular é o da exploração das contradições do sistema jurídico no que a advocacia popular se distingue tanto do positivismo liberal que enxerga no sistema jurídico um todo coerente e justo quanto do marxismo ortodoxo para o qual o Estado e o Direito seriam meros gabinetes de negócio da burguesia13 Por fim os advogados populares tentam reconciliar mudança social com mudança legal Ao explorar as contradições do sistema de justiça os advogados populares também se voltam à imaginação de uma nova ordem jurídica Em entrevista sobre a criação da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares RENAP da qual fora um protagonista um entrevistado recordouse de que um grupo de advogados populares estava reunido em um hotel em São Paulo quando o fundador do movimento Plínio de Arruda Sampaio perguntou Quem é que escreve os livros de doutrina jurídica neste país Quando os outros participantes começaram a citar os mais influentes autores Sampaio interrompeu e perguntou Quem desses aí é de esquerda Diante do silêncio dos presentes dizia o entrevistado Sampaio propôs É hora de nós começarmos a escrever novos manuais Assim os advogados populares têm clareza de que além de não apenas representar clientes eles também trilham o caminho para a emergência de outro padrão de jurisprudência no país um padrão que realmente atenda às necessidades do povo Não é à toa que muitos desses profissionais têm conexão 13 Um clássico exemplo do uso das contradições do sistema para dar apoio à mobilização social foi o uso de argumentos procedimentais para invalidar liminares de reintegração de posse de imóveis rurais ou urbanos O Código de Processo Civil brasileiro exige que os réus sejam qualificados um a um em qualquer ação judicial Isso se tornava quase impossível nos casos em que a terra ou o imóvel eram ocupados por diversas pessoas em geral estranhas ao alegado proprietário Na década de 1980 muitos advogados populares começaram a questionar liminares concedidas genericamente contra os ocupantes Como ainda não havia jurisprudência considerando ocupações legais os advogados sabiam que em algum momento a ordem de desocupação viria Ainda assim eles utilizavam a lei para buscar mais tempo de maneira que o movimento pudesse decidir que caminho tomar além de negociar com autoridades políticas ou buscar a atenção da mídia para garantir que a desocupação ocorreria sem o uso de violência policial 16 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 com movimentos sociojurídicos que buscam estudar um direito que é insurgente PRESSBURGER 1990 ou que pode ser achado na rua SOUSA JÚNIOR 198714 Nesse sentido é importante notar que a advocacia popular sempre buscou ser uma atividade bastante intelectualizada Os advogados populares têm por hábito realizar cursos de pósgraduação escrever artigos e livros jurídicos15 e publicar artigos de opinião em jornais por meio dos quais eles pretendem sofisticar os seus argumentos e desenhar estratégias para influenciar na agenda jurídica16 Algumas vezes foram bastante bemsucedidos dando ensejo a verdadeiras mudanças paradigmáticas na jurisprudência nacional relativamente a temas como reforma agrária e direitos civis Por exemplo Santos e Carlet 2010 recordam o caso da Fazenda Primavera no qual os advogados populares defenderam que os direitos humanos dos sem terra deveriam prevalecer sobre o direito de propriedade Na decisão proferida em grau de recurso contra a decisão do juízo local a qual havia concedido liminar de reintegração de posse da fazenda o desembargador Günter Spode concordou com esse argumento e afirmou que entre o prejuízo patrimonial que a invasão certamente causará ou até já está causando à empresa arrendatária das terras ocupadas e a ofensa aos direitos fundamentais ou a negativa do mínimo social das 600 famílias dos sem terra que sendo retirados de lá literalmente não têm para onde ir sacrificase o direito patrimonial garantindo os direitos fundamentais17 O quadro 1 sintetiza assim os elementos que permitem caracterizar a prática socioprofissional designada como advocacia popular 14 A expressão O Direito Achado na Rua alude a um movimento acadêmico nascido na Universidade de Brasília UnB sob a liderança de José Geraldo de Sousa Júnior o qual busca captar pretensões normativas embutidas na ação dos movimentos sociais e traduzir essas pretensões em categorias jurídicas que ajudem a estruturar novas formas de organização social de modo que o direito possa realizarse como um projeto de legítima organização social da liberdade SOUSA JUNIOR Slsn 15 Ver por exemplo Strozake 2002 e as várias edições dos Cadernos RENAP 16 Mais recentemente esse elemento característico da advocacia popular tem sido severamente prejudicado dada a escassez de recursos e a dificuldade dos advogados de celebrar parcerias com instituições públicas ou privadas a fim de viabilizar os cursos e a produção de publicações 17 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul TJRGS 19a Câmara Cível Agravo de Instrumento 598360402 Des Guinther Spode Redator para o acórdão j 6101998 Texto para Discussão 1 5 6 7 17 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Ao mesmo tempo o resgate desses elementos e de seu processo de institucionalização permite analisar a advocacia popular não como fato curioso mas sim como expressão singular de lutas por direito e justiça uma experiência que diz muito sobre a restauração democrática no Brasil e na América do Sul e sobre o papel que o direito e as instituições jurídicas têm nela ocupado apesar de todas as ressalvas que se costuma fazer quanto à adesão do país e da região ao paradigma do Estado de Direito ou como consta da expressão em inglês do rule of law MÉNDEZ ODONNELL PINHEIRO 1999 Daí porque sustentase no presente texto as dificuldades que estes profissionais enfrentam para dar forma e vazão jurídica às demandas e às expectativas dos movimentos e organizações populares pelos quais advogam podem ser tomadas como reveladoras dos déficits democráticos na justiça 3 HISTÓRIAS DO COTIDIANO E ESTRUTURA SOCIAL POR QUE E COMO APRENDER SOBRE A JUSTIÇA A PARTIR DE NARRATI VAS DE ADVOGADOS POPULARES Embora remonte a uma tradição acadêmica já bem estabelecida no Brasil e no exterior a tentativa de examinar a permeabilidade da justiça às demandas e expectativas dos setores populares ainda envolve imensos desafios metodológicos Um caminho possível e até certo ponto clássico nas ciências sociais é analisar se e como os produtos do sistema de justiça se diferenciam em função de características socioeconômicas e demográficas dos seus usuários na perspectiva de se constatar se a justiça assume posição enviesada ou particularmente hostil em relação a segmentos mais vulneráveis Foi o que fez Adorno por exemplo no influente estudo que identificou discriminação racial no Tribunal do Júri de São Paulo ADORNO 1995 Para tanto Adorno comparou as sentenças QUADRO 1 Pressupostos contextuais e ideológicos Sentido da ação Método Acirramento de conflitos por bens e serviços coletivos Emergência de movimentos sociais Investimento no direito por parte de algumas organizações e movimentos sociais Empoderamento de ação social em curso Ênfase no aspecto coletivo dos conflitos Seleção da clientela que privilegia movimentos ou grupos organizados ou em fase de organização Uso conjugado de estratégias jurídicas e extrajurídicas Diversificação do pensamento e das profissões jurídicas Transformação da ordem jurídica Exploração criativa das contradições do sistema Imaginação de uma nova ordem jurídica Elaboração própria 18 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 dadas a réus negros com as sentenças dadas a réus brancos verificando discrepância significativa no tempo de pena a que os membros de cada um desses grupos eram condenados mesmo quando os crimes em julgamento apresentavam natureza e características muito semelhantes Apesar de gerar resultados extremamente provocativos esse tipo de abordagem tem importantes limitações Em primeiro lugar ele opera com casos efetivamente apreciados pelo sistema de justiça ou seja com processos judiciais tramitados e julgados Quando o interesse prioritário do analista está em casos de natureza criminal como ocorre nos estudos de Adorno isso não chega a ser um grande problema Isso porque o processo penal é marcado tanto por um alto grau de sujeição do réu ao poder acusatório do Estado quanto pela rigidez das categorias com as quais o sistema de justiça se vê em condições de conhecer processar e decidir os conflitos em questão O réu de um processo penal está diante da justiça não porque a tenha procurado mas porque a ela foi trazido em função de uma denúncia ou queixa Ao mesmo tempo uma vez nessa situação sua pretensão essencial passa a ser tãosomente a de demonstrar que a conduta da qual é acusado se realmente incontroversa não merece ser enquadrada dentro do binômio crimepena MACHADO 2004 SÁ E SILVA 2007 Fora do ambiente jurídicopenal no entanto tanto os termos pelos quais os conflitos são explicitados quanto os termos das respostas que diante deles a justiça é capaz de produzir podem ser bem mais abertos e variados Exemplo disso está nos conflitos coletivos por terra ou moradia Além de poderem ser vistos por vários ângulos desde o ataque ao direito de propriedade até a promoção da dignidade humana eles também podem apresentar vários desfechos a desocupação liminar com uso de força policial e prisão das lideranças por crime de esbulho a instauração de diálogo com o governo visando à incorporação dos ocupantes nas políticas públicas de habitação ou reforma agrária ou ainda o reconhecimento da justeza e legitimidade da ação destes com sua consequente manutenção na posse da terra ou do imóvel Da mesma forma fora do ambiente jurídicopenal o conhecimento do problema pela justiça pode ser motivado não apenas por atores e dispositivos do próprio sistema mas também por diversas categorias de cidadãos agindo nas mais diversas condições Nessas circunstâncias é a justiça que deve reagir às estratégias e meios pelos quais os indivíduos e grupos articulam suas demandas por direitos à educação à saúde à verdade à Texto para Discussão 1 5 6 7 19 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares memória e a outros bens coletivos e a maneira como reagirá é que passa a ser o tema de importância mais fundamental Em segundo lugar a abordagem baseada exclusivamente nos produtos da justiça é mais útil para captar a dimensão objetiva de sua eventual hostilidade para com determinados segmentos a discrepância entre os tempos de pena para negros e brancos para ficar no exemplo de Adorno do que para captar o conjunto de interações sociais que conduzem à produção dessa hostilidade Em alguns casos de fato a hostilidade da justiça pode não ser localizada tanto nos seus produtos ou ritos formais mas antes de tudo na forma pela qual ela organiza a sua atuação Um exemplo claro disso foi retratado no filme Justiça dirigido por Maria Augusta Ramos e baseado em cenas tomadas num Fórum do Rio de Janeiro RAMOS 2004 Numa das primeiras cenas do filme o juiz interroga um homem aparentemente pedinte de rua que é acusado de ter praticado furto numa residência O homem está o tempo todo sentado numa cadeira de rodas Num dado momento pede ao juiz para ser removido para um hospital por causa de sua condição Como quem quisesse insinuar que o homem poderia estar fingindo um problema apenas para ganhar um benefício o juiz pergunta Quando o senhor foi preso não estava assim não é Para a surpresa do juiz o homem responde Sim estava Tomado de imenso espanto talvez por haver se dado conta de que o pressuposto de todo aquele rito a acusação de furto a residência poderia simplesmente não ser verdadeiro dada a condição do réu o juiz repergunta Já estava assim O réu responde Sim senhor Estou assim desde 1996 quando tive uma trombose Passado o misto de constrangimento e consternação no entanto o juiz retoma a postura fria e distante em relação ao caso e diz algo como Peça para a sua defensora entrar com o pedido e eu vou ver o que é possível fazer Ainda que o pedido da advogada tenha afinal sido deferido algo que o filme infelizmente não revela é difícil não reconhecer que o procedimento adotado pelo juiz comunica um profundo sentido de injustiça assim como é difícil não especular que ele só tenha tido o curso que teve por envolver alguém que pertence à base da pirâmide social brasileira Além de não captar esse tipo de sutileza a abordagem dos produtos não permite entender que fatores organizacionais ou culturais estão relacionados aos fatos colocados de frente ao analista Em outros termos temse que os produtos permitem verificar 20 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 se e em que situações a promessa moderna de igualdade dos cidadãos perante a lei acaba se traduzindo concretamente na desigualdade da lei perante os cidadãos Mas não permitem verificar como exatamente isso ocorre e portanto especular os tipos de reformas possíveis ou necessárias para se combater esses vieses e se buscar construir uma justiça verdadeiramente mais democrática Uma alternativa a uma solução puramente etnográfica que permitiria um rico exame dos diversos fatores subjacentes ao funcionamento da justiça mas padeceria de invariáveis limitações no alcance temporal e geográfico é a coleta e a análise sistemáticas de histórias sobre o cotidiano das relações entre os setores populares e a Justiça Essa abordagem vem sendo utilizada por diversos autores vinculados a uma tradição mais interpretativa da sociologia e em particular da sociologia do direito Num texto que bem sintetiza essa tradição e suas contribuições para o avanço do conhecimento sobre o direito e as relações de poder que lhe são constitutivas Ewick e Silbey 2003 procedem a uma ampla revisão da literatura que trabalha com narrativas e que destacam três componentes estruturais que as tornam sociologicamente relevantes Em primeiro lugar dizem as autoras as narrativas trazem uma apropriação seletiva de eventos e personagens do passado Em segundo lugar elas promovem uma ordenação temporal dos eventos Em terceiro lugar elas buscam relacionar os eventos uns aos outros e a uma estrutura geral Juntos concluem Ewick e Silbey 2003 p 1341 esses três componentes garantem que as narrativas apresentem tanto uma explicação quanto um juízo moral sobre como e porque os eventos a que se referem ocorreram da forma que ocorreram Sem desconsiderar a relevância do juízo moral expresso pelo narrador Ewick e Silbey 2003 p 1342 revelam especial interesse pela descrição empírica que este procede ao articular a narrativa É nesse aspecto afirmam as autoras que todas as histórias contêm uma sociologia uma explicação de como a vida social se organiza Embora o cidadão comum ou o que Garfinkel chama de sociólogo leigo não possa prover o tipo de explicação que um sociólogo profissional daria com as consequentes reivindicações de precisão e representatividade histórias de leigos são todavia tentativas de explicar a ação social Elas localizam os personagens no tempo e no espaço descrevendo tanto o que permite quanto o que constrange a ação Em outras palavras elas indicam fontes e limites de ação que existem nas estruturas sociais Na esteira do trabalho de Ewick e Silbey este texto busca compreender melhor os elementos estruturantes da justiça brasileira e o seu grau de permeabilidade às demandas Texto para Discussão 1 5 6 7 21 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares e problemas de setores populares numa palavra a sua qualidade democrática com base nas histórias de quem se vê concreta e cotidianamente atuando nessa fronteira específica da relação entre o Estado e a sociedade Para ter acesso a essas histórias procedeuse a entrevistas com dez advogados populares que embora trabalhando em favor de públicos distintos indígenas quilombolas e trabalhadores rurais sem terra têm como foco central a luta pela terra 18 As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado e relativamente simples No início os entrevistados respondiam a perguntas sobre o seu histórico de compromisso com a advocacia popular e com aquele movimento específico em favor do qual hoje trabalham Em seguida se lhes perguntava sobre as principais demandas em que atuavam Então solicitavase que procedessem a uma avaliação geral sobre sua experiência com justiça Diante dessa avaliação em geral negativa os entrevistados eram instados a desenvolver uma justificação sobre essa avaliação e a oferecer exemplos concretos que pudessem ilustrar os termos da justificação Esses exemplos é que constituíram a principal fonte de informação Com isso a análise dos dados não ficou presa à interpretação que os próprios entrevistados davam à sua experiência ou seja aos juízos morais sobre a justiça que como Ewick e Silbey já haviam advertido necessariamente apareceriam em suas narrativas mas pôde articular uma leitura verdadeiramente transversal das várias experiências relatadas e compreender de um ponto de vista mais propriamente sociológico em que medida elas se aproximavam e se diferenciavam Nesse propósito as entrevistas foram codificadas e depois visando ampliar o grau de validade dos temas emergentes na análise os resultados provisórios foram confrontados com outras fontes de evidência documentos entrevistas e notas de campo compartilhadas 18 A luta pela terra não é a única frente de atuação dos advogados populares no Brasil mas por várias razões pode ser vista como representativa do trabalho desses profissionais e do estado da arte da relação entre os setores populares e a justiça Em primeiro lugar vários dos entrevistados nesta e em outras pesquisas anotam que a luta pela terra sempre teve centralidade na advocacia popular não apenas porque este tema foi o primeiro a mobilizar os investimentos jurídicos de instituições como a Comissão Pastoral da Terra CPT mas também porque em torno dele se organizaram movimentos que adquiriram grande expressão e portanto forte poder de agenda como o MST Em segundo lugar a questão da terra permanece tendo grande relevância na agenda pública brasileira não apenas por ser objeto de reivindicações por reforma agrária mas também por afetar outras populações marginalizadas como os indígenas e os quilombolas Em terceiro lugar porque a luta pela terra envolve grupos com níveis de poder e dinheiro bastante assimétricos Assim ainda que se refira a uma experiência social específica a luta pela terra constitui um mirante privilegiado para examinar tanto o grau de per meabilidade democrática da justiça quanto as suas possibilidades de atuação num sentido democratizante Basta ver por exemplo a batalha que vem sendo travada em torno da constitucionalidade do Decreto no 48872003 que regulamentou os procedimentos para o reconhecimento de áreas remanescentes de quilombo e segundo os seus oponentes facilitou indevidamente a titulação de terras pelas comunidades quilombolas ver Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3239 interposta pelo Partido da Frente Liberal PFL 22 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 por pesquisadores que trabalham ou já trabalharam com o tema da advocacia popular CARLET Slsn ALMEIDA Slsn SÁ E SILVA SANTOS 200919 No que diz respeito aos objetivos específicos deste texto ou seja examinar o grau de permeabilidade democrática da justiça todo esse esforço analítico permitiu verificar com clareza três grandes fontes de tensão na relação entre as instituições da justiça e a prática da advocacia popular as quais serão expostas em maior detalhe na próxima seção Embora não esgotem a lista de obstáculos para a construção de uma justiça democrática dado até mesmo o corte preponderantemente exploratório da pesquisa esses achados reforçam preocupações clássicas da literatura trazem alguns componentes novos para o debate e sugerem novas formas de abordar velhas questões E acima de tudo eles suscitam a importância e a urgência de se abordar a justiça e suas reformas sob o ângulo democrático não apenas gerencial ou burocrático como resulta da agenda que se tornou hegemônica para o setor a partir dos anos 1990 4 DIANTE DA LEI TRÊS TENSÕES NA RELAÇÃO ENTRE ADVOGADOS POPULARES E O SISTEMA DE JUSTIÇA Em certa altura de uma de suas mais conhecidas obras traduzidas para o português Kafka 1995 p 230232 menciona a história de um homem do campo que se dirige à lei pede para entrar mas é proibido por um porteiro O homem reflete e pergunta se não poderia entrar mais tarde É possível diz o porteiro mas agora não Seguese daí um notável conjunto de diálogos e interações por meio do qual o homem tenta convencer o porteiro a deixálo entrar na lei mas não obtém sucesso Não que o porteiro proíbao completamente de acessar a lei apenas o amedronta dizendo coisas como Se a lei o atrai tanto tente entrar apesar da minha proibição Mas veja bem eu sou poderoso E sou apenas o último dos porteiros De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro À semelhança do episódio narrado por Kafka em O Processo as histórias recolhidas por ocasião desta pesquisa expõem as tensões enfrentadas pelos movimentos 19 Esse procedimento de pesquisa foi conduzido sob regime de confidencialidade razão pela qual as identidades dos entrevistados encontramse omitidas no presente texto e o uso de elementos que se lhes permite identificar teve como único intuito fornecer aos leitores uma apreensão do contexto no qual tais profissionais atuam Texto para Discussão 1 5 6 7 23 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares sociais e setores desfavorecidos em sua experiência diante da lei Esta seção do texto descreve e discute três dessas tensões conforme o destaque que apresentaram nas falas dos entrevistados 41 PRIMEIRA TENSÃO COMO SE DEFINE O DIREITO APLICÁVEL Estudos sobre a inserção do sistema de justiça na recente experiência de democracia constitucional no Brasil revelam um panorama ambíguo no qual o arcabouço jurídico político extremamente avançado da Constituição de 1988 convive com posturas e práticas arcaicas nas instituições que assim negam efetividade aos princípios libertários e igualitários consagrados na Carta Política SOUSA JÚNIOR 2009 Em princípio a tensão em torno da definição do direito aplicável que esta pesquisa identificou como muito presente na relação entre setores populares e justiça não contradiz essa descrição da realidade Histórias tiradas da advocacia em favor de direitos dos povos indígenas oferecem um bom exemplo de que a organização e o funcionamento da justiça não acompanharam a transição entre o paradigma da integração e o paradigma de multiculturalismo operada pela Constituição20 Falando sobre os inúmeros contratempos enfrentados pelos indígenas em razão da falta de serviços de intérprete em procedimentos judiciais uma advogada popular assim resgata esse problema Como a característica dos guaranis é ser um povo muito religioso culturalmente eles não contrariam o nãoíndio Quando vão dar um depoimento em juízo se o juiz pergunta você matou o índio guarani não diz que não E aí você não tem a tradução da língua você coloca um indígena que fala rudimentos de português que não entende a cultura a lógica nãoíndia com um nãoíndio tomando perguntas tomando depoimento num rito que a pessoa não entende então as palavras têm valores diferentes para as pessoas e há essa questão da decodificação cultural quando um índio fala o juiz não pode admitir que ele o índio está falando como se fosse uma outra pessoa porque tem toda uma implicação cultural no que ele diz além da própria limitação do vocabulário há coisas que o índio diz de um determinado jeito ou simplesmente não diz porque não pode fazer diferente E isso não ocorre só no caso do Judiciário mas com raras exceções é também a postura da polícia de todas as polícias que estão no Executivo mas fazem parte da estrutura da Justiça Está tudo muito pautado em visões preconceituosas desqualificadoras do índio E é com base nisso que o Judiciário trabalha que o Executivo trabalha que os parlamentares trabalham é o que a sociedade fala Isso não é índio índio não usa celular o sujeito fala português o sujeito está integrado A Constituição acabou com essa história de integração a perspectiva é outra mas o Judiciário até hoje não acompanhou esse movimento 20 Ver a esse propósito o brilhante trabalho de Lacerda 2009 24 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Mas as histórias contadas pelos advogados populares indicam que a dificuldade da justiça brasileira não é apenas de efetivar princípios constitucionais tarefa que em princípio exigiria sofisticado esforço hermenêutico21 mas também de recepcionar avanços políticojurídicos expressos em dispositivos próprios e específicos os quais vão desde tratados internacionais até leis portarias e outros instrumentos de política pública Um advogado dedicado a causas quilombolas assim se refere a essa característica Conversando com outros colegas até mais experientes eu vejo que essa questão passa é claro pelo conservadorismo do judiciário brasileiro o Estado no qual reside o entrevistado não é diferente acho que ali o problema até é mais acentuado por toda a história coronelista e conservadora que tem mas além do conservadorismo passa também pelo desconhecimento desses operadores juízes e promotores em relação a leis e tratados internacionais que garantam o direito dessas pessoas Só pra citar um exemplo alguns juízes e promotores desconhecem as disposições normativas sobre as comunidades quilombolas sobre o que é mesmo ser quilombola qual é a definição conceitual das comunidades de comunidades tradicionais então o desconhecimento junto com o conservadorismo é um dado bem claro Nesse contexto explica esse entrevistado a atuação dos advogados populares acaba marcada fundamentalmente pela tentativa de revelar um novo conjunto de referências para o sistema ou Mostrar ao judiciário ao ministério púbico à polícia enfim de que além do direito constitucional mais geral segundo o qual todos são iguais existem diplomas específicos sobre a garantia desses direitos Num exemplo mais concreto assim que eu entrei na organização existia uma possessória ação pela qual se busca a reintegração da posse de um bem contra uma comunidade quilombola na qual o juiz tinha expedido a liminar de reintegração imediata de posse sem oitiva das partes sem notificação prévia com base apenas no documento probatório de propriedade Os prazos de recurso haviam sido perdidos a liminar prestes a ser cumprida E aí o que eu tive de fazer Entrei com uma declaratória incidental ação promovida no âmbito de uma outra ação no caso a possessória buscando obter da justiça a declaração de um direito ou relação jurídica dizendo para o juiz Olha primeira coisa ali não existe a posse alegada pelo autor da ação Segunda coisa caracterizei a comunidade como comunidade remanescente de quilombo como ela mesma se afirma informei que havia processo administrativo já havia até relatório antropológico portanto a comunidade demandada era a verdadeira possuidora da terra Acionei o promotor da comarca porque aqui temos um problema sério de os juízes não informarem os promotores de conflitos agrários de posse coletiva conforme dispõe o CPC Código de Processo 21 Não à toa Dworkin 1999 criou a figura do JuizHércules para dar a medida do esforço necessário à tarefa de aplicação da Constituição Texto para Discussão 1 5 6 7 25 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Civil lei que disciplina o modo como as ações judiciais tramitam E em virtude dessa ação e da intervenção do Ministério Público o próprio juiz que concedeu a liminar acabou revogandoa reconhecendo que não tinha conhecimento daquilo da realidade fática e nem mesmo da realidade jurídica que envolvia aquela comunidade A desconsideração desses instrumentos específicos da qual reclama o advogado entrevistado tem sérias implicações não apenas para a construção de uma justiça democrática pois dotada de baixa permeabilidade às demandas e expectativas de setores populares mas também para a consolidação do próprio regime democrático Com efeito essa desconsideração sinaliza uma tendência estrutural de não implementação das decisões produzidas pelo sistema político quase sempre depois de longos debates e muitas concessões na tentativa de mediar conflitos de grande dimensão e impacto Se depois de anos atuando em espaços deliberativos domésticos ou internacionais um movimento ou grupo consegue alcançar uma vitória com a aprovação de uma lei a edição de um decreto ou a homologação de um tratado internacional mas verifica que essa vitória teve pouca aplicação prática é a responsividade de todo o sistema político e a adesão dos cidadãos ao regime democrático que em última análise estão em jogo 42 SEGUNDA TENSÃO ONDE ESTÁ A IMPARCIALIDADE Uma questão que fica no ar a partir da recémexplorada tensão em torno da definição do direito aplicável é de que maneira o desconhecimento das leis e a inaptidão para dar concretude a princípios constitucionais são efetivamente produzidos no âmbito da justiça Boa parte da literatura disponível tende a associar esses fatores a uma espécie de bloqueio cultural dos profissionais do direito os quais não teriam a sensibilidade ou a preparação intelectual necessárias para dialogar com os aspectos culturais políticos filosóficos sociológicos ou econômicos subjacentes aos conflitos que decidem e às categorias jurídicas com as quais operam Embora traga ao debate um elemento importante a cultura jurídica o qual tem mobilizado um amplo movimento de reforma do ensino jurídico no Brasil essa abordagem acaba por desconsiderar a teia de relações sociais na qual esses profissionais estão assentados e da qual diriam Ewick e Silbey 2003 eles fatalmente retirarão as referências culturais que mobilizam em suas práticas mais comezinhas Essa dimensão de análise e crítica no entanto emerge vivamente com a segunda tensão verificada nesta pesquisa para a relação entre advogados populares e o sistema de justiça uma tensão aqui definida como gravitando em torno da parcialidade do sistema 26 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Reivindicações por imparcialidade na justiça podem soar despropositadas quando advindas de advogados populares pois a expressão imparcialidade remete quase sempre à imagem de autoridades neutras sem preferências ou preconceitos atributos estes que dificilmente encontrariam sustentação empírica e que sempre tiveram muito pouca ressonância entre os críticos do direito oficial aos quais os advogados populares têm alguma filiação Mas nas histórias contadas por esses profissionais a demanda por uma justiça imparcial significa tãosomente a demanda por uma justiça sem vínculos orgânicos ou interesses diretos nas questões que tem por ofício examinar ou como disse uma das entrevistadas que atua na defesa de indígenas uma justiça sem vínculos ou interesses com isso que a gente chama de interesses econômicos e políticos não é Os interesses do latifúndio os interesses do agronegócio tudo isso acaba um pouco misturado com o funcionamento da justiça não é Aqui mesmo no TRF a gente estava fazendo essa análise o futuro presidente é proprietário de terras e tem uma jurisprudência de mais de 20 anos construída a favor dos proprietários de terras e contra quem quer que limite o acesso de terras aos proprietários de terra ou seja sem terra índio quilombola os pobres em geral Mas não são só os juízes que tem terras isso é uma questão cultural no nosso país todo mundo que se torna alguém compra terras Então juízes parlamentares gente do próprio executivo todos se tornam fazendeiros E quando não é a pessoa mesma são os parentes dela e quando não são parentes são pessoas da família por aliança Ao final tudo se liga Quem tirou as terras dos guaranikaiowa no Mato Grosso do Sul Quem diz que tem o título Quem titulou Quem está lá é colega de quem deu o título que é colega do juiz que não deixa a situação mudar A existência dessa ligação estrutural entre os quadros da justiça e a estrutura fundiária que digase de passagem foi constatada em quase todas as entrevistas tem inegável repercussão na relação entre os advogados populares e a justiça eis que inspira desconfiança quase que geral no sistema Um advogado que atua na defesa de sem terras por exemplo diz que Aqui e em boa parte dos Estados o judiciário tem uma formação de pessoas que vêm do latifúndio filhos de grandes proprietários de terra que quando se deparam com demandas agrárias tomam como se fosse contra eles contra a propriedade deles E dizem ah fica defendendo mas e se fosse na sua terra Meu pai tem terra esse pessoal vai invadir a terra do meu pai Então tem esse lado no conservadorismo as raízes rurais e agrárias do judiciário Texto para Discussão 1 5 6 7 27 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares No mesmo sentido vai a seguinte passagem da entrevista do já mencionado advogado que atua na defesa de quilombolas A grande maioria dos juízes não tem comprometimento mas não é nem só o comprometimento com a causa isso nem é tão importante É a lisura a imparcialidade e a neutralidade para resolver conflitos agrários porque muitos juízes são donos de fazenda no Estado são proprietários de terras então podese antever aí que não vai haver o dono de fazenda não vai dar uma decisão favorável aos trabalhadores que ocupam uma área No entanto o problema não é apenas de desconfiança que em si mesma já não é nada desprezível para um projeto de organização democrática da justiça Algumas vezes o autêntico conflito de interesses entre a justiça e o latifúndio se expressa em situações concretas de opressão É o que ocorre no caso que prossegue contando o advogado que atua na defesa de quilombolas Então a gente enfrenta muitas dessas situações houve um caso que teve uma repercussão nacional forte de um juiz que não é do Estado mas trabalha aqui no Estado que responde a uma ação por trabalho escravo houve denúncia do Ministério Público no TJ existe uma investigação criminal contra os capangas dele Ocorre que esse juiz foi simplesmente removido de comarca e continua expedindo liminares e liminares em possessórias através dos mesmos mecanismos de que eu já te falei sem oitiva da outra parte e de modo até um pouco arbitrário Houve um caso no cumprimento de uma liminar de reintegração de posse de uma de suas fazendas que havia sido ocupada pelo MST em que ele próprio esse juiz numa quartafeira dirigiu 500 quilômetros de sua comarca em direção a essa fazenda para ele mesmo cumprir a liminar expedida por um outro juiz junto com um oficial de justiça Isso em pleno dia de semana sem ele estar de férias sem estar de licença sem estar afastado Então o conservadorismo do judiciário no Estado em que pese repito as louváveis exceções que nós temos vai muito nesse sentido de os próprios juízes serem proprietários de terras Nesse ponto o debate democrático apresenta forte convergência com o debate republicano A criação de mecanismos voltados à garantia de uma justiça imparcial órgãos de controle federalização de determinadas matérias regras efetivas disciplinando conflitos de interesse impedimento e suspeição etc aparece como exigência de uma justiça democrática Da mesma forma a identificação desta segunda tensão reforça a importância de se travar o debate sobre a qualidade democrática da justiça com os olhos voltados não apenas para os seus produtos aquilo que ela faz ou entrega mas também para as suas formas de organização e funcionamento com atenção especial percebese agora para a sua relação com estruturas de poder 28 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 43 TERCEIRA TENSÃO PODER E SIMBOLOGIA NA ESTRUTURAÇÃO DAS PROFISSÕES JURÍDICAS Uma última tensão verificada nas histórias dos advogados populares ainda que não presente em todas as histórias coletadas na pesquisa22 está associada às relações de poder e hierarquia que subsistem dentro das próprias profissões jurídicas e que se refletem mesmo em preconceito no âmbito da justiça contra aqueles que fazem a opção de se engajar na prática da advocacia popular Em entrevista a Carlet Slsn um advogado popular assim falava sobre as dificuldades que enfrenta em seu trabalho R Tem o preconceito dos colegas não advogados populares os colegas membros do poder judiciário membros do poder público P E como se manifesta esse preconceito R É o advogado de MST advogado de quilombola insinuam que você desconhece aquilo sobre o que está falando desconhece o direito desconhece aquilo que na verdade você conhece muito bem Na realidade é uma transferência de preconceitos é uma discriminação muito transferida porque esses seus pares discriminam aquele movimento e como você advoga para ele essa discriminação acaba se transferindo para você Um exadvogado popular entrevistado nesta pesquisa mostra que na verdade essa atitude se inicia já no período de formação em direito Falando sobre a sua trajetória na Faculdade de Direito ele se recorda de ter sido acometido por Aquele sentimento de minoria Aquele sentimento de que você está falando e ninguém está te ouvindo E tem toda uma torcida contra Sua família vem e diz Larga disso você vai ser sindicalista Seus colegas todos estudando para fazer concurso no final da reta já e você lá com a bandeira do MST na mão Não é fácil não é Até porque o nosso curso é um curso de poder Oitenta por cento do nosso curso forma gente para ganhar dinheiro O aluno é formado para ganhar dinheiro para ser rico ter um grande escritório e você dizendo que vai ser advogado de sem terra sem teto e negão É toda uma torcida contra Mas acho que eu me questionei mais depois do curso do que durante o curso porque no curso tinha o gás do movimento Tinha toda uma mística vamos dizer assim 22 Para ser preciso essas histórias aparecem mais entre as minorias da advocacia popular mulheres negros e egressos de faculdades de menor tradição no ambiente jurídico Mas curiosamente isso apenas faz reforçar a caracterização desta terceira tensão Texto para Discussão 1 5 6 7 29 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares É importante questionar até que ponto essas assimetrias de poder dentro das profissões jurídicas devem ser mesmo naturalizadas como até os próprios advogados populares parecem fazer Em estudo sobre a globalização do direito por exemplo Dezalay e Garth 2002 p 51 destacam que nos Estados Unidos as profissões jurídicas adotam uma estrutura esquizofrênica na qual a esmagadora maioria dos advogados estruturam as suas carreiras em grandes firmas e em direito empresarial mas a classe como um todo preconiza e valoriza o engajamento com um direito de interesse público Assim os autores contam do espanto dos advogados de elite de Nova York quando chegaram a Buenos Aires e perceberam que seus pares latinos não tinham nenhuma preocupação em contribuir com instituições que ofereciam assistência jurídica gratuita ou mesmo em prestar serviços diretos aos necessitados em caráter de pro bono DEZALAY GARTH 2002 p 52 É claro que não se pode romantizar a advocacia norteamericana contra a qual há aliás uma vasta literatura crítica23 Mas o fato é que a institucionalização de uma retórica de interesse público na advocacia dos Estados Unidos ainda que não motivada pelo bom coração dos seus profissionais24 gera um sistema de incentivos materiais e simbólicos bastante razoável para aqueles que decidem se dedicar à defesa de pobres e desfavorecidos dos generosos financiamentos aos escritórios de interesse público oferecidos pela Legal Services Corporation no tempo de Robert Kennedy aos fellowships atualmente concedidos por instituições como a Equal Justice Works ou a Skadden Foundation25 A luta pela construção de uma justiça mais democrática no Brasil parece inspirar nesse sentido a luta pela socialização das profissões jurídicas26 23 Ver apenas a título de exemplo o contundente trabalho de Auerbach 1976 24 A expressão é inspirada no texto de Sarat e Scheingold 2005 p 03 para quem a afirmação dessa retórica no tempo decorreu do um contínuo esforço da profissão para melhorar a sua reputação capitalizando a ressonância pública de uma compreensão inclusiva dos direitos e da justiça ideais com os quais alguns advogados mas não a profissão como um todo se identificam 25 Ver respectivamente wwwequaljusticeworksorg e wwwskaddenfellowshipsorg 26 Por socialização das profissões jurídicas entendese aqui um conjunto de medidas voltadas a aproximar os advo gados dos setores e das demandas populares de modo que serviços jurídicos de mais alta qualidade deixem de ser apro priados preponderantemente pelas elites ver ABEL 1979 como decorre do argumento liberal de que a advocacia deve se estruturar segundo a lógica do mercado Não é o propósito deste texto discutir quais seriam essas medidas as quais poderiam envolver desde a socialização da formação em direito com maior acesso de pobres e desfavorecidos a cursos jurídicos de elite até a manutenção e o fortalecimento de serviços jurídicos gratuitos como as Defensorias Públicas que não à toa só adquiriram autonomia administrativa e financeira após mais de 20 anos da promulgação da Constituição e depois de enfrentar forte oposição de elites políticas e setores da advocacia nos estados 30 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Adotando uma linha eminentemente exploratória este texto buscou identificar fatores críticos no trato dos advogados populares com a justiça brasileira para com isso discutir o grau de permeabilidade da justiça às demandas e expectativas dos setores populares e por conseguinte os seus déficits democráticos Destacaramse assim três fortes tensões uma tensão associada à indiferença da justiça para com as mudanças relevantes e bastante concretas no arcabouço normativo do país em favor dos setores populares uma tensão associada aos vínculos entre a justiça e as estruturas de poder os quais comprometem a sua parcialidade e uma tensão associada às estratificações e hierarquias que subsistem dentro das próprias profissões jurídicas De um ponto de vista heurístico esses achados nos colocam dois importantes desafios ou ao menos enunciam duas possibilidades de inovação analítica em primeiro lugar a de atentar para as relações de poder que constituem a organização e o funcionamento da justiça Em segundo lugar a de incorporar nas análises as histórias e o cotidiano dos demandantes da justiça Neste aspecto pesquisas futuras podem se debruçar tanto sobre as histórias de outros atores que compõem a cartografia do acesso à justiça no Brasil em especial dos integrantes da Defensoria Pública pela importância que enfim esta instituição adquiriu no país quanto histórias de um universo leigo alcançando assim os indivíduos e grupos que efetivamente se acham à porta da lei Mas além de eventuais contribuições teóricas e metodológicas para um debate mais sociológico esses achados assumem ainda uma forte carga política Eles permitem perceber que o recado da justiça para os setores populares que buscam adentrála para exprimir as suas demandas é semelhante ao do porteiro naquele episódio narrado por Kafka e utilizado como introdução à seção anterior É possível mas agora não É claro que em sua atuação cotidiana os advogados populares criam alternativas para contornar os obstáculos com que se defrontam e prosseguir interpelando a justiça27 27 Por exemplo vale mencionar a aliança com setores progressistas no Ministério Público e na Defensoria Pública o re curso a estratégias jurídicas que deslocam a competência de processos para a justiça federal assim evitando as armadilhas da justiça local a tentativa de sensibilização das cúpulas da justiça e o recurso a jurisdições internacionais como o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e a busca por parcerias com organizações internacionais de grande prestígio que elevam o status do trabalho dos advogados populares e lhes permite circular melhor em meio às hierarquias das profissões jurídicas Texto para Discussão 1 5 6 7 31 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Mas embora essas alternativas abram espaço para formidáveis debates acadêmicos em temas como a diversificação das profissões jurídicas e o pluralismo jurídico é preciso ter em conta que um projeto democrático para a justiça deve ser construído desde e para o exercício de direitos não para a obtenção de favores ou a busca de jeitinhos Assim o texto nos incita a pensar estratégias de reforma e modernização da justiça que adotem não apenas uma perspectiva de maior agilidade ou eficiência mas sim da construção de um ambiente institucional mais acolhedor aos diversos tipos de pretensão de normatividade que circulam na sociedade Nesse aspecto vale retornar ao desfecho do episódio narrado por Kafka em O Processo Nele o camponês espera muitos anos para obter a aquiescência do porteiro