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Erich Auerbach MIMESIS A representação da realidade na literatura ocidental EDITORA DA UNIVERSIDADE DE S PAULO Editôra Perspectiva São Paulo Titulo do original Mimesis Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur Copyright 1946 A Francke AG Verlag Bema Direitos reservados para a língua portuguêsa à EDITÔRA PERSPECTIVA S A Av Brig Luis Antonio 3025 São Paulo 1971 Obra publicada com a colaboração da UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO R e i t o r Prof Dr M igueI Reale EDITÔRA DA UN IVER SID ADE DE SÃO PAULO Comissão Editorial Presidente Prof Dr Mário Guimarães Ferri Instituto de Biociências Membros Prof Dr A Brito da Cunha Instituto de Biociências Prof Dr Carlos da Silva Lacaz Instituto de Ciências Biomédicas Prof Dr Irineu Strenger Faculdade de Direito e Prof Dr Pérsio de Souza Santos Escola Politécnica Had we but world enough and tim e A n d r e w M a r v e l l Introdução Êste livro chega às mãos do leitor de fala portuguêsa vinte e cinco anos depois de ter sido publicado pela primeira vez qua se três décadas depois de ter sido iniciada a sua criação Entre mentes um tempo não menos lngo transcorreu desde o fim aparente da situação históricopolítica à qual êste livro deve segundo as manifestações do próprio autor o seu particular feitio foi o exílio o forçado afastamento das vastas bibliotecas germânicas que tomaram possível a Erich Auerbach a confecção dêste livro uma obra que faria estremecer pela amplidão do seu raio de ação os filólogos alemães tradicionais entre os quais Auerbach provàvelmente deveria ser contado não existisse esta sua obra principal Não deixa de ser invejável a posição da filologia tal como era entendida na Alemanha antes do apocalipse hitleriano O filólogo alemão devia como dizia Francis Fergusson numa crítica a Mimesis publicada por ocasião da aparição da edição norte americana do livro Two Perspectives on European Literatu re in The Human Image in Dramatic Literature New York 1957 incluir no seu estudo não apenas as línguas principais da tradição ocidental mas também tôdas as artes das letras filosofia história antropologia e cultura Um filólogo desta espécie devia ter aprendido o grego o latim e outras línguas modernas da Europa nos seus estágios primitivos Uma tal erudição está dificilmente ao alcance de qualquer amante das letras no nosso continente e é até mesmo improvável que seja atingida por muitos estudiosos europeus de hoje De certa for ma todos vivemos hoje sob as condições que deram origem a êste livro todos estamos afastados das vastas bibliotecas e não podemos nos permitir o sonho de adquirirmos todos os conhe cimentos que os filólogos germânicos achavam indispensáveis como condiçfio anterior à publicação de qualquer estudo A partir dêste ponto de vista Mimesis apresentase como coroamento de tôda uma tradição erudita ao mesmo tempo em que rompe totalmente com os métodos dessa mesma tradição Não parte para o seu estudo da representação da realidade na literatura ocidental de definição alguma do que seja repre sentação realidade literatura ou Ocidente mas entra de chôfre na análise de um texto que talvez pelo mero fato de abrir a obra preenche para o leitor as condições tôdas implica das no subtítulo da obra Mediante êste método de análise de textos Auerbach procura delimitar em cada caso a visão espe cífica que cada autor tem da realidade e os meios de que se utiliza para representála Portanto exige muito mais do leitor mas também dálhe muito mais pois é só mediante a sua parti cipação ativa na compreensão das análises apresentadas que o escôpo da obra se preenche E esta participação requer do leitor um uso intenso do seu bom senso e uma capacidade de conceber a realidade historicamente Esta última capacidade tem sido negligenciada talvez de masiado em muitas das obras mais recentes que se dedicam ao estudo do fato literário Talvez houvesse pois quem dissesse que a publicação entre nós hoje da presente obra seria ino portuna ou irremediàvelmente tardia Contudo a questão fundamental levantada pela obra as relações entre arte e realidade não oblitera nem invalida os postulados estruturais É uma outra dimensão da obra dis posta em outro nível mas que de forma alguma dispensa o re conhecimento da obra de arte literária como todo articulável Outrossim Auerbach propõe nas suas análises dos diversos tex tos pontos de articulação entre a palavra entre o verbo e a realidade analisada E parecenos indiscutível que o conheci mento da tradição ocidental como Auerbach a entende e propõe será importante para considerações acerca da introdução em anos mais recentes de elementos do irracionalismo oriental no racionalismo ocidental Por outro lado não é possível negligenciar o aspecto filo lógico pròpriamente dito da obra Talvez os estudos lingüísticos florescentes em nosso século já tenham atingido o grau de ma turidade suficiente para reconsiderar a filologia de modo a esten der o seu alcance para além do conhecimento das estruturas lin güísticas O lançamento entre nós da presente obra proporá isto indiretamente Neste sentido o tempo transcorrido entre sua publicação e esta primeira edição em português pode chegar a ser benéfico Bastaria para tanto que os seguidores das cor rentes que surgiram ou evoluíram no campo dos estudos literá rios nestas últimas três décadas vissem nesta obra um ponto de articulação com a anterior tradição filológica Há algo ainda nesta obra que dificilmente pode ser mos trado numa introdução a humildade a honestidade a sensibi lidade de seu autor Graças a elas esta não será apenas uma leitura interessante Será também uma leitura emocionada ca paz de objetivamente reviver cada um dos momentos que apre senta momentos relevantes de uma cultura que ainda é a nossa G e o r g e Be r n a r d S p e r b e r S u z i F r a n k l Sp e r b e r São Paulo julho de 1971 Sumário Introdução IX 1 A Cicatriz de Ulisses 1 2 Fortunata 21 3 A Prisão de Petrus Valvomeres 43 4 Sicário e Cramnesindo 66 5 A Nomeação de Rolando como Chefe da Retaguarda do Exército Franco 82 6 A Saída do Cavaleiro Cortês 105 7 Adão e Eva 122 8 Farinata e Cavalcante 148 9 Frate Alberto 174 10 Madame du Chastel 199 11 O Mundo na Bôca de Pantagruel 225 12 LHumaine Condition 245 13 O Príncipe Cansado 271 14 A Dulcinéia Encantada 292 15 O Santarrão 315 16 A Ceia Interrompida 345 17 O Músico Miller 378 18 Na Mansão de la Mole 395 19 Germinic Lacerteux 431 20 A Meia Marrom 459 Epílogo 486 Indicc 491 A Cicatriz de Ulisses 1 0s leitores da Odisséia lembram da bem preparada e emocionante cena do canto XIX na qual a velha ama Euricléia reconhece Ulisses que regressa à sua casa e de quem tinha sido nutriz por uma cicatriz na coxa O forasteiro tinhase granjeado a benevolência de Penélope segundo o seu desejo ela ordena à governanta que lhe lave os pés segun do é usual nas velhas estórias como primeiro dever de hospita lidade para com o viandante fatigado Euricléia começa a pro curar água e a misturar a água quente com a fria enquanto fala tristemente do senhor ausente que poderia ter a mesma idade do hóspede que também estaria agora quiçá vagueando como êle num lugar qualquer como um pobre forasteiro nisto ela ob serva a assombrosa semelhança entre o hóspede e o ausente enquanto Ulisses lembra da sua cicatriz e se afasta para a escuri dão para ocultar pelo menos de Penélope o reconhecimento já inevitável mas ainda indesejável para êle Logo que a anciã apalpa a cicatriz ela deixa cair o pé na bacia com alegre sobres salto a água transbordai ela quer prorromper em júbilo com silenciosas palavras de lisonja e de ameaça Ulisses a contém ela cobra ânimo e oprime o seu movimento Penélope cuja atenção tinha sido desviada do acontecimento aliás pela previ dência de Atenéia nada percebeu Tudo isto é modelado com exatidão e relatado com vagar Num discurso direto pormenorizado e fluente ambas as mulhe res dão a conhecer os seus sentimentos não obstante tratarse de sentimentos só um pouco misturados com considerações muito gerais acêrca do destino dos homens a ligação sintática entre as partes é perfeitamente clara nenhum contorno se con funde Há também espaço e tempo abundantes para a descri çüo bem ordenada uniformemente iluminada dos utensílios das tnunipulnçfcn e do gestos mostrando tAdas as articulações sin MIMESIS táticas mesmo no dramático instante do reconhecimento não se omite comunicar ao leitor que é com a mão direita que Ulisses pega a velha pelo pescoço para impedirlhe que fale enquanto a aproxima de si com a outra mão Claramente circunscritos brilhante e uniformemente iluminados homens c coisas estão estáticos ou em movimento dentro de um espaço perceptível com não menor clareza expressos sem reservas bem ordenados até nos momentos de emoção aparecem sentimentos e idéias Na minha reprodução do processo omiti até agora o con teúdo de tôda uma série de versos que o interrompem pelo meio São mais de setenta enquanto que o processo em si compreende cêrca de quarenta versos antes e quarenta depois da interrupção A interrupção que ocorre justamente no mo mento em que a governanta reconhece a cicatriz isto é no momento da crise descreve a origem da cicatriz um acidente de caça dos tempos da juventude de Ulisses durante uma caça ao javali em ocasião de uma visita ao seu avô Autólico Isto dá antes de mais nada motivo para informar o leitor acêrca de Autólico acêrca da sua moradia do exato grau de paren tesco do seu caráter e de maneira igualmente pormenorizada tanto quanto deliciosa acêrca do seu comportamento após o nascimento do neto depois seguese a visita de Ulisses já adoles cente a saudação o banquete de boasvindas o sono e o des pertar a saída matutina para a caça o rastejo do animal a luta o ferimento de Ulisses por uma prêsa o curativo da ferida o restabelecimento o regresso a ítaca o preocupado interroga tório dos pais tudo é narrado novamente com uma perfeita conformação de tôdas as coisas não deixando nada no escuro e sem omitir nenhuma das articulações que as ligam entre si E só depois o narrador retorna ao aposento de Penélope e Euricléia que tinha reconhecido a cicatriz antes da interrupção só agora depois dela deixa cair assustada o pé na bacia O pensamento mais próximo para um leitor moderno de que o que se pretende é aumentar a tensão é se não totalmente falso pelo menos não decisivo para a explicação do processo homérico Pois o elemento da tensão é muito débil nas poesias homéricas elas não se destinam em todo o seu estilo a suspen der a respiração do leitor ou ouvinte Para tanto seria necessá rio antes de mais nada que o leitor não fôsse distendido pelo meio que procura pôlo em tensão e é justamente isto o que acontece muito freqüentemente também no caso em aprê ço ocorre isto A estória cinegética narrada com amplidão amorosa e sutilmente conformada com todo seu elegante deleite com a riqueza das suas imagens idílicas tende a ganhar o leitor totalmente para si enquanto a ouve a fazêlo esquecer o que acontecera recentemente durante o lavapés De uma interpo lação que aumenta a tensão mediante o retardamento faz parte o não preenchimento total do presente é necessário que ela não aliene da consciência a crise por cuja solução se deve espenir com tensão para não destruir a suspensão do estado dc espírito a crise e a tensão devem ser muntidas devem pcrnianctcr com A CICATRIZ DE ULISSES 3 cientes num segundo plano Só que Homero e teremos de voltar sôbre isto não conhece segundos planos O que êle nos narra é sempre somente presente e preenche completamente a cena e a consciência Também no nosso caso é assim Quando a jovem Euricléia põe o recémnascido Ulisses no colo do avô Autólico após o banquete v 401 ss a velha Euricléia que poucos versos antes apalpara o pé do viandante desaparece por completo da cena e da consciência Goethe e Schiller que em fins de abril de 1797 se corres pondiam não especificamente sôbre o episódio aqui em pauta mas sôbre o retardador na poesia homérica em geral opu nhamno precisamente ao princípio da tensão esta última expressão não é usada propriamente mas é claramente aludida quando o processo retardador é pôsto com processo épico prò priamente dito em oposição ao trágico cartas de 19 21 e 22 de abril O retardador o avançar e retroceder mediante interpolações também a mim parece estar na poesia homérica em contraposição ao tenso impulso para uma meta e certamente Schiller tem razão quando diz que Homero descreve meramente a tranqüila existência e ação das coisas segundo a sua natureza a sua finalidade estaria já em cada um dos pontos do seu movimento Só que ambos tanto Schiller quanto Goethe ele vam o processo homérico à categoria de lei da poesia épica em geral e as palavras de Schiller acima citadas devem vigorar para o poeta épico em geral em contraste com o trágico Con tudo há tanto nos tempos antigos como nos modernos obras épicas significativas que não estão escritas de maneira alguma de forma retardadora no sentido de Schiller mas de maneira claramente carregada de tensão obras que sem dúvida roubam a nossa liberdade de ânimo o que Schiller quer conceder exclu sivamente ao poeta trágico Além do mais pareceme imprová vel e não verossímil que no processo citado da poesia homérica tenham tido papel preponderante as considerações estéticas ou mesmo um sentimento estético da espécie admitida por Goethe e Schiller O efeito é sem dúvida exatamente o que êles des crevem e daqui se deduz também com efeito o conceito do épico que êles próprios possuem assim como o possuem todos os escritores decisivamente influenciados pela Antiguidade clás sica Mas a causa da aparição do retardador pareceme residir em outra coisa precisamente na necessidade do estilo homérico de não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inaca bado A digressão acêrca da origem da cicatriz não se diferencia fundamentalmente dos muitos trechos onde uma personagem recémintroduzida ou uma coisa ou um apetrecho que aparece pela primeira vez são descritos pormenorizadamente quanto à sua espécie e origem ainda que seja em meio ao mais premente tumulto do combate ou daqueles outros onde se informa acêrca dc um deus que aparece onde estivera recentemente o que fizera por lá e por qual caminho chegara até os próprios epítetos pureccminc scr atribuíveis em última análise à mesma neces sidade de conformação sensível dos fenômenos Aqui é a cica 4 MIMESIS triz que aparece no decorrer da ação e não é possível para o sentimento homérico deixála emergir simplesmente de uma escu ridão não esclarecida do passado ela deve sair claramente à luz e com ela um pouco da paisagem juvenil do herói da mesma maneira que na Ilíada quando o primeiro navio já arde e os mirmidões finalmente se dispõem a ajudar há ainda tempo suficiente não só para a magnífica comparação com os lôbos não só para a ordem dos bandos mirmidônicos mas também para a informação pormenorizada acêrca da origem de alguns subalternos Ilíada 16 155 ss É claro que o efeito estético assim obtido deve ter sido percebido logo e logo também pro curado mas o mais primordial deve residir no próprio impulso fundamental do estilo homérico representar os fenômenos acaba damente palpáveis e visíveis em tôdas as suas partes claramente definidos em suas relações espaciais e temporais Não é dife rente o que se dá com os processos internos também dêles nada deve ficar oculto ou inexprimido Sem reservas bem dis postos até nos momentos de paixão os homens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso o que êles não dizem aos outros êles falam para si de modo a que o leitor o saiba Acontecem muitas coisas espantosas nas poesias homéricas mas nunca acontecem mudamente Polifemo fala com Ulisses êste fala com os pretendentes quando começa a matálos prolixa mente Heitor e Aquiles falam antes e após a luta e nenhum discurso é tão carregado de mêdo ou de ira que nêle faltem ou se desordenem os instrumentos da articulação lógica da língua Isto é válido naturalmente não só para os discursos mas para tôda a apresentação Os diversos membros dos fenômenos são postos sempre em clara relação mútua grande quantidade de conjunções advérbios partículas e outros instrumentos sintáti cos todos êles claramente delimitados e finamente graduados na sua significação deslindam as personagens as coisas e as partes dos acontecimentos entre si e os põem simultaneamente em correlação mútua ininterrupta e fàcilmente fluente tal como os próprios fenômenos isolados também as suas relações os entre laçamentos temporais locais causais finais consecutivos com parativos concessivos antitéticos e condicionais vêm à luz per feitamente acabados de modo que se dá um desfile ininterrupto ritmicamente movimentado dos fenômenos sem que se mostre em parte alguma uma forma que não passasse de fragmento ou que estivesse só parcialmente iluminada uma lacuna uma fenda um vislumbre de profundezas inexploradas E êste desfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano isto é sempre em pleno presente espacial e temporal Poderseia acreditar que as muitas interpolações o freqüente avançar e retro ceder deveriam criar uma espécie de perspectiva temporal e espacial mas o estilo homérico nunca dá esta impressão A ma neira pela qual é evitada esta impressão de perspectiva pode ser observada claramente no processo da introdução das inter polações uma construção sintática que é familiar a todo leitor de Homero êle é também utilizado no nosso trccho mas é encontrável também em interpolações muito muis curtiis À A CICATRIZ DE ULISSES 5 palavra cicatriz v 393 seguese imediatamente uma oração relativa que outrora um ja v a li a qual se expande num amplo parêntese sintático neste introduzse inesperadamente uma oração principal v 396 um deus d eu lh e a qual vai se livrando silenciosamente da subordinação sintática até que com o verso 399 começa um nôvo presente uma inserção também sintàticamente livre de novos conteúdos êste nôvo pre sente reina sozinho até que com o verso 467 esta era agora apalpada pela a n c iã retomase aquilo que antes se inter rompera É claro que em interpolações tão longas como a presente dificilmente seria possível levar a cabo uma ordenação sintática tanto mais fácil seria uma ordenação em perspectiva dentro da ação principal mediante uma disposição dos conteú dos que tivesse isto em mira se se apresentasse por exemplo a estória da cicatriz como lembrança de Ulisses tal como ela aparece neste momento na sua consciência isto teria sido muito fácil teria sido necessário meramente começar com a narração da cicatriz dois versos antes quando da primeira menção da palavra cicatriz onde já estão disponíveis os motivos Ulisses e lembrança Mas um tal processo subjetivoperspectivista que cria um primeiro e um segundo planos de modo que o presente se abra na direção das profundezas do passado é totalmente estra nho ao estilo homérico êle só conhece o primeiro plano só um presente uniformemente iluminado uniformemente objetivo e assim a digressão começa só dois versos mais tarde quando Euri cléia já descobriu a cicatriz quando a possibilidade da orde nação em perspectiva não mais existe e a estória da cicatriz tornase independente e pleno presente A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro texto igualmente antigo igual mente épico surgido de um outro mundo de formas Tentáloei com o sacrifício de Isaac uma narração inteiramente redigida pelo assim chamado Eloísta Os monges beneditinos traduziram o princípio como segue Depois disto Deus provou Abraão E disselhe Abraão Eisme aqui respondeu êle Já êste prin cípio nos deixa perplexos quando viemos de Homero Onde estão os dois interlocutores Isto não é dito Mas o leitor sabe muito bem que êles não estão em todo o tempo no mesmo lugar terreno que um dêles Deus deve vir de algum lugar deve irromper de alguma altura ou profundeza no terreno para falar com Abraão De onde vem êle de onde se dirige êle a Abraão Nada disto é dito Êle não vem como Zeus ou Posseidon das Etiópias onde se regozijara com um holocausto Nada se diz também da causa que o movera a tentar Abraão tão terrivel mente ÊIc não a discutira como Zeus com outros deuses numa assembléia cm ordenado discurso também não nos é comuni cado o que ponderara no seu próprio coração inesperada e enigmàticamente penetra na cena chegado de altura ou profun dezas desconhecidas c chama Abraão Dirseá imediatamente que isto nc explica a partir da singular noção divina dos judeus a qual era tão diferente da dos gregos Isto é correto mas não é uma objeção Pois como se explica a noção judia dc Deus 6 MIMESIS Já o seu primitivo Deus do deserto não contava com forma ou residência fixas e era solitário sua falta de forma de sede e sua solidão não só se reafirmaram finalmente na luta com os deuses do Oriente próximo relativamente bem mais inteligíveis mas também se desenvolveram de maneira mais intensa A no ção que os judeus tinham de Deus não é somente causa mas antes sintoma do seu particular modo de ver e de representar Isto fica ainda mais claro quando nos voltamos para o outro in terlocutor para Abraão Onde está êle Não o sabemos Êle diz contudo Eisme aqui mas a palavra hebraica significa algo assim como vêdeme ou como traduz Gunkel ouço e em qualquer caso não quer indicar o lugar real no qual Abraão se encontra mas o seu lugar moral em relação a Deus que o chama ra estou aqui à espera das tuas ordens Não é comunicado con tudo onde êle se encontra pràticamente se em BeerSeba ou em outro lugar se em casa ou sob o céu aberto Não interessa ao narrador o leitor não o fica sabendo e também a ocupação à qual se dedicava quando Deus o chamou fica às escuras Lembrese para bem perceber a diferença que na visita de Her mes a Calipso onde a incumbência a viagem a chegada e a re cepção do visitante a situação e a ocupação da pessoa visitada se estendem ao longo de muitos versos e mesmo nos momentos em que os deuses aparecem repentinamente só por breves instantes seja para auxiliar os seus favoritos seja para confundir ou perder um dos seus odiados mortais sempre é indicada claramente a sua figura e o mais das vêzes o meio da sua chegada e do seu desaparecimento Aqui porém Deus aparece carente de forma e contudo aparece de algum lugar só ouvimos a sua voz e esta não chama nada além do nome sem adjetivo sem apalpar descritivamente a pessoa interpelada como seria o caso em qualquer apóstrofe homérica E também de Abraão nada é tomado sensível afora as palavras com que êle replica a Deus Hinneni Eisme aqui com o que evidentemente é sugerido um gesto extremamente impressionante que exprime obediência e prontidão cujo acabamento é deixado contudo ao leitor Assim nada dos interlocutores é manifesto afora as palavras breves abruptas que se chocam duramente sem preparação alguma quando muito a representação de um gesto de total entrega tudo o mais fica no escuro A isto ainda se junta o fato de os dois interlocutores não estarem num mesmo plano se imaginarmos Abraão num primeiro plano onde seria possível vislumbrar a sua figura prostrada ou ajoelhada incli nandose de braços abertos ou olhando para o alto certamente Deus não está ali as palavras e os gestos de Abraão dirigemse para o interior da imagem ou para o alto para um lugar inde finido escuro em nenhum caso para um lugar situado no pri meiro plano de onde a voz lhe chega Após êste comêço Deus dá a sua ordem e se inicia a nar ração propriamente dita Todos a conhecem sem interpolação alguma em poucas orações principais cuja ligação sintática é extremamente pobre desenvolvese a narração Aqui seria im A CICATRIZ DE ULISSES 7 pensável descrever um apetrecho que é utilizado uma paisagem pela qual se passa os servos ou o burro que acompanham a comitiva e menos ainda a ocasião em que foram adquiridos a sua origem o material de que são feitos o seu aspecto ou a sua utilidade nunca poderiam ser descritos com admiração êles nem suportam um adjetivo são servos burro lenha e faca e nada mais sem epítetos êles têm de cumprir a finalidade que Deus lhes indicara o que mais êles são foram ou serão perma nece no escuro Percorrese um caminho pois Deus indicara o local onde se consumaria o sacrifício mas nada é dito acêrca do caminho afora que êle durara três dias e mesmo isto é dito de forma enigmática Abraão e sua comitiva partiram de manhã cedo e se dirigiram ao lugar do qual Deus lhes tinha falado ao terceiro dia êle elevou os olhos e viu o lugar de longe O levantar dos olhos é o único gesto é propriamente a única coisa que nos é dita acêrca da viagem e ainda que êle se justifique pelo fato de o local se encontrar num lugar elevado êle apro funda pela sua própria singeleza a impressão de vazio da caminhada é como se durante a viagem Abraão não tivesse olhado nem para a direita nem para a esquerda como se tivesse reprimido tôdas as suas manifestações vitais assim como as dos seus companheiros exceto o andar dos seus pés Desta forma a viagem é como um silencioso andar através do indeterminado e do provisório uma contenção do fôlego um acontecimento que não tem presente e que está alojado entre o que passou e o que vai acontecer como uma duração não preenchida que é todavia medida três dias Tais três dias reclamam a inter pretação simbólica que mais tarde obtiveram Começaram de manhã cedo Mas a que hora do terceiro dia levantou Abraão os olhos e viu a sua meta Nada consta do texto acêrca disto Evidentemente não tarde na noite pois ficoulhe como pare ce tempo suficiente para subir a montanha e preparar o sacri fício Portanto de manhã cedo não está empregado em fun ção de uma demarcação temporal mas em função de um signi ficado moral deve exprimir o imediato o pontual e o exato da obediência do malafortunado Abraão Amarga é para êle a ma nhã em que sela o seu jumento e chama os seus servos e o seu filho Isaac e parte mas êle obedece êle caminha até o terceiro dia quando levanta os olhos e vê o lugar De onde vêm nâo o sabemos mas a meta é indicada claramente Jeruel na terra de Moriá Não foi estabelecido que lugar é êste pois é possível que Moriá tenha sido introduzido posteriormente como correção a uma outra palavra mas em todo caso o local estava indicado tratavase sem dúvida de um lugar de culto ao qual deveria ser conferida uma especial consagração em conexSo com a oferenda de Abraão Do mesmo modo que de manhA cedo não tem a função de fixar uma delimitação temporal Jeruel na terra de Moriá não fixa uma delimitação espacial poli que em nenhum dos dois casos conhecemos o limite opoito do mesmo modo que não sabemos a hora em que Abrnlo levantou os olhoi no conhecemos o lugar de onde 8 MIMESIS Abraão partiu Jeruel importa não tanto como meta de uma viagem terrena na sua relação geográfica com outros lugares quanto como na sua especial eleição na sua relação com Deus que o determinara como cenário desta ação por isso precisa ser nomeado Na narração aparece uma terceira pessoa Isaac Enquanto Deus e Abraão servos burros e utensílios são simplesmente chamados pelo nome sem menção de qualidades ou de qualquer outra especificação Isaac obtém uma vez uma aposição Deus diz Toma teu filho teu único filho a quem tanto amas Isaac Isto contudo não é uma caracterização de Isaac como êle é de forma absoluta também fora da sua relação com o pai e fora dêste relato não é um desvio nem uma interrupção des critiva pois não se trata de uma caracterização que delimite Isaac que remeta à sua existência como um todo Êle pode ser belo ou feio inteligente ou tolo alto ou baixo atraente ou repulsivo nada disto é dito Só aquilo que deve ser conhe cido acêrca dêle aqui e agora dentro dos limites da ação aparece iluminado para salientar quão terrível é a tentação de Abraão e quão consciente Deus é disto Observase com êste exemplo antitético qual é a significação dos adjetivos descritivos e as digressões da poesia homérica com a sua alusão à existência restante da personagem descrita àquilo que não é totalmente apreendido pela situação à sua existência por assim dizer abso luta êles impedem a concentração unilateral do leitor na crise presente impedem mesmo no mais espantoso dos acontecimen tos o surgimento de uma tensão opressiva Mas no caso da oferenda de Abraão a tensão opressiva existe O que Schiller queria reservar para o poeta trágico roubarnos a nossa liber dade de ânimo dirigir numa só direção e concentrar as nossas fôrças interiores Schiller diz a nossa atividade isto é obtido neste relato bíblico que certamente deve ser considerado épico Encontramos o mesmo contraste quando comparamos o emprêgo do discurso direto No relato bíblico também se fala mas o discurso não tem como em Homero a função de informar acabadamente o que se significa no interior Antes pelo con trário tem a intenção de aludir a algo implícito que permanece inexprimido Deus dá a sua ordem em discurso direto mas cala o seu motivo e a sua intenção Abraão ao receber a ordem emudece e age da maneira que lhe fôra ordenada A conversa entre Abraão e Isaac no caminho ao local do sacrifício não é senão uma interrupção do pesado silêncio e não serve senão para tornálo mais opressivo Juntos os dois Isaac carregando a lenha e Abraão o fogo e a faca caminhavam Isaac atrevese a perguntar hesitante acêrca da ovelha e Abraão dá a resposta que conhecemos Ali repete o texto E ambos juntos continuaram o seu caminho Tudo fica inexprimido Não é fácil portanto imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que êstes que pertencem u textos igualmente antigos e épicos De um lado fenômenos ncabados uniforme A CICATRIZ DE ULISSES 9 mente iluminados definidos temporal e espacialmente ligados entre si sem interstícios num primeiro plano pensamentos e sentimentos exprimidos acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e com pouca tensão Do outro lado só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação o restante fica na escuridão Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados o que há entre êles é inconsistente tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação os pensamentos e os sentimentos permanecem inexprimidos só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários O todo dirigido com máxima e inin terrupta tensão para um destino e por isso mesmo muito mais unitário permanece enigmático e carregado de segundos planos Acêrca desta última expressão quero exprimirme com maior clareza para que ela não seja mal compreendida Falei mais acima do estilo homérico como sendo de primeiro plano por que apesar dos muitos saltos para trás ou para diante deixa agir o que é narrado em cada instante como presente único e puro sem perspectiva A observação do texto eloísta mostranos que a expressão pode ser empregada mais ampla e mais profundamen te Evidenciase que até a personagem individual pode ser apre sentada como carregada de segundos planos Deus sempre o é na Bíblia pois não é como Zeus apreensível na sua presen ça só algo dêle aparece em cada caso êle sempre se estende para as profundidades Mas os próprios sêres humanos dos rela tos bíblicos são mais ricos em segundos plartos do que os homé ricos êles têm mais profundidade quanto ao tempo ao destino e à consciência Ainda que estejam quase sempre envolvidos num acontecimento que os ocupa por completo não se entregam a tal acontecimento até o ponto de perderem a sua permanente cons ciência do que lhes acontecera em outro tempo e em outro lugar seus pensamentos e sentimentos têm mais camadas e são mais intrincados O modo de agir de Abraão explicase não somente a partir daquilo que lhe acontece momentaneamente também não somente a partir do seu caráter como o de Aquiles pela sua ousadia e pelo seu orgulho o de Ulisses pela sua astúcia e pruden te previsão mas a partir da sua história anterior Lembrase tem permanente consciência do que Deus lhe prometera e do que já cumprira o seu interior está profundamente excitado entre a indignação desesperada e a esperança confiante a sua silenciosa obediência é rica em camadas e em planos é impossível para as figuras homéricas cujo destino está univocamente determinado e que acordam todo dia como se fôsse o primeiro cair em situa ções internas tão problemáticas As suas emoções são violentas convenhamos mas são também simples e irrompem de imediato Quanta profundidade há em contraste nos caracteres de Saul ou de Davi quão intrincadas quão ricas em planos são as relações humanas como as que há entre Davi e Absalão entre Davi e Joitb Hm Homero seria inimaginável uma tal multiplicidade de planos nus situnçõcs psicológicas como aquela que é mais suge rida do que expressa na história du morte de Absalão e no seu 10 MIMESIS epílogo 2 Sam 18 e 19 do assim chamado javista Aqui se trata não sòmente de acontecimentos psíquicos carregados de segundos planos de profundezas abissais talvez mas também de um segundo plano puramente espacial Pois Davi está ausente do campo de batalha mas as irradiações da sua vontade e dos seus sentimentos têm efeito constante agem até sôbre Joab que resiste e age sem consideração na grandiosa cena com os dois emissários tanto os segundos planos espaciais quanto os psíquicos atingem uma expressão perfeita sem que os últimos sejam expri midos Confrontese com isto a maneira como Aquiles que envia Patroclo primeiro à descoberta e depois à luta perde quase tôda presença enquanto não aparece materialmente O mais impor tante contudo é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem isto é dificilmente encontrável em Homero quando mui to na forma da dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir em tudo o mais a multiplicidade da vida psíquica mostrase nêle só na sucessão no revezamento das paixões enquanto que os autores judeus conseguem exprimir as camadas simultânea mente sobrepostas da consciência e o conflito entre as mesmas Os poemas homéricos cuja cultura sensorial lingüística e sobretudo sintática parece ser tanto mais elaborada são con tudo na sua imagem do homem relativamente simples e tam bém o são em geral na sua relação com a realidade da vida que descrevem A alegria pela existência sensível é tudo para êles e a sua mais alta intenção é apresentarnos esta alegria Entre lutas e paixões aventuras e perigos mostramnos caçadas e ban quetes palácios e choupanas de pastores competições e lavatórios para que observemos os heróis na sua maneira bem própria de viver e com isto nos alegremos ao vêlos gozando o seu presen te saboroso bem inserido em costumes paisagens e necessidades quotidianas E êles nos encantam e cativam de tal maneira que realmente compartilhamos o seu viver Enquanto ouvimos ou lemos a sua estória nos é absolutamente indiferente que saiba mos que tudo é só lenda que é tudo mentira A exprobração freqüentemente levantada contra Homero de que êle seria um mentiroso nada tira da sua eficiência êle não tem necessidade de fazer alarde da verdade histórica do seu relato a sua realidade é bastante forte emaranhanos embrulhanos na sua rêde e isto lhe basta Neste mundo real existente por si mesmo no qual somos introduzidos por encanto não há também nenhum outro conteúdo a não ser êle próprio os poemas homéricos nada ocul tam nêles não há nenhum ensinamento e nenhum segundo senti do oculto É possível analisar Homero como o tentamos aqui mas não é possível interpretálo Tendências posteriores orien tadas no sentido do alegórico tentaram aplicar as suas artes exegéticas também a Homero mas isso a nada levou Êle resiste a um tal tratamento As interpretações são forçadas e estranhas e não se cristalizam numa teoria unitária As considerações de caráter geral que se encontram ocasionalmente em nosso epi sódio por exemplo o verso 360 pois na desgraça os homem logo envelhecem revelam uma tranqüila uceitaçBo doi dado A CICATRIZ DE ULISSES 11 da existência humana porém não a necessidade de cismar sôbre o assunto e menos ainda um impulso apaixonado seja de se levantar contra isto seja de se submeter com abandono extático Tudo isto é completamente diferente nos relatos bíblicos O encantamento sensorial não é a sua intenção e se não obstan te êles têm um efeito bastante vital também no campo sensorial isto se deve ao fato de que os sucessos éticos religiosos inte riores que são os únicos que lhes interessam concretizamse no material sensível da vida Porém a intenção religiosa condiciona uma exigência absoluta de verdade histórica A história de Abraão e de Isaac não está melhor testificada do que a de Ulisses Penélope e Euricléia ambas são lenda Só que o narrador bí blico o Eloísta tinha de acreditar na verdade objetiva da his tória da oferenda de Abraão a persistência das ordens sagra das da vida descansava na verdade desta história e de outras histórias semelhantes Êle tinha de acreditar nela apaixonada mente ou então êle deveria ser como alguns exegetas ilu ministas admitiram ou talvez ainda admitem um mentiroso consciente não um mentiroso inofensivo como Homero que mentia para agradar mas um mentiroso político consciente das suas metas que mentia no interêsse de uma pretensão ao domí nio Esta visão iluminista pareceme psicologicamente absurda mas mesmo se a considerarmos a relação entre o narrador bíblico e a verdade do seu relato fica sendo muito mais apai xonada muito mais univocamente definida do que a de Ho mero Êle tinha de escrever exatamente aquilo que lhe fôsse exigido pela sua fé na verdade da tradição ou do ponto de vis ta iluminista pelo seu interêsse na sua verossimilhança em qualquer caso a sua fantasia inventiva ou descritiva estava estreitamente delimitada A sua atividade devia limitarse a redigir de maneira efetiva a tradição devota O que êle produ zia portanto não visava imediatamente a realidade quando a atingia isto era ainda um meio nunca um fim mas a verdade Ai de quem não acreditasse nela Podese abrigar muito fàcilmente objeções históricocríticas quanto à guerra de Tróia e quanto aos errores de Ulisses e ainda assim sentir na leitura de Homero o efeito que êle procurava mas quem não crê na oferenda de Abraão não pode fazer do relato bíblico o uso para o qual foi destinado É necessário ir mais longe ainda A pretensão de verdade da Bíblia não é somente muito mais urgente que a de Homero ela também é tirânica exclui qual quer outra pretensão O mundo dos relatos das Sagradas Escri turas não se contenta com a pretensão de ser uma realidade his tòricamente verdadeira ela pretende ser o único mundo ver dadeiro destinado ao domínio exclusivo Qualquer outro cená rio quaisquer outros desfechos ou ordens não têm direito algum a se apresentar independentemente dêle e está escrito que todos êles a história de tôda a humanidade se integrarão e se subor dinarão aos teus quadros Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosio favor como os de Homero não nos lisonjeiam pura no agradar e nos encantar o que querem é 12 MIMESIS dominarnos e se nos negamos a isto então somos rebeldes Não se queira objetar que isto é ir demasiado longe que não é o relato mas a doutrina religiosa o que apresenta estas pre tensões pois os relatos justamente não são como os de Home ro mera realidade narrada Nêles encarnam doutrina e pro messa indissoluvelmente fundidas nestes relatos precisamente por isso êles têm um caráter recôndito e obscuro êles contêm um segundo sentido oculto Na história de Isaac não é somen te a intervenção de Deus no princípio e no fim mas também no meio tanto o fatual como o psicológico o que fica obscuro só tocado de leve carregado de planos subseqüentes e é justa mente por isso que tudo necessita de aprofundamento cismativo e da interpretação exegética e mesmo os reclama Que Deus tente até o mais piedoso da maneira mais terrível que a obe diência incondicional seja a única atitude possível perante Êle mas que também a sua promessa seja inamovível por mais que as suas decisões pareçam destinarse a produzir a dúvida e o desespêro êstes são os ensinamentos talvez mais importantes contidos na história de Isaac mas por sua causa o texto fica tão pesado tão carregado de conteúdo êle contém em si ainda tantas alusões acêrca da essência de Deus e da atitude do ho mem piedoso que o crente se vê motivado a se aprofundar uma e outra vez no texto e a procurar em todos os seus pormenores a luz que possa estar oculta E como de fato há no texto tan ta coisa obscura e inacabada e como êle sabe que Deus é um Deus oculto o seu afã interpretativo encontra sempre nôvo ali mento A doutrina e o zêlo na procura da iluminação estão indis soluvelmente ligados ão caráter do relato êste é mais do que mera realidade e estão naturalmente em constante perigo de perder a sua própria realidade como ocorreu logo que a interpretação atingiu tal grau de hipertrofia que chegou a decom por o real Se desta forma o texto do relato bíblico a partir do seu próprio conteúdo é carente de interpretação a sua pretensão de domínio levao ainda mais longe por êste caminho Pois êle não quer fazernos esquecer a nossa própria realidade durante algu mas horas como Homero mas quer submetêla a si devemos inserir a nossa própria vida no seu mundo sentirmonos mem bros da sua estrutura históricouniversal Isto se torna cada vez mais difícil à medida que o nosso mundo vital se afasta cada vez mais do mundo das Escrituras e se êste mundo apesar de tudo mantém em pé a sua pretensão de domínio é imperioso que êle próprio deva se adaptar através de um transformação interpretativa Isto foi relativamente fácil durante longo tempo durante a Idade Média européia era possível ainda representar os acontecimentos bíblicos como sucessos quotidianos do pre sente de então para o qual o método da interpretação fornecia as bases Quando isto se torna impraticável pela transformação demasiado profunda do mundo vital c pelo despertar de uniu consciência crítica a pretensão de domínio corre perigo o mé todo excgético é desprezado c deixado de lado os relatos bíblicos A CICATRIZ DE ULISSES 13 convertemse em velhas lendas e a doutrina desmembrada dos mesmos tornase uma forma incorpórea que não mais penetra na realidade sensível ou que se volatiliza na exaltação pessoal Como conseqüência da pretensão de domínio o método exegético estendeuse também a outras tradições que não a judaica Os poemas homéricos fornecem uma relação de acon tecimentos precisa espacial e temporalmente delimitada antes junto e após ela são pensáveis sem conflito nem dificuldade outras relações de acontecimentos independentes da homérica O Velho Testamento porém fornece história universal começa com o princípio dos tempos com a criação do mundo e quer acabar com o fim dos tempos com o cumprimento da promessa com a qual o mundo deverá encontrar o seu fim Tudo o mais que ainda acontece no mundo só pode ser apresentado como membro desta estrutura tudo o que disto fica sendo conhecido ou até interfere com a história dos judeus deve ser embutido na estrutura como parte constitutiva do plano divino e como isto também só é possível pela interpretação do nôvo material afluen te a necessidade exegética se estende também além dos campos primitivos da realidade judeoisraelita por exemplo à história assíria babilónica persa romana a interpetração num sentido determinado tornase um método geral de apreensão da reali dade o mundo estranho constantemente penetrando como nô vo no horizonte e que tal como se apresenta de forma imediata é em geral totalmente impraticável para o seu uso no contex to religioso judeu deve ser interpretado de tal maneira que se encaixe nêle Mas quase sempre isto repercute sôbre o contexto que carece de ampliação e de modificação O trabalho inter pretativo mais impressionante desta espécie ocorreu nos pri meiros séculos do cristianismo como conseqüência da missão entre pagãos e foi realizado por Paulo e peios pais da igreja êles reinterpretaram tôda a tradição judaica numa série de fi guras preventórias da aparição de Cristo e indicaram ao Impé rio Romano o seu lugar dentro do plano divino da salvação Portanto enquanto por um lado a realidade do Velho Testa mento aparece como verdade plena com pretensões à hegemo nia estas mesmas pretensões obrigamna a uma constante modi ficação interpretativa do seu próprio conteúdo êste vive durante milênios na vida dos homens europeus em incessante e ativa evolução A pretensão de universalidade histórica e a relação sempre aprofundada que constantemente se analisa em conflitos com um Deus único oculto porém aparente que dirige a história universal prometendo e exigindo confere aos relatos do Velho Testamento uma perspectiva totalmente diferente daquela que Homero poderia possuir O Velho Testamento é incomparàvel mente menos unitário na sua composição do que os poemas homéricos é muis evidentemente feito de retalhos mas cada um dfiles pertenee n um contexto históricouniversal e interpre tiitivo dii hiHlóriii universal Ainda que tenham recebido alguns elementos ilillcilmcnlc encaixáveis ainda assim êstes são apre 14 MIMESIS endidos pela interpretação e assim o leitor sente em cada instan te a perspectiva religiosa e históricouniversal que confere a cada um dos relatos o seu sentido global e a sua meta global Quanto mais isolados horizontalmente independentes se justapõem os relatos e os grupos de relatos se comparados com os da lãada e da Odisséia tanto mais forte é a sua ligação vertical comum que os mantém todos juntos sob um mesmo signo o que falta totalmente a Homero Em cada uma das grandes figuras do Velho Testamento desde Adão até os Profetas encarnase um momento da mencionada ligação vertical Deus escolheu e mol dou estas personagens para o fim da encarnação da sua essência e da sua vontade mas a eleição e a modelagem não coinci dem esta última realizase paulatinamente de maneira histó rica durante a vida terrena dos escolhidos Na história da ofe renda de Abraão vimos como isto ocorre que terríveis provas envolve uma tal modelagem Daí decorre o fato de as grandes figuras do Velho Testamento serem mais plenas de desenvolvi mento mais carregadas da sua própria história vital e mais cu nhadas na sua individualidade do que os heróis homéricos Aquiles e Ulisses são descritos magnificamente por meio de muitas e bem formadas palavras têm pregados uma série de epítetos as suas emoções manifestamse sem reservas nos seus discursos e gestos mas êles não têm desenvolvimento algum e a história das suas vidas fica estabelecida univocamente Os he róis homéricos estão tão pouco apresentados no seu devir e no seu terdevindo que na sua maioria Nestor Agamenão Aqui les aparecem com uma idade préfixada O próprio Ulisses que oferece tanta ocasião para um desenvolvimento históricovital graças ao longo tempo narrado e aos muitos acontecimentos que nêle ocorrem quase nada mostra disso tudo É claro que Telêmaco cresceu enquanto isto do mesmo modo que tôda crian ça chega à adolescência durante a digressão acêrca da cicatriz contase também idilicamente da infância e adolescência de Ulisses Mas Penélope pouco mudou nesses vinte anos no caso do próprio Ulisses o envelhecimento meramente físico é velado pelas repetidas intervenções de Atenéia que o faz apa recer velho ou jovem segundo o requer cada situação Para além do físico nem sequer se faz alusão a outra coisa e no fundo Ulisses é quando regressa exatamente o mesmo que abandonara Itaca duas décadas atrás Mas que caminho que destino se interpõe entre o Jacó que obteve ardilosamente a bên ção do primogênito e o ancião cujo filho mais amado foi des pedaçado por uma fera entre Davi o harpista perseguido pelo ódio amoroso do seu senhor e o velho rei circundado de intrigas apaixonadas aquecido no seu leito por Abisai a Suna mita sem que êle a reconheça O velho de quem sabemos co mo chegou a ser o que é gravase mais fortemente na nossa consciência é mais fortemente característico do que o jovem pois só no decorrer de uma vida rica em lances de fortuna os homens se