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Texto de pré-visualização

José Sérgio Fonseca de Carvalho EDUCAÇÃO UMA HERANÇA SEM TESTAMENTO 2015 RESUMO Embora voltada prioritariamente para o campo do pensamento político a obra de Hannah Arendt tem despertado grande interesse entre educadores intelectuais e profissionais de educação nas últimas décadas Essa notável repercussão de seu ensaio sobre a crise da educação pode ser atribuída ao menos em parte à originalidade de sua perspectiva analítica e ao vigor de suas críticas ao projeto de modernização da educação Suas reflexões sobre esse tema conquanto escassas e esparsas representam uma radical inovação em relação à forma pela qual os discursos pedagógicos tendem a analisar por exemplo os vínculos entre educação e política ou o problema do significado da autoridade como elemento estruturador das relações educativas Por outro lado por suporem uma razoável familiaridade com sua complexa rede teórica e conceitual muitas das alegações apresentadas em seu ensaio sobre A crise na educação têm sido frequentemente sujeitas a toda sorte de controvérsias e incompreensões A presente obra procura elucidar a trama conceitual subjacente aos esforços de Arendt no sentido de compreender o impacto da ruptura da tradição na tarefa precípua da educação a iniciação dos mais jovens em um mundo comum de heranças simbólicas e materiais cujo cultivo representa simultaneamente um compromisso com sua durabilidade pública e uma condição para sua renovação Mas os ensaios aqui reunidos não se limitam a dar um panorama de suas reflexões sobre o tema Eles incidem ainda sobre um complexo conjunto de problemas que emergem do diálogo entre a leitura das obras de Arendt e os dilemas impasses e incertezas da experiência de educar e formar professores no mundo contemporâneo Por essa razão neles convoco outros pensadores e evoco novos acontecimentos sempre com o propósito de expandir as reflexões de Arendt a campos e territórios aos quais elas originalmente não se destinavam como no caso dos vínculos entre a atividade educativa e a liberdade ou no do sentido da formação humanista na constituição do sujeito e em sua inserção no domínio público Mais do que ao conteúdo literal de seus escritos sobre o tema procuro ser fiel à atitude para a qual as reflexões de Arendt nos convidam o exercício do pensamento como forma de se reconciliar com a experiência de viver em um mundo no qual o passado cessou de lançar luz sobre o futuro e os homens se veem compelidos a buscar novas categorias para compreender sua condição presente SUMÁRIO Introdução 6 I A formação escolar numa sociedade de consumidores 12 II Política e educação em Hannah Arendt distinções relações e tensões 33 III Autoridade e educação o desafio em face do ocaso da tradição 52 IV Educação e liberdade da polêmica conceitual às alternativas programáticas 74 V A experiência escolar ainda tem algum sentido 103 Referências 110 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento A Diana Moana e Hannah com quem decidi compartilhar o tempo que me for dado A Tereza in memorian que comigo compartilhou o tempo que lhe foi dado José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento AGRADECIMENTOS Ao CNPq e à Fapesp pelas bolsas de produtividade e pesquisa no exterior que viabilizaram a elaboração deste trabalho Ao CSPRP pela acolhida como pesquisador convidado na Universidade de Paris VII durante o ano letivo de 20112012 A Adriano Correia André Duarte Diana Mendes Étienne Tassin Fina Birulés Martine Leibovici Maurício Liberal e Vanessa S Almeida pelas observações conversas e leituras críticas que de diversas maneiras me ajudaram ao longo da elaboração deste trabalho Aos companheiros do Geepc da Feusp Aline Ferreira Anyele Lamas Ariam Cury Crislei Custódio Eder Marques Loiola Érica Benvenutti Letícia Venâncio Roberta Crivorncica Thiago de Castro e Thiago Miranda cuja amizade e dedicação aos estudos de filosofia da educação têm me dado alegria e entusiasmo A Helena Meidani pela revisão José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 6 INTRODUÇÃO Refletir sobre problemas e impasses da educação contemporânea a partir de um diálogo com a obra de Hannah Arendt nos coloca uma série de dificuldades A primeira delas diz respeito ao caráter esparso desse tema em sua obra Por vezes ele aparece de forma incidental em seus ensaios políticos como no caso de A crise da cultura seu significado político e social 2006 p 194222 Noutras é retomado ainda que de forma breve e marginal em suas notas de aulas e textos de conferências da década de 1960 como na publicação póstuma Algumas questões sobre filosofia moral 2004 p 112212 Seria ainda possível incluir nesse pequeno rol suas polêmicas Reflexões sobre Little Rock 2004 p 261280 nas quais Arendt analisa a implantação de uma política de integração étnicoracial em escolas estadunidenses embora para importantes comentaristas o tema central desse artigo não seja a educação mas a distinção entre os domínios político e social cf May Kohn 1996 Na verdade é apenas num ensaio de 19581 que Arendt aborda específica e rigorosamente a formação educacional como um problema político de primeira grandeza Acrescese que além de pouco frequentes as reflexões da autora sobre educação são extremamente intricadas e costumam pressupor uma razoável familiaridade do leitor com a complexa teia conceitual de que ela se vale em seus exercícios de pensamento político2 o que tende a dificultar sobremaneira sua compreensão Como entender por exemplo sua proposta de radical separação entre os domínios educação e da política sem a clara percepção do sentido estrito com que ela usa essas duas noções Como por outro lado admitir o postulado divórcio entre os dois domínios se em Arendt o sentido da educação não se separa do compromisso político para com a conservação e a renovação de um mundo comum por meio da iniciação de crianças e jovens na herança material e simbólica de uma comunidade cultural E ainda como aterse ao sentido histórico que ela atribui à prática educativa 1 Tratase é claro de A crise na educação publicado inicialmente na Partisan Review e posteriormente incluído em Between the past and the future eight exercises in political thought New York Penguin 2006 2 Tratase do subtítulo de Entre o passado e o futuro José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 7 num mundo que se mostra fragmentado pelo isolamento político típico de uma sociedade de consumidores e paradoxalmente homogeneizado pela força da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa A despeito de todas essas dificuldades sua obra tem despertado um interesse notável e crescente entre educadores intelectuais e profissionais de educação É provável que esse recente prestígio decorra pelo menos em parte do fato de que em Arendt a crise na educação não é concebida como decorrente de qualquer suposta obsolescência técnica das práticas pedagógicas Daí porque a frenética sucessão de novas pedagogias e metodologias de trabalho é por ela vista antes como um sintoma da crise do que como sua potencial solução Tampouco seria o caso para Arendt de se conceber a crise na educação como reflexo imediato de determinações exteriores ao campo como se ela não passasse de mero epifenômeno de uma crise no modo de produção que uma vez superado implicaria diretamente a solução dos impasses educacionais que hoje vivemos Ao pensar a crise na educação Arendt não a desvincula das mudanças políticas e culturais que marcaram a emergência do mundo moderno mas não deixa de ressaltar o caráter peculiar e inusitado de seus desafios na sociedade contemporânea o problema da educação no mundo moderno reside no fato de ela não poder abrir mão pela peculiaridade de sua natureza nem da autoridade nem da tradição mas mesmo assim ser obrigada a caminhar em um mundo que não é estruturado pela autoridade nem mantido coeso pela tradição Arendt 2006 p 191 tradução nossa grifos nossos A compreensão da especificidade dessa crise que é do mundo moderno e que se espalha e toma forma própria na educação exige que pensemos tanto o significado das transformações políticas e culturais da era e do mundo moderno3 quanto o significado e a natureza da educação que para Arendt decorre da natalidade do fato de que o nascer de cada criança representa simultaneamente que há um novo ser no 3 Já no prólogo de A condição humana Arendt alerta para a diferença que estabelece entre a era moderna o período histórico que se inicia por volta do século XVII e o mundo moderno que em seus escritos se refere especificamente às experiências políticas e ao modo de vida que marcaram o século XX José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 8 sempiterno ciclo vital da natureza mas que há também um ser novo no mundo dos homens Esse mundo para o qual a criança nasce não coincide com o planeta Terra como ambiente natural em que o vivente humano encontra as condições biológicas que lhe permitem conservar e reproduzir a vida Ele é antes uma criação do artifício humano um legado de realizações materiais e simbólicas objetos instituições práticas princípios éticos tradições políticas crenças saberes nas quais os recémchegados crianças e jovens devem ser iniciados por meio da educação É pois pela educação que esse legado público de realizações históricas se transforma para cada criança num legado que é seu que lhe pertence por direito e que por meio da educação pode vir a lhe pertencer de fato Assim enquanto na qualidade de vivente nascemos integrados a um ciclo vital do qual somos parte e no qual nos fundimos na qualidade de homem mundano nascemos estrangeiros em relação a um mundo preexistente que abandonaremos ao morrer Por isso cada um de nós é um ser novo no mundo embora sejamos simplesmente mais um novo ser no ciclo vital Cada um é um ser singular na pluralidade de homens que habitam um mundo embora só mais um membro de uma espécie que se repete do ponto de vista da reprodução orgânica da vida E é por pertencermos a um mundo e nele sermos capazes de agir política e historicamente que somos sujeitos ou para ser fiel à terminologia arendtiana agentes reunidos num mundo comum e não apenas indivíduos pertencentes a uma mesma espécie Cada ser novo no mundo é um novo alguém um alguém distinto de todos aqueles que nele estiveram antes ou que o sucederão na continuidade desse mundo É pois a educação em seu sentido lato que imprime a cada existência individual a potencialidade de pertencimento a uma comunidade histórica e cultural ou seja a um mundo comum Comunidade histórica porque o mundo não é meramente algo que compartilhamos com aqueles com quem convivemos aqui e agora no espaço ou no tempo de nossa breve existência individual Ele representa antes o vínculo com um legado que José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 9 transcende a duração de nossa vida tanto no passado como no futuro que preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência É o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco mas também com aqueles que aqui estiveram antes e os virão depois de nós Arendt 2010 p 67 Por isso a educação situase entre o passado e o futuro entre um mundo comum e um sujeito que lhe é estranho entre a tradição e a ruptura Afirmar a existência de uma crise nas formas e sobretudo no sentido público que atribuímos a esse processo de iniciação em um mundo comum não implica para Arendt asseverar necessariamente seu declínio ou degeneração como pode sugerir o uso corrente dessa expressão O conceito de crise em Arendt nos remete antes a alguns dos usos primeiros que o termo grego κρίση krisis comporta ação de separar distinguir escolha seleção ação de julgar decidir donde sua vinculação etimológica com o termo κριτήριο kriterion que poderia ser definido como critério faculdade de julgar ou norma para discernir o verdadeiro do falso4 A crise emerge pois da ruptura da tradição da falta de experiências comuns e de significações compartilhadas que nos apresentam critérios por meios dos quais por exemplo discernimos o verdadeiro do falso julgamos algo belo ou feio etc Por isso o desaparecimento do sentido comum nos dias atuais ou seja o esvanecimento de critérios comuns e compartilhados de julgamento estético ou de validação epistemológica por exemplo é o mais claro sinal da crise Em toda crise é destruída uma parte do mundo alguma coisa comum a todos nós O desaparecimento do sentido comum aponta como uma vara mágica para o lugar onde ocorreu tal desmoronamento Arendt 2006 p 175 tradução nossa Nesse sentido afirmar a existência de uma crise na educação significa inicialmente reconhecer que perdemos as respostas sobre as quais nos apoiávamos no que concerne aos procedimentos às escolhas e sobretudo ao significado público que atribuímos ao processo educacional o que ensinar como em nome de que educar Significa ainda que perdemos os critérios aos quais acreditávamos poder recorrer na busca de tais respostas que não compartilhamos regras ou princípios que possam nos 4 Cf Dicionário gregoportuguês v 3 São Paulo Ateliê 2008 p 94 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 10 guiar nessas decisões urgentes Mas não significa necessariamente decadência declínio ou desastre uma crise só se torna um desastre quando a ela respondemos com julgamentos preconcebidos isto é com preconceitos Uma atitude como essa não apenas aguça a crise como nos priva da experiência do real e da oportunidade que ele nos proporciona de refletir Arendt 2006 p 171 tradução nossa Assim para Arendt a ruptura da tradição o desaparecimento de experiências comuns capazes de fornecer critérios compartilhados de julgamentos a moderna dissolução das comunidades políticas em favor de uma sociedade de indivíduos e mesmo a perda do vigor da vida pública não são por si sós capazes de retirar dos homens as faculdades de pensar e de julgar de pôr em questão os significados pessoais e políticos de suas práticas e a razão de ser de suas lutas Nesse sentido mais do que o resultado daquilo que por ela foi pensado o convite ao pensamento parece ser o maior legado de Arendt para quem tem na educação pública um objeto de preocupação teórica e um compromisso políticoexistencial Os ensaios que compõem esta obra não pretendem apresentar uma síntese da diversidade de problemas e da riqueza das reflexões de Arendt sobre o impacto da crise do mundo moderno no campo da formação educacional Eles incidem sobre problemas que emergem do diálogo entre a leitura das obras de Arendt e dilemas impasses e incertezas da experiência de educar e formar professores no mundo contemporâneo E por essa razão convocam outros pensadores evocam novos acontecimentos criam novos diálogos Tratase de uma opção que comporta riscos e cria vulnerabilidades pois naqueles que se esforçam no sentido de estabelecer um diálogo de pensamento entre pensadores alertanos Heidegger 1953 p IX maiores são os perigos de fracassos mais numerosos os riscos de lacunas Os riscos assumidos aqui terão sido plenamente justificados se a leitura destes exercícios de pensamento em educação convidarem a novas reflexões se tal como um moscardo socrático ensejarem seus interlocutores a examinar por si mesmos os temas e as questões evocadas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 11 Breve nota sobre os ensaios aqui apresentados Os cinco ensaios ora apresentados incidem sobre pontos cruciais das reflexões de Arendt acerca da crise moderna da educação Dois de seus temas o impacto do advento de uma sociedade de consumidores nos discursos e nas práticas educacionais e os vínculos entre formação escolar e a liberdade como atributo da vida política haviam sido abordados em textos anteriores5 embora tenham sido substancialmente modificados para a presente obra Já os temas do lugar da autoridade nas relações educativas das distinções e relações entre política e educação e do idael de uma formção humanista cultura animi a despeito de sua relevância nas reflexões de Arendt só apareceram incidentalmente em publicações anteriores A busca aqui empreendida de uma análise sistemática de seu significado no pensamento de Arendt e de algumas lacunas em sua perspectiva procura responder a essa inanidade Embora relativamente autônomos os ensaios guardam estreita relação entre si e por vezes pressupõem uma elucidação conceitual apresentada em um capítulo anterior Ainda assim creio que possam ser lidos como unidades independentes As citações da obra A condição humana foram feitas a partir da edição de 2010 revista por Adriano Correia Já no caso da obra Entre o passado e o futuro preferi recorrer à edição norteamericana de 2006 e a fim de evitar algumas imprecisões e omissões que poderiam comprometer a compreensão de certos trechos optei por uma tradução própria embora tenha sempre me preocupado em cotejála com a edição brasileira e me esforçado por aproveitála ao máximo 5 São eles O declínio do sentido público da educação e A liberdade educa ou a educação liberta Carvalho 2013 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 12 I A FORMAÇÃO ESCOLAR NUMA SOCIEDADE DE CONSUMIDORES uma sociedade de consumidores não é capaz de saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem exclusivamente ao espaço mundano das aparências porque sua atitude fundamental em relação a todos os objetos a atitude do consumo espalha a ruína em tudo aquilo que toca Hannah Arendt Apresentação A partir do final da década de 1970 a Europa empreendeu um intenso esforço político que visava renovar procedimentos pedagógicos e objetivos educacionais de seus sistemas de ensino vinculandoos cada vez mais diretamente aos ideais de um acelerado processo de transformação social e econômica Num texto de 1979 Claude Lefort analisou o significado político dessas reformas modernizantes e em tom irônico ressaltou o paradoxo que engendram o que há de notável num tempo como o nosso em que nunca antes se falou tanto de necessidades sociais da educação em que nunca antes se deu tanta importância ao fenômeno da educação em que os poderes públicos nunca antes com ela se preocuparam tanto é que a ideia éticopolítica de educação se esvaiu 1999 p 219 grifo nosso Mais de trinta anos depois a então almejada modernização pedagógica parece dominar os discursos educacionais em escala global A exemplo de dezenas de países o Brasil incorporou seu jargão em documentos normativos como as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais e adotou seus objetivos e conceitos nas políticas de avaliação do rendimento escolar A retórica sobre as supostas necessidades econômicas de um sistema educacional de qualidade se consolidou e tornouse tema recorrente na mídia em campanhas eleitorais e discursos de governantes Simultaneamente o discurso republicano clássico historicamente identificado com a fundação dos sistemas nacionais de ensino passou a soar cada vez mais distante e anacrônico Embora não completamente esquecido o ideal de uma formação voltada para o cultivo das chamadas virtudes públicas parece perder progressivamente sua José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 13 força como princípio capaz de inspirar práticas pedagógicas ou como ideal regulador de políticas públicas em educação A busca pela compreensão dos condicionantes históricos e sociais dessa transformação costuma apontar fatores internos ao campo educacional como deficiências na formação de professores e o caráter tecnicista do currículo e das políticas públicas contemporâneas De fato aspectos como esses podem ter grande impacto no significado que atribuímos às práticas pedagógicas e no modo pelo qual estabelecemos metas e objetivos educacionais mas não dão conta da complexidade do fenômeno de que tratamos Por isso convém não nutrir a expectativa ingênua de que o esvanecimento de um sentido éticopolítico da atividade educativa pode ser detido por meras reformulações nas diretrizes para a formação de professores ou por políticas de reinserção e valorização das humanidades no currículo escolar por mais desejáveis que estas possam ser Afinal as transformações nesses âmbitos parecem antes confirmar tal esvanecimento que explicar sua gênese ou desvelar seus condicionamentos históricos e sociais Nestas reflexões procuramos compreender esse declínio do sentido público da educação ou do progressivo esvanecimento da ideia éticopolítica de educação como propõe Lefort a partir de um fenômeno exterior ao campo pedagógico mas cujas consequências nele se fazem sentir diretamente Examinamos o impacto no âmbito da educação escolar da crescente e contínua diluição das fronteiras entre os domínios público e privado e a ascensão de uma sociedade de consumidores no mundo contemporâneo O que procuramos mostrar é a existência de uma estreita relação entre a submissão dos discursos educacionais aos imperativos econômicos e a perda de seu significado éticopolítico A emergência e a consolidação dos discursos pedagógicos que proclamam como ideal educativo o desenvolvimento de competências e capacidades individuais ou aqueles que se referem à formação escolar como um investimento em capital humano são exemplos frisantes das transformações que se operam nas proposições de políticas educacionais na adoção de reformas pedagógicas e nos meios e recursos a partir dos quais se pensam orientam e avaliam as práticas educativas Para uma análise mais detida dessa tese examinaremos a gênese históricoconceitual das noções José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 14 de público e privado para depois mostrar sua diluição na sociedade de consumo e avaliar o impacto dessa diluição no âmbito dos discursos que atribuem um sentido e um lugar social à atividade educativa O público o privado e a sociedade de consumidores Tornouse lugarcomum apontar a existência de uma crescente tensão entre os domínios público e privado suas fronteiras e características Há discursos que em tom apreensivo denunciam um declínio e mesmo o eventual desaparecimento do primeiro como resultado do que seria uma crescente privatização de todas as esferas da vida em nossa sociedade Noutro viés ideológico falase numa incontornável ineficiência do setor público em comparação à agilidade da iniciativa privada A evocação dos termos em que se apresenta essa controvérsia basta para sugerir que a dicotomia público x privado há tempos não se resume a contendas acadêmicas habitando já o universo discursivo cotidiano É provável que nesse uso habitual nossas referências sejam suficientemente claras para os propósitos mais imediatos da comunicação informar persuadir ou emitir uma opinião Contudo não é difícil darse conta de que a polissemia dos termos pode gerar ambiguidades e imprecisões comprometendo a aparente clareza de seu uso habitual Não é raro por exemplo que o adjetivo público seja direta e exclusivamente identificado com o que é instituído ou mantido pelo Estado como uma escola pública ou um hospital público Mas a criação e o financiamento estatal garantem o caráter público de uma instituição Um banco criado e mantido pelo Estado deve necessariamente ser considerado uma instituição pública ou seria apenas uma empresa ou organização que funciona de acordo com os padrões do domínio privado ainda que a partir de recursos públicos Em caso afirmativo pode então haver uma instituição que do ponto de vista de sua propriedade seja um patrimônio público mas da perspectiva de seu funcionamento produto ou acesso seja uma organização privada Estatal sempre equivale a público ou o interesse do Estado pode entrar em conflito com o interesse público José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 15 Talvez a vinculação imediata entre público e posse estatal assim como entre privado e propriedade particular tão recorrente a partir da era moderna seja uma das formas mais corriqueiras de se definirem os termos da dicotomia mas ela é bastante problemática já que ignora a complexidade dos fatores envolvidos em prol de um aspecto isolado que é incapaz de fornecer bases para o estabelecimento de distinções e relações fundamentais entre os dois domínios Ora há objetos simbólicos que não são propriedade nem pública nem privada embora sejam correntemente concebidos como bens públicos como é o caso da língua de uma nação A língua portuguesa como o tupi não é em sentido estrito propriedade ou posse de ninguém embora seja vista como um bem simbólico comum e público Tampouco seu caráter público deriva de qualquer sorte de vínculo ou controle estatal mas antes do fato de ser um objeto da cultura comum de um povo Exemplos como esse poderiam se multiplicar e diversificar No entanto basta essa breve evocação do caráter público de um saber comum para ressaltar que ao invés de elucidar o critério mais recorrente para o estabelecimento de distinções e relações entre os domínios público e privado tende a obscurecer suas especificidades Essa confusão por sua vez não decorre apenas da falta de uma informação ou de uma fragilidade teóricoconceitual como poderia ser o caso do uso vago ou impreciso de conceitos como inércia ou classe social Ela revela um aspecto marcante da experiência política no mundo contemporâneo a indistinção entre esses dois domínios da existência humana Como pois pensar a distinção entre domínios que se apresentam sobrepostos e indistintos em nossa experiência cotidiana No quadro do pensamento político de Hannah Arendt6 esse esforço de elucidação conceitual nos remeterá à busca do 6 A distinção arendtiana entre os domínios público e privado não deve ser tomada como a enunciação de uma dicotomia rígida e estanque o que obscureceria seu necessário caráter relacional dinâmico e interdependente Como salienta Duarte é preciso caracterizar as inúmeras distinções conceituais propostas por Arendt ao longo de sua obra pensandoas sempre em seu caráter relacional isto é sob a pressuposição de que aquilo que se distingue mantém uma relação intrínseca com aquilo de que se distingue de modo que a própria exigência arendtiana de estabelecer distinções implica o reconhecimento de que na vida política cotidiana o limite jamais é absoluto mas sempre tênue e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 16 sentido primeiro da experiência política que os criou a da polis democrática pré filosófica Esse retorno a uma experiência política fundadora não deve ser tomado como signo de nostalgia ou melancolia como sugerem algumas leituras de sua obra7 Ele repousa antes na convicção de que a formulação primeira de certos conceitos pode trazer a significação fundamental das experiências políticas que lhes deram origem de forma que a compreensão de um acontecimento histórico venha a se tornar um elemento potencialmente fecundo para iluminar aquilo que no presente se mostra obscuro ou indistinto Assim Arendt recorre à experiência da Atenas democrática não por nostalgia nem por um interesse fundamentalmente historiográfico num aspecto do passado mas a partir da constatação de um problema que emerge da experiência política contemporânea o fato de que no mundo moderno os dois domínios público e privado constantemente recobrem um ao outro como ondas no perene fluir do processo da vida Arendt 2010 p 40 Assim o que leva Arendt a buscar nas experiências políticas préfilosóficas uma base para sua análise teóricoconceitual são os problemas de uma sociedade de produção e consumo cujo crescimento transforma a esfera pública em mera administradora dos interesses privados e estes na única preocupação comum entre os homens Para a autora no contexto da democracia ateniense os domínios público e privado constituíram uma relação de oposição e complementaridade de distinção entre necessidade e liberdade de tensão entre a fluidez que a tudo consome na manutenção do ciclo vital e a busca de permanência e durabilidade num mundo erigido pelo artifício humano Nessa perspectiva a instituição de um domínio público na polis não decorre direta e imediatamente do caráter gregário da espécie humana nem representa uma extensão das preocupações e características da vida privada sujeito à contaminação e ao deslocamento 2009 p 134 grifos do original Evidentemente essa observação se aplica a todas as outras distinções a que nos referimos aqui 7 Gerard Lebrun 1983 e Renato Janine Ribeiro 2001 por exemplo criticam o pensamento de Arendt a partir dessa perspectiva Contudo como ressalta Correia Arendt retorna aos gregos não pela nostalgia de uma era política ideal mas por julgar que a despeito da fragilidade política de Atenas inaugurouse naquele momento uma dimensão da existência humana até então desconhecida voltada à liberdade 2010 p XXXII José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 17 A capacidade humana de organização política não apenas é diferente dessa associação natural cujo centro é o lar oikia e a família mas encontrase em oposição direta a ela O surgimento da cidadeEstado significou que o homem recebera além de sua vida privada uma espécie de segunda vida o seu bios politikós Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio idion e o que lhe é comum koinon8 Arendt 2010 p 28 Assim a esfera privada ligada à casa e aos laços familiares vinculavase à dimensão vital da existência humana zoe9 aos esforços para atender às necessidades da vida para criar formas de garantir a sobrevivência individual e a continuidade da espécie Seu traço distintivo residia no fato de que nesse âmbito da existência na qualidade de meros viventes os homens eram compelidos a se associar em função das carências e necessidades impostas pela dinâmica do ciclo vital Por isso a comunidade natural do lar decorre da necessidade e a ela permanece ligada enquanto a criação de uma comunidade política e a constituição de um espaço público capaz de abrigála testemunha a liberdade como desígnio político da ação humana O domínio do privado é também por excelência aquele que abriga as atividades humanas cujos produtos serão imediatamente consumidos no ciclo incessante de geração manutenção e perpetuação do organismo em seu metabolismo com a natureza o trabalho labor10 A atividade de cozinhar por exemplo é fundamentalmente uma modalidade de trabalho já que seu produto a refeição 8 Jaeger Werner Paideia III 1945 p 111 9 No início de seu ensaio O conceito de história Arendt faz uma distinção entre os termos gregos bios e zoe ambos frequentemente traduzidos para as línguas latinas indistintamente como vida A mortalidade do homem reside no fato de que a vida individual uma bios com uma história de vida reconhecível entre o nascimento e a morte uma biografia emerge da vida biológica zoé Arendt 2006 p 42 Bios referese pois ora à existência singular de um homem ora a um modo de vida como nas expressões bios politikos ou bios theoretikos que designam duas formas de existência dedicadas respectivamente aos negócios da vida comum da cidade polis ou à busca da contemplação da verdade Já zoé é a vida nua a dimensão primeira e biológica que os homens compartilham com todos os demais viventes 10 Em A condição humana Arendt se refere ao trabalho labor à obra work e à ação action como as três atividades fundamentais da vita activa A distinção entre labor e work inusitada como ela mesma reconhece tem gerado inúmeras polêmicas cujo exame escapa aos propósitos desta reflexão Importa contudo ressaltar que Arendt usa o termo work como equivalente ao grego poiesis que indica a ação de fabricar a confecção de um objeto artesanal de natureza material ou intelectual como a poesia Da mesma forma ação action visa traduzir o termo grego práxis agir cumprir realizar até um fim usado nos campos ético e político Assim enquanto na poiesis o objeto criado e seu artífice são distintos e separáveis na práxis não a ação revela quem o agente é José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 18 destinase a ser consumido no esforço de manutenção da vida individual e da espécie O caráter efêmero dos bens de consumo gerados pela atividade do trabalho os encerra num movimento circular de fusão entre o homem em sua dimensão de ser vivente de animal laborans e o espaço vital em que ele se desenvolve e se renova perpetuamente Esse processo de consumo e reprodução de esgotamento e regeneração aprisiona o vivente numa temporalidade circular da qual participa e na qual se funde como uma árvore que se alimenta de elementos do solo até que com sua degeneração e morte a ele venha a se integrar passando a servir de alimento para novas árvores Já o domínio público surge a partir da constituição de um mundo comum que não se confunde com o espaço coletivo vital e natural onde a espécie humana e seus viventes individuais lutam pela sobrevivência em meio a outras espécies e outros indivíduos Tratase antes de um conjunto interligado de objetos instrumentos instituições linguagens costumes enfim de um mundo criado pelo artifício humano um mundo que adentramos ao nascer e que deixamos ao morrer Um lar imortal no qual se desenrola a existência bios e não apenas a vida zoe de cada novo homem que o adentra É por também participar de um mundo que a existência singular de cada novo homem rompe a temporalidade circular do ciclo vital e instaura a linearidade como signo da mortalidade humana A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte advém da vida biológica Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo de seu movimento que por assim dizer trespassa o movimento circular da vida biológica É isto a mortalidade moverse ao longo de uma linha reta em um universo em que tudo o que se move o faz em um sentido cíclico Arendt 2010 p 2223 Desse modo para que a vida de um indivíduo da espécie humana possa se transformar na existência de um alguém em sua unicidade incontornável é preciso que ao processo circular da natureza se sobreponha a condição especificamente humana de pertencimento a um mundo de vinculação existencial a um universo durável de objetos criados pela fabricação e de inserção numa teia de relações José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 19 humanas Ora se o trabalho se caracteriza pela produção de bens que serão consumidos imediatamente no próprio ciclo da subsistência como a refeição é por meio da fabricação de objetos e instrumentos como uma panela que o homem é capaz de produzir bens que permanecem para além de seu uso imediato bens de uso cuja durabilidade e permanência emprestam estabilidade ao mundo Assim a capacidade de fabricar work objetos e instrumentos de produzir obras duráveis que apesar de se apoiar na matéria dada pela natureza a ela se opõem e resistem permite ao homem superar sua condição de animal laborans em favor de uma nova dimensão em sua existência a de homo faber um ser capaz de construir um mundo que abriga sua existência e transcende a vida individual de cada um de seus membros A fabricação de uma mesa por exemplo se faz a partir de um material dado pelo ciclo biológico da vida mas o transforma numa obra que o retira desse mesmo ciclo Convertida em mesa a madeira rompe a circularidade da reprodução em favor da linearidade da produção Seu destino não é mais o processo imediato de integração ao ciclo da natureza na forma de elemento do solo que um dia a alimentou mas a potencialidade de permanecer como um objeto do mundo humano até que seu desgaste ou abandono a leve de novo à condição de matéria orgânica do ciclo vital Por isso a durabilidade do artifício humano depende tanto da capacidade de criar obras quanto do reconhecimento público de seu pertencimento a um mundo comum Uma catedral um monumento ou uma mesa só podem vir a existir porque a fabricação humana retira a pedra ou a madeira do ciclo da natureza que as gerou e as consumiria e lhes empresta um novo uso e um significado comum e compartilhado Se não forem reconhecidas como obras desse mundo comum uma mesa ou uma catedral voltam a ser madeira e pedra reintegrandose ao ciclo de consumo da natureza e da vida É pois do cuidado e da durabilidade da obra humana que o mundo público retira sua capacidade de transcender as vidas individuais que abriga de vinculálas tanto ao passado como ao futuro comum Por essa razão é possível afirmar que o mundo comum preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência nele É isso o que temos em comum não só com aqueles José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 20 que vivem conosco mas também com aqueles que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao ir e vir das gerações na medida em que aparece em público É a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo Arendt 2010 p 67 Assim é em função de seu potencial caráter mundano que as obras humanas ganham durabilidade opondose ao ciclo do consumo vital ao qual estaria destinada a matéria que lhes dá origem Mas esse caráter mundano depende de sua visibilidade de sua qualidade de objeto que aparece à pluralidade de homens que habitam o mundo Enquanto o domínio privado se caracteriza pelo ocultamento e pela proteção da vida o caráter público do mundo comum vinculase à sua visibilidade ou seja ao fato de que os objetos que o compõem as relações que nele se inscrevem e os feitos e palavras pelos quais os homens nele se revelam podem ser vistos e ouvidos por todos Assim no mundo antigo a dicotomia entre os domínios público e privado encerra também a cisão entre o que é apropriado à visibilidade do mundo comum e o que dele deve ser ocultado Os mistérios da vida humana como o nascimento e a morte exigem o resguardo da privacidade assim como o amor e seus frutos que precisam ser protegidos das ameaças do mundo Mas é também esse caráter de privação que impede àqueles cuja vida se restringe ao domínio do lar e às atividades ligadas à sua manutenção como as mulheres e os escravos a possibilidade de revelarem a singularidade de seu ser em meio à pluralidade dos homens Pois é só ao aparecer no mundo público que os homens liberados da necessidade de lutar pela vida podem se encontrar com seus iguais para juntos criar manter e renovar a dimensão pública e política de sua existência seu bios politikós Entendida como um modo de existência a política não se confunde no pensamento arendtiano com o governo da sociedade mesmo que o pressuponha em algum grau Tampouco se confunde com a fabricação de uma determinada configuração social ou produtiva pois a lógica instrumental que preside os processos de fabricação de objetos não pode ser aplicada ao âmbito das relações entre os homens José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 21 sem destruir sua especificidade11 Enquanto a primeira é regida pela relativa independência entre os meios utilizados e os fins almejados na segunda a escolha dos meios vinculase imediata e diretamente aos fins que se perseguem a luta política pela igualdade por exemplo pressupõe sua promoção em cada ação comprometida com seu desenvolvimento não se trata pois de uma promessa a ser alcançada ao final do processo e para a qual qualquer meio é igualmente aceitável Em síntese a política e o bios politikós entendido como uma dimensão da existência do humano não se reduz aos meros esforços coletivos de reprodução do ser vivente nem tampouco à capacidade humana de fabricar objetos e instrumentos úteis à vida comum Ela os pressupõe mas os ultrapassa em favor de uma terceira dimensão da existência humana a capacidade de agir em meio a outros homens práxis É a ação a teia de relações que os homens estabelecem entre si ao se inserirem num espaço comum que é capaz de conferir um sentido ao mundo Reduzido à sua luta pela sobrevivência e reprodução o animal laborans permanece prisioneiro da necessidade e está sujeito a um ciclo inflexível de labutas e penas em vista de uma saciedade nunca alcançável de uma vez por todas Correia 2010 p XXVI Reduzidos à sua dimensão de fabricantes de objetos e instrumentos os homens se tornam prisioneiros da lógica instrumental em que tudo é sempre um meio para outro fim numa cadeia infinita e completamente destituída de significado próprio Porque é capaz de agir ou seja de romper os automatismos sociais e iniciar algo de novo o homem é capaz de atribuir um sentido à sua existência como um ser histórico e singular em meio à paradoxal pluralidade de seres únicos que compõem o mundo 11 Arendt destaca que diferentemente da ação e da fala a fabricação sempre implica a relação meios e fins pois essa categoria obtém sua legitimidade da esfera do fazer e do fabricar em que um fim claramente reconhecível o produto final determina e organiza tudo o que desempenha um papel no processo o material as ferramentas tudo se torna simples meio dirigido a um fim e justificado como tal Os fabricantes não podem deixar de considerar todas as coisas como meios para seus fins ou quando for o caso julgar tudo pelo critério de sua utilidade específica No momento em que esse ponto de vista é generalizado e estendido a outros campos fora da esfera da fabricação produzse a mentalidade instrumentalutilitarista banausic mentality 2006 p 212 A transposição desse tipo de mentalidade e de seus critérios para o âmbito da ação política destrói a peculiaridade desta última pois exige que ela vise a um fim predeterminado e que lhe seja permitido lançar mão de todos os meios que possam favorecer esse fim Ibidem José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 22 Diferentemente da fabricação que produz um objeto exterior a seu fabricante o produto da ação é a revelação disclosure do próprio agente que nasce como sujeito político em meio a seus iguais Revelação que só é possível porque produz e é produzida por uma comunidade de atores políticos que instituem um espaço público de ação e visibilidade que pela ação em concerto instituem a polis como sede de um mundo comum Pois o mundo não é humano simplesmente por ter sido feito por seres humanos e nem se torna humano simplesmente porque a voz humana nele ressoa mas apenas quando se tornou objeto de discursos Por mais afetados que sejamos pelas coisas do mundo por mais profundamente que possam nos instigar e estimular estas só se tornam humanas para nós quando podemos discutilas com nossos companheiros Tudo o que não se possa converter em objeto de discurso não é exatamente humano Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar e no curso da fala aprendemos a ser humanos Os gregos chamavam essa qualidade humana de philanthropia amor dos homens pois se manifesta numa presteza em compartilhar o mundo com outros homens Arendt 1987 p 31 O mundo público é pois o espaço compartilhado do discurso e da visibilidade por oposição ao do ocultamento próprio ao âmbito privado o espaço mundano da pluralidade de seres singulares por oposição à multiplicidade vital de indivíduos da mesma espécie Se a marca da esfera privada é o esforço para responder às necessidades impostas pelo ciclo vital é no domínio público que os homens podem experimentar a liberdade como um desígnio da vida política ou seja como a capacidade compartilhada com seus iguais de renovar o mundo e dar sentido à sua existência histórica singular Tratase pois de uma relação de oposição e complementaridade entre domínios e atividades que representam diferentes dimensões da existência humana Sua separação na experiência grega das polei democráticas significou a criação das condições para o surgimento da política como uma modalidade específica de existência humana Inaugurase assim uma forma de vida na qual o diálogo e a persuasão substituem a dominação e a violência como princípios reguladores da convivência criando uma esfera de existência que ultrapassa a somatória dos interesses privados e próprios de cada um idion em favor da criação de uma esfera pública e comum koinon no espaço entreoshomens José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 23 Ora é essa experiência existencial de uma dicotomia entre os domínios público e privado entre as atividades que eles abrigam e separam entre essas dimensões da existência humana que se distinguem e se complementam que parece gradativamente se obscurecer no mundo moderno Alguns aspectos dessa indistinção nos são bem familiares e imediatamente identificáveis A exposição pública de experiências tradicionalmente restritas ao âmbito da vida privada como a dor o amor o nascimento convive com a opacidade que as decisões tecnocráticas imprimem ao equacionamento de problemas de alta relevância pública e política Assim por um lado a mídia eletrônica e a impressa fazem da vida privada de celebridades assunto comum e público enquanto aquilo que por se encontrar num espaço comum entreos homens deveria ser tomado como de natureza eminentemente pública passa progressivamente a ser tomado ou como opção individual a ser preservada do confronto inerente à pluralidade do mundo comum ou como assunto de especialistas A relação que nossa sociedade mantém com o juízo estético e a apreciação da arte é paradigmática dessa tendência ou bem o ajuizamento do belo ou até do que é uma obra de arte é visto como algo restrito a uma classe de profissionais ou se trata de uma apreciação pessoal afinal gosto não se discute Há contudo uma dimensão menos perceptível dessa diluição de fronteiras entre os domínios público e privado cujas consequências parecem ser bem mais profundas Tratase do fato de que a dimensão laboral da existência humana a atividade do trabalho cujos produtos são consumidos imediatamente nos esforços pela saciedade dos desejos ou pela manutenção do processo vital ganha progressivamente espaço e visibilidade no mundo público engolfando as esferas da fabricação e da ação Como destaca Correia na atual configuração do mundo moderno Os ideais de permanência durabilidade e estabilidade do homo faber foram substituídos pelo ideal da abundância do animal laborans a vida mina a durabilidade do mundo Assim vivemos numa sociedade de operários porque somente o trabalho com sua inerente fertilidade tem a possibilidade de produzir abundância mas ao mesmo tempo por serem o trabalho e o consumo dois estágios de um só processo vivemos numa sociedade de consumidores E ao contrário de uma sociedade de escravos onde a condição de sujeição à necessidade era constantemente manifesta e reafirmada mas também contestada esta sociedade de consumidores não conhece sua sujeição à necessidade não podendo assim ser livre Correia 2003 p 239 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 24 O triunfo da lógica do animal laborans implica pois que os valores do domínio privado do cuidado da manutenção e reprodução da própria vida e do gozo e do consumo que os acompanham passam a ter visibilidade e importância pública Assim formase uma nova esfera nem propriamente pública nem privada na qual o político reduzse à administração do econômico com vistas à glorificação da saciedade e do consumo Essa nova esfera que temos identificado com a sociedade de consumidores Arendt denomina social ou por vezes simplesmente sociedade procurando destacar que se trata menos de uma comunidade política ou cultural do que de uma associação gregária cuja função é a maximização da produção circulação e consumo de bens vitais a sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência e de nada mais adquire importância pública e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública Arendt 2010 p 57 grifo nosso E assim poderíamos acrescentar extirpase da esfera pública aquilo que lhe era mais característico ser o palco da ação política Esta acaba por se identificar no mundo moderno com a administração do social ou com a atividade de governo cujas prioridades estão agora vinculadas à criação de condições de êxito da vida privada e à liberação dos homens do fardo da política Por outro lado a própria durabilidade do mundo e sua relativa estabilidade se encontram ameaçadas a partir do momento em que mesmo as obras da fabricação tendem a se transformar em objetos de consumo imprimindo aos produtos materiais e simbólicos do artifício humano um ritmo frenético de obsolescência e substituição É claro que numa organização social dessa natureza uma sociedade de consumidores num mercado de obsolescência se esvai a noção de um mundo comum que transcende a existência individual seja no passado ou no futuro O mundo deixa de ser um artifício comum a ser compartilhado entre gerações para também ele ser consumido no presente Em sua versão contemporânea não se trata de uma negação do mundo em favor de uma busca de transcendência espiritual como no caso do isolamento de um monge ou de um eremita José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 25 A abstenção das coisas terrenas não é de modo algum a única conclusão a se tirar da convicção de que o artifício humano produto de mãos mortais é tão mortal como seus artífices Isso pode também pelo contrário intensificar o gozo e o consumo das coisas do mundo e de todas as formas de intercâmbio nas quais o mundo não é concebido como koinon aquilo que é comum a todos A existência de um domínio público e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência Arendt 2010 p 67 grifo nosso Desse modo numa sociedade de consumidores estruturada na obsolescência de objetos ideias e relações o que homens passam a ter em comum não é um mundo de significações práticas e valores compartilhados mas a fugacidade de seus interesses particulares Daí porque nessa ordem a noção de bem comum como ideal regulador dos discursos e das práticas políticas é submetida a um outro princípio operativo o da administração competente de interesses particulares ou privados em conflito o que significa a submissão da ação política ao ciclo vital da produção e do consumo processo que se torna patente na supremacia do mercado nos mais diversos âmbitos de nossa existência comum Algumas das consequências políticas e econômicas dessa transformação têm sido bastante exploradas e criticadas O que interessa apresentar aqui são as profundas repercussões que a emergência de uma sociedade de consumidores tem tido no que diz respeito às formas pelas quais pensamos descrevemos e orientamos as práticas educacionais A redução do significado da formação educacional à instrumentalidade econômica e social Em seu texto sobre o impacto da crise do mundo moderno na educação Arendt 2006 ressalta o caráter duplo do nascer de cada ser humano que é sempre e simultaneamente o aparecer de um ser novo na vida e de um novo ser no mundo Em sua dimensão biofísica o nascimento vinculase ao esforço de renovação da espécie na medida em que reproduz suas formas em um novo indivíduo que vem à vida Mas o José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 26 nascer de um ser humano é também natalidade o aparecer de um novo ser que vem ao mundo de um alguém que se revelará como um ser distinto de todos aqueles que o precederam e que o sucederão neste mundo dos homens Assim ao fato físico bruto do nascimento de um novo indivíduo da espécie vem se somar a natalidade como revelação de um alguém essa capacidade especificamente humana de desvelar não só aquilo que ele é traços de identidade que compartilha com inúmeros outros ser brasileiro negro alto santista mas quem ele é No homem a alteridade que ele partilha com tudo o que existe e a distinção que ele partilha com tudo o que vive tornase unicidade e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano e essa inserção é como um segundo nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original Arendt 2010 p 220221 grifos nossos Ora a natalidade o fato de que ao agir podemos iniciar algo novo e assim tornarmonos um novo alguém só é possível por habitarmos um mundo por sermos nele acolhidos por aqueles que dele já fazem parte E embora nunca deixemos de ser em alguma medida estrangeiros nesse mundo ele é nossa herança comum é um legado que recebemos do passado e transmitiremos ao futuro Em ambos os casos sem um testamento que nos oriente definitivamente acerca de seu sentido e de seu porvir Mas a posse dessa herança simbólica e material de que se constitui o mundo exige um processo de iniciação de familiarização e de progressiva assunção de responsabilidade a educação Assim compreendida a formação educacional implica acolher e iniciar os que são novos num mundo tornandoos aptos a dominar apreciar e transformar as tradições culturais que formam sua herança simbólica comum e pública Por se tratar de uma herança cuja significação interpessoal e o caráter simbólico são compartilhados a única forma de termos acesso a ela e dela nos apropriarmos é a aprendizagem Se para nos integrarmos ao ciclo vital basta um treinamento em capacidades e competências necessárias à sobrevivência e à reprodução para tomar parte no mundo é necessária uma formação educacional José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 27 Todo homem nasce herdeiro de um legado de realizações humanas uma herança de sentimentos emoções imagens visões pensamentos crenças ideias compreensões empresas intelectuais e práticas linguagens relações organizações cânones e normas de conduta procedimentos rituais habilidades obras de arte livros composições musicais ferramentas artefatos e utensílios em resumo o que Dilthey chamou geistige Welt É um mundo de fatos não de coisas de expressões que têm significado e exigem compreensão porque são expressões de mentes humanas E é um mundo não porque tenha em si mesmo qualquer significado não tem nenhum mas porque é um todo de significações interconectadas que se estabelecem e interpretamse mutuamente E este mundo só pode ser penetrado possuído e desfrutado por meio de um processo de aprendizagem Podese comprar um quadro mas não a compreensão que dele se possa ter E chamo a este mundo nossa herança comum porque penetrálo constitui a única forma de tornarse um ser humano e viver nele é ser um ser humano Oakeshott 1968 p 243 O acolhimento dos novos num mundo preexistente pressupõe então um duplo e paradoxal compromisso por parte do educador Por um lado é preciso zelar pela durabilidade desse mundo comum de heranças simbólicas no qual ele os acolhe e inicia Por outro cabelhe cuidar para que os que são novos no mundo possam vir a se inteirar dessa herança pública apreciála fruíla e renovála É essa iniciação numa herança comum de saberes práticas conhecimentos costumes princípios enfim de obras às quais um povo atribui grandeza valor mérito ou significado público que constitui o objeto precípuo da ação educativa Por isso é só ao fazer dessa herança comum sua própria herança que cada novo alguém se constitui simultaneamente como um ser pertencente a um mundo comum e um sujeito que ao nele se hospedar é capaz de a partir de seus atos e palavras lhe imprimir uma nova configuração Como bem resume Arendt A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e com tal gesto salválo da ruína que seria inevitável não fossem a renovação e a vinda dos novos e dos jovens A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsálas de nosso mundo e abandonálas a seus próprios recursos e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós preparandoas em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum 1978 p 247 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 28 Assim concebida a educação é um elo entre o mundo comum e público e os novos que a ele chegam pela natalidade Nesse sentido o ensino e o aprendizado se justificam não exclusivamente por seu caráter funcional ou por sua aplicação imediata às demandas da vida mas por sua capacidade de se constituir como uma experiência simbólica de relação com o mundo comum Pensar a educação como uma experiência simbólica significa ultrapassar a dimensão técnica utilitária e funcional da aprendizagem reduzida ao desenvolvimento de competências para pensála em seu potencial formativo É claro que toda experiência simbólica de valor formativo decorre de algum tipo de aprendizagem mas não é qualquer tipo de aprendizagem que se constituirá numa experiência formativa A noção de aprendizagem indica simplesmente que alguém passa a saber algo que não sabia uma informação um conceito ou uma capacidade como a técnica de acentuar as palavras corretamente Mas não implica que esse algo novo aprendido o transformou em um novo alguém Uma aprendizagem só se constitui em experiência simbólica formativa na medida em que opera transformações na constituição daquele que aprende e em sua relação com o mundo É como se o conceito de formação indicasse a forma pela qual aprendizagens e experiências constituem seres ativos e singulares em interação no e com o mundo isto é sujeitos que não apenas estão no mundo mas que são do mundo Nem tudo o que aprendemos ou vivemos deixa em nós traços que nos formam como sujeitos que habitam um mundo comum e dele fazem um palco para sua existência As notícias dos telejornais o trânsito de todos os dias as informações sobre o uso de um novo aparelho uma técnica para não errar mais a crase tudo isso pode ser vivido ou aprendido sem deixar traços sem portanto nos afetar e afetar nossa relação com o mundo Uma experiência tornase formativa por seu caráter afetivo um livro que lemos um filme a que assistimos ou uma repreensão nos afeta e assim nos transforma e em nós abre uma nova forma de relação com o mundo Tratase pois de um encontro entre um evento mundano um objeto da cultura e um sujeito que ao se aproximar de algo que lhe era exterior caminha no sentido da constituição de um ser singular em meio a um mundo comum Larrosa 2000 Agamben 2005 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 29 Por terem esse caráter de encontro constitutivo os resultados de uma experiência formativa assim como os da ação política são sempre imprevisíveis e incontroláveis ficando nesse sentido necessariamente à margem de controles pedagógicos e avaliações sistêmicas É relativamente simples testar se alguém detém ou não uma informação se domina uma técnica específica Embora mais complexo é perfeitamente possível mensurar o grau em que alguém desenvolveu uma competência a partir do uso de certos instrumentos padronizáveis Mas seria possível mensurar por exemplo em que sentido e com que intensidade a apreciação de uma obra da arte teve um papel formativo para alguém Claro que a posteriori podemos estimar o impacto de uma experiência em nossa formação mas essa estimativa é muito mais próxima de um julgamento pessoal do que de uma medida padronizável pois como destaca Lefort 1992 p 213 a noção de formação acolhe a indeterminação ela não assinala limites predefinidos a seus resultados já que o que se pede daquele que aprende algo não é a mera posse de um lote de informações ou de um conjunto de capacidades técnicas mas uma forma de se relacionar com o saber E essa relação com o saber é necessariamente uma forma de relação e não de consumo ou de mero uso com o mundo com seus objetos culturais e com a teia de relações que os homens tecem entre si Ora é justamente essa sorte de vinculação entre a formação do sujeito e o caráter público do legado cultural de um mundo que tende a ser diluído na modernização pedagógica dos discursos contemporâneos Neles a educação tem sido concebida como um investimento privado o que explica por exemplo a identificação corrente em vastos setores da opinião pública entre qualidade da educação e o acesso às escolas superiores de elite supostamente responsáveis pelo êxito econômico do indivíduo ou pelo desenvolvimento tecnológico de um país Vejamos um exemplo influente desse ideário pedagógico que ao mesmo tempo em que exalta a necessidade de educação retiralhe o caráter de experiência formativa potencialmente impregnada de significação pública e política José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 30 No final da década de 1990 o economista francês J Delors relator da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI da Unesco publicou a obra Educação um tesouro a descobrir Traduzida para diversas línguas suas pretensões são audaciosas veicular a concepção de uma nova escola para o próximo milênio e fornecer pistas e recomendações importantes para o delineamento de uma nova concepção pedagógica para o século XXI Delors 2001 grifo nosso É pouco provável que qualquer outra obra recente no campo educacional tenha tido uma repercussão comparável12 Sua difusão ampla e influência marcante em políticas públicas não decorrem porém da originalidade de suas teses ou da profundidade de sua perspectiva Ao contrário bastante trivial seu conteúdo é marcado por expressões vagas que mais se assemelham a slogans cuja força persuasiva parece substituir qualquer esforço reflexivo Tomemos por exemplo os famosos quatro pilares da educação do século XXI aprender a conhecer aprender a fazer aprender a viver e aprender a ser Não obstante a anemia semântica dessas expressões elas são apresentadas como diretrizes educacionais consensuais numa infinidade de documentos em dezenas de países inclusive no Brasil Assim sua força parece derivar da mera síntese de uma perspectiva crescentemente adotada quanto ao que deve ser concebido como o valor da educação em nossa sociedade E é nesse sentido que a obra nos interessa como a marca de um programa que procura imprimir uma perspectiva econômicoutilitarista à educação Nela se afirma por exemplo que as comparações internacionais realçam a importância do capital humano e portanto do investimento educativo para a produtividade Delors 2001 p 71 grifo nosso Assim o ideal maior da educação não é o da participação e da renovação de um mundo comum e público mas o da obtenção de competências e habilidades para a produção numa sociedade de consumidores a experiência escolar deixa de ser concebida a partir de seu potencial formativo para passar a ser organizada a partir de sua suposta funcionalidade social 12 Segundo dados do buscador Google Acadêmico ela é citada em quase 20000 artigos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 31 É claro que não se pretende que um sistema educacional se desvincule das necessidades da vida ou da capacidade humana de fabricar instrumentos úteis As responsabilidades das instituições educacionais se espraiam por todas as dimensões da existência humana Cabelhe em continuidade com as responsabilidades da família proteger a vida e mesmo responder às necessidades recorrentes de seu processo e ainda iniciar os novos nos artefatos materiais e simbólicos constitutivos do mundo e úteis a seus habitantes Mas cabelhe igualmente a criação de vínculos de pertencimento e de amor ao mundo o que não significa a aceitação acrítica de sua ordem mas antes a responsabilidade política de nele vir a se inserir como agente e não simplesmente dele usufruir como consumidor Essas exigências entram em conflito umas com as outras e a manutenção de seu frágil equilíbrio é a condição para que a convivência humana não se restrinja aos esforços de manutenção e reprodução da vida para que a serventia usefulness das coisas não tome o lugar do significado meaningfulness das ações humanas em um mundo estritamente utilitário todos os fins são constrangidos a ser de curta duração e a se transformar em meios para alcançar outros fins Essa perplexidade intrínseca a todo utilitarismo pode ser diagnosticada teoricamente como uma incapacidade de compreender a diferença entre utilidade e significância que expressamos linguisticamente ao distinguir entre a fim de in order to e em razão de for the sake of A perplexidade do utilitarismo é que ele é capturado pela cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins isto é a categoria da própria utilidade O a fim de tornase o conteúdo do em razão de em outras palavras a utilidade instituída como significado gera a ausência de significado Arendt 2010 p 192 Assim a preocupação de pensar a experiência escolar a partir de suas finalidades práticas e de sua suposta relevância econômica tem posto em risco a possibilidade de se atribuir à formação educacional um significado político e existencial Notese que essa supremacia do caráter instrumental dos discursos educacionais não implica o desaparecimento de disciplinas e saberes tidos como integrantes de uma concepção humanista de formação como a literatura as artes ou a filosofia Significa antes que mesmo esses saberes e disciplinas passam a ter outro José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 32 papel o de coadjuvantes na supremacia do instrumentalismo vinculado ao mercado e à sociedade de consumidores Seus conteúdos perdem o caráter formativo e emancipador que os ideais educacionais humanistas e iluministas lhe atribuíam para se transformar também eles em meios para a constituição de competências e valores e não como objetivos do ensino em si mesmo conforme o que se lê nos Parâmetros Curriculares Nacionais PCN ensino médio 2002 p 87 Não se trata de banilos do currículo mas de vincular seu sentido ao desenvolvimento de certas características psicológicas e habilidades cognitivas tidas como necessárias pelos reclamos de uma sociedade de consumo o que os pensadores e gestores daquele modelo de ensino desconheciam é a necessidade hoje tornada explícita a partir do próprio sistema produtivo que as sociedades tecnológicas têm de que o indivíduo adquira uma educação geral inclusive em sua dimensão literária e humanista PCN ensino médio 2002 p 327 grifo nosso Assim substituise o sentido público e político da formação por seu valor de mercado O que seria a iniciação numa herança cultural pública como a filosofia ou a poesia passa a ser concebido como a transmissão de um capital cultural privado cujo valor pode ser aferido a partir de seu impacto noutras dimensões da existência em geral ligadas à produção ou ao consumo de novas mercadorias Sucede então com a atual experiência escolar aquilo que Arendt afirmava ser característico da relação da sociedade moderna com os objetos culturais mais especificamente com as obras de arte elas deixam de ser objetos de culto dotados de um sentido público para ser concebidas como objetos portadores de um valor de distinção e se transformam num meio circulante mediante o qual se compra uma posição mais elevada na sociedade ou se adquire uma autoestima mais elevada Nesse processo os valores culturais passam a ser tratados como outros valores quaisquer a ser aquilo que os valores sempre foram valores de troca e ao passar de mão em mão se desgastam como moedas velhas Arendt 2006 p 201 tradução nossa grifo nosso Ou seja perdem a faculdade que originariamente lhes era peculiar formar sujeitos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 33 II POLÍTICA E EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT DISTINÇÕES RELAÇÕES E TENSÕES Independentemente de como as pessoas respondem à questão de se é o homem ou o mundo que está em perigo na crise atual uma coisa é certa qualquer resposta que coloque o homem no centro das preocupações atuais e sugira que ele deve mudar para que a situação melhore é profundamente apolítica Pois no centro da política jaz a preocupação com o mundo não com o homem com um mundo na verdade constituído dessa ou daquela maneira sem o qual aqueles que são ao mesmo tempo preocupados e políticos não achariam que a vida é digna de ser vivida E não podemos mudar o mundo mudando as pessoas que vivem nele porque onde quer que os seres humanos se juntem em particular ou socialmente em público ou politicamente gerase um espaço que simultaneamente os reúne e os separa Esse espaço tem uma estrutura própria que muda com o tempo e se revela em contextos privados como costume em contextos sociais como convenção e em contextos públicos como leis constituições estatutos e coisas afins Onde quer que as pessoas se reúnam o mundo se introduz entre elas e é nesse espaço intersticial que todos os assuntos humanos são conduzidos Hannah Arendt Apresentação Recorrer como fizemos no primeiro capítulo às categorias e ao pensamento de Hannah Arendt a fim de alertar para o crescente esvanecimento do sentido ético e político da experiência escolar pode gerar estranhamento e perplexidade Afinal numa de suas mais controversas teses acerca da crise educacional que acomete o mundo moderno Arendt afirma a necessidade de se estabelecer um divórcio entre o domínio da educação e os domínios da vida pública e política para aplicar ao primeiro um conceito de autoridade e uma atitude em relação ao passado que lhe são apropriados mas cuja validade não se estende nem deve ser reivindicada para o mundo dos adultos Arendt 2006 p 192 Essa polêmica passagem de suas reflexões sugerindo a necessidade de uma cisão entre educação e política tem sido objeto de inúmeras críticas e contraposições notadamente entre as teorias críticas da educação para as quais o postulado divórcio nada mais seria do que uma astúcia ideológica de encobrimento do papel político da educação de seu engajamento na conservação e na reprodução de formas materiais e simbólicas de dominação Mas os problemas que ela suscita não se limitam a um confronto entre perspectivas teóricas distintas e irreconciliáveis como no caso que José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 34 acabamos de evocar Mesmo a partir de uma análise interna à sua obra emergem questões cujo equacionamento não se mostra menos complexo Como conciliar por exemplo a proposta desse divórcio com as afirmações de Arendt que vinculam a educação à renovação do mundo comum e ao cultivo do amor mundi tarefas que pressupõem um incontornável compromisso público e político Como explicar seu interesse declaradamente político e não pedagógico pela crise na educação Enfim como justificar a presença de um ensaio sobre a crise da educação numa obra classificada pela própria autora como uma modalidade de exercícios de pensamento político A complexidade dos problemas envolvidos nas relações entre o significado público da formação educacional a experiência escolar no mundo contemporâneo e os domínios da vida pública e política desaconselha qualquer tentativa de enquadramento do pensamento de Arendt nas categorias dicotômicas típicas dos discursos educacionais como a oposição entre teorias críticas e liberais ou entre pedagogias progressistas e tradicionais O que procuramos mostrar aqui é que no pensamento de Arendt o divórcio entre os domínios da educação e da política não deve ser tomado como a afirmação do caráter apolítico das instituições e práticas educacionais Tratase antes de alocar a relação pedagógica que não encerra toda a complexidade do fenômeno educativo num âmbito intermediário entre esses domínios numa esfera prépolítica que embora de grande relevância e profundo significado para a ação política com ela não se confunde em função da natureza das relações que engendra e da peculiaridade de seus princípios e de suas práticas Como no caso da distinção e da relação entre os domínios público e privado tratase de um esforço analítico para elucidar as especificidades de diversos âmbitos da experiência humana e de trazer à tona os diferentes princípios que historicamente se firmaram como elementos que impulsionam e animam a atividade educativa e a ação política O esforço de distinção não visa pois isolar cada um desses âmbitos em esferas incomunicáveis mas apenas evitar sua fusão e a decorrente confusão teórica e prática num todo indiscernível Nesse sentido ressaltar as diferenças entre essas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 35 esferas é uma das condições para pensar suas relações pois como lembra a própria autora no prólogo de A condição humana a ausência de pensamento thoughlessness a despreocupação negligente a confusão desesperada ou a repetição complacente de verdades que se tornaram triviais e vazias parece ser uma das mais notáveis características do nosso tempo Arendt 2010 p 6 grifo nosso É em resposta a essa confusão desesperada que no panorama educacional brasileiro se traduz na aceitação acrítica e na repetição complacente da máxima de que toda pedagogia é política e toda política é pedagógica13 que a interrogação acerca da natureza desses domínios de suas marcas distintivas correlações e tensões pode ser relevante para a compreensão das experiências e dos discursos educacionais contemporâneos O caráter político da crise na educação Ao longo de todo o seu ensaio sobre a crise na educação Arendt faz uma série de alusões diretas e indiretas ao caráter eminentemente político do tema que examina Embora haja nele referências recorrentes às instituições escolares e às relações que nelas se travam o objeto de suas reflexões muitas vezes ultrapassa esse âmbito específico que é a forma escolar como modalidade de educação em favor da análise de um fenômeno mais amplo e geral a natureza das relações entre adultos e crianças ou para ser ainda mais preciso o caráter específico das relações entre aqueles que já iniciados em um mundo comum têm a responsabilidade política de nele acolher os que são novos Tratase pois de um exercício reflexivo sobre nossa atitude em face da natalidade Arendt 2006 p 193 tradução nossa de um esforço no sentido de desvelar e compreender as formas pelas quais pensamos nossa relação com o passado e o futuro a partir das exigências de renovação e imortalização de um legado público de realizações históricas 13 Inspirada nas ideias de Paulo Freire a máxima se transformou no que Scheffler 1978 classifica como um slogan educacional É nessa condição de símbolo de uma perspectiva prática e de elemento aglutinador e não de um fragmento teórico que ela é aqui evocada José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 36 É esse caráter geral do problema da natalidade do influxo incessante de novos que chegam ao mundo para dele fazer um lar imortal para sua breve existência mortal que confere aos problemas da educação sua relevância pública e política Daí porque para Arendt seu exame não deve ser delegado a especialistas de um campo disciplinar específico a pedagogia mas concerne a todos os que habitam o mundo e que por ele se interessam Se a crise se resumisse à ineficácia ou à obsolescência de procedimentos didáticopedagógicos ela não teria se tornado um problema político de primeira grandeza Arendt 2006 p 170 E por ter se tornado um problema político seu exame exige reflexão e julgamento e não apenas conhecimentos técnicos e científicos Analogamente as respostas práticas a partir das quais pretendemos enfrentar seus desafios concretos não decorrem da imediata aplicação de um suposto saber especializado pois dizem respeito à política prática e como tal estão sujeitas ao acordo de muitos Arendt 2010 p 6 Isso não significa afirmar a impossibilidade de um conhecimento especializado sobre o campo da educação ou sua irrelevância para as decisões práticas Significa tão somente que transportados para o campo dos embates políticos esses conhecimentos perdem sua suposta autoridade científica para se tornar mais um dos inúmeros elementos a considerar nos esforços de persuasão em favor de uma deliberação Decisões como as relativas à amplitude do direito de acesso à educação escolar à fixação de diretrizes e programas curriculares ou à legitimidade de mecanismos e formas de seleção não repousam preponderantemente sobre argumentos pedagógicos elas são de natureza ética e política Concernem não a um grupo de especialistas num campo de saber mas a toda uma comunidade política da qual sempre representam uma viva expressão A escolha curricular por exemplo para além das razões pragmáticas que lhe possam servir de justificativa sempre significa um esforço de gerações para preservar uma forma de pensamento e seus conteúdos da ruína que lhe infligiria a inexorável passagem do tempo Assim concebida a educação constitui uma espécie de cuidado com o mundo uma maneira pela qual os homens afirmam a grandeza de algumas de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 37 suas obras linguagens e formas de compreensão E ao assim fazer atestam a capacidade que estas têm de transcender as vidas os povos e mesmo as culturas que as forjaram Nesse sentido o ensino de uma disciplina ou campo do saber como a filosofia a matemática ou a poesia sempre representa uma maneira de salvar uma parte ou um aspecto do mundo e seu legado de realizações históricas Num mundo mantido coeso pela tradição que seleciona e nomeia que transmite e conserva que indica onde estão os tesouros e qual seu valor Arendt 2006 p 5 tradução nossa as escolhas são transmitidas sem que sua legitimidade seja nem sequer posta em questão Mas onde quer que se haja rompido o fio da tradição somos impelidos a fazer julgamentos apresentar escolhas e confrontálas com outras possibilidades A ruptura da tradição e o desparecimento de um sentido comum e compartilhado common sense nos obrigam a escolhas que exigem discernimento e deliberação política pois dizem respeito não simplesmente a necessidades sociais ou preferências individuais mas à preservação de um mundo comum e público ou seja concernem à dimensão política de nossa existência O menosprezo desse princípio em favor de um suposto saber que se coloca acima da pluralidade de julgamentos e opiniões recorrente na padronização globalizada de programas e objetivos educacionais a partir de diretrizes de organismos técnicos internacionais significa a vitória da tecnocracia sobre a política e a desvalorização do domínio público como o lugar em que os homens deveriam deliberar sobre o futuro atuando politicamente no sentido mais profundo e originário do termo isto é compartilhando a palavra e fazendo da palavra política a expressão da responsabilidade inerente à ação Não é por outra razão que a tecnoburocracia que ocupou o vazio da deliberação política despreza a palavra trivializa e degrada a interação política que a palavra deveria proporcionar no propósito desgraçadamente bemsucedido no mundo contemporâneo de afirmar o caráter supérfluo do sujeito histórico como agente de transformação Silva 2001 p 249 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 38 O reconhecimento do caráter eminentemente político e não pedagógico ou técnicoburocrático das decisões e diretrizes de um sistema nacional de ensino aparece de forma clara nos comentários de Arendt acerca da influência que o ideal de igualdade de oportunidades político em sua essência exerce nos rumos da educação pública dos EUA Em sua visão a afirmação da educação como um dos inalienáveis direitos civis dos norteamericanos deriva diretamente da crença nesse princípio profundamente enraizado no temperamento político do país desde a fundação de sua república Foi a adesão generalizada ao princípio da igualdade de oportunidades que levou essa sociedade a reconhecer a educação como um direito comum e público praticamente o único dos chamados direitos sociais a ser reconhecido como tal nos EUA Esse reconhecimento por sua vez resultou num amplo esforço político de universalização do acesso a um ensino secundário de tronco único independente de qualquer tipo de seletividade supostamente meritocrática uma política educacional que cabe ressaltar é anterior e bem mais abrangente do que quase todas as iniciativas europeias e latinoamericanas na mesma direção Esse esforço político no sentido de criar mecanismos de equalização das oportunidades e minimização das diferenças se reflete também e muito diretamente nas concepções e práticas das escolas norteamericanas Estas procuram progressivamente e na medida do possível apagar as diferenças entre os jovens e os velhos entre os mais e os menos dotados finalmente entre crianças e adultos e particularmente entre professores e alunos Arendt 2006 p 177 tradução nossa E embora seja óbvio que uma das consequências dessa atitude seja o declínio da autoridade do professor não é menos óbvio para Arendt que ela encerra também grandes vantagens não só do ponto de vista humano mas também do educacional Ibidem p 177 Isso não implica ressaltese que a criação de um sistema educacional voltado para a escolarização de uma sociedade de massas tenha sido capaz de superar as desigualdades sociais daquele país Apenas torna patente uma forma possível de realização prática no campo da educação de um princípio político José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 39 Mas as consequências das ações políticas são sempre imprevisíveis e incertas Assim a forma pela qual o princípio político da igualdade foi transposto e atualizado estendendose para o campo das relações entre adultos e crianças entre os que são velhos no mundo e aqueles que pelo nascimento nele acabam de chegar resultou no agravamento da indistinção entre aquilo que é próprio de uma relação política e o que é próprio de uma relação pedagógica Noutras palavras um dos resultados da transposição dos ideais políticos modernos de liberdade e de igualdade para o campo pedagógico é a crescente indistinção entre a natureza das relações que os cidadãos travam entre si no espaço comum e público e a daquelas que presidem as relações entre professores e alunos num contorno institucional distinto e específico a escola que para Arendt não é o mundo e não deve fingir sêlo é antes a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo a fim de fazer com que a transição da família para o mundo seja possível É o Estado ou seja o mundo público e não a família que impõe a obrigatoriedade da escolarização daí que em relação à criança a escola representa em certo sentido o mundo embora de fato não o seja Arendt 2006 p 185 tradução nossa grifo nosso Mas é preciso ressaltar essa indistinção entre mundo e escola entre agir em meio a iguais e educar aqueles que são recémchegados ao mundo não surge exclusivamente como resultado de práticas escolares e ideais pedagógicos do autogoverno selfgovernment que se difundem a partir do início do século XX Ela é antes e sobretudo fruto da atitude moderna em relação ao passado Este deixa de ser concebido a exemplo do que era entre romanos e cristãos como um tempo cujo legado e as lições têm o poder de iluminar o presente Na visão moderna e iluminista é o futuro e não mais o passado o tempo forte da humanidade14 E sua plena realização ou fabricação exige uma nova educação comprometida com um modelo de sociedade previamente vislumbrado seja pelas utopias modernas seja pelo 14 A expressão é de Franklin Leopoldo e Silva 2001 p 239 ao comentar o regime de temporalidade que caracteriza o período O iluminismo nos ensinou que o futuro é o tempo forte da humanidade aquele no qual estão projetadas as expectativas decorrentes da constatação de que a humanidade progride e que quaisquer que sejam os obstáculos e até mesmo os retrocessos aparentes o progresso terminará por triunfar e por caracterizar essencialmente o percurso histórico do ser humano José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 40 sentido teleológico que se atribui ao desenvolvimento da história humana A adesão maciça dos discursos políticos e pedagógicos ao ideal rousseauniano de transformar a educação em um instrumento da política e fazer da atividade política uma forma de educação é para Arendt a mais clara expressão do triunfo dessa forma moderna de se conceberem os vínculos entre história educação e política Arendt 2006 p 173 O caráter prépolítico da relação pedagógica Mesmo que se ponha em questão a leitura que faz Arendt das relações entre política e educação em Rousseau sua apropriação pelos discursos pedagógicos do século XX confere grande pertinência às considerações da autora acerca dos problemas da indistinção entre esses dois domínios Até porque mais do que o teor preciso das concepções de Rousseau foi a repercussão pública de sua obra decorrente de sua ampla difusão que se tornou um acontecimento politicamente relevante Tomese como exemplo a formulação que esses ideais de caráter fundamentalmente programático receberam na obra de Paulo Freire Em A importância do ato de ler 1982 retomando algumas das ideias que desenvolveu ao longo das décadas de 196070 ele afirma o mito da neutralidade da educação que leva à negação da natureza política do processo educativo e a tomálo como um quefazer sic puro em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração é o ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua e outra crítica Do ponto de vista crítico é tão impossível negar o caráter político do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político p 23 grifo nosso Não se trata de uma posição isolada mas antes de uma convicção bastante generalizada no campo da educação Algumas décadas depois de suas primeiras formulações essa visão acerca das relações entre os domínios da política e da educação tornouse hegemônica também entre professores e gestores de sistemas educacionais A adesão à ideia da indissociabilidade entre a atividade educacional e a ação política ganhou tal força que o mero fato de colocála em questão causa perplexidade ou repulsa Daí o estranhamento ou a rejeição imediata e muitas vezes José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 41 irrefletida da afirmação de Arendt 2006 p 173 tradução nossa de que a educação não pode desempenhar papel nenhum na política pois na política lidamos com aqueles que já estão educados Há nessa controvérsia entre Arendt e as teorias críticas da educação duas espécies de divergência que se interpenetram mas não são idênticas Uma diz respeito ao sentido e à abrangência do termo política e outra ao próprio cerne da distinção os princípios que regem a ação política e a atividade educativa No que tange ao conceito de política vale destacar que enquanto Arendt o utiliza numa acepção bastante restrita que o distingue do caráter gerencial da noção de governo e o opõe às relações de dominação fundadas na violência nos escritos das teorias críticas seu uso é bem mais amplo abrangendo qualquer relação de poder ou de dominação Os problemas decorrentes dessa amplitude emprestada ao substantivo política ou ao adjetivo correspondente foi bem percebido por Charlot justamente numa obra dedicada à desmistificação da neutralidade política da escola é tentador pensar que a análise terminou quando se junta a palavra política a uma realidade pedagógica Ora dizer da educação ou da escola ou dos programas ou do controle pedagógico etc que são políticos não é ainda dizer grande coisa Tudo é política pois a política constitui uma certa forma de totalização do conjunto das experiências vividas numa sociedade determinada Eleições uma greve a aposta em corrida de cavalos a seca um jogo de futebol uma bofetada etc todos esses acontecimentos têm uma significação política Mas eles não são políticos da mesma maneira Alguns são políticos por definição as eleições por exemplo Outros são políticos enquanto são consequências da organização econômica social e política Outros acontecimentos são políticos porque têm consequências políticas Finalmente o sentido político de certos fatos é somente muito indireto a bofetada é um ato repressivo e podese considerar que prepara a criança para a obediência social e política mas sua significação política não é imediata nem direta Não basta portanto afirmar que a educação é política O verdadeiro problema é saber em que ela é política Charlot 1979 p 13 grifo do original Se em Charlot a política constitui uma forma de totalização do conjunto das experiências vividas numa sociedade em Arendt ela representa a invenção de uma forma específica de existência em comum que não se confunde com nenhuma José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 42 experiência associativa ou gregária da espécie humana A política não é uma necessidade da vida mas um acontecimento histórico Ela se realiza a partir do momento em que a igualdade é enunciada como princípio regulador das relações que os homens travam entre si e com a cidade polis ou a república e se materializa na existência de um espaço público capaz de abrigar e dar luz à pluralidade de seres singulares que a integram A existência desse espaço comum e povoado de iguais é précondição para que os homens experimentem a liberdade em sua dimensão tangível e pública isto é não como uma escolha privada da vontade de um indivíduo mas como a capacidade propriamente política de romper automatismos do passado e iniciar algo de novo cuja instituição e durabilidade sempre exigem a ação em concerto Como forma de existência a política inaugura para Arendt uma ruptura das práticas de dominação fundadas na desigualdade e representa a rejeição da violência em favor do predomínio da palavra da persuasão e da ação em concerto como fonte do poder Ela é nesse sentido estrito a busca incessante e nunca definitivamente realizada de dar uma resposta digna à pluralidade como condição humana porque são os homens e não o Homem que vivem na Terra e habitam o mundo Arendt 2010 p 8 Seu lugar apropriado é por excelência o mundo público esse espaço entreos homens que ao mesmo tempo em que os une impede que colidam uns com os outros E nesse ponto as distinções conceituais implicam diferenças teóricas e programáticas irreconciliáveis pois embora o princípio da igualdade possa se efetivar no plano das relações pedagógicas ele jamais o fará na visão de Arendt a partir dos mesmos meios ou com o mesmo sentido em que se efetiva no domínio público e na esfera política Na esfera prépolítica das relações entre professores e alunos podese admitir por exemplo o postulado da igualdade das inteligências como o faz Rancière 1987 mas não o da igual responsabilidade política pelo mundo No quadro de uma relação pedagógica mediada pela instituição escolar cabe ao professor assumir a responsabilidade pelo processo de iniciação de seus alunos nessa herança pública de práticas linguagens e saberes que uma comunidade política ou uma sociedade escolheu preservar por meio da transmissão escolar Apossarse dela significa a um só tempo criar laços de pertencimento a um mundo comum e desenvolver qualidades e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 43 talentos pessoais por meio dos quais cada novo ser que vem ao mundo pode revelar sua singular unicidade E é em função dessa unicidade que cada criança que vem ao mundo não é somente um estranho neste mundo mas um novo alguém que nunca aí esteve antes Arendt 2006 p 185 tradução nossa A responsabilidade política daqueles que educam é pois dupla com uma herança comum e pública de saberes instituições e relações e com os jovens que nela se iniciam com o passado em que se enraíza o mundo e com o futuro que lhe empresta durabilidade Por isso para Arendt do ponto de vista daqueles que são novos no mundo os educadores e a instituição escolar representam o mundo e por ele devem assumir a responsabilidade embora não o tenham feito e ainda que secreta ou abertamente possam querer que ele fosse diferente do que é Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos em um mundo em contínua mudança Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibila de tomar parte em sua educação Arendt 2006 p 186 tradução nossa Inerente ao ofício do professor e claro não extensiva aos alunos essa responsabilidade é a fonte mais legítima da autoridade do educador frente aos educandos é o que lhe confere um lugar institucional diferente daquele reservado a seus alunos Ora enquanto a marca do caráter político de uma relação é seu compromisso com a igualdade entre os que nela estão envolvidos a de uma relação pedagógica é o mútuo reconhecimento da assimetria de lugares como fator constitutivo de sua natureza e no limite como sua razão de ser Uma assimetria cujo destino é o progressivo e inexorável desaparecimento mas cuja manutenção temporária é a própria condição de proteção daqueles que são recémchegados à vida e ao mundo Proteção do crescimento vital que exige interdições e cuidados que requer um processo gradativo de desocultamento de aspectos do mundo que julgamos nocivos à qualidade vital dos que ainda se encontram em processo de formação Mas também proteção do livre e lento processo de desenvolvimento pessoal cuja conclusão é prérequisito para a plena participação na vida política e pública É evidente que esse José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 44 processo varia de indivíduo para indivíduo e de sociedade para sociedade mas é igualmente evidente que todas as sociedades desenvolvem marcos e ritos a partir dos quais aqueles que eram os novos e só potencialmente companheiros num mundo comum passam a ser plenamente admitidos na comunidade dos adultos e igualmente responsáveis pelo destino do mundo Essa admissão implica pois a plena responsabilização pessoal por seus atos e palavras e a responsabilização política pelos rumos do mundo no qual sua existência se desenrola daí as especificidades dos códigos civis e penais em relação às crianças e adolescentes ou as exigências de idade mínima para o pleno exercício de direitos e deveres da cidadania O fim dessa etapa formativa de iniciação ao mundo a que em sentido estrito Arendt denomina educação não implica que cesse o processo ou a capacidade de aprendizagem nem que o indivíduo se encerre numa identidade definitiva lembremos que em Arendt o agente se revela na e pela ação Ela só implica a plena admissão numa comunidade política o momento em que se deixa de ser um recémchegado ao mundo para se constituir em alguém que não só está no mundo mas que é do mundo Ora é essa proteção que se põe em risco quando se transportam mecânica e acriticamente para o âmbito das relações escolares os princípios da vida política como se as crianças pudessem constituir um mundo próprio e à parte do mundo comum e sua formação não fosse uma iniciação neste mundo mas o mero desenvolvimento de potencialidades cognitivas e psicológicas de um indivíduo Assim a pretensa politização das relações pedagógicas tem um efeito duplo e paradoxal De um lado cria um simulacro de vida pública que tende a destruir as condições necessárias ao crescimento vital e às possibilidades de desenvolvimento pessoal que antecedem a plena participação no domínio público e político De outro ao conceber seu processo não como uma forma de familiarização dos novos com um mundo comum mas como um instrumento cuja finalidade é o estabelecimento futuro de uma nova ordem política ela procura imprimir ao âmbito dos negócios humanos a lógica que preside a fabricação de objetos destituindo o presente de suas tensões e o futuro de sua imprevisibilidade Seu eventual êxito o triunfo de uma ordem social idealmente concebida para ordenar as relações entre os homens não representaria a José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 45 ampliação e valorização do domínio da política mas antes a decretação de sua superfluidade e o abandono da esperança de poder a cada nova criança que nasce reafirmar que os homens embora tenham de morrer não nascem para morrer mas para começar algo de novo e assim salvar o mundo de sua obsolescência ruína e destruição cf Arendt 2010 p 307 É precisamente nesse sentido e só nele que se deve entender o caráter conservador que Arendt atribui à atividade educativa não como uma forma de preservação de uma estrutura de dominação vigente15 mas como um exercício de zelo e cuidado com o mundo e com aqueles que nele se iniciam É desse apreço pelo mundo e pela natalidade que emana a esperança como uma das categorias fundamentais do pensamento político de Arendt Porque cada criança que nasce não é só mais um exemplar novo da espécie mas também um novo alguém a possibilidade do início de algo novo e imprevisível que se renova a cada nascimento E é em benefício dessa esperança ontologicamente radicada na natalidade que a educação não deve se confundir com a fabricação de uma nova sociedade a partir de modelos concebidos por uma geração para aqueles que a sucederão neste mundo Nossa esperança está sempre ancorada no novo que cada geração aporta mas precisamente por basearmos nossa esperança somente nisso é que tudo destruímos se nós os mais velhos tentarmos controlar os novos de tal modo que possamos ditar como deve ser seu futuro Exatamente em nome daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora ela deve preservar essa novidade e introduzila como algo novo em um mundo velho que por mais revolucionárias que possam ser suas ações é sempre da perspectiva da geração seguinte obsoleto e rente à destruição Arendt 2006 p 189 tradução nossa Há pois um sentido político16 para a recusa arendtiana da instrumentalização da relação pedagógica Sob a égide de um discurso identificado com a emancipação tentase muitas vezes arrancar das mãos dos recémchegados sua própria 15 Convém lembrar que Arendt afirma que a atitude conservadora em política aceitando o mundo como ele é procurando somente preservar o status quo não pode senão levar à destruição visto que o mundo tanto no todo como em parte é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo a menos que existam seres humanos determinados a intervir a alterar a criar aquilo que é novo 2006 p 189 16 A ideia de um sentido político para a distinção proposta por Arendt está em Benvenutti 2009 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 46 oportunidade face ao novo Arendt 2006 p 174 tradução nossa ao mesmo tempo em que se procrastina para um amanhã utópico o enfrentamento dos desafios políticos do presente Na verdade ao se atribuir à educação o lugar por excelência da construção da sociedade do futuro a política corre o risco de se transformar na mera governamentabilidade do presente com vistas à fabricação de um futuro preconcebido Assim a transformação da educação num instrumento da política também acaba por revelar a falta de vigor da própria política no mundo contemporâneo A dimensão política da experiência escolar uma lacuna nas reflexões de Arendt Mas mesmo que se reconheçam a pertinência e a profundidade das ideias de Arendt sobre a natureza prépolítica da relação pedagógica há um aspecto crucial do problema das relações entre a atividade educativa e o domínio da vida pública e política que permanece intocado em suas reflexões Tratase do fato de que embora central a relação pedagógica não encerra a totalidade da experiência escolar mas é apenas um de seus muitos componentes Enquanto a primeira se restringe a uma modalidade de interação entre professores e alunos a segunda abrange uma complexa teia de relações que se estabelecem entre os diversos agentes e as várias práticas que integram uma instituição escolar A experiência escolar diz respeito pois às formas pelas quais os alunos se relacionam entre si e com a cultura dessa instituição seus saberes conhecimentos linguagens hierarquias e toda sorte de práticas não discursivas e abrange ainda as relações dos profissionais da educação entre si e com suas áreas de saber e práticas pedagógicas Assim ela abarca uma infinidade de complexas relações e experiências formativas que se processam a partir dos vínculos entre as escolas suas práticas os alunos as famílias e os profissionais da educação As lembranças e memórias do período escolar reificadas em romances canções poemas e narrativas são testemunhos eloquentes da variedade de situações e vivências significativas que podem vir a se constituir na experiência escolar de um indivíduo ou de uma geração José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 47 Dentre as experiências que se processam a partir das relações entre alunos e instituições escolares algumas podem vir a ter uma profunda significação política apesar de transcorrer num espaço institucional que difere do mundo público e político em sentido estrito Tomemos com exemplo relevante por seu caráter predominantemente político e não pedagógico a participação discente em um conselho de escola Em princípio conferese ao aluno que dele participa um estatuto de igualdade política seu direito a opinião a voz e a voto o coloca nesse contexto específico num lugar de simetria com os demais representantes de outros segmentos da instituição É evidente que essa simetria se desfaz quando ele volta a ocupar o lugar de aluno e não mais o de membro do conselho mas se vivida e elaborada a experiência da igualdade permanece E o mesmo poderia ser apontado em outras relações que se estabelecem em grêmios e associações formais ou informais que se vinculam às escolas Mas a dimensão política da experiência escolar não se esgota nas atividades de cunho extracurricular Há também um conjunto de práticas pedagógicas stricto sensu potencialmente portadoras de significação política no processo formativo dos alunos Retomemos o exemplo das escolhas curriculares para pensar sua potencial dimensão política Ora em primeiro lugar é preciso reconhecer que elas se fazem sempre a partir de um conjunto de pressupostos culturais que atuam num duplo sentido a seleção operada no interior da cultura para e pelo ensino corresponde a princípios e a escolhas culturais fundamentais ligadas aliás às escolhas sociais que governam a organização prática do sistema educativo Assim a cultura não é somente o repertório o material simbólico no interior do qual se efetua a escolha das coisas ensinadas ela é também o princípio dinâmico o impulso o esquema gerador das escolhas do ensino É exatamente esta parece a ambivalência da noção de seleção cultural escolar que significa ao mesmo tempo seleção na cultura e seleção em função da cultura Fourquin 2000 p 38 grifo nosso Assim as opções curriculares de uma dada comunidade cultural representam uma seleção de seus saberes formas de conhecimento e linguagens mas também uma expressão dos critérios que regem essas escolhas Ora enquanto o produto da seleção é um objeto tangível e público os critérios podem permanecer na condição de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 48 pressupostos não enunciados17 Em ambos os casos contudo as escolhas se fazem a partir da aceitação e da adoção de uma multiplicidade valores e pressupostos alguns externos à escola como demandas sociais interesses econômicos princípios políticos e outros diretamente vinculados à cultura escolar como tradições disciplinares práticas pedagógicas etc Nesse sentido é evidente que não há uma escolha curricular seja em termos amplos como no caso de uma política pública seja em termos mais restritos como na seleção de um livro didático ou de uma abordagem disciplinar que não implique uma maior ou menor dimensão política18 Tomemos a título de exemplo uma mudança recente e significativa nas diretrizes curriculares nacionais a inclusão da história e da cultura afrobrasileira no currículo escolar19 Seja qual for a apreciação que se faça dessa iniciativa ou da forma pela qual tem sido operacionalizada é inegável que se trata de uma ruptura com o legado eurocêntrico que dominava as orientações curriculares até então vigentes na escola brasileira Como medida legal ela é o resultado de uma luta política travada no espaço público cujos objetivos são o reconhecimento e a valorização no currículo da escola básica da história e das culturas dos povos africanos e afrobrasileiros Nesse sentido não se deve considerála uma reforma pedagógica ela é antes o fruto de uma ação política que visa mudanças educacionais Mas essa política curricular tem consequências pedagógicas ela exige de gestores professores e demais profissionais da educação a responsabilidade por sua efetivação no plano das práticas escolares 17 A noção de pressuposto é usada aqui no sentido estrito de uma crença subjacente muitas vezes não explicitada como a noção de causalidade num discurso científico Um cientista jamais precisa enunciála pois se trata de uma assunção básica e logicamente anterior à produção de seu discurso 18 A ideia de que há um caráter político e ideológico sempre presente nas escolhas curriculares e nos materiais didáticos tem sido na verdade banalizada A mera denúncia de um suposto poder de reprodução das relações de dominação social parece muitas vezes dispensar a pesquisa empírica e a reflexão sistemática sobre o tema Em A ideologia contida nos livros didáticos por exemplo Rose M Leite afirma que para a manutenção dos sistemas políticos dominantes o livro didático ferramenta de trabalho de muitas escolas hoje é patrocinado pelo próprio poder público Apresentase como o meio que ajuda a manter essa hegemonia do poder conduzindo ainda que muito sutilmente para que não existam mudanças Tornase um meio de controle httpcelsulorgbrEncontros07dir214pdf Como entre tantos outros casos tratase de uma análise abstrata num duplo sentido Em