e enfim entrar pela porta da lei Ao longo desse tempo o camponês tenta todos os expedientes para convencer o porteiro a deixálo entrar mas em nenhum momento obtém sucesso28 Finalmente já no final da vida o homem dirigese ao porteiro e lhe pergunta Todos aspiram à lei como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar Percebendo que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio conclui o texto o porteiro berra Aqui ninguém mais podia ser admitido pois esta entrada estava destinada só a você Agora eu vou embora e fechoa 1995 p 230232 Há uma boa e simples razão pela qual uma sociedade democrática não pode ou não poderia correr o risco de se transformar no cenário de semelhante relato kafkaniano Ao contrário do personagem construído pelo escritor é improvável que os nossos camponeses e todos os demais indivíduos e grupos oprimidos fiquem sentados diante da lei esperando por uma incerta abertura desta É mais provável isso sim que desistam dela e busquem dirigir as suas demandas de cidadania e dignidade para outras portas muitas das quais não nos soarão plenamente confortáveis Numa sociedade democrática portanto a justiça deve se constituir como um ambiente que todos enxerguem como adequado ao processamento de conflitos ainda que pelas mais diversas razões muitos decidam não utilizálo de pronto29 e em todo caso uma saída preferível em relação à violência 28 Esse enredo lembra o de outro romance de Kafka O Castelo Nesse romance o protagonista chamado simplesmente K é convocado por um conde a prestar serviços em um castelo K chega à cidade vai ao castelo mas por mais que tente não consegue entrar nele em momento algum Narrativa absurda e carregada de simbolismo como toda história de Kakfa O Castelo pode ser visto como uma metáfora a respeito de metas inalcançáveis e da obstinação humana em não desistir 29 Nesse sentido advogase aqui por uma sociologia do direito e da justiça que seja crítica e autocrítica que não sobre valorize a importância do direito e das instituições jurídicas oficiais na melhoria da vida das pessoas e que seja aberta ao reconhecimento de que frente a determinados problemas é possível e perfeitamente legítimo que em vez de mobilizar o direito e a justiça as pessoas prefiram não fazer nada SANDERFUR 2007 GARTH 2009 32 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 REFERÊNCIAS ABEL R L Socializing the legal profession can redistributing lawyers services achieve social justice Law and Policy Quarterly v 1 n 1 p 551 1979 ABRÃO P TORELLY M Assessoria 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Santos Vianna Maria Hosana Carneiro Cunha Capa Luís Cláudio Cardoso da Silva Projeto Gráfico Renato Rodrigues Bueno Livraria do Ipea SBS Quadra 1 Bloco J Ed BNDES Térreo 70076900 Brasília DF Fone 61 33155336 Correio eletrônico livrariaipeagovbr Tiragem 500 exemplares Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ISSN 14154765 9771415476001 SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA BRASIL UM PAÍS DE TODOS GOVERNO FEDERAL ipea 46 anos httpsdoiorg1018593ejjl26652 QUEM DEFENDERÁ A SOCIEDADE TRAJETÓRIAS E COMPETIÇÃO INSTITUCIONAL EM TORNO DA TUTELA COLETIVA ENTRE MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA NO PÓS19881 WHO WILL DEFEND SOCIETY TRAJECTORIES AND INSTITUTIONAL COMPETITION AROUND COLLECTIVE REDRESS BETWEEN PUBLIC PROSECUTORS OFFICE AND PUBLIC DEFENDERS OFFICE IN THE POST 1988 PERIOD Bruno Lamenha2 Flávia Santiago Lima3 Resumo A ordem constitucional de 1988 promoveu significativas mudanças no âmbito do sistema de justiça Este artigo aborda duas instituições nele inseridas suas trajetórias após a promulgação do texto constitucional apresentando uma hipótese de competição institucional entre ambas em torno de uma agenda igualmente cara à CRFB88 a defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos tutela coletiva Assim em que pese o quadro institucional desenhado pelo Constituinte de 19871988 tenha estabelecido funções muito distintas para o Ministério Público e a Defensoria Pública passados mais três décadas desde a CRFB88 verificase uma clara superposição de atribuições no campo da tutela coletiva entre as duas instituições Esteado na tradição do neoinstitucionalismo histórico analisando as trajetórias formais e informais de reconformação de ambas as instituições o texto identifica processos paralelos de mudança institucional no Ministério Público e na Defensoria Pública que estabelecem algumas hipóteses explicativas para a competição estabelecida entre os dois órgãos no âmbito da tutela coletiva A pesquisa é bibliográfica com amparo na revisão de literatura produzida no Direito e na Ciência Política quanto ao tema e análise documental legislação atas e discursos numa perspectiva interdisciplinar Palavraschave Ministério Público Defensoria Pública Tutela Coletiva Institucionalismo Histórico Competição institucional Mudança institucional Abstract The 1988 constitutional order promoted significant changes within the justice system This article addresses two institutions inserted in this scenario their trajectories after the promulgation of the constitutional text presenting a hypothesis of institutional competition between them around an also valuable agenda in the 1988 Constitution the defense of transindividual rights collective redress Thus in spite of the institutional framework designed by the Constituent of 19871988 having established very different functions for the Public Prosecutors Office and the Public Defenders Office three more decades since 1988 Constitution there is a clear overlap of attributions in the field of collective redress between these two institutions Based on the tradition of historical neo institutionalism analyzing the trajectories formal and informal of reorganization of both institutions the text identifies parallel processes of institutional change in the Public Prosecutors Office and the Public Defenders Office that establish some explanatory hypotheses for the competition established between them within the scope of collective redress The research is based in a bibliographic approach supported by the literature review produced in Law and Political Science regarding the theme and documentary analysis legislation minutes and speeches in an interdisciplinary perspective Keywords Public Prosecutors Office Public Defenders Office Collective Redress Historical Institutionalism Institutional Competition Institutional Change Recebido em 17 de novembro de 2020 Avaliado em 25 de novembro de 2020 AVALIADOR A Avaliado em 24 de maio de 2021 AVALIADOR B Aceito em 24 de maio de 2021 1 Agradecemos à inestimável contribuição dos pareceristas da publicação para o aperfeiçoamento deste artigo 2 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco httpsorcidorg0000000266552735 brunolamenhauolcombr 3 Mestre e Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco Professora da Universidade de Pernambuco e do Programa de Mestrado da Faculdade Damas httporcidorg0000000269950982 flaviasantiagouolcombr Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 73 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Introdução A defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos é considerada uma das principais inovações jurídicas do longo do processo de redemocratização política e consolidação institucional das últimas décadas no Brasil Celebrada como conquista da cidadania e marco do movimento de acesso à justiça a tutela coletiva constituise num dos fundamentos para a aproximação entre sociedade civil e sistema de justiça com consequências para os arranjos destas instituições Propõese como hipótese de trabalho que a atribuição da tutela coletiva foi estratégica para a construção do perfil institucional do Ministério Público MP e para a sua trajetória ao longo das décadas de 1990 e 2000 na qual a instituição acumulou significativo capital político e importante projeção social No percurso desde 1988 identificase uma inflexão nas prioridades institucionais do MP após esse primeiro momento de intensificação da atuação no campo da tutela coletiva com a retomada de um certo protagonismo no âmbito penal especificamente no campo anticorrupção Argumentase a esse respeito a ocorrência de uma mudança institucional informal no campo das prioridades institucionais do MP fenômeno que se tornou mais visível a partir de meados dos anos 200045 A Defensoria Pública DP por sua vez sofreu grande resistência à agenda mobilizada pelos defensores e assistentes judiciários estaduais ao tempo da constitucionalização da instituição na Constituição Federal de 1988 CRFB88 Neste sentido é importante historiar o resgate pela DP das pautas bloqueadas na Assembleia Nacional Constituinte de 19871988 ANC através de um progressivo movimento de alterações legislativas que culminaram no seu atual perfil institucional profundamente associado à reivindicação de atribuições no campo dos direitos transindividuais A agenda em torno da tutela coletiva no processo de construção do MP de 1988 e nas mudanças institucionais da DP no período posterior a 1988 não é acidental A defesa de direitos 4 Conforme se advertirá mais detidamente a seguir considerando a pluralidade de institucionais ministeriais e defensoriais nos diferentes níveis do sistema de justiça há uma limitação na identificação de marcos temporais precisos para o registro de elementos indicativos de mudanças institucionais que sejam contemporâneas a todos os órgãos estaduais e federais do MP e da DP O que o texto argumenta é que apesar dessa dificuldade há evidências de que houve uma mudança gradual de agenda corporativa comum com reflexos até mesmo no plano atitudinal em relação sobretudo à autovisão dos promotores e procuradores em relação à corporação e a sua própria atuação difusamente partilhada por todo Ministério Público brasileiro 5 A referência temporal a meados dos anos 2000 é mobilizada por diversos autores que pesquisam a trajetória do Ministério Público de 1988 A título exemplificativo Avritzer e Marona 2017 p 366 pontificam sobre o Ministério Público e essa mudança de prioridades que de fato a partir dos anos 2000 a via criminal começou a parecer mais atrativa particularmente depois da reabilitação do prestígio do inquérito policial que veio à reboque do enorme incremento institucional que a polícia judiciária experimentou particularmente a Polícia Federal Não se pode perder de vista que por vezes o foco privilegiado da literatura tem sido a experiência do Ministério Público Federal dado o seu caráter nacional obnubilando a experiência particular dos MPs dos estados e do DF Isso não significa no entanto que o fenômeno descrito não se faça sentir no âmbito destes últimos conforme Lemgruber et al 2016 demonstram através de um survey de dimensões nacionais acerca da visão dos membros do MP acerca da instituição e de sua atuação e Sampaio e Viegas 2019 p 13 a partir dos dados de produtividade do Conselho Nacional do Ministério Público dos anos de 2015 a 2017 Tais achados serão expostos com mais vagar no decorrer do texto 74 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade transindividuais em uma sociedade estruturalmente desigual como a brasileira é capaz de mobilizar uma imagem institucional positiva e por conseguinte maior visibilidade e capital político Sob certo aspecto a atuação neste campo é capaz de alçar tais instituições a uma posição de mediadoras da cidadania mas também indica a necessidade de um arcabouço jurídico de independência e insulamento das pressões políticas contrárias às pautas transindividuais o que pode sugerir competições entre os responsáveis pela tutela coletiva em busca de sua titularidade única Não é por acaso portanto que ao longo das décadas que se seguiram a 1988 o MP tenha sido um dos principais atores a tentar bloquear sem sucesso a expansão das atribuições da DP nesta direção ainda que paralelamente a esse processo o próprio Ministério Público tenha relegado a tutela coletiva a um papel secundário na agenda de construção de sua imagem institucional Neste sentido haveria um processo de aproximação e até mesmo superposição de funções entre Ministério Público e Defensoria Pública no âmbito da tutela coletiva Para responder à pergunta de pesquisa proposta o artigo tem como objeto a análise das trajetórias de ambas as instituições nas décadas que se seguiram ao momento constituinte A hipótese geral é de que a tutela coletiva se converteu numa ratio mobilizada para a formatação de instituições autônomas e garantia de independência aos membros do sistema de justiça conforme proposto por parte significativa da literatura sobre o Ministério Público6 e é possível deduzir tanto a partir das inovações legislativas associadas ao MP nas décadas que antecederam à Constituinte7 quanto da interação do órgão com setores da sociedade civil organizada de então8 O raciocínio se estende à Defensoria Pública 6 Neste sentido Rogério Arantes 2002 p 35 argumenta que a mobilização da agenda corporativa do MP nas décadas de 1970 e 1980 na direção da assunção de uma função central na defesa dos nascentes direitos de natureza difusa coletiva ou individual homogênea constituiu um ponto de inflexão da virada histórica do Ministério Público na direção do perfil institucional assumido pelo órgão em 1988 7 Carvalho e Leitão 2010 p 400 destacam como a intervenção obrigatória do MP em matérias que versassem sobre interesse público estabelecida no art 82 III do Código de Processo Civil de 1973 abriu uma discussão em torno dessa categoria aberta e sem maiores delimitações semânticas permitindo que setores reformistas da comunidade jurídica e a agenda corporativa do próprio MP que à época não contava com uma mobilização nacional tendo por principal expressão a Associação Paulista do Ministério Público APMP passassem a sustentar que a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis estava abrangido na categoria Este ponto é interessante uma vez que a intenção original do legislador processual civil dizia respeito tãosomente à fiscalização do interesse patrimonial das pessoas jurídicas de direito público ARANTES 2002 p 3233 No período pré1988 vários outros movimentos legislativos merecem referência tais como i a Emenda Constitucional n 71977 que alterou a Constituição autoritária de 1967 e previu uma lei orgânica nacional para o MP art 96 p único ii a previsão na LC 401981 primeira lei orgânica nacional do MP da iniciativa para ação civil pública como uma das atribuições do órgão com expressa previsão da defesa da ordem jurídica e dos interesse indisponíveis da sociedade como uma das funções ministeriais v arts 1º 3ºIII As duas legislações lembra Cabral Netto 2009 p 40 foram objeto de intenso lobby da Confederação das Associações Estaduais do Ministério Público CAEMP antecessora da Associação Nacional do Ministério Público CONAMP 8 Aqui Maciel e Koerner 2014 p 114 destacam que as estratégias e alianças adotadas pelo movimento associativo do MP a partir de 1974 foram relevantes para a conquista da independência institucional e do novo papel da Constituição de 1988 Em primeiro lugar a construção doutrinária da noção de interesse público acompanhada do engajamento nas mobilizações ambientalistas foi transformando o MP numa alternativa institucional viável e disponível naquele momento para canalizar os novos problemas e conflitos sociais Em segundo lugar a interação com as redes pródemocracia contribuiu para ampliar o padrão tradicional de alianças bem como as estratégias de mobilização para além do lobby Nesse processo o MP atraiu para si visibilidade pública inédita que se converteu no apoio político de grupos movimentos sociais comunidade científica e meios de comunicação ao perfil potencialmente politizado de atuação profissional Dois frutos deste processo descrito pelos autores são a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente Lei n 693881 que conferiu ao MP a legitimidade exclusiva para promover a responsabilização civil e criminal por danos causados ao meio ambiente CARVALHO LEITÃO 2010 e a própria Lei n 734785 a Lei da Ação Civil Pública que estabeleceu o MP como um dos legitimados ativos para a Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 75 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima portanto uma vez que o desenvolvimento do texto indica a existência de elementos que identificam a mobilização de uma trajetória institucional bastante similar do órgão a partir de suas funções clássicas na direção de arrogar para si atribuições também no campo dos direitos transindividuais Adotase como marco teórico o institucionalismo histórico por salientar as conexões entre comportamentos individuais e mudanças institucionais assimetrias de poder no desenvolvimento destas além de enfatizar as trajetórias path dependence e suas consequências intencionais ou não avaliando seus resultados políticos HALL TAYLOR 1996 p 938 Neste sentido destacase a perspectiva de que o ativismo político de agentes estatais ou seja a mobilização das elites jurídicas em torno de uma agenda específica é um aspecto central para refletir a respeito do marco normativo original e nas mudanças institucionais ocorridas na DP e no MP após a promulgação da CRFB88 e que não necessariamente está relacionado a uma melhor eficiência na concretização de velhas atribuições e das novas funções as quais se reivindica ARANTES 2015 p 30 O segundo ponto está relacionado à temática da mudança institucional Aqui propõe se que diferente da abordagem institucionalista mais convencional mudanças institucionais não exigem necessariamente alterações formais nas regras que organizam o desenho e o funcionamento da instituição podendo ocorrer inclusive gradualmente e a partir do desenvolvimento de processos informais e internos MAHONEY THELEN 2010 p 414 Assim o texto descreve os aspectos gerais do marco normativo original de MP e DP na CRFB88 para avançar nas discussões em torno de mudanças institucionais formais e informais categoria de análise relevante para pensar a interação e a competição entre as instituições do sistema de justiça no Brasil Deste quadro geral passase à análise das trajetórias especificas destas instituições as sucessivas normativas que alteraram o perfil institucional da DP na agenda original de autonomia e independência e ampliação das suas atribuições e no caso do MP as alterações no campo de suas prioridades institucionais do campo da tutela coletiva para o combate à corrupção no âmbito penal Antes de prosseguir uma dificuldade adicional merece ser mencionada Ministério Público MP e Defensoria Pública DP não são uma mesma instituição nos diferentes níveis do sistema de justiça brasileiro Há na realidade dezenas de órgãos do MP e da DP considerada a sua organização particular nas unidades da Federação UFs e também no plano federal9 Nesta esteira propositura da ACP art 5º e o único com atribuição de instaurar o inquérito civil prévio art 8º par 1º Aqui também este ativamente presente a agenda corporativa do MP à época sendo sintomático o registro na exposição de motivos do projeto da lei de ACP a colaboração prestimosa de membros do Ministério Público de São Paulo ao texto submetido ao Parlamento ARANTES 2002 p 61 9 Quanto ao MP além dos 26 vinte e seis órgãos ministeriais estaduais o Ministério Público da União MPU se desdobra além do Ministério Público Federal MPF e do MPDFT Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em dois órgãos ministeriais de temática particular o Ministério Público do Trabalho MPT e o Ministério Público Militar MPM totalizando 30 trinta instituições distintas Excluise dessa contagem os chamados Ministérios Públicos de Contas uma vez que se trata de órgãos inseridos na estrutura dos Tribunais de Contas e não instituições ministeriais autônomas No 76 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade é esperado que órgãos diferentes possam espelhar infraestruturas regramentos internos e culturas institucionais variadas Este alerta é particularmente importante no caso do MP por se tratar de uma instituição mais longeva comparativamente à DP que somente foi nacionalmente estruturada e constitucionalizada com a CRFB88 A tentativa de traçar uma trajetória institucional comum portanto envolve limitações inerentes a essa pluralidade institucional sendo o esforço desta análise o de mapear elementos associados a uma certa trajetória institucional comum de um modelo nacional de ambas as instituições calcado sobretudo a partir de seu marco normativo constitucional Evidentemente este esforço não exclui apenas reforça a relevância de abordagens particulares em relação a determinado órgão do MP ou da DP a serem desenvolvidas em outras frentes de pesquisa Argumentase assim que a viabilidade e a utilidade do mapeamento ora proposto e desenvolvido no decorrer do texto se esteia sobretudo na existência de um marco normativo único nas legislações de regência de ambas instituições seja a própria Constituição Federal quanto as LC 8094 Lei Orgânica da Defensoria Pública e Lei n 862593 Lei Orgânica do Ministério Público além de instâncias associativas de caráter nacional capazes de promover a coordenação e a articulação de uma agenda institucional única10 MADEIRA 2014 p 56 1 Duas instituições em desharmonia o marco normativo original de MP e DP na CRFB88 O ativismo político de agentes estatais aqui notadamente no âmbito do sistema de justiça é um fenômeno pouco explorado pela análise institucionalista MOREIRA 2016 p 4950 A literatura especializada no entanto propõe que o desenho institucional assumido por instituições do sistema de justiça como o Ministério Público MP e a Defensoria Pública DP no quadro normativo da Constituição de 1988 CRFB88 está intimamente associado entre outros aspectos às agendas mobilizadas pelas elites jurídicas a partir da conjuntura política e social da época MACIEL KOERNER 2014 p 113114 MOREIRA 2016 p 7576 Embora do ponto de vista normativoconstitucional seja possível objetar que enquanto a DP foi constitucionalizada apenas em 1988 o MP possuiria uma perenidade institucional mais estabelecida na história republicana nacional parece correto afirmar que a CRFB88 representou caso da DP são 28 vinte e oito órgãos ao todo uma Defensoria Pública da União DPU e 27 vinte e sete defensorias estaduais DPEs 10 Observese por exemplo a Associação Nacional de Membros do Ministério Público CONAMP e a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos ANADEP associações civis de caráter nacional que agregam membros de todas as carreiras do MP e da DP respectivamente e ainda o Conselho Nacional de ProcuradoresGerais CNPG e o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais ambas entidades associativas que reúnem os chefes de carreira dos diferentes órgãos do MP e da DP em todo território nacional Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 77 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima o ponto de chegada de um longo processo de mudança institucional formal11 iniciado em meados da década de 197012 e que assegurou uma identidade institucional e normativa consolidada para o órgão ARANTES 2002 p 76 SAUWEN FILHO 1999 p 165169 Como amplamente explorado pela literatura especializada ARANTES 2002 KERCHE 2009 RIBEIRO 2017 SADEK 2000 o MP de 1988 produziu uma instituição com perfil absolutamente singular13 e a ampla reengenharia de atribuições e prerrogativas esteve intimamente relacionada com o afirmação de atribuições para além da clássica função de persecução penal típica do MP especialmente no que diz respeito à atuação no âmbito da defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos14 a chamada tutela coletiva ARANTES 2002 p 50 A constitucionalização da Defensoria Pública em 1988 por sua vez encontrou maiores dificuldades que a trajetória percorrida pelo MP A agenda dos defensores e dos assistentes judiciários que atuavam no âmbito dos Estados estava relacionada em linhas gerais à criação de uma instituição de caráter nacional com a mesma estatura de prerrogativas do MP e com a função precípua de promover a orientação jurídica e defesa dos necessitados No contexto da Assembleia Nacional Constituinte de 19871988 ANC todavia houve resistências da parte de outras corporações jurídicas às pretensões defensoriais especialmente as mobilizadas pelas procuradorias estaduais pela OAB e pelo próprio MP MOREIRA 2016 p 78 Esse cenário de competição institucional é um elemento importante para compreende o porquê de somente em 2012 todos os estados da Federação passarem a contar com uma DP estadual em seus respectivos sistemas de justiça apesar do marco constitucional estabelecido em 1988 De todo modo o quadro normativo original da CRFB88 estabeleceu uma divisão de atribuições bem delimitada entre MP e DP No âmbito criminal ambas as instituições foram colocadas em polos opostos o MP como titular da ação penal pública e a DP na defesa dos que por razões econômicas não pudessem contratar os serviços de um advogado privado No âmbito cível a atuação do MP estaria majoritariamente associada à defesa de direitos transindividuais enquanto 11 Não há consenso na literatura quanto às razões do sucesso político da agenda ministerial na busca de fortalecimento institucional a partir da tutela coletiva CARVALHO LEITÃO 2010 p 404408 A melhor leitura parece combinar múltiplos aspectos LAMENHA 2019 tais como o lobby institucional bem organizado ARANTES 2002 p 77 a existência de uma conjuntura ideológica e política favorável à concessão de independência de amplos poderes para promover o interesse social a uma instituição fora do jogo políticoeleitoral ordinário KERCHE 2009 p 23 e a articulação com atores externos ao sistema de justiça nomeadamente com a sociedade civil organizada durante o processo transicional brasileiro KOERNER MACIEL 2014 p 113114 12 Referimonos especificamente à inserção no art 82 III do Código de Processo Civil de 1973 da atribuição explícita do MP em intervir obrigatoriamente em todas as causas que versassem sobre interesse público ARANTES 2002 p 3233 CARVALHO LEITÃO 2010 p 400 As notas de rodapé n 5 e 6 desenvolvem com mais detalhes este ponto 13 Não é incomum na literatura a referência ao perfil único no mundo legado pelo Constituinte de 19871988 ao MP NÓBREGA 2007 p 64 14 Apesar de existir significativa discussão na literatura especializada a respeito é suficiente para os propósitos deste texto diferenciar direitos difusos direitos coletivos e direitos individuais homogêneos no marco do art 81 p único do Código de Defesa do Consumidor Assim i direitos difusos são direitos transindividuais de natureza indivisível de que sejam titulares pessoais indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato ii direitos coletivos são direitos de natureza indivisível de que seja titular grupo categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária por uma relação jurídica base iii direitos individuais homogêneos são direitos individuais equiparados à condição de direitos transindividuais em razão da origem comum que conecta todos os seus titulares 78 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade a DP atuaria na tutela individual dos necessitados BRASIL 1988 Assim parece acertado propor que ao final do processo constituinte as duas instituições foram eficientes em reivindicar para si um campo importante de um movimento mais amplo de cariz internacional de fortalecimento das instituições judiciais de acesso à justiça e de coletivização de direitos CAPPELLETTI GARTH 1988 2 Pluralismo estatal e mudança institucional Evidentemente instituições não constituem o único elemento explicativo relevante da vida política HALL TAYLOR 2003 p 201 No entanto os casos de MP e DP ilustram que é acertada a abordagem que considera os atores estatais e não apenas os atores não estatais como capazes de mobilizar seus próprios interesses para influenciar na concepção de um desenho institucional ou de uma política pública SKOCPOL 1985 No caso da institucionalidade brasileira Rogério Arantes 2015 p 30 sugere que ao lado das formas tradicionais de pluralismo político por meio das quais os atores e grupos sociais mobilizam suas demandas frente ao Estado desenvolveuse uma espécie de pluralismo estatal isto é um fenômeno associado ao planejamento e à consecução de metas institucionais específicas em prol da criação eou mudança institucional em organismos estatais a partir de demandas capitaneadas por atores grupos e corporações no interior do próprio Estado e não apenas atores extraestatais como é usual nas explicações das teorias institucionalistas Tais projetos particularistas de poder são mediados no mais das vezes por uma linguagem de direitos eou de transparência associandoos a um melhor funcionamento das instituições ARANTES 2015 p 30 Arantes 2015 p 45 estruturou a referida categoria para pensar a interação entre MP Polícia Federal e demais órgãos associados à accountability das instituições estatais Em síntese argumenta que a existência de várias instituições e consequentemente múltiplas agendas para a consecução de maior espaço recursos e atribuições força a necessidade de modificações constantes nas regras de funcionamento do sistema de fiscalização dos poderes públicos em razão dos choques e conflitos institucionais inevitáveis Propõese que o fenômeno do pluralismo estatal pode ser uma chave analítica para pensar como a atribuição no campo da tutela coletiva em especial a legitimidade para a propositura do seu principal instrumento judicial a ação civil pública ACP tem sido mobilizada ao longo do tempo por MP e DP Parece uma estratégia útil portanto observar como essas instituições organizaram suas agendas políticas no sentido de reforçar ou ampliar suas atribuições e ainda como construíram os sentidos e as prioridades na construção de sua imagem pública e na atuação em suas respectivas atividadesfim Nesse aspecto os processos que viabilizam mudanças institucionais não passam necessariamente por uma alteração no marco normativo da instituição Mantida a estrutura Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 79 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima normativa processos informais podem alterar os sentidos e as prioridades de determinada instituição Além disso essas alterações no funcionamento da instituição tampouco exigem uma ruptura ou choque institucional provocado por um fator exógeno como é normalmente abordado na análise institucionalista Mudanças institucionais graduais e algumas vezes sem alteração substancial do próprio marco normativo podem modificar significativamente o perfil de uma instituição ao longo do tempo Assim tomase como formal o processo de mudança institucional que exigiu alterações nas regras que regulamentam determinada instituição e informal o processo congênere no qual tais modificações de marco normativo não se verificaram MAHONEY THELEN 2010 p 414 Os próximos tópicos deste artigo abordarão separadamente os processos de mudança institucional de MP e DP em torno da tutela coletiva nas décadas posteriores à promulgação da CRFB88 evidenciando o quão distintas foram as duas trajetórias não apenas em relação a seu resultado final No caso da Defensoria Pública temse um claro processo de mudança institucional formal as sucessivas alterações constitucionais e legislativas tornaram possível um novo marco normativo capaz de alterar o perfil institucional do órgão não só concretizando sua agenda original de autonomia e independência mas avançando em relação a outras atribuições como a defesa de direitos transindividuais Quanto ao Ministério Público embora não tenha havido uma alteração substancial em seu desenho institucional elementos internos e externos ao órgão LONDERO 2019 tornaram possível que se especule sobre uma possível e progressiva alteração de suas prioridades institucionais do campo da tutela coletiva para o combate à corrupção especialmente no seu aspecto penal Propõese portanto que a trajetória do MP nos anos posteriores a 1988 é um exemplo de mudança institucional informal 3 Defensoria Pública um exemplo de mudança institucional formal da busca por autonomia à ampliação das atribuições 31 A agenda defensorial como espelho da trajetória do MP Os debates na ANC deixaram claro que a agenda de construção de uma DP como instituição permanente e de caráter nacional tinha como referência institucional o Ministério Público Segundo Moreira 2016 p 102103 isso decorre sobretudo do fato de que o modelo nacional de Defensoria espelhou a experiência fluminense e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro permaneceu durante mais de 20 vinte anos funcionalmente vinculada ao MP estadual Embora a configuração normativa atual do MP em termos de autonomia atribuições e independência e a definição de um marco normativo nacional remontem a um processo iniciado na década de 1970 e concluído com a CRFB88 a instituição sempre figurou explicitamente no 80 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade quadro geral dos órgãos do sistema de justiça durante todo o período republicano1516 notadamente a partir de sua função típica de persecução criminal Assim ainda que fosse inexistente o histórico da própria DP como funcionalmente vinculada ao MP a longevidade desta última instituição apesar das descontinuidades em termos de modelo institucional seria uma referência obrigatória para qualquer órgão que pretendesse se estabelecer como uma instituição permanente em um campo o sistema de justiça com um evidente protagonista o Poder Judiciário Um outro aspecto a considerar como recorrentemente referido pelos representantes da Federação Nacional dos Defensores Públicos FENADEP nos debates na ANC BRASIL 1987 p 100 é que a função pública defensorial foi pensada e proposta como antípoda da função pública acusatória no âmbito do processo criminal de maneira que se o Estado estrutura uma instituição permanente para acusar deveria estruturar em igualdade de condições um órgão congênere para a função de defesa Traçado esse cenário e considerando a evidência de que certos processos de construção institucional tendem a uma dependência da trajetória percorrida path dependence notadamente quando o percurso oferece aos atores envolvidos ganhos crescentes que desincentivam a quebra ou reversão do trajeto HALL TAYLOR 2003 p 200 MAHONEY 2000 p 510512 MOREIRA 2016 p 6061 propõese que após a CRFB88 a agenda da DP quanto à busca por autonomia independência e mais atribuições continuou espelhando o modelo ministerial e essa é uma chave analítica importante para entender os porquês da DP ter reivindicado novas atribuições no campo da tutela coletiva e também na defesa dos direitos humanos 32 Os bloqueios na promulgação da LC n 8094 e o direcionamento da agenda defensorial para o âmbito estadual Em 1994 no governo Itamar Franco foi promulgada a Lei Complementar n 80 regulamentando o art 134 parágrafo único da CRFB88 e estabelecendo pela primeira vez um marco normativo nacional para a DP O art 3º da LC prevê que os princípios institucionais da DP são a unidade a indivisibilidade e a independência funcional reproduzindo textualmente o art 127 par 1º da CFRB88 em relação ao Ministério Público BRASIL 1994a Como lembra Moreira 2016 p 102 essa foi umas disposições que os defensores e assistentes judiciários não conseguiram incluir no texto final da CRFB88 15 O Decreto n 848 de 11101890 que regulamentava o funcionamento da Justiça Federal dispõe em seu capítulo VI sobre o Ministério Público estatuindo funções ao ProcuradorGeral da República e aos procuradores da República A exposição de motivos do citado ato normativo pontuava que o Ministério Público é uma instituição necessária em toda organização democrática e imposta pelas boas normas da Justiça SAUWEN FILHO 1999 p 127 16 A referência ao Ministério Público no âmbito do sistema de justiça também ocorre nos períodos da administração colonial portuguesa e do Império no entanto esse escorço histórico parece desnecessário aos propósitos do artigo SAUWEN FILHO 1999 p 110123 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 81 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Vários vetos contudo foram aplicados a dispositivos da LC n 8094 A maior parte deles se refere a previsões que buscavam aproximar a DP do quadro institucional e das prerrogativas dos membros do MP Especificamente em relação à tutela coletiva o art 4º XII da LC 8094 previa como função institucional da DP patrocinar ação civil pública em favor das associações que incluam entre suas finalidades estatutárias a defesa do meio ambiente e a proteção de outros interesses difusos e coletivos BRASIL 1994b Nas razões de veto o Presidente da República consigna que a atribuição se afasta da finalidade institucional da DP uma vez que associações não podem ser atendidas como necessitados para o fim de concessão da gratuidade da justiça BRASIL 1994b O mais curioso todavia é que o chefe do Executivo invoca razões apresentadas pelo ProcuradoriaGeral da República se opondo ao dispositivo aprovado pelo Congresso Nacional Tratase de um expediente pouquíssimo usual em relação às funções institucionais do ProcuradorGeral da República PGR que desde a CRFB88 com a criação da AdvocaciaGeral da União AGU não detém qualquer atribuição no campo da advocacia estatal Quanto à questão da legitimidade na ACP reivindicada pela DP o então PGR Aristides Junqueira apresentou três razões fundamentais i a função típica da Defensoria Pública seria a defesa de direitos individuais e a atuação na tutela coletiva tiraria o foco da instituição da defesa dos necessitados individualmente considerados ii a possibilidade de representação de associações pela DP minaria um dos objetivos da Lei da ACP quanto a uma maior participação da sociedade civil em questões coletivas sem a tutela de qualquer ente estatal iii quando necessária a participação do Estado na defesa de direitos coletivos a CRFB88 já tinha definido expressamente um órgão o Ministério Público BRASIL 1994b De mais a mais entre outras disposições vetadas na LC 8094 constava a atribuição para homologar transações extrajudiciais que passariam a ter força de título executivo extrajudicial art 4º XIII e 3º o que viabilizaria a celebração pela Defensoria Pública de Termos de Ajustamento de Conduta TACs conforme autorizava o art 5º 6º da Lei n 73478517 aos legitimados ativos para a propositura da ação civil pública Outros dispositivos vetados envolviam a autonomia administrativa e funcional do órgão art 3º p único a defesa da criança e do adolescente art 4º 1º a equiparação dos critérios de remuneração dos Defensores às carreiras previstas no Título IV Capítulo IV da CRFB88 referente às funções essenciais à Justiça cujo principal marco normativo é o do MP art 39 1º além de diversas garantias e prerrogativas asseguradas ao membro do MP como foro de prerrogativa de função livre trânsito no exercício da função e porte de arma independentemente de autorização BRASIL 1994b Segundo a literatura especializada os bloqueios exercidos especialmente pelo MP cristalizados na promulgação da LC 8094 direcionou a agenda corporativa defensorial para ao plano estatual com objetivo de instalação e estruturação dos órgãos nas unidades federadas MOREIRA 17 A inclusão deste dispositivo na Lei da ACP se deu através da promulgação do Código de Defesa do Consumidor Lei n 807890 82 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade 2016 p 104 processo que se revelou longo e tortuoso especialmente em razão da resistência de outros atores do sistema de justiça especialmente a OAB 33 O longo hiato da EC 452004 à EC 742013 Em estudo sobre a institucionalização e independência dos órgãos estaduais da DP Lígia M Madeira 2014 p 616218 identifica a Emenda Constitucional n 4504 a chamada Reforma do Judiciário como um ponto de inflexão para a consolidação e autonomia das DPs estaduais Nas vésperas da reforma em 2004 havia 22 órgãos estaduais dentre 27 possíveis mas apenas 5 cinco poderiam ser considerados como independentes Acre Ceará Mato Grosso do Sul Mato Grosso e Rio de Janeiro Três anos depois 2009 o número de DPs estaduais consideradas independentes aumentou para 10 dez Para a DP a grande novidade viabilizada pela EC n 4504 e as discussões que a antecederam tornaram possível a rearticulação de uma agenda nacional da instituição foi o estabelecimento do parágrafo 2º do art 134 da CRFB88 assegurando autonomia funcional e administrativa além de iniciativa orçamentária às Defensorias Públicas estaduais Também houve inclusão da Defensoria no art 168 da CFRB88 o que lhe assegurou o repasse das dotações orçamentárias através da sistemática do duodécimo tal como ocorre com o Poder Judiciário e o MP BRASIL 2004 Resgatando os debates legislativos referentes à Reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados Moreira 2016 p 105106 faz menção ao destaque nº 274 proposto por José Roberto Batochio deputado federal por São Paulo e expresidente da OABSP que previa o estabelecimento de um parágrafo terceiro ao art 134 da CRFB88 estabelecendo a possibilidade de celebração de convênios para prestação de assistência judiciária aos necessitados independentemente da atuação da DP A proposta que foi rejeitada por apenas um voto na Comissão Especial da Câmara sugere uma certa continuidade do lobby promovido por outras instituições contra a consolidação nacional das DPs embora o principal ponto de resistência aqui fosse mobilizado pelos Estados da Federação alegando sobretudo razões orçamentárias associadas à criação de uma nova instituição no âmbito do sistema de justiça MOREIRA 2016 p 105106 Neste sentido alguns Estados opunham convênios já firmados com a OAB como justificativa para não criar um órgão estadual da DP sendo paradigmático o caso já mencionado de Santa Catarina que somente instituiu a Defensoria Pública após o julgamento de duas ADIs 3892 e 4270 que declararam inconstitucional dispositivo da Constituição Estadual e lei estadual que autorizavam esse tipo de expediente BRASIL 2012b 2012c 18 A autora oferece uma mensuração do nível de institucionalização independência dos órgãos estaduais da DP através da análise da presençaausência de uma série de variáveis dentre as quais a existência de lei orgânica estadual escolha do DefensorGeral por meio de lista tríplice votada pela carreira e poderes do DefensorGeral em relação à administração do órgão Com base na métrica proposta no estudo divide as DPs estaduais em três grupos quanto à independência i não independente NI ii pouco independente PI e iii autônoma i Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 83 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Além disso o episódio demonstra os desafios à consolidação e a força institucional de um órgão cuja atribuição se limitava à orientação jurídica e defesa judicial dos necessitados Considerando que em muitos locais do País havia um longo histórico de prestação desse tipo de serviço sem a presença de uma instituição pública específica sempre pairaria sob a DP o risco de uma reversão institucional mobilizada pelo resgate a esses modelos alternativos Essa é uma chave explicativa para pensar o quão essencial parecia à época para agenda de consolidação da DP a expansão de atribuições para além da tutela individual dos necessitados A EC 4504 todavia promoveu um racha entre as pautas corporativas dos órgãos defensoriais a autonomia prevista no art 134 par 2º não foi estendida à Defensoria Pública da União DPU19 À época havia resistência da AGU à inclusão da DPU neste rol por constituir uma assimetria entre os órgãos e por essa razão os representantes das DPs estaduais através da ANADEP advogavam a exclusão da DPU da proposta de EC para afastar o risco do dispositivo ser rejeitado integralmente Excluída a DPU atuou por sua vez para que o texto do art 134 par 2º da CRFB88 fosse rejeitado MOREIRA 2016 p 107108 A correção dessa assimetria só ocorreria quase uma década depois com a aprovação da EC nº 742013 que incluiu o parágrafo terceiro do art 134 da CRFB88 para estender a autonomia administrativa e financeira além da iniciativa orçamentária à DPU e à Defensoria Pública do Distrito Federal BRASIL 2013 A Presidência da República opôsse à Emenda Constitucional através da propositura da ADI n 5296 sob a alegação de vício formal de iniciativa já que a proposta aprovada teve origem parlamentar e segundo a tese alegada seria de iniciativa exclusiva do Executivo20 O pedido de medida cautelar foi negado em maio de 2016 pelo Supremo Tribunal Federal mas a ADI continua em tramitação aguardando julgamento de mérito Merece registro que na ocasião o ProcuradorGeral da República Rodrigo Janot em movimento que destoa da resistência habitual do MP às pretensões da DP apresentou parecer pela improcedência do pedido BRASIL 2016b 34 O ponto de virada da Lei n 114482017 