diferenciam até a plena caracterizaço e o Velho Testamento nos oferece ste caráter de história das personalida des como modelagem daqueles que Deui escolheu para o de A CICATRIZ DE ULISSES 15 sempenho dos papéis exemplares Duramente envelhecidos pelo seu devir envelhecidos às vêzes até a decomposição elas apre sentam um cunho individual que é totalmente estranho aos he róis homéricos A êstes o tempo só pode afetar exteriormente e mesmo isto é evidenciado o menos possível em contraste as figuras do Velho Testamento estão constantemente sob a dura férula de Deus que não só as criou e escolheu mas continua a modelálas a dobrálas e amassálas extraindo delas sem des truir a sua essência formas que a sua juventude dificilmente deixava prever A objeção de que o históricovital do Velho Testamento surgiu muitas vêzes da sínfise de diversas perso nagens lendárias não nos atinge pois esta sínfise faz parte do surgimento do texto E quanto mais ampla é a oscilação do pêndulo do seu destino do que aquela dos heróis homéricos Pois êles são os portadores da vontade divina e mesmo assim são falíveis sujeitos a desgraça e a humilhação e em meio à desgraça e à humilhação manifestase através das suas ações e palavras a sublimidade de Deus Dificilmente um dêles não sofre como Adão a mais profunda humilhação e dificil mente um dêles não é agraciado pelo trato e pela inspiração pessoais de Deus Humilhação e exaltação são muito mais profundas ou elevadas do que em Homero e fundamental mente andam sempre juntas O pobre mendigo Ulisses não é senão um disfarce mas Adão é real e totalmente expulso Jacó é realmente um fugitivo e José é realmente lançado num po ço e mais tarde realmente vendido como escravo Mas a sua grandeza que se eleva da própria humilhação é próxima do sôbrehumano e é também um reflexo da grandeza divina Per cebese claramente como a amplidão da oscilação pendular está em relação com a intensidade da história pessoal justamen te as situações extremas nas quais somos abandonados ou ficamos desesperados além de tôda medida nas quais além de tôda medida somos felizes ou exaltados conferemnos quan do as superamos um cunho pessoal que se reconhece como resultado de um intenso devir de uma rica evolução E êste caráter evolutivo confere freqüentemente aliás quase sempre aos relatos do Velho Testamento um caráter histórico mesmo nos casos em que se trata de tradições meramente lendárias Homero permanece com todo o seu assunto no lendário enquanto que o assunto do Velho Testamento à medida que o relato avança aproximase cada vez mais do histórico na narração de Davi já predomina o relato histórico Ali tam bém há ainda muito de lendário como por exemplo os relatos de Davi e Golias só que muito a bem dizer o essencial con siste em coisas que os relatores conhecem por terem aconteci do durante as suas próprias vidas ou através de testemunhos imediatos Ora a diferença entre lenda e história é fácil de descobrir para o leitor algo experiente na maioria dos casos Sc é difícil distinguir dentro de um relato histórico o verda deiro do fulso ou do parcialmente iluminado pois requer uma cuidudosii formação históricofilológica é fácil em geral se 16 MIMESIS parar a lenda da história A sua estrutura é diferente Mesmo quando a lenda não se delata imediatamente pela presença de elementos maravilhosos pela repetição de motivos conhecidos pelo desleixo na localização espacial ou temporal ou por outras coisas semelhantes pode ser reconhecida rapidamente o mais das vêzes pela sua estrutura Desenvolvese de maneira excessivamente lisa Tudo o que correr transversalmente todo atrito todo o restante secundário que se insinua nos aconteci mentos principais nos motivos principais todo o indeciso que brado e vacilante tudo o que confunde o claro curso da ação e a simples direção das personagens tudo isso está desbotado A história que presenciamos ou que conhecemos através de testemunhos de contemporâneos transcorre de maneira muito menos uniforme mais cheia de contradições e confusão só quando numa zona determinada ela já produziu resultados podemos com a sua ajuda ordenálos de algum modo e quan tas vêzes a ordem que assim achamos ter obtido tornase novamente duvidosa quantas vêzes nos perguntamos se aquê les resultados não nos levaram a uma ordenação demasiado simplista do originalmente acontecido A lenda ordena o assun to de modo unívoco e decidido recortao da sua restante co nexão com o mundo de modo que êste não pode intervir de maneira perturbadora ela só conhece homens univocamente fi xados determinados por poucos e simples motivos e que não podem ser prejudicados na inteireza do seu sentir e obrar Na lenda dos mártires por exemplo vemos como se enfrentam obstinados e fanáticos perseguidos e um perseguidor não me nos teimoso e fanático uma situação tão complicada isto é tão verdadeiramente histórica como aquela em que se encontra o perseguidor Plínio na famosa carta que escreve a Trajano acêrca dos cristãos não pode ser usada em lenda alguma E êste caso ainda é relativamente simples Pensese na história que nós mesmos estamos vivendo quem ponderar o proceder dos indivíduos e dos grupos humanos no nascimento do na cionalsocialismo da Alemanha ou o proceder dos diferentes povos e estados antes e durante a atual guerra 1942 sentirá como são dificilmente representáveis os objetos históricos em geral e como são inutilizáveis para a lenda o histórico contém em cada indivíduo uma pletora de motivos contraditórios em cada grupo uma vacilação e um tatear ambíguo só raramente como agora com a guerra aparece uma situação fortuitamen te unívoca que pode ser descrita de maneira relativamente sim ples mas mesmo esta é subterrâneamente graduada e a sua uni vocidade está quase constantemente em perigo e os motivos de todos os participantes têm tantas camadas que os slogans propagandísticos chegam a existir só graças à mais grosseira simplificação o que tem como conseqüência que amigos e inimigos possam empregar freqüentemente os mesmos Escre ver história é tão difícil que a maioria dos historiadores vêsc obrigada a fazer concessões à técnica do lendário A CICATRIZ DE ULISSES 17 É claro que uma boa parte dos livros de Samuel contém história e não lenda Na rebelião de Absalão ou nas cenas dos últimos dias da vida de Davi o contraditório e o entre cruzador dos motivos nos indivíduos e na trama total tomouse tão concreto que não se pode duvidar do caráter autentica mente histórico do relato Até que ponto possam ter sido des figurados os acontecimentos por parcialidade isto é uma outra questão que não nos interessa agora de qualquer forma aqui começa a passagem do lendário para o relato histórico e co meça êste último que falta totalmente nas poesias homéricas Ora as pessoas que redigiram as partes históricas dos livros de Samuel são em grande parte as mesmas que redigiram também as lendas mais antigas outrossim sua peculiar con cepção religiosa do homem na história concepção esta que pre tendemos descrever acima não os levava de maneira alguma à simplificação lendária do acontecido assim não deixa de ser natural que mesmo nas partes lendárias do Velho Testamento seja freqüente a aparição de estruturas históricas naturalmen te não no sentido de que a tradição seja examinada quanto à sua credibilidade de maneira científicocrítica mas meramente de tal forma que não predomina no mundo lendário do Velho Testamento a tendência para a harmonização aplainante do acontecido para a simplificação dos motivos e para a fixação estática dos caracteres evitando conflitos vacilações e desen volvimento tal como é peculiar à estrutura lendária Abraão Jacó ou até Moisés têm um efeito mais concreto próximo e histórico do que as figuras do mundo homérico não por esta rem melhor descritos plàsticamente o caso é o contrário mas porque a variedade confusa contraditória rica em inibi ções dos acontecimentos internos e externos que a história autêntica mostra não está desbotada na sua representação mas está ainda nitidamente conservada Isto depende em primeiro lugar da concepção judaica do homem mas também do fato de os redatores não terem sido bardos mas historiadores cuja idéia da estrutura da vida humana se formara no campo do histórico Com isto fica também muito claro de que forma como conseqüência da unidade da estrutura religiosovertical não podia surgir uma divisão consciente dos gêneros literários Todos êles pertencem à mesma ordem geral tudo o que não pudesse ser encaixado nela ainda que fôsse mediante a inter pretação não tinha lugar algum Aqui interessanos sobretudo como se dá nos relatos davídicos a transição imperceptível só reconhecível pela crítica científica posterior do lendário para o histórico e como já no lendário se apreende apaixonada mente o problema da ordem e da interpretação do acontecer humano um problema que mais tarde explode os limites da historiografia sufocandoa por inteiro na profecia Assim o Velho Testamento enquanto se ocupa do acontecer huma no dominn todos os três âmbitos lenda relato histórico e teo Ingin Imtórim cxcgética 18 MIMESIS Com isto que acabamos de analisar relacionase também o fato de o texto grego parecer também mais limitado e mais estático com referência ao círculo das personagens atuantes e da sua mobilidade política No processo do reconhecimento do qual partimos aparece além de Ulisses e de Penélope a ama Euricléia uma escrava comprada outrora pelo pai de Ulisses Laerte Tal como o pastor de porcos Euméio ela passou a sua vida a serviço da família dos Laertíades tal co mo Euméio ela está estreitamente unida ao seu destino araa os e compartilha os seus interesses e sentimentos Mas ela não possui vida própria nem sentimentos próprios só tem os dos seus senhores Também Euméio não obstante ainda lembre ter nascido livre pertencer até a uma família nobre fôra rou bado quando criança já não tem nem na prática nem nos seus sentimentos uma vida própria está atado inteiramente à dos seus senhores Estas duas personagens são porém as úni cas que Homero anima para nós e que não pertencem à classe senhorial Com isto chegase à consciência de que a vida nos poemas homéricos só se desenvolve na classe senhorial tudo o que porventura viva além dela só participa de modo servi çal A classe senhorial ainda é tão patriarcal ainda também tão familiarizada com as atividades quotidianas da vida econô mica que às vêzes se chega a esquecer seu caráter de classe Só que ainda é inconfundivelmente uma espécie de aristocracia feudal cujos homens dividem a sua vida entre a luta a caça as deliberações no mercado e os festins enquanto as mulheres vigiam as criadas em casa Como estrutura social êste mundo é totalmente imóvel as lutas só ocorrem entre diferentes gru pos das classes senhoriais de baixo nada surge Mesmo quan do se consideram os acontecimentos do segundo canto da IUada que terminam com o episódio de Tersites como sendo um movimento popular e duvido que isto possa ser feito em sen tido sociológico pois tratase de guerreiros de categoria sena torial portanto de pessoas que são também membros da classe senhorial ainda que membros de condição inferior o que êstes guerreiros demonstram diante do povo reunido não é senão a sua própria falta de independência e a sua incapacidade de terem iniciativa própria Nos relatos patrísticos do Velho Testamento predomina também a constituição patriarcal mas como se trata de chefes de famílias isolados nômades ou semi nômades o quadro social parece muito menos estável não se sente a formação em classes Logo que finalmente o povo aparece isto é após a saída do Egito êle se faz sentir sempre na sua mobilidade amiúde borbulhando inquietamente e inter vém freqüentemente nos acontecimentos seja como um todo seja como grupos isolados ou como personagens que se expõem individualmente As origens da profecia parecem estar na in domável espontaneidade políticoreligiosa do povo Temse a A CICATRIZ DE ULISSES 19 impressão de que o movimento em profundidade do povo em IsraelJudá deve ter sido de uma espécie muito diferente e muito mais elementar do que nas próprias democracias arcai cas posteriores A mais profunda historicidade e a mais profunda mobi lidade social dos textos do Velho Testamento relacionamse finalmente com mais uma última diferença significativa delas surge um conceito de estilo elevado e de sublimidade diferente do que surge de Homero Êste certamente não receia inserir o quotidiano e realista no sublime e trágico tal receio seria estranho o seu estilo e inconciliável com êle Vêse no nosso episódio da cicatriz como a cena caseira do lavapés pintada aprazivelmente é entretecida na grande na significativa e su fjlime cena da volta ao lar Isto está longe ainda daquela regra da separação dos estilos que mais tarde se imporia qua se por completo e que diria que a descrição realista do quoti diano seria inconciliável com o sublime e só teria lugar no cômico ou em todo caso cuidadosamente estilizado no idíli co E contudo Homero está mais perto dela do que o Velho Testamento Pois os acontecimentos grandes e sublimes ocor rem nos poemas homéricos muito mais exclusiva e inconfundi velmente entre os membros de uma classe senhorial êstes são muitos mais intatos na sua heróica sublimidade do que as fi guras do Velho Testamento que podem cair muito mais pro fundamente na sua dignidade pensese por exemplo em Adão Noé Davi Jó e finalmente o realismo caseiro a representação da vida quotidiana permanecem sempre em Ho mero no idílicopacífico enquanto que já desde o princí pio nos relatos do Velho Testamento o sublime trágico e problemático se formam justamente no caseiro e quotidiano acontecimentos como o que se dá entre Caim e Abel entre Noé e seus filhos entre Abraão Sara e Hagar entre Rebeca Jacó e Esaú e assim por diante não são concebíveis no estilo homérico Isto resulta já da maneira de se originarem os con flitos tão fundamentalmente diferente Nos relatos do Velho Testamento o sossego da atividade quítidiana na casa nos campos e junto aos rebanhos é constantemente socavado pelos ciúmes em tôrno à eleição e é promessa da bênção e surgem complicações inconcebíveis para um herói homérico Para êstes é necessário um motivo palpável claramente exprimível para que surjam conflito e inimizade que resultam em luta aberta enquanto que naqueles o lento e constante fogo dos ciúmes e u ligação do econômico com o espiritual da bênção paterna com a bênção divina conduzem a uma impregnação da vida quotidiana com substância conflitiva e freqüentemente ao seu envenenamento A sublime intervenção de Deus age tão pro fundamente sôbrc o quotidiano que os dois campos do subli me c do quotidiano não só estão de fato inseparados mas são fundumcntulmcntc inseparáveis 20 MIMESIS Comparamos os dois textos e de maneira adjunta os dois ístilos que êles encarnam para obter um ponto de partida para os nossos ensaios sôbre a representação literária da realidade na cultura européia Os dois estilos representam na sua opo sição tipos básicos por um lado descrição modeladora ilumi nação uniforme ligação sem interstícios locução livre predo minância do primeiro plano univocidade limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemá tico por outro lado realçamento de certas partes e escureci mento de outras falta de conexão efeito sugestivo do tácito multiplicidade de planos multivocidade e necessidade de inter pretação pretensão à universalidade histórica desenvolvimento da apresentação do històricamente devinte e aprofundamento do problemático O realismo homérico não pode ser equiparado certamente ao clássicoantigo em geral pois a separação de estilos que se desenvolveu só mais tarde não permitia nos limites do sublime uma descrição tão minuciosamente acabada dos acontecimentos quotidianos sobretudo na tragédia não havia lugar para isto outrossim a cultura grega logo encontrou os fenômenos do devir histórico e da multiplicidade de camadas da problemática humana e os atacou à sua maneira no realismo romano apa recem finalmente novas e peculiares maneiras de ver as coi sas Quando a ocasião o exigir trataremos das modificações posteriores da antiga representação da realidade em geral e apesar destas últimas as tendências fundamentais do estilo ho mérico que tratamos de realçar vigoram até a mais tardia Antigüidade Pois que tomamos os dois estilos o de Homero e o do Velho Testamento como pontos de partida admitimolos como acabados tal como se nos oferecem ns textos fizemos abstra ção de tudo o que se refira às suas origens e deixamos por tanto de lado a questão acêrca de se as suas peculiaridades lhes pertencem originalmente ou se são atribuíveis total ou parcial mente a influências estranhas e quais seriam elas A conside ração desta questão não é necessária nos limites da nossa in tenção pois tal como êstes estilos se formaram acabados em tempos primordiais êles exerceram sua influência constitutiva sôbre a representação européia da realidade Fortunata 2 Non potui amplius quicquam gustare ser conversus ad eum ut quam plurima exciperem longe accersere fabulas coepi sciscitarique quae esset mulier illa quae hue atque illuc discurreret Uxor inquit Tri malchionis Fortunata appellatur quae nummos modio metitur Et modo modo quid fuit Ignoscet mihi genius tuus noluisses de manu illius panem accipere Nunc nec quid nec quare in caelum abiit et Trimalchionis topanta est Ad summam mero meridie si dixerit illi tenebras esse credet Ipse nescit quid habeat adeo saplutus est sed haec lupatria providet omnia et ubi non putes Est sicca sobria bonorum consiliorum est tarnen malae linguae pica pulvinaris Quem amat amat quem non amat non amat Ipse Trimalchio fundos habet qua milvi volant nummorum num mos Argentum in ostiarii illius cella plus iacet quam quisquam in fortunis habet Familia vero babae babae non mehercules puto decumam partem esse quae dominum suum noverit Ad summam quemvis ex istis babaecalis in rutae folium coniciet Nec est quod putes illum quicquam emere Omnia domi nascuntur lana credrae piper lacte gallinaceum si quaesieris invenies Ad summam parum illi bona lana nascebatur arietes a Tarento emit et eos culavit in gregem Vides tot culcitras nulla non aut cochyliatum aut coccineum tomentum habet Tanta est animi beatitudo Reliquos autem collibertos eius cave contem nas valde succbssi sunt Vides illum qui in imo imus recumbit hodie sua octingenta possidet De nihilo crevit Modo solebat eollo suo ligna portare Sed quomodo dicunt ego nihil cio sed audivi quom Incuboni pilleum rapuisset thesaurum invenit Ego nemini invideo si quid deus dedit Est tarnen nubulapo ct non vult sibi male Itaque proxime casa hoc titulo proscripsit C Pompcius Diogenes ex Calendis Iuliis cenaculum local ipsc enim domum emit Quid ille qui libertini loco iacet 22 MIMESIS quam bene se habuit Non impropero illi Sestertium suum vidit decies sed male vacillavit Non puto illum capillos li beros habere Êste trecho pertence ao romance de Petrônio do qual só se conservou um episódio completo o banquete de Trimalcião o rico liberto O trecho aqui transcrito é o capítulo 37 e parte do 38 O narrador Encólpio pergunta ao seu vizinho de mesa durante o banquete quem seria a mulher que vai e vem pela sala e recebe uma resposta que procuraremos tra duzir mantendo dentro do possível o seu estilo Esta é Fortunata a mulher de Trimalcião que conta o dinheiro às arrobas E antes o que pensas que tenha sido Não o leves a mal mas não terias aceito de suas mãos nem um pedaço de pão Mas agora ela entrou no céu sem mais nem menos e é tudo para Trimalcião Enfim se ela lhe disser em pleno meiodia que é de noite êle acredita Êsse aí nem sabe quanto tem de tão rico que é mas ela a tratante cuida de tudo e até onde menos se espera Ela não bebe é parca de bom conselho mas também tem má língua uma verdadeira pêga De quem gosta gosta e de quem não gosta não gosta mesmo Êsse Trimalcião tem terras até onde voam os falcões incontáveis milhões No porão do seu zelador há mais dinheiro do que outra gente tem como fortuna E os escravos Eu acredito que nem a décima parte dêles chega a ver o seu senhor Enfim ao lado dêsse aí todos êstes basbaques podem fechar o bico E não penses que êle precisa comprar alguma coisa é tudo produção própria lã cêra pimenta e se quisesses leite de galinha encontrarias Enfim pareceulhe que não tinha bastante produção própria de boa lã comprou então carneiros de Tarento e os rabeou no seu rebanho Já vês quantas almofadas há por aqui não há nenhuma que não esteja recheada com lã purpúrea ou escarlate tanta é a felicidade dêste homem E também os seus colibertos não devem ser desprezados Êles já têm com que viver Estás vendo aquêle ali atrás Hoje êle tem os seus oitocentos mil E começou com nada Não faz tempo que carregava lenha Mas segundo dizem eu nada sei só me contaram êle pegou um incubo dormindo e achou um tesouro Bem eu não sou invejoso quando um deus dá Aliás êle acaba de ser liberto e está cheio de ares Faz pouco êle ofereceu sua casa em aluguel com um anúncio que dizia assim C Pompéio Diógenes aluga sua casa desde o dia 1 de julho êle acaba de comprar um palacete E êsse outro que está no lugar do liberto como estava bem Não quero falar mal dêle já teve um milhão mas as coisas foram mal e hoje não creio que lhe pertençam nem os seus cabelos A resposta que continua assim por um bom tempo acaba sendo bastante minuciosa Não só a mulher pela qual Encólpio perguntara é descrita mas também o anfitrião e vários comen sais e além do mais quem fala se retrata também a si próprio a sua linguagem e a escala de valores que utiliza dão uma clara idéia de sua personalidade A linguagem é o jargão ordi nário algo pastoso de um comerciante urbano carente de ins trução cheio de frases feitas nummos modio metitur ignoscet FORTUNATA 23 mihi genius tuus noluisses de manu illius panetn accipere in caelum abiit topanta est ad summam terseia de copiar quase tudo e é apresentada com aquêle acento sangüíneo que exprime emoções vivas mas triviais assombro admira ção protesto encolhimento de ombros presunção em resu mo na sua forma verbal as tam dulces fabulae como são chamadas logo mais delatam inconfundivelmente o que são isto é bisbilhotice ordinária ainda que boa parte do seu conteúdo possa ser verdade delatam também quem é o homem que as profere isto é alguém que encaixa perfeitamente no meio que descreve Isto é também atestado pelas suas escalas de valores Pois sem lugar à menor dúvida tôdas as suas palavras estão baseadas na certeza de que a riqueza é o supremo bem quanto mais melhor tanta est animi beatitudo de que não há outro bem nesta vida afora a fartura de mercadorias da melhor qua lidade e o seu gôzo mais ordinário e que evidentemente todo homem age neste sentido à procura do seu proveito material F com tudo isto êle mesmo não é senão um homem de baixa ou média posição que admira sinceramente os ricaços Assim o bom homem não descreve somente Fortunata Trimalcião e os seus comensais mas ao mesmo tempo e sem sabêlo a si próprio Êle tem sem dúvida como vemos um ponto de vista um tanto unilateral fala também mais segundo os seus sentimentos e em associações do que logicamente mas fala circunstanciadamente e por assim dizer plàsticamente não faz das tripas coração e fala tudo o que vem ao caso Não deixa nada no escuro chocalha tudo o que tem a chocalhar como no caso de Homero uma luz clara e uniforme derrama sôbrc homens c objetos êle tem como Homero vagar suficiente para a modelagem o que diz é unívoco e nada de recôndito ou escondido permanece tácito Evidentemente também existem diferenças importantes tom a maneira de Homero Em primeiro lugar a modelagem é completamente subjetiva pois o que nos é apresentado não é porventura o círculo de Trimalcião como realidade objetiva mas como imagem subjetiva tal como se apresenta na cabeça daquele comensal que entretanto também faz parte do círculo Petrônio não diz isto é assim mas deixa que um eu que nfio é idêntico a êle nem ao fingido narrador Encólpio lance o holofote de seu olhar sôbre os comensais um processo extremamente artístico perspectivo uma espécie de dupla re llcxão que naquilo que se conserva da literatura antiga não me atrevo a dizer que seja única mas é sem dúvida muito rara A forma exterior dêste cmprêgo da perspectiva não é de forma iilgumu nova pois é claro que em tôda a literatura antiga as prrxoiuiKcns falam das suas experiências e impressões Mas isto mu é senão unia forma de exposição tratada por demais objetivamente como no caso dos relatos de Ulisses ante os leftiios ou ile Fneas ante Dido ou se trata da tomada de poüiçAo dc tiljjuém perante honicns ou acontecimentos que o itmiiem dirrtutncntc nos limites de umu ação onde portanto 24 MIMESIS o subjetivo é inevitável e também naturalmente carente de artifício Aqui porém tratase do mais aguçado subjetivismo que é ainda salientado pela linguagem individual por um lado por outro tratase de uma intenção objetiva pois a intenção visa a descrição objetiva dos comensais inclusive de quem fala através de um processo subjetivo Êste processo leva a uma ilusão mais sensível e concreta da vida na medida em que um dos convidados descreve os comensais um grupo ao qual êle pertence interior e Ulteriormente o ponto de vista é introduzido no próprio quadro êste ganha em profundidade e a luz que o ilumina parece provir de algum dos seus cantos Não é de forma diferente que trabalham os escritores modernos como Proust só que mais conseqüentemente também dentro do trá gico e do problemático do que falaremos logo mais O pro cedimento de Petrônio é portanto superlativamente artístico e se êle não tiver tido precursores genial Os comensais são medidos com suas próprias escalas estas escalas regramse pela sua mera proferição além de que a vilania dêstes novosricos fica iluminada da forma mais crua já pelo fato de que à sua própria mesa se fala nêles dêsse jeito Na restante literatura satírica antiga certamente se encontram tentativas de uma técni ca semelhante não conheço porém um exemplo semelhante de consciente concepção e perfeito acabamento Outra diferença importante com o procedimento homérico consiste no seguinte É muito importante para o comensal sa lientar na sua descrição o que tôdas essas pessoas foram em contraste com o que hoje são Et modo modo quid fuit diz êle de Fortunata de nihilo crevit e quam bene se habuit dos dois comensais Também Homero gosta como observamos antes de intercalar a origem o nascimento e a história pregressa das suas personagens Mas os seus dados são de espécie totalmente diver sa Êles não nos levam ao evolutivo e mutante ao contrário conduzemnos a um ponto de apoio fixo O ouvinte grego educado na genealogia e na mitologia deve reconhecer a ascen dência e a família da pessoa em questão deve classificála desta maneira da mesma forma como nos tempos modernos num círculo fechado aristocrático ou da velhaburguesia o re cémchegado é definido mediante dados acêrca da sua família paterna e materna Com isto não se quer provocar tanto a impressão da mudança histórica quanto e muito mais a ilusão de uma fundamentação firme e imutável da constituição social ao lado da qual a mudança das personagens e do seu destino pessoal parece relativamente insignificante Mas o nosso comen sal tem em mente o que se modifica historicamente os reveses da fortuna e nisto como em tudo o que fala êle sente de forma idêntica à dos seus semelhantes Para êle o mundo está em constante movimento nada é seguro mas mais do que nada o bemestar e a posição social são extremamente instáveis O seu senso histórico é unilateral pois só gira em tôrno da posse de dinheiro mas é autêntico Também os outros comensais falam repetidamente da instabilidade dti vida O vnivéni da FORTUNATA 25 posse é aquilo que lhe interessa na vida e o que lhe ensinou a êle e aos seus semelhantes a desconfiar de tôda estabilidade Agora mesmo erase ainda escravo carregador prostituto podiase ser chicoteado vendido expulso e de repente encon trase no luxo mais desmedido como rico latifundiário e espe culador amanhã tudo isto poderia acabar de nôvo É claro que êle pergunta et modo modo quid juit Não é ou não é somente inveja e malquerença o que fala nêle no fundo êle até que é bastante bonachão mas é o seu mais verdadeiro e mais profundo interêsse Ora sabemos que as mudanças da fortuna têm um lugar muito importante na literatura antiga em geral e que também a ética filosófica se fundamentou freqüen temente nelas Mas por estranho que pareça estas mudanças só poucas vêzes transmitem em outros casos a impressão da vida histórica Aparecem ou bem na tragédia em forma de destino singular e prodigioso ou bem na comédia como resul tado de uma conjunção totalmente extraordinária de circunstân cias especiais quer se trate do rei Édipo alcançado pela maldição predita há tanto tempo e impelido para a mais espantosa das misérias quer da pobre rapariga ou do escravo que se revelam como os filhos de um rico homem outrora seqüestrados ou perdidos num naufrágio de modo que podem sem mais outra contrair as núpcias por êles desejadas em ambos os casos acontece algo extraordinário algo especialmente preparado que cai fora da marcha normal das coisas e que unicamente atinge a um só ou a uns poucos enquanto o resto do mundo parece persistir na imobilidade e na mera contemplação do ex traordinário acontecimento Na arte literàriamente imitativa da Antigüidade a mudança da sorte tem quase sempre a forma de um destino que irrompe de fora num âmbito determinado não resultante da movimentação interior do mundo histórico en quanto que é claro a literatura gnomológica popular visa as mudanças de fortuna de cada um em cada situação mas só as apresenta em forma teórica As observações sentenciosas acêrca das mudanças da sorte terrena são freqüentes também no banquete de Trimalcião e por outro lado na alusão do comensal ao incubo persiste ainda algo da tendência de atribuir as mu danças de fortuna a especiais intervenções externas Mas o que predomina na obra de Petrônio é a visão mais prática e terrena e portanto intrinsecamente histórica das mudanças do destino Ie forma extremamente prática e terrena Trimalcião informa acêrca da origem da sua fortuna e também em outros momentos encontramos coisas semelhantes o que transmite a sensação de história interior é contudo e antes de mais nada o caráter se riado Não só um ou só uns poucos são atingidos por um destino singular e extraordinário enquanto o resto do mundo persiste na imobilidade senão que só no discurso do vizinho de mesa já flfto quatro pessoas que nadam nas mesmas águas que se dedicam ik mesma espécie dc variável caça à sorte sendo que todos íêm um destino semelhante mas diferente para cada um dêles e com tôda h mi inovimentaçilo extremamente ordinário c comum E por tríí tliiH quatro pessoas descritas vêse a mesa tôda e dc cadi 26 MIMESIS um dos seus membros podese supor que leva uma vida seme lhante descritível de forma semelhante E por trás dêles nova mente a fantasia põe todo um mundo de existências semelhantes de tal forma que surge um quadro econômicohistórico extrema mente animado um sobeedesce constantemente impulsionado de dentro que eleva e rebaixa os caçadores da sorte que correm atrás da riqueza e do tolo gôzo da vida É fácil compreender que uma sociedade de comerciantes da mais baixa extração se presta muito especialmente para esta forma de representação para esta visão das coisas nela espelham do modo mais claro os altos e baixos dos acontecimentos sem que nada de sólido segure o fiel da balança pois êles não têm internamente tra dição alguma nem externamente qualquer apoio sem dinheiro nada são Neste sentido dificilmente há na literatura antiga outro trecho que mostre tão fortemente êste movimento histórico interno E assim chegamos a uma terceira e talvez à mais importan te diferença diante do estilo homérico e também à peculiari dade talvez mais significativa do banquete de Trimalcião apro ximase mais da moderna representação da realidade do que tudo o mais que ficou conservado da Antigüidade e não precisamente em primeira linha devido à ordinária baixeza do assunto mas sobretudo pela fixação exata nada esquemática do meio social As pessoas que se reúnem em casa de Trimalcião são parvenus libertos meridionais do século I Têm as suas idéias e falam quase sem estilização literária alguma a sua linguagem É difí cil encontrar isto em outro lugar A comédia reproduz o meio social de maneira muito mais esquemática e geral muito menos definida espacial e temporalmente Apenas proporciona indícios sôbre a fala individual das personagens Na sátira conservou se certamente bastante coisa que segue o mesmo sentido mas a representação não é tão amplamente disposta senão antes moralista tende mais à crítica de alguma característica vi ciosa ou ridícula O romance finalmente fabula milesiaca gênero ao qual pertence no fim das contas a obra de Petrônio está em outros fragmentos ou obras que conservamos tão for temente carregado de elementos mágicos aventurosos mitoló gicos e sobretudo eróticos que de maneira alguma pode ser considerado uma imitação da vida quotidiana de então sem falar da estilização irreal e retórica da linguagem O que mais se aproxima da representação ampla verdadeiramente quotidiana da existência é algo da literatura alexandrina talvez as duas mulheres do festim de Adónis em Teócrito ou o processo do alcoviteiro de Herodas Mas também êstes dois trechos com posições em verso são com respeito ao realismo à infra estrutura sociológica mais brincalhões e mais estilizados na linguagem do que Petrônio Êste fixa sua ambição artística como um realista moderno na imitação não estilizada de um meio quotidiano contemporâneo qualquer com sua infraestru tura social deixando que as pessoas falem seu próprio jargão yj Com isto êle atinge o limite extremo que o realismo antigo con FORTUNATA 27 quistou se êle foi o primeiro e o único a fazêlo até que ponto foi talvez precedido pelo mimo romano isto pode ficar de lado neste momento Se Petrônio mostra o limite extremo até o qual chegou o realismo antigo também pode ser visto na sua obra aquilo que êste realismo não podia ou não queria dar O banquete é uma obra de caráter puramente cômico As pessoas que nêle aparecem individualmente assim como as ligações do conjunto são mantidas conscientemente e de forma unitária no mais baixo dos estilos tanto na expressão lingüística quanto no tra tamento e com isto ligase necessàriamente o fato de que todo 0 problemático tudo o que seja psicológica seja sociològi camente possa lembrar complicações sérias ou até trágicas deva ser afastado destruiria o estilo pelo seu excessivo pêso Pensemos aqui um instante nos autores realistas do século XIX Balzac ou Flaubert Tolstoi ou Dostoievski O velho Grandet Eugénie Grandet ou Fedor Pavlovitch Kara masov não são meras caricaturas como Trimalcião mas for midáveis realidades que devem ser levadas muito a sério ema ranhados em trágicos conflitos trágicos até êles próprios ainda que sejam também grotescos Na literatura moderna qualquer personagem qualquer que seja o seu caráter ou a sua posição social qualquer acontecimento seja fabuloso político ou limita damente caseiro pode ser tratado pela arte imitativa de forma séria problemática e trágica e isto geralmente acontece Na Antigüidade isto é totalmente impossível Não obstante existam jia poesia pastoril ou amorosa algumas formas intermediárias no conjunto vigoram as regras da separação dos estilos que já tocamos no primeiro capítulo da nossa pesquisa tudo o que cor responde à realidade comum todo o quotidiano só pode ser apresentado de forma cômica sem aprofundamento problemá tico Isto porém fixa estreitos limites para o realismo e se considerarmos a palavra realismo mais rigorosamente devemos dizer não poderá ser literàriamente levado a sério qualquer ofí cio qualquer posição social quotidiana comerciantes artesãos camponeses escravos qualquer cenário quotidiano casa oficina loja campo qualquer costume quotidiano casa mento filhos trabalho alimentação numa palavra o povo e Mia vida Relacionase com isto também o fato de não serem mostradas nitidamente no realismo antigo as fôrças sociais que constituíam a base das circunstâncias apresentadas a cada caso isto só poderia acontecer nos limites do problemático levado a sério mas como as personagens nunca abandonam o terreno do cômico a sua relação com a coletividade não pode ser senão uma acomodação habilidosa ou uma singularização grotesca e reprovável o indivíduo representado de forma realista nunca tem no último dos casos razão perante a sociedade e esta aparece como instituição dada sem necessidade de explicação quanto à stiu origem e aos seus efeitos permanente e imutável pano de 1 lindo dc cndii acontecimento Isto também mudou muito nos tem po mmü remites Pura a literatura realista antiga a sociedade 28 MIMESIS não existe como problema histórico mas na melhor das hipó teses como problema moral e além do mais o moralismo se refere muito mais aos indivíduos do que à sociedade A crítica dos vícios e das excrescências por mais que sejam muitas as pessoas retratadas como viciosas ou ridículas coloca o problema de forma individual de modo que a crítica da sociedade nunca leva ao desvendamento das fôrças que a movem Portanto tam bém por trás de tôda a engrenagem que Petrônio nos apresenta nada se torna sensível que nos deixe compreender as coisas a par tir das suas ligações econômicopolíticas e o movimento histó rico do qual falamos acima não é senão um movimento de superfície Naturalmente não achamos que Petrônio devesse inserir no seu banquete um estudo de economia política Êle nem precisaria ter ido tão longe como Balzac que no seu ro mance recémmencionado Eugénie Grartdet descreve a origem da fortuna de Grandet de tal maneira que ela espelha tôda ã história francesa desde a Revolução até a Restauração Teria sido suficiente uma ligação totalmente assistemática mas cons tante e consciente com os acontecimentos e as circunstâncias do tempo Os modernos Petrônios ligam a descrição dos traficantes de mercadonegro por exemplo à inflação posterior à primeira guerra mundial ou a outros conhecidos tempos críticos Já Tha ckeray ainda que se desenvolva mais de forma moralista do que propriamente histórica liga o seu grande romance ao pano de fundo da época napoleônica e pósnapoleônica Nada disto pode ser encontrado em Petrônio Quando se fala por exemplo dos preços dos produtos alimentícios 44 de outras situações urba nas 44 45 e passim da história da vida ou da fortuna dos comensais além do trecho que mencionamos sobretudo 57 e 75 s falta tôda alusão a um lugar determinado a um tempo determinado a uma determinada situação políticoeconômica Certamente é claro que se trata de uma cidade do sul da Itália nos primeiros tempos do Império Podemos comproválo fàcil mente o moderno estudioso da história econômica pode apro veitar as indicações como material e os contemporâneos é claro que também o reconheciam possivelmente com maior facilidade do que nós Mas Petrônio não faz questão nenhuma do aspecto histórico da sua obra Se êle o tivesse feito se êle tivesse ligado as diferentes circunstâncias e os diferentes acontecimentos com situações políticoeconômicas determinadas dos primeiros tempos do Império teria surgido aos olhos do leitor um pano de fundo histórico que teria sido completado pela memória teria resultado uma profundidade histórica ao lado da qual o perspec tivismo de Petrônio do qual falamos acima parece mera super fície então poderseia falar realmente e não só relativamente de movimentação histórica Mas isto teria explodido o estilo dentro do qual Petrônio pretendia se manter e não teria sido possível sem uma idéia que lhe era inacessível a idéia das forças históricas Tal como é o movimento não obstante tôda a sua vivacidade permanece dentro dos limites do próprio qua dro atrás do qual nada se move o mundo fica quieto Ê sem dúvida nitidamente uma pintura da época mas o tempo sc aprc FORTUNATA 29 senta como se tivesse existido sempre imutadamente assim como êle aparece aqui e agora com senhores que deixam aos escravos que satisfazem seus gostos sexuais grande parte das suas fortu nas com imensos lucros que podem ser obtidos no comércio e assim por diante O condicionamento temporal ou a historicidade de tôdas estas circunstâncias não interessam como tais nem a Petrônio nem aos seus leitores antigos só nós os constatamos e os modernos estudiosos da história econômica tiram dali as suas conclusões Aqui porém topamos com uma questão fundamental e mui to difícil Se a literatura antiga não pôde representar a vida quotidiana de maneira séria problemática e inserida num pano de fundo histórico mas somente foi capaz de fazêlo em estilo baixo cômico ou na melhor das hipóteses idílico estàticamente e sem história isto implica não somente um limite do seu rea lismo mas também e sobretudo uma limitação da sua consciên cia histórica Pois precisamente nas circunstâncias espirituais e econômicas da vida quotidiana manifestamse as fôrças qua se encontram na base dos movimentos históricos êstes últimos se jam guerreiros ou diplomáticos ou referentes à constituição inter na do estado são sòmente o resultado último de modificações da profundidade quotidiana Observemos neste contexto um trecho da historiografia an tiga escolho um texto temporalmente não muito longínquo do banquete e que representa êle próprio um movimento revolucioná rio em profundidade o comêço da rebelião das legiões germâni cas após a morte de Augusto nos Anais de Tácito capítulo XVI e seguintes do livro primeiro Diz assim Hic rerum urbanarum status erat cum Pannonicas legiones seditio incessit nullis novis causis nisi quod mutatus princeps licentiam turbarum et ex civili bello spem praemiorum ostendebat Castris aestivis tres simul legiones habebantur praesidente Iunio Blaeso qui fine Augusti et initiis Tiberii auditis ob iustitium aut gaudium intermiserat solita munia Eo principio lascivire miles discordare pessimi cuisque sermonibus praebere aures denique luxum et otium cupere disciplinam et laborem aspernari Erat in castris Percennius quidam dux olim theatralium operarum dein gregarius miles procax lingua et miscere coetus histrionali studio doctus Is imperitos animos et quaenam post Augustum militiae condicio ambigentes impellere paulatim noctumis con loquiis aut flexo in vesperam die et dilapsis melioribus deterrimum quemque congregare Postremo promptis iam et aliis seditionis ministris velut contionabundus interrogabat cur paucis centurio nibus paucioribus tribunis in modum servorum oboedirent Quan do ausuros cxposcerc remedia nisi novum et adhuc nutantem principcm prccibus vcl armis adirent Satis per tot annos ignavia pcccatum quod triccna aut quadragena stipendia senes et ple riquc truncato cx vulneribus corpore tolerent Ne dimissis qui ilcm finem eme militiuc sed aput vexillum tendentes alio vocábulo coxdcm labores perferre Ac si quis tot casus vita superaverit 30 MIMESIS trahi adhuc diversas in terras ubi per nomen agrorum uligines paludum vel inculta montium acipiant Enimvero militiam ipsam gravem infructuosam denis in diem assibus animam et corpus aestimari hinc vestem arma tentoria hinc saevitiam cen turionum et vacationes munerum redimi At Hercule verbera et vulnera duram hiemem exercitas aestates bellum atrox aut ste rilem pacem sempiterna Nec aliud levamentum quam si certis sub legibus militia iniretur ut singulos denarios mererent sextus decumus stipendii annus finem adferret ne ultra sub vexillis tenerentur set isdem in castris praemium pecunia solveretur An praetorias cohortes quae binos denarios acceperint quae post sedecim annos penatibus suis reddantur plus periculorum susci pere Non obtrectari a se urbanas excubias sibi tamen apud hórridas gentes e contuberniis hostem aspici Adstrepebat vulgus diversis incitamentis hi verberum notas illi canitiem plurimi detrita tegmina et nudum corpus exprobrantes Assim estavam as coisas em Roma quando eclodiu nas legiões panônicas uma rebelião não por qualquer causa nova mas porque a mudança do trono parecia prometer oportunidade para um levantamento e uma possível guerra civil esperanças de ganhos Lá estavam no mesmo quartel de verão três legiões cujo coman dante Júnio Blaeso ao saber a notícia da morte de Augusto e da entronização de Tibério ordenou a interrupção dos costumeiros trabalhos devido aos dias de luto e de festa Com isto a tropa saiu da ordem e da obediência começou a dar ouvido a discursos subversivos a desejar uma vida confortável e ociosa a se opor à disciplina e ao trabalho Estava no acampamento um certo Per cênio que antes tinha sido chefe de uma claque teatral agora soldado raso possuía uma língua procaz e graças ao seu antigo ofício uma certa habilidade em dirigir multidões Êste começou a incitar os homens inexperientes que se preocupavam acêrca da situação do ofício de soldados após a morte de Augusto em reu niões noturnas ou também ao entardecer quando os mais inteli gentes já se tinham dispersado e os piores se reuniam ao seu redor Finalmente quando já se tinha achado uma certa quantidade de outros agentes da sedição êle ordenou uma reunião geral como se fôsse comandante em chefe e dirigiu aos soldados as seguintes perguntas por que obedeciam como escravos a um pequeno número de centuriões e um número ainda menor de tribunos Quando se atreveriam a impor uma melhora da sua situação se não agora quando podiam exercer sôbre o nôvo príncipe ainda inseguro na sua posição uma pressão mediante exigências e ameaças armadas Tinhase suportado por covardia durante demasiado tempo que se estivesse obrigado a servir durante trinta ou quarenta anos até a velhice e amiúde com o corpo mutilado por feridas Mesmo após a baixa o serviço não teria acabado pois iriam para a reserva e teriam de servir do mesmo jeito sob outro nome E mesmo quando algum suportasse tantas fadigas êle seria enviado a países longínquos onde receberia pântanos ou terrenos montanhosos in cultos para lavrar O próprio serviço militar seria esgotador e mal pago corpo e alma valiam dez asses ao dia e disto seria ainda necessário pagar as vestimentas as armas e as cabanas e ainda pagar subornos para se livrar das perseguições dos centuriõen e FORTUNATA 31 ganhar alguns dias de licença E para cúmulo alternavamse quo tidianamente golpes e feridas duros invernos e pesados verões a cruel guerra e a estéril e sempiterna paz E para tudo isto não haveria outra solução senão a fixação de condições para a pres tação do serviço militar o jornal deveria ser de um denário o tempo de serviço deveria ser limitado a dezesseis anos além disto não deveriam ser colocados na reserva mas a sua provisão deveria serlhes paga no próprio acampamento em dinheiro Ou seria que as coortes pretorianas às quais tinha sido então concedida uma paga de dois denários e que ficavam livres após dezesseis anos de serviço estavam expostas a maiores perigos Longe dêle a idéia de pretender apoquentar a notória importância da guarnição de Roma contudo viviam entre selvagens e podiam ver o inimigo do próprio acampamento A multidão tributou ruidoso aplauso cada um lembrou das suas queixas êste mostrava as marcas dos açoites aquêle seu ca belo acinzentado os mais as roupas rasgadas e os corpos nus à primeira vista perece que êste texto daria expressão de maneira extremamente severa a um movimento das camadas mais baixas com exata representação dos motivos práticoquotidianos do panodefundo econômico e dos verdadeiros acontecimentos na sua eclosão As queixas dos soldados da maneira como são expostas no discurso de Percênio serviço demasiado longo e pesado paga insuficiente deficiente previsão para a velhice cor rupção inveja da melhor posição das tropas metropolitanas são apresentadas com uma vivacidade e