primeiro lugar porque concebe o livro didático como uma entidade homogênea e sobretudo porque supõe poder avaliar seus efeitos sem nem sequer se preocupar em investigar sua aplicação concreta a situações escolares Como ressalta Azanha 1995 abstraído de seu contexto de uso e das práticas que o caracterizam o livro didático transformase num falso objeto 19 Tratase da Lei no 106392003 posteriormente alterada pela Lei no 116452008 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 49 Essa efetivação por sua vez requer a seleção de conteúdos linguagens e abordagens e uma série de decisões de cunho prático todas sujeitas à influência de fatores como as tradições disciplinares e escolares o grau de familiaridade com o tema e evidentemente os princípios éticos e políticos com os quais os agentes consciente ou inconscientemente se identificam Assim a escolha e a veiculação de uma perspectiva por exemplo a partir da qual se apresentam e se narram as histórias dos povos africanos têm relação direta com a visão de mundo e a perspectiva política de um professor Mas é preciso ressaltar essa não é a única e nem sequer sabemos se é a principal razão de uma escolha Outras variáveis como a disponibilidade de material as tendências predominantes nos âmbitos acadêmicos editoriais e didáticos e a própria cultura da instituição em que um professor se insere podem ser elementos mais ou menos influentes nesse tipo de decisão prática De qualquer modo do ponto de vista da formação escolar o significado da difusão da história e da cultura afrobrasileira não se limita à aprendizagem de informações e conhecimentos a seu respeito embora necessariamente a inclua Tampouco se limita ao desenvolvimento das capacidades de reconhecer e de apreciar essas expressões culturais em que pese sua inegável importância O que com ela se almeja sem que dessa relação se possa ter qualquer garantia é que o conhecimento e a difusão da cultura afrobrasileira concorram para a progressiva eliminação dos preconceitos e das desigualdades étnicoraciais Sua presença na escola tem pois uma almejada dimensão política embora não deva ser tomada como uma modalidade de ação política em sentido estrito Ao ensinar história dos povos africanos ao apresentar elementos da cultura afrobrasileira a seus alunos um professor tem um objetivo formativo que não se confunde com a persuasão política Embora esse objetivo faça apelo à razão e à sensibilidade de seus alunos e almeje sua adesão a certos princípios políticos não se trata de um processo análogo às relações políticas no domínio público Estas últimas ocorrem ao menos em princípio entre cidadãos que compartilham igual liberdade em suas escolhas e igual José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 50 responsabilidade por seus atos e palavras No espaço público a manifestação de racismo é um crime e assim deve ser tratada na escola a emergência de atitudes discriminatórias deve se converter em oportunidade de formação de uma consciência comprometida com a igual dignidade dos homens É evidente que numa relação política pode também haver aprendizagens significativas mas nela não se pode falar numa formação por meio do ensino pois este sempre pressupõe algum grau de assimetria dos lugares institucionais e de seus agentes Numa relação escolar por exemplo as decisões curriculares e pedagógicas são de responsabilidade do docente e não do aluno E mesmo no caso em que o educador delas decida abdicar esta sempre será sua decisão pois não são as crianças e sim os adultos que podem fixar a autonomia como um ideal formativo e escolher os meios de sua consecução Assim a presença da cultura afrobrasileira no currículo escolar é uma decisão política que se transforma num desafio pedagógico com potencial significação política como criar oportunidades de contato conhecimento reflexão e mesmo identificação com um universo cultural até então negligenciado pela escola Em que medida a interação com obras literárias musicais cinematográficas ligadas ao tema da cultura afrobrasileira pode vir a se constituir em experiência simbólica Em que medida essas potenciais experiências simbólicas podem vir a ter uma significação política ou seja em que medida elas podem favorecer a criação de vínculos de pertencimento responsabilidade e crítica entre os jovens e o mundo público no qual a escola deve buscar inserilos As respostas a essas questões sejam elas quais forem sempre representarão a busca de uma forma de diálogo pedagógico com a cultura daí seu potencial caráter formativo Por outro lado esse caráter formativo de uma experiência simbólica é sempre da ordem do imprevisível e do incontrolável quem poderá saber qual o impacto formativo da leitura de Navio negreiro ou de Quarto de pensão ou ainda da análise de um rap dos Racionais MCs Ora é esse caráter indeterminável constitutivo da própria noção de formação que garante que as escolhas docentes não José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 51 venham a se confundir com a conformação social ou com a fabricação de uma futura ordem política Nesse sentido fazer da escolarização uma experiência simbólica com potencial significação política é uma aposta não um controle implica uma forma de relação com um legado de valores e saberes do passado e não a determinação de uma configuração para o futuro Embora paradigmático o exemplo evocado não é um caso isolado Na verdade o que dele se disse é aplicável em maior ou menor grau a qualquer tema ou disciplina do currículo da escola básica A decisão hoje naturalizada de se ensinar literatura a criação da ideia de literatura nacional o estabelecimento de obras paradigmáticas ou cânones da literatura são sempre escolhas na e pela cultura sempre impregnadas de pressupostos e valores e como tal guardam sempre a possibilidade de vir a se tornar experiências simbólicas com uma potencial dimensão política O sentido formativo da leitura de obras literárias como as de Machado de Assis ou Guimarães Rosa não se reduz a eventuais tarefas escolares de natureza estritamente cognitiva como a identificação e a compreensão de traços estilísticos Sua presença no currículo se justifica sobretudo por seu potencial de se tornarem experiências simbólicas para quem as lê ou seja por sua capacidade de afetar um sujeito de transformar sua visão de mundo de influenciar a forma pela qual ele se relaciona consigo mesmo e com aqueles com quem compartilha um mundo Mas essa responsabilidade política de um professor se materializa pela mediação da literatura de modo que a legitimidade da dimensão política da atividade docente não se desvincula de sua responsabilidade pelos saberes que ensina e pelos princípios e valores que animam a instituição em que trabalha a escola Por isso a atividade docente não se confunde com a ação política embora não deva perdêla de vista como uma dimensão existencial da experiência de seus alunos com a escola e com o mundo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 52 III AUTORIDADE E EDUCAÇÃO O DESAFIO EM FACE DO OCASO DA TRADIÇÃO Uma vez que não mais podemos recorrer a experiências autênticas e incontestes comuns a todos o próprio termo autoridade tornouse enevoado por controvérsia e confusão Pouca coisa acerca de sua natureza parece autoevidente ou mesmo compreensível a todos exceto o fato de que a maior parte das pessoas concordam que o desenvolvimento do mundo moderno em nosso século foi acompanhado por uma crise constante de autoridade sempre crescente e cada vez mais profunda O sintoma mais significativo dessa crise a indicar sua profundeza e seriedade é ter ela se espalhado em áreas prépolíticas tais como a criação dos filhos e a educação onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural obviamente exigida tanto por imperativos naturais o desamparo da criança como por necessidade política a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recémchegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros Hannah Arendt Apresentação do problema O tema do ocaso e da ruptura da tradição perpassa toda a obra de Arendt é central para suas teses acerca do advento da sociedade de massas e do totalitarismo e encontrase na base de suas reflexões acerca da filosofia moral É também o fio condutor de suas análises sobre as crises da autoridade e da educação no mundo moderno pois é com a perda da tradição que entra em declínio uma forma específica de autoridade aquela na qual o passado é concebido como um modelo capaz de atribuir um significado inconteste à prática educativa e imprimir durabilidade e coesão a uma comunidade cultural É pois a partir de seu esvanecimento que Arendt enuncia o que lhe parece ser o grande impasse da educação contemporânea O problema da educação no mundo moderno está no fato de ela não poder abrir mão em decorrência de sua própria natureza nem da autoridade nem da tradição embora se veja obrigada a trilhar seu caminho em um mundo que não é estruturado pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição 2006 p 191 tradução nossa Em sua perspectiva educar implica sempre e necessariamente agir sobre um sujeito que se constrói em continuidade ou ao menos em relação ainda que de oposição ou confronto com um mundo de heranças simbólicas cuja duração o transcende tanto no passado como no futuro Implica ainda que esse processo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 53 transcorre sempre num contexto de assimetria entre educador e educando derivada inicialmente do simples fato de que o mundo no qual este será iniciado precedeo no tempo e transcende o escopo de sua existência individual Mas tratase vale lembrar de uma assimetria temporária cuja legitimidade se funda no reconhecimento de que o objetivo último do trabalho cotidiano do educador é a abolição num futuro predeterminado da distância hierárquica que o separa daquele a quem ele educa Assim embora destinada a um progressivo desaparecimento ao longo da formação do sujeito a relação de autoridade entre educador e educando jamais pode ser um elemento acessório ou um recurso eventual enquanto perdura esse processo Não se pode pois escolher entre uma prática educativa com e sem autoridade a autoridade é consubstancial à educação Daí o desafio insolúvel ou a aporia com o qual depara o educador hoje Seu trabalho exige respeito pelo passado e compromisso com o futuro num mundo que glorifica sem cessar o consumo e o gozo da vida presente Ele se estrutura a partir do reconhecimento da legitimidade de uma assimetria na relação entre educador e educando numa era que erigiu o princípio da igualdade como ideal programático das relações políticas e interpessoais20 Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos proclama o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos Seria essa postulada igualdade universal de direitos compatível com a autoridade do adulto sobre a criança do professor sobre o aluno Ou ao contrário a aceitação da universalização de direitos implicaria um compromisso com a busca de superação de mais essa dissimetria como no caso das desigualdades em relações de gênero ou em preconceitos étnicoraciais Ora em que medida a preservação de um suposto espaço de assimetria legítima também não entraria em contradição com o movimento de emancipação crítica que 20 A afirmação de que a igualdade de direitos e a liberdade individual seriam as grandes criações axiológicas e normativas oriundas da razão moderna Renaut 2004 p 30 não implica evidentemente a crença de que a democracia moderna as tenha realizado plena ou satisfatoriamente simplesmente explicita a adesão a um princípio pelo qual uma comunidade ou sociedade organiza a imagem de si e seus critérios de justiça e legitimidade por exemplo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 54 marca o pensamento iluminista21 e todos os discursos pedagógicos que dele são tributários A identificação imediata da autoridade com a aceitação de uma hierarquia seja qual for sua fonte legitimadora não implicaria ainda um desafio à lógica da democracia moderna segundo a qual nenhum poder poderia se legitimar sem a busca pela adesão daqueles sobre os quais se exerce A noção moderna de um poder que se autoinstitui contratualmente sem a necessidade de nenhum tipo de transcendência é compatível com a preservação de um espaço no qual a dissimetria entre educadores e educandos é um pressuposto anterior à própria relação Sua eventual preservação não significaria a tentativa de deter um processo de democratização das relações sociais que embora nunca logrado em sua plenitude tem impulsionado transformações sociais significativas Por outro lado a recusa sumária da autoridade do educador e da legitimidade de um saber que se inscreve como herdeiro de uma certa tradição cultural não representaria a inviabilização da atividade educativa A própria continuidade dos ideais modernos de emancipação crítica não dependeria assim como sua renovação da sujeição de jovens e crianças a um processo educacional que não escolheram e cuja aceitação do valor precede qualquer possível crítica a seu respeito Ao recusar a autoridade como elemento inerente ao processo educacional não estaríamos ingênua ou astutamente propondo a substituição do ideal político de democratização da sociedade pela escola pelo ideal pedagógico de realizar uma democracia na escola Gauchet 2002 p 40 tradução nossa A complexidade e o entrelaçamento das questões e perplexidades evocadas sugerem a pertinência não obstante o desgaste da expressão de se falar numa crise da autoridade com a condição de afastarmos de plano sua vinculação imediata mas equívoca com as noções de degeneração ou decadência Uma crise nos lembra Arendt 2006 p 171 dilacera fachadas e oblitera preconceitos e ao fazêlo simplesmente torna patente o fato de que perdemos as respostas em que costumávamos nos apoiar sem nem sequer perceber que elas constituíam originariamente respostas a questões 21 Como salienta Gadamer a oposição do Iluminismo a qualquer sorte de autoridade é uma marca de sua filosofia que considera a autoridade como absoluto contrário da razão e da liberdade 1999 p 263 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 55 A experiência da crise emerge pois da consciência do ocaso e da ruptura de uma tradição Ela é fruto da constatação de que a herança que recebemos do passado em forma de respostas teóricas ou práticas já não tem autoridade sobre o presente Em suas formas radicais uma crise pode implicar algo ainda mais profundo o esvanecimento dos próprios critérios por meio dos quais uma dada comunidade ou sociedade escolhe valida e autoriza uma resposta Mas a obsolescência de respostas e critérios herdados do passado não implica necessariamente a descartabilidade dos problemas que lhes deram origem E por isso mais do que a decadência do instituído a experiência da crise pode representar um convite à inovação instituinte Assim concebida uma crise pode ensejar a busca de novas respostas e o estabelecimento de critérios alternativos de validação intersubjetiva pois as crises são precisamente esses momentos nos quais os homens se deparam com problemas que já não são mais capazes de solucionar são momentos nos quais eles reassumem reinvestissent e reinventam as posições e os lugares que foram deixados vazios pelas respostas que já não funcionam É porque o poder explicativo das velhas respostas se esgotou que algo de novo pode se iniciar Se nos propomos pois a repensar a autoridade é por considerar que a crise de todas as formas de autoridade com as quais somos hoje confrontados nos obriga a retomar as posições e lugares deixados vazios onde os esquemas tradicionais já não mais funcionam Revault DAllones 2006 p 89 tradução nossa E é na educação mais do que em qualquer outro âmbito da nossa existência comum que somos impelidos a nos confrontar com um vazio em relação às formas tradicionais de autoridade não obstante o fato de que a crise não tenha inicialmente eclodido em seu domínio mas no das relações políticas e da produção e circulação de conhecimentos Contudo sua intrusão nessa esfera específica a da transmissibilidade intergeracional de experiências simbólicas que dão sentido de pertencimento a um mundo comum atesta a profundidade das transformações em curso A perda geral de autoridade de fato não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera prépolítica na qual a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas O homem José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 56 moderno por outro lado não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo para seu desgosto com o estado de coisas do que sua recusa em assumir em face das crianças a responsabilidade por tudo isso É como se os pais dissessem todos os dias Nós mesmos não estamos muito seguros e à vontade neste mundo como nos movimentarmos nele o que saber quais habilidades dominar tudo isso também são mistérios para nós Procurem tentar entender isso como puderem de qualquer modo vocês não têm o direito de exigir de nós satisfações Somos inocentes lavamos as nossas mãos22 Arendt 2006 p 188 tradução nossa É pois no plano das relações educativas que a recusa da assunção de um lugar de autoridade toma sua forma mais aguda pois pode resultar no descaso pela transmissão de um legado de experiências simbólicas capazes de conferir durabilidade e sentido ao mundo que compartilhamos com os mais jovens que a ele chegam mas também com aqueles que nos precederam e com os que nos sucederão na tarefa de sua renovação Por isso furtarse a essa responsabilidade é simultaneamente abdicar do compromisso com a durabilidade desse mundo comum e abandonar as novas gerações que nele aportam à própria sorte sem o amparo de uma tradição nem a familiaridade com um legado cultural que lhe confira inteligibilidade e sentido Mas é também no domínio da educação mais do que em qualquer outro que a noção de autoridade tem sido pelo menos desde as primeiras décadas do século XX objeto de disputas denúncias e defesas apaixonadas e da produção de uma série de investigações empíricas e proposições normativas e legais Entre restauração e abolição confusões e paradoxos dos discursos educacionais sobre a autoridade Mesmo uma rápida análise da diversidade de discursos acerca das relações entre educação e autoridade já pode revelar o caráter essencialmente polêmico das alegações 22 O sentimento de culpa em função da desresponsabilização política de uma geração em relação a seus sucessores aparece de forma pungente numa canção de Ivan Lins e Victor Martins sugestivamente intitulada Aos nossos filhos Perdoem a cara amarrada Perdoem a falta de abraço Perdoem a falta de espaço Os dias eram assim Perdoem por tantos perigos Perdoem a falta de abrigo Perdoem a falta de amigos Os dias eram assim Perdoem a falta de folhas Perdoem a falta de ar Perdoem a falta de escolha Os dias eram assim José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 57 e perspectivas que se colocam em constante conflito e por vezes em franca contradição Ora evocam a falta de autoridade como causa de uma crescente deslegitimação da cultura escolar que teria perdido a centralidade na formação das novas gerações ora afirmam a força de sua presença nos processos de intensificação do governo de si e na normalização das condutas sociais Ora a força da autoridade institucional é descrita como responsável pela violência simbólica por meio da qual a escola inculcaria um arbitrário cultural que legitimaria a reprodução das desigualdades ora é à sua fragilidade que atribuem a maior parte dos problemas ligados à indisciplina à incivilidade ou à violência por parte dos alunos Em síntese ou bem a relação educacional fundada na autoridade é descrita como um dispositivo coercitivo herdado das hierarquias prémodernas ou engendrado em função de novas exigências de conformação social ou bem se evoca a necessidade de sua restauração como remédio para os impasses de um processo educacional que perdeu a confiança em sua eficácia e a certeza de seu sentido Não obstante as claras divergências ideológicas que perpassam esses discursos a multiplicidade de seus propósitos descritivos programáticos ou normativos e a diversidade de perspectivas teóricas em que se apoiam há entre eles ao menos um ponto comum a tendência a fundir num todo indistinto as noções de autoridade força violência e poder Porque visam produzir a obediência como resultado e costumam aparecer interligados ou amalgamados em diferentes manifestações empíricas esses fenômenos de naturezas distintas têm sido reiteradamente tratados como análogos ou equivalentes A indistinção está presente tanto nos discursos ligados à denúncia e à rejeição da autoridade equivocadamente equiparada à tirania ao despotismo e a toda sorte de relações de dominação fundadas na coerção e na violência como naqueles cuja pretensão seria a de sua restauração por meios igualmente coercitivos Tomemos como exemplo dessa indistinção em sua versão reacionária e restaurativa o Projeto de Lei no 2672011 que tramita no Congresso Nacional por iniciativa de uma deputada paranaense Visando coibir a indisciplina e a violência em sala de aula o Projeto de Lei propõe a inclusão de um artigo 53A ao Estatuto da José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 58 Criança e do Adolescente segundo o qual ficaria estabelecido que o respeito à autoridade intelectual e moral dos docentes deve ser reconhecido legalmente como um dever da criança ou do adolescente grifo nosso O descumprimento da medida legal prevê seu parágrafo único sujeitará a criança ou o adolescente a suspensão por prazo determinado pela instituição de ensino e na hipótese de reincidência grave ao seu encaminhamento à autoridade judiciária competente23 Assim a autoridade é concebida não como fruto da confiança depositada no outro naquele cuja posição assimétrica é tida por legitima porque reconhecida pelos que de alguma forma a ela se submetem mas como produto de uma ameaça de coerção Ora como nos lembra Arendt a presença da autoridade no quadro de uma relação seja ela política ou educacional exclui de imediato o uso de meios externos de coerção pois quando se recorre à força é porque a autoridade em si falhou 2006 p 92 tradução nossa É muito pouco provável embora em tese possível que a juridicização das relações escolares resulte em obediência às normas por temor de uma sanção anunciada Mas ainda que o venha a fazer ela jamais se estabelecerá como produto de uma relação de autoridade Ao contrário da força que pode ser posse de um indivíduo isolado ou permanecer em potência guardada em seu corpo ou num arsenal de armas a autoridade só emerge como fruto de uma relação ela se dá nesse espaço entreoshomens e é sempre mediada por instituições E ela só se institui pelo reconhecimento de sua legitimidade pois Se a autoridade existe é em função da convocação ou da invocação dessa dimensão ao mesmo tempo evanescente e onipresente ligada ao papel capital do assentimento na vida social que é o reconhecimento do legítimo no interior para além de ou mesmo contra o legal Gauchet 2008 p 150 grifos nossos tradução nossa Sem essa dimensão do assentimento que confere legitimidade à assimetria de lugares institucionais a força da lei pode ensejar um mecanismo de dominação visando a produção da obediência mas jamais será capaz de instituir uma relação de 23 Apresentado pela Deputada Cida Borghetti PPPR em fevereiro de 2011 o Projeto de Lei foi aprovado por unanimidade na Comissão de Seguridade Social e Família e tem recebido o apoio entusiasmado de uma parcela significativa de professores do ensino básico Brasil 2011 Seu teor e andamento estão disponíveis em httpwwwcamaragovbrproposicoesWeb fichadetramitacaoidProposicao491406 Acesso em 18 jul 2012 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 59 autoridade Não se pode pois ao contrário do que diz a expressão corrente impor a autoridade é ela que se interpõe numa relação em que aquele que obedece o faz livremente Tal como quando seguimos os conselhos de um médico ou ouvimos as ponderações de um sacerdote a quem creditamos autoridade em função de seus conhecimentos de sua sabedoria enfim de algo cuja compreensão pode mesmo nos escapar mas a quem conferimos um lugar de autoridade porque acreditamolo capaz de um diagnóstico correto de um ajuizamento justo de um conselho apropriado Assim a autoridade manifesta o estabelecimento de uma relação de confiança fundada na credibilidade e na crença sem essa dupla referência à credibilidade do lado de quem comanda e à crença do lado de quem obedece seríamos incapazes de distinguir a autoridade da violência ou mesmo da persuasão Ricoeur 2001 p 109 tradução nossa O objeto dessa credibilidade é sempre um alguém no caráter singular de sua personalidade a quem confiamos a capacidade de nos guiar naquilo cuja compreensão nos escapa de nos orientar naquilo que ainda não dominamos de nos aconselhar em face de dilemas para os quais não vislumbramos saída Mas e esse é mais um paradoxo da noção de autoridade esse alguém a quem se confere autoridade sempre age em nome de algo que o transcende a fundação de uma comunidade política ou religiosa a herança de um saber a crença em um desígnio futuro o enraizamento histórico de uma instituição em síntese age em nome de crenças princípios e práticas que se inscrevem num tempo e num espaço comuns a uma coletividade Por isso se espera daquele a quem se credita autoridade o respeito exemplar às regras e aos princípios em nomes dos quais ele age e fala A autoridade é pois simultaneamente representativa e pessoal fundamentase em algum tipo de transcendência mas sempre necessita da presença imanente daquele que a encarna Ela fala em nome de uma comunidade mas sempre pela voz singular de um indivíduo Daí seu caráter fundamental no processo de formação educacional O mundo a que chegam os novos as crianças e os jovens a quem se educa não é imediatamente inteligível Ele é opaco estruturado a partir de práticas e valores que não são enunciados e muitas vezes nem sequer são enunciáveis dotado de linguagens cujas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 60 gramáticas nem sempre estão codificadas ou acessíveis Em meio a um complexo conjunto de heranças materiais e simbólicas já estabelecidas aqueles que são novos precisam ser acolhidos por alguém em que depositem confiança a quem creditem a tarefa de os guiar por entre demandas às quais ainda não se sentem capazes de responder por si sós por entre problemas cuja solução exige discernimento e não a aplicação mecânica de regras Creditar autoridade a alguém significa pois reconhecê lo capaz de esclarecer o obscuro fazer escolhas e apontar rumos quando ou enquanto não somos capazes de fazêlo exclusivamente a partir de nossa própria capacidade de julgar Assim reconhecer alguém como autoridade implica têlo como um exemplo ou referência por acreditar que ele saiba mais possa mais ou tenha mais experiência no trato com este mundo com suas linguagens e práticas Não se trata de uma submissão cega a outrem mas antes de uma filiação que não nos obriga embora nos submeta a uma influência em princípio desigual Uma submissão que paradoxalmente finca as bases a partir das quais alguém poderá vir a se constituir como um sujeito autônomo Isso porque quem quer que pense julgue e analise por si mesmo não o faz exnihilo Ao contrário sempre o faz a partir de referências parâmetros ou modelos de excelência enfim de autoridades internalizadas que operam como recursos reflexivos ideais a orientarem escolhas julgamentos e decisões Talvez seja a não aceitação desse paradoxo a submissão prévia à autoridade como condição da possibilidade de constituição de um sujeito autônomo que tem levado os discursos educacionais vinculados às pedagogias da autonomia ou às chamadas pedagogias não diretivas a um interminável combate programático em favor da abolição de qualquer referência a um lugar de autoridade na relação entre professores e alunos Combate que inclui até mesmo a tentativa de abolição desses termos identificados como signos de uma ordem tradicional e hierárquica Nesses discursos falase em crianças e jovens mas não em alunos em facilitadores da aprendizagem ou parceiros mais experientes mas não em professores Falase em aprendizagem ou construção de conhecimento mas não em ensino ou transmissão de um legado experiências simbólicas O efeito dessa ênfase discursiva José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 61 na ação e no pensamento do sujeito que aprende tem sido o declínio da função mediadora do ensino e da transmissão como elemento de ligação social e temporal Segundo essa modalidade de discurso pedagógico e as psicologias do desenvolvimento em que se fundamentam tudo se passa como se bastasse o contato imediato da criança com as práticas sociais e suas linguagens para que estas venham a se revelar na complexidade de seus usos de seus sentidos e de seus mecanismos de validação intersubjetiva Daí o caráter supostamente desnecessário obsoleto mesmo da referência a alguém a quem confiar a responsabilidade por sua iniciação na herança simbólica de que se constitui o mundo humano Daí também a crença na incompatibilidade entre ensino autoridade e autonomia do sujeito É a adesão a essa perspectiva que leva Jean Houssaye 2007 p 181 tradução nossa a afirmar que longe de ser indispensável a autoridade é o signo do fracasso da educação escolar pois não há problema de autoridade na escola É a autoridade em si que cria os problemas Na visão do autor como na maior parte dos discursos pedagógicos contemporâneos24 o exercício da autoridade é identificado com práticas marcadas pela violência e pela coerção e ainda o exemplo de uma recusa ao diálogo Ibidem p 1523 portanto incompatível com uma formação voltada para a autonomia e a liberdade dos educandos Uma escola liberada da autoridade deveria se dedicar a construir relações simétricas e desenvolver processos de socialização e novas formas de relação com o saber Houssaye 2007 p 181 Assim ela dispensaria a mediação do professor e da instituição como fontes legítimas de orientação e justificação de escolhas regras ou princípios Em síntese a emergência e a centralidade da noção de aprendizagem como construção pessoal do saber pretende tornar obsoleta a noção de transmissão por meio do ensino Ora por mais que reconheçamos a pertinência das críticas às formas coercitivas e violentas de socialização escolar e à inadequação de práticas pedagógicas que venham a ferir a dignidade dos alunos o fato é que o desprezo pelo papel de um mediador autorizado que se interponha entre o saber e o sujeito que aprende seja o 24 Na conclusão de sua obra Houssaye chega a afirmar que a pedagogia pode mesmo ser lida como essa imensa tentativa constantemente renovada de excluir a autoridade do ato educativo 2007 p 181 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 62 professor ou a própria instituição tende a ignorar que a educação implica um vínculo com a temporalidade do mundo humano que ela não se desenvolve a partir de um vazio histórico mas de uma experiência de intercâmbio entre gerações que ocupam lugares distintos no mundo Bárcena 2009 p 113138 Esse intercâmbio intergeracional pode tomar várias formas da impregnação cultural por meio da convivência cotidiana entre gerações à sistematicidade do ensino escolar Mas ele sempre supõe a presença pessoal de um mediador autorizado capaz de familiarizar os que são novos no mundo com as sutilezas a opacidade e as ambiguidades inerentes ao caráter simbólico do universo humano O reconhecimento do vínculo de pertencimento a um universo cultural anterior que se impõe aos recém chegados como um mundo comum que os transcende e no qual devem ser iniciados não impede o florescimento de um sujeito autônomo é antes sua precondição Como ressalta Gauchet 2002 p 33 tradução nossa o sujeito destinado à posse de si mesmo o sujeito autônomo almejado pelos discursos pedagógicos modernos deve ser instituído Ele precisa passar por um outro para aceder a si mesmo Esse sujeito não se encontra pois como uma potencialidade psicológica que antecede o processo formativo é antes a expressão de um ideal político a orientar os objetivos da formação educacional Por isso postulálo na origem é na verdade uma forma de impedir seu surgimento Ibidem p 41 Ao rejeitar a autoridade escolar como traço constitutivo da experiência formativa as pedagogias da autonomia não a eliminam do contexto social mas apenas favorecem a emergência e a consolidação de simulacros de autoridade em novos espaços e personagens sociais como os ídolos midiáticos ou os profetas da autoajuda É uma renúncia de consequências políticas particularmente graves uma vez que incidem sobre a representação que uma instituição pública de presença capilar nas sociedades modernas tem acerca de si mesma e sobre a legitimidade de sua tarefa cotidiana e de seus compromissos sociais É verdade que sob a égide do poder estatal e dos ditames do mercado o significado público da formação educacional tem muitas vezes cedido passo à mera José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 63 conformação social a partir de práticas impregnadas de coerção e violência É igualmente verdadeiro que muitas vezes se lança mão do termo autoridade para justificar o que não passa de uma tentativa dissimulada de dominação e produção de uma obediência cega e sem sentido Como alerta Gauchet 2002 p 45 tradução nossa ao comentar esses descaminhos conhecemos bem as patologias da autoridade é preciso rejeitar inequivocamente suas manifestações no domínio das instituições escolares mas temos muito o que aprender acerca das patologias de uma pretensa liberdade que ao dissolver as mediações necessárias na verdade deixa os indivíduos à mercê de uma autoridade invisível num mundo que se lhes escapa e os manipula Assim não obstante a validade das denúncias acerca de suas patologias ou das formas coercitivas que pretendem substituíla a mera e imediata rejeição de qualquer relação de autoridade bem como as tentativas de sua restauração a partir de modelos que se dissiparam em nossa experiência histórica acaba por nos impedir de enfrentar a tarefa de pensar um lugar para a autoridade a partir da especificidade de nossa condição histórica Em sua pressa para restaurar um passado ou em sua urgência de rejeitálo a maior parte dos discursos educacionais contemporâneos parece ignorar o fato de que em meio a uma crise não tem muito sentido agirmos como se apenas houvéssemos nos extraviado de um caminho certo e estivéssemos livres para a qualquer momento retomar o velho rumo Não se pode onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno seguir em frente tampouco simplesmente voltar para trás Tal retrocesso nunca nos levará a parte alguma exceto à mesma situação da qual a crise acabou de surgir Por outro lado a mera e irrefletida perseverança seja pressionando para a frente a crise seja aderindo à rotina que ingenuamente acredita que ela não afetará sua esfera particular de vida só pode conduzir à ruína visto que se rende ao curso do tempo para ser mais precisa ela só pode aumentar o estranhamento do mundo pelo qual já somos ameaçados de todos os flancos Ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo podese mesmo admitir que presumivelmente nos defrontemos aqui com um processo automático desde que não esqueçamos que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos Arendt 2006 p 191 tradução nossa José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 64 Nesse sentido refletir sobre a crise da autoridade em seu vínculo essencial com a temporalidade à luz dos problemas do presente é uma forma de recusar ao mesmo tempo tanto a restauração como o banimento sumário do lugar de autoridade nas relações educativas Adotar uma tal perspectiva implica considerar a especificidade histórica da experiência política romana que marcou o surgimento do conceito de autoridade Implica ainda reconhecer as profundas transformações que têm afetado as formas pelas quais pensamos e descrevemos as experiências com o tempo e a autoridade a partir da era moderna mas não se resume ao reconhecimento da historicidade do conceito nem à variedade de experiências com ele identificadas a despeito da inegável importância de ambos os aspectos Vincular a noção de autoridade à temporalidade implica sobretudo considerar que a durabilidade e a renovação de um mundo comum dependem da natureza das relações intergeracionais que nele se estabelecem É pois do intercâmbio entre gerações que já se encontram no mundo e as que nele acabam de aportar que emerge uma ligação temporal capaz de dar algum grau de durabilidade ao mundo comum pois se o mundo deve conter um espaço público não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais Arendt 2010 p 67 Esse caráter transcendente e durável do mundo público não se confunde com uma representação de tempo que o concebe como um desenvolvimento contínuo e homogêneo a exemplo da concepção moderna de progresso histórico Ao contrário em Arendt a preocupação com a durabilidade do mundo público admite rupturas e assume a fragilidade como marca do mundo humano Por ser produto do engenho humano e de sua capacidade de fabricação e instituição o mundo comum está sempre e irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo a menos que existam seres humanos determinados a intervir a alterar a criar aquilo que é novo Arendt 2006 p 189 tradução nossa Durabilidade e ruptura não se excluem antes se complementam Só num mundo dotado de durabilidade pública um mundo que acolhe em seu seio os novos que os transforma em herdeiros autorizados de seu passado e agentes responsáveis por seu futuro é possível instituir o novo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 65 Sem permanência nem durabilidade não há início nem fim só o fluxo contínuo de um ciclo vital que se perpetua pela reprodução de indivíduos e pela continuidade das espécies Assim a autoridade condição da possibilidade da transmissão intergeracional vinculase às formas pelas quais uma cultura dialoga com seus antepassados e com seus sucessores É pois o caráter transcendente do mundo público e a consequente assunção da responsabilidade pela durabilidade de uma herança comum de realizações simbólicas que autoriza o lugar do educador na relação pedagógica Um lugar sempre sujeito ao frágil equilíbrio entre o legado do passado e a abertura ao futuro um lugar sempre instável em face da variedade de experiências históricas que fazem da autoridade um elo entre os educandos e um mundo de heranças e de promessas Autoridade e temporalidade da sacralidade da fundação aos desafios do presentismo A autoridade como fator decisivo numa ordem política e elemento norteador de sua prática educativa não é um fenômeno universal A palavra e o conceito de auctoritas são romanos e têm sua origem no verbo augere aumentar fazer crescer desenvolver intensificar e no substantivo auctor autor aquele que cria que dá origem ou funda o que aprova sanciona o que defende protege No plano jurídico privado da Roma republicana por exemplo é a auctoritas que assegura e assim aumenta e intensifica a validade de um ato Ao avalizálo ela não institui seu valor jurídico que já existia mas lhe atesta maior credibilidade Já no âmbito político é a auctoritas do Senado que avaliza a legitimidade de uma lei ou iniciativa que atesta sua conformidade com a tradição sua afinidade com os princípios da fundação de Roma A palavra autorizadora do Senado não se confunde com o poder potestas do povo ou dos magistrados mas tem um valor performático ao ser proferida tornase capaz de imprimir uma legitimidade que se pretende acima das disputas e dos interesses do presente Sua eficácia simbólica advém do fato de que ela se enraíza nas lições transmitidas pelo passado na grandeza do exemplo dos ancestrais e na transmissão desse legado vinculatório Noutras palavras sua eficácia derivava da José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 66 traditio a tradição romana em todas as suas complexas acepções Assim embora não tenha nem poder executivo nem caráter mandatório a auctoritas do Senado tem reconhecimento Sua palavra se legitima como uma fonte de sabedoria cristalizada no tempo pois tem a função de ligar o presente à sacralidade ancestral da fundação No âmago da política romana desde o início da República até virtualmente o fim da era imperial encontrase a convicção do caráter sagrado da fundação no sentido de que uma vez que tenha sido fundada uma coisa permanece vinculatória binding para todas as gerações futuras Tomar parte na política significava antes de mais nada preservar a fundação da cidade de Roma Arendt 2006 p 120 tradução nossa Essa vinculação do ato político à fundação não significa que as instituições conservavam uma identidade imutável de resto impossível mas que as transformações eram acompanhadas de um movimento de apropriação do passado de transformação do presente à luz da tradição ou seja da autoridade do passado como critério para as escolhas e ações do presente Daí a crença de Catão de que a superioridade da Constituição Romana deviase ao fato de ela não ser obra de um único homem nem de uma única geração mas o produto de uma pluralidade de homens ao longo de várias gerações Nesse sentido o caráter público de sua instituição derivava da pluralidade tanto em sua dimensão espacial e presente como em sua dimensão temporal e histórica por meio da apropriação que fazia do passado Era o enraizamento da experiência política romana no tempo que lhe conferia estabilidade em meio às transformações e que possibilitava que a inovação viesse a ser concebida como continuidade crescimento e aumento da fundação Era pois a autoridade do passado que criava uma comunidade política e cultural entre a fundação de Roma seu presente e todos os esforços no sentido de sua continuidade ou imortalização Ela conferia um lastro temporal à existência comum A substância da auctoritas romana é o tempo é o acréscimo temporal que produz a autoridade O tempo é autoridade E o outro nome dessa autoridade é a instituição a instituição política de um mundo comum não é só espacial por meio da edificação de um espaço público mas também temporal por meio da instituição da durabilidade do domínio público A autoridade supera desse modo a alternativa entre a José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 67 eternidade da natureza e a efemeridade da convenção Revault DAllonnes 2006 p 33 tradução nossa Assim a instituição de um domínio público e político enraizado no tempo enseja a possibilidade da durabilidade do mundo comum como uma resposta ao caráter mortal da existência humana Os homens são mortais mas Roma é imortal25 É pela preservação desse mundo das obras e instituições que o constituem como palco para a dimensão política da existência humana e da memória de feitos e palavras notáveis daqueles que o construíram que o passado se atualiza e imortaliza Sem a instituição desse elo temporal que vincula as sucessivas gerações entre si e com um mundo comum que as antecede a existência humana se resumiria à participação no sempiterno ciclo biológico vital sem ser capaz de instituir o novo e darlhe bases de permanência como um legado material e simbólico Na verdade a própria noção de geração implica essa possibilidade de transmissão e apropriação de um legado material e simbólico pois sem ele só haveria a reposição natural e contínua de membros da mesma espécie e não se poderia falar em continuidade ou ruptura entre gerações A existência de um intercambio intergeracional depende pois da transmissibilidade da experiência São as diferentes formas de se relacionar com o legado de experiências intergeracionais que marcam a atitude de uma cultura em face da autoridade Em Roma a tradição o respeito que vinculava cada sucessiva geração à fundação gerava a autoridade e transformava a verdade em sabedoria e a sabedoria portava a consistência da verdade transmissível Arendt 1987 p 168 Por essa razão embora originariamente vinculada aos domínios jurídico e político a ligação entre verdade sabedoria e a autoridade do passado acabou por ter um papel central em diversos outros âmbitos da vida romana No plano religioso por exemplo ela estava presente nos auspícios que aprovavam ou desaprovavam as escolhas dos homens como no lendário episódio em que os deuses autorizam Rômulo a fundar a cidade no Palatino Mas é no plano das relações educativas que a 25 Revault dAllonnes 2006 destaca que a fim de designar uma duração infinita que escapa ao mundo humano próxima à noção cristã de eternidade os romanos usavam o termo neutro aevum enquanto os termos perpetus e aeternus referemse à durabilidade do que é vivido pelo homem José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 68 transmissibilidade da tradição cumpre mais claramente o papel de fazer da autoridade o elo a vincular o presente e o porvir ao passado e aos ancestrais Daí a importância educativa que os romanos atribuíam aos mitos fundacionais e às narrativas acerca dos grandes homens do passado os maiores cuja grandeza deveria servir como modelo aos que acabavam de chegar ao mundo Um princípio formativo que encontra sua síntese nas palavras de Políbio para quem educar os mais jovens era simplesmente fazervos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados Arendt 2006 p 191 tradução nossa Eram a reverência ao passado e a firme crença de que suas lições iluminavam o presente e estendiam seu valor às gerações futuras que autorizavam o educador a se constituir em mediador legítimo entre a herança simbólica ancestral e aqueles que dela precisavam se aproximar a fim de ascender plenamente à sua condição de herdeiros e continuadores de uma cultura ou seja de ascender à sua humanitas Essa forma de se conceber a relação entre passado tradição e autoridade sobreviveu ao colapso de Roma O cristianismo deulhe um novo conteúdo o Novo Testamento como narrativa da fundação a hagiografia como lição exemplar mas sem pôr em questão os pressupostos sobre os quais se assentara a noção de autoridade fundada na tradição no caráter exemplar de vidas e eventos do passado26 E mesmo na era moderna não obstante a profunda diferença de sua atitude em relação ao passado é possível encontrar formas residuais desse tipo de ligação temporal como fundamento da autoridade As narrativas fundacionais dos Estados nacionais são um claro exemplo da persistência desse caráter autorizador dos princípios associados ao ato instituinte de uma comunidade política Tomese como exemplo o discurso de posse de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos da América do Norte em 2009 Nele há inúmeras alusões à fundação e ao passado como elementos legitimadores como referências comuns capazes de aumentar e intensificar o valor simbólico de suas 26 É evidente que o cristianismo introduz também mudanças significativas na noção de autoridade como a transposição de sua fonte última para um plano que transcende o mundo humano ou ideia de uma sanção futura como elemento coercitivo Contudo interessa aqui ressaltar que a despeito dessas profundas transformações ele mantém a mesma atitude de reverência ao passado e a mesma crença em seu papel formativo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 69 escolhas inserindoas na continuidade desse espírito inaugural Assim Obama 2009 se refere reiteradamente ao caráter orientador dos documentos fundacionais e alude à necessidade de se respeitarem os sacrifícios dos ancestrais e a atitude corajosa dos pais fundadores que mesmo em meio a lutas ameaçadoras jamais abriram mão do respeito à lei e aos direitos humanos É pois a evocação de um modelo fixado em narrativas de um passado referencial os pais fundadores na América do Norte ou os libertadores na América Latina ou a revolução ou a proclamação da república que autoriza os atos do presente É a alegada vinculação a um episódio instituinte ou aos que são considerados responsáveis por ele que legitima compromissos que dá crédito a princípios e valores que se querem transcendentes às contingências do presente e às idiossincrasias pessoais é o passado reconhecido como referência que produz autoridade Mas o reconhecimento da presença residual da autoridade fundada na tradição não deve elidir o fato de que pelo menos desde a consolidação da modernidade a ideia de sacralidade do passado e de seu caráter vinculante em relação às novas gerações passa a ser objeto de uma crítica sistemática e radical Os tempos modernos e em especial o Iluminismo não têm de si uma imagem de continuidade ou simples renovação em relação ao passado Ao contrário sua autoimagem é antes ligada à vontade de instituição do novo de uma ruptura com a autoridade do passado À autoridade do passado opõese a autoridade da razão que se crê emancipada ou ao menos em via de emancipação de toda sorte de grilhões de uma perpétua menoridade a impedir os homens de pensar por si mesmos Kant 1985 p 102 No plano político há uma crescente rejeição de qualquer justificativa do poder assentada na transcendência de seu fundamento ou na sacralidade do passado A noção de contrato social fruto do assentimento de indivíduos iguais em direitos e semelhantes pela natureza engendra a progressiva recusa de toda sorte de hierarquias previamente fundadas numa suposta ordem natural como as distinções por nascimento ou na transcendência de uma tradição políticoteológica Mais do que um princípio a ordenar o funcionamento das instituições políticas a igualdade de condições transformase num ideal social numa ideia geradora que segundo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 70 Tocqueville 1985 p 57 tradução nossa acaba por atrair para si todos os sentimentos e todas as ideias como um grande rio em direção ao qual cada riacho parece correr Assim a democracia não se limita a uma forma de governo mas passa a ter um valor simbólico extensivo a todos os domínios da vida social e é evocada como valor capaz de legitimar a busca da efetivação da igualdade universal de direitos e oportunidades27 O princípio da igualdade universal é evidente não abole as relações de dominação nem as desigualdades sociais mas nelas introduz um elemento de arbitrariedade uma vez que os lugares sociais não são mais fixados pelo nascimento nem por uma ordem estável e tida como transcendente A potencial mobilidade social implicada na noção de igualdade de condições significa que ao menos em princípio o indivíduo pode passar de uma posição a outra na hierarquia social que sua aspiração a ocupar um novo lugar é sempre legítima a despeito dos impedimentos concretos para sua realização Desse modo a aceitação da igualdade como princípio axiológico e direito universal não aparece como incompatível com as desigualdades de fato cuja origem e legitimidade passam a ser atribuídas a outros fatores como o mérito individual Ora em que pese seu caráter mais programático e imaginário do que real a expansão do ideal igualitário moderno implicará um conflito direto com a pressuposição de uma assimetria legítima como precondição de todas as formas de intercâmbio entre gerações E isso não só no sentido óbvio de que ele engendra uma negação do caráter hierárquico que presidia tais relações mas também em decorrência do fato de que seu desenvolvimento foi solidário com uma profunda transformação na natureza do vínculo temporal que regia as relações intergeracionais Para Tocqueville 1985 p 10 tradução nossa o caráter igualitário e individualista da democracia moderna implica também uma profunda transformação nos laços que unem as gerações entre si levando os homens a perderam o elo com as ideias de seus antepassados ou a não mais se 27 Há nesse sentido uma flagrante distinção entre os ideais moderno e antigo de igualdade A Grécia democrática a igualdade era um atributo exclusivo das relações políticas e convivia com a ideia do caráter natural de todas as formas de hierarquia e dominação entre homens e mulheres entre senhores e escravos etc A postulação moderna de uma igualdade universal convive com as desigualdades de fato mas recusalhes uma legitimidade natural abrindo espaço para toda sorte de questionamentos a desigualdades que não se devam a um suposto mérito individual José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 71 preocuparem com seu curso e destino Ao equipararemse em direitos a todos os seus semelhantes vivos os homens se equiparam também àqueles que os precederam a seus ancestrais que não mais determinam seu lugar no mundo Seu valor deixa de ser por si exemplar para ser compreendido à luz de um processo de desenvolvimento contínuo substituise a reverência ao passado pelo culto ao futuro como fonte de autorização Tecese assim no seio da era moderna uma nova forma de se traduzir e de se ordenar a experiência do tempo uma nova maneira de se articular o presente o passado e o futuro e de lhes atribuir um sentido ou seja um novo regime de temporalidade Hartog 2012 p 147 tradução nossa No lugar de histórias exemplares de um tempo pretérito entra em cena a História no singular concebida como um processo homogêneo linear e contínuo Diferentemente das histórias dos eventos de um mundo específico e de seus agentes como o romano ou o cristão a História não tem fundação é um processo que se estende ao infinito e cujo sentido na dupla acepção de significado e direção deve ser compreendido e captado em sua totalidade Não é mais o passado que ilumina o presente e se reafirma no futuro é o sentido que se atribui ao desenvolvimento histórico a teleologia de um progresso que empresta à infinidade de eventos aparentemente aleatórios um sentido articulado Na historia magistra o exemplar ligava o passado ao futuro por meio do modelo a ser imitado Com o regime moderno o exemplar em si desaparece para dar lugar ao que não mais se repete O passado é por princípio ou o que dá no mesmo por posição ultrapassado Se ainda há uma lição da história ela vem do futuro e não mais do passado Ela está num futuro que emergirá como ruptura com o passado ou ao menos como diferente dele Hartog 2012 p 145146 tradução nossa A era moderna recusa o caráter exemplar do passado e sua autoridade sobre o presente como fonte legitimadora da ação educativa Mas essa recusa não implica o abandono da responsabilidade pelo vínculo temporal como eixo articulador do intercâmbio intergeracional ela o transporta para o futuro É o sentido do devir histórico o fim telos para o qual concorre o progresso que passa a autorizar o ato educativo e dotálo de um significado A educação passa a ser concebida como preparação para um destino histórico seja ele vislumbrado como a superação de um José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 72 modo de produção ou como o advento de uma era marcada pela positividade da ciência e pelo desenvolvimento tecnológico como processo de emancipação política ou de expansão ilimitada da produção e do consumo Daí a profusão dos slogans e máximas segundo as quais a educação é a condição para a plena realização do futuro já não importa formar jovens dignos de seus antepassados tratase de preparálos para fazer face às novidades do futuro A essa tarefa a escola moderna parece inicialmente responder de uma forma singular e paradoxal sem recusar como finalidade a preparação do indivíduo autônomo e comprometido com o devir histórico ela conserva o legado da tradição como meio para sua realização É pelo acesso à cultura letrada a uma herança simbólica enraizada em saberes linguagens e práticas das quais se crê legítima difusora que a escola vislumbra sua forma peculiar de cumprir uma função pública e de se colocar à altura do vínculo histórico que lhe foi confiado pela era do progresso Na escola moderna era a força do passado que autorizava a construção do futuro É só com a crítica da crença no progresso com a ascensão do que Hartog 2003 p 156 tradução nossa classifica como presentismo o progressivo esvanecimento do horizonte futuro por um presente cada vez mais adensado hipertrofiado que o próprio sentido formativo da transmissão de um legado de experiências simbólicas surge para os educadores como um desafio incontornável A emergência do totalitarismo a ameaça atômica e ambiental o esfacelamento dos estados nacionais não representaram só a ruptura da tradição engendraram também a desconfiança no futuro como um tempo de promessa Sob a pressão de exigências cada vez maiores de uma sociedade de consumo na qual as inovações tecnológicas e a busca de lucro cada vez mais rápido desenvolvese um processo vertiginoso de aceleração no ritmo de obsolescência das coisas e dos homens Ibidem p 156 e criase um regime de temporalidade em que já não é mais o passado ou o futuro que emite a luz que ilumina o presente e cria um vínculo temporal entre as gerações é o presente que ilumina a si mesmo Em maio de 1968 os muros de Paris anunciavam o sentimento de urgência do presentismo como forma de se relacionar com o tempo Tout tout de suíte Tudo já José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 73 O caráter imediatista do presente desafia a educação em seus fundamentos e métodos em sua tarefa básica de estabelecer um diálogo intergeracional capaz de imprimir durabilidade a um mundo comum e em sua crença de que o objeto por meio do qual esse diálogo se realiza é a iniciação num legado específico de experiências simbólicas Sob a pressão desse presente imediato os discursos educacionais têm procurado imprimir à prática educativa um novo sentido supostamente mais afinado com as exigências de produtividade flexibilidade e mobilidade que orientam as preocupações gerenciais e mercadológicas típicas do presentismo contemporâneo Mas o preço da eficácia de sua adaptação e conformação à temporalidade dominante pode ser a perda de seu sentido histórico Assim pensar um lugar para a autoridade nas relações escolares em seu desafio contemporâneo significa resistir à ameaça de um domínio absoluto do presentismo nessas relações sem se deixar embair pela tentação da retórica restauradora O desafio que se apresenta é o de resguardar no âmbito das relações escolares a convivência de diferentes temporalidades que se cristalizaram ao longo de seu processo de instituição histórica Se já não há mais uma tradição que se imponha como natural e necessária há sempre a possibilidade de se olhar de um novo ponto de vista o legado simbólico de que somos tributários e nele pescar pérolas cristalizadas no oceano passado das tradições para recorrer à bela imagem de Arendt e oferecêlas como uma herança possível aos novos habitantes do mundo A educação pode sobreviver à perda de confiança nos desígnios teleológicos de um futuro vislumbrado mas sempre exige a formulação de novas promessas E mesmo presos ao presente temos sempre a possibilidade de um compromisso a assunção da responsabilidade pela promoção de um elo temporal entre os educandos e o mundo comum um elo temporal que os familiarize com o instituído e assim os autorize a instituir o novo Pois na feliz formulação de Revaut dAllones começar é começar a continuar Mas continuar é também continuar a começar José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 74 IV EDUCAÇÃO E LIBERDADE DA POLÊMICA CONCEITUAL ÀS ALTERNATIVAS PROGRAMÁTICAS A diferença decisiva entre as infinitas improbabilidades sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que na dimensão humana conhecemos o autor dos milagres São os homens que os realizam homens que por ter recebido o dúplice dom da liberdade e da ação podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito Hannah Arendt Liberdade essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda Cecília Meireles Apresentação Não é preciso grande familiaridade com a produção teórica em educação para se dar conta da importância que o tema das relações entre educação e liberdade ganhou nos discursos pedagógicos a partir do início do século XX Ele aparece por exemplo em títulos de obras que se tornaram clássicas no campo como as de A S Neil 1971 1984 Carl Rogers 1978 Paulo Freire 1967 e Ivan Illich 1990 De forma menos direta mas igualmente central ele é uma preocupação recorrente nos escritos de John Dewey 1916 1938 e marca as reflexões de Theodor Adorno 2006 e Arendt 2006 sobre a educação Mas a evocação do ideal de uma formação educacional comprometida com a liberdade não se reduz a grandes obras teóricas sobre os fins e o sentido da ação educativa Ela também aparece em diretrizes curriculares e em diplomas legais que regem os princípios dos sistemas nacionais de educação A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB por exemplo estabelece em seu artigo 2o que a educação inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando seu preparo para o exercício da cidadania Brasil 1996 grifo nosso Paralelamente a essa influente produção teórica e aos discursos normativos das políticas públicas de educação projetos pedagógicos de escolas públicas e privadas e falas de professores e gestores dos sistemas de ensino passaram a recorrer frequentemente às noções de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 75 emancipação e autonomia do aluno correlacionandoas ao ideal do cultivo da liberdade a fim de estabelecer objetivos metas e procedimentos que deveriam guiar a ação educativa Ora num campo marcado por controvérsias teóricas e práticas como é o da educação chega a ser surpreendente a aceitação generalizada dos ideais de promoção e cultivo da liberdade como objetivos centrais da formação escolar É possível imaginar que pelo menos em parte esse aparente consenso derive da adesão da era moderna aos princípios de igualdade e liberdade não só como grandes diretrizes de legitimação da vida política mas sobretudo como destaca Tocqueville 1985 como valores extensivos a quase todas as dimensões da vida pessoal e social Assim tudo se passa como se só sob o signo da defesa da liberdade seja ela compreendida como um ideal social de emancipação das condições de vida de uma população como uma modalidade de relação entre professores e alunos como um atributo da vida pública e política ou ainda como uma característica da personalidade individual pudesse a prática educativa encontrar seu fundamento e sua razão de ser Mas se essa adesão generalizada revela um traço comum aos discursos políticos e pedagógicos contemporâneos ela pode também ocultar sob a superfície da unanimidade as profundas divergências teóricas e programáticas presentes em cada uma dessas formas de se conceberem a noção de liberdade e seu papel no âmbito da educação escolar Uma das possíveis consequências desse ocultamento e dessa fusão das divergências num todo unânime e aparentemente coeso é a ideia de que haveria entre os diferentes conceitos e discursos educacionais sobre a liberdade uma solução de continuidade e complementaridade como se por exemplo a liberdade entendida como atributo da vida política da vontade individual ou como uma modalidade de relação pedagógica fossem meros aspectos diversos de um mesmo fenômeno essencial No entanto a adoção dessa perspectiva unificadora e essencialista tende a obscurecer um aspecto central para a análise do problema o fato de que a polissemia presente no uso de conceitos como liberdade ou educação costuma ensejar inúmeras formulações discursivas distintas que por sua vez resultam em disputas tanto teóricas como programáticas Ora se algumas dessas formas de se conceber o José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 76 conceito de liberdade e seus vínculos com a formação educacional podem manter entre si uma relação de complementaridade há também inúmeros casos em que elas travam uma relação de mútua exclusão Assim há ocasiões em que a menos que se explicitem os diferentes pressupostos e critérios de julgamento e ação vinculados a conceitos alternativos de liberdade os discursos educacionais correm o risco de malograr tanto em seu potencial elucidativo como em suas ambições práticas Não se trata de sucumbir àquilo que Passmore 1984 denomina falácia socrática a crença de que uma discussão proveitosa sobre um tema exige definições prévias e exaustivas de seus conceitos fundamentais Basta reconhecer que a proposição de uma formação educacional comprometida com a liberdade ou a denúncia de sua suposta falta tem sido proclamada como se os objetos em tela fossem evidentes e livres de ambiguidades como se as disputas não envolvessem os próprios conceitos em torno dos quais se apresenta a controvérsia e suas possíveis repercussões práticas É importante contudo ressaltar que essa potencial ambiguidade ou polissemia não é inerente ao próprio termo liberdade mas deriva do contexto de seu uso Assim se um prisioneiro diz que almeja a liberdade o termo tem um sentido claro e dá pouca margem a ambiguidades tratase de se livrar da restrição imposta pelo cárcere No entanto essa clareza pode se dissipar em outros contextos linguísticos Num conjunto de discursos políticos por exemplo o termo liberdade pode conter acepções e expressar concepções muito diferentes e mesmo alternativas entre si Não seria de estranhar que nesse contexto um discurso que exaltasse a liberdade se referisse ora à liberdade de escolha de uma confissão religiosa ou à liberdade de iniciativa econômica ora ou à libertação de condições de vida materialmente opressivas ou à liberdade de escolha do consumidor Nos discursos educacionais a possível variabilidade em geral irreconciliável de acepções do termo liberdade não parece ser menor do que aquelas que caracterizam seu uso político Ressaltese que em ambos os casos as distinções não se limitam a eventuais aspectos complementares de um mesmo núcleo essencial Ao contrário elas espelham disputas e controvérsias teóricas e práticas e constituem o que Scheffler 1978 chama de definições programáticas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 77 O reconhecimento do caráter programático de uma definição ou de um conceito não é um problema estritamente formal pois se vincula a seu uso num contexto linguístico determinado Assim uma mesma formulação verbal pode ter uma função meramente elucidativa ou um caráter programático dependendo de seu papel em cada caso particular Ao enunciar uma definição do termo arte por exemplo um professor pode pretender apenas ilustrar seu uso corrente para um jovem que o desconhece Mas essa mesma formulação verbal pode ter outro papel numa discussão sobre critérios estéticos e o caráter artístico ou não de determinada obra Nesse caso a eventual associação do conceito de arte à noção de belo ou sublime por exemplo não visaria simplesmente elucidar um uso corrente do termo mas sim fixar parâmetros intersubjetivos a partir dos quais seria possível distinguir o que caracterizaria uma obra de arte por oposição por exemplo a um objeto de uso cotidiano ou a um mero adorno e o que deveria ficar fora desse campo conceitual Nesse sentido as disputas acerca do conceito de arte de sua vinculação ou não à noção de beleza por exemplo não se resumem a desacordos verbais ou terminológicos mas espelham embates relacionados a valores e princípios que regem práticas sociais A adoção de uma ou outra perspectiva tem consequências tanto teóricas como práticas A aceitação ou rejeição de um determinado conceito de arte pode ter implicações de ordem prática como a mudança do estatuto de determinado objeto a legitimidade de sua presença num museu e até alterações em seu valor de mercado O mesmo vale para disputas em torno de conceitos ligados a práticas pedagógicas A luta pela manutenção restrição ou dilatação do campo semântico de um conceito como o de avaliação além de uma disputa teórica pode representar também um embate prático em torno da legitimidade de certos procedimentos com evidentes consequências no campo da educação Concebêla alternativamente como atividade pontual de mensuração da aprendizagem ou como processo contínuo de diagnóstico de progressos e dificuldades envolve mais do que uma simples disputa terminológica ou conceitual pois cada uma dessas conceituações implica também a aceitação rejeição ou legitimação de certas práticas para as quais se busca adesão tanto no plano discursivo como no prático Assim o recurso a uma definição programática ou a uma conceituação persuasiva não visa a mera elucidação do uso corrente de um termo como por José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 78 exemplo quando enunciamos as características de um vírus e suas diferenças em relação à noção de célula ou organismo Ao sugerir como legítimo e adequado o uso programático de um conceito de alta relevância social propõese simultaneamente sua vinculação a um campo semântico impregnado de valores que se expressam na luta pela manutenção transformação ou restrição de práticas sociais com as quais ele pode ou deve ser identificado Pensese por exemplo nos debates marcantes na segunda metade do século XX envolvendo o conceito de democracia De um lado o termo era diretamente associado ao liberalismo político e ao pluripartidarismo de outro à igualdade de acesso a direitos sociais e à elevação das condições de vida da classe trabalhadora O cerne da disputa entre concepções alternativas e programáticas de democracia não era apenas um problema de elucidação teórica O que estava em jogo era também ou mesmo fundamentalmente a restrição ampliação ou justificação de práticas sociais que pudessem se identificar com o prestígio do termo democracia Assim em meio ao clima de disputas políticas do pósguerra os debates acerca desse conceito adquiriram um caráter programático e persuasivo O caráter programático e persuasivo das disputas conceituais no campo da educação decorre de sua necessária vinculação a questões de ordem ética e política já que nelas se busca simultaneamente legislar acerca do uso legítimo de um termo e influenciar práticas pedagógicas e políticas educacionais Mas o reconhecimento dessa dupla função dos discursos educacionais não deve elidir o fato de que como lembra Scheffler 1978 p 41 o salto que vai da definição à ação é largo e arriscado e a eventual adequação de uma formulação discursiva não deve implicar a aceitação automática de princípios de ação a ela associados Por isso é oportuno ter em mente que A educação assim como a arte a literatura e outros aspectos da vida social apresenta estilos e problemas cambiantes em resposta a condições cambiantes Estas últimas exigem decisões que determinem nossa orientação prática face a elas Tais decisões podem ser incorporadas na revisão de nossos princípios de ação ou nas nossas definições dos termos e conceitos pertinentes ou em ambas ao mesmo tempo Não existe nenhuma visão interna especial de significações que nos diga como devem ser feitas as revisões e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 79 ampliações O que importa aqui não é uma inspeção das únicas significações autênticas dos termos em disputa mas uma investigação à luz de nossos comprometimentos das alternativas práticas que estão abertas para nós bem como das maneiras de levar a efeito as decisões desejadas Scheffler 1978 p 42 Não se trata pois de buscar o autêntico conceito de avaliação ou de liberdade por exemplo cuja adequação rigor ou consistência teórica implicaria a aceitação imediata de um programa prático por ele veiculado ou a ele associado Isso porque para além da análise de aspectos teóricos e conceituais o exame de um discurso programático exige ainda a consideração do valor prático e da pertinência ética e política de suas propostas E embora interligadas essas duas dimensões de um discurso programático não se confundem de modo que a consistência ou a adequação de uma perspectiva teórica não pode ser tomada como signo do valor prático do programa de ação a ela associado Assim ao invés de nos isentar do julgamento das decorrências práticas da adesão a um determinado discurso programático a análise das disputas conceituais nos convoca a buscar clareza sobre a natureza dos diferentes embates em pauta Ao assim fazer esse tipo de análise permite romper a aparente unidade e coesão da aceitação retórica de um ideal ou objetivo educacional que se apresenta inicialmente como consensual e acima de disputas Em texto publicado na década de 1980 analisando a adesão generalizada ao ideal de democratização do ensino Azanha ressaltou que é a unanimidade na superfície e a divergência profunda acerca do significado de democracia que torna muito difícil o esclarecimento da noção derivada de ensino democrático pois não é a profissão de fé democrática que divide os educadores brasileiros mas é nos esforços de realização histórica desse ideal que as raízes das posições e das divergências se revelam 1982 p 26 Essa unanimidade na superfície a esconder divergências profundas parece ser um fenômeno recorrente nos discursos educacionais extensivo a uma ampla variedade de problemas A título de ilustração tomemos a unanimidade do clamor por uma educação de qualidade Também nesse caso tratase de uma reivindicação aparentemente consensual em favor da qual os mais diversos segmentos sociais no Brasil têm se manifestado há décadas Mesmo ignorando a variação histórica e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 80 considerando apenas alguns agentes e instituições sociais contemporâneos é pouco provável por exemplo que as federações das indústrias e as centrais sindicais o Estado e a família os professores e os responsáveis por políticas públicas tenham todos as mesmas expectativas quanto ao que poderia ser uma educação de qualidade Algo análogo se poderia dizer sobre o que nos leva a adjetivar a ação educativa como sendo de qualidade ou seja a que práticas e resultados recorremos para identificar sua presença em uma instituição e não em outra Carvalho 2013 Para alguns desses segmentos sociais a educação de qualidade deve resultar na aquisição de diferentes informações e competências que capacitarão os alunos a se tornarem trabalhadores diligentes e tecnologicamente atualizados para outros líderes sindicais contestadores cidadãos solidários ou empreendedores de êxito pessoas letradas ou consumidores conscientes Ora é evidente que embora algumas dessas expectativas sejam compatíveis entre si outras são conflitantes e mesmo alternativas pois a prioridade dada a um aspecto pode dificultar ou inviabilizar outro Uma escola que tenha como objetivo maior e portanto como critério máximo de qualidade a aprovação nos exames vestibulares de escolas de elite pode buscar a criação de classes homogêneas e alunos competitivos o que dificulta a oportunidade de convivência com a diferença e reduz a possibilidade de se cultivar o espírito de solidariedade Assim as características que identificam a qualidade numa proposta ou prática educacional podem significar fracasso ou baixa qualidade em outra Por outro lado para certas correntes de pensamento a própria ideia de que uma escola de qualidade deva aterse ao desenvolvimento de competências ou capacidades pode comprometer o ideal educativo já que em seu uso comum nenhum desses termos competência ou capacidade revela um necessário compromisso ético para além da eficácia Platão 1972 por exemplo argumenta nesse sentido em seu diálogo Górgias um orador competente pode usar sua capacidade para persuadir uma comunidade a aceitar tanto uma lei justa como uma lei injusta Assim uma capacidade ou competência se mede pela eficácia dos resultados mas o mesmo não vale para o cultivo de um princípio ético Podese dizer que alguém é um orador competente mas usa sua competência para o mal embora não tenha sentido José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 81 afirmar que alguém é justo para o mal pois neste caso sua ação deveria ser classificada como injusta Assim a ação educativa de qualidade é em Platão essencialmente de natureza política e ética e não apenas um instrumento eficaz no que concerne ao desenvolvimento de competências ou capacidades Embora sumária esta análise acerca de uma disputa conceitual e de suas possíveis consequências práticas ilustra o tipo de dificuldade e a variedade de critérios que emergem ao se refletir sobre as consequências do caráter programático dos discursos educacionais E é evidente trazem à tona a natureza das disputas que se ocultam sob a aparente unanimidade em torno dos discursos que proclamam o cultivo da liberdade como um dos objetivos centrais da formação escolar Liberdade uma polêmica conceitual que gera critérios alternativos de julgamento Antes de analisar seus usos programáticos nos discursos educacionais contemporâneos convém nos debruçarmos sobre alguns aspectos centrais da polêmica conceitual em torno da própria noção de liberdade Para tanto adotaremos como fio condutor inicial da reflexão uma interrogação aparentemente simples Era Sócrates um homem livre Esse procedimento nos permite de um lado discutir certos problemas cruciais que decorem da variedade de conceitos de liberdade e de outro fazer uma análise que os considere tanto em suas formulações mais gerais e abstratas quanto na condição de critérios alternativos aos quais recorremos para ajuizar o significado de eventos históricos ou narrativas de vida como a de Sócrates Em face dessa questão um grego que lhe fosse contemporâneo não hesitaria em responder afirmativamente Sócrates era um cidadão ateniense com direito a voz e voto nas assembleias gozava da isonomia e da isegoria conferida aos homens livres e podia participar da vida pública Assim vivenciava a liberdade não como um atributo de seu pensamento ou de sua vida interior mas como uma experiência junto a seus concidadãos com os quais se reunia debatia e agia na praça pública a ágora e nos ginásios Ele não era um escravo condenado a permanecer na obscuridade de uma vida José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 82 privada28 e restrita à produção para a satisfação das necessidades do processo vital nem se encontrava sob o jugo de um tirano Era pois livre porque cidadão de uma polis livre Sobre essa concepção de liberdade concebida como atributo da vida política afirma Arendt Antes que se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade a liberdade era entendida como o estado do homem livre que o capacitava a se mover a se afastar de casa a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas em atos e palavras Essa liberdade era evidentemente precedida da liberação para ser livre o homem deve ter se liberado das necessidades da vida O estado de liberdade porém não se seguia automaticamente ao ato de liberação A liberdade necessitava além da mera liberação da companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado e também de um espaço público comum para encontrálos um mundo politicamente organizado em outras palavras no qual cada homem livre poderia inserirse por atos e palavras 2006 147 tradução nossa grifos nossos Assim para Arendt é a partir de nossa experiência com os outros e não do diálogo interior em que um sujeito isolado delibera e escolhe autonomamente que tomamos consciência da liberdade como uma potencialidade da vida política Mas a eclosão da liberdade como fenômeno tangível e público exige mais do que a mera reunião de um coletivo de indivíduos associados Ela requer a existência de um mundo comum que possa servir de palco para a ação e o discurso dos homens É pois na qualidade de um fenômeno mundano que a liberdade pode se realizar como a faculdade humana de trazer à existência aquilo que é novo de fazêlo irromper como um milagre29 capaz de imprimir um rumo até então inesperado ao fluxo dos 28 No contexto da vida pública ateniense a noção de privado idion não se vinculava prioritariamente como passa a acontecer na era moderna à posse de uma propriedade ou à eventual riqueza que ela pode auferir a seu proprietário O termo privado indicava sobretudo um estado de privação Os escravos e as mulheres condenados a permanecer no âmbito privado de sua existência estavam privados da luz pública do mundo comum privados da possibilidade de experimentar a pluralidade como marca do mundo público privados de agir em meio a seus iguais Nesse sentido estavam privados da liberdade como atributo da vida pública Essa dimensão de privação da vida privada passou a ser ignorada a partir da ascensão do critério econômico como o único parâmetro legítimo para a distinção entre os domínios do público e do privado como vimos no capítulo 1 Arendt 2010 cap II 29 Dada sua frequente conotação religiosa a presença do termo milagre no texto de Arendt pode causar estranhamento Não obstante apesar de citar o Evangelho e os ensinamentos de Jesus de Nazaré Arendt se interessa não especificamente por seu sentido religioso e sobrenatural mas por suas implicações filosóficas podemos negligenciar aqui as dificuldades relativas às múltiplas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 83 acontecimentos Ao recuperar essa dimensão fenomênica da liberdade vivida como uma experiência compartilhada e não como uma faculdade da vida interior de cada homem é que Arendt irá tecer seu conceito de liberdade em contraposição à tradição metafísica que a concebeu como um atributo do pensamento e da vontade mas não da ação Foi só a partir do surgimento e da difusão das noções estoica e cristã de liberdade interior concebida como faculdade do espírito que possibilita ao sujeito a deliberação e escolha em face das contingências da vida ou de um dilema ético que a liberdade deixou de ser vista como uma experiência política que ocorre no espaço entreoshomens para se alojar na interioridade da alma humana30 Identificada inicialmente com o livrearbítrio e posteriormente com a faculdade da vontade responsável por arbitrar entre inclinações alternativas a liberdade deixou de se vincular ao poder de ação concertada entre homens para ser concebida como uma modalidade de relação que um indivíduo isolado estabelece com sua consciência ou sua vontade E qualquer que seja a importância desse fenômeno do ponto de vista do sujeito individual ele não pode ser considerado um fenômeno político em sentido estrito porque o diálogo interior requer o isolamento e concerne ao homem no singular isto é ao homem na medida em que seja o que for não é um ser político Arendt 2010 p 5 e o domínio do político diz respeito à pluralidade dos homens que vivem se movem e agem em um mundo comum e não à relação de um homem com sua consciência ou sua vontade Assim só vinculada à ação no âmbito de um mundo comum a liberdade pode ser concebida como a razão de ser da política Arendt 2006 p 149 que dela podemos esperar a possibilidade de ruptura com processos históricos cristalizados em acepções do termo e nos referir apenas às passagens em que os milagres claramente não são eventos sobrenaturais mas somente o que todos os milagres devem ser sempre interrupções de uma série natural de acontecimentos de algum processo automático em cujo contexto constituam o absolutamente inesperado Arendt 2006 p 166 grifos nossos 30 Essa visão de liberdade como um atributo da vontade que independe das condições exteriores do mundo aparece de forma clara em Epicteto apud Arendt 1992 p 244 grifo nosso Tenho que morrer Tenho que ser aprisionado Tenho que sofrer o exílio Mas tenho de morrer gemendo Alguém pode impedirme de ir para o exílio com um sorriso Acorrentarme Vais acorrentar minha perna sim mas não minha vontade não nem mesmo Zeus pode conquistála José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 84 favor da erupção de um novo começo que com seu caráter imprevisto e imprevisível salva o mundo da inevitável ruína provocada pelo desgaste do já instituído Entregues a si mesmos os assuntos humanos só podem seguir a lei da mortalidade O que interfere nessa lei é a faculdade de agir uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana Prosseguindo na direção da morte o período de vida do homem arrastaria inevitavelmente todas as coisas humanas para a ruína e a destruição se não fosse a faculdade humana de interrompêlo e iniciar algo novo uma faculdade inerente à ação que é como um lembrete semprepresente de que os homens embora devam morrer não nascem para morrer mas para começar Arendt 2010 p 307 grifos nossos Assim ontologicamente radicada no homem como faculdade a liberdade se manifesta como um fenômeno tangível e público na ação que ao romper com o passado cria o novo traz à luz algo que não se reduz a uma consequência necessária desse passado nem à atualização de uma potencialidade previamente vislumbrada mas que como um milagre interrompe um processo automático de forma inesperada A violência sabemos gera violência que gerará cada vez mais violência a não ser que ao invés de reagir os homens venham a agir rompendo a expectativa da reprodução e criando uma nova modalidade de convivência É no momento em que se afirmam em atos e palavras como capazes de romper com uma herança que se cristaliza em automatismos sociais que os homens exercem a liberdade pois os homens são livres diferentemente de possuírem o dom da liberdade ao agir nem antes nem depois pois ser livre e agir são uma mesma coisa Arendt 2006 p 151 tradução nossa grifo do original Não há pois na perspectiva do pensamento político de Arendt algo que se possa assemelhar a uma conquista definitiva da liberdade ou a um lugar onde ela se possa instalar de forma estável e duradoura E por mais importante que seja a estabilidade de uma estrutura política que favoreça seu aparecimento no mundo ela não reside no já instituído mas na sempre renovável possibilidade instituinte da ação Nesse sentido o pensamento de Arendt afastase significativamente da visão liberal que identifica a liberdade com a existência de um ordenamento jurídico capaz de proteger os direitos civis e as liberdades individuais Não que a garantia dessas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 85 liberdades seja desimportante para a vida política ou para a possibilidade do aparecimento da liberdade em seu seio mas tal como no caso da liberação da submissão a outrem ou da premência das necessidades do ciclo vital direitos e liberdades civis podem ser considerados précondições importantes para a ação mas não se confundem com o exercício da liberdade como atributo da vida política Seu papel é antes o de proteger o indivíduo inserido numa ordem social de possíveis arbitrariedades e abusos do poder Porém no contexto do pensamento de Arendt as liberdades civis estão fundamentalmente vinculadas à proteção do indivíduo no que concerne às suas escolhas privadas enquanto a liberdade política é essencialmente pública e vinculase à participação nos assuntos públicos Canovan 1992 p 212 Essa distinção entre a liberdade como capacidade de ação política e como garantia de proteção das escolhas privadas do indivíduo corresponde em grande medida à clássica contraposição que Benjamin Constant 1985 afirma existir entre a liberdade dos antigos e a dos modernos E ele identifica esta última com a proteção que uma ordem jurídica oferece a cada um dos cidadãos que se encontra sob a égide de suas leis O que em nossos dias um inglês um francês um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade É para cada um o direito de não se submeter senão às leis de não poder ser preso nem detido nem condenado nem maltratado de nenhuma maneira pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos É para cada um o direito de dizer sua opinião de escolher seu trabalho e de exercêlo de dispor de sua propriedade até de abusar dela de ir e vir sem necessitar de permissão e sem ter que prestar contas de seus motivos ou de seus passos É para cada um o direito de reunirse a outros indivíduos seja para discutir sobre seus interesses seja para professar o culto que ele e seus associados preferirem seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações com suas fantasias 1985 p 81 grifos nossos Ora é evidente que da perspectiva desse conceito de liberdade a resposta à pergunta anterior Era Sócrates um homem livre seria provavelmente outra Poder seia objetar que apesar de cidadão de uma polis democrática Sócrates não tinha nenhuma garantia para exercer livremente seu direito de crítica afinal ela o levou à José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 86 condenação e à morte o que poderia ser interpretado como um claro constrangimento à liberdade individual de consciência escolha e expressão Nessa perspectiva a capacidade de ação política perde a primazia como critério indicativo da liberdade que passa a se fundar na existência da proteção dos direitos individuais Analisando a condenação de Sócrates a partir de uma concepção de liberdade como atributo da vida política o caráter eventualmente injusto do veredito e o excessivo rigor da pena que se lhe impôs poderiam pôr em questão os critérios e procedimentos jurídicos adotados mas não seu estatuto de homem livre que agia entre iguais Já a partir de uma concepção que identifica a liberdade com a garantia e a proteção de direitos individuais não se trata apenas de erro jurídico ou de inadequação de critérios mas do cerceamento da própria liberdade de cada um Nesse sentido a concepção de Constant não só descreve o que um inglês um francês e um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade mas apresenta critérios por meios dos quais se podem avaliar e julgar acontecimentos históricos ordenamentos jurídicos e formas de vida política Generalizada a partir da consolidação das democracias liberais sua perspectiva identifica a liberdade como atributo de um indivíduo de cada um a quem se garante a não interferência em suas escolhas pessoais Tratase pois da liberdade de cada um em relação ao outro e não da liberdade que requer a presença de outros para se atualizar como forma de ruptura com um passado cristalizado Daí a identificação das liberdades civis modernas com a noção de liberdade negativa cuja defesa vincula se às garantias de não interferência do Estado ou da sociedade em âmbitos fundamentais da vida de um indivíduo Como destaca I Berlin 2002 um dos maiores expoentes dessa visão de liberdade a defesa da liberdade consiste na meta negativa de evitar a interferência Essa é a liberdade como foi concebida pelos liberais no mundo moderno desde Erasmo aos nossos dias Toda reivindicação de liberdades civis e direitos individuais todo protesto contra a exploração e a humilhação contra o abuso da autoridade pública ou a hipnose de massa do costume ou da propaganda organizada nasce dessa concepção individualista e muito controvertida acerca do homem p 262 grifo nosso José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 87 É importante frisar que não se trata da mera substituição histórica de um conceito por outro tido como mais adequado ou preciso como no caso do conceito de movimento na física moderna em relação à aristotélica Tampouco de duas concepções que por incidirem sobre aspectos diferentes da experiência de liberdade podem ser justapostas ou harmonizadas sem grandes conflitos Embora não sejam logicamente incompatíveis essas concepções de liberdade como atributo da vida política ou garantia de não interferência nas liberdades individuais representam perspectivas históricas alternativas engendradas por modos de vida diferentes e alimentadas por princípios muitas vezes conflitantes Assim por exemplo segundo Arendt no seio do pensamento liberal o domínio do político acabará por se reduzir ao âmbito do governo dos indivíduos e da gestão salvaguarda e expansão da produção econômica o que obscurece a política como forma de cuidado com o mundo comum e com a teia de relações que os homens nele estabelecem Essa sujeição do político ao econômico terá como consequência um deslocamento na própria forma de se conceber a liberdade que deixa de ser um atributo da vida pública para se transformar em liberdade da política pois o que se espera de um governo é que ele libere os cidadãos da política para que eles possam se dedicar à prosperidade econômica e a seus interesses privados Por isso para o pensamento liberal quanto menor o espaço ocupado pelo político maior é o domínio deixado à liberdade já que em sua perspectiva o grau de liberdade de uma comunidade política qualquer pode ser estimado pelo livre escopo que ela garante a atividades aparentemente não políticas Arendt 2006 p 148 tradução nossa Fica claro com esse exemplo que tratar a liberdade alternativamente i como processo de deliberação e escolha do sujeito no curso de um diálogo interno com sua consciência ii como um ordenamento jurídico que garante proteção aos direitos individuais ou iii como possibilidade da eclosão do novo por meio da ação política tem repercussões que ultrapassam as meras divergências terminológicas Identificar a liberdade um termo impregnado de forte carga emotiva positiva com cada um desses campos conceituais específicos implica uma forma diferente de compreender e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 88 atribuir sentido às experiências humanas de pensar as relações que estabelecemos com nossa consciência e com as formas pelas quais interagimos no mundo E embora eles não tenham necessariamente uma intenção programática a adesão aos princípios de cada um desses campos conceituais pode ter um impacto considerável no modo pelo qual pensamos e nos posicionamos em face dos desafios de viver juntos em um mundo comum aí compreendido o desafio de pensar o sentido e as formas de intercâmbio entre as diferentes gerações que coabitam e se sucedem nesse mundo É evidente que as concepções apresentadas aqui não esgotam a diversidade de conceitos de liberdade e as perspectivas de análise que deles podem emergir O que se buscou com essa breve exposição foi apenas ilustrar os possíveis vínculos entre os campos conceituais em que elas se desenvolveram e a forma como a eles recorremos para compreender e julgar eventos históricos e vidas humanas discutindo seu estatuto de livres ou procurando reconhecer a natureza de seu compromisso com o cultivo e a promoção da liberdade No caso específico dos discursos educacionais a análise da diversidade de formas e perspectivas que esse tipo de compromisso pode tomar requer ainda uma cautela adicional Se ao historiador ou ao teórico da política o conceito de liberdade pode fornecer categorias a partir das quais ele busca compreender uma experiência ou ajuizar seu sentido no campo dos discursos educacionais a adoção de uma concepção de liberdade costuma associarse também à difusão de diretrizes e preceitos práticos a ela vinculados Isso porque como afirma Durkheim 1965 a pedagogia caracterizase como uma arteprática na qual os aportes teóricos tanto dão inteligibilidade ao real como fornecem possíveis princípios e diretrizes capazes de inspirar propostas e promover adesões a práticas pedagógicas a eles vinculadas31 31 Evidentemente essa vinculação não necessária do ponto de vista lógico Um princípio não carrega em si as regras de sua aplicação daí a possível variedade de práticas inspiradas em um mesmo conjunto de princípios teóricos como no caso do construtivismo educacional Não obstante não é raro que a uma corrente teórica se associe um conjunto de práticas mais ou menos difusas de forma que esses dois aspectos apareçam frequentemente como se fossem imediatamente vinculados A esse respeito ver A teoria na prática é outra Carvalho 2013 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 89 Liberdade como prática pedagógica o discurso das pedagogias da autonomia Dentre a diversidade de discursos pedagógicos que proclamam ter um compromisso com os ideais de liberdade Singer 2010 p 15 há um conjunto de propostas e experiências que não obstante a diversidade de pressupostos e perspectivas teóricas em que se fundam têm sido agrupadas como integrantes de uma mesma tendência pedagógica geral Sua influência ao menos no que concerne às práticas discursivas tem sido de tal forma avassaladora entre educadores que Yves de la Taille chega a afirmar que de todas as inovações educacionais de que tivemos notícias durante o século XX as chamadas escolas democráticas nas quais os alunos criam regras de convívio e escolhem o que querem estudar foram as que mais intrigaram encantaram ou assustaram La Taille 2010 p 11 De fato ainda que sua presença nas redes públicas e privadas seja numericamente irrelevante32 as ditas escolas democráticas ou as pedagogias não diretivas como as denomina criticamente Georges Snyders 2001 transformaram se na principal referência teórica atual para a discussão acerca dos vínculos entre a formação escolar e o cultivo da liberdade Popularizadas no Brasil a partir da segunda metade do século XX essas teorias gozam desde então de imenso prestígio entre educadores e intelectuais ligados à educação Não se trata como reconhecem tanto seus entusiastas como seus críticos de um movimento pedagógico coeso Entre seus adeptos no plano teórico podemos encontrar perspectivas tão diversas quanto as de Alexander Sutherland Neil 1971 1984 Jean Piaget 1998 Carl Rogers 1978 Gilles Ferry 1985 e Michael Apple e James Beane 2001 entre outros No campo das experiências práticas elas têm como referências desde a veterana Summerhill até iniciativas mais recentes como a Escola da Ponte em Portugal ou as diversas escolas 32 Mesmo que como Singer 2010 admitamos que as escolas democráticas se tenham espalhado por diversos países e até influenciado políticas públicas de educação em Israel o fato é que elas seguem sendo há quase um século experiências isoladas dentro da totalidade de instituições das redes públicas e privadas No caso particular do Brasil sua presença se faz sentir de forma mais intensa junto à rede de escolas privadas classificadas como alternativas cujo acesso é restrito a uma elite social e econômica fato deveras incômodo para uma pedagogia que se pretenda democrática José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 90 europeias e latinoamericanas retratadas no documentário A educação proibida33 O que autorizaria pois o agrupamento de um conjunto tão heterogêneo em termos de referências teóricas convicções políticas e propostas pedagógicas sob um mesmo rótulo Segundo Singer 2010 p 15 apesar das significativas diferenças praticamente todas essas experiências e os discursos em que se apoiam teriam duas características em comum gestão participativa e uma organização pedagógica em que os estudantes definem suas trajetórias de aprendizagem sem currículos compulsórios Assim a despeito de suas diferentes inspirações teóricas e da variedade de procedimentos didáticos que adotam essas correntes pedagógicas que passamos a chamar de pedagogias da autonomia34 comungam dois pressupostos distintos e complementares O primeiro diz respeito a uma visão de infância impregnada do otimismo escolanovista segundo o qual bastaria garantir liberdade às crianças para que elas viessem a desenvolver a capacidade de se autogovernar bastaria que fossem poupadas do autoritarismo adulto para que se tornassem capazes de alcançar a autonomia moral e que fossem protegidas das tiranias curriculares para que se tornassem capazes de por si mesmas organizar sua aprendizagem La Taille 2010 p 12 Assim ao mesclar e veicular ainda que de forma simplificada e heterodoxa as visões de infância presentes em obras clássicas como as de Rousseau Freud ou Piaget essas correntes pedagógicas procuraram difundir uma nova concepção acerca da natureza do mundo infantil e de suas relações com a aprendizagem e assim induzir a renovação e modernização das práticas escolares O segundo pressuposto por elas compartilhado vinculase ao caráter estritamente moderno e individualista da noção de liberdade que adotam concebida não como uma potencialidade de ação no mundo mas como uma forma de proteção da criança em relação a normas e imposições sociais Assim elas se aproximam da 33 La educación prohibida 2012 é uma produção independente em que se entrevistam cerca de 90 educadores europeus e latinoamericanos sobre formas supostamente inovadoras de se pensarem o espaço e as práticas escolares 34 A escolha dessa denominação evita tanto a carga positiva que seus adeptos pretendem ao associála ao adjetivo democrática quanto à imagem negativa já associada à crítica de Snyders da qual embora partilhemos alguns elementos também discordamos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 91 concepção negativa de liberdade já que de acordo com sua visão uma formação educacional comprometida com a liberdade requer práticas centradas nos interesses de cada criança e na singularidade de sua experiência e de suas expectativas evitando interferências exteriores a seu próprio caminho e ritmo de desenvolvimento Num exemplo tão simples quanto frisante da transposição dessa noção de liberdade negativa para o campo pedagógico um dos grandes expoentes dessa tendência afirma A liberdade numa escola é simplesmente fazer o que se gosta de fazer desde que não estrague a paz dos outros e na prática isso funciona maravilhosamente bem É relativamente fácil ter essa espécie de liberdade em especial quando ela é acompanhada de autogoverno por toda a comunidade e se é livre de qualquer tentativa adulta para guiar sugerir deitar regras quando se é livre de qualquer medo dos adultos Neil 1978 p 160 É evidente que essa formulação radicalmente liberal de Neil não seria aceita sem reservas por todas as variantes que se identificam com as pedagogias da autonomia porque especialmente a partir dos anos 1960 proliferaram versões dessa corrente pedagógica que lhe atribuíam um caráter social alegadamente revolucionário vinculandoa a ideais anarquistas ou marxistas No entanto é interessante notar que mesmo em algumas de suas formulações mais radicais como as de Singer que nela vislumbra uma forma de resistência ao poder o domínio do político a exemplo do que ocorre nas teorias liberais é concebido como resultante da somatória das características pessoais de seus membros individualmente considerados Daí a suposta importância de uma experiência pedagógica em que cada um possa fazer suas escolhas e participar de mecanismos de deliberação conjunta para a formação de cidadãos autônomos Entendese que essa sociedade verdadeiramente democrática só será possível se seus membros forem pessoas de iniciativa responsáveis críticas em uma palavra autônomas O discurso das escolas democráticas voltase justamente para esse tipo de formação Singer 2010 p 16 O pressuposto é pois o de que a sociedade democrática exige indivíduos democráticos e que caberia à escola formálos Ora é evidente que se pode atribuir à escola o compromisso de procurar cultivar princípios políticos caros a uma sociedade José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 92 republicana e democrática e que para sua realização podemos lançar mão de inúmeros recursos e procedimentos inclusive a organização de assembleias discentes Mas vincular as condições de possibilidade só será possível de uma sociedade democrática à formação prévia de personalidades democráticas é em primeiro lugar um equívoco do ponto de vista histórico O florescimento da democracia ateniense não foi precedido mas sucedido por uma democratização de práticas educativas que até as reformas de Clístenes eram privilégio da aristocracia Mesmo no Brasil contemporâneo a democratização do acesso à escola básica não precedeu mas antes resultou de um longo processo de lutas políticas visando à democratização da vida social Ademais a convicção de que uma verdadeira democracia exige o desenvolvimento prévio de certos traços de personalidade em seus cidadãos além de questionável do próprio ponto de vista da lógica democrática que se autoinstitui e se fortalece na exata medida em que rejeita prérequisitos como condição de participação na vida pública esbarra em paradoxos insolúveis se a democracia exige a formação prévia de cidadãos dotados de qualidades democráticas como poderá uma sociedade não democrática desenvolver instituições formativas capazes de empreender tal tarefa Aceitando esse pressuposto não estaríamos a negar a vinculação da democracia com o vigor de uma vida pública em meio à pluralidade para concebêla como uma forma de vida social passível de ser fabricada pela escola Essas questões nos levam a um segundo problema