à EC 802014 A Lei n 114482007 incluiu a Defensoria Pública no rol de legitimados ativos da ação civil pública inovando no art 5º da Lei n 734785 BRASIL 2007 Mesmo antes desse diploma legal havia precedentes de manejo de ACPs pela DP em casos envolvendo direitos difusos coletivos 19 Também não foi contemplada a Defensoria Pública do Distrito Federal que ainda não havia sido instituída e só o seria em 2012 por meio da Emenda à Lei Orgânica do Distrito Federal n 612012 Merece o registro que a EC 692012 transferiu da União para o Distrito Federal a organização do órgão na referida unidade federada BRASIL 2012a 20 Moreira 2016 p 108 situa a proposição da ADI 5296 pela AGU na chave do pluralismo estatal entendendo que diante da impossibilidade de veto presidencial a propostas de EC esse movimento viabilizou a disputa institucional em torno da questão da autonomia Necessário ponderar contudo que a questão de concorrência entre AGU e DPU está mais associada a uma agenda que rejeitava a promoção assimétrica de prerrogativas a instituições então associadas ao Executivo federal do que propriamente a uma disputa por um mesmo campo de atribuições De mais a mais dificilmente o AGU ajuizaria uma ADI sem o aval da Presidência da República aspecto que também enfraquece a tese de mera disputa de campo de atribuições 84 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade e individuais homogêneos de pessoas necessitadas No entanto essa legitimidade ativa era bastante discutível e não raro as demandas eram extintas sem resolução do mérito MOREIRA 2016 p 112 Depois da autonomia concedida ao órgão propõese que este é um divisor de águas para a vida institucional da DP foi reconhecida uma ampla atribuição para a defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos além das demais prerrogativas asseguradas aos autores civis públicos como a possibilidade de firmatura de TACs De uma instituição limitada à tutela individual dos necessitados o que constituía a sua agenda ao tempo da ANC a DP avançava para se colocar ao lado do MP como instituição do sistema de justiça com atribuição para atuar na tutela coletiva O ato normativo em questão nasceu do Projeto de Lei do Senado PLS n 1312003 de autoria do então senador fluminense Sérgio Cabral O texto original não fazia menção à Defensoria Pública o parlamentar propunha a extensão do rol de legitimados ativos para a ACP aos parlamentares federais estaduais e municipais No âmbito da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania CCJ do Senado Federal o próprio autor da proposição apresentou a Emenda nº 1CCJ acrescendo a Defensoria Pública ao rol de legitimados do PLS SENADO FEDERAL 2003 O texto foi aprovado no Senado dando ao art 5º da Lei da ACP um extenso rol de novos legitimados o Presidente da República as mesas da Câmara dos Deputados Senado Federal Assembleias Legislativas e Câmaras distrital e municipais governadores de Estado e do Distrito Federal o Conselho Federal da OAB entes da administração pública indireta nos três níveis federativos e a Defensoria Pública Remetido à Câmara dos Deputados o PLS foi autuado como Projeto de Lei da Câmara n 57042005 No âmbito da CCJ daquele órgão parlamentar o relator deputado federal Luiz Antonio Fleury Filho apresentou substitutivo cujas razões presentes no parecer como relator da CCJ repudiou quase integralmente as inovações legislativas no rol de legitimados ativos da lei da ACP entendendo que essa alteração poderia tornar a ACP bastante vulnerável a utilizações em que prepondere o caráter políticopartidário em detrimento da verdadeira defesa de interesses e direitos coletivos e difusos da sociedade CÂMARA DOS DEPUTADOS 2005 O relator contudo defendeu a manutenção da Defensoria Pública como legitimada ativa da ACP citando precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul AI 327496 Rel Des Luiz Odilon Bandeira julgado em 25021997 que reconheceu a legitimidade da DP para a defesa judicial dos interesses de estudantes carentes Acrescentou ainda a importância desta instituição e a natureza de suas atribuições sempre voltadas para a defesa dos cidadãos e para a luta pela construção neste País de um verdadeiro Estado democrático de direito BRASIL 2005 O substitutivo do deputado Fleury Filho foi aprovado pela CCJ da Câmara dos Deputados e posteriormente se converteu na Lei n 1144807 O detalhe curioso é que Fleury Filho ex promotor de Justiça teve longa atuação corporativa nos anos 1970 e 1980 e foi presidente da Associação Nacional do Ministério Público no período entre 1983 e 1987 CABRAL NETTO 2009 p 100 operando como um dos principais articuladores do papel atribuído ao MP no campo da tutela coletiva em meados da década de 1980 e do próprio desenho institucional do MP na CRFB88 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 85 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima ARANTES 2002 p 59 De mais a mais a Lei n 1144807 foi objeto de ADI n 3943 movida pela CONAMP questionando a legitimidade ativa da DP para propositura da ação civil pública tendo sido julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal BRASIL 2015 Posteriormente a LC n 1322009 alterou radicalmente a LC 8094 consolidando o movimento que buscava descolar a DP do campo da tutela individual dos necessitados em direção a outras atribuições notadamente no campo da tutela coletiva e da promoção dos direitos humanos BRASIL 2009a Historiando a articulação que tornou possível a LC n 1322009 Moreira 2016 p 109 111 argumenta que a construção do diploma legal remonta ao início dos anos 2000 e foi capitaneada por um grupo de defensores da DP de São Paulo A ideia que subjazia o projeto era justamente dar um novo perfil institucional ao órgão no que o autor visualiza pela primeira vez um descolamento em relação ao modelo do MP e a busca de um caminho institucional próprio para a DP A estratégia em torno de um novo perfil encontrou êxito no Congresso Nacional e perante o Executivo Apenas três vetos foram apresentados à LC n 1322009 nenhum que esteja associado a qualquer razão corporativa mobilizada pelo MP ou por outra instituição do sistema de justiça BRASIL 2009b As inovações do diploma legal são muitas abrangendo entre outras i promoção da ACP e qualquer outra ação vocacionada à tutela dos direitos difusos coletivos e individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupos de pessoas hipossuficientes art 4º VII ii promoção da defesa de direitos individuais difusos coletivos e individuais homogêneos dos necessitados em geral do consumidor necessitado da criança do adolescente do ídolo da pessoa com deficiência da mulher vítima de violência e outros grupos sociais vulneráveis que mereçam especial proteção do Estado art 4º VII VIII X e XI iii a definição de objetivos da Defensoria Pública contemplando questões como a redução das desigualdades sociais a afirmação do Estado Democrático de Direito e a garantia dos princípios constitucionais de ampla defesa e do contraditório art 4ºA Além disso embora o diploma normativo não deixe isso suficientemente claro há uma clara guinada no discurso institucional da tutela dos necessitados isto é pessoas sem capacidade financeira para a contratação de um advogado privado para categorias mais abrangentes como hipossuficientes e vulneráreis MOREIRA 2016 p 177 Em uma sociedade como a brasileira marcada por um profundo nível de desigualdade social o manejo dessas categorias mais amplas sobrepõe quase integralmente o campo de atuação do MP e da DP no âmbito da tutela coletiva Do ponto de vista normativo a coroação do longo processo de mudança institucional aqui descrito foi a promulgação da EC n 802014 Através deste ato normativo foi reconhecido constitucionalmente o caráter permanente da DP sua função de orientação jurídica a promoção dos direitos humanos a e a defesa em todos os graus judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos de forma integral e gratuita aos necessitados novo caput do art 134 da CRFB88 Também foram previstas a unidade indivisibilidade e independência funcional como princípios 86 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade institucionais novo par 4º do art 134 Por fim estabeleceuse no art 98 par 1º do ADCT a previsão de que até 2022 todas as comarcas e seções judiciárias do País deverão contar com defensores públicos BRASIL 2014 Todo esse cenário sinaliza que tal como ocorreu com o MP no período entre 1970 e 1980 a agenda política da DP apostou e obteve êxito no problema crônico da efetividade de direitos no País MARONA et al 2017 como estratégia para buscar mais atribuições e portanto mais poder dentro do sistema de justiça deixando em segundo plano a atribuição mais evocada durante a ANC associada à atuação judicial na tutela individual com especial ênfase no âmbito criminal21 Nessa perspectiva os deputados federais Mauro Benevides Alessandro Molon e André Moura proponentes da PEC n 2472013 que se converteu na EC n 802014 consignaram em sua exposição de motivos que A alteração do caput do art 134 incorpora importantes elementos estruturantes e conceituais à definição do papel e da missão da Defensoria Pública como o seu caráter permanente e ontologicamente atrelado ao modelo de Estado democrático de direito Explicitase também a sua vocação para a solução extrajudicial dos litígios para a defesa individual ou coletiva conforme a necessidade do caso e para a promoção dos direitos humanos CÂMARA DOS DEPUTADOS 2013 Parece incorreto portanto que o movimento em busca de um novo perfil da DP viabilizado pela LC 1322009 e posteriormente pela EC 802009 esteja dissociado de uma referência ao modelo do MP Identificar essa imprecisão contudo depende fundamentalmente de uma abordagem comparativa Assim além de uma clara sobreposição de atribuições no campo da tutela coletiva e de certa maneira também no que diz respeito à promoção dos direitos humanos propomos que a aposta da DP em uma guinada para esse novo desenho institucional ocorre de forma paralela a um outro fenômeno de mudança institucional gradual mas no âmbito do Ministério Público qual seja um giro de prioridades do campo da tutela coletiva para a área da repressão penal à corrupção 21 Em manifestação na 5ª Sessão Ordinária da Subcomissão do Poder Judiciário e Ministério Público durante a ANC José Neves César representante da FENADEP assim ilustrou o caráter essencial da DP ao sistema de justiça o triângulo da Justiça tem muito bem aparelhado o organismo invértice que é o Ministério Público e o Judiciário e o vértice da defesa está quebrado precisa ser solidificado precisa serlhe dado o verdadeiro poder de defesa Vejam VExa que no juízo criminal por exemplo o povo diz comumente que cadeia e prisão foram feitos para o pobre Por que pensam assim É muito simples Quando um cidadão de posse comete um crime procura o seu advogado é orientado como deverá defenderse é acompanhado no inquérito policial é marcado o dia para se apresentar ao delegado o que geralmente fazer no dia anterior para evitar a imprensa e as perguntas indiscretas dos delegados O defensor público acompanha o pobre no momento em que ele já foi preso muitas vezes violentado porque confessou algemado na frente do Juiz Aí começa a atuação do defensor público Precisamos acabar com isso Não pode haver duas justiças uma para o rico e outra para o pobre A Justiça é uma só Nem a Defensoria Pública pode ser laboratório de experiência jurídica nem o pobre pode ser cobaia no exercício dos seus direitos É preciso que se faça uma Justiça una A justiça do rico e do pobre tem que ser igual Temos de evitar como aquele belo quadro que emoldura essa sala em que o protomártir da Independência está recebendo a sentença que ao lado do pobre só haja o poder de acusação o poder de sentenciar e a ausência do defensor A Justiça ampla e plena tem que ter aí presença do defensor público BRASIL 1987 p 101 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 87 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima 4 O MP entre a tutela coletiva e o combate à corrupção uma mudança institucional informal 41 A tutela coletiva e a imagem positiva do MP no pós1988 Com a reconfiguração de seu quadro institucional concluída com a CRFB88 verificouse uma mudança significativa da imagem do Ministério Público perante a sociedade e associado a isso um acúmulo progressivo de capital político por parte da instituição Nessa perspectiva nos primeiros anos da década de 2010 o MP figurava como uma das instituições mais confiáveis aos olhos dos brasileiros como demonstraram os dados do último trimestre de 2014 do Índice de Confiança na Justiça da Fundação Getúlio Vargas Segundo a pesquisa o Ministério Público figurava à época como a terceira instituição mais confiável com 50 de manifestações positivas dos cidadãos entrevistados atrás apenas das Forças Armadas e da Igreja Católica CUNHA 2012 Em se tratando de um órgão formalmente integrado ao sistema de justiça e formado por uma das elites do serviço público este alto índice de confiança em face a outras instituições da República é dado intrigante e que tem mobilizado uma série de pesquisas acerca do MP nos últimos anos RIBEIRO 2017 p 5152 Embora a CRFB88 tenha confiado ao MP um número de atribuições sem precedentes na história da instituição e pouco comparável a agências congêneres na maior parte dos países assemelhados ao Brasil o marco normativo em si não explica os porquês desse alto índice de confiança da população Aqui parecem concorrer uma multiplicidade de fatores como a perenidade institucional e sobretudo a ampla capilaridade do órgão em todo o território nacional22 nomeadamente em um espírito do tempo que como visto mesmo antes da CRFB88 já identificava no MP a função de uma espécie de advogado da sociedade23 Nessa perspectiva sustentase na esteira de parte da literatura sobre o MP ARANTES 2002 MARONA et al 2017 que ao longo dos anos que se seguiram à Constituição de 1988 e do significativo aumento formal do rol de atribuições ministeriais essa ampla visibilidade positiva da instituição foi mediada por um processo de construção de uma imagem institucional que mobiliza dentre os diferentes campos de atuação confiados ao MP uma agenda de prioridades como elemento central para a articulação da interação do órgão com a sociedade civil 22 Ao defender a absorção pelo Ministério Público da função de ombudsman cuja criação autônoma foi seriamente aventada nos trabalhos constituintes Antônio Araldo Ferraz Dal Pozzo então presidente da Associação Paulista do Ministério Público APMP e SecretárioGeral da Confederação Nacional do Ministério Público declarou em audiência pública na Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público que o Ministério Público defende o interesse de seu titular que é a sociedade Para a defesa desses valores organizado em milhares e milhares de comarcas por todo território nacional o Ministério Público atua basicamente de três formas diferentes fora do processo na investigação e dentro do processo Fora do processo o Ministério Público desenvolve uma atividade preventiva e conciliatória O povo conhece o Ministério Público nele confia e o procura em seus gabinetes de trabalho Os promotores de justiça vêm cumprindo silenciosamente há muitos anos o papel do ouvidor do povo do Ombudsman BRASIL 1987 p 105 23 Como referência histórica observese o discurso de posse do último ProcuradorGeral da República PGR do regime pré 1988 e primeiro PGR da Nova República José Paulo Sepúlveda Pertence em março de 1985 que menciona a necessidade no contexto de uma democracia política da construção de um MP que dentre as suas funções abarque a defesa da sociedade e dos direitos humanos dos interesses indisponíveis dos oprimidos 88 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade 42 Voluntarismo político e defesa da sociedade a autovisão do MP nos anos 1990 O estudo seminal de Rogério B Arantes publicado em 2002 sobre a interação entre MP e política foi o primeiro a delinear as bases de uma certa dimensão intencional da ação de promotores e procuradores no sentido de reconstruir o Ministério Público e transformálo em agente político da lei ARANTES 2002 p 115 Devese advertir todavia que esse projeto político não se deu à revelia ou paralelamente à Constituição Há elementos suficientes no desenho institucional do MP para identificálo como uma instituição intencionalmente situada pelo Constituinte na fronteira entre a política e o sistema de justiça ARANTES 1999 p 96 Um desses aspectos está relacionado à ampla liberdade assegurada aos membros do MP no desempenho de suas atribuições a chamada independência funcional podendo fazêlo inclusive de ofício o que distingue sensivelmente a instituição por exemplo do Poder Judiciário que é submetido ao chamado princípio da inércia24 LAMENHA 2019 Diante desse quadro institucional Arantes 2002 p 116119 com base em dados colhidos em 1996 em sete estados da Federação no survey O Ministério Público e a Justiça no Brasil SADEK 2010 identifica dentro da instituição a presença de um discurso dominante que gravita em torno de uma certa ideologia institucional baseada na visão do órgão e da sociedade no que o autor denomina como voluntarismo político Nessa esteira o voluntarismo político com aspecto central da cultura institucional do MP brasileiro estaria baseado em três características i uma leitura bastante crítica da sociedade que seria incapaz de se mobilizar em torno dos direitos que lhe são assegurados pela legislação ii uma leitura bastante crítica do Estado e da classe política que seriam incapazes de implementar os direitos assegurados pela legislação à sociedade iii a conclusão de que diante de uma sociedade e um Estado divorciados e incapazes de funcionar adequadamente caberia ao MP ocupar esse espaço e promover a tutela dos direitos dessa sociedade fragilizada Assim considerando o cenário de desenvolvimento de uma teoria e de uma prática associados à disputa por uma agenda de direitos no âmbito do sistema de justiça o que o survey de 1996 identificou foi que a autoimagem do MP como guardião dos interesses de uma sociedade débil foi mobilizada por agenda institucional que priorizou a atuação no campo da tutela coletiva em detrimento da função acusatória clássica do órgão ARANTES 2002 p 118119 Analisando os dados do survey de 1996 SADEK 2010 p 95 verificase que a hipótese do voluntarismo político proposto por Arantes tem base empírica Chama atenção nesse aspecto 24 Outros dois elementos que permitem afirmar que o MP está situado na fronteira entre o jurídico e o político são i a específica tarefa de defesa do regime democrático confiada ao MP ii a explícita rejeição pela ANC quanto à criação da figura do Defensor do Povo à semelhança do ombudsman escandinavo ou do defensor del pueblo de alguns países hispanófonos e a decisão de integrar essas atribuições ao MP LAMENHA 2019 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 89 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima o índice de concordância total acerca de proposições sobre a debilidade da sociedade brasileira em mobilizar seus próprios interesses e a necessidade de uma instituição forte como o MP para mediação de conflitos e promoção de uma conscientização A título exemplificativo 48 dos promotores e procuradores entrevistados na ocasião concordaram integralmente com a afirmação de que o MP deve desempenhar o papel de promoção da conscientização e responsabilidade da sociedade brasileira 31 por sua vez concordaram integralmente com a assertiva de que sociedade brasileira é hipossuficiente isto é incapaz de defender autonomamente seus direitos dependendo de instituições como o MP para protegêla Em relação à avaliação dos membros sobre o desempenho da atuação do MP em diferentes campos o survey de 1996 registrou em primeiro lugar a promoção da ação penal pública com 83 de resposta positiva dos entrevistados Muito próximo todavia aparece justamente a defesa dos direitos transindividuais com 77 de análise positiva SADEK 2010 p 90 O grande destaque dado à ação penal vale ressaltar provavelmente decorre do fato que se trata da atividade com maior volume quantitativo de trabalho uma vez que a titularidade da ação penal pública é privativa do MP e sua atuação mesmo nas ações penais privadas é obrigatória Assim virtualmente qualquer crime ocorrido que eventualmente se torne objeto de um processo judicial demandará necessariamente a atuação do órgão A principal chave utilizada por Arantes 2002 p 116119 para identificar uma agenda institucional voltada para a tutela coletiva contudo está associada às declarações relativas às prioridades pretéritas e futuras do órgão Indagouse aos entrevistados quais atribuições eles consideravam que foram tratadas como prioridades nos últimos 2 dois anos e quais seriam as prioridades para os próximos 2 dois anos Aqui se verificou que enquanto a identificação do foco na atuação criminal decresceu 11 onze por cento entre os entrevistados houve aumento em todos os campos associados à tutela de direitos difusos coletivos e individuais homogêneos com especial destaque para o meio ambiente aumento de 12 os serviços de relevância pública aumento de 17 e a improbidade administrativa aumento de 22 Algumas advertências merecem registro Propor a existência de uma agenda de prioridades no cenário de um órgão com múltiplas e tão diferentes atribuições não significa que as atividades não prioritárias tenham sido deixadas totalmente de lado ou ainda que quantitativamente as atividades consideradas prioritárias representem o maior volume de trabalho desempenhado pelo órgão O que se propõe tãosomente é a existência de um discurso dominante na construção da imagem do órgão em meados da década de 1990 que o apresentava como um advogado da sociedade e especialmente vocacionado para a defesa de direitos transindividuais SADEK 2000 p 30 Como adverte o próprio Arantes 2002 p 116 reconhecer a existência de um discurso dominante não significa que divergências internas tenham desaparecido e o que é mais importante que a prática judicial e política inspirada nesses novos valores seja uniforme em todo o país Na realidade o desenho institucional do MP parece especialmente tendente a favorecer esse tipo de 90 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade disputa um rol significativo de atribuições e ampla liberdade de atuação combinados com um modelo de baixa accountability KERCHE 2018 Acrescentese que a pluralidade institucional relativa à existência de 30 trinta órgãos ministeriais distintos nos diferentes níveis do sistema de justiça nacional também é potencialmente reveladora da ausência uma agenda exatamente uniforme no âmbito dos diferentes MPs e abre espaço para a disputa entre visões diferentes quanto à instituição e a sua atuação Além disso a lógica do voluntarismo político associada à visão de um Estado e uma sociedade débeis dependentes de um MP forte e capaz de mediar conflitos e implementar direitos não é intrinsicamente relacionada à temática da tutela coletiva podendo ser mobilizada em direção a outras atribuições a depender do quanto mudanças internas ou externas ao MP favoreçam uma nova agenda de prioridades MARONA et al 2017 Nessa perspectiva Mahoney e Thelen 2010 p 12 destacam que mesmo sem alteração formal do quadro normativo essa disputa de sentidos mobilizada por atores interessados em determinadas agendas é capaz de conduzir um processo gradual de mudança institucional25 No caso do MP brasileiro propõese que a tendência à consolidação de uma agenda baseada na defesa de direitos transindividuais foi revertida na direção de uma concepção mais clássica do papel do MP vinculada a sua função acusatória e com foco particular na repressão à corrupção política 43 Um giro de prioridades da tutela coletiva à repressão penal anticorrupção Se até meados dos anos 2000 uma das mais significativas novidades produzidas pelo novo quadro institucional da CRFB88 se constituiu na possibilidade de implementação do catálogo constitucional de direitos e das políticas públicas a ele associadas através do Judiciário verificouse a partir de então uma progressiva inserção do MP em uma rede de accountability horizontal em franco desenvolvimento ODONNELL 1998 ARANTES 2015 p 30 o que sobrelevou a sua atribuição também prevista na CRFB88 de fiscalização do patrimônio público a partir da agenda de combate à corrupção A função ministerial de controle da administração pública já vinha ganhando destaque ao longo da década de 1990 O próprio estudo de Arantes em 2002 p 154 dedica um capítulo à atuação do MP paulista no combate à corrupção e destaca os significativos resultados obtidos nesta seara No entanto a estratégia especializada de abordagem da questão da corrupção na época se dava 25 Dentre as quatro modalidades de mudança institucional gradual identificadas por Mahoney e Thelen 2010 p 1718 aludimos a que os autores denominaram como conversion que ocorre quando as regras permanecem formalmente as mesmas mas são interpretadas de novas maneiras Este espaço entre as regras e sua instanciação não é conduzido pela negligência a partir de uma alteração de configuração como ocorre no drift ao contrário o espaço é produzido por atores que ativamente exploram as ambiguidades inerentes à instituição Através da readaptação eles convertem a instituição para novos objetivos funções ou propósitos Tradução livre do texto occurs when rules remain formally the same but are interpreted and enacted in new ways This gap between the rules and their instantiation is not driven by neglect in the face of a changed setting as is true with drift instead the gap is produced by actors who actively exploit the inherent ambiguities of the institutions Through redeployment they convert the institution to new goals functions or purposes Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 91 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima principalmente a partir da esfera cível com aplicação da recém promulgada Lei de Improbidade Administrativa Lei n 849292 que era uma novidade26 Isso explica porque o survey de 1996 inclui o controle da administração pública no campo dos direitos difusos coletivos e individuais homogêneos não o inserindo no âmbito criminal ARANTES 2002 p 117 Dentre os resultados possíveis de uma condenação por ação de improbidade administrativa destacase a sua dimensão de ressarcimento ao erário embora seja possível um ato ímprobo que não envolva prejuízo aos cofres públicos o que ressalta a sua dimensão associada aos direitos da coletividade27 A repercussão penal dos fatos investigados em sede de fiscalização da administração pública embora também presente na época especialmente no âmbito da atuação dos MPs estaduais28 não alcançava a mesma visibilidade possivelmente em razão de entraves estabelecidos pela própria legislação de regência como o foro de prerrogativa de função ARANTES 2002 p 153 e a ausência de mecanismos processuais desenhados especificamente para o enfrentamento deste tipo de criminalidade Nesse aspecto a grande novidade verificada a partir de meados dos anos 2000 foi a mobilização de um direito penal para o campo do combate à corrupção não apenas quanto à repercussão penal de fatos investigados nesta seara mas especialmente com o desenvolvimento de uma racionalidade especializada e nacionalmente difundida no enfrentamento deste tipo de delito ARANTES 2011 p 99 AVRITZER MARONA 2017 p 366 justamente a partir da articulação para esse propósito do MP com outras instituições de controle como a recémcriada ControladoriaGeral da União os Tribunais de Contas e as polícias judiciárias em especial a Polícia Federal Não é por acaso que datam do mesmo período iniciativas de cooperação como a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro ENCCLA criada em 2003 e a criação no ano seguinte do Departamento de Recuperação de Ativos de Cooperação Jurídica Internacional LONDERO 2019 É ilustrativo desse cenário que o número de operações de combate à corrupção 26 A esse respeito Arantes 2002 p 153 destaca que a Lei 842992 é um desses marcos da judicialização da política no Brasil na medida em que ampliou o acesso à justiça para ações contra ocupantes de cargos públicos Para além das definições rigorosas de probidade e moralidade administrativas a inclusão da fiscalização judicial implicou uma significativa redução da margem de discricionaridade da administração pública ampliando enormemente as hipóteses de conflitos políticos desaguarem no Judiciário Mas a Lei 842992 não inovou apenas nesse ponto seu grande trunfo é permitir que os ocupantes de cargos executivos sejam processados sem o privilégio de foro especial Do ponto de vista do Ministério Público outra vantagem da Lei n 842992 é possibilitar que o grande contingente de promotores de justiça que atuam em primeira instância possam investigar por meio do inquérito civil e processar os ocupantes de cargos públicos situados em qualquer ponto dos ramos Executivo e Legislativo 27 Além disso a maior parte da literatura especializada admite que o instrumento processual por meio do qual é veiculada a pretensão da improbidade administrativa é ação civil pública instrumento típico de tutela coletiva GARCIA ALVES 2013 p 14821489 28 Datam desse período meados da década de 1990 as primeiras experiências do que viram a se tornar Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado GAECOs no âmbito dos MPs Estaduais Vale ressaltar todavia que há época estes órgãos especializados não tinham um foco específico no controle penal da administração pública mas sim de organizações criminosas em geral Exemplos de especialização no campo da fiscalização do patrimônio público como as chamadas Promotorias do Patrimônio Público cuja criação também remontam ao mesmo período possuíam normalmente atuação dúplice isto é cível e criminal 92 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade com a participação da Polícia Federal e consequentemente do Ministério Público Federal aumentou de 18 no ano de 2003 para 566 no ano de 2015 AVRITZER MARONA 2016 p 36729 A conjuntura interinstitucional favorável associada a outros aspectos como a natureza híbrida cível e penal dos ilícitos relacionados com a matéria viabilizando uma narrativa institucional de que as preocupações com o campo da tutela coletiva não seriam deixadas de lado e a difusão de uma agenda internacional associando boa governança ao combate à corrupção FILGUEIRAS ARANHA 2011 MCCOY HECKEL 2001 por meio inclusive de tratados internacionais firmados pelo Brasil a esse respeito30 são alguns dos fatores que podem explicar uma tendência a uma mudança institucional informal e gradual no âmbito do MP de uma agenda prioritariamente centrada nos direitos transindividuais para o combate à corrupção especialmente em sua vertente penal Essa tendência é amparada pela análise contextual de alguns achados de um outro survey mais abrangente que o de 1996 realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania CESeC e coordenado entre outros pelas professoras Julita Lembruger e Ludmila Ribeiro O estudo promoveu entrevistas através de questionários no período entre fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016 com 899 membros do MP de todas as 30 trinta instituições ministeriais existentes no País o que totaliza cerca de 7 do total de promotores e procuradores na ativa O voluntarismo político proposto por Arantes em 2002 não só continua presente como parece ter se reforçado Essa conclusão é possível a partir da análise do nível de concordância total frente a algumas questões bastante semelhantes àquelas propostas no survey de 1996 Mais de um terço dos entrevistados 36 entende que a sociedade desconhece as atribuições do MP um percentual um pouco superior àquele que concordou totalmente com a assertiva referente ao caráter indefeso da sociedade na pesquisa precedente 31 Além disso em relação à função de promoção da cidadania e conscientização da sociedade a pesquisa de 2016 encontrou números muito superiores a 2016 o índice aumentou de 48 para 738 Podese especular que os índices superiores que corroboram a hipótese do chamado voluntarismo político como ideologia institucional dominante no MP brasileiro após um intervalo de 2 duas décadas entre os dois levantamentos de dados decorrem de fatores como o grande afluxo de novos membros na instituição já sob a égide do novo marco normativo da CRFB88 RIBEIRO 2017 p 61 além de naturalmente ter se desenvolvido maior familiaridade institucional com 29 Aqui por sinal a limitação de dados disponíveis e a impossibilidade de abordar especificidades decorrentes da pluralidade de órgãos do MP existentes em todo país tem mobilizado a literatura sobre a instituição a tomar como referencial primeiro a experiência do Ministério Público Federal dada a projeção e visibilidade de sua atuação decorrente do seu caráter nacional AVRITZER MARONA 2016 p 365367 KERCHE VIEGAS 2020 Como já sugerido e será demonstrado a seguir isso não invalida a possibilidade de mapeamento de uma trajetória institucional comum ao MP brasileiro Sob outra perspectiva é interessante observar que há quem identifique na literatura associada à transição da esfera cível para a esfera criminal isto é uma abordagem mais geral do fenômeno do giro de prioridades desde a tutela coletiva para a atuação criminal anticorrupção aqui proposto no campo específico do MP uma espécie de transição da esfera estadual para a esfera federal no âmbito do sistema de justiça brasileiro ARANTES 2011 p 99101 30 Vejase por exemplo a Convenção Interamericana contra a Corrupção internalizada por meio do Decreto n 44102002 e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção assinada pelo Brasil em 2003 e internalizada por meio do Decreto n 56872006 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 93 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima temas que em meados da década de 1990 ainda constituíam uma novidade e um desafio em termos operacionais Nessa perspectiva todavia seria de se esperar que a tendência de priorização da tutela coletiva se mostraria consolidada no survey de 2016 Não é o que acontece Corroborando a hipótese de mudança institucional gradual um retorno à vocação acusatória do órgão notadamente no campo do combate à corrupção parece ter se traduzido como a agenda institucional que na avaliação do MP melhor reflete a sua missão de advogado da sociedade Assim dentre as áreas consideradas prioritárias para a atuação do órgão o survey de 2016 não apresenta um comparativo entre análise pretérita e prognóstico futuro 62 dos entrevistados inseriram o campo do combate à corrupção seguidos de 49 que indicaram a área da investigação criminal Das matérias típicas do campo da tutela coletiva apenas o meio ambiente figurou com um percentual acima de 40 com 45 dos entrevistados indicando este como um campo prioritário da atuação do MP Mesmo o direito do consumidor outrora um dos carroschefes da tutela coletiva no MP o survey de 1996 indicava um percentual de 38 figurou com apenas 18 dos membros ouvidos indicandoo como prioritário Áreas historicamente problemáticas na concretização de direitos transindividuais como patrimônio histórico e cultural minorias étnicas e política fundiária apresentaram percentuais muito baixos 6 4 e 2 respectivamente LEMGRUBER et al 2016 p 2930 De mais a mais sobre a visão dos membros acerca da qualidade do trabalho desempenhado pelo MP isto é o que a instituição desempenha com maior eficiência atividades tipicamente relacionadas à função acusatória do MP foram melhor avaliadas Cerca de 80 dos membros entrevistados classificaram a atuação no âmbito da ação penal como ótima ou boa seguido de 76 avaliando positivamente a atuação no campo da representação por ato infracional de menor Das matérias típicas de tutela coletiva destacamse o meio ambiente avaliado com 68 e a defesa do consumidor com cerca de 66 O combate à improbidade administrativa dimensão cível do combate à corrupção figurou com 64 LEMGRUBER et al 2016 p 33 Analisados conjuntamente portanto os dados do survey de 2016 autorizam a leitura de que os membros da instituição acreditam majoritariamente que atividades tipicamente associadas à função acusatória devem ser priorizadas pelo órgão Esse achado representa uma reversão da tendência identificada em 1996 que sinalizava um crescimento da priorização da tutela coletiva acompanhado de um decréscimo da prioridade associada à atuação criminal Curiosamente contudo quando levantada uma questão mais genérica sobre se na opinião do entrevistado a instituição dedica mais prioridade à atuação penal a maioria dos ouvidos 51 respondeu negativamente à proposição LEMGRUBER et al 2016 p 32 Isso talvez decorra do fato de que a grande maioria dos membros do MP entrevistados 63 atua parcial ou totalmente no campo da tutela coletiva Devese ponderar que o simples fato da maioria dos membros ter alguma atribuição no campo da tutela coletiva não é por si só indicativo de priorização da área Do universo de 63 dos 94 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade promotoresprocuradores com atribuição no campo somente 388 possuem atribuição exclusiva Isso significa que a maioria 612 dos promotoresprocuradores não atua com a matéria ou divide a atribuição com alguma outra LEMGRUBER et al 2016 p 31 Neste último caso tendo em conta o baixo nível de accountability associada à ampla independência funcional KERCHE 2018 na prática os membros ficam livres para em seu próprio ofício priorizarem a matéria com que tem maior afinidade ou expertise De mais a mais considerando que a maior parte do trabalho na tutela coletiva se dá no âmbito extrajudicial compromissos judiciais peremptórios como prazos e audiências tendem a preencher a agenda do promotorprocurador com atribuição mista o que pode prejudicar a atividade na defesa de direitos transindividuais A extensão nacional do survey de 2016 abrangendo todas as instituições ministeriais do sistema de justiça parece suficiente para propor que há suporte para a hipótese de mudança institucional informal de uma dominância discursiva e política da agenda da tutela coletiva para o campo anticorrupção notadamente no seu aspecto de repressão penal mesmo diante das especificidades decorrentes da pluralidade de órgãos do MP que convivem em todo País Embora a análise quantitativa de procedimentos e expedientes administrativos no âmbito do MP envolva limitações decorrentes do fato de que a mera instauração de um dado apuratório não mensura a qualidade eou efetividade de atuação nele desenvolvida o trabalho de Sampaio e Viegas 2019 a partir da análise de um triênio 2015 a 2017 dos dados de produtividade de todos os órgãos do MP produzidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público CNMP também dá suporte à hipótese aqui proposta O CNMP em seus relatórios anuais não aglutina as temáticas na dicotomia analítica aqui proposta tutela coletiva x repressão penal anticorrupção A classificação temática inclusive varia a depender do MP envolvido se o MPF ou os MPs estaduais De toda sorte vejamos o acumulado dos dados do triênio nestes dois grupos distintos MPF e MPs estaduais e distrital e relativos a apuratórios de caráter investigativo procedimentos preparatórios e inquéritos civis Tabela 1 Número de inquéritos civis e procedimentos preparatórios instaurados no âmbito do Ministério Público Federal 20152017 Improbidade administrativa Patrimônio Público Saúde Educação Serviço Público 31490 13440 12664 10454 5784 Fonte Sampaio e Viegas 2019 p 13 a partir de relatórios anuais do CNMP Tabela 2 Número de inquéritos civis e procedimentos preparatórios instaurados no âmbito dos MPs Estaduais e Distrital 20152017 administrativa Meio Ambiente Saúde ECA Criança e Improbidade Adolescente Patrimônio Público 103359 94265 69089 59146 53937 Fonte Sampaio e Viegas 2019 p 14 a partir de relatórios anuais do CNMP Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 95 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima A análise dos números totais evidencia que embora haja alguma diferença do perfil atuação entre MPF e MPs Estaduais com uma maior predominância de investigações anticorrupção no órgão federal dados associados à improbidade administrativa e ao patrimônio público em ambos os casos a temática possui um número de apurações muito superior às demais catalogadas pelo CNMP motivo pelo qual Sampaio e Viegas 2018 p 22 propõem entre outras conclusões que é possível se verificar uma priorização de investigações anticorrupção na atuação extrajudicial dos MPs no plano federal e também estadual31 corroborando ao menos o ponto de chegada da hipótese aqui proposta 44 Alguns efeitos da dominância da agenda anticorrupção no MP Não bastasse o comparativo entre as pesquisas de 1996 e 2016 evidenciarem uma reversão da tendência da priorização da tutela coletiva para o campo da função acusatória e que o combate à corrupção surge como prioridade máxima na agenda da maior parte dos membros já há trabalhos na literatura descrevendo as alterações na estrutura organizacional interna dos Ministérios Públicos para priorizar uma atuação especializada na área de repressão penal anticorrupção É o caso da criação de núcleos específicos para a temática vejase os Núcleos de Combate à Corrupção NCCs no âmbito do MPF o Núcleo de Atuação Integrada no Combate à Corrupção NAICC do MPSP e o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção GAECC do MPRJ e do desenvolvimento de uma expertise para a atuação através da sistemática de forçastarefas32 e operações que embora não constituam particulamente uma novidade em face da experiência dos GAECOs e outros órgãos especializados no âmbito dos MPs dos Estados têm se aperfeiçoado dentro de uma lógica e de uma expertise direcionadas especificamente para o enfrentamento da criminalidade anticorrupção33 Um outro aspecto a considerar está nos impactos institucionais tanto internos quanto externos dos grandes casos de corrupção do qual a chamada Operação Lava Jato é um exemplo emblemático O impacto deste tipo de atuação não repercute apenas na imagem institucional do MP fortalecendo narrativas em torno da viabilidade de uma pretensa refundação da República a partir de um vigoroso esforço de repressão penal à corrupção por meio da condução das instituições do sistema 31 A mobilização destes dados a esta altura do texto reiterese opera como elemento de reforço à hipótese da mudança institucional informal de maneira que outras frentes de pesquisa podem oferecer outras perspectivas analíticas a respeito dos números expostos e do material produzido anualmente nos relatórios de produtividade do CNMP denominados Ministério Público um retrato e publicados desde o ano de 2012 32 Segundo o Manual de Atuação da Escola do Ministério Público da União em sua acepção mais geral forçatarefa pode ser entendida como uma equipe de especialistas dotada de meios materiais necessários à consecução de um objetivo específico de reconhecida complexidade e que recomende por certo período de tempo a coordenação de esforços de um ou mais órgãos nacionais ou estrangeiros PALUDO et al 2011 p 28 33 Tomese aqui a título exemplificativo o histórico do GAECO do Ministério Público do Paraná Seu nascedouro está nas Promotorias de Investigação Criminal criadas pela Resolução n 971994 e que na prática constituíra ofícios criminais especializados mas abrangendo delitos em geral e não apenas aqueles associados à repressão penal anticorrupção Somente em 2007 com o advento da Resolução 1801 é que sob a nomenclatura de GAECO o órgão passa atuar na repressão específica da criminalidade organizada dentre os quais delitos praticados por agentes públicos no exercício da função quando presentes características típicas de grupo criminoso organizado ou estruturado art 5º II MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ 2021 96 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade de justiça como o MP BARROSO 2019 p 167176 CHALOUB LAMENHA 2019 LYNCH 2018 p 270272 mas também proporciona a difusão de um novo instrumental de persecução que de certa forma concorre para uma certa modernização da investigação criminal no País VIECILI 2017 Esse know how favorece não só uma maior eficiência em casos de maior complexidade como tem o potencial de gerar efeitos na cultura institucional do MP mobilizando um maior interesse dos membros na atuação anticorrupção especialmente focada na repressão penal Do mesmo modo não se pode desprezar que os efeitos da repercussão dos casos e da agenda anticorrupção seja identificado à luz de um momento político em que o tema mobiliza fortemente a opinião pública dentro da lógica do pluralismo estatal tais narrativas e ampla visibilidade favorecem ao projeto institucional de busca de mais espaço e poder políticos Conclusão