plasticidade T a ra s até em historiadores modernos Tácito é um grande artista em cujas mãos as coisas se tornam penetrantes e vivas O suposto historiador moderno teria procedido de modo muito mais teóri co e possivelmente mais papelório nesta ocasião não teria feito Percênio falar mas teria feito uma investigação objetiva e documentada das condições salariais e previdenciais ou teria remetido o leitor a uma investigação semelhante que se encon traria em outro lugar da sua obra ou da obra de um colega a se guir teria discutido a legitimidade das exigências teria feito uma rctrospecção acêrca da política governamental posterior nesse se tor e assim por diante Tudo isto Tácito não faz e o hodierno historiador da Antigüidade vêse na necessidade de reorganizar totalmente o material que os historiadores antigos lhe oferecem complementandoo por meio de inscrições descobertas arqueo lógicas e tôda espécie de testemunhos mediatos para poder uti lizar a sua maneira de ver as coisas Tácito só traz as queixas c as exigências dos soldados que lançam uma luz sôbre a sua situação quotidiana e objetiva sòmente cómo uma declaração do cabecilha Percênio Êle não acha necessário discutilas pergun tar sc e cm que medida eram justificadas explicar como a situa ção dos soldados romanos se tinha transformado por exemplo desde a República ou coisas semelhantes Tudo isto não lhe parccc digno dc scr tratado e evidentemente êle podia contar com que tiimbém os seus leitores não sentiriam falta de nada disto Aindit tnuis Êle desvaloriza dc antemão as informações 32 MIMESIS objetivas acêrca das causas do levantamento que apresenta como discurso de um cabecilha na medida em que não os discute mais adiante pois já no princípio expõe a verdadeira causa do motim de maneira puramente moralista nullis novis causis nisi quod mutatus princeps licentiam turbarum et ex civili bello spem prae miorum ostendebat Não é possível dizêlo de maneira mais pe jorativa Na sua opinião tudo não passa de insolência plebéia e de falta de disciplina a culpa é da interrupção do serviço cos tumeiro estão ociosos por isto gritam diz Faraó dos judeus devese ter cautela para não atribuir à palavra novis porventura o reconhecimento da justificação de velhas queixas nada está mais longe das intenções de Tácito Êle salienta uma e outra vez que são só os piores indivíduos os que se prestam de início ao movimento sedicioso pelo líder Percênio exchefe da claque teatral com o seu histrionale studium que faz como se fôsse general velut contionabundus êle nutre o mais profundo des prezo Evidenciase portanto que a grande vivacidade de Tácito na apresentação das queixas e exigências dos soldados não se baseia de maneira alguma na compreensão destas exigências Isto poderia ser explicado naturalmente a partir da sua peculiar posição conservadora e aristocrática uma legião em revolta não é para êle mais do que uma massa sem lei um soldado raso no papel de chefe rebelde escapa a tôda classificação de direito pú blico pôsto que mesmo nos tempos revolucionários da história romana os mais radicais revolucionários podiam perseguir os seus fins somente incluindose na carreira burocrática Outrossim a crescente fôrça das tropas que já fôra ameaçadora durante as guerras civis e que mais tarde destruiria tôda a estrutura do estado deve têlo deixado muito apreensivo Mas esta explicação não é suficiente Pois êle não só não tem compreensão mas tam bém não tem o mínimo interesse objetivo pelas exigências êle não polemiza objetivamente contra elas nem se dá ao trabalho de demonstrar que sejam injustificadas Ao contrário algumas con siderações puramente morais licentia spes praemiorum pessi mus quisque inexperti animi bastamlhe para tirarlhes tôda fôr ça desde o princípio Ora se no seu tempo tivessem existido men talidades opostas que tivessem observado as ações dos homens de um ponto de vista mais social mais baseado na história do desen volvimento Tácito terseia visto obrigado a considerar a sua colo cação de problemas do mesmo modo que no nosso passado imediato o político conservador também se viu obrigado a tomar em consideração ou pelo menos a tratar polêmicamente a co locação dos problemas políticos dos seus opositores socialistas o que freqüentemente exigia uma exata penetração nos mesmos Tácito não tinha necessidade disto pois não podia haver tais adversários Na Antigüidade não existiu uma pesquisa histórica profunda que tratasse metòdicamente do desenvolvimento dos movimentos sociais e espirituais Isto já foi notado de passagem por pesquisadores modernos tais como Norden na sua Antike Kunstprosa II 647 que escreve devemos considerar que FORTUNATA 33 a historiografia antiga não atingiu nunca nem nunca se propôs uma representação das idéias gerais das idéias que impulsionam o mundo E Rostovtezeff no seu livro sôbre sociedade e eco nomia no Império Romano edição alemã I 78 escreve Os historiadores não se interessam pela vida econômica do Império Estas duas manifestações escolhidas ao acaso não parecem ter muito em comum à primeira vista mas o que elas exprimem remete à mesma peculiaridade da maneira antiga de ver os acon tecimentos ela não vê as fôrças mas sòmente vícios e virtudes êxitos e erros a sua maneira de colocar os problemas não é espiritual nem materialmente históricoevolutiva mas moralista Isto está porém na mais exata das relações com a concepção geral que se manifesta na separação dos estilos entre o trágico problemático e o realista ambas baseiamse num mêdo aristocrá tico diante do devir que se realiza na profundidade e que é sentido como sendo vil orgiástico e carente de lei Todavia limitados pelas fronteiras dos nossos temas e do nosso conheci mento devemos contentarnos com algumas observações da ordem das ciências humanas que importam aqui para a nossa intenção A espécie moralista e amiúde ainda estritamente cronológica da historiografia que trabalha com categorias de ordem imutáveis tião pode produzir formações conceituais sintéticodinâmicas co mo as que empregamos hoje Conceitos como capitalismo in dustrial ou economia de plantações que são sínteses de carac terísticas objetivas mas que também são aplicáveis especialmente a determinadas épocas e por outro lado conceitos como Renas cimento Iluminismo Romantismo que antes de mais nada significam épocas mas que são também sínteses objetivas e que às vêzes são também aplicáveis a épocas diferentes daquelas que originalmente distinguiam modelam as manifestações no seu mo vimento perseguemse as suas características na sua aparição ini cialmente isolada e logo aglomerada numa difusão cada vez mais densa e finalmente no seu refluxo na sua transformação e no seu desaparecimento e é essencial em tôdas estas formações con ceituais que o seu devir e transformarse ou seja a noção evo lutiva já seja pensada conjuntamente com elas Em oposição as formações conceituais moralistas ou até políticas da Antigüidade aristocracia democracia etc são imagens modelares fixadas o priori e de Vico a Rostovtzeff todos os modernos pesquisado res estão empenhados em dissolvêlas em chegar à forma prá tica compreensível pelo nosso pensamento forma que se oculta sempre atrás delas e que só podemos alcançar mediante a pes quisa c a reordenação das características Na página da obra de Rostovtzeff que abri para controlar a citação acima a primeira fruse diz assim Todavia colocase o problema de como expli car u presença de uma quantidade relativamente grande de proler lários nu Itália Uma frase como esta a colocação de semelhante pergunta seria inimaginável num autor antigo Ela vai além dos movimentos do primeiro plano e procura as modificações dos iiconlccimcutos Imtóricocvolutivos que lhe interessam as quais itcnhum ntiior iintiKo percebeu ou chegou n colocar cm contexto 34 MIMESIS sistemático algum Se abrirmos por exemplo a obra de Tucí dides encontramos ao lado do relato contínuo dos acontecimen tos do primeiro piano nada além de considerações de conteúdo estáticoapriorísticomoral acêrca talvez do caráter humano ou do destino as quais ainda que sejam aplicadas em cada caso a uma situação determinada não deixam de ter em si valor absoluto Voltemos a nosso texto de Tácito Se êle não se interessava de maneira alguma pelas reivindicações dos soldados e não tinha a menor intenção de enfrentálas objetivamente por que as exprime com tanta vivacidade no discurso de Percênio Isto tem motivos puramente estéticos Fazem parte do estilo da grande historiografia os grandes discursos que na maior parte dos casos são fictícios servem para a evidenciação dramática illustratio do acontecimento às vêzes também para a explicação de grandes pensamentos políticos ou morais em qualquer caso devem ser os ápices retóricos da exposição Permiteselhes uma compene tração nos pensamentos daquele que é representado discursando também um certo realismo mas em essência são produtos de uma determinada tradição estilística que era cultivada nas escolas dos retóricos redigir discursos que êste ou aquêle teria dito nesta ou naquela grande ocasião histórica era um exercício que estava na moda Tácito é um mestre e os seus discursos não são mera ostentação mas estão realmente carregados do caráter e da si tuação do homem que é representado discursando mas também êles são antes de tudo retórica Percênio não fala a sua pró pria língua mas o tacitéico extremamente comprimido magnifi camente disposto e altamente patético Sem dúvida nas suas palavras que aliás estão em linguagem indireta vibra a ver dadeira agitação dos soldados rebeldes e do seu líder só que ainda que admitamos que Percênio fôsse um talentoso orador popular nenhum discurso de propaganda revolucionária se com porta de maneira tão sucinta aguda e ordenada e não há o menor traço de gíria soldadesca Tácito menciona um apelido popular Cedo alteram no capítulo 23 O mesmo vale para as palavras do soldado Vibuleno no capítulo 22 as quais são des valorizadas como mentira já no capítulo seguinte são por de mais emocionantes mas também retòricamente estilizadas no mais alto grau Ainda que como observa J B Hofmann no seu livro sôbre a linguagem latina coloquial Heidelberg 1926 63 a anáfora muito empregada aqui quis fratri meo vitam quis fratrem mihi reddit tivesse sido muito usada popularmente não deixa aqui de ser o caso de um movimento retórico de estilo elevado e não da linguagem dos soldados E esta é a segunda característica diferenciadora da historiografia antiga ela é retórica Moralismo e retórica conferemlhe um alto grau de ordem clareza e eficiência dramática no caso dos romanos jun tase a isto o seu amplo e unitário olhar sôbre um vasto cenário no qual se desenrolam os acontecimentos políticos e militares a estas qualidades irmanase ainda nos grandes autores um conhe cimento realista do coração humano baseado na experiência FORTUNATA 35 sensato mas não mesquinho às vêzes encontramse até começos de explicação dos caracteres através da sua história pessoal como na caracterização de Catilina por Salústio e sobretudo na de Tibério por Tácito Mas aqui está o limite Moralismo e retó rica são inconciliáveis com a compreensão da realidade como evolução de fôrças a historiografia antiga não nos dá nem a his tória de um povo nem a história da economia nem a história do espírito só de forma mediata podemos obtêlas dos fatos trans mitidos E por mais enormemente diferentes que sejam os dois textos que consideramos o discurso do vizinho de mesa em Petrônio e o levante dos soldados panônicos em Tácito ambos evidenciam os limites do realismo antigo e com isto também os da antiga consciência histórica Presumirseá que para encontrar um exemplo antitético onde êstes limites estejam ampliados deverei considerar um texto moderno Mas mesmo neste caso estão à minha disposição os textos da literatura judeocrista aproximadamente contemporâ neos de Petrônio e de Tácito Escolho a história da negação de Pedro e sigo a redação de Marcos as diferenças que apresentam os Sinópticos são insignificantes Após a prisão de Jesus só êle foi deritío c dcixouse que fugissem os que o rodeavam Pedro seguiu de longe os homens armados que levavam Jesus e atreveuse a chegar até o pátio do palácio do sumo sacerdote onde como se fôsse um curioso alheio aos fatos ficou perto do fogo com os criados Com isto êle mostrou mais valentia que os outros visto que pertencia ao séquito mais chegado ao detido o perigo de ser reconhecido era muito grande e de fato enquanto está junto ao fogo uma criada diz na sua cara que êle pertencia ao grupo de Jesus Êle nega e tenta desaparecer despercebido de perto do fogo possi velmente porém a criada observou isto segueo até o antepá lio e repete a sua acusação de modo que os circunstantes a ouçam êle torna a negar mas agorS já chamou a atenção o seu dialeto galileu e a situação começa a se tornar extremamente perigosa para êle Como escapou dela não é contado não é verossímil que se tivesse dado mais crédito à sua terceira pro testação do que às duas primeiras talvez a atenção dos circuns tantes fôsse desviada por algum outro acontecimento talvez existisse também a ordem de deixar em paz os acólitos do detido enquanto não oferecessem resistência de modo que bastou expul sar o suspeito À primeira vista já se percebe que aqui não se pode falar em divisão de estilos A cena que pela sua localização e per sonagens considerese especialmente o seu baixo nível social é essencialmente realista apresenta a mais profunda proble miiticidade e tragicidade Pedro não é uma figura de cena que serve üòmentc para a illustratio como os soldados Vibuleno e 1crcfinio que são apresentados como meros patifes e tratantes mus é 110 mui elevado c no mais profundo no mais trágico dos sentidos uma imagem do homem Evidentemente esta mis luni dos oimpoi estilísticos não implica intenção artística alguma 36 MIMESIS mas está baseada primordialmente no caráter dos escritos judeo cristãos manifestandose com maior deslumbramento e evidência na encarnação de Deus num homem do mais baixo nível social na sua peregrinação sôbre a terra entre homens comuns e cir cunstâncias ordinárias e na sua paixão ignominiosa segundo os conceitos terrenos influonciando evidentemente da maneira mais decisiva os próprios conceitos do trágico e do sublime graças à grande difusão e repercussão que êstes escritos encontraram em tempos posteriores Pedro a cujo próprio relato remontaria a narração era um pescador de Galiléia da mais simples origem e educação as outras pessoas que intervêm na cena noturna no pátio da casa do grãosacerdote são criadas e soldados Pedro é convocado da vulgar quotidianidade da sua vida para desem penhar o mais portentoso dos papéis aqui a sua aparição assim como tudo aliás o que tem a ver com a prisão de Jesus não passa no contexto históricouniversal do Império Romano de um incidente provinciano um acontecimento local sem qualquer significado do qual ninguém a não ser as pessoas imediatamente envolvidas toma nota contudo como é considerável o mero fato em relação à vida normalmente levada por um pescador do lago de Genesaret e que imensa oscilação pendular Harnack empregou esta mesma expressão quando falava certa vez da cena da negação realizase nêle Abandonou pátria e profissão seguiu o seu Mestre a Jerusalém foi o primeiro a reconhecêlo como Messias quando a catástrofe irrompeu foi mais valente que os outros não só foi daqueles que tentaram oferecer resis tência mas também quando o milagre que certamente esperava não se deu teve o impulso de seguir Jesus ainda uma vez Só que se trata somente de um impulso um seguir pela metade e temeroso talvez motivado pela confusa esperança de ver reali zarse ainda o milagre pelo qual o Messias aniquilaria os seus inimigos E visto que o seu seguir só é uma emprêsa levada até a metade titubeante temerosa e oculta Pedro cai mais baixo do que os outros que pelo menos não tiveram ocasião de negar Jesus a êle acontece como acreditava mais profundamente do que os outros mas não com profundidade suficiente o pior que pode acontecer a um crente recentemente fervoroso teme pela sua pobre vida E é de todo crível que precisamente desta tremenda experiência resultasse uma nova oscilação do pêndulo desta vez em sentido contrário e ainda mais forte do deses pêro e do remorso pela sua extrema arrenegação surgiu a pron tidão para as visões que contribuíram decisivamente para a cons tituição do cristianismo só após esta experiência abrese ante Pedro o sentido do advento e da paixão de Cristo Uma figura trágica de tal procedência um herói de tal de bilidade mas que ganha de sua própria fraqueza a maior das fôrças um tal vaivém do pêndulo tudo isto é incompatível com o estilo elevado da literatura clássica antiga Mas também a espé cie e o cenário do conflito ficam totalmente fora dos limites da Antigüidade clássica Olhandose de fora tratase de uma ação policial e das suas conseqüências desenvolvese totalmente FORTUNATA 37 entre pessoas do diaadia do povo Coisa semelhante só é con cebível na Antigüidade como farsa ou comédia Por que não é assim por que desperta a participação mais séria e significa tiva Porque apresenta algo que nem a poesia antiga nem a historiografia antiga jamais apresentaram o surgimento de um movimento espiritual nas profundezas do povo comum em meio aos acontecimentos ordinários e contemporâneos que ganham assim uma significação que nunca lhes coube na literatura anti ga Acorda perante os nossos olhos um nôvo coração e um nôvo espírito O que aqui é dito não se refere somente à ne gação de Pedro mas a todos os acontecimentos que são narrados nos escritos do Nôvo Testamento Nêles tratase sempre da mesma questão sempre do mesmo conflito que se apresenta fundamentalmente a todo homem e que é assim aberto e infi nito o mundo todo entra em movimento por sua causa enquanto que os enredos pelo destino e pela paixão que a Anti güidade grecoromana conhece interessam imediatamente só o indivíduo atingido Só na relação mais geral isto é só porque somos sêres humanos ou seja submissos ao destino e à paixão sentimos temor e compaixão Mas Pedro e as outras persona gens dos escritos do Nôvo Testamento estão em meio a um mo vimento geral em profundidade movimento que se limita pro visòriamente quase que só a êles e que só muito paulatinamente na história dos Apóstolos já aparecem os inícios avança para o primeiro plano histórico Todavia êste movimento pretende já desde o princípio ser aberto concernente por igual e imediata mente a todos os homens e absorver em si todos os conflitos meramente pessoais Aqui aparece um mundo que por um lado 6 reconhecível de maneira totalmente real e quotidiana espaciai c temporalmente por outro lado êste mundo é mexido em seus alicerces modificase e renovase perante os nossos olhos Êste acontecer temporal que se desenvolve em meio à vida quotidiana é um acontecer revolucionário universal para o redator das escri turas do Nôvo Testamento assim como o será mais tarde para Iodos os homens Elucidase como movimento como fôrça de eficiência histórica pelo fato de que repetidamente é descrito o resultado dos ensinamentos da pessoa e do destino de Jesus vMire pessoas quaisquer Quando ainda não é totalmente com preensível e exprimível qual a meta real do movimento êle não c fAcilmente Iimitável e explicável na sua essência já se des creve com abundância de exemplos o seu efeito impulsionador o Ncu fluir c refluir entre o povo A um escritor grego ou romano nunca teria ocorrido descrever tão pormenorizadamente um tal imNunlo Estes descrevem uni movimento popular só como ati tude dumte de algum conjunto prático de acontecimentos como pir exemplo Tucídidcs faz com a atitude dos atenienses perante o pliiiio de uma expedição à Sicília Tal atitude é caracterizada xlobnlmcntc como iiprovatória rejeitante titubeante ou até tu mulliioMi d a mnnciru como seria vista por assim dizer por um eipectiuloi que a olhasse de cima nunca porém poderia ui nnleivi qur ms iraçftcs de iSo diferente natureza em tantas 38 MIMESIS personagens de extração popular se convertessem em tema central da representação Aquilo que os Evangelhos e a história dos Apóstolos descrevem em longos trechos dos seus conteúdos o que se reflete também muito amiúde nas epístolas de Paulo é muito evidentemente o surgimento de um movimento em pro fundidade o desfraldarse de fôrças históricas É essencial que com isto apareçam grandes quantidades de pessoas quaisquer pois só em muitas pessoas de tôda classe é possível dar vida a tais fôrças históricas nos seus efeitos de fluxo e refluxo Como quaisquer entendemos pessoas das mais diversas origens sociais profissionais e econômicas que devem o seu lugar na apresenta ção sòmente ao fato de serem atingidas por assim dizer casual mente pelo movimento histórico e veremse obrigadas assim a assumii uma determinada atitude diante dêle Desta maneira a antiga convenção estilística cai por si só pois a atitude da pessoa atingida não pode ser representada em cada caso senão com a mais profunda seriedade Um pescador um publicano um jovem rico qualquer uma samaritana qualquer uma adúltera qualquer são arrancados das circunstâncias vulgares e quotidianas de suas vidas e imediatamente colocados diante da aparição de Jesus e seja qual fôr a sua atitude neste instante necessàriamente haverá profunda seriedade e amiúde tragicidade A antiga regra esti lística segundo a qual a imitação realista a descrição de qualquer quotidianidade não poderia ser senão cômica ou quando muito idílica é portanto inconciliável com a representação de fôrças históricas enquanto esta última formular as coisas concretamente pois então tal representação vêse obrigada a descer nas profun dezas quotidianas e vulgares da vida do povo e deve levar a sério o que ali encontrar Viceversa a regra estilística só pode persistir quando se renuncia à concretização de fôrças históricas ou quan do nem se sente a sua necessidade É claro que a evidenciação das fôrças históricas nas escrituras evangélicas é como delas próprias se depreende profundamente acientífica permanece no concreto e não passa a ordenar sistemàticamente as experiên cias em imagens conceituais Mas de maneira totalmente espon tânea formamse conceitos de ordem tanto para épocas como para estados interiores que são muito mais móveis em si mais dinâmicos do que as categorias da historiografia grecoromana Assim por exemplo a divisão dos tempos em tempos da lei e tempos do pecado tempos da graça da fé e da justiça os con ceitos amor fôrça espírito e semelhantes E até nos con ceitos abstratos e estáticos como por exemplo no conceito da verdade ou da justiça penetrou um movimento dialético João 14 6 Romanos 3 21 ss que os renovou inteiramente A isto está ligado tudo aquilo que trata da transformação e renovação internas pelo que as palavras pecado morte justiça e outras não mais exprimem sòmente ação acontecimento qualidade mas es tágios de uma transformação interna e histórica Naturalmente não se deve esquecer com isto que o caminho desta transfor mação leva para fora da história para os tempos finais ou para a sempiternidade ou seja para cima e não permanece como os FORTUNATA 39 conceitos históricoevolutivos da ciência no horizonte histórico isto é uma diferença decisiva e não obstante seja qual fôr a espécie do movimento que as escrituras evangélicas introduziram na observação do acontecer o essencial é ainda o seguinte que as camadas profundas que nos observadores antigos eram imó veis entram em movihiento Nesta forma de observação não cabem nem o moralismo nem a retórica no sentido clássico Um caso como o da nega ção de Pedro escapa já pela violenta oscilação do pêndulo no coração do mesmo homem a todo julgamento baseado em cate gorias imóveis e para uma concepção que não procura a justi ficação nas obras mas na fé o moralismo perdeu sua posição condutora E o mesmo vale para a retórica É claro que as escrituras do Nôvo Testamento estão redigidas de forma alta mente efetiva A tradição dos profetas e dos salmos age nêles e nalguns originários de redatores de formação mais ou menos helenística é comprovável também o emprêgo de figuras de dicção helénicas Mas o espírito da retórica que classificava os objetos em gcneros genera e vestia cada objeto com um determinado estilo como se se tratasse da roupagem que lhe correspondia pela sua essência não podia predominar já pelo fato do seu objeto não poder ser classificado em nenhum dos gêneros conhecidos Uma cena como a da negação de Pedro não cabe em nenhum Itenus antigo demasiado séria para a comédia demasiado quoti dianocontemporânea para a tragédia demasiado insignificante po liticamente para a historiografia e ainda adquiriu uma forma de imediação que não existe na literatura antiga Isto pode ser medido num sintoma que pode parecer insignificante à pri meira vista na utilização do discurso direto A criada diz Também tu estavas com Jesus de Nazaré Êle responde Não sei nem compreendo o que dizes Depois a criada diz aos circunstantes Êste faz parte do grupo dêle E diante da miu renovada negação os circunstantes intervêm Certamente tu és daqueles pois falas como galileu Não creio que haja num historiador antigo uma passagem onde o discurso direto soja usado desta forma num diálogo curto e direto Em tais obrus são raras em geral as conversações entre poucas pessoas quando muito aparecem na historiografia biográficoanedótica c ali tratase quase sempre de respostas famosas cujo valor não icsidc no realistaconcreto mas no retóricomoral aquilo que iniiis tarde na novelística italiana do século XIII chamouse um brl parlare é o caso das famosas anedotas de Creso e Sólon I in jjcral porém o discurso direto limitase nos historiadores niitixos às grandes alocuções concatenadas dirigidas por alguém iin Senado ao povo aos soldados lembrese o que foi dito iidmii iicêrca do discurso de Percênio Nos Evangelhos porém o dramático do instante em que as personagens estão frente a fren tr Ntiic com uniu imcdiuticidade comparada com a qual mesmo o diálogos iln trugédia antiga slichomythia têm um efeito muito cHtilimlo comédia sátira c outras coisas semelhantes min podem hw iitiliiidiis para comparação e mesmo nelas deve 40 MIMESIS rá procurarse bastante para encontrar algo semelhantemente ime diato Nos Evangelhos entretanto encontramse numerosos diálogos frente a frente Espero que êste sintoma o emprêgo do discurso direto para a conversação viva caracterize suficien temente para os nossos fins a relação entre os Evangelhos e a antiga retórica de modo que não precise entrar em mais detalhes acerca do problema todo que já foi tratado muitas vêzes reme to ao livro já mencionado de Norden acêrca da prosa artística antiga Em última análise as diferenças de estilo entre os textos antigos e os primeiros textos cristãos residem em que foram es critos a partir de diferentes pontos de vista e destinados a homens diferentes Por mais diferentes que sejam em outros sentidos Petrônio e Tácito têm o mesmo ponto de vista quer dizer olham de cima Tácito escreve a partir de uma visão panorâ mica da pletora de acontecimentos e afazeres ordenaos e jul gaos como um homem da mais alta posição social e educação Se com isto nada cai no árido ou ininteligível devese não so mente ao seu gênio mas também à incomparável cultura do sensívelinteligível da Antigüidade em geral Mas o mundo dos seus semelhantes para o qual escreveu pedia o sensivelmente intuível nos limites do gôsto fixado por uma longa tradição sendo que já nêle aparecem sinais de uma transformação dêsse gôsto no sentido de um maior relevamento do sombriamente horrendo sôbre o que voltaremos mais adiante Também Petrô nio vê de cima o mundo que pinta o seu livro é um produto da mais elevada cultura e espera leitores que estejam a uma tal altura de formação social e literária que compreendam ime diata e naturalmente tôdas as nuanças das infrações sociais da baixeza da língua e do gôsto Por mais vulgar e grotesco que seja o assunto a representação nada tem da grosseira comicidade das farsas populares Cenas como por exemplo o discurso do vizinho de mesa ou a disputa entre Trimalcião e Fortunata mostram certamente um pensamento dos mais baixos e vulgares mas o fazem com um tal refinamento de motivos que se entre cruzam com tantos pressupostos sociológicos e psicológicos que nenhum público popular suportáloia E o baixo estilo da lin guagem não está destinado certamente ao riso de uma grande multidão mas é o elegante condimento para o gôsto de uma elite sócioliterária que observa as coisas de cima impassível e desfrutadora comparável talvez com a tagarelice do gerente de hotel Aimé e de outras personagens semelhantes no romance de Proust acêrca do tempo perdido embora tais comparações com obras realistas modernas nunca sejam totalmente corretas pois nela há muito maia problemática séria Também Petrônio pois escreve de cima e para a camada dos muito cultos uma ca mada que evidentemente nos primeiros tempos do Império deve ter sido bastante ampla mas que diminuiu mais tarde Ao con trário a narração da negação de Pedro e em geral quase tôda a obra do Nôvo Testamento foi escrita em meio ao próprio devir das coisas e de maneira imediata paru todos os homens Não hô FORTUNATA 41 nela nem o panorama racionalmente ordenador nem a intenção artística O sensívelintuível que aqui aparece não é imitação consciente e por isto mesmo é raramente executado até o fim Aparece porque está aderido aos acontecimentos que devem ser relatados porque se manifesta nos gestos e palavras dos homens interiormente comovidos sem que se fizesse o menor esfôrço na tarefa de modelálo Mesmo Tácito tão propositadamente conciso descreve homens exterior e interiormente pinta situa ções Ao redator do Evangelho de Marcos falta todo ponto de vista para uma representação objetiva do caráter digamos de Pedro Êle está enfiado no meio dos acontecimentos significa tivos êle só considera e comunica o que é significativo em relação ao advento e à ação de Cristo de modo que no caso em questão êle nem pensa em nos comunicar como a coisa aca bou isto é como Pedro conseguiu escapar Tácito e Petrônio querem tomar sensivelmente compreensíveis acontecimentos his tóricos o primeiro uma determinada camada social o segunde e o fazem dentro dos limites de determinada tradição estética o redator do Evangelho de Marcos não tem esta intenção nem conhece uma tal tradição e por assim dizer sem a sua colabora ção meramente pela comoção interna daquilo que êle relata a narração convertese e mcontemplação E o relato dirigese a to dos todos são convocados obrigados até a se decidirem a favor ou contra o relato já o mero descaso é uma tomada de posição Certamente no princípio havia impedimentos práticos para a sua efetividade Desde logo a anunciação era apropriada pela sua forma lingüística e pelos seus peculiares pressupostos de fé e de vida sòmente para judeus Mas a rejeição que sofreu por parte dos círculos dirigentes em Jerusalém e da maioria do povo levou o movimento para a magna empresa da missão entre os gentios que significativamente foi iniciada por um judeu da diáspora o apóstolo Paulo Desta forma porém fêzse necessária uma adap ução da anunciação às condições de um círculo muito mais iimplo de destinatários um desligamento dos pressupostos espe cíficos do judaísmo e ela se deu pelo método já proporcionado pe lu tradição judaica empregado porém desta vez de maneira in comparavelmente mais audaz da interpretação reinterpretativa O Velho Testamento foi desvalorizado como história do povo judeu c como lei judaica e converteuse numa série de figuras ixto é prenunciações e alusões prévias do aparecimento de Jesus e dos acontecimentos concomitantes Já falamos brevemente acêr c disto no nosso primeiro capítulo Todo o conteúdo das Sa jjrudiis Escrituras foi pôsto num contexto exegético que freqüen temente ufastava muito o acontecimento relatado da sua base cmkívcI enquanto obrigava o leitor ou ouvinte a desviar sua alcnçfto do acontecimento sensível para concentrála no seu sig nificado Davase portanto a possibilidade de que o intuivel do acontecimentos ficasse paralisado e sufocado pelo estreito rmiininhuilo dos significados Eis um exemplo entre muitos Deu criu u primeira mulher Eva da costela de Adão adorme riilo tintiixc dc um acontecimento sensivelmente intuivel o mrumo vule puru o momento em que um soldado cravo a lançs 42 MIMESIS no corpo de Jesus morto na cruz de modo a fazer manar sangue e água Contudo quando ambos os episódios são postos em correlação mediante a exegese ensinando que o sono de Adão é uma figura do sono mortal de Cristo e que assim como da ferida no lado de Adão nasce a mãe primordial da humanidade segundo a carne Eva do mesmo modo da ferida no lado de Cristo nasce a mãe dos vivos segundo o espírito a Igreja sangue e água são símbolos sacramentais volatilizase o acontecimento sen sível sobrepujado pela significação figurada O que o leitor ou ouvinte e nas artes plásticas o contemplador incorporam a si mesmos é débil quanto à impressão sensível todo o seu interêsse vêse dirigido para a conexão significativa Frente a isto as representações realistas grecolatinas não são tão sérias e pro blemáticas e muito mais limitadas na sua captação dos movi mentos históricos mas estão asseguradas na sua permanência sen sível descouaecem a luta entre aparência sensível e significação luta que cumula a visão da realidade dos primeiros tempos do cristianismo e a bem dizer de todo o cristianismo A Prisão de Petrus Valvomeres 3 Amiano Marcelino alto oficial e historiador do quarto século depois de Cristo que nos trechos que se conservam da sua obra informa acêrca dos acon tecimentos entre 350 e 380 relata no sétimo capítu lo do livro 15 um tumulto da plebe romana O texto diz assim Dum has exitiorum communium clades suscitat turba fe ralis urbem aetemam Leontius regens multa spectati judieis documenta praebebat in audiendo celer in disceptando justissi mus natura benevolus licet autoritatis causa servandae acer quibusdam videbatur et inclinatior ad amandum Prima igitur causa seditions in eum concitandae vilissima fuit et levis Philo comum enim aurigam rapi praeceptum secuta plebs omnis velut defensura proprium pignus terribili impetu praefectum in cessebat ut timidum sed ille stabilis et erectus immissis adparito ribus correptos aliquot vexatosque tormentis nec strepente ullo ncc obsistente insulari poena multavit Diebusque paucis secutis cum itidem plebs excita calore quo consuevit vini causando ino piam ad Septemzodium convenisset celebrem locum ubi operis mbitiosi Nymphaeum Marcus condidit imperator illuc de in dustria pergens praefectus ab omni toga adparitioneque rogabatur enixius ne in multitudinem se arrogantem immitteret et minacem ex commotione pristina saevientem difficilisque ad pavorem recte tetendit adeo ut eum obsequentium pars desereret licet in peri culum festinantem abruptum Insidens itaque vehiculo cum spcciosu fiducia contuebatur acribus oculis tumultuantium undi que cuncorum veluti serpentium vultus perpessusque multa dici probrosu ugnitum quemdam inter alios eminentem vasti cor poris rutilique capilli interrogavit an ipse esset Petrus Valvomeres ul uudicriit cognomcnto eumque cum esse sono respondisset ohjurgiitorio ul cdiliosorum untesignnnum olim sibi compcrtum roclnmimljlnipt imillii post tergu mnnibuH vinctis ttuspendi praeee 44 MIMESIS pit Quo viso sublimi tribuliumque adjumentum nequicquam implorante vulgus omne paulo ante confertum per varia urbis membra diffusum ita evanuit ut turbarum acerrimus concitor tamquam in judiciali secreto exaratis lateribus ad Picenum eji ceretur ubi postea ausus eripere virginis non obscurae pudorem Patruini consularis sententia supplicio est capitali addictus Quero dar uma tradução que procura imitar o peculiar estilo barroco do original Enquanto o bando de abutres conjurava estas catástrofes de corrupção geral Leôncio governador da Cidade Eterna mostrou muitas qualidades de juiz certo rápido no interrogatório muito justo na sentença benévolo por natureza logo pareceu a alguns estrito na observação da sua autoridade e demasiado propenso ao amor sensual Ora a primeira causa de um levantamento que con tra êle eclodiu era muito insignificante e tôla Pois tôda a plebe seguiu a Filocomo um auriga detido por sua ordem como se se tratasse de defender o mais caro dos tesouros e rompeu em selva gem tumulto até o prefeito para amedrontálo mas êste impávido e ereto ordenou à polícia intervir fêz com que alguns fôssem detidos e chicoteados e os condenou enquanto ninguém se atrevia a mur murar ou a resistir à deportação Quando poucos dias depois excitada novamente com o calor costumeiro tomando como motivo a escassez de vinho a plebe afluiu ao Septemzódio uma praça mo vimentada onde o imperador Marco tinha erigido o magnífico edifício do Ninfeu o prefeito que havia partido imediatamente para lá foi rogado insistentemente por todo o pessoal de funcio nários e oficiais para que não se atrevesse a penetrar na multidão insolente ameaçante irada ainda desde o último tumulto npo fàcilmente conduzível para o temor êle foi retamente pelo seu ca minho de modo que parte do seu séquito o abandonou não obstante êle se lançasse em premente perigo Ora sentado na sua carruagem êle observava com imponente segurança com olhos cintilantes os olhares serpentinos da multidão que bramia por todo lado ouviu sereno muitos discursos injuriosos depois perguntou a um a quem reconheceu e que pela sua grande estatura e pelos seus cabelos vermelhos sobressaía por entre os outros se não era Pedro ape lidado Valvomeres segundo tinha ouvido dizer e quando o outro respondeu num tom desavergonhado que o era êle ordenou que fôsse como cabecilha dos sediosos conhecido há tempo pendurado com as mãos amarradas às costas para ser submetido à pena dos açoites enquanto muitos protestavam em altos brados Quando foi visto suspenso suplicando em vão a ajuda dos cúmplices a multidão que há pouco era ainda apinhada dissolveuse pelas vá rias artérias da cidade à medida que ao mais selvagem dos agita dores das massas como num juízo secreto lhe foram arados os flancos após o que foi levado ao território piceno lá mais tarde como tinha ousado roubar a virgindade de uma donzela de não modesta família foi submetido à pena capital por sentença do cônsul Patruíno Muito daquilo que no capítulo anterior dissemos acêrcn da descrição que Tácito fêz do Icvimtiimento dos soldados é A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 45 válido também para êste trecho aqui aparece de maneira ainda mais crassa Muito menos ainda do que Tácito Amiano pensa em apresentar séria objetiva e problemàticamente as causas da rebelião e a situação da população romana Só a estúpida impudência segundo lhe parece leva a plebe romana à inquie tação Mesmo se êle tivesse razão com isto o que é bastante provável pois esta massa metropolitana corrompida e educada para a ociosidade durante séculos por todos os governos não devia de fato prestar para nada um historiador moderno teria certamente colocado ou pelo menos tocado de leve a questão de como se teria chegado a um tal estado de corrupção da plebe Mas isto não interessa absolutamente a Amiano e nesta posição êle ultrapassa largamente o próprio Tácito Para êste existe to davia um conjunto racional e compreensível de exigências que os soldados apresentam e frente ao qual comandantes e autori dades adotam uma certa posição há tratativas e se estabelece uma relação objetiva até humana entre os dois partidos É possível ver isto por exemplo na alocução de Blaeso no fim do capítulo 18 ou na cena da partida de Agripina no capítulo 41 Por mais inconstantes e supersticiosos que Tácito retrate os soldados em nenhum momento é possível duvidar que se trate de homens para os quais decência e honra não são conceitos estranhos Ao contrário na cena de Amiano não há qualquer espécie de re lação objetiva e racional entre autoridade e sediciosos e muito menos ainda qualquer espécie de relação humana baseada em respeito mútuo a relação é somente sensível mágica e violenta Por um lado um mero aglomerado dos corpos tolos e desaver gonhados como um monte de adolescentes desamparados por outro lado autoridade sugestiva destemor decisão férrea açoi tes E logo que a plebe vê que um dêles é tratado da maneira que todos parecem merecer perde a coragem e desaparece Amiano do mesmo modo que Tácito não dá informação algu ma sôbre a vida dêste povo ainda menos que Tácito pois falta algo que corresponda ao discurso de Percênio Nada é dado aqui que nos permita descobrir uma relação interna Êle não faz o povo falar só menciona um apelido Valvomeres como Tácito Cedo alteram mas reveste tudo com a sombria pompa da sua retórica a menos popular possível Apesar disto o ucontecimento é conformado de tal modo que nos deixa uma impressão profundamente sensível que talvez até impressiona de modo desagradavelmente sensível alguns leitores Amiano o desmontou exclusivamente em gestos a oposição da massa aglomerada e do prefeito que a domina pela sugestão O sensível gestual é preparado desde o princípio pela escolha das pa liivrus e das imagens sôbre a qual ainda voltaremos e atinge o seu ápice na cena no Steptemzódio no defrontarse de Leôncio tentado no seu carro com olhos cintilantes comparável a um do mador de feras com a massa que sibila como serpente que depois se evapora tão ràpidamente Um tumulto um homem isolado que procura domálo com os olhos que depois inter véin ríipldamentc algumas palavras cortantes o corpo poderoso 46 MIMESIS do cabecilha elevado finalmente açoites depois há tranqüili dade e como sobremesa ainda recebemos a notícia de um estupro com a conseqüente execução Uma comparação com Tácito mostra quanto mais fraco ficou tanto o humano como o objetivoracional e quanto mais forte ficou o mágico e o sensível Algo de pesado e oprimente um obscurecimento da atmosfera vital aparece já desde o fim do primeiro século do Império é inconfundível em Sêneca e sôbre o sombrio na historiografia de Tácito já se falou muito No caso de Amiano chegouse a uma desumanização mágica e sensível é sobremaneira digno de atenção o fato de que a evidência sensível dos acontecimentos tire proveito de um tal entorpecimento do humano Talvez pudesse objetarse que eu opus à cena de Tácito um motim plebeu e não um motim militar Todavia a única passagem que poderia entrar em consideração o levante dos soldados no início do livro 20 que leva à pro clamação de Juliano como Augusto pareceme muito suspeita Neste caso não parece tratarse de modo algum de um movi mento espontâneo dos soldados mas de uma demonstração de massas produzida com premeditação para aproveitar hàbilmen te os instintos da tropa uma tramóia que conhecemos bem demais na história mais recente Uma passagem semelhante não podia ser usada para os meus fins portanto fui obrigado a escolher o levantamento do povo romano Mas as caracte rísticas do seu estilo que encontramos nêle à primeira vista são comprováveis em qualquer passagem de Amiano Em todo lugar retrocedem o sensivelmente humano e o racional em todo lugar avançam o mágico e o sombriamente sensível o rigidamente imagético e gestual Certamente o Tibério de Tácito é bastante sombrio mas êle ainda conserva muito de humanidade e dignidade internas Em Amiano não sobrou nada além do mágico do grotesco e também horrívelpatético e surpreende o gênio que um alto oficial sério e objetivamente ativo desenvolve neste sentido Como devia ser forte a atmos fera se levou em homens desta classe e experiência vital evi dentemente êle passou grande parte da sua vida em campanhas duras e estafantes ao desenvolvimento de tais talentos Leiase por exemplo aviagem mortal de Galo 14 11 ou a jornada do cadáver de Juliano 21 16 ou a proclamação de Procópio como imperador 26 6 Como alguém semiapodrecido surgido do túmulo êle estava lá sem manto o manto imperial não pôde ser encontrado a túnica bordada de ouro como um criado do palácio das partes pudendas para baixo vestido como um escolar na mão direita tinha uma lança na es querda agitava um pedaço de pano purpúreo podiase pen sar que repentinamente uma figura da pintura de um pano teatral ou uma personagem grotesca de comédia tivesse ganhado corpo êle prometeu com servil adulação aos titereiros d sua elevação imensas riquezas e funções Quando subiu tribuna e todos paralisados pelo assombro calaram pensou como antes temera que a sua últimn horn tivesse chegado A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 47 Tremia de tal modo que durante longo tempo foi incapaz de falar Finalmente começou com voz entrecortada a proferir al gumas palavras como um moribundo que êle pela sua ori gem tinha direito ao trono imperial Novamente é o gés tico e imagético o que sobressai Da obra de Amiano é possível compor tôda uma coleção de retratos formidáveis e grotescos extremamente sensíveis e imagéticos o imperador Constantino que não volta jamais a cabeça nunca se assoava nem cuspia tanquam figmentum hominis 16 190 e 21 16 Juliano o grande vencedor dos alemães com a sua barba de bode co çando sempre a cabeça e pondo o seu estreito peito para a frente a fim de parecer mais largo e que dá passos demasiado longos para a sua pequena estatura 17 11 e 21 14 Joviano de olhar satisfeito cuja corpulência era tão monstruosa vasta proceritate et ardua que foi difícil na sua inesperada eleição para imperador durante uma campanha encontrar vestes imperiais à sua medida e que logo após a sua eleição aos 33 anos morre de modo não esclarecido 25 10 o sombrio e melancólico conspirador Procópio que sempre olhava para o chão e que descendente de distintíssima família inocente mente suspeito ocultase longo tempo entre as fezes do povo e que como muitas outras personagens de Amiano só procura fazerse imperador porque não vê outra maneira de salvar a sua vida o que naturalmente também assim não consegue 26 69 o secretário Leão posteriormente chefe da chancelaria imperial um panônico saqueador de cadáveres e ladrão um vampiro cuja fauce bestial escorre crueldade efflantem ferino rictu crudelitatem 28 1 o adivinho ou matemático He liodoro um denunciante profissional que fêz uma prodigiosa carreira agora é um gourmet ricamente provisto de dinheiro para as suas meretrizes passeia o seu obscuro semblante pela cidade onde todos o temem visita diligente e publicamente os bordéis para isso êle é chefe da alcova imperial cubiculariis officiis praepositus e anuncia que as disposições do amado soberano serão ainda funestas para muitos a horrível ironia destas palavras lembra um pouco o Tiberiolus meus Tácito Anais 6 5 mas é muito mais repugnante quando Heliodoro mais tarde morre repentinamente tôda a côrte é obrigada a participar do seu solene entêrro descobertos descalços e de mãos postas 29 2 o imperador Valentiniano um soberano de boa e imponente aparência mas de olhar evidentemente obscuro e oblíquo que ordena num arranque de mau humor que se corte a mão direita de um lacaio porque êste o ajudara desajeitadamente a montar um cavalo espantadiço 30 9 o imperador Valente lutador contra os godos prêto com um Alho coberto com uma pele branca de barriga algo proeminente e pernas tortas 31 14 Poderseia alongar ainda mais esta lista dc retratos e completála ainda com acontecimentos e des crições de costumes de espécie não menos grotesca e horrível e o pano dc fundo dc tudo isto é o seguinte que todos os homens dou qtmis se fala vivem permanentemente entre a cm 48 MIMESIS briaguez de sangue e o mêdo da morte Grotesco e sádico fantasmagórico e supersticioso ávido de poder e simultânea mente ocultando o bater dos dentes êste é o aspecto do mundo da classe dominante na obra de Amiano Ainda mereceria ser lembrado o seu peculiar humor leiase por exemplo a des crição dos senhores que por