desse pressuposto Tratase do fato de que concebida como uma modalidade de prática pedagógica e identificada com procedimentos escolares a liberdade se vê destituída de seu caráter político para se reduzir a um fazdeconta pedagógico Azanha 1987 segundo o qual ela se traduziria na faculdade atribuída a um aluno de deliberar sobre os rumos de sua vida escolar Desse modo para as pedagogias da autonomia a liberdade se efetivaria na medida em que lográssemos liberar as crianças das tiranias curriculares e da opressão de sua criatividade supostamente resultante da transmissão de normas regras e procedimentos por meio do ensino escolar Daí que a própria noção de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 93 ensino passe a ser identificada como um exercício de poder normalizador35 a ser abolido das instituições que se pautam pelo compromisso com a liberdade Como se as práticas não diretivas não tivessem também elas seus próprios efeitos normalizadores Ora de um ponto de vista estritamente pedagógico essa visão parece ignorar que ao apresentar um modo de proceder que caracteriza um ramo do conhecimento como a noção de hipótese no campo das ciências ou ao mostrar as regras que presidem a composição de um soneto um professor não necessariamente tolhe a liberdade do aluno Ele pode apenas explicitar parâmetros a partir dos quais uma prática social como a ciência a literatura ou o futebol se organiza e é julgada em seus méritos Orientar um aluno a se ater a quatorzes versos para compor um soneto não o impede de escrever seu próprio soneto é simplesmente condição necessária para que sua produção seja classificada e avaliada na condição de soneto Da mesma forma ensinar a um iniciante as regras do futebol não o impede de criar seu estilo próprio de jogar é antes uma condição necessária para que isso venha a acontecer É claro que muitas vezes as formas pelas quais regras procedimentos e cânones de avaliação são apresentados no contexto da educação escolar podem ser inadequadas para os propósitos educativos de iniciação e cultivo de uma tradição intelectual e as denúncias das pedagogias da autonomia a esse respeito permanecem válidas mas isso não abole a necessidade de sua apresentação nem implica que seu ensino represente um cerceamento da liberdade do aluno Existe uma ideia romântica um tanto generalizada de que ensinar às crianças a maneira de fazer coisas é traválas como se as atássemos em cordas Não obstante ter do ensino uma visão correta é compreendêlo como um exercício por meio do qual os alunos aprendem a evitar e reconhecer determinadas confusões bloqueios desvios e terrenos perigosos e movediços Capacitálos para que 35 É evidente que não se pretende negar a existência de um poder normalizador das instituições escolares nem tampouco ignorar o fato empírico de que muito do que nelas tem ocorrido visa antes à conformação de condutas a certos padrões preestabelecidos do que à emancipação de um sujeito No entanto atribuir esses fatos à atividade de ensino é simplificar sobremaneira o problema do ponto de vista de seus condicionantes sociais e ignorar distinções conceituais básicas como as que opõem ensino a doutrinação conformação ou treinamento Além disso seria extremamente ingênuo ou perigosamente astuto alegar que as práticas pedagógicas propostas pelas pedagogias da autonomia estão isentas de produzir seus próprios efeitos normalizadores em seus alunos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 94 evitem dificuldades desastres incômodos e desperdício de esforços é ajudálos a moverse em direção ao que desejam Os sinais de trânsito em sua maioria não impedem a corrente do tráfego previnem os obstáculos que poderiam impedila Ryle 1968 p 115 Assim a despeito da sedução que têm exercido entre intelectuais e educadores que se autoidentificam como progressistas e mesmo revolucionários as pedagogias da autonomia nasceram e se desenvolveram sob a égide do conflito moderno entre indivíduo e sociedade E sua concepção de liberdade como o direito de cada um fazer as próprias escolhas vinculase e reproduz acriticamente o ideário do liberalismo individualista que marca seu surgimento Mesmo em suas atividades pretensamente mais politizadas como as assembleias escolares a noção de liberdade não ultrapassa a da capacidade de criação de um conjunto de regras de convívio num simulacro pedagógico de república como se o pátio escolar pudesse se transfigurar numa ágora prépolítica No entanto como lembra Azanha a liberdade na vida escolar por ilimitada que seja ocorre num contorno institucional que pela sua própria natureza é inapto para reproduzir as condições da vida política 1987 p 42 Assim mesmo que assembleias e fóruns de discussão discente sejam recursos pedagógicos eventualmente eficientes ou interessantes para a formação educacional tomálos como exercícios de liberdade política é deixarse embair pelo fetiche do procedimento como se no rito abstraído de seu contexto residisse a substância do fenômeno A seu favor talvez não possamos nem sequer alegar que sejam formas de preparação para a liberdade da vida democrática isso implicaria conceber a faculdade da liberdade política como uma espécie de capacidade técnica passível de ser aprendida por meio de exercícios abstratos tal como quando se praticam a leitura e a escrita de famílias silábicas ba be bi como forma de preparação para a escrita em contextos não escolares36 Ora na qualidade de atributo da vida política a liberdade 36 Bernard Lahire 2008 comenta com razão a tendência crescente de pedagogização das relações sociais de aprendizagem que passa a vincular qualquer tipo de aprendizado ao exercício de técnicas fragmentadas e abstraídas do contexto em que transcorre uma prática social Assim a exemplo das técnicas que a escola francesa do século XVIII desenvolveu para a aquisição da língua escrita o aprendizado da música se fragmentou em seus componentes constitutivos solfejo ritmo etc Da mesma maneira as escolas de futebol passaram a exercitar fundamentos passes chutes e dribles em abstração de seu uso concreto e integrado num jogo Seja qual for sua eficácia na aquisição de alguns saberes escolares ou práticas sociais o fato é que sua aplicação não pode ser generalizada a José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 95 relacionase com o caráter aberto do futuro humano com a capacidade de romper com a reprodução do passado em favor de algo até então imprevisível o que não equivale à capacidade de deliberação entre opções de antemão anunciadas Daí que a ideia de uma preparação para a liberdade política possa soar tão absurda quanto a obrigação de ser espontâneo Além disso no contexto de uma experiência escolar as escolhas e os procedimentos adotados devem sua legitimidade a seu potencial educativo e não a qualquer outro efeito secundário que possam vir a ter Assim as decisões de uma assembleia de alunos serão sempre julgadas a partir de seu potencial formativo na constituição de um sujeito que se insere num mundo que lhe antecede e que abriga tradições culturais e formas de vida nas quais compete à escola iniciar seus alunos Esse processo de iniciação dos novos em heranças culturais e formas de vida é ao mesmo tempo condição necessária para a durabilidade do mundo e para a constituição da singularidade de cada sujeito que dele participa e que nele é acolhido por meio da educação Não há pois uma cisão entre o cuidado do mundo de suas heranças simbólicas e formas de vida e a constituição de um sujeito A autoconstituição selfrealization dos seres humanos não é a realização de um fim predeterminado tampouco é uma potencialidade infinita desconhecida que a herança de realizações humanas tanto pode fazer malograr como promover Os sujeitos que se autoconstituem não são abstrações racionais são personalidades históricas estão entre os componentes deste mundo de realizações humanas e não existe para um ser humano outra maneira de se constituir como sujeito que não seja aprendendo a reconhecerse no espelho desta herança Assim pôr uma civilização ao alcance do aluno não é pôlo em contato com os mortos nem reproduzir ante seus olhos a história social da humanidade Iniciar um aluno no mundo das realizações humanas é pôr ao seu alcance muitas coisas que não se apoiam na superfície do mundo presente Uma herança pode conter coisas caídas em desuso abandonadas ou esquecidas Conhecer somente o predominante é familiarizarse com uma versão atenuada dessa herança Verse refletido no espelho do mundo atual é ver a imagem tristemente distorcida de um ser humano porque nada nos autoriza a crer que estamos diante da parte mais valiosa de nossa herança ou que o melhor sobrevive com maior facilidade do que o todo e qualquer campo da experiência humana sob o risco de trivializar e degradar aspectos fundamentais da vida privada ou social que não se coadunam com qualquer sorte de pedagogização como a sexualidade ou a política José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 96 pior E nada sobrevive neste mundo sem o apreço humano Oakeshott 1968 p 167 Nesse sentido e mesmo que não tenha sido essa a intenção das pedagogias da autonomia sua ênfase na liberdade como atributo do indivíduo se faz ao custo da negação do mundo e da desvalorização da política como uma resposta digna à pluralidade dos homens que habitam e renovam seu mundo comum Em verdade essa negação não se origina nas práticas nem nos discursos pedagógicos mas no próprio declínio a que a política foi submetida como forma de existência a partir da ascensão de uma sociedade de consumidores Assim as pedagogias da autonomia importam para o âmbito dos discursos escolares a desconfiança generalizada e os preconceitos do mundo moderno em relação ao domínio público e à atividade política Não por acaso seu desenvolvimento e difusão coincidiram com as experiências traumáticas das guerras mundiais e da ascensão de regimes totalitários na Europa O caráter inóspito do mundo que então emergiu passou a desafiar as próprias condições de possibilidade da educação As experiências generalizadas a que as pessoas foram submetidas de abandono e superfluidade dos seres humanos radicalmente opostas ao pertencimento a um mundo compartilhado Almeida 2011 p 80 minaram o próprio sentido da educação como processo de iniciação em um mundo comum De forma análoga foi na vigência da ditadura militar no Brasil que a concepção de liberdade presente nos discursos das pedagogias da autonomia passou a ganhar proeminência nos debates entre intelectuais e educadores como se sua presença no contexto escolar pudesse fazer frente a seu desaparecimento no espaço público Tal como no caso da emergência da ideia estoica da liberdade como atributo da vida interior que se seguiu à dissolução da democracia e da autonomia da polis foi na ausência do vigor da vida pública moderna que o ideal da liberdade como atributo da vontade ou como proteção do indivíduo prosperou e se consolidou Talvez pudéssemos cogitar a título de hipótese que a presente revalorização do ideário das pedagogias da autonomia hoje associado também ao discurso das competências do aprendiz tampouco deva ser dissociada do crescente processo de desqualificação da política Já não se trata do embate contra forças tirânicas ou José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 97 totalitárias mas antes do enfraquecimento da política em face da naturalização da administração da sociedade reduzida a um organismo econômico e produtivo Daí a compatibilidade e a coincidência entre os discursos que pregam a autonomia pessoal a responsabilização individual e o compromisso da educação com o desenvolvimento no indivíduo de competências supostamente necessárias a um futuro mercado de trabalho37 Assim imputase ao que sempre foi considerado o centro das disputas e deliberações de políticas educacionais currículo objetivos avaliação o caráter de um curso necessário imposto ao presente por supostas demandas do desenvolvimento tecnológico e do progresso econômico futuro Silva 2001 Mas as críticas a alguns dos pressupostos fundamentais das pedagogias da autonomia não devem ser tomadas como se representassem uma rejeição in totum das questões que elas levantam Há aspectos relativamente recorrentes em seus discursos como a consideração das diferenças culturais e individuais dos alunos ou seu caráter de sujeitos que interagem com o processo educativo que representam contribuições significativas ao debate educacional Em particular merece atenção e apreço a ideia cara a certos segmentos das pedagogias da autonomia de que a própria convivência escolar deve ser pautada por alguns valores fundamentais da cidadania democrática como o respeito à pluralidade e à diversidade Assim tal como Snyders 2001 p 10 acreditamos que seu sucesso junto a um grande número de professores e dos mais apaixonados é testemunho da realidade das contradições que denunciam Mas acreditamos também que o êxito generalizado das pedagogias da autonomia e a difusão de seus ideais por meio de slogans e palavras de ordem têm levado professores e amplos segmentos da comunidade acadêmica a tratar essas palavras novas como se fossem as únicas possívelis Ibidem como se a crítica a seus pressupostos representasse necessariamente a negação do compromisso da educação com a liberdade ou a adesão a um inimigo abstrato contra o qual elas têm 37 Vejamse por exemplo os relatórios de educação da OECD 2013 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 98 voltado todas as suas críticas a escola tradicional38 o que evidentemente não é o caso Do amor ao mundo ao milagre do novo uma perspectiva arendtiana para o vínculo entre educação e liberdade As críticas de Arendt 2006 p 177 ao pressuposto pedagógico de que haveria um mundo das crianças e que para respeitar sua autonomia os adultos deveriam deixar que elas se autogovernassem são radicais Em primeiro lugar porque a ideia de um mundo das crianças implica a recusa da dimensão histórica do mundo a negação da durabilidade pública desse artifício humano capaz de abrigar as práticas e tradições culturais que nele surgiram e se desenvolveram Mas implica também o abandono das crianças a seus próprios recursos e às contingências de sua vida Isso porque o direito ao acesso a um conjunto selecionado de experiências simbólicas e narrativas que procuram compreender e dar sentido à experiência humana nesse mundo comum deixa de ser concebido como uma obrigação da instituição escolar e passa a estar sujeito aos interesses daquele que aprende Uma mudança cujo impacto de um ponto de vista exclusivamente pedagógico pode não ser intenso para as crianças que já têm familiaridade com a cultura letrada em seu ambiente privado mas que tende a ser desastrosa para aqueles que dependem quase exclusivamente da escola para adquirir o repertório exigido por esse tipo de cultura Em segundo lugar porque para Arendt 2006 p 178 tradução nossa ao emanciparse da autoridade dos adultos a criança não foi libertada e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica que é a tirania da maioria Sem um espaço público organizado de forma a poder acolher a pluralidade de visões e perspectivas e garantir a possibilidade do dissenso e da ação em concerto a mera deliberação pela maioria não necessariamente significa um compromisso com a 38 Como temos reiterado em diversas ocasiões foi o próprio discurso escolanovista que criou a ideia da existência de uma escola e de um ensino tradicional fundada numa descrição caricatural de práticas escolares que deveriam ser substituídas por suas modernas e supostamente científicas prescrições didáticas e metodológicas Cf Carvalho 2001 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 99 liberdade e a democracia como o prova a adesão maciça que os regimes totalitários receberam quando de sua ascensão ao poder Se mesmo para adultos já formados não é fácil resistir à pressão social para que se conformem às opiniões predominantes no caso de pessoas em formação como são as crianças expor uma visão singular que esteja em desacordo com a maioria de seus pares pode ser segundo Arendt uma experiência traumática e ainda mais opressiva do que a sujeição ao eventual poder arbitrário de um único adulto o professor Não é pois pela adoção de práticas pedagógicas deliberativas nem pela criação de novas modalidades de relação interpessoal entre educadores e educandos que se traduzirá no quadro do pensamento arendtiano o compromisso da formação educacional com a liberdade Mas se a recusa em atribuir a essas práticas pedagógicas o estatuto de um compromisso com a liberdade é explícita em Arendt o mesmo não pode ser dito de sua concepção sobre a relação entre a formação educacional e o caráter essencialmente político da liberdade Em seu texto sobre a crise da educação o tema só aparece indiretamente mas em momentos cruciais É possível vislumbrálo por exemplo em sua recusa à fusão do domínio do político com o da educação já que a tentativa de fabricar uma ordem social e política por meio da educação retiraria das mãos dos recémchegados sua própria oportunidade em face do novo Arendt 2006 174 tradução nossa grifos nossos e também quando ela deposita suas esperanças de renovação do mundo no novo que cada geração traz Ibidem p 189 grifos nossos Mas talvez sua mais contundente afirmação sobre a natureza dessa relação ocorra no parágrafo final do texto quando Arendt resume toda a riqueza de suas reflexões ao apontar a educação como uma atividade que nos desafia a julgar e a definir nossa atitude em face do mundo e da natalidade E assim o é porque a educação nos obriga a decidir se amamos mundo o suficiente para assumir a responsabilidade por ele e com tal gesto salválo da ruína que seria inevitável Arendt 2006 p 193 tradução nossa e ao mesmo tempo a decidir se amamos as crianças o suficiente para não arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender algo novo e imprevisto por nós Arendt 2006 p 193 tradução nossa grifos nossos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 100 Assim é precisamente na intersecção entre o amor e o cuidado do mundo e a fé e a esperança na natalidade que se manifesta o compromisso dos educadores com a liberdade Um compromisso que não se confunde com a adoção de um procedimento pedagógico padronizado seja ele qual for mas que se revela na atitude do educador em face do mundo e dos que a ele chegam por meio da natalidade Em Arendt o amor ao mundo a exemplo da fé e da esperança em sua renovação se vincula mais a um modo de nele agir e com ele se relacionar do que a um sentimento interior ao agente Almeida 2011 Talvez pudéssemos mesmo qualificálo como um princípio na acepção particular que ela a partir de Montesquieu lhe atribui como elemento inspirador da ação Princípios não operam no interior do eu from within the self como o fazem motivos mas como que inspiram do exterior e são demasiado gerais para prescrever metas particulares embora todo desígnio possa ser julgado à luz de seu princípio uma vez começado o ato Diferentemente do juízo do intelecto que precede a ação e do império da vontade que a inicia o princípio inspirador tornase plenamente manifesto somente no próprio ato realizador Distintamente de sua meta o princípio de uma ação pode sempre ser repetido mais uma vez pois é inexaurível Arendt 2006 p 151 tradução nossa Portanto mesmo se desenvolvendo num espaço prépolítico a atividade docente ao menos se a considerarmos em sua dimensão formativa e não apenas como transmissão de informações e conformação de condutas assemelhase à ação ainda que com ela não se confunda Tal como nesta um professor revela quem ele é por seus atos e palavras suas escolhas não se resumem a deliberações acerca de meios técnicos supostamente mais eficazes para atingir um fim já que a forma pela qual se ensina e se aprende tem em si mesma um caráter formativo39 A formação educacional tampouco se confunde com a fabricação de indivíduos adaptados a uma ordem social 39 A importância da forma no ato de ensinar foi corretamente salientada por Scheffler 1978 p 70 o ensino poderá certamente proceder mediante vários métodos mas algumas maneiras de levar as pessoas a fazerem determinadas coisas estão excluídas do âmbito padrão do termo ensino Ensinar em seu sentido padrão significa submeterse pelo menos em alguns pontos à compreensão e ao juízo independente do aluno à sua exigência de razões e ao seu senso a respeito daquilo que constitui uma explicação adequada Ensinar a alguém que as coisas são deste ou daquele modo não significa meramente tentar fazer com que ele o creia o engano por exemplo não constitui um método ou um modo de ensino José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 101 preestabelecida ou a uma função econômica tida como necessária Tratase antes de um processo cuja meta é a constituição de um sujeito em interação com o mundo ou se quisermos permanecer numa terminologia mais estritamente arendtiana de um alguém que se insere de forma singular na pluralidade do mundo Assim a exemplo da ação a atividade docente não se exerce sobre a matéria para nela imprimir uma forma final de antemão concebida mas implica a interação com uma pluralidade de sujeitos singulares cujas respostas a nossos atos e palavras são da ordem do imprevisível Essa série de paralelos sugere que o estatuto do ato docente a exemplo do da obra de arte ocupa um lugar híbrido ou intermediário na classificação das atividades humanas proposta por Arendt Ele não coincide com a ação por ocorrer num domínio prépolítico e estar fundado em relações assimétricas mas tampouco coincide com a fabricação por não poder ser reduzido à lógica de meios e fins que a preside E é pelo fato de a atividade docente ocupar esse espaço híbrido que não se confunde com a ação mas dela se aproxima significativamente que podemos conceber o amor mundi como um princípio Na verdade ele é o princípio de ação por excelência daqueles que elegeram a docência como forma de inserção e atividade no mundo já que a assunção da responsabilidade por seu cuidado está implícita em sua escolha profissional essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança Arendt 2006 p 186 tradução nossa Daí porque para Arendt o ofício de ser professor exige daqueles que por ele optaram um respeito extraordinário pelo passado 2006 p 190 pela herança de experiências simbólicas que o mundo lega a cada geração que nele aporta Esse respeito se manifesta no caso específico de um professor em seus esforços por iniciar os recémchegados ao mundo nas parcelas de tradições culturais cujo ensino lhe compete E embora essa iniciação almeje a conservação do mundo ela não implica sua mera reprodução Ao contrário ela é condição necessária para a eclosão do novo para a possibilidade de que o milagre que rompe a expectativa da reprodução dos processos automáticos salve o mundo do desgaste e da ruína Isso porque o milagre do novo ou a liberdade só pode vir à luz sob o pano de fundo de um mundo que José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 102 guarda algum grau de durabilidade que não se transforma também ele num objeto de consumo a ser devorado constantemente pelo processo vital Ele não é pois um recurso pedagógico ao qual podemos recorrer sempre que julgarmos necessário ou conveniente é antes uma potencialidade humana cuja eclosão depende da ação em concerto de homens que por compartilhar um mundo são capazes de nele começar algo novo e de operar o milagre de sua salvação a despeito de sua tendência a sempre caminhar em direção ao próprio desgaste e à ruína dele decorrente E com quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre mais miraculoso parecerá o ato da liberdade pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portanto irresistível Arendt 2006 p 169 tradução nossa É pois no compromisso que o educador assume com o mundo e com a natalidade que se manifesta o possível vínculo da formação educacional com a liberdade em Arendt Um compromisso cujos resultados não podem ser garantidos pela implantação de qualquer procedimento pedagógico até porque dependem de condições e circunstâncias que ultrapassam o domínio da vida escolar Dado seu caráter político e não apenas pedagógico esse compromisso toma a forma de um princípio que nos impele a agir mas que não determina a forma que essa ação deve tomar em cada situação concreta É um compromisso que reclama a responsabilidade individual daquele que a ele adere mas cuja tradução em atos depende também de uma ação conjunta com seus pares Finalmente é um compromisso que convida o educador à busca incessante de formas de imprimir um sentido público à formação escolar rejeitando sua sujeição a imperativos de adaptação e conformação a um processo de desertificação do mundo que se afirma concomitantemente à decretação da superfluidade do humano José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 103 V A EXPERIÊNCIA ESCOLAR AINDA TEM ALGUM SENTIDO Articular historicamente o passado não significa conhecêlo como ele de fato foi Significa apropriarse de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento de um perigo Walter Benjamin Num fragmento de uma obra inconclusa publicada postumamente Arendt articula suas reflexões sobre as vicissitudes do conceito de política no século XX a partir de uma pergunta que à primeira vista pode sugerir ceticismo e desesperança a política ainda tem algum sentido Arendt 2008 p 162 Não se trata contudo de uma interrogação de cunho niilista Ao contrário ela deve ser compreendida como mais uma de suas perguntas antiniilistas feitas numa situação objetiva de niilismo em que o nada e o ninguém ameaçam destruir o mundo Arendt 2008 p 269 A situação objetiva que a leva a propor a questão nesses termos é o preconceito do mundo moderno em relação à política é a convicção generalizada de que à política e não à sua ausência se devem as trágicas experiências do totalitarismo da ameaça nuclear e da desertificação de um mundo cuja durabilidade é posta em risco pela ascensão da produção e do consumo como objetivos supremos do viver juntos Nesse texto como ao longo de grande parte de sua obra Arendt procura recuperar o sentido e a dignidade da política desvinculandoa do reducionismo a que foi submetida quando equiparada ao governo ou confundida com a gestão estatal da sociedade Não foi pois a expansão mas o declínio do domínio do político que criou as condições de possibilidade para a emergência do totalitarismo e da tecnocracia como forma de dominação estatal Isso porque como vimos em Arendt a política representa uma forma específica de vida em comum que não se confunde com a dominação nem é simples consequência do caráter gregário do animal humano uma forma de vida cuja razão de ser é a liberdade e cuja condição de emergência é a criação de um espaço público comum à pluralidade de homens iguais Assim concebida a ação política não é uma necessidade humana mas a frágil invenção de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 104 um modo de vida cujo impulso brota do desejo humano de estar na companhia dos outros do amor ao mundo e da paixão pela liberdade Correia 2010 p XXXI Um impulso que eclodiu em toda a sua grandeza na experiência democrática de Atenas na estabilidade da Roma republicana na breve existência dos conselhos populares que sucederam a revolução russa de 1917 ou dos que organizaram a revolução húngara de 1956 Experiências que Arendt não evoca como modelos a ser reproduzidos mas como acontecimentos cujo esplendor é capaz de iluminar aquilo que os eventos políticos do século XX obscureceram que o sentido da política é a liberdade ou seja a capacidade humana de começar algo até então imprevisto e imprevisível Foi a radicalidade da questão formulada por Arendt e os caminhos trilhados na proposição de sua resposta que inspiraram a transposição dessa interrogação para o âmbito específico da experiência escolar teria ela ainda algum sentido numa sociedade que trata o passado como obsoleto e o futuro como ameaçador Tampouco nesse caso se deve tomar a forma interrogativa como indício de ceticismo Tal como em Arendt tratase de uma pergunta antiniilista que se formula em oposição a um processo de crescente submissão da educação escolar à lógica instrumental que reduz o ideal de uma formação educacional ao de uma funcionalidade em termos de conformação social Um processo que à força de tentar imprimir à escola toda sorte de finalidades extrínsecas dela parece retirar qualquer sentido intrínseco Um processo pois que reduz a experiência escolar a um meio cujo fim tem sido a mera adaptação funcional dos indivíduos aos reclamos de produção e consumo das sociedades contemporâneas de forma a despojála de seu sentido intrínseco a iniciação dos mais novos em heranças simbólicas capazes de dar inteligibilidade à experiência humana e durabilidade ao mundo comum Localizar nesses aspectos a constituição de um sujeito e sua vinculação ao mundo comum a razão de ser da educação escolar não é uma arbitrariedade ainda que inevitavelmente seja uma escolha programática Programática porque sua enunciação implica um compromisso teórico fundado numa escolha valorativa entre tantas outras possíveis com eventuais decorrências práticas e políticas Mas não uma escolha arbitrária visto que ela se ancora numa José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 105 concepção de educação cujas raízes remontam a um acontecimento histórico inaugural a fundação dos ideais educacionais que caracterizam o humanismo renascentista A partir deles a instituição escolar assume um novo papel social pois não visa mais a preparação de um profissional especializado mas a formação integral do homem e do cidadão Tratase pois de uma experiência histórica que terá no âmbito da educação um papel análogo ao da democracia ateniense ou da república romana para a política o de uma experiência fundadora da qual emanam princípios capazes de inspirar ações e orientar as inevitáveis transformações históricas a que uma instituição social está sempre sujeita Assim é no princípio da formação educacional humanista entendido em sua dupla acepção de início e de preceito orientador que se funda essa concepção de formação como a constituição de um sujeito em seu vínculo com o legado histórico de um mundo comum Se como propõe Arendt é de fato difícil e até mesmo enganoso falar em política e em seus princípios sem recorrer em alguma medida às experiências da Antiguidade grega e romana 2006 p 153 tradução nossa o mesmo parece valer para o legado do humanismo renascentista no âmbito da educação Ele se erigiu em referência histórica e conceitual dos discursos educacionais porque é sobretudo a partir de seus ideais e de suas práticas que a formação escolar adquire um sentido público que ela deixa de ser uma preparação profissional ligada aos direitos à medicina e sobretudo à teologia para almejar a formação do espírito entendida como a busca de cada um pela constituição de sua humanitas Uma busca empreendida por meio do acesso direto ao legado cultural clássico de um diálogo cujo resultado não é a aprendizagem instrumental de informações e conhecimentos especializados mas a constituição de um sujeito que se insere na dimensão histórica de um mundo Tratase assim da fundação de uma nova modalidade de relação entre a formação escolar e o domínio público na qual a relação com a cultura letrada40 e com as artes clássicas passa a ser 40 A expressão cultura letrada é aqui empregada na acepção que lhe confere Havelock 1996 p 59 grifos nossos para quem a cultura letrada não pode ser definida como coextensiva à existência histórica da escrita no Egito ou na Mesopotâmia porque embora a cultura letrada dependa da técnica utilizada na inscrição ela não se define apenas pela existência dessa técnica É uma condição social que pode ser definida apenas em termos de leitura Assim a existência da cultura letrada pressupõe um público leitor e uma forma de vida na qual essa atividade ocupe um lugar central na José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 106 concebida como elemento constitutivo da formação integral do homem e não mais como prérequisito para sua participação num determinado estamento social Essa ruptura com a herança escolástica não decorre de inovações no campo das práticas pedagógicas que pouco diferem daquelas que caracterizavam a escola latina medieval mas antes de dois aspectos interdependentes que marcam a inovação representada pela escola humanista O humanismo impôs aos ginásios de seu tempo seu ideal de uma Antiguidade separada pela história Para o homem da Idade Média a Antiguidade jamais havia cessado Para o humanista ao contrário a Antiguidade foi uma era de perfeição seguida de um longo período de barbárie Tratavase menos de continuar a Antiguidade como no caso dos medievais do que de retomála pela restauração da língua e pela familiaridade com os autores O contato com os autores antigos não se vinculava a fins utilitários nem mesmo no que concerne ao aprimoramento da língua mas a algo verdadeiramente novo à formação do espírito já que ele permitia aos contemporâneos aproximaremse dos grandes modelos antigos Com a concepção humanista de Antiguidade aparecia tanto no ensino como na sociedade a noção até então desconhecida de cultura geral por muito tempo identificada como humanidades Ariès p 9 tradução nossa grifos nossos Diferentemente de sua antecessora a escola renascentista não atribuía um valor apenas instrumental ao conhecimento ela o estimava por seu potencial formativo Não lhe interessava a preparação de especialistas mas a formação de homens que para além das diferenças ligadas a profissão origem social ou crença religiosa partilhassem uma cultura comum e a responsabilidade pelos rumos históricos de sua res publica É nesse sentido que o contato com a poesia a filosofia as artes e a história deveria ter um caráter liberal seu papel era o de possibilitar por meio do diálogo com esse legado clássico que cada um viesse a cultivar seu espírito e a desenvolver sua personalidade liberado das contingências de sua ascendência familiar e de expectativas predeterminadas quanto a seu papel social Assim a noção de cultura geral atribui à educação um significado intrínseco ela passa a ser um bem em si mesma independente de possíveis e imprevisíveis efeitos exteriores à constituição do circulação do saber Nesse sentido o humanismo a faz renascer já que a leitura e a escrita permaneceram durante a maior parte da Idade Média privilégios de um grupo social bastante restrito José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 107 sujeito que se educa como eventuais impactos na distribuição de riquezas ou de poder numa dada estrutura social É nesse sentido que se deve compreender a afirmação de Lefort 1992 p 211 de que com o humanismo a educação ganha valor em si revela se em busca de si mesma e engendra na prática um discurso que a visa como tal Essa nova concepção do papel do acesso à cultura clássica na formação geral de um cidadão veio acompanhada de uma nova percepção do presente em sua relação com o passado Se o homem medieval assimilava a Antiguidade clássica a seu presente representando por exemplo Hércules como um cavaleiro41 os humanistas a concebiam como um passado a um só tempo distante e inspirador Distante porque entre eles e os antigos se interpunha a longa e obscura Idade Média mas próximo porque por meio da restauração da cultura antiga os humanistas visavam construir sua identidade como herdeiros da Antiguidade Herdeiros porque capazes de reconstruir a partir da crítica histórica e filológica o verdadeiro significado de seu legado artístico e filosófico mas também porque restauradores de uma ética da vita activa segundo a qual a dignidade do homem vinculase a seu engajamento na vida pública da cidade Assim a formação humanista se dava na forma de um diálogo Um diálogo com os mortos porém com os mortos que desde o momento em que falam desde que são levados a falar estão mais vivos que os seres próximos vivendo uma vida totalmente diferente são imortais no espaço da humanidade comunicam sua imortalidade àqueles que se voltam para eles aqui e agora Lefort 1999 p 212 É desse diálogo que emerge entre os humanistas o senso da história Ibidem da relação do presente com o passado e com o futuro como forma de constituição de um mundo comum que transcenda o espaço e se enraíze no tempo Assim os estudos das humanidades visavam uma formação inicial comum e prévia à preparação profissional especializada um tipo de formação escolar na qual o contato com o 41 Segundo Garin 2003 p 96 um claro exemplo dessa assimilação em que o antigo se mescla com o medieval ocorre nas representações de figuras caras aos antigos como a de Hércules Ao longo dos séculoseste passa a ser representado ora como Cristo ora como um cavaleiro medieval com suas vestes e armaduras sem nenhuma preocupação no que concerne a sua imagem ou a seu papel para os gregos antigos Nessas representações não há pois uma clara distinção entre o passado e o presente Daí a convicção dos humanistas de que eles seriam os verdadeiros herdeiros da Antiguidade clássica pois seus estudos visavam restituir aos textos e à própria língua suas formas e seus sentidos originais ou seja clássicos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 108 legado cultural de uma civilização tinha uma dimensão simultaneamente ética estética e política Tratavase portanto de uma forma específica de se aproximar do passado com vistas a definir o presente propiciando uma oportunidade de vínculo com a profundidade histórica da existência humana pois como nos lembra Arendt a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser por meio da recordação 2006 p 94 tradução nossa Assim é por meio da evocação de obras atos e palavras memoráveis que se reificam nos objetos e nas narrativas da cultura clássica que o passado adquire um caráter liberador em relação a toda sorte de tiranias que as demandas do presente possam vir a representar O humanismo havia descoberto que o objetivo da educação era formar o homem darlhe sua liberdade no mundo tornálo senhor do reino que Deus lhe havia concedido Mas precisamente a fim de não diminuir essa liberdade tão paradoxal ele atribui à educação a missão de liberar o homem de não o definir nem o coagir de darlhe todo o poder em relação à consciência de si mesmo Educar o homem é tornálo consciente de si mesmo de seu lugar no mundo e na história O estudo dos antigos e de sua língua deveria justamente servir a esse fim levar o homem para além de qualquer definição a se sentir senhor de si mesmo Garin 2003 p 218 tradução nossa Ora o que esse excerto de Garin nos sugere é pois que o sentido último da formação humanista é seu potencial caráter emancipador a liberdade no mundo e a consciência de si mesmo Não a consciência de um indivíduo apartado do mundo e de sua pluralidade mas ao contrário uma consciência que emerge de sua relação com a humanidade e com sua obra na história Garin 2003 p 16 tradução nossa Assim se é possível apontar um princípio fundamental da educação humanista este reside menos nos conteúdos cristalizados por uma experiência histórica determinada do que no espírito que a moveu em direção a essa escolha É na recusa à subserviência da cultura a qualquer sorte de instrumentalismo imediato que radicam o ideal de uma educação emancipadora e o sentido de uma formação escolar que com ela se comprometa Nessa perspectiva pouco importa se a cultura com a qual a instituição escolar dialoga é a da Antiguidade clássica a do Iluminismo europeu a dos povos americanos précolombianos ou aquela presente em suas manifestações mais recentes e pontuais José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 109 Concebida como uma oportunidade de um diálogo com objetos da cultura e com o contexto histórico em que eles se constituem como tal e são preservados para compor um legado simbólico potencialmente comum a formação escolar ganha um sentido que ultrapassa qualquer eventual finalidade pragmática que seus conteúdos possam conter A essência do humanismo é como nos recorda Arendt a cultura animi o cultivo desinteressado do espírito e do gosto da capacidade de fruir apreciar e julgar as instituições e obras que integram nosso mundo comum Ele se vincula menos a um conteúdo cultural específico do que a uma forma de lidar com o mundo ou a um tipo de atitude que sabe como preservar admirar e cuidar das coisas do mundo Arendt 2006 p 222 tradução nossa Uma atitude que faz dos diversos legados culturais que coabitam nosso mundo contemporâneo uma potencial herança comum Uma herança que nos chega sem testamento e que portanto exige de nós a coragem e a responsabilidade de fazer julgamentos e escolhas Essas escolhas serão dignas da herança humanista na medida em que atualizarem seu compromisso ético e político de propiciar aos que chegam ao mundo a oportunidade de escolher suas companhias entre homens entre coisas e entre pensamentos tanto no presente como no passado Ibidem p 222 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 110 REFERÊNCIAS ADORNO Theodor Educação e emancipação São Paulo Paz e Terra 2006 AGAMBEN Giorgio Infância e história Belo Horizonte UFMG 2005 ALMEIDA Vanessa Sievers de Educação em Hannah Arendt entre o mundo deserto e o amor ao mundo São Paulo Cortez 2011 APPLE Michael BEANE James Orgs Escolas democráticas São Paulo Cortez 2001 ARENDT Hannah A condição humana Rio de Janeiro Forense 2010 Sobre a violência Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 A promessa da política São Paulo Difel 2008 Between the Past and the Future New York Penguin 2006 Responsabilidade e julgamento São Paulo Companhia das Letras 2004 Homens em tempos sombrios São Paulo Companhia das Letras 1998 Lectures on Kants Political Philosophy Chicago University of Chicago 1992 The Life of mind New York Harcourt 1978 ARIÈS Philllipe Préface In GARIN Eugenio Lèducation de lhomme moderne Paris Fayard 2003 AZANHA José Mário Pires Educação temas polêmicos São Paulo Martins Fontes 1995 Educação alguns escritosSão Paulo Cia Editora Nacional 1987 BÁRCENA Fernando Una pedagogía del mundo aproximación a la filosofía de la educación de Hannah Arendt Anthropos Huellas del Conocimiento La Rioja n 224 p 113138 2009 BARROS Gilda Naécia Maciel de O exercício da cidadania como forma superior de humanismo In Platão Rousseau e o Estado total São Paulo T A Queiroz 1995 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 111 BARROW Robin WOODS Ronald An Introduction to Philosophy of Education London Routledge Keagan Paul 1994 BENJAMIN Walter Magia e técnica arte e política São Paulo Brasiliense 1989 BERLIN Isaiah Dois conceitos de liberdade In HARDY Henry HAUSHEER Roger Orgs Isaiah Berlin estudos sobre a humanidade São Paulo Companhia das Letras 2002 BIRULÉS Fina Hannah Arendt el orgullo de pensar Barcelona Gedisa 2000 BITTAR Eduardo Carlos Bianca Org Educação e metodologia para os Direitos Humanos São Paulo Quartier Latin 2008b p 255271 BRASIL Câmara dos Deputados Projeto de Lei no 267 de 8 de fevereiro de 2011 Acrescenta o art 53A à Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências a fim de estabelecer deveres e responsabilidades à criança e ao adolescente estudante Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWeb fichadetramitacaoidProposicao491406 Acesso em 11 jul 2012 Presidência da República Casa Civil Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB Lei no 9394 de 20 de dezembro de 1996 Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional Disponível em httpportalmecgovbrarquivospdfldbpdf Acesso em 21 maio 2013 CANOVAN Margaret Hannah Arendt a reinterpretation of her political thought Cambridge CUP 1992 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Reflexões sobre educação formação e esfera pública Porto Alegre Penso 2013 A liberdade educa ou a educação liberta Uma crítica das pedagogias da autonomia à luz do pensamento de Hannah Arendt Educação e Pesquisa Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo São Paulo v36 p 839851 2010 Pedagogical Discourse and the Vanishing of an ethical Political Meaning of Education HannahArendtnet Berlim v 5 n 1 2009 Disponível em HannahArendtnet Acesso em 20 mar 2013 O declínio do sentido público da educação Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos Brasília DF v 89 p 411424 2008 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 112 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Direitos Humanos formação escolar e esfera pública In Educação cidadania e direitos humanos Petrópolis Vozes 2004 Construtivismo uma pedagogia esquecida da escola Porto Alegre Artmed 2001 CHARLOT Bernard A mistificação pedagógica Rio de Janeiro Zahar 1979 CONSTANT Benjamin Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos Filosofia Política Porto Alegre LPM 1985 p 925 CORREIA Adriano Apresentação In ARENDT H A condição humana Rio de Janeiro Forense 2010 O desafio moderno Hannah Arendt e a sociedade de consumo In MORAES Eduardo Jardim BIGNOTTO Newton Orgs Hanna Arendt diálogos reflexões e memórias Belo Horizonte UFMG 2003 Coord Transpondo o abismo Hannah Arendt entre a filosofia e a política Rio de Janeiro Forense 2002 DELORS Jacques Educação um tesouro a descobrir São Paulo Cortez 2001 DEWEY John Experience and Education New York MacMillan 1938 Democracy and Education New York Macmillan 1916 DUARTE André O pensamento à sombra da ruptura política e filosofia no pensamento de Hannah Arendt São Paulo Paz e Terra 2000 DUBET François Le déclin de linstituition Paris Seuil 2002 DURKHEIM Émile Educação e sociologia São Paulo Melhoramentos 1965 FERRY Gilles La pratique du travail en groupe une expérience de formation denseignants Paris Bordas 1985 FOURQUIN Jean Claude Escola e cultura Porto Alegre Artmed 2000 FREIRE Paulo A importância do ato de ler São Paulo Cortez 1982 FREIRE Paulo Educação como prática da liberdade São Paulo Paz e Terra 1967 GADAMER HansGeorg Verdade e método Petrópolis Vozes 1999 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 113 GARIN Eugenio Lèducation de lhomme moderne Paris Fayard 2003 GAUCHET Marcel Pour une philosophie politique de léducation Paris Bayard 2002 HARTOG François Régimes dhistoricité présentisme et expérience du temps Paris Seuil 2012 HAVELOCK Eric A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais São Paulo UnespPaz e Terra 1996 HOUSSAYE Jean Autorité ou éducation Paris ESF 2007 ILLICH Ivan Educação e liberdade São Paulo Imaginário 1990 KANT Immanuel Textos seletos Petrópolis Vozes 1983 LA EDUCACIÓN prohibida Direção Juan Vuatista Produção Daiana Gomez Intérpretes Santiago Magariños Amira Adre Nicolás Valenzuela Gastón Pauls Alejandra Figueroa e outros Roteiro Julieta Canicoba e Juan Vautista Financiamento coletivo Ferramentas livres Copyleft 2012 Disponível em httpwwweducacionprohibidacom Acesso em 8 abr 2013 LAHIRE Bernard La raison scholaire école et pratiques décriture entre savoir e pouvoir Rennes PUR 2008 LARROSA Jorge Pedagogia profana Belo Horizonte Autêntica 2000 LA TAILLE Yves de Apresentação In SINGER Helena República das crianças sobre experiências escolares de resistência Campinas Mercado de Letras 2010 LEBRUN Gerard Passeios ao léu São Paulo Brasiliense 1983 LEFORT Claude Écrire à lépreuve du politique Paris Calmann Lévy 1992 LOMBARD Jean Hannah Arendt éducation et modernité Paris LHarmattan 2003 MAY Larry KOHN Jerome Hannah Arendt twenty years later Massachusetts MIT Press 1997MORAES Eduardo Jardim BIGNOTTO Newton Orgs Hanna Arendt diálogos reflexões e memórias Belo Horizonte UFMG 2003 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 114 NEIL Alexander Sutherland Liberdade sem medo Summerhill São Paulo Ibrasa 1984 Liberdade escola amor e juventude São Paulo Ibrasa 1978 Liberdade na escola São Paulo Ibrasa 1971 OAKESHOTT Michael Teaching and Learning In PETERS Richard S Org The Concept of Education London Routledge Keagan Paul 1968 OBAMA Barack Barack Obamas Inaugural Address The New York Times New York 20 Jan 2009 Disponível em httpwwwnytimescom20090120 uspolitics20textobamahtmlpagewantedall Acesso em 11 jul 2012 OECD Organisation for Economic Cooperation and Development OECD 2013 Disponível em httpwwwoecdorgdataoecd Acesso em 21maio 21012 PASSMORE John The Philosophy of Teaching London Duckworth 1984 PETERS Richard Stanley Org The Concept of Education London Routledge Keagan Paul 1968 PIAGET Jean Sobre a pedagogia São Paulo Casa do Psicólogo 1998 PLATÃO Górgias Lisboa Edições 70 1972 RANCIÈRE Jaques Le maître ignorant Paris Fayard 1987 RENAUT Alain La fin de lautorité Paris Flammarion 2004 REVAULT DALLONES Myriam Le pouvoir des commencements essai sur lautorité Paris Seuil 2006 RIBEIRO Renato Janine A democracia São Paulo Publifolha 2001 RICOEUR Paul Le paradoxe de lautorité In Le juste 2 Paris Esprit 2001 Lectures 1 Paris Seuil 1991 ROGERS Carl Liberdade para aprender Belo Horizonte Interlivros 1978 RYLE Gilbert Teaching and training In PETERS Richard Stanley Ed The concept of education London Routledge Keagan Paul 1968 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 115 SCHEFFLER Israel A linguagem da educação São Paulo EduspSaraiva 1968 SILVA Franklin Leopoldo e O mundo vazio sobre a ausência da política no mundo contemporâneo In ACCYOLI E SILVA Doris MARRACH Sonia Alem Orgs Maurício Tragtenberg uma vida para as ciências humanas São Paulo Unesp 2001 SINGER Helena República das crianças sobre experiências escolares de resistência Campinas Mercado de Letras 2010 SNYDERS Georges Para onde vão as pedagogias não diretivas São Pulo Centauro 2001 TASSIN Étienne Un monde commun pour une cosmopolitique des conflits Paris Seuil 2003 Le trésor perdu Hannah Arendt lintelligence de laction politique Paris Payot 1999 Collection Critique de la politique TASSIN Étienne et al Politique et pensée Paris Payot 2004 TOCQUEVILLE Alexis de De la démocratie en Amérique tome I Paris Michel Levy 1985 YOUNGBRUEHL Elisabeth Hannah Arendt For Love of the World New Haven Yale University Press 1982 Ménon Platão Ménon diz a Sócrates Ouso dizer que você Sócrates se parece com aquele peixe chamado enguia elétrica A enguia dopa e paralisa aquele que ela toca Por mais de 100 vezes falei com a multidão sobre virtude mas hoje não sei mais dizer o que ela é Sócrates responde Admito a comparação com a ressalva de que o embaraço que a enguia impõe aos outros eu também o sinto Se eu desconcerto os outros é que estou eu mesmo em extremo desconcerto Victor Delbos sobre Sócrates e o diálogo O mestre não sabe mais que o discípulo ele procura como o discípulo e com o discípulo O diálogo não é um procedimento exterior e acidental de uma busca e de uma exposição ele é a expressão essencial do esforço comum para retirar a verdade do interior dos sujeitos Natalidade e Dupla Responsabilidade Cuidado com as crianças Educação Amor pelo mundo comum Participação Imprevisibilidade e Irreversibilidade Toda ação tem consequências imprevisíveis por isso há esperança Toda ação é irreversível por isso a importância do perdão Obra de arte fazer 208 Dada sua excepcional permanência as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar Obras de arte são coisas do pensamento A poesia cujo material é a linguagem talvez seja a mais humana e a menos mundana das artes pois o produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou Destruição do Senso Comum common sense 1 Liquidação da oposição 2 Propaganda 3 Ideologia realidade 4 Líderes como únicos intérpretes das leis da vida 5 Extermínio na lógica das leis 6 Coerência lógicaideológica realidade substituída por ficção 7 Condições intersubjetivas rompidas 8 Exercício solitário de dedução sobre premissas incontestáveis Senso comum sentido político por excelência Substituído pela lógica também comum a todos Senso comum garante a pluralidade Senso comum garante a confiança na experiência sensorial imediata Isak Dinesen Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória ou contamos uma estória sobre elas Marca Ontológica Porque cada ser humano é único a cada nascimento vem ao mundo algo com a potência de ser singularmente novo Nascimento biológico e histórico 1º Nascimento político Agir e discursar 2º Arte Poesia Se o animal laborans necessita da ajuda do homo faber para facilitar seu trabalho e remover sua dor e se os mortais necessitam da ajuda o homem faber para edificar um lar sobre a Terra os homens que agem e falam necessitam da ajuda do homo faber em sua capacidade suprema dada pelos artistas poetas e historiadores Ameaças e Perigos Entre as maiores preocupações de Hannah Arendt sobressaem dois eventos que têm em comum a programática corrupção da natalidade e seus epifenômenos tais como a espontaneidade a liberdade e a pluralidade Tratase do totalitarismo e de seu produto tecnológicoideológico a bomba nuclear Totalitarismo Não é um regime tirânico ou ditatorial Pois extravasa seu domínio da esfera pública para a vida privada por meio do TERROR Natalidade e Espontaneidade Faz parte da natureza de um início que ele traga em si uma dose de completa arbitrariedade Não só o início não está ligado a uma sólida cadeia de causas e efeitos mas como ainda não há nada é como se saísse do no tempo e no espaço A condição humana a Vida Ativa ou as 3 principais atividades humanas O trabalho ou labor produzse as necessidades vitais para nutrir o corpo ou bens de consumo animal laborans A fabricação ou fazer produz coisas objetos de uso que dão estabilidade e solidez ao mundo tornao lar homo faber A ação e o discurso transcende o consumo e o uso dá sentido ao tempo de cada humano A razão de ser da política é a redenção da mortalidade e da futilidade da existência humana mediante a edificação de um espaço durável para a liberdade no qual a grandeza frágil das palavras e feitos dos mortais se manifesta e encontra abrigo e louvor Senso comum José dos Santos Filho O senso comum é entendido como um instrumento pelo qual os homens podem estar certos de que suas experiências no mundo não são meras ilusão ou fantasias Acreditamos que para Arendt a prerrogativa mais geral do senso comum é produzir uma espécie de consenso possível entre os modos idiossincráticos de perceber e julgar um mesmo objeto ou uma mesma realidade garantindo aos homens uma compreensão comum do mundo Natalidade Pluralidade e Liberdade A ação humana sempre livre efetiva a novidade imprevisibilidade imponderabilidade da natalidade e as palavras ou discurso com que cada um se distingue ao agir efetivam o fato da pluralidade humana da diversidade entre iguais Toda a ação é um impulso livre visando a liberdade por isso toda ação é política Dupla responsabilidade Natalidade Marca Ontológica Novos Mundo comum Inciar na vida Iniciar no mundo Palavras Atos Poetas Espontaneidade Imprevisibilidade Irreversibilidade Visibilidade Comunicabilidade COMMON SENSE Espaçoentre Exercício Político LIBERDADE Marca Ontológica É da natureza do início que se comece algo novo algo que não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes Esse caráter de surpreendente imprecisão é inerente a todo início e a toda origem O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas O novo sempre aparece na forma de um milagre Outra possibilidade equívoca QUERENDO UMA RENOVAÇÃO INCORRESE NUMA INTERVENÇÃO DITATORIAL BASEADA NA SUPERIORIDADE DO ADULTO QUE TEM A RESPOSTA DE COMO O NOVO DEVE SER NESTE CASO O DESEJO DE PRODUZIR O NOVO AGE COMO SE O NOVO JÁ EXISTISSE Para finalizar O mundo é sempre velho em relação aos novos e aprendizagem voltase necessariamente ao passado Educar crianças é levar em conta o fato de que estão em processo de aprendizagem de que não são adultos Não separar os dois mundos da criança e dos adultos a criança não tem um mundo autônomo o adulto não tem um mundo sem responsabilidade pelos novos Início a crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que como potencialidade e como risco sempre presente tende a infelizmente a ficar conosco de agora em diante HANNAH ARENDT Origens do totalitarismo Antissemitismo imperialismo totalitarismo Educação e Política Crianças educadas para um amanhã utópico estão submetidas a uma proposta de mundo velha Cada geração se transforma no mundo antigo preparar novos para mundo utópico é arrancar dos novos sua oportunidade de inovar por si mesmos NATALIDADE RESPONSABILIDADE A EDUCAÇÃO É O PONTO EM QUE DECIDIMOS SE AMAMOS O MUNDO O BASTANTE PARA ASSSUMIRMOS A RESPONSABILIDADE POR ELEE COM TAL FEITO SALVALO DA RUÍNA QUE SERIA INVEVITÁVEL NÃO FOSSE A RENOVAÇÃO E A VINDA DOS NOVOS E DOS JOVENS A EDUCAÇÃO É TAMBÉM ONDE DECIDIMOS SE AMAMOS NOSSAS CRIANÇAS O BASTANTE PARA NÃO EXPULSÁLAS DE NOSSO MUNDO E ABANDONÁLAS A SEUS PRÓPRIOS RECURSOS E TAMPOUCO ARRANCAR DE SUAS MÃOS A OPORTUNIDADE DE EMPREENDER ALGUMA COISA NOVA E IMPREVISTA PARA NÓS PREPARANDOAS EM VEZ DISSE COM ANTECEDÊNCIA PARA A TAREFA DE RENOVAR O MUNDO COMUM Essência da Educação Os pais dão a luz a uma criança fato biológico em um mundo fato histórico Os pais ao educarem a criança têm 2 RESPONSABILIDADES pelo desenvolvimento da criança pelo mundo A CRIANÇA REQUER CUIDADO E PROTEÇÃO PARA QUE O MUNDO NÃO A DESTRUA O MUNDO NECESSITA PROTEÇÃO PARA QUE O ASSÉDIO DO NOVO NÃO O DESTRUA A Essência da Educação uma questão filosófica Para o EDUCADOR a criança tem um DUPLO aspecto ELA É NOVA EM UM MUNDO ESTRANHO ELA ESTÁ EM PROCESSO DE FORMAÇÃO É um novo ser humano e um ser humano em formação É nova em relação a um mundo que existia antes dela Equívocos têm 3 pressupostos 3 Pragmatismo substituise o aprendizado pelo fazer só é possível conhecer o que nós mesmo fizermos Perigo a escola a ensina apenas habilidades e não conhecimento Só se aprende brincando O que a tradição recalcou Tucídides narra a Guerra do Peloponeso porque ela foi o mais grandioso movimento já verificado na história Heródoto escreve para salvar do esquecimento tudo que os homens haviam dado à luz mas também para que feitos grandiosos e maravilhosos não deixassem de ser louvados O louvor é necessário devido à fragilidade da ação humana mais efêmera do que a própria vida totalmente dependente da rememoração dos poetas e historiadores O que a tradição recalcou Tal como os poetas eles narravam suas histórias em prol da glória humana poesia e história com o mesmo objeto as ações dos homens que determinam suas vidas e nas quais reside a sua boa ou má fortuna A percepção de que a grandeza humana não pode se revelar em outro lugar senão no fazer e no sofrer sempre esteve presente na poesia e no drama O que a tradição recalcou In A tradição do pensamento político in A Promessa da Política É proveitoso fazer um inventário das experiências políticas da humanidade ocidental que permaneceram sem lugar ao desabrigo no pensamento político tradicional Entre elas está a antiga experiência do mundo homérico grego anterior à pólis com seu sentido da GRANDEZA DOS FEITOS HUMANOS que aparece na historiografia grega Revolução Sempre que depois das revoluções os espaços de participação popular são superados pela instituição de um governo perdese o tesouro As revoluções têm em comum o surgimento espontâneo destes Conselhos populares que surgiram nas revoluções francesa americana russa alemã 19189 húngara O tesouro para Arendt é a aparição do sistema de Conselhos Revolução Revolução não pode ser definida pelo uso da violência contra um governo abusivo Isso é a revolta a rebelião que visa a libertação Revolução é a fundação de um novo corpo político de um domínio público por meio do debate público onde a participação nos assuntos da comunidade seja possível e visa a liberdade A grande novidade dos levantes revolucionários a participação ampliada nos assuntos da comunidade se tornou um TESOURO perdido Arendt história e revo Temporalidade histórica não contínua sucessão de agoras mas com quebras nos momentos revolucionários que coincidem em certos pontos pensa Arendt com as manifestações originárias da política na Antiguidade grecoromana Revoluções para Arendt retraduzem possibilidade originária negada pela tradição Arendt x Heidegger Heidegger vai a Platão e Aristóteles Arendt para pensar o bios politikós deve se afastar do bios theoretikos ela busca respaldo em HOMERO experiência da ação e em TUCÍDIDES ação política para pensar a VIDA ATIVA Arendt vai criticar a concepção política originada pelo platonismo Totalitarismo A originalidade do totalitarismo é terrível não porque alguma ideia nova veio ao mundo mas porque as próprias ações desse movimento constituem uma ruptura com todas as tradições e categorias do pensamento político Depois de Auschwitz e do Gulag nenhuma crença racional no progresso nenhuma filosofia da história nenhuma definição metafísica do ser humano nenhuma ética prescritiva ou valor transcendente poderiam nos garantir certezas quanto ao futuro Nossa tradição da filosofia política fatal e infelizmente desde o seu começo privou de toda dignidade própria os assuntos humanos quer dizer aquelas atividades que concernem ao âmbito comumpúblico que se instaura onde quer que os homens vivam em conjunto Se Heidegger pensa na desconstrução da metafísica Arendt concentrase na reconstituição das experiências políticas que foram recalcadas pela metafísica ocidental Arendt vai remontar ao momento anterior da tradição filosófica e política Arendt A ruptura da tradição constitui uma situação verdadeiramente dramática pois já tornou nossa vida menos significativa nosso juízo menos seguro e nosso pensamento menos profundo do que eles jamais o foram antes Karl Marx and the tradition of Political Thought Passado não é tradição A tradição não existiu desde sempre A tradição também é fonte de esquecimento daquilo que ela exclui e seleciona ao transmitirse A tradição é uma invenção Romana ao aceitar como seus o legado do pensamento e cultura grega AUTORIDADE Na medida em que o passado foi transmitido como tradição possui autoridade A tradição teve uma influência FORMATIVA sobre a Europa Arendt Benjamin Heidegger Entenderam a tradição do pensamento ocidental como força ativa e seletiva que relegou ao esquecimento certas experiências e conceitos fundamentais Todos os 3 investem no desmantelamento da tradição para ver o que ficou impensado por ela Como pensar à sombra da ruptura da tradição Ou como Denken ohne Geländer pensar sem corrimão Para isso Arendt apropriase criticamente de algumas ideias de Heidegger e Benjamin eles foram os que melhor perceberam a ruptura irremediável com a tradição e entenderam a necessidade de nova relação com o passado e o presente Arendt e Benjamin Walter Benjamin pensa o empobrecimento da experiência e o enfraquecimento da memória na modernidade capitalista Hannah Arendt a perda do passado priva de sentido toda uma dimensão da existência humana a dimensão de grandeza potencial dos assuntos humanos do que é DIGNO DE RECORDAÇÃO e categoria de avaliação ESQUECER O PASSADO perdermos a profundidade Memória profundidade pois só se alcança a profundidade na recordação Arendt Kafka A parábola ilustra a temporalidade própria à atividade do pensamento O futuro não é o ainda não O futuro remete a mente humana para o passado que pode ser reatualizado O passado para Arendt não é apenas modelos heurísticos mas sim estoque de possibilidades políticas que podem irromper subitamente no presente O passado pode conter novos começos ao manifestar o que a própria tradição ocultou volta ao passado não conservadora Hannah Arendt Cada nova geração cada novo ser humano inserindose entre um passado infinito e um futuro infinito deve descobrilo e pavimentalo laboriosamente de novo Dos romanos até há pouco tempo a lacuna era transposta pela TRADIÇÃO mas o fio da tradição foi rompido Rompido o fio da tradição todos somos convocados a pensar o livro de Arendt é um movimento na lacuna exercícios de pensamento político O ENSAIO forma do livro é exercício de pensamento Pensar Aprender a pensar significa aprender a se situar na brecha entre o passado e o futuro buscando encontrar o próprio lugar no tempo no instante do pensamento ser juiz não de uma solução definitiva de problemas mas de respostas sempre novas Presente e passado uma história partida Como proceder não reconstituir o vínculo mas investigar o que na tradição não foi legado para buscar sob os escombros passado e presente a essência do Político Comentário da Questão André Duarte Pensar Aprender a pensar significa aprender a se situar na brecha entre o passado e o futuro buscando encontrar o próprio lugar no tempo no instante do pensamento ser juiz não de uma solução definitiva de problemas mas de respostas sempre novas Pensar é sempre pensar por si mesmo pois só se pode aprender por si mesmo como se instalar e se movimentar na brecha entre passado e futuro A herança da tradição deve ser legitimada pelo esforço criativo do pensamento independente A parábola de Kafka Ele A parábola em sua essência está contida no aforismo de Char Ela começa onde o aforismo acaba a ação já ocorreu a estória aguarda ser completada na MENTE dos que a herdam e a questionam Mas se a mente não consegue compreender ela se vê em meio ao combate kafkiano Espaçoentre Um espaçoentre relaciona os indivíduos entre si ao mesmo tempo que os separa Como uma mesa se interpõe para que as pessoas sentem ao redor O mundo criado pela obra humana e edificado como um lar sobre a terra é o espaço público a arena em que homens e mulheres agem e discursam tecendo a teia das relações humanas A parábola de Kafka revista por Arendt Kafka pensa o tempo retilineamente Ele quase não tem espaço para manter sua posição Se pensa em fugit é para o alto para além é para fora do espaçotempo Falta na parábola de Kafka uma dimensão espacial em que ele possa pensar um paralelogramo de forças Espaço entre verbete Espaço Público Dicionário Arendt Visibilidade característica intrínseca do que é público Elemento constitutivo da realidade para os seres humanos Nosso senso de realidade está condicionado a existência de um domínio público espaço que compartilho com outros humanos para experimentar o mundo Mundo comum não é o planeta Terra como ecossistema compartilhado Produtos do homo faber que fazem o mundo comum só adquirem sentido como elementos de visibilidade e comunidade convivência e compartilhamento Próximo lançamento Política Científica Heitor G de Souza e outros ISBN 9788527301176 deb 9788527301176 debates debates debates política ENTRE O PASSADO E O FUTURO h arendt hannah arendt ENTRE O PASSADO E O FUTURO Dentre os livros de Hannah Arendt é Entre o Passado e o Futuro aquele onde pulsa o conjunto de inquietações a partir do qual a autora ilumina a reflexão política do século XX Nele se contém praticamente todo o temário de sua obra constituindose portanto num excelente ponto de partida para o estudo de seu pensamento deb ates 64 PERSPECTIVA 5 A CRISE NA EDUCAÇÃO I A crise geral que acometeu o mundo moderno em toda parte e em quase toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país envolvendo áreas e assumindo formas diversas Na América um de seus aspectos mais característicos e sugestivos é a crise periódica na educação que se tornou no transcurso da última década pelo menos um problema político de primeira grandeza aparecendo quase diariamente no noticiário jornalístico Certamente não é preciso grande imaginação para detectar os perigos de um decli 221 nio sempre crescente nos padrões elementares na totalidade do sistema escolar e a seriedade do problema tem sido sublinhada apropriadamente pelos inúmeros esforços baldados das autoridades educacionais para deter a maré Apesar disso se compararmos essa crise na educação com as experiências políticas de outros países no século XX com a agitação revolucionária que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial com os campos de concentração e de extermínio ou mesmo com o profundo malestar que não obstante as aparências contrárias de propriedade se espalhou por toda a Europa a partir do término da Segunda Guerra Mundial é um tanto difícil dar a uma crise na educação a seriedade devida É de fato tentador considerála como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século pelo qual se deveriam responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados Unidos que não encontrariam provavelmente contrapartida nas demais partes do mundo Se isso fosse verdadeiro contudo a crise em nosso sistema escolar não se teria tornado um problema político e as autoridades educacionais não teriam sido incapazes de lidar com ela a tempo Certamente há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler Além disso há sempre a tentação de crer que estamos tratando de problemas específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais importantes somente para os imediatamente afetados É justamente essa crença que se tem demonstrado invariavelmente falsa em nossa época podese admitir como uma regra geral neste século que qualquer coisa que seja possível em um país pode em futuro previsível ser igualmente possível em praticamente qualquer outro país À parte essas razões gerais que fariam parecer aconselhável ao leigo dar atenção a distúrbios em áreas acerca das quais em sentido especializado ele pode nada saber e esse é evidentemente o meu caso ao tratar de uma crise na educação posto que não sou educadora profissional há outra razão ainda mais convincente para que ele se preocupe com uma situação problemática na qual ele não está imediatamente envolvido É a oportunidade proporcionada pelo próprio fato da crise que dilacera fachadas e obliter a preconceitos de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu e a essência da educação é a natalidade o fato de que seres nascem para o mundo O desaparecimento de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas mas de qualquer modo julgamentos diretos Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos préformados isto é com preconceitos Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão Por mais claramente que um problema geral possa se apresentar em uma crise ainda assim é impossível chegar a isolar completamente o elemento universal das circunstâncias específicas em que ele aparece Embora a crise na educação possa afetar todo o mundo é significativo o fato de encontrarmos sua forma mais extrema na América e a razão é que talvez apenas na América uma crise na educação poderia se tornar realmente um fator na política Na América indiscutivelmente a educação desempenha um papel diferente e incomparavelmente mais importante politicamente do que em outros países Tecnicamente é claro a explicação reside no fato de que a América sempre foi uma terra de imigrantes como é óbvio a fusão extremamente difícil dos grupos étnicos mais diversos nunca completamente lograda mas superando continuamente as expectativas só pode ser cumprida mediante a instrução educação e americanização dos filhos de imigrantes Como para a maior parte dessas crianças o inglês não é a língua natal mas tem que ser aprendida na escola esta obviamente deve assumir funções que em uma naçãoestado seriam desempenhadas normalmente no lar Contudo o mais decisivo para nossas considerações é o papel que a imigração contínua desempenha 222 223 na consciência política e na estrutura psíquica do país A América não é simplesmente um país colonial carcendo de imigrantes para povoa r a terra embora independa deles em sua estrutura política Para a América o fator determinante sempre foi o lema impresso em toda nota de dólar Novus Ordo Seclorum Uma Nova Ordem do Mundo Os imigrantes os recémchegados são para o país uma garantia de que isto representa a nova ordem O significado dessa nova ordem dessa fundação de um novo mundo contra o antigo foi e é a eliminação da pobreza e da repressão Mas ao mesmo tempo sua grandeza consiste no fato de que desde o início essa nova ordem não se desligou do mundo exterior como costumava suceder alhures na fundação de utopias para confrontarse com um modelo perfeito e tampouco foi seu propósito impor pretensões imperiais ou ser pregada como um evangelho a outros Em vez disso sua relação com o mundo exterior caracterizouse desde o início pelo fato de esta república que planejava abolir a pobreza e a escravidão ter dado boasvindas a todos os pobres e escravizados do mundo Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 isto é antes da Declaração da Independência Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre toda a terra Esse foi o intento ou lei básica em conformidade com qual a América começou sua existência histórica e política O entusiasmo extraordinário pelo que é novo exibido em quase todos os aspectos da vida diária americana e a concomitante confiança em uma perfectibilidade ilimitada observada por Tocqueville como o credo do homem sem instrução comum e que como tal precede de quase cem anos o desenvolvimento em outros países do Ocidente presumivelmente resultariam de qualquer maneira em uma atenção maior e em maior importância dadas aos recémchegados por nascimento isto é as crianças as quais ao terem ultrapassado a infância e estarem prontas para ingressar na comunidade dos adultos como pessoas jovens eram os gregos chamavam simplesmente oí neói os novos Há o fato adicional contudo e que se tornou decisivo para o significado da educação de que esse pathos do novo embora consideravelmente anterior ao século XVIII somente se desenvolveu conceitual e politicamente naquele século Derivouse dessa fonte a princípio um ideal educacional impregnado de Rousseau e de fato diretamente influenciado por Rousseau no qual a educação tornouse um instrumento da política e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas a partir dos tempos antigos mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos No que toca à política isso implica obviamente um grave equívoco ao invés de juntarse aos seus iguais assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso há a intervenção ditatorial baseada na absoluta superioridade do adulto e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli isto é como se o novo já existisse Por esse motivo na Europa a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feito tirânico que ao chegarem ao poder subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam A educação não pode desempenhar papel nenhum na política pois na política lidamos com aqueles que já estão educados Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedilos de atividade política Como não se pode educar adultos a palavra educação soa mal em política o que há é um simulacro de educação enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força Quem desejar seriamente criar uma nova ordem política mediante a educação isto é nem através de força e coação nem através da persuasão se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado Mas mesmo às crianças que se quer educar para que sejam cidadãos de um amanhã utópico é negado de fato seu próprio papel futuro no organismo político pois do ponto de vista dos mais novos o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recémchegados sua própria oportunidade face ao novo Tudo isso de modo algum ocorre na América e é exatamente esse fato que torna tão difícil julgar aqui corretamente esses problemas O papel político que a educação efetivamente representa em uma terra de imigrantes o fato de que as escolas não apenas servem para americanizar as crianças mas afetam também a seus pais e de que aqui as pessoas são de fato ajudadas a se desfazerem de um mundo antigo e a entrar em um novo mundo tudo isso encoraja a ilusão de que um mundo novo está sendo construído mediante a educação das crianças É claro que a verdadeira situação absolutamente não é esta O mundo no qual são introduzidas as crianças mesmo na América é um mundo velho isto é um mundo preexistente construído pelos vivos e pelos mortos e só é novo para os que acabaram de penetrar nele pela imigração Aqui porém a ilusão é mais forte do que a realidade pois brota diretamente de uma experiência americana básica qual seja a de que é possível fundar uma nova ordem e o que é mais fundála com plena consciência de um continuum histórico pois a frase Novo Mundo retira seu significado de Velho Mundo que embora admirável por outros motivos foi rejeitado por não poder encontrar nenhuma solução para a pobreza e para a opressão Com respeito à própria educação a ilusão emergente do pathos do novo produziu suas consequências mais sérias apenas em nosso próprio século Antes de mais nada possibilitou àquele complexo de modernas teorias educacionais originárias da Europa Central e que consistem de uma impressionante miscelânea de bom senso e absurdo levar a cabo sob a divisa da educação progressista uma radical revolução em todo o sistema educacional Aquilo que na Europa permanecia sendo um experimento testado aqui e ali em determinadas escolas e em instituições educacionais isoladas e estendendo depois gradualmente sua influência a alguns bairros na América há cerca de vinte e cinco anos atrás derrubou completamente como que de um dia para outro todas as tradições e métodos estabelecidos de ensino e de aprendizagem Não entrarei em detalhes e deixo de fora as escolas particulares e sobretudo o sistema escolar paroquial católicoromano O fato importante é que por causa de determinadas teorias boas ou más todas as regras do juízo humano normal foram postas de parte Um procedimento como esse possui sempre grande e perniciosa importância sobretudo em um país que confia em tão larga escala no bom senso em sua vida política Sempre que em questões políticas o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas nos deparamos com uma crise pois essa espécie de juízo é na realidade aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós e com a ajuda do qual nele nos movemos O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual Em toda crise é destruída uma parte do mundo alguma coisa comum a todos nós A falência do bom senso aponta como uma vara mágica o lugar em que ocorreu esse desmoronamento Em todo caso a resposta à questão Por que Joãozinho não sabe ler ou à questão mais geral Por que os níveis escolares da escola americana média achamse tão atrasados em relação aos padrões médios na totalidade dos países da Europa não é infelizmente simplesmente o fato de ser este um país jovem que não alcançou ainda os padrões do Velho Mundo mas ao contrário o fato de ser este país nesse campo particular o mais avançado e moderno do mundo E isso é verdadeiro em um dúplice sentido em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no cam po da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente Desse modo a crise na educação americana de um lado anuncia a bancarrota da educação progressiva e de outro apresenta um problema imensamente difícil por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências A esse respeito devemos ter em mente um outro fator mais geral que é certo não provocou a crise mas que a agravou em notável intensidade e que é o papel singular que o conceito de igualdade desempenha e sempre desempenhou na vida americana Há nisso muito mais que a igualdade perante a lei mais também que o nivelamento das distinções de classe e mais ainda que o expresso na frase igualdade de oportunidades embora esta tenha uma maior importância em nosso contexto dado que no modo de ver americano o direito à educação é um dos inalienáveis direitos cívicos Este último foi decisivo para a estrutura do sistema de escolas públicas porquanto escolas secundárias no sentido europeu constituem exceções Como a frequência escolar obrigatória se estende à idade de dezesseis anos toda criança deve chegar ao colégio e o colégio é portanto basicamente uma espécie de continuação da escola primária Em conseqüência dessa ausência de uma escola secundária a preparação para o curso superior tem que ser proporcionada pelos próprios cursos superiores cujos currículos padecem por isso de uma sobrecarga crônica a qual afeta por sua vez a qualidade do trabalho ali realizado Poderseia talvez pensar à primeira vista que essa anomalia pertence à própria natureza de uma sociedade de massas na qual a educação não é mais um privilégio das classes abastadas Uma vista dolhos na Inglaterra onde como todos sabem a educação secundária também foi posta à disposição em anos recentes de todas as classes da população mostrará que não é isso o que ocorre Lá ao fim da escola primária tendo os estudantes a idade de onze anos instituiuse o temível exame que elimina quase 10 dos escolares qualificados para instrução superior O rigor dessa seleção não foi aceito mesmo na Inglaterra sem protestos na América ele simplesmente teria sido impossível O que é intentado na Inglaterra é a meritocracia que é obviamente mais uma vez o estabelecimento de uma oligarquia dessa vez não de riqueza ou de nascimento mas de talento Mas isso significa mesmo que o povo inglês não esteja inteiramente esclarecido a respeito que mesmo sob um governo socialista o país continuará a ser governado como o tem sido desde tempos imemoriais isto é nem como monarquia nem como democracia porém como oligarquia ou aristocracia a última caso se admita o ponto de vista de que os mais dotados são também os melhores o que não é de modo algum uma certeza Na América uma divisão quase física dessa espécie entre crianças muito dotadas e pouco dotadas seria considerada intolerável A meritocracia contradiz tanto quanto qualquer outra oligarquia o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária Assim o que torna a crise educacional na América tão particularmente aguda é o temperamento político do país que espontaneamente peleja para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos entre dotados e pouco dotados entre crianças e adultos e particularmente entre alunos e professores É óbvio que um nivelamento desse tipo só pode ser efetivamente consumado às custas da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado dentre os estudantes Entretanto é igualmente óbvio pelo menos a qualquer pessoa que tenha tido algum contato com o sistema educacional americano que essa dificuldade enraizada na atitude política do país possui também grandes vantagens não apenas de tipo humano mas também educacionalmente falando em todo caso esses fatores gerais não podem explicar a crise em que nos encontramos presentemente e tampouco justificam as medidas que a precipitaram II Essas desastrosas medidas podem ser remontadas esquematicamente a três pressupostos básicos todos mais do que familiares O primeiro é o de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças autônomos e que se deve na medida do possível permitir que elas governem Os adultos aí estão apenas para auxiliar esse governo A autoridade que diz às crianças individualmente o que fazer e o que não fazer repousa no próprio grupo de crianças e isso entre outras consequências gera uma situação em que o adulto se acha impotente ante a criança individual e sem contato com ela Ele apenas pode dizerlhe que faça aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça As relações reais e normais entre crianças e adultos emergentes do fato de que pessoas de todas as idades se encontram sempre simultaneamente reunidas no mundo são assim suspensas E é assim da essência desse primeiro pressuposto básico levar em conta somente o grupo e não a criança individual Quanto à criança no grupo sua situação naturalmente é bem pior que antes A autoridade de um grupo mesmo que este seja um grupo de crianças é sempre consideravelmente mais forte e tirânica do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado Se a olharmos do ponto de vista da criança individual as chances desta de se rebelar ou fazer qualquer coisa por conta própria são praticamente nulas ela não se encontra mais em uma luta bem desigual com uma pessoa que é verdade tem absoluta superioridade sobre ela mas no combate a quem pode no entanto contar com a solidariedade das demais crianças isto é de sua própria classe em vez disso encontrase na posição por definição irremediável de uma minoria de um em confronto com a absoluta maioria dos outros Poucas pessoas adultas são capazes de suportar uma situação dessas mesmo quando ela não é sustentada por meios de compulsão externos as crianças são pura e simplesmente incapazes de fazêlo Assim ao emanciparse da autoridade dos adultos a criança não foi libertada e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica que é a tirania da maioria Em todo caso o resultado foi serem as crianças por assim dizer banidas do mundo dos adultos São elas ou jogadas a si mesmas ou entregues à tirania de seu próprio grupo contra o qual por sua superioridade numérica elas não podem se rebelar contra o qual por serem crianças não podem argumentar e do qual não podem escapar para nenhum outro mundo por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos A reação das crianças a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil e frequentemente é uma mistura de ambos O segundo pressuposto básico que veio à tona na presente crise tem a ver com o ensino Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo a Pedagogia transformouse em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada Um professor pensavase é um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa sua formação é no ensino e não no domínio de qualquer assunto particular Essa atitude como logo veremos está naturalmente intimamente ligada a um pressuposto básico acerca da aprendizagem Além disso ela resultou nas últimas décadas em um negligenciamento extremamente grave da formação dos professores em suas próprias matérias particularmente nos colégios públicos Como o professor não precisa conhecer sua própria matéria não raro acontece encontrarse apenas um passo à frente de sua classe em conhecimento Isso quer dizer por sua vez que não apenas os estudantes são efetivamente abandonados a seus próprios recursos mas também que a fonte mais legítima da autoridade do professor como a pessoa que seja dada a isso a forma que se queira sabe mais e pode fazer mais que nós mesmos não é mais eficaz Dessa forma o professor nãoautoritário que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade não pode mais existir Contudo o pernicioso papel que representam na crise atual a Pedagogia e as escolas de professores só se tornou possível devido a uma teoria moderna acerca da aprendizagem Era muito simplesmente a aplicação do terceiro pressuposto básico em nosso contexto um pressuposto que o mundo moderno defendeu durante séculos e que encontrou expressão conceitual sis temática no Pragmatismo Esse pressuposto básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia consiste em substituir na medida do possível o aprendizado pelo fazer O motivo por que não foi atribuída nenhuma importância ao domínio que tenha o professor de sua matéria foi o desejo de leválo ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem de tal modo que ele não transmitisse como se dizia conhecimento petrificado mas ao invés disso demonstrasse constantemente como o saber é produzido A intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos mas sim de inculcar uma habilidade e o resultado foi uma espécie de transformação de instituições de ensino em instituições vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a utilizar uma máquina de escrever ou o que é mais importante para a arte de viver como ter êxito com outras pessoas e ser popular quanto foram incapazes de fazer com que a criança adquirisse os prérequisitos normais de um currículo padrão Entretanto essa descrição é falha não apenas por exagerar obviamente com o fito de aclarar um argumento como por não levar em conta como nesse processo se atribuiu importância toda especial à diluição levada tão longe quanto possível da distinção entre brinquedo e trabalho em favor do primeiro O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança Somente o que pode ser aprendido mediante o brinquedo faz justiça a essa vivacidade A atividade característica da criança pensavase está no brinquedo a aprendizagem no sentido antigo forçando a criança a uma atitude de passividade obrigavaa a abrir mão de sua própria iniciativa lúdica A íntima conexão entre essas duas coisas a substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar pode ser ilustrada diretamente pelo ensino de línguas a criança deve aprender falando isto é fazendo e não pelo estudo da gramática e da sintaxe em outras palavras deve aprender um língua estranha da mesma maneira como quando criancinha aprendeu sua própria língua como que ao brincar e na continuidade ininterrupta da mera existência Sem mencionar a questão de saber se isso é possível ou não é possível em escala limitada somente quando se pode manter a criança o dia todo no ambiente de língua estrangeira é perfeitamente claro que esse processo tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância Aquilo que por excelência deveria preparar a criança para o mundo dos adultos o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar é extinto em favor da autonomia do mundo da infância Seja qual for a conexão entre fazer e aprender e qualquer que seja a validade da fórmula pragmática sua aplicação à educação ou seja ao modo de aprendizagem da criança tende a tornar absoluto o mundo da infância exatamente da maneira como observamos no caso do primeiro pressuposto básico Também aqui sob o pretexto de respeitar a independência da criança ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo na medida em que este pode ser chamado de um mundo Essa retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças o qual entre outras coisas consiste do ensino e da aprendizagem e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento de que a infância é uma etapa temporária uma preparação para a condição adulta A atual crise na América resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar todo o sistema educacional ou seja de transformálo inteiramente Ao fazêlo o que se está procurando de fato exceto quanto aos planos de uma imensa ampliação das facilidades de educação nas Ciências Físicas e em tecnologia não é mais que uma restauração o ensino será conduzido de novo com autoridade o brinquedo deverá ser interrompido durante as horas de aula e o trabalho sério retomado a ênfase será deslocada das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos no currículo falase mesmo por fim de transformar os atuais currículos dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças Essas reformas propostas que estão ainda em discussão e são de interesse puramente norteamericano não precisam nos ocupar aqui Não discutirei tampouco a questão mais técnica embora talvez a longo prazo ainda mais importante de como é possível reformular os currículos de escolas secundárias e elementares de todos os países de modo a preparálas para as exigências inteiramente novas do mundo de hoje O que importa para nossa argumentação é uma dupla questão Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional isto é quais são os motivos reais para que durante décadas se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso Em segundo lugar o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação não no sentido de que sempre se pode aprender dos erros o que não se deve fazer mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização ou seja sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana Começaremos com a segunda questão III Uma crise na educação em qualquer ocasião originaria séria preocupação mesmo se não refletisse como ocorre no presente caso uma crise e uma instabilidade mais gerais na sociedade moderna A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana que jamais permanece tal qual é porém se renova continuamente através do nascimento da vinda de novos seres humanos Esses recémchegados além disso não se acham acabados mas em um estado de vir a ser Assim a criança objeto da educação possui para o educador um duplo aspecto é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação é um novo ser humano e é um ser humano em formaçãoEsse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo e não se aplica às formas de vida animais corresponde a um duplo relacionamento o relacionamento com o mundo de um lado e com a vida de outro A criança partilha o estado de vir a ser com todas as coisas vivas com respeito à vida e seu desenvolvimento a criança é um ser humano em processo de formação do mesmo modo que um gatinho é um gato em processo de formação Mas a criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida Se a criança não fosse um recémchegado nesse mundo humano porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que todos os animais assumem em relação a seus filhos Os pais humanos contudo não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento mas simultaneamente os introduziram em um mundo Eles assumem na educação a responsabilidade ao mesmo tempo pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem com efeito podem entrar em mútuo conflito A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança voltase em certo sentido contra o mundo a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo Porém também o mundo necessita de proteção para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração Por precisar ser protegida do mundo o lugar tradicional da criança é a família cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes Essas quatro paredes entre as quais a vida familiar privada das pessoas é vivida constitui um escudo contra o mundo e sobretudo contra o aspecto público do mundo Elas encerram um lugar seguro sem o que nenhuma coisa viva pode medrar Isso é verdade não somente para a vida da infância mas para a vida humana em geral Toda vez que esta é permanentemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança sua qualidade vital é destruída No mundo público comum a todos as pessoas são levadas em conta e assim também o trabalho isto é o trabalho de nossas mãos com que cada pessoa contribui para com o mundo comum porém a vida qua vida não interessa aí O mundo não lhe pode dar atenção e ela deve ser oculta e protegida do mundo Tudo que vive e não apenas a vida vegetativa emerge das trevas e por mais forte que seja sua tendência natural a orientarse para a luz mesmo assim precisa da segurança da escuridão para poder crescer Esse com efeito pode ser o motivo por que com tanta frequência crianças de pais famosos não dão em boa coisa A fama penetra as quatro paredes e invade seu espaço privado trazendo consigo sobretudo nas condições de hoje o clarão implacável do mundo público inundando tudo nas vidas privadas dos implicados de tal maneira que as crianças não têm mais um lugar seguro onde possam crescer Ocorre porém exatamente a mesma destruição do espaço vivo real toda vez que se tenta fazer das próprias crianças um espécie de mundo Entre esses grupos de iguais surge então uma espécie de vida pública e sem levar absolutamente em conta o fato de que esta não é uma vida pública real e de que toda a empresa é de certa forma uma fraude permanece o fato de que as crianças isto é seres humanos em processo de formação porém ainda não acabados são assim forçadas a se expor à luz da existência pública Parece óbvio que a educação moderna na medida em que procura estabelecer um mundo de crianças destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais Contudo chocanos como algo realmente estranho que tal dano ao desenvolvimento da criança seja o resultado da educação moderna pois esta sustentava que seu único propósito era servir a criança rebelandose contra os métodos do passado por não levarem suficientemente em consideração a natureza íntima da criança e suas necessidades O Século da Criança como podemos lembrar iria emancipar a criança e liberála dos padrões originários de um mundo adulto Como pôde então acontecer que as mais elementares condições de vida necessárias ao crescimento e desenvolvimento da criança fossem desprezadas ou simplesmente ignoradas Como pôde acontecer que se expusesse a criança àquilo que mais que qualquer outra coisa caracterizava o mundo adulto o seu aspecto público logo após se ter chegado à conclusão de que o erro em toda a educação passada fora ver a criança como não sendo mais que um adulto em tamanho reduzido O motivo desse estranho estado de coisas nada tem a ver diretamente com a educação deve antes ser procurado nos juízos e preconceitos acerca da natureza da vida privada e do mundo público e sua relação mútua características da sociedade moderna desde o início dos tempos modernos e que os educadores ao começarem relativamente tarde a modernizar a educação aceitaram como postulados evidentes por si mesmos sem consciência das conseqüências que deveriam acarretar necessariamente para a vida da criança É uma peculiaridade de nossa sociedade de modo algum uma coisa necessária considerar a vida isto é a vida terrena dos indivíduos e da família como o bem supremo por esse motivo em contraste com todos os séculos anteriores ela emancipou essa vida e todas as atividades envolvidas em sua preservação e enriquecimento do ocultamento da privatividade expondoa à luz do mundo público É esse o sentido real da emancipação dos trabalhadores e das mulheres não como pessoas sem dúvida mas na medida em que preenchem uma função necessária no processo vital da sociedade Os últimos a serem afetados por esse processo de emancipação foram as crianças e aquilo mesmo que significaria uma verdadeira liberação para os trabalhadores e mulheres pois eles não eram somente traba lhadores e mulheres mas também pessoas tendo portanto direito ao mundo público isto é a serem e serem vistos a falar e serem ouvidos constituiu abandono e traição no caso das crianças que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público ou seja quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e viceversa mais difíceis torna as coisas para suas crianças que pedem por natureza a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento Por mais graves que possam ser essas violações das condições para o crescimento vital é certo que elas não foram de todo intencionais o objetivo central de todos os esforços da educação moderna foi o bemestar da criança fato esse que evidentemente não se torna menos verdadeiro caso os esforços feitos nem sempre tenham logrado êxito em promover o bemestar da maneira esperada A situação é inteiramente diversa na esfera das tarefas educacionais não mais dirigidas para a criança porém à pessoa jovem ao recémchegado e forasteiro nascido em um mundo já existente e que não conhece Tais tarefas são basicamente mas não exclusivamente responsabilidade das escolas competem à sua alçada o ensino e a aprendizagem e o fracasso neste campo é o problema mais urgente da América atualmente O que jaz na base disso Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola No entanto a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sêlo ela é em vez disso a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição de alguma forma da família para o mundo Aqui o comparecimento não é exigido pela família e sim pelo Estado isto é o mundo público e assim em relação à criança a escola representa em certo sentido o mundo embora não seja ainda o mundo de fato Nessa etapa da educação sem dúvida os adultos assumem mais uma vez uma responsabilidade pela criança só que agora essa não é tanto a responsabilidade pelo bemestar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais Isto do ponto de vista geral e essencial é a singularidade que distingue cada ser humano de todos os demais a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro no mundo mas alguma coisa que jamais esteve aí antes Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo devese introduzila aos poucos a ele na medida em que ela é nova devese cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é Em todo caso todavia o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibila de tomar parte em sua educação Na educação essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade a qualificação por maior que seja nunca engendra por si só autoridade A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo Face à criança é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos apontando os detalhes e dizendo à criança Isso é o nosso mundo Pois bem sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema é óbvio que na vida pública e política a autoridade ou não representa mais nada pois a violência e o terror exercidos pelos países totalitários evidentemente nada têm a ver com autoridade ou no máximo desempenha um papel altamente contestado Isso contudo simplesmente significa em essência que as pessoas não querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo Ao removermos a autoridade da vida política e pública pode ser que isso signifique que de agora em diante se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada seja a responsabilidade de dar ordens seja a de obedecêlas Não resta dúvida de que na perda moderna da autoridade ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes simultanea e inextricavelmente trabalhado juntas Na educação ao contrário não pode haver tal ambigüidade face à perda hodierna de autoridade As crianças não podem derrubar a autoridade educacional como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na prática educacional moderna A autoridade foi recusada pelos adultos e isso somente pode significar uma coisa que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças Evidentemente há uma conexão entre a perda de autoridade na vida pública e política e nos âmbitos privados e prépolíticos da família e da escola Quanto mais radical se torna a desconfiança face à autoridade na esfera pública mais aumenta naturalmente a probabilidade de que a esfera privada não permaneça incólume Há o fato adicional muito provavelmente decisivo de que há tempos imemoriais nos acostumamos em nossa tradição de pensamento político a considerar a autoridade dos pais sobre os filhos e de professores sobre alunos como o modelo por cujo intermédio se compreendia a autoridade política É justamente tal modelo que pode ser encontrado já em Platão e Aristóteles que confere tão extraordinária ambigüidade ao conceito de autoridade em política Ele se baseia sobretudo em uma superioridade absoluta que jamais poderia existir entre adultos e que do ponto de vista da dignidade humana não deve nunca existir Em segundo lugar ao seguir o modelo da criação dos filhos baseiase em uma superioridade puramente temporária tornandose pois autocontraditório quando aplicado a relações que por natureza não são temporárias como as relações entre governantes e governados Decorre da natureza do problema isto é da natureza da atual crise de autoridade e da natureza de nosso pensamento político tradicional que a perda de autoridade iniciada na esfera política deva terminar na esfera privada obviamente não é acidental que o lugar em que a autoridade política foi solapada pela primeira vez isto é a América seja onde a crise moderna da educação se faça sentir com maior intensidade A perda geral de autoridade de fato não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera prépolítica em que a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas O homem moderno por outro lado não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo para seu desgosto com o estado de coisas que sua recusa a assumir em relação às crianças a responsabilidade por tudo isso É como se os pais dissessem todos os dias Nesse mundo mesmo nós não estamos muito a salvo em casa como se movimentar nele o que saber quais habilidades dominar tudo isso também são mistérios par anos Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem em todo caso vocês não têm o direito de exigir satisfações Somos inocentes lavamos as nossas mãos por vocês Essa atitude é claro nada tem a ver com o desejo revolucionário de uma nova ordem no mundo Novus Ordo Seclorum que outrora animou a América mais que isso é um sintoma daquele moderno estranhamento do mundo visível em toda parte mas que se apresenta em forma particularmente radical e desesperada sob as condições de uma