Parece razoável propor que a agenda pública em torno da defesa e da promoção extrajudicial e judicial dos direitos transindividuais somente pode ser adequadamente compreendida se contemplar uma reflexão entre a dinâmica estabelecida entre MP e DP em torno da matéria uma vez que o texto demonstra à suficiência a existência de uma clara sobreposição de atribuições entre as instituições nesse campo De mais a mais também há evidências suficientes para propor que a DP desde a sua constitucionalização espelha muitos aspectos da trajetória de construção institucional do MP notadamente a aposta no campo da tutela coletiva como uma estratégia de consolidação do órgão no quadro institucional do sistema de justiça livre do risco de reversão mobilizado pelo lobby de outras corporações especificamente em relação à função primeira de orientação e defesa judicial dos necessitados Ao lado dessa trajetória desenvolvida pela DP nos anos que se seguiram à CRFB88 há elementos suficientes para identificar uma mudança institucional gradual da agenda de prioridades do MP da tutela coletiva para a repressão penal à corrupção Isso não significa que se trate de uma tendência irreversível podendo ter sido motivada pelos últimos acontecimentos associados à conjuntura política LEMGRUBER et al 2016 O que parece certo porém é que esse movimento de mudança institucional informal ocorreu de forma paralela aos avanços da Defensoria Pública no processo de definição pela legislação de novas atribuições na temática da tutela coletiva ao órgão Não há evidência suficiente para apontar para uma relação causal entre esses dois processos no entanto é possível especular que a gradual mudança institucional do MP na direção da pauta penal anticorrupção pode ter sido percebida pelo DP na formulação de sua agenda corporativa posterior à EC 4504 reeditando em alguma medida a mobilização do MP na década de 1970 e 1980 orientada pela tentativa de ocupar espaços no âmbito da tutela coletiva e da função promocional dos direitos Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 97 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima humanos34 Além disso também é possível que o mesmo fenômeno possa ajudar a compreender em algum nível porque diferentemente do ocorrido na CRFB88 e na época da LC 8094 a Defensoria Pública conseguiu implementar com sucesso toda a sua agenda corporativa a partir da EC n 4504 Idealmente a sobreposição de atribuições na tutela coletiva entre duas instituições do sistema de justiça sugere um fortalecimento no campo da defesa dos direitos transindividuais É o que propôs por exemplo a processualista Ada Pellegrini Grinover 1984 em seu parecer apresentado pela ANADEP nos autos da ADI 3943 BRASIL 2015 Indo além o novo quadro normativo favoreceria atuações conjuntas uma vez que a legitimação concorrente no âmbito da ACP principal instrumento judicial no campo da tutela coletiva não exclui a possibilidade de litisconsórcio o que aliás tem ocorrido em diversos casos em todo território nacional OSÓRIO 2019 p 579580 Deixado um pouco de lado o panorama ideal contudo há dificuldades que recomendam a necessidade de pensar com maior profundidade a respeito da eficiência do modelo de sobreposição de atribuições na defesa de direitos transindividuais Parece correto propor de saída que MP e DP não são instituições especializadas no campo da tutela coletiva o que se deduz pelo simples fato de que os órgãos possuem outras atribuições que geram significativo e compulsório volume de trabalho Observese por exemplo que o MP atua em todo e qualquer processo criminal no País mesmo as ações penais privadas na condição de fiscal da lei e a DP está inexoravelmente atrelada à demanda oriunda os necessitados que demandam o órgão por tutela judicial e orientação jurídica nos mais variados campos do direito As demandas sobretudo judiciais estranhas à tutela coletiva em ambos os órgãos geram uma série de tarefas compulsórias como prazos e audiências que ocupam a agenda diária dos promotoresprocuradores e defensores impedindoos de atuar de forma mais constante no campo da defesa de direitos transindividuais atividade que por sua natureza exige uma atividade extrajudicial intensa e diferenciada Poderseia especular que a especialização interna em ofícios específicos da tutela coletiva poderia superar o problema a exemplo do que já acontece no âmbito do MP Essa solução todavia possui limitações claras No âmbito específico da DP temse que o nível de institucionalização e capilaridade da Defensoria no território nacional varia significativamente sendo certo que várias comarcasseções judiciárias do País sequer contam com um defensor público No caso do MP embora 34 Também aqui há paralelos entre atribuições desempenhadas pelo MP e as mudanças normativas da DP ocorridas a partir do início dos anos 2000 Para além de um desdobramento natural na atuação na defesa de direitos transindividuais na direção de uma função promocional no campo dos direitos humanos existe na estrutura do Ministério Público Federal a função do Procurador Federal dos Direitos do Cidadão PFDC que tem por atribuição precípua a defesa dos direitos constitucionais do cidadão e a garantia de seu efeito respeito pelos Poderes Públicos e pelos prestadores de serviço de relevância pública LC 7593 art 1416 e art 40 No âmbito das unidades do MPF nos estadosmembros existem os Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão PRDC e no âmbito local os Procuradores dos Direitos do Cidadão PDCs BRASIL 1993 Paralelamente após a promulgação da EC 802014 a Defensoria Pública da União DPU através de ato do seu Conselho Superior Resolução nº 1272016 criou as funções de Defensor Nacional dos Direitos Humanos e Defensores Regionais dos Direitos Humanos Dentre as numerosas atribuições confiadas a ambos os órgãos está por exemplo a interlocução nacional e regional respectivamente junto a outros órgãos e instituições visando à promoção dos direitos humanos e a defesa coletiva de direitos e interesses conforme preveem os arts 7º IV e 8º XI do citado ato normativo BRASIL 2016a 98 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade a especialização interna já seja uma prática ela efetivamente apenas é viável em localidades maiores como capitais de maneira que a acumulação das diferentes atribuições do órgão na figura de um único agente público é a realidade de um número significativo de comarcas do País RIBEIRO 2017 p 6264 Além disso ainda que haja experiências de sucesso na atuação conjunta de MP e DP na tutela coletiva essa articulação depende quase exclusivamente da disposição dos agentes públicos envolvidos em tornála possível A ausência de um marco normativo que aborde a sobreposição de atribuições concorre para o risco de duplicidade de esforços estatais na direção de um mesmo problema reproduzindo em casos concretos episódios de competição institucional em torno da tutela coletiva Não se pode desconsiderar ainda o risco de que um conflito negativo de atuação com ambas as instituições afirmando que a atribuição para atuar em um caso específico é da outra postergando a efetiva proteção do direito transindividual em questão Direcionando a análise para as razões políticas que conduziram ambas as instituições para suas funções na tutela coletiva devese considerar que à luz do amplo catálogo de direitos positivado no ordenamento pátrio e da desigualdade estrutural existente na sociedade brasileira a atuação na seara dos direitos transindividuais confere a tais instituições um papel político de peso na formulação e execução de políticas públicas em todos os níveis federativos Virtualmente portanto qualquer assunto público pode ser mobilizado por ambos os órgãos como uma questão sob sua responsabilidade Na chave do pluralismo estatal a defesa da sociedade é um argumento político poderoso que certamente favorece a obtenção de melhores condições e prerrogativas para as corporações e seus membros A combinação entre instituições não especializadas que veem na reivindicação da posição de defensores da sociedade um trunfo político e a idealização de uma atuação reforçada no campo da tutela coletiva decorrente da sobreposição de atribuições pode conduzir na realidade a um esvaziamento na defesa dos direitos transindividuais Parece apressado todavia propor que a duplicidade de atribuições entre MP e DP no campo da tutela coletiva deveria ser inexoravelmente eliminada ou mesmo advogar por soluções mais drásticas como a criação de uma instituição especificamente voltada para esse tipo de demanda35 As ponderações trazidas por este artigo procuram oferecer subsídios à luz da teoria institucional para que pesquisas posteriores especialmente as que abordem empiricamente os resultados dessa superposição de funções possam aprofundar a discussão 35 Ressaltese aqui a título de registro que o Constituinte de 19871988 optou já na fase de sistematização do texto constitucional deliberadamente por não criar ao lado do Ministério Público uma agência independente voltada à defesa dos direitos do cidadão nos moldes do ombudsman sueco ou do defensor del pueblo iberoamericano como era defendido por alguns parlamentares constituintes como José Paulo Bisol autor da Emenda 320696 a respeito do tema e de setores da sociedade civil como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNBB Prevaleceu contudo na esteira da posição capitaneada pelo constituinte Ibsen Pinheiro a solução de confiar tais funções ao MP que na prática já a exerceria mesmo sem mandato constitucional específico dada a capilaridade da instituição em todo o território nacional SABELLA et al 2013 p 100102 ARANTES 2002 p 87 A criação de uma instituição especificamente voltada para tutela coletiva necessariamente revisitaria este debate Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 99 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Referências ARANTES Rogério Bastos Direito e política o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos Revista Brasileira de Ciências Sociais v 14 n 18 p 183102 1999 ARANTES Rogério Bastos Ministério Público e Política no Brasil São Paulo Sumaré 2002 ARANTES Rogério Bastos Polícia Federal e construção institucional In AVRITZER Leonardo FILGUEIRAS Fernando ed Corrupção e Sistema Político no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasi leira 2011 ARANTES Rogério Bastos Rendición de cuentas y pluralismo estatal en Brasil Ministério Público y Policía Federal Desacatos n 49 p 2847 septdic 2015 AVRITZER Leonardo MARONA Marjorie C A tensão entre soberania e instituições de controle na democracia brasileira Dados v 60 n 2 p 359393 2017 BARROSO Luís Roberto Empurrando a história combate à corrupção mudança de paradigmas e refundação do Brasil prefácio In PINOTTI Maria Cristina Corrupção Lava jato e Mãos Limpas São Paulo PortfolioPenguin 2019 p 919 BRASIL Ata da 5ª Reunião Ordinária da Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público na Assembleia Nacional Constituinte Diário da Assembleia Nacional Constituinte suplemento Brasí lia DF Câmara dos Deputados n 78 17 jun 1987 Disponível em httpimagemcamaragovbr Imagemdpdfsup78anc17jun1987pdfpage97 Acesso em 16 out 2019 BRASIL Conselho Superior da Defensoria Pública da União Resolução n 127 de 06 de abril de 2016 Regulamenta a tutela coletiva de direitos e interesses pela Defensoria Pública da União Diário Oficial da União 19 abr 2016a Disponível em httpswwwdpudefbrconselhosuperior resolucoes30844resolucaon127de06deabril2016regulamentaatutelacoletivadedireit ose interessespeladefensoriapublicadauniao Acesso em 5 nov 2019 BRASIL Constituição República Federativa do Brasil de 1988 Brasília DF Senado Federal 5 out 1988 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaoconstituicaohtm Acesso em 15 out 2019 BRASIL Emenda Constitucional n 45 de 30 de dezembro de 2004 Altera dispositivos dos arts 5º 36 52 92 93 95 98 99 102 103 104 105 107 109 111 112 114 115 125 126 127 128 129 134 e 168 da Constituição Federal e acrescenta os arts 103A 103B 111A e 130A e dá outras providências Diário Oficial da União Brasília DF 31 dez 2004 Disponível em httpwwwplanal togovbrccivil03constituicaoemendasemcemc45htm Acesso em 10 out 2019 BRASIL Emenda Constitucional n 69 de 29 de março de 2012 Altera os arts 21 22 e 48 da Constituição Federal para transferir da União para o Distrito Federal as atribuições de organizar e manter a Defensoria Pública do Distrito Federal Diário Oficial da União Brasília DF 30 mar 2012a Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaoemendasemcemc69htm Acesso em 10 out 2019 BRASIL Emenda Constitucional n 74 de 6 de agosto de 2013 Altera o art 134 da Constituição Federal Diário Oficial da União Brasília DF 7 ago 2013 Disponível em httpwwwplanaltogov brccivil03constituicaoemendasemcemc74htm Acesso em 10 out 2019 100 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade 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para organizações litigantes Direito e Práxis v 10 n 1 p 571592 mar 2019 PALUDO Januário et al Forçastarefas direito comparado e legislação aplicável Brasília DF ESM PU 2011 PERTENCE J P S Discurso de posse como ProcuradorGeral da República Brasília DF s n 1985 mimeo RIBEIRO Ludmila Mendonça Lopes Ministério Público velha instituição com novas funções Revista Crítica de Ciências Sociais n 113 p 5182 set 2017 SABELLA Walter Paulo et al Memórias das lutas pela obtenção do texto do Ministério Público na Constituição de 1988 In SABELLA Walter Paulo et al org Ministério Público vinte e cinco anos do novo perfil constitucional São Paulo Malheiros 2013 SADEK Maria Tereza Cidadania e Ministério Público In SADEK Maria Tereza ed Justiça e cidadania no Brasil São Paulo IDESPSumaré 2000 p 1137 SADEK Maria Tereza org O Ministério Público e a Justiça no Brasil Rio de Janeiro BVCE 2010 SAMPAIO Marianna VIEGAS Rafael Rodrigues Ministério Público de fiscal a elaborador de polí ticas públicas In ENCONTRO DA ANPOCS 43 Caxambu Anais Caxambu 2019 SAUWEN FILHO João Francisco O Ministério Público brasileiro e o Estado democrático de Direito Rio de Janeiro Renovar 1999 SENADO FEDERAL Projeto de Lei do Senado n 131 de 15 de abril 2003 Altera o artigo 5º da Lei 7347 de 24 de julho de 1985 Lei de Ação Civil Pública para legitimar os Senadores Deputados Federais Deputados Estaduais e Vereadores para a sua propositura Brasília DF Senado Federal 2003 Disponível em httpswww25senadolegbrwebatividademateriasmateria56726 Acesso em 2 nov 2019 SKOCPOL Theda Bringing the State Back In EVANS Peter et al ed Strategies of analysis in current research Cambridge Cambridge University Press 1985 p 338 VIECILI Jerusa B Lava Jato e modernização da investigação criminal no Brasil Brasília DF Associação Nacional de Procuradores da República 2017 Disponível em httpsbitly2r2HD4A Acesso em 29 out 2019 104 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico QUEM DEFENDERÁ A SOCIEDADE TRAJETÓRIAS E COMPETIÇÃO INSTITUCIONAL EM TORNO DA TUTELA COLETIVA ENTRE MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA NO PÓS19881 O texto aborda a evolução das instituições do Ministério Público e da Defensoria Pública no contexto da ordem constitucional de 1988 com foco na competição institucional em relação à defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos tutela coletiva O autor destaca que apesar das diferentes funções originalmente designadas para essas instituições ao longo de três décadas desde a promulgação da Constituição ocorreu uma sobreposição de atribuições no campo da tutela coletiva entre o Ministério Público e a Defensoria Pública O autor baseia sua análise no neoinstitucionalismo histórico e explora as trajetórias formais e informais de mudança nas duas instituições Ele identifica processos paralelos de mudança institucional no Ministério Público e na Defensoria Pública que explicam a competição entre os dois órgãos no âmbito da tutela coletiva A pesquisa é conduzida por meio de revisão bibliográfica e análise documental combinando abordagens do Direito e da Ciência Política de maneira interdisciplinar O autor observa que o desenho institucional original da Constituição de 1988 estabeleceu funções distintas para o Ministério Público e a Defensoria Pública mas ao longo do tempo essas instituições passaram a disputar espaço no campo da tutela coletiva mesmo mantendo suas atribuições originais No caso do Ministério Público observase uma possível mudança institucional informal com deslocamento gradual de prioridades do campo da tutela coletiva para o combate à corrupção enquanto a Defensoria Pública passou por mudanças formais incluindo alterações constitucionais e legislativas para expandir suas atribuições O texto também discute o conceito de pluralismo estatal no qual atores estatais mobilizam seus próprios interesses para influenciar a criação ou mudança institucional em contrapartida ao tradicional pluralismo político O autor argumenta que essa perspectiva pode ajudar a entender como a atribuição da tutela coletiva tem sido moldada ao longo do tempo pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública Em estudo sobre a institucionalização e independência dos órgãos estaduais da Defensoria Pública Lígia M Madeira 2014 p 6162 identifica a Emenda Constitucional n 4504 conhecida como Reforma do Judiciário como um ponto de virada para a consolidação e autonomia das Defensorias Públicas estaduais Antes da reforma em 2004 apenas 5 das 27 Defensorias estaduais poderiam ser consideradas independentes Acre Ceará Mato Grosso do Sul Mato Grosso e Rio de Janeiro Três anos após 2009 o número de Defensorias Públicas estaduais consideradas independentes aumentou para 10 Para a Defensoria Pública a EC 4504 foi uma mudança significativa já que estabeleceu o parágrafo 2º do art 134 da Constituição Federal garantindo autonomia funcional administrativa e iniciativa orçamentária às Defensorias Públicas estaduais Além disso a Defensoria foi incluída no art 168 da CFRB88 o que garantiu o repasse de dotações orçamentárias por meio da sistemática do duodécimo semelhante ao Poder Judiciário e ao Ministério Público Resgatando os debates legislativos da Reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados Moreira 2016 p 105106 menciona o destaque nº 274 proposto por José Roberto Batochio deputado federal por São Paulo e expresidente da OABSP que previa a possibilidade de celebração de convênios para prestação de assistência judiciária aos necessitados independentemente da atuação da Defensoria Pública Embora a proposta tenha sido rejeitada ela revela resistências contra a consolidação nacional das Defensorias Públicas Alguns Estados argumentavam que convênios já firmados com a OAB justificavam a não criação de uma Defensoria Pública estadual Um exemplo desse cenário é o caso de Santa Catarina que só instituiu a Defensoria Pública após decisões judiciais que consideraram inconstitucionais dispositivos estaduais que permitiam convênios desse tipo Além disso o episódio demonstra os desafios à consolidação e a força institucional de um órgão cuja atribuição se limitava à orientação jurídica e defesa judicial dos necessitados Dada a existência de uma história de prestação desse serviço sem uma instituição pública específica em muitos lugares do país a Defensoria Pública sempre esteve sob risco de reversão institucional mobilizada por modelos alternativos Isso explica o interesse da Defensoria em expandir suas atribuições para além da tutela individual dos necessitados Em suma o texto explora a evolução das instituições do Ministério Público e da Defensoria Pública após a Constituição de 1988 destacando as mudanças formais e informais que ocorreram ao longo do tempo e como essas instituições competem no campo da tutela coletiva O texto É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO COTIDIANO DOS ADVOGADOS POPULARES escrito por Fábio de Sá e Silva aborda a relação entre a atuação da Justiça e a democratização do Estado e da sociedade A literatura sociológica e política tem explorado três possibilidades para que a Justiça contribua para essa democratização o avanço do liberalismo político em proteção a minorias e liberdades civis a afirmação de novos direitos através da interpretação do direito existente e a efetivação de direitos já previstos no sistema jurídico especialmente em contextos de redemocratização A origem dos advogados populares pode ser situada nos anos 1980 emergindo em meio a diversos fenômenos sociais e políticos Na América Latina surgiram referências ao direito alternativo críticas ao direito convencional e abordagens linguísticas que influenciaram a compreensão do direito por parte dessa nova geração de advogados Essas abordagens forneceram um embasamento intelectual para que os advogados populares reavaliassem sua percepção do direito Esses advogados adotam uma abordagem diferenciada em relação aos clientes que representam Eles enfatizam o protagonismo dos clientes nos casos permitindo que eles acompanhem os processos e estejam envolvidos ativamente no sistema jurídico Essa postura difere da advocacia tradicional onde a participação ativa dos clientes poderia ser vista com desconfiança No entanto os advogados populares reconhecem que as estratégias jurídicas por si só não são suficientes para promover as mudanças estruturais que desejam Eles combinam estratégias jurídicas com ações extrajurídicas como educação jurídica popular e colaborações com outros atores do sistema de justiça e do sistema político Eles também reconhecem as limitações das mudanças legais e buscam formas de abordar as contradições do sistema de justiça muitas vezes imaginando uma nova ordem jurídica Uma tensão importante surge da necessidade de conciliar mudanças sociais e mudanças legais Os advogados populares reconhecem que devem escrever novos manuais para criar um padrão de jurisprudência que atenda às necessidades do povo Eles aspiram a construir uma nova ordem jurídica que vá além das limitações das estratégias tradicionais O texto também aborda as barreiras culturais e hierárquicas enfrentadas pelos advogados populares no contexto das profissões jurídicas Muitas vezes esses profissionais são vistos com preconceito por colegas que não estão envolvidos na advocacia popular Essas tensões refletem as complexidades das mudanças sociais e legais que os advogados populares buscam promover Em conclusão o texto É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO oferece uma visão abrangente das práticas e desafios enfrentados pelos advogados populares em sua busca pela democratização da justiça e pela construção de uma nova ordem jurídica que atenda às necessidades da sociedade A combinação de estratégias jurídicas e extrajurídicas o empoderamento dos clientes e a busca por mudanças profundas no sistema de justiça demonstram a dedicação desses profissionais a uma abordagem transformadora e socialmente engajada Adotando uma linha eminentemente exploratória este texto buscou identificar fatores críticos no trato dos advogados populares com a justiça brasileira para com isso discutir o grau de permeabilidade da justiça às demandas e expectativas dos setores populares e por conseguinte os seus déficits democráticos Nesse contexto três fortes tensões se destacaram lançando luz sobre as complexidades do sistema judiciário no contexto brasileiro Uma das tensões observadas está associada à indiferença da justiça em relação às mudanças normativas concretas que favoreceriam os setores populares Mesmo com alterações significativas no arcabouço normativo do país a favor desses setores a justiça muitas vezes não demonstra a devida sensibilidade para incorporar e promover essas mudanças Isso coloca em questão a capacidade do sistema judiciário de se adaptar às transformações sociais e de atender às demandas da população Outra tensão significativa emerge dos vínculos entre a justiça e as estruturas de poder Esses vínculos podem comprometer a imparcialidade da justiça e levantar questionamentos sobre sua capacidade de promover uma distribuição equitativa de justiça A influência de forças externas sobre o sistema judiciário pode minar a confiança do público na instituição e afetar negativamente a percepção de sua legitimidade A terceira tensão abordada diz respeito às estratificações e hierarquias que persistem dentro das próprias profissões jurídicas Essas hierarquias podem refletir preconceitos e desigualdades presentes na sociedade em geral O preconceito contra os advogados populares por parte de colegas que não estão envolvidos nessa forma de advocacia destaca a complexidade das relações de poder dentro da comunidade jurídica A partir de uma perspectiva heurística essas descobertas lançam dois desafios importantes ou no mínimo apresentam duas possibilidades de inovação analítica Primeiramente apontase para a necessidade de examinar as relações de poder que moldam a organização e o funcionamento da justiça Compreender como essas relações afetam as decisões e ações judiciais é crucial para uma análise mais completa do sistema Em segundo lugar há a importância de incorporar nas análises as histórias e o cotidiano dos demandantes da justiça Pesquisas futuras podem explorar as histórias não apenas dos advogados populares mas também de outros atores que compõem o cenário do acesso à justiça no Brasil Isso inclui investigar as perspectivas da Defensoria Pública e também dos indivíduos e grupos que estão no limiar da justiça Além de suas potenciais contribuições teóricas e metodológicas para um debate mais sociológico essas conclusões têm implicações políticas substanciais Elas revelam que a mensagem transmitida pela justiça aos setores populares que buscam o acesso para expressar suas demandas ecoa o veredito do porteiro no episódio de Kafka É possível mas agora não Isso indica uma desconexão entre a retórica democrática da justiça e a realidade enfrentada pelos setores populares Claro está que em sua atuação diária os advogados populares buscam criar alternativas para contornar os obstáculos que encontram Sua perseverança em interpelar a justiça aponta para um comprometimento significativo em promover mudanças mesmo em meio às complexidades e limitações do sistema judiciário Essa postura destaca a importância contínua da advocacia popular na busca por justiça social e democratização

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1567 É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO COTIDIANO DOS ADVOGADOS POPULARES Fabio de Sá e Silva TEXTO PARA DISCUSSÃO É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO COTIDIANO DOS ADVOGADOS POPULARES Fabio de Sá e Silva R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 1 5 6 7 Este texto foi produzido no âmbito do projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro mais especificamente como subsídio ao livro do eixo Fortalecimento do Estado das Instituições e da Democracia Técnico de Planejamento e Pesquisa e Coordenador de Estudos sobre Estado e Democracia da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado das Instituições e da Democracia Diest do Ipea e membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Governo Federal Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Ministro Samuel Pinheiro Guimarães Neto Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza para a sociedade pesquisas e estudos realizados por seus técnicos Presidente Marcio Pochmann Diretor de Desenvolvimento Institucional Fernando Ferreira Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais Mário Lisboa Theodoro Diretor de Estudos e Políticas do Estado das Instituições e da Democracia José Celso Pereira Cardoso Júnior Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas João Sicsú Diretora de Estudos e Políticas Regionais Urbanas e Ambientais Liana Maria da Frota Carleial Diretor de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação Regulação e Infraestrutura Márcio Wohlers de Almeida Diretor de Estudos e Políticas Sociais Jorge Abrahão de Castro Chefe de Gabinete Persio Marco Antonio Davison Assessorchefe de Imprensa e Comunicação Daniel Castro URL httpwwwipeagovbr Ouvidoria httpwwwipeagovbrouvidoria Texto para Discussão Publicação cujo objetivo é divulgar resultados de estudos direta ou indiretamente desenvolvidos pelo Ipea os quais por sua relevância levam informações para profissionais es pecializados e estabelecem um espaço para sugestões As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores não exprimindo necessariamente o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estraté gicos da Presidência da República É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele con tidos desde que citada a fonte Reproduções para fins co merciais são proibidas ISSN 14154765 JEL Z Z0 SUMÁRIO SINOPSE ABSTRACT 1 INTRODUÇÃO 7 2 ADVOCACIA POPULAR SITUANDO O REFERENCIAL EMPÍRICO DO TEXTO 10 3 HISTÓRIAS DO COTIDIANO E ESTRUTURA SOCIAL POR QUE E COMO APRENDER SOBRE A JUSTIÇA A PARTIR DE NARRATIVAS DE ADVOGADOS POPULARES 17 4 DIANTE DA LEI TRÊS TENSÕES NA RELAÇÃO ENTRE ADVOGADOS POPULARES E O SISTEMA DE JUSTIÇA 22 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 30 REFERÊNCIAS 32 SINOPSE Este texto busca examinar a qualidade democrática da justiça brasileira ou seja a sua permeabilidade aos interesses e expectativas dos mais diversos grupos sociais sobretudo os mais pobres ou desfavorecidos tomando como base narrativas de advogados populares acerca de sua relação com o sistema de justiça Por advogados populares entendase um segmento organizado da advocacia brasileira que se dedica ao apoio jurídico a movimentos sociais e como consta da própria designação utilizada por seus integrantes à defesa de causas populares A pesquisa de fundo deste texto abordou apenas aqueles advogados populares que trabalham com públicos envolvidos em lutas por terra sem terras quilombolas e indígenas Como achados principais o texto relaciona três tensões que obtiveram maior destaque na fala dos entrevistados uma em torno da definição do direito aplicável a qual diz respeito ao desconhecimento ou à desconsideração de vários elementos do direito positivo favoráveis a esses grupos ou populações outra em torno da parcialidade da justiça que diz respeito aos vínculos orgânicos ou interesses diretos de seus quadros nas questões que eles têm por ofício examinar e uma terceira associada às relações de poder e hierarquia que subsistem nas profissões jurídicas e se refletem mesmo em preconceito no âmbito da justiça contra aqueles que se engajam na advocacia popular Ao final o texto discute as implicações de longo prazo de seu exercício analítico e de seus achados para os debates e proposições voltadas à democratização da justiça ABSTRACTi Peoples lawyers constitute an organized segment of the Brazilian bar that provides legal assistance to social movements and as it is said in the very way this population designates itself advocates for the causes of the people This article discusses whether the Brazilian justice system is permeable to the interests and expectations of the various social groups especially the poor and disadvantaged To do so the article examines i The versions in English of the abstracts of this series have not been edited by Ipeas editorial department As versões em língua inglesa das sinopses abstracts desta coleção não são objeto de revisão pelo Editorial do Ipea narratives about the everyday experiences of socalled peoples lawyers within the justice system with a special focus on lawyers who advocate for groups involved in struggles for land the landless the z and the indigenous peoples As its main findings the article presents three crucial tensions that peoples lawyers face and that were more salient in the data analysis One gravitates around the definition of the applicable law and refers to what lawyers consider to be an unawareness of or a disregard for legal rules that are favorable to their client groups by justice officials Another tension gravitates around biases in the justice system and refers to the perception among peoples lawyers that justice officials have strong links or common interests with the issues or actors that they are supposed to be ruling against such as big landowners The last one refers to the relationships of power and hierarchy that subsist in the Brazilian legal profession and amount to actual prejudice against peoples lawyers within the bar In light of these findings the article argues that the democratization of the justice system is an integral part of the structure of opportunities for the development of public interest law advocacy and suggests an academic and political agenda around that issue in Brazil Texto para Discussão 1 5 6 7 7 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares 1 INTRODUÇÃO A partir da segunda metade do século XX o sistema de justiça passou a desempenhar um papel de grande relevo no fortalecimento das democracias A despeito das ressalvas contra os riscos de violação do princípio da separação de poderes SCALIA 1997 GLAZER 1975 de um indevido encantamento com o mito dos direitos SCHEINGOLD 1978 ou do caráter ilusório do poder político dos tribunais frente aos vários constrangimentos sociais políticos e institucionais existentes para que suas decisões ganhem efetividade ROSENBERG 2001 a literatura produzida pela sociologia jurídica e por vários ramos da ciência política ao longo das últimas quatro ou cinco décadas atribui ao menos três possibilidades para que a atuação da Justiça venha a auxiliar na democratização do Estado e da própria sociedade o avanço do liberalismo político com a proteção a minorias e a promoção de liberdades civis1 a afirmação de novos direitos a partir da interpretação de categorias clássicas do direito posto2 e o que é de particular importância para países que vivenciaram processos recentes de redemocratização como o Brasil a efetivação de direitos e garantias já previstos no sistema jurídico os quais pela inércia do sistema político e das instituições governamentais permanecem represados na sua dimensão formal3 1 Esta é a conclusão de Halliday Karpik e Feeley em pesquisa comparada sobre o complexo formado por instituições da justiça operadores e acadêmicos de direito nas mais variadas realidades nacionais Como anotam esses autores todos os estudos contemporâneos sobre o constitucionalismo na Ásia na América Latina na Austrália na Europa e em outras partes do mundo reconhecem um papel político para os judiciários Em consequência estudantes de política comparada enfim vieram a descobrir a importância dos Tribunais e de maneira mais geral a importância do direito e das instituições jurídicas para a estabilidade e o sucesso político HOLLIDAY KARPIK FEELEY 2009 p 06 2 O exemplo sempre invocado é a decisão da Suprema Corte norteamericana que ordenou a desagregação escolar nos estados interpretando o alcance da 14a Emenda à Constituição dos Estados Unidos Brown v Board of Education Mas desde os anos 1990 o Brasil também vem registrando inúmeras experiências similares como foi o caso da decisão na qual o Superior Tribunal de Justiça STJ considerou que a ocupação de terra com o objetivo de pressionar pela realização de reforma agrária constitui forma legítima de ação política não um crime de esbulho Habeas Corpus HC 4399SP ou como lembra Santos 2007 p 20 das sucessivas decisões proferidas por tribunais estaduais em favor de companheiros homossexuais mesmo sem a existência de lei que trate diretamente dessa questão Mais recentemente a ampliação de direitos de homossexuais apontada por Santos alcançou o STJ Em abril de 2010 a 4a Turma do Tribunal concordou em atribuir a guarda de filho menor adotado por uma homossexual à sua parceira o que muitos perceberam como um sinal de que num futuro próximo casais homossexuais poderão pleitear a adoção de crianças 3 Referindose ao caso brasileiro por exemplo Santos enfatiza que a exaltante construção jurídicoinstitucional da Constituição de 1988 tende a aumentar as expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos e as garantias consignadas na Constituição de tal forma que a execução deficiente ou mesmo inexistente de muitas políticas sociais pode transformarse num motivo de recurso aos tribunais SANTOS 2007 p 18 Assim conclui o sociólogo português a redemocratização e o novo marco constitucional darão maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos 2007 p 18 8 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Talvez não por coincidência a documentação de todas essas formas democratizantes de atuação da justiça foi acompanhada de crescentes reivindicações no meio acadêmico e social pela democratização da própria justiça A literatura produzida a esse propósito é por sua vez igualmente ampla e diversificada Alguns autores reclamam da falta de mecanismos para que os pobres e desfavorecidos possam ter acesso não apenas ao direito de defesa mas também à capacidade de mobilizar ativamente as instituições da justiça Nessa linha a principal recomendação é a da ampliação do acesso a serviços jurídicos a mecanismos de representação de interesses coletivos e difusos em favor desses públicos ou numa palavra a ampliação do acesso à justiça CAPELLETTI GARTH 1978 1988 Outros localizam no formalismo dos profissionais do direito e na insensibilidade de uma cultura jurídica de forte inspiração liberalburguesa alguns dos maiores entraves para que as instituições da justiça venham a ser mais responsivas às demandas de setores populares AGUIAR RAMOS 1993 FARIA 1987 1988 1989 1991 SOUSA JÚNIOR 2002 O caminho para uma justiça democrática nesse caso não poderia ser trilhado sem mudanças no ensino do Direito e sem uma valorização maior de elementos didáticopedagógicos que aproximem bacharéis e sociedade como a extensão universitária PORTO 1999 OLIVEIRA 2004 SÁ E SILVA 20074 Há ainda quem questione não apenas a formação inicial dos profissionais do direito mas também os seus processos de recrutamento e a formação pelas carreiras da Justiça Em relatório de pesquisa elaborado no âmbito do Observatório da Justiça Portuguesa com análises comparativas envolvendo experiências de toda a Europa Gomes e Pedroso GOMES PEDROSO 2001 p 177178 anotam que em todas elas o tema do recrutamento e formação de magistrados revelouse central no debate sobre o sistema judicial em primeiro lugar por causa da pressão social e política para a inversão da tendência negativa de resposta dos tribunais às transformações primeiro de ordem quantitativa e depois qualitativa da procura social que lhes é dirigida Na conclusão tais autores esboçam uma proposta de renovação para o recrutamento e a formação de magistrados a qual teria como princípios a garantia de um recrutamento plural e diversificado nas competências e saberes dos candidatos o desenvolvimento de 4 A referência aqui é ao Brasil mas há paralelos no estrangeiro Num texto relativamente recente por exemplo Kim Economides critica os debates tradicionais sobre acesso à justiça porque segundo ele tais debates consideram apenas o volume e a natureza da demanda por serviços jurídicos quando na verdade seria preciso também discutir a qualidade do acesso promovido explorandose assim as compreensões de justiça compartilhadas pela profissão jurídica e a ética jurídica bem como o papel que as Faculdades de Direito e o ensino jurídico cumprem na formulação destas ECONOMI DES 2003 p 01 Texto para Discussão 1 5 6 7 9 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares apurada formação técnica e elevada sensibilidade social e a preocupação de que os conteúdos jurídicos e não jurídicos da formação privilegiem uma cultura de cidadania 2001 p 177178 Há por fim quem suscite questionamentos sobre a gestão dos tribunais e das instituições que integram o sistema de justiça sob o argumento de que a democratização da Justiça depende antes de tudo de sua maior proximidade em relação aos cidadãos Aqui a aposta recai não apenas sobre práticas oficiais pouco ortodoxas como a justiça itinerante ou a justiça restaurativa mas também sobre experiências populares de administração da justiça como a justiça comunitária FOLEY 2003 e as promotoras legais populares TOKARSKI 2007 SANTOS 2007 Apesar da amplitude de temas e enfoques podese dizer que essa agenda de pesquisas e debates opera sobre duas grandes premissas A primeira é que o caráter democrático da Justiça reside em sua capacidade de receber e processar as demandas dos mais variados grupos sociais sobretudo os mais vulneráveis produzindo decisões que ajudem a fortalecer junto a esses segmentos um sentido de pertencimento a uma comunidade política na qual somos todos iguais em respeito e consideração A segunda é que para usar uma conhecida expressão de Carvalho 2002 na luta por tornar a Justiça brasileira mais democrática resta ainda um longo caminho a percorrer Há pois em toda essa literatura um notável contraste entre de um lado demandas e expectativas legítimas dos cidadãos e de outro um arcabouço institucional opaco e insensível que além de não corresponder a essas demandas as esmaga pela sua linguagem esotérica pela sua presença arrogante pela sua maneira cerimonial de vestir pelos seus edifícios esmagadores pelas suas labirínticas secretarias etc SANTOS 2007 p 31 Para examinar algumas dessas questões este artigo toma como unidade de análise a experiência cotidiana que os advogados populares mantêm com a justiça5 A premissa teórica e metodológica que sustenta esse exercício é a de que examinando se temas salientes e comuns na experiência desses profissionais é possível identificar obstáculos ou desafios pendentes para a construção de um sistema de justiça receptivo 5 Por advogados populares entendase um segmento organizado da advocacia brasileira que se dedica ao apoio jurídico a movimentos sociais e como consta da própria designação utilizada por seus integrantes à defesa de causas populares 10 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 e atrativo às demandas dos de baixo6 Com isso pretendese desenvolver um tipo de abordagem que complemente tanto as análises baseadas nos produtos da justiça como as sentenças ou acórdãos as quais embora consigam identificar a hostilidade do sistema em relação a certos grupos sociais não captam os mecanismos pelos quais essa hostilidade opera e se reproduz quanto as análises de ordem mais etnográfica as quais embora consigam construir narrativas detalhadas a respeito desses mecanismos têm baixíssimo grau de generalidade temporal e geográfica A primeira seção descreve o surgimento e a atuação dos advogados populares com vistas a situar melhor o referencial empírico do texto Dada a escassez de referências sobre este tema na literatura essa seção também faz uso de fontes primárias tais como trechos de entrevistas ou notas de campo A segunda seção expande as considerações metodológicas aqui brevemente delineadas indicando por que e como é possível aprender sobre a Justiça a partir de narrativas de advogados populares algo que em princípio pode soar inusitado para alguns dos leitores A terceira seção concentra a parte mais analítica e substantiva do texto nela se identificam sob a perspectiva democrática três tensões na relação entre os advogados populares e a justiça uma tensão em torno da definição do direito aplicável uma tensão em torno da parcialidade do sistema e uma tensão em torno da distribuição de poder simbólico nas profissões jurídicas A quarta seção por fim resume os argumentos do texto e lança desafios analíticos e políticos para o futuro do debate sobre a democratização da justiça brasileira 2 ADVOCACIA POPULAR SITUANDO O REFERENCIAL EMPÍRICO DO TEXTO Embora os chamados advogados populares existam há mais de duas décadas no Brasil e apesar de um deles Darcy Frigo ter se tornado em 2001 o primeiro brasileiro a 6 A expressão de baixo é invocada neste texto com duas conotações centrais em primeiro lugar uma conotação socio demográfica designando o que se convencionou chamar de base da pirâmide social brasileira Nesse sentido aludese a setores carentes ou até mesmo desprovidos de recursos materiais e simbólicos tidos como de grande importância na reprodução das sociedades capitalistas Em segundo lugar uma conotação sociopolítica a qual entende a presença desses segmentos na esfera pública como dado fundamental na construção de alternativas de futuro para as sociedades capita listas e eventualmente para a construção de um futuro não capitalista Neste último sentido ver a recente sugestão de Santos e RodriguezGaravito 2006 sobre a existência de uma globalização desde baixo Texto para Discussão 1 5 6 7 11 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares receber o prêmio Robert F Kennedy por seu trabalho em defesa dos direitos humanos7 a história desse segmento socioprofissional permanece desconhecida pela maior parte da comunidade sociojurídica8 