altivez recusam o usual beijo de saudação osculanda capita in modum taurorum minacium obli quantes que gesto adulatoribus offerunt genua suavianda vel manus id illis sufficere ad beate vivendum existimantes et abun dare omni cultu humanitatis peregrinutn putantes cuius forte etiam gratia sunt obligati interrogatum quibus thermis utatur aut aquis aut ad quam successerit domum 284 ou a sua observa ção sôbre as lutas dogmáticas na igreja cristã montes de padres viajavam constantemente de cá para lá para assistir aos chamados sínodos e enquanto cada qual procura impor a sua interpretação da fé ao outro êles não atingem nada afora o esgotamento e a paralisação dos meios de transporte 2116 Neste humor há sempre algo de amargo grotesco muito freqüentemente algo de grotescohorrível e desumanamente convulsivo O mundo de Amiano é obscuro superstição sêde de sangue esgotamento mêdo da morte gestos irados e màgicamente petrificados ocu pamno e como contrapêso nada se mostra além da decisão igualmente obscura patética no sentido do cumprimento de um dever que se vai tomando cada vez mais desesperado e difícil proteger o Império ameaçado de fora em decomposição por dentro Esta decisão confere às mais fortes dentre as persona gens atuantes uma sôbrehumanidade dura convulsiva que não deixa espaço para nenhum relaxamento como a que é expressa por exemplo pelo moriar stando de Juliano ut imperatorem decet ego solus confecto tantorum munerum cursu moriar stando contempturus animam quam mihi febricula eripiet una 24 17 Amiano como esperamos ter demonstrado possui uma for ça expressiva muito fortemente sensível Se o seu latim não fôsse tão dificilmente compreensível e tão intraduzível êle seria tal vez um dos mais influentes escritores da literatura antiga O seu processo todavia não é absolutamente imitativo no sentido de por exemplo construir diante dos nossos olhos e ouvidos os homens a partir dos seus próprios pressupostos deixálos pensar sentir agir e falar segundo a sua essência não os deixa falar de modo algum na sua linguagem natural própria ao contrário êle pertence à tradição dos historiadores antigos de estilo elevado que contemplam de cima emitindo juízos morais aquêles que nunca empregam propositada e conscientemente os meios da imi tação realista pois os desprezam como estilo cômico e baixo A cunhagem desta tradição que segundo parece foi preferida es pecialmente na Roma tardia encarnada já em Salústio mas prin cipalmente em Tácito tradição esta que era fortemente estóica no seu conteúdo disposicional gosta particularmente de escolher as suntos sombrios que mostram um elevado grau de corrupção dos costumes para fazêlos ressaltar violentamente contra um ideal de primordial simplicidade pureza c virtude que pnira cm A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 49 suas mentes É nesta moldura que Amiano evidentemente parece querer se enquadrar como resulta de muitas passagens da sua obra nas quais êle apresenta como exemplos de moralidade ações e palavras de tempos passados Mas desde o princípio desta tradição pode ser sentido que o assunto domina cada vez mais a intenção estilística e isto é inconfundível no caso de Amiano obrigando o estilo que procura a retraída distinção a se ade quar ao conteúdo de maneira que o vocabulário e a sintaxe come çam a se modificar tornandose desarmônicos sobrecarregados e crus oprimidos contraditòriamente pelo sombrio realismo do con teúdo e pela intenção estilística distinta e irrealista A escolha de palavras tornase maneirista e as orações começam por assim dizer a deformar e entortar O equilíbrio da elegância é perturba do o distinto retraimento convertese em pompa sombria e por assim dizer contra a sua vontade a expressão transmite mais sen sibilidade do que anteriormente seria compatível com a gravitas enquanto que a gravitas em si não se perde absolutamente mas antes pelo contrário se exacerba O estilo elevado tomase pa tético e horripilante e sensivelmente pictórico Os primeiros traços disto podem ser encontrados já em Salústio Importante influên cia neste sentido foi exercida por Sêneca que ainda que não pertencesse à tradição dos historiadores exerceu profunda in fluência geral também Lucano deve ser mencionado aqui No caso de Tácito o pesado o obscuro do estilo histórico que é alimentado pela obscuridão dos acontecimentos relatados já está tão carregado de uma visão sensorial da maneira que faz sobres sair sugestivamente o espantoso que esta visão irrompe muito amiúde naturalmente é ràpidamente reaprisionada pela distinta e aguçada concisão do estilo que não admite que tais supurações pululem um exemplo entre muitos a execução dos filhos de Sejano Anais 5 9 Em Amiano há uma hipertrofia da intuição sensível que se abriu caminho no estilo elevado não o vulgarizando popular ou cômicamente mas exagerandoo desmesuradamente a linguagem começa a pintar a realidade deformada sangrenta e fantasmagó rica com palavras cintilantes e pomposas deformações fraseo lógicas Em lugar das palavras distintas tranqüilas que comu nicam só brevemente o sensível ou só o insinuam moralmente aparecem palavras gèsticamente descritivas assim na descrição dos distúrbios romanos em lugar de uma expressão moral da impassibilidade stabilis erectus cum speciosa fiducia intuebatur acribus oculis em lugar de iter non in term isitrecte tetendit em lugar de açoitar latera exarare que ao mesmo tempo é pomposamente perifrástico e sensível o mesmo efeito tem pu dorem eripere e onde Tácito por exemplo diz accusatorum maior in dies et infestior vis grassabatur Anais 4 66 Amiano diz dum has exitiorum communium clades suscitat turba feralis To do fistcs exemplos e muitos outros semelhantes mostram que o maneirismo o estilo empolado não surge sòmente da tendência piiru o insólito mus serve também c sobretudo à evidência sen snriiil Somos obrigados u nfigurarnos o episódio A isto so 50 MIMESIS mamse as muitas comparações de homens com animais serpente e touro gozam de grande preferência ou entre episódios da vida com os do teatro ou do mundo dos mortos Em tôda parte a escolha das palavras é rebuscada mas em contraste total com o uso clássico que encontrava o escolhido e procurado na circuns crição distinta e geral do sensível e permitia a descrição disto somente ao poeta que devia se manter longe porém da vida real e presente se quisesse evitar o estilo inferior da sátira ou da co média em contraste total com isto o procurado no elevado estilo da historiografia serve agora para a descrição de coisas que acontecem presentemente esta descrição não é contudo pro priamente imitativa pois permanece sempre o historiógrafo mo ralmente sentencioso que fala em estilo elevado e evita os re baixamentos do realismo imitativo só que êle emprega constan temente as côres mais berrantes Na sintaxe de Amiano pode ser comprovado fato semelhante ao que acontece na sua escolha de palavras ainda que aqui muita coisa possa ser atribuível à necessidade de encerrar ritmicamente as frases e ao caráter for temente helenizante do seu estilo Norden Antike Kumtprosa 646ss ainda fica bastante coisa que só pode ser interpretada satisfatoriamente no nosso sentido Na sua colocação dos subs tantivos particularmente do sujeito nominativo na sua ampla utilização de adjetivos e particípios como apostos e na sua tendência a delimitar entre si os apostos acumulados pela colocação das palavras mostrase o esforço de Amiano em su gerir em tôda parte visões monumentais e geralmente gesticulan tes Observese o relêvo dado aos sujeitos turba feralis Leontius regens ille Marcus imperator praefectus acerrimus concitor aos objetos urbem aeternam Philocomum aurigam multitudinem vultus agnitum quendam eumque a pletora de aposições Jespersen diria extraposições e de formas aposicionais cada uma exposta da maneira mais independente possível a Leontius corresponde regens e também celer justissimus benevolus e depois em particular revestimento sintático acer e novamente ressaltado inclinatior ad amandum a causa pertence com artís tica diferenciação vilissima e levis a plebs diferenciados da mesma maneira secuta e defensura propriunt pignus a ille cor responde stabilis e erectus a multidudinem primeiro arrogantem e logo contrapostas e ressaltandose mutuamente miruicem e saevientem depois vem com referência ao prefeito e continuan do o pergerts em aguçado relêvo difficilis ad pavorem insidens vehiculo perpessus a agnitum quendam juntamse eminentem vasti corporis rutili capilli e depois sublimi implorante e o pró prio nome Petrus Valvomeres é mostrado em forma de apôsto e extremamente acentuado Também outras partes descritivas da oração como por exemplo ut timidum nec strepente ullo nec obsistente operis ambitiosi enixius etc e a impressão apro fundase quando se observam grupos maiores de palavras Urbem aeternam Leontius regens seguido da sua cauda de aposições é propositadamente monumental assim como Marcus condidit imperator dramático c monumental como imagem c como gesto A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 51 é o comêço da oração insidens itaque vehiculo totalmente pictó rica é a antecipação de contuebatur acribus oculis ao comple mento pomposamente movimentado e estrondoso tumultuantium undique cuneorum veluti serpentium vultus assim também é o desfraldarse de inter alios eminentem vasti corporis rutilique capilli após o descorado agnitum quendam Uma frase como es ta Quo viso sublimi tribuliumque adiumentum nequidquam im plorante cuja particularidade reside na sobrecarga de aposições pois a quo viso corresponde a aposição de vários membros sobre carregada no segundo membro numa relação totalmente oposta à clássica dificilmente teria sido escrita por Tácito mas como é plástica Vêse Petrus esperneando e ouvemse os seus berros Para uma sensibilidade clássica o estilo tanto na escolha de palavras quanto na construção das frases é ao mesmo tempo exageradamente refinado e exageradamente sensível tem um efeito muito forte mas êsse efeito é desfigurante O seu efeito é tão desfigurante como é desfigurada a realidade que representa O mundo de Amiano é muito amiúde como um espelho defor mante do costumeiro ambiente humano no qual nos movimen tamos é muito freqüentemente como um sonho mau E não o é somente porque nêle acontecem coisas horríveis como trai ção assassínio tortura ciladas pérfidas e denunciações tais coisas acontecem quase sempre e em todo lugar e as épocas de vida um tanto mais suportável não são demasiado freqüentes O opressivo do mundo de Amiano é antes a falta de um con trapeso pois por mais verdadeiro que seja que os homens são capazes de tudo o que fôr terrível é igualmente verdadeiro que o terrível produz constantemente fôrças contrárias e que na maioria das épocas de acontecimentos apavorantes também se manifestam as maiores fôrças vitais da alma amor e autosacri fício heroicidade professa e penetrante pesquisa em busca das possibilidades de uma existência mais pura Nada disto se en contra em Amiano Vivaz só no sensível resignada e como que paralisada apesar do rígido pathos a sua historiografia não apre senta em lugar nenhum algo de remissor algo que vise um futuro melhor nenhuma figura ou ação é envolvida por ares mais frescos mais livres ou humanos Isto já começa com Táci to embora não atinja de longe a mesma medida e a causa disto reside certamente na posição desesperadamente defensiva à qual u cultura antiga viase reduzida mais e mais incapaz já de gerar cm si mesma novas esperanças e nova vida deviase limitar a medidas que na melhor das hipóteses poderiam deter a decadên cia manter o existente e mesmo estas medidas tornaramse cada vez mais senis e a sua execução cada vez mais difícil Isto é fiito conhecido e não preciso aprofundarme nêle Só quero acrescentar que também o cristianismo frente ao qual Amiano 11A0 parecia ter uma posição hostil não significa para êle nada que pudesse quebrar essa situação de sombria falta de futuro 6 evidente que a modalidade de representação de Amiano levu ao mais ucubudo desenvolvimento algo que se anuncia desde S6iiccu c Tácito ito é um estilo altamente patético no qual o 52 MIMESIS horrivelmente sensível se abriu caminho um realismo sombrio e ultrapatético que é totalmente estranho à Antigüidade clássica A mistura de artes retóricas da espécie mais refinada com realismo berrante e fortemente deformante pode ser estudada muito antes em camadas muito mais baixasi do estilo por exem plo em Apuleio sôbre cujo estilo há na obra já várias vêzes mencionada Antike Kunstprosa de Norden uma análise bri lhante O nível estilístico de um romance milésio é naturalmen te totalmente diferente daquele de uma obra histórica mas apesar de tôda a sua frivolidade brincalhona galante e amiúde tôla as Metamorfoses apresentam não só uma mistura semelhan te de retórica e realismo mas também e Norden não o assi nalou a mesma tendência para a desfiguração fantasmagórica e horripilante da realidade Não me refiro somente às muitas estórias de transformações e de fantasmas que transitam tôdas pelo limite entre o horrível e o grotesco mas a muita outra coisa como por exemplo o gênero do erotismo junto à extrema acen tuação da concupiscência que com tôdas as especiarias da arte retóricorealista também procura ser despertada no leitor falta por completo o espiritual e o familiarmente humano e há algo de fantasmagórico e sádico que sempre se imiscui A concu piscência está sempre misturada com mêdo e horror é claro que também entra uma boa dose de tolice E isto penetra o romance todo mêdo concupiscência e tolice preenchemno Se a sensa ção da tolice do conjunto não fôsse tão forte pelo menos para um leitor hodierno poderseia pensar em certos escritores mo dernos em Kafka talvez cujo mundo pela sua horrenda defor mação lembra a loucura sobremaneira coerente Quero eviden ciar minha intenção a partir de uma passagem muito singela das Metamorfoses Está no fim do livro primeiro I 24 e relata a compra que faz no mercado o narrador Lúcio numa cidade estranha tessálica Diz assim rebus meis in cubiculo conditis pergens ipse ad balneas ut prius aliquid nobis cibatui prospicerem forum cuppedinis peto inque eo piscatum opiparem expositum video Et percon tato pretio quod centum nummis indicaret aspernatus viginti denariis praestinavi Inde me commodum egredientem continua tur Pythias condiscipulus apud Athenas Atticas meus qui me post áliquantum temporis amanter agnitum invadit amplexusque et comiter deosculatus Mi Luci ait sat pol diu est quod inter visimus te at hercules exinde cum a Clytio magistro digressi sumus Quae autem tibi causa peregrinationis huius Crastino die scies inquam Sed quid istud Voti gaudeo Nam et lixas et virgas et habitum prorsus magistratui congruentem in te video Annonam curamus ait et aedilem gerimus et si quid obsonare cupis utique commodabimus Abnuebam quippe qui iam cenae affatim piscatum prospexeramus Sed enim Pythias visa sportula succussisque in aspectum planiorem piscibus At has quisquilias quanti parasti Vix inquam piscatori extorsimus accipere viginti denarios Quo audito statim arrepta dextra postiiminio me in fOrum cuppedinis reducens Et a quo inquit istorum nuga A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 53 menta haec comparasti Demonstro seniculum in angulo sede bat Quem confestim pro aedilitatis império voce aspérrima increpans Iam iam inquit nec amicis quidem nostris vel ommi no ullis hospitibus parcitis qui tam magnis pretiis pisces frivolos indicatis et florem Thessalicae regionis ad instar solitudinis et scopuli edulium caritate deducitis Sed non impune Iam enim faxo scias quemadmodum sub meo império mali debeant coer ceri Et profusa in medium sportula iubet officialem suum insuper pisces inscendere ac pedibus suus totos obterere Qua contentus morum severitudine meus Pythias ac mihi ut abirem suadens Sufficit mihi o Luci inquit seniculi tanta haec con tumelia His actis consternatus ac prorsus obstupidus ad balneas me refero prudentis condiscipuli valido consilio et nummis simul privatus et cena Recolhidas as minhas coisas no meu quarto quero ir ao bal neário mas antes passo pelo mercado para compràr alguma coisa de comer lá vejo expostos opíparos peixes pergunto pelo preço e regateioo de cem denários a vinte Na hora de eu ir embora dali encontro Pítias meu condiscípulo na ática Atenas Logo que após uns instantes êle me reconhece dirigese amàvelmente a mim abraçame e beijame e diz Lúcio há quanto tempo não te vejo Acho que desde que deixamos o nosso mestre Clício Mas como chegas aqui Amanhã o saberás respondo Mas o que é isso Devo felicitarte vejo aguaziles e varas e a ti mesmo com hábito de magistrado Administro a fiscalização do mercado diz sou edil e se queres comprar alguma coisa posso ajudarte com prazer Eu recuso pois já tinha comprado bastante peixe para o jantar Mas Pítias vê o meu cêsto mexe nos peixes para vêlos melhor e diz E quanto pagaste por êste rebotalho Com esfôrço res pondo obriguei o pescador a aceitar vinte denários Ouvindo isto me pega pela mão direita e me arrasta de volta ao mercado E dc quem pergunta compraste estas bagatelas Indico o velhinho que estava sentado num canto Imediatamente em exercício das suas atribuições edilícias êle increpao com voz aspérrima Já chegais ao ponto de diz destratar os meus amigos e os foras teiros em geral vender peixes tão insignificantes a tal preço Com os vossos elevados preços fazeis da flor da Tessália um deserto que ninguém quer visitar Mas não ficará impune Eu já faço com que saibas como os malandros são castigados quando eu mundo Com isso êle joga ao chão o conteúdo do cêsto e ordena a um dos seus funcionários que pise sôbre os peixes até esmagálos de todo Contente com a sua severidade Pítias aconselhame que víi embora dizendo Estou satisfeito caro Lúcio com isto fiz uniu grande afronta ao velho Consternado e quase estupefato pelo acontecido dirijome ao balneário as enérgicas medidas do meu prudente amigo tinhamme privado tanto do meu dinheiro como do meu jantar I louve e há sem dúvida leitores que simplesmente riem e mhnni que se truta de uma farsa de uma mera brincadeira Miis isto nào inc piireee suficiente O comportamento do amigo Miímiceiiconliiido do qual nada mais é dito é proposituda 54 MIMESIS mente malicioso mas para isto falta qualquer motivo ou clemente mas em nenhum momento é dito que êle sofra das faculdades mentais É incontestável a impressão de uma defor mação meio tôla meio fantasmagórica dos procedimentos nor mais e médios da vida O amigo alegrouse pelo inesperado reencontro ofereceu os seus serviços até mesmo os impôs e sem se preocupar no mais mínimo pelas conseqüências do seu modo de agir rouba a Lúcio o seu jantar e o seu dinheiro nejm se pode falar de um castigo do vendedor pôsto que êste fica com o dinheiro e se entendo bem Pítias aconselha Lúcio a deixar o mercado porque os vendedores após esta cena não quererão atendêlo mais ou até procurarão vingarse dêle Com tôda a sua tolice a coisa está bem maquinada para embair Lúcio e pregarlhe uma peça mas por que motivo para que fim É tolice é ruindade é loucura A tolice não impede ao leitor de se sentir perplexo e intranqüilizado E que imagem peculiar mente penosa suja e um pouco sádica essa dos peixes pisoteados por ordem superior sôbre o chão do mercado A irrupção do realismo cruamente pictórico no estilo eleva do que encontramos em Amiano e que socava paulatinamente a divisão clássica dos estilos também se faz valer nos autores cristãos na tradição judeocristã não havia como mostramos anteriormente separação alguma entre estilo elevado e realismo e por outro lado a influência da retórica antiga sôbre os pais da igreja a qual foi muito forte como é sabido tanto mais que muitos dos pais da igreja eram homens de grande cultura educados na filosofia e na retórica começou a fazer efeito sòmente no momento em que o acima mencionado processo de socavação já estava muito adiantado não só em relação à sepa ração dos estilos mas em geral à conservação da medida e da harmonia da expressão Também nos pais da igreja encontra mos portanto e não raramente a mistura de pompa retórica com crua pintura da realidade particularmente Jerônimo chega nisto ao extremo As suas caricaturas satíricas que sobrepujam em muito Horácio e Juvenal são intensamente pictóricas ainda mais o são certas passagens onde dá conselhos ascéticos que se referem à comida e à bebida ao cuidado ou antes ao desleixo do corpo e à castidade entrando nos mínimos detalhes e sem se impor qualquer reticência a bem da decência Até onde êle pode subir na extrema visualização do horrível dentro do estilo pomposo mostra uma passagem das suas cartas 66 5 Patro logia lat 22 641 que talvez seja a mais efetiva ainda que não a única do gênero Uma mulher de família distinta Paulina faleceu e o marido sobrevivente Pamáquio decidiu deixar os seus bens aos pobres e fazerse monje Na epístola exaltadora e admoestadora que Jerônimo escreveu com tal motivo há um parágrafo que diz assim Ardentes gemmae quibus antecollum et facies ornabantur egentium ventres saturant Vestes sericae et aurum in fila len tescens in mollia lanarum vestimenta mutata sunt quihus rcpel A PRISÀO DE PETRUS VALVOMERES 55 latur frigus non quibus nudetur ambitio Deliciarum quondam suppelectilem virtus insumit Ille caecus extendens manum et saepe ubi nemo est clamitans heres Paulinae coheres Pammachii est Illum truncum pedibus et toto corpore se trahentem tene rae puellae sustentant manus Fores quae prius salutantium turbas vomebant nunc a miseris obsidentur Alius tumenti aqua liculo mortem parturit alius elinguis et mutus et ne hoc quidem habens unde roget magis rogat dum rogare non potest Iiic debilitatus a parvo non sibi mendicat stipem ille putrefactus morbo regio supravivit cadaveri suo Non mihi si linguae centum sint oraque centum Omnia poenarum percurrere nomina possim Aen VI 625 627 Hoc exercitu comitatus incedit in his Christum con fovet horum sordibus dealbatur Munerarius pauperum et egen tium candidatus sic festinat ad coelum Ceteri mariti super tumulos conjugum spargunt violas rosas lilia floresque purpu reos et dolorem pectoris his officiis consolantur Pammachius noster sanctam favillam ossaque veneranda eleemosynae balsamis rigat As brilhantes gemas que outrora ornavam o colo e o rosto ora saciam os ventres dos necessitados As séricas vestes entrete cidas com fios de ouro tornaramse em suaves vestimentas lanares que servem para repelir o frio e não para desnudar a ambição do luxo O que outrora fôra instrumento do luxo recebeo agora a virtude Aquêle cego que estende a mão e amiúde clama onde ninguém está tornase herdeiro de Paulina e coherdeiro de Pamá quio Aquêle de pés mutilados que se arrasta com todo o corpo i apoiado pelas mãos de uma tenra donzela As portas que antes vomitavam turbamultas de visitantes ora estão rodeadas de pobres IJni dêles inchado o ventre está grávido da própria morte aque loutro sem língua e mudo que nem tem com que implorar roga ainda mais por não poder rogar Êste enfraquecido desde a infân cia não mais mendiga pela sua esmola aquêle putrefato pela doença icterícia sobrevive ao seu próprio cadáver Nem se tivesse cem línguas e cem bôcas eu poderia enumerar o nome de todos os martírios Acompanhado por esta comitiva êle avança nêlcs êle reanima Cristo nas suas imundícies purificase Assim apressase em caminho ao céu o tesoureiro dos pobres o candidato aquêle que veste a toga branca dos indigentes Outros maridos mpargem violetas rosas lilás e purpurinas sôbre o túmulo das suas mu Iheres consolando com estas oferendas a dor do seu peito O nosso Pamáquio rega as santas cinzas e os veneráveis ossos com o bálsamo tia caridade A procissão dos enfermos e mendigos repousa evidente mente tiinto no seu conteúdo como no seu sentido na Bíblia O livro de Jó as curas dos doentes e a ética da humildade que sacrifica no Nõvo Testamento formam as bases para um Jui despregar de atrocidades físicas Já desde os tempos mais umotos ii alincgavúo por doentes repulsivos spirans cadaver di lerómmo em outra passagem e especialmente o contato 56 MIMESIS físico com êles durante os cuidados eram considerados sinais importantíssimos que demonstravam a humildade cristã e a pro cura da santidade Mas é evidente que também as artes retó ricas da tardia Antigüidade contribuíram para a crueza do efeito do nosso texto eu até diria que a sua contribuição foi deci siva A pomposa pintura desta retórica mostrase logo no começo nas expressões de contraste entre o mais desmedido luxo e a mais lastimável pobreza onde na escolha das palavras pompeiase com os pólos opostos do estilo ardentes gemmae contra agen tium ventres Aparece também o jôgo antitético das palavras e dos conceitos lanarum vestimenta quibus repellatur frigus contra vestes sericae etc quibus nudetur ambitio ubi nemo est cia mitans ne hoc quidem habens unde roget etc supravivit cadaveri suo sordibus dealbatur e assim por diante na predileção por adjetivos e imagens pomposas no uso patético da anáfora hoc his horum É certo que Jerônimo se dife rencia do seu contemporâneo Amiano pelo fato de que as chamas da sua pompa ardentes gemmae são alimentadas por um ardor amoroso e pela exaltação o impulso lírico das últimas frases onde Pamáquio ascende aos céus cèleremente e asperge as cinzas da amada com o bálsamo da caridade é magnífico duplamente efetivo após a procissão dos doentes e as flôres que não são jogadas mas são enumeradas contribuem com o seu perfume É uma passagem magnífica uma delícia para os aman tes daquilo que mais tarde se chamou o barroco e a magnifi cência de Amiano muito mais rígida e interiormente gelada nada tem que possa serlhe comparado Mas também a esperança de Jerônimo que tão comovedoramente o leva para o lirismo não se refere de maneira alguma a êste mundo a sua propa ganda dirigida expressamente ao ideal ascético e virginal é contrária à geração e voltase para a destruição do terrenal só com dificuldade e parcialmente êle se deixa levar a fazer meias concessões pela oposição que já então se iniciava Também a sua chama é sombria e o contraste entre a pictórica pompa do discurso e o ethos sombrio e suicida a imersão no horripilante naquilo que desfigura a vida e é seu inimigo chega também nêle a ser amiúde quase insuportável Não é a última vez que se defronta na sua obra uma disposição ascética e assassina do mundo em meio a um estilo pictórico extremamente rico Isto fica sendo uma tradição cristã mas nêle isto tem um efeito tanto mais sombrio porque lhe faltam por completo as vozes contrárias que cantam as alegrias do mundo cuja sonoridade se faz ouvir no barroco posterior em todo momento mesmo na mais profunda devoção extática a sombria e desesperada defen siva da Antigüidade decadente não mais era capaz segundo parece de produzir tais cantos Mas mesmo nas obras dos padres da Igreja há também tex tos que delatam uma relação totalmente diferente com a realidade do seu tempo uma relação muito mais dramàticamcnte comba tiva e ao mesmo tempo uma forma de expressão muito dife rente muito menos barrôca muito mais influenciada pela tradi A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 57 ção clássica O texto seguinte com o qual quero demonstrar o que disse é do capítulo oitavo do sexto livro das Confissões de Santo Agostinho a pessoa da qual se fala é Alípio amigo de juventude e discípulo de Agostinho a pessoa à qual se dirige a palavra tu é Deus Non sane relinquens incantatam sibi a parentibus terrenam viam Romam praecesserat ut ius disceret et ibi gladiatorii spec taculi hiatu incredibili et incredibiliter abreptus est Cum enim aversaretur et detestaretur talia quidam eius amici et condisci puli cum forte de prandio redeuntibus per viam obvius esset recusantem vehementer et resistentem familiari violentia duxerunt in amphitheatrum crudelium et funestorum ludorum diebus haec dicentem si corpus meum in illum locum trahitis et ibi constitui tis numquid et animum et oculos meos in illa spectacula potestis intendere Adero itaque absens ac sie et vos et illa superabo Quibus auditis illi nihilo segnius eum adduxerunt secum idipsum forte explorare cupientes utrum posset efficere Quo ubi ven tum est et sedibus quibus potuerunt locati sunt fervebant omnia imanissimis voluptatibus Ille autem clausis foribus oculo rum interdixit animo ne in tanta mala procederet atque utinam et aures obturavisset Nam quodam pugnae casu cum clamor ingens totius populi vehementer eum pulsasset curiositate victus et quasi paratus quiequid illud esset etiam visu contemnere et vin ecre aperuit oculos et percussus est graviore vulnere in anima quam ille in corpore quem cernere concupivit ceciditque mise rabilius quam ille quo cadente factus est clamor qui per eius uures intravit et reseravit eius lumina ut esset qua feriretur et deiieeretur audax adhuc potius quam fortis animus et eo infirmior quod de se etiam praesumpserat quod debuit tibi Ut enim vidit illum sanguinem immanitatem simul ebibit et non se avertit sed fixit adspectum et hauriebat furias et nesciebat cl delectabatur scelere certaminis et cruenta voluptate inebria butur Et non erat iam ille qui venerat sed unus de turba ad quam vencrat et verus eorum socius a quibus adductus erat Quid plura Spectavit clamavit exarsit abstulit inde secum insaniam qua stimularetur redire non tantum cum illis a quibus prius abstractus est sed etiam prae illis et alios trahens Et inde tarnen manu validissima et misericordissima eruisti eum tu et doeuisti eum non sui habere sed tui fiduciam sed longe postea Não abandonou certamente a via terrena que os seus pais linhum louvado e tinha ido a Roma para aprender Direito E lá èlc foi arrebatado pela paixão pelos espetáculos de gladiadores de umit forma e com uma intensidade incríveis Quando ainda sentia itversAo e detestava coisas semelhantes encontrou certa vez casual mente alguns amigos e condiscípulos que voltavam de um banquete o iuais apesar de sua recusa e resistência arrastaramno amis toHiimcnte ao anfiteatro nos dias em que lá tinham lugar os jogos iiticin e funesto file porém disse Ainda que arrasteis o meu corpo para líí c o obrigueis a ali ficar podeis acaso dirigir os meus olho t o meu espírito paru aquele espetáculo Lá estarei como um ntiscnte e Bnlm demonstrarei u minha superioridade sôbre vós 58 MIMESIS e sôbre aquêle espetáculo Ouvindo isto arrastaramno com maior empenho consigo talvez porque tivessem vontade de ver se êle era capaz de cumprir o prometido Chegados ao local sentaram onde puderam todos ferviam numa horrível volúpia Êle fechou as por tas dos seus olhos e proibiu o seu espírito a dedicarse a coisas tão ruins ah se êle tivesse também obturado os seus ouvidos Pois numa mudança da pugna como o clamor imenso da multidão o atingisse veementemente foi vencido pela curiosidade e certo de ser capaz de vencer e desprezar com a vista o pior abriu os olhos então sua alma foi ferida mais fundamente do que o corpo da quele que êle desejava ver e caiu mais miseràvelmente do que aquêle cuja queda tinha provocado a gritaria esta gritaria entrou pelos seus ouvidos e abriu os seus olhos para encontrar o cami nho para dominar o seu espírito naquele tempo mais audacioso do que forte e êste era tanto mais débil quanto tinha pôsto em si a confiança que devia a Ti Pois quando viu aquêle sangue bebeu também o veneno da ferocidade e não só não se voltou mas fixou o espetáculo absorveu o furor e sem sabêlo começou a deleitarse com o celerado espetáculo e ficou embriagado de cruenta volúpia E já não era o mesmo que viera mas um da turba à qual se juntara e realmente um sócio daqueles que o tinham conduzido para lá Que mais Olhava gritava ardia levou consigo dali a loucura que estimuláloia a voltar não só com os outros que antes o tinham arrastado mas antes dêles e trazendo outros consigo Mas Tu com fortíssima e misericordiosíssima mão o tiraste de lá e lhe ensinaste a ter confiança não em si mesmo mas em Ti Mas isto se deu muito mais tarde Também aqui agem as fôrças do tempo sadismo embria guez sangrenta e o predomínio do mágicosensorial sôbre o racional e o ético Contudo lutase o inimigo é reconhecido e as fôrças antagônicas da alma são mobilizadas para enfren tálo O inimigo aparece aqui sob a forma da grande sugestão em massa da embriaguez sanguinolenta que ataca todos os sen tidos ao mesmo tempo se a defesa lhe fechar a entrada dos olhos êle abre o seu caminho pelos ouvidos obrigando assim a abrir os olhos A defesa confia ainda no seu centro mais íntimo na fôrça da sua íntima decisão na sua consciente vontade de recusa Mas esta consciência interna não resiste nem um instante invertese imediatamente e as fôrças até então repre sadas pela dificultosa tensão da vontade as quais até então serviam à defesa passam ao inimigo Demonos razão do que isto significa Contra a massificação plebéia contra os desejos irracionais e desmesurados contra o encanto das fôrças mágicas a esclarecida cultura clássica possuía as armas do autodomínio individualista aristocrático mesurado e racional os diferentes sistemas didáticos éticos concordavam em que um homem bem instruído consciente de si mesmo seria capaz pelas suas próprias fôrças de afastarse de qualquer descomedimento e que êste não poderia penetrálo contra a sua vontade Também a doutrina maniquéia da qual Alípio já então estava perto confia no reco nhecimento do bem e do mal Por isto êle se deixa arrastar familiari violentia para o anfiteatro sem muita preocupação êle A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 59 confia nos seus olhos fechados e na sua decidida vontade Mas a sua autoconsciência individualista e orgulhosa é derrubada ins tantâneamente E não se trata aqui de um Alípio qualquer cujo orgulho ou melhor cuja essência mais íntima é arrebentada mas de tôda a cultura racional e individualista da Antigüidade clássica Platão e Aristóteles os estóicos e os epicúreos O ardente desejo varreuos numa única e poderosa tempestade et non erat iam ille qui venerat sed unus de turba ad quam venerat O indivíduo distinto confiante em si mesmo individual também na sua escolha hostil a tôda intemperança converteuse em mais um da massa e não só isso as mesmas forças que lhe permitiram manterse afastado por mais tempo e mais decidida mente da sugestão da massa a mesma energia que lhe permitia levar uma vida própria e orgulhosa estas mesmas fôrças êle põe agora à disposição da massa e da sua essência impulsiva êle não é somente seduzido convertese em sedutor aquilo que até o momento abominara agora ama Não é só com os outros que que êle delira mas antes dos outros non tantum cum illis sed prae illis et alios trahens É mais do que natural que um jovem de grande e apaixonada fôrça vital não ceda somente de forma paulatina mas se precipite na posição extremamente oposta a reação é total e uma tal reviravolta de um extremo para o outro é ao mesmo tempo muito cristã assim como Pedro na cena da negação e contràriamente como Paulo no caminho de Damasco cai tanto mais baixo quanto mais elevado antes esti vera como Pedro êle também reerguerseá sozinho Pois u sua derrota não é definitiva quando Deus lhe tiver ensinado a confiar Nêle e não em si próprio e no caminho dêste ensinamento a derrota é justamente o primeiro passo então êle triunfará O cristianismo dispõe na sua luta contra a em briaguez mágica de outras armas que não as da elevada cultura racional e individualista da Antigüidade êle próprio é um mo vimento de profundidade tanto da profundidade dos muitos como da profundidade do sentimento imediato é capaz de com bater o inimigo com as suas próprias armas Sua magia não é menos mágica do que a embriaguez sangrenta e é mais pode rosa porque é mais ordenada mais humana e esperançosa Um texto como êste por mais que revele traços sombrios da realidade do tempo apresenta um caráter totalmente dife rente do de Amiano e também do da passagem de Jerônimo que transcrevemos O que o diferencia à primeira vista dos outros textos é a calidez da luta humana e dramática Alípio vive e luta ao seu lado não só as figuras de Amiano mas também o Pamáquio do trecho de Jerônimo são esquemas rígidos cujo interior não se abre É isto o decisivo o que fn7 sobressair Agostinho decididamente do estilo do seu tempo iité onde o conheço êle sente e transmite de forma imediata vida humana que vive diante dos nossos olhos Os recursos dc estilo retórico que êle não despreza absolutamente nem neste texto nem cm nenhuma outra ocasião parecemme estar cm conjunto mais perto do antigo gênero clássico ciceroniano 60 MIMESIS do que aquilo que encontramos em Amiano ou em Jerônimo o extremamente dramático spectavit clamavit exarsit abstulit inde etc lembra a figura da segunda Catilinária abiit excessit evasit erupit à qual aliás supera em muito pelo conteúdo real da sua exacerbação e pela imediata passagem para o obje tivo e ainda existem sobretudo na segunda parte do texto uma grande quantidade de figuras antíteses e paralelismos O retórico parece mais clássico do que em Amiano ou em Jerô nimo contudo é claro e evidente à primeira vista que não se trata de um texto clássico no tom há algo de penetrante mente impulsivo algo de humanamente dramático e na forma um predomínio da parataxe estas duas coisas tanto isolada mente quanto em conjunto têm um efeito totaímente anticlás sico Ao observar por exemplo a frase nam quodam pugnae caso etc que contém tôda uma série de membros introduzidos hipotàticamente resulta que ela é coroada por um movimento simultâneamente dramático e paratático aperuit ocutos et per cussus est etc procurando rastejar a impressão desta passa gem lembramse certas passagens bíblicas que se refletem na Vulgata da seguinte maneira Dixitque Deus fiat lux et facta est lux ou ad te clamaverunt et salvi facti sunt in te sperave runt et rum sunt confusi Salmos 22 6 ou Flavit spiritus tuus et operuit eos mare Êxodo 15 10 ou aperuit Dominus os asinae et locuta est Números 22 28 em tôdas estas passa gens no lugar da hipotaxe causal ou pelo menos temporal que seria de esperar no latim clássico seja mediante cum ou postquam seja pelo ablativo absoluto ou mediante uma cons trução de particípio aparece a parataxe com et o que de modo algum enfraquece a ligação entre os dois acontecimentos mas ao contrário ressalta enfàticamente esta relação do mesmo modo que em português tem maior efeito dramático dizer abriu os olhos e foi ferido do que formular quando abriu os seus olhos ou ao abrir os olhos Esta observação acêrca do ápice da frase aperuit oculos et percussus est é só um sinto ma de uma situação muito mais geral certamente Agostinho emprega o estilo do período clássico e as suas figuras de dicção de forma totalmente consciente como resulta das suas explica ções no quarto livro do seu De doctrina christiana mas não se deixa dominar por êle O impulsivo o penetrante da sua essência exclui uma acomodação no processo comparativamente frio sensato que ordena as coisas de cima próprio do estilo clássico e especialmente do estilo romano em tôda parte do nosso texto é possível observar com quanta freqüência êle põe um membro da oração junto do outro especialmente quando se trata de um desenvolvimento dramático Trahitis et ibi consti tuitis adero ac superabo interdixit atque utinam obturavisset um movimento não raro em outras ocasiões aqui porém peculiarmente agostiniano aperuit et percussus est ceciditque intravit et reseravit ebibit et rtott se avertit sed jixit et nescie bat et delectabatur et inebriatur et non erat iam iile Isto seria impossível no estilo clássico tratase cm dúvida dc purntiixc A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 61 bíblica assim como o conteúdo mesmo ou seja a dramática apresentação de um processo interno de uma reviravolta interna é expressamente cristã Et non erat iam ille qui venerat sed unus de turba ad quam venerat esta é uma frase que tanto na sua forma como no seu conteúdo não é imaginável na Anti güidade clássica isto é cristão e muito especialmente agosti uiano pois ninguém observou como êle numa pesquisa tão apaixonada o fenómeno do conflito e da coexistência das fôrças internas a mudança das suas relações antitética e sintética e seu efeito de maneira alguma somente no caso prático como aqui mas também em problemas puramente teóricos que sob suas mãos se convertem em dramas o testemunho mais pene trante disto é dado pelo seu escrito acêrca da Trindade e se se quiser comprovar com mais um exemplo pequeno mais carac terístico quão problemáticos e ao mesmo tempo quão claros são para êle o devir e o desenvolvimento leiamse as primeiras frases das Confissões I 8 onde se fala da passagem da infância para a puberdade uma passagem como esta seria inconcebível antes de Santo Agostinho A parataxe serve a Agostinho para exprimir o impulsivo e dramático sendo que se trata em geral de processos internos em contraste falta quase totalmente aquilo que Amiano e outros autores do tempo mesmo autores cristãos visam isto é a pintura sensorial do acontecimento externo sobretudo do mágico do doentio e do horrível No nosso texto que daria bastante motivo para uma tal pintura o assunto é liquidado com um par de palavras poderosas mas totalmente correntes Não obstante também aqui o processo interior trágico e problemático está incorporado na realidade concreta contem porânea a separação dos campos estilísticos chegou ao seu fim Também nos autores pagãos introduziuse furtivamente como vimos a pintura da realidade no campo do estilo elevado e de forma muito mais pura deformada às vêzes só pelo encontro com o estilo pomposo da tardia Antigüidade a mistura de esti los da tradição judeocristã penetrou nos escritos dos pais da igreja O ponto central propriamente dito da doutrina cristã encarnação e paixão era como já indicamos antes totalmente incompatível com o princípio da separação dos estilos Cristo apareceu não como herói ou como rei mas como um homem du mais baixa extração social os seus primeiros discípulos foram pescadores e artesãos movimentavase no mundo quotidiano do povo palestino falava com publicanos e prostitutas com pobres doentes e crianças e nem por isto suas ações e suas palavras deixaram de ter a mais elevada e a mais profunda dignidade foram mais importantes do que tudo o que aconteceu em qual quer outro tempo O estilo no qual isto vem narrado não pos suiu nenhuma ou pelo menos possuía muito pouca cultura retó ncu no sentido antigo era sermo piscatorius e contudo pro Ilindamente comovente e mais eficaz do que a mais elevada obra rctóricotrágicu E o mais comovente nessas narrações era ii piiixilo Que o Rei dos Reis tenha sido escarnecido cuspido 62 MIMESIS açoitado e pregado na cruz como um criminoso comum êste relato aniquila totalmente tão logo domina a consciência dos homens a estética da separação dos estilos Produz um nôvo estilo elevado que não despreza absolutamente o quotidia no e que incorpora em si o realismo sensorial até o feio o indigno o fisicamente baixo ou se se preferir exprimir isto de maneira contrária surge um nôvo sermo humilis um estilo baixo da espécie que seria aplicável somente à sátira e à comé dia mas que ora se estende muito além do seu território origi nal atingindo o mais elevado e o mais profundo até o sublime e o eterno Já me referi a estas relações anteriormente e uma vez Sacrae Scripturae sermo humilis Neuphil Mitteil Hel sinki 1941 57 indiquei o papel especial de Agostinho êle que se sentia à vontade tanto no mundo retórico clássico como no mundo judeocristão foi talvez o primeiro que tomou consciência do problema da antítese estilística dos dois mundos Assim o formulou de maneira muito expressiva na sua De doctrina chris tiana 4 18 precisamente com motivo do copo de água fria de Mateus 10 42 A mistura estilística cristã não aparece tanto nestes pri meiros tempos na Idade Média é bem mais fàcilmente observá vel porque os pais da igreja só raramente aproveitavam a opor tunidade de se ocupar pràticamente com a realidade contempo rânea Não são poetas nem romancistas e em geral também não historiadores do seu tempo as atividades teológicas e sobre tudo as apologéticas e as polêmicas ocupavamnos por completo e ocupam também os seus escritos passagens como as que aqui citamos de Jerônimo e de Agostinho que descrevem a realidade contemporânea não são muito freqüentes Tanto mais freqüen tes é entre êles a atividade interpretativa da realidade exegese antes de mais nada das Sagradas Escrituras mas também dos grandes contextos históricos particularmente da história romana para adequála à visão histórica judeocristã Para isto é quase constante o emprêgo do método figurai do qual já falei antes aqui mesmo e sôbre cuja significação e influência tentei deitar um pouco de luz noutra ocasião Figura Arch Roman 22 436 A interpretação figurai estabelece uma relação entre dois acontecimentos ou duas pessoas na qual um dêles não só se significa a si mesmo mas também ao outro e êste último com preende ou completa o outro Ambos os pólos da figura estão separados temporalmente mas estão também como aconteci mentos ou figuras reais dentro do tempo Ambos estão con tidos no fluxo corrente que é a vida histórica e somente a sua compreensão o intellectus spiritualis da sua relação é um ato mental Na prática tratase primeiramente quase sempre da exegese do Velho Testamento cujos episódios isolados são inter pretados como figuras ou como profecias reais dos acontecimen tos do Nôvo Testamento Encontrase um exemplo disto no fim do capítulo anterior e vários outros exemplos comentados no meu trabalho mencionado Esta espécie de interpretação intro duz como é fácil de ver um elemento inteiramente nôvo c A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 63 estranho na antiga perspectiva histórica Quando por exemplo um acontecimento como o do sacrifício de Isaac é interpretado como uma prefiguração do sacrifício de Cristo de maneira que no primeiro por assim dizer anunciase e prometese o segundo e o segundo cumpre com o primeiro figuram implere é a expressão para isto então se cria uma relação entre os dois acontecimentos que não estão unidos nem temporal nem cau salmente uma relação que de forma racional e num decurso horizontal se fôr permissível esta expressão para uma extensão temporal não é possível estabelecer Só é possível estabelecer esta relação quando se unem os dois acontecimentos vertical mente com a providência divina que é a única que pode plane jar a história desta maneira e a única que pode fornecer a chave para a sua compreensão A conexão temporalhorizontal e cau sal dos acontecimentos é dissolvida o agora e aqui não é mais elo de um decurso terreno mas é simultâneamente algo que sempre foi e algo que consumarseá no futuro E a bem dizer perante o ôlho de Deus é algo eterno de todos os tempos já consumado no fragmentário acontecer terreno Esta concep ção histórica é de uma unidade grandiosa mas era totalmente alheia à essência clássicoantiga a qual destruiu até na estrutura da sua linguagem ou pelo menos da sua linguagem literária que com as suas sábias e bem matizadas conjunções com os seus ricos instrumentos de ordenação sintática com o seu sistema de determinação dos tempos cuidadosamente elaborado tomouse inteiramente supérflua a partir do momento em que já não mais importavam as relações terrenas de lugar tempo e causalidade a partir do momento em que uma relação vertical ascendente de todo o acontecer para o alto convergindo em Deus era o único que importava que tinha sentido Necessàriamente sem pre que ambas as concepções se encontraram deveria surgir con flito e a intenção de entrar num compromisso entre por um lado a representação que ligava cuidadosamente os membros do acontecimento entre si cumprindo as seqüências temporais e causais e permanecendo no campo do