sociedade de massa É verdade que as experiências pedagógicas modernas têm assumido e não só na América poses muito revolucionárias o que ampliou até certo ponto a dificuldade de identificar a situação com clareza provocando certo grau de confusão na discussão do problema Em contradição com todos esses comportamentos continua existindo o fato inquestionável de que durante o período em que a América foi realmente animada por este espírito revolucionário ela jamais sonhou iniciar a nova ordem pela educação permanecendo ao contrário conservadora em matéria educacional A fim de evitar malentendidos pareceme que o conservadorismo no sentido de conservação faz parte da essência da atividade educacional cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa a criança contra o mundo o mundo contra a criança o novo contra o velho o velho contra o novo Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo que é aí assumida implica é claro uma atitude conservadora Mas isso permanece válido apenas no âmbito da educação ou melhor nas relações entre adultos e crianças e não no âmbito da política onde agimos em meio a adultos e com iguais Tal atitude conservadora em política aceitando o mundo como ele é procurando somente preservar o status quo não pode senão levar à destruição visto que o mundo tanto no todo como em parte é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo a menos que existam seres humanos determinados a intervir a alterar a criar aquilo que é novo As palavras de Hamlet The time is out of joint O cursed spite that ever I was born to set it right são mais O tempo está fora dos eixos Ó ódio maldito ter nascido para colocálo em ordem 242 ou menos verídicas para cada nova geração embora tenham adquirido talvez desde o início de nosso século uma validade mais persuasiva do que antes Basicamente estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha pois é essa a situação humana básica em que o mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado O mundo visto que feito por mortais se desgasta é dado que seus habitantes mudam continuamente corre o risco de tornarse mortal como eles Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes ele deve ser continuamente posto em ordem O problema é simplesmente educar de tal modo que um poremordem continue sendo efetivamente possível ainda que não possa nunca é claro ser assegurado Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso porém é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós os velhos possamos ditar sua aparência futura Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora ela deve preservar essa novidade e introduzila como algo novo em um mundo velho que por mais revolucionário que possa ser em suas ações é sempre do ponto de vista da geração seguinte obsolete e rente à destruição IV A verdadeira dificuldade na educação moderna está no fato de que a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna em nossos dias extraordinariamente difícil de atingir Há sólidas razões para isso A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição ou seja com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto 243 da crise moderna pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado Durante muitos séculos isto é por todo o período da civilização romanocristã não foi necessário tomar consciência dessa qualidade particular de si próprio pois a reverência ante o passado era parte essencial da mentalidade romana e isso não foi modificado ou extinto pelo Cristianismo mas apenas deslocado sobre fundamentos diferentes Era da essência da atitude romana embora de maneira alguma isso fosse verdadeiro para qualquer civilização ou mesmo para a tradição ocidental como um todo considerar o passado qua passado como um modelo os antepassados em cada instância como exemplos de conduta para seus descendentes crer que toda grandeza jaz no que foi e portanto que a mais excelente qualidade humana é a idade provecta que o homem envelhecido visto ser já quase um antepassado pode servir de modelo para os vivos Tudo isso se põe em contradição não só com nosso mundo e com a época moderna da Renascença em diante como por exemplo com a atitude grega diante da vida Quando Goethe disse que envelhecer é o gradativo retirarse do mundo das aparências sua observação era feita no espírito dos gregos para os quais ser e aparência coincidiam A atitude romana teria sido que justamente ao envelhecer e ao desaparecer gradativamente da comunidade dos mortais o homem atinge sua forma mais característica de existência ainda que em relação ao mundo das aparências esteja em vias de desaparecer isto porque somente agora ele se pode acercar da existência na qual ele será uma autoridade para os outros Contra o pano de fundo inabalado de uma tradição dessa natureza na qual a educação possui uma função política e esse caso era único é de fato relativamente fácil fazer direito as coisas em matéria de educação sem sequer fazer uma pausa para apreciar o que se está fazendo tão completo é o acordo entre o ethos específico do princípio pedagógico e as convicções éticas e morais básicas da sociedade como um todo Nas palavras de Políbio educar era simplesmente fazervos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados e nesse mister o educador podia ser um companheiro de luta ou um companheiro de trabalho por ter também embora em nível diverso atravessado a vida com os olhos grudados no passado Companheirismo e autoridade não eram nesse caso senão dois aspectos da mesma substância e a autoridade do mestre arraigavase firmemente na autoridade inclusiva do passado enquanto tal Hoje em dia porém não nos encontramos mais em tal posição não faz muito sentido agirmos como se a situação fosse a mesma como se apenas nos houvéssemos como que extraviado do caminho certo sendo livres para a qualquer momento reencontrar o rumo Isso quer dizer que não se pode onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno ir simplesmente em frente e tampouco simplesmente voltar para trás Tal retrocesso nunca nos levará a parte alguma exceto à mesma situação da qual a crise acabou de surgir O retorno não passaria de uma repetição da execução embora talvez em forma diferente visto não haver limites às possibilidades de noções absurdas e caprichosas que são ataviadas como a última palavra em ciência Por outro lado a mera e irrefletida perseverança seja pressionando para frente a crise seja aderindo à rotina que acredita bonachonamente que a crise não engolfará sua esfera particular de vida só pode visto que se rende ao curso do tempo conduzir à ruína para ser mais precisa ela só pode aumentar o estranhamento do mundo pelo qual já somos ameaçados de todos os flancos Ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo podemos até admitir que nos defrontamos aqui presumivelmente com um processo automático sob a única condição de não esquecermos que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos O problema da educação no mundo moderno está no fato de por sua natureza não poder esta abrir mão nem da autoridade nem da tradição e ser obrigada apesar disso a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido 244 245 coeso pela tradição Isso significa entretanto que não apenas professores e educadores porém todos nós na medida em que vivemos em um mundo junto à nossas crianças e aos jovens devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais e acima de tudo do âmbito da vida pública e política para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos Na prática a primeira consequência disso seria uma compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é e não instruílas na arte de viver Dado que o mundo é velho sempre mais que elas mesmas a aprendizagem voltase inevitavelmente para o passado não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente Em segundo lugar a linha traçada entre crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras jamais se deveria permitir porém que tal linha se tornasse uma muralha a separar as crianças da comunidade adulta como se não vivessem elas no mesmo mundo e como se a infância fosse um estado humano autônomo capaz de viver por suas próprias leis É impossível determinar mediante uma regra geral onde a linha limítrofe entre a infância e a condição adulta recai em cada caso Ela muda freqüentemente com respeito à idade de país para país de uma civilização para outra e também de indivíduo para indivíduo A educação contudo ao contrário da aprendizagem precisa ter um final previsível Em nossa civilização esse final coincide provavelmente com o diploma colegial não com a conclusão do curso secundário pois o treinamento profissional nas universidades ou cursos técnicos embora sempre tenha algo a ver com a educação é não obstante em si mesmo uma espécie de especialização Ele não visa mais a introduzir o jovem no mundo como um todo mas sim em um segmento limitado e particular dele Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera com muita facilidade em retórica moral e emocional É muito fácil porém ensinar sem educar e podese aprender durante o dia todo sem por isso ser educado Tudo isso são detalhes particulares contudo que na verdade devem ser entregues aos especialistas e pedagogos O que nos diz respeito e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia é a relação entre adultos e crianças em geral ou para colocálo em termos ainda mais gerais e exatos nossa atitude face ao fato da natalidade o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e com tal gesto salválo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsálas de nosso mundo e abandonálas a seus próprios recursos e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós preparandoas em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum 246 247 Ensaio Crítico Educação e Literatura no Mundo Contemporâneo 1 Introdução A interseção entre educação e literatura é um campo de estudo que possui profundas implicações para o desenvolvimento humano e a coesão social especialmente em um mundo caracterizado por mudanças vertiginosas e inovações constantes Nos últimos anos temos testemunhado uma aceleração exponencial em diversos setores impulsionada por avanços tecnológicos transformações econômicas e reconfigurações sociais que remodelam continuamente o tecido da sociedade global Neste cenário de incessante evolução a literatura emerge como uma poderosa ferramenta educacional não apenas como um meio de transmissão de conhecimentos mas como um canal privilegiado para o desenvolvimento crítico ético e emocional dos indivíduos O pensamento de Hannah Arendt e Antonio Candido oferece uma base teórica robusta para explorar essa complexa relação entre educação e literatura no contexto contemporâneo Arendt em obras seminal como Entre o Passado e o Futuro e Responsabilidade e Julgamento reflete sobre a importância do julgamento crítico e da capacidade de reflexão no processo educativo destacando que a educação deve preparar os indivíduos não apenas para compreender o mundo mas para interagir com ele de maneira significativa e responsável Arendt argumenta que a verdadeira educação deve instigar o amor pelo mundo e a capacidade de julgar com discernimento elementos que são intrinsecamente cultivados através do engajamento com textos literários Antonio Candido por sua vez em O Direito à Literatura advoga que a literatura não é um luxo mas um direito fundamental capaz de humanizar e enriquecer a vida dos indivíduos Candido vê a literatura como um veículo para a ampliação da experiência humana promovendo a empatia e a compreensão das complexidades da condição humana Ele argumenta que a literatura possui um papel crucial na formação do ser humano integral fornecendo uma lente através da qual os leitores podem examinar suas próprias vidas e o mundo ao seu redor À medida que enfrentamos um período de transformações rápidas e profundasonde as tecnologias emergentes e as mudanças sociais desafiam constantemente as normas estabelecidas a literatura pode oferecer uma forma de resistência cultural e uma âncora para a identidade pessoal Através da literatura os adultos podem explorar novas formas de ver e entender a si mesmos e suas realidades proporcionando um espaço para a introspecção e a construção de um pensamento crítico resiliente Além disso o engajamento com a literatura na educação de adultos pode proporcionar um contrapeso necessário à cultura da velocidade e da superficialidade que permeia muitos aspectos da vida moderna Em um ambiente onde a informação é consumida rapidamente e as interações são frequentemente efêmeras a literatura oferece uma oportunidade para uma reflexão mais profunda e significativa permitindo que os indivíduos se reconectem com valores e experiências que transcendem o imediatismo do presente Portanto ao considerar a aplicação da literatura na educação de adultos é essencial reconhecer tanto as potencialidades quanto os desafios que acompanham essa integração As perspectivas de Arendt e Cândido nos orientam na exploração de como a literatura pode servir não apenas como uma fonte de conhecimento e prazer estético mas como uma força vital na construção de uma educação que responde às necessidades de um mundo em constante mudança promovendo cidadãos mais críticos éticos e culturalmente enriquecidos Assim a literatura não se apresenta apenas como uma forma de arte mas como um componente essencial de uma educação que busca formar indivíduos capazes de navegar com discernimento e profundidade as complexidades do mundo contemporâneo 2 Educação e Literatura Fundamentos Teóricos Hannah Arendt propõe que a educação representa um dos pilares fundamentais para a perpetuação e renovação de uma sociedade Ela vê a educação não apenas como uma ferramenta para a transmissão de conhecimento mas como uma prática que incute nos indivíduos a responsabilidade de reconstituir um mundo em constante transformação Em Responsabilidade e Julgamento Arendt articula que a essência da educação reside na sua capacidade de cultivar o julgamento crítico e a habilidade de agir de forma ética e ponderada Para Arendt a educação deve ir além do mero repasse de informações deve essencialmente formar indivíduos capazes de avaliar criticamente as circunstâncias e tomar decisões informadas e responsáveis Este enfoque na formação do julgamento crítico é especialmente relevante quando consideramos a literatura como um componente central na educação de adultos A literatura ao apresentar narrativas complexas e dilemas éticos oferece um contexto seguro e rico para a exploração de questões morais e sociais Arendt sugere que ao engajarse com a literatura os adultos não só ampliam seu repertório de conhecimentos mas também desenvolvem a capacidade de discernir e refletir sobre questões éticas e humanísticas Assim a leitura de obras literárias proporciona um terreno fértil para o desenvolvimento de um pensamento crítico sofisticado que é vital para a participação ativa e responsável na sociedade contemporânea Por sua vez Antonio Candido em sua obra seminal O Direito à Literatura defende que a literatura deve ser considerada um direito básico fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano Ele argumenta que a literatura possui uma função humanizadora essencial capaz de ampliar a sensibilidade e a compreensão social dos indivíduos Candido postula que o contato com textos literários permite aos leitores transcender as limitações de suas experiências imediatas promovendo uma empatia profunda e uma visão ampliada da condição humana A literatura ao estimular a imaginação e a introspecção enriquece o indivíduo de forma única proporcionando uma compreensão mais rica e multifacetada das realidades humanas A partir da perspectiva de Candido a literatura serve não apenas como um meio de entretenimento ou erudição mas como uma ferramenta crucial para a formação de cidadãos conscientes e engajados Ao permitir que os leitores explorem e compreendam diferentes experiências e perspectivas a literatura contribui para a formação de uma cidadania mais empática e socialmente responsável Esta humanização através da literatura é vital em um mundo onde as interações sociais são frequentemente mediadas por tecnologias que podem desumanizar e fragmentar as experiências pessoais Ao considerar a educação de adultos as visões de Arendt e Candido se complementam e se reforçam Arendt nos mostra que a educação deve preparar os indivíduos para julgar e agir no mundo enquanto Candido ressalta que a literatura é uma das ferramentas mais poderosas para cultivar essa capacidade A literatura então emerge como um campo de prática educacional onde se pode fomentar não só o conhecimento e a habilidade crítica mas também a profundidade ética e a sensibilidade social necessárias para enfrentar as complexidades do mundo contemporâneo Ela permite que os adultos encontrem um espaço de reflexão e crescimento pessoal que transcende o imediatismo e a superficialidade que muitas vezes caracterizam a vida moderna Portanto integrar a literatura na educação de adultos não é apenas uma questão de enriquecer o currículo mas de proporcionar uma formação que promove o desenvolvimento integral do indivíduo alinhando o conhecimento crítico com uma compreensão ética e empática do mundo Essa abordagem amplia a função da educação de preparar indivíduos não só para sobreviver mas para contribuir de forma significativa e responsável na construção e renovação contínua da sociedade 3 As Possibilidades da Literatura na Educação de Adultos A literatura em seu vasto campo de possibilidades desempenha um papel crucial na educação de adultos especialmente em um mundo onde a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais pode criar um ambiente desestabilizador e alienante As transformações contemporâneas muitas vezes desafiam a capacidade dos indivíduos de se conectarem profundamente com suas experiências e identidades gerando uma necessidade premente de ancoragem cultural e introspecção crítica Nesse contexto a literatura se destaca como uma ferramenta poderosa que pode atuar como um catalisador para o desenvolvimento da consciência crítica e como um meio de resistência cultural e pessoal Conforme argumentado por Hannah Arendt o papel fundamental do educador é introduzir os alunos no amor ao mundo Arendt sustenta que a verdadeira educação deve transcender a mera acumulação de fatos estimulando um pensamento que esteja intrinsecamente ligado à capacidade de julgar e compreender o mundo em profundidade A literatura com suas narrativas ricas e personagens multifacetados proporciona um terreno ideal para este tipo de educação Através da leitura de textos literários os adultos são incentivados a explorar e refletir sobre dilemas éticos e sociais desenvolvendo uma consciência crítica que é essencial para a formação de cidadãos reflexivos e engajados Narrativas literárias complexas permitem que os leitores experimentem uma multiplicidade de perspectivas e realidades muitas vezes diferentes de suas próprias Esse encontro com o outro literário promove a empatia e a compreensão capacitando os leitores a questionar e expandir seus próprios horizontes Em um mundo onde a rapidez das informações muitas vezes leva à superficialidade e ao pensamento fragmentado a literatura oferece um espaço para a introspecção e a análise profunda Ao envolverse com personagens e tramas que exploram as nuances da condição humana os leitores são desafiados a examinar suas próprias crenças e valores desenvolvendo habilidades críticas que são vitais para navegar as complexidades do mundo contemporâneo Além de ser uma fonte de desenvolvimento crítico a literatura também serve como um meio de resistência cultural e pessoal Em um contexto onde as rápidas mudanças tecnológicas e sociais frequentemente resultam na alienação dos indivíduos de suas próprias tradições e experiências a literatura pode oferecer um ponto de ancoragem Textos clássicos e contemporâneos funcionam como uma ponte que conecta o presente ao passado permitindo que os leitores revisitem suas próprias histórias e tradições Essa conexão com o passado não só enriquece a compreensão do presente mas também proporciona uma base sólida a partir da qual os indivíduos podem enfrentar e interpretar as mudanças contínuas do mundo ao seu redor A literatura ao trazer à tona temas universais e atemporais permite que os adultos reencontrem e reflitam sobre suas próprias identidades e perspectivas Em meio a um turbilhão de mudanças a literatura oferece um espaço de constância e reflexão que pode ser essencial para a manutenção da coesão pessoal e cultural Ao revisitar e reinterpretar textos os adultos têm a oportunidade de reafirmar suas próprias narrativas e valores tornandose mais resilientes e capacitados para lidar com as complexidades e incertezas da vida moderna Em suma a literatura oferece uma gama de possibilidades enriquecedoras para a educação de adultos em um mundo de rápidas transformações Ela não só atua como um veículo para o desenvolvimento da consciência crítica ajudando os indivíduos a refletirem e questionarem suas próprias realidades mas também serve como um baluarte contra a alienação proporcionando uma ancoragem cultural que é fundamental para a identidade e o bemestar pessoal Ao integrar a literatura na educação de adultos criamos oportunidades para um engajamento mais profundo e significativo com o mundo capacitando os indivíduos a navegar as mudanças com uma perspectiva crítica e enraizada em uma compreensão rica da condição humana 4 Desafios Embora a literatura ofereça inúmeras oportunidades enriquecedoras para a educação de adultos a sua integração enfrenta desafios significativos exacerbados pelo contexto contemporâneo dominado pela tecnologia e pela informação instantânea Neste cenário os textos literários com suas exigências de leitura atenta e reflexão profunda podem parecer anacrônicos ou até irrelevantes para uma população acostumada à rapidez e à superficialidade da cultura digital Tal como argumenta José Sérgio Fonseca de Carvalho em Educação Uma Herança sem Testamento a educação moderna tende a enfatizar habilidades técnicas e utilitárias muitas vezes em detrimento do desenvolvimento crítico e humanístico Esta tendência representa um obstáculo substancial pois a valorização da literatura na educação de adultos exige uma reconceituação dos objetivos educacionais que deve transcender a mera formação para a empregabilidade A literatura em sua essência demanda um tempo e um espaço que parecem cada vez mais escassos na era digital Os textos literários exigem uma dedicação e uma profundidade de engajamento que estão em contraste com a imediaticidade das interações contemporâneas nas redes sociais e outras plataformas digitais Este descompasso pode levar à percepção de que a literatura é menos relevante ou menos valiosa em comparação com habilidades técnicas mais imediatamente aplicáveis no mercado de trabalho Para integrar a literatura efetivamente na educação de adultos é necessário um esforço consciente para realinhar os objetivos educacionais destacando a importância do desenvolvimento intelectual e emocional que a literatura pode proporcionar Além disso a diversidade de experiências de vida entre os adultos apresenta um desafio adicional significativo para a integração da literatura na educação Ao contrário das crianças e jovens que muitas vezes têm experiências de vida mais homogêneas e currículos educacionais mais padronizados os adultos trazem consigo uma vasta gama de vivências conhecimentos prévios e contextos culturais Essas experiências diversas podem influenciar profundamente a recepção e a interpretação dos textos literários criando uma necessidade de abordagens pedagógicas flexíveis e inclusivas Hannah Arendt em suas reflexões sobre educação sugere que a formação educativa deve respeitar e integrar essas diversas perspectivas promovendo um espaço onde múltiplas vozes e experiências possam se encontrar e dialogar No entanto a implementação prática dessa abordagem pode ser desafiadora A literatura deve ser selecionada e apresentada de maneiras que ressoem com as experiências individuais dos alunos proporcionando um ponto de conexão entre os textos e as realidades pessoais dos leitores Isso requer uma cuidadosa curadoria de obras que sejam capazes de dialogar com uma variedade de contextos e que promovam tanto a reflexão pessoal quanto o diálogo coletivo A adaptação dos textos literários às experiências diversas dos adultos pode envolver a escolha de obras que abordem temas universais ou que reflitam questões contemporâneas relevantes para diferentes grupos demográficos Além disso estratégias pedagógicas que incentivem a partilha de interpretações e experiências podem enriquecer a compreensão coletiva e fomentar um ambiente de aprendizado mais inclusivo e dinâmico Os educadores devem estar atentos às diversas histórias e realidades dos alunos utilizando a literatura como um ponto de partida para discussões que abracem e valorizem essas diferenças Em conclusão a integração da literatura na educação de adultos embora desafiadora é essencial para o desenvolvimento de uma educação que valorize não apenas as habilidades técnicas mas também a capacidade crítica a sensibilidade cultural e a profundidade ética Enfrentar os desafios de relevância e diversidade requer uma abordagem educacional que reconheça a importância de realinhar os objetivos da educação para incluir a formação humanística e que celebre a riqueza das experiências individuais dos alunos utilizando a literatura como uma ponte para a compreensão mútua e o crescimento pessoal 5 Reflexões Finais A relação entre educação e literatura é inerentemente rica e multifacetada adquirindo camadas adicionais de complexidade no contexto da educação de adultos Este vínculo profundamente explorado nas obras de Hannah Arendt e Antônio Cândido revela como a literatura pode atuar como um veículo poderoso para o desenvolvimento do pensamento crítico e a reafirmação dos valores humanísticos especialmente em uma era marcada por rápidas e profundas transformações tecnológicas e sociais Arendt e Cândido fornecem uma base teórica a partir da qual podemos entender como a literatura pode ser usada para fomentar uma educação que não apenas equipa os adultos com conhecimentos técnicos mas também com a profundidade intelectual e emocional necessária para navegar as complexidades do mundo moderno Hannah Arendt com suas reflexões sobre a educação e o julgamento enfatiza a importância de uma educação que transcenda a simples transmissão de conhecimento factual Ela argumenta que a educação deve preparar os indivíduos para o amor ao mundo e para o julgamento crítico capacidades essenciais para interagir com um mundo em constante mudança A literatura ao engajar os leitores com dilemas morais e narrativas que exploram a condição humana serve como um meio para desenvolver essas capacidades críticas e reflexivas No contexto da educação de adultos a literatura oferece um espaço seguro para explorar questões complexas e promover o crescimento intelectual emocional e ético Antonio Candido em sua defesa da literatura como um direito humano fundamental ressalta que o envolvimento com textos literários enriquece a experiência individual e coletiva Ele vê a literatura como uma ponte entre as tradições culturais e as emergentes realidades sociais facilitando um diálogo que é vital para a formação de uma cidadania engajada e consciente No contexto da educação de adultos esse diálogo é particularmente crucial pois permite que os indivíduos conectem suas experiências de vida com as lições universais encontradas na literatura fortalecendo tanto sua compreensão pessoal quanto sua participação na comunidade No entanto a implementação prática dessa abordagem enfrenta desafios substanciais A integração significativa da literatura na educação de adultos requer um compromisso renovado com uma forma de educação que valorize tanto a técnica quanto a profundidade intelectual e emocional Em um mundo onde a educação é frequentemente orientada por demandas imediatas do mercado de trabalho há uma necessidade urgente de reequilibrar o foco educacional para incluir o desenvolvimento humanístico Isso implica em criar currículos que incorporem a literatura de maneira que ela não seja vista apenas como um adorno cultural mas como uma ferramenta central para o crescimento pessoal e social Para efetivamente navegar as complexidades do mundo contemporâneo a educação de adultos deve se esforçar para integrar a literatura de formas que ressoem com as demandas emergentes da sociedade ao mesmo tempo que preservam o valor das tradições literárias Isso pode ser feito promovendo um diálogo contínuo entre a literatura e as realidades atuais utilizando textos literários para explorar questões contemporâneas e desafiar os alunos a refletir criticamente sobre suas próprias experiências e sobre o mundo ao seu redor Ao fazer isso a literatura não só enriquece o indivíduo proporcionando um espaço para a reflexão e o desenvolvimento crítico mas também fortalece a comunidade contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes engajados e capazes de participar ativamente na construção de uma sociedade mais justa e equitativa Portanto a educação de adultos que integra a literatura de forma significativa pode servir como um modelo para um tipo de educação que se adapta às rápidas mudanças do mundo contemporâneo enquanto permanece fiel aos valores humanísticos essenciais Esta abordagem não apenas equipa os indivíduos com habilidades para o presente mas também cultiva a capacidade de pensamento crítico e a profundidade emocional necessária para enfrentar os desafios futuros Em última análise a literatura quando integrada na educação de adultos contribui para o desenvolvimento de uma cidadania que é informada reflexiva e profundamente engajada no tecido social promovendo uma sociedade mais coesa e resiliente diante das rápidas mudanças 6 Bibliografia ARENDT Hannah Entre o Passado e o Futuro São Paulo Perspectiva 2011 ARENDT Hannah Responsabilidade e Julgamento São Paulo Companhia das Letras 2011 CANDIDO Antonio O Direito à Literatura São Paulo Companhia das Letras 2004 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Educação Uma Herança sem Testamento Campinas Papirus 1995 GADAMER HansGeorg Verdade e Método Petrópolis Vozes 2013 MEURER José Luiz A Literatura na Formação do Pensamento Crítico Educação e Pesquisa vol 40 no 2 2014 pp 319332 SILVA Tânia Ramos de Literatura e Educação A Formação do Sujeito Crítico Revista Brasileira de Educação vol 19 no 57 2014 pp 375390 ANTONIO CANDIDO VÁRIOS ESCRITOS 5ª edição corrigida pelo autor Ouro sobre Azul Rio de Janeiro 2011 O DIREITO À LITERATURA 1 O assunto que me foi confiado nesta série é aparentemente meio desligado dos problemas reais Direitos humanos e literatura As maneiras de abordálo são muitas mas não posso começar a falar sobre o tema específico sem fazer algumas reflexões prévias a respeito dos próprios direitos humanos É impressionante como em nosso tempo somos contraditórios neste capítulo Começo observando que em comparação a eras passadas chegamos a um máximo de racionalidade técnica e de domínio sobre a natureza Isso permite imaginar a possibilidade de resolver grande número de problemas materiais do homem quem sabe inclusive o da alimentação No entanto a irracionalidade do comportamento é também máxima servida frequentemente pelos mesmos meios que deveriam realizar os desígnios da racionalidade Assim com a energia atômica podemos ao mesmo tempo gerar força criadora e destruir a vida pela guerra com o incrível progresso industrial aumentamos o conforto até alcançar níveis nunca sonhados mas excluímos dele as grandes massas que condenamos à miséria em certos países como o Brasil quanto mais cresce a riqueza mais aumenta a péssima distribuição dos bens Portanto podemos dizer que os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria Ora na Grécia antiga por exemplo teria sido impossível pensar numa distribuição equitativa dos bens materiais porque a técnica ainda não permitia superar as formas brutais de exploração do homem nem criar abundância para todos Mas em nosso tempo é possível pensar nisso e no entanto pensamos relativamente pouco Essa insensibilidade nega uma das linhas mais promissoras da história do homem ocidental aquela que se nutriu das ideias amadurecidas no correr dos séculos XVIII e XIX gerando o liberalismo e tendo igualdade de tratamento Do ponto de vista social é preciso haver leis específicas garantindo este modo de ver Por isso a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes mas os que garantem a integridade espiritual São incompressíveis certamente a alimentação a moradia o vestuário a instrução a saúde a liberdade individual o amparo da justiça pública a resistência à opressão etc e também o direito à crença à opinião ao lazer e por que não à arte e à literatura Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria Como noutros casos a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia isto é elas só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal ou pelo menos de frustração mutiladora A nossa questão básica portanto é saber se a literatura é uma necessidade deste tipo Só então estaremos em condições de concluir a respeito indispensável deste universo independentemente da nossa vontade E durante a vigília a criação ficcional ou poética que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades está presente em cada um de nós analfabeto ou erudito como anedota causo história em quadrinhos noticiário policial canção popular moda de viola samba carnavalesco Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance Ora se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações Portanto assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono talvez não haja equilíbrio social sem a literatura Deste modo ela é fator indispensável de humanização e sendo assim confirma o homem na sua humanidade inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente Neste sentido ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional como a educação familiar grupal ou escolar Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos as suas crenças os seus sentimentos as suas normas a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação entrando nos currículos sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo Os valores que a sociedade preconiza ou os que considera prejudiciais estão presentes nas diversas manifestações da ficção da poesia e da ação dramática A literatura confirma e nega propõe e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita a que os poderes no socialismo a sua manifestação mais coerente Elas abriram perspectivas que pareciam levar à solução dos problemas dramáticos da vida em sociedade E de fato durante muito tempo acreditouse que removidos uns tantos obstáculos como a ignorância e os sistemas despóticos de governo as conquistas do progresso seriam canalizadas no rumo imaginado pelos utopistas porque a instrução o saber e a técnica levariam necessariamente à felicidade coletiva No entanto mesmo onde estes obstáculos foram removidos a barbárie continuou entre os homens Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização Penso que o movimento pelos direitos humanos se entronca aí pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam mas do máximo viável de igualdade e justiça em correlação a cada momento da história Mas esta verificação desalentadora deve ser compensada por outra mais otimista nós sabemos que hoje os meios materiais necessários para nos aproximarmos desse estágio melhor existem e que muito do que era simples utopia se tornou possibilidade real Se as possibilidades existem a luta ganha maior cabimento e se torna mais esperançosa apesar de tudo o que o nosso tempo apresenta de negativo Quem acredita nos direitos humanos procura transformar a possibilidade teórica em realidade empenhandose em fazer coincidir uma com a outra Inversamente um traço sinistro do nosso tempo é saber que é possível a solução de tantos problemas e no entanto não se empenhar nela Mas de qualquer modo no meio da situação atroz em que vivemos há perspectivas animadoras É verdade que a barbárie continua até crescendo mas não se vê mais o seu elogio como se todos soubessem que ela é algo a ser ocultado e não proclamado Sob este aspecto os tribunais de Nuremberg foram um sinal dos tempos novos mostrando que já não é admissível a um general vitorioso mandar fazer inscrições dizendo que construiu uma pirâmide com as cabeças dos inimigos mortos ou que mandou cobrir as muralhas de Nínive com as suas peles escorchadas Fazemse coisas parecidas e até piores mas elas não constituem motivo de celebração Para emitir uma nota positiva no fundo do horror acho que isso é um sinal favorável pois se o mal é praticado mas não proclamado quer dizer que o homem não o acha mais tão natural No mesmo sentido eu interpretaria certas mudanças no comportamento quotidiano e na fraseologia das classes dominantes Hoje não se afirma com a mesma tranquilidade do meu tempo de menino que haver pobres é a vontade de Deus que eles não têm as mesmas necessidades dos abastados que os empregados domésticos não precisam descansar que só morre de fome quem for vadio e coisas assim Existe em relação ao pobre uma nova atitude que vai do sentimento de culpa até o medo Nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro não são mais tema predileto das piadas porque a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas e o temor é um dos caminhos para a compreensão Sintoma complementar eu vejo na mudança do discurso dos políticos e empresários quando aludem à sua posição ideológica ou aos problemas sociais Todos eles a começar pelo presidente da República fazem afirmações que até pouco tempo seriam consideradas subversivas e hoje fazem parte do palavreado bempensante Por exemplo que não é mais possível tolerar as grandes diferenças econômicas sendo necessário promover uma distribuição equitativa É claro que ninguém se empenha para que de fato isto aconteça mas tais atitudes e pronunciamentos parecem mostrar que agora a imagem da injustiça social constrange e que a insensibilidade em face da miséria deve ser pelo menos disfarçada porque pode comprometer a imagem dos dirigentes Esta hipocrisia generalizada tributo que a iniquidade paga à justiça é um modo de mostrar que o sofrimento já não deixa tão indiferente a média da opinião Do mesmo modo os políticos e empresários de hoje não se declaram conservadores como antes quando a expressão classes conser sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante A respeito destes dois lados da literatura convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais como acontece com a própria vida da qual é imagem e transfiguração Isto significa que ela tem papel formador da personalidade mas não segundo as convenções seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade Por isso nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco Daí a ambivalência da sociedade em face dele suscitando por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever No âmbito da instrução escolar o livro chega a gerar conflitos porque o seu efeito transcende as normas estabelecidas Numa palestra feita há mais de quinze anos em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência sobre o papel da literatura na formação do homem chamei a atenção entre outras coisas para os aspectos paradoxais desse papel na medida em que os educadores ao mesmo tempo preconizam e temem o efeito dos textos literários De fato dizia eu há conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica segundo os padrões oficiais e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores Ela não corrompe nem edifica portanto mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal humaniza em sentido profundo porque faz viver 4 A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador talvez humanizador porque contraditório Analisandoa podemos distinguir pelo menos três faces 1 ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado 2 ela é uma forma de expressão isto é manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos 3 ela é uma forma de conhecimento inclusive como incorporação difusa e inconsciente Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto isto é porque transmite uma espécie de conhecimento que resulta em aprendizado como se ela fosse um tipo de instrução Mas não é assim O efeito das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos embora costumemos pensar menos no primeiro que corresponde à maneira pela qual a mensagem é construída mas esta maneira é o aspecto senão mais importante com certeza crucial porque é o que decide se uma comunicação é literária ou não Comecemos por ele Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto de objeto construído e é grande o poder humanizador desta construção enquanto construção De fato quando elaboram uma estrutura o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de coerência gerado pela força da palavra organizada Se fosse possível abstrair o sentido e pensar nas palavras como tijolos de uma construção eu diria que esses tijolos representam um modo de organizar a matéria e que enquanto organização eles exercem papel ordenador sobre a nossa mente Quer percebamos claramente ou não o caráter de coisa organizada da obra literária tornase um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos e em consequência mais capazes de organizar a visão que temos do mundo Por isso um poema hermético de entendimento difícil sem nenhuma alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo pode funcionar neste sentido pelo fato de ser um tipo de ordem sugerindo um modelo de superação do caos A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado Este é o primeiro nível humanizador ao contrário do que geralmente se pensa A organização da palavra comunicase ao nosso espírito e o leva primeiro a se organizar em seguida a organizar o mundo Isto ocorre desde as formas mais simples como a quadrinha o provérbio a história de bichos que sintetizam a experiência e a reduzem a sugestão norma conselho ou simples espetáculo mental ções sugestões inculcamentos mas na maior parte se processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente incorporandose em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar As produções literárias de todos os tipos e todos os níveis satisfazem necessidades básicas do ser humano sobretudo através dessa incorporação que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo O que ilustrei por meio do provérbio e dos versos de Gonzaga ocorre em todo o campo da literatura e explica por que ela é uma necessidade universal imperiosa e por que fruíla é um direito das pessoas de qualquer sociedade desde o índio que canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia até o mais requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético Em todos esses casos ocorre humanização e enriquecimento da personalidade e do grupo por meio de conhecimento oriundo da expressão submetida a uma ordem redentora da confusão Entendo aqui por humanização já que tenho falado tanto nela o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais como o exercício da reflexão a aquisição do saber a boa disposição para com o próximo o afinamento das emoções a capacidade de penetrar nos problemas da vida o senso da beleza a percepção da complexidade do mundo e dos seres o cultivo do humor A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza a sociedade o semelhante Isso posto devemos lembrar que além do conhecimento por assim dizer latente que provém da organização das emoções e da visão do mundo há na literatura níveis de conhecimento intencional isto é planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor Estes níveis são os que chamam imediatamente a atenção e é neles que o autor injeta as suas intenções de propaganda ideologia crença revolta adesão etc Um poema abolicionista de Castro Alves atua pela eficiência da sua organização formal pela qualidade do sentimento que exprime mas também pela natureza da sua posição política e humanitária Nestes casos a literatura satisfaz em outro nível à necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade ajudandonos a tomar posição em face deles É aí que se situa a literatura social na qual pensamos quase exclusivamente quando se trata de uma realidade tão política e humanitária quanto a dos direitos humanos que partem de uma análise do universo social e procuram retificar as suas iniquidades Falemos portanto alguma coisa a respeito das produções literárias nas quais o autor deseja expressamente assumir posição em face dos problemas Disso resulta uma literatura empenhada que parte de posições éticas políticas religiosas ou simplesmente humanísticas São casos em que o autor tem convicções e deseja exprimilas ou parte de certa visão da realidade e a manifesta com tonalidade crítica Daí pode surgir um perigo afirmar que a literatura só alcança a verdadeira função quando é deste tipo Para a Igreja Católica durante muito tempo a boa literatura era a que mostrava a verdade da sua doutrina premiando a virtude castigando o pecado Para o regime soviético a literatura autêntica era a que descrevia as lutas do povo cantava a construção do socialismo ou celebrava a classe operária São posições falhas e prejudiciais à verdadeira produção literária porque têm como pressuposto que ela se justifica por meio de finalidades alheias ao plano estético que é o decisivo De fato sabemos que em literatura uma mensagem ética política religiosa ou mais geralmente social só tem eficiência quando for reduzida a estrutura literária a forma ordenadora Tais mensagens são válidas como quaisquer outras e não podem ser proscritas mas a sua validade depende da forma que lhes dá existência como um certo tipo de objeto 5 Feita esta ressalva vou me demorar na modalidade de literatura que visa a descrever e eventualmente a tomar posição em face das iniquidades sociais as mesmas que alimentam o combate pelos direitos humanos Falei há pouco de Castro Alves exemplo brasileiro que geralmente lembramos nesses casos A sua obra foi em parte um poderoso libelo contra a escravidão pois ele assumiu posição de luta e contribuiu para a causa que procurava servir O seu efeito foi devido ao talento do poeta que fez obra autêntica porque foi capaz de elaborar em termos esteticamente válidos os pontos de vista humanitários e políticos Animado pelos mesmos sentimentos e dotado de temperamento igualmente generoso foi Bernardo Guimarães que escreveu o romance A escrava Isaura também como libelo No entanto visto que só a intenção e o assunto não bastam esta é uma obra de má qualidade e não satisfaz os requisitos que asseguram a eficiência real do texto A paixão abolicionista estava presente na obra de ambos os autores mas um deles foi capaz de criar a organização literária adequada e o outro não A eficácia humana é função da eficácia estética e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura ou seja a capacidade de criar formas pertinentes Isso não quer dizer que só serve a obra perfeita A obra de menor qualidade também atua e em geral um movimento literário é constituído por textos de qualidade alta e textos de qualidade modesta formando no conjunto uma massa de significados que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos Para exemplificar vejamos o caso do romance humanitário e social do começo do século XIX por vários aspectos uma resposta da literatura ao impacto da industrialização que como se sabe promoveu a concentração urbana em escala nunca vista criando novas e mais terríveis formas de miséria inclusive a da miséria posta diretamente ao lado do bemestar com o pobre vendo a cada instante os produtos que não poderia obter Pela primeira vez a miséria se tornou um espetáculo inevitável e todos tiveram de presenciar a sua terrível realidade nas imensas concentrações urbanas para onde eram conduzidas ou enxotadas as massas de camponeses destinados ao trabalho industrial inclusive como exército faminto de reserva Saindo das regiões afastadas e dos interstícios da sociedade a miséria se instalou nos palcos da civilização e foi se tornando cada vez mais odiosa à medida que se percebia que ela era o quinhão injustamente imposto aos verdadeiros produtores da riqueza os operários aos quais foi preciso um século de lutas para verem reconhecidos os direitos mais elementares Não é preciso recapitular o que todos sabem mas apenas lembrar que naquele tempo a condição de vida sofreu uma deterioração terrível que logo alarmou as consciências mais sensíveis e os observadores lúcidas gerando não apenas livros como o de Engels sobre a condição da classe trabalhadora na Inglaterra mas uma série de romances que descrevem a nova situação do pobre Assim o pobre entra de fato e de vez na literatura como tema importante tratado com dignidade não mais como delinquente personagem cômico ou pitoresco Enquanto de um lado o operário começava a se organizar para a grande luta secular na defesa dos seus direitos ao mínimo necessário de outro lado os escritores começavam a perceber a realidade desses direitos iniciando pela narrativa da sua vida suas quedas seus triunfos sua realidade desconhecida pelas classes bem aquinhoadas Este fenômeno é em grande parte ligado ao Romantismo que se teve aspectos francamente tradicionalistas e conservadores teve também outros messiânicos e humanitários de grande generosidade bastando lembrar que o socialismo que se configurou naquele momento é sob muitos aspectos um movimento de influência romântica Ali pelos anos de 18201830 nós vemos o aparecimento de um romance social por vezes de corte humanitário e mesmo certos toques messiânicos focalizando o pobre como tema literário importante Foi o caso de Eugène Sue escritor de segunda ordem mais extremamente significativo de um momento histórico Nos seus livros ele penetrou no universo da miséria mostrou a convivência do crime e da virtude misturando os delinquentes e os trabalhadores honestos descrevendo a persistência da pureza no meio do vício numa visão complexa e mesmo convulsa da sociedade industrial no seu início Talvez o livro mais característico do humanitarismo romântico seja Os miseráveis de Victor Hugo Um dos seus temas básicos é a ideia de que a pobreza a ignorância e a opressão geram o crime ao qual o homem é por assim dizer condenado pelas condições sociais De maneira poderosa apesar de declamatória e prolixa ele retrata as contradições da sociedade do tempo e focaliza uma série de problemas graves Por exemplo o da criança brutalizada pela família o orfanato a fábrica o explorador o que seria um traço frequente no romance do século XIX NOs miseráveis há a história da pobre mãe solteira Fantine que confia a filha a um par de sinistros malandros de cuja tirania brutal ela é salva pelo criminoso regenerado Jean Valjean Victor Hugo manifestou em vários outros lugares da sua obra a piedade pelo menor desvalido e brutalizado inclusive de maneira simbólica nO homem que ri história do filho de um nobre inglês proscrito que é entregue a uma quadrilha de bandidos especializados em deformar crianças para vendêlas como objetos de divertimento dos grandes No caso o pequeno é operado nos lábios e músculos faciais de maneira a ter um rictus permanente que o mantém como se estivesse sempre rindo É Gwymplaine cuja mutilação representa simbolicamente o estigma da sociedade sobre o desvalido Dickens tratou do assunto em mais de uma obra como Oliver Twist onde narra a iniquidade dos orfanatos e a utilização dos meninos pelos ladrões organizados que os transformam no que hoje chamamos trombadinhas Leitor de Eugéne Sue e Dickens Dostoievski levou a extremos de patético o problema da violência contra a infância até chegar à violação sexual confessada por Stavrogine em Os demônios Muito da literatura messiânica e humanitária daquele tempo não estou incluindo Dostoievski que é outro setor nos parece hoje declamatória e por vezes cômica Mas é curioso que o seu travo amargo resiste no meio do que já envelheceu de vez mostrando que a preocupação com o que hoje chamamos direitos humanos pode dar à literatura uma força insuspeitada E reciprocamente que a literatura pode incutir em cada um de nós o sentimento de urgência de tais problemas Por isso creio que a entrada do pobre no temário do romance no tempo do Romantismo e o fato de ser tratado nele com a devida dignidade é um momento relevante no capítulo dos direitos humanos através da literatura A partir do período romântico a narrativa desenvolveu cada vez mais o lado social como aconteceu no Naturalismo que timbrou em tomar como personagens centrais o operário o camponês o pequeno artesão o desvalido a prostituta o discriminado em geral Na França Émile Zola conseguiu fazer uma verdadeira epopeia do povo oprimido e explorado em vários livros da série dos RougonMacquart retratando as consequências da miséria da promiscuidade da espoliação econômica o que fez dele um inspirador de atitudes e ideias políticas Sendo ele próprio inicialmente apolítico interessado apenas em analisar objetivamente os diversos níveis da sociedade esta consequência da sua obra nada tinha a ver com suas intenções Mas é interessante que a força política latente dos seus textos acabou por leválo à ação e tornálo um dos maiores militantes na história da inteligência empenhada Isto se deu quando ele assumiu posição contra a condenação injusta do capitão Alfred Dreyfus cujo processo graças ao seu famoso panfleto Jaccuse entrou em fase de revisão terminada pela absolvição final Mas antes desse desfecho que não chegou a ver porque já morrera Zola foi julgado e condenado à prisão por ofensa ao Exército o que o obrigou a se refugiar na Inglaterra Aí está um exemplo completo de autor identificado com a visão social da sua obra que acaba por reunir produção literária e militância política Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos românticos quanto no caso da literatura realista na qual a crítica assume o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade estamos em face de exemplo de literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930 quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre Isso foi devido sobretudo ao fato do romance de tonalidade social ter passado da denúncia retórica ou da mera descrição a uma espécie de crítica corrosiva que podia ser explícita como em Jorge Amado ou implícita como em Graciliano Ramos mas que em todos eles foi muito eficiente naquele período contribuindo para incentivar os sentimentos radicais que se generalizaram no país Foi uma verdadeira onda de desmascaramento social que aparece não apenas nos que ainda lemos hoje como os dois citados e mais José Lins do Rego Rachel de Queiroz ou Érico Veríssimo mas em autores menos lembrados como Abguar Bastos Guilhermino Cesar Emil Farhat Amando Fontes para não falar de tantos outros praticamente esquecidos mas que contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados em expor e denunciar a miséria a exploração econômica a marginalização o que os torna como os outros figurantes de uma luta virtual pelos direitos humanos Seria o caso de João Cordeiro Clovis Amorim Lauro Palhano etc Acabei de focalizar a relação da literatura com os direitos humanos de dois ângulos diferentes Primeiro verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza nos liberta do caos e portanto nos humaniza Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade Em segundo lugar a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos ou de negação deles como a miséria a servidão a mutilação espiritual Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos A organização da sociedade pode restringir ou ampliar a fruição deste bem humanizador O que há de grave numa sociedade como a brasileira é que ela mantém com a maior dureza a estratificação das possibilidades tratando como se fossem compressíveis muitos bens materiais e espirituais que são incompressíveis Em nossa sociedade há fruição segundo as classes na medida em que um homem do povo está praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de Machado de Assis ou Mário de Andrade Para ele ficam a literatura de massa o folclore a sabedoria espontânea a canção popular o provérbio Estas modalidades são importantes e nobres mas é grave considerálas como suficientes para a grande maioria que devido à pobreza e à ignorância é impedida de chegar às obras eruditas Nessa altura é preciso fazer duas considerações uma relativa à difusão possível das formas de literatura erudita em função da estrutura e da organização da sociedade outra relativa à comunicação entre as esferas da produção literária Para que a literatura chamada erudita deixe de ser privilégio de pequenos grupos é preciso que a organização da sociedade seja feita de maneira a garantir uma distribuição equitativa dos bens Em princípio só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil onde a maioria da população é analfabeta ou quase e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura Por isso numa sociedade estratificada deste tipo a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante Pelo que sabemos quando há um esforço real de igualitarização há aumento sensível do hábito de leitura e portanto difusão crescente das obras A União Soviética que neste capítulo é modelar fez um grande esforço para isto e lá as tiragens editoriais alcançam números para nós inverossímeis inclusive de textos inesperados como os de Shakespeare que em nenhum outro país é tão lido segundo vi registrado nalgum lugar Como seria a situação numa sociedade idealmente organizada com base na sonhada igualdade completa que nunca conhecemos e talvez nunca venhamos a conhecer No entusiasmo da construção socialista Trotski previa que nela a média dos homens seria do nível de Aristóteles Goethe e Marx Utopia à parte é certo que quanto mais igualitária for a sociedade e quanto mais lazer proporcionar maior deverá ser a difusão humanizadora das obras literárias e portanto a possibilidade de contribuírem para o amadurecimento de cada um Nas sociedades de extrema desigualdade o esforço dos governos esclarecidos e dos homens de boa vontade tenta remediar na me de cada um Mas para surpresa geral o que quiseram na grande maioria foi aprender bem a sua língua muitos estavam ainda ligados aos dois aos dialectos regionais e conhecer a literatura italiana Em segundo lugar queriam aprender violino Este belo exemplo leva a falar no poder universal dos grandes clássicos que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica pois têm a capacidade de interessar a todos e portanto devem ser levados ao maior número Para ficar na Itália é o caso assombroso da Divina comédia conhecida em todos os níveis sociais e por todos eles consumida como alimento humanizador Mais ainda dezenas de milhares de pessoas sabem de cor os trinta e quatro cantos do Inferno um número menor sabe de cor não apenas o Inferno mas também o Purgatório e muitos mil sabem além deles o Paraíso num total de cem cantos e mais de treze mil versos Lembro de ter conhecido na minha infância em Poços de Caldas o velho sapateiro italiano Crispino Caponi que sabia o Inferno completo e recitava qualquer canto que se pedisse sem parar de bater as suas solas Os italianos são hoje alfabetizados e a Itália é um país saturado da melhor cultura Mas noutros países mesmo os analfabetos podem participar bem da literatura erudita quando lhes é dada a oportunidade Se for permitida outra lembrança pessoal contarei que quando eu tinha doze anos na mesma cidade de Poços de Caldas um jardineiro português e sua esposa brasileira ambos analfabetos me pediram para lhes ler o Amor de perdição de Camilo Castelo Branco que já tinham ouvido de uma professora na fazenda onde trabalhavam antes e que os havia fascinado Eu atendi e verifiquei como assimilavam bem com emoção inteligente O Fausto o Dom Quixote Os Lusíadas Machado de Assis podem ser fruídos em todos os níveis e seriam fatores inestimáveis de afinamento pessoal se a nossa sociedade iníqua não segregasse as camadas impedindo a difusão dos produtos culturais eruditos e confinando o povo a apenas uma parte da cultura a chamada popular A este respeito o Brasil se distingue pela alta taxa de iniqui 192 bolo para o reino suprasensível assim como é entendido pela metafísica em vez de Deus ele agora usa a expressão mundo verdadeiro e diz Abolimos o mundo verdadeiro O que restou Talvez o aparente Oh não Com o mundo verdadeiro abolimos também o aparente Essas mortes modernas de Deus da metafísica da filosofia e por implicação do positivismo podem ser acontecimentos de grande importância mas são afinal acontecimentos do pensamento e apesar de dizerem respeito muito intimamente a nossos modos de pensar não dizem respeito a nossa capacidade de pensar ao simples fato de que o homem é um ser pensante Com isso quero dizer que o homem tem uma inclinação e a menos que seja pressionado por necessidades mais urgentes da vida até uma necessidade a necessidade da razão de Kant de pensar além das limitações do conhecimento de realizar mais com as suas capacidades intelectuais o poder de seu cérebro do que usálas como um instrumento para conhecer e fazer O nosso desejo de conhecer quer surja das necessidades práticas das perplexidades teóricas ou da pura curiosidade pode ser satisfeito quando se alcança o objetivo pretendido e embora a nossa sede de conhecimento possa ser insaciável por causa da imensidão do desconhecido de modo que toda região do conhecimento abra outros horizontes de conhecimentos possíveis a própria atividade deixa atrás de si um tesouro crescente de conhecimento que é retido e armazenado por toda civilização como parte do seu mundo A atividade de conhecer não é menos uma atividade de construção de mundo do que a construção das casas A inclinação ou a necessidade de pensar ao contrário mesmo que não provocada por nenhuma das veneráveis questões supremas metafísicas e irresponsáveis não deixa nada de tão tangível atrás de si nem pode ser saciada por intuições supostamente definitivas dos sábios A necessidade de pensar só pode ser satisfeita pelo pensar e os pensamentos que tive ontem somente satisfarão essa necessidade hoje à medida que eu possa pensálos novamente Devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer entre a razão a premência de pensar e compreender e o intelecto que deseja e é capaz de certo conhecimento verificável O próprio Kant acreditava que a necessidade de pensar além das limitações do conhecimento só era despertada pelas antigas questões metafísicas de Deus liberdade e imortalidade e que ele tinha considerado necessário negar o conhecimento para dar lugar à fé ao proceder desse modo ele lançou os fundamentos de uma futura metafísica sistemática como um legado para a posteridade Mas isso só mostra que Kant ainda preso à tradição da metafísica nunca teve plena consciência do que tinha feito e seu legado para a posteridade revelouse a destruição de todos os fundamentos possíveis dos sistemas metafísicos Pois a capacidade e a necessidade de pensar não se restringem absolutamente a qualquer tema específico como as questões que a razão propõe e sabe que nunca será capaz de responder Kant não negou o conhecimento mas separou o conhecer do pensar e abriu espaço não para fé mas para o pensamento Como certa vez sugeriu ele na verdade eliminou os obstáculos pelos quais a razão atrapalha a si mesma Em nosso contexto e para nossos fins essa distinção entre conhecer e pensar é crucial Se a capacidade de distinguir o certo do errado tiver alguma coisa a ver com a capacidade de pensar então devemos ser capazes de exigir o seu exercício de toda pessoa sã por mais erudita ou ignorante inteligente ou estúpida que se mostre Kant a esse respeito quase o único entre os filósofos ficava muito incomodado com a opinião comum de que a filosofia só existe para uns poucos precisamente por causa das implicações morais dessa opinião Nessa linha ele observou certa vez que A estupidez é causada por um coração malvado uma declaração que nessa forma não é verdadeira A incapacidade de pensar não é 231 a E E q Sa E3 C EA ED Caa CaU in a hI3 cO VI0A a a i i a F U B gg eg g a IE 3N ES ba Z EU M EZ Z H r a i Ln O a A 1g g aa g a E0II Q bb b VI CO cS a aSa a on I cS hI 8 I B eg hID0 laB LP B C CS0 INLA 3U g a 1 cS IN3B cd 1B cB A0 C I CS0 VI C aa aU cBU n cS VI E0a VI g ca hI0 E eg r10 V0 r1 G a tO C a3a G S E3 bO He I aU 1 aJ CS b q aU cB VI 0a V DE I cS E I 0 L U n VI hI0 E VI q tO Lb cB b CUaa0 L a0 ta a E a a a qa rea B U a E tO0 lai LFa a cS0 tai LP 3U 1 a 1 VI0 C aU D VI a hI0 VI q hI VI0B cO 0Z B C0A a hIA0 VI lgQ a nd I W In a VI a fu0 Ua D a 3 C 0 6 I S r I 0 a a BIa a n aZ0n C ENd 0 a q a a hD InIn3 lb E C N JiC a g 0bZ Ed E 9 ba D R 0 h ra 3 C go 0 hIaP L a g a E g C bq 8aaaa eaa a E 0 ra ail 0Ua3 ELI B cr00al S fn n0 C iii C q 1 lg 8 gal IN d Uce E a g e E gO aIAq a Ei g g F A 8 LU B g0U a C E go PX 0 3 a jn 11g 1g b 1i j 8 gE 0 iN LPa 01 1 i 1 SO gig H 7 iB ai gg D6a 3 C a CSa i T HI 3 Sl ii E g g i S a U E J cd ijU di N g E C I 2 Q LU 00 Lr Fri F0N CPI Ph LP qa Ri U Rx 8a 8 a Iq S Q Q a re S Q 2Aa Bb 1 g cS a asa C on a li e B R bE gcB NH 88 SS n d T B a C rd CUa eu on g nd al0 cr 0 0 al LaV III 11g a 13 a FnH U 8 E gl r Ba cB U So aa ca C INU U a cd0 tai LA3U0 b AIa L r 01 CFI X cO hI cd I 3 C B I aal0 hIF g D Ci F a O8a 1 r alel rJ U T 1 1 K 1 J 1 1 1 P I I I n j I T A QB3q E g E a A C tOLb ca SI a U qAa0 U 0 a qa cS Aa Cal LA cd bI0a Oalal e i g i R 8 g R 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discoteca pública os concertos de ampla difusão baseados na novidade de conjuntos organizados aqui como quarteto de cordas trio instrumental orquestra sinfônica corais A partir de então a cultura musical média alcançou públicos maiores e subiu de nível como demonstram as fichas de consulta da Discoteca Pública Municipal e os programas de eventos pelos quais se observa diminuição do gosto até então quase exclusivo pela ópera e o solo de piano com incremento concomitante do gosto pela música de câmara e a sinfônica E tudo isso concebido como atividade destinada a todo o povo não apenas aos grupos restritos de amadores Ao mesmo tempo Mário de Andrade incrementou a pesquisa folclórica e etnográfica valorizando as culturas populares no pressuposto de que todos os níveis são dignos e que a ocorrência deles é função da dinâmica das sociedades Ele entendia a princípio que as criações populares eram fonte das eruditas e que de modo geral a arte vinha do povo Mais tarde inclusive devido a uma troca de ideias com Roger Bastide sentiu que na verdade há uma corrente em dois sentidos e que a esfera erudita e a popular trocam influências de maneira incessante fazendo da criação literária e artística um fenômeno de vasta intercomunicação Isto faz lembrar que envolvendo o problema da desigualdade social e econômica está o problema da intercomunicação dos níveis culturais Nas sociedades que procuram estabelecer regimes igualitários o pressuposto é que todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os níveis eruditos como consequência normal da transformação de estrutura prevendose a elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição cada vez maior de conhecimentos e experiências Nas sociedades que mantêm a desigualdade como norma e é o caso da nossa podem ocorrer movimentos e medidas de caráter público ou privado para diminuir o abismo entre os níveis e fazer chegar ao povo os produtos eruditos Mas repito tanto num caso quanto no outro está implícita como questão maior a correlação dos níveis E aí a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade não a incapacidade A partir de 1934 e do famoso Congresso de Escritores de Karkov generalizouse a questão da literatura proletária que vinha sendo debatida desde a vitória da Revolução Russa havendo uma espécie de convocação universal em prol da produção socialmente empenhada Uma das alegações era a necessidade de dar ao povo um tipo de literatura que o interessasse realmente porque versava os seus problemas específicos de um ângulo progressista Nessa ocasião um escritor francês bastante empenhado mas não sectário Jean Guéhenno publicou na revista Europe alguns artigos relatando uma experiência simples ele deu para ler a gente modesta de pouca instrução romances populistas empenhados na posição ideológica ao lado do trabalhador e do pobre Mas não houve o menor interesse da parte das pessoas a que se dirigiu Então deulhes livros de Balzac Stendhal Flaubert que os fascinaram Guéhenno queria mostrar com isto que a boa literatura tem alcance universal e que ela seria acolhida devidamente pelo povo se chegasse até ele E por aí se vê o efeito mutilador da segregação cultural segundo as classes Lembro ainda de ter ouvido nos anos de 1940 que o escritor e pensador português Agostinho da Silva promoveu cursos noturnos para operários nos quais comentava textos de filósofos como Platão que despertaram o maior interesse e foram devidamente assimilados Maria Vitória Benevides narra a este respeito um caso exemplar Tempos atrás foi aprovada em Milão uma lei que assegura aos operários certo número de horas destinadas a aperfeiçoamento cultural em matérias escolhidas por eles próprios A expectativa era que aproveitariam a oportunidade para melhorar o seu nível profissional por meio de novos conhecimentos técnicos ligados à atividade 191 VI0 a hI 11 LA a 0 a ca3aa a trI0U Ja a Ul VI0 VIa0a aU aU cS VI try cO hI cO C aU cB0 VI hI aa 0 U qA0 a ca VI Ul0a a la0B E Q a a E cB LAa Ca 0 cS hI Ba 0 a a 8 cS E ca a 10 a VI Q E ca 1 LA re a a3 OF C a tO VI C a hIa q VI0 E hI ca qJ VI F cS LA0a ca L E C a a a a hIa XI VIa a3a E D3 hD HI cS E a hI cO GOa aal 6 1a Xi cS0 G aa cS LA VI a a C0 a0 C hI D cS a cS t a cSa a0 C tO3 VI BU a a C E cS C rlal a II nS VI n 0U COU V3B cS bT e VIa aa 0 a S OF hI0al hI ca CBa a CU0al C a tO Lb cS iI a Cn0 VI tO C VI LU 28 83 0 s no g 8 guo g g g g it u E S g gc d g Egg gg g g g i o aa E R R g 83 S Ff 0 ICe a a3a0 lea CU a hI caU B VI cS a aS ca C G PFI ca a a C a tO Ul a3a caa I B VI cea 0 Gf0 E C VI0 VI cd C cO hI aa 0 a a E3 bI t a g a a a3 6 a a E C Qaa0Q0U g bI C C D hI cS LA aaa 0 Qg OF qU tO bI P B g hI a Gn0N cB hI a L SH tb hD qA FE0 a0U a3 VI a I VI PI 0 C HI Ula r1 a S0a a hIa a a VI a3 OF aU 0 LA0 hI3 U 0 fy 0 canB F VpJU E q CD Hx13E a CU hI0 cSU CU0U0 E a th0 a 0 L Ag It 18E craS 0 8 B bI Ca U 3a VIa a E0a I 0 C a qU cS hI P hI cd J VI a aU cBU E cB ca cS hI ia0 C Ba a a S hD hI tO a3aa qa D 0 laBa 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mal foi cometido é irrelevante saber quem está em melhor situação o que cometeu o mal ou o que sofreu o mal Como cidadãos devemos impedir que o mal seja feito porque o mundo que devemos partilhar o malfeitor a vítima e o espectador está em risco a Cidade foi ultrajada Por isso os nossos códigos legais distinguem entre crimes para os quais a denúncia é obrigatória e transgressões em que são ultrajados apenas os indivíduos privados que podem ou não querer processar o culpado No caso de um crime os estados subjetivos da mente daqueles envolvidos são irrelevantes aquele que sofreu o mal pode estar disposto a perdoar talvez seja totalmente improvável que aquele que o cometeu volte a reincidir porque a comunidade como um todo foi violada Em outras palavras Sócrates não fala nesse momento como um cidadão que deve estar mais preocupado com o mundo do que com o seu próprio eu Antes é como se dissesse a Cálicles se você estivesse como eu apaixonado pela sabedoria e necessitasse examinar tudo e se o mundo fosse como você o descreve dividido entre os fortes e os fracos onde os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem o que devem Tucídides de modo que não existiria alternativa a não ser fazer ou sofrer o mal então você concordaria comigo que é melhor sofrêlo do que fazêlo A presupposição é se você estivesse pensando então concordaria que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida Que eu saiba existe apenas uma outra passagem na literatura grega que quase com as mesmas palavras diz o mesmo que Sócrates Mais infeliz kakodaimonesteros do que a vítima é o malfeitor afirma um dos poucos fragmentos de Demócrito B45 o grande adversário de Parmênides que provavelmente por essa razão nunca foi mencionado por Platão A coincidência parece digna de nota porque Demócrito ao contrário de Sócrates não se interessava particularmente pelos assuntos humanos mas parece ter sido muito interessado pela experiência de pensar O espírito logos disse ele torna a abstinência fácil porque está acostumado a conseguir alegrias de si mesmo auton ex heautou B146 Como se aquilo que somos tentados a compreender como uma proposição puramente moral surgisse realmente da experiência de pensar em si mesma E isso nos leva à segunda afirmação que é o prérequisito da primeira Ela também é altamente paradoxal Sócrates fala de ser um só e portanto de não ser capaz de correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo Mas nada que é idêntico a si mesmo verdadeira e absolutamente um só como A é A pode estar em harmonia ou em desarmonia consigo mesmo são sempre necessários pelo menos dois tons para produzir um som harmonioso Sem dúvida quando apareço e sou vista pelos outros sou uma só do contrário eu seria irreconhecível E enquanto estou junto com outros quase sem consciência de mim mesma sou como apareço aos outros Chamamos de consciência de si consciousness literalmente conhecer comigo mesma o fato curioso de que num certo sentido também sou para mim mesma embora eu quase não apareça para mim o que indica que o sendo uma só socrático não é tão isento de problemas quanto parece não sou apenas para os outros mas também para mim mesma e nesse último caso não sou claramente apenas uma só Uma diferença é inserida na minha Unicidade Conhecemos essa diferença sob outros aspectos Tudo que existe entre uma pluralidade de coisas não é simplesmente o que é na sua identidade mas é também diferente dos outros esse ser dife g 88 gg q a3 I q cr Ln al Z a VI a aa0a VI q hI aab el I a E fu bl a P 10U Fa g ba a0 C ca el re ahi CD el Q a tH To aN a qab HI i 0 g R i a II reU 0a0U 0 HI aal VI LI1 Tg a 110 I00 nd In1 g 10 a cB el a g E a0a cai II tO a bO B e 7 q 1 a a 3 qI g 1 a eg Tsa 0 U S1 cSaU b 1 jhi ca C a B V dZ a SI a SH 3 a CS a 1 aa VI a a hI a E d IT q VIb a JR B a I a 0 B cea 1 P a bI0al U VIU a a LI a a Ba SH C hI ni G cS i a re b a 0 0a a eg Q p112 a a I I E nI B cS b 4 i n g i gEn Hi g e d PT XI gig LIB g IhI q a LJ cSU0 iD0 ICS a a 3a 0 Fa a Q a A0 8 aNU a Dn a cS 1 cS i cB 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ey e g Jgi nH A ba Z Ed nd g H E a B GO H Z Z H A LITERATURA COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS REFLEXÕES A PARTIR DE ARENDT E CANDIDO 1 Introdução Em um mundo marcado por mudanças vertiginosas e pela onipresença da tecnologia a educação de adultos assume um papel crucial na promoção do pensamento crítico e na construção de uma sociedade mais reflexiva e engajada Nesse contexto a literatura emerge como uma ferramenta poderosa capaz de estimular a imaginação ampliar horizontes e promover a reflexão sobre questões éticas e sociais Este ensaio explorará o potencial transformador da literatura na educação de adultos à luz das ideias de Hannah Arendt e Antonio Candido dois pensadores que ofereceram contribuições significativas para a compreensão da relação entre literatura educação e sociedade A interseção entre educação e literatura é um campo de estudo que possui profundas implicações para o desenvolvimento humano e a coesão social especialmente em um mundo caracterizado por mudanças vertiginosas e inovações constantes Nos últimos anos temos testemunhado uma aceleração exponencial em diversos setores impulsionada por avanços tecnológicos transformações econômicas e reconfigurações sociais que remodelam continuamente o tecido da sociedade global Neste cenário de incessante evolução a literatura emerge como uma poderosa ferramenta educacional não apenas como um meio de transmissão de conhecimentos mas como um canal privilegiado para o desenvolvimento crítico ético e emocional dos indivíduos O pensamento de Hannah Arendt e Antônio Candido oferece uma base teórica robusta para explorar essa complexa relação entre educação e literatura no contexto contemporâneo Arendt em obras seminal como Entre o Passado e o Futuro e Responsabilidade e Julgamento reflete sobre a importância do julgamento crítico e da capacidade de reflexão no processo educativo destacando que a educação deve preparar os indivíduos não apenas para compreender o mundo mas para interagir com ele de maneira significativa e responsável Arendt argumenta que a verdadeira educação deve instigar o amor pelo mundo e a capacidade de julgar com discernimento elementos que são intrinsecamente cultivados através do engajamento com textos literários Antonio Candido por sua vez em O Direito à Literatura advoga que a literatura não é um luxo mas um direito fundamental capaz de humanizar e enriquecer a vida dos indivíduos Candido vê a literatura como um veículo para a ampliação da experiência humana promovendo a empatia e a compreensão das complexidades da condição humana Ele argumenta que a literatura possui um papel crucial na formação do ser humano integral fornecendo uma lente através da qual os leitores podem examinar suas próprias vidas e o mundo ao seu redor À medida que enfrentamos um período de transformações rápidas e profundas onde as tecnologias emergentes e as mudanças sociais desafiam constantemente as normas estabelecidas a literatura pode oferecer uma forma de resistência cultural e uma âncora para a identidade pessoal Através da literatura os adultos podem explorar novas formas de ver e entender a si mesmos e suas realidades proporcionando um espaço para a introspeção e a construção de um pensamento crítico resiliente Além disso o engajamento com a literatura na educação de adultos pode proporcionar um contrapeso necessário à cultura da velocidade e da superficialidade que permeia muitos aspectos da vida moderna Em um ambiente onde a informação é consumida rapidamente e as interações são frequentemente efêmeras a literatura oferece uma oportunidade para uma reflexão mais profunda e significativa permitindo que os indivíduos se reconectem com valores e experiências que transcendem o imediatismo do presente Portanto ao considerar a aplicação da literatura na educação de adultos é essencial reconhecer tanto as potencialidades quanto os desafios que acompanham essa integração As perspectivas de Arendt e Cândido nos orientam na exploração de como a literatura pode servir não apenas como uma fonte de conhecimento e prazer estético mas como uma força vital na construção de uma educação que responde às necessidades de um mundo em constante mudança promovendo cidadãos mais críticos éticos e culturalmente enriquecidos Assim a literatura não se apresenta apenas como uma forma de arte mas como um componente essencial de uma educação que busca formar indivíduos capazes de navegar com discernimento e profundidade as complexidades do mundo contemporâneo 2 Educação e Literatura Fundamentos Teóricos Hannah Arendt propõe que a educação representa um dos pilares fundamentais para a perpetuação e renovação de uma sociedade Ela vê a educação não apenas como uma ferramenta para a transmissão de conhecimento mas como uma prática que incute nos indivíduos a responsabilidade de reconstituir um mundo em constante transformação Em Responsabilidade e Julgamento Arendt articula que a essência da educação reside na sua capacidade de cultivar o julgamento crítico e a habilidade de agir de forma ética e ponderada Para Arendt a educação deve ir além do mero repasse de informações deve essencialmente formar indivíduos capazes de avaliar criticamente as circunstâncias e tomar decisões informadas e responsáveis Este enfoque na formação do julgamento crítico é especialmente relevante quando consideramos a literatura como um componente central na educação de adultos A literatura ao apresentar narrativas complexas e dilemas éticos oferece um contexto seguro e rico para a exploração de questões morais e sociais Arendt sugere que ao engajarse com a literatura os adultos não só ampliam seu repertório de conhecimentos mas também desenvolvem a capacidade de discernir e refletir sobre questões éticas e humanísticas Assim a leitura de obras literárias proporciona um terreno fértil para o desenvolvimento de um pensamento crítico sofisticado que é vital para a participação ativa e responsável na sociedade contemporânea Hannah Arendt em sua obra Entre o Passado e o Futuro defende que a educação deve ser um espaço de formação para o exercício da liberdade e do pensamento crítico Para Arendt a educação não se limita à transmissão de conhecimentos mas deve estimular a capacidade de julgamento e a responsabilidade individual em relação ao mundo A autora destaca a importância de cultivar o amor ao mundo nos estudantes incentivandoos a questionar interpretar e agir de forma consciente em relação à realidade que os cerca Nas palavras de Arendt A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele A citação enfatiza a importância da educação como um momento crucial em que as pessoas são confrontadas com a decisão de assumir a responsabilidade pelo mundo pois ela acredita que a educação desempenha um papel fundamental na formação dos indivíduos e na criação de uma conexão afetiva com o planeta Ainda discutindo sobre essa obra em seu ensaio A Crise na Educação contido em Entre o Passado e o Futuro a autora expõe que a função primordial da escola não é apenas instruir os alunos em habilidades práticas ou transmitir conhecimentos específicos mas sim ensinálos sobre a realidade do mundo em que vivem A teórica política argumenta que a educação deve capacitar os indivíduos a compreenderem a complexidade do mundo a explorar a diversidade de experiências e perspectivas humanas e a desenvolverem uma compreensão crítica Esta perspectiva é particularmente relevante na educação de adultos onde o foco não deve ser apenas na aquisição de competências técnicas mas também na formação de uma visão ampla e crítica sobre a sociedade e o mundo promovendo uma aprendizagem contínua e significativa ao longo da vida Nesse sentido a literatura desempenha um papel fundamental na educação arendtiana Ao apresentar narrativas complexas e personagens multifacetados a literatura convida os leitores a explorarem diferentes perspectivas a questionarem seus próprios valores e a desenvolverem uma compreensão mais profunda da condição humana A leitura de obras literárias proporciona um contato com a diversidade de experiências e visões de mundo estimulando a empatia e a capacidade de diálogo com o outro Por sua vez Antonio Candido em sua obra seminal O Direito à Literatura defende que a literatura deve ser considerada um direito básico fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano Ele argumenta que a literatura possui uma função humanizadora essencial capaz de ampliar a sensibilidade e a compreensão social dos indivíduos Candido postula que o contato com textos literários permite aos leitores transcender as limitações de suas experiências imediatas promovendo uma empatia profunda e uma visão ampliada da condição humana A literatura ao estimular a imaginação e a introspecção enriquece o indivíduo de forma única proporcionando uma compreensão mais rica e multifacetada das realidades humanas Nesta referida obra ele menciona assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono talvez não haja equilíbrio social sem a literatura Deste modo ela é fator indispensável de humanização e sendo assim confirma o homem na sua humanidade inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente A literatura desempenha um papel ativo na construção de habilidades sociais contribuindo para moldar a personalidade de cada pessoa por meio de estímulos histórias e pensamentos diversos Ao observar diferentes realidades o leitor absorve conhecimentos e formula seu próprio conceito de certo e errado com base nas consequências apresentadas na obra Dessa forma o leitor aprende a discernir quais atitudes recrimina e quais exalta entre outros aspectos fundamentais para a formação da personalidade Além disso o direito à literatura está intrinsicamente ligado ao direito à alfabetização que promove a humanização e a inclusão social Através do reconhecimento de sinais e signos da comunicação tornase possível acreditar na ascensão social e no enriquecimento pessoal cultural e profissional Portanto a combinação desses dois direitos tem o potencial de transformar realidades formando indivíduos completos capazes de exercer pensamento crítico e discernimento A partir da perspectiva de Candido a literatura serve não apenas como um meio de entretenimento ou erudição mas como uma ferramenta crucial para a formação de cidadãos conscientes e engajados Ao permitir que os leitores explorem e compreendam diferentes experiências e perspectivas a literatura contribui para a formação de uma cidadania mais empática e socialmente responsável Esta humanização através da literatura é vital em um mundo onde as interações sociais são frequentemente mediadas por tecnologias que podem desumanizar e fragmentar as experiências pessoais Ao considerar a educação de adultos as visões de Arendt e Candido se complementam e se reforçam Arendt nos mostra que a educação deve preparar os indivíduos para julgar e agir no mundo enquanto Candido ressalta que a literatura é uma das ferramentas mais poderosas para cultivar essa capacidade A literatura então emerge como um campo de prática educacional onde se pode fomentar não só o conhecimento e a habilidade crítica mas também a profundidade ética e a sensibilidade social necessárias para enfrentar as complexidades do mundo contemporâneo Ela permite que os adultos encontrem um espaço de reflexão e crescimento pessoal que transcende o imediatismo e a superficialidade que muitas vezes caracterizam a vida moderna Portanto integrar a literatura na educação de adultos não é apenas uma questão de enriquecer o currículo mas de proporcionar uma formação que promove o desenvolvimento integral do indivíduo alinhando o conhecimento crítico com uma compreensão ética e empática do mundo Essa abordagem amplia a função da educação de preparar indivíduos não só para sobreviver mas para contribuir de forma significativa e responsável na construção e renovação contínua da sociedade 2 As Possibilidades da Literatura na Educação de Adultos A literatura em seu vasto campo de possibilidades desempenha um papel crucial na educação de adultos especialmente em um mundo onde a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais pode criar um ambiente desestabilizador e alienante As transformações contemporâneas muitas vezes desafiam a capacidade dos indivíduos de se conectarem profundamente com suas experiências e identidades gerando uma necessidade premente de ancoragem cultural e introspecção crítica Nesse contexto a literatura se destaca como uma ferramenta poderosa que pode atuar como um catalisador para o desenvolvimento da consciência crítica e como um meio de resistência cultural e pessoal Conforme argumentado por Hannah Arendt o papel fundamental do educador é introduzir os alunos no amor ao mundo Arendt sustenta que a verdadeira educação deve transcender a mera acumulação de fatos estimulando um pensamento que esteja intrinsecamente ligado à capacidade de julgar e compreender o mundo em profundidade A literatura com suas narrativas ricas e personagens multifacetados proporciona um terreno ideal para este tipo de educação Através da leitura de textos literários os adultos são incentivados a explorar e refletir sobre dilemas éticos e sociais desenvolvendo uma consciência crítica que é essencial para a formação de cidadãos reflexivos e engajados A Lei n 13696 de 12 de julho de 2018 que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita promove a universalização do direito ao acesso ao livro à leitura à escrita à literatura e às bibliotecas reconhecendo a leitura e a escrita como direitos de todos Esta lei conforme explicitado em seu art 2º almeja possibilitar o exercício pleno da cidadania e promover a construção de uma sociedade mais justa alinhandose diretamente aos conceitos abordados por Hannah Arendt e ao papel da literatura na formação de habilidades sociais e na moldagem da personalidade Segundo Hannah Arendt em seu ensaio A Crise na Educação a função da escola é ensinar sobre a realidade do mundo capacitando os indivíduos a compreenderem a complexidade do mundo e a desenvolverem uma compreensão crítica Essa perspectiva está em consonância com a Lei n 13696 especialmente com os objetivos descritos no art 3º que incluem democratizar o acesso ao livro e aos diversos suportes à leitura fomentar a formação de mediadores de leitura e valorizar a leitura e seu valor simbólico e institucional Além disso a literatura como discutido anteriormente contribui significativamente para a construção da personalidade ao permitir que os leitores absorvam conhecimentos e formulem conceitos de certo e errado com base nas consequências apresentadas nas obras Este processo de aprendizagem e formação crítica é fundamental para o exercício da cidadania plena promovida pela Lei n 13696 A lei também se preocupa com a inclusão social através da alfabetização ligandose à humanização e ao enriquecimento pessoal cultural e profissional Esta inclusão é essencial para garantir que todos os indivíduos tenham a oportunidade de participar ativamente na sociedade reforçando a importância do direito à literatura e à alfabetização como bases para a formação de indivíduos completos e críticos como descrito anteriormente Portanto a Política Nacional de Leitura e Escrita estabelecida pela Lei n 13696 de 12 de julho de 2018 complementa e fortalece a visão de Arendt sobre a educação e o papel da literatura promovendo uma sociedade mais justa e consciente através do acesso universal à leitura e à escrita Narrativas literárias complexas permitem que os leitores experimentem uma multiplicidade de perspectivas e realidades muitas vezes diferentes de suas próprias Esse encontro com o outro literário promove a empatia e a compreensão capacitando os leitores a questionar e expandir seus próprios horizontes Em um mundo onde a rapidez das informações muitas vezes leva à superficialidade e ao pensamento fragmentado a literatura oferece um espaço para a introspecção e a análise profunda Ao envolverse com personagens e tramas que exploram as nuances da condição humana os leitores são desafiados a examinar suas próprias crenças e valores desenvolvendo habilidades críticas que são vitais para navegar as complexidades do mundo contemporâneo Além de ser uma fonte de desenvolvimento crítico a literatura também serve como um meio de resistência cultural e pessoal Em um contexto onde as rápidas mudanças tecnológicas e sociais frequentemente resultam na alienação dos indivíduos de suas próprias tradições e experiências a literatura pode oferecer um ponto de ancoragem Textos clássicos e contemporâneos funcionam como uma ponte que conecta o presente ao passado permitindo que os leitores revisitem suas próprias histórias e tradições Essa conexão com o passado não só enriquece a compreensão do presente mas também proporciona uma base sólida a partir da qual os indivíduos podem enfrentar e interpretar as mudanças contínuas do mundo ao seu redor A literatura ao trazer à tona temas universais e atemporais permite que os adultos reencontrem e reflitam sobre suas próprias identidades e perspectivas Em meio a um turbilhão de mudanças a literatura oferece um espaço de constância e reflexão que pode ser essencial para a manutenção da coesão pessoal e cultural Ao revisitar e reinterpretar textos os adultos têm a oportunidade de reafirmar suas próprias narrativas e valores tornandose mais resilientes e capacitados para lidar com as complexidades e incertezas da vida moderna Em suma ela oferece uma gama de possibilidades enriquecedoras para a educação de adultos em um mundo de rápidas transformações não só atuando como um veículo para o desenvolvimento da consciência crítica ajudando os indivíduos a refletirem e questionarem suas próprias realidades mas também como um baluarte contra a alienação proporcionando uma ancoragem cultural que é fundamental para a identidade e o bem estar pessoal Ao integrar a literatura na educação de adultos criamos oportunidades para um engajamento mais profundo e significativo com o mundo capacitando os indivíduos a navegar as mudanças com uma perspectiva crítica e enraizada em uma compreensão rica da condição humana 3 Desafios Embora a literatura ofereça inúmeras oportunidades enriquecedoras para a educação de adultos a sua integração enfrenta desafios significativos exacerbados pelo contexto contemporâneo dominado pela tecnologia e pela informação instantânea Neste cenário os textos literários com suas exigências de leitura atenta e reflexão profunda podem parecer anacrônicos ou até irrelevantes para uma população acostumada à rapidez e à superficialidade da cultura digital Tal como argumenta José Sérgio Fonseca de Carvalho em Educação Uma Herança sem Testamento a educação moderna tende a enfatizar habilidades técnicas e utilitárias muitas vezes em detrimento do desenvolvimento crítico e humanístico Esta tendência representa um obstáculo substancial pois a valorização da literatura na educação de adultos exige uma reconceituação dos objetivos educacionais que deve transcender a mera formação para a empregabilidade José Sérgio Fonseca de Carvalho aborda a complexidade e os desafios do sistema educacional contemporâneo Ele reflete sobre a natureza da educação como um legado cultural e intelectual que ao contrário de um testamento não é explicitamente prescrito ou delimitado mas é transmitido de geração em geração de maneira implícita e aberta a interpretações e transformações Algumas considerações importantes do autor nesta obra incluem Educação como Herança Coletiva Carvalho enfatiza que a educação é uma herança coletiva que não pertence a nenhum indivíduo ou grupo específico mas a toda a sociedade Esse legado é continuamente construído e reconstruído através das interações sociais e culturais Ausência de Testamento A metáfora da herança sem testamento sugere que diferentemente de um testamento que deixa instruções claras e específicas a educação não possui diretrizes fixas e invariáveis Em vez disso é uma prática dinâmica que deve ser constantemente adaptada e reinterpretada em resposta às mudanças sociais culturais e tecnológicas Papel dos Educadores Carvalho destaca a importância dos educadores como mediadores desse legado responsáveis por interpretar e transmitir conhecimentos e valores de maneira crítica e reflexiva Ele sugere que os educadores devem estar preparados para lidar com a incerteza e a complexidade inerentes ao processo educativo Desafios Contemporâneos O autor aborda os desafios contemporâneos da educação incluindo as desigualdades sociais a necessidade de inclusão e a adaptação às novas tecnologias Ele argumenta que a educação deve ser um meio para promover a justiça social e a equidade proporcionando a todos os indivíduos as oportunidades necessárias para o desenvolvimento pessoal e profissional Educação e Transformação Social Carvalho vê a educação como uma ferramenta poderosa para a transformação social Ele acredita que através da educação é possível cultivar cidadãos críticos e conscientes capazes de participar ativamente na construção de uma sociedade mais justa e democrática Essas considerações de José Sérgio Fonseca de Carvalho em Educação Uma Herança sem Testamento são fundamentais para entender a natureza multifacetada da educação e seu papel crucial na formação de indivíduos e na transformação da sociedade Ele convida educadores estudantes e todos os envolvidos no processo educativo a refletirem sobre suas práticas e a serem agentes de mudança em um mundo em constante evolução A literatura em sua essência demanda um tempo e um espaço que parecem cada vez mais escassos na era digital Os textos literários exigem uma dedicação e uma profundidade de engajamento que estão em contraste com a imediaticidade das interações contemporâneas nas redes sociais e outras plataformas digitais Este descompasso pode levar à percepção de que a literatura é menos relevante ou menos valiosa em comparação com habilidades técnicas mais imediatamente aplicáveis no mercado de trabalho Para integrar a literatura efetivamente na educação de adultos é necessário um esforço consciente para realinhar os objetivos educacionais destacando a importância do desenvolvimento intelectual e emocional que a literatura pode proporcionar Além disso a diversidade de experiências de vida entre os adultos apresenta um desafio adicional significativo para a integração da literatura na educação Ao contrário das crianças e jovens que muitas vezes têm experiências de vida mais homogêneas e currículos educacionais mais padronizados os adultos trazem consigo uma vasta gama de vivências conhecimentos prévios e contextos culturais Essas experiências diversas podem influenciar profundamente a recepção e a interpretação dos textos literários criando uma necessidade de abordagens pedagógicas flexíveis e inclusivas Hannah Arendt em suas reflexões sobre educação sugere que a formação educativa deve respeitar e integrar essas diversas perspectivas promovendo um espaço onde múltiplas vozes e experiências possam se encontrar e dialogar No entanto a implementação prática dessa abordagem pode ser desafiadora A literatura deve ser selecionada e apresentada de maneiras que ressoem com as experiências individuais dos alunos proporcionando um ponto de conexão entre os textos e as realidades pessoais dos leitores Isso requer uma cuidadosa curadoria de obras que sejam capazes de dialogar com uma variedade de contextos e que promovam tanto a reflexão pessoal quanto o diálogo coletivo A adaptação dos textos literários às experiências diversas dos adultos pode envolver a escolha de obras que abordem temas universais ou que reflitam questões contemporâneas relevantes para diferentes grupos demográficos Além disso estratégias pedagógicas que incentivem a partilha de interpretações e experiências podem enriquecer a compreensão coletiva e fomentar um ambiente de aprendizado mais inclusivo e dinâmico Os educadores devem estar atentos às diversas histórias e realidades dos alunos utilizando a literatura como um ponto de partida para discussões que abracem e valorizem essas diferenças Em conclusão a integração da literatura na educação de adultos embora desafiadora é essencial para o desenvolvimento de uma educação que valorize não apenas as habilidades técnicas mas também a capacidade crítica a sensibilidade cultural e a profundidade ética Enfrentar os desafios de relevância e diversidade requer uma abordagem educacional que reconheça a importância de realinhar os objetivos da educação para incluir a formação humanística e que celebre a riqueza das experiências individuais dos alunos utilizando a literatura como uma ponte para compreensão mútua e o crescimento pessoal 3 Reflexões Finais A relação entre educação e literatura é inerentemente rica e multifacetada adquirindo camadas adicionais de complexidade no contexto da educação de adultos Este vínculo profundamente explorado nas obras de Hannah Arendt e Antônio Cândido revela como a literatura pode atuar como um veículo poderoso para o desenvolvimento do pensamento crítico e a reafirmação dos valores humanísticos especialmente em uma era marcada por rápidas e profundas transformações tecnológicas e sociais Arendt e Cândido fornecem uma base teórica a partir da qual podemos entender como a literatura pode ser usada para fomentar uma educação que não apenas equipa os adultos com conhecimentos técnicos mas também com a profundidade intelectual e emocional necessária para navegar as complexidades do mundo moderno Hannah Arendt com suas reflexões sobre a educação e o julgamento enfatiza a importância de uma educação que transcenda a simples transmissão de conhecimento factual Ela argumenta que a educação deve preparar os indivíduos para o amor ao mundo e para o julgamento crítico capacidades essenciais para interagir com um mundo em constante mudança A literatura ao engajar os leitores com dilemas morais e narrativas que exploram a condição humana serve como um meio para desenvolver essas capacidades críticas e reflexivas No contexto da educação de adultos a literatura oferece um espaço seguro para explorar questões complexas e promover o crescimento intelectual emocional e ético Antonio Candido em sua defesa da literatura como um direito humano fundamental ressalta que o envolvimento com textos literários enriquece a experiência individual e coletiva Ele vê a literatura como uma ponte entre as tradições culturais e as emergentes realidades sociais facilitando um diálogo que é vital para a formação de uma cidadania engajada e consciente No contexto da educação de adultos esse diálogo é particularmente crucial pois permite que os indivíduos conectem suas experiências de vida com as lições universais encontradas na literatura fortalecendo tanto sua compreensão pessoal quanto sua participação na comunidade No entanto a implementação prática dessa abordagem enfrenta desafios substanciais A integração significativa da literatura na educação de adultos requer um compromisso renovado com uma forma de educação que valorize tanto a técnica quanto a profundidade intelectual e emocional Em um mundo onde a educação é frequentemente orientada por demandas imediatas do mercado de trabalho há uma necessidade urgente de reequilibrar o foco educacional para incluir o desenvolvimento humanístico Isso implica em criar currículos que incorporem a literatura de maneira que ela não seja vista apenas como um adorno cultural mas como uma ferramenta central para o crescimento pessoal e social Para efetivamente navegar as complexidades do mundo contemporâneo a educação de adultos deve se esforçar para integrar a literatura de formas que ressoem com as demandas emergentes da sociedade ao mesmo tempo que preservam o valor das tradições literárias Isso pode ser feito promovendo um diálogo contínuo entre a literatura e as realidades atuais utilizando textos literários para explorar questões contemporâneas e desafiar os alunos a refletir criticamente sobre suas próprias experiências e sobre o mundo ao seu redor Ao fazer isso a literatura não só enriquece o indivíduo proporcionando um espaço para a reflexão e o desenvolvimento crítico mas também fortalece a comunidade contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes engajados e capazes de participar ativamente na construção de uma sociedade mais justa e equitativa Portanto a educação de adultos que integra a literatura de forma significativa pode servir como um modelo para um tipo de educação que se adapta às rápidas mudanças do mundo contemporâneo enquanto permanece fiel aos valores humanísticos essenciais Esta abordagem não apenas equipa os indivíduos com habilidades para o presente mas também cultiva a capacidade de pensamento crítico e a profundidade emocional necessária para enfrentar os desafios futuros Em última análise a literatura quando integrada na educação de adultos contribui para o desenvolvimento de uma cidadania que é informada reflexiva e profundamente engajada no tecido social promovendo uma sociedade mais coesa e resiliente diante das rápidas mudanças A literatura como ferramenta de transformação na educação de adultos oferece um caminho para o desenvolvimento do pensamento crítico da sensibilidade social e da capacidade de agir no mundo Ao explorar as ideias de Hannah Arendt e Antonio Candido podemos compreender a importância da literatura na formação de cidadãos mais conscientes engajados e responsáveis A literatura ao nos colocar em contato com a diversidade de experiências e perspectivas nos convida a questionar nossas próprias crenças e valores a ampliar nossos horizontes e a construir um futuro mais justo e humano 4 Bibliografia ARENDT Hannah Entre o Passado e o Futuro São Paulo Perspectiva 2011 ARENDT Hannah Responsabilidade e Julgamento São Paulo Companhia das Letras 2011 BRASIL Lei n 13696 de 12 de julho de 2018 Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita Diário Oficial da União seção 1 Brasília DF p 1 13 jul 2018 Disponível em httpswww2camaralegbrleginfedlei2018lei13696 12julho2018787090publicacaooriginal155402plhtml Acesso em 18 jul 2024 CANDIDO Antonio O Direito à Literatura São Paulo Companhia das Letras 2004 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Educação Uma Herança sem Testamento Campinas Papirus 1995 GADAMER HansGeorg Verdade e Método Petrópolis Vozes 2013 MEURER José Luiz A Literatura na Formação do Pensamento Crítico Educação e Pesquisa vol 40 no 2 2014 pp 319332 SILVA Tânia Ramos de Literatura e Educação A Formação do Sujeito Crítico Revista Brasileira de Educação vol 19 no 57 2014 pp 375390