As poucas referências disponíveis na literatura permitem identificar a emergência dos primeiros advogados populares em meados dos anos 1980 em meio à confluência de vários fenômenos9 Em primeiro lugar o país vivia o declínio da ditadura militar e o estabelecimento de uma ordem democrática o que deu nova dignidade política ao direito e às instituições jurídicas Se durante a ditadura militar a atuação jurídica de corte progressista estava oficialmente limitada a medidas mais discretas por exemplo o uso de habeas corpus em favor de presos e desaparecidos políticos no contexto da restauração democrática os advogados foram liberados para exercitar várias outras formas de atuação dentro e fora dos tribunais Em segundo lugar o país assistia à emergência de vários movimentos sociais que protestavam contra a desigualdade estrutural inerente ao modelo de desenvolvimento adotado pelo regime militar com sua fórmula de deixar crescer o bolo para depois dividilo Em áreas urbanas esses movimentos reivindicavam políticas em diversos setores como habitação transporte e comunicação social caso dos movimentos por rádios comunitárias além de novos contornos para as relações de trabalho No campo o foco era na luta contra o latifúndio entendido não apenas em seu sentido econômico mas também político ou seja em seu papel determinante na reprodução de esquemas de poder em nível local O legado da entrada desses novos personagens na cena sociopolítica como definido por Sader 1988 é bem conhecido Em poucos anos o movimento sindical radicado no ABC paulista daria origem ao Partido dos 7 Ver Sem Terra em Washington Revista Istoé ed 1677 8 Algumas exceções são Junqueira 2002 Gorsdorf 2005 Engelmann 2006 Luz 2008 Abrão e Torelly 2009 e Santos e Carlet 2010 Para análises mais gerais sobre os serviços jurídicos alternativos emergentes na década de 1980 e que apresentam vários paralelos com a advocacia popular ver Thome 1984 e Campilongo 1994 9 Em pesquisa recente também baseada em entrevistas com advogados e advogadas populares Carlet Slsn verificou nestes uma tendência de localizar a origem de sua atuação em pontos bem mais distantes no tempo referindose a perso nagens como Luiz Gama ou a Francisco Julião como alguns dos primeiros advogados populares Parece residir nisso uma tentativa de estender o significado histórico e político de uma experiência talvez até mesmo em busca de fortalecimento de identidade socioprofissional De um ponto de vista analítico no entanto parece claro que a advocacia popular entendida como um segmento organizado vinculado a movimentos sociais e populares conjugando deliberadamente estratégias jurídicas e políticas trabalhando com causas coletivas e atuando não apenas defensivamente mas também na busca pela expansão de direitos não pode ser localizada antes dos anos 1970 12 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Trabalhadores PT tendo como grande liderança o então líder sindical Luis Inácio Lula da Silva No campo a mobilização em favor da reforma agrária daria origem ao importante Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST Em terceiro lugar as profissões jurídicas atravessavam um curioso processo de diversificação no qual se tornaram visíveis várias fraturas ideológicas não apenas no âmbito da advocacia mas também da magistratura10 Em parte isso se deveu ao próprio retorno das liberdades civis o que franqueou às faculdades e aos profissionais do direito a possibilidade de estabelecer conexões livres com o chamado pensamento crítico em voga na Europa e mesmo em outros pontos da América Latina Tornaramse correntes então nesses meios as referências ao direito alternativo de Barcelona que adota uma postura gramsciana para o estudo do sistema jurídico à critique du droit de Mialle a qual caminha na linha de uma abordagem marxista mais clássica sobre o direito e as instituições jurídicas e à abordagem linguística de Warat orientada para a desconstrução do que ele próprio chamava de senso comum teórico dos juristas de ofício11 A despeito das diferenças entre essas escolas de pensamento e as muitas outras que se mostraram influentes naquela época todas elas ofereceram às novas gerações de advogados um importante combustível intelectual com o qual eles puderam reavaliar sua própria compreensão do direito Por fim há que se destacar a percepção crescente por parte dos setores populares e das organizações sociais sindicatos partidos políticos e Igreja Católica de que o direito era um espaço de disputa que merecia ser ocupado embora houvesse e ainda haja natural divergência sobre como ele deve ser ocupado e em que termos a disputa em torno dele deve ser travada O caso mais emblemático no qual aliás muitos enxergam o surgimento da advocacia popular é o da Igreja Católica12 Um advogado 10 Para aludir a esse fenômeno Ruivo 1989 utiliza a provocativa expressão conversão profissional 11 Sobre essas três vertentes críticas ver respectivamente Arruda Júnior 1991 1992 Mialle 1980 e Warat 1994 1995 Para uma ampla e cartográfica discussão sobre o pensamento jurídico crítico no Brasil a partir do final dos anos 1970 ver Wolkmer 2002 12 É importante incluir nessa lista ainda pela frequente menção nas entrevistas a advogados populares entre 30 e 35 anos o papel do movimento estudantil de direito que entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990 promoveu importantes debates sobre o sentido da mobilização dos estudantes de direito num contexto democrático Porção significativa dos partici pantes desses debates defendeu à época que a nova tarefa a cumprir seria apoiar as lutas dos movimentos sociais e investir em atividades de extensão ou seja voltadas a promover o diálogo entre as escolas de Direito e a sociedade Assim a noção de assessorias jurídicas universitárias populares AJUPs ganhou força nos Encontros Nacionais de Estudantes de Direito ENEDs principal atividade do movimento de área em direito nos quais mais tarde seria criada a Rede Nacional de Assessorias Jurídicas Universitárias RENAJU A melhor documentação dessa história encontrase em Luz 2008 Texto para Discussão 1 5 6 7 13 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares popular entrevistado por Carlet Slsn assim define os fatos ou demandas que haviam contribuído para a organização desse grupo os advogados populares A advocacia sempre teve no Brasil de um modo geral um perfil conservador e atrelado àqueles que possuem poder econômico porque também sempre foi vista como uma atividade para gerar lucro o mais rápido possível e para se melhorar de vida Então eu acredito que o fator motivador principal da organização dos advogados populares foi justamente a luta social a luta dos movimentos sociais No caso do campo por exemplo a luta dos trabalhadores rurais pelo acesso à terra Nos momentos em que esses trabalhadores eram vítimas de violência como assassinatos ameaças de morte e despejos acabavam recorrendo à Igreja e aos Sindicatos Então as demandas eram apresentadas inicialmente para a Igreja onde havia a CPT Comissão Pastoral da Terra e essas entidades procuravam advogados que tinham sensibilidade com essa questão para poderem fazer a defesa dos trabalhadores Lembro que na época um dos primeiros advogados que veio para cá em 1982 foi o inclusive depois assassinado aqui em ele foi o primeiro advogado da CPT aqui Ainda antes dele chegou a haver um advogado popular que foi o era inclusive do partido e fazia a defesa dos trabalhadores rurais na região Foi assassinado em 1987 Depois tivemos o advogado também assassinado mas em 1989 Então veja que era a demanda dos movimentos sociais naquele momento em que sofriam uma repressão violenta colocada às entidades que de certa forma faziam assessoria jurídica e essas entidades por sua vez percebendo a necessidade de fazer a defesa dos direitos dos trabalhadores contratavam advogados ou por dentro da própria CPT ou por meio de convites a alguns advogados para fazerem um trabalho pontual como por exemplo uma audiência um processo um júri Sob a influência desses fatores a advocacia popular se configura a partir de quatro características principais Em primeiro lugar e dada a vinculação histórica de sua gênese com a emergência dos movimentos sociais que na cidade e no campo reclamavam por bens e direitos coletivos os advogados populares tendem a abordar cada um dos casos nos quais trabalham como expressão de padrões estruturais de opressão das sociedades capitalistas Como um expoente da advocacia popular já escreveu os que procuram os serviços dos advogados populares rarissimamente estão sozinhos Eles pertencem de regra a uma coletividade qualquer que ultrapassa o indivíduo a família o grupo a categoria profissional a qual se encontra na mesma situação dele as Sua principal característica é a da pobreza da carência ou em alguns casos da miséria ALFONSÍN 2005 p 84 Em segundo lugar e ainda devido à sua vinculação genética com a entrada dos movimentos sociais em cena a partir da década de 1980 os advogados populares utilizam uma medida bastante peculiar de sucesso Em vez da busca por resultados 14 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 favoráveis em processos judiciais como seria natural esperar de um típico prestador de serviços jurídicos eles parecem mais preocupados em contribuir para o empoderamento de uma ação social em curso Esse traço ideológico se manifesta de duas maneiras Por um lado no que se poderia chamar de seleção da clientela Alfonsín 2005 p 84 anota que os advogados populares prestam serviço eminentemente a organizações informais e formais movimentos populares como o MST Movimento do Sem Terra MMTR Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais MPA Movimento dos Pequenos Agricultores MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MNLM Movimento Nacional de Luta pela Moradia CPT Comissão Pastoral da Terra CEBs Comunidades Eclesiais de Base MTD Movimento dos Trabalhadores Desempregados Movimentos e Comissões de Direitos Humanos Sindicatos Rurais e Pastorais grupos de pessoas dedicadas à defesa de direitos humanos violados pela tortura pelo racismo pelas prisões ilegais ou à defesa de crianças e adolescentes de homossexuais do direito à livre expressão através de rádios comunitárias entre outras Tratase com isso de dar apoio aos que ou já estão organizados ou estão em processo de organização para combater injustiças sistêmicas Por outro lado a perspectiva de empoderamento de ação social também se revela pela garantia de protagonismo dos clientes na condução dos casos Uma das entrevistadas nesta pesquisa conta que é muito comum os militantes acompanharem monitorarem os processos em que estão envolvidos seja nas possessórias nas ações criminais e até mesmo nas ações de desapropriação que o Incra promove Eles acompanham o andamento processual pelos sites dos Tribunais vão aos cartórios estão cada vez mais apropriados do labirinto judicial Na advocacia tradicional isso seria visto como fator de desconfiança na relação entre cliente e advogado Na advocacia popular representa mais um elemento do processo de organização dos clientes o qual os advogados buscam fortalecer JUNQUEIRA 2002 p 202 A própria expressão clientes nesse aspecto é frequentemente rejeitada pelos advogados populares Em texto produzido em conjunto com Santos e Carlet ela própria uma exadvogada popular utiliza a expressão destinatários da advocacia popular para se referir aos movimentos e grupos defendidos por esses profissionais SANTOS CARLET 2010 Texto para Discussão 1 5 6 7 15 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Em terceiro lugar e porque têm plena consciência das fraturas ideológicas existentes no âmbito das profissões jurídicas os advogados populares tendem a considerar as estratégias jurídicas como insuficientes para produzir as mudanças estruturais que enxergam como necessárias Por um lado isso resulta na decisão deliberada de associar estratégias jurídicas a estratégias extrajurídicas como as de educação jurídica popular articulação com outros atores ou instituições da justiça articulação com atores ou instituições do sistema político ou construção de redes junto a outras organizações da sociedade civil Por outro lado isso se traduz na ideia de que o campo de trabalho de um advogado popular é o da exploração das contradições do sistema jurídico no que a advocacia popular se distingue tanto do positivismo liberal que enxerga no sistema jurídico um todo coerente e justo quanto do marxismo ortodoxo para o qual o Estado e o Direito seriam meros gabinetes de negócio da burguesia13 Por fim os advogados populares tentam reconciliar mudança social com mudança legal Ao explorar as contradições do sistema de justiça os advogados populares também se voltam à imaginação de uma nova ordem jurídica Em entrevista sobre a criação da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares RENAP da qual fora um protagonista um entrevistado recordouse de que um grupo de advogados populares estava reunido em um hotel em São Paulo quando o fundador do movimento Plínio de Arruda Sampaio perguntou Quem é que escreve os livros de doutrina jurídica neste país Quando os outros participantes começaram a citar os mais influentes autores Sampaio interrompeu e perguntou Quem desses aí é de esquerda Diante do silêncio dos presentes dizia o entrevistado Sampaio propôs É hora de nós começarmos a escrever novos manuais Assim os advogados populares têm clareza de que além de não apenas representar clientes eles também trilham o caminho para a emergência de outro padrão de jurisprudência no país um padrão que realmente atenda às necessidades do povo Não é à toa que muitos desses profissionais têm conexão 13 Um clássico exemplo do uso das contradições do sistema para dar apoio à mobilização social foi o uso de argumentos procedimentais para invalidar liminares de reintegração de posse de imóveis rurais ou urbanos O Código de Processo Civil brasileiro exige que os réus sejam qualificados um a um em qualquer ação judicial Isso se tornava quase impossível nos casos em que a terra ou o imóvel eram ocupados por diversas pessoas em geral estranhas ao alegado proprietário Na década de 1980 muitos advogados populares começaram a questionar liminares concedidas genericamente contra os ocupantes Como ainda não havia jurisprudência considerando ocupações legais os advogados sabiam que em algum momento a ordem de desocupação viria Ainda assim eles utilizavam a lei para buscar mais tempo de maneira que o movimento pudesse decidir que caminho tomar além de negociar com autoridades políticas ou buscar a atenção da mídia para garantir que a desocupação ocorreria sem o uso de violência policial 16 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 com movimentos sociojurídicos que buscam estudar um direito que é insurgente PRESSBURGER 1990 ou que pode ser achado na rua SOUSA JÚNIOR 198714 Nesse sentido é importante notar que a advocacia popular sempre buscou ser uma atividade bastante intelectualizada Os advogados populares têm por hábito realizar cursos de pósgraduação escrever artigos e livros jurídicos15 e publicar artigos de opinião em jornais por meio dos quais eles pretendem sofisticar os seus argumentos e desenhar estratégias para influenciar na agenda jurídica16 Algumas vezes foram bastante bemsucedidos dando ensejo a verdadeiras mudanças paradigmáticas na jurisprudência nacional relativamente a temas como reforma agrária e direitos civis Por exemplo Santos e Carlet 2010 recordam o caso da Fazenda Primavera no qual os advogados populares defenderam que os direitos humanos dos sem terra deveriam prevalecer sobre o direito de propriedade Na decisão proferida em grau de recurso contra a decisão do juízo local a qual havia concedido liminar de reintegração de posse da fazenda o desembargador Günter Spode concordou com esse argumento e afirmou que entre o prejuízo patrimonial que a invasão certamente causará ou até já está causando à empresa arrendatária das terras ocupadas e a ofensa aos direitos fundamentais ou a negativa do mínimo social das 600 famílias dos sem terra que sendo retirados de lá literalmente não têm para onde ir sacrificase o direito patrimonial garantindo os direitos fundamentais17 O quadro 1 sintetiza assim os elementos que permitem caracterizar a prática socioprofissional designada como advocacia popular 14 A expressão O Direito Achado na Rua alude a um movimento acadêmico nascido na Universidade de Brasília UnB sob a liderança de José Geraldo de Sousa Júnior o qual busca captar pretensões normativas embutidas na ação dos movimentos sociais e traduzir essas pretensões em categorias jurídicas que ajudem a estruturar novas formas de organização social de modo que o direito possa realizarse como um projeto de legítima organização social da liberdade SOUSA JUNIOR Slsn 15 Ver por exemplo Strozake 2002 e as várias edições dos Cadernos RENAP 16 Mais recentemente esse elemento característico da advocacia popular tem sido severamente prejudicado dada a escassez de recursos e a dificuldade dos advogados de celebrar parcerias com instituições públicas ou privadas a fim de viabilizar os cursos e a produção de publicações 17 Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul TJRGS 19a Câmara Cível Agravo de Instrumento 598360402 Des Guinther Spode Redator para o acórdão j 6101998 Texto para Discussão 1 5 6 7 17 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Ao mesmo tempo o resgate desses elementos e de seu processo de institucionalização permite analisar a advocacia popular não como fato curioso mas sim como expressão singular de lutas por direito e justiça uma experiência que diz muito sobre a restauração democrática no Brasil e na América do Sul e sobre o papel que o direito e as instituições jurídicas têm nela ocupado apesar de todas as ressalvas que se costuma fazer quanto à adesão do país e da região ao paradigma do Estado de Direito ou como consta da expressão em inglês do rule of law MÉNDEZ ODONNELL PINHEIRO 1999 Daí porque sustentase no presente texto as dificuldades que estes profissionais enfrentam para dar forma e vazão jurídica às demandas e às expectativas dos movimentos e organizações populares pelos quais advogam podem ser tomadas como reveladoras dos déficits democráticos na justiça 3 HISTÓRIAS DO COTIDIANO E ESTRUTURA SOCIAL POR QUE E COMO APRENDER SOBRE A JUSTIÇA A PARTIR DE NARRATI VAS DE ADVOGADOS POPULARES Embora remonte a uma tradição acadêmica já bem estabelecida no Brasil e no exterior a tentativa de examinar a permeabilidade da justiça às demandas e expectativas dos setores populares ainda envolve imensos desafios metodológicos Um caminho possível e até certo ponto clássico nas ciências sociais é analisar se e como os produtos do sistema de justiça se diferenciam em função de características socioeconômicas e demográficas dos seus usuários na perspectiva de se constatar se a justiça assume posição enviesada ou particularmente hostil em relação a segmentos mais vulneráveis Foi o que fez Adorno por exemplo no influente estudo que identificou discriminação racial no Tribunal do Júri de São Paulo ADORNO 1995 Para tanto Adorno comparou as sentenças QUADRO 1 Pressupostos contextuais e ideológicos Sentido da ação Método Acirramento de conflitos por bens e serviços coletivos Emergência de movimentos sociais Investimento no direito por parte de algumas organizações e movimentos sociais Empoderamento de ação social em curso Ênfase no aspecto coletivo dos conflitos Seleção da clientela que privilegia movimentos ou grupos organizados ou em fase de organização Uso conjugado de estratégias jurídicas e extrajurídicas Diversificação do pensamento e das profissões jurídicas Transformação da ordem jurídica Exploração criativa das contradições do sistema Imaginação de uma nova ordem jurídica Elaboração própria 18 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 dadas a réus negros com as sentenças dadas a réus brancos verificando discrepância significativa no tempo de pena a que os membros de cada um desses grupos eram condenados mesmo quando os crimes em julgamento apresentavam natureza e características muito semelhantes Apesar de gerar resultados extremamente provocativos esse tipo de abordagem tem importantes limitações Em primeiro lugar ele opera com casos efetivamente apreciados pelo sistema de justiça ou seja com processos judiciais tramitados e julgados Quando o interesse prioritário do analista está em casos de natureza criminal como ocorre nos estudos de Adorno isso não chega a ser um grande problema Isso porque o processo penal é marcado tanto por um alto grau de sujeição do réu ao poder acusatório do Estado quanto pela rigidez das categorias com as quais o sistema de justiça se vê em condições de conhecer processar e decidir os conflitos em questão O réu de um processo penal está diante da justiça não porque a tenha procurado mas porque a ela foi trazido em função de uma denúncia ou queixa Ao mesmo tempo uma vez nessa situação sua pretensão essencial passa a ser tãosomente a de demonstrar que a conduta da qual é acusado se realmente incontroversa não merece ser enquadrada dentro do binômio crimepena MACHADO 2004 SÁ E SILVA 2007 Fora do ambiente jurídicopenal no entanto tanto os termos pelos quais os conflitos são explicitados quanto os termos das respostas que diante deles a justiça é capaz de produzir podem ser bem mais abertos e variados Exemplo disso está nos conflitos coletivos por terra ou moradia Além de poderem ser vistos por vários ângulos desde o ataque ao direito de propriedade até a promoção da dignidade humana eles também podem apresentar vários desfechos a desocupação liminar com uso de força policial e prisão das lideranças por crime de esbulho a instauração de diálogo com o governo visando à incorporação dos ocupantes nas políticas públicas de habitação ou reforma agrária ou ainda o reconhecimento da justeza e legitimidade da ação destes com sua consequente manutenção na posse da terra ou do imóvel Da mesma forma fora do ambiente jurídicopenal o conhecimento do problema pela justiça pode ser motivado não apenas por atores e dispositivos do próprio sistema mas também por diversas categorias de cidadãos agindo nas mais diversas condições Nessas circunstâncias é a justiça que deve reagir às estratégias e meios pelos quais os indivíduos e grupos articulam suas demandas por direitos à educação à saúde à verdade à Texto para Discussão 1 5 6 7 19 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares memória e a outros bens coletivos e a maneira como reagirá é que passa a ser o tema de importância mais fundamental Em segundo lugar a abordagem baseada exclusivamente nos produtos da justiça é mais útil para captar a dimensão objetiva de sua eventual hostilidade para com determinados segmentos a discrepância entre os tempos de pena para negros e brancos para ficar no exemplo de Adorno do que para captar o conjunto de interações sociais que conduzem à produção dessa hostilidade Em alguns casos de fato a hostilidade da justiça pode não ser localizada tanto nos seus produtos ou ritos formais mas antes de tudo na forma pela qual ela organiza a sua atuação Um exemplo claro disso foi retratado no filme Justiça dirigido por Maria Augusta Ramos e baseado em cenas tomadas num Fórum do Rio de Janeiro RAMOS 2004 Numa das primeiras cenas do filme o juiz interroga um homem aparentemente pedinte de rua que é acusado de ter praticado furto numa residência O homem está o tempo todo sentado numa cadeira de rodas Num dado momento pede ao juiz para ser removido para um hospital por causa de sua condição Como quem quisesse insinuar que o homem poderia estar fingindo um problema apenas para ganhar um benefício o juiz pergunta Quando o senhor foi preso não estava assim não é Para a surpresa do juiz o homem responde Sim estava Tomado de imenso espanto talvez por haver se dado conta de que o pressuposto de todo aquele rito a acusação de furto a residência poderia simplesmente não ser verdadeiro dada a condição do réu o juiz repergunta Já estava assim O réu responde Sim senhor Estou assim desde 1996 quando tive uma trombose Passado o misto de constrangimento e consternação no entanto o juiz retoma a postura fria e distante em relação ao caso e diz algo como Peça para a sua defensora entrar com o pedido e eu vou ver o que é possível fazer Ainda que o pedido da advogada tenha afinal sido deferido algo que o filme infelizmente não revela é difícil não reconhecer que o procedimento adotado pelo juiz comunica um profundo sentido de injustiça assim como é difícil não especular que ele só tenha tido o curso que teve por envolver alguém que pertence à base da pirâmide social brasileira Além de não captar esse tipo de sutileza a abordagem dos produtos não permite entender que fatores organizacionais ou culturais estão relacionados aos fatos colocados de frente ao analista Em outros termos temse que os produtos permitem verificar 20 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 se e em que situações a promessa moderna de igualdade dos cidadãos perante a lei acaba se traduzindo concretamente na desigualdade da lei perante os cidadãos Mas não permitem verificar como exatamente isso ocorre e portanto especular os tipos de reformas possíveis ou necessárias para se combater esses vieses e se buscar construir uma justiça verdadeiramente mais democrática Uma alternativa a uma solução puramente etnográfica que permitiria um rico exame dos diversos fatores subjacentes ao funcionamento da justiça mas padeceria de invariáveis limitações no alcance temporal e geográfico é a coleta e a análise sistemáticas de histórias sobre o cotidiano das relações entre os setores populares e a Justiça Essa abordagem vem sendo utilizada por diversos autores vinculados a uma tradição mais interpretativa da sociologia e em particular da sociologia do direito Num texto que bem sintetiza essa tradição e suas contribuições para o avanço do conhecimento sobre o direito e as relações de poder que lhe são constitutivas Ewick e Silbey 2003 procedem a uma ampla revisão da literatura que trabalha com narrativas e que destacam três componentes estruturais que as tornam sociologicamente relevantes Em primeiro lugar dizem as autoras as narrativas trazem uma apropriação seletiva de eventos e personagens do passado Em segundo lugar elas promovem uma ordenação temporal dos eventos Em terceiro lugar elas buscam relacionar os eventos uns aos outros e a uma estrutura geral Juntos concluem Ewick e Silbey 2003 p 1341 esses três componentes garantem que as narrativas apresentem tanto uma explicação quanto um juízo moral sobre como e porque os eventos a que se referem ocorreram da forma que ocorreram Sem desconsiderar a relevância do juízo moral expresso pelo narrador Ewick e Silbey 2003 p 1342 revelam especial interesse pela descrição empírica que este procede ao articular a narrativa É nesse aspecto afirmam as autoras que todas as histórias contêm uma sociologia uma explicação de como a vida social se organiza Embora o cidadão comum ou o que Garfinkel chama de sociólogo leigo não possa prover o tipo de explicação que um sociólogo profissional daria com as consequentes reivindicações de precisão e representatividade histórias de leigos são todavia tentativas de explicar a ação social Elas localizam os personagens no tempo e no espaço descrevendo tanto o que permite quanto o que constrange a ação Em outras palavras elas indicam fontes e limites de ação que existem nas estruturas sociais Na esteira do trabalho de Ewick e Silbey este texto busca compreender melhor os elementos estruturantes da justiça brasileira e o seu grau de permeabilidade às demandas Texto para Discussão 1 5 6 7 21 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares e problemas de setores populares numa palavra a sua qualidade democrática com base nas histórias de quem se vê concreta e cotidianamente atuando nessa fronteira específica da relação entre o Estado e a sociedade Para ter acesso a essas histórias procedeuse a entrevistas com dez advogados populares que embora trabalhando em favor de públicos distintos indígenas quilombolas e trabalhadores rurais sem terra têm como foco central a luta pela terra 18 As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado e relativamente simples No início os entrevistados respondiam a perguntas sobre o seu histórico de compromisso com a advocacia popular e com aquele movimento específico em favor do qual hoje trabalham Em seguida se lhes perguntava sobre as principais demandas em que atuavam Então solicitavase que procedessem a uma avaliação geral sobre sua experiência com justiça Diante dessa avaliação em geral negativa os entrevistados eram instados a desenvolver uma justificação sobre essa avaliação e a oferecer exemplos concretos que pudessem ilustrar os termos da justificação Esses exemplos é que constituíram a principal fonte de informação Com isso a análise dos dados não ficou presa à interpretação que os próprios entrevistados davam à sua experiência ou seja aos juízos morais sobre a justiça que como Ewick e Silbey já haviam advertido necessariamente apareceriam em suas narrativas mas pôde articular uma leitura verdadeiramente transversal das várias experiências relatadas e compreender de um ponto de vista mais propriamente sociológico em que medida elas se aproximavam e se diferenciavam Nesse propósito as entrevistas foram codificadas e depois visando ampliar o grau de validade dos temas emergentes na análise os resultados provisórios foram confrontados com outras fontes de evidência documentos entrevistas e notas de campo compartilhadas 18 A luta pela terra não é a única frente de atuação dos advogados populares no Brasil mas por várias razões pode ser vista como representativa do trabalho desses profissionais e do estado da arte da relação entre os setores populares e a justiça Em primeiro lugar vários dos entrevistados nesta e em outras pesquisas anotam que a luta pela terra sempre teve centralidade na advocacia popular não apenas porque este tema foi o primeiro a mobilizar os investimentos jurídicos de instituições como a Comissão Pastoral da Terra CPT mas também porque em torno dele se organizaram movimentos que adquiriram grande expressão e portanto forte poder de agenda como o MST Em segundo lugar a questão da terra permanece tendo grande relevância na agenda pública brasileira não apenas por ser objeto de reivindicações por reforma agrária mas também por afetar outras populações marginalizadas como os indígenas e os quilombolas Em terceiro lugar porque a luta pela terra envolve grupos com níveis de poder e dinheiro bastante assimétricos Assim ainda que se refira a uma experiência social específica a luta pela terra constitui um mirante privilegiado para examinar tanto o grau de per meabilidade democrática da justiça quanto as suas possibilidades de atuação num sentido democratizante Basta ver por exemplo a batalha que vem sendo travada em torno da constitucionalidade do Decreto no 48872003 que regulamentou os procedimentos para o reconhecimento de áreas remanescentes de quilombo e segundo os seus oponentes facilitou indevidamente a titulação de terras pelas comunidades quilombolas ver Ação Direta de Inconstitucionalidade no 3239 interposta pelo Partido da Frente Liberal PFL 22 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 por pesquisadores que trabalham ou já trabalharam com o tema da advocacia popular CARLET Slsn ALMEIDA Slsn SÁ E SILVA SANTOS 200919 No que diz respeito aos objetivos específicos deste texto ou seja examinar o grau de permeabilidade democrática da justiça todo esse esforço analítico permitiu verificar com clareza três grandes fontes de tensão na relação entre as instituições da justiça e a prática da advocacia popular as quais serão expostas em maior detalhe na próxima seção Embora não esgotem a lista de obstáculos para a construção de uma justiça democrática dado até mesmo o corte preponderantemente exploratório da pesquisa esses achados reforçam preocupações clássicas da literatura trazem alguns componentes novos para o debate e sugerem novas formas de abordar velhas questões E acima de tudo eles suscitam a importância e a urgência de se abordar a justiça e suas reformas sob o ângulo democrático não apenas gerencial ou burocrático como resulta da agenda que se tornou hegemônica para o setor a partir dos anos 1990 4 DIANTE DA LEI TRÊS TENSÕES NA RELAÇÃO ENTRE ADVOGADOS POPULARES E O SISTEMA DE JUSTIÇA Em certa altura de uma de suas mais conhecidas obras traduzidas para o português Kafka 1995 p 230232 menciona a história de um homem do campo que se dirige à lei pede para entrar mas é proibido por um porteiro O homem reflete e pergunta se não poderia entrar mais tarde É possível diz o porteiro mas agora não Seguese daí um notável conjunto de diálogos e interações por meio do qual o homem tenta convencer o porteiro a deixálo entrar na lei mas não obtém sucesso Não que o porteiro proíbao completamente de acessar a lei apenas o amedronta dizendo coisas como Se a lei o atrai tanto tente entrar apesar da minha proibição Mas veja bem eu sou poderoso E sou apenas o último dos porteiros De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro À semelhança do episódio narrado por Kafka em O Processo as histórias recolhidas por ocasião desta pesquisa expõem as tensões enfrentadas pelos movimentos 19 Esse procedimento de pesquisa foi conduzido sob regime de confidencialidade razão pela qual as identidades dos entrevistados encontramse omitidas no presente texto e o uso de elementos que se lhes permite identificar teve como único intuito fornecer aos leitores uma apreensão do contexto no qual tais profissionais atuam Texto para Discussão 1 5 6 7 23 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares sociais e setores desfavorecidos em sua experiência diante da lei Esta seção do texto descreve e discute três dessas tensões conforme o destaque que apresentaram nas falas dos entrevistados 41 PRIMEIRA TENSÃO COMO SE DEFINE O DIREITO APLICÁVEL Estudos sobre a inserção do sistema de justiça na recente experiência de democracia constitucional no Brasil revelam um panorama ambíguo no qual o arcabouço jurídico político extremamente avançado da Constituição de 1988 convive com posturas e práticas arcaicas nas instituições que assim negam efetividade aos princípios libertários e igualitários consagrados na Carta Política SOUSA JÚNIOR 2009 Em princípio a tensão em torno da definição do direito aplicável que esta pesquisa identificou como muito presente na relação entre setores populares e justiça não contradiz essa descrição da realidade Histórias tiradas da advocacia em favor de direitos dos povos indígenas oferecem um bom exemplo de que a organização e o funcionamento da justiça não acompanharam a transição entre o paradigma da integração e o paradigma de multiculturalismo operada pela Constituição20 Falando sobre os inúmeros contratempos enfrentados pelos indígenas em razão da falta de serviços de intérprete em procedimentos judiciais uma advogada popular assim resgata esse problema Como a característica dos guaranis é ser um povo muito religioso culturalmente eles não contrariam o nãoíndio Quando vão dar um depoimento em juízo se o juiz pergunta você matou o índio guarani não diz que não E aí você não tem a tradução da língua você coloca um indígena que fala rudimentos de português que não entende a cultura a lógica nãoíndia com um nãoíndio tomando perguntas tomando depoimento num rito que a pessoa não entende então as palavras têm valores diferentes para as pessoas e há essa questão da decodificação cultural quando um índio fala o juiz não pode admitir que ele o índio está falando como se fosse uma outra pessoa porque tem toda uma implicação cultural no que ele diz além da própria limitação do vocabulário há coisas que o índio diz de um determinado jeito ou simplesmente não diz porque não pode fazer diferente E isso não ocorre só no caso do Judiciário mas com raras exceções é também a postura da polícia de todas as polícias que estão no Executivo mas fazem parte da estrutura da Justiça Está tudo muito pautado em visões preconceituosas desqualificadoras do índio E é com base nisso que o Judiciário trabalha que o Executivo trabalha que os parlamentares trabalham é o que a sociedade fala Isso não é índio índio não usa celular o sujeito fala português o sujeito está integrado A Constituição acabou com essa história de integração a perspectiva é outra mas o Judiciário até hoje não acompanhou esse movimento 20 Ver a esse propósito o brilhante trabalho de Lacerda 2009 24 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Mas as histórias contadas pelos advogados populares indicam que a dificuldade da justiça brasileira não é apenas de efetivar princípios constitucionais tarefa que em princípio exigiria sofisticado esforço hermenêutico21 mas também de recepcionar avanços políticojurídicos expressos em dispositivos próprios e específicos os quais vão desde tratados internacionais até leis portarias e outros instrumentos de política pública Um advogado dedicado a causas quilombolas assim se refere a essa característica Conversando com outros colegas até mais experientes eu vejo que essa questão passa é claro pelo conservadorismo do judiciário brasileiro o Estado no qual reside o entrevistado não é diferente acho que ali o problema até é mais acentuado por toda a história coronelista e conservadora que tem mas além do conservadorismo passa também pelo desconhecimento desses operadores juízes e promotores em relação a leis e tratados internacionais que garantam o direito dessas pessoas Só pra citar um exemplo alguns juízes e promotores desconhecem as disposições normativas sobre as comunidades quilombolas sobre o que é mesmo ser quilombola qual é a definição conceitual das comunidades de comunidades tradicionais então o desconhecimento junto com o conservadorismo é um dado bem claro Nesse contexto explica esse entrevistado a atuação dos advogados populares acaba marcada fundamentalmente pela tentativa de revelar um novo conjunto de referências para o sistema ou Mostrar ao judiciário ao ministério púbico à polícia enfim de que além do direito constitucional mais geral segundo o qual todos são iguais existem diplomas específicos sobre a garantia desses direitos Num exemplo mais concreto assim que eu entrei na organização existia uma possessória ação pela qual se busca a reintegração da posse de um bem contra uma comunidade quilombola na qual o juiz tinha expedido a liminar de reintegração imediata de posse sem oitiva das partes sem notificação prévia com base apenas no documento probatório de propriedade Os prazos de recurso haviam sido perdidos a liminar prestes a ser cumprida E aí o que eu tive de fazer Entrei com uma declaratória incidental ação promovida no âmbito de uma outra ação no caso a possessória buscando obter da justiça a declaração de um direito ou relação jurídica dizendo para o juiz Olha primeira coisa ali não existe a posse alegada pelo autor da ação Segunda coisa caracterizei a comunidade como comunidade remanescente de quilombo como ela mesma se afirma informei que havia processo administrativo já havia até relatório antropológico portanto a comunidade demandada era a verdadeira possuidora da terra Acionei o promotor da comarca porque aqui temos um problema sério de os juízes não informarem os promotores de conflitos agrários de posse coletiva conforme dispõe o CPC Código de Processo 21 Não à toa Dworkin 1999 criou a figura do JuizHércules para dar a medida do esforço necessário à tarefa de aplicação da Constituição Texto para Discussão 1 5 6 7 25 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Civil lei que disciplina o modo como as ações judiciais tramitam E em virtude dessa ação e da intervenção do Ministério Público o próprio juiz que concedeu a liminar acabou revogandoa reconhecendo que não tinha conhecimento daquilo da realidade fática e nem mesmo da realidade jurídica que envolvia aquela comunidade A desconsideração desses instrumentos específicos da qual reclama o advogado entrevistado tem sérias implicações não apenas para a construção de uma justiça democrática pois dotada de baixa permeabilidade às demandas e expectativas de setores populares mas também para a consolidação do próprio regime democrático Com efeito essa desconsideração sinaliza uma tendência estrutural de não implementação das decisões produzidas pelo sistema político quase sempre depois de longos debates e muitas concessões na tentativa de mediar conflitos de grande dimensão e impacto Se depois de anos atuando em espaços deliberativos domésticos ou internacionais um movimento ou grupo consegue alcançar uma vitória com a aprovação de uma lei a edição de um decreto ou a homologação de um tratado internacional mas verifica que essa vitória teve pouca aplicação prática é a responsividade de todo o sistema político e a adesão dos cidadãos ao regime democrático que em última análise estão em jogo 42 SEGUNDA TENSÃO ONDE ESTÁ A IMPARCIALIDADE Uma questão que fica no ar a partir da recémexplorada tensão em torno da definição do direito aplicável é de que maneira o desconhecimento das leis e a inaptidão para dar concretude a princípios constitucionais são efetivamente produzidos no âmbito da justiça Boa parte da literatura disponível tende a associar esses fatores a uma espécie de bloqueio cultural dos profissionais do direito os quais não teriam a sensibilidade ou a preparação intelectual necessárias para dialogar com os aspectos culturais políticos filosóficos sociológicos ou econômicos subjacentes aos conflitos que decidem e às categorias jurídicas com as quais operam Embora traga ao debate um elemento importante a cultura jurídica o qual tem mobilizado um amplo movimento de reforma do ensino jurídico no Brasil essa abordagem acaba por desconsiderar a teia de relações sociais na qual esses profissionais estão assentados e da qual diriam Ewick e Silbey 2003 eles fatalmente retirarão as referências culturais que mobilizam em suas práticas mais comezinhas Essa dimensão de análise e crítica no entanto emerge vivamente com a segunda tensão verificada nesta pesquisa para a relação entre advogados populares e o sistema de justiça uma tensão aqui definida como gravitando em torno da parcialidade do sistema 26 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 Reivindicações por imparcialidade na justiça podem soar despropositadas quando advindas de advogados populares pois a expressão imparcialidade remete quase sempre à imagem de autoridades neutras sem preferências ou preconceitos atributos estes que dificilmente encontrariam sustentação empírica e que sempre tiveram muito pouca ressonância entre os críticos do direito oficial aos quais os advogados populares têm alguma filiação Mas nas histórias contadas por esses profissionais a demanda por uma justiça imparcial significa tãosomente a demanda por uma justiça sem vínculos orgânicos ou interesses diretos nas questões que tem por ofício examinar ou como disse uma das entrevistadas que atua na defesa de indígenas uma justiça sem vínculos ou interesses com isso que a gente chama de interesses econômicos e políticos não é Os interesses do latifúndio os interesses do agronegócio tudo isso acaba um pouco misturado com o funcionamento da justiça não é Aqui mesmo no TRF a gente estava fazendo essa análise o futuro presidente é proprietário de terras e tem uma jurisprudência de mais de 20 anos construída a favor dos proprietários de terras e contra quem quer que limite o acesso de terras aos proprietários de terra ou seja sem terra índio quilombola os pobres em geral Mas não são só os juízes que tem terras isso é uma questão cultural no nosso país todo mundo que se torna alguém compra terras Então juízes parlamentares gente do próprio executivo todos se tornam fazendeiros E quando não é a pessoa mesma são os parentes dela e quando não são parentes são pessoas da família por aliança Ao final tudo se liga Quem tirou as terras dos guaranikaiowa no Mato Grosso do Sul Quem diz que tem o título Quem titulou Quem está lá é colega de quem deu o título que é colega do juiz que não deixa a situação mudar A existência dessa ligação estrutural entre os quadros da justiça e a estrutura fundiária que digase de passagem foi constatada em quase todas as entrevistas tem inegável repercussão na relação entre os advogados populares e a justiça eis que inspira desconfiança quase que geral no sistema Um advogado que atua na defesa de sem terras por exemplo diz que Aqui e em boa parte dos Estados o judiciário tem uma formação de pessoas que vêm do latifúndio filhos de grandes proprietários de terra que quando se deparam com demandas agrárias tomam como se fosse contra eles contra a propriedade deles E dizem ah fica defendendo