primeiro plano terreno e por outro a exposição entrecortada e saltitante interrogando o aJto constantemente à procura de uma interpretação Quanto mais educados no sentido antigo quanto mais aprofundados na cultura antiga estivessem os escritores cristãos dos tempos pátrís ticos tanto mais êles deviam sentir a necessidade de verter o conteúdo do cristianismo numa fôrma que não fôsse só mera tradução mas uma adaptação às suas próprias tradições concei tuais e expressivas Também aqui Santo Agostinho serve como exemplo grandes trechos da sua Civitas Dei especialmente os livros XV a XVIII onde se fala do progresso procursus do reino de Deus sôbre a terra mostram o constante afã de com plementar a interpretação figuralvertical com a apresentação de decursos que se sucedem historicamente Leiase como exem plo um capítulo qualquer onde êle comenta uma narração bíblica talvez XVI 12 lá se fala da família de Taré pai de Abrao íh Io é do Cíêncsi II 26 o que é completado por S 64 MIMESIS Agostinho mediante outros trechos bíblicos por exemplo Josué 242 O tema do capítulo é judeocristão e também a exegese o é o conjunto encontrase sob o signo da Civitas Dei que prefigurada desde Adão consumouse agora em Cristo Inter pretase a época de TaréAbraão com um elo do plano divino da salvação como um dos estágios da seqüência figurai de préfigurações provisoriamente fragmentárias anunciadoras da Civitas Dei e neste sentido ela é comparada com a época de Noé muito anterior Contudo dentro dêstes limites apresen tase a constante preocupação em preencher as lacunas da repre sentação bíblica em completála com outros trechos bíblicos ou com considerações próprias em produzir uma correlação fluente dos acontecimentos e em geral em dar à interpretação irracio nal em si uma forma que seja até o limite mais extremo racio nalmente convincente Quase tudo o que êle acrescenta ao relato bíblico serve para esclarecer racionalmente a situação histórica e para harmonizar a interpretação figurai como a idéia da seqüên cia histórica ininterrupta Aquilo que aqui se infiltra de clássico antigo manifestase também na linguagem aliás sobretudo nela tratase de períodos que ainda que apressadamente construídos e de efeito não muito artístico excesso de construções relativas estão com a sua rica elaboração das partículas conectivas com hipotaxes temporais comparativas e concessivas matizadas com exatidão com as suas construções participiais no mais acerbo contraste com a citação bíblica transcrita com a sua parataxe e a sua carência de membros conectivos Êste contraste entre texto e citações bíblicas é freqüentemente encontrável nos pais da Igreja e quase em tôda parte em Santo Agostinho pois a tradução latina da Bíblia tinha conservado o caráter paratático do original Reconhecese claramente num tal trecho da Civitas Dei a pugna que lingüística e objetivamente tinha lugar entre os dois mundos e que também poderia ter levado a uma extensa racionalização e articulação sintática da tradição judeocristã só que isto não se deu A mentalidade antiga já era demasiado quebradiça a obra escrita mais importante e influente a tradução da Bíblia não pôde senão imitar o estilo paratático do original e veio assim ao encontro das tendências da fala popular enquan to decaía a língua literária E finalmente ocorreu a irrupção dos germanos os quais não obstante todo o seu espantado res peito diante da cultura antiga não estavam em condições de aceitar justamente o que ela tinha de racional a sua fina malha sintática Assim a interpretação figurai dos acontecimentos venceu em tôda a linha mas ela não oferecia uma compensação total pela perdida visão na conexão racional fluente e terrena das coisas pois não podia ser aplicada a qualquer acontecimento sem mais nem menos não obstante naturalmente não faltassem tentativas de interpretar imediatamente das alturas tudo o que acontecia Estas tentativas deveriam baldarse diante da multi plicidade dos acontecimentos e da incognoscibilidade das decisões divinas e assim largos campos do acontecer ficaram sem quul A PRISÃO DE PETRUS VALVOMERES 65 quer princípio segundo o qual poderseia ordenáios e com preendêlos sobretudo depois da ruína do Império Romano que como concepção do Estado dava uma direção pelo menos a visão política dos acontecimentos O que sobrou foi o mero observar suportar ou aproveitar do que acontecia praticamente em cada instante era material bruto que era recebido também da forma mais bruta Levou muito tempo até que os germes contidos no cristianismo mistura de estilos visão em profun didade no devinte apoiados pela sensualidade de povos ainda não carcomidos pudessem desfraldar as suas fôrças Sicário e Cramnesindo 4 A seguinte narração consta da História dos Francos de Gregório de Tours VII 47 e IX 19 Gravia tunc inter Toronicos eives bella civilia surrexefunt Nam Sicharius Johannis quondam filius dum ad natalis dominici solemnia apud Montalomagensem vicum cum Austrighysilo reli quosque pagensis celebraret presbiter loci misit puerum ad aliquorum hominum invitacionem ut ad domum eius bibendi gracia venire deberint Veniente vero puero unus ex his qui invitabantur extracto gladio eum ferire non metuit Qui statim cecidit et mortuos est Quod cum Sicharius audisset qui amici tias cum presbitero retinebat quod scilicet puer eius fuerit inter fectus arrepta arma ad eclesiam petit Austrighyselum opperien Ille autem hec audiens adprehenso armorum aparatu contra eum diregit Mixtisque omnibus cum se pars utraque conlideril Sicharius inter clericos ereptus ad villam suam effugit relictis in domo presbiteri cum argento et vestimentis quatuor pueris sau ciatis Quo fugiente Austrighiselus iterum inruens interfectis pueris aurum argentumque cum reliquis rebus abstulit Dehinc cum in iudicio civium convenissent et preceptum esset ut Aus trighiselus qui homicida erat et interfectis pueris res sine audienciam diripuerat censura legali condempnaretur Inito plu cito paucis infra diebus Sicharius audiens quod res quas Aus trighiselus deripuerat cum Aunone et filio adque eius fratre Eberulfo retinerentur postposito placito coniunctus Audino moin sedicione cum armatis viris inruit super eos nocte clisumquo hospicium in quo dormiebant patrem cum fratre et filio inte remit resque eorum cum pecoribus interfectisque servis nbiluxit Quod nos audientes vehimenter ex hoc molcsti adiuncto indice Icgncioncm ad eos mittemus ut in nostra prcscnciu venientes accepiü racionc cum pacc discedcrcnt ne iurgium in nmplius pulu SICÁRIO E CRAMNESINDO 67 laret Quibus venientibus coniunctisque civibus ego aio Nolite o viri in sceleribus proficere ne malum longius extendatur Per dedimus enim eclesie filius metuemus nunc ne et alius in hac intencione careamus Estote queso pacifici et qui malu ges sit stante caritate componat ut sitis filii pacifici qui digni sitis regno Dei ipso Domino tribuente percipere Sic enim ipse ait Beati pacifici quoniam filli Dei vocabuntur Ece enim etsi illi qui noxe subditur minor est facultas argento eclesie redemitur interim anima viri non pereat Et hec dicens optuli argentum eclesie sed pars Chramnesindi qui mortem patris fratresque et patrui requerebat accepere noluit His discedentibus Sicharius iter ut ad regem ambularet preparat et ob hoc Pectavum ad uxorem cernendam proficiscitur Cumque servum ut exerce ret opera commoneret elevatamque virgam ictibus verberaret ille extracto baltei gladio dominum sauciare non metuit Quo in terram ruente currentes amici adprehensum servum crudeliter cesum truncatis manibus et pedibus patibolo damnaverunt Inte rim sonus in Toronicum exiit Sicharium fuisse defunctum Cum autem hec Chramnesindus audisset commonitis parentibus et amicis ad domum eius properat Quibus spoliatis interemptis uonnullis servorum domus omnes tarn Sicharii quam reliquorum qui participes huius ville erant incêndio concremavit abducens secum pecora vel quecumque movere potuit Tune partes ad iudice ad civitatem deducte causas proprias prolocuntur inven tumque est a iudicibus ut qui nollens accepere prius conposi cionem domus incendiis tradedit medietatem precii quod ei fuerat iudicatum amitteret et hoc contra legis actum ut tantum pacifici redderentur alia vero medietatem conposi ciones Sicharius reddered Tune datum ab eclesia argentum que iudicaverunt accepta securitate conposuit datis sibi partes invicem sacramentis ut nullo umquam tempore contra alteram pars alia musitaret Et sic altercacio terminum fecit IX 19 Bellum vero illud quod inter cives Toronicus superius diximus terminatum in rediviva rursum insania surgit Nam Sicharius cum post interfectionem parentum Cramsindi magnam cum eo amiciciam patravissed et in tantum se caritate mutua diligerent ut plerumque simul cibum caperent ac in uno puritcr stratu recumberent quandam die cenam sub nocturno tempore preparat Chramsindus invitans Sicharium ad epulum Huum Quo veniente resident pariter ad convivium Cumque Sicharius crapulatus a vino multa iactaret in Cramsindo ad ex tremum dixisse fertur Magnas mihi debes referre grates o dulcissime frater eo quod interficerem parentes tuos de quibus accepta composicione aurum argentumque superabundat in do mum tuam et nudus essis et egens nisi hec te causa paululum roborassit Hec ille audiens amare suscepit animo dicta Sichari dixitque in corde suo Nisi ulciscar interitum parentum meo rum amitteri nomen viri debeo et mulier infirma vocare Et Mtutim extinctis luminaribus caput Sichari seca dividit Qui par volum in ipso vitac terminum vocem emittens cecidit et mortuus out Pucri vero qui cum eo vcncrant dilabuntur Cramsindus 68 MIMESIS exanimum corpus nudatum vestibus adpendit in sepis stipite ascensisque aequitibus eius ad regem petiit Graves lutas civis surgiram então entre os habitantes da região de Tours Pois estando Sicário filho do defunto João fes tejando o nascimento do Senhor juntamente com Austregésilo e com os outros conterrâneos na aldeia de Mantelão o presbítero do lugar enviou um môço de serviço para convidar algumas pessoas a fim de que fôssem à sua casa para beberem Mas quando o môço chegou um daqueles que haviam sido convidados puxou a espada e não hesitou em ferir o môço que logo caiu e morreu Quando Sicário que tinha amizade pelo presbítero ouviu isto ou seja que um criado do mesmo havia sido assassinado pegou em armas e foi à igreja esperar Austregésilo Êste armouse também ao ouvir isto com tôdas suas armas e foi ao seu encontro E quan do todos se misturaram em combate e uma e outra parte sofreu perdas Sicário escapuliuse entre os clérigos e fugiu para a sua côrte deixando porém sua prata suas roupas e quatro dos seus servos feridos na casa do presbítero Depois da sua fuga Austre gésilo irrompeu nessa casa matou os servos e levou consigo o ouro a prata e as outras coisas de Sicário Mais tarde quando aparece ram perante o tribunal civil decidiuse que Austregésilo seria con denado a pagar a multa legal por homicídio e por terse apropriado das coisas após ter morto os servos sem esperar por uma sentença Sicário havia aceito estas decisões porém ouviu poucos dias de pois que os objetos que Austregésilo lhe havia tirado estavam guardados com Auno com o seu filho e com o seu irmão Eberulfo sem respeitar o acordo juntouse com Audino quebrou a paz e os assaltou com homens armados à noite Irrompeu na casa onde dormiam matou o pai o irmão e o filho assassinou os criados e levou consigo todos os objetos e os rebanhos Ao ouvirmos isto ficamos muito aflitos unimonos ao juiz do lugar enviamos um emissário dizendo que deveriam aparecer perante nós para dirimir a questão e separarse em paz para que a querela não se expan disse Quando vieram estando reunidos os cidadãos falei então assim Deixai ó homens de cometer mais crimes para que êste mal não se estenda ainda mais Já perdemos filhos da Igreja nesta luta receamos que se percam ainda outros Estai pois em paz e quem tiver cometido más ações que as pague em paz pois sois filhos da paz dignos de receber pela graça divina o reino dos céus Pois Êle diz bemaventurados os pacíficos pois serão chamados filhos de Deus E vêde se aquêle que fôr culpado fôr demasiado pobre para pagar a sua indenização seja êle resgatado com o dinheiro dn Igreja contanto que a sua alma não se perca Assim oferecilhes o dinheiro da Igreja Mas o partido de Cramnesindo que queria vingar a morte do seu pai do seu irmão e do seu tio negouse h aceitar a indenização Assim foram embora e Sicário empreendeu uma viagem com o fito de ver o rei Foi para tanto à região dc Poitiers para visitar a sua mulher Lá quando admoestou um servo para que fizesse o seu trabalho levantando a sua vara e çastigandoo êste puxou a espada que levava ao cinto e não hesitou em ferir o seu amo Ao cair Sicário à terra acorreram os seus amigos pegaram o servo e o maltrataram cruelmente cortandolhe as mãos e os pés e levandoo ao patíbulo Entretanto chegou 11 Tours o beato de que Sicário havia morrido e Cramnesindo no SICÁRIO E CRAMNESINDO 69 ouvir isto chamou os seus parentes e amigos e correu para a casa de Sicário Depois de havêla saqueado e de haver morto vários servos pôs fogo em tôdas as casas que faziam parte da côrte tanto na de Sicário quanto nas outras levou consigo os rebanhos e tudo o que podia ser levado Depois disto as partes foram intimadas a comparecer perante o juiz da cidade Aí defenderam as suas causas e os juizes chegaram à sentença de que aquele que antes não havia aceito a indenização e havia incendiado as casas deveria perder a metade do resgate que lhe havia sido concedido antes o que era a bem dizer contrário às leis mas só foi feito para apaziguálos devendo Sicário pagar sòmente a outra metade Com isto a Igreja deu o dinheiro a indenização foi paga segundo a sentença as partes reconciliaramse e juraram nunca mais levantarem armas contra os outros Assim terminou a querela IX 19 A luta entre os habitantes de Tours de cujo fim falamos acima voltou a se acirrar com renovada fúria Pois Si cário tinha feito profunda amizade com Cramnesindo não obstante êste ter morto os seus parentes e êles chegaram a se amar tão profundamente que amiúde comiam juntos e dormiam num mesmo leito Tendo certa feita preparado um jantar Cramnesindo con vidou Sicário Sicário veio e ambos sentaramse juntos à mesa Sicário porém escaldado pelo vinho permitiuse dizer muitas coi sas ofensivas para Cramnesindo dizendo por fim segundo contam as seguintes palavras Deverias serme muito grato irmão do meu coração por eu ter morto os teus parentes pois tens recebido uma indenização por sua causa e agora há muito ouro e prata na tua casa pobre e necessitado viverias agora se tudo isto não te tivesse fortificado um pouco O outro ouviu isto e as palavras encheram o seu ânimo de amargura e êle falou no seu coração Se eu não vingar a morte dos meus parentes não mais merecerei ser chamado de homem merecerei ser chamado de mulher covarde Apagou imediatamente as luzes e fendeu a cabeça de Sicário com um talho Sicário ainda proferiu um débil grito antes de cair e morrer Os servos que com êle tinham vindo porém fugiram Cramnesindo arrancou então as vestes do cadáver e o pendurou num dos pilares da cêrca subiu no seu cavalo e apressouse a ir ver o rei Esta tradução procura sòmente tornar compreensível o acon tecimento mas não pretende dar uma idéia do modo de escrever de Círcgório Ao ler êste trecho terseá antes de mais nada a impressão de que aqui se narra uma história já em si muito embrulhada ilc maneira muito pouco clara Mesmo quem não se deixar desconcertar pela desordem da ortografia e das terminações fle xionais terá certa dificuldade em esclarecer totalmente os acon tecimentos Graves lutas civis surgiram então entre os habi tantes da região de Tours P o is Agora deveriam seguir ns causas das desordens mas o que se segue em primeiro lugar subordinado ao nam é um trecho da préhistória do caso isto c que numa aldeia onde muitas pessoas estavam reunidas para tuna festa dc Natal o padre da aldeia enviou um criado para convidar a beber alguns dos que estavam reunidos Mas esta mio ó a causa das desordens lem bra a espécie dc relato que se 70 MIMESIS encontra freqüentemente na língua falada sobretudo em pessoas pouco cultas apressadas ou descuidadas de um tipo semelhante a isto Ontem saí mais tarde do escritório Pois o diretor o Sr Silva estêve com o chefe e então êles falaram do assunto X E quando já eram quase cinco vem o chefe e diz Ah Sr Costa o senhor não poderia por favor fazer ràpidamente a relação para que possamos dar ao Sr Silva todo o material de uma vez etc A visita do Sr Silva ao chefe informa cão pouco sôbre o atraso do Sr Costa quanto o convite do padre sôbre a origem imediata das desordens só nos dá a primeira parte de um estado de coisas composto de vários membros que o narrador é incapaz de coordenar sintàticamente êle tem a intenção de dar a conhecer a causa do resultado antecipado na primeira oração mas é confundido pela multidão dos dados necessários para tanto êle não tem a energia de organizálos num só período com a ajuda de um sistema de orações subordi nadas nem a previsão de se livrar do apêrto uma vez reconhe cida a sua incapacidade com uma oração introdutória por exemplo Isto ocorreu assim Tal como aparece o nam é vago e injustificado do mesmo modo que na oração posterior concebida de maneira muito semelhante nam Sicharius cum post interfectionem etc pois também nela o nam não introduz a causa do renascer das desordens mas somente a primeira parte de um estado de coisas muito complexo em ambos os casos a impressão da desordem é intensificada ainda mais pela mudança do sujeito Em ambos os casos a oração começa tendo Sicário por sujeito pois Gregório o considera evidentemente as duas vêzes personagem principal e em ambos os casos êle se vê obrigado a introduzir o sujeito correspondente ao mencionado estado de coisas e só é capaz de fazêlo com outra oração de modo que as orações tôdas se convertem em monstruosidades gramaticais Ora os comentaristas Bonnet também Loefsted nos seus comentários à Peregrínatio Aetheriae ensinaramnos que nam no latim vulgar assim como muitas das partículas conecti vas do latim antes tão claras e definidas perdeu a sua fôrça expressiva original que não mais tem função causal mas indica sòmente uma descorada continuação ou transição Mas isto não acontece nas duas passagens de Gregório que estudamos Pelo contrário Gregório ainda sente o significado causal empregao só que de maneira embrulhada e confusa Talvez seja possível reconhecer em tais exemplos como o nam devido às muitas utilizações laxas debilitouse como partícula causal aqui o processo de relaxamento está ainda em marcha ainda não está acabado Ê notável que tais processos que ocorrem constante mente na língua falada se infiltrem aqui na língua escrita de um homem como Gregório de Tours que pertencia a uma fa mília distinta e se constituiu numa figura importante dentro dos limites do seu tempo e do seu país Prossigamos O criado que traz o convite é assassinado por um dos convidados por quê Isto não é ililo Que o assassino deva ter sido Austregésilo ou alguém do seu séquito só SICÁRIO E CRAMNESINDO 71 pode ser deduzido do que se segue pois Sicário quer vingarse nêle pelo ato a coisa não é dita tarrtbém a introdução imediata dos diferentes edifícios onde têm lugar os combates a igreja a casa do padre e as palavras inter clericos ereptus dão uma imagem só muito confusa dos acontecimentos sentese a falta de têrmos intermediários explicativos Outras coisas ao con trário aparecem com demasia de pormenores Por que Gre gório não diz simplesmente um dos convidados matou o criado Êle diz extracto gladio eum ferire non metuit Quis statim cceidit et mortuos est de maneira tão pormenorizada êle trata dêste incidente que só interessa pelas suas conseqüências mas cujo motivo êle cala isto teria sido bem mais importante do que mencionar que o criado caiu antes de morrer Na frase seguinte Gregório teme que o leitor já possa ter perdido o fio pois acha necessário acrescentar quod scilicet puer eius fuerit interfectus só um leitor de ínfima capacidade de apreen são já poderia têlo esquecido Contraditoriamente êle pres supõe que o mesmo leitor tenha bastante capacidade combina tória com o seu Austrighiselium opperiens pois êle omitiu comunicarnos que Austregésilo está de alguma maneira rela cionado com o assassinato e ainda mais que todos os par ticipantes da festa não se encontram num mesmo local como tudo leva a crer E continua do mesmo jeito A frase que trata do primeiro processo judicial dehinc cum in iu d ic io não contém verbo principal algum a frase seguinte é um monstro pelas suas formas participiais superpostas e totalmente carentes de sistematização gramatical inito placito postposito placito co niunctus Audino mota sedicione elisumque kospicium a tradu ção e a interpretação históricojurídica de ambas as frases são extremamente difíceis assim como todo êste processo jurídico deu lugar a uma controvérsia outrora muito comentada entre Gabriel Monod e Fustel de Coulanges Revue Historique XXXI 1886 e Revue des Questions Historiques XLI 1887 não só pela multivocidade da palavra placitum mas também pela pouca clareza da estrutura lingüística como um todo isto por seu lado revela que o próprio Gregório é incapaz de ordenar claramente os acontecimentos Austregésilo desaparece sem que se saiba o que lhe acon teceu introduzemse novas personagens de maneira surpreenden te e só ocasional e incompletamente ouvimos acêrca da relação que têm com os acontecimentos O discurso com o qual Gre gório tenta apaziguar os ânimos é por seu lado compreensível só com um certo talento combinatório pois quem é illi qui noxe subditur e quem o vir cuja alma não deve se perder Em con traste a história secundária em relação ao todo da viagem de Sicário a Poitiers e do seu ferimento por um servo cujo inte rOsse pura o todo do enrêdo consiste somente em que com base nela corre o boato falso da sua morte é narrada com riqueza de pormenores Durante o segundo processo judicial ou conci liatório 6 necessário novamente grande esforço para esclarecer ili que parle c do que dinheiro se tnitii em cada caso E em todo 7 MIMESIS o primeiro trecho pertencente ao sétimo livro aparecem cer tamente muitas subordinações amiúde muito canhestras não é possível deixar de reconhecer o esfôrço em construir os pe ríodos mas não há nenhuma conjunção claramente causal ou concessiva com exceção do quoniam da citação bíblica e do etsi cujo significado não me é de todo claro contudo parece ser mais condicional si do que causal ou concessivo O segundo trecho que pertence ao nono livro não dá exatamente a mesma impressão pôsto que se concentre ràpidamente numa única cena na qual interessa menos a ordem do que a evidencia ção Não obstante também aqui a oração expositiva Nant Si charius da qual já falamos é uma construção monstruosa Evidentemente um autor clássico teria ordenado os acon tecimentos de modo muito mais claro supondose que êle se tivesse dedicado a um tema semelhante Pois tão logo se põe a questão de como César ou Lívio ou Tácito ou até Amiano teriam narrado esta história fica imediatamente claro o seguinte êles não a teriam narrado de maneira alguma Para êles e para o seu público uma tal história não teria tido o mínimo interêsse Quem são Austregésilo Sicário e Cramnesindo Não são nem se quer príncipes de linhagem e as suas sangrentas rixas nos melho res tempos do Império nem sequer teriam dado motivo ao gover nador da província para fazer um relatório especial a Roma Esta consideração evidencia a estreiteza do horizonte de Gregório a sua pouca visão de um todo amplo e estruturado a sua pouca capacidade de ordenar o seu assunto segundo os pontos de vista outrora válidos O Império não mais existe Gregório não mais está num lugar para onde confluem tôdas as informações do orbis terrarum selecionadas e classificadas segundo a sua impor tância para a nação Êle não dispõe das fontes de informações com as quais se contava anteriormente nem da disposição segun do a qual eram redigidas tais informações O seu olhar apenas abrange a Gália grande parte da sua obra sem dúvida a mais valiosa consiste naquilo que êle próprio viveu na sua diocese ou naquilo de que tem notícia das regiões circunvizinhas O seu material limitase essencialmente àquilo que êie próprio viu Êle não possui um ponto de vista político no sentido antigo e se se quiser falar de algo semelhante na sua obra tal ponto de vista seria o dos interesses da Igreja Mas também isto êle só enxerga num campo limitado não é capaz de pensar no todo da Igreja de tal forma que isso surja da sua obra com intensidade tudo fica circunscrito localmente tanto material como mentalmente Em compensação e em contraste com os seus antigos predecessores que trabalhavam freqüentemente com informações mediatas ou racionalizadas Gregório viu êle próprio ou obteve de relatos orais imediatos a maior parte do que narra na sua história dos francos Isto vai ao encontro do seu instinto natural pois êle se interessa imediatamente pelo que os homens fazem Pstes tornamse interessantes para êle na medida em que se movimen tam ao seu redor sem considerar o político noi seu contexto mais amplo Também o político na medida cm que upurccc foi SICÁRIO E CRAMNESINDO 73 tratado por Gregório de forma pronunciadamente humana e ane dótica Assim a sua obra adquire um caráter muito mais próximo do das memórias pessoais do que a obra de qualquer historiador romano é claro que não será necessário expor aqui até que ponto é diferente o caso de César Um historiador antigo anterior não se teria pois ocupado desta história se ela fôsse necessária para a compreensão de algum contexto político maior têlaia liquidado em não mais de três linhas Quando uma série de atos violentos ganha signi ficação política pensese no caso de Jugurta e dos seus primos em Salústio o sistema dos motivos políticos é previamente exposto racionalizado minuciosamente e relevado retòricamente Os pormenores cênicos sem interêsse político são na melhor das hipóteses ocasionalmente aludidos como é o caso por exemplo com as palavras occultans sese tugurio muliebris ancillae quando do assassínio de Hiêmpsal Jugurta 12 Gregório porém em penhase às vêzes desajeitada e prolixamente amiúde porém com grande efeito em visualizar os acontecimentos o pres bítero do lugar enviou um môço de serviço para convidar algu mas pessoas a fim de que fôssem à sua casa para beberem Mas quando o môço chegou um daqueles que haviam sido convidados puxou a espada e não hesitou em ferir o môço que logo caiu e morreu Isto é ainda que de modo muito simples uma nar ração visualizada se assim não fôsse não mereceriam ser men cionados o fato do môço chegar nem o de cair morto O mesmo acontece com o ataque vingativo contra Austregésilo Êste certamente não é muito claro nas suas indicações topográficas sentese porém o esforço em visualizar todos os sucessivos es tágios do processo e o mesmo é válido para a altercação entre Sicário e o seu servo totalmente insignificante para o prossegui mento da ação O exemplo mais peculiar e concludente dêsse esforço de visualização está no trecho que narra o assassínio de Sicário Como os dois um dos quais matara os parentes pró ximos do outro bastante recentemente se amigaram tão cordial mente se tornaram tão inseparáveis que até comiam e dormiam juntos como mais uma vez Cramnesindo convidara Sicário para um banquete como nesta ocasião Sicário ébrio com as suas torpes palavras irrita o seu companheiro até o ponto de desejar se vingar de uma vez por tôdas e finalmente o assassinato em si tudo isto apresenta uma visualização e revela um empenho em imitar imediatamente o acontecido que a historiografia roma na nunca almejara também o estilo pomposo e pictórico de Amiano não é imitativo e que dificilmente poderão ser encon trados em tôda a literatura antiga de conteúdo sério Ainda mais tudo isto é psicològicamente grandioso uma cena altamente arre batadora entre dois homens e totalmente impregnada da estra nha atmosfera da época merovíngia a violência desencoberta o súbito que apaga tôda lembrança do passado e exclui qualquer previsão do lutiiro c por outro lado o mínimo efeito da moral t iiMu que apresentada da forma mais primitiva não chega a priietinr nus espíritos miiis lutitus tudo isto sobressai na 74 MIMESIS cena do modo mais agudo A suspeita fácil de que Cramnesindo preparou conscientemente uma armadilha para Sicário de que a amizade era somente fingida por êle para que o inimigo se sentisse seguro não é considerada por Gregório e certamente êle tem razão com isto pois conhecia as pessoas entre as quais vivia No restante da sua obra lemos freqüentemente acêrca de semelhantes atos de inconsciência Parece que realmente os dois se ligaram com uma amizade tão honesta e próxima que as suas consciências que viviam só o instante não suspeitavam que essa amizade era antinatural e perigosa Parece que então algumas palavras ébrias e torpes trouxeram repentinamente à tona a lem brança fizeram recrudescer o ódio esquecido e que portanto o assassínio não foi senão uma decisão súbita o que é tanto mais verossímil quanto pelo que se lê a seguir Cramnesindo fica em maus lençóis em conseqüência do seu ato pois Sicário tinha na rainha Fredegunda uma poderosa protetora se Cramnesindo se tivesse dado tempo para a reflexão certamente teria agido de maneira diferente Gregório conta tudo isto sem qualquer co mentário próprio de forma puramente dramática mudando o tempo verbal e caindo no presente logo que se aproxima do acontecimento decisivo Então êle passa ao discurso direto tanto para transmitir o pataratear de Sicário quanto para comunicar o processo interno de Cramnesindo Os dois discursos diretos são imitação imediata e pura do que realmente foi dito ou sentido sem qualquer reação retórica as palavras de Sicário soam como se pertencessem à fala vulgar em que foram pronunciadas se gundo contam dixisse fertur retraduzidas para o desajeitado latim de Gregório Em português poderiam ser reconstruídas aproximadamente assim Para dizer a verdade deverias serme muito grato mano por eu ter morto os teus parentes graças à indenização que embolsaste ficaste um homem rico e não terias agora de que viver se esta questão não te tivesse arranjado E a reação de Cramnesindo é exposta num monólogo interno im pressionante apesar da sua falta de jeito Eu não mais merece rei ser chamado de homem mas de covarde mulher se não vin gar a morte dos meus parentes e imediatamente apagamse as luzes Sicário é assassinado sem que se esqueçam os seus estertores e também aqui lêse cecidit et mortuus est Gregório não prescinde do corpo que cai Uma cena portanto que um historiador antigo nunca teria considerado digna de ser apresentada é narrada por Gregório da forma mais visualizadora possível e foi provavelmente a sua vi sualizabilidade que o induziu a apresentála Ao ler por exem plo a história da fuga do escravo Átalo 3 15 ela serviu de tema para o Weh dem jder lügt Coitado do que mente de Grillparzer topamos com a cena na qual os fugitivos se es condem dos seus perseguidores montados atrás de uma moita de amoras e justamente diante destas moitas os cavaleiros param dixitque unus dum equi urinam proiecerint Que autor imli go teria dado um tal pormenor Vêse como Gregório para j o m ferir fôlego às coisas inventa tais detalhes dc maneini sponlii SICÁRIO E CRAMNESINDO 75 nea tirandoos das necessidades da sua própria fôrça imagina tiva êe não estêve ali Êie se esforça em tornar visível palpável perceptível por todos os sentidos tudo o que narra Para isto serve também a mais peculiar de tôdas as características do seu estilo os muitos e curtos discursos diretos dos quais se serve sempre que se apresenta uma ocasião propícia Desta forma êle faz de tôda narração sempre que pode uma cena Em anteriores opor tunidades já falamos acêrca do papel do discurso direto na histo riografia antiga lá êle é utilizado quase que exclusivamente para grandes alocuções de caráter retórico O que nêles há de sentimental ou dramático não é senão retórica êles ordenam e dominam os fatos mas não os concretizam Gregório pelo con trário apresenta diálogos e outras breves manifestações dos ato res que irrompem num instante e convertem o instante em cena Não posso enumerar aqui a longa série de cenas nas quais Gregório faz falar um ou dois homens no seu latim acidentado e às vêzes embaraçoso nessa língua que gostaria tanto de ser literária mas que aparentemente deixa surgir uma e outra vez a fôrça concreta da fala vulgar Gostaria de mencionar contudo alguns exemplos um dêles já é dado pela cena de assassinato da qual acabamos de falar na história de Átalo a conversa entre o cozinheiro e o seu senhor rogo ut facias mihi prandium quod admirentur et dicant quia in domu regia melius non aspeximus III 15 Também ali a conversação noturna entre o cozinheiro e o genro na luta pelo bispado de Clermont as ameaças do presbítero Cato contra o arcediago Cautino Ego te removebo ego te humiliabo ego tibi multas neces impendi praecipiam IV 7 a discussão entre o rei Chilperigo e Gregório acêrca da Trin dade ira e sarcasmo do rei nas suas respostas por exemplo manifestum est mihi in hac causa Hilarium Eusebiumque validos inimicos habere ou sapientioribus a te hoc pandam qui mihi consentiant V 44 Fredegunda junto ao leito de enfêrmo do bispo Praetextatus com tôda a cena precedente e a sucessiva VIII 31 a resposta do bispo Bertramno de Bordeaux na ques tão da sua irmã requirat nunc eam revocetque quo voluerit me obvium non habebit IX 33 a violenta discussão entre a prin cesa Rigunda e sua mãe IX 34 Guntchram Boso e o bispo de Tréveris IX 10 e de maneira especialmente emocio nante o fim de Munderigo que acaba quando Munderigo apa rece no portão do seu castelo pela mão do traidor Aregiselo mo mento em que o instante de suspense antes do assassinato é salientado com grande fôrça e dramaticidade mediante algumas palavras em discurso direto Quid adspicitis tam intenti populi An numquid non vidistis prius Mundericum III 14 Em tôdas estas conversações e exclamações aparece a dra matização mais concreta possível de processos curtos espontâ neos que se dão entre sêres humanos cara a cara fala contra fula os atôrcs se defrontam palpitantes um processo que dificil mente pode ser encontrado na historiografia antiga até o diálogo do teatro clássico é construído de maneira mais forte mente racional c retórica Mus o diálogo espontâneo c curto 76 MIMESIS encontrase certamente nas escrituras bíblicas comparese o que dissemos antes a respeito Sem dúvida o ritmo e a atmos fera da Bíblia sobretudo dos Evangelhos estão sempre presentes para Gregório e são codeterminantes do seu estilo E elas desa tam fôrças que de qualquer modo estão latentes em Gregório e na sua época Pois em tôda parte podese sentir inconfundi velmente a presença da linguagem vulgar falada que apesar de não poder ainda nem longinquamente ser escrita ressoa con tudo continuamente na consciência de Gregório O latim escri to de Gregório não está somente degenerado gramatical e sintàti amente É também empregado na sua obra com uma finalidade para a qual originalmente ou pelo menos nos seus tempos de esplendor parecia pouco adequado isto é para imitar realidade concreta Pois o latim çscrito do apogeu sobretudo a prosa é uma linguagem quase excessivamente ordenadora na qual o que as situações fatuais têm de material e de sensível mais é visto e ordenado de cima do que tornado inteligível na sua sen sibilidade material Ao lado da tradição retórica também o espírito jurídicoadministrativo da latinidade tem aqui sua par te na prosa romana do apogeu mesmo nas cartas de Cícero e nelas até de maneira muito marcante leiase por exemplo a famosa carta de justificação a P Lentulo Spinter ad fam I 9 especialmente o 21 predomina a tendência a relatar o real o fatual de forma simples e até se possível de insinuálo com palavras muito gerais sem ir além da alusão mantendo distân cia pondo em contraste tôda a fôrça e a agudeza da lingua gem nos elementos sintáticos e de ligação de tal forma que o estilo adquire um caráter por assim dizer estratégico com arti culações extremamente claras enquanto o material que se encon tra entre elas apesar de predominar não chega a ser propria mente descoberto de modo sensível As ferramentas de ligação sintática atingem dêste modo extremo rigor extrema exatidão e multiplicidade Não se trata com isto apenas de conjunções e de outros meios de subordinação mas também do uso dos tempos verbais a colocação das palavras a antítese e muitos outros elementos retóricos devem servir para o mesmo fim o da ordenação exata rigorosa porém elástica e rica em nuanças Esta riqueza de articulações e de instrumentos de ordenação tormi possível uma multiplicidade muito grande de representações sub jetivas uma surpreendente maleabilidade do raciocínio acêrca dos fatos e uma liberdade de subtrair algo dos fatos e de insinuar outras coisas duvidosas sem exprimilas com responsabilidade liberdade que durante longo tempo não tornou a ser alcan çada nesta medida A linguagem de Gregório pelo contrário não é capaz de ordenar os fatos senão de maneira muito incom pleta Êle não é capaz de apresentar de forma nítida qualquer concatenação de acontecimentos que não seja muito simples Sua linguagem ordena mal ou não ordena absolutamente Mas ela vive no concreto dos acontecimentos ela fala junto e dentro dos sêres humanos que nela se movimentam Ainda mais en quanto o juízo que ocasionalmente Gregório exprime é quase SICÁRIO E CRAMN ESINDO 77 sempre apenas sumário e carente de fineza por exemplo em IX 19 perto do fim acêrca de Sicário essa linguagem pode ex primir da maneira mais forte possível o desejo a dor o sarcasmo e a ira tôdas as outras paixões que ainda rugem dentro daqueles sêres Quão mais imediata é esta sua convivência sensível do que a de um autor antigo pode ser apreendido através de uma comparação com o mais realista dêsses autores Petrônio Êste imita a linguagem dos seus libertos enriquecidos deixa que falem o seu jargão degenerado e repulsivo imitando com consciência e exatidão bem maiores do que as de Gregório mas fica claro que êle manipula êste estilo como um artifício e que êle escre veria um relatório ou uma obra histórica de forma totalmente diferente É um senhor grande e culto que apresenta uma farsa perante seus semelhantes com todo refinamento O que faz é arte cômica consciente e êle é capaz de escrever de muitas for mas diferentes se quiser Gregório porém não dispõe de outra coisa senão êste seu latim gramaticalmente atrapalhado sintàti camente pobre e desta forma tornado quase escolar não tem registros que possa afinar e também não tem um público que possa atingir com um tempêro fora do comum com uma nova variante de estilo Mas tem os acontecimentos concretos que ocorrem ao seu redor que se desenvolvem diante dêle ou que lhe são relatados quentinhos do forno e isto numa linguagem coloquial que ainda que dela não possamos ter uma idéia per feita ressoa constantemente nos seus ouvidos como é evidente servindo de matériaprima do seu relato enquanto êle se esforça em retraduzila para o seu latim semiliterário O que narra é o seu próprio o seu único mundo não tem outro e vive nêle Também a estrutura dos acontecimentos que tem a relatar vem ao encontro do seu estilo São todos comparados com aquilo que os historiadores romanos anteriores tinham a relatar acontecimentos locais e se desenrolam dentro de uma camada de pessoas cujos impulsos passionais e sensíveis são muito fortes e cujas considerações racionais são muito cruas e pouco cultivadas E certo que na obra de Gregório só chegamos a conhecer a eoncatenação dos processos políticos de forma muito indistinta mas é como se nós cheirássemos o ar dos primeiros séculos do domínio franco na Gália Reina um terrível embrutecimento não só irrompe a violência onde quer que seja em cada um dos dis tritos de maneira que os governos não têm a fôrça de empre gála com exclusividade mas também a astúcia e a política perderam tôda forma tornaramse totalmente primitivas e gros seiras O encobertamento e a perífrase no comércio entre os sê res humanos tal como pertencem a tôda cultura elevada isto é à cortesia o disfarce retórico os processos indiretos as regras paru o decôro externo e as formalidades jurídicas mesmo na prossecução de um roubo político ou comercial e assim por diante tudo islo está enfezado ou quando ainda existe em forma ile ruínas coiivcrtuusc em caricatura grosseira Ao mesmo tem po porém os desejos são despidos de tôda forma de véu apare cem nus e imediatamente pulpftvcis lsta vida ertm tornase 78 MIMESIS material e se oferece àquele que quiser representála de forma desordenada dificilmente ordenável mas tangível saborosa pal pitante Gregório é um bispo isto é um daqueles cuja tarefa era a construção da civilidade cristã uma atividade de cuidados emi nentemente práticos na qual os deveres paroquiais se amalgama vam a cada instante com questões políticas e econômicas No período precedente o maior pêso da atividade eclesiástica recaíra ainda sôbre a fixação do dogma com o que o espírito e a sa gacidade tinham se desenvolvido de maneira amiúde extraordi nária No século VI pelo menos no Ocidente a atividade ecle siástica se dirige totalmente para a prática e a organização Des ta mudança Gregório dá um exemplo vivo Êle não reivindica qualquer formação retórica não se interessa pelas controvérsias do dogma Êste existe para êle da forma que os concílios c determinaram Mas há lugar no seu coração para tudo o que puder impressionar o povo lendas de santos relíquias e mila gres para a fantasia proteção contra a violência e a opressão ensinamentos morais simples e temperados com a promessa do prêmio futuro Os homens entre os quais vivia nada entendiam do dogma e tinham apenas uma imagem muita crua dos misté rios da fé Tinham desejos e interêsses materiais mitigados pelo mêdo mútuo e pelo mêdo das fôrças sobrenaturais Gregório parece ter sido o homem mais apropriado para estas circuns tâncias Tinha pouco mais de trinta anos de idade quando foi sagrado bispo de Tours Se fôr possível julgar o homem pelo escritor deve ter tido coragem e temperamento com certczu não era fácil que alguma coisa que visse o fizesse perder as estribeiras Êle é um dos primeiros exemplos daquele senso du realidade prático e ativo na Igreja que fêz dos ensinamentos cristãos algo que funcionasse dentro da vida terrena e que pode ser admirado reiteradamente na igreja católica Nada do que é humano é estranho a Gregório ilumina qualquer profun deza chama as coisas pelo seu nome mas conserva não obs tante a sua dignidade e certa unção no seu tom não desdenha também de forma alguma o emprêgo de meios seculares ao lado dos clericais Sabe que a Igreja deve ser rica e poderosa se quiser atingir alvos morais duráveis neste mundo e que se se quiser ganhar o coração de alguém de modo durável é neces sário também atálo mediante interêsses pTáticos Além disto a Igreja foi impelida para o prático e efetivo de muitas maneiras pelo sistema das esmolas pela arbitragem de disputas pela administração dos seus bens imobiliários que cresciam podero samente Num sentido mais elevado menos prático o cristia nismo já fôra realista desde o princípio Já falamos antes em como a vida de Jesus entre o povaréu e a sua paixão simultaneamente sublime e ignominiosa estremeceu a antiga imagem do trágico sublime Mas o realismo eclesiástico tal como se apresenta com Gregório de Tours talvez pela primeira vez de forma literária está além do mais em meio ao prático ativo na prática ali mentado pela experiência quotidiana e robusto Pelo seu pró prio ofício Gregório tem a ver com tôdas as pessoas e circuns SICÁRIO E CRAMNESINDO 79 tâncias que relata Pelo seu próprio ofício interessase pela in dividualidade do moral é o campc presente da sua atividade Da sua atividade nasce a sua observação e a sua vontade de anotála e o seu talento certamente muito pessoal para o con creto nasceu de forma muito natural também do seu ofício Muito evidentemente não se pode falar no seu caso da divisãc estética entre os domínios do sublimetrágico e do quotidiano realista Quem tem a lidar na prática como eclesiástico com os homens não pode separar êstes campos Os elementos huma nos trágicos vão ao seu encontro cada dia no material misturado e não escolhido da vida É claro que o talento e o temperamento do bispo Gregório vão muito além do que se relaciona mera mente com os deveres pastorais e com o eclesiàsticamente prá tico De forma um pouco inconsciente êle se torna um escritor modelador que tange a própria vida Qualquer clérigo não po deria ter chegado a tanto porém naquele tempo somente um clérigo poderia chegar a isso Nisto a cristianização se diferencia da romanização original no fato de que os seus agentes não se limitam a ordenar a administração de cima deixando o restante ao seu próprio desenvolvimento mas pelo contrário estão obri gados a se preocupar pela individualidade dos acontecimentos quotidianos A cristianização dirigese imediatamente para o in divíduo e para o individual Parece aliás que Gregório era consciente do significado e até da singularidade da sua profissão de escritor Pois não obstante se desculpe muitas vêzes do seu atrevimento de escrever homem de formação literária insuficiente que é esta é aliás uma fórmula retórica tradicional acres centa uma vez IX 31 o pedido solenemente conjurante de que nenhum dos pósteros mude nada do seu texto ut nunquam libros hos abolerí faciatis aut rescribi quasi quaedam eligentes et quae dam praetermittentes sed ita omnia vobiscum integra inlibataque permaneant sicut a nobis relicta sunt tudo fica ainda mais nítido nas linhas seguintes que fazem alusão à retórica escolás tica e que parecem prever por assim dizer a sua posterior evo lução no latim medieval Se tu sacerdote de Deus sejas quem fores assim se dirige aos pósteros fores ainda tão culto e aqui êle enumera todos os conhecimentos científicos e literários que o meu estilo ainda te pareça rústico ut tibi stilus noster sit rusticus mesmo então eu te suplico não destruas o que eu escrevi Hoje em dia quando Gregório parece a muitos mesmo como estilista mais valioso do que grande parte dos mais elegantes humanistas uma tal apóstrofe não é lida sem emo ção Em outra ocasião êle faz com que em sonhos sua mãe que o admoesta a escrever responda aos seus escrúpulos no sentido de que lhe falta a cultura literária da seguinte ma neira Et nescis qiiiu nobiscum propter intelligentiam populo rum mugis sicut tu loqui potens es habetur praeclarum E por isto dedicasc valorosamente ao seu trabalho para saciar a sêde do povo scd quid timeo rusticitatem meam cum dominus Re demptor ri deus noster iul distruendum mundanac sapientiae va niltilem mm orulores sed piscutores nec philosophos sed rústicos 80 MIMESIS praelegit Esta passagem tôda com a aparição da mãe em sonhos não é propriamente da História dos Francos mas do prefácio à vida de São Martinho e se refere de forma imediata aos atos miraculosos dêste santo Pode porém ser referida sem escrúpulos a tudo o que Gregório escreveu escreve sempre para o entendimento geral imediato material e concreto tal como corresponde ao seu talento e ao seu temperamento ao seu ofício sicut tu loqui potens es O seu estilo é totalmente diferente daquele dos autores da Antiguidade tardia mesmo dos cristãos ocorreu uma trans formação integral desde a época de Amiano e de Agostinho É claro que se trata como tem sido constatado repetidas vêzes de uma degeneração de uma decadência da formação e da ordem lingüística mas contudo não é somente isto É um nôvo des pertar do imediatamente sensível Tanto o estilo quanto a conformação do conteúdo