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José Sérgio Fonseca de Carvalho EDUCAÇÃO UMA HERANÇA SEM TESTAMENTO 2015 RESUMO Embora voltada prioritariamente para o campo do pensamento político a obra de Hannah Arendt tem despertado grande interesse entre educadores intelectuais e profissionais de educação nas últimas décadas Essa notável repercussão de seu ensaio sobre a crise da educação pode ser atribuída ao menos em parte à originalidade de sua perspectiva analítica e ao vigor de suas críticas ao projeto de modernização da educação Suas reflexões sobre esse tema conquanto escassas e esparsas representam uma radical inovação em relação à forma pela qual os discursos pedagógicos tendem a analisar por exemplo os vínculos entre educação e política ou o problema do significado da autoridade como elemento estruturador das relações educativas Por outro lado por suporem uma razoável familiaridade com sua complexa rede teórica e conceitual muitas das alegações apresentadas em seu ensaio sobre A crise na educação têm sido frequentemente sujeitas a toda sorte de controvérsias e incompreensões A presente obra procura elucidar a trama conceitual subjacente aos esforços de Arendt no sentido de compreender o impacto da ruptura da tradição na tarefa precípua da educação a iniciação dos mais jovens em um mundo comum de heranças simbólicas e materiais cujo cultivo representa simultaneamente um compromisso com sua durabilidade pública e uma condição para sua renovação Mas os ensaios aqui reunidos não se limitam a dar um panorama de suas reflexões sobre o tema Eles incidem ainda sobre um complexo conjunto de problemas que emergem do diálogo entre a leitura das obras de Arendt e os dilemas impasses e incertezas da experiência de educar e formar professores no mundo contemporâneo Por essa razão neles convoco outros pensadores e evoco novos acontecimentos sempre com o propósito de expandir as reflexões de Arendt a campos e territórios aos quais elas originalmente não se destinavam como no caso dos vínculos entre a atividade educativa e a liberdade ou no do sentido da formação humanista na constituição do sujeito e em sua inserção no domínio público Mais do que ao conteúdo literal de seus escritos sobre o tema procuro ser fiel à atitude para a qual as reflexões de Arendt nos convidam o exercício do pensamento como forma de se reconciliar com a experiência de viver em um mundo no qual o passado cessou de lançar luz sobre o futuro e os homens se veem compelidos a buscar novas categorias para compreender sua condição presente SUMÁRIO Introdução 6 I A formação escolar numa sociedade de consumidores 12 II Política e educação em Hannah Arendt distinções relações e tensões 33 III Autoridade e educação o desafio em face do ocaso da tradição 52 IV Educação e liberdade da polêmica conceitual às alternativas programáticas 74 V A experiência escolar ainda tem algum sentido 103 Referências 110 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento A Diana Moana e Hannah com quem decidi compartilhar o tempo que me for dado A Tereza in memorian que comigo compartilhou o tempo que lhe foi dado José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento AGRADECIMENTOS Ao CNPq e à Fapesp pelas bolsas de produtividade e pesquisa no exterior que viabilizaram a elaboração deste trabalho Ao CSPRP pela acolhida como pesquisador convidado na Universidade de Paris VII durante o ano letivo de 20112012 A Adriano Correia André Duarte Diana Mendes Étienne Tassin Fina Birulés Martine Leibovici Maurício Liberal e Vanessa S Almeida pelas observações conversas e leituras críticas que de diversas maneiras me ajudaram ao longo da elaboração deste trabalho Aos companheiros do Geepc da Feusp Aline Ferreira Anyele Lamas Ariam Cury Crislei Custódio Eder Marques Loiola Érica Benvenutti Letícia Venâncio Roberta Crivorncica Thiago de Castro e Thiago Miranda cuja amizade e dedicação aos estudos de filosofia da educação têm me dado alegria e entusiasmo A Helena Meidani pela revisão José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 6 INTRODUÇÃO Refletir sobre problemas e impasses da educação contemporânea a partir de um diálogo com a obra de Hannah Arendt nos coloca uma série de dificuldades A primeira delas diz respeito ao caráter esparso desse tema em sua obra Por vezes ele aparece de forma incidental em seus ensaios políticos como no caso de A crise da cultura seu significado político e social 2006 p 194222 Noutras é retomado ainda que de forma breve e marginal em suas notas de aulas e textos de conferências da década de 1960 como na publicação póstuma Algumas questões sobre filosofia moral 2004 p 112212 Seria ainda possível incluir nesse pequeno rol suas polêmicas Reflexões sobre Little Rock 2004 p 261280 nas quais Arendt analisa a implantação de uma política de integração étnicoracial em escolas estadunidenses embora para importantes comentaristas o tema central desse artigo não seja a educação mas a distinção entre os domínios político e social cf May Kohn 1996 Na verdade é apenas num ensaio de 19581 que Arendt aborda específica e rigorosamente a formação educacional como um problema político de primeira grandeza Acrescese que além de pouco frequentes as reflexões da autora sobre educação são extremamente intricadas e costumam pressupor uma razoável familiaridade do leitor com a complexa teia conceitual de que ela se vale em seus exercícios de pensamento político2 o que tende a dificultar sobremaneira sua compreensão Como entender por exemplo sua proposta de radical separação entre os domínios educação e da política sem a clara percepção do sentido estrito com que ela usa essas duas noções Como por outro lado admitir o postulado divórcio entre os dois domínios se em Arendt o sentido da educação não se separa do compromisso político para com a conservação e a renovação de um mundo comum por meio da iniciação de crianças e jovens na herança material e simbólica de uma comunidade cultural E ainda como aterse ao sentido histórico que ela atribui à prática educativa 1 Tratase é claro de A crise na educação publicado inicialmente na Partisan Review e posteriormente incluído em Between the past and the future eight exercises in political thought New York Penguin 2006 2 Tratase do subtítulo de Entre o passado e o futuro José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 7 num mundo que se mostra fragmentado pelo isolamento político típico de uma sociedade de consumidores e paradoxalmente homogeneizado pela força da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa A despeito de todas essas dificuldades sua obra tem despertado um interesse notável e crescente entre educadores intelectuais e profissionais de educação É provável que esse recente prestígio decorra pelo menos em parte do fato de que em Arendt a crise na educação não é concebida como decorrente de qualquer suposta obsolescência técnica das práticas pedagógicas Daí porque a frenética sucessão de novas pedagogias e metodologias de trabalho é por ela vista antes como um sintoma da crise do que como sua potencial solução Tampouco seria o caso para Arendt de se conceber a crise na educação como reflexo imediato de determinações exteriores ao campo como se ela não passasse de mero epifenômeno de uma crise no modo de produção que uma vez superado implicaria diretamente a solução dos impasses educacionais que hoje vivemos Ao pensar a crise na educação Arendt não a desvincula das mudanças políticas e culturais que marcaram a emergência do mundo moderno mas não deixa de ressaltar o caráter peculiar e inusitado de seus desafios na sociedade contemporânea o problema da educação no mundo moderno reside no fato de ela não poder abrir mão pela peculiaridade de sua natureza nem da autoridade nem da tradição mas mesmo assim ser obrigada a caminhar em um mundo que não é estruturado pela autoridade nem mantido coeso pela tradição Arendt 2006 p 191 tradução nossa grifos nossos A compreensão da especificidade dessa crise que é do mundo moderno e que se espalha e toma forma própria na educação exige que pensemos tanto o significado das transformações políticas e culturais da era e do mundo moderno3 quanto o significado e a natureza da educação que para Arendt decorre da natalidade do fato de que o nascer de cada criança representa simultaneamente que há um novo ser no 3 Já no prólogo de A condição humana Arendt alerta para a diferença que estabelece entre a era moderna o período histórico que se inicia por volta do século XVII e o mundo moderno que em seus escritos se refere especificamente às experiências políticas e ao modo de vida que marcaram o século XX José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 8 sempiterno ciclo vital da natureza mas que há também um ser novo no mundo dos homens Esse mundo para o qual a criança nasce não coincide com o planeta Terra como ambiente natural em que o vivente humano encontra as condições biológicas que lhe permitem conservar e reproduzir a vida Ele é antes uma criação do artifício humano um legado de realizações materiais e simbólicas objetos instituições práticas princípios éticos tradições políticas crenças saberes nas quais os recémchegados crianças e jovens devem ser iniciados por meio da educação É pois pela educação que esse legado público de realizações históricas se transforma para cada criança num legado que é seu que lhe pertence por direito e que por meio da educação pode vir a lhe pertencer de fato Assim enquanto na qualidade de vivente nascemos integrados a um ciclo vital do qual somos parte e no qual nos fundimos na qualidade de homem mundano nascemos estrangeiros em relação a um mundo preexistente que abandonaremos ao morrer Por isso cada um de nós é um ser novo no mundo embora sejamos simplesmente mais um novo ser no ciclo vital Cada um é um ser singular na pluralidade de homens que habitam um mundo embora só mais um membro de uma espécie que se repete do ponto de vista da reprodução orgânica da vida E é por pertencermos a um mundo e nele sermos capazes de agir política e historicamente que somos sujeitos ou para ser fiel à terminologia arendtiana agentes reunidos num mundo comum e não apenas indivíduos pertencentes a uma mesma espécie Cada ser novo no mundo é um novo alguém um alguém distinto de todos aqueles que nele estiveram antes ou que o sucederão na continuidade desse mundo É pois a educação em seu sentido lato que imprime a cada existência individual a potencialidade de pertencimento a uma comunidade histórica e cultural ou seja a um mundo comum Comunidade histórica porque o mundo não é meramente algo que compartilhamos com aqueles com quem convivemos aqui e agora no espaço ou no tempo de nossa breve existência individual Ele representa antes o vínculo com um legado que José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 9 transcende a duração de nossa vida tanto no passado como no futuro que preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência É o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco mas também com aqueles que aqui estiveram antes e os virão depois de nós Arendt 2010 p 67 Por isso a educação situase entre o passado e o futuro entre um mundo comum e um sujeito que lhe é estranho entre a tradição e a ruptura Afirmar a existência de uma crise nas formas e sobretudo no sentido público que atribuímos a esse processo de iniciação em um mundo comum não implica para Arendt asseverar necessariamente seu declínio ou degeneração como pode sugerir o uso corrente dessa expressão O conceito de crise em Arendt nos remete antes a alguns dos usos primeiros que o termo grego κρίση krisis comporta ação de separar distinguir escolha seleção ação de julgar decidir donde sua vinculação etimológica com o termo κριτήριο kriterion que poderia ser definido como critério faculdade de julgar ou norma para discernir o verdadeiro do falso4 A crise emerge pois da ruptura da tradição da falta de experiências comuns e de significações compartilhadas que nos apresentam critérios por meios dos quais por exemplo discernimos o verdadeiro do falso julgamos algo belo ou feio etc Por isso o desaparecimento do sentido comum nos dias atuais ou seja o esvanecimento de critérios comuns e compartilhados de julgamento estético ou de validação epistemológica por exemplo é o mais claro sinal da crise Em toda crise é destruída uma parte do mundo alguma coisa comum a todos nós O desaparecimento do sentido comum aponta como uma vara mágica para o lugar onde ocorreu tal desmoronamento Arendt 2006 p 175 tradução nossa Nesse sentido afirmar a existência de uma crise na educação significa inicialmente reconhecer que perdemos as respostas sobre as quais nos apoiávamos no que concerne aos procedimentos às escolhas e sobretudo ao significado público que atribuímos ao processo educacional o que ensinar como em nome de que educar Significa ainda que perdemos os critérios aos quais acreditávamos poder recorrer na busca de tais respostas que não compartilhamos regras ou princípios que possam nos 4 Cf Dicionário gregoportuguês v 3 São Paulo Ateliê 2008 p 94 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 10 guiar nessas decisões urgentes Mas não significa necessariamente decadência declínio ou desastre uma crise só se torna um desastre quando a ela respondemos com julgamentos preconcebidos isto é com preconceitos Uma atitude como essa não apenas aguça a crise como nos priva da experiência do real e da oportunidade que ele nos proporciona de refletir Arendt 2006 p 171 tradução nossa Assim para Arendt a ruptura da tradição o desaparecimento de experiências comuns capazes de fornecer critérios compartilhados de julgamentos a moderna dissolução das comunidades políticas em favor de uma sociedade de indivíduos e mesmo a perda do vigor da vida pública não são por si sós capazes de retirar dos homens as faculdades de pensar e de julgar de pôr em questão os significados pessoais e políticos de suas práticas e a razão de ser de suas lutas Nesse sentido mais do que o resultado daquilo que por ela foi pensado o convite ao pensamento parece ser o maior legado de Arendt para quem tem na educação pública um objeto de preocupação teórica e um compromisso políticoexistencial Os ensaios que compõem esta obra não pretendem apresentar uma síntese da diversidade de problemas e da riqueza das reflexões de Arendt sobre o impacto da crise do mundo moderno no campo da formação educacional Eles incidem sobre problemas que emergem do diálogo entre a leitura das obras de Arendt e dilemas impasses e incertezas da experiência de educar e formar professores no mundo contemporâneo E por essa razão convocam outros pensadores evocam novos acontecimentos criam novos diálogos Tratase de uma opção que comporta riscos e cria vulnerabilidades pois naqueles que se esforçam no sentido de estabelecer um diálogo de pensamento entre pensadores alertanos Heidegger 1953 p IX maiores são os perigos de fracassos mais numerosos os riscos de lacunas Os riscos assumidos aqui terão sido plenamente justificados se a leitura destes exercícios de pensamento em educação convidarem a novas reflexões se tal como um moscardo socrático ensejarem seus interlocutores a examinar por si mesmos os temas e as questões evocadas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 11 Breve nota sobre os ensaios aqui apresentados Os cinco ensaios ora apresentados incidem sobre pontos cruciais das reflexões de Arendt acerca da crise moderna da educação Dois de seus temas o impacto do advento de uma sociedade de consumidores nos discursos e nas práticas educacionais e os vínculos entre formação escolar e a liberdade como atributo da vida política haviam sido abordados em textos anteriores5 embora tenham sido substancialmente modificados para a presente obra Já os temas do lugar da autoridade nas relações educativas das distinções e relações entre política e educação e do idael de uma formção humanista cultura animi a despeito de sua relevância nas reflexões de Arendt só apareceram incidentalmente em publicações anteriores A busca aqui empreendida de uma análise sistemática de seu significado no pensamento de Arendt e de algumas lacunas em sua perspectiva procura responder a essa inanidade Embora relativamente autônomos os ensaios guardam estreita relação entre si e por vezes pressupõem uma elucidação conceitual apresentada em um capítulo anterior Ainda assim creio que possam ser lidos como unidades independentes As citações da obra A condição humana foram feitas a partir da edição de 2010 revista por Adriano Correia Já no caso da obra Entre o passado e o futuro preferi recorrer à edição norteamericana de 2006 e a fim de evitar algumas imprecisões e omissões que poderiam comprometer a compreensão de certos trechos optei por uma tradução própria embora tenha sempre me preocupado em cotejála com a edição brasileira e me esforçado por aproveitála ao máximo 5 São eles O declínio do sentido público da educação e A liberdade educa ou a educação liberta Carvalho 2013 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 12 I A FORMAÇÃO ESCOLAR NUMA SOCIEDADE DE CONSUMIDORES uma sociedade de consumidores não é capaz de saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem exclusivamente ao espaço mundano das aparências porque sua atitude fundamental em relação a todos os objetos a atitude do consumo espalha a ruína em tudo aquilo que toca Hannah Arendt Apresentação A partir do final da década de 1970 a Europa empreendeu um intenso esforço político que visava renovar procedimentos pedagógicos e objetivos educacionais de seus sistemas de ensino vinculandoos cada vez mais diretamente aos ideais de um acelerado processo de transformação social e econômica Num texto de 1979 Claude Lefort analisou o significado político dessas reformas modernizantes e em tom irônico ressaltou o paradoxo que engendram o que há de notável num tempo como o nosso em que nunca antes se falou tanto de necessidades sociais da educação em que nunca antes se deu tanta importância ao fenômeno da educação em que os poderes públicos nunca antes com ela se preocuparam tanto é que a ideia éticopolítica de educação se esvaiu 1999 p 219 grifo nosso Mais de trinta anos depois a então almejada modernização pedagógica parece dominar os discursos educacionais em escala global A exemplo de dezenas de países o Brasil incorporou seu jargão em documentos normativos como as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais e adotou seus objetivos e conceitos nas políticas de avaliação do rendimento escolar A retórica sobre as supostas necessidades econômicas de um sistema educacional de qualidade se consolidou e tornouse tema recorrente na mídia em campanhas eleitorais e discursos de governantes Simultaneamente o discurso republicano clássico historicamente identificado com a fundação dos sistemas nacionais de ensino passou a soar cada vez mais distante e anacrônico Embora não completamente esquecido o ideal de uma formação voltada para o cultivo das chamadas virtudes públicas parece perder progressivamente sua José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 13 força como princípio capaz de inspirar práticas pedagógicas ou como ideal regulador de políticas públicas em educação A busca pela compreensão dos condicionantes históricos e sociais dessa transformação costuma apontar fatores internos ao campo educacional como deficiências na formação de professores e o caráter tecnicista do currículo e das políticas públicas contemporâneas De fato aspectos como esses podem ter grande impacto no significado que atribuímos às práticas pedagógicas e no modo pelo qual estabelecemos metas e objetivos educacionais mas não dão conta da complexidade do fenômeno de que tratamos Por isso convém não nutrir a expectativa ingênua de que o esvanecimento de um sentido éticopolítico da atividade educativa pode ser detido por meras reformulações nas diretrizes para a formação de professores ou por políticas de reinserção e valorização das humanidades no currículo escolar por mais desejáveis que estas possam ser Afinal as transformações nesses âmbitos parecem antes confirmar tal esvanecimento que explicar sua gênese ou desvelar seus condicionamentos históricos e sociais Nestas reflexões procuramos compreender esse declínio do sentido público da educação ou do progressivo esvanecimento da ideia éticopolítica de educação como propõe Lefort a partir de um fenômeno exterior ao campo pedagógico mas cujas consequências nele se fazem sentir diretamente Examinamos o impacto no âmbito da educação escolar da crescente e contínua diluição das fronteiras entre os domínios público e privado e a ascensão de uma sociedade de consumidores no mundo contemporâneo O que procuramos mostrar é a existência de uma estreita relação entre a submissão dos discursos educacionais aos imperativos econômicos e a perda de seu significado éticopolítico A emergência e a consolidação dos discursos pedagógicos que proclamam como ideal educativo o desenvolvimento de competências e capacidades individuais ou aqueles que se referem à formação escolar como um investimento em capital humano são exemplos frisantes das transformações que se operam nas proposições de políticas educacionais na adoção de reformas pedagógicas e nos meios e recursos a partir dos quais se pensam orientam e avaliam as práticas educativas Para uma análise mais detida dessa tese examinaremos a gênese históricoconceitual das noções José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 14 de público e privado para depois mostrar sua diluição na sociedade de consumo e avaliar o impacto dessa diluição no âmbito dos discursos que atribuem um sentido e um lugar social à atividade educativa O público o privado e a sociedade de consumidores Tornouse lugarcomum apontar a existência de uma crescente tensão entre os domínios público e privado suas fronteiras e características Há discursos que em tom apreensivo denunciam um declínio e mesmo o eventual desaparecimento do primeiro como resultado do que seria uma crescente privatização de todas as esferas da vida em nossa sociedade Noutro viés ideológico falase numa incontornável ineficiência do setor público em comparação à agilidade da iniciativa privada A evocação dos termos em que se apresenta essa controvérsia basta para sugerir que a dicotomia público x privado há tempos não se resume a contendas acadêmicas habitando já o universo discursivo cotidiano É provável que nesse uso habitual nossas referências sejam suficientemente claras para os propósitos mais imediatos da comunicação informar persuadir ou emitir uma opinião Contudo não é difícil darse conta de que a polissemia dos termos pode gerar ambiguidades e imprecisões comprometendo a aparente clareza de seu uso habitual Não é raro por exemplo que o adjetivo público seja direta e exclusivamente identificado com o que é instituído ou mantido pelo Estado como uma escola pública ou um hospital público Mas a criação e o financiamento estatal garantem o caráter público de uma instituição Um banco criado e mantido pelo Estado deve necessariamente ser considerado uma instituição pública ou seria apenas uma empresa ou organização que funciona de acordo com os padrões do domínio privado ainda que a partir de recursos públicos Em caso afirmativo pode então haver uma instituição que do ponto de vista de sua propriedade seja um patrimônio público mas da perspectiva de seu funcionamento produto ou acesso seja uma organização privada Estatal sempre equivale a público ou o interesse do Estado pode entrar em conflito com o interesse público José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 15 Talvez a vinculação imediata entre público e posse estatal assim como entre privado e propriedade particular tão recorrente a partir da era moderna seja uma das formas mais corriqueiras de se definirem os termos da dicotomia mas ela é bastante problemática já que ignora a complexidade dos fatores envolvidos em prol de um aspecto isolado que é incapaz de fornecer bases para o estabelecimento de distinções e relações fundamentais entre os dois domínios Ora há objetos simbólicos que não são propriedade nem pública nem privada embora sejam correntemente concebidos como bens públicos como é o caso da língua de uma nação A língua portuguesa como o tupi não é em sentido estrito propriedade ou posse de ninguém embora seja vista como um bem simbólico comum e público Tampouco seu caráter público deriva de qualquer sorte de vínculo ou controle estatal mas antes do fato de ser um objeto da cultura comum de um povo Exemplos como esse poderiam se multiplicar e diversificar No entanto basta essa breve evocação do caráter público de um saber comum para ressaltar que ao invés de elucidar o critério mais recorrente para o estabelecimento de distinções e relações entre os domínios público e privado tende a obscurecer suas especificidades Essa confusão por sua vez não decorre apenas da falta de uma informação ou de uma fragilidade teóricoconceitual como poderia ser o caso do uso vago ou impreciso de conceitos como inércia ou classe social Ela revela um aspecto marcante da experiência política no mundo contemporâneo a indistinção entre esses dois domínios da existência humana Como pois pensar a distinção entre domínios que se apresentam sobrepostos e indistintos em nossa experiência cotidiana No quadro do pensamento político de Hannah Arendt6 esse esforço de elucidação conceitual nos remeterá à busca do 6 A distinção arendtiana entre os domínios público e privado não deve ser tomada como a enunciação de uma dicotomia rígida e estanque o que obscureceria seu necessário caráter relacional dinâmico e interdependente Como salienta Duarte é preciso caracterizar as inúmeras distinções conceituais propostas por Arendt ao longo de sua obra pensandoas sempre em seu caráter relacional isto é sob a pressuposição de que aquilo que se distingue mantém uma relação intrínseca com aquilo de que se distingue de modo que a própria exigência arendtiana de estabelecer distinções implica o reconhecimento de que na vida política cotidiana o limite jamais é absoluto mas sempre tênue e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 16 sentido primeiro da experiência política que os criou a da polis democrática pré filosófica Esse retorno a uma experiência política fundadora não deve ser tomado como signo de nostalgia ou melancolia como sugerem algumas leituras de sua obra7 Ele repousa antes na convicção de que a formulação primeira de certos conceitos pode trazer a significação fundamental das experiências políticas que lhes deram origem de forma que a compreensão de um acontecimento histórico venha a se tornar um elemento potencialmente fecundo para iluminar aquilo que no presente se mostra obscuro ou indistinto Assim Arendt recorre à experiência da Atenas democrática não por nostalgia nem por um interesse fundamentalmente historiográfico num aspecto do passado mas a partir da constatação de um problema que emerge da experiência política contemporânea o fato de que no mundo moderno os dois domínios público e privado constantemente recobrem um ao outro como ondas no perene fluir do processo da vida Arendt 2010 p 40 Assim o que leva Arendt a buscar nas experiências políticas préfilosóficas uma base para sua análise teóricoconceitual são os problemas de uma sociedade de produção e consumo cujo crescimento transforma a esfera pública em mera administradora dos interesses privados e estes na única preocupação comum entre os homens Para a autora no contexto da democracia ateniense os domínios público e privado constituíram uma relação de oposição e complementaridade de distinção entre necessidade e liberdade de tensão entre a fluidez que a tudo consome na manutenção do ciclo vital e a busca de permanência e durabilidade num mundo erigido pelo artifício humano Nessa perspectiva a instituição de um domínio público na polis não decorre direta e imediatamente do caráter gregário da espécie humana nem representa uma extensão das preocupações e características da vida privada sujeito à contaminação e ao deslocamento 2009 p 134 grifos do original Evidentemente essa observação se aplica a todas as outras distinções a que nos referimos aqui 7 Gerard Lebrun 1983 e Renato Janine Ribeiro 2001 por exemplo criticam o pensamento de Arendt a partir dessa perspectiva Contudo como ressalta Correia Arendt retorna aos gregos não pela nostalgia de uma era política ideal mas por julgar que a despeito da fragilidade política de Atenas inaugurouse naquele momento uma dimensão da existência humana até então desconhecida voltada à liberdade 2010 p XXXII José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 17 A capacidade humana de organização política não apenas é diferente dessa associação natural cujo centro é o lar oikia e a família mas encontrase em oposição direta a ela O surgimento da cidadeEstado significou que o homem recebera além de sua vida privada uma espécie de segunda vida o seu bios politikós Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio idion e o que lhe é comum koinon8 Arendt 2010 p 28 Assim a esfera privada ligada à casa e aos laços familiares vinculavase à dimensão vital da existência humana zoe9 aos esforços para atender às necessidades da vida para criar formas de garantir a sobrevivência individual e a continuidade da espécie Seu traço distintivo residia no fato de que nesse âmbito da existência na qualidade de meros viventes os homens eram compelidos a se associar em função das carências e necessidades impostas pela dinâmica do ciclo vital Por isso a comunidade natural do lar decorre da necessidade e a ela permanece ligada enquanto a criação de uma comunidade política e a constituição de um espaço público capaz de abrigála testemunha a liberdade como desígnio político da ação humana O domínio do privado é também por excelência aquele que abriga as atividades humanas cujos produtos serão imediatamente consumidos no ciclo incessante de geração manutenção e perpetuação do organismo em seu metabolismo com a natureza o trabalho labor10 A atividade de cozinhar por exemplo é fundamentalmente uma modalidade de trabalho já que seu produto a refeição 8 Jaeger Werner Paideia III 1945 p 111 9 No início de seu ensaio O conceito de história Arendt faz uma distinção entre os termos gregos bios e zoe ambos frequentemente traduzidos para as línguas latinas indistintamente como vida A mortalidade do homem reside no fato de que a vida individual uma bios com uma história de vida reconhecível entre o nascimento e a morte uma biografia emerge da vida biológica zoé Arendt 2006 p 42 Bios referese pois ora à existência singular de um homem ora a um modo de vida como nas expressões bios politikos ou bios theoretikos que designam duas formas de existência dedicadas respectivamente aos negócios da vida comum da cidade polis ou à busca da contemplação da verdade Já zoé é a vida nua a dimensão primeira e biológica que os homens compartilham com todos os demais viventes 10 Em A condição humana Arendt se refere ao trabalho labor à obra work e à ação action como as três atividades fundamentais da vita activa A distinção entre labor e work inusitada como ela mesma reconhece tem gerado inúmeras polêmicas cujo exame escapa aos propósitos desta reflexão Importa contudo ressaltar que Arendt usa o termo work como equivalente ao grego poiesis que indica a ação de fabricar a confecção de um objeto artesanal de natureza material ou intelectual como a poesia Da mesma forma ação action visa traduzir o termo grego práxis agir cumprir realizar até um fim usado nos campos ético e político Assim enquanto na poiesis o objeto criado e seu artífice são distintos e separáveis na práxis não a ação revela quem o agente é José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 18 destinase a ser consumido no esforço de manutenção da vida individual e da espécie O caráter efêmero dos bens de consumo gerados pela atividade do trabalho os encerra num movimento circular de fusão entre o homem em sua dimensão de ser vivente de animal laborans e o espaço vital em que ele se desenvolve e se renova perpetuamente Esse processo de consumo e reprodução de esgotamento e regeneração aprisiona o vivente numa temporalidade circular da qual participa e na qual se funde como uma árvore que se alimenta de elementos do solo até que com sua degeneração e morte a ele venha a se integrar passando a servir de alimento para novas árvores Já o domínio público surge a partir da constituição de um mundo comum que não se confunde com o espaço coletivo vital e natural onde a espécie humana e seus viventes individuais lutam pela sobrevivência em meio a outras espécies e outros indivíduos Tratase antes de um conjunto interligado de objetos instrumentos instituições linguagens costumes enfim de um mundo criado pelo artifício humano um mundo que adentramos ao nascer e que deixamos ao morrer Um lar imortal no qual se desenrola a existência bios e não apenas a vida zoe de cada novo homem que o adentra É por também participar de um mundo que a existência singular de cada novo homem rompe a temporalidade circular do ciclo vital e instaura a linearidade como signo da mortalidade humana A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte advém da vida biológica Essa vida individual difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo de seu movimento que por assim dizer trespassa o movimento circular da vida biológica É isto a mortalidade moverse ao longo de uma linha reta em um universo em que tudo o que se move o faz em um sentido cíclico Arendt 2010 p 2223 Desse modo para que a vida de um indivíduo da espécie humana possa se transformar na existência de um alguém em sua unicidade incontornável é preciso que ao processo circular da natureza se sobreponha a condição especificamente humana de pertencimento a um mundo de vinculação existencial a um universo durável de objetos criados pela fabricação e de inserção numa teia de relações José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 19 humanas Ora se o trabalho se caracteriza pela produção de bens que serão consumidos imediatamente no próprio ciclo da subsistência como a refeição é por meio da fabricação de objetos e instrumentos como uma panela que o homem é capaz de produzir bens que permanecem para além de seu uso imediato bens de uso cuja durabilidade e permanência emprestam estabilidade ao mundo Assim a capacidade de fabricar work objetos e instrumentos de produzir obras duráveis que apesar de se apoiar na matéria dada pela natureza a ela se opõem e resistem permite ao homem superar sua condição de animal laborans em favor de uma nova dimensão em sua existência a de homo faber um ser capaz de construir um mundo que abriga sua existência e transcende a vida individual de cada um de seus membros A fabricação de uma mesa por exemplo se faz a partir de um material dado pelo ciclo biológico da vida mas o transforma numa obra que o retira desse mesmo ciclo Convertida em mesa a madeira rompe a circularidade da reprodução em favor da linearidade da produção Seu destino não é mais o processo imediato de integração ao ciclo da natureza na forma de elemento do solo que um dia a alimentou mas a potencialidade de permanecer como um objeto do mundo humano até que seu desgaste ou abandono a leve de novo à condição de matéria orgânica do ciclo vital Por isso a durabilidade do artifício humano depende tanto da capacidade de criar obras quanto do reconhecimento público de seu pertencimento a um mundo comum Uma catedral um monumento ou uma mesa só podem vir a existir porque a fabricação humana retira a pedra ou a madeira do ciclo da natureza que as gerou e as consumiria e lhes empresta um novo uso e um significado comum e compartilhado Se não forem reconhecidas como obras desse mundo comum uma mesa ou uma catedral voltam a ser madeira e pedra reintegrandose ao ciclo de consumo da natureza e da vida É pois do cuidado e da durabilidade da obra humana que o mundo público retira sua capacidade de transcender as vidas individuais que abriga de vinculálas tanto ao passado como ao futuro comum Por essa razão é possível afirmar que o mundo comum preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência nele É isso o que temos em comum não só com aqueles José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 20 que vivem conosco mas também com aqueles que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao ir e vir das gerações na medida em que aparece em público É a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo Arendt 2010 p 67 Assim é em função de seu potencial caráter mundano que as obras humanas ganham durabilidade opondose ao ciclo do consumo vital ao qual estaria destinada a matéria que lhes dá origem Mas esse caráter mundano depende de sua visibilidade de sua qualidade de objeto que aparece à pluralidade de homens que habitam o mundo Enquanto o domínio privado se caracteriza pelo ocultamento e pela proteção da vida o caráter público do mundo comum vinculase à sua visibilidade ou seja ao fato de que os objetos que o compõem as relações que nele se inscrevem e os feitos e palavras pelos quais os homens nele se revelam podem ser vistos e ouvidos por todos Assim no mundo antigo a dicotomia entre os domínios público e privado encerra também a cisão entre o que é apropriado à visibilidade do mundo comum e o que dele deve ser ocultado Os mistérios da vida humana como o nascimento e a morte exigem o resguardo da privacidade assim como o amor e seus frutos que precisam ser protegidos das ameaças do mundo Mas é também esse caráter de privação que impede àqueles cuja vida se restringe ao domínio do lar e às atividades ligadas à sua manutenção como as mulheres e os escravos a possibilidade de revelarem a singularidade de seu ser em meio à pluralidade dos homens Pois é só ao aparecer no mundo público que os homens liberados da necessidade de lutar pela vida podem se encontrar com seus iguais para juntos criar manter e renovar a dimensão pública e política de sua existência seu bios politikós Entendida como um modo de existência a política não se confunde no pensamento arendtiano com o governo da sociedade mesmo que o pressuponha em algum grau Tampouco se confunde com a fabricação de uma determinada configuração social ou produtiva pois a lógica instrumental que preside os processos de fabricação de objetos não pode ser aplicada ao âmbito das relações entre os homens José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 21 sem destruir sua especificidade11 Enquanto a primeira é regida pela relativa independência entre os meios utilizados e os fins almejados na segunda a escolha dos meios vinculase imediata e diretamente aos fins que se perseguem a luta política pela igualdade por exemplo pressupõe sua promoção em cada ação comprometida com seu desenvolvimento não se trata pois de uma promessa a ser alcançada ao final do processo e para a qual qualquer meio é igualmente aceitável Em síntese a política e o bios politikós entendido como uma dimensão da existência do humano não se reduz aos meros esforços coletivos de reprodução do ser vivente nem tampouco à capacidade humana de fabricar objetos e instrumentos úteis à vida comum Ela os pressupõe mas os ultrapassa em favor de uma terceira dimensão da existência humana a capacidade de agir em meio a outros homens práxis É a ação a teia de relações que os homens estabelecem entre si ao se inserirem num espaço comum que é capaz de conferir um sentido ao mundo Reduzido à sua luta pela sobrevivência e reprodução o animal laborans permanece prisioneiro da necessidade e está sujeito a um ciclo inflexível de labutas e penas em vista de uma saciedade nunca alcançável de uma vez por todas Correia 2010 p XXVI Reduzidos à sua dimensão de fabricantes de objetos e instrumentos os homens se tornam prisioneiros da lógica instrumental em que tudo é sempre um meio para outro fim numa cadeia infinita e completamente destituída de significado próprio Porque é capaz de agir ou seja de romper os automatismos sociais e iniciar algo de novo o homem é capaz de atribuir um sentido à sua existência como um ser histórico e singular em meio à paradoxal pluralidade de seres únicos que compõem o mundo 11 Arendt destaca que diferentemente da ação e da fala a fabricação sempre implica a relação meios e fins pois essa categoria obtém sua legitimidade da esfera do fazer e do fabricar em que um fim claramente reconhecível o produto final determina e organiza tudo o que desempenha um papel no processo o material as ferramentas tudo se torna simples meio dirigido a um fim e justificado como tal Os fabricantes não podem deixar de considerar todas as coisas como meios para seus fins ou quando for o caso julgar tudo pelo critério de sua utilidade específica No momento em que esse ponto de vista é generalizado e estendido a outros campos fora da esfera da fabricação produzse a mentalidade instrumentalutilitarista banausic mentality 2006 p 212 A transposição desse tipo de mentalidade e de seus critérios para o âmbito da ação política destrói a peculiaridade desta última pois exige que ela vise a um fim predeterminado e que lhe seja permitido lançar mão de todos os meios que possam favorecer esse fim Ibidem José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 22 Diferentemente da fabricação que produz um objeto exterior a seu fabricante o produto da ação é a revelação disclosure do próprio agente que nasce como sujeito político em meio a seus iguais Revelação que só é possível porque produz e é produzida por uma comunidade de atores políticos que instituem um espaço público de ação e visibilidade que pela ação em concerto instituem a polis como sede de um mundo comum Pois o mundo não é humano simplesmente por ter sido feito por seres humanos e nem se torna humano simplesmente porque a voz humana nele ressoa mas apenas quando se tornou objeto de discursos Por mais afetados que sejamos pelas coisas do mundo por mais profundamente que possam nos instigar e estimular estas só se tornam humanas para nós quando podemos discutilas com nossos companheiros Tudo o que não se possa converter em objeto de discurso não é exatamente humano Humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar e no curso da fala aprendemos a ser humanos Os gregos chamavam essa qualidade humana de philanthropia amor dos homens pois se manifesta numa presteza em compartilhar o mundo com outros homens Arendt 1987 p 31 O mundo público é pois o espaço compartilhado do discurso e da visibilidade por oposição ao do ocultamento próprio ao âmbito privado o espaço mundano da pluralidade de seres singulares por oposição à multiplicidade vital de indivíduos da mesma espécie Se a marca da esfera privada é o esforço para responder às necessidades impostas pelo ciclo vital é no domínio público que os homens podem experimentar a liberdade como um desígnio da vida política ou seja como a capacidade compartilhada com seus iguais de renovar o mundo e dar sentido à sua existência histórica singular Tratase pois de uma relação de oposição e complementaridade entre domínios e atividades que representam diferentes dimensões da existência humana Sua separação na experiência grega das polei democráticas significou a criação das condições para o surgimento da política como uma modalidade específica de existência humana Inaugurase assim uma forma de vida na qual o diálogo e a persuasão substituem a dominação e a violência como princípios reguladores da convivência criando uma esfera de existência que ultrapassa a somatória dos interesses privados e próprios de cada um idion em favor da criação de uma esfera pública e comum koinon no espaço entreoshomens José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 23 Ora é essa experiência existencial de uma dicotomia entre os domínios público e privado entre as atividades que eles abrigam e separam entre essas dimensões da existência humana que se distinguem e se complementam que parece gradativamente se obscurecer no mundo moderno Alguns aspectos dessa indistinção nos são bem familiares e imediatamente identificáveis A exposição pública de experiências tradicionalmente restritas ao âmbito da vida privada como a dor o amor o nascimento convive com a opacidade que as decisões tecnocráticas imprimem ao equacionamento de problemas de alta relevância pública e política Assim por um lado a mídia eletrônica e a impressa fazem da vida privada de celebridades assunto comum e público enquanto aquilo que por se encontrar num espaço comum entreos homens deveria ser tomado como de natureza eminentemente pública passa progressivamente a ser tomado ou como opção individual a ser preservada do confronto inerente à pluralidade do mundo comum ou como assunto de especialistas A relação que nossa sociedade mantém com o juízo estético e a apreciação da arte é paradigmática dessa tendência ou bem o ajuizamento do belo ou até do que é uma obra de arte é visto como algo restrito a uma classe de profissionais ou se trata de uma apreciação pessoal afinal gosto não se discute Há contudo uma dimensão menos perceptível dessa diluição de fronteiras entre os domínios público e privado cujas consequências parecem ser bem mais profundas Tratase do fato de que a dimensão laboral da existência humana a atividade do trabalho cujos produtos são consumidos imediatamente nos esforços pela saciedade dos desejos ou pela manutenção do processo vital ganha progressivamente espaço e visibilidade no mundo público engolfando as esferas da fabricação e da ação Como destaca Correia na atual configuração do mundo moderno Os ideais de permanência durabilidade e estabilidade do homo faber foram substituídos pelo ideal da abundância do animal laborans a vida mina a durabilidade do mundo Assim vivemos numa sociedade de operários porque somente o trabalho com sua inerente fertilidade tem a possibilidade de produzir abundância mas ao mesmo tempo por serem o trabalho e o consumo dois estágios de um só processo vivemos numa sociedade de consumidores E ao contrário de uma sociedade de escravos onde a condição de sujeição à necessidade era constantemente manifesta e reafirmada mas também contestada esta sociedade de consumidores não conhece sua sujeição à necessidade não podendo assim ser livre Correia 2003 p 239 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 24 O triunfo da lógica do animal laborans implica pois que os valores do domínio privado do cuidado da manutenção e reprodução da própria vida e do gozo e do consumo que os acompanham passam a ter visibilidade e importância pública Assim formase uma nova esfera nem propriamente pública nem privada na qual o político reduzse à administração do econômico com vistas à glorificação da saciedade e do consumo Essa nova esfera que temos identificado com a sociedade de consumidores Arendt denomina social ou por vezes simplesmente sociedade procurando destacar que se trata menos de uma comunidade política ou cultural do que de uma associação gregária cuja função é a maximização da produção circulação e consumo de bens vitais a sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência e de nada mais adquire importância pública e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública Arendt 2010 p 57 grifo nosso E assim poderíamos acrescentar extirpase da esfera pública aquilo que lhe era mais característico ser o palco da ação política Esta acaba por se identificar no mundo moderno com a administração do social ou com a atividade de governo cujas prioridades estão agora vinculadas à criação de condições de êxito da vida privada e à liberação dos homens do fardo da política Por outro lado a própria durabilidade do mundo e sua relativa estabilidade se encontram ameaçadas a partir do momento em que mesmo as obras da fabricação tendem a se transformar em objetos de consumo imprimindo aos produtos materiais e simbólicos do artifício humano um ritmo frenético de obsolescência e substituição É claro que numa organização social dessa natureza uma sociedade de consumidores num mercado de obsolescência se esvai a noção de um mundo comum que transcende a existência individual seja no passado ou no futuro O mundo deixa de ser um artifício comum a ser compartilhado entre gerações para também ele ser consumido no presente Em sua versão contemporânea não se trata de uma negação do mundo em favor de uma busca de transcendência espiritual como no caso do isolamento de um monge ou de um eremita José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 25 A abstenção das coisas terrenas não é de modo algum a única conclusão a se tirar da convicção de que o artifício humano produto de mãos mortais é tão mortal como seus artífices Isso pode também pelo contrário intensificar o gozo e o consumo das coisas do mundo e de todas as formas de intercâmbio nas quais o mundo não é concebido como koinon aquilo que é comum a todos A existência de um domínio público e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência Arendt 2010 p 67 grifo nosso Desse modo numa sociedade de consumidores estruturada na obsolescência de objetos ideias e relações o que homens passam a ter em comum não é um mundo de significações práticas e valores compartilhados mas a fugacidade de seus interesses particulares Daí porque nessa ordem a noção de bem comum como ideal regulador dos discursos e das práticas políticas é submetida a um outro princípio operativo o da administração competente de interesses particulares ou privados em conflito o que significa a submissão da ação política ao ciclo vital da produção e do consumo processo que se torna patente na supremacia do mercado nos mais diversos âmbitos de nossa existência comum Algumas das consequências políticas e econômicas dessa transformação têm sido bastante exploradas e criticadas O que interessa apresentar aqui são as profundas repercussões que a emergência de uma sociedade de consumidores tem tido no que diz respeito às formas pelas quais pensamos descrevemos e orientamos as práticas educacionais A redução do significado da formação educacional à instrumentalidade econômica e social Em seu texto sobre o impacto da crise do mundo moderno na educação Arendt 2006 ressalta o caráter duplo do nascer de cada ser humano que é sempre e simultaneamente o aparecer de um ser novo na vida e de um novo ser no mundo Em sua dimensão biofísica o nascimento vinculase ao esforço de renovação da espécie na medida em que reproduz suas formas em um novo indivíduo que vem à vida Mas o José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 26 nascer de um ser humano é também natalidade o aparecer de um novo ser que vem ao mundo de um alguém que se revelará como um ser distinto de todos aqueles que o precederam e que o sucederão neste mundo dos homens Assim ao fato físico bruto do nascimento de um novo indivíduo da espécie vem se somar a natalidade como revelação de um alguém essa capacidade especificamente humana de desvelar não só aquilo que ele é traços de identidade que compartilha com inúmeros outros ser brasileiro negro alto santista mas quem ele é No homem a alteridade que ele partilha com tudo o que existe e a distinção que ele partilha com tudo o que vive tornase unicidade e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano e essa inserção é como um segundo nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original Arendt 2010 p 220221 grifos nossos Ora a natalidade o fato de que ao agir podemos iniciar algo novo e assim tornarmonos um novo alguém só é possível por habitarmos um mundo por sermos nele acolhidos por aqueles que dele já fazem parte E embora nunca deixemos de ser em alguma medida estrangeiros nesse mundo ele é nossa herança comum é um legado que recebemos do passado e transmitiremos ao futuro Em ambos os casos sem um testamento que nos oriente definitivamente acerca de seu sentido e de seu porvir Mas a posse dessa herança simbólica e material de que se constitui o mundo exige um processo de iniciação de familiarização e de progressiva assunção de responsabilidade a educação Assim compreendida a formação educacional implica acolher e iniciar os que são novos num mundo tornandoos aptos a dominar apreciar e transformar as tradições culturais que formam sua herança simbólica comum e pública Por se tratar de uma herança cuja significação interpessoal e o caráter simbólico são compartilhados a única forma de termos acesso a ela e dela nos apropriarmos é a aprendizagem Se para nos integrarmos ao ciclo vital basta um treinamento em capacidades e competências necessárias à sobrevivência e à reprodução para tomar parte no mundo é necessária uma formação educacional José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 27 Todo homem nasce herdeiro de um legado de realizações humanas uma herança de sentimentos emoções imagens visões pensamentos crenças ideias compreensões empresas intelectuais e práticas linguagens relações organizações cânones e normas de conduta procedimentos rituais habilidades obras de arte livros composições musicais ferramentas artefatos e utensílios em resumo o que Dilthey chamou geistige Welt É um mundo de fatos não de coisas de expressões que têm significado e exigem compreensão porque são expressões de mentes humanas E é um mundo não porque tenha em si mesmo qualquer significado não tem nenhum mas porque é um todo de significações interconectadas que se estabelecem e interpretamse mutuamente E este mundo só pode ser penetrado possuído e desfrutado por meio de um processo de aprendizagem Podese comprar um quadro mas não a compreensão que dele se possa ter E chamo a este mundo nossa herança comum porque penetrálo constitui a única forma de tornarse um ser humano e viver nele é ser um ser humano Oakeshott 1968 p 243 O acolhimento dos novos num mundo preexistente pressupõe então um duplo e paradoxal compromisso por parte do educador Por um lado é preciso zelar pela durabilidade desse mundo comum de heranças simbólicas no qual ele os acolhe e inicia Por outro cabelhe cuidar para que os que são novos no mundo possam vir a se inteirar dessa herança pública apreciála fruíla e renovála É essa iniciação numa herança comum de saberes práticas conhecimentos costumes princípios enfim de obras às quais um povo atribui grandeza valor mérito ou significado público que constitui o objeto precípuo da ação educativa Por isso é só ao fazer dessa herança comum sua própria herança que cada novo alguém se constitui simultaneamente como um ser pertencente a um mundo comum e um sujeito que ao nele se hospedar é capaz de a partir de seus atos e palavras lhe imprimir uma nova configuração Como bem resume Arendt A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e com tal gesto salválo da ruína que seria inevitável não fossem a renovação e a vinda dos novos e dos jovens A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsálas de nosso mundo e abandonálas a seus próprios recursos e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós preparandoas em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum 1978 p 247 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 28 Assim concebida a educação é um elo entre o mundo comum e público e os novos que a ele chegam pela natalidade Nesse sentido o ensino e o aprendizado se justificam não exclusivamente por seu caráter funcional ou por sua aplicação imediata às demandas da vida mas por sua capacidade de se constituir como uma experiência simbólica de relação com o mundo comum Pensar a educação como uma experiência simbólica significa ultrapassar a dimensão técnica utilitária e funcional da aprendizagem reduzida ao desenvolvimento de competências para pensála em seu potencial formativo É claro que toda experiência simbólica de valor formativo decorre de algum tipo de aprendizagem mas não é qualquer tipo de aprendizagem que se constituirá numa experiência formativa A noção de aprendizagem indica simplesmente que alguém passa a saber algo que não sabia uma informação um conceito ou uma capacidade como a técnica de acentuar as palavras corretamente Mas não implica que esse algo novo aprendido o transformou em um novo alguém Uma aprendizagem só se constitui em experiência simbólica formativa na medida em que opera transformações na constituição daquele que aprende e em sua relação com o mundo É como se o conceito de formação indicasse a forma pela qual aprendizagens e experiências constituem seres ativos e singulares em interação no e com o mundo isto é sujeitos que não apenas estão no mundo mas que são do mundo Nem tudo o que aprendemos ou vivemos deixa em nós traços que nos formam como sujeitos que habitam um mundo comum e dele fazem um palco para sua existência As notícias dos telejornais o trânsito de todos os dias as informações sobre o uso de um novo aparelho uma técnica para não errar mais a crase tudo isso pode ser vivido ou aprendido sem deixar traços sem portanto nos afetar e afetar nossa relação com o mundo Uma experiência tornase formativa por seu caráter afetivo um livro que lemos um filme a que assistimos ou uma repreensão nos afeta e assim nos transforma e em nós abre uma nova forma de relação com o mundo Tratase pois de um encontro entre um evento mundano um objeto da cultura e um sujeito que ao se aproximar de algo que lhe era exterior caminha no sentido da constituição de um ser singular em meio a um mundo comum Larrosa 2000 Agamben 2005 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 29 Por terem esse caráter de encontro constitutivo os resultados de uma experiência formativa assim como os da ação política são sempre imprevisíveis e incontroláveis ficando nesse sentido necessariamente à margem de controles pedagógicos e avaliações sistêmicas É relativamente simples testar se alguém detém ou não uma informação se domina uma técnica específica Embora mais complexo é perfeitamente possível mensurar o grau em que alguém desenvolveu uma competência a partir do uso de certos instrumentos padronizáveis Mas seria possível mensurar por exemplo em que sentido e com que intensidade a apreciação de uma obra da arte teve um papel formativo para alguém Claro que a posteriori podemos estimar o impacto de uma experiência em nossa formação mas essa estimativa é muito mais próxima de um julgamento pessoal do que de uma medida padronizável pois como destaca Lefort 1992 p 213 a noção de formação acolhe a indeterminação ela não assinala limites predefinidos a seus resultados já que o que se pede daquele que aprende algo não é a mera posse de um lote de informações ou de um conjunto de capacidades técnicas mas uma forma de se relacionar com o saber E essa relação com o saber é necessariamente uma forma de relação e não de consumo ou de mero uso com o mundo com seus objetos culturais e com a teia de relações que os homens tecem entre si Ora é justamente essa sorte de vinculação entre a formação do sujeito e o caráter público do legado cultural de um mundo que tende a ser diluído na modernização pedagógica dos discursos contemporâneos Neles a educação tem sido concebida como um investimento privado o que explica por exemplo a identificação corrente em vastos setores da opinião pública entre qualidade da educação e o acesso às escolas superiores de elite supostamente responsáveis pelo êxito econômico do indivíduo ou pelo desenvolvimento tecnológico de um país Vejamos um exemplo influente desse ideário pedagógico que ao mesmo tempo em que exalta a necessidade de educação retiralhe o caráter de experiência formativa potencialmente impregnada de significação pública e política José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 30 No final da década de 1990 o economista francês J Delors relator da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI da Unesco publicou a obra Educação um tesouro a descobrir Traduzida para diversas línguas suas pretensões são audaciosas veicular a concepção de uma nova escola para o próximo milênio e fornecer pistas e recomendações importantes para o delineamento de uma nova concepção pedagógica para o século XXI Delors 2001 grifo nosso É pouco provável que qualquer outra obra recente no campo educacional tenha tido uma repercussão comparável12 Sua difusão ampla e influência marcante em políticas públicas não decorrem porém da originalidade de suas teses ou da profundidade de sua perspectiva Ao contrário bastante trivial seu conteúdo é marcado por expressões vagas que mais se assemelham a slogans cuja força persuasiva parece substituir qualquer esforço reflexivo Tomemos por exemplo os famosos quatro pilares da educação do século XXI aprender a conhecer aprender a fazer aprender a viver e aprender a ser Não obstante a anemia semântica dessas expressões elas são apresentadas como diretrizes educacionais consensuais numa infinidade de documentos em dezenas de países inclusive no Brasil Assim sua força parece derivar da mera síntese de uma perspectiva crescentemente adotada quanto ao que deve ser concebido como o valor da educação em nossa sociedade E é nesse sentido que a obra nos interessa como a marca de um programa que procura imprimir uma perspectiva econômicoutilitarista à educação Nela se afirma por exemplo que as comparações internacionais realçam a importância do capital humano e portanto do investimento educativo para a produtividade Delors 2001 p 71 grifo nosso Assim o ideal maior da educação não é o da participação e da renovação de um mundo comum e público mas o da obtenção de competências e habilidades para a produção numa sociedade de consumidores a experiência escolar deixa de ser concebida a partir de seu potencial formativo para passar a ser organizada a partir de sua suposta funcionalidade social 12 Segundo dados do buscador Google Acadêmico ela é citada em quase 20000 artigos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 31 É claro que não se pretende que um sistema educacional se desvincule das necessidades da vida ou da capacidade humana de fabricar instrumentos úteis As responsabilidades das instituições educacionais se espraiam por todas as dimensões da existência humana Cabelhe em continuidade com as responsabilidades da família proteger a vida e mesmo responder às necessidades recorrentes de seu processo e ainda iniciar os novos nos artefatos materiais e simbólicos constitutivos do mundo e úteis a seus habitantes Mas cabelhe igualmente a criação de vínculos de pertencimento e de amor ao mundo o que não significa a aceitação acrítica de sua ordem mas antes a responsabilidade política de nele vir a se inserir como agente e não simplesmente dele usufruir como consumidor Essas exigências entram em conflito umas com as outras e a manutenção de seu frágil equilíbrio é a condição para que a convivência humana não se restrinja aos esforços de manutenção e reprodução da vida para que a serventia usefulness das coisas não tome o lugar do significado meaningfulness das ações humanas em um mundo estritamente utilitário todos os fins são constrangidos a ser de curta duração e a se transformar em meios para alcançar outros fins Essa perplexidade intrínseca a todo utilitarismo pode ser diagnosticada teoricamente como uma incapacidade de compreender a diferença entre utilidade e significância que expressamos linguisticamente ao distinguir entre a fim de in order to e em razão de for the sake of A perplexidade do utilitarismo é que ele é capturado pela cadeia interminável de meios e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a categoria de meios e fins isto é a categoria da própria utilidade O a fim de tornase o conteúdo do em razão de em outras palavras a utilidade instituída como significado gera a ausência de significado Arendt 2010 p 192 Assim a preocupação de pensar a experiência escolar a partir de suas finalidades práticas e de sua suposta relevância econômica tem posto em risco a possibilidade de se atribuir à formação educacional um significado político e existencial Notese que essa supremacia do caráter instrumental dos discursos educacionais não implica o desaparecimento de disciplinas e saberes tidos como integrantes de uma concepção humanista de formação como a literatura as artes ou a filosofia Significa antes que mesmo esses saberes e disciplinas passam a ter outro José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 32 papel o de coadjuvantes na supremacia do instrumentalismo vinculado ao mercado e à sociedade de consumidores Seus conteúdos perdem o caráter formativo e emancipador que os ideais educacionais humanistas e iluministas lhe atribuíam para se transformar também eles em meios para a constituição de competências e valores e não como objetivos do ensino em si mesmo conforme o que se lê nos Parâmetros Curriculares Nacionais PCN ensino médio 2002 p 87 Não se trata de banilos do currículo mas de vincular seu sentido ao desenvolvimento de certas características psicológicas e habilidades cognitivas tidas como necessárias pelos reclamos de uma sociedade de consumo o que os pensadores e gestores daquele modelo de ensino desconheciam é a necessidade hoje tornada explícita a partir do próprio sistema produtivo que as sociedades tecnológicas têm de que o indivíduo adquira uma educação geral inclusive em sua dimensão literária e humanista PCN ensino médio 2002 p 327 grifo nosso Assim substituise o sentido público e político da formação por seu valor de mercado O que seria a iniciação numa herança cultural pública como a filosofia ou a poesia passa a ser concebido como a transmissão de um capital cultural privado cujo valor pode ser aferido a partir de seu impacto noutras dimensões da existência em geral ligadas à produção ou ao consumo de novas mercadorias Sucede então com a atual experiência escolar aquilo que Arendt afirmava ser característico da relação da sociedade moderna com os objetos culturais mais especificamente com as obras de arte elas deixam de ser objetos de culto dotados de um sentido público para ser concebidas como objetos portadores de um valor de distinção e se transformam num meio circulante mediante o qual se compra uma posição mais elevada na sociedade ou se adquire uma autoestima mais elevada Nesse processo os valores culturais passam a ser tratados como outros valores quaisquer a ser aquilo que os valores sempre foram valores de troca e ao passar de mão em mão se desgastam como moedas velhas Arendt 2006 p 201 tradução nossa grifo nosso Ou seja perdem a faculdade que originariamente lhes era peculiar formar sujeitos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 33 II POLÍTICA E EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT DISTINÇÕES RELAÇÕES E TENSÕES Independentemente de como as pessoas respondem à questão de se é o homem ou o mundo que está em perigo na crise atual uma coisa é certa qualquer resposta que coloque o homem no centro das preocupações atuais e sugira que ele deve mudar para que a situação melhore é profundamente apolítica Pois no centro da política jaz a preocupação com o mundo não com o homem com um mundo na verdade constituído dessa ou daquela maneira sem o qual aqueles que são ao mesmo tempo preocupados e políticos não achariam que a vida é digna de ser vivida E não podemos mudar o mundo mudando as pessoas que vivem nele porque onde quer que os seres humanos se juntem em particular ou socialmente em público ou politicamente gerase um espaço que simultaneamente os reúne e os separa Esse espaço tem uma estrutura própria que muda com o tempo e se revela em contextos privados como costume em contextos sociais como convenção e em contextos públicos como leis constituições estatutos e coisas afins Onde quer que as pessoas se reúnam o mundo se introduz entre elas e é nesse espaço intersticial que todos os assuntos humanos são conduzidos Hannah Arendt Apresentação Recorrer como fizemos no primeiro capítulo às categorias e ao pensamento de Hannah Arendt a fim de alertar para o crescente esvanecimento do sentido ético e político da experiência escolar pode gerar estranhamento e perplexidade Afinal numa de suas mais controversas teses acerca da crise educacional que acomete o mundo moderno Arendt afirma a necessidade de se estabelecer um divórcio entre o domínio da educação e os domínios da vida pública e política para aplicar ao primeiro um conceito de autoridade e uma atitude em relação ao passado que lhe são apropriados mas cuja validade não se estende nem deve ser reivindicada para o mundo dos adultos Arendt 2006 p 192 Essa polêmica passagem de suas reflexões sugerindo a necessidade de uma cisão entre educação e política tem sido objeto de inúmeras críticas e contraposições notadamente entre as teorias críticas da educação para as quais o postulado divórcio nada mais seria do que uma astúcia ideológica de encobrimento do papel político da educação de seu engajamento na conservação e na reprodução de formas materiais e simbólicas de dominação Mas os problemas que ela suscita não se limitam a um confronto entre perspectivas teóricas distintas e irreconciliáveis como no caso que José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 34 acabamos de evocar Mesmo a partir de uma análise interna à sua obra emergem questões cujo equacionamento não se mostra menos complexo Como conciliar por exemplo a proposta desse divórcio com as afirmações de Arendt que vinculam a educação à renovação do mundo comum e ao cultivo do amor mundi tarefas que pressupõem um incontornável compromisso público e político Como explicar seu interesse declaradamente político e não pedagógico pela crise na educação Enfim como justificar a presença de um ensaio sobre a crise da educação numa obra classificada pela própria autora como uma modalidade de exercícios de pensamento político A complexidade dos problemas envolvidos nas relações entre o significado público da formação educacional a experiência escolar no mundo contemporâneo e os domínios da vida pública e política desaconselha qualquer tentativa de enquadramento do pensamento de Arendt nas categorias dicotômicas típicas dos discursos educacionais como a oposição entre teorias críticas e liberais ou entre pedagogias progressistas e tradicionais O que procuramos mostrar aqui é que no pensamento de Arendt o divórcio entre os domínios da educação e da política não deve ser tomado como a afirmação do caráter apolítico das instituições e práticas educacionais Tratase antes de alocar a relação pedagógica que não encerra toda a complexidade do fenômeno educativo num âmbito intermediário entre esses domínios numa esfera prépolítica que embora de grande relevância e profundo significado para a ação política com ela não se confunde em função da natureza das relações que engendra e da peculiaridade de seus princípios e de suas práticas Como no caso da distinção e da relação entre os domínios público e privado tratase de um esforço analítico para elucidar as especificidades de diversos âmbitos da experiência humana e de trazer à tona os diferentes princípios que historicamente se firmaram como elementos que impulsionam e animam a atividade educativa e a ação política O esforço de distinção não visa pois isolar cada um desses âmbitos em esferas incomunicáveis mas apenas evitar sua fusão e a decorrente confusão teórica e prática num todo indiscernível Nesse sentido ressaltar as diferenças entre essas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 35 esferas é uma das condições para pensar suas relações pois como lembra a própria autora no prólogo de A condição humana a ausência de pensamento thoughlessness a despreocupação negligente a confusão desesperada ou a repetição complacente de verdades que se tornaram triviais e vazias parece ser uma das mais notáveis características do nosso tempo Arendt 2010 p 6 grifo nosso É em resposta a essa confusão desesperada que no panorama educacional brasileiro se traduz na aceitação acrítica e na repetição complacente da máxima de que toda pedagogia é política e toda política é pedagógica13 que a interrogação acerca da natureza desses domínios de suas marcas distintivas correlações e tensões pode ser relevante para a compreensão das experiências e dos discursos educacionais contemporâneos O caráter político da crise na educação Ao longo de todo o seu ensaio sobre a crise na educação Arendt faz uma série de alusões diretas e indiretas ao caráter eminentemente político do tema que examina Embora haja nele referências recorrentes às instituições escolares e às relações que nelas se travam o objeto de suas reflexões muitas vezes ultrapassa esse âmbito específico que é a forma escolar como modalidade de educação em favor da análise de um fenômeno mais amplo e geral a natureza das relações entre adultos e crianças ou para ser ainda mais preciso o caráter específico das relações entre aqueles que já iniciados em um mundo comum têm a responsabilidade política de nele acolher os que são novos Tratase pois de um exercício reflexivo sobre nossa atitude em face da natalidade Arendt 2006 p 193 tradução nossa de um esforço no sentido de desvelar e compreender as formas pelas quais pensamos nossa relação com o passado e o futuro a partir das exigências de renovação e imortalização de um legado público de realizações históricas 13 Inspirada nas ideias de Paulo Freire a máxima se transformou no que Scheffler 1978 classifica como um slogan educacional É nessa condição de símbolo de uma perspectiva prática e de elemento aglutinador e não de um fragmento teórico que ela é aqui evocada José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 36 É esse caráter geral do problema da natalidade do influxo incessante de novos que chegam ao mundo para dele fazer um lar imortal para sua breve existência mortal que confere aos problemas da educação sua relevância pública e política Daí porque para Arendt seu exame não deve ser delegado a especialistas de um campo disciplinar específico a pedagogia mas concerne a todos os que habitam o mundo e que por ele se interessam Se a crise se resumisse à ineficácia ou à obsolescência de procedimentos didáticopedagógicos ela não teria se tornado um problema político de primeira grandeza Arendt 2006 p 170 E por ter se tornado um problema político seu exame exige reflexão e julgamento e não apenas conhecimentos técnicos e científicos Analogamente as respostas práticas a partir das quais pretendemos enfrentar seus desafios concretos não decorrem da imediata aplicação de um suposto saber especializado pois dizem respeito à política prática e como tal estão sujeitas ao acordo de muitos Arendt 2010 p 6 Isso não significa afirmar a impossibilidade de um conhecimento especializado sobre o campo da educação ou sua irrelevância para as decisões práticas Significa tão somente que transportados para o campo dos embates políticos esses conhecimentos perdem sua suposta autoridade científica para se tornar mais um dos inúmeros elementos a considerar nos esforços de persuasão em favor de uma deliberação Decisões como as relativas à amplitude do direito de acesso à educação escolar à fixação de diretrizes e programas curriculares ou à legitimidade de mecanismos e formas de seleção não repousam preponderantemente sobre argumentos pedagógicos elas são de natureza ética e política Concernem não a um grupo de especialistas num campo de saber mas a toda uma comunidade política da qual sempre representam uma viva expressão A escolha curricular por exemplo para além das razões pragmáticas que lhe possam servir de justificativa sempre significa um esforço de gerações para preservar uma forma de pensamento e seus conteúdos da ruína que lhe infligiria a inexorável passagem do tempo Assim concebida a educação constitui uma espécie de cuidado com o mundo uma maneira pela qual os homens afirmam a grandeza de algumas de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 37 suas obras linguagens e formas de compreensão E ao assim fazer atestam a capacidade que estas têm de transcender as vidas os povos e mesmo as culturas que as forjaram Nesse sentido o ensino de uma disciplina ou campo do saber como a filosofia a matemática ou a poesia sempre representa uma maneira de salvar uma parte ou um aspecto do mundo e seu legado de realizações históricas Num mundo mantido coeso pela tradição que seleciona e nomeia que transmite e conserva que indica onde estão os tesouros e qual seu valor Arendt 2006 p 5 tradução nossa as escolhas são transmitidas sem que sua legitimidade seja nem sequer posta em questão Mas onde quer que se haja rompido o fio da tradição somos impelidos a fazer julgamentos apresentar escolhas e confrontálas com outras possibilidades A ruptura da tradição e o desparecimento de um sentido comum e compartilhado common sense nos obrigam a escolhas que exigem discernimento e deliberação política pois dizem respeito não simplesmente a necessidades sociais ou preferências individuais mas à preservação de um mundo comum e público ou seja concernem à dimensão política de nossa existência O menosprezo desse princípio em favor de um suposto saber que se coloca acima da pluralidade de julgamentos e opiniões recorrente na padronização globalizada de programas e objetivos educacionais a partir de diretrizes de organismos técnicos internacionais significa a vitória da tecnocracia sobre a política e a desvalorização do domínio público como o lugar em que os homens deveriam deliberar sobre o futuro atuando politicamente no sentido mais profundo e originário do termo isto é compartilhando a palavra e fazendo da palavra política a expressão da responsabilidade inerente à ação Não é por outra razão que a tecnoburocracia que ocupou o vazio da deliberação política despreza a palavra trivializa e degrada a interação política que a palavra deveria proporcionar no propósito desgraçadamente bemsucedido no mundo contemporâneo de afirmar o caráter supérfluo do sujeito histórico como agente de transformação Silva 2001 p 249 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 38 O reconhecimento do caráter eminentemente político e não pedagógico ou técnicoburocrático das decisões e diretrizes de um sistema nacional de ensino aparece de forma clara nos comentários de Arendt acerca da influência que o ideal de igualdade de oportunidades político em sua essência exerce nos rumos da educação pública dos EUA Em sua visão a afirmação da educação como um dos inalienáveis direitos civis dos norteamericanos deriva diretamente da crença nesse princípio profundamente enraizado no temperamento político do país desde a fundação de sua república Foi a adesão generalizada ao princípio da igualdade de oportunidades que levou essa sociedade a reconhecer a educação como um direito comum e público praticamente o único dos chamados direitos sociais a ser reconhecido como tal nos EUA Esse reconhecimento por sua vez resultou num amplo esforço político de universalização do acesso a um ensino secundário de tronco único independente de qualquer tipo de seletividade supostamente meritocrática uma política educacional que cabe ressaltar é anterior e bem mais abrangente do que quase todas as iniciativas europeias e latinoamericanas na mesma direção Esse esforço político no sentido de criar mecanismos de equalização das oportunidades e minimização das diferenças se reflete também e muito diretamente nas concepções e práticas das escolas norteamericanas Estas procuram progressivamente e na medida do possível apagar as diferenças entre os jovens e os velhos entre os mais e os menos dotados finalmente entre crianças e adultos e particularmente entre professores e alunos Arendt 2006 p 177 tradução nossa E embora seja óbvio que uma das consequências dessa atitude seja o declínio da autoridade do professor não é menos óbvio para Arendt que ela encerra também grandes vantagens não só do ponto de vista humano mas também do educacional Ibidem p 177 Isso não implica ressaltese que a criação de um sistema educacional voltado para a escolarização de uma sociedade de massas tenha sido capaz de superar as desigualdades sociais daquele país Apenas torna patente uma forma possível de realização prática no campo da educação de um princípio político José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 39 Mas as consequências das ações políticas são sempre imprevisíveis e incertas Assim a forma pela qual o princípio político da igualdade foi transposto e atualizado estendendose para o campo das relações entre adultos e crianças entre os que são velhos no mundo e aqueles que pelo nascimento nele acabam de chegar resultou no agravamento da indistinção entre aquilo que é próprio de uma relação política e o que é próprio de uma relação pedagógica Noutras palavras um dos resultados da transposição dos ideais políticos modernos de liberdade e de igualdade para o campo pedagógico é a crescente indistinção entre a natureza das relações que os cidadãos travam entre si no espaço comum e público e a daquelas que presidem as relações entre professores e alunos num contorno institucional distinto e específico a escola que para Arendt não é o mundo e não deve fingir sêlo é antes a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo a fim de fazer com que a transição da família para o mundo seja possível É o Estado ou seja o mundo público e não a família que impõe a obrigatoriedade da escolarização daí que em relação à criança a escola representa em certo sentido o mundo embora de fato não o seja Arendt 2006 p 185 tradução nossa grifo nosso Mas é preciso ressaltar essa indistinção entre mundo e escola entre agir em meio a iguais e educar aqueles que são recémchegados ao mundo não surge exclusivamente como resultado de práticas escolares e ideais pedagógicos do autogoverno selfgovernment que se difundem a partir do início do século XX Ela é antes e sobretudo fruto da atitude moderna em relação ao passado Este deixa de ser concebido a exemplo do que era entre romanos e cristãos como um tempo cujo legado e as lições têm o poder de iluminar o presente Na visão moderna e iluminista é o futuro e não mais o passado o tempo forte da humanidade14 E sua plena realização ou fabricação exige uma nova educação comprometida com um modelo de sociedade previamente vislumbrado seja pelas utopias modernas seja pelo 14 A expressão é de Franklin Leopoldo e Silva 2001 p 239 ao comentar o regime de temporalidade que caracteriza o período O iluminismo nos ensinou que o futuro é o tempo forte da humanidade aquele no qual estão projetadas as expectativas decorrentes da constatação de que a humanidade progride e que quaisquer que sejam os obstáculos e até mesmo os retrocessos aparentes o progresso terminará por triunfar e por caracterizar essencialmente o percurso histórico do ser humano José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 40 sentido teleológico que se atribui ao desenvolvimento da história humana A adesão maciça dos discursos políticos e pedagógicos ao ideal rousseauniano de transformar a educação em um instrumento da política e fazer da atividade política uma forma de educação é para Arendt a mais clara expressão do triunfo dessa forma moderna de se conceberem os vínculos entre história educação e política Arendt 2006 p 173 O caráter prépolítico da relação pedagógica Mesmo que se ponha em questão a leitura que faz Arendt das relações entre política e educação em Rousseau sua apropriação pelos discursos pedagógicos do século XX confere grande pertinência às considerações da autora acerca dos problemas da indistinção entre esses dois domínios Até porque mais do que o teor preciso das concepções de Rousseau foi a repercussão pública de sua obra decorrente de sua ampla difusão que se tornou um acontecimento politicamente relevante Tomese como exemplo a formulação que esses ideais de caráter fundamentalmente programático receberam na obra de Paulo Freire Em A importância do ato de ler 1982 retomando algumas das ideias que desenvolveu ao longo das décadas de 196070 ele afirma o mito da neutralidade da educação que leva à negação da natureza política do processo educativo e a tomálo como um quefazer sic puro em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração é o ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua e outra crítica Do ponto de vista crítico é tão impossível negar o caráter político do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político p 23 grifo nosso Não se trata de uma posição isolada mas antes de uma convicção bastante generalizada no campo da educação Algumas décadas depois de suas primeiras formulações essa visão acerca das relações entre os domínios da política e da educação tornouse hegemônica também entre professores e gestores de sistemas educacionais A adesão à ideia da indissociabilidade entre a atividade educacional e a ação política ganhou tal força que o mero fato de colocála em questão causa perplexidade ou repulsa Daí o estranhamento ou a rejeição imediata e muitas vezes José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 41 irrefletida da afirmação de Arendt 2006 p 173 tradução nossa de que a educação não pode desempenhar papel nenhum na política pois na política lidamos com aqueles que já estão educados Há nessa controvérsia entre Arendt e as teorias críticas da educação duas espécies de divergência que se interpenetram mas não são idênticas Uma diz respeito ao sentido e à abrangência do termo política e outra ao próprio cerne da distinção os princípios que regem a ação política e a atividade educativa No que tange ao conceito de política vale destacar que enquanto Arendt o utiliza numa acepção bastante restrita que o distingue do caráter gerencial da noção de governo e o opõe às relações de dominação fundadas na violência nos escritos das teorias críticas seu uso é bem mais amplo abrangendo qualquer relação de poder ou de dominação Os problemas decorrentes dessa amplitude emprestada ao substantivo política ou ao adjetivo correspondente foi bem percebido por Charlot justamente numa obra dedicada à desmistificação da neutralidade política da escola é tentador pensar que a análise terminou quando se junta a palavra política a uma realidade pedagógica Ora dizer da educação ou da escola ou dos programas ou do controle pedagógico etc que são políticos não é ainda dizer grande coisa Tudo é política pois a política constitui uma certa forma de totalização do conjunto das experiências vividas numa sociedade determinada Eleições uma greve a aposta em corrida de cavalos a seca um jogo de futebol uma bofetada etc todos esses acontecimentos têm uma significação política Mas eles não são políticos da mesma maneira Alguns são políticos por definição as eleições por exemplo Outros são políticos enquanto são consequências da organização econômica social e política Outros acontecimentos são políticos porque têm consequências políticas Finalmente o sentido político de certos fatos é somente muito indireto a bofetada é um ato repressivo e podese considerar que prepara a criança para a obediência social e política mas sua significação política não é imediata nem direta Não basta portanto afirmar que a educação é política O verdadeiro problema é saber em que ela é política Charlot 1979 p 13 grifo do original Se em Charlot a política constitui uma forma de totalização do conjunto das experiências vividas numa sociedade em Arendt ela representa a invenção de uma forma específica de existência em comum que não se confunde com nenhuma José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 42 experiência associativa ou gregária da espécie humana A política não é uma necessidade da vida mas um acontecimento histórico Ela se realiza a partir do momento em que a igualdade é enunciada como princípio regulador das relações que os homens travam entre si e com a cidade polis ou a república e se materializa na existência de um espaço público capaz de abrigar e dar luz à pluralidade de seres singulares que a integram A existência desse espaço comum e povoado de iguais é précondição para que os homens experimentem a liberdade em sua dimensão tangível e pública isto é não como uma escolha privada da vontade de um indivíduo mas como a capacidade propriamente política de romper automatismos do passado e iniciar algo de novo cuja instituição e durabilidade sempre exigem a ação em concerto Como forma de existência a política inaugura para Arendt uma ruptura das práticas de dominação fundadas na desigualdade e representa a rejeição da violência em favor do predomínio da palavra da persuasão e da ação em concerto como fonte do poder Ela é nesse sentido estrito a busca incessante e nunca definitivamente realizada de dar uma resposta digna à pluralidade como condição humana porque são os homens e não o Homem que vivem na Terra e habitam o mundo Arendt 2010 p 8 Seu lugar apropriado é por excelência o mundo público esse espaço entreos homens que ao mesmo tempo em que os une impede que colidam uns com os outros E nesse ponto as distinções conceituais implicam diferenças teóricas e programáticas irreconciliáveis pois embora o princípio da igualdade possa se efetivar no plano das relações pedagógicas ele jamais o fará na visão de Arendt a partir dos mesmos meios ou com o mesmo sentido em que se efetiva no domínio público e na esfera política Na esfera prépolítica das relações entre professores e alunos podese admitir por exemplo o postulado da igualdade das inteligências como o faz Rancière 1987 mas não o da igual responsabilidade política pelo mundo No quadro de uma relação pedagógica mediada pela instituição escolar cabe ao professor assumir a responsabilidade pelo processo de iniciação de seus alunos nessa herança pública de práticas linguagens e saberes que uma comunidade política ou uma sociedade escolheu preservar por meio da transmissão escolar Apossarse dela significa a um só tempo criar laços de pertencimento a um mundo comum e desenvolver qualidades e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 43 talentos pessoais por meio dos quais cada novo ser que vem ao mundo pode revelar sua singular unicidade E é em função dessa unicidade que cada criança que vem ao mundo não é somente um estranho neste mundo mas um novo alguém que nunca aí esteve antes Arendt 2006 p 185 tradução nossa A responsabilidade política daqueles que educam é pois dupla com uma herança comum e pública de saberes instituições e relações e com os jovens que nela se iniciam com o passado em que se enraíza o mundo e com o futuro que lhe empresta durabilidade Por isso para Arendt do ponto de vista daqueles que são novos no mundo os educadores e a instituição escolar representam o mundo e por ele devem assumir a responsabilidade embora não o tenham feito e ainda que secreta ou abertamente possam querer que ele fosse diferente do que é Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos em um mundo em contínua mudança Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibila de tomar parte em sua educação Arendt 2006 p 186 tradução nossa Inerente ao ofício do professor e claro não extensiva aos alunos essa responsabilidade é a fonte mais legítima da autoridade do educador frente aos educandos é o que lhe confere um lugar institucional diferente daquele reservado a seus alunos Ora enquanto a marca do caráter político de uma relação é seu compromisso com a igualdade entre os que nela estão envolvidos a de uma relação pedagógica é o mútuo reconhecimento da assimetria de lugares como fator constitutivo de sua natureza e no limite como sua razão de ser Uma assimetria cujo destino é o progressivo e inexorável desaparecimento mas cuja manutenção temporária é a própria condição de proteção daqueles que são recémchegados à vida e ao mundo Proteção do crescimento vital que exige interdições e cuidados que requer um processo gradativo de desocultamento de aspectos do mundo que julgamos nocivos à qualidade vital dos que ainda se encontram em processo de formação Mas também proteção do livre e lento processo de desenvolvimento pessoal cuja conclusão é prérequisito para a plena participação na vida política e pública É evidente que esse José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 44 processo varia de indivíduo para indivíduo e de sociedade para sociedade mas é igualmente evidente que todas as sociedades desenvolvem marcos e ritos a partir dos quais aqueles que eram os novos e só potencialmente companheiros num mundo comum passam a ser plenamente admitidos na comunidade dos adultos e igualmente responsáveis pelo destino do mundo Essa admissão implica pois a plena responsabilização pessoal por seus atos e palavras e a responsabilização política pelos rumos do mundo no qual sua existência se desenrola daí as especificidades dos códigos civis e penais em relação às crianças e adolescentes ou as exigências de idade mínima para o pleno exercício de direitos e deveres da cidadania O fim dessa etapa formativa de iniciação ao mundo a que em sentido estrito Arendt denomina educação não implica que cesse o processo ou a capacidade de aprendizagem nem que o indivíduo se encerre numa identidade definitiva lembremos que em Arendt o agente se revela na e pela ação Ela só implica a plena admissão numa comunidade política o momento em que se deixa de ser um recémchegado ao mundo para se constituir em alguém que não só está no mundo mas que é do mundo Ora é essa proteção que se põe em risco quando se transportam mecânica e acriticamente para o âmbito das relações escolares os princípios da vida política como se as crianças pudessem constituir um mundo próprio e à parte do mundo comum e sua formação não fosse uma iniciação neste mundo mas o mero desenvolvimento de potencialidades cognitivas e psicológicas de um indivíduo Assim a pretensa politização das relações pedagógicas tem um efeito duplo e paradoxal De um lado cria um simulacro de vida pública que tende a destruir as condições necessárias ao crescimento vital e às possibilidades de desenvolvimento pessoal que antecedem a plena participação no domínio público e político De outro ao conceber seu processo não como uma forma de familiarização dos novos com um mundo comum mas como um instrumento cuja finalidade é o estabelecimento futuro de uma nova ordem política ela procura imprimir ao âmbito dos negócios humanos a lógica que preside a fabricação de objetos destituindo o presente de suas tensões e o futuro de sua imprevisibilidade Seu eventual êxito o triunfo de uma ordem social idealmente concebida para ordenar as relações entre os homens não representaria a José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 45 ampliação e valorização do domínio da política mas antes a decretação de sua superfluidade e o abandono da esperança de poder a cada nova criança que nasce reafirmar que os homens embora tenham de morrer não nascem para morrer mas para começar algo de novo e assim salvar o mundo de sua obsolescência ruína e destruição cf Arendt 2010 p 307 É precisamente nesse sentido e só nele que se deve entender o caráter conservador que Arendt atribui à atividade educativa não como uma forma de preservação de uma estrutura de dominação vigente15 mas como um exercício de zelo e cuidado com o mundo e com aqueles que nele se iniciam É desse apreço pelo mundo e pela natalidade que emana a esperança como uma das categorias fundamentais do pensamento político de Arendt Porque cada criança que nasce não é só mais um exemplar novo da espécie mas também um novo alguém a possibilidade do início de algo novo e imprevisível que se renova a cada nascimento E é em benefício dessa esperança ontologicamente radicada na natalidade que a educação não deve se confundir com a fabricação de uma nova sociedade a partir de modelos concebidos por uma geração para aqueles que a sucederão neste mundo Nossa esperança está sempre ancorada no novo que cada geração aporta mas precisamente por basearmos nossa esperança somente nisso é que tudo destruímos se nós os mais velhos tentarmos controlar os novos de tal modo que possamos ditar como deve ser seu futuro Exatamente em nome daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora ela deve preservar essa novidade e introduzila como algo novo em um mundo velho que por mais revolucionárias que possam ser suas ações é sempre da perspectiva da geração seguinte obsoleto e rente à destruição Arendt 2006 p 189 tradução nossa Há pois um sentido político16 para a recusa arendtiana da instrumentalização da relação pedagógica Sob a égide de um discurso identificado com a emancipação tentase muitas vezes arrancar das mãos dos recémchegados sua própria 15 Convém lembrar que Arendt afirma que a atitude conservadora em política aceitando o mundo como ele é procurando somente preservar o status quo não pode senão levar à destruição visto que o mundo tanto no todo como em parte é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo a menos que existam seres humanos determinados a intervir a alterar a criar aquilo que é novo 2006 p 189 16 A ideia de um sentido político para a distinção proposta por Arendt está em Benvenutti 2009 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 46 oportunidade face ao novo Arendt 2006 p 174 tradução nossa ao mesmo tempo em que se procrastina para um amanhã utópico o enfrentamento dos desafios políticos do presente Na verdade ao se atribuir à educação o lugar por excelência da construção da sociedade do futuro a política corre o risco de se transformar na mera governamentabilidade do presente com vistas à fabricação de um futuro preconcebido Assim a transformação da educação num instrumento da política também acaba por revelar a falta de vigor da própria política no mundo contemporâneo A dimensão política da experiência escolar uma lacuna nas reflexões de Arendt Mas mesmo que se reconheçam a pertinência e a profundidade das ideias de Arendt sobre a natureza prépolítica da relação pedagógica há um aspecto crucial do problema das relações entre a atividade educativa e o domínio da vida pública e política que permanece intocado em suas reflexões Tratase do fato de que embora central a relação pedagógica não encerra a totalidade da experiência escolar mas é apenas um de seus muitos componentes Enquanto a primeira se restringe a uma modalidade de interação entre professores e alunos a segunda abrange uma complexa teia de relações que se estabelecem entre os diversos agentes e as várias práticas que integram uma instituição escolar A experiência escolar diz respeito pois às formas pelas quais os alunos se relacionam entre si e com a cultura dessa instituição seus saberes conhecimentos linguagens hierarquias e toda sorte de práticas não discursivas e abrange ainda as relações dos profissionais da educação entre si e com suas áreas de saber e práticas pedagógicas Assim ela abarca uma infinidade de complexas relações e experiências formativas que se processam a partir dos vínculos entre as escolas suas práticas os alunos as famílias e os profissionais da educação As lembranças e memórias do período escolar reificadas em romances canções poemas e narrativas são testemunhos eloquentes da variedade de situações e vivências significativas que podem vir a se constituir na experiência escolar de um indivíduo ou de uma geração José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 47 Dentre as experiências que se processam a partir das relações entre alunos e instituições escolares algumas podem vir a ter uma profunda significação política apesar de transcorrer num espaço institucional que difere do mundo público e político em sentido estrito Tomemos com exemplo relevante por seu caráter predominantemente político e não pedagógico a participação discente em um conselho de escola Em princípio conferese ao aluno que dele participa um estatuto de igualdade política seu direito a opinião a voz e a voto o coloca nesse contexto específico num lugar de simetria com os demais representantes de outros segmentos da instituição É evidente que essa simetria se desfaz quando ele volta a ocupar o lugar de aluno e não mais o de membro do conselho mas se vivida e elaborada a experiência da igualdade permanece E o mesmo poderia ser apontado em outras relações que se estabelecem em grêmios e associações formais ou informais que se vinculam às escolas Mas a dimensão política da experiência escolar não se esgota nas atividades de cunho extracurricular Há também um conjunto de práticas pedagógicas stricto sensu potencialmente portadoras de significação política no processo formativo dos alunos Retomemos o exemplo das escolhas curriculares para pensar sua potencial dimensão política Ora em primeiro lugar é preciso reconhecer que elas se fazem sempre a partir de um conjunto de pressupostos culturais que atuam num duplo sentido a seleção operada no interior da cultura para e pelo ensino corresponde a princípios e a escolhas culturais fundamentais ligadas aliás às escolhas sociais que governam a organização prática do sistema educativo Assim a cultura não é somente o repertório o material simbólico no interior do qual se efetua a escolha das coisas ensinadas ela é também o princípio dinâmico o impulso o esquema gerador das escolhas do ensino É exatamente esta parece a ambivalência da noção de seleção cultural escolar que significa ao mesmo tempo seleção na cultura e seleção em função da cultura Fourquin 2000 p 38 grifo nosso Assim as opções curriculares de uma dada comunidade cultural representam uma seleção de seus saberes formas de conhecimento e linguagens mas também uma expressão dos critérios que regem essas escolhas Ora enquanto o produto da seleção é um objeto tangível e público os critérios podem permanecer na condição de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 48 pressupostos não enunciados17 Em ambos os casos contudo as escolhas se fazem a partir da aceitação e da adoção de uma multiplicidade valores e pressupostos alguns externos à escola como demandas sociais interesses econômicos princípios políticos e outros diretamente vinculados à cultura escolar como tradições disciplinares práticas pedagógicas etc Nesse sentido é evidente que não há uma escolha curricular seja em termos amplos como no caso de uma política pública seja em termos mais restritos como na seleção de um livro didático ou de uma abordagem disciplinar que não implique uma maior ou menor dimensão política18 Tomemos a título de exemplo uma mudança recente e significativa nas diretrizes curriculares nacionais a inclusão da história e da cultura afrobrasileira no currículo escolar19 Seja qual for a apreciação que se faça dessa iniciativa ou da forma pela qual tem sido operacionalizada é inegável que se trata de uma ruptura com o legado eurocêntrico que dominava as orientações curriculares até então vigentes na escola brasileira Como medida legal ela é o resultado de uma luta política travada no espaço público cujos objetivos são o reconhecimento e a valorização no currículo da escola básica da história e das culturas dos povos africanos e afrobrasileiros Nesse sentido não se deve considerála uma reforma pedagógica ela é antes o fruto de uma ação política que visa mudanças