mas e se fosse na sua terra Meu pai tem terra esse pessoal vai invadir a terra do meu pai Então tem esse lado no conservadorismo as raízes rurais e agrárias do judiciário Texto para Discussão 1 5 6 7 27 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares No mesmo sentido vai a seguinte passagem da entrevista do já mencionado advogado que atua na defesa de quilombolas A grande maioria dos juízes não tem comprometimento mas não é nem só o comprometimento com a causa isso nem é tão importante É a lisura a imparcialidade e a neutralidade para resolver conflitos agrários porque muitos juízes são donos de fazenda no Estado são proprietários de terras então podese antever aí que não vai haver o dono de fazenda não vai dar uma decisão favorável aos trabalhadores que ocupam uma área No entanto o problema não é apenas de desconfiança que em si mesma já não é nada desprezível para um projeto de organização democrática da justiça Algumas vezes o autêntico conflito de interesses entre a justiça e o latifúndio se expressa em situações concretas de opressão É o que ocorre no caso que prossegue contando o advogado que atua na defesa de quilombolas Então a gente enfrenta muitas dessas situações houve um caso que teve uma repercussão nacional forte de um juiz que não é do Estado mas trabalha aqui no Estado que responde a uma ação por trabalho escravo houve denúncia do Ministério Público no TJ existe uma investigação criminal contra os capangas dele Ocorre que esse juiz foi simplesmente removido de comarca e continua expedindo liminares e liminares em possessórias através dos mesmos mecanismos de que eu já te falei sem oitiva da outra parte e de modo até um pouco arbitrário Houve um caso no cumprimento de uma liminar de reintegração de posse de uma de suas fazendas que havia sido ocupada pelo MST em que ele próprio esse juiz numa quartafeira dirigiu 500 quilômetros de sua comarca em direção a essa fazenda para ele mesmo cumprir a liminar expedida por um outro juiz junto com um oficial de justiça Isso em pleno dia de semana sem ele estar de férias sem estar de licença sem estar afastado Então o conservadorismo do judiciário no Estado em que pese repito as louváveis exceções que nós temos vai muito nesse sentido de os próprios juízes serem proprietários de terras Nesse ponto o debate democrático apresenta forte convergência com o debate republicano A criação de mecanismos voltados à garantia de uma justiça imparcial órgãos de controle federalização de determinadas matérias regras efetivas disciplinando conflitos de interesse impedimento e suspeição etc aparece como exigência de uma justiça democrática Da mesma forma a identificação desta segunda tensão reforça a importância de se travar o debate sobre a qualidade democrática da justiça com os olhos voltados não apenas para os seus produtos aquilo que ela faz ou entrega mas também para as suas formas de organização e funcionamento com atenção especial percebese agora para a sua relação com estruturas de poder 28 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 43 TERCEIRA TENSÃO PODER E SIMBOLOGIA NA ESTRUTURAÇÃO DAS PROFISSÕES JURÍDICAS Uma última tensão verificada nas histórias dos advogados populares ainda que não presente em todas as histórias coletadas na pesquisa22 está associada às relações de poder e hierarquia que subsistem dentro das próprias profissões jurídicas e que se refletem mesmo em preconceito no âmbito da justiça contra aqueles que fazem a opção de se engajar na prática da advocacia popular Em entrevista a Carlet Slsn um advogado popular assim falava sobre as dificuldades que enfrenta em seu trabalho R Tem o preconceito dos colegas não advogados populares os colegas membros do poder judiciário membros do poder público P E como se manifesta esse preconceito R É o advogado de MST advogado de quilombola insinuam que você desconhece aquilo sobre o que está falando desconhece o direito desconhece aquilo que na verdade você conhece muito bem Na realidade é uma transferência de preconceitos é uma discriminação muito transferida porque esses seus pares discriminam aquele movimento e como você advoga para ele essa discriminação acaba se transferindo para você Um exadvogado popular entrevistado nesta pesquisa mostra que na verdade essa atitude se inicia já no período de formação em direito Falando sobre a sua trajetória na Faculdade de Direito ele se recorda de ter sido acometido por Aquele sentimento de minoria Aquele sentimento de que você está falando e ninguém está te ouvindo E tem toda uma torcida contra Sua família vem e diz Larga disso você vai ser sindicalista Seus colegas todos estudando para fazer concurso no final da reta já e você lá com a bandeira do MST na mão Não é fácil não é Até porque o nosso curso é um curso de poder Oitenta por cento do nosso curso forma gente para ganhar dinheiro O aluno é formado para ganhar dinheiro para ser rico ter um grande escritório e você dizendo que vai ser advogado de sem terra sem teto e negão É toda uma torcida contra Mas acho que eu me questionei mais depois do curso do que durante o curso porque no curso tinha o gás do movimento Tinha toda uma mística vamos dizer assim 22 Para ser preciso essas histórias aparecem mais entre as minorias da advocacia popular mulheres negros e egressos de faculdades de menor tradição no ambiente jurídico Mas curiosamente isso apenas faz reforçar a caracterização desta terceira tensão Texto para Discussão 1 5 6 7 29 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares É importante questionar até que ponto essas assimetrias de poder dentro das profissões jurídicas devem ser mesmo naturalizadas como até os próprios advogados populares parecem fazer Em estudo sobre a globalização do direito por exemplo Dezalay e Garth 2002 p 51 destacam que nos Estados Unidos as profissões jurídicas adotam uma estrutura esquizofrênica na qual a esmagadora maioria dos advogados estruturam as suas carreiras em grandes firmas e em direito empresarial mas a classe como um todo preconiza e valoriza o engajamento com um direito de interesse público Assim os autores contam do espanto dos advogados de elite de Nova York quando chegaram a Buenos Aires e perceberam que seus pares latinos não tinham nenhuma preocupação em contribuir com instituições que ofereciam assistência jurídica gratuita ou mesmo em prestar serviços diretos aos necessitados em caráter de pro bono DEZALAY GARTH 2002 p 52 É claro que não se pode romantizar a advocacia norteamericana contra a qual há aliás uma vasta literatura crítica23 Mas o fato é que a institucionalização de uma retórica de interesse público na advocacia dos Estados Unidos ainda que não motivada pelo bom coração dos seus profissionais24 gera um sistema de incentivos materiais e simbólicos bastante razoável para aqueles que decidem se dedicar à defesa de pobres e desfavorecidos dos generosos financiamentos aos escritórios de interesse público oferecidos pela Legal Services Corporation no tempo de Robert Kennedy aos fellowships atualmente concedidos por instituições como a Equal Justice Works ou a Skadden Foundation25 A luta pela construção de uma justiça mais democrática no Brasil parece inspirar nesse sentido a luta pela socialização das profissões jurídicas26 23 Ver apenas a título de exemplo o contundente trabalho de Auerbach 1976 24 A expressão é inspirada no texto de Sarat e Scheingold 2005 p 03 para quem a afirmação dessa retórica no tempo decorreu do um contínuo esforço da profissão para melhorar a sua reputação capitalizando a ressonância pública de uma compreensão inclusiva dos direitos e da justiça ideais com os quais alguns advogados mas não a profissão como um todo se identificam 25 Ver respectivamente wwwequaljusticeworksorg e wwwskaddenfellowshipsorg 26 Por socialização das profissões jurídicas entendese aqui um conjunto de medidas voltadas a aproximar os advo gados dos setores e das demandas populares de modo que serviços jurídicos de mais alta qualidade deixem de ser apro priados preponderantemente pelas elites ver ABEL 1979 como decorre do argumento liberal de que a advocacia deve se estruturar segundo a lógica do mercado Não é o propósito deste texto discutir quais seriam essas medidas as quais poderiam envolver desde a socialização da formação em direito com maior acesso de pobres e desfavorecidos a cursos jurídicos de elite até a manutenção e o fortalecimento de serviços jurídicos gratuitos como as Defensorias Públicas que não à toa só adquiriram autonomia administrativa e financeira após mais de 20 anos da promulgação da Constituição e depois de enfrentar forte oposição de elites políticas e setores da advocacia nos estados 30 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Adotando uma linha eminentemente exploratória este texto buscou identificar fatores críticos no trato dos advogados populares com a justiça brasileira para com isso discutir o grau de permeabilidade da justiça às demandas e expectativas dos setores populares e por conseguinte os seus déficits democráticos Destacaramse assim três fortes tensões uma tensão associada à indiferença da justiça para com as mudanças relevantes e bastante concretas no arcabouço normativo do país em favor dos setores populares uma tensão associada aos vínculos entre a justiça e as estruturas de poder os quais comprometem a sua parcialidade e uma tensão associada às estratificações e hierarquias que subsistem dentro das próprias profissões jurídicas De um ponto de vista heurístico esses achados nos colocam dois importantes desafios ou ao menos enunciam duas possibilidades de inovação analítica em primeiro lugar a de atentar para as relações de poder que constituem a organização e o funcionamento da justiça Em segundo lugar a de incorporar nas análises as histórias e o cotidiano dos demandantes da justiça Neste aspecto pesquisas futuras podem se debruçar tanto sobre as histórias de outros atores que compõem a cartografia do acesso à justiça no Brasil em especial dos integrantes da Defensoria Pública pela importância que enfim esta instituição adquiriu no país quanto histórias de um universo leigo alcançando assim os indivíduos e grupos que efetivamente se acham à porta da lei Mas além de eventuais contribuições teóricas e metodológicas para um debate mais sociológico esses achados assumem ainda uma forte carga política Eles permitem perceber que o recado da justiça para os setores populares que buscam adentrála para exprimir as suas demandas é semelhante ao do porteiro naquele episódio narrado por Kafka e utilizado como introdução à seção anterior É possível mas agora não É claro que em sua atuação cotidiana os advogados populares criam alternativas para contornar os obstáculos com que se defrontam e prosseguir interpelando a justiça27 27 Por exemplo vale mencionar a aliança com setores progressistas no Ministério Público e na Defensoria Pública o re curso a estratégias jurídicas que deslocam a competência de processos para a justiça federal assim evitando as armadilhas da justiça local a tentativa de sensibilização das cúpulas da justiça e o recurso a jurisdições internacionais como o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e a busca por parcerias com organizações internacionais de grande prestígio que elevam o status do trabalho dos advogados populares e lhes permite circular melhor em meio às hierarquias das profissões jurídicas Texto para Discussão 1 5 6 7 31 É possível mas agora não a democratização da justiça no cotidiano dos advogados populares Mas embora essas alternativas abram espaço para formidáveis debates acadêmicos em temas como a diversificação das profissões jurídicas e o pluralismo jurídico é preciso ter em conta que um projeto democrático para a justiça deve ser construído desde e para o exercício de direitos não para a obtenção de favores ou a busca de jeitinhos Assim o texto nos incita a pensar estratégias de reforma e modernização da justiça que adotem não apenas uma perspectiva de maior agilidade ou eficiência mas sim da construção de um ambiente institucional mais acolhedor aos diversos tipos de pretensão de normatividade que circulam na sociedade Nesse aspecto vale retornar ao desfecho do episódio narrado por Kafka em O Processo Nele o camponês espera muitos anos para obter a aquiescência do porteiro e enfim entrar pela porta da lei Ao longo desse tempo o camponês tenta todos os expedientes para convencer o porteiro a deixálo entrar mas em nenhum momento obtém sucesso28 Finalmente já no final da vida o homem dirigese ao porteiro e lhe pergunta Todos aspiram à lei como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar Percebendo que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio conclui o texto o porteiro berra Aqui ninguém mais podia ser admitido pois esta entrada estava destinada só a você Agora eu vou embora e fechoa 1995 p 230232 Há uma boa e simples razão pela qual uma sociedade democrática não pode ou não poderia correr o risco de se transformar no cenário de semelhante relato kafkaniano Ao contrário do personagem construído pelo escritor é improvável que os nossos camponeses e todos os demais indivíduos e grupos oprimidos fiquem sentados diante da lei esperando por uma incerta abertura desta É mais provável isso sim que desistam dela e busquem dirigir as suas demandas de cidadania e dignidade para outras portas muitas das quais não nos soarão plenamente confortáveis Numa sociedade democrática portanto a justiça deve se constituir como um ambiente que todos enxerguem como adequado ao processamento de conflitos ainda que pelas mais diversas razões muitos decidam não utilizálo de pronto29 e em todo caso uma saída preferível em relação à violência 28 Esse enredo lembra o de outro romance de Kafka O Castelo Nesse romance o protagonista chamado simplesmente K é convocado por um conde a prestar serviços em um castelo K chega à cidade vai ao castelo mas por mais que tente não consegue entrar nele em momento algum Narrativa absurda e carregada de simbolismo como toda história de Kakfa O Castelo pode ser visto como uma metáfora a respeito de metas inalcançáveis e da obstinação humana em não desistir 29 Nesse sentido advogase aqui por uma sociologia do direito e da justiça que seja crítica e autocrítica que não sobre valorize a importância do direito e das instituições jurídicas oficiais na melhoria da vida das pessoas e que seja aberta ao reconhecimento de que frente a determinados problemas é possível e perfeitamente legítimo que em vez de mobilizar o direito e a justiça as pessoas prefiram não fazer nada SANDERFUR 2007 GARTH 2009 32 R i o d e J a n e i r o j a n e i r o d e 2 0 1 1 REFERÊNCIAS ABEL R L Socializing the legal profession can redistributing lawyers services achieve social justice Law and Policy Quarterly v 1 n 1 p 551 1979 ABRÃO P TORELLY M Assessoria jurídica popular leituras fundamentais e novos debates Porto Alegre Edipucrs 2009 ADORNO S Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo Novos Estudos Cebrap n 43 p 4563 1995 AGUIAR R RAMOS A O imaginário dos juristas Revista de Direito Alternativo São Paulo Acadêmica v 2 1993 ALFONSÍN J Dos nós de uma lei e de um mercado que prendem e excluem aos nós de uma justiça que liberta Cadernos RENAP São Paulo RENAP n 6 p 83104 Especial 10 anos 2005 ALMEIDA F Diário de campo produzido no âmbito de pesquisa sobre a advocacia popular Material inédito em arquivo com o autor Slsn ARRUDA JÚNIOR E L de Org Lições de direito alternativo São Paulo Acadêmica 1991 Lições de direito alternativo II São Paulo Acadêmica 1992 AUERBACH J S Unequal justice lawyers and social change in modern America Oxford University Press 1976 CAMPILONGO C F Assistência jurídica e advocacia popular serviços legais em São Bernardo do Campo Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo v 41 1994 CAPELLETTI M GARTH 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Santos Vianna Maria Hosana Carneiro Cunha Capa Luís Cláudio Cardoso da Silva Projeto Gráfico Renato Rodrigues Bueno Livraria do Ipea SBS Quadra 1 Bloco J Ed BNDES Térreo 70076900 Brasília DF Fone 61 33155336 Correio eletrônico livrariaipeagovbr Tiragem 500 exemplares Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ISSN 14154765 9771415476001 SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA BRASIL UM PAÍS DE TODOS GOVERNO FEDERAL ipea 46 anos httpsdoiorg1018593ejjl26652 QUEM DEFENDERÁ A SOCIEDADE TRAJETÓRIAS E COMPETIÇÃO INSTITUCIONAL EM TORNO DA TUTELA COLETIVA ENTRE MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA NO PÓS19881 WHO WILL DEFEND SOCIETY TRAJECTORIES AND INSTITUTIONAL COMPETITION AROUND COLLECTIVE REDRESS BETWEEN PUBLIC PROSECUTORS OFFICE AND PUBLIC DEFENDERS OFFICE IN THE POST 1988 PERIOD Bruno Lamenha2 Flávia Santiago Lima3 Resumo A ordem constitucional de 1988 promoveu significativas mudanças no âmbito do sistema de justiça Este artigo aborda duas instituições nele inseridas suas trajetórias após a promulgação do texto constitucional apresentando uma hipótese de competição institucional entre ambas em torno de uma agenda igualmente cara à CRFB88 a defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos tutela coletiva Assim em que pese o quadro institucional desenhado pelo Constituinte de 19871988 tenha estabelecido funções muito distintas para o Ministério Público e a Defensoria Pública passados mais três décadas desde a CRFB88 verificase uma clara superposição de atribuições no campo da tutela coletiva entre as duas instituições Esteado na tradição do neoinstitucionalismo histórico analisando as trajetórias formais e informais de reconformação de ambas as instituições o texto identifica processos paralelos de mudança institucional no Ministério Público e na Defensoria Pública que estabelecem algumas hipóteses explicativas para a competição estabelecida entre os dois órgãos no âmbito da tutela coletiva A pesquisa é bibliográfica com amparo na revisão de literatura produzida no Direito e na Ciência Política quanto ao tema e análise documental legislação atas e discursos numa perspectiva interdisciplinar Palavraschave Ministério Público Defensoria Pública Tutela Coletiva Institucionalismo Histórico Competição institucional Mudança institucional Abstract The 1988 constitutional order promoted significant changes within the justice system This article addresses two institutions inserted in this scenario their trajectories after the promulgation of the constitutional text presenting a hypothesis of institutional competition between them around an also valuable agenda in the 1988 Constitution the defense of transindividual rights collective redress Thus in spite of the institutional framework designed by the Constituent of 19871988 having established very different functions for the Public Prosecutors Office and the Public Defenders Office three more decades since 1988 Constitution there is a clear overlap of attributions in the field of collective redress between these two institutions Based on the tradition of historical neo institutionalism analyzing the trajectories formal and informal of reorganization of both institutions the text identifies parallel processes of institutional change in the Public Prosecutors Office and the Public Defenders Office that establish some explanatory hypotheses for the competition established between them within the scope of collective redress The research is based in a bibliographic approach supported by the literature review produced in Law and Political Science regarding the theme and documentary analysis legislation minutes and speeches in an interdisciplinary perspective Keywords Public Prosecutors Office Public Defenders Office Collective Redress Historical Institutionalism Institutional Competition Institutional Change Recebido em 17 de novembro de 2020 Avaliado em 25 de novembro de 2020 AVALIADOR A Avaliado em 24 de maio de 2021 AVALIADOR B Aceito em 24 de maio de 2021 1 Agradecemos à inestimável contribuição dos pareceristas da publicação para o aperfeiçoamento deste artigo 2 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco httpsorcidorg0000000266552735 brunolamenhauolcombr 3 Mestre e Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco Professora da Universidade de Pernambuco e do Programa de Mestrado da Faculdade Damas httporcidorg0000000269950982 flaviasantiagouolcombr Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 73 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Introdução A defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos é considerada uma das principais inovações jurídicas do longo do processo de redemocratização política e consolidação institucional das últimas décadas no Brasil Celebrada como conquista da cidadania e marco do movimento de acesso à justiça a tutela coletiva constituise num dos fundamentos para a aproximação entre sociedade civil e sistema de justiça com consequências para os arranjos destas instituições Propõese como hipótese de trabalho que a atribuição da tutela coletiva foi estratégica para a construção do perfil institucional do Ministério Público MP e para a sua trajetória ao longo das décadas de 1990 e 2000 na qual a instituição acumulou significativo capital político e importante projeção social No percurso desde 1988 identificase uma inflexão nas prioridades institucionais do MP após esse primeiro momento de intensificação da atuação no campo da tutela coletiva com a retomada de um certo protagonismo no âmbito penal especificamente no campo anticorrupção Argumentase a esse respeito a ocorrência de uma mudança institucional informal no campo das prioridades institucionais do MP fenômeno que se tornou mais visível a partir de meados dos anos 200045 A Defensoria Pública DP por sua vez sofreu grande resistência à agenda mobilizada pelos defensores e assistentes judiciários estaduais ao tempo da constitucionalização da instituição na Constituição Federal de 1988 CRFB88 Neste sentido é importante historiar o resgate pela DP das pautas bloqueadas na Assembleia Nacional Constituinte de 19871988 ANC através de um progressivo movimento de alterações legislativas que culminaram no seu atual perfil institucional profundamente associado à reivindicação de atribuições no campo dos direitos transindividuais A agenda em torno da tutela coletiva no processo de construção do MP de 1988 e nas mudanças institucionais da DP no período posterior a 1988 não é acidental A defesa de direitos 4 Conforme se advertirá mais detidamente a seguir considerando a pluralidade de institucionais ministeriais e defensoriais nos diferentes níveis do sistema de justiça há uma limitação na identificação de marcos temporais precisos para o registro de elementos indicativos de mudanças institucionais que sejam contemporâneas a todos os órgãos estaduais e federais do MP e da DP O que o texto argumenta é que apesar dessa dificuldade há evidências de que houve uma mudança gradual de agenda corporativa comum com reflexos até mesmo no plano atitudinal em relação sobretudo à autovisão dos promotores e procuradores em relação à corporação e a sua própria atuação difusamente partilhada por todo Ministério Público brasileiro 5 A referência temporal a meados dos anos 2000 é mobilizada por diversos autores que pesquisam a trajetória do Ministério Público de 1988 A título exemplificativo Avritzer e Marona 2017 p 366 pontificam sobre o Ministério Público e essa mudança de prioridades que de fato a partir dos anos 2000 a via criminal começou a parecer mais atrativa particularmente depois da reabilitação do prestígio do inquérito policial que veio à reboque do enorme incremento institucional que a polícia judiciária experimentou particularmente a Polícia Federal Não se pode perder de vista que por vezes o foco privilegiado da literatura tem sido a experiência do Ministério Público Federal dado o seu caráter nacional obnubilando a experiência particular dos MPs dos estados e do DF Isso não significa no entanto que o fenômeno descrito não se faça sentir no âmbito destes últimos conforme Lemgruber et al 2016 demonstram através de um survey de dimensões nacionais acerca da visão dos membros do MP acerca da instituição e de sua atuação e Sampaio e Viegas 2019 p 13 a partir dos dados de produtividade do Conselho Nacional do Ministério Público dos anos de 2015 a 2017 Tais achados serão expostos com mais vagar no decorrer do texto 74 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade transindividuais em uma sociedade estruturalmente desigual como a brasileira é capaz de mobilizar uma imagem institucional positiva e por conseguinte maior visibilidade e capital político Sob certo aspecto a atuação neste campo é capaz de alçar tais instituições a uma posição de mediadoras da cidadania mas também indica a necessidade de um arcabouço jurídico de independência e insulamento das pressões políticas contrárias às pautas transindividuais o que pode sugerir competições entre os responsáveis pela tutela coletiva em busca de sua titularidade única Não é por acaso portanto que ao longo das décadas que se seguiram a 1988 o MP tenha sido um dos principais atores a tentar bloquear sem sucesso a expansão das atribuições da DP nesta direção ainda que paralelamente a esse processo o próprio Ministério Público tenha relegado a tutela coletiva a um papel secundário na agenda de construção de sua imagem institucional Neste sentido haveria um processo de aproximação e até mesmo superposição de funções entre Ministério Público e Defensoria Pública no âmbito da tutela coletiva Para responder à pergunta de pesquisa proposta o artigo tem como objeto a análise das trajetórias de ambas as instituições nas décadas que se seguiram ao momento constituinte A hipótese geral é de que a tutela coletiva se converteu numa ratio mobilizada para a formatação de instituições autônomas e garantia de independência aos membros do sistema de justiça conforme proposto por parte significativa da literatura sobre o Ministério Público6 e é possível deduzir tanto a partir das inovações legislativas associadas ao MP nas décadas que antecederam à Constituinte7 quanto da interação do órgão com setores da sociedade civil organizada de então8 O raciocínio se estende à Defensoria Pública 6 Neste sentido Rogério Arantes 2002 p 35 argumenta que a mobilização da agenda corporativa do MP nas décadas de 1970 e 1980 na direção da assunção de uma função central na defesa dos nascentes direitos de natureza difusa coletiva ou individual homogênea constituiu um ponto de inflexão da virada histórica do Ministério Público na direção do perfil institucional assumido pelo órgão em 1988 7 Carvalho e Leitão 2010 p 400 destacam como a intervenção obrigatória do MP em matérias que versassem sobre interesse público estabelecida no art 82 III do Código de Processo Civil de 1973 abriu uma discussão em torno dessa categoria aberta e sem maiores delimitações semânticas permitindo que setores reformistas da comunidade jurídica e a agenda corporativa do próprio MP que à época não contava com uma mobilização nacional tendo por principal expressão a Associação Paulista do Ministério Público APMP passassem a sustentar que a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis estava abrangido na categoria Este ponto é interessante uma vez que a intenção original do legislador processual civil dizia respeito tãosomente à fiscalização do interesse patrimonial das pessoas jurídicas de direito público ARANTES 2002 p 3233 No período pré1988 vários outros movimentos legislativos merecem referência tais como i a Emenda Constitucional n 71977 que alterou a Constituição autoritária de 1967 e previu uma lei orgânica nacional para o MP art 96 p único ii a previsão na LC 401981 primeira lei orgânica nacional do MP da iniciativa para ação civil pública como uma das atribuições do órgão com expressa previsão da defesa da ordem jurídica e dos interesse indisponíveis da sociedade como uma das funções ministeriais v arts 1º 3ºIII As duas legislações lembra Cabral Netto 2009 p 40 foram objeto de intenso lobby da Confederação das Associações Estaduais do Ministério Público CAEMP antecessora da Associação Nacional do Ministério Público CONAMP 8 Aqui Maciel e Koerner 2014 p 114 destacam que as estratégias e alianças adotadas pelo movimento associativo do MP a partir de 1974 foram relevantes para a conquista da independência institucional e do novo papel da Constituição de 1988 Em primeiro lugar a construção doutrinária da noção de interesse público acompanhada do engajamento nas mobilizações ambientalistas foi transformando o MP numa alternativa institucional viável e disponível naquele momento para canalizar os novos problemas e conflitos sociais Em segundo lugar a interação com as redes pródemocracia contribuiu para ampliar o padrão tradicional de alianças bem como as estratégias de mobilização para além do lobby Nesse processo o MP atraiu para si visibilidade pública inédita que se converteu no apoio político de grupos movimentos sociais comunidade científica e meios de comunicação ao perfil potencialmente politizado de atuação profissional Dois frutos deste processo descrito pelos autores são a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente Lei n 693881 que conferiu ao MP a legitimidade exclusiva para promover a responsabilização civil e criminal por danos causados ao meio ambiente CARVALHO LEITÃO 2010 e a própria Lei n 734785 a Lei da Ação Civil Pública que estabeleceu o MP como um dos legitimados ativos para a Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 75 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima portanto uma vez que o desenvolvimento do texto indica a existência de elementos que identificam a mobilização de uma trajetória institucional bastante similar do órgão a partir de suas funções clássicas na direção de arrogar para si atribuições também no campo dos direitos transindividuais Adotase como marco teórico o institucionalismo histórico por salientar as conexões entre comportamentos individuais e mudanças institucionais assimetrias de poder no desenvolvimento destas além de enfatizar as trajetórias path dependence e suas consequências intencionais ou não avaliando seus resultados políticos HALL TAYLOR 1996 p 938 Neste sentido destacase a perspectiva de que o ativismo político de agentes estatais ou seja a mobilização das elites jurídicas em torno de uma agenda específica é um aspecto central para refletir a respeito do marco normativo original e nas mudanças institucionais ocorridas na DP e no MP após a promulgação da CRFB88 e que não necessariamente está relacionado a uma melhor eficiência na concretização de velhas atribuições e das novas funções as quais se reivindica ARANTES 2015 p 30 O segundo ponto está relacionado à temática da mudança institucional Aqui propõe se que diferente da abordagem institucionalista mais convencional mudanças institucionais não exigem necessariamente alterações formais nas regras que organizam o desenho e o funcionamento da instituição podendo ocorrer inclusive gradualmente e a partir do desenvolvimento de processos informais e internos MAHONEY THELEN 2010 p 414 Assim o texto descreve os aspectos gerais do marco normativo original de MP e DP na CRFB88 para avançar nas discussões em torno de mudanças institucionais formais e informais categoria de análise relevante para pensar a interação e a competição entre as instituições do sistema de justiça no Brasil Deste quadro geral passase à análise das trajetórias especificas destas instituições as sucessivas normativas que alteraram o perfil institucional da DP na agenda original de autonomia e independência e ampliação das suas atribuições e no caso do MP as alterações no campo de suas prioridades institucionais do campo da tutela coletiva para o combate à corrupção no âmbito penal Antes de prosseguir uma dificuldade adicional merece ser mencionada Ministério Público MP e Defensoria Pública DP não são uma mesma instituição nos diferentes níveis do sistema de justiça brasileiro Há na realidade dezenas de órgãos do MP e da DP considerada a sua organização particular nas unidades da Federação UFs e também no plano federal9 Nesta esteira propositura da ACP art 5º e o único com atribuição de instaurar o inquérito civil prévio art 8º par 1º Aqui também este ativamente presente a agenda corporativa do MP à época sendo sintomático o registro na exposição de motivos do projeto da lei de ACP a colaboração prestimosa de membros do Ministério Público de São Paulo ao texto submetido ao Parlamento ARANTES 2002 p 61 9 Quanto ao MP além dos 26 vinte e seis órgãos ministeriais estaduais o Ministério Público da União MPU se desdobra além do Ministério Público Federal MPF e do MPDFT Ministério Público do Distrito Federal e Territórios em dois órgãos ministeriais de temática particular o Ministério Público do Trabalho MPT e o Ministério Público Militar MPM totalizando 30 trinta instituições distintas Excluise dessa contagem os chamados Ministérios Públicos de Contas uma vez que se trata de órgãos inseridos na estrutura dos Tribunais de Contas e não instituições ministeriais autônomas No 76 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade é esperado que órgãos diferentes possam espelhar infraestruturas regramentos internos e culturas institucionais variadas Este alerta é particularmente importante no caso do MP por se tratar de uma instituição mais longeva comparativamente à DP que somente foi nacionalmente estruturada e constitucionalizada com a CRFB88 A tentativa de traçar uma trajetória institucional comum portanto envolve limitações inerentes a essa pluralidade institucional sendo o esforço desta análise o de mapear elementos associados a uma certa trajetória institucional comum de um modelo nacional de ambas as instituições calcado sobretudo a partir de seu marco normativo constitucional Evidentemente este esforço não exclui apenas reforça a relevância de abordagens particulares em relação a determinado órgão do MP ou da DP a serem desenvolvidas em outras frentes de pesquisa Argumentase assim que a viabilidade e a utilidade do mapeamento ora proposto e desenvolvido no decorrer do texto se esteia sobretudo na existência de um marco normativo único nas legislações de regência de ambas instituições seja a própria Constituição Federal quanto as LC 8094 Lei Orgânica da Defensoria Pública e Lei n 862593 Lei Orgânica do Ministério Público além de instâncias associativas de caráter nacional capazes de promover a coordenação e a articulação de uma agenda institucional única10 MADEIRA 2014 p 56 1 Duas instituições em desharmonia o marco normativo original de MP e DP na CRFB88 O ativismo político de agentes estatais aqui notadamente no âmbito do sistema de justiça é um fenômeno pouco explorado pela análise institucionalista MOREIRA 2016 p 4950 A literatura especializada no entanto propõe que o desenho institucional assumido por instituições do sistema de justiça como o Ministério Público MP e a Defensoria Pública DP no quadro normativo da Constituição de 1988 CRFB88 está intimamente associado entre outros aspectos às agendas mobilizadas pelas elites jurídicas a partir da conjuntura política e social da época MACIEL KOERNER 2014 p 113114 MOREIRA 2016 p 7576 Embora do ponto de vista normativoconstitucional seja possível objetar que enquanto a DP foi constitucionalizada apenas em 1988 o MP possuiria uma perenidade institucional mais estabelecida na história republicana nacional parece correto afirmar que a CRFB88 representou caso da DP são 28 vinte e oito órgãos ao todo uma Defensoria Pública da União DPU e 27 vinte e sete defensorias estaduais DPEs 10 Observese por exemplo a Associação Nacional de Membros do Ministério Público CONAMP e a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos ANADEP associações civis de caráter nacional que agregam membros de todas as carreiras do MP e da DP respectivamente e ainda o Conselho Nacional de ProcuradoresGerais CNPG e o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais ambas entidades associativas que reúnem os chefes de carreira dos diferentes órgãos do MP e da DP em todo território nacional Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 77 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima o ponto de chegada de um longo processo de mudança institucional formal11 iniciado em meados da década de 197012 e que assegurou uma identidade institucional e normativa consolidada para o órgão ARANTES 2002 p 76 SAUWEN FILHO 1999 p 165169 Como amplamente explorado pela literatura especializada ARANTES 2002 KERCHE 2009 RIBEIRO 2017 SADEK 2000 o MP de 1988 produziu uma instituição com perfil absolutamente singular13 e a ampla reengenharia de atribuições e prerrogativas esteve intimamente relacionada com o afirmação de atribuições para além da clássica função de persecução penal típica do MP especialmente no que diz respeito à atuação no âmbito da defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos14 a chamada tutela coletiva ARANTES 2002 p 50 A constitucionalização da Defensoria Pública em 1988 por sua vez encontrou maiores dificuldades que a trajetória percorrida pelo MP A agenda dos defensores e dos assistentes judiciários que atuavam no âmbito dos Estados estava relacionada em linhas gerais à criação de uma instituição de caráter nacional com a mesma estatura de prerrogativas do MP e com a função precípua de promover a orientação jurídica e defesa dos necessitados No contexto da Assembleia Nacional Constituinte de 19871988 ANC todavia houve resistências da parte de outras corporações jurídicas às pretensões defensoriais especialmente as mobilizadas pelas procuradorias estaduais pela OAB e pelo próprio MP MOREIRA 2016 p 78 Esse cenário de competição institucional é um elemento importante para compreende o porquê de somente em 2012 todos os estados da Federação passarem a contar com uma DP estadual em seus respectivos sistemas de justiça apesar do marco constitucional estabelecido em 1988 De todo modo o quadro normativo original da CRFB88 estabeleceu uma divisão de atribuições bem delimitada entre MP e DP No âmbito criminal ambas as instituições foram colocadas em polos opostos o MP como titular da ação penal pública e a DP na defesa dos que por razões econômicas não pudessem contratar os serviços de um advogado privado No âmbito cível a atuação do MP estaria majoritariamente associada à defesa de direitos transindividuais enquanto 11 Não há consenso na literatura quanto às razões do sucesso político da agenda ministerial na busca de fortalecimento institucional a partir da tutela coletiva CARVALHO LEITÃO 2010 p 404408 A melhor leitura parece combinar múltiplos aspectos LAMENHA 2019 tais como o lobby institucional bem organizado ARANTES 2002 p 77 a existência de uma conjuntura ideológica e política favorável à concessão de independência de amplos poderes para promover o interesse social a uma instituição fora do jogo políticoeleitoral ordinário KERCHE 2009 p 23 e a articulação com atores externos ao sistema de justiça nomeadamente com a sociedade civil organizada durante o processo transicional brasileiro KOERNER MACIEL 2014 p 113114 12 Referimonos especificamente à inserção no art 82 III do Código de Processo Civil de 1973 da atribuição explícita do MP em intervir obrigatoriamente em todas as causas que versassem sobre interesse público ARANTES 2002 p 3233 CARVALHO LEITÃO 2010 p 400 As notas de rodapé n 5 e 6 desenvolvem com mais detalhes este ponto 13 Não é incomum na literatura a referência ao perfil único no mundo legado pelo Constituinte de 19871988 ao MP NÓBREGA 2007 p 64 14 Apesar de existir significativa discussão na literatura especializada a respeito é suficiente para os propósitos deste texto diferenciar direitos difusos direitos coletivos e direitos individuais homogêneos no marco do art 81 p único do Código de Defesa do Consumidor Assim i direitos difusos são direitos transindividuais de natureza indivisível de que sejam titulares pessoais indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato ii direitos coletivos são direitos de natureza indivisível de que seja titular grupo categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária por uma relação jurídica base iii direitos individuais homogêneos são direitos individuais equiparados à condição de direitos transindividuais em razão da origem comum que conecta todos os seus titulares 78 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade a DP atuaria na tutela individual dos necessitados BRASIL 1988 Assim parece acertado propor que ao final do processo constituinte as duas instituições foram eficientes em reivindicar para si um campo importante de um movimento mais amplo de cariz internacional de fortalecimento das instituições judiciais de acesso à justiça e de coletivização de direitos CAPPELLETTI GARTH 1988 2 Pluralismo estatal e mudança institucional Evidentemente instituições não constituem o único elemento explicativo relevante da vida política HALL TAYLOR 2003 p 201 No entanto os casos de MP e DP ilustram que é acertada a abordagem que considera os atores estatais e não apenas os atores não estatais como capazes de mobilizar seus próprios interesses para influenciar na concepção de um desenho institucional ou de uma política pública SKOCPOL 1985 No caso da institucionalidade brasileira Rogério Arantes 2015 p 30 sugere que ao lado das formas tradicionais de pluralismo político por meio das quais os atores e grupos sociais mobilizam suas demandas frente ao Estado desenvolveuse uma espécie de pluralismo estatal isto é um fenômeno associado ao planejamento e à consecução de metas institucionais específicas em prol da criação eou mudança institucional em organismos estatais a partir de demandas capitaneadas por atores grupos e corporações no interior do próprio Estado e não apenas atores extraestatais como é usual nas explicações das teorias institucionalistas Tais projetos particularistas de poder são mediados no mais das vezes por uma linguagem de direitos eou de transparência associandoos a um melhor funcionamento das instituições ARANTES 2015 p 30 Arantes 2015 p 45 estruturou a referida categoria para pensar a interação entre MP Polícia Federal e demais órgãos associados à accountability das instituições estatais Em síntese argumenta que a existência de várias instituições e consequentemente múltiplas agendas para a consecução de maior espaço recursos e atribuições força a necessidade de modificações constantes nas regras de funcionamento do sistema de fiscalização dos poderes públicos em razão dos choques e conflitos institucionais inevitáveis Propõese que o fenômeno do pluralismo estatal pode ser uma chave analítica para pensar como a atribuição no campo da tutela coletiva em especial a legitimidade para a propositura do seu principal instrumento judicial a ação civil pública ACP tem sido mobilizada ao longo do tempo por MP e DP Parece uma estratégia útil portanto observar como essas instituições organizaram suas agendas políticas no sentido de reforçar ou ampliar suas atribuições e ainda como construíram os sentidos e as prioridades na construção de sua imagem pública e na atuação em suas respectivas atividadesfim Nesse aspecto os processos que viabilizam mudanças institucionais não passam necessariamente por uma alteração no marco normativo da instituição Mantida a estrutura Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 79 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima normativa processos informais podem alterar os sentidos e as prioridades de determinada instituição Além disso essas alterações no funcionamento da instituição tampouco exigem uma ruptura ou choque institucional provocado por um fator exógeno como é normalmente abordado na análise institucionalista Mudanças institucionais graduais e algumas vezes sem alteração substancial do próprio marco normativo podem modificar significativamente o perfil de uma instituição ao longo do tempo Assim tomase como formal o processo de mudança institucional que exigiu alterações nas regras que regulamentam determinada instituição e informal o processo congênere no qual tais modificações de marco normativo não se verificaram MAHONEY THELEN 2010 p 414 Os próximos tópicos deste artigo abordarão separadamente os processos de mudança institucional de MP e DP em torno da tutela coletiva nas décadas posteriores à promulgação da CRFB88 evidenciando o quão distintas foram as duas trajetórias não apenas em relação a seu resultado final No caso da Defensoria Pública temse um claro processo de mudança institucional formal as sucessivas alterações constitucionais e legislativas tornaram possível um novo marco normativo capaz de alterar o perfil institucional do órgão não só concretizando sua agenda original de autonomia e independência mas avançando em relação a outras atribuições como a defesa de direitos