tinham se tornado convulsivos na tardia antigüidade O excesso de meios retóricos e a tenebrosi dade da atmosfera que tinha se espraiado sôbre os acontecimen tos conferem aos autores tardios desde Tácito e Sêneca até Amiano algo de penoso violento extenuado com Gregório a convulsão fica liberada Êle tem muita coisa abominável para contar traição violências e assassínios são ocorrências totalmen te quotidianas mas a vivacidade simples e prática com a qual as narra não permite que surja a pesada letargia que encontra mos nos autores romanos tardios à qual também os autores cristãos dificilmente podem escapar Quando Gregório escreve a catástrofe já aconteceu o Império ruiu a organização desmo ronou a antiga formação está destruída mas a tensão está desfeita e o seu espírito se defronta com a realidade de maneira mais livre mais imediata não mais aflita por espécie alguma de exigências irrealizáveis disposto a agarrar essa realidade de maneira viva e a agir em seu seio de forma prática Deitese mais um olhar sôbre a frase com a qual Amiano começa a nar ração de que se falou no capítulo anterior Dum has exitiorum communium clades etc Uma oração como esta domina pano râmicamente uma situação real composta de muitas partes e dá além disso uma ligação exata entre o anterior e o seguinte Mas como é penosa como é convulsiva esta oração Não é um verdadeiro recreio ler após isto o comêço de Gregório Gravia tunc inter Toronicos bella civilia surrexerunt ê evidente que o tunc não é senão uma ligação frouxa e carente de nitidez e a expressão tôda é crua pois bella civilia certamen te não é a palavra mais apropriada para as desordenadas pan cadarias para os latrocínios e assassínios de que se trata Mas as coisas se apresentam a Gregório de forma imediata êle não mais precisa enfiálas à fôrça na blindagem do estilo elevado e elas próprias crescem e vicejam livremente não mais amarra das pelo aparelho da reforma dioclecianaconstantina que foi somente uma coação e não mais uma revitalização O rcalma terial que irrompe em Amiano apenas espectral c metafòricn mente agravado pelos grilhões do domínio hierárquico forçuilo SICÁRIO E CRAMNESINDO 81 e da linguagem periódica pode desdobrarse livremente com Gregório Um resto de coação persiste evidentemente na sua ambição de apesar de tudo ainda querer escrever um latim literário A língua vulgar ainda não é um instrumento utilizável literàriamente ela não basta evidentemente nem para as mais modestas exigências de expressão literária Mas já existe como língua falada como língua que apreende o real quotidiano e como tal é perceptível em Gregório O seu estilo mostranos um primeiro e temporão traço do despertar de uma nova maneira de apreensão das coisas que acontecem de forma material e sensível e êste traço é tanto mais valioso para nós quantosão poucos os textos que ficaram conservados da sua época e até de tôda a segunda metade do primeiro milênio utilizáveis para a nossa pesquisa A Nomeação de Rolando como Chefe da Retaguarda do Exército Franco 5 LVIII 737 Tresvait la noit e apert la clere albe Par mi cel host sonent menut cil graisle Li emperere mult fierement chevalchet 740 Seignurs barons dist li emperere Caries Veez les porz e les destreiz passages Kar me jugez ki ert en la rereguarde Guenes respunt Rollant cist miens fillastre Navez baron de si grant vasselage 745 Quant lor li reis fierement le reguardet Si li ad dit Vos estes vifs diables El cors vos est entree mortel rage E ki serat devant mei en lansguarde Guenes respunt Oger de Denemarche 750 N avez barun ki mielz de lui la facet LIX Li quens Rollant quant il soït juger Dune ad parled a lei de chevaler Sire parastre mult vos dei aveir cher La rereguarde avez sur mei jugiet 755 Ni perdrai Caries li reis ki France tient Men escientre palefreid ne destrer Ne mul ne mule que deiet chevalchcr Ne ni perdrat ne runcin ne sumer Que as espees ne seit einz eslegict 760 Guenes respunt Veir dite jol sai bien A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 83 LX Quant ot Rollant quil ert en la rereguarde Ireement parlai a sun parastre Ahi culvert malvais hom de put aire Quias le guant me caïst en la place 765 Cume fist a tei le bastun devant Carie LXI Dreiz emperere dist Rollant le barun Dunez mei larc que vos tenez el poign Men escientre nel me reproverunt Que il me chedet cum fist a Guenelun 770 De sa main destre quant reçut le bastun Li empereres en tint sun chef enbrunc Si duist sa barbe e detoerst sun gernun Ne poet muer que des oilz ne plurt LXII Anpres iço i est Neimes venud 775 Meillor vassal nout en la curt de lui E dist al rei Ben lavez entendut Li quens Rollant il est mult irascut La rereguarde est jugee sur lui N avez baron ki jamais la remut 780 Dunez li larc que vos avez tendut Si li truvez ki très bien li aiut Li reis li dunet e Rollant la reçut A noite passa a clara alba aparece O imperador cavalga mui orgulhosamente Senhores barões diz o imperador Carlos vêde os desfiladeiros e as estreitas passa gens escolheime quem ficará na retaguarda Ganelão responde Rolando meu enteado não tendes barão de igual valentia Quan do o rei ouve isto olhao ameaçadoramente e lhe diz Sois o pró prio diabo Ira mortal entrou em vosso coração E quem estará diante de mim na vanguarda Ganelão responde Ogier da Di namarca Não tendes barão que o faça melhor do que êle O conde Rolando quando se ouviu eleger então falou como deve fazêlo um cavaleiro Senhor padrasto devovos profundo agradecimento elegestesme para a retaguarda Carlos o rei que a França tem não perderá nada com isto por quanto a mim toque nem palafrém nem cavalo adestrado nem mulo ou mula que deva cavalgar nem rocim nem azêmula sem que as espadas lutem por êles Ganelão responde Dizeis a verdade eu o sei muito bem Quando Rolando ouve que vai na retaguarda falou irado para o seu padrasto Ai patife mau homem bastardo pensaste com certeza que a luva me cairia ao chão como a ti o bastão quando estiveste diante de Carlos Justo imperador disse Rolando o barão daime o arco que tendes em punho Acho que não me poderão reprovar que êle caiu de mim como caiu da destra de Ganelão quando recebeu o bastão O imperador tinhii a nua cabeça abaixada acariciou a sua barba e torcia o hcii bigode éle nlío pAdc evitar que os seus olhos chorassem 84 MIMESIS Após isto veio Naimes Não havia na côrte melhor vassalo do que êle E disse ao rei Bem ouvistes o conde Rolando está muito irado a retaguarda lhe foi designada nenhum barão poderá jamais substituílo Dailhe o arco que tendestes e encontrai quem muito bem o ajude O rei lho deu e Rolando o recebeu Os versos transcritos são do manuscrito de Oxford da Canção de Rolando Relatam a escolha de Rolando para uma tarefa perigosa isto é a sua nomeação como comandante da retaguar da do exército franco que após a campanha espanhola retira se através dos Pireneus A escolha ocorre por proposição do padrasto de Rolando Ganelão Corresponde no seu decurso a um acontecimento anterior a escolha de Ganelão como em baixador do rei Carlos junto ao rei dos sarracenos Marsílio segundo uma proposição de Rolando verso 274 e segs Ambos os processos baseiamse numa antiga inimizade que resulta de disputas por motivos de posses v 3758 entre os dois barões cada um procura a ruína do outro A embaixada junto a Mar sílio era como se sabia por experiências anteriores extrema mente perigosa O seu desenvolvimento mostra que também te ria custado a vida a Ganelão se êle não tivesse oferecido ao rei dos sarracenos um trato traidor que apaziguaria ao mesmo tempo o seu próprio ódio e sua sêde de vingança êle promete ao rei entregarlhe a retaguarda do exército franco com Rolan do e seus amigos mais chegados os doze pares os quais êle apresenta com razão como o partido beligerante na côrte Ora êle voltou com as insinceras ofertas de paz e de submissão de Marsílio ao acampamento franco O retorno do exército para França começa e Ganelão ainda precisa para tornar realidade o plano combinado com Marsílio fazer o necessário para que Rolando vá à retaguarda Isto acontece nos versos acima trans critos O acontecimento é narrado em cinco estrofes laisses A primeira contém a proposta de Ganelão e a imediata reação de Carlos a segunda terceira e quarta estrofes ocupamse da atitude de Rolando diante da proposta a quinta traz a interven ção de Naimes e a definitiva nomeação de Rolando pelo rei A primeira estrofe mostra antes de mais nada uma introdução de três versos três orações justapostas paratàticamente que des crevem a partida matutina do exército antes falouse da última noite e de um sonho do imperador Logo seguese a cena da proposta concebida em forma de dois intercâmbios de discurso e réplica a intimação à escolha a resposta com a proposta resposta interrogativa réplica Os dois pares discursivos cstüo emoldurados da mais exterior e estereotipada simplicidade disl respunt dit respunt Após o primeiro par há interrupção oca sionada pelo verso 745 o único que contém uma curta hipotuxe temporal todo o mais é dado em orações principais que como blocos estão justapostos e contrapostos e cuja indepcndênch paratática é salientada ainda pelo fato de ser nomeado ciidu vez o sujeito falante de modo cspcciulmcnlc claro no verão A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 85 740 li emperere Caries não obstante êste seja também sujeito da oração anterior Observemos agora os discursos isolados A intimação de Carlos contém um curso causal de idéias pois que devemos passar por lugares difíceis escolhei alguém que mas em correspondência com a atitude altiva do imperador mult fierement esta intimação é paratàticamente feita com duas orações principais uma oração demonstrativa eis o terreno di fícil e uma imperativa Como resposta segue à guisa de luva de desafio a proposta de Ganelão novamente paratática em três membros primeiro o nome depois a menção plena de vingança triunfante do parentesco cist miens fillastre lembran do o correspondente mis parastre v 277 e 287 ço set hom ben que jo sui tis parastres finalmente a motivação laudatória certamente formal e irônica e iradamente entoada A isto se guese a curta pausa dramática com o olhar obscuro de Carlos A sua réplica também ordenada paratàticamente começa com palavras veementes que mostram que êle adivinha as intenções de Ganelão mas também que êle como mais tarde Naimes o corrobora não conta com nenhum meio eficaz de rejeitar a proposta Talvez a frase com que encerra a sua fala possa ser interpretada como uma espécie de tentativa de contraataque preciso de Rolando para a vanguarda Se esta interpretação fôr correta é certo que Ganelão rechaça imediatamente o contra ataque e a estrutura do seu segundo discurso idêntica à do primeiro salienta o incisivo de sua aparição Evidentemente en contrase numa posição muito forte e está bem seguro do seu triunfo Nesta laisse também sintàticamente as coisas se dão com dureza Há uma certa contradição entre a agudeza e certeza da expressão e o fato de que na cena muita coisa não está bem clara É dificilmente admissível o fato de que o imperador se sinta obrigado a aceitar a proposta de um só dos seus barões De fato em outros casos semelhantes por exemplo antes na escolha de Ganelão v 2789 e 3212 cf também v 243 é mencionada expressamente a aquiescência do exército Podese supor que também aqui ela se dê sem que seja dito ou que o imperador sabe que ela seria dada sem dúvida mas mesmo sen do assim se portanto a nossa versão encobre algo da tradi ção isto é que Rolando também tem inimigos entre os francos que lhe desejam uma tarefa perigosa e um afastamento do sé quito real talvez temendo que pela sua influência ainda possa ser anulada a decisão de suspender a guerra mesmo assim é enigmático o fato de o rei se colocar pela sua intimação nu ma situação da qual não acha saída sem antes terse preocupado em encontrar uma solução que lhe conviesse Deveria conhecer as tendências dos seus seguidores e além do mais fôra advertido por um sonho Isto nos leva a um segundo enigm íTaté que ponto adivinha os planos de Ganelão até que ponto sabe com antecedência o que acontecerá Não é possível admitir que este Jii totalmente u par do plano de Ganelão mas se não o está cntSo sua rcaçfto diante ilu proposta vos estes vifs diables etc 86 MIMESIS parece exagerada A atitude tôda do imperador carece de nitidez e com tôda a decisão autoritária que às vêzes demonstra está como que letàrgicamente paralisado A posição importante simbólica semelhante à de um monarca divino que o faz apa recer como cabeça de tôda a cristandade e como modêlo de per feição cavaleiresca está em estranho contraste com a sua impotência Ainda que hesite e até chore ainda que pressinta a desgraça futura em um grau não exatamente determinável não pode evitála Depende dos seus barões e entre êles não se encontra nenhum que possa mudar em algo a situação ou que o queira isto depende da interpretação do verso 779 da mes ma maneira que mais tarde durante o processo contra Ganelão deveria deixar inulta a morte do seu sobrinho Rolando se não se encontrasse finalmente um único cavaleiro disposto a tomar o seu partido Podese arrolar algumas explicações para tudo isto Assim por exemplo a fraca posição do poder central na estrutura social feudal da forma como ela se desenvolveu ampla mente não tanto ainda no tempo de Carlomagno quanto mais tarde no tempo da composição da Canção de Rolando Junto a isto algumas idéias semireligiosas e semilendárias tais como as que também se encontram para algumas figuras reais do romance cortês idéias que unem à figura do grande imperador certos tra ços sofridos martirizados letàrgicamente paralisados Com cer teza também têm o seu efeito os paralelos cristãos 12 apóstolos Judas pressentimento e nãoimpedimento O poema em si não dá porém qualquer análise ou expli cação para o enigmático dêste e de outros acontecimentos De vemos aproximálas nós mesmos e elas têm um efeito antes daninho para a recepção estética O poeta nada explica e contudo o que realmente acontece é pronunciado com um rigor paratático que exprime que tudo devia acontecer como aconte ce nem poderia ser de outro modo e não precisa de membros de ligação com fins explicativos Isto referese como é sabido não somente aos acontecimentos mas também às opiniões c princípios sôbre as quais repousa a ação das personagens O cavalheiresco desejo de lutar o conceito de honra a mútua fide lidade entre companheiros de armas a comunidade de castas o dogma cristão a divisão do justo e do injusto entre fiéis c infiéis tudo isto são certamente os principais dêstes princípios São poucos Apresentam um quadro estreito no qual aparece sò mente uma camada social e mesmo esta de maneira muito sim plificada Tais princípios são colocados sem motivação como pura tese assim é Não é necessária justificação alguma expla nação de qualquer espécie quando é pronunciada por exemplo a frase paien unt tort et chrestiens unt dreit v 1015 embora a vida dos cavaleiros pagãos é claro mal se diferencie da dos cristãos com exceção da diferença entre os nomes divinos ainda que amiúde e às vêzes de maneira fantástica e simbólica êles sejam apresentados como sêres degradados e intimidatórios tum bém são cavaleiros e a estrutura social parece ser a mesma paru êles e para os cristãos Pste paralelismo vai até os pormenores A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 7 e contribui para evidenciar ainda mais a estreiteza do espaço vital apresentado O cristianismo dos cristãos é puramente dado por assentado esgotase na confissão de fé e nas fórmulas li túrgicas a ela correspondentes Além disto está colocado de forma extrema a serviço da vontade de luta cavalheiresca e da expansão política Os francos que rezam e recebem a absol vição antes da luta terão como penitência a obrigação de bater se com violência Quem cair numa tal luta é um mártir e íem direito certo a um lugar no paraíso As conversões pela fôrça durante as quais os obstinados são mortos são uma obra que agrada a Deus Êste modo de pensar que como cristão é sur preendente e que como cristão antes não existia não tem aqui na Canção de Rolando como tinha na Espanha uma motivação baseada numa determinada situação histórica Em geral não é dada motivação alguma mas as coisas são como são uma estru tura paratática feita de colocações muito simples porém amiú de contraditórias em si mesmas e extremamente estreitas Passemos agora à segunda parte do acontecimento à rea ção de Rolando Dela se ocupam três laisses Nas duas pri meiras fala com Ganelão na terceira com o imperador As suas falas contêm três motivos de diferente intensidade e en trelaçados de maneiras diferentes Uma autoconsciência mons truosamente imponente e selvagem e logo ódio contra Ganelão e finalmente com muito maior debilidade dedicação e oficio sidade perante o imperador Os dois primeiros motivos entrela çamse de tal maneira que antes de mais nada aparece o primei ro com fôrça mas já está embebido do segundo e do terceiro mo tivo Rolando ama o perigo e o procura não é possível atemorizá lo Além disto dá muito valor ao seu prestígio não quer que Ganelão goze nem de um instante de triunfo e por isto faz ques tão antes de mais nada de mostrar perante todos e com tôda ênfase que de maneira alguma perderá o controle como Gane lão o fizera numa ocasião semelhante v 332 ss Daí o agra decimento a Ganelão o qual vista a inimizade entre os dois conhecida de todos os circunstantes só pode ter efeito irônico e zombeteiro Daí também a enumeração dos diferentes ani mais dc sela e de carga nem um só dos quais quer render sem luta uma imposição poderosa demonstrativa e também exito sa da sua valentia autoconsciente que também obriga Ganelão ao reconhecimento reconhecimento que evidentemente também é uma cilada pois Ganelão justamente conta com a confiança temerária de Rolando para acabar com êle Mas o triunfo mo mentâneo de Ganelão é destruído de qualquer forma pois de pois que Rolando fêz conhecer a sua posição a contento pode deixar livre curso ao seu ódio cheio de desprêzo e isto adota cntiiu a forma de um triunfo sardónico pelo seu lado vês cana Ihu eu não me comportei como tu outrora e ainda quando está diante de Carlos para receber o arco misturase na expres nAu da suu prontidão que está composta de tal forma que re vela impaciência mais uma vez a comparação sardônicamente triunfal entiv n sua atitude e a de Ganelão Ksta cena tôda 88 MIMESIS a demonstração autoconsciente de Rolando seguida da longa repetida e triunfal irrupção de sarcasmo e de ódio está repar tida por sôbre três laisses e como as duas primeiras se dirigem a Ganelão com fórmulas introdutórias muito semelhantes di ferenciadas somente pelas determinações adverbiais uma vez a lei de chevaler a outra vez ireement como outrossim após uma observação superficial e puramente racional as duas não concordam no seu conteúdo sendo que a primeira parece ser amistosa e a segunda irada alguns editores e críticos duvida ram da autenticidade do texto e riscaram uma das duas estrofes geralmente a segunda A incorreção desta opinião já foi demons trada por Bédier no seu comentário Paris Piazza 1927 pág 151 e esta é também tal como surge da análise que acabo de fazer a minha opinião a segunda laisse tem a primeira como premissa a atitude mostrada na primeira laisse que está em profundo contraste com a atitude de Ganelão naquele aconteci mento anterior dá o motivo para o triunfo odioso da segunda Gostaria de apoiar ainda esta conclusão numa outra conside ração de caráter estilístico A retomada repetida da mesma situação em laisses sucessivas que aqui encontramos de tal for ma que à primeira vista seja possível duvidar se se trata dc um nôvo acontecimento ou de uma representação completiva da primeira é muito freqüente na Canção de Rolando e também nas outras Chansons de geste Disto resulta que também em outras passagens haja como nesta que aqui comentamos sur preendentes mudanças nas retomadas Nas laisses 40 41 e 42 Ganelão dá à pergunta três vêzes repetida de forma quase igual pelo rei Marsílio quando Carlos que já é tão velho cansarscá finalmente da guerra três respostas a primeira das quais não deixa pressentir as outras na primeira êle só fala em louvor dc Carlos e só na segunda e terceira fala de Rolando e do seus companheiros como beligerantes com o que começa u viragem para a traição e somente na estrofe seguinte na 43u Ganelão fala de modo totalmente claro com o que deixa tam bém de lado o tom reverente com que se referira a Carlos Já antes a atitude de Ganelão diante de Marsílio não é compreen sível para uma análise puramente racional Comportase pri meiramente de forma tão inamistosa e arrogante como se qui sesse irritar o rei à fôrça e como se nem pensasse em tratativas e traição Em outros casos laisses 5 e 6 79 a 81 83 a 86 129 e 130 133 a 135 137 a 139 146 e 147 etc não se pode falur propriamente em contradição entre os conteúdos das diferente estrofes mas também aqui é freqüente a partida de um mesmo ponto em várias direções ou o avanço até diferentes pontos Quando na estrofe 80 Oliveiros subiu uma elevação e viu chegar o exército sarraceno chama Rolando e fala com êle sôbre u traição de Ganelão na estrofe 81 que também começa com ii subida da elevação não se fala em Rolando mas Oliveiros desec o morro o mais depressa possível para avisar os francos Nas laisses 83 e 85 nas quais Oliveiros pede três vêzes i Roltuulo para assoprar o côrno e obtém três vêzes a mesma rcspoxtii ne gativa a intenção da repetição reside numa intcnKiricuçilo tio A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 89 processo Em geral na Canção de Rolando tanto o urgente intensivo quanto o múltiplosimultâneo nos acontecimentos é representado pela repetição e adição de muitos acontecimentos isolados amiúde artisticamente variadas Isto vale também para as séries de cavaleiros e de lutas que aparecem As laisses 129 a 131 nas quais Rolando propõe por sua vez assoprar o côrno o que é preparado em 128 e exprime de maneira sobremaneira artística o arrependido embaraço de Rolando correspondem à cena anterior só que os papéis estão trocados agora é Oliveiros quem responde negativamente três vêzes Das suas três respostas que estão estruturadas com grande perspicácia psicológica a primeira contém uma repetição teimosa e irônica dos argumen tos contrários empregados por Rolando anteriormente repenti namente torcidos no sentido de uma espontânea irrupção de solidariedade ou de surprêsa à vista dos braços de Rolando cobertos de sangue a segunda começa ainda com ironia e acaba com um estouro de ira sòmente a terceira formula as suas censuras e a sua dor de forma ordenada Nas três laisses do toque de côrno 133 a 135 onde se trata presumivelmente de um toque repetido três vêzes o efeito do côrno sôbre os francos é desenvolvido cada vez de forma diferente Os três efeitos tam bém dão contudo no seu conjunto uma evolução isto é da primeira estupefação até a compreensão total da situação o que Ganelão tenta impedir mas esta evolução não é uniformemente progressiva senão que avança aos trancos com embates para a frente e para trás como o ato da procriação ou do parto A repe tição variante do mesmo tema é uma técnica que provém da poética médiolatina a qual por sua vez a toma da velha retórica Recentemente Faral e E R Curtius assinalaram êste fato Mas com isto a forma e o efeito estilístico das regressões na Canção de Rolando não se explicam nem sequer se descrevem Evidentemente tanto as séries de acon tecimentos semelhantes como as retomadas são fenômenos cujo caráter se aproxima do da parataxe nas formas das orações Quer em lugar de uma representação de massas apareça a enu meração sempre recomeçada de cenas isoladas de conforma ção e desenvolvimento semelhantes quer em lugar de uma ação intensiva apareça a múltipla repetição da mesma ação come çando sempre no ponto de partida quer enfim em lugar de um acontecimento que se desenvolva em vários membros apareçam repetidas voltas ao ponto de partida com em cada caso a adição do desenvolvimento de diferentes membros ou moti vos sempre se trata de evitar a recopilação racionalmente articulada e de preferir um processo estacante justapositor que avança e retrocede aos empurrões com o que se dissipam as rela ções causais modais e até temporais Já na primeira laisse do poema o último verso nes poet guarder que mais ne li ateignet adiantasc muito no tempo Uma e outra vez tomase impulso cada retomada isolada é fechada em si e independente a seguinte colocHKc ao seu lado e freqüentemente fica em suspenso a li gação entre ambas Também esta é uma forma do épicoretar 90 MIMESIS dador no sentido de Goethe e Schiller mas não mediante inser ções e episódios senão pelo avançar e retroceder na ação prin cipal propriamente dita Êste processo é muito claramente épico próprio até do épicorecitativo na medida em que o ouvinte que porventura se aproximasse durante a narração receberia de imediato uma impressão completa Ao mesmo tempo é uma subdivisão do acontecer em uma série de parcelas pequenas e estáticas que se seguram umas nas outras mediante fórmulas estereotipadas As três falas de Rolando não são tão curtas quanto as do imperador e de Ganelão na primeira laisse mas também não proporcionam um fluxo periódico A longa oração da laisse 59 não é senão uma enumeração várias vêzes interrompida em tôdas as três laisses as orações secundárias são muito simples e independentes em alto grau não se constitui um fluxo discursivo propriamente dito O ritmo da Canção de Rolando nunca é fluente como o das epopéias antigas Cada verso começa de nôvo cada estrofe avança de nôvo Além da predominância da parataxe contribui para êste efeito a construção quase sempre acidentada agramatical quando uma vez ou outra são tenta das algumas hipotaxes mais complicadas bem como também a construção das estrofes com as assonâncias que fazem pare cer cada verso como uma estrutura independente e cada estrofe como um feixe de membros independentes tal como se paus ou lanças de igual comprimento e de pontas semelhantemente traba lhadas estivessem amarrados em feixe Observese por exemplo a fala de Ganelão a favor da aceitação da oferta de paz de Marsílio v 220 ss que contém uma oração longa 222 Quant ço vos mandet li reis Marsiliun Quil devendrat jointes ses mains tis hum E tute Espaigne tendrat par vostre dun 225 Puis recevrai la lei que nus tenum Ki ço vos lodet que cest plait degetuns Ne li chalt sire de quel mort nus muriuns Quando o rei Marsílio vos manda dizer que com as mãos juntas quer ser vosso vassalo e possuir tôda a Espanha como vosso feudo e depois receber a fé que nós temos quem vos aconselhar que rejeitemos esta oferta não se importa de que morte morramos Cf Kudrun 242 A oração principal ne li chalt está no fim mas o prin cípio do período não toma em consideração a sua construção de modo que após o desdobramento do conteúdo da mensagem de Marsílio deve ser mudada a construção a oração do quant com as indicações de conteúdo que dela dependem que e puis a qual já esquece a sua estrutura pelo meio do c m minho puis recevrai já começa a se soltar do parêntese pelo que fica sendo um anacoluto e com a oração do ki cnfàticu mente antecipada começa uma nova construção A cstii eslru A NOMEAÇAO DE ROLANDO 91 tura só exteriormente hipotática mas em verdade completa mente paratática juntase ainda a articulação do sentido segundo cada um dos versos as fortes incisões das assonâncias em u e as cesuras no meio dos versos não tão fortes mas certamente perceptíveis as quais também marcam nitidamente em todos os casos a virgulação semântica neste estilo não se faz sentir nada que possa ser chamado fluxo discursivo ou periodicidade É de uma admirável unidade enquanto a atitude das persona gens está tão estreitamente limitada e estruturada pelo apertado quadro de ordens préestabelecidas nas quais elas se movimen tam que os seus pensamentos sentimentos e paixões acham espaço em tais versos elas não conhecem um raciocínio extenso e conectante daqueles que os heróis homéricos gostam tam bém não há nêles movimentos expressivos livremente fluentes impulsionantes e coercitivos Muitas vêzes já foram compara das as palavras do imperador Carlos ao ouvir o toque do cômo v 17689 Ce dist li reis Jo oi le corn Rollant Une nel sunast se ne fust cumbatant Isto diz o rei Ouço o côrno de Rolando Nunca soaria se êle não estivesse em combate com os versos correspondentes do poema de Vigny Le Cor Malheur Cest mon neveu malheur car si Roland Appelle à son secours ce doit être en m ourant1 e esta comparação é muito elucidativa neste sentido Mas não é necessário nenhum exemplo contrário romântico Também textos antigos e textos europeus posteriores de épocas préro mânticas servem para tanto Observese a prece de Rolando moribundo v 2384 ss ou a prece de construção muito seme lhante que o imperador reza antes da batalha contra Baligante v 3100 ss repousam em modelos litúrgicos e apresentam conseqüentemente um fôlego bastante longo na construção gra matical A oração de Rolando diz 2384 Veire Paterne ki unkes ne mentis Seint Lazaron de mort resurrexis E Daniel des leons guaresis Guaris de mei 1anme de tuz perilz Pur les pecchez que en ma vie fis Vero Pai que nunca mentiu que ressuscitou o santo Lázaro ilu morte que guardou Daniel dos leões guarda a minhalma de Iodos os perigos por causa dos pecados que em minha vida cometi I Al tle mlml t meu obrlnhcit Al üc mlmt rola Rolando pede locorro ilcv clr à i i k i i k CIAilm u noua do 4 de payln lo do tradutor 92 MIMESIS e a oração de Carlos 3100 Veire Paterne hoi cest jor me defend Ki guaresis Jonas tut veirement De la baleine ki en sun cors Paveit E esparignas le rei de Niniven E Daniel dei merveillus turment 3105 Enz en la fosse des leons o fut enz Les III enfanz tut en un fou ardant La tue amurs me seit hoi en present Par ta mercit se te plaist me cunsent Que mun nevold poisse venger Rollant Vero Pai ajudaime hoje neste dia tu que guardaste ver dadeiramente Jonas da baleia que o tinha no seu ventre que pou paste o rei de Nínive e Daniel do terrível tormento na fossa dos leões na qual se achava e os três infantes no forno ardente O teu amor me esteja hoje presente Por tua mercê se quiseres concedeme que possa vingar meu sobrinho Rolando É certo que na fixação formulista das figuras de redenção as quais como mostra a literatura mística podem ser empre gadas de outra forma totalmente movimentada assim como na espécie de súplica apostrofante quase carente de movimento sempre começando de nôvo reside forte pathos mas também há aí segurança estreitamente limitada de uma imagem univo camente fixada de Deus mundo e destino Se se contrastar isto com qualquer oração da Ilíada escolho os v 305 ss do Can to VI 7CÓTVt AfbvaÍ7 èpuaÍ7rroXi Sía eácov àÇov St yxÇ AlojltSoç tj8è xal aòtòv 7rp7véa Sòç 7teaéeiv SxaiôW irporcápoiôe miXácov1 Ò venerável Atena defesa de nossa cidade quebra üo forte Diomedes a lança ou o derruba tu própria das portas Ceia em frente de bruços no solo fecundo 2 com o seu movimento de súplica que se empina tempestuosa mente TSè xal aúTòv Ttprjvéa Sòç Tteoéeiv apreendese como i possível que os movimentos em Homero sejam mais livremen te fluentes mais fortemente impulsivos e suplicantes e que o seu mundo não obstante esteja também limitado não apresente uma estrutura tão rígida Naturalmente neste exemplo não sc depende da ultrapassagem do fim do verso que é freqüente aliás na métrica antiga mas da movimentação da frase de amplo vôo e rica em nuanças Esta pode também apresentarse na construção de versos rimados na qual não aparece fujam 2 Traduçfio de Cario Alberto Nuncv A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 93 bernent tanto com versos curtos quanto com versos longos e também se apresenta logo mais no francês arcaico já no século XII precisamente no verso octossílabo rimado do romance cortês ou das narrativas versificadas menos extensas Quando se compara o octossílabo de uma antiga epopéia heróica do fragmento de Gormund et Isembard que soa como uma série de toques de fanfarra isolados rigorosamente ritmados criant lenseigne al rei baronla Loovis le fiz Charlun com o octos sílabo fluente às vêzes gárrulo às vêzes lírico do romance cor tês compreenderseá ràpidamente a diferença entre a cons trução rígida e a construção fluente e conectante E daí a pou co aparece no estilo cortês também o movimento retórico de largo alcance Do Folie Tristan cf Bartsch Chrestomatie de lancien Fronçais 12f éd pièce 24 constam os versos 31 en ki me purreie fier quant Ysolt ne me deingne amer quant Ysolt a si vil me tient kore de mei ne li suvient De quem poderei me fiar se Isolda não mais se digna me amar se Isolda tanto me despreza que ora não mais se lembra de mim Êste é um movimento opressivo e doloroso em forma de uma pergunta retórica com duas orações secundárias que dela de pendem construídas paralelamente sendo que a segunda se desenvolve mais largamente e o todo está em ritmo crescente esquemàticamente bastante parecido só que bem mais sim ples com os famosos versos da Bérénice de Racine quinta cena do quarto ato Dans un mois dans un an comment souffrironsnous Seigneur que tant de mers me séparent de vous Que le jour recommence et que le jour finisse Sans que jamais Titus puisse voir Bérénice Sans que de tout le jour je puisse voir Titus i Encerremos ràpidamente a análise do nosso texto No fim da laisse 61 o imperador ainda não pode se decidir a entregar o arco a Rolando que está de pé diante dêle outorgandolhe assim definitivamente a missão Êle inclina a cabeça puxa sua barba e chora A entrada de Naimes que encerra a cena está construída novamente de forma totalmente paratática As relações modais que estão nas suas palavras não são expressas grama ticalmente senão a oração deveria ser assim Já ouvistes quão irudo está Rolando por ter sido designado para a retaguarda mas como nüo há nenhum barão que possa ou queira tomar 3 I nt um mêa em um uno como Nuportaremos senhor que tantos mare me lepirem de vAi que o dio recomece e que o dia acabe sem que Jamais Mto poma ver llrrenice em que por todo o dia eu p o m n ver Tito 94 MIMESIS o seu lugar dálhe o arco mas vela pelo menos para que tenha bastantes fôrças de apoio E também o belo verso final é pa ratático A construção paratática é nas línguas antigas própria do estilo baixo é mais falada do que escrita de caráter mais cô micorealista do que sublime Mas aqui ela pertence ao estilo elevado Tratase de uma nova forma dêste estilo que não des cansa na periodicidade nem nas figuras de linguagem mas no ímpeto de blocos de discurso independentes e justapostos Um estilo elevado composto de membros paratáticos não tem em si nada de nôvo na Europa já o estilo bíblico tem êsse caráter cf nosso primeiro capítulo Lembrese a discussão acêrca da sublimidade da frase do Gênesis 1 3 dixitque Deus fiat lux et facta est lux que surgiu no século XVII entre Boileau e Huet em conexão com as palavras rapi uoug O sublime da quela frase do Gênesis não reside no grandioso desenrolar da periodização nem no ornato de ricas figuras de linguagem mas na impressionante brevidade que contrasta com o poderoso conteúdo e que tem por isso mesmo algo de obscuro que infunde no ouvinte estremecimento e veneração Justamente a omissão da ligação causal o mero relato do que ocorre que coloca no lugar da ligação e da compreensão uma maravilhada observação que nem se atreve a querer compreender é o que confere à frase a sua grandeza Mas o caso é totalmente dife rente na Chanson de geste O seu objeto não é o formidável enigma da criação e do criador não é a relação da criatura o homem com ambos O objeto da Canção de Rolando é estreito e para os seus homens nada de fundamental é ques tionável Tôdas as ordens da vida e também a ordem do além são unívocas inamovíveis fixadas formalmente Certamente não são acessíveis sem mais nem menos para a penetração ra cional mas esta é uma constatação que somente nós fazemos O poema e os seus ouvintes contemporâneos não se preocupa vam com isto vivem em segura confiança dentro da colocação rigidamente construída espacialmente estreita na qual os de veres vitais a divisão em estamentos cf divisão do trabalho entre cavaleiros e monges v 1877 ss a essência das fôrças sobrenaturais e a relação dos homens com elas estão reguladas de maneira simples No interior dêste espaço há riqueza e ter nura de sentimentos e também um certo colorido das aparên cias exteriores mas a moldura é tão estreita e rígida que é difícil aparecerem a problemática ou menos ainda a tragédia não há conflitos que mereçam o nome de trágicos Também os antigos textos germânicos que conservamos apresentam construção paratática Também nêles domina a ética aristocrática guerreira com a sua severa fixação da honra da virtude e da luta como juízo divino Mas mesmo assim a impressão que resulta é totalmente diferente Os blocos do dis curso estão mais frouxamente apoiados uns nos outros o espaço ao redor dos acontecimentos e o céu acima dêlcs são incompa rável mente mais amplos o destino é mais enigmático c n catm A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 95 tura social não está nem de longe tão solidamente estruturada Tá o fato de as epopéias germânicas mais famosas desde a Can ção de Hildebrando até os Nibelungos procurarem a sua atmos fera histórica nos tempos selvagens e espaçosos das migrações e não no esquema já rígido do alto feudalismo conferelhe mais amplidão e liberdade Nos territórios galoromânicos os temas germânicos do tempo das migrações não penetraram ou não conseguiram deitar raízes e o cristianismo é quase insignificante para a epopéia germânica heróica As fôrças livres imediatas ainda não moldadas em nenhuma fôrma estabelecida e as raízes humanas pelo que me parece são mais profundas Das com posições germânicas do círculo das epopéias heróicas não pode ser dito como da Canção de Rolando que lhes falte o proble mático ou o trágico Hildebrando é mais imediatamente humano e trágico do que Rolando e quanto mais profundamente motiva dos são os conflitos na saga dos Nibelungos do que o ódio entre Rolando e Ganelão Contudo encontrase também a mesma estreiteza e fixação do espaço vital quando tomamos em consideração um texto reli gioso românico dos tempos primitivos Temos vários que são anteriores à Canção de Rolando O mais importante é a Canção de Aleixo uma lenda hagiográfica que nos deu uma figura transmitida no século XI por vários manuscritos em francês ar caico Aleixo é segundo a lenda o filho único nascido tardia mente de uma nobre casa romana É educado cuidadosamente entra a serviço do imperador e deve casarse segundo o desejo do pai com uma donzela de igual classe êle cede mas abandona a noiva na noite de núpcias sem tocála e vive durante dezes sete anos como pobre mendigo no estrangeiro na cidade de Edessa no Nordeste da Síria hoje a cidade turca de U rfa para somente servir a Deus Depois ao abandonar êsse lugar para se furtar à adoração como santo é levado por uma tempestade de volta a Roma onde vive outros dezessete anos novamente como mendigo desconhecido e desprezado sob a escadaria da casa paterna sem se comover com a dor dos pais e da noiva cujas queixas ouve amiúde sem darse a conhecer Só após a sua morte é reconhecido de forma miraculosa e é então honrado como santo Como se vê a convicção que fala dêste texto é totalmente diferente daquela da Canção de Rolando mas apre senta a mesma forma de expressão paratática e fechada o mes mo rígido estreitamento e a mesma colocação indubitável de tôdas as ordens Tudo está fixo o branco e o prêto o bem e o mal e não precisa mais de pesquisa nem de justificação alguma certamente existe tentação mas não existe problemática De um lado está o serviço de Deus que leva para longe do mundo e para a salvação eterna do outro a vida natural no mundo que leva à grande tristeza A consciência não conhece outras situações c a realidade exterior tudo o mais que o mundo ainda ofcrccc c dentro do qual os acontecimentos narrados precisam scr encaixados de alguma maneira é reduzido de tal forma que nada fica iilém de um puno de fundo incsxcnciui para a vida do 96 MIMESIS santo Ao seu redor acompanhando os seus atos com os seus gestos o pai a mãe e a noiva de maneira ainda mais vaga e indistinta delineiamse algumas outras personagens necessárias para a narração o resto é inteiramente esquemático tanto do ponto de vista sociológico quanto geográfico Isto é tanto mais surpreendente quanto a cena parece abranger tôda a ampla va riedade do Império Romano de Oriente e de Ocidente nada so brou além de igrejas vozes do céu povo rezando nada além do ambiente sempre igual de uma vida de santo Do mesmo mo do ou ainda mais de modo bem mais marcante do que na Canção de Rolando onde em tôda parte tanto junto aos pagãos quanto junto aos cristãos vige a mesma estrutura social isto é o feudalismo e o mesmo ethos O mundo tornouse muito pe queno e estreito e nêle se trata rígida e inamovivelmente de uma única pergunta já respondida de antemão à qual o ho mem só deve dar a resposta adequada Sabe qual o caminho que deve percorrer ou antes há um só caminho aberto não há ou tros Também sabe que encontrará uma encruzilhada Sabe também finalmente que então deverá escolher a direita não obstante o Tentador o alicie para a esquerda Tudo o mais o restante a infinita amplidão do mundo exterior e do interior com o seu semnúmero de possibilidades imagens e camadas tudo está submerso Isto não é sem dúvida germânico não é também como me parece cristão pelo menos não é a fornia necessária e original do cristão Êste nascido de muitas e múl tiplas pressuposições em disputa com múltiplas realidades mos trouse tanto antes quanto depois incomparàvelmente mais elás tico mais rico e mais estratificado Esta estreiteza dificilmente pode ser algo de original para tanto ela contém demasiados elementos herdados muito diferentes entre si Não é uma estrei teza mas um estreitamento É o processo de enrijecimento c redução da tardia antigüidade que já aparecera nos capítulo anteriores Evidentemente dentro do mesmo a forma simplis tamente reduzida que o cristianismo adotou no choque com po vos em parte cansados em parte bárbaros teve um papel pre ponderante Na Canção de Aleixo do francês arcaico a cena da noite de núpcias que se constitui num dos pontos culminantes do poema diz assim estrofes 1115 cf Bartsch opcit 11 Quant li jorz passet ed il fut anoitiet ço dist li pedre filz quer ten va colchier avuec ta spouse al comant Deu dei ciei ne volst li enfes son pedre corroder vait en la chambre o sa gentil moillier 12 Com vit le lit esguardat la pulcele donc li remembret de son seignour celeste que plus ad chier que tote rien terrestre e Deus dist il si forz pochiez m apresset sor ne men fui molt cricm que ne ten perde A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 97 13 Quant en la chambre furent tuit soul remes danz Alexis la prist ad apeler la mortel vide li prist molt a blasmer de la celeste li mostrat veriet mais lui ert tart qued il sen fust tornez 14 Oz mei pulcele celui tien ad espous Qui nos redemst de son sanc precious en icest siecle nen at parfite amour la vide est fraile mi al durable onour ceste ledece revert a grant tristour 15 Quant sa raison li at tote mostrede donc li comandet les renges de sa spede ed un anel dont il Tout esposede donc en ist fors de la chambre son pedre en mie nuit sen fuit de la contrede Quando o dia passou e havia anoitecido isto disse o pai Filho quero que tu vás te deitar com a tua espôsa segundo a ordem de Deus do céu O infante não queria irritar seu pai vai ao quarto à sua gentil mulher Como visse o leito olhou a donzela lembrouse do seu senhor celeste que amava mais que tôda coisa terrestre ó Deus disse êle quão fortemente o pecado me aflige se eu ora não fugir temo muito que te perca por isso Quando ficaram totalmente sozinhos no quarto o senhor Alei xo começou a falarlhe começou a condenar muito a vida terrena e sôbre a celeste mostroulhe a verdade e já ansiava verse longe dali Ouveme donzela toma como espôso Aquêle que nos redimiu com seu sangue precioso Neste século não há amor perfeito a vida é frágil não há honra que dure esta alegria reverte em grande tristeza Quando lhe mostrou tôda a sua razão então lhe entregou o cinto da sua espada e um anel com o qual a esposara Então foise embora da casa do seu pai no meio da noite fugiu do país Por mais diferente que seja a mentalidade dos dois poemas a semelhança estilística com a Canção de Rolando é surpreenden te A parataxe vai tanto ali como aqui para muito além da mera técnica de construção das orações tratase do mesmo reco meçar sempre de nôvo do mesmo avançar e retroceder aos tran cos a mesma independência dos acontecimentos isolados e das partes dos acontecimentos A estrofe 13 retoma a situação do início da estrofe 12 mas conduz a ação de maneira diferente e mais ampla A estrofe 14 apresenta de nôvo o que é expresso na estrofe 13 mas que já estava superado no seu último verso em discurso direto e de forma mais concreta Portanto em lugar dc construir Quando estiveram sòzinhos no quarto lembrou se c disse o u v e aqui constróise da seguinte forma 1 Quando catêvc no quarto lcinbrouse 2 Quando esti 98 MIMESIS veram no quarto disse q u e discurso indireto 3 Ouve disse Cada uma das estrofes apresenta um quadro com pleto fechado em si mesmo a impressão do processo unitário progressivo que liga os membros pelo avanço para a frente é muito mais fraca do que a da justaposição de três quadros muito semelhantes limitados uns dos outros Podese generalizar esta impressão a Canção de Aleixo é uma série de acontecimentos fechados em si mesmos unidos frouxamente entre si uma série de quadros fortemente independentes uns dos outros de uma vida de santo cada um dos quais contém um gesto expressivo porém simples O pai que ordena a Aleixo que vá ao quarto com a sua noiva Aleixo diante do leito falando à sua mulher Aleixo em Edessa repartindo os seus bens entre os pobres Aleixo como mendigo os servidores que são enviados em sua busca que não o reconhecem e lhe dão uma esmola a queixa da mãe a conver sação entre a mãe e a noiva e assim por diante é um ciclò de quadros cada um dêstes acontecimentos contém um gesto deter minado com uma ligação temporal e causal muito frouxa com os outros anteriores e posteriores Muitos dêlds á queixa da mãe por exemplo são decompostos em vários quadros semelhantes cada um independente de per si Cada um dos quadros está como que emoldurado isoladamente cada um dêles bastase a si mesmo de tal forma que nada de nôvo nem nada de inesperado ocorre dentro de cada um e sem que nenhuma fôrça impulsora nêle exija o seguinte e nos espaços intermediários há o vazio não um vazio obscuro e profundo no qual muita coisa acontece e se pre para no qual se contém a respiração de estremecida expectação como às vêzes no estilo bíblico com as suas pausas sôbre as quais se cisma mas uma duração plana pálida sem substância às vê zès só um instante às vêzes dezessete anos às vêzes totalmente indefinível O acontecer está dissolvido assim em uma série de quadros está como que parcelado Na Canção de Rolando tudo está mais comprimidp A concatenação é mais rigorosa o quadro isolado é às vêzes mais movimentado mas a técnica da represen tação e isto significa mais do que um mero processo técnico juntase à imagem estrutural que o poeta e os ouvintes aproximam do acontecimento é ainda totalmente a mesma é um enfileirar de quadros independentes Nos espaços intermediários na Can ção de Rolando algumas vêzes não são assim planos e vazios intròduzse talvez a paisagem vêse ou ouvese cavalgar os exér citos por vales e desfiladeiros mas os acontecimento São assim mesmo enfileirados uns ao lado dos outros de tal