educacionais Mas essa política curricular tem consequências pedagógicas ela exige de gestores professores e demais profissionais da educação a responsabilidade por sua efetivação no plano das práticas escolares 17 A noção de pressuposto é usada aqui no sentido estrito de uma crença subjacente muitas vezes não explicitada como a noção de causalidade num discurso científico Um cientista jamais precisa enunciála pois se trata de uma assunção básica e logicamente anterior à produção de seu discurso 18 A ideia de que há um caráter político e ideológico sempre presente nas escolhas curriculares e nos materiais didáticos tem sido na verdade banalizada A mera denúncia de um suposto poder de reprodução das relações de dominação social parece muitas vezes dispensar a pesquisa empírica e a reflexão sistemática sobre o tema Em A ideologia contida nos livros didáticos por exemplo Rose M Leite afirma que para a manutenção dos sistemas políticos dominantes o livro didático ferramenta de trabalho de muitas escolas hoje é patrocinado pelo próprio poder público Apresentase como o meio que ajuda a manter essa hegemonia do poder conduzindo ainda que muito sutilmente para que não existam mudanças Tornase um meio de controle httpcelsulorgbrEncontros07dir214pdf Como entre tantos outros casos tratase de uma análise abstrata num duplo sentido Em primeiro lugar porque concebe o livro didático como uma entidade homogênea e sobretudo porque supõe poder avaliar seus efeitos sem nem sequer se preocupar em investigar sua aplicação concreta a situações escolares Como ressalta Azanha 1995 abstraído de seu contexto de uso e das práticas que o caracterizam o livro didático transformase num falso objeto 19 Tratase da Lei no 106392003 posteriormente alterada pela Lei no 116452008 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 49 Essa efetivação por sua vez requer a seleção de conteúdos linguagens e abordagens e uma série de decisões de cunho prático todas sujeitas à influência de fatores como as tradições disciplinares e escolares o grau de familiaridade com o tema e evidentemente os princípios éticos e políticos com os quais os agentes consciente ou inconscientemente se identificam Assim a escolha e a veiculação de uma perspectiva por exemplo a partir da qual se apresentam e se narram as histórias dos povos africanos têm relação direta com a visão de mundo e a perspectiva política de um professor Mas é preciso ressaltar essa não é a única e nem sequer sabemos se é a principal razão de uma escolha Outras variáveis como a disponibilidade de material as tendências predominantes nos âmbitos acadêmicos editoriais e didáticos e a própria cultura da instituição em que um professor se insere podem ser elementos mais ou menos influentes nesse tipo de decisão prática De qualquer modo do ponto de vista da formação escolar o significado da difusão da história e da cultura afrobrasileira não se limita à aprendizagem de informações e conhecimentos a seu respeito embora necessariamente a inclua Tampouco se limita ao desenvolvimento das capacidades de reconhecer e de apreciar essas expressões culturais em que pese sua inegável importância O que com ela se almeja sem que dessa relação se possa ter qualquer garantia é que o conhecimento e a difusão da cultura afrobrasileira concorram para a progressiva eliminação dos preconceitos e das desigualdades étnicoraciais Sua presença na escola tem pois uma almejada dimensão política embora não deva ser tomada como uma modalidade de ação política em sentido estrito Ao ensinar história dos povos africanos ao apresentar elementos da cultura afrobrasileira a seus alunos um professor tem um objetivo formativo que não se confunde com a persuasão política Embora esse objetivo faça apelo à razão e à sensibilidade de seus alunos e almeje sua adesão a certos princípios políticos não se trata de um processo análogo às relações políticas no domínio público Estas últimas ocorrem ao menos em princípio entre cidadãos que compartilham igual liberdade em suas escolhas e igual José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 50 responsabilidade por seus atos e palavras No espaço público a manifestação de racismo é um crime e assim deve ser tratada na escola a emergência de atitudes discriminatórias deve se converter em oportunidade de formação de uma consciência comprometida com a igual dignidade dos homens É evidente que numa relação política pode também haver aprendizagens significativas mas nela não se pode falar numa formação por meio do ensino pois este sempre pressupõe algum grau de assimetria dos lugares institucionais e de seus agentes Numa relação escolar por exemplo as decisões curriculares e pedagógicas são de responsabilidade do docente e não do aluno E mesmo no caso em que o educador delas decida abdicar esta sempre será sua decisão pois não são as crianças e sim os adultos que podem fixar a autonomia como um ideal formativo e escolher os meios de sua consecução Assim a presença da cultura afrobrasileira no currículo escolar é uma decisão política que se transforma num desafio pedagógico com potencial significação política como criar oportunidades de contato conhecimento reflexão e mesmo identificação com um universo cultural até então negligenciado pela escola Em que medida a interação com obras literárias musicais cinematográficas ligadas ao tema da cultura afrobrasileira pode vir a se constituir em experiência simbólica Em que medida essas potenciais experiências simbólicas podem vir a ter uma significação política ou seja em que medida elas podem favorecer a criação de vínculos de pertencimento responsabilidade e crítica entre os jovens e o mundo público no qual a escola deve buscar inserilos As respostas a essas questões sejam elas quais forem sempre representarão a busca de uma forma de diálogo pedagógico com a cultura daí seu potencial caráter formativo Por outro lado esse caráter formativo de uma experiência simbólica é sempre da ordem do imprevisível e do incontrolável quem poderá saber qual o impacto formativo da leitura de Navio negreiro ou de Quarto de pensão ou ainda da análise de um rap dos Racionais MCs Ora é esse caráter indeterminável constitutivo da própria noção de formação que garante que as escolhas docentes não José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 51 venham a se confundir com a conformação social ou com a fabricação de uma futura ordem política Nesse sentido fazer da escolarização uma experiência simbólica com potencial significação política é uma aposta não um controle implica uma forma de relação com um legado de valores e saberes do passado e não a determinação de uma configuração para o futuro Embora paradigmático o exemplo evocado não é um caso isolado Na verdade o que dele se disse é aplicável em maior ou menor grau a qualquer tema ou disciplina do currículo da escola básica A decisão hoje naturalizada de se ensinar literatura a criação da ideia de literatura nacional o estabelecimento de obras paradigmáticas ou cânones da literatura são sempre escolhas na e pela cultura sempre impregnadas de pressupostos e valores e como tal guardam sempre a possibilidade de vir a se tornar experiências simbólicas com uma potencial dimensão política O sentido formativo da leitura de obras literárias como as de Machado de Assis ou Guimarães Rosa não se reduz a eventuais tarefas escolares de natureza estritamente cognitiva como a identificação e a compreensão de traços estilísticos Sua presença no currículo se justifica sobretudo por seu potencial de se tornarem experiências simbólicas para quem as lê ou seja por sua capacidade de afetar um sujeito de transformar sua visão de mundo de influenciar a forma pela qual ele se relaciona consigo mesmo e com aqueles com quem compartilha um mundo Mas essa responsabilidade política de um professor se materializa pela mediação da literatura de modo que a legitimidade da dimensão política da atividade docente não se desvincula de sua responsabilidade pelos saberes que ensina e pelos princípios e valores que animam a instituição em que trabalha a escola Por isso a atividade docente não se confunde com a ação política embora não deva perdêla de vista como uma dimensão existencial da experiência de seus alunos com a escola e com o mundo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 52 III AUTORIDADE E EDUCAÇÃO O DESAFIO EM FACE DO OCASO DA TRADIÇÃO Uma vez que não mais podemos recorrer a experiências autênticas e incontestes comuns a todos o próprio termo autoridade tornouse enevoado por controvérsia e confusão Pouca coisa acerca de sua natureza parece autoevidente ou mesmo compreensível a todos exceto o fato de que a maior parte das pessoas concordam que o desenvolvimento do mundo moderno em nosso século foi acompanhado por uma crise constante de autoridade sempre crescente e cada vez mais profunda O sintoma mais significativo dessa crise a indicar sua profundeza e seriedade é ter ela se espalhado em áreas prépolíticas tais como a criação dos filhos e a educação onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural obviamente exigida tanto por imperativos naturais o desamparo da criança como por necessidade política a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recémchegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros Hannah Arendt Apresentação do problema O tema do ocaso e da ruptura da tradição perpassa toda a obra de Arendt é central para suas teses acerca do advento da sociedade de massas e do totalitarismo e encontrase na base de suas reflexões acerca da filosofia moral É também o fio condutor de suas análises sobre as crises da autoridade e da educação no mundo moderno pois é com a perda da tradição que entra em declínio uma forma específica de autoridade aquela na qual o passado é concebido como um modelo capaz de atribuir um significado inconteste à prática educativa e imprimir durabilidade e coesão a uma comunidade cultural É pois a partir de seu esvanecimento que Arendt enuncia o que lhe parece ser o grande impasse da educação contemporânea O problema da educação no mundo moderno está no fato de ela não poder abrir mão em decorrência de sua própria natureza nem da autoridade nem da tradição embora se veja obrigada a trilhar seu caminho em um mundo que não é estruturado pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição 2006 p 191 tradução nossa Em sua perspectiva educar implica sempre e necessariamente agir sobre um sujeito que se constrói em continuidade ou ao menos em relação ainda que de oposição ou confronto com um mundo de heranças simbólicas cuja duração o transcende tanto no passado como no futuro Implica ainda que esse processo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 53 transcorre sempre num contexto de assimetria entre educador e educando derivada inicialmente do simples fato de que o mundo no qual este será iniciado precedeo no tempo e transcende o escopo de sua existência individual Mas tratase vale lembrar de uma assimetria temporária cuja legitimidade se funda no reconhecimento de que o objetivo último do trabalho cotidiano do educador é a abolição num futuro predeterminado da distância hierárquica que o separa daquele a quem ele educa Assim embora destinada a um progressivo desaparecimento ao longo da formação do sujeito a relação de autoridade entre educador e educando jamais pode ser um elemento acessório ou um recurso eventual enquanto perdura esse processo Não se pode pois escolher entre uma prática educativa com e sem autoridade a autoridade é consubstancial à educação Daí o desafio insolúvel ou a aporia com o qual depara o educador hoje Seu trabalho exige respeito pelo passado e compromisso com o futuro num mundo que glorifica sem cessar o consumo e o gozo da vida presente Ele se estrutura a partir do reconhecimento da legitimidade de uma assimetria na relação entre educador e educando numa era que erigiu o princípio da igualdade como ideal programático das relações políticas e interpessoais20 Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos proclama o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos Seria essa postulada igualdade universal de direitos compatível com a autoridade do adulto sobre a criança do professor sobre o aluno Ou ao contrário a aceitação da universalização de direitos implicaria um compromisso com a busca de superação de mais essa dissimetria como no caso das desigualdades em relações de gênero ou em preconceitos étnicoraciais Ora em que medida a preservação de um suposto espaço de assimetria legítima também não entraria em contradição com o movimento de emancipação crítica que 20 A afirmação de que a igualdade de direitos e a liberdade individual seriam as grandes criações axiológicas e normativas oriundas da razão moderna Renaut 2004 p 30 não implica evidentemente a crença de que a democracia moderna as tenha realizado plena ou satisfatoriamente simplesmente explicita a adesão a um princípio pelo qual uma comunidade ou sociedade organiza a imagem de si e seus critérios de justiça e legitimidade por exemplo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 54 marca o pensamento iluminista21 e todos os discursos pedagógicos que dele são tributários A identificação imediata da autoridade com a aceitação de uma hierarquia seja qual for sua fonte legitimadora não implicaria ainda um desafio à lógica da democracia moderna segundo a qual nenhum poder poderia se legitimar sem a busca pela adesão daqueles sobre os quais se exerce A noção moderna de um poder que se autoinstitui contratualmente sem a necessidade de nenhum tipo de transcendência é compatível com a preservação de um espaço no qual a dissimetria entre educadores e educandos é um pressuposto anterior à própria relação Sua eventual preservação não significaria a tentativa de deter um processo de democratização das relações sociais que embora nunca logrado em sua plenitude tem impulsionado transformações sociais significativas Por outro lado a recusa sumária da autoridade do educador e da legitimidade de um saber que se inscreve como herdeiro de uma certa tradição cultural não representaria a inviabilização da atividade educativa A própria continuidade dos ideais modernos de emancipação crítica não dependeria assim como sua renovação da sujeição de jovens e crianças a um processo educacional que não escolheram e cuja aceitação do valor precede qualquer possível crítica a seu respeito Ao recusar a autoridade como elemento inerente ao processo educacional não estaríamos ingênua ou astutamente propondo a substituição do ideal político de democratização da sociedade pela escola pelo ideal pedagógico de realizar uma democracia na escola Gauchet 2002 p 40 tradução nossa A complexidade e o entrelaçamento das questões e perplexidades evocadas sugerem a pertinência não obstante o desgaste da expressão de se falar numa crise da autoridade com a condição de afastarmos de plano sua vinculação imediata mas equívoca com as noções de degeneração ou decadência Uma crise nos lembra Arendt 2006 p 171 dilacera fachadas e oblitera preconceitos e ao fazêlo simplesmente torna patente o fato de que perdemos as respostas em que costumávamos nos apoiar sem nem sequer perceber que elas constituíam originariamente respostas a questões 21 Como salienta Gadamer a oposição do Iluminismo a qualquer sorte de autoridade é uma marca de sua filosofia que considera a autoridade como absoluto contrário da razão e da liberdade 1999 p 263 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 55 A experiência da crise emerge pois da consciência do ocaso e da ruptura de uma tradição Ela é fruto da constatação de que a herança que recebemos do passado em forma de respostas teóricas ou práticas já não tem autoridade sobre o presente Em suas formas radicais uma crise pode implicar algo ainda mais profundo o esvanecimento dos próprios critérios por meio dos quais uma dada comunidade ou sociedade escolhe valida e autoriza uma resposta Mas a obsolescência de respostas e critérios herdados do passado não implica necessariamente a descartabilidade dos problemas que lhes deram origem E por isso mais do que a decadência do instituído a experiência da crise pode representar um convite à inovação instituinte Assim concebida uma crise pode ensejar a busca de novas respostas e o estabelecimento de critérios alternativos de validação intersubjetiva pois as crises são precisamente esses momentos nos quais os homens se deparam com problemas que já não são mais capazes de solucionar são momentos nos quais eles reassumem reinvestissent e reinventam as posições e os lugares que foram deixados vazios pelas respostas que já não funcionam É porque o poder explicativo das velhas respostas se esgotou que algo de novo pode se iniciar Se nos propomos pois a repensar a autoridade é por considerar que a crise de todas as formas de autoridade com as quais somos hoje confrontados nos obriga a retomar as posições e lugares deixados vazios onde os esquemas tradicionais já não mais funcionam Revault DAllones 2006 p 89 tradução nossa E é na educação mais do que em qualquer outro âmbito da nossa existência comum que somos impelidos a nos confrontar com um vazio em relação às formas tradicionais de autoridade não obstante o fato de que a crise não tenha inicialmente eclodido em seu domínio mas no das relações políticas e da produção e circulação de conhecimentos Contudo sua intrusão nessa esfera específica a da transmissibilidade intergeracional de experiências simbólicas que dão sentido de pertencimento a um mundo comum atesta a profundidade das transformações em curso A perda geral de autoridade de fato não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera prépolítica na qual a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas O homem José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 56 moderno por outro lado não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo para seu desgosto com o estado de coisas do que sua recusa em assumir em face das crianças a responsabilidade por tudo isso É como se os pais dissessem todos os dias Nós mesmos não estamos muito seguros e à vontade neste mundo como nos movimentarmos nele o que saber quais habilidades dominar tudo isso também são mistérios para nós Procurem tentar entender isso como puderem de qualquer modo vocês não têm o direito de exigir de nós satisfações Somos inocentes lavamos as nossas mãos22 Arendt 2006 p 188 tradução nossa É pois no plano das relações educativas que a recusa da assunção de um lugar de autoridade toma sua forma mais aguda pois pode resultar no descaso pela transmissão de um legado de experiências simbólicas capazes de conferir durabilidade e sentido ao mundo que compartilhamos com os mais jovens que a ele chegam mas também com aqueles que nos precederam e com os que nos sucederão na tarefa de sua renovação Por isso furtarse a essa responsabilidade é simultaneamente abdicar do compromisso com a durabilidade desse mundo comum e abandonar as novas gerações que nele aportam à própria sorte sem o amparo de uma tradição nem a familiaridade com um legado cultural que lhe confira inteligibilidade e sentido Mas é também no domínio da educação mais do que em qualquer outro que a noção de autoridade tem sido pelo menos desde as primeiras décadas do século XX objeto de disputas denúncias e defesas apaixonadas e da produção de uma série de investigações empíricas e proposições normativas e legais Entre restauração e abolição confusões e paradoxos dos discursos educacionais sobre a autoridade Mesmo uma rápida análise da diversidade de discursos acerca das relações entre educação e autoridade já pode revelar o caráter essencialmente polêmico das alegações 22 O sentimento de culpa em função da desresponsabilização política de uma geração em relação a seus sucessores aparece de forma pungente numa canção de Ivan Lins e Victor Martins sugestivamente intitulada Aos nossos filhos Perdoem a cara amarrada Perdoem a falta de abraço Perdoem a falta de espaço Os dias eram assim Perdoem por tantos perigos Perdoem a falta de abrigo Perdoem a falta de amigos Os dias eram assim Perdoem a falta de folhas Perdoem a falta de ar Perdoem a falta de escolha Os dias eram assim José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 57 e perspectivas que se colocam em constante conflito e por vezes em franca contradição Ora evocam a falta de autoridade como causa de uma crescente deslegitimação da cultura escolar que teria perdido a centralidade na formação das novas gerações ora afirmam a força de sua presença nos processos de intensificação do governo de si e na normalização das condutas sociais Ora a força da autoridade institucional é descrita como responsável pela violência simbólica por meio da qual a escola inculcaria um arbitrário cultural que legitimaria a reprodução das desigualdades ora é à sua fragilidade que atribuem a maior parte dos problemas ligados à indisciplina à incivilidade ou à violência por parte dos alunos Em síntese ou bem a relação educacional fundada na autoridade é descrita como um dispositivo coercitivo herdado das hierarquias prémodernas ou engendrado em função de novas exigências de conformação social ou bem se evoca a necessidade de sua restauração como remédio para os impasses de um processo educacional que perdeu a confiança em sua eficácia e a certeza de seu sentido Não obstante as claras divergências ideológicas que perpassam esses discursos a multiplicidade de seus propósitos descritivos programáticos ou normativos e a diversidade de perspectivas teóricas em que se apoiam há entre eles ao menos um ponto comum a tendência a fundir num todo indistinto as noções de autoridade força violência e poder Porque visam produzir a obediência como resultado e costumam aparecer interligados ou amalgamados em diferentes manifestações empíricas esses fenômenos de naturezas distintas têm sido reiteradamente tratados como análogos ou equivalentes A indistinção está presente tanto nos discursos ligados à denúncia e à rejeição da autoridade equivocadamente equiparada à tirania ao despotismo e a toda sorte de relações de dominação fundadas na coerção e na violência como naqueles cuja pretensão seria a de sua restauração por meios igualmente coercitivos Tomemos como exemplo dessa indistinção em sua versão reacionária e restaurativa o Projeto de Lei no 2672011 que tramita no Congresso Nacional por iniciativa de uma deputada paranaense Visando coibir a indisciplina e a violência em sala de aula o Projeto de Lei propõe a inclusão de um artigo 53A ao Estatuto da José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 58 Criança e do Adolescente segundo o qual ficaria estabelecido que o respeito à autoridade intelectual e moral dos docentes deve ser reconhecido legalmente como um dever da criança ou do adolescente grifo nosso O descumprimento da medida legal prevê seu parágrafo único sujeitará a criança ou o adolescente a suspensão por prazo determinado pela instituição de ensino e na hipótese de reincidência grave ao seu encaminhamento à autoridade judiciária competente23 Assim a autoridade é concebida não como fruto da confiança depositada no outro naquele cuja posição assimétrica é tida por legitima porque reconhecida pelos que de alguma forma a ela se submetem mas como produto de uma ameaça de coerção Ora como nos lembra Arendt a presença da autoridade no quadro de uma relação seja ela política ou educacional exclui de imediato o uso de meios externos de coerção pois quando se recorre à força é porque a autoridade em si falhou 2006 p 92 tradução nossa É muito pouco provável embora em tese possível que a juridicização das relações escolares resulte em obediência às normas por temor de uma sanção anunciada Mas ainda que o venha a fazer ela jamais se estabelecerá como produto de uma relação de autoridade Ao contrário da força que pode ser posse de um indivíduo isolado ou permanecer em potência guardada em seu corpo ou num arsenal de armas a autoridade só emerge como fruto de uma relação ela se dá nesse espaço entreoshomens e é sempre mediada por instituições E ela só se institui pelo reconhecimento de sua legitimidade pois Se a autoridade existe é em função da convocação ou da invocação dessa dimensão ao mesmo tempo evanescente e onipresente ligada ao papel capital do assentimento na vida social que é o reconhecimento do legítimo no interior para além de ou mesmo contra o legal Gauchet 2008 p 150 grifos nossos tradução nossa Sem essa dimensão do assentimento que confere legitimidade à assimetria de lugares institucionais a força da lei pode ensejar um mecanismo de dominação visando a produção da obediência mas jamais será capaz de instituir uma relação de 23 Apresentado pela Deputada Cida Borghetti PPPR em fevereiro de 2011 o Projeto de Lei foi aprovado por unanimidade na Comissão de Seguridade Social e Família e tem recebido o apoio entusiasmado de uma parcela significativa de professores do ensino básico Brasil 2011 Seu teor e andamento estão disponíveis em httpwwwcamaragovbrproposicoesWeb fichadetramitacaoidProposicao491406 Acesso em 18 jul 2012 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 59 autoridade Não se pode pois ao contrário do que diz a expressão corrente impor a autoridade é ela que se interpõe numa relação em que aquele que obedece o faz livremente Tal como quando seguimos os conselhos de um médico ou ouvimos as ponderações de um sacerdote a quem creditamos autoridade em função de seus conhecimentos de sua sabedoria enfim de algo cuja compreensão pode mesmo nos escapar mas a quem conferimos um lugar de autoridade porque acreditamolo capaz de um diagnóstico correto de um ajuizamento justo de um conselho apropriado Assim a autoridade manifesta o estabelecimento de uma relação de confiança fundada na credibilidade e na crença sem essa dupla referência à credibilidade do lado de quem comanda e à crença do lado de quem obedece seríamos incapazes de distinguir a autoridade da violência ou mesmo da persuasão Ricoeur 2001 p 109 tradução nossa O objeto dessa credibilidade é sempre um alguém no caráter singular de sua personalidade a quem confiamos a capacidade de nos guiar naquilo cuja compreensão nos escapa de nos orientar naquilo que ainda não dominamos de nos aconselhar em face de dilemas para os quais não vislumbramos saída Mas e esse é mais um paradoxo da noção de autoridade esse alguém a quem se confere autoridade sempre age em nome de algo que o transcende a fundação de uma comunidade política ou religiosa a herança de um saber a crença em um desígnio futuro o enraizamento histórico de uma instituição em síntese age em nome de crenças princípios e práticas que se inscrevem num tempo e num espaço comuns a uma coletividade Por isso se espera daquele a quem se credita autoridade o respeito exemplar às regras e aos princípios em nomes dos quais ele age e fala A autoridade é pois simultaneamente representativa e pessoal fundamentase em algum tipo de transcendência mas sempre necessita da presença imanente daquele que a encarna Ela fala em nome de uma comunidade mas sempre pela voz singular de um indivíduo Daí seu caráter fundamental no processo de formação educacional O mundo a que chegam os novos as crianças e os jovens a quem se educa não é imediatamente inteligível Ele é opaco estruturado a partir de práticas e valores que não são enunciados e muitas vezes nem sequer são enunciáveis dotado de linguagens cujas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 60 gramáticas nem sempre estão codificadas ou acessíveis Em meio a um complexo conjunto de heranças materiais e simbólicas já estabelecidas aqueles que são novos precisam ser acolhidos por alguém em que depositem confiança a quem creditem a tarefa de os guiar por entre demandas às quais ainda não se sentem capazes de responder por si sós por entre problemas cuja solução exige discernimento e não a aplicação mecânica de regras Creditar autoridade a alguém significa pois reconhecê lo capaz de esclarecer o obscuro fazer escolhas e apontar rumos quando ou enquanto não somos capazes de fazêlo exclusivamente a partir de nossa própria capacidade de julgar Assim reconhecer alguém como autoridade implica têlo como um exemplo ou referência por acreditar que ele saiba mais possa mais ou tenha mais experiência no trato com este mundo com suas linguagens e práticas Não se trata de uma submissão cega a outrem mas antes de uma filiação que não nos obriga embora nos submeta a uma influência em princípio desigual Uma submissão que paradoxalmente finca as bases a partir das quais alguém poderá vir a se constituir como um sujeito autônomo Isso porque quem quer que pense julgue e analise por si mesmo não o faz exnihilo Ao contrário sempre o faz a partir de referências parâmetros ou modelos de excelência enfim de autoridades internalizadas que operam como recursos reflexivos ideais a orientarem escolhas julgamentos e decisões Talvez seja a não aceitação desse paradoxo a submissão prévia à autoridade como condição da possibilidade de constituição de um sujeito autônomo que tem levado os discursos educacionais vinculados às pedagogias da autonomia ou às chamadas pedagogias não diretivas a um interminável combate programático em favor da abolição de qualquer referência a um lugar de autoridade na relação entre professores e alunos Combate que inclui até mesmo a tentativa de abolição desses termos identificados como signos de uma ordem tradicional e hierárquica Nesses discursos falase em crianças e jovens mas não em alunos em facilitadores da aprendizagem ou parceiros mais experientes mas não em professores Falase em aprendizagem ou construção de conhecimento mas não em ensino ou transmissão de um legado experiências simbólicas O efeito dessa ênfase discursiva José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 61 na ação e no pensamento do sujeito que aprende tem sido o declínio da função mediadora do ensino e da transmissão como elemento de ligação social e temporal Segundo essa modalidade de discurso pedagógico e as psicologias do desenvolvimento em que se fundamentam tudo se passa como se bastasse o contato imediato da criança com as práticas sociais e suas linguagens para que estas venham a se revelar na complexidade de seus usos de seus sentidos e de seus mecanismos de validação intersubjetiva Daí o caráter supostamente desnecessário obsoleto mesmo da referência a alguém a quem confiar a responsabilidade por sua iniciação na herança simbólica de que se constitui o mundo humano Daí também a crença na incompatibilidade entre ensino autoridade e autonomia do sujeito É a adesão a essa perspectiva que leva Jean Houssaye 2007 p 181 tradução nossa a afirmar que longe de ser indispensável a autoridade é o signo do fracasso da educação escolar pois não há problema de autoridade na escola É a autoridade em si que cria os problemas Na visão do autor como na maior parte dos discursos pedagógicos contemporâneos24 o exercício da autoridade é identificado com práticas marcadas pela violência e pela coerção e ainda o exemplo de uma recusa ao diálogo Ibidem p 1523 portanto incompatível com uma formação voltada para a autonomia e a liberdade dos educandos Uma escola liberada da autoridade deveria se dedicar a construir relações simétricas e desenvolver processos de socialização e novas formas de relação com o saber Houssaye 2007 p 181 Assim ela dispensaria a mediação do professor e da instituição como fontes legítimas de orientação e justificação de escolhas regras ou princípios Em síntese a emergência e a centralidade da noção de aprendizagem como construção pessoal do saber pretende tornar obsoleta a noção de transmissão por meio do ensino Ora por mais que reconheçamos a pertinência das críticas às formas coercitivas e violentas de socialização escolar e à inadequação de práticas pedagógicas que venham a ferir a dignidade dos alunos o fato é que o desprezo pelo papel de um mediador autorizado que se interponha entre o saber e o sujeito que aprende seja o 24 Na conclusão de sua obra Houssaye chega a afirmar que a pedagogia pode mesmo ser lida como essa imensa tentativa constantemente renovada de excluir a autoridade do ato educativo 2007 p 181 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 62 professor ou a própria instituição tende a ignorar que a educação implica um vínculo com a temporalidade do mundo humano que ela não se desenvolve a partir de um vazio histórico mas de uma experiência de intercâmbio entre gerações que ocupam lugares distintos no mundo Bárcena 2009 p 113138 Esse intercâmbio intergeracional pode tomar várias formas da impregnação cultural por meio da convivência cotidiana entre gerações à sistematicidade do ensino escolar Mas ele sempre supõe a presença pessoal de um mediador autorizado capaz de familiarizar os que são novos no mundo com as sutilezas a opacidade e as ambiguidades inerentes ao caráter simbólico do universo humano O reconhecimento do vínculo de pertencimento a um universo cultural anterior que se impõe aos recém chegados como um mundo comum que os transcende e no qual devem ser iniciados não impede o florescimento de um sujeito autônomo é antes sua precondição Como ressalta Gauchet 2002 p 33 tradução nossa o sujeito destinado à posse de si mesmo o sujeito autônomo almejado pelos discursos pedagógicos modernos deve ser instituído Ele precisa passar por um outro para aceder a si mesmo Esse sujeito não se encontra pois como uma potencialidade psicológica que antecede o processo formativo é antes a expressão de um ideal político a orientar os objetivos da formação educacional Por isso postulálo na origem é na verdade uma forma de impedir seu surgimento Ibidem p 41 Ao rejeitar a autoridade escolar como traço constitutivo da experiência formativa as pedagogias da autonomia não a eliminam do contexto social mas apenas favorecem a emergência e a consolidação de simulacros de autoridade em novos espaços e personagens sociais como os ídolos midiáticos ou os profetas da autoajuda É uma renúncia de consequências políticas particularmente graves uma vez que incidem sobre a representação que uma instituição pública de presença capilar nas sociedades modernas tem acerca de si mesma e sobre a legitimidade de sua tarefa cotidiana e de seus compromissos sociais É verdade que sob a égide do poder estatal e dos ditames do mercado o significado público da formação educacional tem muitas vezes cedido passo à mera José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 63 conformação social a partir de práticas impregnadas de coerção e violência É igualmente verdadeiro que muitas vezes se lança mão do termo autoridade para justificar o que não passa de uma tentativa dissimulada de dominação e produção de uma obediência cega e sem sentido Como alerta Gauchet 2002 p 45 tradução nossa ao comentar esses descaminhos conhecemos bem as patologias da autoridade é preciso rejeitar inequivocamente suas manifestações no domínio das instituições escolares mas temos muito o que aprender acerca das patologias de uma pretensa liberdade que ao dissolver as mediações necessárias na verdade deixa os indivíduos à mercê de uma autoridade invisível num mundo que se lhes escapa e os manipula Assim não obstante a validade das denúncias acerca de suas patologias ou das formas coercitivas que pretendem substituíla a mera e imediata rejeição de qualquer relação de autoridade bem como as tentativas de sua restauração a partir de modelos que se dissiparam em nossa experiência histórica acaba por nos impedir de enfrentar a tarefa de pensar um lugar para a autoridade a partir da especificidade de nossa condição histórica Em sua pressa para restaurar um passado ou em sua urgência de rejeitálo a maior parte dos discursos educacionais contemporâneos parece ignorar o fato de que em meio a uma crise não tem muito sentido agirmos como se apenas houvéssemos nos extraviado de um caminho certo e estivéssemos livres para a qualquer momento retomar o velho rumo Não se pode onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno seguir em frente tampouco simplesmente voltar para trás Tal retrocesso nunca nos levará a parte alguma exceto à mesma situação da qual a crise acabou de surgir Por outro lado a mera e irrefletida perseverança seja pressionando para a frente a crise seja aderindo à rotina que ingenuamente acredita que ela não afetará sua esfera particular de vida só pode conduzir à ruína visto que se rende ao curso do tempo para ser mais precisa ela só pode aumentar o estranhamento do mundo pelo qual já somos ameaçados de todos os flancos Ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo podese mesmo admitir que presumivelmente nos defrontemos aqui com um processo automático desde que não esqueçamos que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos Arendt 2006 p 191 tradução nossa José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 64 Nesse sentido refletir sobre a crise da autoridade em seu vínculo essencial com a temporalidade à luz dos problemas do presente é uma forma de recusar ao mesmo tempo tanto a restauração como o banimento sumário do lugar de autoridade nas relações educativas Adotar uma tal perspectiva implica considerar a especificidade histórica da experiência política romana que marcou o surgimento do conceito de autoridade Implica ainda reconhecer as profundas transformações que têm afetado as formas pelas quais pensamos e descrevemos as experiências com o tempo e a autoridade a partir da era moderna mas não se resume ao reconhecimento da historicidade do conceito nem à variedade de experiências com ele identificadas a despeito da inegável importância de ambos os aspectos Vincular a noção de autoridade à temporalidade implica sobretudo considerar que a durabilidade e a renovação de um mundo comum dependem da natureza das relações intergeracionais que nele se estabelecem É pois do intercâmbio entre gerações que já se encontram no mundo e as que nele acabam de aportar que emerge uma ligação temporal capaz de dar algum grau de durabilidade ao mundo comum pois se o mundo deve conter um espaço público não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos mas tem de transcender a duração da vida de homens mortais Arendt 2010 p 67 Esse caráter transcendente e durável do mundo público não se confunde com uma representação de tempo que o concebe como um desenvolvimento contínuo e homogêneo a exemplo da concepção moderna de progresso histórico Ao contrário em Arendt a preocupação com a durabilidade do mundo público admite rupturas e assume a fragilidade como marca do mundo humano Por ser produto do engenho humano e de sua capacidade de fabricação e instituição o mundo comum está sempre e irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo a menos que existam seres humanos determinados a intervir a alterar a criar aquilo que é novo Arendt 2006 p 189 tradução nossa Durabilidade e ruptura não se excluem antes se complementam Só num mundo dotado de durabilidade pública um mundo que acolhe em seu seio os novos que os transforma em herdeiros autorizados de seu passado e agentes responsáveis por seu futuro é possível instituir o novo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 65 Sem permanência nem durabilidade não há início nem fim só o fluxo contínuo de um ciclo vital que se perpetua pela reprodução de indivíduos e pela continuidade das espécies Assim a autoridade condição da possibilidade da transmissão intergeracional vinculase às formas pelas quais uma cultura dialoga com seus antepassados e com seus sucessores É pois o caráter transcendente do mundo público e a consequente assunção da responsabilidade pela durabilidade de uma herança comum de realizações simbólicas que autoriza o lugar do educador na relação pedagógica Um lugar sempre sujeito ao frágil equilíbrio entre o legado do passado e a abertura ao futuro um lugar sempre instável em face da variedade de experiências históricas que fazem da autoridade um elo entre os educandos e um mundo de heranças e de promessas Autoridade e temporalidade da sacralidade da fundação aos desafios do presentismo A autoridade como fator decisivo numa ordem política e elemento norteador de sua prática educativa não é um fenômeno universal A palavra e o conceito de auctoritas são romanos e têm sua origem no verbo augere aumentar fazer crescer desenvolver intensificar e no substantivo auctor autor aquele que cria que dá origem ou funda o que aprova sanciona o que defende protege No plano jurídico privado da Roma republicana por exemplo é a auctoritas que assegura e assim aumenta e intensifica a validade de um ato Ao avalizálo ela não institui seu valor jurídico que já existia mas lhe atesta maior credibilidade Já no âmbito político é a auctoritas do Senado que avaliza a legitimidade de uma lei ou iniciativa que atesta sua conformidade com a tradição sua afinidade com os princípios da fundação de Roma A palavra autorizadora do Senado não se confunde com o poder potestas do povo ou dos magistrados mas tem um valor performático ao ser proferida tornase capaz de imprimir uma legitimidade que se pretende acima das disputas e dos interesses do presente Sua eficácia simbólica advém do fato de que ela se enraíza nas lições transmitidas pelo passado na grandeza do exemplo dos ancestrais e na transmissão desse legado vinculatório Noutras palavras sua eficácia derivava da José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 66 traditio a tradição romana em todas as suas complexas acepções Assim embora não tenha nem poder executivo nem caráter mandatório a auctoritas do Senado tem reconhecimento Sua palavra se legitima como uma fonte de sabedoria cristalizada no tempo pois tem a função de ligar o presente à sacralidade ancestral da fundação No âmago da política romana desde o início da República até virtualmente o fim da era imperial encontrase a convicção do caráter sagrado da fundação no sentido de que uma vez que tenha sido fundada uma coisa permanece vinculatória binding para todas as gerações futuras Tomar parte na política significava antes de mais nada preservar a fundação da cidade de Roma Arendt 2006 p 120 tradução nossa Essa vinculação do ato político à fundação não significa que as instituições conservavam uma identidade imutável de resto impossível mas que as transformações eram acompanhadas de um movimento de apropriação do passado de transformação do presente à luz da tradição ou seja da autoridade do passado como critério para as escolhas e ações do presente Daí a crença de Catão de que a superioridade da Constituição Romana deviase ao fato de ela não ser obra de um único homem nem de uma única geração mas o produto de uma pluralidade de homens ao longo de várias gerações Nesse sentido o caráter público de sua instituição derivava da pluralidade tanto em sua dimensão espacial e presente como em sua dimensão temporal e histórica por meio da apropriação que fazia do passado Era o enraizamento da experiência política romana no tempo que lhe conferia estabilidade em meio às transformações e que possibilitava que a inovação viesse a ser concebida como continuidade crescimento e aumento da fundação Era pois a autoridade do passado que criava uma comunidade política e cultural entre a fundação de Roma seu presente e todos os esforços no sentido de sua continuidade ou imortalização Ela conferia um lastro temporal à existência comum A substância da auctoritas romana é o tempo é o acréscimo temporal que produz a autoridade O tempo é autoridade E o outro nome dessa autoridade é a instituição a instituição política de um mundo comum não é só espacial por meio da edificação de um espaço público mas também temporal por meio da instituição da durabilidade do domínio público A autoridade supera desse modo a alternativa entre a José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 67 eternidade da natureza e a efemeridade da convenção Revault DAllonnes 2006 p 33 tradução nossa Assim a instituição de um domínio público e político enraizado no tempo enseja a possibilidade da durabilidade do mundo comum como uma resposta ao caráter mortal da existência humana Os homens são mortais mas Roma é imortal25 É pela preservação desse mundo das obras e instituições que o constituem como palco para a dimensão política da existência humana e da memória de feitos e palavras notáveis daqueles que o construíram que o passado se atualiza e imortaliza Sem a instituição desse elo temporal que vincula as sucessivas gerações entre si e com um mundo comum que as antecede a existência humana se resumiria à participação no sempiterno ciclo biológico vital sem ser capaz de instituir o novo e darlhe bases de permanência como um legado material e simbólico Na verdade a própria noção de geração implica essa possibilidade de transmissão e apropriação de um legado material e simbólico pois sem ele só haveria a reposição natural e contínua de membros da mesma espécie e não se poderia falar em continuidade ou ruptura entre gerações A existência de um intercambio intergeracional depende pois da transmissibilidade da experiência São as diferentes formas de se relacionar com o legado de experiências intergeracionais que marcam a atitude de uma cultura em face da autoridade Em Roma a tradição o respeito que vinculava cada sucessiva geração à fundação gerava a autoridade e transformava a verdade em sabedoria e a sabedoria portava a consistência da verdade transmissível Arendt 1987 p 168 Por essa razão embora originariamente vinculada aos domínios jurídico e político a ligação entre verdade sabedoria e a autoridade do passado acabou por ter um papel central em diversos outros âmbitos da vida romana No plano religioso por exemplo ela estava presente nos auspícios que aprovavam ou desaprovavam as escolhas dos homens como no lendário episódio em que os deuses autorizam Rômulo a fundar a cidade no Palatino Mas é no plano das relações educativas que a 25 Revault dAllonnes 2006 destaca que a fim de designar uma duração infinita que escapa ao mundo humano próxima à noção cristã de eternidade os romanos usavam o termo neutro aevum enquanto os termos perpetus e aeternus referemse à durabilidade do que é vivido pelo homem José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 68 transmissibilidade da tradição cumpre mais claramente o papel de fazer da autoridade o elo a vincular o presente e o porvir ao passado e aos ancestrais Daí a importância educativa que os romanos atribuíam aos mitos fundacionais e às narrativas acerca dos grandes homens do passado os maiores cuja grandeza deveria servir como modelo aos que acabavam de chegar ao mundo Um princípio formativo que encontra sua síntese nas palavras de Políbio para quem educar os mais jovens era simplesmente fazervos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados Arendt 2006 p 191 tradução nossa Eram a reverência ao passado e a firme crença de que suas lições iluminavam o presente e estendiam seu valor às gerações futuras que autorizavam o educador a se constituir em mediador legítimo entre a herança simbólica ancestral e aqueles que dela precisavam se aproximar a fim de ascender plenamente à sua condição de herdeiros e continuadores de uma cultura ou seja de ascender à sua humanitas Essa forma de se conceber a relação entre passado tradição e autoridade sobreviveu ao colapso de Roma O cristianismo deulhe um novo conteúdo o Novo Testamento como narrativa da fundação a hagiografia como lição exemplar mas sem pôr em questão os pressupostos sobre os quais se assentara a noção de autoridade fundada na tradição no caráter exemplar de vidas e eventos do passado26 E mesmo na era moderna não obstante a profunda diferença de sua atitude em relação ao passado é possível encontrar formas residuais desse tipo de ligação temporal como fundamento da autoridade As narrativas fundacionais dos Estados nacionais são um claro exemplo da persistência desse caráter autorizador dos princípios associados ao ato instituinte de uma comunidade política Tomese como exemplo o discurso de posse de Barack Obama na presidência dos Estados Unidos da América do Norte em 2009 Nele há inúmeras alusões à fundação e ao passado como elementos legitimadores como referências comuns capazes de aumentar e intensificar o valor simbólico de suas 26 É evidente que o cristianismo introduz também mudanças significativas na noção de autoridade como a transposição de sua fonte última para um plano que transcende o mundo humano ou ideia de uma sanção futura como elemento coercitivo Contudo interessa aqui ressaltar que a despeito dessas profundas transformações ele mantém a mesma atitude de reverência ao passado e a mesma crença em seu papel formativo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 69 escolhas inserindoas na continuidade desse espírito inaugural Assim Obama 2009 se refere reiteradamente ao caráter orientador dos documentos fundacionais e alude à necessidade de se respeitarem os sacrifícios dos ancestrais e a atitude corajosa dos pais fundadores que mesmo em meio a lutas ameaçadoras jamais abriram mão do respeito à lei e aos direitos humanos É pois a evocação de um modelo fixado em narrativas de um passado referencial os pais fundadores na América do Norte ou os libertadores na América Latina ou a revolução ou a proclamação da república que autoriza os atos do presente É a alegada vinculação a um episódio instituinte ou aos que são considerados responsáveis por ele que legitima compromissos que dá crédito a princípios e valores que se querem transcendentes às contingências do presente e às idiossincrasias pessoais é o passado reconhecido como referência que produz autoridade Mas o reconhecimento da presença residual da autoridade fundada na tradição não deve elidir o fato de que pelo menos desde a consolidação da modernidade a ideia de sacralidade do passado e de seu caráter vinculante em relação às novas gerações passa a ser objeto de uma crítica sistemática e radical Os tempos modernos e em especial o Iluminismo não têm de si uma imagem de continuidade ou simples renovação em relação ao passado Ao contrário sua autoimagem é antes ligada à vontade de instituição do novo de uma ruptura com a autoridade do passado À autoridade do passado opõese a autoridade da razão que se crê emancipada ou ao menos em via de emancipação de toda sorte de grilhões de uma perpétua menoridade a impedir os homens de pensar por si mesmos Kant 1985 p 102 No plano político há uma crescente rejeição de qualquer justificativa do poder assentada na transcendência de seu fundamento ou na sacralidade do passado A noção de contrato social fruto do assentimento de indivíduos iguais em direitos e semelhantes pela natureza engendra a progressiva recusa de toda sorte de hierarquias previamente fundadas numa suposta ordem natural como as distinções por nascimento ou na transcendência de uma tradição políticoteológica Mais do que um princípio a ordenar o funcionamento das instituições políticas a igualdade de condições transformase num ideal social numa ideia geradora que segundo José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 70 Tocqueville 1985 p 57 tradução nossa acaba por atrair para si todos os sentimentos e todas as ideias como um grande rio em direção ao qual cada riacho parece correr Assim a democracia não se limita a uma forma de governo mas passa a ter um valor simbólico extensivo a todos os domínios da vida social e é evocada como valor capaz de legitimar a busca da efetivação da igualdade universal de direitos e oportunidades27 O princípio da igualdade universal é evidente não abole as relações de dominação nem as desigualdades sociais mas nelas introduz um elemento de arbitrariedade uma vez que os lugares sociais não são mais fixados pelo nascimento nem por uma ordem estável e tida como transcendente A potencial mobilidade social implicada na noção de igualdade de condições significa que ao menos em princípio o indivíduo pode passar de uma posição a outra na hierarquia social que sua aspiração a ocupar um novo lugar é sempre legítima a despeito dos impedimentos concretos para sua realização Desse modo a aceitação da igualdade como princípio axiológico e direito universal não aparece como incompatível com as desigualdades de fato cuja origem e legitimidade passam a ser atribuídas a outros fatores como o mérito individual Ora em que pese seu caráter mais programático e imaginário do que real a expansão do ideal igualitário moderno implicará um conflito direto com a pressuposição de uma assimetria legítima como precondição de todas as formas de intercâmbio entre gerações E isso não só no sentido óbvio de que ele engendra uma negação do caráter hierárquico que presidia tais relações mas também em decorrência do fato de que seu desenvolvimento foi solidário com uma profunda transformação na natureza do vínculo temporal que regia as relações intergeracionais Para Tocqueville 1985 p 10 tradução nossa o caráter igualitário e individualista da democracia moderna implica também uma profunda transformação nos laços que unem as gerações entre si levando os homens a perderam o elo com as ideias de seus antepassados ou a não mais se 27 Há nesse sentido uma flagrante distinção entre os ideais moderno e antigo de igualdade A Grécia democrática a igualdade era um atributo exclusivo das relações políticas e convivia com a ideia do caráter natural de todas as formas de hierarquia e dominação entre homens e mulheres entre senhores e escravos etc A postulação moderna de uma igualdade universal convive com as desigualdades de fato mas recusalhes uma legitimidade natural abrindo espaço para toda sorte de questionamentos a desigualdades que não se devam a um suposto mérito individual José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 71 preocuparem com seu curso e destino Ao equipararemse em direitos a todos os seus semelhantes vivos os homens se equiparam também àqueles que os precederam a seus ancestrais que não mais determinam seu lugar no mundo Seu valor deixa de ser por si exemplar para ser compreendido à luz de um processo de desenvolvimento contínuo substituise a reverência ao passado pelo culto ao futuro como fonte de autorização Tecese assim no seio da era moderna uma nova forma de se traduzir e de se ordenar a experiência do tempo uma nova maneira de se articular o presente o passado e o futuro e de lhes atribuir um sentido ou seja um novo regime de temporalidade Hartog 2012 p 147 tradução nossa No lugar de histórias exemplares de um tempo pretérito entra em cena a História no singular concebida como um processo homogêneo linear e contínuo Diferentemente das histórias dos eventos de um mundo específico e de seus agentes como o romano ou o cristão a História não tem fundação é um processo que se estende ao infinito e cujo sentido na dupla acepção de significado e direção deve ser compreendido e captado em sua totalidade Não é mais o passado que ilumina o presente e se reafirma no futuro é o sentido que se atribui ao desenvolvimento histórico a teleologia de um progresso que empresta à infinidade de eventos aparentemente aleatórios um sentido articulado Na historia magistra o exemplar ligava o passado ao futuro por meio do modelo a ser imitado Com o regime moderno o exemplar em si desaparece para dar lugar ao que não mais se repete O passado é por princípio ou o que dá no mesmo por posição ultrapassado Se ainda há uma lição da história ela vem do futuro e não mais do passado Ela está num futuro que emergirá como ruptura com o passado ou ao menos como diferente dele Hartog 2012 p 145146 tradução nossa A era moderna recusa o caráter exemplar do passado e sua autoridade sobre o presente como fonte legitimadora da ação educativa Mas essa recusa não implica o abandono da responsabilidade pelo vínculo temporal como eixo articulador do intercâmbio intergeracional ela o transporta para o futuro É o sentido do devir histórico o fim telos para o qual concorre o progresso que passa a autorizar o ato educativo e dotálo de um significado A educação passa a ser concebida como preparação para um destino histórico seja ele vislumbrado como a superação de um José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 72 modo de produção ou como o advento de uma era marcada pela positividade da ciência e pelo desenvolvimento tecnológico como processo de emancipação política ou de expansão ilimitada da produção e do consumo Daí a profusão dos slogans e máximas segundo as quais a educação é a condição para a plena realização do futuro já não importa formar jovens dignos de seus antepassados tratase de preparálos para fazer face às novidades do futuro A essa tarefa a escola moderna parece inicialmente responder de uma forma singular e paradoxal sem recusar como finalidade a preparação do indivíduo autônomo e comprometido com o devir histórico ela conserva o legado da tradição como meio para sua realização É pelo acesso à cultura letrada a uma herança simbólica enraizada em saberes linguagens e práticas das quais se crê legítima difusora que a escola vislumbra sua forma peculiar de cumprir uma função pública e de se colocar à altura do vínculo histórico que lhe foi confiado pela era do progresso Na escola moderna era a força do passado que autorizava a construção do futuro É só com a crítica da crença no progresso com a ascensão do que Hartog 2003 p 156 tradução nossa classifica como presentismo o progressivo esvanecimento do horizonte futuro por um presente cada vez mais adensado hipertrofiado que o próprio sentido formativo da transmissão de um legado de experiências simbólicas surge para os educadores como um desafio incontornável A emergência do totalitarismo a ameaça atômica e ambiental o esfacelamento dos estados nacionais não representaram só a ruptura da tradição engendraram também a desconfiança no futuro como um tempo de promessa Sob a pressão de exigências cada vez maiores de uma sociedade de consumo na qual as inovações tecnológicas e a busca de lucro cada vez mais rápido desenvolvese um processo vertiginoso de aceleração no ritmo de obsolescência das coisas e dos homens Ibidem p 156 e criase um regime de temporalidade em que já não é mais o passado ou o futuro que emite a luz que ilumina o presente e cria um vínculo temporal entre as gerações é o presente que ilumina a si mesmo Em maio de 1968 os muros de Paris anunciavam o sentimento de urgência do presentismo como forma de se relacionar com o tempo Tout tout de suíte Tudo já José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 73 O caráter imediatista do presente desafia a educação em seus fundamentos e métodos em sua tarefa básica de estabelecer um diálogo intergeracional capaz de imprimir durabilidade a um mundo comum e em sua crença de que o objeto por meio do qual esse diálogo se realiza é a iniciação num legado específico de experiências simbólicas Sob a pressão desse presente imediato os discursos educacionais têm procurado imprimir à prática educativa um novo sentido supostamente mais afinado com as exigências de produtividade flexibilidade e mobilidade que orientam as preocupações gerenciais e mercadológicas típicas do presentismo contemporâneo Mas o preço da eficácia de sua adaptação e conformação à temporalidade dominante pode ser a perda de seu sentido histórico Assim pensar um lugar para a autoridade nas relações escolares em seu desafio contemporâneo significa resistir à ameaça de um domínio absoluto do presentismo nessas relações sem se deixar embair pela tentação da retórica restauradora O desafio que se apresenta é o de resguardar no âmbito das relações escolares a convivência de diferentes temporalidades que se cristalizaram ao longo de seu processo de instituição histórica Se já não há mais uma tradição que se imponha como natural e necessária há sempre a possibilidade de se olhar de um novo ponto de vista o legado simbólico de que somos tributários e nele pescar pérolas cristalizadas no oceano passado das tradições para recorrer à bela imagem de Arendt e oferecêlas como uma herança possível aos novos habitantes do mundo A educação pode sobreviver à perda de confiança nos desígnios teleológicos de um futuro vislumbrado mas sempre exige a formulação de novas promessas E mesmo presos ao presente temos sempre a possibilidade de um compromisso a assunção da responsabilidade pela promoção de um elo temporal entre os educandos e o mundo comum um elo temporal que os familiarize com o instituído e assim os autorize a instituir o novo Pois na feliz formulação de Revaut dAllones começar é começar a continuar Mas continuar é também continuar a começar José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 74 IV EDUCAÇÃO E LIBERDADE DA POLÊMICA CONCEITUAL ÀS ALTERNATIVAS PROGRAMÁTICAS A diferença decisiva entre as infinitas improbabilidades sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que na dimensão humana conhecemos o autor dos milagres São os homens que os realizam homens que por ter recebido o dúplice dom da liberdade e da ação podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito Hannah Arendt Liberdade essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda Cecília Meireles Apresentação Não é preciso grande familiaridade com a produção teórica em educação para se dar conta da importância que o tema das relações entre educação e liberdade ganhou nos discursos pedagógicos a partir do início do século XX Ele aparece por exemplo em títulos de obras que se tornaram clássicas no campo como as de A S Neil 1971 1984 Carl Rogers 1978 Paulo Freire 1967 e Ivan Illich 1990 De forma menos direta mas igualmente central ele é uma preocupação recorrente nos escritos de John Dewey 1916 1938 e marca as reflexões de Theodor Adorno 2006 e Arendt 2006 sobre a educação Mas a evocação do ideal de uma formação educacional comprometida com a liberdade não se reduz a grandes obras teóricas sobre os fins e o sentido da ação educativa Ela também aparece em diretrizes curriculares e em diplomas legais que regem os princípios dos sistemas nacionais de educação A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB por exemplo estabelece em seu artigo 2o que a educação inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando seu preparo para o exercício da cidadania Brasil 1996 grifo nosso Paralelamente a essa influente produção teórica e aos discursos normativos das políticas públicas de educação projetos pedagógicos de escolas públicas e privadas e falas de professores e gestores dos sistemas de ensino passaram a recorrer frequentemente às noções de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 75 emancipação e autonomia do aluno correlacionandoas ao ideal do cultivo da liberdade a fim de estabelecer objetivos metas e procedimentos que deveriam guiar a ação educativa Ora num campo marcado por controvérsias teóricas e práticas como é o da educação chega a ser surpreendente a aceitação generalizada dos ideais de promoção e cultivo da liberdade como objetivos centrais da formação escolar É possível imaginar que pelo menos em parte esse aparente consenso derive da adesão da era moderna aos princípios de igualdade e liberdade não só como grandes diretrizes de legitimação da vida política mas sobretudo como destaca Tocqueville 1985 como valores extensivos a quase todas as dimensões da vida pessoal e social Assim tudo se passa como se só sob o signo da defesa da liberdade seja ela compreendida como um ideal social de emancipação das condições de vida de uma população como uma modalidade de relação entre professores e alunos como um atributo da vida pública e política ou ainda como uma característica da personalidade individual pudesse a prática educativa encontrar seu fundamento e sua razão de ser Mas se essa adesão generalizada revela um traço comum aos discursos políticos e pedagógicos contemporâneos ela pode também ocultar sob a superfície da unanimidade as profundas divergências teóricas e programáticas presentes em cada uma dessas formas de se conceberem a noção de liberdade e seu papel no âmbito da educação escolar Uma das possíveis consequências desse ocultamento e dessa fusão das divergências num todo unânime e aparentemente coeso é a ideia de que haveria entre os diferentes conceitos e discursos educacionais sobre a liberdade uma solução de continuidade e complementaridade como se por exemplo a liberdade entendida como atributo da vida política da vontade individual ou como uma modalidade de relação pedagógica fossem meros aspectos diversos de um mesmo fenômeno essencial No entanto a adoção dessa perspectiva unificadora e essencialista tende a obscurecer um aspecto central para a análise do problema o fato de que a polissemia presente no uso de conceitos como liberdade ou educação costuma ensejar inúmeras formulações discursivas distintas que por sua vez resultam em disputas tanto teóricas como programáticas Ora se algumas dessas formas de se conceber o José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 76 conceito de liberdade e seus vínculos com a formação educacional podem manter entre si uma relação de complementaridade há também inúmeros casos em que elas travam uma relação de mútua exclusão Assim há ocasiões em que a menos que se explicitem os diferentes pressupostos e critérios de julgamento e ação vinculados a conceitos alternativos de liberdade os discursos educacionais correm o risco de malograr tanto em seu potencial elucidativo como em suas ambições práticas Não se trata de sucumbir àquilo que Passmore 1984 denomina falácia socrática a crença de que uma discussão proveitosa sobre um tema exige definições prévias e exaustivas de seus conceitos fundamentais Basta reconhecer que a proposição de uma formação educacional comprometida com a liberdade ou a denúncia de sua suposta falta tem sido proclamada como se os objetos em tela fossem evidentes e livres de ambiguidades como se as disputas não envolvessem os próprios conceitos em torno dos quais se apresenta a controvérsia e suas possíveis repercussões práticas É importante contudo ressaltar que essa potencial ambiguidade ou polissemia não é inerente ao próprio termo liberdade mas deriva do contexto de seu uso Assim se um prisioneiro diz que almeja a liberdade o termo tem um sentido claro e dá pouca margem a ambiguidades tratase de se livrar da restrição imposta pelo cárcere No entanto essa clareza pode se dissipar em outros contextos linguísticos Num conjunto de discursos políticos por exemplo o termo liberdade pode conter acepções e expressar concepções muito diferentes e mesmo alternativas entre si Não seria de estranhar que nesse contexto um discurso que exaltasse a liberdade se referisse ora à liberdade de escolha de uma confissão religiosa ou à liberdade de iniciativa econômica ora ou à libertação de condições de vida materialmente opressivas ou à liberdade de escolha do consumidor Nos discursos educacionais a possível variabilidade em geral irreconciliável de acepções do termo liberdade não parece ser menor do que aquelas que caracterizam seu uso político Ressaltese que em ambos os casos as distinções não se limitam a eventuais aspectos complementares de um mesmo núcleo essencial Ao contrário elas espelham disputas e controvérsias teóricas e práticas e constituem o que Scheffler 1978 chama de definições programáticas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 77 O reconhecimento do caráter programático de uma definição ou de um conceito não é um problema estritamente formal pois se vincula a seu uso num contexto linguístico determinado Assim uma mesma formulação verbal pode ter uma função meramente elucidativa ou um caráter programático dependendo de seu papel em cada caso particular Ao enunciar uma definição do termo arte por exemplo um professor pode pretender apenas ilustrar seu uso corrente para um jovem que o desconhece Mas essa mesma formulação verbal pode ter outro papel numa discussão sobre critérios estéticos e o caráter artístico ou não de determinada obra Nesse caso a eventual associação do conceito de arte à noção de belo ou sublime por exemplo não visaria simplesmente elucidar um uso corrente do termo mas sim fixar parâmetros intersubjetivos a partir dos quais seria possível distinguir o que caracterizaria uma obra de arte por oposição por exemplo a um objeto de uso cotidiano ou a um mero adorno e o que deveria ficar fora desse campo conceitual Nesse sentido as disputas acerca do conceito de arte de sua vinculação ou não à noção de beleza por exemplo não se resumem a desacordos verbais ou terminológicos mas espelham embates relacionados a valores e princípios que regem práticas sociais A adoção de uma ou outra perspectiva tem consequências tanto teóricas como práticas A aceitação ou rejeição de um determinado conceito de arte pode ter implicações de ordem prática como a mudança do estatuto de determinado objeto a legitimidade de sua presença num museu e até alterações em seu valor de mercado O mesmo vale para disputas em torno de conceitos ligados a práticas pedagógicas A luta pela manutenção restrição ou dilatação do campo semântico de um conceito como o de avaliação além de uma disputa teórica pode representar também um embate prático em torno da legitimidade de certos procedimentos com evidentes consequências no campo da educação Concebêla alternativamente como atividade pontual de mensuração da aprendizagem ou como processo contínuo de diagnóstico de progressos e dificuldades envolve mais do que uma simples disputa terminológica ou conceitual pois cada uma dessas conceituações implica também a aceitação rejeição ou legitimação de certas práticas para as quais se busca adesão tanto no plano discursivo como no prático Assim o recurso a uma definição programática ou a uma conceituação persuasiva não visa a mera elucidação do uso corrente de um termo como por José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 78 exemplo quando enunciamos as características de um vírus e suas diferenças em relação à noção de célula ou organismo Ao sugerir como legítimo e adequado o uso programático de um conceito de alta relevância social propõese simultaneamente sua vinculação a um campo semântico impregnado de valores que se expressam na luta pela manutenção transformação ou restrição de práticas sociais com as quais ele pode ou deve ser identificado Pensese por exemplo nos debates marcantes na segunda metade do século XX envolvendo o conceito de democracia De um lado o termo era diretamente associado ao liberalismo político e ao pluripartidarismo de outro à igualdade de acesso a direitos sociais e à elevação das condições de vida da classe trabalhadora O cerne da disputa entre concepções alternativas e programáticas de democracia não era apenas um problema de elucidação teórica O que estava em jogo era também ou mesmo fundamentalmente a restrição ampliação ou justificação de práticas sociais que pudessem se identificar com o prestígio do termo democracia Assim em meio ao clima de disputas políticas do pósguerra os debates acerca desse conceito adquiriram um caráter programático e persuasivo O caráter programático e persuasivo das disputas conceituais no campo da educação decorre de sua necessária vinculação a questões de ordem ética e política já que nelas se busca simultaneamente legislar acerca do uso legítimo de um termo e influenciar práticas pedagógicas e políticas educacionais Mas o reconhecimento dessa dupla função dos discursos educacionais não deve elidir o fato de que como lembra Scheffler 1978 p 41 o salto que vai da definição à ação é largo e arriscado e a eventual adequação de uma formulação discursiva não deve implicar a aceitação automática de princípios de ação a ela associados Por isso é oportuno ter em mente que A educação assim como a arte a literatura e outros aspectos da vida social apresenta estilos e problemas cambiantes em resposta a condições cambiantes Estas últimas exigem decisões que determinem nossa orientação prática face a elas Tais decisões podem ser incorporadas na revisão de nossos princípios de ação ou nas nossas definições dos termos e conceitos pertinentes ou em ambas ao mesmo tempo Não existe nenhuma visão interna especial de significações que nos diga como devem ser feitas as revisões e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 79 ampliações O que importa aqui não é uma inspeção das únicas significações autênticas dos termos em disputa mas uma investigação à luz de nossos comprometimentos das alternativas práticas que estão abertas para nós bem como das maneiras de levar a efeito as decisões desejadas Scheffler 1978 p 42 Não se trata pois de buscar o autêntico conceito de avaliação ou de liberdade por exemplo cuja adequação rigor ou consistência teórica implicaria a aceitação imediata de um programa prático por ele veiculado ou a ele associado Isso porque para além da análise de aspectos teóricos e conceituais o exame de um discurso programático exige ainda a consideração do valor prático e da pertinência ética e política de suas propostas E embora interligadas essas duas dimensões de um discurso programático não se confundem de modo que a consistência ou a adequação de uma perspectiva teórica não pode ser tomada como signo do valor prático do programa de ação a ela associado Assim ao invés de nos isentar do julgamento das decorrências práticas da adesão a um determinado discurso programático a análise das disputas conceituais nos convoca a buscar clareza sobre a natureza dos diferentes embates em pauta Ao assim fazer esse tipo de análise permite romper a aparente unidade e coesão da aceitação retórica de um ideal ou objetivo educacional que se apresenta inicialmente como consensual e acima de disputas Em texto publicado na década de 1980 analisando a adesão generalizada ao ideal de democratização do ensino Azanha ressaltou que é a unanimidade na superfície e a divergência profunda acerca do significado de democracia que torna muito difícil o esclarecimento da noção derivada de ensino democrático pois não é a profissão de fé democrática que divide os educadores brasileiros mas é nos esforços de realização histórica desse ideal que as raízes das posições e das divergências se revelam 1982 p 26 Essa unanimidade na superfície a esconder divergências profundas parece ser um fenômeno recorrente nos discursos educacionais extensivo a uma ampla variedade de problemas A título de ilustração tomemos a unanimidade do clamor por uma educação de qualidade Também nesse caso tratase de uma reivindicação aparentemente consensual em favor da qual os mais diversos segmentos sociais no Brasil têm se manifestado há décadas Mesmo ignorando a variação histórica e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 80 considerando apenas alguns agentes e instituições sociais contemporâneos é pouco provável por exemplo que as federações das indústrias e as centrais sindicais o Estado e a família os professores e os responsáveis por políticas públicas tenham todos as mesmas expectativas quanto ao que poderia ser uma educação de qualidade Algo análogo se poderia dizer sobre o que nos leva a adjetivar a ação educativa como sendo de qualidade ou seja a que práticas e resultados recorremos para identificar sua presença em uma instituição e não em outra Carvalho 2013 Para alguns desses segmentos sociais a educação de qualidade deve resultar na aquisição de diferentes informações e competências que capacitarão os alunos a se tornarem trabalhadores diligentes e tecnologicamente atualizados para outros líderes sindicais contestadores cidadãos solidários ou empreendedores de êxito pessoas letradas ou consumidores conscientes Ora é evidente que embora algumas dessas expectativas sejam compatíveis entre si outras são conflitantes e mesmo alternativas pois a prioridade dada a um aspecto pode dificultar ou inviabilizar outro Uma escola que tenha como objetivo maior e portanto como critério máximo de qualidade a aprovação nos exames vestibulares de escolas de elite pode buscar a criação de classes homogêneas e alunos competitivos o que dificulta a oportunidade de convivência com a diferença e reduz a possibilidade de se cultivar o espírito de solidariedade Assim as características que identificam a qualidade numa proposta ou prática educacional podem significar fracasso ou baixa qualidade em outra Por outro lado para certas correntes de pensamento a própria ideia de que uma escola de qualidade deva aterse ao desenvolvimento de competências ou capacidades pode comprometer o ideal educativo já que em seu uso comum nenhum desses termos competência ou capacidade revela um necessário compromisso ético para além da eficácia Platão 1972 por exemplo argumenta nesse sentido em seu diálogo Górgias um orador competente pode usar sua capacidade para persuadir uma comunidade a aceitar tanto uma lei justa como uma lei injusta Assim uma capacidade ou competência se mede pela eficácia dos resultados mas o mesmo não vale para o cultivo de um princípio ético Podese dizer que alguém é um orador competente mas usa sua competência para o mal embora não tenha sentido José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 81 afirmar que alguém é justo para o mal pois neste caso sua ação deveria ser classificada como injusta Assim a ação educativa de qualidade é em Platão essencialmente de natureza política e ética e não apenas um instrumento eficaz no que concerne ao desenvolvimento de competências ou capacidades Embora sumária esta análise acerca de uma disputa conceitual e de suas possíveis consequências práticas ilustra o tipo de dificuldade e a variedade de critérios que emergem ao se refletir sobre as consequências do caráter programático dos discursos educacionais E é evidente trazem à tona a natureza das disputas que se ocultam sob a aparente unanimidade em torno dos discursos que proclamam o cultivo da liberdade como um dos objetivos centrais da formação escolar Liberdade uma polêmica conceitual que gera critérios alternativos de julgamento Antes de analisar seus usos programáticos nos discursos educacionais contemporâneos convém nos debruçarmos sobre alguns aspectos centrais da polêmica conceitual em torno da própria noção de liberdade Para tanto adotaremos como fio condutor inicial da reflexão uma interrogação aparentemente simples Era Sócrates um homem livre Esse procedimento nos permite de um lado discutir certos problemas cruciais que decorem da variedade de conceitos de liberdade e de outro fazer uma análise que os considere tanto em suas formulações mais gerais e abstratas quanto na condição de critérios alternativos aos quais recorremos para ajuizar o significado de eventos históricos ou narrativas de vida como a de Sócrates Em face dessa questão um grego que lhe fosse contemporâneo não hesitaria em responder afirmativamente Sócrates era um cidadão ateniense com direito a voz e voto nas assembleias gozava da isonomia e da isegoria conferida aos homens livres e podia participar da vida pública Assim vivenciava a liberdade não como um atributo de seu pensamento ou de sua vida interior mas como uma experiência junto a seus concidadãos com os quais se reunia debatia e agia na praça pública a ágora e nos ginásios Ele não era um escravo condenado a permanecer na obscuridade de uma vida José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 82 privada28 e restrita à produção para a satisfação das necessidades do processo vital nem se encontrava sob o jugo de um tirano Era pois livre porque cidadão de uma polis livre Sobre essa concepção de liberdade concebida como atributo da vida política afirma Arendt Antes que se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade a liberdade era entendida como o estado do homem livre que o capacitava a se mover a se afastar de casa a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas em atos e palavras Essa liberdade era evidentemente precedida da liberação para ser livre o homem deve ter se liberado das necessidades da vida O estado de liberdade porém não se seguia automaticamente ao ato de liberação A liberdade necessitava além da mera liberação da companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado e também de um espaço público comum para encontrálos um mundo politicamente organizado em outras palavras no qual cada homem livre poderia inserirse por atos e palavras 2006 147 tradução nossa grifos nossos Assim para Arendt é a partir de nossa experiência com os outros e não do diálogo interior em que um sujeito isolado delibera e escolhe autonomamente que tomamos consciência da liberdade como uma potencialidade da vida política Mas a eclosão da liberdade como fenômeno tangível e público exige mais do que a mera reunião de um coletivo de indivíduos associados Ela requer a existência de um mundo comum que possa servir de palco para a ação e o discurso dos homens É pois na qualidade de um fenômeno mundano que a liberdade pode se realizar como a faculdade humana de trazer à existência aquilo que é novo de fazêlo irromper como um milagre29 capaz de imprimir um rumo até então inesperado ao fluxo dos 28 No contexto da vida pública ateniense a noção de privado idion não se vinculava prioritariamente como passa a acontecer na era moderna à posse de uma propriedade ou à eventual riqueza que ela pode auferir a seu proprietário O termo privado indicava sobretudo um estado de privação Os escravos e as mulheres condenados a permanecer no âmbito privado de sua existência estavam privados da luz pública do mundo comum privados da possibilidade de experimentar a pluralidade como marca do mundo público privados de agir em meio a seus iguais Nesse sentido estavam privados da liberdade como atributo da vida pública Essa dimensão de privação da vida privada passou a ser ignorada a partir da ascensão do critério econômico como o único parâmetro legítimo para a distinção entre os domínios do público e do privado como vimos no capítulo 1 Arendt 2010 cap II 29 Dada sua frequente conotação religiosa a presença do termo milagre no texto de Arendt pode causar estranhamento Não obstante apesar de citar o Evangelho e os ensinamentos de Jesus de Nazaré Arendt se interessa não especificamente por seu sentido religioso e sobrenatural mas por suas implicações filosóficas podemos negligenciar aqui as dificuldades relativas às múltiplas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 83 acontecimentos Ao recuperar essa dimensão fenomênica da liberdade vivida como uma experiência compartilhada e não como uma faculdade da vida interior de cada homem é que Arendt irá tecer seu conceito de liberdade em contraposição à tradição metafísica que a concebeu como um atributo do pensamento e da vontade mas não da ação Foi só a partir do surgimento e da difusão das noções estoica e cristã de liberdade interior concebida como faculdade do espírito que possibilita ao sujeito a deliberação e escolha em face das contingências da vida ou de um dilema ético que a liberdade deixou de ser vista como uma experiência política que ocorre no espaço entreoshomens para se alojar na interioridade da alma humana30 Identificada inicialmente com o livrearbítrio e posteriormente com a faculdade da vontade responsável por arbitrar entre inclinações alternativas a liberdade deixou de se vincular ao poder de ação concertada entre homens para ser concebida como uma modalidade de relação que um indivíduo isolado estabelece com sua consciência ou sua vontade E qualquer que seja a importância desse fenômeno do ponto de vista do sujeito individual ele não pode ser considerado um fenômeno político em sentido estrito porque o diálogo interior requer o isolamento e concerne ao homem no singular isto é ao homem na medida em que seja o que for não é um ser político Arendt 2010 p 5 e o domínio do político diz respeito à pluralidade dos homens que vivem se movem e agem em um mundo comum e não à relação de um homem com sua consciência ou sua vontade Assim só vinculada à ação no âmbito de um mundo comum a liberdade pode ser concebida como a razão de ser da política Arendt 2006 p 149 que dela podemos esperar a possibilidade de ruptura com processos históricos cristalizados em acepções do termo e nos referir apenas às passagens em que os milagres claramente não são eventos sobrenaturais mas somente o que todos os milagres devem ser sempre interrupções de uma série natural de acontecimentos de algum processo automático em cujo contexto constituam o absolutamente inesperado Arendt 2006 p 166 grifos nossos 30 Essa visão de liberdade como um atributo da vontade que independe das condições exteriores do mundo aparece de forma clara em Epicteto apud Arendt 1992 p 244 grifo nosso Tenho que morrer Tenho que ser aprisionado Tenho que sofrer o exílio Mas tenho de morrer gemendo Alguém pode impedirme de ir para o exílio com um sorriso Acorrentarme Vais acorrentar minha perna sim mas não minha vontade não nem mesmo Zeus pode conquistála José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 84 favor da erupção de um novo começo que com seu caráter imprevisto e imprevisível salva o mundo da inevitável ruína provocada pelo desgaste do já instituído Entregues a si mesmos os assuntos humanos só podem seguir a lei da mortalidade O que interfere nessa lei é a faculdade de agir uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana Prosseguindo na direção da morte o período de vida do homem arrastaria inevitavelmente todas as coisas humanas para a ruína e a destruição se não fosse a faculdade humana de interrompêlo e iniciar algo novo uma faculdade inerente à ação que é como um lembrete semprepresente de que os homens embora devam morrer não nascem para morrer mas para começar Arendt 2010 p 307 grifos nossos Assim ontologicamente radicada no homem como faculdade a liberdade se manifesta como um fenômeno tangível e público na ação que ao romper com o passado cria o novo traz à luz algo que não se reduz a uma consequência necessária desse passado nem à atualização de uma potencialidade previamente vislumbrada mas que como um milagre interrompe um processo automático de forma inesperada A violência sabemos gera violência que gerará cada vez mais violência a não ser que ao invés de reagir os homens venham a agir rompendo a expectativa da reprodução e criando uma nova modalidade de convivência É no momento em que se afirmam em atos e palavras como capazes de romper com uma herança que se cristaliza em automatismos sociais que os homens exercem a liberdade pois os homens são livres diferentemente de possuírem o dom da liberdade ao agir nem antes nem depois pois ser livre e agir são uma mesma coisa Arendt 2006 p 151 tradução nossa grifo do original Não há pois na perspectiva do pensamento político de Arendt algo que se possa assemelhar a uma conquista definitiva da liberdade ou a um lugar onde ela se possa instalar de forma estável e duradoura E por mais importante que seja a estabilidade de uma estrutura política que favoreça seu aparecimento no mundo ela não reside no já instituído mas na sempre renovável possibilidade instituinte da ação Nesse sentido o pensamento de Arendt afastase significativamente da visão liberal que identifica a liberdade com a existência de um ordenamento jurídico capaz de proteger os direitos civis e as liberdades individuais Não que a garantia dessas José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 85 liberdades seja desimportante para a vida política ou para a possibilidade do aparecimento da liberdade em seu seio mas tal como no caso da liberação da submissão a outrem ou da premência das necessidades do ciclo vital direitos e liberdades civis podem ser considerados précondições importantes para a ação mas não se confundem com o exercício da liberdade como atributo da vida política Seu papel é antes o de proteger o indivíduo inserido numa ordem social de possíveis arbitrariedades e abusos do poder Porém no contexto do pensamento de Arendt as liberdades civis estão fundamentalmente vinculadas à proteção do indivíduo no que concerne às suas escolhas privadas enquanto a liberdade política é essencialmente pública e vinculase à participação nos assuntos públicos Canovan 1992 p 212 Essa distinção entre a liberdade como capacidade de ação política e como garantia de proteção das escolhas privadas do indivíduo corresponde em grande medida à clássica contraposição que Benjamin Constant 1985 afirma existir entre a liberdade dos antigos e a dos modernos E ele identifica esta última com a proteção que uma ordem jurídica oferece a cada um dos cidadãos que se encontra sob a égide de suas leis O que em nossos dias um inglês um francês um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade É para cada um o direito de não se submeter senão às leis de não poder ser preso nem detido nem condenado nem maltratado de nenhuma maneira pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos É para cada um o direito de dizer sua opinião de escolher seu trabalho e de exercêlo de dispor de sua propriedade até de abusar dela de ir e vir sem necessitar de permissão e sem ter que prestar contas de seus motivos ou de seus passos É para cada um o direito de reunirse a outros indivíduos seja para discutir sobre seus interesses seja para professar o culto que ele e seus associados preferirem seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações com suas fantasias 1985 p 81 grifos nossos Ora é evidente que da perspectiva desse conceito de liberdade a resposta à pergunta anterior Era Sócrates um homem livre seria provavelmente outra Poder seia objetar que apesar de cidadão de uma polis democrática Sócrates não tinha nenhuma garantia para exercer livremente seu direito de crítica afinal ela o levou à José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 86 condenação e à morte o que poderia ser interpretado como um claro constrangimento à liberdade individual de consciência escolha e expressão Nessa perspectiva a capacidade de ação política perde a primazia como critério indicativo da liberdade que passa a se fundar na existência da proteção dos direitos individuais Analisando a condenação de Sócrates a partir de uma concepção de liberdade como atributo da vida política o caráter eventualmente injusto do veredito e o excessivo rigor da pena que se lhe impôs poderiam pôr em questão os critérios e procedimentos jurídicos adotados mas não seu estatuto de homem livre que agia entre iguais Já a partir de uma concepção que identifica a liberdade com a garantia e a proteção de direitos individuais não se trata apenas de erro jurídico ou de inadequação de critérios mas do cerceamento da própria liberdade de cada um Nesse sentido a concepção de Constant não só descreve o que um inglês um francês e um habitante dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade mas apresenta critérios por meios dos quais se podem avaliar e julgar acontecimentos históricos ordenamentos jurídicos e formas de vida política Generalizada a partir da consolidação das democracias liberais sua perspectiva identifica a liberdade como atributo de um indivíduo de cada um a quem se garante a não interferência em suas escolhas pessoais Tratase pois da liberdade de cada um em relação ao outro e não da liberdade que requer a presença de outros para se atualizar como forma de ruptura com um passado cristalizado Daí a identificação das liberdades civis modernas com a noção de liberdade negativa cuja defesa vincula se às garantias de não interferência do Estado ou da sociedade em âmbitos fundamentais da vida de um indivíduo Como destaca I Berlin 2002 um dos maiores expoentes dessa visão de liberdade a defesa da liberdade consiste na meta negativa de evitar a interferência Essa é a liberdade como foi concebida pelos liberais no mundo moderno desde Erasmo aos nossos dias Toda reivindicação de liberdades civis e direitos individuais todo protesto contra a exploração e a humilhação contra o abuso da autoridade pública ou a hipnose de massa do costume ou da propaganda organizada nasce dessa concepção individualista e muito controvertida acerca do homem p 262 grifo nosso José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 87 É importante frisar que não se trata da mera substituição histórica de um conceito por outro tido como mais adequado ou preciso como no caso do conceito de movimento na física moderna em relação à aristotélica Tampouco de duas concepções que por incidirem sobre aspectos diferentes da experiência de liberdade podem ser justapostas ou harmonizadas sem grandes conflitos Embora não sejam logicamente incompatíveis essas concepções de liberdade como atributo da vida política ou garantia de não interferência nas liberdades individuais representam perspectivas históricas alternativas engendradas por modos de vida diferentes e alimentadas por princípios muitas vezes conflitantes Assim por exemplo segundo Arendt no seio do pensamento liberal o domínio do político acabará por se reduzir ao âmbito do governo dos indivíduos e da gestão salvaguarda e expansão da produção econômica o que obscurece a política como forma de cuidado com o mundo comum e com a teia de relações que os homens nele estabelecem Essa sujeição do político ao econômico terá como consequência um deslocamento na própria forma de se conceber a liberdade que deixa de ser um atributo da vida pública para se transformar em liberdade da política pois o que se espera de um governo é que ele libere os cidadãos da política para que eles possam se dedicar à prosperidade econômica e a seus interesses privados Por isso para o pensamento liberal quanto menor o espaço ocupado pelo político maior é o domínio deixado à liberdade já que em sua perspectiva o grau de liberdade de uma comunidade política qualquer pode ser estimado pelo livre escopo que ela garante a atividades aparentemente não políticas Arendt 2006 p 148 tradução nossa Fica claro com esse exemplo que tratar a liberdade alternativamente i como processo de deliberação e escolha do sujeito no curso de um diálogo interno com sua consciência ii como um ordenamento jurídico que garante proteção aos direitos individuais ou iii como possibilidade da eclosão do novo por meio da ação política tem repercussões que ultrapassam as meras divergências terminológicas Identificar a liberdade um termo impregnado de forte carga emotiva positiva com cada um desses campos conceituais específicos implica uma forma diferente de compreender e José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 88 atribuir sentido às experiências humanas de pensar as relações que estabelecemos com nossa consciência e com as formas pelas quais interagimos no mundo E embora eles não tenham necessariamente uma intenção programática a adesão aos princípios de cada um desses campos conceituais pode ter um impacto considerável no modo pelo qual pensamos e nos posicionamos em face dos desafios de viver juntos em um mundo comum aí compreendido o desafio de pensar o sentido e as formas de intercâmbio entre as diferentes gerações que coabitam e se sucedem nesse mundo É evidente que as concepções apresentadas aqui não esgotam a diversidade de conceitos de liberdade e as perspectivas de análise que deles podem emergir O que se buscou com essa breve exposição foi apenas ilustrar os possíveis vínculos entre os campos conceituais em que elas se desenvolveram e a forma como a eles recorremos para compreender e julgar eventos históricos e vidas humanas discutindo seu estatuto de livres ou procurando reconhecer a natureza de seu compromisso com o cultivo e a promoção da liberdade No caso específico dos discursos educacionais a análise da diversidade de formas e perspectivas que esse tipo de compromisso pode tomar requer ainda uma cautela adicional Se ao historiador ou ao teórico da política o conceito de liberdade pode fornecer categorias a partir das quais ele busca compreender uma experiência ou ajuizar seu sentido no campo dos discursos educacionais a adoção de uma concepção de liberdade costuma associarse também à difusão de diretrizes e preceitos práticos a ela vinculados Isso porque como afirma Durkheim 1965 a pedagogia caracterizase como uma arteprática na qual os aportes teóricos tanto dão inteligibilidade ao real como fornecem possíveis princípios e diretrizes capazes de inspirar propostas e promover adesões a práticas pedagógicas a eles vinculadas31 31 Evidentemente essa vinculação não necessária do ponto de vista lógico Um princípio não carrega em si as regras de sua aplicação daí a possível variedade de práticas inspiradas em um mesmo conjunto de princípios teóricos como no caso do construtivismo educacional Não obstante não é raro que a uma corrente teórica se associe um conjunto de práticas mais ou menos difusas de forma que esses dois aspectos apareçam frequentemente como se fossem imediatamente vinculados A esse respeito ver A teoria na prática é outra Carvalho 2013 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 89 Liberdade como prática pedagógica o discurso das pedagogias da autonomia Dentre a diversidade de discursos pedagógicos que proclamam ter um compromisso com os ideais de liberdade Singer 2010 p 15 há um conjunto de propostas e experiências que não obstante a diversidade de pressupostos e perspectivas teóricas em que se fundam têm sido agrupadas como integrantes de uma mesma tendência pedagógica geral Sua influência ao menos no que concerne às práticas discursivas tem sido de tal forma avassaladora entre educadores que Yves de la Taille chega a afirmar que de todas as inovações educacionais de que tivemos notícias durante o século XX as chamadas escolas democráticas nas quais os alunos criam regras de convívio e escolhem o que querem estudar foram as que mais intrigaram encantaram ou assustaram La Taille 2010 p 11 De fato ainda que sua presença nas redes públicas e privadas seja numericamente irrelevante32 as ditas escolas democráticas ou as pedagogias não diretivas como as denomina criticamente Georges Snyders 2001 transformaram se na principal referência teórica atual para a discussão acerca dos vínculos entre a formação escolar e o cultivo da liberdade Popularizadas no Brasil a partir da segunda metade do século XX essas teorias gozam desde então de imenso prestígio entre educadores e intelectuais ligados à educação Não se trata como reconhecem tanto seus entusiastas como seus críticos de um movimento pedagógico coeso Entre seus adeptos no plano teórico podemos encontrar perspectivas tão diversas quanto as de Alexander Sutherland Neil 1971 1984 Jean Piaget 1998 Carl Rogers 1978 Gilles Ferry 1985 e Michael Apple e James Beane 2001 entre outros No campo das experiências práticas elas têm como referências desde a veterana Summerhill até iniciativas mais recentes como a Escola da Ponte em Portugal ou as diversas escolas 32 Mesmo que como Singer 2010 admitamos que as escolas democráticas se tenham espalhado por diversos países e até influenciado políticas públicas de educação em Israel o fato é que elas seguem sendo há quase um século experiências isoladas dentro da totalidade de instituições das redes públicas e privadas No caso particular do Brasil sua presença se faz sentir de forma mais intensa junto à rede de escolas privadas classificadas como alternativas cujo acesso é restrito a uma elite social e econômica fato deveras incômodo para uma pedagogia que se pretenda democrática José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 90 europeias e latinoamericanas retratadas no documentário A educação proibida33 O que autorizaria pois o agrupamento de um conjunto tão heterogêneo em termos de referências teóricas convicções políticas e propostas pedagógicas sob um mesmo rótulo Segundo Singer 2010 p 15 apesar das significativas diferenças praticamente todas essas experiências e os discursos em que se apoiam teriam duas características em comum gestão participativa e uma organização pedagógica em que os estudantes definem suas trajetórias de aprendizagem sem currículos compulsórios Assim a despeito de suas diferentes inspirações teóricas e da variedade de procedimentos didáticos que adotam essas correntes pedagógicas que passamos a chamar de pedagogias da autonomia34 comungam dois pressupostos distintos e complementares O primeiro diz respeito a uma visão de infância impregnada do otimismo escolanovista segundo o qual bastaria garantir liberdade às crianças para que elas viessem a desenvolver a capacidade de se autogovernar bastaria que fossem poupadas do autoritarismo adulto para que se tornassem capazes de alcançar a autonomia moral e que fossem protegidas das tiranias curriculares para que se tornassem capazes de por si mesmas organizar sua aprendizagem La Taille 2010 p 12 Assim ao mesclar e veicular ainda que de forma simplificada e heterodoxa as visões de infância presentes em obras clássicas como as de Rousseau Freud ou Piaget essas correntes pedagógicas procuraram difundir uma nova concepção acerca da natureza do mundo infantil e de suas relações com a aprendizagem e assim induzir a renovação e modernização das práticas escolares O segundo pressuposto por elas compartilhado vinculase ao caráter estritamente moderno e individualista da noção de liberdade que adotam concebida não como uma potencialidade de ação no mundo mas como uma forma de proteção da criança em relação a normas e imposições sociais Assim elas se aproximam da 33 La educación prohibida 2012 é uma produção independente em que se entrevistam cerca de 90 educadores europeus e latinoamericanos sobre formas supostamente inovadoras de se pensarem o espaço e as práticas escolares 34 A escolha dessa denominação evita tanto a carga positiva que seus adeptos pretendem ao associála ao adjetivo democrática quanto à imagem negativa já associada à crítica de Snyders da qual embora partilhemos alguns elementos também discordamos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 91 concepção negativa de liberdade já que de acordo com sua visão uma formação educacional comprometida com a liberdade requer práticas centradas nos interesses de cada criança e na singularidade de sua experiência e de suas expectativas evitando interferências exteriores a seu próprio caminho e ritmo de desenvolvimento Num exemplo tão simples quanto frisante da transposição dessa noção de liberdade negativa para o campo pedagógico um dos grandes expoentes dessa tendência afirma A liberdade numa escola é simplesmente fazer o que se gosta de fazer desde que não estrague a paz dos outros e na prática isso funciona maravilhosamente bem É relativamente fácil ter essa espécie de liberdade em especial quando ela é acompanhada de autogoverno por toda a comunidade e se é livre de qualquer tentativa adulta para guiar sugerir deitar regras quando se é livre de qualquer medo dos adultos Neil 1978 p 160 É evidente que essa formulação radicalmente liberal de Neil não seria aceita sem reservas por todas as variantes que se identificam com as pedagogias da autonomia porque especialmente a partir dos anos 1960 proliferaram versões dessa corrente pedagógica que lhe atribuíam um caráter social alegadamente revolucionário vinculandoa a ideais anarquistas ou marxistas No entanto é interessante notar que mesmo em algumas de suas formulações mais radicais como as de Singer que nela vislumbra uma forma de resistência ao poder o domínio do político a exemplo do que ocorre nas teorias liberais é concebido como resultante da somatória das características pessoais de seus membros individualmente considerados Daí a suposta importância de uma experiência pedagógica em que cada um possa fazer suas escolhas e participar de mecanismos de deliberação conjunta para a formação de cidadãos autônomos Entendese que essa sociedade verdadeiramente democrática só será possível se seus membros forem pessoas de iniciativa responsáveis críticas em uma palavra autônomas O discurso das escolas democráticas voltase justamente para esse tipo de formação Singer 2010 p 16 O pressuposto é pois o de que a sociedade democrática exige indivíduos democráticos e que caberia à escola formálos Ora é evidente que se pode atribuir à escola o compromisso de procurar cultivar princípios políticos caros a uma sociedade José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 92 republicana e democrática e que para sua realização podemos lançar mão de inúmeros recursos e procedimentos inclusive a