transindividuais Quanto ao Ministério Público embora não tenha havido uma alteração substancial em seu desenho institucional elementos internos e externos ao órgão LONDERO 2019 tornaram possível que se especule sobre uma possível e progressiva alteração de suas prioridades institucionais do campo da tutela coletiva para o combate à corrupção especialmente no seu aspecto penal Propõese portanto que a trajetória do MP nos anos posteriores a 1988 é um exemplo de mudança institucional informal 3 Defensoria Pública um exemplo de mudança institucional formal da busca por autonomia à ampliação das atribuições 31 A agenda defensorial como espelho da trajetória do MP Os debates na ANC deixaram claro que a agenda de construção de uma DP como instituição permanente e de caráter nacional tinha como referência institucional o Ministério Público Segundo Moreira 2016 p 102103 isso decorre sobretudo do fato de que o modelo nacional de Defensoria espelhou a experiência fluminense e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro permaneceu durante mais de 20 vinte anos funcionalmente vinculada ao MP estadual Embora a configuração normativa atual do MP em termos de autonomia atribuições e independência e a definição de um marco normativo nacional remontem a um processo iniciado na década de 1970 e concluído com a CRFB88 a instituição sempre figurou explicitamente no 80 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade quadro geral dos órgãos do sistema de justiça durante todo o período republicano1516 notadamente a partir de sua função típica de persecução criminal Assim ainda que fosse inexistente o histórico da própria DP como funcionalmente vinculada ao MP a longevidade desta última instituição apesar das descontinuidades em termos de modelo institucional seria uma referência obrigatória para qualquer órgão que pretendesse se estabelecer como uma instituição permanente em um campo o sistema de justiça com um evidente protagonista o Poder Judiciário Um outro aspecto a considerar como recorrentemente referido pelos representantes da Federação Nacional dos Defensores Públicos FENADEP nos debates na ANC BRASIL 1987 p 100 é que a função pública defensorial foi pensada e proposta como antípoda da função pública acusatória no âmbito do processo criminal de maneira que se o Estado estrutura uma instituição permanente para acusar deveria estruturar em igualdade de condições um órgão congênere para a função de defesa Traçado esse cenário e considerando a evidência de que certos processos de construção institucional tendem a uma dependência da trajetória percorrida path dependence notadamente quando o percurso oferece aos atores envolvidos ganhos crescentes que desincentivam a quebra ou reversão do trajeto HALL TAYLOR 2003 p 200 MAHONEY 2000 p 510512 MOREIRA 2016 p 6061 propõese que após a CRFB88 a agenda da DP quanto à busca por autonomia independência e mais atribuições continuou espelhando o modelo ministerial e essa é uma chave analítica importante para entender os porquês da DP ter reivindicado novas atribuições no campo da tutela coletiva e também na defesa dos direitos humanos 32 Os bloqueios na promulgação da LC n 8094 e o direcionamento da agenda defensorial para o âmbito estadual Em 1994 no governo Itamar Franco foi promulgada a Lei Complementar n 80 regulamentando o art 134 parágrafo único da CRFB88 e estabelecendo pela primeira vez um marco normativo nacional para a DP O art 3º da LC prevê que os princípios institucionais da DP são a unidade a indivisibilidade e a independência funcional reproduzindo textualmente o art 127 par 1º da CFRB88 em relação ao Ministério Público BRASIL 1994a Como lembra Moreira 2016 p 102 essa foi umas disposições que os defensores e assistentes judiciários não conseguiram incluir no texto final da CRFB88 15 O Decreto n 848 de 11101890 que regulamentava o funcionamento da Justiça Federal dispõe em seu capítulo VI sobre o Ministério Público estatuindo funções ao ProcuradorGeral da República e aos procuradores da República A exposição de motivos do citado ato normativo pontuava que o Ministério Público é uma instituição necessária em toda organização democrática e imposta pelas boas normas da Justiça SAUWEN FILHO 1999 p 127 16 A referência ao Ministério Público no âmbito do sistema de justiça também ocorre nos períodos da administração colonial portuguesa e do Império no entanto esse escorço histórico parece desnecessário aos propósitos do artigo SAUWEN FILHO 1999 p 110123 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 81 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Vários vetos contudo foram aplicados a dispositivos da LC n 8094 A maior parte deles se refere a previsões que buscavam aproximar a DP do quadro institucional e das prerrogativas dos membros do MP Especificamente em relação à tutela coletiva o art 4º XII da LC 8094 previa como função institucional da DP patrocinar ação civil pública em favor das associações que incluam entre suas finalidades estatutárias a defesa do meio ambiente e a proteção de outros interesses difusos e coletivos BRASIL 1994b Nas razões de veto o Presidente da República consigna que a atribuição se afasta da finalidade institucional da DP uma vez que associações não podem ser atendidas como necessitados para o fim de concessão da gratuidade da justiça BRASIL 1994b O mais curioso todavia é que o chefe do Executivo invoca razões apresentadas pelo ProcuradoriaGeral da República se opondo ao dispositivo aprovado pelo Congresso Nacional Tratase de um expediente pouquíssimo usual em relação às funções institucionais do ProcuradorGeral da República PGR que desde a CRFB88 com a criação da AdvocaciaGeral da União AGU não detém qualquer atribuição no campo da advocacia estatal Quanto à questão da legitimidade na ACP reivindicada pela DP o então PGR Aristides Junqueira apresentou três razões fundamentais i a função típica da Defensoria Pública seria a defesa de direitos individuais e a atuação na tutela coletiva tiraria o foco da instituição da defesa dos necessitados individualmente considerados ii a possibilidade de representação de associações pela DP minaria um dos objetivos da Lei da ACP quanto a uma maior participação da sociedade civil em questões coletivas sem a tutela de qualquer ente estatal iii quando necessária a participação do Estado na defesa de direitos coletivos a CRFB88 já tinha definido expressamente um órgão o Ministério Público BRASIL 1994b De mais a mais entre outras disposições vetadas na LC 8094 constava a atribuição para homologar transações extrajudiciais que passariam a ter força de título executivo extrajudicial art 4º XIII e 3º o que viabilizaria a celebração pela Defensoria Pública de Termos de Ajustamento de Conduta TACs conforme autorizava o art 5º 6º da Lei n 73478517 aos legitimados ativos para a propositura da ação civil pública Outros dispositivos vetados envolviam a autonomia administrativa e funcional do órgão art 3º p único a defesa da criança e do adolescente art 4º 1º a equiparação dos critérios de remuneração dos Defensores às carreiras previstas no Título IV Capítulo IV da CRFB88 referente às funções essenciais à Justiça cujo principal marco normativo é o do MP art 39 1º além de diversas garantias e prerrogativas asseguradas ao membro do MP como foro de prerrogativa de função livre trânsito no exercício da função e porte de arma independentemente de autorização BRASIL 1994b Segundo a literatura especializada os bloqueios exercidos especialmente pelo MP cristalizados na promulgação da LC 8094 direcionou a agenda corporativa defensorial para ao plano estatual com objetivo de instalação e estruturação dos órgãos nas unidades federadas MOREIRA 17 A inclusão deste dispositivo na Lei da ACP se deu através da promulgação do Código de Defesa do Consumidor Lei n 807890 82 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade 2016 p 104 processo que se revelou longo e tortuoso especialmente em razão da resistência de outros atores do sistema de justiça especialmente a OAB 33 O longo hiato da EC 452004 à EC 742013 Em estudo sobre a institucionalização e independência dos órgãos estaduais da DP Lígia M Madeira 2014 p 616218 identifica a Emenda Constitucional n 4504 a chamada Reforma do Judiciário como um ponto de inflexão para a consolidação e autonomia das DPs estaduais Nas vésperas da reforma em 2004 havia 22 órgãos estaduais dentre 27 possíveis mas apenas 5 cinco poderiam ser considerados como independentes Acre Ceará Mato Grosso do Sul Mato Grosso e Rio de Janeiro Três anos depois 2009 o número de DPs estaduais consideradas independentes aumentou para 10 dez Para a DP a grande novidade viabilizada pela EC n 4504 e as discussões que a antecederam tornaram possível a rearticulação de uma agenda nacional da instituição foi o estabelecimento do parágrafo 2º do art 134 da CRFB88 assegurando autonomia funcional e administrativa além de iniciativa orçamentária às Defensorias Públicas estaduais Também houve inclusão da Defensoria no art 168 da CFRB88 o que lhe assegurou o repasse das dotações orçamentárias através da sistemática do duodécimo tal como ocorre com o Poder Judiciário e o MP BRASIL 2004 Resgatando os debates legislativos referentes à Reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados Moreira 2016 p 105106 faz menção ao destaque nº 274 proposto por José Roberto Batochio deputado federal por São Paulo e expresidente da OABSP que previa o estabelecimento de um parágrafo terceiro ao art 134 da CRFB88 estabelecendo a possibilidade de celebração de convênios para prestação de assistência judiciária aos necessitados independentemente da atuação da DP A proposta que foi rejeitada por apenas um voto na Comissão Especial da Câmara sugere uma certa continuidade do lobby promovido por outras instituições contra a consolidação nacional das DPs embora o principal ponto de resistência aqui fosse mobilizado pelos Estados da Federação alegando sobretudo razões orçamentárias associadas à criação de uma nova instituição no âmbito do sistema de justiça MOREIRA 2016 p 105106 Neste sentido alguns Estados opunham convênios já firmados com a OAB como justificativa para não criar um órgão estadual da DP sendo paradigmático o caso já mencionado de Santa Catarina que somente instituiu a Defensoria Pública após o julgamento de duas ADIs 3892 e 4270 que declararam inconstitucional dispositivo da Constituição Estadual e lei estadual que autorizavam esse tipo de expediente BRASIL 2012b 2012c 18 A autora oferece uma mensuração do nível de institucionalização independência dos órgãos estaduais da DP através da análise da presençaausência de uma série de variáveis dentre as quais a existência de lei orgânica estadual escolha do DefensorGeral por meio de lista tríplice votada pela carreira e poderes do DefensorGeral em relação à administração do órgão Com base na métrica proposta no estudo divide as DPs estaduais em três grupos quanto à independência i não independente NI ii pouco independente PI e iii autônoma i Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 83 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Além disso o episódio demonstra os desafios à consolidação e a força institucional de um órgão cuja atribuição se limitava à orientação jurídica e defesa judicial dos necessitados Considerando que em muitos locais do País havia um longo histórico de prestação desse tipo de serviço sem a presença de uma instituição pública específica sempre pairaria sob a DP o risco de uma reversão institucional mobilizada pelo resgate a esses modelos alternativos Essa é uma chave explicativa para pensar o quão essencial parecia à época para agenda de consolidação da DP a expansão de atribuições para além da tutela individual dos necessitados A EC 4504 todavia promoveu um racha entre as pautas corporativas dos órgãos defensoriais a autonomia prevista no art 134 par 2º não foi estendida à Defensoria Pública da União DPU19 À época havia resistência da AGU à inclusão da DPU neste rol por constituir uma assimetria entre os órgãos e por essa razão os representantes das DPs estaduais através da ANADEP advogavam a exclusão da DPU da proposta de EC para afastar o risco do dispositivo ser rejeitado integralmente Excluída a DPU atuou por sua vez para que o texto do art 134 par 2º da CRFB88 fosse rejeitado MOREIRA 2016 p 107108 A correção dessa assimetria só ocorreria quase uma década depois com a aprovação da EC nº 742013 que incluiu o parágrafo terceiro do art 134 da CRFB88 para estender a autonomia administrativa e financeira além da iniciativa orçamentária à DPU e à Defensoria Pública do Distrito Federal BRASIL 2013 A Presidência da República opôsse à Emenda Constitucional através da propositura da ADI n 5296 sob a alegação de vício formal de iniciativa já que a proposta aprovada teve origem parlamentar e segundo a tese alegada seria de iniciativa exclusiva do Executivo20 O pedido de medida cautelar foi negado em maio de 2016 pelo Supremo Tribunal Federal mas a ADI continua em tramitação aguardando julgamento de mérito Merece registro que na ocasião o ProcuradorGeral da República Rodrigo Janot em movimento que destoa da resistência habitual do MP às pretensões da DP apresentou parecer pela improcedência do pedido BRASIL 2016b 34 O ponto de virada da Lei n 114482017 à EC 802014 A Lei n 114482007 incluiu a Defensoria Pública no rol de legitimados ativos da ação civil pública inovando no art 5º da Lei n 734785 BRASIL 2007 Mesmo antes desse diploma legal havia precedentes de manejo de ACPs pela DP em casos envolvendo direitos difusos coletivos 19 Também não foi contemplada a Defensoria Pública do Distrito Federal que ainda não havia sido instituída e só o seria em 2012 por meio da Emenda à Lei Orgânica do Distrito Federal n 612012 Merece o registro que a EC 692012 transferiu da União para o Distrito Federal a organização do órgão na referida unidade federada BRASIL 2012a 20 Moreira 2016 p 108 situa a proposição da ADI 5296 pela AGU na chave do pluralismo estatal entendendo que diante da impossibilidade de veto presidencial a propostas de EC esse movimento viabilizou a disputa institucional em torno da questão da autonomia Necessário ponderar contudo que a questão de concorrência entre AGU e DPU está mais associada a uma agenda que rejeitava a promoção assimétrica de prerrogativas a instituições então associadas ao Executivo federal do que propriamente a uma disputa por um mesmo campo de atribuições De mais a mais dificilmente o AGU ajuizaria uma ADI sem o aval da Presidência da República aspecto que também enfraquece a tese de mera disputa de campo de atribuições 84 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade e individuais homogêneos de pessoas necessitadas No entanto essa legitimidade ativa era bastante discutível e não raro as demandas eram extintas sem resolução do mérito MOREIRA 2016 p 112 Depois da autonomia concedida ao órgão propõese que este é um divisor de águas para a vida institucional da DP foi reconhecida uma ampla atribuição para a defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos além das demais prerrogativas asseguradas aos autores civis públicos como a possibilidade de firmatura de TACs De uma instituição limitada à tutela individual dos necessitados o que constituía a sua agenda ao tempo da ANC a DP avançava para se colocar ao lado do MP como instituição do sistema de justiça com atribuição para atuar na tutela coletiva O ato normativo em questão nasceu do Projeto de Lei do Senado PLS n 1312003 de autoria do então senador fluminense Sérgio Cabral O texto original não fazia menção à Defensoria Pública o parlamentar propunha a extensão do rol de legitimados ativos para a ACP aos parlamentares federais estaduais e municipais No âmbito da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania CCJ do Senado Federal o próprio autor da proposição apresentou a Emenda nº 1CCJ acrescendo a Defensoria Pública ao rol de legitimados do PLS SENADO FEDERAL 2003 O texto foi aprovado no Senado dando ao art 5º da Lei da ACP um extenso rol de novos legitimados o Presidente da República as mesas da Câmara dos Deputados Senado Federal Assembleias Legislativas e Câmaras distrital e municipais governadores de Estado e do Distrito Federal o Conselho Federal da OAB entes da administração pública indireta nos três níveis federativos e a Defensoria Pública Remetido à Câmara dos Deputados o PLS foi autuado como Projeto de Lei da Câmara n 57042005 No âmbito da CCJ daquele órgão parlamentar o relator deputado federal Luiz Antonio Fleury Filho apresentou substitutivo cujas razões presentes no parecer como relator da CCJ repudiou quase integralmente as inovações legislativas no rol de legitimados ativos da lei da ACP entendendo que essa alteração poderia tornar a ACP bastante vulnerável a utilizações em que prepondere o caráter políticopartidário em detrimento da verdadeira defesa de interesses e direitos coletivos e difusos da sociedade CÂMARA DOS DEPUTADOS 2005 O relator contudo defendeu a manutenção da Defensoria Pública como legitimada ativa da ACP citando precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul AI 327496 Rel Des Luiz Odilon Bandeira julgado em 25021997 que reconheceu a legitimidade da DP para a defesa judicial dos interesses de estudantes carentes Acrescentou ainda a importância desta instituição e a natureza de suas atribuições sempre voltadas para a defesa dos cidadãos e para a luta pela construção neste País de um verdadeiro Estado democrático de direito BRASIL 2005 O substitutivo do deputado Fleury Filho foi aprovado pela CCJ da Câmara dos Deputados e posteriormente se converteu na Lei n 1144807 O detalhe curioso é que Fleury Filho ex promotor de Justiça teve longa atuação corporativa nos anos 1970 e 1980 e foi presidente da Associação Nacional do Ministério Público no período entre 1983 e 1987 CABRAL NETTO 2009 p 100 operando como um dos principais articuladores do papel atribuído ao MP no campo da tutela coletiva em meados da década de 1980 e do próprio desenho institucional do MP na CRFB88 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 85 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima ARANTES 2002 p 59 De mais a mais a Lei n 1144807 foi objeto de ADI n 3943 movida pela CONAMP questionando a legitimidade ativa da DP para propositura da ação civil pública tendo sido julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal BRASIL 2015 Posteriormente a LC n 1322009 alterou radicalmente a LC 8094 consolidando o movimento que buscava descolar a DP do campo da tutela individual dos necessitados em direção a outras atribuições notadamente no campo da tutela coletiva e da promoção dos direitos humanos BRASIL 2009a Historiando a articulação que tornou possível a LC n 1322009 Moreira 2016 p 109 111 argumenta que a construção do diploma legal remonta ao início dos anos 2000 e foi capitaneada por um grupo de defensores da DP de São Paulo A ideia que subjazia o projeto era justamente dar um novo perfil institucional ao órgão no que o autor visualiza pela primeira vez um descolamento em relação ao modelo do MP e a busca de um caminho institucional próprio para a DP A estratégia em torno de um novo perfil encontrou êxito no Congresso Nacional e perante o Executivo Apenas três vetos foram apresentados à LC n 1322009 nenhum que esteja associado a qualquer razão corporativa mobilizada pelo MP ou por outra instituição do sistema de justiça BRASIL 2009b As inovações do diploma legal são muitas abrangendo entre outras i promoção da ACP e qualquer outra ação vocacionada à tutela dos direitos difusos coletivos e individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupos de pessoas hipossuficientes art 4º VII ii promoção da defesa de direitos individuais difusos coletivos e individuais homogêneos dos necessitados em geral do consumidor necessitado da criança do adolescente do ídolo da pessoa com deficiência da mulher vítima de violência e outros grupos sociais vulneráveis que mereçam especial proteção do Estado art 4º VII VIII X e XI iii a definição de objetivos da Defensoria Pública contemplando questões como a redução das desigualdades sociais a afirmação do Estado Democrático de Direito e a garantia dos princípios constitucionais de ampla defesa e do contraditório art 4ºA Além disso embora o diploma normativo não deixe isso suficientemente claro há uma clara guinada no discurso institucional da tutela dos necessitados isto é pessoas sem capacidade financeira para a contratação de um advogado privado para categorias mais abrangentes como hipossuficientes e vulneráreis MOREIRA 2016 p 177 Em uma sociedade como a brasileira marcada por um profundo nível de desigualdade social o manejo dessas categorias mais amplas sobrepõe quase integralmente o campo de atuação do MP e da DP no âmbito da tutela coletiva Do ponto de vista normativo a coroação do longo processo de mudança institucional aqui descrito foi a promulgação da EC n 802014 Através deste ato normativo foi reconhecido constitucionalmente o caráter permanente da DP sua função de orientação jurídica a promoção dos direitos humanos a e a defesa em todos os graus judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos de forma integral e gratuita aos necessitados novo caput do art 134 da CRFB88 Também foram previstas a unidade indivisibilidade e independência funcional como princípios 86 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade institucionais novo par 4º do art 134 Por fim estabeleceuse no art 98 par 1º do ADCT a previsão de que até 2022 todas as comarcas e seções judiciárias do País deverão contar com defensores públicos BRASIL 2014 Todo esse cenário sinaliza que tal como ocorreu com o MP no período entre 1970 e 1980 a agenda política da DP apostou e obteve êxito no problema crônico da efetividade de direitos no País MARONA et al 2017 como estratégia para buscar mais atribuições e portanto mais poder dentro do sistema de justiça deixando em segundo plano a atribuição mais evocada durante a ANC associada à atuação judicial na tutela individual com especial ênfase no âmbito criminal21 Nessa perspectiva os deputados federais Mauro Benevides Alessandro Molon e André Moura proponentes da PEC n 2472013 que se converteu na EC n 802014 consignaram em sua exposição de motivos que A alteração do caput do art 134 incorpora importantes elementos estruturantes e conceituais à definição do papel e da missão da Defensoria Pública como o seu caráter permanente e ontologicamente atrelado ao modelo de Estado democrático de direito Explicitase também a sua vocação para a solução extrajudicial dos litígios para a defesa individual ou coletiva conforme a necessidade do caso e para a promoção dos direitos humanos CÂMARA DOS DEPUTADOS 2013 Parece incorreto portanto que o movimento em busca de um novo perfil da DP viabilizado pela LC 1322009 e posteriormente pela EC 802009 esteja dissociado de uma referência ao modelo do MP Identificar essa imprecisão contudo depende fundamentalmente de uma abordagem comparativa Assim além de uma clara sobreposição de atribuições no campo da tutela coletiva e de certa maneira também no que diz respeito à promoção dos direitos humanos propomos que a aposta da DP em uma guinada para esse novo desenho institucional ocorre de forma paralela a um outro fenômeno de mudança institucional gradual mas no âmbito do Ministério Público qual seja um giro de prioridades do campo da tutela coletiva para a área da repressão penal à corrupção 21 Em manifestação na 5ª Sessão Ordinária da Subcomissão do Poder Judiciário e Ministério Público durante a ANC José Neves César representante da FENADEP assim ilustrou o caráter essencial da DP ao sistema de justiça o triângulo da Justiça tem muito bem aparelhado o organismo invértice que é o Ministério Público e o Judiciário e o vértice da defesa está quebrado precisa ser solidificado precisa serlhe dado o verdadeiro poder de defesa Vejam VExa que no juízo criminal por exemplo o povo diz comumente que cadeia e prisão foram feitos para o pobre Por que pensam assim É muito simples Quando um cidadão de posse comete um crime procura o seu advogado é orientado como deverá defenderse é acompanhado no inquérito policial é marcado o dia para se apresentar ao delegado o que geralmente fazer no dia anterior para evitar a imprensa e as perguntas indiscretas dos delegados O defensor público acompanha o pobre no momento em que ele já foi preso muitas vezes violentado porque confessou algemado na frente do Juiz Aí começa a atuação do defensor público Precisamos acabar com isso Não pode haver duas justiças uma para o rico e outra para o pobre A Justiça é uma só Nem a Defensoria Pública pode ser laboratório de experiência jurídica nem o pobre pode ser cobaia no exercício dos seus direitos É preciso que se faça uma Justiça una A justiça do rico e do pobre tem que ser igual Temos de evitar como aquele belo quadro que emoldura essa sala em que o protomártir da Independência está recebendo a sentença que ao lado do pobre só haja o poder de acusação o poder de sentenciar e a ausência do defensor A Justiça ampla e plena tem que ter aí presença do defensor público BRASIL 1987 p 101 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 87 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima 4 O MP entre a tutela coletiva e o combate à corrupção uma mudança institucional informal 41 A tutela coletiva e a imagem positiva do MP no pós1988 Com a reconfiguração de seu quadro institucional concluída com a CRFB88 verificouse uma mudança significativa da imagem do Ministério Público perante a sociedade e associado a isso um acúmulo progressivo de capital político por parte da instituição Nessa perspectiva nos primeiros anos da década de 2010 o MP figurava como uma das instituições mais confiáveis aos olhos dos brasileiros como demonstraram os dados do último trimestre de 2014 do Índice de Confiança na Justiça da Fundação Getúlio Vargas Segundo a pesquisa o Ministério Público figurava à época como a terceira instituição mais confiável com 50 de manifestações positivas dos cidadãos entrevistados atrás apenas das Forças Armadas e da Igreja Católica CUNHA 2012 Em se tratando de um órgão formalmente integrado ao sistema de justiça e formado por uma das elites do serviço público este alto índice de confiança em face a outras instituições da República é dado intrigante e que tem mobilizado uma série de pesquisas acerca do MP nos últimos anos RIBEIRO 2017 p 5152 Embora a CRFB88 tenha confiado ao MP um número de atribuições sem precedentes na história da instituição e pouco comparável a agências congêneres na maior parte dos países assemelhados ao Brasil o marco normativo em si não explica os porquês desse alto índice de confiança da população Aqui parecem concorrer uma multiplicidade de fatores como a perenidade institucional e sobretudo a ampla capilaridade do órgão em todo o território nacional22 nomeadamente em um espírito do tempo que como visto mesmo antes da CRFB88 já identificava no MP a função de uma espécie de advogado da sociedade23 Nessa perspectiva sustentase na esteira de parte da literatura sobre o MP ARANTES 2002 MARONA et al 2017 que ao longo dos anos que se seguiram à Constituição de 1988 e do significativo aumento formal do rol de atribuições ministeriais essa ampla visibilidade positiva da instituição foi mediada por um processo de construção de uma imagem institucional que mobiliza dentre os diferentes campos de atuação confiados ao MP uma agenda de prioridades como elemento central para a articulação da interação do órgão com a sociedade civil 22 Ao defender a absorção pelo Ministério Público da função de ombudsman cuja criação autônoma foi seriamente aventada nos trabalhos constituintes Antônio Araldo Ferraz Dal Pozzo então presidente da Associação Paulista do Ministério Público APMP e SecretárioGeral da Confederação Nacional do Ministério Público declarou em audiência pública na Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público que o Ministério Público defende o interesse de seu titular que é a sociedade Para a defesa desses valores organizado em milhares e milhares de comarcas por todo território nacional o Ministério Público atua basicamente de três formas diferentes fora do processo na investigação e dentro do processo Fora do processo o Ministério Público desenvolve uma atividade preventiva e conciliatória O povo conhece o Ministério Público nele confia e o procura em seus gabinetes de trabalho Os promotores de justiça vêm cumprindo silenciosamente há muitos anos o papel do ouvidor do povo do Ombudsman BRASIL 1987 p 105 23 Como referência histórica observese o discurso de posse do último ProcuradorGeral da República PGR do regime pré 1988 e primeiro PGR da Nova República José Paulo Sepúlveda Pertence em março de 1985 que menciona a necessidade no contexto de uma democracia política da construção de um MP que dentre as suas funções abarque a defesa da sociedade e dos direitos humanos dos interesses indisponíveis dos oprimidos 88 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade 42 Voluntarismo político e defesa da sociedade a autovisão do MP nos anos 1990 O estudo seminal de Rogério B Arantes publicado em 2002 sobre a interação entre MP e política foi o primeiro a delinear as bases de uma certa dimensão intencional da ação de promotores e procuradores no sentido de reconstruir o Ministério Público e transformálo em agente político da lei ARANTES 2002 p 115 Devese advertir todavia que esse projeto político não se deu à revelia ou paralelamente à Constituição Há elementos suficientes no desenho institucional do MP para identificálo como uma instituição intencionalmente situada pelo Constituinte na fronteira entre a política e o sistema de justiça ARANTES 1999 p 96 Um desses aspectos está relacionado à ampla liberdade assegurada aos membros do MP no desempenho de suas atribuições a chamada independência funcional podendo fazêlo inclusive de ofício o que distingue sensivelmente a instituição por exemplo do Poder Judiciário que é submetido ao chamado princípio da inércia24 LAMENHA 2019 Diante desse quadro institucional Arantes 2002 p 116119 com base em dados colhidos em 1996 em sete estados da Federação no survey O Ministério Público e a Justiça no Brasil SADEK 2010 identifica dentro da instituição a presença de um discurso dominante que gravita em torno de uma certa ideologia institucional baseada na visão do órgão e da sociedade no que o autor denomina como voluntarismo político Nessa esteira o voluntarismo político com aspecto central da cultura institucional do MP brasileiro estaria baseado em três características i uma leitura bastante crítica da sociedade que seria incapaz de se mobilizar em torno dos direitos que lhe são assegurados pela legislação ii uma leitura bastante crítica do Estado e da classe política que seriam incapazes de implementar os direitos assegurados pela legislação à sociedade iii a conclusão de que diante de uma sociedade e um Estado divorciados e incapazes de funcionar adequadamente caberia ao MP ocupar esse espaço e promover a tutela dos direitos dessa sociedade fragilizada Assim considerando o cenário de desenvolvimento de uma teoria e de uma prática associados à disputa por uma agenda de direitos no âmbito do sistema de justiça o que o survey de 1996 identificou foi que a autoimagem do MP como guardião dos interesses de uma sociedade débil foi mobilizada por agenda institucional que priorizou a atuação no campo da tutela coletiva em detrimento da função acusatória clássica do órgão ARANTES 2002 p 118119 Analisando os dados do survey de 1996 SADEK 2010 p 95 verificase que a hipótese do voluntarismo político proposto por Arantes tem base empírica Chama atenção nesse aspecto 24 Outros dois elementos que permitem afirmar que o MP está situado na fronteira entre o jurídico e o político são i a específica tarefa de defesa do regime democrático confiada ao MP ii a explícita rejeição pela ANC quanto à criação da figura do Defensor do Povo à semelhança do ombudsman escandinavo ou do defensor del pueblo de alguns países hispanófonos e a decisão de integrar essas atribuições ao MP LAMENHA 2019 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 89 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima o índice de concordância total acerca de proposições sobre a debilidade da sociedade brasileira em mobilizar seus próprios interesses e a necessidade de uma instituição forte como o MP para mediação de conflitos e promoção de uma conscientização A título exemplificativo 48 dos promotores e procuradores entrevistados na ocasião concordaram integralmente com a afirmação de que o MP deve desempenhar o papel de promoção da conscientização e responsabilidade da sociedade brasileira 31 por sua vez concordaram integralmente com a assertiva de que sociedade brasileira é hipossuficiente isto é incapaz de defender autonomamente seus direitos dependendo de instituições como o MP para protegêla Em relação à avaliação dos membros sobre o desempenho da atuação do MP em diferentes campos o survey de 1996 registrou em primeiro lugar a promoção da ação penal pública com 83 de resposta positiva dos entrevistados Muito próximo todavia aparece justamente a defesa dos direitos transindividuais com 77 de análise positiva SADEK 2010 p 90 O grande destaque dado à ação penal vale ressaltar provavelmente decorre do fato que se trata da atividade com maior volume quantitativo de trabalho uma vez que a titularidade da ação penal pública é privativa do MP e sua atuação mesmo nas ações penais privadas é obrigatória Assim virtualmente qualquer crime ocorrido que eventualmente se torne objeto de um processo judicial demandará necessariamente a atuação do órgão A principal chave utilizada por Arantes 2002 p 116119 para identificar uma agenda institucional voltada para a tutela coletiva contudo está associada às declarações relativas às prioridades pretéritas e futuras do órgão Indagouse aos entrevistados quais atribuições eles consideravam que foram tratadas como prioridades nos últimos 2 dois anos e quais seriam as prioridades para os próximos 2 dois anos Aqui se verificou que enquanto a identificação do foco na atuação criminal decresceu 11 onze por cento entre os entrevistados houve aumento em todos os campos associados à tutela de direitos difusos coletivos e individuais homogêneos com especial destaque para o meio ambiente aumento de 12 os serviços de relevância pública aumento de 17 e a improbidade administrativa aumento de 22 Algumas advertências merecem registro Propor a existência de uma agenda de prioridades no cenário de um órgão com múltiplas e tão diferentes atribuições não significa que as atividades não prioritárias tenham sido deixadas totalmente de lado ou ainda que quantitativamente as atividades consideradas prioritárias representem o maior volume de trabalho desempenhado pelo órgão O que se propõe tãosomente é a existência de um discurso dominante na construção da imagem do órgão em meados da década de 1990 que o apresentava como um advogado da sociedade e especialmente vocacionado para a defesa de direitos transindividuais SADEK 2000 p 30 Como adverte o próprio Arantes 2002 p 116 reconhecer a existência de um discurso dominante não significa que divergências internas tenham desaparecido e o que é mais importante que a prática judicial e política inspirada nesses novos valores seja uniforme em todo o país Na realidade o desenho institucional do MP parece especialmente tendente a favorecer esse tipo de 90 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade disputa um rol significativo de atribuições e ampla liberdade de atuação combinados com um modelo de baixa accountability KERCHE 2018 Acrescentese que a pluralidade institucional relativa à existência de 30 trinta órgãos ministeriais distintos nos diferentes níveis do sistema de justiça nacional também é potencialmente reveladora da ausência uma agenda exatamente uniforme no âmbito dos diferentes MPs e abre espaço para a disputa entre visões diferentes quanto à instituição e a sua atuação Além disso a lógica do voluntarismo político associada à visão de um Estado e uma sociedade débeis dependentes de um MP forte e capaz de mediar conflitos e implementar direitos não é intrinsicamente relacionada à temática da tutela coletiva podendo ser mobilizada em direção a outras atribuições a depender do quanto mudanças internas ou externas ao MP favoreçam uma nova agenda de prioridades MARONA et al 2017 Nessa perspectiva Mahoney e Thelen 2010 p 12 destacam que mesmo sem alteração formal do quadro normativo essa disputa de sentidos mobilizada por atores interessados em determinadas agendas é capaz de conduzir um processo gradual de mudança institucional25 No caso do MP brasileiro propõese que a tendência à consolidação de uma agenda baseada na defesa de direitos transindividuais foi revertida na direção de uma concepção mais clássica do papel do MP vinculada a sua função acusatória e com foco particular na repressão à corrupção política 43 Um giro de prioridades da tutela coletiva à repressão penal anticorrupção Se até meados dos anos 2000 uma das mais significativas novidades produzidas pelo novo quadro institucional da CRFB88 se constituiu na possibilidade de implementação do catálogo constitucional de direitos e das políticas públicas a ele associadas através do Judiciário verificouse a partir de então uma progressiva inserção do MP em uma rede de accountability horizontal em franco desenvolvimento ODONNELL 1998 ARANTES 2015 p 30 o que sobrelevou a sua atribuição também prevista na CRFB88 de fiscalização do patrimônio público a partir da agenda de combate à corrupção A função ministerial de controle da administração pública já vinha ganhando destaque ao longo da década de 1990 O próprio estudo de Arantes em 2002 p 154 dedica um capítulo à atuação do MP paulista no combate à corrupção e destaca os significativos resultados obtidos nesta seara No entanto a estratégia especializada de abordagem da questão da corrupção na época se dava 25 Dentre as quatro modalidades de mudança institucional gradual identificadas por Mahoney e Thelen 2010 p 1718 aludimos a que os autores denominaram como conversion que ocorre quando as regras permanecem formalmente as mesmas mas são interpretadas de novas maneiras Este espaço entre as regras e sua instanciação não é conduzido pela negligência a partir de uma alteração de configuração como ocorre no drift ao contrário o espaço é produzido por atores que ativamente exploram as ambiguidades inerentes à instituição Através da readaptação eles convertem a instituição para novos objetivos funções ou propósitos Tradução livre do texto occurs when rules remain formally the same but are interpreted and enacted in new ways This gap between the rules and their instantiation is not driven by neglect in the face of a changed setting as is true with drift instead the gap is produced by actors who actively exploit the inherent ambiguities of the institutions Through redeployment they convert the institution to new goals functions or purposes Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 91 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima principalmente a partir da esfera cível com aplicação da recém promulgada Lei de Improbidade Administrativa Lei n 849292 que era uma novidade26 Isso explica porque o survey de 1996 inclui o controle da administração pública no campo dos direitos difusos coletivos e individuais homogêneos não o inserindo no âmbito criminal ARANTES 2002 p 117 Dentre os resultados possíveis de uma condenação por ação de improbidade administrativa destacase a sua dimensão de ressarcimento ao erário embora seja possível um ato ímprobo que não envolva prejuízo aos cofres públicos o que ressalta a sua dimensão associada aos direitos da coletividade27 A repercussão penal dos fatos investigados em sede de fiscalização da administração pública embora também presente na época especialmente no âmbito da atuação dos MPs estaduais28 não alcançava a mesma visibilidade possivelmente em razão de entraves estabelecidos pela própria legislação de regência como o foro de prerrogativa de função ARANTES 2002 p 153 e a ausência de mecanismos processuais desenhados especificamente para o enfrentamento deste tipo de criminalidade Nesse aspecto a grande novidade verificada a partir de meados dos anos 2000 foi a mobilização de um direito penal para o campo do combate à corrupção não apenas quanto à repercussão penal de fatos investigados nesta seara mas especialmente com o desenvolvimento de uma racionalidade especializada e nacionalmente difundida no enfrentamento deste tipo de delito ARANTES 2011 p 99 AVRITZER MARONA 2017 p 366 justamente a partir da articulação para esse propósito do MP com outras instituições de controle como a recémcriada ControladoriaGeral da União os Tribunais de Contas e as polícias judiciárias em especial a Polícia Federal Não é por acaso que datam do mesmo período iniciativas de cooperação como a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro ENCCLA criada em 2003 e a criação no ano seguinte do Departamento de Recuperação de Ativos de Cooperação Jurídica Internacional LONDERO 2019 É ilustrativo desse cenário que o número de operações de combate à corrupção 26 A esse respeito Arantes 2002 p 153 destaca que a Lei 842992 é um desses marcos da judicialização da política no Brasil na medida em que ampliou o acesso à justiça para ações contra ocupantes de cargos públicos Para além das definições rigorosas de probidade e moralidade administrativas a inclusão da fiscalização judicial implicou uma significativa redução da margem de discricionaridade da administração pública ampliando enormemente as hipóteses de conflitos políticos desaguarem no Judiciário Mas a Lei 842992 não inovou apenas nesse ponto seu grande trunfo é permitir que os ocupantes de cargos executivos sejam processados sem o privilégio de foro especial Do ponto de vista do Ministério Público outra vantagem da Lei n 842992 é possibilitar que o grande contingente de promotores de justiça que atuam em primeira instância possam investigar por meio do inquérito civil e processar os ocupantes de cargos públicos situados em qualquer ponto dos ramos Executivo e Legislativo 27 Além disso a maior parte da literatura especializada admite que o instrumento processual por meio do qual é veiculada a pretensão da improbidade administrativa é ação civil pública instrumento típico de tutela coletiva GARCIA ALVES 2013 p 14821489 28 Datam desse período meados da década de 1990 as primeiras experiências do que viram a se tornar Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado GAECOs no âmbito dos MPs Estaduais Vale ressaltar todavia que há época estes órgãos especializados não tinham um foco específico no controle penal da administração pública mas sim de organizações criminosas em geral Exemplos de especialização no campo da fiscalização do patrimônio público como as chamadas Promotorias do Patrimônio Público cuja criação também remontam ao mesmo período possuíam normalmente atuação dúplice isto é cível e criminal 92 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade com a participação da Polícia Federal e consequentemente do Ministério Público Federal aumentou de 18 no ano de 2003 para 566 no ano de 2015 AVRITZER MARONA 2016 p 36729 A conjuntura interinstitucional favorável associada a outros aspectos como a natureza híbrida cível e penal dos ilícitos relacionados com a matéria viabilizando uma narrativa institucional de que as preocupações com o campo da tutela coletiva não seriam deixadas de lado e a difusão de uma agenda internacional associando boa governança ao combate à corrupção FILGUEIRAS ARANHA 2011 MCCOY HECKEL 2001 por meio inclusive de tratados internacionais firmados pelo Brasil a esse respeito30 são alguns dos fatores que podem explicar uma tendência a uma mudança institucional informal e gradual no âmbito do MP de uma agenda prioritariamente centrada nos direitos transindividuais para o combate à corrupção especialmente em sua vertente penal Essa tendência é amparada pela análise contextual de alguns achados de um outro survey mais abrangente que o de 1996 realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania CESeC e coordenado entre outros pelas professoras Julita Lembruger e Ludmila Ribeiro O estudo promoveu entrevistas através de questionários no período entre fevereiro de 2015 a fevereiro de 2016 com 899 membros do MP de todas as 30 trinta instituições ministeriais existentes no País o que totaliza cerca de 7 do total de promotores e procuradores na ativa O voluntarismo político proposto por Arantes em 2002 não só continua presente como parece ter se reforçado Essa conclusão é possível a partir da análise do nível de concordância total