for ma que em cada caso se formam quadros totalmente fechados em si que subsistem por si próprios A quantidade das perso nagens ativas é também na Canção de Rolando muito pequena Tôdas as outras aparecem ainda que sejam bem mais coloridas do que na Canção de Aleixo em séries os atôres em cada uma das cenas são fixos e só raramente acrescentase algum e quando isto acontece Naimes ou Turpim com função equa lizadora e encerradora é feita uma incisão marcante Os ele mentos variados intrincados e aventurosos coni grande quan tidade de personagens ativas que são tSo freqüentes nu cpopéin A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 99 em geral faltam totalmente neste caso Tanto mais forte é tanto na Canção de Rolando como na Canção de Aleixo o ele mento gestualmente impressionante A necessidade de ligação e desenvolvimento é fraca Mesmo dentro de cada cena isolada o desenvolvimento quando e onde existe é penoso e estacado mas os gestos do instante cênico são de uma energia das mais mar cantes e plásticas É esta energia dos gestos e das atitudes que é mirada evidentemente pela representação ao subdividir os acontecimentos em muitas pequenas parcelas plásticas O ins tante cênico com os seus gestos contém tanto ímpeto que tem o efeito de um modêlo moral Os diferentes estágios da histó ria do herói ou do traidor ou do santo são concretizados em gestos em tal medida que as cenas plásticas se aproximam muito no seu efeito do caráter de símbolos ou figuras também nos casos em que não é comprovável qualquer significação simbó lica ou figurai Muito freqüentemente tal significação é com provável na Canção de Rolando no que se refere à figura de Carlos Magno quando da descrição de algumas características dos cavaleiros pagãos e indubitàvelmente nos textos das pre ces quanto à canção de Aleixo a excelente interpretação de E R Curtius Zeitschrift für romanische Philologie 56 113 ss especialmente págs 122 124 leva totalmente para o caráter figurai da plenitude no além Esta tradição figurai não contri buiu pouco para fomentar a desvalorização da coerência horizon tal e histórica dos acontecimentos e para o enrijecimento de to das as ordens Desta forma as preces que transcrevemos acima mostram o total enrijecimento das figuras da salvação O par celamento dos acontecimentos do Velho Testamento que são interpretados isoladamente fora do seu contexto histórico de forma figurai tornouse formular As figuras são justapostas paratàticamente como nos sarcófagos da Antigüidade tardia não têm mais realidade mas somente significado Perante o acontecer terreno prevalece uma tendência semelhante desligá lo do seu contexto horizontal isolar as partes estendêlas num bastidor rígido tornálas gestualmente impressivas dentro dês tes limites de modo que apareçam como exemplares modela res significativas deixando tudo o mais no campo do insubstan cial É manifesto que com isto só uma parte muito pequena da realidade extremamente estreita amarrada pela redução de tôdas as ordens a fórmulas pode ser tornada visível Mas chega a ser visível e é nisto que se evidencia que o ponto máximo do processo de enrijecimento já foi ultrapassado justamente nos quadros isolados é que se encontram os germes da vivificação O texto latino que deve ter servido de fonte à canção francesa de Aleixo êle é encontrável nos Acta Sanctorum do dia 17 de julho e nós o transcrevemos segundo a versão do Altfranzoesisches Übungsbuch de FoersterKoschwitz 6 edição 1921 pp 299 ss provàvclmentc não é tão anterior ao texto francês pois u lendu originária da Síria só pode ser com provada no Ocidcnlc bastante tarde mas mostra bem mais duramente n forma du lenda ilc santo da tardia Antigüidade MIMESIS Nêle a cena da noite de núpcias é representada de uma forma que difere de maneira muito característica da versão em francês arcàico Vespere autem facto dixit Euphemianus filio suo lntra fiiii in cubiculum et visita sponsam tuam Ut autem intravit coepit nobiiissimus juvenis et in Christo sapientissimus instruere sponsam suam et plura ei sacrat menta disserere deide tradidit ei annulum suum aureum et rendam id escaput baltei quo cingebatur involuta in prandeo et purpureo sudário dixitque ei Suscipe haec et conserva usque dum Domino placuerít et Dominus sit inter nos Post haec accepit de substantia sua et discessit ad m are Quando a noite se fêz disse Eufemiano ao seu filho Entra filho no quarto e visita a tua espôsa Mas quando entrou come çou o jovem nobilíssimo e pleno da sabedoria de Cristo a instruir a sua espôsa e a explicarlhe muitos ensinamentos sagrados depois deulhe o seu anel de ouro e o talabarte da sua espada que cingia envolto num pano purpúreo e disselhe Recebe isto e conservao enquanto apraza a Deus e o Senhor esteja entre nós Depois disto pegou algo da sua fortuna e desceu ao mar Como se vê também o texto latino é quase totalmente paratático mas não aproveita as possibilidades da parataxe não as conhece ainda O texto nivelou tudo uniformemente e o aplainou sem subidas nem descidas sem movimentos tonais a narrativa é monótona de modo que não somente a moldura mas o próprio quadro permanece imóvel é rígido e carente de fôrça A luta interna deslanchada em Aleixo peia tentação para a qual a versão francesa encontrou a expressão mais sim ples e bela possível não é mencionada parece não haver ten tação alguma e o grande movimento da fala dirigida direta mente à noiva Oz mei pulcele um dos movimentos mais fortes do antigo poema francês na qual Aleixo se eleva em tôda a sua altura e que se constitui na primeira irrupção de sua verdadeira essência foi evidentemente criado pelo poeta francês a partir das pálidas palavras latinas do seu modêlo A própria fuga tornase dramática no texto francês A versão latina avança com muito mais lisura e uniformidade mas os movimentos humanos são muito fracos apenas insinuados co mo se se estivesse tratando de um espírito e não de um ser vivo A impressão fica sendo a mesma quando se lê mais adiante uma modelagem propriamente humana só é dada pelo texto em língua vulgar Êste inventa para só mencionar os pontos mais importantes a queixa da mãe no quarto aban donado e depois a luta interior do santo quando é jogado de volta a Roma Nela Aleixo hesita antes de tomar sôbrc si a mais pesada das provações a vida como mendigo desco nhecido na casa paterna com a visão diária dos seus parentes mais chegados que choram a sua ausência Gostaria que êste cálice lhe fôsse poupado mas mesmo assim o toma A vçrfto A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 101 iatina não conhece qualquer hesitação nem luta da mesma forma que na noite de núpcias Aleixo vai à casa do pai porque não quer ser carga para nenhuma outra pessoa Somente a poesia em língua vulgar como parece surgir desta comparação fêz salientar os quadros isolados de ma neira que as personagens ganharam redondez humana e vida vida que está evidentemente limitada pela rigidez e estreiteza das ordens que permanecem inamovíveis e que pode ser tam bém fàcilmente interrompida pela falta de movimento com sen tido contínuo e que porém justamente pela oposição que lhe oferece a moldura das ordens estabelecidas ganha em efetivi dade e poder Somente os poetas da língua vulgar viam o homem vivente e encontraram a forma na qual a parataxe possui fôrça poética Em lugar de enfileirar dèbimçnte gote jando com monotonia agora surge a forma das laisses que avança e retrocede aos trancos que cria em tôda parte arran cadas enérgicas e que se constitui num nôvo estilo elevado Se a vida que é tangível nas suas obras é também estreitamente limitada e sem multiplicidade ainda assim é uma vida plena humanamente movimentada e vigorosa uma liberação do estilo pálido e intangível da lenda da tardia Antigüidade Os poetas da língua vulgar também souberam valorizar o discurso direto como tom e como gesto Já falamos da alocução de Aleixo à sua noiva e da queixa da mãe podese ainda juntar a isto talvez as palavras com as quais o santo retornado a Roma solicita guarida e comida do seu pai Elas têm na versão francesa uma fôrça concreta e imediata que o texto latino nunca poderia atingir A versão francesa diz assim Eufemiiens beis sire riches om quer me herberge por Deu en ta maison soz ton degret me fai un grabaton empor ton fil dont tu as tel dotour toz sui enfers sim pais por soue amour Eufemiano nobre senhor rico homem hospedaime por Deus cm tua casa sob a tua escada fazeime um leito por causa do teu filho pelo qual tendes tão grande dor estou muito doente alimen taime por amor a êle E a versão latina Serve Dei respice in me et face mecum misericordiam quia pnuper sum et peregrinus et jube me suscipi in domo tua ut pascar de mieis mensae tuae et Deus benedicat annos tuos et ci quem habes in peregre misereatur Servo de Deus olhaime e fazeime misericórdia pois sou pobre e peregrino e mandai qile seja recebido em tua casa para que me nlimente dm mignlluis de tua mesa e Deus abençoe os teus mio e íic npiede daquele que tendes no estrungeiro 102 MIMESIS Já insinuamos que seria um êrro querer pôr simplesmente na conta do cristianismo o enrijecimento e o estreitamento que aparecem na lenda da Antigüidade tardia e dos quais os textos da língua vulgar se liberam só gradualmente Nos capítulos anteriores procuramos demonstrar que o efeito original da ma neira judeocristã de modelar os acontecimentos era tudo me nos enrijecedora e estreitante A ocultação de Deus e final mente sua parúsia a encarnação numa vida quotidiana qual quer isto fêz surgir como tentamos demonstrar um movi mento dinâmico de contemplação da vida um movimento pendular tanto no moral como no sociológico que foram mui to além da imitação do devir e da vida da Antigüidade clássica A tradição não nos mostra os pais da Igreja sobretudo Agos tinho como figuras esquemáticas que seguem rigidamente um caminho préestabelecido e o amigo da juventude de Agostinho Alípio cuja comoção interna diante das lutas de gladiadores discutimos acima é uma figura extremamente vivaz que luta sucumbe para depois tornar a se elevar A esquematização rí gida estreita e aproblemática é muito estranha originalmente à consciência cristã da realidade Evidentemente a interpreta ção figurai dos acontecimentos que ganhou influência cada vez maior com o surgimento e a expansão do cristianismo que des botava o teor da realidade dos acontecimentos deixandolhes sòmente conteúdos significativos é em muito responsável pelo enrijecimento Quando o dogma ficou estabelecido quando as tarefas da Igreja ficaram senido cada vez mais de ordem organizadora quando se tratava de ganhar para o cristianismo povos totalmente carentes de preparação estranhos a todos os pressupostos cristãos a interpretação figurai não podia senão tornarse um esquema simplista e rígido Mas o problema todo do enrijecimento vai mais longe está ligado ao processo de redução da cultura antiga Não foi o Cristianismo que produ ziu o enrijecimento mas êle próprio foi envolvido pelo pro cesso Com o desmoronamento do Império Romano do Oci dente e da noção de ordem que nêle existia e que já mostrava êle próprio fazia tempo traços de paralisação senil ruiu tam bém a estrutura interna do orbis terrarum e um nôvo mundo só podia nascer a partir de pequenas parcelas Com isto em tôda parte chocaramse a essência estatal e humanamente ainda crua dos povos de recente aparição com as instituições romanas ainda subsistentes e com os restos da antiga cultura que pre servaram mesmo na decadência e na paralisação um imenso prestígio Um choque entre o totalmente jovem e o muito velho que produziu primeiramente também a paralisação da quilo que era jovem até que conseguiu se arranjar com a sua herança preenchêla novamente com a sua vivacidade e levála a um nôvo florescimento O processo de enrijecimento foi mais fraco evidentemente nos países em que a cultura antiga tar dia nunca predominou nos países do interior da Germânia Foi muito mais forte nos países românicos onde efetivamente se deu um choque e talvez não sejn casual o fato ilc n França A NOMEAÇÃO DE ROLANDO 103 que foi o país que dentre êstes últimos recebeu a maior influência germânica ter sido o primeiro que começou a se liberar O primeiro estilo elevado da Idade Média européia pare ceme surgir no instante em que o acontecimento isolado é preen chido de vida Por isto é tão rico em cenas isoladas extremamente efetivas nas quais só poucos sêres se defrontam nas quais as falas e os gestos de um acontecimento curto ficam marcan temente salientadas As personagens postas uma bem junto a outra uma contra a outra sem ter muito espaço para se mo vimentarem estão não obstante cada uma de per si separa das umas das outras O que delas se diz nunca se torna con versação mas fica sendo manifestação solene na qual tôda alocução tôda oração tôda palavra até tem um valor de per si aspiratório e enfático sem qualquer suavidade e sem um fluxo indolente Diante da realidade da vida êste estilo não pode e também não quer se estender em largura ou em pro fundidade está limitado temporal espacial e estamentalmente simplifica plástica e idealizadoramente acontecimentos do pas sado O sentimento que quer evocar no ouvinte é de surprêsa e admiração por um mundo longínquo cujos instintos e ideais certamente ainda são os seus só que aquêles se desenvolvem perante as resistências atritantes da vida com uma pureza com um vigor e uma liberdade que são inatingíveis na sua existên cia prática Movimentos humanos figuras que se enaltecem modelarmente aparecem com eficácia A sua própria vida não está contida ali Não obstante justamente no tom da Canção de Rolando há muito do presente Não começa com uma ma nifestação que afasta os acontecimentos para longe faz mui to tempo aconteceu quero falar de coisas que se deram tempos atrás mas com um tom fortemente imediato como se o rei Carlos nosso grande imperador estivesse ainda quase vivo A ingênua transposição dos acontecimentos que se deram tre zentos anos atrás para as concepções da sociedade do alto feudalismo dos começos da época das Cruzadas o aproveitamen to do objeto para a propaganda eclesiástica e feudal conferem uo poema algo de presente e de vivo até alguma coisa seme lhante a um germe de sentimento nacional pode ser sentido nêlc e também numa série de outras coisas parece viver um presente Quando para tomarmos um exemplo ao acaso se lê o verso no qual Rolando procura ordenar o iminente ataque dos cavaleiros francos 1165 Seignurs barons suef le pas tenant nêlc ressoa uma cena presente de um treino contemporâneo para o combate entre cavaleiros feudais Mas isto são porme nores relampejantes a limitação permanente a idealização e simplificação o luscofusco da veladura fabulosa tudo isto predomina O estilo dos cantares heróicos franceses é pois um estilo elevado iu qual 11 imanem estrutural dos acontecimentos é 104 MIMESIS ainda muito rígida e que chega a apresentar uma parte da vida objetiva uma parte muito limitada pelo distanciamento tempo ral pela simplificação da perspectiva e pela limitação estamen tal Não dizemos nada de nôvo mas somente uma nova for mulação do que já foi dito repetidamente quando acrescenta mos que para êste estilo a separação dos campos do heroica mente sublime e do quotidianamente prático é natural e evi dente Outras camadas a não ser a classe alta feudal nem sequer aparecem as bases econômicas da vida nunca são men cionadas Isto é levado muito mais longe do que na poesia heróica germânica ou do meioaltoalemão e apresenta também uma diferença muito chamativa com a poesia heróica espanhola que aparece pouco mais tarde Contudo a chanson de geste e sobretudo a Canção de Rolando era evidentemente popular Esta poesia não obstante tratar exclusivamente dos atos da classe alta feudal dirigese também sem dúvida ao povo Isto evidentemente pode ser assim explicado apesar das impor tantes diferenças materiais e jurídicas que existem entre as diferentes camadas da população leiga ainda não havia uma diferença fundamental entre os seus graus de instrução Mais ainda do que isto as representações ideais eram também ainda uniformes ou pelo menos outras representações terrenas ideais afora as cavalheirescas e heróicas ainda não podiam ganhar forma e palavras É prova da fôrça e da eficácia da chanson de geste em tôdas as classes o fato de que o clero que antes não estivera em posição benévola diante da poesia profana em lín gua vulgar procurou aproveitar para os seus fins a partir do fim do século XI a épica heróica A duração secular dos temas que foram constantemente retrabalhados e que logo desceram à categoria de produtos de feira comprova o seu duradouro favor justamente nas camadas mais baixas da população Para os ouvintes dos séculos XI XII e XIII a epopéia heróica era História Nela vivia a tradição histórica do passadò Não ha via outra que estivesse ao alcance dos ouvintes Só ao redor de 1200 aparecem as primeiras crônicas em língua vulgar as quais não relatam porém o passado mas um presente vivido pelo próprio autor ao mesmo tempo que ainda elas mostram grande influência do estilo épico A epopéia heróica é tam bém de fato história na medida em que lembra acontecimen tos históricos verdadeiros ainda que os deforme e simplifique e na medida em que as suas figuras têm uma função histórico política Esta essência históricopolítica é deixada de lado pelo romance cortês Êle está conseqüentemente numa relação totalmente diferente com o mundo objetivo e real A Saída do Cavaleiro Cortês 6 ni u ne ira N o comêço do Yvain de Chrétien de Troyes um ro mance cortês da segunda metade de século X II um dos cavaleiros da côrte do Rei A rtur narra uma aventura que lhe sucedeu A sua narração começa da seguinte 175 11 avint près a de set anz Que je seus corne paisanz Aloie querant avantures Armez de totes armeüres Si come chevaliers doit estre 180 Et trovai um chemin a destre Parmi un forest espesse Mout i ot voie felenesse De ronces et despines plainne A quelquenui a quelque painne 185 Ting cele voie et cel santier A bien près tôt le jor antier man alai chevauchant einsi Tant que de la forest issi Et ce fu an Broceliande 190 De la forest an une lande Antrai et vi une bretesche A demie liue galesche Si tant i ot plus ni ot pas Celle part ving plus que les pas 195 Et vi le baille et le fossé Tôt anviron parfont et le Et sor le pont an piez estoit Cil cui la fortcrescc estoit Sor son poing un oslor mué 106 MIMESIS 200 Ne loi mie bien salué Quant il me vint a lestrier prandre Si me comanda a desçandre Je desçandi il ni ot el Que mestier avoie dostel 205 Et il me dist tôt maintenant Plus de çant foiz an un tenant Que beneoite fust la voie Par ou leanz venuz estoie A tant an la cort an antrames 210 Le pont et la porte passâmes Anmi la cort au vavassor Cui Des doint et joie et enor Tant comme il fist moi cele nuit Pandoit une table je cuit 215 Quil ni avoit ne fer ne fust Ne rien qui de cuivre de fust Sur cele table dun martel Qui panduz iere a un postel Feri li vavassors trois cos 220 Cil qui amont ierent anclos Oïrent la voiz et le son Sissirent fors de la meison Et vindrent an la cort aval Li un seisirent mon cheval 225 Que li buens vavassors tenoit Et je vis que vers moi venoit Une pucele bele et jante An li esgarder mis mantante Ele fu longue et gresle et droite 230 De moi desarmer fu adroite Quele le fist et bien et bel Puis mafubla un cort mantel Ver descarlate peonace Et tuit nos guerpirent la place 235 Que avuec moi ne avuec li Ne remest nus ce mabeli Que plus ni queroie veôir Et ele me mena seoir Et plus bel praelet del monde 240 Clos de bas mur a la reonde La la trovai si afeitiee Si bien parlant et anseigniee De tel sanblant et de tel estre Que mout mi delitoit a estre 245 Ne ja mes por nul estovoir Ne man queïsse removoir Mes tant me fist la nuit de guerre Li vavassors quil me vint querrc Quant de soper fu tans et orc 250 Ni poi plus feire de demore Si fis lues son comiiiulcmnnl A SAIDA DO CAVALEIRO CORTÊS 107 Del soper vos dirai briemant Quil fu dei tôt a ma devise Des que devant moi fu assise 255 La pucele qui si assist Apres soper itant me dist Li vavassors quil ne savoit Le terme puis que il avoit Herbergié chevalier errant 260 Qui avanture alast querant San avoit il maint herbergié Apres ce me pria que gié Par son ostel man revenisse An guerredon se je poïsse 265 Et je li dis Volantiers sire Que honte fust de lescondire Petit por mon oste feïsse Se cest don li escondeïsse Mout fu bien la nuit ostelez 270 Et me chevaus fu anselez Lues que lan pot le jor veoir Car jan oi mout proiié le soir Si fu bien feite ma proiiere Mon buen oste et sa fillle chiere 275 Au saint Esperit comandai A trestoz congié demandai Si man alai lues que je poi Aconteceu há perto de sete anos que eu sozinho como um camponês fui à busca de aventuras armado com tôdas as mi nhas armas assim como um cavalheiro deve estar e encontrei um caminho à destra em meio a uma espessa floresta O caminho era muito ruim cheio de mato e de espinhos apesar de todo o desgosto e de tôda a pena mantiveme neste caminho e nesta senda Durante o dia todo quase fiquei cavalgando assim até que saí da floresta e isto se deu em Broceliande Da floresta entrei numa charneca e vi uma tôrre a meia légua gaulesa de distância quando muito Cavalguei depressa nessa direção e vi em todo o seu redor um muro e fossa profunda e larga e sôbre a ponte estava de pé aquêle a quem pertencia o castelo sôbre o seu punho um falcão de caça mudado Não o tinha ainda bem saudado quando êle veio pegar o meu estribo e me convidou a desmontar Desmon tei não podia fazer outra coisa pois estava precisando albergue e êle me disse imediatamente mais de cem vêzes de uma tirada que fôsse abençoado o caminho pelo qual eu tinha chegado Enquanto isso entramos no pátio e passamos pela ponte e pelo portão No meio do pátio do cavaleiro a quem Deus queira dar alegria e honra como êle me dera nessa noite pendia uma placa creio que nudu dela era de ferro ou de madeira mas que era tôda de cobre Sôbre esla placa o cavalheiro bateu três vêzes com um martelo que pendiu de um poste Os que estavam em cima na casa ouvi ram o som e o tom suirum da casa e desceram para o pátio Uns peitKnim no meu ciivnto que o bom cavaleiro estava segurando e 108 MIMESIS eu vi que vinha em minha direção uma donzela bela e amável Detiveme a observála ela era alta e esbelta e direita Ela foi destra em desarmarme ela o fêz bem e bonito Depois ela me cobriu com um manto curto coberto de pano escarlate e todos os outros deixaram o lugar só eu e ela ficamos e ninguém mais e isto causoume prazer pois mais ninguém eu queria ver E ela me levou ao mais belo prado do mundo fechado por um muro baixo em volta Lá eu a achei tão amável tão bem falante e educada de tal semblante e de tal jeito que muito me deliciava ficar lá e que por nenhum preço queria de lá sair Mas a chegada da noite foi contrária aos meus desejos o cavaleiro veio me buscar quando foi tempo e hora de jantar Não pude mais me demorar e segui o seu convite Acêrca do jantar dirvosei brevemente que êle foi totalmente a meu contento pois diante de mim sentouse a donzela que tomou o seu lugar à mesa Após o jantar disseme o cavaleiro que já não podia lembrar desde quando albergara cavaleiros errantes que estivessem à busca de aventuras muitos êle já havia albergado Depois pediume como recompensa que tornasse a visitálo à mi nha volta se pudesse E eu lhe disse De bom grado senhor Pois teria sido vergonha negálo pouco teria feito pelo meu hóspede se lhe tivesse negado êste dom Durante a noite estive muito bem hospedado e meu cavalo estava selado logo que se pôde ver o dia pois isto eu tinha pedido com urgência e meu pedido havia sido cumprido Despedime do meu bom hóspede e da sua cara filha encomendeime ao Espírito Santo pedi a todos permissão para partir e saí tão logo pude No decurso da sua narração o cavaleiro que se chama Calogrenante conta ainda como encontra um rebanho dc touros e ouve do seu pastor um vilain grotescamente feio o enorme acêrca de uma não muito longínqua fonte mágica ei corre por baixo de uma magnífica árvore junto a ela pende uniu bacia de ouro e quando se joga a sua água com esta bacia poi sôbre uma placa de esmeralda que se encontra ao seu laiUi ocorrem no bosque tremendos ventos e tempestades das quain ninguém ainda conseguiu sair vivo Calogrenante procura a aven tura sobrevive a tempestade e goza com alegria da scrcmdmlc subseqüente embelezada pelo canto de muitos pássaros aparece um cavaleiro que o increpa por causa dos danos ocatio nados pela tempestade nas suas propriedades e o vence dc mu neira que êle é obrigado a voltar a pé e desarmado para o castelo do seu hóspede Lá é novamente muito bem recebido f lhe asseguram ser êle o primeiro que conseguira sair são c salvo daquela aventura A narração de Calogrenante causa prol mula impressão aos cavaleiros da côrte dc Artur próprio rei dixi de ir êle mesmo com grande séquito em busca da tonlc mágica Mas um dos seus cavaleiros o primo de alonrciiaiiU Yvain adiantaselhe vence e mata o Cavaleiro da 1oiiU r obtém de um modo um tanto fantástico mas outro tanto muito natural o amor da sua viúva A SAIDA DO CAVALEIRO CORTÊS 109 Não obstante só haja um espaço de cêrca de setenta anos entre êste texto e o anterior e não obstante também aqui se trate de uma obra épica da época feudal já à primeira vista aparece aqui um movimento estilístico quase totalmente mu dado Narrase de maneira fluida leve quase aconchegante A narração avança sem pressa mas com perseverança os seus membros estão unidos entre si sem interstícios Todavia tam bém aqui não há períodos retesadamente organizados passase de forma frouxa e sem planificação exata de um membro do processo ao outro também as conjunções não estão ainda muito fixadas no seu significado especialmente que tem demasiadas funções a cumprir de maneira que algumas engrenagens causais por exemplo v 231 235 ou 237 têm um efeito um tanto indefinido Mas a continuação da narração progressiva não é afetada por isto antes pelo contrário a frouxidão da articulação resulta em um estilo narrativo muito natural e a rima muito livre e independente da articulação semântica nunca deve inter romper com violência Uma ou outra vez a rima dá ao poeta motivo para a construção de versos de enchimento ou para com plicadas perífrases por exemplo v 193 ou 211216 que se encaixam no seu estilo sem esforço e ainda aumentam a im pressão de amplidão ingênua fresca e confortável Quanto mais flexível e livre de movimentos é esta linguagem do que aquela do cantar de gesta quanto mais àgilmente ela pode chocalhar os movimentos da narração muito ingênuos ainda mas já bas tante variadamente lúdicos Isto pode ser observado em quase tôda oração Tomemos como exemplo os versos 241246 La la trovai si afeitiee sie bien parlant et dnseigniee de tel sanblant et de tel estre que m out m i delitoit a estre rte ja mes por nul estovoir ne man queisse removoir a oração ligada à anterior pelo la apresenta um período consecutivo A sua parte ascen dente está dividida em três estágios o terceiro dos quais con tém uma formulação antitética sanblant estre que evidencia uma formação analítica elevada e já então tornada natural e evidente para o julgamento das pessoas A parte descendente tem dois membros sendo que os dois apresentam um cuidadoso decrescendo O primeiro exprime o fato de deliciarse no indi cativo o segundo hipotèticamente no subjuntivo construções tão refinadas intercaladas em meio a uma narração de maneira leve e fluente dificilmente seriam encontráveis em qualquer língua vulgar antes dos romances corteses Aproveito a ocasião para observar que com o paulatino surgimento de uma còns trução hipotàticamente mais rica e periodizante a ligação conse cutiva parece ter sido a preferida pelo menos até Dante tam bém naquilo que transcrevemos da Folie Tristan o ápice é dado mediante um movimento consecutivo Enquanto outras ligações modais estavam ainda pouco desenvolvidas esta floresceu e ga nhou funções expressivas peculiares que depois tornaram a se perder a êste respeito há um trabalho interessante de A G Iliitchcr Kcviir dtx hludfs Indoeuropêeimes 11 30 uloiireniintc conta ík lYivola Kedonda do rei que sete no untes siiírn a cavalo h ò í i i Ih em busca lc aventuras armailo MIMESIS como corresponde a um cavaleiro e que então encontrou um ca minho à direita atravessando um espêsso bosque Aqui espan tamonos À direita Esta é uma indicação de lugar bastante estranha quando como neste caso é empregada de forma abso luta Tratandose de topografia terrena só pode ter sentido quando empregada de forma relativa Portanto o seu sentido aqui é moral evidentemente tratase do caminho certo en contrado por Calogrenante E isto é comprovado de imediato pois o caminho é penoso como os caminhos certos soem ser leva durante o dia todo através de matos e espinhos e à noite leva à meta certa um castelo onde Calogrenante é recebido com alegria como se se tratasse de um hóspede esperado há muito tempo Só à noite quando sai do bosque parece descobrir onde se encontra isto é numa charneca em Broceliande Broceliande em Armórica sôbre a terra firme é um país feérico famoso na tradição bretã com fontes mágicas e bosques fantásticos De que maneira Calogrenante que presumivelmente partiu das Ilhas Britânicas da côrte do rei Artur chegou à Bretanha no conti nente isto não é indicado Nada ouvimos acêrca da travessia do mar assim também mais tarde v 760 ss quando da via gem de Yvain que pela sua vez partê indubitàvelmente dc Carduei no País de Gales e cuja viagem até o caminho certo em Broceliande é descrita de maneira totalmente indefinida e fantástica Logo que Calogrenante descobre onde está êle já avista o hospitaleiro castelo Na sua ponte está o castelão com o falcão de caça na mão e o recebe com alegria que ultrapassa a expressão da simples hospitalidade e que nos confirma mais uma vez que se tratava do caminho certo el il me dixt tol maintenant plus de çant fois an uti tenant que beneoite fust la voie par ou leanz venuz estoie A recepção que se segue de senvolvese segundo o cerimonial cavaleiresco cujas formas graciosas já parecem ter sido estabelecidas há tempo o castelão convoca com três golpes sôbre uma placa de cobre tôda a cria dagem retirase o cavalo do recémchegado aparece umu bela donzela a filha do castelão Sua tarefa consiste em livrar hóspede da sua armadura e em cobrilo no seu lugar com um elegante manto assim como em fazer com que o tempo passe para êle de modo agradável fazendolhe companhia sòzinhu num belo jardim até o jantar estar pronto Depois dêste i castelão conta ao seu hóspede que já faz tempo que êle alberga cavaleiros andantes que vão em busca de aventuras Convidao com ardor a visitar novamente o castelo à sua volta mas estui nhamente nada diz da aventura da fonte não obstante a conhe ça e não obstante saiba que os perigos que ali esperam pelo seu hóspede impedirão ao que tudo indica a volta que éle parece prever Tudo isto parece estar contudo na mais peileihi ordem Pelo menos não afeta de forma alguma o louvor que Calogrenante e mais tarde também Yvain outorgam í Itm pitalidade e às virtudes cavaleirescas do castelão alogiciumie pois sai a cavalo de manhã e só fica sabendo algo accua dn fonte através do satírico vilão Pste todavin níu sabe o que A SAI DA DO CAVALEIRO CORTES 111 seja uvanture pois que êle não é cavaleiro mas conhece as mágicas qualidades da fonte e não cala o que sabe Muito evidentemente encontramonos em meio a um má gico conto de fadas O caminho certo através do bosque espi nhoso o castelo que é como se surgisse do nada a forma da recepção a bela senhorinha o estranho calor do castelão o sátiro a fonte mágica tudo isto é atmosfera feérica Não menos feéricas do que as indicações espaciais são as indicações temporais Sete anos calou Calogrenante acêrca da sua aventura Sete é uma cifra mágica e os sete anos de que se fala no comêço da Canção de Rotundo lhe conferem também uma atmosfera lendária sete anos set ans tuz pleins passou o imperador Carlos na Espanha Só que na Canção de Rolando são realmente sete anos inteiros são tuz pleins pois serviram ao imperador para subjugar todo o país até o mar para conquistar todos os seus castelos e cidades com exceção de Saragoça durante os sete anos que vão desde a aventura de Calogrenante junto à fonte e o seu relato nada parece ter acontecido ou pelo menos nós nada ficamos sabendo a respeito Quando Yvain se dispõe a passar pela mesma aventura êle ainda encontra tudo na forma como Calogrenante o descreveu o castelão e sua filha os touros com o seu gigantesco e horrível pastor a fonte mágica e o cava leiro que a defende Nada mudou os sete anos passaram sem deixar rastos tudo está como estava de maneira exatamente igual ao que sói acontecer nas histórias de fadas É uma paisa gem feèricamente encantada estamos envoltos pelo segrêdo ao nosso redor há murmúrios e cochichos Todos os muitos caste los e palácios lutas e aventuras dos romances corteses especial mente dos bretões são do país dos contos de fadas pois sempre se nos aparecem como brotados do chão A sua relação geográ fica com a terra conhecida as suas bases sociológicas e econô micas ficam sem explicação Mesmo a sua significação moral ou simbólica é só raramente determinável com alguma certeza Esta aventura junto à fonte mágica tem algum sentido oculto Pertence certamente àquelas que os cavaleiros da côrte de A rtur devem empreender mas em nenhum lugar é dada uma motivação moral da justiça da luta contra o cavaleiro da fonte Em outros episódios dos romances corteses podem ser reconhe cidos às vêzes motivos simbólicos mitológicos ou religiosos Assim a viagem pelo mundo subterrâneo empreendida por Lan celote o próprio motivo da libertação e da salvação em muitos Ireohos e sobretudo o motivo da graça cristã na lenda do Graal só que em caso quase nenhum os significados podem ser estabelecidos com rigor pelo menos não ainda nos romances corteses propriamente ditos O secreto o que brota do chão ocultando as suas raízes inacessível a qualquer explicação racio nal foi tirado pelo romance cortês da lenda popular bretã que êle recebeu c pôs a serviço do aperfeiçoamento do ideal cavalei resco A matiíre de Bretngne mostrouse evidentemente como sendo o meio mais apropriado para o desenvolvimento dêste ideal mais apropriado anula do que por exemplo os gêneros 112 MIMESIS antigos que entraram em voga quase simultâneamente mas logo foram deixados para trás A autorepresentação da cavalaria feudal nas suas formas de vida e nas suas concepções ideais é a intenção própria do romance cortês Também as formas exteriores de vida são re presentadas com lazer e em tais ocasiões a representação aban dona a distância nebulosa da história de fadas para apresentar imagens totalmente presentes de costumes contemporâneos Outros episódios dos romances corteses mostram tais quadros de maneira ainda mais colorida e pormenorizada do que o trecho que escolhemos só que também nêle é observável o essencial do seu caráter de realidade O castelão com o falcão a criadagem chamada com o gongo de cobre a bela donzela filha do castelão que lhe tira a armadura e lhe veste uma roupa confortável e conversa amàvelmente com êle até a hora do jantar tudo isto são quadros graciosos de um costume já fixado quase de um ritual mostrado pela sociedade cortesã na moldura de um estilo de vida bem modelado A moldura é tão forte e isolante tão deposta contra as formas de vida de outras camadas sociais quanto a da chanson de geste só que é muito mais cultivada e mais elegante As mulheres têm nela um papel importante desenvolveuse o distinto conforto da vida social de uma camada cultural Aliás adotou um caráter que ficará sendo por muito tempo uma das características mais singulares do gôsto francês o caráter gracioso talvez até um pouco demasiado lavrado A cena com a jovem do castelo como ela aparece como êlc a olha o desarmamento a conversação no prado não obstan te se trata aqui só de um exemplo pouco elaborado dá com suficiência a impressão da coqueteria amorosa graciosa clara c sorridente fresca elegante e ingênua na qual justamente Chré tien é um dos mestres Imagens estilísticas desta espécie encon tramse bastante cedo na França nas chansons de toile c mesmo uma vez na Canção de Rolando na laisse que trata de Margariz de Sevilha v 955 ss mas sòmente a cultura cortesã as desenvolveu e especialmente o grande charme de Chrétien repousa em grande parte sôbre seu dom de desenvolver êste tom com a maior variedade Êste estilo aparece com o seu pleno brilho quando se trata do jôgo amoroso real Entre as cenas dêste jôgo há então um arrazoado antitético acêrca do senti mento aparentemente ingênuo mas de uma amabilidade extre mamente artística O exemplo mais famoso encontrase no prin cípio do Cligès onde é representado o amor nascente entre Alixandre e Soredamors com a inicial timidez do mútuo escon derse e a irrupção final do sentimento numa série de cenas encantadoras e de solilóquios analíticos O gracioso e o amável dêste estilo cujo atrativo é a frescura e cujo perigo é o mesqui nho o tolamente coquete e o frio dificilmente pode ser achado em tal grau de pureza na poesia antiga é uma criação da Frunçu medieval Aliás êste estilo não se limita sòmente a episódio amorosos Todo o quadro que representa os aspectos vitais dn sociedade feudal está afinado no mesmo tom tanto cm liuMicn A SAfDA DO CAVALEIRO CORTÊS 1 1 3 quanto no romance de aventuras posterior e nas narrativas me nores em verso tanto no século XII como ainda no século XIII A sociedade cavaleiresca se apresenta em versos graciosos amá veis pintados com extrema fineza e claros como a água Mi lhares de pequenos quadros e cenas descrevemnos os seus costu mes as suas opiniões e o tom do seu comércio social Nestes quadros há muito brilho muito tempêro realista muita fineza psicológica e também muito humor É um mundo muito mais rico muito mais cheio de variedade mais pleno do que o mundo dos cantares de gesta ainda que êle também seja o mundo de somente um estamento Às vêzes Chrétien parece até quebrar as barreiras sociais como quando fala da oficina das trezentas donzelas da Avanture du Chastel de Pesme Yvain 510 ss ou quando da representação daquela rica cidade cujos cidadãos quemune procuram assaltar o castelo onde se encontra Galvão Perceval 5710 ss mas tais episódios não são senão um colorido cenário para a vida cavaleiresca O realismo cortês oferece uma imagem viva muito rica e temperada de uma única classe uma classe social que se segrega das outras classes dos seus contemporâneos fazendoos aparecer uma ou outra vez como cenários coloridos geralmente cômicos ou grotescos Portanto a separação estamental entre por um lado o importante o signifi cativo e o elevado e pelo outro o baixo cômico grotesco fica em pé do ponto de vista do conteúdo Somente a classe feudal tem acesso ao primeiro dêstes campos Contudo não é possível falar de uma separação de estilos pròpriamente dita enquanto o romance cortês não conhece um estilo elevado isto é uma dife rença de grau na elevação da forma de expressão O confor tável ágil e elástico octossílabo rimado acomodase sem qual quer esforço a qualquer objeto e a qualquer afinação do senti mento ou do pensamento Em geral também já tinha seivido para os mais diversos fins para anedotas tão bem quanto para vidas de santos Nos casos em que trata de assuntos muito sérios ou terríveis fàcilmente apresenta pelo menos para o nosso modo de sentir algo de ingênuo infantil e de fato há um valor infantil na frescura com que procura dominar um mundo já tão ricamente diferenciado através de uma linguagem literá ria tão jovem ainda apenas carregada de teoria ainda não libe rada da multiplicidade dialética O problema das altitudes esti lísticas tornase consciente para a língua vulgar só muito mais tarde só com Dante Uma limitação ainda mais forte do que a estamental provém para o realismo do romance cortês da sua atmosfera feérica Ela traz consigo o fato de que todos os quadros vivos e colori dos da realidade contemporânea pareçam brotados do chão isto é do chão dos contos de fadas de tal forma que como já dissemos carecem dc tôda base realpolítica As circunstâncias geográficas econômicas e sociais nas quais repousam nunca siio esclarecidas Brotam de forma imediata do feérico e do iivcntiiresco A olicina tão espantosamente realista no yvain que acabei de menciontir no qual até sc fala em condições de MIMESIS trabalho e em salário não surgiu porventura de condições eco nômicas concretas mas do fato de que o jovem rei da Ilha das Virgens que tinha caído nas mãos de dois irmãos malvados e endiabrados só conseguira libertarse dêles pela promessa de entregar anualmente trinta de suas virgens para servirem de trabalhadoras forçadas A atmosfera feérica é o próprio ar que se respira no romance cortês que não quer exprimir sòmente as formas exteriores de vida mas também e sobretudo as repre sentações ideais da sociedade feudal de fins do século XII Assim chegamos ao cerne da sua essência na medida em que esta se tornou significativa para a história da apreensão literária do real Calogrenante sai a cavalo sem incumbência e sem encargo algum Busca aventuras quer dizer encontros perigosos nos quais possa pôrse à prova Nada disto existe na chanson de geste Os cavaleiros que nela cavalgam têm um encargo e se encontram num contexto políticohistórico Êste contexto está inegàvelmente simplificado e deformado mas está conservado na medida em que as personagens que se encontram em ação têm uma função no mundo real a saber a defesa do reino de Carlos contra os infiéis a subjugação e a conversão dos infiéis e coisas semelhantes O ethos da classe feudal isto é o ethos bélico o qual os cavaleiros reconhecem e aceitam serve para tais fins políticohistóricos Calogrenante ao contrário não tem nenhuma tarefa políticohistórica tão pouco quanto qualquer outro dos cavaleiros da côrte do rei Artur O ethos feudal já não serve a nenhuma função política nem em geral a nenhuma realidade prática Tornouse absoluto Já não tem nenhum outro fim afora a sua autorealização Desta forma muda radicalmente Até a palavra que na Canção de Rolando apa rece mais freqüentemente e com a significação mais geral para designálo vasselage parece sair paulatinamente da moda Chrétien a emprega no Erec só três vêzes no Cligès e no Lan ceb te encontrase só uma vez e depois não mais aparece A nova palavra que êle prefere é corteisie uma palavra cuja história importante e longa fornece interpretação mais integral da representação ideal das classes sociais e do homem na Europa Na Canção de Rolando esta palavra ainda não pode ser encon trada só o adjetivo curteis aparece três vêzes das quais duas com referência a Olivier na combinação li proz e li curteis Evidentemente corteisie chegou à sua significação sintética sò mente na cultura cortesã que é chamada assim justamente por isto Os significados nela expressos muito modificados e subli mados com referência à chanson de geste refinamento das regras de luta costumes do trato cortês o preito às damas têm todos em mira um ideal pessoal e absoluto absoluto tanto com referência ao aperfeiçoamento ideal como também em rela ção à falta de finalidades terrenas e práticas O caráter pessoal das virtudes cortesãs não é dado simplesmente por natureza nem é obtido simplesmente por nascença no sentido em qlic a situação prática conferida pelo nascimento dentro de um esta A SAÍDA DO CAVALEIRO CORTÊS 115 mento colocava exigências práticas determinadas nas quais aque las virtudes se desenvolviam normalmente de forma espontânea Agora precisa além do nascimento de uma educação para ser implantado e da provação constante voluntária e incessante mente renovada para ser conservado O meio da provação e da verificação é a aventura avanture um a forma extremamente peculiar e estranha de acontecimento que foi criada pela cultura cortesã Certamente já existe muito antes a pintura fantástica dos milagres e dos perigos que esperam aquêle que é jogado para além dos limites do mundo conhecido a paragens ignotas e longínquas assim como há imagens e narrações não menos fantásticas acêrca dos perigos que mesmo dentro do mundo geogràficamente conhecido ameaçam o homem pela ação dos deuses espíritos demônios e outras fôrças doutas nas artes mágicas Também existe muito antes da cultura cortesã o herói destemido que se sobrepõe a tais perigos mediante a fôrça a virtude a astúcia e a ajuda divina tirando também outros da mesma situação Mas o fato de que tôda uma classe social que está em pleno florescimento contemporâneo veja a supera ção de tais perigos como a sua genuína vocação como a vocação exclusiva na sua representação ideal o fato de que as dife rentes tradições lendárias sobretudo a bretã mas outras também são por ela recebidas para o fim precípuo de criar um mundo cavaleiresco mágico preparado adrede no qual os encontros e os perigos fantásticos vão ao encontro do cavaleiro por assim dizer em série esta ordenação dos acontecimentos é uma criação original do romance cortês Não obstante os encontros perigosos chamados avantures não possuam absolutamente base experiencial alguma não obstante elas não possam ser en caixadas em nenhum a espécie de sistema político existente ou imaginável na prática não obstante elas apareçam umas atrás das outras em longas séries geralmente sem conexão racional a gente não se deve deixar levar pelo significado moderno da palavra aventura no sentido de considerálas simplesmente for tuitas o sôlto periférico desordenado ou como Simmel certa vez disse o que está fora do sentido em si da existência que hoje se relaciona com a palavra aventura não é o que se tenciona no romance épico antes a provação através da aventura é o próprio sentido da existência cavaleiresca ideal A demonstra ção do fato de que o mais genuíno do homem cavaleiresco se manifesta na aventura já foi tentada faz alguns anos por E Eberwein com relação à Lais de M arie de France Zur Deutung mittelalterlicher Existenz Bonn e Koln 1933 pág 27 ss È também possível comproválo no romance cortês Calogrenante procura o caminho certo e o encontra como comprovamos acima é o caminho certo para a aventura e já esta procura e êste achado manifestamnos como um dos eleitos como um dos cavaleiros autênticos da Távola Redonda de Artur Como cavaleiro autêntico e digno da aventura êle é recebido pelo seu hóspede que também é cavaleiro com alegria e bênçãos por causa do iichmlo do cmninho certo Ambos castelão c hóspede pertencem u tuim coniunidmle ordcniidu nu qual sc 6 mlmitiilo 116 MIMESIS mediante uma cerimônia de eleição e cujos membros estão obri gados a se ajudarem mütuamente O ofício próprio do castelão o único sentido do seu domicílio neste lugar parece ser oferecer hospedagem cavaleiresca aos cavaleiros que por lá passarem em busca de aventura Mas a ajuda que dá ao hóspede é misteriosa pelo seu calar acêrca daquilo que espera por Calogrenante Evi dentemente o segrêdo é um dos seus deveres de cavaleiro em to tal contraste com o vilain que não cala nada do que sabe O que seja aventura isto êle não entende pois os costumes cavalhei rescos lhe são estranhos Calogrenante é portanto um genuíno cavaleiro um eleito Mas há muitos graus de eleição não é êle quem é capaz de passar pela aventura somente Yvain o será Os graus da eleição e a eleição especial para determinada aventura ficam ainda mais claros no Lancelote e no Perceval ainda mais acentuados do que no Yvain mas o motivo pode ser reconhecido em toclo lugar onde aparece a poesia cortesã Com isto a série de aventuras passa a ocupar a posição de uma determinação do destino de uma verificação gradativa do estado de eleição Convertese desta forma na base de uma doutrina do aperfeiçoamento pessoal através