organização de assembleias discentes Mas vincular as condições de possibilidade só será possível de uma sociedade democrática à formação prévia de personalidades democráticas é em primeiro lugar um equívoco do ponto de vista histórico O florescimento da democracia ateniense não foi precedido mas sucedido por uma democratização de práticas educativas que até as reformas de Clístenes eram privilégio da aristocracia Mesmo no Brasil contemporâneo a democratização do acesso à escola básica não precedeu mas antes resultou de um longo processo de lutas políticas visando à democratização da vida social Ademais a convicção de que uma verdadeira democracia exige o desenvolvimento prévio de certos traços de personalidade em seus cidadãos além de questionável do próprio ponto de vista da lógica democrática que se autoinstitui e se fortalece na exata medida em que rejeita prérequisitos como condição de participação na vida pública esbarra em paradoxos insolúveis se a democracia exige a formação prévia de cidadãos dotados de qualidades democráticas como poderá uma sociedade não democrática desenvolver instituições formativas capazes de empreender tal tarefa Aceitando esse pressuposto não estaríamos a negar a vinculação da democracia com o vigor de uma vida pública em meio à pluralidade para concebêla como uma forma de vida social passível de ser fabricada pela escola Essas questões nos levam a um segundo problema desse pressuposto Tratase do fato de que concebida como uma modalidade de prática pedagógica e identificada com procedimentos escolares a liberdade se vê destituída de seu caráter político para se reduzir a um fazdeconta pedagógico Azanha 1987 segundo o qual ela se traduziria na faculdade atribuída a um aluno de deliberar sobre os rumos de sua vida escolar Desse modo para as pedagogias da autonomia a liberdade se efetivaria na medida em que lográssemos liberar as crianças das tiranias curriculares e da opressão de sua criatividade supostamente resultante da transmissão de normas regras e procedimentos por meio do ensino escolar Daí que a própria noção de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 93 ensino passe a ser identificada como um exercício de poder normalizador35 a ser abolido das instituições que se pautam pelo compromisso com a liberdade Como se as práticas não diretivas não tivessem também elas seus próprios efeitos normalizadores Ora de um ponto de vista estritamente pedagógico essa visão parece ignorar que ao apresentar um modo de proceder que caracteriza um ramo do conhecimento como a noção de hipótese no campo das ciências ou ao mostrar as regras que presidem a composição de um soneto um professor não necessariamente tolhe a liberdade do aluno Ele pode apenas explicitar parâmetros a partir dos quais uma prática social como a ciência a literatura ou o futebol se organiza e é julgada em seus méritos Orientar um aluno a se ater a quatorzes versos para compor um soneto não o impede de escrever seu próprio soneto é simplesmente condição necessária para que sua produção seja classificada e avaliada na condição de soneto Da mesma forma ensinar a um iniciante as regras do futebol não o impede de criar seu estilo próprio de jogar é antes uma condição necessária para que isso venha a acontecer É claro que muitas vezes as formas pelas quais regras procedimentos e cânones de avaliação são apresentados no contexto da educação escolar podem ser inadequadas para os propósitos educativos de iniciação e cultivo de uma tradição intelectual e as denúncias das pedagogias da autonomia a esse respeito permanecem válidas mas isso não abole a necessidade de sua apresentação nem implica que seu ensino represente um cerceamento da liberdade do aluno Existe uma ideia romântica um tanto generalizada de que ensinar às crianças a maneira de fazer coisas é traválas como se as atássemos em cordas Não obstante ter do ensino uma visão correta é compreendêlo como um exercício por meio do qual os alunos aprendem a evitar e reconhecer determinadas confusões bloqueios desvios e terrenos perigosos e movediços Capacitálos para que 35 É evidente que não se pretende negar a existência de um poder normalizador das instituições escolares nem tampouco ignorar o fato empírico de que muito do que nelas tem ocorrido visa antes à conformação de condutas a certos padrões preestabelecidos do que à emancipação de um sujeito No entanto atribuir esses fatos à atividade de ensino é simplificar sobremaneira o problema do ponto de vista de seus condicionantes sociais e ignorar distinções conceituais básicas como as que opõem ensino a doutrinação conformação ou treinamento Além disso seria extremamente ingênuo ou perigosamente astuto alegar que as práticas pedagógicas propostas pelas pedagogias da autonomia estão isentas de produzir seus próprios efeitos normalizadores em seus alunos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 94 evitem dificuldades desastres incômodos e desperdício de esforços é ajudálos a moverse em direção ao que desejam Os sinais de trânsito em sua maioria não impedem a corrente do tráfego previnem os obstáculos que poderiam impedila Ryle 1968 p 115 Assim a despeito da sedução que têm exercido entre intelectuais e educadores que se autoidentificam como progressistas e mesmo revolucionários as pedagogias da autonomia nasceram e se desenvolveram sob a égide do conflito moderno entre indivíduo e sociedade E sua concepção de liberdade como o direito de cada um fazer as próprias escolhas vinculase e reproduz acriticamente o ideário do liberalismo individualista que marca seu surgimento Mesmo em suas atividades pretensamente mais politizadas como as assembleias escolares a noção de liberdade não ultrapassa a da capacidade de criação de um conjunto de regras de convívio num simulacro pedagógico de república como se o pátio escolar pudesse se transfigurar numa ágora prépolítica No entanto como lembra Azanha a liberdade na vida escolar por ilimitada que seja ocorre num contorno institucional que pela sua própria natureza é inapto para reproduzir as condições da vida política 1987 p 42 Assim mesmo que assembleias e fóruns de discussão discente sejam recursos pedagógicos eventualmente eficientes ou interessantes para a formação educacional tomálos como exercícios de liberdade política é deixarse embair pelo fetiche do procedimento como se no rito abstraído de seu contexto residisse a substância do fenômeno A seu favor talvez não possamos nem sequer alegar que sejam formas de preparação para a liberdade da vida democrática isso implicaria conceber a faculdade da liberdade política como uma espécie de capacidade técnica passível de ser aprendida por meio de exercícios abstratos tal como quando se praticam a leitura e a escrita de famílias silábicas ba be bi como forma de preparação para a escrita em contextos não escolares36 Ora na qualidade de atributo da vida política a liberdade 36 Bernard Lahire 2008 comenta com razão a tendência crescente de pedagogização das relações sociais de aprendizagem que passa a vincular qualquer tipo de aprendizado ao exercício de técnicas fragmentadas e abstraídas do contexto em que transcorre uma prática social Assim a exemplo das técnicas que a escola francesa do século XVIII desenvolveu para a aquisição da língua escrita o aprendizado da música se fragmentou em seus componentes constitutivos solfejo ritmo etc Da mesma maneira as escolas de futebol passaram a exercitar fundamentos passes chutes e dribles em abstração de seu uso concreto e integrado num jogo Seja qual for sua eficácia na aquisição de alguns saberes escolares ou práticas sociais o fato é que sua aplicação não pode ser generalizada a José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 95 relacionase com o caráter aberto do futuro humano com a capacidade de romper com a reprodução do passado em favor de algo até então imprevisível o que não equivale à capacidade de deliberação entre opções de antemão anunciadas Daí que a ideia de uma preparação para a liberdade política possa soar tão absurda quanto a obrigação de ser espontâneo Além disso no contexto de uma experiência escolar as escolhas e os procedimentos adotados devem sua legitimidade a seu potencial educativo e não a qualquer outro efeito secundário que possam vir a ter Assim as decisões de uma assembleia de alunos serão sempre julgadas a partir de seu potencial formativo na constituição de um sujeito que se insere num mundo que lhe antecede e que abriga tradições culturais e formas de vida nas quais compete à escola iniciar seus alunos Esse processo de iniciação dos novos em heranças culturais e formas de vida é ao mesmo tempo condição necessária para a durabilidade do mundo e para a constituição da singularidade de cada sujeito que dele participa e que nele é acolhido por meio da educação Não há pois uma cisão entre o cuidado do mundo de suas heranças simbólicas e formas de vida e a constituição de um sujeito A autoconstituição selfrealization dos seres humanos não é a realização de um fim predeterminado tampouco é uma potencialidade infinita desconhecida que a herança de realizações humanas tanto pode fazer malograr como promover Os sujeitos que se autoconstituem não são abstrações racionais são personalidades históricas estão entre os componentes deste mundo de realizações humanas e não existe para um ser humano outra maneira de se constituir como sujeito que não seja aprendendo a reconhecerse no espelho desta herança Assim pôr uma civilização ao alcance do aluno não é pôlo em contato com os mortos nem reproduzir ante seus olhos a história social da humanidade Iniciar um aluno no mundo das realizações humanas é pôr ao seu alcance muitas coisas que não se apoiam na superfície do mundo presente Uma herança pode conter coisas caídas em desuso abandonadas ou esquecidas Conhecer somente o predominante é familiarizarse com uma versão atenuada dessa herança Verse refletido no espelho do mundo atual é ver a imagem tristemente distorcida de um ser humano porque nada nos autoriza a crer que estamos diante da parte mais valiosa de nossa herança ou que o melhor sobrevive com maior facilidade do que o todo e qualquer campo da experiência humana sob o risco de trivializar e degradar aspectos fundamentais da vida privada ou social que não se coadunam com qualquer sorte de pedagogização como a sexualidade ou a política José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 96 pior E nada sobrevive neste mundo sem o apreço humano Oakeshott 1968 p 167 Nesse sentido e mesmo que não tenha sido essa a intenção das pedagogias da autonomia sua ênfase na liberdade como atributo do indivíduo se faz ao custo da negação do mundo e da desvalorização da política como uma resposta digna à pluralidade dos homens que habitam e renovam seu mundo comum Em verdade essa negação não se origina nas práticas nem nos discursos pedagógicos mas no próprio declínio a que a política foi submetida como forma de existência a partir da ascensão de uma sociedade de consumidores Assim as pedagogias da autonomia importam para o âmbito dos discursos escolares a desconfiança generalizada e os preconceitos do mundo moderno em relação ao domínio público e à atividade política Não por acaso seu desenvolvimento e difusão coincidiram com as experiências traumáticas das guerras mundiais e da ascensão de regimes totalitários na Europa O caráter inóspito do mundo que então emergiu passou a desafiar as próprias condições de possibilidade da educação As experiências generalizadas a que as pessoas foram submetidas de abandono e superfluidade dos seres humanos radicalmente opostas ao pertencimento a um mundo compartilhado Almeida 2011 p 80 minaram o próprio sentido da educação como processo de iniciação em um mundo comum De forma análoga foi na vigência da ditadura militar no Brasil que a concepção de liberdade presente nos discursos das pedagogias da autonomia passou a ganhar proeminência nos debates entre intelectuais e educadores como se sua presença no contexto escolar pudesse fazer frente a seu desaparecimento no espaço público Tal como no caso da emergência da ideia estoica da liberdade como atributo da vida interior que se seguiu à dissolução da democracia e da autonomia da polis foi na ausência do vigor da vida pública moderna que o ideal da liberdade como atributo da vontade ou como proteção do indivíduo prosperou e se consolidou Talvez pudéssemos cogitar a título de hipótese que a presente revalorização do ideário das pedagogias da autonomia hoje associado também ao discurso das competências do aprendiz tampouco deva ser dissociada do crescente processo de desqualificação da política Já não se trata do embate contra forças tirânicas ou José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 97 totalitárias mas antes do enfraquecimento da política em face da naturalização da administração da sociedade reduzida a um organismo econômico e produtivo Daí a compatibilidade e a coincidência entre os discursos que pregam a autonomia pessoal a responsabilização individual e o compromisso da educação com o desenvolvimento no indivíduo de competências supostamente necessárias a um futuro mercado de trabalho37 Assim imputase ao que sempre foi considerado o centro das disputas e deliberações de políticas educacionais currículo objetivos avaliação o caráter de um curso necessário imposto ao presente por supostas demandas do desenvolvimento tecnológico e do progresso econômico futuro Silva 2001 Mas as críticas a alguns dos pressupostos fundamentais das pedagogias da autonomia não devem ser tomadas como se representassem uma rejeição in totum das questões que elas levantam Há aspectos relativamente recorrentes em seus discursos como a consideração das diferenças culturais e individuais dos alunos ou seu caráter de sujeitos que interagem com o processo educativo que representam contribuições significativas ao debate educacional Em particular merece atenção e apreço a ideia cara a certos segmentos das pedagogias da autonomia de que a própria convivência escolar deve ser pautada por alguns valores fundamentais da cidadania democrática como o respeito à pluralidade e à diversidade Assim tal como Snyders 2001 p 10 acreditamos que seu sucesso junto a um grande número de professores e dos mais apaixonados é testemunho da realidade das contradições que denunciam Mas acreditamos também que o êxito generalizado das pedagogias da autonomia e a difusão de seus ideais por meio de slogans e palavras de ordem têm levado professores e amplos segmentos da comunidade acadêmica a tratar essas palavras novas como se fossem as únicas possívelis Ibidem como se a crítica a seus pressupostos representasse necessariamente a negação do compromisso da educação com a liberdade ou a adesão a um inimigo abstrato contra o qual elas têm 37 Vejamse por exemplo os relatórios de educação da OECD 2013 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 98 voltado todas as suas críticas a escola tradicional38 o que evidentemente não é o caso Do amor ao mundo ao milagre do novo uma perspectiva arendtiana para o vínculo entre educação e liberdade As críticas de Arendt 2006 p 177 ao pressuposto pedagógico de que haveria um mundo das crianças e que para respeitar sua autonomia os adultos deveriam deixar que elas se autogovernassem são radicais Em primeiro lugar porque a ideia de um mundo das crianças implica a recusa da dimensão histórica do mundo a negação da durabilidade pública desse artifício humano capaz de abrigar as práticas e tradições culturais que nele surgiram e se desenvolveram Mas implica também o abandono das crianças a seus próprios recursos e às contingências de sua vida Isso porque o direito ao acesso a um conjunto selecionado de experiências simbólicas e narrativas que procuram compreender e dar sentido à experiência humana nesse mundo comum deixa de ser concebido como uma obrigação da instituição escolar e passa a estar sujeito aos interesses daquele que aprende Uma mudança cujo impacto de um ponto de vista exclusivamente pedagógico pode não ser intenso para as crianças que já têm familiaridade com a cultura letrada em seu ambiente privado mas que tende a ser desastrosa para aqueles que dependem quase exclusivamente da escola para adquirir o repertório exigido por esse tipo de cultura Em segundo lugar porque para Arendt 2006 p 178 tradução nossa ao emanciparse da autoridade dos adultos a criança não foi libertada e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica que é a tirania da maioria Sem um espaço público organizado de forma a poder acolher a pluralidade de visões e perspectivas e garantir a possibilidade do dissenso e da ação em concerto a mera deliberação pela maioria não necessariamente significa um compromisso com a 38 Como temos reiterado em diversas ocasiões foi o próprio discurso escolanovista que criou a ideia da existência de uma escola e de um ensino tradicional fundada numa descrição caricatural de práticas escolares que deveriam ser substituídas por suas modernas e supostamente científicas prescrições didáticas e metodológicas Cf Carvalho 2001 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 99 liberdade e a democracia como o prova a adesão maciça que os regimes totalitários receberam quando de sua ascensão ao poder Se mesmo para adultos já formados não é fácil resistir à pressão social para que se conformem às opiniões predominantes no caso de pessoas em formação como são as crianças expor uma visão singular que esteja em desacordo com a maioria de seus pares pode ser segundo Arendt uma experiência traumática e ainda mais opressiva do que a sujeição ao eventual poder arbitrário de um único adulto o professor Não é pois pela adoção de práticas pedagógicas deliberativas nem pela criação de novas modalidades de relação interpessoal entre educadores e educandos que se traduzirá no quadro do pensamento arendtiano o compromisso da formação educacional com a liberdade Mas se a recusa em atribuir a essas práticas pedagógicas o estatuto de um compromisso com a liberdade é explícita em Arendt o mesmo não pode ser dito de sua concepção sobre a relação entre a formação educacional e o caráter essencialmente político da liberdade Em seu texto sobre a crise da educação o tema só aparece indiretamente mas em momentos cruciais É possível vislumbrálo por exemplo em sua recusa à fusão do domínio do político com o da educação já que a tentativa de fabricar uma ordem social e política por meio da educação retiraria das mãos dos recémchegados sua própria oportunidade em face do novo Arendt 2006 174 tradução nossa grifos nossos e também quando ela deposita suas esperanças de renovação do mundo no novo que cada geração traz Ibidem p 189 grifos nossos Mas talvez sua mais contundente afirmação sobre a natureza dessa relação ocorra no parágrafo final do texto quando Arendt resume toda a riqueza de suas reflexões ao apontar a educação como uma atividade que nos desafia a julgar e a definir nossa atitude em face do mundo e da natalidade E assim o é porque a educação nos obriga a decidir se amamos mundo o suficiente para assumir a responsabilidade por ele e com tal gesto salválo da ruína que seria inevitável Arendt 2006 p 193 tradução nossa e ao mesmo tempo a decidir se amamos as crianças o suficiente para não arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender algo novo e imprevisto por nós Arendt 2006 p 193 tradução nossa grifos nossos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 100 Assim é precisamente na intersecção entre o amor e o cuidado do mundo e a fé e a esperança na natalidade que se manifesta o compromisso dos educadores com a liberdade Um compromisso que não se confunde com a adoção de um procedimento pedagógico padronizado seja ele qual for mas que se revela na atitude do educador em face do mundo e dos que a ele chegam por meio da natalidade Em Arendt o amor ao mundo a exemplo da fé e da esperança em sua renovação se vincula mais a um modo de nele agir e com ele se relacionar do que a um sentimento interior ao agente Almeida 2011 Talvez pudéssemos mesmo qualificálo como um princípio na acepção particular que ela a partir de Montesquieu lhe atribui como elemento inspirador da ação Princípios não operam no interior do eu from within the self como o fazem motivos mas como que inspiram do exterior e são demasiado gerais para prescrever metas particulares embora todo desígnio possa ser julgado à luz de seu princípio uma vez começado o ato Diferentemente do juízo do intelecto que precede a ação e do império da vontade que a inicia o princípio inspirador tornase plenamente manifesto somente no próprio ato realizador Distintamente de sua meta o princípio de uma ação pode sempre ser repetido mais uma vez pois é inexaurível Arendt 2006 p 151 tradução nossa Portanto mesmo se desenvolvendo num espaço prépolítico a atividade docente ao menos se a considerarmos em sua dimensão formativa e não apenas como transmissão de informações e conformação de condutas assemelhase à ação ainda que com ela não se confunda Tal como nesta um professor revela quem ele é por seus atos e palavras suas escolhas não se resumem a deliberações acerca de meios técnicos supostamente mais eficazes para atingir um fim já que a forma pela qual se ensina e se aprende tem em si mesma um caráter formativo39 A formação educacional tampouco se confunde com a fabricação de indivíduos adaptados a uma ordem social 39 A importância da forma no ato de ensinar foi corretamente salientada por Scheffler 1978 p 70 o ensino poderá certamente proceder mediante vários métodos mas algumas maneiras de levar as pessoas a fazerem determinadas coisas estão excluídas do âmbito padrão do termo ensino Ensinar em seu sentido padrão significa submeterse pelo menos em alguns pontos à compreensão e ao juízo independente do aluno à sua exigência de razões e ao seu senso a respeito daquilo que constitui uma explicação adequada Ensinar a alguém que as coisas são deste ou daquele modo não significa meramente tentar fazer com que ele o creia o engano por exemplo não constitui um método ou um modo de ensino José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 101 preestabelecida ou a uma função econômica tida como necessária Tratase antes de um processo cuja meta é a constituição de um sujeito em interação com o mundo ou se quisermos permanecer numa terminologia mais estritamente arendtiana de um alguém que se insere de forma singular na pluralidade do mundo Assim a exemplo da ação a atividade docente não se exerce sobre a matéria para nela imprimir uma forma final de antemão concebida mas implica a interação com uma pluralidade de sujeitos singulares cujas respostas a nossos atos e palavras são da ordem do imprevisível Essa série de paralelos sugere que o estatuto do ato docente a exemplo do da obra de arte ocupa um lugar híbrido ou intermediário na classificação das atividades humanas proposta por Arendt Ele não coincide com a ação por ocorrer num domínio prépolítico e estar fundado em relações assimétricas mas tampouco coincide com a fabricação por não poder ser reduzido à lógica de meios e fins que a preside E é pelo fato de a atividade docente ocupar esse espaço híbrido que não se confunde com a ação mas dela se aproxima significativamente que podemos conceber o amor mundi como um princípio Na verdade ele é o princípio de ação por excelência daqueles que elegeram a docência como forma de inserção e atividade no mundo já que a assunção da responsabilidade por seu cuidado está implícita em sua escolha profissional essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança Arendt 2006 p 186 tradução nossa Daí porque para Arendt o ofício de ser professor exige daqueles que por ele optaram um respeito extraordinário pelo passado 2006 p 190 pela herança de experiências simbólicas que o mundo lega a cada geração que nele aporta Esse respeito se manifesta no caso específico de um professor em seus esforços por iniciar os recémchegados ao mundo nas parcelas de tradições culturais cujo ensino lhe compete E embora essa iniciação almeje a conservação do mundo ela não implica sua mera reprodução Ao contrário ela é condição necessária para a eclosão do novo para a possibilidade de que o milagre que rompe a expectativa da reprodução dos processos automáticos salve o mundo do desgaste e da ruína Isso porque o milagre do novo ou a liberdade só pode vir à luz sob o pano de fundo de um mundo que José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 102 guarda algum grau de durabilidade que não se transforma também ele num objeto de consumo a ser devorado constantemente pelo processo vital Ele não é pois um recurso pedagógico ao qual podemos recorrer sempre que julgarmos necessário ou conveniente é antes uma potencialidade humana cuja eclosão depende da ação em concerto de homens que por compartilhar um mundo são capazes de nele começar algo novo e de operar o milagre de sua salvação a despeito de sua tendência a sempre caminhar em direção ao próprio desgaste e à ruína dele decorrente E com quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre mais miraculoso parecerá o ato da liberdade pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portanto irresistível Arendt 2006 p 169 tradução nossa É pois no compromisso que o educador assume com o mundo e com a natalidade que se manifesta o possível vínculo da formação educacional com a liberdade em Arendt Um compromisso cujos resultados não podem ser garantidos pela implantação de qualquer procedimento pedagógico até porque dependem de condições e circunstâncias que ultrapassam o domínio da vida escolar Dado seu caráter político e não apenas pedagógico esse compromisso toma a forma de um princípio que nos impele a agir mas que não determina a forma que essa ação deve tomar em cada situação concreta É um compromisso que reclama a responsabilidade individual daquele que a ele adere mas cuja tradução em atos depende também de uma ação conjunta com seus pares Finalmente é um compromisso que convida o educador à busca incessante de formas de imprimir um sentido público à formação escolar rejeitando sua sujeição a imperativos de adaptação e conformação a um processo de desertificação do mundo que se afirma concomitantemente à decretação da superfluidade do humano José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 103 V A EXPERIÊNCIA ESCOLAR AINDA TEM ALGUM SENTIDO Articular historicamente o passado não significa conhecêlo como ele de fato foi Significa apropriarse de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento de um perigo Walter Benjamin Num fragmento de uma obra inconclusa publicada postumamente Arendt articula suas reflexões sobre as vicissitudes do conceito de política no século XX a partir de uma pergunta que à primeira vista pode sugerir ceticismo e desesperança a política ainda tem algum sentido Arendt 2008 p 162 Não se trata contudo de uma interrogação de cunho niilista Ao contrário ela deve ser compreendida como mais uma de suas perguntas antiniilistas feitas numa situação objetiva de niilismo em que o nada e o ninguém ameaçam destruir o mundo Arendt 2008 p 269 A situação objetiva que a leva a propor a questão nesses termos é o preconceito do mundo moderno em relação à política é a convicção generalizada de que à política e não à sua ausência se devem as trágicas experiências do totalitarismo da ameaça nuclear e da desertificação de um mundo cuja durabilidade é posta em risco pela ascensão da produção e do consumo como objetivos supremos do viver juntos Nesse texto como ao longo de grande parte de sua obra Arendt procura recuperar o sentido e a dignidade da política desvinculandoa do reducionismo a que foi submetida quando equiparada ao governo ou confundida com a gestão estatal da sociedade Não foi pois a expansão mas o declínio do domínio do político que criou as condições de possibilidade para a emergência do totalitarismo e da tecnocracia como forma de dominação estatal Isso porque como vimos em Arendt a política representa uma forma específica de vida em comum que não se confunde com a dominação nem é simples consequência do caráter gregário do animal humano uma forma de vida cuja razão de ser é a liberdade e cuja condição de emergência é a criação de um espaço público comum à pluralidade de homens iguais Assim concebida a ação política não é uma necessidade humana mas a frágil invenção de José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 104 um modo de vida cujo impulso brota do desejo humano de estar na companhia dos outros do amor ao mundo e da paixão pela liberdade Correia 2010 p XXXI Um impulso que eclodiu em toda a sua grandeza na experiência democrática de Atenas na estabilidade da Roma republicana na breve existência dos conselhos populares que sucederam a revolução russa de 1917 ou dos que organizaram a revolução húngara de 1956 Experiências que Arendt não evoca como modelos a ser reproduzidos mas como acontecimentos cujo esplendor é capaz de iluminar aquilo que os eventos políticos do século XX obscureceram que o sentido da política é a liberdade ou seja a capacidade humana de começar algo até então imprevisto e imprevisível Foi a radicalidade da questão formulada por Arendt e os caminhos trilhados na proposição de sua resposta que inspiraram a transposição dessa interrogação para o âmbito específico da experiência escolar teria ela ainda algum sentido numa sociedade que trata o passado como obsoleto e o futuro como ameaçador Tampouco nesse caso se deve tomar a forma interrogativa como indício de ceticismo Tal como em Arendt tratase de uma pergunta antiniilista que se formula em oposição a um processo de crescente submissão da educação escolar à lógica instrumental que reduz o ideal de uma formação educacional ao de uma funcionalidade em termos de conformação social Um processo que à força de tentar imprimir à escola toda sorte de finalidades extrínsecas dela parece retirar qualquer sentido intrínseco Um processo pois que reduz a experiência escolar a um meio cujo fim tem sido a mera adaptação funcional dos indivíduos aos reclamos de produção e consumo das sociedades contemporâneas de forma a despojála de seu sentido intrínseco a iniciação dos mais novos em heranças simbólicas capazes de dar inteligibilidade à experiência humana e durabilidade ao mundo comum Localizar nesses aspectos a constituição de um sujeito e sua vinculação ao mundo comum a razão de ser da educação escolar não é uma arbitrariedade ainda que inevitavelmente seja uma escolha programática Programática porque sua enunciação implica um compromisso teórico fundado numa escolha valorativa entre tantas outras possíveis com eventuais decorrências práticas e políticas Mas não uma escolha arbitrária visto que ela se ancora numa José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 105 concepção de educação cujas raízes remontam a um acontecimento histórico inaugural a fundação dos ideais educacionais que caracterizam o humanismo renascentista A partir deles a instituição escolar assume um novo papel social pois não visa mais a preparação de um profissional especializado mas a formação integral do homem e do cidadão Tratase pois de uma experiência histórica que terá no âmbito da educação um papel análogo ao da democracia ateniense ou da república romana para a política o de uma experiência fundadora da qual emanam princípios capazes de inspirar ações e orientar as inevitáveis transformações históricas a que uma instituição social está sempre sujeita Assim é no princípio da formação educacional humanista entendido em sua dupla acepção de início e de preceito orientador que se funda essa concepção de formação como a constituição de um sujeito em seu vínculo com o legado histórico de um mundo comum Se como propõe Arendt é de fato difícil e até mesmo enganoso falar em política e em seus princípios sem recorrer em alguma medida às experiências da Antiguidade grega e romana 2006 p 153 tradução nossa o mesmo parece valer para o legado do humanismo renascentista no âmbito da educação Ele se erigiu em referência histórica e conceitual dos discursos educacionais porque é sobretudo a partir de seus ideais e de suas práticas que a formação escolar adquire um sentido público que ela deixa de ser uma preparação profissional ligada aos direitos à medicina e sobretudo à teologia para almejar a formação do espírito entendida como a busca de cada um pela constituição de sua humanitas Uma busca empreendida por meio do acesso direto ao legado cultural clássico de um diálogo cujo resultado não é a aprendizagem instrumental de informações e conhecimentos especializados mas a constituição de um sujeito que se insere na dimensão histórica de um mundo Tratase assim da fundação de uma nova modalidade de relação entre a formação escolar e o domínio público na qual a relação com a cultura letrada40 e com as artes clássicas passa a ser 40 A expressão cultura letrada é aqui empregada na acepção que lhe confere Havelock 1996 p 59 grifos nossos para quem a cultura letrada não pode ser definida como coextensiva à existência histórica da escrita no Egito ou na Mesopotâmia porque embora a cultura letrada dependa da técnica utilizada na inscrição ela não se define apenas pela existência dessa técnica É uma condição social que pode ser definida apenas em termos de leitura Assim a existência da cultura letrada pressupõe um público leitor e uma forma de vida na qual essa atividade ocupe um lugar central na José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 106 concebida como elemento constitutivo da formação integral do homem e não mais como prérequisito para sua participação num determinado estamento social Essa ruptura com a herança escolástica não decorre de inovações no campo das práticas pedagógicas que pouco diferem daquelas que caracterizavam a escola latina medieval mas antes de dois aspectos interdependentes que marcam a inovação representada pela escola humanista O humanismo impôs aos ginásios de seu tempo seu ideal de uma Antiguidade separada pela história Para o homem da Idade Média a Antiguidade jamais havia cessado Para o humanista ao contrário a Antiguidade foi uma era de perfeição seguida de um longo período de barbárie Tratavase menos de continuar a Antiguidade como no caso dos medievais do que de retomála pela restauração da língua e pela familiaridade com os autores O contato com os autores antigos não se vinculava a fins utilitários nem mesmo no que concerne ao aprimoramento da língua mas a algo verdadeiramente novo à formação do espírito já que ele permitia aos contemporâneos aproximaremse dos grandes modelos antigos Com a concepção humanista de Antiguidade aparecia tanto no ensino como na sociedade a noção até então desconhecida de cultura geral por muito tempo identificada como humanidades Ariès p 9 tradução nossa grifos nossos Diferentemente de sua antecessora a escola renascentista não atribuía um valor apenas instrumental ao conhecimento ela o estimava por seu potencial formativo Não lhe interessava a preparação de especialistas mas a formação de homens que para além das diferenças ligadas a profissão origem social ou crença religiosa partilhassem uma cultura comum e a responsabilidade pelos rumos históricos de sua res publica É nesse sentido que o contato com a poesia a filosofia as artes e a história deveria ter um caráter liberal seu papel era o de possibilitar por meio do diálogo com esse legado clássico que cada um viesse a cultivar seu espírito e a desenvolver sua personalidade liberado das contingências de sua ascendência familiar e de expectativas predeterminadas quanto a seu papel social Assim a noção de cultura geral atribui à educação um significado intrínseco ela passa a ser um bem em si mesma independente de possíveis e imprevisíveis efeitos exteriores à constituição do circulação do saber Nesse sentido o humanismo a faz renascer já que a leitura e a escrita permaneceram durante a maior parte da Idade Média privilégios de um grupo social bastante restrito José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 107 sujeito que se educa como eventuais impactos na distribuição de riquezas ou de poder numa dada estrutura social É nesse sentido que se deve compreender a afirmação de Lefort 1992 p 211 de que com o humanismo a educação ganha valor em si revela se em busca de si mesma e engendra na prática um discurso que a visa como tal Essa nova concepção do papel do acesso à cultura clássica na formação geral de um cidadão veio acompanhada de uma nova percepção do presente em sua relação com o passado Se o homem medieval assimilava a Antiguidade clássica a seu presente representando por exemplo Hércules como um cavaleiro41 os humanistas a concebiam como um passado a um só tempo distante e inspirador Distante porque entre eles e os antigos se interpunha a longa e obscura Idade Média mas próximo porque por meio da restauração da cultura antiga os humanistas visavam construir sua identidade como herdeiros da Antiguidade Herdeiros porque capazes de reconstruir a partir da crítica histórica e filológica o verdadeiro significado de seu legado artístico e filosófico mas também porque restauradores de uma ética da vita activa segundo a qual a dignidade do homem vinculase a seu engajamento na vida pública da cidade Assim a formação humanista se dava na forma de um diálogo Um diálogo com os mortos porém com os mortos que desde o momento em que falam desde que são levados a falar estão mais vivos que os seres próximos vivendo uma vida totalmente diferente são imortais no espaço da humanidade comunicam sua imortalidade àqueles que se voltam para eles aqui e agora Lefort 1999 p 212 É desse diálogo que emerge entre os humanistas o senso da história Ibidem da relação do presente com o passado e com o futuro como forma de constituição de um mundo comum que transcenda o espaço e se enraíze no tempo Assim os estudos das humanidades visavam uma formação inicial comum e prévia à preparação profissional especializada um tipo de formação escolar na qual o contato com o 41 Segundo Garin 2003 p 96 um claro exemplo dessa assimilação em que o antigo se mescla com o medieval ocorre nas representações de figuras caras aos antigos como a de Hércules Ao longo dos séculoseste passa a ser representado ora como Cristo ora como um cavaleiro medieval com suas vestes e armaduras sem nenhuma preocupação no que concerne a sua imagem ou a seu papel para os gregos antigos Nessas representações não há pois uma clara distinção entre o passado e o presente Daí a convicção dos humanistas de que eles seriam os verdadeiros herdeiros da Antiguidade clássica pois seus estudos visavam restituir aos textos e à própria língua suas formas e seus sentidos originais ou seja clássicos José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 108 legado cultural de uma civilização tinha uma dimensão simultaneamente ética estética e política Tratavase portanto de uma forma específica de se aproximar do passado com vistas a definir o presente propiciando uma oportunidade de vínculo com a profundidade histórica da existência humana pois como nos lembra Arendt a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser por meio da recordação 2006 p 94 tradução nossa Assim é por meio da evocação de obras atos e palavras memoráveis que se reificam nos objetos e nas narrativas da cultura clássica que o passado adquire um caráter liberador em relação a toda sorte de tiranias que as demandas do presente possam vir a representar O humanismo havia descoberto que o objetivo da educação era formar o homem darlhe sua liberdade no mundo tornálo senhor do reino que Deus lhe havia concedido Mas precisamente a fim de não diminuir essa liberdade tão paradoxal ele atribui à educação a missão de liberar o homem de não o definir nem o coagir de darlhe todo o poder em relação à consciência de si mesmo Educar o homem é tornálo consciente de si mesmo de seu lugar no mundo e na história O estudo dos antigos e de sua língua deveria justamente servir a esse fim levar o homem para além de qualquer definição a se sentir senhor de si mesmo Garin 2003 p 218 tradução nossa Ora o que esse excerto de Garin nos sugere é pois que o sentido último da formação humanista é seu potencial caráter emancipador a liberdade no mundo e a consciência de si mesmo Não a consciência de um indivíduo apartado do mundo e de sua pluralidade mas ao contrário uma consciência que emerge de sua relação com a humanidade e com sua obra na história Garin 2003 p 16 tradução nossa Assim se é possível apontar um princípio fundamental da educação humanista este reside menos nos conteúdos cristalizados por uma experiência histórica determinada do que no espírito que a moveu em direção a essa escolha É na recusa à subserviência da cultura a qualquer sorte de instrumentalismo imediato que radicam o ideal de uma educação emancipadora e o sentido de uma formação escolar que com ela se comprometa Nessa perspectiva pouco importa se a cultura com a qual a instituição escolar dialoga é a da Antiguidade clássica a do Iluminismo europeu a dos povos americanos précolombianos ou aquela presente em suas manifestações mais recentes e pontuais José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 109 Concebida como uma oportunidade de um diálogo com objetos da cultura e com o contexto histórico em que eles se constituem como tal e são preservados para compor um legado simbólico potencialmente comum a formação escolar ganha um sentido que ultrapassa qualquer eventual finalidade pragmática que seus conteúdos possam conter A essência do humanismo é como nos recorda Arendt a cultura animi o cultivo desinteressado do espírito e do gosto da capacidade de fruir apreciar e julgar as instituições e obras que integram nosso mundo comum Ele se vincula menos a um conteúdo cultural específico do que a uma forma de lidar com o mundo ou a um tipo de atitude que sabe como preservar admirar e cuidar das coisas do mundo Arendt 2006 p 222 tradução nossa Uma atitude que faz dos diversos legados culturais que coabitam nosso mundo contemporâneo uma potencial herança comum Uma herança que nos chega sem testamento e que portanto exige de nós a coragem e a responsabilidade de fazer julgamentos e escolhas Essas escolhas serão dignas da herança humanista na medida em que atualizarem seu compromisso ético e político de propiciar aos que chegam ao mundo a oportunidade de escolher suas companhias entre homens entre coisas e entre pensamentos tanto no presente como no passado Ibidem p 222 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 110 REFERÊNCIAS ADORNO Theodor Educação e emancipação São Paulo Paz e Terra 2006 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Political Meaning of Education HannahArendtnet Berlim v 5 n 1 2009 Disponível em HannahArendtnet Acesso em 20 mar 2013 O declínio do sentido público da educação Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos Brasília DF v 89 p 411424 2008 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 112 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Direitos Humanos formação escolar e esfera pública In Educação cidadania e direitos humanos Petrópolis Vozes 2004 Construtivismo uma pedagogia esquecida da escola Porto Alegre Artmed 2001 CHARLOT Bernard A mistificação pedagógica Rio de Janeiro Zahar 1979 CONSTANT Benjamin Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos Filosofia Política Porto Alegre LPM 1985 p 925 CORREIA Adriano Apresentação In ARENDT H A condição humana Rio de Janeiro Forense 2010 O desafio moderno Hannah Arendt e a sociedade de consumo In MORAES Eduardo Jardim BIGNOTTO Newton Orgs Hanna Arendt diálogos reflexões e memórias Belo Horizonte UFMG 2003 Coord Transpondo o abismo Hannah 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Marcel Pour une philosophie politique de léducation Paris Bayard 2002 HARTOG François Régimes dhistoricité présentisme et expérience du temps Paris Seuil 2012 HAVELOCK Eric A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais São Paulo UnespPaz e Terra 1996 HOUSSAYE Jean Autorité ou éducation Paris ESF 2007 ILLICH Ivan Educação e liberdade São Paulo Imaginário 1990 KANT Immanuel Textos seletos Petrópolis Vozes 1983 LA EDUCACIÓN prohibida Direção Juan Vuatista Produção Daiana Gomez Intérpretes Santiago Magariños Amira Adre Nicolás Valenzuela Gastón Pauls Alejandra Figueroa e outros Roteiro Julieta Canicoba e Juan Vautista Financiamento coletivo Ferramentas livres Copyleft 2012 Disponível em httpwwweducacionprohibidacom Acesso em 8 abr 2013 LAHIRE Bernard La raison scholaire école et pratiques décriture entre savoir e pouvoir Rennes PUR 2008 LARROSA Jorge Pedagogia profana Belo Horizonte Autêntica 2000 LA TAILLE Yves de Apresentação In SINGER Helena República das crianças sobre experiências escolares de resistência Campinas Mercado de Letras 2010 LEBRUN Gerard Passeios ao léu São Paulo Brasiliense 1983 LEFORT Claude Écrire à lépreuve du politique Paris Calmann Lévy 1992 LOMBARD Jean Hannah Arendt éducation et modernité Paris LHarmattan 2003 MAY Larry KOHN Jerome Hannah Arendt twenty years later Massachusetts MIT Press 1997MORAES Eduardo Jardim BIGNOTTO Newton Orgs Hanna Arendt diálogos reflexões e memórias Belo Horizonte UFMG 2003 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 114 NEIL Alexander Sutherland Liberdade sem medo Summerhill São Paulo Ibrasa 1984 Liberdade escola amor e juventude São Paulo Ibrasa 1978 Liberdade na escola São Paulo Ibrasa 1971 OAKESHOTT Michael Teaching and Learning In PETERS Richard S Org The Concept of Education London Routledge Keagan Paul 1968 OBAMA Barack Barack Obamas Inaugural Address The New York Times New York 20 Jan 2009 Disponível em httpwwwnytimescom20090120 uspolitics20textobamahtmlpagewantedall Acesso em 11 jul 2012 OECD Organisation for Economic Cooperation and Development OECD 2013 Disponível em httpwwwoecdorgdataoecd Acesso em 21maio 21012 PASSMORE John The Philosophy of Teaching London Duckworth 1984 PETERS Richard Stanley Org The Concept of Education London Routledge Keagan Paul 1968 PIAGET Jean Sobre a pedagogia São Paulo Casa do Psicólogo 1998 PLATÃO Górgias Lisboa Edições 70 1972 RANCIÈRE Jaques Le maître ignorant Paris Fayard 1987 RENAUT Alain La fin de lautorité Paris Flammarion 2004 REVAULT DALLONES Myriam Le pouvoir des commencements essai sur lautorité Paris Seuil 2006 RIBEIRO Renato Janine A democracia São Paulo Publifolha 2001 RICOEUR Paul Le paradoxe de lautorité In Le juste 2 Paris Esprit 2001 Lectures 1 Paris Seuil 1991 ROGERS Carl Liberdade para aprender Belo Horizonte Interlivros 1978 RYLE Gilbert Teaching and training In PETERS Richard Stanley Ed The concept of education London Routledge Keagan Paul 1968 José Sérgio Fonseca de Carvalho Educação uma herança sem testamento 115 SCHEFFLER Israel A linguagem da educação São Paulo EduspSaraiva 1968 SILVA Franklin Leopoldo e O mundo vazio sobre a ausência da política no mundo contemporâneo In ACCYOLI E SILVA Doris MARRACH Sonia Alem Orgs Maurício Tragtenberg uma vida para as ciências humanas São Paulo Unesp 2001 SINGER Helena República das crianças sobre experiências escolares de resistência Campinas Mercado de Letras 2010 SNYDERS Georges Para onde vão as pedagogias não diretivas São Pulo Centauro 2001 TASSIN Étienne Un monde commun pour une cosmopolitique des conflits Paris Seuil 2003 Le trésor perdu Hannah Arendt lintelligence de laction politique Paris Payot 1999 Collection Critique de la politique TASSIN Étienne et al Politique et pensée Paris Payot 2004 TOCQUEVILLE Alexis de De la démocratie en Amérique tome I Paris Michel Levy 1985 YOUNGBRUEHL Elisabeth Hannah Arendt For Love of the World New Haven Yale University Press 1982 Ménon Platão Ménon diz a Sócrates Ouso dizer que você Sócrates se parece com aquele peixe chamado enguia elétrica A enguia dopa e paralisa aquele que ela toca Por mais de 100 vezes falei com a multidão sobre virtude mas hoje não sei mais dizer o que ela é Sócrates responde Admito a comparação com a ressalva de que o embaraço que a enguia impõe aos outros eu também o sinto Se eu desconcerto os outros é que estou eu mesmo em extremo desconcerto Victor Delbos sobre Sócrates e o diálogo O mestre não sabe mais que o discípulo ele procura como o discípulo e com o discípulo O diálogo não é um procedimento exterior e acidental de uma busca e de uma exposição ele é a expressão essencial do esforço comum para retirar a verdade do interior dos sujeitos Natalidade e Dupla Responsabilidade Cuidado com as crianças Educação Amor pelo mundo comum Participação Imprevisibilidade e Irreversibilidade Toda ação tem consequências imprevisíveis por isso há esperança Toda ação é irreversível por isso a importância do perdão Obra de arte fazer 208 Dada sua excepcional permanência as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar Obras de arte são coisas do pensamento A poesia cujo material é a linguagem talvez seja a mais humana e a menos mundana das artes pois o produto final permanece mais próximo do pensamento que o inspirou Destruição do Senso Comum common sense 1 Liquidação da oposição 2 Propaganda 3 Ideologia realidade 4 Líderes como únicos intérpretes das leis da vida 5 Extermínio na lógica das leis 6 Coerência lógicaideológica realidade substituída por ficção 7 Condições intersubjetivas rompidas 8 Exercício solitário de dedução sobre premissas incontestáveis Senso comum sentido político por excelência Substituído pela lógica também comum a todos Senso comum garante a pluralidade Senso comum garante a confiança na experiência sensorial imediata Isak Dinesen Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória ou contamos uma estória sobre elas Marca Ontológica Porque cada ser humano é único a cada nascimento vem ao mundo algo com a potência de ser singularmente novo Nascimento biológico e histórico 1º Nascimento político Agir e discursar 2º Arte Poesia Se o animal laborans necessita da ajuda do homo faber para facilitar seu trabalho e remover sua dor e se os mortais necessitam da ajuda o homem faber para edificar um lar sobre a Terra os homens que agem e falam necessitam da ajuda do homo faber em sua capacidade suprema dada pelos artistas poetas e historiadores Ameaças e Perigos Entre as maiores preocupações de Hannah Arendt sobressaem dois eventos que têm em comum a programática corrupção da natalidade e seus epifenômenos tais como a espontaneidade a liberdade e a pluralidade Tratase do totalitarismo e de seu produto tecnológicoideológico a bomba nuclear Totalitarismo Não é um regime tirânico ou ditatorial Pois extravasa seu domínio da esfera pública para a vida privada por meio do TERROR Natalidade e Espontaneidade Faz parte da natureza de um início que ele traga em si uma dose de completa arbitrariedade Não só o início não está ligado a uma sólida cadeia de causas e efeitos mas como ainda não há nada é como se saísse do no tempo e no espaço A condição humana a Vida Ativa ou as 3 principais atividades humanas O trabalho ou labor produzse as necessidades vitais para nutrir o corpo ou bens de consumo animal laborans A fabricação ou fazer produz coisas objetos de uso que dão estabilidade e solidez ao mundo tornao lar homo faber A ação e o discurso transcende o consumo e o uso dá sentido ao tempo de cada humano A razão de ser da política é a redenção da mortalidade e da futilidade da existência humana mediante a edificação de um espaço durável para a liberdade no qual a grandeza frágil das palavras e feitos dos mortais se manifesta e encontra abrigo e louvor Senso comum José dos Santos Filho O senso comum é entendido como um instrumento pelo qual os homens podem estar certos de que suas experiências no mundo não são meras ilusão ou fantasias Acreditamos que para Arendt a prerrogativa mais geral do senso comum é produzir uma espécie de consenso possível entre os modos idiossincráticos de perceber e julgar um mesmo objeto ou uma mesma realidade garantindo aos homens uma compreensão comum do mundo Natalidade Pluralidade e Liberdade A ação humana sempre livre efetiva a novidade imprevisibilidade imponderabilidade da natalidade e as palavras ou discurso com que cada um se distingue ao agir efetivam o fato da pluralidade humana da diversidade entre iguais Toda a ação é um impulso livre visando a liberdade por isso toda ação é política Dupla responsabilidade Natalidade Marca Ontológica Novos Mundo comum Inciar na vida Iniciar no mundo Palavras Atos Poetas Espontaneidade Imprevisibilidade Irreversibilidade Visibilidade Comunicabilidade COMMON SENSE Espaçoentre Exercício Político LIBERDADE Marca Ontológica É da natureza do início que se comece algo novo algo que não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes Esse caráter de surpreendente imprecisão é inerente a todo início e a toda origem O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas O novo sempre aparece na forma de um milagre Outra possibilidade equívoca QUERENDO UMA RENOVAÇÃO INCORRESE NUMA INTERVENÇÃO DITATORIAL BASEADA NA SUPERIORIDADE DO ADULTO QUE TEM A RESPOSTA DE COMO O NOVO DEVE SER NESTE CASO O DESEJO DE PRODUZIR O NOVO AGE COMO SE O NOVO JÁ EXISTISSE Para finalizar O mundo é sempre velho em relação aos novos e aprendizagem voltase necessariamente ao passado Educar crianças é levar em conta o fato de que estão em processo de aprendizagem de que não são adultos Não separar os dois mundos da criança e dos adultos a criança não tem um mundo autônomo o adulto não tem um mundo sem responsabilidade pelos novos Início a crise do nosso tempo e a sua principal experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que como potencialidade e como risco sempre presente tende a infelizmente a ficar conosco de agora em diante HANNAH ARENDT Origens do totalitarismo Antissemitismo imperialismo totalitarismo Educação e Política Crianças educadas para um amanhã utópico estão submetidas a uma proposta de mundo velha Cada geração se transforma no mundo antigo preparar novos para mundo utópico é arrancar dos novos sua oportunidade de inovar por si mesmos NATALIDADE RESPONSABILIDADE A EDUCAÇÃO É O PONTO EM QUE DECIDIMOS SE AMAMOS O MUNDO O BASTANTE PARA ASSSUMIRMOS A RESPONSABILIDADE POR ELEE COM TAL FEITO SALVALO DA RUÍNA QUE SERIA INVEVITÁVEL NÃO FOSSE A RENOVAÇÃO E A VINDA DOS NOVOS E DOS JOVENS A EDUCAÇÃO É TAMBÉM ONDE DECIDIMOS SE AMAMOS NOSSAS CRIANÇAS O BASTANTE PARA NÃO EXPULSÁLAS DE NOSSO MUNDO E ABANDONÁLAS A SEUS PRÓPRIOS RECURSOS E TAMPOUCO ARRANCAR DE SUAS MÃOS A OPORTUNIDADE DE EMPREENDER ALGUMA COISA NOVA E IMPREVISTA PARA NÓS PREPARANDOAS EM VEZ DISSE COM ANTECEDÊNCIA PARA A TAREFA DE RENOVAR O MUNDO COMUM Essência da Educação Os pais dão a luz a uma criança fato biológico em um mundo fato histórico Os pais ao educarem a criança têm 2 RESPONSABILIDADES pelo desenvolvimento da criança pelo mundo A CRIANÇA REQUER CUIDADO E PROTEÇÃO PARA QUE O MUNDO NÃO A DESTRUA O MUNDO NECESSITA PROTEÇÃO PARA QUE O ASSÉDIO DO NOVO NÃO O DESTRUA A Essência da Educação uma questão filosófica Para o EDUCADOR a criança tem um DUPLO aspecto ELA É NOVA EM UM MUNDO ESTRANHO ELA ESTÁ EM PROCESSO DE FORMAÇÃO É um novo ser humano e um ser humano em formação É nova em relação a um mundo que existia antes dela Equívocos têm 3 pressupostos 3 Pragmatismo substituise o aprendizado pelo fazer só é possível conhecer o que nós mesmo fizermos Perigo a escola a ensina apenas habilidades e não conhecimento Só se aprende brincando O que a tradição recalcou Tucídides narra a Guerra do Peloponeso porque ela foi o mais grandioso movimento já verificado na história Heródoto escreve para salvar do esquecimento tudo que os homens haviam dado à luz mas também para que feitos grandiosos e maravilhosos não deixassem de ser louvados O louvor é necessário devido à fragilidade da ação humana mais efêmera do que a própria vida totalmente dependente da rememoração dos poetas e historiadores O que a tradição recalcou Tal como os poetas eles narravam suas histórias em prol da glória humana poesia e história com o mesmo objeto as ações dos homens que determinam suas vidas e nas quais reside a sua boa ou má fortuna A percepção de que a grandeza humana não pode se revelar em outro lugar senão no fazer e no sofrer sempre esteve presente na poesia e no drama O que a tradição recalcou In A tradição do pensamento político in A Promessa da Política É proveitoso fazer um inventário das experiências políticas da humanidade ocidental que permaneceram sem lugar ao desabrigo no pensamento político tradicional Entre elas está a antiga experiência do mundo homérico grego anterior à pólis com seu sentido da GRANDEZA DOS FEITOS HUMANOS que aparece na historiografia grega Revolução Sempre que depois das revoluções os espaços de participação popular são superados pela instituição de um governo perdese o tesouro As revoluções têm em comum o surgimento espontâneo destes Conselhos populares que surgiram nas revoluções francesa americana russa alemã 19189 húngara O tesouro para Arendt é a aparição do sistema de Conselhos Revolução Revolução não pode ser definida pelo uso da violência contra um governo abusivo Isso é a revolta a rebelião que visa a libertação Revolução é a fundação de um novo corpo político de um domínio público por meio do debate público onde a participação nos assuntos da comunidade seja possível e visa a liberdade A grande novidade dos levantes revolucionários a participação ampliada nos assuntos da comunidade se tornou um TESOURO perdido Arendt história e revo Temporalidade histórica não contínua sucessão de agoras mas com quebras nos momentos revolucionários que coincidem em certos pontos pensa Arendt com as manifestações originárias da política na Antiguidade grecoromana Revoluções para Arendt retraduzem possibilidade originária negada pela tradição Arendt x Heidegger Heidegger vai a Platão e Aristóteles Arendt para pensar o bios politikós deve se afastar do bios theoretikos ela busca respaldo em HOMERO experiência da ação e em TUCÍDIDES ação política para pensar a VIDA ATIVA Arendt vai criticar a concepção política originada pelo platonismo Totalitarismo A originalidade do totalitarismo é terrível não porque alguma ideia nova veio ao mundo mas porque as próprias ações desse movimento constituem uma ruptura com todas as tradições e categorias do pensamento político Depois de Auschwitz e do Gulag nenhuma crença racional no progresso nenhuma filosofia da história nenhuma definição metafísica do ser humano nenhuma ética prescritiva ou valor transcendente poderiam nos garantir certezas quanto ao futuro Nossa tradição da filosofia política fatal e infelizmente desde o seu começo privou de toda dignidade própria os assuntos humanos quer dizer aquelas atividades que concernem ao âmbito comumpúblico que se instaura onde quer que os homens vivam em conjunto Se Heidegger pensa na desconstrução da metafísica Arendt concentrase na reconstituição das experiências políticas que foram recalcadas pela metafísica ocidental Arendt vai remontar ao momento anterior da tradição filosófica e política Arendt A ruptura da tradição constitui uma situação verdadeiramente dramática pois já tornou nossa vida menos significativa nosso juízo menos seguro e nosso pensamento menos profundo do que eles jamais o foram antes Karl Marx and the tradition of Political Thought Passado não é tradição A tradição não existiu desde sempre A tradição também é fonte de esquecimento daquilo que ela exclui e seleciona ao transmitirse A tradição é uma invenção Romana ao aceitar como seus o legado do pensamento e cultura grega AUTORIDADE Na medida em que o passado foi transmitido como tradição possui autoridade A tradição teve uma influência FORMATIVA sobre a Europa Arendt Benjamin Heidegger Entenderam a tradição do pensamento ocidental como força ativa e seletiva que relegou ao esquecimento certas experiências e conceitos fundamentais Todos os 3 investem no desmantelamento da tradição para ver o que ficou impensado por ela Como pensar à sombra da ruptura da tradição Ou como Denken ohne Geländer pensar sem corrimão Para isso Arendt apropriase criticamente de algumas ideias de Heidegger e Benjamin eles foram os que melhor perceberam a ruptura irremediável com a tradição e entenderam a necessidade de nova relação com o passado e o presente Arendt e Benjamin Walter Benjamin pensa o empobrecimento da experiência e o enfraquecimento da memória na modernidade capitalista Hannah Arendt a perda do passado priva de sentido toda uma dimensão da existência humana a dimensão de grandeza potencial dos assuntos humanos do que é DIGNO DE RECORDAÇÃO e categoria de avaliação ESQUECER O PASSADO perdermos a profundidade Memória profundidade pois só se alcança a profundidade na recordação Arendt Kafka A parábola ilustra a temporalidade própria à atividade do pensamento O futuro não é o ainda não O futuro remete a mente humana para o passado que pode ser reatualizado O passado para Arendt não é apenas modelos heurísticos mas sim estoque de possibilidades políticas que podem irromper subitamente no presente O passado pode conter novos começos ao manifestar o que a própria tradição ocultou volta ao passado não conservadora Hannah Arendt Cada nova geração cada novo ser humano inserindose entre um passado infinito e um futuro infinito deve descobrilo e pavimentalo laboriosamente de novo Dos romanos até há pouco tempo a lacuna era transposta pela TRADIÇÃO mas o fio da tradição foi rompido Rompido o fio da tradição todos somos convocados a pensar o livro de Arendt é um movimento na lacuna exercícios de pensamento político O ENSAIO forma do livro é exercício de pensamento Pensar Aprender a pensar significa aprender a se situar na brecha entre o passado e o futuro buscando encontrar o próprio lugar no tempo no instante do pensamento ser juiz não de uma solução definitiva de problemas mas de respostas sempre novas Presente e passado uma história partida Como proceder não reconstituir o vínculo mas investigar o que na tradição não foi legado para buscar sob os escombros passado e presente a essência do Político Comentário da Questão André Duarte Pensar Aprender a pensar significa aprender a se situar na brecha entre o passado e o futuro buscando encontrar o próprio lugar no tempo no instante do pensamento ser juiz não de uma solução definitiva de problemas mas de respostas sempre novas Pensar é sempre pensar por si mesmo pois só se pode aprender por si mesmo como se instalar e se movimentar na brecha entre passado e futuro A herança da tradição deve ser legitimada pelo esforço criativo do pensamento independente A parábola de Kafka Ele A parábola em sua essência está contida no aforismo de Char Ela começa onde o aforismo acaba a ação já ocorreu a estória aguarda ser completada na MENTE dos que a herdam e a questionam Mas se a mente não consegue compreender ela se vê em meio ao combate kafkiano Espaçoentre Um espaçoentre relaciona os indivíduos entre si ao mesmo tempo que os separa Como uma mesa se interpõe para que as pessoas sentem ao redor O mundo criado pela obra humana e edificado como um lar sobre a terra é o espaço público a arena em que homens e mulheres agem e discursam tecendo a teia das relações humanas A parábola de Kafka revista por Arendt Kafka pensa o tempo retilineamente Ele quase não tem espaço para manter sua posição Se pensa em fugit é para o alto para além é para fora do espaçotempo Falta na parábola de Kafka uma dimensão espacial em que ele possa pensar um paralelogramo de forças Espaço entre verbete Espaço Público Dicionário Arendt Visibilidade característica intrínseca do que é público Elemento constitutivo da realidade para os seres humanos Nosso senso de realidade está condicionado a existência de um domínio público espaço que compartilho com outros humanos para experimentar o mundo Mundo comum não é o planeta Terra como ecossistema compartilhado Produtos do homo faber que fazem o mundo comum só adquirem sentido como elementos de visibilidade e comunidade convivência e compartilhamento Próximo lançamento Política Científica Heitor G de Souza e outros ISBN 9788527301176 deb 9788527301176 debates debates debates política ENTRE O PASSADO E O FUTURO h arendt hannah arendt ENTRE O PASSADO E O FUTURO Dentre os livros de Hannah Arendt é Entre o Passado e o Futuro aquele onde pulsa o conjunto de inquietações a partir do qual a autora ilumina a reflexão política do século XX Nele se contém praticamente todo o temário de sua obra constituindose portanto num excelente ponto de partida para o estudo de seu pensamento deb ates 64 PERSPECTIVA 5 A CRISE NA EDUCAÇÃO I A crise geral que acometeu o mundo moderno em toda parte e em quase toda esfera da vida se manifesta diversamente em cada país envolvendo áreas e assumindo formas diversas Na América um de seus aspectos mais característicos e sugestivos é a crise periódica na educação que se tornou no transcurso da última década pelo menos um problema político de primeira grandeza aparecendo quase diariamente no noticiário jornalístico Certamente não é preciso grande imaginação para detectar os perigos de um decli 221 nio sempre crescente nos padrões elementares na totalidade do sistema escolar e a seriedade do problema tem sido sublinhada apropriadamente pelos inúmeros esforços baldados das autoridades educacionais para deter a maré Apesar disso se compararmos essa crise na educação com as experiências políticas de outros países no século XX com a agitação revolucionária que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial com os campos de concentração e de extermínio ou mesmo com o profundo malestar que não obstante as aparências contrárias de propriedade se espalhou por toda a Europa a partir do término da Segunda Guerra Mundial é um tanto difícil dar a uma crise na educação a seriedade devida É de fato tentador considerála como um fenômeno local e sem conexão com as questões principais do século pelo qual se deveriam responsabilizar determinadas peculiaridades da vida nos Estados Unidos que não encontrariam provavelmente contrapartida nas demais partes do mundo Se isso fosse verdadeiro contudo a crise em nosso sistema escolar não se teria tornado um problema político e as autoridades educacionais não teriam sido incapazes de lidar com ela a tempo Certamente há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler Além disso há sempre a tentação de crer que estamos tratando de problemas específicos confinados a fronteiras históricas e nacionais importantes somente para os imediatamente afetados É justamente essa crença que se tem demonstrado invariavelmente falsa em nossa época podese admitir como uma regra geral neste século que qualquer coisa que seja possível em um país pode em futuro previsível ser igualmente possível em praticamente qualquer outro país À parte essas razões gerais que fariam parecer aconselhável ao leigo dar atenção a distúrbios em áreas acerca das quais em sentido especializado ele pode nada saber e esse é evidentemente o meu caso ao tratar de uma crise na educação posto que não sou educadora profissional há outra razão ainda mais convincente para que ele se preocupe com uma situação problemática na qual ele não está imediatamente envolvido É a oportunidade proporcionada pelo próprio fato da crise que dilacera fachadas e obliter a preconceitos de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu e a essência da educação é a natalidade o fato de que seres nascem para o mundo O desaparecimento de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas mas de qualquer modo julgamentos diretos Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos préformados isto é com preconceitos Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão Por mais claramente que um problema geral possa se apresentar em uma crise ainda assim é impossível chegar a isolar completamente o elemento universal das circunstâncias específicas em que ele aparece Embora a crise na educação possa afetar todo o mundo é significativo o fato de encontrarmos sua forma mais extrema na América e a razão é que talvez apenas na América uma crise na educação poderia se tornar realmente um fator na política Na América indiscutivelmente a educação desempenha um papel diferente e incomparavelmente mais importante politicamente do que em outros países Tecnicamente é claro a explicação reside no fato de que a América sempre foi uma terra de imigrantes como é óbvio a fusão extremamente difícil dos grupos étnicos mais diversos nunca completamente lograda mas superando continuamente as expectativas só pode ser cumprida mediante a instrução educação e americanização dos filhos de imigrantes Como para a maior parte dessas crianças o inglês não é a língua natal mas tem que ser aprendida na escola esta obviamente deve assumir funções que em uma naçãoestado seriam desempenhadas normalmente no lar Contudo o mais decisivo para nossas considerações é o papel que a imigração contínua desempenha 222 223 na consciência política e na estrutura psíquica do país A América não é simplesmente um país colonial carcendo de imigrantes para povoa r a terra embora independa deles em sua estrutura política Para a América o fator determinante sempre foi o lema impresso em toda nota de dólar Novus Ordo Seclorum Uma Nova Ordem do Mundo Os imigrantes os recémchegados são para o país uma garantia de que isto representa a nova ordem O significado dessa nova ordem dessa fundação de um novo mundo contra o antigo foi e é a eliminação da pobreza e da repressão Mas ao mesmo tempo sua grandeza consiste no fato de que desde o início essa nova ordem não se desligou do mundo exterior como costumava suceder alhures na fundação de utopias para confrontarse com um modelo perfeito e tampouco foi seu propósito impor pretensões imperiais ou ser pregada como um evangelho a outros Em vez disso sua relação com o mundo exterior caracterizouse desde o início pelo fato de esta república que planejava abolir a pobreza e a escravidão ter dado boasvindas a todos os pobres e escravizados do mundo Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 isto é antes da Declaração da Independência Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre toda a terra Esse foi o intento ou lei básica em conformidade com qual a América começou sua existência histórica e política O entusiasmo extraordinário pelo que é novo exibido em quase todos os aspectos da vida diária americana e a concomitante confiança em uma perfectibilidade ilimitada observada por Tocqueville como o credo do homem sem instrução comum e que como tal precede de quase cem anos o desenvolvimento em outros países do Ocidente presumivelmente resultariam de qualquer maneira em uma atenção maior e em maior importância dadas aos recémchegados por nascimento isto é as crianças as quais ao terem ultrapassado a infância e estarem prontas para ingressar na comunidade dos adultos como pessoas jovens eram os gregos chamavam simplesmente oí neói os novos Há o fato adicional contudo e que se tornou decisivo para o significado da educação de que esse pathos do novo embora consideravelmente anterior ao século XVIII somente se desenvolveu conceitual e politicamente naquele século Derivouse dessa fonte a princípio um ideal educacional impregnado de Rousseau e de fato diretamente influenciado por Rousseau no qual a educação tornouse um instrumento da política e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas a partir dos tempos antigos mostra o quanto parece natural iniciar um novo mundo com aqueles que são por nascimento e por natureza novos No que toca à política isso implica obviamente um grave equívoco ao invés de juntarse aos seus iguais assumindo o esforço de persuasão e correndo o risco do fracasso há a intervenção ditatorial baseada na absoluta superioridade do adulto e a tentativa de produzir o novo como um fait accompli isto é como se o novo já existisse Por esse motivo na Europa a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feito tirânico que ao chegarem ao poder subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam A educação não pode desempenhar papel nenhum na política pois na política lidamos com aqueles que já estão educados Quem quer que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedilos de atividade política Como não se pode educar adultos a palavra educação soa mal em política o que há é um simulacro de educação enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força Quem desejar seriamente criar uma nova ordem política mediante a educação isto é nem através de força e coação nem através da persuasão se verá obrigado à pavorosa conclusão platônica o banimento de todas as pessoas mais velhas do Estado a ser fundado Mas mesmo às crianças que se quer educar para que sejam cidadãos de um amanhã utópico é negado de fato seu próprio papel futuro no organismo político pois do ponto de vista dos mais novos o que quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente mais velho do que eles mesmos Pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recémchegados sua própria oportunidade face ao novo Tudo isso de modo algum ocorre na América e é exatamente esse fato que torna tão difícil julgar aqui corretamente esses problemas O papel político que a educação efetivamente representa em uma terra de imigrantes o fato de que as escolas não apenas servem para americanizar as crianças mas afetam também a seus pais e de que aqui as pessoas são de fato ajudadas a se desfazerem de um mundo antigo e a entrar em um novo mundo tudo isso encoraja a ilusão de que um mundo novo está sendo construído mediante a educação das crianças É claro que a verdadeira situação absolutamente não é esta O mundo no qual são introduzidas as crianças mesmo na América é um mundo velho isto é um mundo preexistente construído pelos vivos e pelos mortos e só é novo para os que acabaram de penetrar nele pela imigração Aqui porém a ilusão é mais forte do que a realidade pois brota diretamente de uma experiência americana básica qual seja a de que é possível fundar uma nova ordem e o que é mais fundála com plena consciência de um continuum histórico pois a frase Novo Mundo retira seu significado de Velho Mundo que embora admirável por outros motivos foi rejeitado por não poder encontrar nenhuma solução para a pobreza e para a opressão Com respeito à própria educação a ilusão emergente do pathos do novo produziu suas consequências mais sérias apenas em nosso próprio século Antes de mais nada possibilitou àquele complexo de modernas teorias educacionais originárias da Europa Central e que consistem de uma impressionante miscelânea de bom senso e absurdo levar a cabo sob a divisa da educação progressista uma radical revolução em todo o sistema educacional Aquilo que na Europa permanecia sendo um experimento testado aqui e ali em determinadas escolas e em instituições educacionais isoladas e estendendo depois gradualmente sua influência a alguns bairros na América há cerca de vinte e cinco anos atrás derrubou completamente como que de um dia para outro todas as tradições e métodos estabelecidos de ensino e de aprendizagem Não entrarei em detalhes e deixo de fora as escolas particulares e sobretudo o sistema escolar paroquial católicoromano O fato importante é que por causa de determinadas teorias boas ou más todas as regras do juízo humano normal foram postas de parte Um procedimento como esse possui sempre grande e perniciosa importância sobretudo em um país que confia em tão larga escala no bom senso em sua vida política Sempre que em questões políticas o são juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer respostas nos deparamos com uma crise pois essa espécie de juízo é na realidade aquele senso comum em virtude do qual nós e nossos cinco sentidos individuais estão adaptados a um único mundo comum a todos nós e com a ajuda do qual nele nos movemos O desaparecimento do senso comum nos dias atuais é o sinal mais seguro da crise atual Em toda crise é destruída uma parte do mundo alguma coisa comum a todos nós A falência do bom senso aponta como uma vara mágica o lugar em que ocorreu esse desmoronamento Em todo caso a resposta à questão Por que Joãozinho não sabe ler ou à questão mais geral Por que os níveis escolares da escola americana média achamse tão atrasados em relação aos padrões médios na totalidade dos países da Europa não é infelizmente simplesmente o fato de ser este um país jovem que não alcançou ainda os padrões do Velho Mundo mas ao contrário o fato de ser este país nesse campo particular o mais avançado e moderno do mundo E isso é verdadeiro em um dúplice sentido em parte alguma os problemas educacionais de uma sociedade de massas se tornaram tão agudos e em nenhum outro lugar as teorias mais modernas no cam po da Pedagogia foram aceitas tão servil e indiscriminadamente Desse modo a crise na educação americana de um lado anuncia a bancarrota da educação progressiva e de outro apresenta um problema imensamente difícil por ter surgido sob as condições de uma sociedade de massas e em resposta às suas exigências A esse respeito devemos ter em mente um outro fator mais geral que é certo não provocou a crise mas que a agravou em notável intensidade e que é o papel singular que o conceito de igualdade desempenha e sempre desempenhou na vida americana Há nisso muito mais que a igualdade perante a lei mais também que o nivelamento das distinções de classe e mais ainda que o expresso na frase igualdade de oportunidades embora esta tenha uma maior importância em nosso contexto dado que no modo de ver americano o direito à educação é um dos inalienáveis direitos cívicos Este último foi decisivo para a estrutura do sistema de escolas públicas porquanto escolas secundárias no sentido europeu constituem exceções Como a frequência escolar obrigatória se estende à idade de dezesseis anos toda criança deve chegar ao colégio e o colégio é portanto basicamente uma espécie de continuação da escola primária Em conseqüência dessa ausência de uma escola secundária a preparação para o curso superior tem que ser proporcionada pelos próprios cursos superiores cujos currículos padecem por isso de uma sobrecarga crônica a qual afeta por sua vez a qualidade do trabalho ali realizado Poderseia talvez pensar à primeira vista que essa anomalia pertence à própria natureza de uma sociedade de massas na qual a educação não é mais um privilégio das classes abastadas Uma vista dolhos na Inglaterra onde como todos sabem a educação secundária também foi posta à disposição em anos recentes de todas as classes da população mostrará que não é isso o que ocorre Lá ao fim da escola primária tendo os estudantes a idade de onze anos instituiuse o temível exame que elimina quase 10 dos escolares qualificados para instrução superior O rigor dessa seleção não foi aceito mesmo na Inglaterra sem protestos na América ele simplesmente teria sido impossível O que é intentado na Inglaterra é a meritocracia que é obviamente mais uma vez o estabelecimento de uma oligarquia dessa vez não de riqueza ou de nascimento mas de talento Mas isso significa mesmo que o povo inglês não esteja inteiramente esclarecido a respeito que mesmo sob um governo socialista o país continuará a ser governado como o tem sido desde tempos imemoriais isto é nem como monarquia nem como democracia porém como oligarquia ou aristocracia a última caso se admita o ponto de vista de que os mais dotados são também os melhores o que não é de modo algum uma certeza Na América uma divisão quase física dessa espécie entre crianças muito dotadas e pouco dotadas seria considerada intolerável A meritocracia contradiz tanto quanto qualquer outra oligarquia o princípio da igualdade que rege uma democracia igualitária Assim o que torna a crise educacional na América tão particularmente aguda é o temperamento político do país que espontaneamente peleja para igualar ou apagar tanto quanto possível as diferenças entre jovens e velhos entre dotados e pouco dotados entre crianças e adultos e particularmente entre alunos e professores É óbvio que um nivelamento desse tipo só pode ser efetivamente consumado às custas da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado dentre os estudantes Entretanto é igualmente óbvio pelo menos a qualquer pessoa que tenha tido algum contato com o sistema educacional americano que essa dificuldade enraizada na atitude política do país possui também grandes vantagens não apenas de tipo humano mas também educacionalmente falando em todo caso esses fatores gerais não podem explicar a crise em que nos encontramos presentemente e tampouco justificam as medidas que a precipitaram II Essas desastrosas medidas podem ser remontadas esquematicamente a três pressupostos básicos todos mais do que familiares O primeiro é o de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças autônomos e que se deve na medida do possível permitir que elas governem Os adultos aí estão apenas para auxiliar esse governo A autoridade que diz às crianças individualmente o que fazer e o que não fazer repousa no próprio grupo de crianças e isso entre outras consequências gera uma situação em que o adulto se acha impotente ante a criança individual e sem contato com ela Ele apenas pode dizerlhe que faça aquilo que lhe agrada e depois evitar que o pior aconteça As relações reais e normais entre crianças e adultos emergentes do fato de que pessoas de todas as idades se encontram sempre simultaneamente reunidas no mundo são assim suspensas E é assim da essência desse primeiro pressuposto básico levar em conta somente o grupo e não a criança individual Quanto à criança no grupo sua situação naturalmente é bem pior que antes A autoridade de um grupo mesmo que este seja um grupo de crianças é sempre consideravelmente mais forte e tirânica do que a mais severa autoridade de um indivíduo isolado Se a olharmos do ponto de vista da criança individual as chances desta de se rebelar ou fazer qualquer coisa por conta própria são praticamente nulas ela não se encontra mais em uma luta bem desigual com uma pessoa que é verdade tem absoluta superioridade sobre ela mas no combate a quem pode no entanto contar com a solidariedade das demais crianças isto é de sua própria classe em vez disso encontrase na posição por definição irremediável de uma minoria de um em confronto com a absoluta maioria dos outros Poucas pessoas adultas são capazes de suportar uma situação dessas mesmo quando ela não é sustentada por meios de compulsão externos as crianças são pura e simplesmente incapazes de fazêlo Assim ao emanciparse da autoridade dos adultos a criança não foi libertada e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica que é a tirania da maioria Em todo caso o resultado foi serem as crianças por assim dizer banidas do mundo dos adultos São elas ou jogadas a si mesmas ou entregues à tirania de seu próprio grupo contra o qual por sua superioridade numérica elas não podem se rebelar contra o qual por serem crianças não podem argumentar e do qual não podem escapar para nenhum outro mundo por lhes ter sido barrado o mundo dos adultos A reação das crianças a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil e frequentemente é uma mistura de ambos O segundo pressuposto básico que veio à tona na presente crise tem a ver com o ensino Sob a influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo a Pedagogia transformouse em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada Um professor pensavase é um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa sua formação é no ensino e não no domínio de qualquer assunto particular Essa atitude como logo veremos está naturalmente intimamente ligada a um pressuposto básico acerca da aprendizagem Além disso ela resultou nas últimas décadas em um negligenciamento extremamente grave da formação dos professores em suas próprias matérias particularmente nos colégios públicos Como o professor não precisa conhecer sua própria matéria não raro acontece encontrarse apenas um passo à frente de sua classe em conhecimento Isso quer dizer por sua vez que não apenas os estudantes são efetivamente abandonados a seus próprios recursos mas também que a fonte mais legítima da autoridade do professor como a pessoa que seja dada a isso a forma que se queira sabe mais e pode fazer mais que nós mesmos não é mais eficaz Dessa forma o professor nãoautoritário que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade não pode mais existir Contudo o pernicioso papel que representam na crise atual a Pedagogia e as escolas de professores só se tornou possível devido a uma teoria moderna acerca da aprendizagem Era muito simplesmente a aplicação do terceiro pressuposto básico em nosso contexto um pressuposto que o mundo moderno defendeu durante séculos e que encontrou expressão conceitual sis temática no Pragmatismo Esse pressuposto básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos e sua aplicação à educação é tão primária quanto óbvia consiste em substituir na medida do possível o aprendizado pelo fazer O motivo por que não foi atribuída nenhuma importância ao domínio que tenha o professor de sua matéria foi o desejo de leválo ao exercício contínuo da atividade de aprendizagem de tal modo que ele não transmitisse como se dizia conhecimento petrificado mas ao invés disso demonstrasse constantemente como o saber é produzido A intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos mas sim de inculcar uma habilidade e o resultado foi uma espécie de transformação de instituições de ensino em instituições vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar a dirigir um automóvel ou a utilizar uma máquina de escrever ou o que é mais importante para a arte de viver como ter êxito com outras pessoas e ser popular quanto foram incapazes de fazer com que a criança adquirisse os prérequisitos normais de um currículo padrão Entretanto essa descrição é falha não apenas por exagerar obviamente com o fito de aclarar um argumento como por não levar em conta como nesse processo se atribuiu importância toda especial à diluição levada tão longe quanto possível da distinção entre brinquedo e trabalho em favor do primeiro O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança Somente o que pode ser aprendido mediante o brinquedo faz justiça a essa vivacidade A atividade característica da criança pensavase está no brinquedo a aprendizagem no sentido antigo forçando a criança a uma atitude de passividade obrigavaa a abrir mão de sua própria iniciativa lúdica A íntima conexão entre essas duas coisas a substituição da aprendizagem pelo fazer e do trabalho pelo brincar pode ser ilustrada diretamente pelo ensino de línguas a criança deve aprender falando isto é fazendo e não pelo estudo da gramática e da sintaxe em outras palavras deve aprender um língua estranha da mesma maneira como quando criancinha aprendeu sua própria língua como que ao brincar e na continuidade ininterrupta da mera existência Sem mencionar a questão de saber se isso é possível ou não é possível em escala limitada somente quando se pode manter a criança o dia todo no ambiente de língua estrangeira é perfeitamente claro que esse processo tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância Aquilo que por excelência deveria preparar a criança para o mundo dos adultos o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar é extinto em favor da autonomia do mundo da infância Seja qual for a conexão entre fazer e aprender e qualquer que seja a validade da fórmula pragmática sua aplicação à educação ou seja ao modo de aprendizagem da criança tende a tornar absoluto o mundo da infância exatamente da maneira como observamos no caso do primeiro pressuposto básico Também aqui sob o pretexto de respeitar a independência da criança ela é excluída do mundo dos adultos e mantida artificialmente no seu próprio mundo na medida em que este pode ser chamado de um mundo Essa retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças o qual entre outras coisas consiste do ensino e da aprendizagem e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento de que a infância é uma etapa temporária uma preparação para a condição adulta A atual crise na América resulta do reconhecimento do caráter destrutivo desses pressupostos básicos e de uma desesperada tentativa de reformar todo o sistema educacional ou seja de transformálo inteiramente Ao fazêlo o que se está procurando de fato exceto quanto aos planos de uma imensa ampliação das facilidades de educação nas Ciências Físicas e em tecnologia não é mais que uma restauração o ensino será conduzido de novo com autoridade o brinquedo deverá ser interrompido durante as horas de aula e o trabalho sério retomado a ênfase será deslocada das habilidades extracurriculares para os conhecimentos prescritos no currículo falase mesmo por fim de transformar os atuais currículos dos professores de modo que eles mesmos tenham de aprender algo antes de se converterem em negligentes para com as crianças Essas reformas propostas que estão ainda em discussão e são de interesse puramente norteamericano não precisam nos ocupar aqui Não discutirei tampouco a questão mais técnica embora talvez a longo prazo ainda mais importante de como é possível reformular os currículos de escolas secundárias e elementares de todos os países de modo a preparálas para as exigências inteiramente novas do mundo de hoje O que importa para nossa argumentação é uma dupla questão Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional isto é quais são os motivos reais para que durante décadas se pudessem dizer e fazer coisas em contradição tão flagrante com o bom senso Em segundo lugar o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação não no sentido de que sempre se pode aprender dos erros o que não se deve fazer mas sim refletindo sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização ou seja sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana Começaremos com a segunda questão III Uma crise na educação em qualquer ocasião originaria séria preocupação mesmo se não refletisse como ocorre no presente caso uma crise e uma instabilidade mais gerais na sociedade moderna A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana que jamais permanece tal qual é porém se renova continuamente através do nascimento da vinda de novos seres humanos Esses recémchegados além disso não se acham acabados mas em um estado de vir a ser Assim a criança objeto da educação possui para o educador um duplo aspecto é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação é um novo ser humano e é um ser humano em formaçãoEsse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo e não se aplica às formas de vida animais corresponde a um duplo relacionamento o relacionamento com o mundo de um lado e com a vida de outro A criança partilha o estado de vir a ser com todas as coisas vivas com respeito à vida e seu desenvolvimento a criança é um ser humano em processo de formação do mesmo modo que um gatinho é um gato em processo de formação Mas a criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida Se a criança não fosse um recémchegado nesse mundo humano porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída a educação seria apenas uma função da vida e não teria que consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e na prática do viver que todos os animais assumem em relação a seus filhos Os pais humanos contudo não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento mas simultaneamente os introduziram em um mundo Eles assumem na educação a responsabilidade ao mesmo tempo pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo Essas duas responsabilidades de modo algum coincidem com efeito podem entrar em mútuo conflito A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança voltase em certo sentido contra o mundo a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo Porém também o mundo necessita de proteção para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração Por precisar ser protegida do mundo o lugar tradicional da criança é a família cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes Essas quatro paredes entre as quais a vida familiar privada das pessoas é vivida constitui um escudo contra o mundo e sobretudo contra o aspecto público do mundo Elas encerram um lugar seguro sem o que nenhuma coisa viva pode medrar Isso é verdade não somente para a vida da infância mas para a vida humana em geral Toda vez que esta é permanentemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança sua qualidade vital é destruída No mundo público comum a todos as pessoas são levadas em conta e assim também o trabalho isto é o trabalho de nossas mãos com que cada pessoa contribui para com o mundo comum porém a vida qua vida não interessa aí O mundo não lhe pode dar atenção e ela deve ser oculta e protegida do mundo Tudo que vive e não apenas a vida vegetativa emerge das trevas e por mais forte que seja sua tendência natural a orientarse para a luz mesmo assim precisa da segurança da escuridão para poder crescer Esse com efeito pode ser o motivo por que com tanta frequência crianças de pais famosos não dão em boa coisa A fama penetra as quatro paredes e invade seu espaço privado trazendo consigo sobretudo nas condições de hoje o clarão implacável do mundo público inundando tudo nas vidas privadas dos implicados de tal maneira que as crianças não têm mais um lugar seguro onde possam crescer Ocorre porém exatamente a mesma destruição do espaço vivo real toda vez que se tenta fazer das próprias crianças um espécie de mundo Entre esses grupos de iguais surge então uma espécie de vida pública e sem levar absolutamente em conta o fato de que esta não é uma vida pública real e de que toda a empresa é de certa forma uma fraude permanece o fato de que as crianças isto é seres humanos em processo de formação porém ainda não acabados são assim forçadas a se expor à luz da existência pública Parece óbvio que a educação moderna na medida em que procura estabelecer um mundo de crianças destrói as condições necessárias ao desenvolvimento e crescimento vitais Contudo chocanos como algo realmente estranho que tal dano ao desenvolvimento da criança seja o resultado da educação moderna pois esta sustentava que seu único propósito era servir a criança rebelandose contra os métodos do passado por não levarem suficientemente em consideração a natureza íntima da criança e suas necessidades O Século da Criança como podemos lembrar iria emancipar a criança e liberála dos padrões originários de um mundo adulto Como pôde então acontecer que as mais elementares condições de vida necessárias ao crescimento e desenvolvimento da criança fossem desprezadas ou simplesmente ignoradas Como pôde acontecer que se expusesse a criança àquilo que mais que qualquer outra coisa caracterizava o mundo adulto o seu aspecto público logo após se ter chegado à conclusão de que o erro em toda a educação passada fora ver a criança como não sendo mais que um adulto em tamanho reduzido O motivo desse estranho estado de coisas nada tem a ver diretamente com a educação deve antes ser procurado nos juízos e preconceitos acerca da natureza da vida privada e do mundo público e sua relação mútua características da sociedade moderna desde o início dos tempos modernos e que os educadores ao começarem relativamente tarde a modernizar a educação aceitaram como postulados evidentes por si mesmos sem consciência das conseqüências que deveriam acarretar necessariamente para a vida da criança É uma peculiaridade de nossa sociedade de modo algum uma coisa necessária considerar a vida isto é a vida terrena dos indivíduos e da família como o bem supremo por esse motivo em contraste com todos os séculos anteriores ela emancipou essa vida e todas as atividades envolvidas em sua preservação e enriquecimento do ocultamento da privatividade expondoa à luz do mundo público É esse o sentido real da emancipação dos trabalhadores e das mulheres não como pessoas sem dúvida mas na medida em que preenchem uma função necessária no processo vital da sociedade Os últimos a serem afetados por esse processo de emancipação foram as crianças e aquilo mesmo que significaria uma verdadeira liberação para os trabalhadores e mulheres pois eles não eram somente traba lhadores e mulheres mas também pessoas tendo portanto direito ao mundo público isto é a serem e serem vistos a falar e serem ouvidos constituiu abandono e traição no caso das crianças que ainda estão no estágio em que o simples fato da vida e do crescimento prepondera sobre o fator personalidade Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público ou seja quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e viceversa mais difíceis torna as coisas para suas crianças que pedem por natureza a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento Por mais graves que possam ser essas violações das condições para o crescimento vital é certo que elas não foram de todo intencionais o objetivo central de todos os esforços da educação moderna foi o bemestar da criança fato esse que evidentemente não se torna menos verdadeiro caso os esforços feitos nem sempre tenham logrado êxito em promover o bemestar da maneira esperada A situação é inteiramente diversa na esfera das tarefas educacionais não mais dirigidas para a criança porém à pessoa jovem ao recémchegado e forasteiro nascido em um mundo já existente e que não conhece Tais tarefas são basicamente mas não exclusivamente responsabilidade das escolas competem à sua alçada o ensino e a aprendizagem e o fracasso neste campo é o problema mais urgente da América atualmente O que jaz na base disso Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola No entanto a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sêlo ela é em vez disso a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição de alguma forma da família para o mundo Aqui o comparecimento não é exigido pela família e sim pelo Estado isto é o mundo público e assim em relação à criança a escola representa em certo sentido o mundo embora não seja ainda o mundo de fato Nessa etapa da educação sem dúvida os adultos assumem mais uma vez uma responsabilidade pela criança só que agora essa não é tanto a responsabilidade pelo bemestar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos pessoais Isto do ponto de vista geral e essencial é a singularidade que distingue cada ser humano de todos os demais a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro no mundo mas alguma coisa que jamais esteve aí antes Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo devese introduzila aos poucos a ele na medida em que ela é nova devese cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição em relação ao mundo como ele é Em todo caso todavia o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças e é preciso proibila de tomar parte em sua educação Na educação essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade a qualificação por maior que seja nunca engendra por si só autoridade A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo Face à criança é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos apontando os detalhes e dizendo à criança Isso é o nosso mundo Pois bem sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade Qualquer que seja nossa atitude pessoal face a este problema é óbvio que na vida pública e política a autoridade ou não representa mais nada pois a violência e o terror exercidos pelos países totalitários evidentemente nada têm a ver com autoridade ou no máximo desempenha um papel altamente contestado Isso contudo simplesmente significa em essência que as pessoas não querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo Ao removermos a autoridade da vida política e pública pode ser que isso signifique que de agora em diante se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada seja a responsabilidade de dar ordens seja a de obedecêlas Não resta dúvida de que na perda moderna da autoridade ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes simultanea e inextricavelmente trabalhado juntas Na educação ao contrário não pode haver tal ambigüidade face à perda hodierna de autoridade As crianças não podem derrubar a autoridade educacional como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na prática educacional moderna A autoridade foi recusada pelos adultos e isso somente pode significar uma coisa que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças Evidentemente há uma conexão entre a perda de autoridade na vida pública e política e nos âmbitos privados e prépolíticos da família e da escola Quanto mais radical se torna a desconfiança face à autoridade na esfera pública mais aumenta naturalmente a probabilidade de que a esfera privada não permaneça incólume Há o fato adicional muito provavelmente decisivo de que há tempos imemoriais nos acostumamos em nossa tradição de pensamento político a considerar a autoridade dos pais sobre os filhos e de professores sobre alunos como o modelo por cujo intermédio se compreendia a autoridade política É justamente tal modelo que pode ser encontrado já em Platão e Aristóteles que confere tão extraordinária ambigüidade ao conceito de autoridade em política Ele se baseia sobretudo em uma superioridade absoluta que jamais poderia existir entre adultos e que do ponto de vista da dignidade humana não deve nunca existir Em segundo lugar ao seguir o modelo da criação dos filhos baseiase em uma superioridade puramente temporária tornandose pois autocontraditório quando aplicado a relações que por natureza não são temporárias como as relações entre governantes e governados Decorre da natureza do problema isto é da natureza da atual crise de autoridade e da natureza de nosso pensamento político tradicional que a perda de autoridade iniciada na esfera política deva terminar na esfera privada obviamente não é acidental que o lugar em que a autoridade política foi solapada pela primeira vez isto é a América seja onde a crise moderna da educação se faça sentir com maior intensidade A perda geral de autoridade de fato não poderia encontrar expressão mais radical do que sua intrusão na esfera prépolítica em que a autoridade parecia ser ditada pela própria natureza e independer de todas as mudanças históricas e condições políticas O homem moderno por outro lado não poderia encontrar nenhuma expressão mais clara para sua insatisfação com o mundo para seu desgosto com o estado de coisas que sua recusa a assumir em relação às crianças a responsabilidade por tudo isso É como se os pais dissessem todos os dias Nesse mundo mesmo nós não estamos muito a salvo em casa como se movimentar nele o que saber quais habilidades dominar tudo isso também são mistérios par anos Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem em todo caso vocês não têm o direito de exigir satisfações Somos inocentes lavamos as nossas mãos por vocês Essa atitude é claro nada tem a ver com o desejo revolucionário de uma nova ordem no mundo Novus Ordo Seclorum que outrora animou a América mais que isso é um sintoma daquele moderno estranhamento do mundo visível em toda parte mas que se apresenta em forma particularmente radical e desesperada sob as condições de uma sociedade de massa É verdade que as experiências pedagógicas modernas têm assumido e não só na América poses muito revolucionárias o que ampliou até certo ponto a dificuldade de identificar a situação com clareza provocando certo grau de confusão na discussão do problema Em contradição com todos esses comportamentos continua existindo o fato inquestionável de que durante o período em que a América foi realmente animada por este espírito revolucionário ela jamais sonhou iniciar a nova ordem pela educação permanecendo ao contrário conservadora em matéria educacional A fim de evitar malentendidos pareceme que o conservadorismo no sentido de conservação faz parte da essência da atividade educacional cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa a criança contra o mundo o mundo contra a criança o novo contra o velho o velho contra o novo Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo que é aí assumida implica é claro uma atitude conservadora Mas isso permanece válido apenas no âmbito da educação ou melhor nas