frente a algumas questões bastante semelhantes àquelas propostas no survey de 1996 Mais de um terço dos entrevistados 36 entende que a sociedade desconhece as atribuições do MP um percentual um pouco superior àquele que concordou totalmente com a assertiva referente ao caráter indefeso da sociedade na pesquisa precedente 31 Além disso em relação à função de promoção da cidadania e conscientização da sociedade a pesquisa de 2016 encontrou números muito superiores a 2016 o índice aumentou de 48 para 738 Podese especular que os índices superiores que corroboram a hipótese do chamado voluntarismo político como ideologia institucional dominante no MP brasileiro após um intervalo de 2 duas décadas entre os dois levantamentos de dados decorrem de fatores como o grande afluxo de novos membros na instituição já sob a égide do novo marco normativo da CRFB88 RIBEIRO 2017 p 61 além de naturalmente ter se desenvolvido maior familiaridade institucional com 29 Aqui por sinal a limitação de dados disponíveis e a impossibilidade de abordar especificidades decorrentes da pluralidade de órgãos do MP existentes em todo país tem mobilizado a literatura sobre a instituição a tomar como referencial primeiro a experiência do Ministério Público Federal dada a projeção e visibilidade de sua atuação decorrente do seu caráter nacional AVRITZER MARONA 2016 p 365367 KERCHE VIEGAS 2020 Como já sugerido e será demonstrado a seguir isso não invalida a possibilidade de mapeamento de uma trajetória institucional comum ao MP brasileiro Sob outra perspectiva é interessante observar que há quem identifique na literatura associada à transição da esfera cível para a esfera criminal isto é uma abordagem mais geral do fenômeno do giro de prioridades desde a tutela coletiva para a atuação criminal anticorrupção aqui proposto no campo específico do MP uma espécie de transição da esfera estadual para a esfera federal no âmbito do sistema de justiça brasileiro ARANTES 2011 p 99101 30 Vejase por exemplo a Convenção Interamericana contra a Corrupção internalizada por meio do Decreto n 44102002 e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção assinada pelo Brasil em 2003 e internalizada por meio do Decreto n 56872006 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 93 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima temas que em meados da década de 1990 ainda constituíam uma novidade e um desafio em termos operacionais Nessa perspectiva todavia seria de se esperar que a tendência de priorização da tutela coletiva se mostraria consolidada no survey de 2016 Não é o que acontece Corroborando a hipótese de mudança institucional gradual um retorno à vocação acusatória do órgão notadamente no campo do combate à corrupção parece ter se traduzido como a agenda institucional que na avaliação do MP melhor reflete a sua missão de advogado da sociedade Assim dentre as áreas consideradas prioritárias para a atuação do órgão o survey de 2016 não apresenta um comparativo entre análise pretérita e prognóstico futuro 62 dos entrevistados inseriram o campo do combate à corrupção seguidos de 49 que indicaram a área da investigação criminal Das matérias típicas do campo da tutela coletiva apenas o meio ambiente figurou com um percentual acima de 40 com 45 dos entrevistados indicando este como um campo prioritário da atuação do MP Mesmo o direito do consumidor outrora um dos carroschefes da tutela coletiva no MP o survey de 1996 indicava um percentual de 38 figurou com apenas 18 dos membros ouvidos indicandoo como prioritário Áreas historicamente problemáticas na concretização de direitos transindividuais como patrimônio histórico e cultural minorias étnicas e política fundiária apresentaram percentuais muito baixos 6 4 e 2 respectivamente LEMGRUBER et al 2016 p 2930 De mais a mais sobre a visão dos membros acerca da qualidade do trabalho desempenhado pelo MP isto é o que a instituição desempenha com maior eficiência atividades tipicamente relacionadas à função acusatória do MP foram melhor avaliadas Cerca de 80 dos membros entrevistados classificaram a atuação no âmbito da ação penal como ótima ou boa seguido de 76 avaliando positivamente a atuação no campo da representação por ato infracional de menor Das matérias típicas de tutela coletiva destacamse o meio ambiente avaliado com 68 e a defesa do consumidor com cerca de 66 O combate à improbidade administrativa dimensão cível do combate à corrupção figurou com 64 LEMGRUBER et al 2016 p 33 Analisados conjuntamente portanto os dados do survey de 2016 autorizam a leitura de que os membros da instituição acreditam majoritariamente que atividades tipicamente associadas à função acusatória devem ser priorizadas pelo órgão Esse achado representa uma reversão da tendência identificada em 1996 que sinalizava um crescimento da priorização da tutela coletiva acompanhado de um decréscimo da prioridade associada à atuação criminal Curiosamente contudo quando levantada uma questão mais genérica sobre se na opinião do entrevistado a instituição dedica mais prioridade à atuação penal a maioria dos ouvidos 51 respondeu negativamente à proposição LEMGRUBER et al 2016 p 32 Isso talvez decorra do fato de que a grande maioria dos membros do MP entrevistados 63 atua parcial ou totalmente no campo da tutela coletiva Devese ponderar que o simples fato da maioria dos membros ter alguma atribuição no campo da tutela coletiva não é por si só indicativo de priorização da área Do universo de 63 dos 94 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade promotoresprocuradores com atribuição no campo somente 388 possuem atribuição exclusiva Isso significa que a maioria 612 dos promotoresprocuradores não atua com a matéria ou divide a atribuição com alguma outra LEMGRUBER et al 2016 p 31 Neste último caso tendo em conta o baixo nível de accountability associada à ampla independência funcional KERCHE 2018 na prática os membros ficam livres para em seu próprio ofício priorizarem a matéria com que tem maior afinidade ou expertise De mais a mais considerando que a maior parte do trabalho na tutela coletiva se dá no âmbito extrajudicial compromissos judiciais peremptórios como prazos e audiências tendem a preencher a agenda do promotorprocurador com atribuição mista o que pode prejudicar a atividade na defesa de direitos transindividuais A extensão nacional do survey de 2016 abrangendo todas as instituições ministeriais do sistema de justiça parece suficiente para propor que há suporte para a hipótese de mudança institucional informal de uma dominância discursiva e política da agenda da tutela coletiva para o campo anticorrupção notadamente no seu aspecto de repressão penal mesmo diante das especificidades decorrentes da pluralidade de órgãos do MP que convivem em todo País Embora a análise quantitativa de procedimentos e expedientes administrativos no âmbito do MP envolva limitações decorrentes do fato de que a mera instauração de um dado apuratório não mensura a qualidade eou efetividade de atuação nele desenvolvida o trabalho de Sampaio e Viegas 2019 a partir da análise de um triênio 2015 a 2017 dos dados de produtividade de todos os órgãos do MP produzidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público CNMP também dá suporte à hipótese aqui proposta O CNMP em seus relatórios anuais não aglutina as temáticas na dicotomia analítica aqui proposta tutela coletiva x repressão penal anticorrupção A classificação temática inclusive varia a depender do MP envolvido se o MPF ou os MPs estaduais De toda sorte vejamos o acumulado dos dados do triênio nestes dois grupos distintos MPF e MPs estaduais e distrital e relativos a apuratórios de caráter investigativo procedimentos preparatórios e inquéritos civis Tabela 1 Número de inquéritos civis e procedimentos preparatórios instaurados no âmbito do Ministério Público Federal 20152017 Improbidade administrativa Patrimônio Público Saúde Educação Serviço Público 31490 13440 12664 10454 5784 Fonte Sampaio e Viegas 2019 p 13 a partir de relatórios anuais do CNMP Tabela 2 Número de inquéritos civis e procedimentos preparatórios instaurados no âmbito dos MPs Estaduais e Distrital 20152017 administrativa Meio Ambiente Saúde ECA Criança e Improbidade Adolescente Patrimônio Público 103359 94265 69089 59146 53937 Fonte Sampaio e Viegas 2019 p 14 a partir de relatórios anuais do CNMP Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 95 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima A análise dos números totais evidencia que embora haja alguma diferença do perfil atuação entre MPF e MPs Estaduais com uma maior predominância de investigações anticorrupção no órgão federal dados associados à improbidade administrativa e ao patrimônio público em ambos os casos a temática possui um número de apurações muito superior às demais catalogadas pelo CNMP motivo pelo qual Sampaio e Viegas 2018 p 22 propõem entre outras conclusões que é possível se verificar uma priorização de investigações anticorrupção na atuação extrajudicial dos MPs no plano federal e também estadual31 corroborando ao menos o ponto de chegada da hipótese aqui proposta 44 Alguns efeitos da dominância da agenda anticorrupção no MP Não bastasse o comparativo entre as pesquisas de 1996 e 2016 evidenciarem uma reversão da tendência da priorização da tutela coletiva para o campo da função acusatória e que o combate à corrupção surge como prioridade máxima na agenda da maior parte dos membros já há trabalhos na literatura descrevendo as alterações na estrutura organizacional interna dos Ministérios Públicos para priorizar uma atuação especializada na área de repressão penal anticorrupção É o caso da criação de núcleos específicos para a temática vejase os Núcleos de Combate à Corrupção NCCs no âmbito do MPF o Núcleo de Atuação Integrada no Combate à Corrupção NAICC do MPSP e o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção GAECC do MPRJ e do desenvolvimento de uma expertise para a atuação através da sistemática de forçastarefas32 e operações que embora não constituam particulamente uma novidade em face da experiência dos GAECOs e outros órgãos especializados no âmbito dos MPs dos Estados têm se aperfeiçoado dentro de uma lógica e de uma expertise direcionadas especificamente para o enfrentamento da criminalidade anticorrupção33 Um outro aspecto a considerar está nos impactos institucionais tanto internos quanto externos dos grandes casos de corrupção do qual a chamada Operação Lava Jato é um exemplo emblemático O impacto deste tipo de atuação não repercute apenas na imagem institucional do MP fortalecendo narrativas em torno da viabilidade de uma pretensa refundação da República a partir de um vigoroso esforço de repressão penal à corrupção por meio da condução das instituições do sistema 31 A mobilização destes dados a esta altura do texto reiterese opera como elemento de reforço à hipótese da mudança institucional informal de maneira que outras frentes de pesquisa podem oferecer outras perspectivas analíticas a respeito dos números expostos e do material produzido anualmente nos relatórios de produtividade do CNMP denominados Ministério Público um retrato e publicados desde o ano de 2012 32 Segundo o Manual de Atuação da Escola do Ministério Público da União em sua acepção mais geral forçatarefa pode ser entendida como uma equipe de especialistas dotada de meios materiais necessários à consecução de um objetivo específico de reconhecida complexidade e que recomende por certo período de tempo a coordenação de esforços de um ou mais órgãos nacionais ou estrangeiros PALUDO et al 2011 p 28 33 Tomese aqui a título exemplificativo o histórico do GAECO do Ministério Público do Paraná Seu nascedouro está nas Promotorias de Investigação Criminal criadas pela Resolução n 971994 e que na prática constituíra ofícios criminais especializados mas abrangendo delitos em geral e não apenas aqueles associados à repressão penal anticorrupção Somente em 2007 com o advento da Resolução 1801 é que sob a nomenclatura de GAECO o órgão passa atuar na repressão específica da criminalidade organizada dentre os quais delitos praticados por agentes públicos no exercício da função quando presentes características típicas de grupo criminoso organizado ou estruturado art 5º II MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ 2021 96 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade de justiça como o MP BARROSO 2019 p 167176 CHALOUB LAMENHA 2019 LYNCH 2018 p 270272 mas também proporciona a difusão de um novo instrumental de persecução que de certa forma concorre para uma certa modernização da investigação criminal no País VIECILI 2017 Esse know how favorece não só uma maior eficiência em casos de maior complexidade como tem o potencial de gerar efeitos na cultura institucional do MP mobilizando um maior interesse dos membros na atuação anticorrupção especialmente focada na repressão penal Do mesmo modo não se pode desprezar que os efeitos da repercussão dos casos e da agenda anticorrupção seja identificado à luz de um momento político em que o tema mobiliza fortemente a opinião pública dentro da lógica do pluralismo estatal tais narrativas e ampla visibilidade favorecem ao projeto institucional de busca de mais espaço e poder políticos Conclusão Parece razoável propor que a agenda pública em torno da defesa e da promoção extrajudicial e judicial dos direitos transindividuais somente pode ser adequadamente compreendida se contemplar uma reflexão entre a dinâmica estabelecida entre MP e DP em torno da matéria uma vez que o texto demonstra à suficiência a existência de uma clara sobreposição de atribuições entre as instituições nesse campo De mais a mais também há evidências suficientes para propor que a DP desde a sua constitucionalização espelha muitos aspectos da trajetória de construção institucional do MP notadamente a aposta no campo da tutela coletiva como uma estratégia de consolidação do órgão no quadro institucional do sistema de justiça livre do risco de reversão mobilizado pelo lobby de outras corporações especificamente em relação à função primeira de orientação e defesa judicial dos necessitados Ao lado dessa trajetória desenvolvida pela DP nos anos que se seguiram à CRFB88 há elementos suficientes para identificar uma mudança institucional gradual da agenda de prioridades do MP da tutela coletiva para a repressão penal à corrupção Isso não significa que se trate de uma tendência irreversível podendo ter sido motivada pelos últimos acontecimentos associados à conjuntura política LEMGRUBER et al 2016 O que parece certo porém é que esse movimento de mudança institucional informal ocorreu de forma paralela aos avanços da Defensoria Pública no processo de definição pela legislação de novas atribuições na temática da tutela coletiva ao órgão Não há evidência suficiente para apontar para uma relação causal entre esses dois processos no entanto é possível especular que a gradual mudança institucional do MP na direção da pauta penal anticorrupção pode ter sido percebida pelo DP na formulação de sua agenda corporativa posterior à EC 4504 reeditando em alguma medida a mobilização do MP na década de 1970 e 1980 orientada pela tentativa de ocupar espaços no âmbito da tutela coletiva e da função promocional dos direitos Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 97 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima humanos34 Além disso também é possível que o mesmo fenômeno possa ajudar a compreender em algum nível porque diferentemente do ocorrido na CRFB88 e na época da LC 8094 a Defensoria Pública conseguiu implementar com sucesso toda a sua agenda corporativa a partir da EC n 4504 Idealmente a sobreposição de atribuições na tutela coletiva entre duas instituições do sistema de justiça sugere um fortalecimento no campo da defesa dos direitos transindividuais É o que propôs por exemplo a processualista Ada Pellegrini Grinover 1984 em seu parecer apresentado pela ANADEP nos autos da ADI 3943 BRASIL 2015 Indo além o novo quadro normativo favoreceria atuações conjuntas uma vez que a legitimação concorrente no âmbito da ACP principal instrumento judicial no campo da tutela coletiva não exclui a possibilidade de litisconsórcio o que aliás tem ocorrido em diversos casos em todo território nacional OSÓRIO 2019 p 579580 Deixado um pouco de lado o panorama ideal contudo há dificuldades que recomendam a necessidade de pensar com maior profundidade a respeito da eficiência do modelo de sobreposição de atribuições na defesa de direitos transindividuais Parece correto propor de saída que MP e DP não são instituições especializadas no campo da tutela coletiva o que se deduz pelo simples fato de que os órgãos possuem outras atribuições que geram significativo e compulsório volume de trabalho Observese por exemplo que o MP atua em todo e qualquer processo criminal no País mesmo as ações penais privadas na condição de fiscal da lei e a DP está inexoravelmente atrelada à demanda oriunda os necessitados que demandam o órgão por tutela judicial e orientação jurídica nos mais variados campos do direito As demandas sobretudo judiciais estranhas à tutela coletiva em ambos os órgãos geram uma série de tarefas compulsórias como prazos e audiências que ocupam a agenda diária dos promotoresprocuradores e defensores impedindoos de atuar de forma mais constante no campo da defesa de direitos transindividuais atividade que por sua natureza exige uma atividade extrajudicial intensa e diferenciada Poderseia especular que a especialização interna em ofícios específicos da tutela coletiva poderia superar o problema a exemplo do que já acontece no âmbito do MP Essa solução todavia possui limitações claras No âmbito específico da DP temse que o nível de institucionalização e capilaridade da Defensoria no território nacional varia significativamente sendo certo que várias comarcasseções judiciárias do País sequer contam com um defensor público No caso do MP embora 34 Também aqui há paralelos entre atribuições desempenhadas pelo MP e as mudanças normativas da DP ocorridas a partir do início dos anos 2000 Para além de um desdobramento natural na atuação na defesa de direitos transindividuais na direção de uma função promocional no campo dos direitos humanos existe na estrutura do Ministério Público Federal a função do Procurador Federal dos Direitos do Cidadão PFDC que tem por atribuição precípua a defesa dos direitos constitucionais do cidadão e a garantia de seu efeito respeito pelos Poderes Públicos e pelos prestadores de serviço de relevância pública LC 7593 art 1416 e art 40 No âmbito das unidades do MPF nos estadosmembros existem os Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão PRDC e no âmbito local os Procuradores dos Direitos do Cidadão PDCs BRASIL 1993 Paralelamente após a promulgação da EC 802014 a Defensoria Pública da União DPU através de ato do seu Conselho Superior Resolução nº 1272016 criou as funções de Defensor Nacional dos Direitos Humanos e Defensores Regionais dos Direitos Humanos Dentre as numerosas atribuições confiadas a ambos os órgãos está por exemplo a interlocução nacional e regional respectivamente junto a outros órgãos e instituições visando à promoção dos direitos humanos e a defesa coletiva de direitos e interesses conforme preveem os arts 7º IV e 8º XI do citado ato normativo BRASIL 2016a 98 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade a especialização interna já seja uma prática ela efetivamente apenas é viável em localidades maiores como capitais de maneira que a acumulação das diferentes atribuições do órgão na figura de um único agente público é a realidade de um número significativo de comarcas do País RIBEIRO 2017 p 6264 Além disso ainda que haja experiências de sucesso na atuação conjunta de MP e DP na tutela coletiva essa articulação depende quase exclusivamente da disposição dos agentes públicos envolvidos em tornála possível A ausência de um marco normativo que aborde a sobreposição de atribuições concorre para o risco de duplicidade de esforços estatais na direção de um mesmo problema reproduzindo em casos concretos episódios de competição institucional em torno da tutela coletiva Não se pode desconsiderar ainda o risco de que um conflito negativo de atuação com ambas as instituições afirmando que a atribuição para atuar em um caso específico é da outra postergando a efetiva proteção do direito transindividual em questão Direcionando a análise para as razões políticas que conduziram ambas as instituições para suas funções na tutela coletiva devese considerar que à luz do amplo catálogo de direitos positivado no ordenamento pátrio e da desigualdade estrutural existente na sociedade brasileira a atuação na seara dos direitos transindividuais confere a tais instituições um papel político de peso na formulação e execução de políticas públicas em todos os níveis federativos Virtualmente portanto qualquer assunto público pode ser mobilizado por ambos os órgãos como uma questão sob sua responsabilidade Na chave do pluralismo estatal a defesa da sociedade é um argumento político poderoso que certamente favorece a obtenção de melhores condições e prerrogativas para as corporações e seus membros A combinação entre instituições não especializadas que veem na reivindicação da posição de defensores da sociedade um trunfo político e a idealização de uma atuação reforçada no campo da tutela coletiva decorrente da sobreposição de atribuições pode conduzir na realidade a um esvaziamento na defesa dos direitos transindividuais Parece apressado todavia propor que a duplicidade de atribuições entre MP e DP no campo da tutela coletiva deveria ser inexoravelmente eliminada ou mesmo advogar por soluções mais drásticas como a criação de uma instituição especificamente voltada para esse tipo de demanda35 As ponderações trazidas por este artigo procuram oferecer subsídios à luz da teoria institucional para que pesquisas posteriores especialmente as que abordem empiricamente os resultados dessa superposição de funções possam aprofundar a discussão 35 Ressaltese aqui a título de registro que o Constituinte de 19871988 optou já na fase de sistematização do texto constitucional deliberadamente por não criar ao lado do Ministério Público uma agência independente voltada à defesa dos direitos do cidadão nos moldes do ombudsman sueco ou do defensor del pueblo iberoamericano como era defendido por alguns parlamentares constituintes como José Paulo Bisol autor da Emenda 320696 a respeito do tema e de setores da sociedade civil como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil CNBB Prevaleceu contudo na esteira da posição capitaneada pelo constituinte Ibsen Pinheiro a solução de confiar tais funções ao MP que na prática já a exerceria mesmo sem mandato constitucional específico dada a capilaridade da instituição em todo o território nacional SABELLA et al 2013 p 100102 ARANTES 2002 p 87 A criação de uma instituição especificamente voltada para tutela coletiva necessariamente revisitaria este debate Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 99 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima Referências ARANTES Rogério Bastos Direito e política o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos Revista Brasileira de Ciências Sociais v 14 n 18 p 183102 1999 ARANTES Rogério Bastos Ministério Público e Política no Brasil São Paulo Sumaré 2002 ARANTES Rogério Bastos Polícia Federal e construção institucional In AVRITZER Leonardo FILGUEIRAS Fernando ed Corrupção e Sistema Político no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasi leira 2011 ARANTES Rogério Bastos Rendición de cuentas y pluralismo estatal en Brasil Ministério Público y Policía Federal Desacatos n 49 p 2847 septdic 2015 AVRITZER Leonardo MARONA Marjorie C A tensão entre soberania e instituições de controle na democracia brasileira Dados v 60 n 2 p 359393 2017 BARROSO Luís Roberto Empurrando a história combate à corrupção mudança de paradigmas e refundação do Brasil prefácio In PINOTTI Maria Cristina Corrupção Lava jato e Mãos Limpas São Paulo PortfolioPenguin 2019 p 919 BRASIL Ata da 5ª Reunião Ordinária da Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público na Assembleia Nacional Constituinte Diário da Assembleia Nacional Constituinte suplemento Brasí lia DF Câmara dos Deputados n 78 17 jun 1987 Disponível em httpimagemcamaragovbr Imagemdpdfsup78anc17jun1987pdfpage97 Acesso em 16 out 2019 BRASIL Conselho Superior da Defensoria Pública da União Resolução n 127 de 06 de abril de 2016 Regulamenta a tutela coletiva de direitos e interesses pela Defensoria Pública da União Diário Oficial da União 19 abr 2016a Disponível em httpswwwdpudefbrconselhosuperior resolucoes30844resolucaon127de06deabril2016regulamentaatutelacoletivadedireit ose interessespeladefensoriapublicadauniao Acesso em 5 nov 2019 BRASIL Constituição República Federativa do Brasil de 1988 Brasília DF Senado Federal 5 out 1988 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaoconstituicaohtm Acesso em 15 out 2019 BRASIL Emenda Constitucional n 45 de 30 de dezembro de 2004 Altera dispositivos dos arts 5º 36 52 92 93 95 98 99 102 103 104 105 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Federal Plenário Ação Direta de Inconstitucionalidade n 4270SC Art 104 da Constituição do Estado de Santa Catarina Lei Complementar Estadual 1551997 Reque rente Associação Nacional dos Defensores Públicos da União ANDPU e outro Relator Min Joaquim Barbosa 14 de março de 2012c Disponível em httpredirstfjusbrpaginadorpubpagi nadorjspdocTPTPdocID2822228 Acesso em 2 nov 2019 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 101 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima BRASIL Supremo Tribunal Federal Plenário Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstituciona lidade n 5296 Art 134 par 3º da Constituição Requerente Presidente da República Relator Ministra Rosa Weber 18 de maio de 2016b Disponível em httpredirstfjusbrpaginadorpub paginadorjspdocTPTPdocID12013131 Acesso em 2 nov 2019 CABRAL NETTO Joaquim CONAMPCAEMP uma história sem fim Porto Alegre Magister 2009 CÂMARA DOS DEPUTADOS Projeto de Lei da Câmara n 5704 de 05 de agosto de 2005 Altera o artigo 5º da Lei 7347 de 24 de julho de 1985 Lei de Ação Civil Pública para legitimar os Sena dores Deputados Federais Deputados Estaduais e Vereadores para a sua propositura Brasília DF Senado Federal 11 ago 2005 Disponível em httpswwwcamaralegbrproposicoesWebfichade tramitacaoidProposicao295407 Acesso em 2 nov 2019 CÂMARA DOS DEPUTADOS Proposta de Emenda Constitucional n 2372013 Brasília DF Câmara dos Deputados 2013 Disponível em httpswwwcamaralegbrproposicoesWebfichadetramita caoidProposicao567197 Acesso em 4 nov 2019 CAPPELLETTI Mauroz GARTH Bryant Acesso à justiça Porto Alegre Fabris 1988 CARVALHO Ernani LEITÃO Natália O novo desenho institucional do Ministério Público e o processo de judicialização da política Revista Direito GV v 6 n 2 p 399422 dez 2010 CHALOUB Jorge LYNCH Christian O pensamento políticoconstitucional da República de 1988 um balanço preliminar In HOLANDA Cristina Buarque de VEIGA Luciana Fernandes AMARAL Oswaldo org A constituição de 88 trinta anos depois Curitiba Editora da UFPR 2018 v 1 p 251280 CUNHA Luciana Gross et al ed Relatório ICJ Brasil Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 4º trimestre de 2012 Disponível em httpsbitly2rSEIvW Acesso em 1 jul 2019 MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ GAECO Histórico Disponível em httpsgaecomppr mpbrpagina5html Acesso em 27 maio 2021 FILGUEIRAS Fernando ARANHA Ana L M Controle da corrupção e burocracia da linha de frente regras discricionariedade e reformas no Brasil Dados v 54 n 2 p 349387 2011 GARCIA Emerson ALVES Rogério Pacheco Improbidade administrativa 7 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2013 GRINOVER Ada Pellegrini Novas tendências na tutela jurisdicional dos interesses difusos Revista da Faculdade de Direito Universidade de São Paulo São Paulo n 79 p 283307 1984 HALL Peter A TAYLOR Rosemary C R As três versões do neoinstitucionalismo Lua Nova n 58 p 193223 2003 HALL Peter A TAYLOR Rosemary C R Political Science and the Three New Institutional isms Political Studies v 44 n 5 p 936957 1996 KERCHE Fábio Independência Poder Judiciário e Ministério Público Caderno CRH v 31 n 84 p 567580 dez 2018 102 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico Quem defenderá a sociedade KERCHE Fábio VIEGAS Rafael O Ministério Público de defensor de direitos a combate da corrupção In ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA 12 2020 Anais 2020 KERCHE Fábio Virtude e limites autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil São Paulo Edusp 2009 LAMENHA Bruno Jorge Rijo A tarefa de defesa do regime democrático confiada ao Ministério Pú blico brasileiro na Nova República perspectivas a partir da noção de contrademocraciade Pierre Rosanvallon In ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO DEMOCRACIA E POLÍTI CAS PÚBLICAS 4 2019 Porto Alegre Anais Porto Alegre 2019 Disponível em httpwww pdpp2019sinteseeventoscombr Acesso em 18 out 2019 LEMGRUBER Julita et al Ministério Público Guardião da democracia brasileira Rio de Janeiro CESeC 2016 LONDERO Daiane Mudanças institucionais no âmbito do Ministério Público Federal no combate à corrupção no setor público brasileiro In ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS 4 2019 Porto Alegre Anais Porto Alegre 2019 Disponível em httpwwwpdpp2019sinteseeventoscombr Acesso em 18 out 2019 MACIEL Débora Alves KOERNER Andrei O processo de reconstrução do Ministério Público na transição política 19741985 Revista Debates v 8 n 3 p 97117 setdez 2014 MADEIRA Lígia Mori Institutionalisation Reform and Independence of the Public Defenders Office in Brazil Brazilian Political Science Review v 8 n 2 p 4869 2014 MAHONEY James Path dependence in historical sociology Theory and Society v 29 n 4 p 507 548 ago 2000 MAHONEY James THELEN Kathleen A theory of gradual institutional change In MAHONEY James THELEN Kathleen ed Explaining institutional change ambiguity agency and power New York Cambridge University Press 2010 p 137 MARONA Marjorie et al O Ministério Público no contexto atual de protagonista a ombudsman In ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS 41 2017 Caxambu Anais Caxambu 2017 Disponí vel em httpsbitly2AgtOlj Acesso em 30 set 2018 MCCOY Jennifer L HECKEL Heather The emergence of global anticorruption norm Internatio nal Politics v 38 p 6590 Mar 2001 MOREIRA Thiago de Miranda Queiroz A criação da Defensoria Pública nos Estados conflitos institucionais e corporativos no processo de uniformização do acesso à justiça 2016 Dissertação Mestrado em Ciência Política Departamento de Ciência Polícia Universidade de São Paulo São Paulo 2016 NÓBREGA Flavianne Fernanda Bitencourt Entre o Brasil formal e o Brasil real Ministério Público instituição para o fortalecimento do Estado de direito 2017 Dissertação Mestrado em Ciência Política Programa de Pósgraduação em Ciência Política Universidade Federal de Pernambuco Recife 2007 Joaçaba v 22 n 1 p 73104 janjun 2021 103 Bruno Lamenha Flávia Santiago Lima ODONNELL Guillermo Accountability horizontal e novas poliarquias Lua Nova n 44 p 2754 1998 OSÓRIO Leticia Marques Litígio estratégico em direitos humanos desafios e oportunidades para organizações litigantes Direito e Práxis v 10 n 1 p 571592 mar 2019 PALUDO Januário et al Forçastarefas direito comparado e legislação aplicável Brasília DF ESM PU 2011 PERTENCE J P S Discurso de posse como ProcuradorGeral da República Brasília DF s n 1985 mimeo RIBEIRO Ludmila Mendonça Lopes Ministério Público velha instituição com novas funções Revista Crítica de Ciências Sociais n 113 p 5182 set 2017 SABELLA Walter Paulo et al Memórias das lutas pela obtenção do texto do Ministério Público na Constituição de 1988 In SABELLA Walter Paulo et al org Ministério Público vinte e cinco anos do novo perfil constitucional São Paulo Malheiros 2013 SADEK Maria Tereza Cidadania e Ministério Público In SADEK Maria Tereza ed Justiça e cidadania no Brasil São Paulo IDESPSumaré 2000 p 1137 SADEK Maria Tereza org O Ministério Público e a Justiça no Brasil Rio de Janeiro BVCE 2010 SAMPAIO Marianna VIEGAS Rafael Rodrigues Ministério Público de fiscal a elaborador de polí ticas públicas In ENCONTRO DA ANPOCS 43 Caxambu Anais Caxambu 2019 SAUWEN FILHO João Francisco O Ministério Público brasileiro e o Estado democrático de Direito Rio de Janeiro Renovar 1999 SENADO FEDERAL Projeto de Lei do Senado n 131 de 15 de abril 2003 Altera o artigo 5º da Lei 7347 de 24 de julho de 1985 Lei de Ação Civil Pública para legitimar os Senadores Deputados Federais Deputados Estaduais e Vereadores para a sua propositura Brasília DF Senado Federal 2003 Disponível em httpswww25senadolegbrwebatividademateriasmateria56726 Acesso em 2 nov 2019 SKOCPOL Theda Bringing the State Back In EVANS Peter et al ed Strategies of analysis in current research Cambridge Cambridge University Press 1985 p 338 VIECILI Jerusa B Lava Jato e modernização da investigação criminal no Brasil Brasília DF Associação Nacional de Procuradores da República 2017 Disponível em httpsbitly2r2HD4A Acesso em 29 out 2019 104 Disponível em httpsportalperiodicosunoescedubrespacojuridico QUEM DEFENDERÁ A SOCIEDADE TRAJETÓRIAS E COMPETIÇÃO INSTITUCIONAL EM TORNO DA TUTELA COLETIVA ENTRE MINISTÉRIO PÚBLICO E DEFENSORIA NO PÓS19881 O texto aborda a evolução das instituições do Ministério Público e da Defensoria Pública no contexto da ordem constitucional de 1988 com foco na competição institucional em relação à defesa de direitos coletivos difusos e individuais homogêneos tutela coletiva O autor destaca que apesar das diferentes funções originalmente designadas para essas instituições ao longo de três décadas desde a promulgação da Constituição ocorreu uma sobreposição de atribuições no campo da tutela coletiva entre o Ministério Público e a Defensoria Pública O autor baseia sua análise no neoinstitucionalismo histórico e explora as trajetórias formais e informais de mudança nas duas instituições Ele identifica processos paralelos de mudança institucional no Ministério Público e na Defensoria Pública que explicam a competição entre os dois órgãos no âmbito da tutela coletiva A pesquisa é conduzida por meio de revisão bibliográfica e análise documental combinando abordagens do Direito e da Ciência Política de maneira interdisciplinar O autor observa que o desenho institucional original da Constituição de 1988 estabeleceu funções distintas para o Ministério Público e a Defensoria Pública mas ao longo do tempo essas instituições passaram a disputar espaço no campo da tutela coletiva mesmo mantendo suas atribuições originais No caso do Ministério Público observase uma possível mudança institucional informal com deslocamento gradual de prioridades do campo da tutela coletiva para o combate à corrupção enquanto a Defensoria Pública passou por mudanças formais incluindo alterações constitucionais e legislativas para expandir suas atribuições O texto também discute o conceito de pluralismo estatal no qual atores estatais mobilizam seus próprios interesses para influenciar a criação ou mudança institucional em contrapartida ao tradicional pluralismo político O autor argumenta que essa perspectiva pode ajudar a entender como a atribuição da tutela coletiva tem sido moldada ao longo do tempo pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública Em estudo sobre a institucionalização e independência dos órgãos estaduais da Defensoria Pública Lígia M Madeira 2014 p 6162 identifica a Emenda Constitucional n 4504 conhecida como Reforma do Judiciário como um ponto de virada para a consolidação e autonomia das Defensorias Públicas estaduais Antes da reforma em 2004 apenas 5 das 27 Defensorias estaduais poderiam ser consideradas independentes Acre Ceará Mato Grosso do Sul Mato Grosso e Rio de Janeiro Três anos após 2009 o número de Defensorias Públicas estaduais consideradas independentes aumentou para 10 Para a Defensoria Pública a EC 4504 foi uma mudança significativa já que estabeleceu o parágrafo 2º do art 134 da Constituição Federal garantindo autonomia funcional administrativa e iniciativa orçamentária às Defensorias Públicas estaduais Além disso a Defensoria foi incluída no art 168 da CFRB88 o que garantiu o repasse de dotações orçamentárias por meio da sistemática do duodécimo semelhante ao Poder Judiciário e ao Ministério Público Resgatando os debates legislativos da Reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados Moreira 2016 p 105106 menciona o destaque nº 274 proposto por José Roberto Batochio deputado federal por São Paulo e expresidente da OABSP que previa a possibilidade de celebração de convênios para prestação de assistência judiciária aos necessitados independentemente da atuação da Defensoria Pública Embora a proposta tenha sido rejeitada ela revela resistências contra a consolidação nacional das Defensorias Públicas Alguns Estados argumentavam que convênios já firmados com a OAB justificavam a não criação de uma Defensoria Pública estadual Um exemplo desse cenário é o caso de Santa Catarina que só instituiu a Defensoria Pública após decisões judiciais que consideraram inconstitucionais dispositivos estaduais que permitiam convênios desse tipo Além disso o episódio demonstra os desafios à consolidação e a força institucional de um órgão cuja atribuição se limitava à orientação jurídica e defesa judicial dos necessitados Dada a existência de uma história de prestação desse serviço sem uma instituição pública específica em muitos lugares do país a Defensoria Pública sempre esteve sob risco de reversão institucional mobilizada por modelos alternativos Isso explica o interesse da Defensoria em expandir suas atribuições para além da tutela individual dos necessitados Em suma o texto explora a evolução das instituições do Ministério Público e da Defensoria Pública após a Constituição de 1988 destacando as mudanças formais e informais que ocorreram ao longo do tempo e como essas instituições competem no campo da tutela coletiva O texto É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO A DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO COTIDIANO DOS ADVOGADOS POPULARES escrito por Fábio de Sá e Silva aborda a relação entre a atuação da Justiça e a democratização do Estado e da sociedade A literatura sociológica e política tem explorado três possibilidades para que a Justiça contribua para essa democratização o avanço do liberalismo político em proteção a minorias e liberdades civis a afirmação de novos direitos através da interpretação do direito existente e a efetivação de direitos já previstos no sistema jurídico especialmente em contextos de redemocratização A origem dos advogados populares pode ser situada nos anos 1980 emergindo em meio a diversos fenômenos sociais e políticos Na América Latina surgiram referências ao direito alternativo críticas ao direito convencional e abordagens linguísticas que influenciaram a compreensão do direito por parte dessa nova geração de advogados Essas abordagens forneceram um embasamento intelectual para que os advogados populares reavaliassem sua percepção do direito Esses advogados adotam uma abordagem diferenciada em relação aos clientes que representam Eles enfatizam o protagonismo dos clientes nos casos permitindo que eles acompanhem os processos e estejam envolvidos ativamente no sistema jurídico Essa postura difere da advocacia tradicional onde a participação ativa dos clientes poderia ser vista com desconfiança No entanto os advogados populares reconhecem que as estratégias jurídicas por si só não são suficientes para promover as mudanças estruturais que desejam Eles combinam estratégias jurídicas com ações extrajurídicas como educação jurídica popular e colaborações com outros atores do sistema de justiça e do sistema político Eles também reconhecem as limitações das mudanças legais e buscam formas de abordar as contradições do sistema de justiça muitas vezes imaginando uma nova ordem jurídica Uma tensão importante surge da necessidade de conciliar mudanças sociais e mudanças legais Os advogados populares reconhecem que devem escrever novos manuais para criar um padrão de jurisprudência que atenda às necessidades do povo Eles aspiram a construir uma nova ordem jurídica que vá além das limitações das estratégias tradicionais O texto também aborda as barreiras culturais e hierárquicas enfrentadas pelos advogados populares no contexto das profissões jurídicas Muitas vezes esses profissionais são vistos com preconceito por colegas que não estão envolvidos na advocacia popular Essas tensões refletem as complexidades das mudanças sociais e legais que os advogados populares buscam promover Em conclusão o texto É POSSÍVEL MAS AGORA NÃO oferece uma visão abrangente das práticas e desafios enfrentados pelos advogados populares em sua busca pela democratização da justiça e pela construção de uma nova ordem jurídica que atenda às necessidades da sociedade A combinação de estratégias jurídicas e extrajurídicas o empoderamento dos clientes e a busca por mudanças profundas no sistema de justiça demonstram a dedicação desses profissionais a uma abordagem transformadora e socialmente engajada Adotando uma linha eminentemente exploratória este texto buscou identificar fatores críticos no trato dos advogados populares com a justiça brasileira para com isso discutir o grau de permeabilidade da justiça às demandas e expectativas dos setores populares e por conseguinte os seus déficits democráticos Nesse contexto três fortes tensões se destacaram lançando luz sobre as complexidades do sistema judiciário no contexto brasileiro Uma das tensões observadas está associada à indiferença da justiça em relação às mudanças normativas concretas que favoreceriam os setores populares Mesmo com alterações significativas no arcabouço normativo do país a favor desses setores a justiça muitas vezes não demonstra a devida sensibilidade para incorporar e promover essas mudanças Isso coloca em questão a capacidade do sistema judiciário de se adaptar às transformações sociais e de atender às demandas da população Outra tensão significativa emerge dos vínculos entre a justiça e as estruturas de poder Esses vínculos podem comprometer a imparcialidade da justiça e levantar questionamentos sobre sua capacidade de promover uma distribuição equitativa de justiça A influência de forças externas sobre o sistema judiciário pode minar a confiança do público na instituição e afetar negativamente a percepção de sua legitimidade A terceira tensão abordada diz respeito às estratificações e hierarquias que persistem dentro das próprias profissões jurídicas Essas hierarquias podem refletir preconceitos e desigualdades presentes na sociedade em geral O preconceito contra os advogados populares por parte de colegas que não estão envolvidos nessa forma de advocacia destaca a complexidade das relações de poder dentro da comunidade jurídica A partir de uma perspectiva heurística essas descobertas lançam dois desafios importantes ou no mínimo apresentam duas possibilidades de inovação analítica Primeiramente apontase para a necessidade de examinar as relações de poder que moldam a organização e o funcionamento da justiça Compreender como essas relações afetam as decisões e ações judiciais é crucial para uma análise mais completa do sistema Em segundo lugar há a importância de incorporar nas análises as histórias e o cotidiano dos demandantes da justiça Pesquisas futuras podem explorar as histórias não apenas dos advogados populares mas também de outros atores que compõem o cenário do acesso à justiça no Brasil Isso inclui investigar as perspectivas da Defensoria Pública e também dos indivíduos e grupos que estão no limiar da justiça Além de suas potenciais contribuições teóricas e metodológicas para um debate mais sociológico essas conclusões têm implicações políticas substanciais Elas revelam que a mensagem transmitida pela justiça aos setores populares que buscam o acesso para expressar suas demandas ecoa o veredito do porteiro no episódio de Kafka É possível mas agora não Isso indica uma desconexão entre a retórica democrática da justiça e a realidade enfrentada pelos setores populares Claro está que em sua atuação diária os advogados populares buscam criar alternativas para contornar os obstáculos que encontram Sua perseverança em interpelar a justiça aponta para um comprometimento significativo em promover mudanças mesmo em meio às complexidades e limitações do sistema judiciário Essa postura destaca a importância contínua da advocacia popular na busca por justiça social e democratização

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