relações entre adultos e crianças e não no âmbito da política onde agimos em meio a adultos e com iguais Tal atitude conservadora em política aceitando o mundo como ele é procurando somente preservar o status quo não pode senão levar à destruição visto que o mundo tanto no todo como em parte é irrevogavelmente fadado à ruína pelo tempo a menos que existam seres humanos determinados a intervir a alterar a criar aquilo que é novo As palavras de Hamlet The time is out of joint O cursed spite that ever I was born to set it right são mais O tempo está fora dos eixos Ó ódio maldito ter nascido para colocálo em ordem 242 ou menos verídicas para cada nova geração embora tenham adquirido talvez desde o início de nosso século uma validade mais persuasiva do que antes Basicamente estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha pois é essa a situação humana básica em que o mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado O mundo visto que feito por mortais se desgasta é dado que seus habitantes mudam continuamente corre o risco de tornarse mortal como eles Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes ele deve ser continuamente posto em ordem O problema é simplesmente educar de tal modo que um poremordem continue sendo efetivamente possível ainda que não possa nunca é claro ser assegurado Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso porém é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós os velhos possamos ditar sua aparência futura Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora ela deve preservar essa novidade e introduzila como algo novo em um mundo velho que por mais revolucionário que possa ser em suas ações é sempre do ponto de vista da geração seguinte obsolete e rente à destruição IV A verdadeira dificuldade na educação moderna está no fato de que a despeito de toda a conversa da moda acerca de um novo conservadorismo até mesmo aquele mínimo de conservação e de atitude conservadora sem o qual a educação simplesmente não é possível se torna em nossos dias extraordinariamente difícil de atingir Há sólidas razões para isso A crise da autoridade na educação guarda a mais estreita conexão com a crise da tradição ou seja com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado É sobremodo difícil para o educador arcar com esse aspecto 243 da crise moderna pois é de seu ofício servir como mediador entre o velho e o novo de tal modo que sua própria profissão lhe exige um respeito extraordinário pelo passado Durante muitos séculos isto é por todo o período da civilização romanocristã não foi necessário tomar consciência dessa qualidade particular de si próprio pois a reverência ante o passado era parte essencial da mentalidade romana e isso não foi modificado ou extinto pelo Cristianismo mas apenas deslocado sobre fundamentos diferentes Era da essência da atitude romana embora de maneira alguma isso fosse verdadeiro para qualquer civilização ou mesmo para a tradição ocidental como um todo considerar o passado qua passado como um modelo os antepassados em cada instância como exemplos de conduta para seus descendentes crer que toda grandeza jaz no que foi e portanto que a mais excelente qualidade humana é a idade provecta que o homem envelhecido visto ser já quase um antepassado pode servir de modelo para os vivos Tudo isso se põe em contradição não só com nosso mundo e com a época moderna da Renascença em diante como por exemplo com a atitude grega diante da vida Quando Goethe disse que envelhecer é o gradativo retirarse do mundo das aparências sua observação era feita no espírito dos gregos para os quais ser e aparência coincidiam A atitude romana teria sido que justamente ao envelhecer e ao desaparecer gradativamente da comunidade dos mortais o homem atinge sua forma mais característica de existência ainda que em relação ao mundo das aparências esteja em vias de desaparecer isto porque somente agora ele se pode acercar da existência na qual ele será uma autoridade para os outros Contra o pano de fundo inabalado de uma tradição dessa natureza na qual a educação possui uma função política e esse caso era único é de fato relativamente fácil fazer direito as coisas em matéria de educação sem sequer fazer uma pausa para apreciar o que se está fazendo tão completo é o acordo entre o ethos específico do princípio pedagógico e as convicções éticas e morais básicas da sociedade como um todo Nas palavras de Políbio educar era simplesmente fazervos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados e nesse mister o educador podia ser um companheiro de luta ou um companheiro de trabalho por ter também embora em nível diverso atravessado a vida com os olhos grudados no passado Companheirismo e autoridade não eram nesse caso senão dois aspectos da mesma substância e a autoridade do mestre arraigavase firmemente na autoridade inclusiva do passado enquanto tal Hoje em dia porém não nos encontramos mais em tal posição não faz muito sentido agirmos como se a situação fosse a mesma como se apenas nos houvéssemos como que extraviado do caminho certo sendo livres para a qualquer momento reencontrar o rumo Isso quer dizer que não se pode onde quer que a crise haja ocorrido no mundo moderno ir simplesmente em frente e tampouco simplesmente voltar para trás Tal retrocesso nunca nos levará a parte alguma exceto à mesma situação da qual a crise acabou de surgir O retorno não passaria de uma repetição da execução embora talvez em forma diferente visto não haver limites às possibilidades de noções absurdas e caprichosas que são ataviadas como a última palavra em ciência Por outro lado a mera e irrefletida perseverança seja pressionando para frente a crise seja aderindo à rotina que acredita bonachonamente que a crise não engolfará sua esfera particular de vida só pode visto que se rende ao curso do tempo conduzir à ruína para ser mais precisa ela só pode aumentar o estranhamento do mundo pelo qual já somos ameaçados de todos os flancos Ao considerar os princípios da educação temos de levar em conta esse processo de estranhamento do mundo podemos até admitir que nos defrontamos aqui presumivelmente com um processo automático sob a única condição de não esquecermos que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos O problema da educação no mundo moderno está no fato de por sua natureza não poder esta abrir mão nem da autoridade nem da tradição e ser obrigada apesar disso a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido 244 245 coeso pela tradição Isso significa entretanto que não apenas professores e educadores porém todos nós na medida em que vivemos em um mundo junto à nossas crianças e aos jovens devemos ter em relação a eles uma atitude radicalmente diversa da que guardamos um para com o outro Cumpre divorciarmos decisivamente o âmbito da educação dos demais e acima de tudo do âmbito da vida pública e política para aplicar exclusivamente a ele um conceito de autoridade e uma atitude face ao passado que lhe são apropriados mas não possuem validade geral não devendo reclamar uma aplicação generalizada no mundo dos adultos Na prática a primeira consequência disso seria uma compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é e não instruílas na arte de viver Dado que o mundo é velho sempre mais que elas mesmas a aprendizagem voltase inevitavelmente para o passado não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente Em segundo lugar a linha traçada entre crianças e adultos deveria significar que não se pode nem educar adultos nem tratar crianças como se elas fossem maduras jamais se deveria permitir porém que tal linha se tornasse uma muralha a separar as crianças da comunidade adulta como se não vivessem elas no mesmo mundo e como se a infância fosse um estado humano autônomo capaz de viver por suas próprias leis É impossível determinar mediante uma regra geral onde a linha limítrofe entre a infância e a condição adulta recai em cada caso Ela muda freqüentemente com respeito à idade de país para país de uma civilização para outra e também de indivíduo para indivíduo A educação contudo ao contrário da aprendizagem precisa ter um final previsível Em nossa civilização esse final coincide provavelmente com o diploma colegial não com a conclusão do curso secundário pois o treinamento profissional nas universidades ou cursos técnicos embora sempre tenha algo a ver com a educação é não obstante em si mesmo uma espécie de especialização Ele não visa mais a introduzir o jovem no mundo como um todo mas sim em um segmento limitado e particular dele Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera com muita facilidade em retórica moral e emocional É muito fácil porém ensinar sem educar e podese aprender durante o dia todo sem por isso ser educado Tudo isso são detalhes particulares contudo que na verdade devem ser entregues aos especialistas e pedagogos O que nos diz respeito e que não podemos portanto delegar à ciência específica da pedagogia é a relação entre adultos e crianças em geral ou para colocálo em termos ainda mais gerais e exatos nossa atitude face ao fato da natalidade o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e com tal gesto salválo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsálas de nosso mundo e abandonálas a seus próprios recursos e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós preparandoas em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum 246 247 Ensaio Crítico Educação e Literatura no Mundo Contemporâneo 1 Introdução A interseção entre educação e literatura é um campo de estudo que possui profundas implicações para o desenvolvimento humano e a coesão social especialmente em um mundo caracterizado por mudanças vertiginosas e inovações constantes Nos últimos anos temos testemunhado uma aceleração exponencial em diversos setores impulsionada por avanços tecnológicos transformações econômicas e reconfigurações sociais que remodelam continuamente o tecido da sociedade global Neste cenário de incessante evolução a literatura emerge como uma poderosa ferramenta educacional não apenas como um meio de transmissão de conhecimentos mas como um canal privilegiado para o desenvolvimento crítico ético e emocional dos indivíduos O pensamento de Hannah Arendt e Antonio Candido oferece uma base teórica robusta para explorar essa complexa relação entre educação e literatura no contexto contemporâneo Arendt em obras seminal como Entre o Passado e o Futuro e Responsabilidade e Julgamento reflete sobre a importância do julgamento crítico e da capacidade de reflexão no processo educativo destacando que a educação deve preparar os indivíduos não apenas para compreender o mundo mas para interagir com ele de maneira significativa e responsável Arendt argumenta que a verdadeira educação deve instigar o amor pelo mundo e a capacidade de julgar com discernimento elementos que são intrinsecamente cultivados através do engajamento com textos literários Antonio Candido por sua vez em O Direito à Literatura advoga que a literatura não é um luxo mas um direito fundamental capaz de humanizar e enriquecer a vida dos indivíduos Candido vê a literatura como um veículo para a ampliação da experiência humana promovendo a empatia e a compreensão das complexidades da condição humana Ele argumenta que a literatura possui um papel crucial na formação do ser humano integral fornecendo uma lente através da qual os leitores podem examinar suas próprias vidas e o mundo ao seu redor À medida que enfrentamos um período de transformações rápidas e profundasonde as tecnologias emergentes e as mudanças sociais desafiam constantemente as normas estabelecidas a literatura pode oferecer uma forma de resistência cultural e uma âncora para a identidade pessoal Através da literatura os adultos podem explorar novas formas de ver e entender a si mesmos e suas realidades proporcionando um espaço para a introspecção e a construção de um pensamento crítico resiliente Além disso o engajamento com a literatura na educação de adultos pode proporcionar um contrapeso necessário à cultura da velocidade e da superficialidade que permeia muitos aspectos da vida moderna Em um ambiente onde a informação é consumida rapidamente e as interações são frequentemente efêmeras a literatura oferece uma oportunidade para uma reflexão mais profunda e significativa permitindo que os indivíduos se reconectem com valores e experiências que transcendem o imediatismo do presente Portanto ao considerar a aplicação da literatura na educação de adultos é essencial reconhecer tanto as potencialidades quanto os desafios que acompanham essa integração As perspectivas de Arendt e Cândido nos orientam na exploração de como a literatura pode servir não apenas como uma fonte de conhecimento e prazer estético mas como uma força vital na construção de uma educação que responde às necessidades de um mundo em constante mudança promovendo cidadãos mais críticos éticos e culturalmente enriquecidos Assim a literatura não se apresenta apenas como uma forma de arte mas como um componente essencial de uma educação que busca formar indivíduos capazes de navegar com discernimento e profundidade as complexidades do mundo contemporâneo 2 Educação e Literatura Fundamentos Teóricos Hannah Arendt propõe que a educação representa um dos pilares fundamentais para a perpetuação e renovação de uma sociedade Ela vê a educação não apenas como uma ferramenta para a transmissão de conhecimento mas como uma prática que incute nos indivíduos a responsabilidade de reconstituir um mundo em constante transformação Em Responsabilidade e Julgamento Arendt articula que a essência da educação reside na sua capacidade de cultivar o julgamento crítico e a habilidade de agir de forma ética e ponderada Para Arendt a educação deve ir além do mero repasse de informações deve essencialmente formar indivíduos capazes de avaliar criticamente as circunstâncias e tomar decisões informadas e responsáveis Este enfoque na formação do julgamento crítico é especialmente relevante quando consideramos a literatura como um componente central na educação de adultos A literatura ao apresentar narrativas complexas e dilemas éticos oferece um contexto seguro e rico para a exploração de questões morais e sociais Arendt sugere que ao engajarse com a literatura os adultos não só ampliam seu repertório de conhecimentos mas também desenvolvem a capacidade de discernir e refletir sobre questões éticas e humanísticas Assim a leitura de obras literárias proporciona um terreno fértil para o desenvolvimento de um pensamento crítico sofisticado que é vital para a participação ativa e responsável na sociedade contemporânea Por sua vez Antonio Candido em sua obra seminal O Direito à Literatura defende que a literatura deve ser considerada um direito básico fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano Ele argumenta que a literatura possui uma função humanizadora essencial capaz de ampliar a sensibilidade e a compreensão social dos indivíduos Candido postula que o contato com textos literários permite aos leitores transcender as limitações de suas experiências imediatas promovendo uma empatia profunda e uma visão ampliada da condição humana A literatura ao estimular a imaginação e a introspecção enriquece o indivíduo de forma única proporcionando uma compreensão mais rica e multifacetada das realidades humanas A partir da perspectiva de Candido a literatura serve não apenas como um meio de entretenimento ou erudição mas como uma ferramenta crucial para a formação de cidadãos conscientes e engajados Ao permitir que os leitores explorem e compreendam diferentes experiências e perspectivas a literatura contribui para a formação de uma cidadania mais empática e socialmente responsável Esta humanização através da literatura é vital em um mundo onde as interações sociais são frequentemente mediadas por tecnologias que podem desumanizar e fragmentar as experiências pessoais Ao considerar a educação de adultos as visões de Arendt e Candido se complementam e se reforçam Arendt nos mostra que a educação deve preparar os indivíduos para julgar e agir no mundo enquanto Candido ressalta que a literatura é uma das ferramentas mais poderosas para cultivar essa capacidade A literatura então emerge como um campo de prática educacional onde se pode fomentar não só o conhecimento e a habilidade crítica mas também a profundidade ética e a sensibilidade social necessárias para enfrentar as complexidades do mundo contemporâneo Ela permite que os adultos encontrem um espaço de reflexão e crescimento pessoal que transcende o imediatismo e a superficialidade que muitas vezes caracterizam a vida moderna Portanto integrar a literatura na educação de adultos não é apenas uma questão de enriquecer o currículo mas de proporcionar uma formação que promove o desenvolvimento integral do indivíduo alinhando o conhecimento crítico com uma compreensão ética e empática do mundo Essa abordagem amplia a função da educação de preparar indivíduos não só para sobreviver mas para contribuir de forma significativa e responsável na construção e renovação contínua da sociedade 3 As Possibilidades da Literatura na Educação de Adultos A literatura em seu vasto campo de possibilidades desempenha um papel crucial na educação de adultos especialmente em um mundo onde a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais pode criar um ambiente desestabilizador e alienante As transformações contemporâneas muitas vezes desafiam a capacidade dos indivíduos de se conectarem profundamente com suas experiências e identidades gerando uma necessidade premente de ancoragem cultural e introspecção crítica Nesse contexto a literatura se destaca como uma ferramenta poderosa que pode atuar como um catalisador para o desenvolvimento da consciência crítica e como um meio de resistência cultural e pessoal Conforme argumentado por Hannah Arendt o papel fundamental do educador é introduzir os alunos no amor ao mundo Arendt sustenta que a verdadeira educação deve transcender a mera acumulação de fatos estimulando um pensamento que esteja intrinsecamente ligado à capacidade de julgar e compreender o mundo em profundidade A literatura com suas narrativas ricas e personagens multifacetados proporciona um terreno ideal para este tipo de educação Através da leitura de textos literários os adultos são incentivados a explorar e refletir sobre dilemas éticos e sociais desenvolvendo uma consciência crítica que é essencial para a formação de cidadãos reflexivos e engajados Narrativas literárias complexas permitem que os leitores experimentem uma multiplicidade de perspectivas e realidades muitas vezes diferentes de suas próprias Esse encontro com o outro literário promove a empatia e a compreensão capacitando os leitores a questionar e expandir seus próprios horizontes Em um mundo onde a rapidez das informações muitas vezes leva à superficialidade e ao pensamento fragmentado a literatura oferece um espaço para a introspecção e a análise profunda Ao envolverse com personagens e tramas que exploram as nuances da condição humana os leitores são desafiados a examinar suas próprias crenças e valores desenvolvendo habilidades críticas que são vitais para navegar as complexidades do mundo contemporâneo Além de ser uma fonte de desenvolvimento crítico a literatura também serve como um meio de resistência cultural e pessoal Em um contexto onde as rápidas mudanças tecnológicas e sociais frequentemente resultam na alienação dos indivíduos de suas próprias tradições e experiências a literatura pode oferecer um ponto de ancoragem Textos clássicos e contemporâneos funcionam como uma ponte que conecta o presente ao passado permitindo que os leitores revisitem suas próprias histórias e tradições Essa conexão com o passado não só enriquece a compreensão do presente mas também proporciona uma base sólida a partir da qual os indivíduos podem enfrentar e interpretar as mudanças contínuas do mundo ao seu redor A literatura ao trazer à tona temas universais e atemporais permite que os adultos reencontrem e reflitam sobre suas próprias identidades e perspectivas Em meio a um turbilhão de mudanças a literatura oferece um espaço de constância e reflexão que pode ser essencial para a manutenção da coesão pessoal e cultural Ao revisitar e reinterpretar textos os adultos têm a oportunidade de reafirmar suas próprias narrativas e valores tornandose mais resilientes e capacitados para lidar com as complexidades e incertezas da vida moderna Em suma a literatura oferece uma gama de possibilidades enriquecedoras para a educação de adultos em um mundo de rápidas transformações Ela não só atua como um veículo para o desenvolvimento da consciência crítica ajudando os indivíduos a refletirem e questionarem suas próprias realidades mas também serve como um baluarte contra a alienação proporcionando uma ancoragem cultural que é fundamental para a identidade e o bemestar pessoal Ao integrar a literatura na educação de adultos criamos oportunidades para um engajamento mais profundo e significativo com o mundo capacitando os indivíduos a navegar as mudanças com uma perspectiva crítica e enraizada em uma compreensão rica da condição humana 4 Desafios Embora a literatura ofereça inúmeras oportunidades enriquecedoras para a educação de adultos a sua integração enfrenta desafios significativos exacerbados pelo contexto contemporâneo dominado pela tecnologia e pela informação instantânea Neste cenário os textos literários com suas exigências de leitura atenta e reflexão profunda podem parecer anacrônicos ou até irrelevantes para uma população acostumada à rapidez e à superficialidade da cultura digital Tal como argumenta José Sérgio Fonseca de Carvalho em Educação Uma Herança sem Testamento a educação moderna tende a enfatizar habilidades técnicas e utilitárias muitas vezes em detrimento do desenvolvimento crítico e humanístico Esta tendência representa um obstáculo substancial pois a valorização da literatura na educação de adultos exige uma reconceituação dos objetivos educacionais que deve transcender a mera formação para a empregabilidade A literatura em sua essência demanda um tempo e um espaço que parecem cada vez mais escassos na era digital Os textos literários exigem uma dedicação e uma profundidade de engajamento que estão em contraste com a imediaticidade das interações contemporâneas nas redes sociais e outras plataformas digitais Este descompasso pode levar à percepção de que a literatura é menos relevante ou menos valiosa em comparação com habilidades técnicas mais imediatamente aplicáveis no mercado de trabalho Para integrar a literatura efetivamente na educação de adultos é necessário um esforço consciente para realinhar os objetivos educacionais destacando a importância do desenvolvimento intelectual e emocional que a literatura pode proporcionar Além disso a diversidade de experiências de vida entre os adultos apresenta um desafio adicional significativo para a integração da literatura na educação Ao contrário das crianças e jovens que muitas vezes têm experiências de vida mais homogêneas e currículos educacionais mais padronizados os adultos trazem consigo uma vasta gama de vivências conhecimentos prévios e contextos culturais Essas experiências diversas podem influenciar profundamente a recepção e a interpretação dos textos literários criando uma necessidade de abordagens pedagógicas flexíveis e inclusivas Hannah Arendt em suas reflexões sobre educação sugere que a formação educativa deve respeitar e integrar essas diversas perspectivas promovendo um espaço onde múltiplas vozes e experiências possam se encontrar e dialogar No entanto a implementação prática dessa abordagem pode ser desafiadora A literatura deve ser selecionada e apresentada de maneiras que ressoem com as experiências individuais dos alunos proporcionando um ponto de conexão entre os textos e as realidades pessoais dos leitores Isso requer uma cuidadosa curadoria de obras que sejam capazes de dialogar com uma variedade de contextos e que promovam tanto a reflexão pessoal quanto o diálogo coletivo A adaptação dos textos literários às experiências diversas dos adultos pode envolver a escolha de obras que abordem temas universais ou que reflitam questões contemporâneas relevantes para diferentes grupos demográficos Além disso estratégias pedagógicas que incentivem a partilha de interpretações e experiências podem enriquecer a compreensão coletiva e fomentar um ambiente de aprendizado mais inclusivo e dinâmico Os educadores devem estar atentos às diversas histórias e realidades dos alunos utilizando a literatura como um ponto de partida para discussões que abracem e valorizem essas diferenças Em conclusão a integração da literatura na educação de adultos embora desafiadora é essencial para o desenvolvimento de uma educação que valorize não apenas as habilidades técnicas mas também a capacidade crítica a sensibilidade cultural e a profundidade ética Enfrentar os desafios de relevância e diversidade requer uma abordagem educacional que reconheça a importância de realinhar os objetivos da educação para incluir a formação humanística e que celebre a riqueza das experiências individuais dos alunos utilizando a literatura como uma ponte para a compreensão mútua e o crescimento pessoal 5 Reflexões Finais A relação entre educação e literatura é inerentemente rica e multifacetada adquirindo camadas adicionais de complexidade no contexto da educação de adultos Este vínculo profundamente explorado nas obras de Hannah Arendt e Antônio Cândido revela como a literatura pode atuar como um veículo poderoso para o desenvolvimento do pensamento crítico e a reafirmação dos valores humanísticos especialmente em uma era marcada por rápidas e profundas transformações tecnológicas e sociais Arendt e Cândido fornecem uma base teórica a partir da qual podemos entender como a literatura pode ser usada para fomentar uma educação que não apenas equipa os adultos com conhecimentos técnicos mas também com a profundidade intelectual e emocional necessária para navegar as complexidades do mundo moderno Hannah Arendt com suas reflexões sobre a educação e o julgamento enfatiza a importância de uma educação que transcenda a simples transmissão de conhecimento factual Ela argumenta que a educação deve preparar os indivíduos para o amor ao mundo e para o julgamento crítico capacidades essenciais para interagir com um mundo em constante mudança A literatura ao engajar os leitores com dilemas morais e narrativas que exploram a condição humana serve como um meio para desenvolver essas capacidades críticas e reflexivas No contexto da educação de adultos a literatura oferece um espaço seguro para explorar questões complexas e promover o crescimento intelectual emocional e ético Antonio Candido em sua defesa da literatura como um direito humano fundamental ressalta que o envolvimento com textos literários enriquece a experiência individual e coletiva Ele vê a literatura como uma ponte entre as tradições culturais e as emergentes realidades sociais facilitando um diálogo que é vital para a formação de uma cidadania engajada e consciente No contexto da educação de adultos esse diálogo é particularmente crucial pois permite que os indivíduos conectem suas experiências de vida com as lições universais encontradas na literatura fortalecendo tanto sua compreensão pessoal quanto sua participação na comunidade No entanto a implementação prática dessa abordagem enfrenta desafios substanciais A integração significativa da literatura na educação de adultos requer um compromisso renovado com uma forma de educação que valorize tanto a técnica quanto a profundidade intelectual e emocional Em um mundo onde a educação é frequentemente orientada por demandas imediatas do mercado de trabalho há uma necessidade urgente de reequilibrar o foco educacional para incluir o desenvolvimento humanístico Isso implica em criar currículos que incorporem a literatura de maneira que ela não seja vista apenas como um adorno cultural mas como uma ferramenta central para o crescimento pessoal e social Para efetivamente navegar as complexidades do mundo contemporâneo a educação de adultos deve se esforçar para integrar a literatura de formas que ressoem com as demandas emergentes da sociedade ao mesmo tempo que preservam o valor das tradições literárias Isso pode ser feito promovendo um diálogo contínuo entre a literatura e as realidades atuais utilizando textos literários para explorar questões contemporâneas e desafiar os alunos a refletir criticamente sobre suas próprias experiências e sobre o mundo ao seu redor Ao fazer isso a literatura não só enriquece o indivíduo proporcionando um espaço para a reflexão e o desenvolvimento crítico mas também fortalece a comunidade contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes engajados e capazes de participar ativamente na construção de uma sociedade mais justa e equitativa Portanto a educação de adultos que integra a literatura de forma significativa pode servir como um modelo para um tipo de educação que se adapta às rápidas mudanças do mundo contemporâneo enquanto permanece fiel aos valores humanísticos essenciais Esta abordagem não apenas equipa os indivíduos com habilidades para o presente mas também cultiva a capacidade de pensamento crítico e a profundidade emocional necessária para enfrentar os desafios futuros Em última análise a literatura quando integrada na educação de adultos contribui para o desenvolvimento de uma cidadania que é informada reflexiva e profundamente engajada no tecido social promovendo uma sociedade mais coesa e resiliente diante das rápidas mudanças 6 Bibliografia ARENDT Hannah Entre o Passado e o Futuro São Paulo Perspectiva 2011 ARENDT Hannah Responsabilidade e Julgamento São Paulo Companhia das Letras 2011 CANDIDO Antonio O Direito à Literatura São Paulo Companhia das Letras 2004 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Educação Uma Herança sem Testamento Campinas Papirus 1995 GADAMER HansGeorg Verdade e Método Petrópolis Vozes 2013 MEURER José Luiz A Literatura na Formação do Pensamento Crítico Educação e Pesquisa vol 40 no 2 2014 pp 319332 SILVA Tânia Ramos de Literatura e Educação A Formação do Sujeito Crítico Revista Brasileira de Educação vol 19 no 57 2014 pp 375390 ANTONIO CANDIDO VÁRIOS ESCRITOS 5ª edição corrigida pelo autor Ouro sobre Azul Rio de Janeiro 2011 O DIREITO À LITERATURA 1 O assunto que me foi confiado nesta série é aparentemente meio desligado dos problemas reais Direitos humanos e literatura As maneiras de abordálo são muitas mas não posso começar a falar sobre o tema específico sem fazer algumas reflexões prévias a respeito dos próprios direitos humanos É impressionante como em nosso tempo somos contraditórios neste capítulo Começo observando que em comparação a eras passadas chegamos a um máximo de racionalidade técnica e de domínio sobre a natureza Isso permite imaginar a possibilidade de resolver grande número de problemas materiais do homem quem sabe inclusive o da alimentação No entanto a irracionalidade do comportamento é também máxima servida frequentemente pelos mesmos meios que deveriam realizar os desígnios da racionalidade Assim com a energia atômica podemos ao mesmo tempo gerar força criadora e destruir a vida pela guerra com o incrível progresso industrial aumentamos o conforto até alcançar níveis nunca sonhados mas excluímos dele as grandes massas que condenamos à miséria em certos países como o Brasil quanto mais cresce a riqueza mais aumenta a péssima distribuição dos bens Portanto podemos dizer que os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria Ora na Grécia antiga por exemplo teria sido impossível pensar numa distribuição equitativa dos bens materiais porque a técnica ainda não permitia superar as formas brutais de exploração do homem nem criar abundância para todos Mas em nosso tempo é possível pensar nisso e no entanto pensamos relativamente pouco Essa insensibilidade nega uma das linhas mais promissoras da história do homem ocidental aquela que se nutriu das ideias amadurecidas no correr dos séculos XVIII e XIX gerando o liberalismo e tendo igualdade de tratamento Do ponto de vista social é preciso haver leis específicas garantindo este modo de ver Por isso a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes mas os que garantem a integridade espiritual São incompressíveis certamente a alimentação a moradia o vestuário a instrução a saúde a liberdade individual o amparo da justiça pública a resistência à opressão etc e também o direito à crença à opinião ao lazer e por que não à arte e à literatura Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria Como noutros casos a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia isto é elas só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal ou pelo menos de frustração mutiladora A nossa questão básica portanto é saber se a literatura é uma necessidade deste tipo Só então estaremos em condições de concluir a respeito indispensável deste universo independentemente da nossa vontade E durante a vigília a criação ficcional ou poética que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades está presente em cada um de nós analfabeto ou erudito como anedota causo história em quadrinhos noticiário policial canção popular moda de viola samba carnavalesco Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance Ora se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações Portanto assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono talvez não haja equilíbrio social sem a literatura Deste modo ela é fator indispensável de humanização e sendo assim confirma o homem na sua humanidade inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente Neste sentido ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional como a educação familiar grupal ou escolar Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos as suas crenças os seus sentimentos as suas normas a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação entrando nos currículos sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo Os valores que a sociedade preconiza ou os que considera prejudiciais estão presentes nas diversas manifestações da ficção da poesia e da ação dramática A literatura confirma e nega propõe e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita a que os poderes no socialismo a sua manifestação mais coerente Elas abriram perspectivas que pareciam levar à solução dos problemas dramáticos da vida em sociedade E de fato durante muito tempo acreditouse que removidos uns tantos obstáculos como a ignorância e os sistemas despóticos de governo as conquistas do progresso seriam canalizadas no rumo imaginado pelos utopistas porque a instrução o saber e a técnica levariam necessariamente à felicidade coletiva No entanto mesmo onde estes obstáculos foram removidos a barbárie continuou entre os homens Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização Penso que o movimento pelos direitos humanos se entronca aí pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam mas do máximo viável de igualdade e justiça em correlação a cada momento da história Mas esta verificação desalentadora deve ser compensada por outra mais otimista nós sabemos que hoje os meios materiais necessários para nos aproximarmos desse estágio melhor existem e que muito do que era simples utopia se tornou possibilidade real Se as possibilidades existem a luta ganha maior cabimento e se torna mais esperançosa apesar de tudo o que o nosso tempo apresenta de negativo Quem acredita nos direitos humanos procura transformar a possibilidade teórica em realidade empenhandose em fazer coincidir uma com a outra Inversamente um traço sinistro do nosso tempo é saber que é possível a solução de tantos problemas e no entanto não se empenhar nela Mas de qualquer modo no meio da situação atroz em que vivemos há perspectivas animadoras É verdade que a barbárie continua até crescendo mas não se vê mais o seu elogio como se todos soubessem que ela é algo a ser ocultado e não proclamado Sob este aspecto os tribunais de Nuremberg foram um sinal dos tempos novos mostrando que já não é admissível a um general vitorioso mandar fazer inscrições dizendo que construiu uma pirâmide com as cabeças dos inimigos mortos ou que mandou cobrir as muralhas de Nínive com as suas peles escorchadas Fazemse coisas parecidas e até piores mas elas não constituem motivo de celebração Para emitir uma nota positiva no fundo do horror acho que isso é um sinal favorável pois se o mal é praticado mas não proclamado quer dizer que o homem não o acha mais tão natural No mesmo sentido eu interpretaria certas mudanças no comportamento quotidiano e na fraseologia das classes dominantes Hoje não se afirma com a mesma tranquilidade do meu tempo de menino que haver pobres é a vontade de Deus que eles não têm as mesmas necessidades dos abastados que os empregados domésticos não precisam descansar que só morre de fome quem for vadio e coisas assim Existe em relação ao pobre uma nova atitude que vai do sentimento de culpa até o medo Nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro não são mais tema predileto das piadas porque a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas e o temor é um dos caminhos para a compreensão Sintoma complementar eu vejo na mudança do discurso dos políticos e empresários quando aludem à sua posição ideológica ou aos problemas sociais Todos eles a começar pelo presidente da República fazem afirmações que até pouco tempo seriam consideradas subversivas e hoje fazem parte do palavreado bempensante Por exemplo que não é mais possível tolerar as grandes diferenças econômicas sendo necessário promover uma distribuição equitativa É claro que ninguém se empenha para que de fato isto aconteça mas tais atitudes e pronunciamentos parecem mostrar que agora a imagem da injustiça social constrange e que a insensibilidade em face da miséria deve ser pelo menos disfarçada porque pode comprometer a imagem dos dirigentes Esta hipocrisia generalizada tributo que a iniquidade paga à justiça é um modo de mostrar que o sofrimento já não deixa tão indiferente a média da opinião Do mesmo modo os políticos e empresários de hoje não se declaram conservadores como antes quando a expressão classes conser sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante A respeito destes dois lados da literatura convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais como acontece com a própria vida da qual é imagem e transfiguração Isto significa que ela tem papel formador da personalidade mas não segundo as convenções seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria realidade Por isso nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco Daí a ambivalência da sociedade em face dele suscitando por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever No âmbito da instrução escolar o livro chega a gerar conflitos porque o seu efeito transcende as normas estabelecidas Numa palestra feita há mais de quinze anos em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência sobre o papel da literatura na formação do homem chamei a atenção entre outras coisas para os aspectos paradoxais desse papel na medida em que os educadores ao mesmo tempo preconizam e temem o efeito dos textos literários De fato dizia eu há conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica segundo os padrões oficiais e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores Ela não corrompe nem edifica portanto mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal humaniza em sentido profundo porque faz viver 4 A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador talvez humanizador porque contraditório Analisandoa podemos distinguir pelo menos três faces 1 ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado 2 ela é uma forma de expressão isto é manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos 3 ela é uma forma de conhecimento inclusive como incorporação difusa e inconsciente Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto isto é porque transmite uma espécie de conhecimento que resulta em aprendizado como se ela fosse um tipo de instrução Mas não é assim O efeito das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos embora costumemos pensar menos no primeiro que corresponde à maneira pela qual a mensagem é construída mas esta maneira é o aspecto senão mais importante com certeza crucial porque é o que decide se uma comunicação é literária ou não Comecemos por ele Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto de objeto construído e é grande o poder humanizador desta construção enquanto construção De fato quando elaboram uma estrutura o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de coerência gerado pela força da palavra organizada Se fosse possível abstrair o sentido e pensar nas palavras como tijolos de uma construção eu diria que esses tijolos representam um modo de organizar a matéria e que enquanto organização eles exercem papel ordenador sobre a nossa mente Quer percebamos claramente ou não o caráter de coisa organizada da obra literária tornase um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos e em consequência mais capazes de organizar a visão que temos do mundo Por isso um poema hermético de entendimento difícil sem nenhuma alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo pode funcionar neste sentido pelo fato de ser um tipo de ordem sugerindo um modelo de superação do caos A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado Este é o primeiro nível humanizador ao contrário do que geralmente se pensa A organização da palavra comunicase ao nosso espírito e o leva primeiro a se organizar em seguida a organizar o mundo Isto ocorre desde as formas mais simples como a quadrinha o provérbio a história de bichos que sintetizam a experiência e a reduzem a sugestão norma conselho ou simples espetáculo mental ções sugestões inculcamentos mas na maior parte se processa nas camadas do subconsciente e do inconsciente incorporandose em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar As produções literárias de todos os tipos e todos os níveis satisfazem necessidades básicas do ser humano sobretudo através dessa incorporação que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo O que ilustrei por meio do provérbio e dos versos de Gonzaga ocorre em todo o campo da literatura e explica por que ela é uma necessidade universal imperiosa e por que fruíla é um direito das pessoas de qualquer sociedade desde o índio que canta as suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia até o mais requintado erudito que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético Em todos esses casos ocorre humanização e enriquecimento da personalidade e do grupo por meio de conhecimento oriundo da expressão submetida a uma ordem redentora da confusão Entendo aqui por humanização já que tenho falado tanto nela o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais como o exercício da reflexão a aquisição do saber a boa disposição para com o próximo o afinamento das emoções a capacidade de penetrar nos problemas da vida o senso da beleza a percepção da complexidade do mundo e dos seres o cultivo do humor A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza a sociedade o semelhante Isso posto devemos lembrar que além do conhecimento por assim dizer latente que provém da organização das emoções e da visão do mundo há na literatura níveis de conhecimento intencional isto é planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor Estes níveis são os que chamam imediatamente a atenção e é neles que o autor injeta as suas intenções de propaganda ideologia crença revolta adesão etc Um poema abolicionista de Castro Alves atua pela eficiência da sua organização formal pela qualidade do sentimento que exprime mas também pela natureza da sua posição política e humanitária Nestes casos a literatura satisfaz em outro nível à necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade ajudandonos a tomar posição em face deles É aí que se situa a literatura social na qual pensamos quase exclusivamente quando se trata de uma realidade tão política e humanitária quanto a dos direitos humanos que partem de uma análise do universo social e procuram retificar as suas iniquidades Falemos portanto alguma coisa a respeito das produções literárias nas quais o autor deseja expressamente assumir posição em face dos problemas Disso resulta uma literatura empenhada que parte de posições éticas políticas religiosas ou simplesmente humanísticas São casos em que o autor tem convicções e deseja exprimilas ou parte de certa visão da realidade e a manifesta com tonalidade crítica Daí pode surgir um perigo afirmar que a literatura só alcança a verdadeira função quando é deste tipo Para a Igreja Católica durante muito tempo a boa literatura era a que mostrava a verdade da sua doutrina premiando a virtude castigando o pecado Para o regime soviético a literatura autêntica era a que descrevia as lutas do povo cantava a construção do socialismo ou celebrava a classe operária São posições falhas e prejudiciais à verdadeira produção literária porque têm como pressuposto que ela se justifica por meio de finalidades alheias ao plano estético que é o decisivo De fato sabemos que em literatura uma mensagem ética política religiosa ou mais geralmente social só tem eficiência quando for reduzida a estrutura literária a forma ordenadora Tais mensagens são válidas como quaisquer outras e não podem ser proscritas mas a sua validade depende da forma que lhes dá existência como um certo tipo de objeto 5 Feita esta ressalva vou me demorar na modalidade de literatura que visa a descrever e eventualmente a tomar posição em face das iniquidades sociais as mesmas que alimentam o combate pelos direitos humanos Falei há pouco de Castro Alves exemplo brasileiro que geralmente lembramos nesses casos A sua obra foi em parte um poderoso libelo contra a escravidão pois ele assumiu posição de luta e contribuiu para a causa que procurava servir O seu efeito foi devido ao talento do poeta que fez obra autêntica porque foi capaz de elaborar em termos esteticamente válidos os pontos de vista humanitários e políticos Animado pelos mesmos sentimentos e dotado de temperamento igualmente generoso foi Bernardo Guimarães que escreveu o romance A escrava Isaura também como libelo No entanto visto que só a intenção e o assunto não bastam esta é uma obra de má qualidade e não satisfaz os requisitos que asseguram a eficiência real do texto A paixão abolicionista estava presente na obra de ambos os autores mas um deles foi capaz de criar a organização literária adequada e o outro não A eficácia humana é função da eficácia estética e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura ou seja a capacidade de criar formas pertinentes Isso não quer dizer que só serve a obra perfeita A obra de menor qualidade também atua e em geral um movimento literário é constituído por textos de qualidade alta e textos de qualidade modesta formando no conjunto uma massa de significados que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos Para exemplificar vejamos o caso do romance humanitário e social do começo do século XIX por vários aspectos uma resposta da literatura ao impacto da industrialização que como se sabe promoveu a concentração urbana em escala nunca vista criando novas e mais terríveis formas de miséria inclusive a da miséria posta diretamente ao lado do bemestar com o pobre vendo a cada instante os produtos que não poderia obter Pela primeira vez a miséria se tornou um espetáculo inevitável e todos tiveram de presenciar a sua terrível realidade nas imensas concentrações urbanas para onde eram conduzidas ou enxotadas as massas de camponeses destinados ao trabalho industrial inclusive como exército faminto de reserva Saindo das regiões afastadas e dos interstícios da sociedade a miséria se instalou nos palcos da civilização e foi se tornando cada vez mais odiosa à medida que se percebia que ela era o quinhão injustamente imposto aos verdadeiros produtores da riqueza os operários aos quais foi preciso um século de lutas para verem reconhecidos os direitos mais elementares Não é preciso recapitular o que todos sabem mas apenas lembrar que naquele tempo a condição de vida sofreu uma deterioração terrível que logo alarmou as consciências mais sensíveis e os observadores lúcidas gerando não apenas livros como o de Engels sobre a condição da classe trabalhadora na Inglaterra mas uma série de romances que descrevem a nova situação do pobre Assim o pobre entra de fato e de vez na literatura como tema importante tratado com dignidade não mais como delinquente personagem cômico ou pitoresco Enquanto de um lado o operário começava a se organizar para a grande luta secular na defesa dos seus direitos ao mínimo necessário de outro lado os escritores começavam a perceber a realidade desses direitos iniciando pela narrativa da sua vida suas quedas seus triunfos sua realidade desconhecida pelas classes bem aquinhoadas Este fenômeno é em grande parte ligado ao Romantismo que se teve aspectos francamente tradicionalistas e conservadores teve também outros messiânicos e humanitários de grande generosidade bastando lembrar que o socialismo que se configurou naquele momento é sob muitos aspectos um movimento de influência romântica Ali pelos anos de 18201830 nós vemos o aparecimento de um romance social por vezes de corte humanitário e mesmo certos toques messiânicos focalizando o pobre como tema literário importante Foi o caso de Eugène Sue escritor de segunda ordem mais extremamente significativo de um momento histórico Nos seus livros ele penetrou no universo da miséria mostrou a convivência do crime e da virtude misturando os delinquentes e os trabalhadores honestos descrevendo a persistência da pureza no meio do vício numa visão complexa e mesmo convulsa da sociedade industrial no seu início Talvez o livro mais característico do humanitarismo romântico seja Os miseráveis de Victor Hugo Um dos seus temas básicos é a ideia de que a pobreza a ignorância e a opressão geram o crime ao qual o homem é por assim dizer condenado pelas condições sociais De maneira poderosa apesar de declamatória e prolixa ele retrata as contradições da sociedade do tempo e focaliza uma série de problemas graves Por exemplo o da criança brutalizada pela família o orfanato a fábrica o explorador o que seria um traço frequente no romance do século XIX NOs miseráveis há a história da pobre mãe solteira Fantine que confia a filha a um par de sinistros malandros de cuja tirania brutal ela é salva pelo criminoso regenerado Jean Valjean Victor Hugo manifestou em vários outros lugares da sua obra a piedade pelo menor desvalido e brutalizado inclusive de maneira simbólica nO homem que ri história do filho de um nobre inglês proscrito que é entregue a uma quadrilha de bandidos especializados em deformar crianças para vendêlas como objetos de divertimento dos grandes No caso o pequeno é operado nos lábios e músculos faciais de maneira a ter um rictus permanente que o mantém como se estivesse sempre rindo É Gwymplaine cuja mutilação representa simbolicamente o estigma da sociedade sobre o desvalido Dickens tratou do assunto em mais de uma obra como Oliver Twist onde narra a iniquidade dos orfanatos e a utilização dos meninos pelos ladrões organizados que os transformam no que hoje chamamos trombadinhas Leitor de Eugéne Sue e Dickens Dostoievski levou a extremos de patético o problema da violência contra a infância até chegar à violação sexual confessada por Stavrogine em Os demônios Muito da literatura messiânica e humanitária daquele tempo não estou incluindo Dostoievski que é outro setor nos parece hoje declamatória e por vezes cômica Mas é curioso que o seu travo amargo resiste no meio do que já envelheceu de vez mostrando que a preocupação com o que hoje chamamos direitos humanos pode dar à literatura uma força insuspeitada E reciprocamente que a literatura pode incutir em cada um de nós o sentimento de urgência de tais problemas Por isso creio que a entrada do pobre no temário do romance no tempo do Romantismo e o fato de ser tratado nele com a devida dignidade é um momento relevante no capítulo dos direitos humanos através da literatura A partir do período romântico a narrativa desenvolveu cada vez mais o lado social como aconteceu no Naturalismo que timbrou em tomar como personagens centrais o operário o camponês o pequeno artesão o desvalido a prostituta o discriminado em geral Na França Émile Zola conseguiu fazer uma verdadeira epopeia do povo oprimido e explorado em vários livros da série dos RougonMacquart retratando as consequências da miséria da promiscuidade da espoliação econômica o que fez dele um inspirador de atitudes e ideias políticas Sendo ele próprio inicialmente apolítico interessado apenas em analisar objetivamente os diversos níveis da sociedade esta consequência da sua obra nada tinha a ver com suas intenções Mas é interessante que a força política latente dos seus textos acabou por leválo à ação e tornálo um dos maiores militantes na história da inteligência empenhada Isto se deu quando ele assumiu posição contra a condenação injusta do capitão Alfred Dreyfus cujo processo graças ao seu famoso panfleto Jaccuse entrou em fase de revisão terminada pela absolvição final Mas antes desse desfecho que não chegou a ver porque já morrera Zola foi julgado e condenado à prisão por ofensa ao Exército o que o obrigou a se refugiar na Inglaterra Aí está um exemplo completo de autor identificado com a visão social da sua obra que acaba por reunir produção literária e militância política Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos românticos quanto no caso da literatura realista na qual a crítica assume o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade estamos em face de exemplo de literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930 quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre Isso foi devido sobretudo ao fato do romance de tonalidade social ter passado da denúncia retórica ou da mera descrição a uma espécie de crítica corrosiva que podia ser explícita como em Jorge Amado ou implícita como em Graciliano Ramos mas que em todos eles foi muito eficiente naquele período contribuindo para incentivar os sentimentos radicais que se generalizaram no país Foi uma verdadeira onda de desmascaramento social que aparece não apenas nos que ainda lemos hoje como os dois citados e mais José Lins do Rego Rachel de Queiroz ou Érico Veríssimo mas em autores menos lembrados como Abguar Bastos Guilhermino Cesar Emil Farhat Amando Fontes para não falar de tantos outros praticamente esquecidos mas que contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados em expor e denunciar a miséria a exploração econômica a marginalização o que os torna como os outros figurantes de uma luta virtual pelos direitos humanos Seria o caso de João Cordeiro Clovis Amorim Lauro Palhano etc Acabei de focalizar a relação da literatura com os direitos humanos de dois ângulos diferentes Primeiro verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza nos liberta do caos e portanto nos humaniza Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade Em segundo lugar a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos ou de negação deles como a miséria a servidão a mutilação espiritual Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos A organização da sociedade pode restringir ou ampliar a fruição deste bem humanizador O que há de grave numa sociedade como a brasileira é que ela mantém com a maior dureza a estratificação das possibilidades tratando como se fossem compressíveis muitos bens materiais e espirituais que são incompressíveis Em nossa sociedade há fruição segundo as classes na medida em que um homem do povo está praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de Machado de Assis ou Mário de Andrade Para ele ficam a literatura de massa o folclore a sabedoria espontânea a canção popular o provérbio Estas modalidades são importantes e nobres mas é grave considerálas como suficientes para a grande maioria que devido à pobreza e à ignorância é impedida de chegar às obras eruditas Nessa altura é preciso fazer duas considerações uma relativa à difusão possível das formas de literatura erudita em função da estrutura e da organização da sociedade outra relativa à comunicação entre as esferas da produção literária Para que a literatura chamada erudita deixe de ser privilégio de pequenos grupos é preciso que a organização da sociedade seja feita de maneira a garantir uma distribuição equitativa dos bens Em princípio só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil onde a maioria da população é analfabeta ou quase e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura Por isso numa sociedade estratificada deste tipo a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante Pelo que sabemos quando há um esforço real de igualitarização há aumento sensível do hábito de leitura e portanto difusão crescente das obras A União Soviética que neste capítulo é modelar fez um grande esforço para isto e lá as tiragens editoriais alcançam números para nós inverossímeis inclusive de textos inesperados como os de Shakespeare que em nenhum outro país é tão lido segundo vi registrado nalgum lugar Como seria a situação numa sociedade idealmente organizada com base na sonhada igualdade completa que nunca conhecemos e talvez nunca venhamos a conhecer No entusiasmo da construção socialista Trotski previa que nela a média dos homens seria do nível de Aristóteles Goethe e Marx Utopia à parte é certo que quanto mais igualitária for a sociedade e quanto mais lazer proporcionar maior deverá ser a difusão humanizadora das obras literárias e portanto a possibilidade de contribuírem para o amadurecimento de cada um Nas sociedades de extrema desigualdade o esforço dos governos esclarecidos e dos homens de boa vontade tenta remediar na me de cada um Mas para surpresa geral o que quiseram na grande maioria foi aprender bem a sua língua muitos estavam ainda ligados aos dois aos dialectos regionais e conhecer a literatura italiana Em segundo lugar queriam aprender violino Este belo exemplo leva a falar no poder universal dos grandes clássicos que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica pois têm a capacidade de interessar a todos e portanto devem ser levados ao maior número Para ficar na Itália é o caso assombroso da Divina comédia conhecida em todos os níveis sociais e por todos eles consumida como alimento humanizador Mais ainda dezenas de milhares de pessoas sabem de cor os trinta e quatro cantos do Inferno um número menor sabe de cor não apenas o Inferno mas também o Purgatório e muitos mil sabem além deles o Paraíso num total de cem cantos e mais de treze mil versos Lembro de ter conhecido na minha infância em Poços de Caldas o velho sapateiro italiano Crispino Caponi que sabia o Inferno completo e recitava qualquer canto que se pedisse sem parar de bater as suas solas Os italianos são hoje alfabetizados e a Itália é um país saturado da melhor cultura Mas noutros países mesmo os analfabetos podem participar bem da literatura erudita quando lhes é dada a oportunidade Se for permitida outra lembrança pessoal contarei que quando eu tinha doze anos na mesma cidade de Poços de Caldas um jardineiro português e sua esposa brasileira ambos analfabetos me pediram para lhes ler o Amor de perdição de Camilo Castelo Branco que já tinham ouvido de uma professora na fazenda onde trabalhavam antes e que os havia fascinado Eu atendi e verifiquei como assimilavam bem com emoção inteligente O Fausto o Dom Quixote Os Lusíadas Machado de Assis podem ser fruídos em todos os níveis e seriam fatores inestimáveis de afinamento pessoal se a nossa sociedade iníqua não segregasse as camadas impedindo a difusão dos produtos culturais eruditos e confinando o povo a apenas uma parte da cultura a chamada popular A este respeito o Brasil se distingue pela alta taxa de iniqui 192 bolo para o reino suprasensível assim como é entendido pela metafísica em vez de Deus ele agora usa a expressão mundo verdadeiro e diz Abolimos o mundo verdadeiro O que restou Talvez o aparente Oh não Com o mundo verdadeiro abolimos também o aparente Essas mortes modernas de Deus da metafísica da filosofia e por implicação do positivismo podem ser acontecimentos de grande importância mas são afinal acontecimentos do pensamento e apesar de dizerem respeito muito intimamente a nossos modos de pensar não dizem respeito a nossa capacidade de pensar ao simples fato de que o homem é um ser pensante Com isso quero dizer que o homem tem uma inclinação e a menos que seja pressionado por necessidades mais urgentes da vida até uma necessidade a necessidade da razão de Kant de pensar além das limitações do conhecimento de realizar mais com as suas capacidades intelectuais o poder de seu cérebro do que usálas como um instrumento para conhecer e fazer O nosso desejo de conhecer quer surja das necessidades práticas das perplexidades teóricas ou da pura curiosidade pode ser satisfeito quando se alcança o objetivo pretendido e embora a nossa sede de conhecimento possa ser insaciável por causa da imensidão do desconhecido de modo que toda região do conhecimento abra outros horizontes de conhecimentos possíveis a própria atividade deixa atrás de si um tesouro crescente de conhecimento que é retido e armazenado por toda civilização como parte do seu mundo A atividade de conhecer não é menos uma atividade de construção de mundo do que a construção das casas A inclinação ou a necessidade de pensar ao contrário mesmo que não provocada por nenhuma das veneráveis questões supremas metafísicas e irresponsáveis não deixa nada de tão tangível atrás de si nem pode ser saciada por intuições supostamente definitivas dos sábios A necessidade de pensar só pode ser satisfeita pelo pensar e os pensamentos que tive ontem somente satisfarão essa necessidade hoje à medida que eu possa pensálos novamente Devemos a Kant a distinção entre pensar e conhecer entre a razão a premência de pensar e compreender e o intelecto que deseja e é capaz de certo conhecimento verificável O próprio Kant acreditava que a necessidade de pensar além das limitações do conhecimento só era despertada pelas antigas questões metafísicas de Deus liberdade e imortalidade e que ele tinha considerado necessário negar o conhecimento para dar lugar à fé ao proceder desse modo ele lançou os fundamentos de uma futura metafísica sistemática como um legado para a posteridade Mas isso só mostra que Kant ainda preso à tradição da metafísica nunca teve plena consciência do que tinha feito e seu legado para a posteridade revelouse a destruição de todos os fundamentos possíveis dos sistemas metafísicos Pois a capacidade e a necessidade de pensar não se restringem absolutamente a qualquer tema específico como as questões que a razão propõe e sabe que nunca será capaz de responder Kant não negou o conhecimento mas separou o conhecer do pensar e abriu espaço não para fé mas para o pensamento Como certa vez sugeriu ele na verdade eliminou os obstáculos pelos quais a razão atrapalha a si mesma Em nosso contexto e para nossos fins essa distinção entre conhecer e pensar é crucial Se a capacidade de distinguir o certo do errado tiver alguma coisa a ver com a capacidade de pensar então devemos ser capazes de exigir o seu exercício de toda pessoa sã por mais erudita ou ignorante inteligente ou estúpida que se mostre Kant a esse respeito quase o único entre os filósofos ficava muito incomodado com a opinião comum de que a filosofia só existe para uns poucos precisamente por causa das implicações morais dessa opinião Nessa linha ele observou certa vez que A estupidez é causada por um coração malvado uma declaração que nessa forma não é verdadeira A incapacidade de pensar não é 231 a E E q Sa E3 C EA ED Caa CaU in a hI3 cO VI0A a a i i a F U B gg eg g a IE 3N ES ba Z EU M EZ Z H r a i Ln O a A 1g g aa g a E0II Q bb b VI CO cS a aSa a on I cS hI 8 I B eg hID0 laB LP B C CS0 INLA 3U g a 1 cS IN3B cd 1B cB A0 C I CS0 VI C aa aU cBU n cS VI E0a VI g ca hI0 E eg r10 V0 r1 G a tO C a3a G S E3 bO He I aU 1 aJ CS b q aU cB VI 0a V DE I cS E I 0 L U n VI hI0 E VI q tO Lb cB b CUaa0 L a0 ta a E a a a qa rea B U a E tO0 lai LFa a cS0 tai LP 3U 1 a 1 VI0 C aU D VI a hI0 VI q hI VI0B cO 0Z B C0A a hIA0 VI lgQ a nd I W In a VI a fu0 Ua D a 3 C 0 6 I S r I 0 a a BIa a n aZ0n C ENd 0 a q a a hD InIn3 lb E C N JiC a g 0bZ Ed E 9 ba D R 0 h ra 3 C go 0 hIaP L a g a E g C bq 8aaaa eaa a E 0 ra ail 0Ua3 ELI B cr00al S fn n0 C iii C q 1 lg 8 gal IN d Uce E a g e E gO aIAq a Ei g g F A 8 LU B g0U a C E go PX 0 3 a jn 11g 1g b 1i j 8 gE 0 iN LPa 01 1 i 1 SO gig H 7 iB ai gg D6a 3 C a CSa i T HI 3 Sl ii E g g i S a U E J cd ijU di N g E C I 2 Q LU 00 Lr Fri F0N CPI Ph LP qa Ri U Rx 8a 8 a Iq S Q Q a re S Q 2Aa Bb 1 g cS a asa C on a li e B R bE gcB NH 88 SS n d T B a C rd CUa eu on g nd al0 cr 0 0 al LaV III 11g a 13 a FnH U 8 E gl r Ba cB U So aa ca C INU U a cd0 tai LA3U0 b AIa L r 01 CFI X cO hI cd I 3 C B I aal0 hIF g D Ci F a O8a 1 r alel rJ U T 1 1 K 1 J 1 1 1 P I I I n j I T A QB3q E g E a A C tOLb ca SI a U qAa0 U 0 a qa cS Aa Cal LA cd bI0a Oalal e i g i R 8 g R 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discoteca pública os concertos de ampla difusão baseados na novidade de conjuntos organizados aqui como quarteto de cordas trio instrumental orquestra sinfônica corais A partir de então a cultura musical média alcançou públicos maiores e subiu de nível como demonstram as fichas de consulta da Discoteca Pública Municipal e os programas de eventos pelos quais se observa diminuição do gosto até então quase exclusivo pela ópera e o solo de piano com incremento concomitante do gosto pela música de câmara e a sinfônica E tudo isso concebido como atividade destinada a todo o povo não apenas aos grupos restritos de amadores Ao mesmo tempo Mário de Andrade incrementou a pesquisa folclórica e etnográfica valorizando as culturas populares no pressuposto de que todos os níveis são dignos e que a ocorrência deles é função da dinâmica das sociedades Ele entendia a princípio que as criações populares eram fonte das eruditas e que de modo geral a arte vinha do povo Mais tarde inclusive devido a uma troca de ideias com Roger Bastide sentiu que na verdade há uma corrente em dois sentidos e que a esfera erudita e a popular trocam influências de maneira incessante fazendo da criação literária e artística um fenômeno de vasta intercomunicação Isto faz lembrar que envolvendo o problema da desigualdade social e econômica está o problema da intercomunicação dos níveis culturais Nas sociedades que procuram estabelecer regimes igualitários o pressuposto é que todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os níveis eruditos como consequência normal da transformação de estrutura prevendose a elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição cada vez maior de conhecimentos e experiências Nas sociedades que mantêm a desigualdade como norma e é o caso da nossa podem ocorrer movimentos e medidas de caráter público ou privado para diminuir o abismo entre os níveis e fazer chegar ao povo os produtos eruditos Mas repito tanto num caso quanto no outro está implícita como questão maior a correlação dos níveis E aí a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade não a incapacidade A partir de 1934 e do famoso Congresso de Escritores de Karkov generalizouse a questão da literatura proletária que vinha sendo debatida desde a vitória da Revolução Russa havendo uma espécie de convocação universal em prol da produção socialmente empenhada Uma das alegações era a necessidade de dar ao povo um tipo de literatura que o interessasse realmente porque versava os seus problemas específicos de um ângulo progressista Nessa ocasião um escritor francês bastante empenhado mas não sectário Jean Guéhenno publicou na revista Europe alguns artigos relatando uma experiência simples ele deu para ler a gente modesta de pouca instrução romances populistas empenhados na posição ideológica ao lado do trabalhador e do pobre Mas não houve o menor interesse da parte das pessoas a que se dirigiu Então deulhes livros de Balzac Stendhal Flaubert que os fascinaram Guéhenno queria mostrar com isto que a boa literatura tem alcance universal e que ela seria acolhida devidamente pelo povo se chegasse até ele E por aí se vê o efeito mutilador da segregação cultural segundo as classes Lembro ainda de ter ouvido nos anos de 1940 que o escritor e pensador português Agostinho da Silva promoveu cursos noturnos para operários nos quais comentava textos de filósofos como Platão que despertaram o maior interesse e foram devidamente assimilados Maria Vitória Benevides narra a este respeito um caso exemplar Tempos atrás foi aprovada em Milão uma lei que assegura aos operários certo número de horas destinadas a aperfeiçoamento cultural em matérias escolhidas por eles próprios A expectativa era que aproveitariam a oportunidade para melhorar o seu nível profissional por meio de novos conhecimentos técnicos ligados à atividade 191 VI0 a hI 11 LA a 0 a ca3aa a trI0U Ja a Ul VI0 VIa0a aU aU cS VI try cO hI cO C aU cB0 VI hI aa 0 U qA0 a ca VI Ul0a a 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mal foi cometido é irrelevante saber quem está em melhor situação o que cometeu o mal ou o que sofreu o mal Como cidadãos devemos impedir que o mal seja feito porque o mundo que devemos partilhar o malfeitor a vítima e o espectador está em risco a Cidade foi ultrajada Por isso os nossos códigos legais distinguem entre crimes para os quais a denúncia é obrigatória e transgressões em que são ultrajados apenas os indivíduos privados que podem ou não querer processar o culpado No caso de um crime os estados subjetivos da mente daqueles envolvidos são irrelevantes aquele que sofreu o mal pode estar disposto a perdoar talvez seja totalmente improvável que aquele que o cometeu volte a reincidir porque a comunidade como um todo foi violada Em outras palavras Sócrates não fala nesse momento como um cidadão que deve estar mais preocupado com o mundo do que com o seu próprio eu Antes é como se dissesse a Cálicles se você estivesse como eu apaixonado pela sabedoria e necessitasse examinar tudo e se o mundo fosse como você o descreve dividido entre os fortes e os fracos onde os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem o que devem Tucídides de modo que não existiria alternativa a não ser fazer ou sofrer o mal então você concordaria comigo que é melhor sofrêlo do que fazêlo A presupposição é se você estivesse pensando então concordaria que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida Que eu saiba existe apenas uma outra passagem na literatura grega que quase com as mesmas palavras diz o mesmo que Sócrates Mais infeliz kakodaimonesteros do que a vítima é o malfeitor afirma um dos poucos fragmentos de Demócrito B45 o grande adversário de Parmênides que provavelmente por essa razão nunca foi mencionado por Platão A coincidência parece digna de nota porque Demócrito ao contrário de Sócrates não se interessava particularmente pelos assuntos humanos mas parece ter sido muito interessado pela experiência de pensar O espírito logos disse ele torna a abstinência fácil porque está acostumado a conseguir alegrias de si mesmo auton ex heautou B146 Como se aquilo que somos tentados a compreender como uma proposição puramente moral surgisse realmente da experiência de pensar em si mesma E isso nos leva à segunda afirmação que é o prérequisito da primeira Ela também é altamente paradoxal Sócrates fala de ser um só e portanto de não ser capaz de correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo Mas nada que é idêntico a si mesmo verdadeira e absolutamente um só como A é A pode estar em harmonia ou em desarmonia consigo mesmo são sempre necessários pelo menos dois tons para produzir um som harmonioso Sem dúvida quando apareço e sou vista pelos outros sou uma só do contrário eu seria irreconhecível E enquanto estou junto com outros quase sem consciência de mim mesma sou como apareço aos outros Chamamos de consciência de si consciousness literalmente conhecer comigo mesma o fato curioso de que num certo sentido também sou para mim mesma embora eu quase não apareça para mim o que indica que o sendo uma só socrático não é tão isento de problemas quanto parece não sou apenas para os outros mas também para mim mesma e nesse último caso não sou claramente apenas uma só Uma diferença é inserida na minha Unicidade Conhecemos essa diferença sob outros aspectos Tudo que existe entre uma pluralidade de coisas não é simplesmente o que é na sua identidade mas é também diferente dos outros esse ser dife g 88 gg q a3 I q cr Ln al Z a VI a aa0a VI q hI aab el I a E fu bl a P 10U Fa g ba a0 C ca el re ahi CD el Q a tH To aN a qab HI i 0 g R i a II reU 0a0U 0 HI aal VI LI1 Tg a 110 I00 nd In1 g 10 a cB el a g E a0a cai II tO a bO B e 7 q 1 a a 3 qI g 1 a eg Tsa 0 U S1 cSaU b 1 jhi ca C a B V dZ a SI a SH 3 a CS a 1 aa VI a a hI a E d IT q VIb a JR B a I a 0 B cea 1 P a bI0al U VIU a a LI a a Ba SH C hI ni G cS i a re b a 0 0a a eg Q p112 a a I I E nI B cS b 4 i n g i gEn Hi g e d PT XI gig LIB g IhI q a LJ cSU0 iD0 ICS a a 3a 0 Fa a Q a A0 8 aNU a Dn a cS 1 cS i cB 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ey e g Jgi nH A ba Z Ed nd g H E a B GO H Z Z H A LITERATURA COMO FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS REFLEXÕES A PARTIR DE ARENDT E CANDIDO 1 Introdução Em um mundo marcado por mudanças vertiginosas e pela onipresença da tecnologia a educação de adultos assume um papel crucial na promoção do pensamento crítico e na construção de uma sociedade mais reflexiva e engajada Nesse contexto a literatura emerge como uma ferramenta poderosa capaz de estimular a imaginação ampliar horizontes e promover a reflexão sobre questões éticas e sociais Este ensaio explorará o potencial transformador da literatura na educação de adultos à luz das ideias de Hannah Arendt e Antonio Candido dois pensadores que ofereceram contribuições significativas para a compreensão da relação entre literatura educação e sociedade A interseção entre educação e literatura é um campo de estudo que possui profundas implicações para o desenvolvimento humano e a coesão social especialmente em um mundo caracterizado por mudanças vertiginosas e inovações constantes Nos últimos anos temos testemunhado uma aceleração exponencial em diversos setores impulsionada por avanços tecnológicos transformações econômicas e reconfigurações sociais que remodelam continuamente o tecido da sociedade global Neste cenário de incessante evolução a literatura emerge como uma poderosa ferramenta educacional não apenas como um meio de transmissão de conhecimentos mas como um canal privilegiado para o desenvolvimento crítico ético e emocional dos indivíduos O pensamento de Hannah Arendt e Antônio Candido oferece uma base teórica robusta para explorar essa complexa relação entre educação e literatura no contexto contemporâneo Arendt em obras seminal como Entre o Passado e o Futuro e Responsabilidade e Julgamento reflete sobre a importância do julgamento crítico e da capacidade de reflexão no processo educativo destacando que a educação deve preparar os indivíduos não apenas para compreender o mundo mas para interagir com ele de maneira significativa e responsável Arendt argumenta que a verdadeira educação deve instigar o amor pelo mundo e a capacidade de julgar com discernimento elementos que são intrinsecamente cultivados através do engajamento com textos literários Antonio Candido por sua vez em O Direito à Literatura advoga que a literatura não é um luxo mas um direito fundamental capaz de humanizar e enriquecer a vida dos indivíduos Candido vê a literatura como um veículo para a ampliação da experiência humana promovendo a empatia e a compreensão das complexidades da condição humana Ele argumenta que a literatura possui um papel crucial na formação do ser humano integral fornecendo uma lente através da qual os leitores podem examinar suas próprias vidas e o mundo ao seu redor À medida que enfrentamos um período de transformações rápidas e profundas onde as tecnologias emergentes e as mudanças sociais desafiam constantemente as normas estabelecidas a literatura pode oferecer uma forma de resistência cultural e uma âncora para a identidade pessoal Através da literatura os adultos podem explorar novas formas de ver e entender a si mesmos e suas realidades proporcionando um espaço para a introspeção e a construção de um pensamento crítico resiliente Além disso o engajamento com a literatura na educação de adultos pode proporcionar um contrapeso necessário à cultura da velocidade e da superficialidade que permeia muitos aspectos da vida moderna Em um ambiente onde a informação é consumida rapidamente e as interações são frequentemente efêmeras a literatura oferece uma oportunidade para uma reflexão mais profunda e significativa permitindo que os indivíduos se reconectem com valores e experiências que transcendem o imediatismo do presente Portanto ao considerar a aplicação da literatura na educação de adultos é essencial reconhecer tanto as potencialidades quanto os desafios que acompanham essa integração As perspectivas de Arendt e Cândido nos orientam na exploração de como a literatura pode servir não apenas como uma fonte de conhecimento e prazer estético mas como uma força vital na construção de uma educação que responde às necessidades de um mundo em constante mudança promovendo cidadãos mais críticos éticos e culturalmente enriquecidos Assim a literatura não se apresenta apenas como uma forma de arte mas como um componente essencial de uma educação que busca formar indivíduos capazes de navegar com discernimento e profundidade as complexidades do mundo contemporâneo 2 Educação e Literatura Fundamentos Teóricos Hannah Arendt propõe que a educação representa um dos pilares fundamentais para a perpetuação e renovação de uma sociedade Ela vê a educação não apenas como uma ferramenta para a transmissão de conhecimento mas como uma prática que incute nos indivíduos a responsabilidade de reconstituir um mundo em constante transformação Em Responsabilidade e Julgamento Arendt articula que a essência da educação reside na sua capacidade de cultivar o julgamento crítico e a habilidade de agir de forma ética e ponderada Para Arendt a educação deve ir além do mero repasse de informações deve essencialmente formar indivíduos capazes de avaliar criticamente as circunstâncias e tomar decisões informadas e responsáveis Este enfoque na formação do julgamento crítico é especialmente relevante quando consideramos a literatura como um componente central na educação de adultos A literatura ao apresentar narrativas complexas e dilemas éticos oferece um contexto seguro e rico para a exploração de questões morais e sociais Arendt sugere que ao engajarse com a literatura os adultos não só ampliam seu repertório de conhecimentos mas também desenvolvem a capacidade de discernir e refletir sobre questões éticas e humanísticas Assim a leitura de obras literárias proporciona um terreno fértil para o desenvolvimento de um pensamento crítico sofisticado que é vital para a participação ativa e responsável na sociedade contemporânea Hannah Arendt em sua obra Entre o Passado e o Futuro defende que a educação deve ser um espaço de formação para o exercício da liberdade e do pensamento crítico Para Arendt a educação não se limita à transmissão de conhecimentos mas deve estimular a capacidade de julgamento e a responsabilidade individual em relação ao mundo A autora destaca a importância de cultivar o amor ao mundo nos estudantes incentivandoos a questionar interpretar e agir de forma consciente em relação à realidade que os cerca Nas palavras de Arendt A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele A citação enfatiza a importância da educação como um momento crucial em que as pessoas são confrontadas com a decisão de assumir a responsabilidade pelo mundo pois ela acredita que a educação desempenha um papel fundamental na formação dos indivíduos e na criação de uma conexão afetiva com o planeta Ainda discutindo sobre essa obra em seu ensaio A Crise na Educação contido em Entre o Passado e o Futuro a autora expõe que a função primordial da escola não é apenas instruir os alunos em habilidades práticas ou transmitir conhecimentos específicos mas sim ensinálos sobre a realidade do mundo em que vivem A teórica política argumenta que a educação deve capacitar os indivíduos a compreenderem a complexidade do mundo a explorar a diversidade de experiências e perspectivas humanas e a desenvolverem uma compreensão crítica Esta perspectiva é particularmente relevante na educação de adultos onde o foco não deve ser apenas na aquisição de competências técnicas mas também na formação de uma visão ampla e crítica sobre a sociedade e o mundo promovendo uma aprendizagem contínua e significativa ao longo da vida Nesse sentido a literatura desempenha um papel fundamental na educação arendtiana Ao apresentar narrativas complexas e personagens multifacetados a literatura convida os leitores a explorarem diferentes perspectivas a questionarem seus próprios valores e a desenvolverem uma compreensão mais profunda da condição humana A leitura de obras literárias proporciona um contato com a diversidade de experiências e visões de mundo estimulando a empatia e a capacidade de diálogo com o outro Por sua vez Antonio Candido em sua obra seminal O Direito à Literatura defende que a literatura deve ser considerada um direito básico fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano Ele argumenta que a literatura possui uma função humanizadora essencial capaz de ampliar a sensibilidade e a compreensão social dos indivíduos Candido postula que o contato com textos literários permite aos leitores transcender as limitações de suas experiências imediatas promovendo uma empatia profunda e uma visão ampliada da condição humana A literatura ao estimular a imaginação e a introspecção enriquece o indivíduo de forma única proporcionando uma compreensão mais rica e multifacetada das realidades humanas Nesta referida obra ele menciona assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono talvez não haja equilíbrio social sem a literatura Deste modo ela é fator indispensável de humanização e sendo assim confirma o homem na sua humanidade inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente A literatura desempenha um papel ativo na construção de habilidades sociais contribuindo para moldar a personalidade de cada pessoa por meio de estímulos histórias e pensamentos diversos Ao observar diferentes realidades o leitor absorve conhecimentos e formula seu próprio conceito de certo e errado com base nas consequências apresentadas na obra Dessa forma o leitor aprende a discernir quais atitudes recrimina e quais exalta entre outros aspectos fundamentais para a formação da personalidade Além disso o direito à literatura está intrinsicamente ligado ao direito à alfabetização que promove a humanização e a inclusão social Através do reconhecimento de sinais e signos da comunicação tornase possível acreditar na ascensão social e no enriquecimento pessoal cultural e profissional Portanto a combinação desses dois direitos tem o potencial de transformar realidades formando indivíduos completos capazes de exercer pensamento crítico e discernimento A partir da perspectiva de Candido a literatura serve não apenas como um meio de entretenimento ou erudição mas como uma ferramenta crucial para a formação de cidadãos conscientes e engajados Ao permitir que os leitores explorem e compreendam diferentes experiências e perspectivas a literatura contribui para a formação de uma cidadania mais empática e socialmente responsável Esta humanização através da literatura é vital em um mundo onde as interações sociais são frequentemente mediadas por tecnologias que podem desumanizar e fragmentar as experiências pessoais Ao considerar a educação de adultos as visões de Arendt e Candido se complementam e se reforçam Arendt nos mostra que a educação deve preparar os indivíduos para julgar e agir no mundo enquanto Candido ressalta que a literatura é uma das ferramentas mais poderosas para cultivar essa capacidade A literatura então emerge como um campo de prática educacional onde se pode fomentar não só o conhecimento e a habilidade crítica mas também a profundidade ética e a sensibilidade social necessárias para enfrentar as complexidades do mundo contemporâneo Ela permite que os adultos encontrem um espaço de reflexão e crescimento pessoal que transcende o imediatismo e a superficialidade que muitas vezes caracterizam a vida moderna Portanto integrar a literatura na educação de adultos não é apenas uma questão de enriquecer o currículo mas de proporcionar uma formação que promove o desenvolvimento integral do indivíduo alinhando o conhecimento crítico com uma compreensão ética e empática do mundo Essa abordagem amplia a função da educação de preparar indivíduos não só para sobreviver mas para contribuir de forma significativa e responsável na construção e renovação contínua da sociedade 2 As Possibilidades da Literatura na Educação de Adultos A literatura em seu vasto campo de possibilidades desempenha um papel crucial na educação de adultos especialmente em um mundo onde a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais pode criar um ambiente desestabilizador e alienante As transformações contemporâneas muitas vezes desafiam a capacidade dos indivíduos de se conectarem profundamente com suas experiências e identidades gerando uma necessidade premente de ancoragem cultural e introspecção crítica Nesse contexto a literatura se destaca como uma ferramenta poderosa que pode atuar como um catalisador para o desenvolvimento da consciência crítica e como um meio de resistência cultural e pessoal Conforme argumentado por Hannah Arendt o papel fundamental do educador é introduzir os alunos no amor ao mundo Arendt sustenta que a verdadeira educação deve transcender a mera acumulação de fatos estimulando um pensamento que esteja intrinsecamente ligado à capacidade de julgar e compreender o mundo em profundidade A literatura com suas narrativas ricas e personagens multifacetados proporciona um terreno ideal para este tipo de educação Através da leitura de textos literários os adultos são incentivados a explorar e refletir sobre dilemas éticos e sociais desenvolvendo uma consciência crítica que é essencial para a formação de cidadãos reflexivos e engajados A Lei n 13696 de 12 de julho de 2018 que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita promove a universalização do direito ao acesso ao livro à leitura à escrita à literatura e às bibliotecas reconhecendo a leitura e a escrita como direitos de todos Esta lei conforme explicitado em seu art 2º almeja possibilitar o exercício pleno da cidadania e promover a construção de uma sociedade mais justa alinhandose diretamente aos conceitos abordados por Hannah Arendt e ao papel da literatura na formação de habilidades sociais e na moldagem da personalidade Segundo Hannah Arendt em seu ensaio A Crise na Educação a função da escola é ensinar sobre a realidade do mundo capacitando os indivíduos a compreenderem a complexidade do mundo e a desenvolverem uma compreensão crítica Essa perspectiva está em consonância com a Lei n 13696 especialmente com os objetivos descritos no art 3º que incluem democratizar o acesso ao livro e aos diversos suportes à leitura fomentar a formação de mediadores de leitura e valorizar a leitura e seu valor simbólico e institucional Além disso a literatura como discutido anteriormente contribui significativamente para a construção da personalidade ao permitir que os leitores absorvam conhecimentos e formulem conceitos de certo e errado com base nas consequências apresentadas nas obras Este processo de aprendizagem e formação crítica é fundamental para o exercício da cidadania plena promovida pela Lei n 13696 A lei também se preocupa com a inclusão social através da alfabetização ligandose à humanização e ao enriquecimento pessoal cultural e profissional Esta inclusão é essencial para garantir que todos os indivíduos tenham a oportunidade de participar ativamente na sociedade reforçando a importância do direito à literatura e à alfabetização como bases para a formação de indivíduos completos e críticos como descrito anteriormente Portanto a Política Nacional de Leitura e Escrita estabelecida pela Lei n 13696 de 12 de julho de 2018 complementa e fortalece a visão de Arendt sobre a educação e o papel da literatura promovendo uma sociedade mais justa e consciente através do acesso universal à leitura e à escrita Narrativas literárias complexas permitem que os leitores experimentem uma multiplicidade de perspectivas e realidades muitas vezes diferentes de suas próprias Esse encontro com o outro literário promove a empatia e a compreensão capacitando os leitores a questionar e expandir seus próprios horizontes Em um mundo onde a rapidez das informações muitas vezes leva à superficialidade e ao pensamento fragmentado a literatura oferece um espaço para a introspecção e a análise profunda Ao envolverse com personagens e tramas que exploram as nuances da condição humana os leitores são desafiados a examinar suas próprias crenças e valores desenvolvendo habilidades críticas que são vitais para navegar as complexidades do mundo contemporâneo Além de ser uma fonte de desenvolvimento crítico a literatura também serve como um meio de resistência cultural e pessoal Em um contexto onde as rápidas mudanças tecnológicas e sociais frequentemente resultam na alienação dos indivíduos de suas próprias tradições e experiências a literatura pode oferecer um ponto de ancoragem Textos clássicos e contemporâneos funcionam como uma ponte que conecta o presente ao passado permitindo que os leitores revisitem suas próprias histórias e tradições Essa conexão com o passado não só enriquece a compreensão do presente mas também proporciona uma base sólida a partir da qual os indivíduos podem enfrentar e interpretar as mudanças contínuas do mundo ao seu redor A literatura ao trazer à tona temas universais e atemporais permite que os adultos reencontrem e reflitam sobre suas próprias identidades e perspectivas Em meio a um turbilhão de mudanças a literatura oferece um espaço de constância e reflexão que pode ser essencial para a manutenção da coesão pessoal e cultural Ao revisitar e reinterpretar textos os adultos têm a oportunidade de reafirmar suas próprias narrativas e valores tornandose mais resilientes e capacitados para lidar com as complexidades e incertezas da vida moderna Em suma ela oferece uma gama de possibilidades enriquecedoras para a educação de adultos em um mundo de rápidas transformações não só atuando como um veículo para o desenvolvimento da consciência crítica ajudando os indivíduos a refletirem e questionarem suas próprias realidades mas também como um baluarte contra a alienação proporcionando uma ancoragem cultural que é fundamental para a identidade e o bem estar pessoal Ao integrar a literatura na educação de adultos criamos oportunidades para um engajamento mais profundo e significativo com o mundo capacitando os indivíduos a navegar as mudanças com uma perspectiva crítica e enraizada em uma compreensão rica da condição humana 3 Desafios Embora a literatura ofereça inúmeras oportunidades enriquecedoras para a educação de adultos a sua integração enfrenta desafios significativos exacerbados pelo contexto contemporâneo dominado pela tecnologia e pela informação instantânea Neste cenário os textos literários com suas exigências de leitura atenta e reflexão profunda podem parecer anacrônicos ou até irrelevantes para uma população acostumada à rapidez e à superficialidade da cultura digital Tal como argumenta José Sérgio Fonseca de Carvalho em Educação Uma Herança sem Testamento a educação moderna tende a enfatizar habilidades técnicas e utilitárias muitas vezes em detrimento do desenvolvimento crítico e humanístico Esta tendência representa um obstáculo substancial pois a valorização da literatura na educação de adultos exige uma reconceituação dos objetivos educacionais que deve transcender a mera formação para a empregabilidade José Sérgio Fonseca de Carvalho aborda a complexidade e os desafios do sistema educacional contemporâneo Ele reflete sobre a natureza da educação como um legado cultural e intelectual que ao contrário de um testamento não é explicitamente prescrito ou delimitado mas é transmitido de geração em geração de maneira implícita e aberta a interpretações e transformações Algumas considerações importantes do autor nesta obra incluem Educação como Herança Coletiva Carvalho enfatiza que a educação é uma herança coletiva que não pertence a nenhum indivíduo ou grupo específico mas a toda a sociedade Esse legado é continuamente construído e reconstruído através das interações sociais e culturais Ausência de Testamento A metáfora da herança sem testamento sugere que diferentemente de um testamento que deixa instruções claras e específicas a educação não possui diretrizes fixas e invariáveis Em vez disso é uma prática dinâmica que deve ser constantemente adaptada e reinterpretada em resposta às mudanças sociais culturais e tecnológicas Papel dos Educadores Carvalho destaca a importância dos educadores como mediadores desse legado responsáveis por interpretar e transmitir conhecimentos e valores de maneira crítica e reflexiva Ele sugere que os educadores devem estar preparados para lidar com a incerteza e a complexidade inerentes ao processo educativo Desafios Contemporâneos O autor aborda os desafios contemporâneos da educação incluindo as desigualdades sociais a necessidade de inclusão e a adaptação às novas tecnologias Ele argumenta que a educação deve ser um meio para promover a justiça social e a equidade proporcionando a todos os indivíduos as oportunidades necessárias para o desenvolvimento pessoal e profissional Educação e Transformação Social Carvalho vê a educação como uma ferramenta poderosa para a transformação social Ele acredita que através da educação é possível cultivar cidadãos críticos e conscientes capazes de participar ativamente na construção de uma sociedade mais justa e democrática Essas considerações de José Sérgio Fonseca de Carvalho em Educação Uma Herança sem Testamento são fundamentais para entender a natureza multifacetada da educação e seu papel crucial na formação de indivíduos e na transformação da sociedade Ele convida educadores estudantes e todos os envolvidos no processo educativo a refletirem sobre suas práticas e a serem agentes de mudança em um mundo em constante evolução A literatura em sua essência demanda um tempo e um espaço que parecem cada vez mais escassos na era digital Os textos literários exigem uma dedicação e uma profundidade de engajamento que estão em contraste com a imediaticidade das interações contemporâneas nas redes sociais e outras plataformas digitais Este descompasso pode levar à percepção de que a literatura é menos relevante ou menos valiosa em comparação com habilidades técnicas mais imediatamente aplicáveis no mercado de trabalho Para integrar a literatura efetivamente na educação de adultos é necessário um esforço consciente para realinhar os objetivos educacionais destacando a importância do desenvolvimento intelectual e emocional que a literatura pode proporcionar Além disso a diversidade de experiências de vida entre os adultos apresenta um desafio adicional significativo para a integração da literatura na educação Ao contrário das crianças e jovens que muitas vezes têm experiências de vida mais homogêneas e currículos educacionais mais padronizados os adultos trazem consigo uma vasta gama de vivências conhecimentos prévios e contextos culturais Essas experiências diversas podem influenciar profundamente a recepção e a interpretação dos textos literários criando uma necessidade de abordagens pedagógicas flexíveis e inclusivas Hannah Arendt em suas reflexões sobre educação sugere que a formação educativa deve respeitar e integrar essas diversas perspectivas promovendo um espaço onde múltiplas vozes e experiências possam se encontrar e dialogar No entanto a implementação prática dessa abordagem pode ser desafiadora A literatura deve ser selecionada e apresentada de maneiras que ressoem com as experiências individuais dos alunos proporcionando um ponto de conexão entre os textos e as realidades pessoais dos leitores Isso requer uma cuidadosa curadoria de obras que sejam capazes de dialogar com uma variedade de contextos e que promovam tanto a reflexão pessoal quanto o diálogo coletivo A adaptação dos textos literários às experiências diversas dos adultos pode envolver a escolha de obras que abordem temas universais ou que reflitam questões contemporâneas relevantes para diferentes grupos demográficos Além disso estratégias pedagógicas que incentivem a partilha de interpretações e experiências podem enriquecer a compreensão coletiva e fomentar um ambiente de aprendizado mais inclusivo e dinâmico Os educadores devem estar atentos às diversas histórias e realidades dos alunos utilizando a literatura como um ponto de partida para discussões que abracem e valorizem essas diferenças Em conclusão a integração da literatura na educação de adultos embora desafiadora é essencial para o desenvolvimento de uma educação que valorize não apenas as habilidades técnicas mas também a capacidade crítica a sensibilidade cultural e a profundidade ética Enfrentar os desafios de relevância e diversidade requer uma abordagem educacional que reconheça a importância de realinhar os objetivos da educação para incluir a formação humanística e que celebre a riqueza das experiências individuais dos alunos utilizando a literatura como uma ponte para compreensão mútua e o crescimento pessoal 3 Reflexões Finais A relação entre educação e literatura é inerentemente rica e multifacetada adquirindo camadas adicionais de complexidade no contexto da educação de adultos Este vínculo profundamente explorado nas obras de Hannah Arendt e Antônio Cândido revela como a literatura pode atuar como um veículo poderoso para o desenvolvimento do pensamento crítico e a reafirmação dos valores humanísticos especialmente em uma era marcada por rápidas e profundas transformações tecnológicas e sociais Arendt e Cândido fornecem uma base teórica a partir da qual podemos entender como a literatura pode ser usada para fomentar uma educação que não apenas equipa os adultos com conhecimentos técnicos mas também com a profundidade intelectual e emocional necessária para navegar as complexidades do mundo moderno Hannah Arendt com suas reflexões sobre a educação e o julgamento enfatiza a importância de uma educação que transcenda a simples transmissão de conhecimento factual Ela argumenta que a educação deve preparar os indivíduos para o amor ao mundo e para o julgamento crítico capacidades essenciais para interagir com um mundo em constante mudança A literatura ao engajar os leitores com dilemas morais e narrativas que exploram a condição humana serve como um meio para desenvolver essas capacidades críticas e reflexivas No contexto da educação de adultos a literatura oferece um espaço seguro para explorar questões complexas e promover o crescimento intelectual emocional e ético Antonio Candido em sua defesa da literatura como um direito humano fundamental ressalta que o envolvimento com textos literários enriquece a experiência individual e coletiva Ele vê a literatura como uma ponte entre as tradições culturais e as emergentes realidades sociais facilitando um diálogo que é vital para a formação de uma cidadania engajada e consciente No contexto da educação de adultos esse diálogo é particularmente crucial pois permite que os indivíduos conectem suas experiências de vida com as lições universais encontradas na literatura fortalecendo tanto sua compreensão pessoal quanto sua participação na comunidade No entanto a implementação prática dessa abordagem enfrenta desafios substanciais A integração significativa da literatura na educação de adultos requer um compromisso renovado com uma forma de educação que valorize tanto a técnica quanto a profundidade intelectual e emocional Em um mundo onde a educação é frequentemente orientada por demandas imediatas do mercado de trabalho há uma necessidade urgente de reequilibrar o foco educacional para incluir o desenvolvimento humanístico Isso implica em criar currículos que incorporem a literatura de maneira que ela não seja vista apenas como um adorno cultural mas como uma ferramenta central para o crescimento pessoal e social Para efetivamente navegar as complexidades do mundo contemporâneo a educação de adultos deve se esforçar para integrar a literatura de formas que ressoem com as demandas emergentes da sociedade ao mesmo tempo que preservam o valor das tradições literárias Isso pode ser feito promovendo um diálogo contínuo entre a literatura e as realidades atuais utilizando textos literários para explorar questões contemporâneas e desafiar os alunos a refletir criticamente sobre suas próprias experiências e sobre o mundo ao seu redor Ao fazer isso a literatura não só enriquece o indivíduo proporcionando um espaço para a reflexão e o desenvolvimento crítico mas também fortalece a comunidade contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes engajados e capazes de participar ativamente na construção de uma sociedade mais justa e equitativa Portanto a educação de adultos que integra a literatura de forma significativa pode servir como um modelo para um tipo de educação que se adapta às rápidas mudanças do mundo contemporâneo enquanto permanece fiel aos valores humanísticos essenciais Esta abordagem não apenas equipa os indivíduos com habilidades para o presente mas também cultiva a capacidade de pensamento crítico e a profundidade emocional necessária para enfrentar os desafios futuros Em última análise a literatura quando integrada na educação de adultos contribui para o desenvolvimento de uma cidadania que é informada reflexiva e profundamente engajada no tecido social promovendo uma sociedade mais coesa e resiliente diante das rápidas mudanças A literatura como ferramenta de transformação na educação de adultos oferece um caminho para o desenvolvimento do pensamento crítico da sensibilidade social e da capacidade de agir no mundo Ao explorar as ideias de Hannah Arendt e Antonio Candido podemos compreender a importância da literatura na formação de cidadãos mais conscientes engajados e responsáveis A literatura ao nos colocar em contato com a diversidade de experiências e perspectivas nos convida a questionar nossas próprias crenças e valores a ampliar nossos horizontes e a construir um futuro mais justo e humano 4 Bibliografia ARENDT Hannah Entre o Passado e o Futuro São Paulo Perspectiva 2011 ARENDT Hannah Responsabilidade e Julgamento São Paulo Companhia das Letras 2011 BRASIL Lei n 13696 de 12 de julho de 2018 Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita Diário Oficial da União seção 1 Brasília DF p 1 13 jul 2018 Disponível em httpswww2camaralegbrleginfedlei2018lei13696 12julho2018787090publicacaooriginal155402plhtml Acesso em 18 jul 2024 CANDIDO Antonio O Direito à Literatura São Paulo Companhia das Letras 2004 CARVALHO José Sérgio Fonseca de Educação Uma Herança sem Testamento Campinas Papirus 1995 GADAMER HansGeorg Verdade e Método Petrópolis Vozes 2013 MEURER José Luiz A Literatura na Formação do Pensamento Crítico Educação e Pesquisa vol 40 no 2 2014 pp 319332 SILVA Tânia Ramos de Literatura e Educação A Formação do Sujeito Crítico Revista Brasileira de Educação vol 19 no 57 2014 pp 375390

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