de um desenvolvimento im posto pelo destino uma doutrina que mais tarde atravessou as barreiras sociais da cultura cortesã É claro que não se deve esquecer o fato de que simultaneamente com a cultura cortesã outro movimento chegou a exprimir com rigor e clareza bem maiores os fenômenos da verificação gradativa de um estado de eleição isto é a mística victorina e cisterciense Não estava limi tada estamentalmente e não precisava da aventura O mundo da provação cavaleiresca é um mundo de aven turas Êle não contém somente uma série quase ininterrupta de aventuras mas também e sobretudo nada além do que pertence à aventura N ada que não seja cenário ou preparação para ela É um mundo criado e preparado adrede para a pro vação do cavaleiro A cena da partida de Calogrenante mostra isto com tôda clareza Êle cavalga o dia inteiro e não encontra nada afora o castelo preparado para recebêlo nada é dito acêr ca de tôdas as condições e circunstâncias práticas que podem tornar a existência de um tal castelo totalmente isolado possível e congruente com a experiência comum Uma tal idealização leva para muito longe da imitação do real No romance cortês calase acêrca do funcional do historicamente verdadeiro sôbrc a classe social e ainda que destas obras possa ser obtida uma pletora de pormenores da história da cultura referentes aos costumes e em geral às formas exteriores de vida não é possí vel obter espécie alguma de visão em profundidade da realidade da época nem no que se refere à classe dos cavaleiros Quando descrevem a realidade só descrevem a superfície colorida e quando não são superficiais têm outros objetos e outras inten ções que não a realidade do tempo Contudo contêm uma ética estamental que como tal reivindicava vigência no mundo real terreno e também a obtinha Pois possui uma grande magia que se vejo claramente descansa cm duas qualidades que a A SAÍDA DO CAVALEIRO CORTÊS 117 distinguem é absoluta pairando por sôbre qualquer contingên cia terrena e dá a quem a ela se submete o sentimento de pertencer a uma comunidade de eleitos um círculo de soli dariedade separado da massa dos homens esta expressão é do orientalista Hellmut Ritter A ética feudal a representação ideal do cavaleiro perfeito conseguiu para si portanto um efeito muito grande e de vida muito longa As idéias coerentes com ela as idéias de valentia honra fidelidade respeito mútuo nobres costumes e dos serviços devidos às damas encantaram ainda homens de culturas muito diferentes Classes sociais que surgiram mais tarde ascendendo de origens urbanas e burguesas retomaram êste ideal não obstante seja não somente exclusivo e estamental mas também totalmente vazio de realidade tão logo ultrapassa os limites do mero costume no trato social e começa a ocuparse com os negócios do mundo tornase insuficiente e necessita de uma complementação que amiúde está em con traste mais do que penoso com êle mesmo Mas justamente por estar tão afastado da realidade êste ideal deixouse adaptar como tal a qualquer espécie de situação pelo menos enquanto existiram classes dominantes Assim o ideal cavalheiresco sobre viveu tôdas as catástrofes que feriram o feudalismo no decorrer dos séculos Sobreviveu mesmo o D om Quixote de Cervantes que interpretou o problema da maneira mais perfeita A pri meira saída de Dom Quixote com a sua chegada vespertina à taverna que êle toma por um castelo é uma paródia perfeita da saída de Calogrenante e justamente pelo fato de Dom Quixote não encontrar um mundo especialmente preparado para a provação cavaleiresca mas um mundo qualquer quotidiano real Pela descrição pormenorizada das circunstâncias da vida do seu herói Cervantes assinalou de maneira muito nítida já no princípio da sua obra a localização da raiz da confusão de Dom Quixote é a vítima de uma estratificação social pertence a uma classe carente de função Pertence a esta classe não pode se livrar dela mas não tem como mero membro de uma classe sem riqueza e sem ligações nos altos círculos espécie alguma de atividade ou de tarefa Sente que sua vida escorre sem sentido como se fôsse um aleijado Somente sôbre um ser humano como êle que vivia de maneira pouco diferente da de um camponês mas possui uma certa cultura e não pode nem deve trabalhar como tal os romances de cavalaria poderiam ter tido um efeito tão enleante A sua saída é uma fugai de uma situação insuportável suportada durante demasiado tempo Quer obter à fôrça a função condigna com o seu estamento Eviden mente a situação três séculos e meio antes na França é muito diferente A cavalaria feudal ainda tem importância decisiva no campo militar o desenvolvimento da burguesia urbana è do absolutismo que organizaria um sentimento centralizante estão ainda nos seus primórdios Mas se realmente Calogrenante tivesse saído da forma como o narra já então se teria defrontado com coisiix muito diferentes daquelas que relata Na segunda ou na leiecini cruudn no unindo de Henrique U luís VII ou Filipe A i i k i i s Io i i s i o í s i i s s r diivnm de maneira muito ilife 118 MIMESIS rente daquela do romance cortês Este não é realidade mode lada poèticamente mas é um esquivarse para o fantástico Bem no princípio em plena florescência da sua cultura esta classe dominante dotouse de um ethos e de um ideal que encobria a sua verdadeira função narrando a sua própria existência de forma extrahistórica livre de função como uma criação esté tica absoluta Certamente há uma explicação para tal fenômeno na borbulhante fôrça imaginativa e no ímpeto que espontânea mento se eleva do real para o absoluto neste grande século Mas esta explicação é demasiado geral para ser suficiente sobre tudo porque a épica cortesã não mostra somente a aventura e a idealização absoluta mas também os costumes graciosos c o pomposo cerimonial Não parece aventurado supor que a longa crise funcional da classe feudal já se fizesse sentir então já nos tempos do auge da poesia cortesã Chrétien de Troyes que viveu primeiramente na Champanha onde justamente no seu tempo as feiras comerciais ganharam importância prim or dial na Europa e mais tarde em Flandres cuja burguesia antes do que em qualquer outro lugar ao Norte dos Alpes atingiu importância econômica e política já devia ter sentido que a classe feudal não mais era a única classe dominante A ampla e duradoura difusão do romance cortês cavalei resco exerceu sôbre o realismo literário uma influência impor tante uma influência de caráter limitativo mesmo antes de que a cToutrina antiga das diferentes altitudes do estilo tivesse um efeito na mesma direção limitativa Finalmente ambas se reuni ram na idéia do que seria estilo elevado que foi se formándo paulatinamente durante o Renascimento Deveremos voltar a isto mais adiante Aqui só falaremos ainda sôbre aquelas in fluências que impediram a apreensão total da realidade empírica e que são características do ideal cavalheiresco Tratase com isto como já foi mencionado anteriormente não ainda de ele mentos estilísticos no sentido mais restrito A epopéia cortesã não chegou ainda a criar um estilo elevado da linguagem poética ao contrário não aproveitou os elementos do sublime que jaziam na form a paratática da epopéia heróica o seu estilo é mais confortàvelmente narrativo do que sublime é utilizável paru qualquer conteúdo As tendências para uma separação dos esti los de linguagem que somente mais tarde começaram a surgir recorrem totalmente às influências da Antigüidade e não àn influências cortesãs e cavaleirescas Tanto mais fortes são uh limitações de conteúdo São de ordem estamental Somente as pessoas cavaloircs cascortesãs são dignas da aventura e portanto só a elas podem acontecer coisas sérias e importantes Quem não pertence a estii classe só pode aparecer como parte do cenário e isto cxcrcciulo uma função cômica grotesca ou desprezível Nem na Antiglii dade nem na epopéia heróica medieval anterior esta xitiuivfto aparece com tanta evidência como aqui onde se trata tlc tiinu segregação e de uma disciplina conscientes dentro de uniu lonm nidade de classe solidária ürn nos tempo poleriores minto A SAÍDA DO CAVALEIRO CORTÊS 119 cedo apareceram tendências que queriam criar tais comunidades solidárias não com base na origem mas com base nas qualidades pessoais na nobreza de modos e costumes Um comêço disto já se encontra nas obras mais importantes da própria épica cortesã que apresentam uma imagem muito interiorizada e muito baseada na eleição e na formação pessoal do homem cavalei resco Mais tarde quando camadas culturais de origem urbana especialmente na Itália adotaram e transformaram o ideal cortês a idéia do ser nobre tomouse cada vez mais pessoal e como tal foi muitas vêzes contraposta polêmicamente ao conceito de aristocracia baseado somente na origem Com isto porém ela não se tornou menos exclusiva guardou sempre o ca ráter de um a camada de eleitos às vêzes até o de uma organização secreta Motivos estamentais místicos políticos sociais educa tivos entrelaçaramse então da maneira mais variada Mas sobretudo a interiorização não trouxe de modo algum uma aproximação com a realidade terrena antes pelo contrário o fato de os contatos com a realidade se tornarem cada vez mais fictícios e cada vez mais carentes de função foi condicionado em parte justamente pela interiorização do ideal cavalheiresco Êste caráter fictício e carente de função que como esperamos ter demonstrado com suficiente clareza já estava contido desde o princípio no ideal cortês condiciona a sua relação com a realidade D a cultura cortesã resulta a idéia longamente vigente na Europa de que o nobre o grande e o importante nada têm a procurar na realidade comum um a convicção muito mais patética e muito mais arrebatadora do que as antigas formas de afastamento do real tais como as que oferece a ética estóica Ê claro que existe uma form a antiga de afastamento do real que é muito mais arrebatadora isto é o platonismo Tentouse repetidas vêzes demonstrar que houve tendências platônicas que coadjuvaram na formação do ideal cortês Em tempos poste riores o ideal cortês e o platonismo complementaramse brilhan temente o Cortegiano do Conde Castiglione é certamente o melhor exemplo disto Mas esta form a especial de afastamento da realidade que a cultura cortesã criou com a construção de um mundo fictício da provação estamental ou da provação estamentalpessoal é uma criação total e integralmente peculiar mente medieval apesar do resplendor platônico que a cobre Com tudo isto relacionase a peculiar escolha de obje tos encontrada pela épica cortesã uma escolha que exerceu sôbre a poesia européia durante longo tempo um a influência determinante Há só dois que são considerados dignos de um cavaleiro feitos de armas e amor Ariosto que construiu dêste mundo fictício um mundo de alegre ficção exprimiu isto inte gralmente nos ieus primeiros versos Le donne i cavalier larme gli amori lc corteile 1audacl impreie io c a n to 120 MIMESIS Outras coisas afora feitos de armas e amor nem podem acon tecer no mundo cortesão e mesmo estas duas são de uma espécie tôda peculiar não são acontecimentos ou sentimentos que possam também faltar de tempos em tempos Ao con trário estão ligadas constantemente com a pessoa do cavaleiro perfeito fazem parte da sua definição de modo que êle não pode estar nem um instante sem aventuras de armas e nem um instante sem complicações amorosas se o fizesse perderseia a si mesmo e não mais seria um cavaleiro Novamente é a versão jocosa ou a paródia Ariosto ou Cervantes a que melhor interpreta esta forma de vida fictícia Sôbre os feitos de armas nada tenho a acrescentar o leitor entenderá que seguindo o modêlo de Ariosto escolho estas palavras e não guerra pois se trata de feitos realizados a torto e a direito que não entram em nenhum contexto políticofuncional Acêrca do am or cortês que é um dos temas mais discutidos da história da literatura medieval só preciso acrescentar também o que é indispensável para o meu objetivo Antes de mais nada é preciso lembrarse que a forma por assim dizer clássica na qual se pensa tão logo se fala em amor cortês a amada como senhora cujos favores o cavaleiro quer ganhar através de feitos heróicos e da dedicação total escravizada não é a única forma de amor que aparece no tempo do florescimento da épica cortesã nem é a que predomina Pensese tão somente em Tristão e Isolda em Erec e Enida em Alixandre e Soredamors em Perceval e Bran caflor em Aucassino e Nicoleta nenhum dêstes casais esco lhidos entre os mais famosos pares amorosos encaixa perfeita mente no esquema conhecido e alguns não encaixam de jeito nenhum De fato a épica cortesã apresenta sobretudo uma pletora de histórias de amor muito diferentes extremamente concretas e permeadas de realidade elas fazem com que o leitor chegue às vêzes a esquecer totalmente o fictício do mundo cm que se desenvolvem O esquema platonizante da senhora ina tingível inutilmente cortejada que inspira o herói à distância que tem sua origem na lírica provençal e se aperfeiçoou no estilo nôvo italiano não predomina em primeiro lugar na épicu cortesã Também a descrição do estado amoroso as conversa ções entre os namorados a descrição da sua beleza e tudo o mais que pertence ao emolduramento dos episódios amorosos apresenta sobretudo em Chrétien de Troyes grande arte gracio sosensual mas dificilmente galanteria hiperbólica Esta neces sita de uma outra altitude estilística que não aquela oferecida pela épica cortesã O fictício e o irreal das histórias am orosa está ainda dificilmente nelas mesmas está muito mais na suu função dentro da estrutura geral do poema Já no romanco cortês o amor é muito freqüentemente o motivo imediato dos feitos heróicos Isto estava bem à mão à falta total de um motivação prática da ação devido a circunstâncias políticohistó ricas o amor como parte essencial e obrigatória da pcrfciçllo cavaleiresca serve como sucedâneo para outras possibilidades dc motivação aqui ausentes Com isto a ordcmiçfio fictícia dos acontecimentos na qual os feitos mais importante jtcriil menti A SAÍDA DO CAVALEIRO CORTÊS 121 acontecem à procura do favor de uma dama já está dada em suas linhas básicas Ao mesmo tempo também está dada a elevação de classe do amor como objeto poético que se tornou tão significativa para a poesia européia A poesia antiga só lbe conferia em geral dignidade média nem nas tragédias nem nas grandes epopéias o amor predomina como objeto A sua posição central da cultura cortesã foi modelar para o estilo elevado das línguas européias vulgares que ia se formando paula tinamente O amor tomouse um objeto do estilo elevado cómo Dante o comprova no seu D e Vulgari Eloquentia II 2 e foi amiúde o objeto mais importante do mesmo Com isto ia de mãos dadas um processo de sublimação do amor que leva à mística ou à galanteria e em ambos os casos leva para muito longe da realidade concreta do mundo Para a sublimação do amor os provençais e o nôvo estilo italiano contribuíram de maneira mais decisiva do que a épica cortesã mas também esta tem parte importante na elevação de categoria do amor enquanto o introduziu no campo do heróicoestamental e o fun diu com o mesmo Assim fica como resultado da nossa interpretação e das considerações que a ela se juntaram a conclusão de que a cul tura cortesã foi decididamente desfavorável para o desenvolvi mento de um a arte literária que abarcasse a realidade em tôda sua amplidão e profundidade Viviam porém nos séculos XII e XIII outras fôrças que foram capazes de alimentar tal desen volvimento Adão e Eva Adam vero veniet ad Evam moleste ferens quod cum ea locutus sit Diabolus et dicet ei Di moi muiller que te querroit Li mal Satan que te voleit e v a Il me parla de nostre honor 280 a d a m Ne creire ja le traitor Il est traître bien le sai e v a Et tu cornent a d a m Car lesaiai e v a De ço que chalt me del veer Il te fera changer saver a d a m Nel fera pas car nel crerai De nule rien tant que lasai Nel laisser mais venir sor toi Car il est mult de pute foi Il volt traïr ja son seignor 290 E Soi poser al des halzor Tunc serpens artificiose compositus ascendet juxta itipitem arboris vetite Cui Eva propius adhibebit aurem quasi iptiui ascultans consilium Dehinc accipiet Eva pomum porriget Ade Ipse vero nondum eum accipiet et Eva dicet ei Tel paltonier qui ço ad fait Ne voil ver vus ait nul retrait Manjue Adam ne tez que eit Pernum ço bien que nui eit prtit a d a m Eit il tant bon ADÃO E EVA 123 e v a Tu le saveras Nel poez saver sin gusteras a d a m Jen duit e v a Fai le a d a m Nen frai pas e v a Del demorer fai tu que las a d a m Et jo le prendrai e v a Manjue ten 300 Par ço saveras e mal e bien Jo en manjerai premirement a d a m E jo après e v a Seurement Tunc commedet Eva partem pomi et dicet Ade Gusté en ai Deus quele savor Une ne tastai ditel dolçor D itel savor est ceste pome a d a m De quel e v a Ditel nen gusta home Or sunt mes oil tant cler veant Jo semple Deu le tuit puissant Quanque fu quanque doit estre 310 Sai jo trestut bien en sui maistre Manjue Adam ne faz demore Tu le prendras en mult bonore Tunc accipiet Adam pomum de manu Eve dicens Jo ten crerrai tu es ma per e v a Manjue nem poez doter Tunc commedat Adam partem pomi Adão deve então dirigirse a Eva preocupado porque o diabo falou com ela e deve dizerlhe Dizeime mulher o que procurava o malvado Satanás junto a ti O que queria de ti EVA Faloume do nosso proveito ADAO NSo acredites no traidor Êle é um traidor bem o sei EVA Como o sabes ADAO Porque o experimentei EVA Por que deveria isso impedirme de vêlo Também a ti Ale fará mudar de saber ADAO Ntto o conseguirá porque nío acreditarei néle sem provas N lo deixei mali que êle se aproxime de ti pois é um ujelto muito malvado Já quii trair o seu senhor e pôrse 124 MIMESIS a si mesmo na sua altura Não quero que um tal patife tenha qualquer coisa a ver contigo Aqui uma serpente hàbilmente construída deve subir pelo tronco da árvore Eva deve aproximar o seu ouvido da serpente como se ouvisse o seu conselho depois deverá pegar a maçã e oferecêla a Adão Êste não deverá querer pegála a princípio e Eva deverá dizerlhe Come Adão tu não sabes o que é isto Peguemos êste bem que nos é dado ADÃO Ê tão bom EVA Logo o saberás Não podes sabêlo sem experimentar ADÃO Tenho mêdo de fazêlo EVA Fálo ADÃO Não o farei EVA Que hesitação covarde é essa ADÃO Então a pegarei EVA Come pega Assim reconhecerás o bem e o mal Eu comerei primeiro ADÃO E eu depois EVA Naturalmente Aqui Eva deverá comer um pedaço da maçã e dizer a Adão Experimentei Deus que sabor Nunca comi algo tão doce Que sabor tem esta maçã ADÃO Que sabor EVA Um sabor que nunca homem algum experimentou Agora os meus olhos tornaramse tão claros que eu me sinto como Deus todopoderoso Tudo o que foi tudo o que será tudo o sei e sou seu senhor Come Adão não hesites pegálaás em boa hora Aqui Adão deverá pegar a maçã da mão de Eva e dizer Crerei o que dizes tu és meu par EVA Come não temas Aqui Adão deverá comer um pedaço da m açã Este diálogo pertence ao M ystère dAdam uma peça nata lina de fins do século XII que foi conservada num único manus crito Dos tempos primitivos do drama litúrgico ou surgido da liturgia muito pouco ficou conservado e dêste pouco o Mystère dAdam é uma das peças mais antigas em língua vulgur O pecado original que nela ocupa o maior espaço depois ainda é apresentado o assassinato de Abel e a procissão dos profetas que anunciam a chegada de C risto começa com uma tentutivu infrutuosa do diabo de seduzir Adão Após isto o diabo diri gese a Eva com a qual tem melhor sorte sai correndo puni o inferno mas é visto ainda por Adão Após seu desapurcei mento começa a cena transcrita Uma cena assim diitlogiuln não existe no Gênesis assim como também nâo existe umii ten tativa anterior do diabo de seduzir A dio Em forma ilc diálogo no Gênesis aparece sòmcnte a conversarão entre 1vti e 11 wi ADÃO E EVA 125 pente que segundo uma tradição muito antiga é idêntica ao diabo cf Apoc 129 A continuação é puramente informa tiva vidit igitur mulier quod bonum esset lignum ad vescendum et pulchrum oculis aspectuque delectabile et tulit de fructu illius et comedit deditque viro suo qui comedit Destas últimas palavras surgiu a nossa cena Ela decompõese em duas partes uma primeira que con tém um a conversação entre Adão e Eva a respeito da desejabi lidade do trato com o diabo durante a qual a maçã ainda não é mencionada e uma segunda durante a qual Eva tira a maçã da árvore e seduz Adão a comêla As duas partes estão separadas entre si pela intervenção da serpente da serpens arti ficiose compositus que sussurra algo no ouvido de Eva O que ela sussurra não é pronunciado mas nós podemos imaginálo pois imediatamente depois Eva pega a maçã oferecea ao reti cente Adão e diz aquilo que será o seu motivo principal sempre repetido Manjue Adaml Ela interrompe portanto a primeira conversação acêrca do trato com o diabo inacabada não res ponde à última fala de Adão mas cria uma situação inteiramente nova um fato consumado que deve ter um efeito tanto mais surpreendente sôbre Adão uma tvez que até então êles nunca tinham falado acêrca da maçã Evidentemente isto acontece a conselho da serpente e isto explica a intervenção da mesma nesse preciso instante pois não mais seria necessário ganhar Eva para si e para os seus planos Isso já acontecera na cena anterior entre Eva e o diabo que term inara com a decisão de Eva de comer a maçã e de oferecêla a Adão A intervenção da serpente no meio da conversação entre Adão e Eva só pode ter a finalidade de indicar a Eva as regras de comportamento necessárias para êsse instante isto é interromper a conversação inútil e perigosa do ponto de vista do diabo e passar logo aos atos Para o diabo e para o seu plano a conversação é inútil e perigosa justamente porque evidentemente não está levando ao convencimento de Adão e porque existe até mesmo o perigo de que Eva possa voltar a duvidar Observemos agora a primeira parte da cena a conversação sôbre a desejabilidade do trato com o diabo Adão pede contas de sua mulher da mesma form a que o poderia ter feito um camponês ou um burguês francês que ao voltar ao lar visse algo que não lhe agradasse sua mulher conversando com um sujeito com o qual êle já havia tido más experiências e com quem não quer ter nada a ver Mulher muiller êle diz o que é que êsse aí queria de você O que é que êle tem a ver com você Eva dá uma resposta que deveria impressionálo Êle nos falou do nosso interêsse do nosso proveito pois interes se proveito deve ser aqui o sentido de honor já na chanson d t gexte esta paluvru tem um sentido fortemente m aterial Não acredites nôle diz Adão com energia êle é um traidor eu sei disso muito bem fí claro que também Eva sabe disso muito hcm mu cia nAo chegou n ter consciênciu de que isso fôsse iraiçAo cln mio posnui uma consciência moral como a de Adão 126 MIMESIS mas tem uma curiosidade ingênua infantilmente valente brin calhonamente pecadora A clara classificação e condenação que Adão faz do diabo e das suas propostas coloca Eva num a situa ção embaraçosa e ela se safa mediante uma pergunta insincera entre desavergonhada e embaraçada igual à que foi feita milha res de vêzes em situações semelhantes por pessoas infantis saltitantes prêsas aos instintos Como é que tu sabes disso A pergunta não lhe serve de nada Adão sabe muito bem quão certo êle está Eu o sei pela minha própria experiência Estas palavras não podem ser ditas por Eva como foi suposto recentemente por um crítico de textos ainda voltaremos a êste ponto pois somente Adão teve conscientemente a experiência em questão Ê o tom dele que ressoa na enérgica réplica Eva ao contrário não interpretou a sua conversa com o diabo de maneira alguma como uma experiência da sua traição a sua brincalhona curiosidade não apreendeu o problema moral Tam bém agora ela não o compreendeu pois não quer compreendêlo faz tempo já que está decidida a experimentar uma vez o outro partido o partido do diabo Mas sente que não pode contradi zer sèriamente Adão quando êle diz que o diabo é um traidor ela não continua portanto pelo caminho que iniciara com a pergunta Como é que tu sabes mas se arrisca entre insolente e temerosa a apresentar um pouco dos seus verdadeiros pensa mentos Por que isso deveria impedirme de vêlo Também a ti êle levará a pensar de outro modo changer saver referese âo bien le sai o conhecimento da traição do diabo que só Adão tem Com isto porém ela errou totalmente o alvo pois agora Adão está sèriamente zangado Isto êle não conseguirá pois nunca acreditarei numa só das suas palavras E com a auto ridade de um homem que se sente senhor da sua casa e que sabe que objetivamente tem tôda razão justificando claramente a sua posição proíbe a Eva todo trato com o diabo com um patife que fêz tais coisas não podes ter trato algum com a lembrança do papel que Deus lhe conferiu perante a mulher Tu la governe par raison v 21 Neste momento o diabo acha que os seus negócios vão mal e decide intervir Comentei extensamente êste trecho porque o texto do ma nuscrito no que se refere à divisão das palavras entre os dois interlocutores entrou numa certa desordem e também porque S Etienne Romania 1922 p 592595 propôs uma certa lei tura para os versos 280287 que também foi seguida pela edição de Chamard Paris 1925 e que não me convence Ê assim 280 ADAM Ne creire le traitor II est traitre EVA Bien le sai ADAM E tu coment EVA Car 1asaiai De ço que chalt me dei veer7 ADAM II te ferra changer laver ADÃO E EVA 127 EVA Nel fera pas car nel crerai De nule rien que 1asai ADAM Nel laisser mais Isto pareceme impossível o tom tão diferente das duas perso nagens fica totalmente misturado nem Eva pode dizer bien le sai nem Adão pode perguntar como é que ela o sabe nem Eva pode referirse à experiência e a supressão da enérgica resposta de Adão O diabo jamais conseguirá fazêlo do meio da conversa interpretandoa como uma afirmação apaziguado ra de Eva diante das dúvidas de Adão pareceme totalmente errada Como justificação da sua versão Etienne diz que a resposta de Eva De ço que chalt me dei veer a uma frase an teriormente dita por Adão eu o sei por experiência própria como o entendiam os editores anteriores e também eu seria d une maladresse inconcevable Dessa forma Eva admitiria perante Adão estar em conluio com o diabo ayant ainsi con vaincu Adam de sa complicité avec le tentateur elle réussirait dès la scène suivante à le persuader d accepter delle ce quil avait refusé de son compère Isto seria totalmente inverossímil Tam bém seria inverossímil que Eva dissesse Satanás já te fará pen sar de outra maneira pois Satan nintervient plus Pois não é Eva que seduz Adão Etienne entende que Eva seja portanto uma pessoa muito hábil e diplomática cuja meta seria acalmar Adão e fazêlo esquecer Satanás contra o qual êle nutre um preconceito ou darlhe a entender pelo menos que ela não confia cegamente em Satanás mas quer esperar para ver se as suas promessas se cumprem Deixando totalmente de lado o fato de que tais manifesta ções dificilmente podem ser apropriadas para acalmar Adão deixando totalmente de lado também que a circunstância de o diabo não mais aparecer nada fala contra a observação de Eva de que êle fará mudar Adão de opinião deixando totalmente de lado êstes pequeninos defeitos a versão de Etienne mostra que êle não compreendeu a importância da intervenção da ser pente nem a trem enda agitação de Adão pelo cumprimento do seu conselho isto é tirar a maçã da árvore por mais que estas duas circunstâncias constituam a chave da cena tôda Por que intervém a serpente Porque sente que do jeito que as coisas estavam indo a sua causa não vai para a frente N a rea lidade Eva é pouco hábil muito pouco hábil ainda que esta fal ta de habilidade não seja de forma alguma difícil de compreen der pois sem a ajuda do diabo ela é apesar de curiosapecadora fraca dirigível pelo seu marido muito inferior a êle assim como Deus a criou da costela do homem Expressamente êle ordenou a Adão que a dirigisse e a Eva que o servisse e obede cesse Eva é diante dêle medrosa submissa acanhada ela sente que não pode enfrentar a sua vontade clara sensata e máscula Sòmente através du serpente a situação muda ela inverte a ordem estabelecida por Deus faz ilu mulher o senhor do homem e leva ilesta forinu os ilois à perdição 128 MIMESIS Ela consegue tudo isto aconselhando Eva a abandonar a discussão teórica e a colocar Adão perante um fato consumado e totalmente inesperado para êle Já antes quando o diabo falava com Eva êle lhe havia dado a regra de comportamento primes le pren Adam le done Esta regra é o que a serpente iembra a Eva Adão não deve ser atacado no ponto em que é forte mas no seu ponto fraco Êle é um bom homem um camponês ou burguês francês No andamento normal da vida êle é de confiança e seguro de si êle sabe o que deve fazer e deixar de fazer Deus ordenoulhe isto claramente e a sua de cência descansa nesta segurança que o guarda de complicações imprevisíveis Êle também sabe que domina a sua mulher êle não teme os seus ocasionais caprichos que lhe parecem infantis e carentes de perigo De repente acontece uma coisa inaudita que estremece todo o seu modo de vida A mulher que até há pouco tagarelava de modo tão infantilmente inconsciente tão insensata e saltitantemente que êle acaba de repreender com umas poucas palavras sérias para as quais não houve resposta manifesta subitamente uma vontade própria totalmente inde pendente da sua manifestaa num a ação que se lhe apresenta como monstruosa ela arranca a maçã da árvore como se fôsse a ação mais fácil e natural do mundo e instao com a sua quá drupla repetição manjue Adam O horror rejeitante expresso pela observação latina destinada à direção Ipse autem non dum eum accipiet não pode ser apresentado de forma sufi cientemente forte Mas já não há a tranqüila segurança de antes O estremecimento é demasiado forte para êle os papéis estão trocados Eva domina a situação As poucas palavras entrecor tadas que Adão ainda fala mostramno totalmente perturbado Êle vacila entre o mêdo e o desejo não propriamente desejo pela maçã mas por autoafirmação será que êle como homem deverá ter mêdo diante de uma coisa que a mulher conseguiu levar a cabo E quando finalmente êle vence o seu mêdo c pega a maçã age com um gesto extremamente emocionante o que sua mulher faz êle também fará nela êle quer confiar jo ten crerrai tu es ma per perniciose misericors como certu vez definiu Bernardo de Clairvaux PL 183 460 Observese aqui como á errada a formulação de Etienne quando êle se sur preende com o fato de que Eva que está de acôrdo com o dia bo consiga seduzir Adão embora o próprio diabo não o tivesse conseguido só ela poderia conseguilo com ajuda do diabo pois só ela está unida a Adão de uma forma tão especial que os seus atos produzem efeitos espontâneos nêle e o estreme cem ela é sa per o diabo não o é deixando totalmente de lado o fato de que faz parte da sedução o fato consumado da maçã ter sido arrancada e oferecida a Adão e êste fato só po deria ter acontecido através de um homem não do diabo En quanto pois na segunda parte da cena Adão parece estar per turbado e ter perdido o sangue frio Eva está como sc diz na linguagem esportiva em ótim a forma o diabo lhe ensinou de que modo pode dominar o seu marido cm que ponto é superior a êle na irreflexão dos atos na falta de um sentido inorul pró ADÃO E EVA 129 prio de tal forma que ela ultrapassa os limites fixados com a audácia da minoridade tão logo o homem não mais a tem sob sua férula en sa discipline v 36 Assim ela se apresenta se dutora com a maçã na mão e brinca com Adão confuso des concertado cheia de instâncias e promessas rindo do seu mêdo ela o leva cada vez mais longe e finalmente tem uma idéia genial ela comerá primeiro Ela o faz realmente e quando então ela torna a se dirigir a êle louvando o gôsto e o efeito da fruta e dizendo manjue Adam aí então êle não pode retroceder pega a maçã com as palavras comoventes que acima citamos novamente ela diz pela última vez come não tenhas mêdo e então a coisa está feita O acontecimento que aqui nos é apresentado de forma dra mática é o ponto de partida do drama cristão da salvação por tanto para o poeta e para os seus ouvintes um objeto da mais elevada importância e da maior sublimidade Só o objetivo da representação é popular o acontecimento antiquíssimo sublime deve tomarse presente deve transformarse num acontecimento presente possível em qualquer tempo concebível por qualquer ouvinte e familiar a todos deve penetrar fundamente na vida e no sentimento de qualquer francês contemporâneo Adão fala e age de maneira que em nada se diferencia daquela que qual quer ouvinte está acostumado a ver em sua casa ou na casa do seu vizinho as coisas não se dariam de form a diferente ejm qualquer casa burguesa ou camponesa se qualquer homem li mitadamente probo fôsse levado pela sua mulher frívola e orgulhosa seduzida pelas promessas de um embusteiro a come ter uma ação tôla e comprometedora A conversação entre Adão e Eva esta primeira conversação históricouniversal entre ho mem e mulher convertese num acontecimento da realidade mais simples e quotidiana convertese por mais sublime que seja num acontecimento de estilo simples e baixo N a antiga teoria o estilo de linguagem elevado e sublime chamavase sermo gravis ou sublimis o baixo sermo remissus ou humilis ambos deviam permanecer severamente separados No cristianismo ao contrário as duas coisas estão fundidas des de o princípio especialmente na encarnação e na paixão de Cristo nas quais são tornadas realidade e são unidas tanto a suhlimitas quanto a humilitas ambas no mais alto grau Êste é um motivo cristão muito antigo e renasce na litera tura teológica e sobretudo mística do século XII para uma nova vida é freqüentemente encontrável em Bernardo de Clair vaux ou nos victorinos sendo que tanto humilitas quanto subli mitas aparecem amiúde em contraste antitético tanto em relação a Cristo quanto de forma absoluta Humilitas virtutum magistra singularis filia sum m i regis assim diz Bernardo Epist CDLXIX 2 PI 182 674 a summo coelo cum coelorum domino descen d a is Sola est humilitas quae virtudes beatifica et perennat tiiae vim facit regno coelorum quae dominum majestatis humi líavíl uxiue ad niortem mortem aulem crucix Verhum enim Del In xtihllnil nm xtiiuium ui ad nos descenderei prior humi 130 MIMESIS litas invitavit Também nos seus sermões aparece o contraste humilitassublimitas uma e outra vez tanto para a encarnação de Jesus quando êle diz com referência a Lucas 3 23 e era tido por filho de José O humilitas virtus Christi o humilita tis sublimitas quantum confundis superbiam nostrae vanitatis In epiph Domini sermo 1 7 PL 183 146 quanto também para a paixão e aparição de Cristo como um todo como objeto de imitação Propterea dilectissimi perseverate in disciplina quam suscepistis ut per humilitatem ad sublimitatem ascendatis quia haec est via et non est alia praeter ipsam Qui aliter vadit cadit potius quam ascendit quia sola est humilitas quae exaltat sola quae ducit ad vitam Christus enim cum per naturam divinitatis non haberet quo cresceret vel ascenderet quia ultra deum rtihil est per descensum quomodo cresceret invenit ve niens incarnari pati mori ne moreremur in aeternum In ascens Dom 26 PL 183 304 O trecho mais belo e mais característico para o estilo da mística de Bernardo deveria ser o seguinte do comentário ao cântico de Salomão O humilitas 0 sublimitas E t tabernaculum Cedar et sanctuarium Dei et terrenum habitaculum et coeleste palatium et domus lutea et aula regia et corpus mortis et templum lucis et despectio de nique superbis et sponsa Christi Nigra est sed formosa fi liae Jerusalem quam etsi labor et dolor longi exilii decolorat species tamen coelestis exornat exornant pelles Salomonis Si horretis nigram miremini et formosam si despicitis humilem su blimem suspicite Hoc ipsum quam cautum quam plenum consilii plenum discretionis et congruentiae est quod in sponsa dejectio ista et ista celsitudo secundum tempus quidem eo mo deramine sibe pariter contemperantur ut inter mundi huius va rietates et sublimitas erigat humilem ne deficiat in adversis et sublimem humilitas reprimat ne evanescat in prosperis Pul chre omnino ambae res cum ad invicem contrariae sint sponsae tamen pariter cooperantur in bonum subserviunt in salutem Êstes importantes trechos tratam da coisa em si não da sua representação literária sublimitas e humilitas são aqui sempre categorias éticoteológicas não estéticoestilísticas mas também neste último sentido no sentido estilístico a fusão anti tética das duas já foi salientada como peculiaridade das Sagra das Escrituras no tempo dos pais da Igreja especialmente com Agostinho Partiase para tanto de um trecho das Escrituras que diz que Deus as ocultou do sábio e do inteligente e as revelou aos pequeninos Mateus 1125 Lucas 1025 assim como do fato de que Cristo não elegeu como seus primeiros apóstolos homens de elevada posição e cultura mas pescadores e publicanos e outros homens humildes semelhantes cf também 1 Coríntios 1 26 ss e a questão estilística ganhou em atualidade quando durante a expansão do cristianismo as Sagradas Escri turas e em geral a literatura cristã enfrentaram a crítica esté tica dos pagãos altamente instruídos Êstes espantavamsc diunte da idéia de que escritos que segundo o seu juízo estavam redigidos numa língua impossível inculta c nem quiilqiier conhc ADÃO E EVA 131 cimento das categorias estilisticas contivessem a mais elevada das verdades Esta crítica não teve pouco êxito na medida em que os pais da Igreja se preocuparam muito mais do que os escritos cristãos primitivos em assemelharse à tradição estilís tica antiga Ao mesmo tempo porém esta crítica abriu tam bém os seus olhos para a verdadeira e peculiar grandeza das Sagradas Escrituras o fato que elas criaram uma espécie to talmente nova do sublime da qual nem o quotidiano nem o humilde ficavam excluídos mas faziam parte de tal forma que no seu estilo assim como no seu conteúdo realizouse uma com binação imediata do mais baixo com o mais elevado Ligavase com isto outra linha de pensamentos que se referia ao que era dificilmente interpretável oculto em muitos trechos das Sa gradas Escrituras enquanto elas por um lado falam com tôda simplicidade como dirigindose a crianças elas contêm por outro lado enigmas e segredos que se manifestam só a poucos Mas também êstes últimos não estão escritos num estilo orgulhoso e cultivado de tal maneira que o seu significado se manifeste sò mente aos muito instruídos que se tornaram altivos por causa do seu saber êle manifestase a todos os que tiverem humildade e fé Agostinho que descreveu a sua própria ascensão à com preensão das Sagradas Escrituras nas Confissões especialmente III 5 e VI 5 exprime esta questão numa carta dirigida a Volusiano CXXXVII 18 da seguinte forma ea vero quae sacra scriptura in mysteriis occultat nec ipsa eloquio superbo erigit quo non audeat accedere mens tardiuscula et inerudita qua si pouper ad divitem sed invitat omnes humili sermone quos non solum manifesta pascat sed etiam secreta exerceat veritate hoc in promptis quod in reconditis habens ou no primeiro ca pítulo de De Trinitate sacra scriptura parvulis congruens nullius generis rerum verba vitavit um a alusão clara à antiga separa ção dos estilos ex quibus quasi gradatim ad divina atque su blirnia noster intellectus velut nutritus assurgeret Entre as mui tas outras passagens semelhantes que variam êste tema de muitas formas mencionarei ainda uma outra porque descreve a espé cie dc compreensão acessível ao humildemente simples perten ce às Enarrationes in Psalmos e se refere às palavras suscipiens mansuetos Dominus no salmo 146 Conticescant humanae voces requiescant humanae cogitationes ad incomprehensibilia non se cxtendant quasi comprehensuri sed tamquam participaturi onde a copropriedade concretosensível e o místico se unem do modo mais belo naturalmente com intenção polêmica contra o altivo querer compreender intelectual Petrus Lombardus o mes tre das sentenças traslada a passagem quase literalmente ao redor do meio do século XII no seu comentário aos salmos a viragem total em direção à mística encontrase em Bernardo que baseia u compreensão totalmente na meditação sôbre a vida e a paixão dc Cristo Beati qui noverunt gustu felicis experien tiu qtuim dukiter quam mirabiliter in oratione et meditatione xcripturas dígnetur Dominus revehtre in feria II Paschatis ser mo 20 132 MIMESIS Tratase de vários pensamentos que mùltiplamente ligados entre si chegam a ser expressos nestas passagens que as Sagra das Escrituras vão ao encontro daqueles que têm o coração sim ples e crente que êste último é necessário para participar nelas pois é a participação e não uma compreensão racional o que elas querem dar que o oculto e o obscuro que elas contêm tam bém não está redigido em estilo elevado eloquio superbo mas em palavras simples de maneira que qualquer um pode quasi gradatim elevarse do mais simples ao divino e ao subli me ou como o exprime Agostinho nas Confissões que é necessário IêIas como uma criança verum tamen illa erat quae cresceret cum parvulis E o pensamento de que as Sagradas Escrituras se diferenciavam nisto tudo dos grandes escritores profanos da Antigüidade também permaneceu vivo em tôda a Idade Média Ainda na segunda metade do século XIV comenta Benvenutc de Imola o verso de Dante no qual se fala da forma de expressão de Beatriz Inferno 256 e comminciommi a dir soave e pianá com as palavras et bene dicit quia sermo divinus est suavis et planus non altus et superbus sicut sermo Virgilii et poetarum não obstante Beatriz como proclamadora da sa bedoria divina tem muita coisa obscura e complicada a dizer O teatro cristão medieval está totalmente integrado nesta tradição como representação viva dos acontecimentos bíblicos da form a como desde um princípio com elementos dramáticos estava contido na liturgia estende convidativamente as mãos para receber os incultos e os simples e para leválos do concreto do quotidiano para o oculto e verdadeiro de maneira que em nada difere da grande arte plástica das igrejas medievais que segundo a conhecida teoria de E Mâle deve ter recebido influên cias decisivas dos próprios mistérios isto é dos dramas religio sos Acêrca da intenção do teatro litúrgico ou nurrPsenfído mais amplo do teatro cristão chegaramnos testemunhos de tem pos muito antigos No século X St Ethelwold bispo de Win chester descreve uma cerimônia dramática da Páscoa como éra usual junto a alguns clérigos ad fidem indocti vulgi ac neo fitorum corroborandam e a recomenda para ser imitada citado segundo E K Chambers The Mediaeval Stage II 308 e no século X II Suger de SaintDenis o diz de maneira mais pro funda e geral no verso freqüentemente citado M ens hebes ad verum per materialia surgit Voltemos então para o nosso texto a cena entre Adão e Eva Esta cena dirigese humili sermone aos simples e aos po bres de espírito acomoda o acontecimento sublime na sua vida quotidiana de modo que êle se torna espontâneamente presente para êles Contudo não esquece que se trata de um objeto sublime leva da realidade mais simples imediatamente para a verdade mais elevada escondida e divina O M ystère dAdam é introduzido pela leitura litúrgica da Bíblia do Gênesis com um leitor e um côro que responde logo seguemsc os acontecimen tos dramáticos do pecado original com aparição do próprio Deus ADAO E EVA 133 há somente trechos parciais em geral peças de Natal ou de Páscoa tais como surgiram da liturgia só que o todo é pensado concomitantemente e está sempre expresso figuralmente A partir do século XIV todo o ciclo aparece nos Mistérios O realistaquotidiano é pois um elemento essencial da arte cristãmedieval e especialmente da arte dramática cristã Em contraposição total com a poesia feudal do romance cortês que sai da realidade da situação estamental para levar à fábula e à aventura aqui ocorre um movimento inverso a partir da lon gínqua lenda e a sua interpretação figurai para dentro da rea lidade quotidana contemporânea No nosso texto o elemento realista se atém ainda à atualização dos acontecimentos domés ticos uma conversação entre uma mulher e um lisonjeiro sedu tor e um a conversação entre marido e mulher Ainda não há elementos grosseiramente realistas nem jocosos talvez a presença dos espíritos infernais a correr para cá e para lá inte rea Demones discurrant per plateas gestum facientes competen tem tenha dado motivo para algumas brincadeiras grosseiras Mais tarde porém isto muda o realismo de maior calibre começa a vicejar e surgem formas de misturas estilísticas da vi zinhança imediata da paixão e do gracejo cru que nos parecem estranhas e inadequadas É difícil de estabelecer propriamente quando isto começou Provàvelmente muito antes do que os textos dramáticos que conservamos nos permitem reconhecer pois as queixas sôbre o embrutecimento das peças litúrgicas que não devem ser confundidas com as condenações destas peças como um todo êste é um problema diferente que não cabe em nosso estudo podem ser encontradas já no século XII por exemplo com Herrad de Landsberg citado no livro de Cham bers sôbre o teatro medieval II 98 obs 2 É bastante prová vel que já nesse tempo muito disso se fizesse valer pois é em geral o tempo do nôvo despertar do realismo popular A tradição subliterária sobrevivente do antigo mimo e a obser vação consciente mais fortemente crítica e agarradora da vida que se iniciou evidentemente a partir do século XII também nas camadas mais baixas levou então a um florescimento da farsa popular cujo espírito logo deve terse infiltrado também no dram a religioso O público era o mesmo e também o clero inferior parece ter compartilhado em grande medida do gôsto do povo neste sentido Da literatura dramática cristã que tem con servado contudo resulta claro que os elementos realistas e em especial os elementos grotescos e farsescos se fizeram sentir cada vez com mais fôrça que alcançaram um ponto culminante no século XV oferecendo suficientes motivos para os ataques final mente vitoriosos do movimento contrário que achava os misté rios cristãos carentes de gôsto e inconvenientes e que partira do gôsto humanista e das convicções mais estritas da Reforma já ii piirtir de Wiclcf Niío falaremos aqui da farsa popular pois que o seu rea lismo fica dentro dos limites do meramente cômico e carente do prohlcmns mus queremos enumerar algumas cenas dos mis 134 MIMESIS o nomeei Ajudarmeá Eu o encolerizei Ninguém me ajudará a nâo ser o filho que de Maria sairá De ninguém posso esperar proteção pois que tivemos fé em Deus Que ora tudo aconteça segundo a vontade de Deus Não há outro conselho senão morrer Neste texto e em especial nas palavras for le filz que istra de Marie fica bem claro que Adão já conhece tôda a história universal cristã de antemão ou pelo menos sabe da Aparição de Cristo da remissão do pecado original que acabou de come ter Já em pleno desespêro sabe da graça que alguma vez virá esta ainda parte do futuro e até uma parte determinada e his toricamente fixável do mesmo também já é então um presente sempre conhecido pois é certo que em Deus não há diferenças temporais Tudo é simultâneamente presente para Êle de tal forma que Êle como certa vez o exprimiu Agostinho não tem o poder da previsão não sabe com antecipação mas simples mente sabe Devem tomarse portanto especiais precauções para não ver em tais travessias temporais nas quais o futuro parece se introduzir no próprio presente algo assim como mera inge nuidade medieval Isto não é contudo falso pois elas dão de fato uma visão de conjunto fortemente simplificada ajustada à compreensão dos simples mas esta visão de conjunto é ao mesmo tempo a expressão de uma verdade muito peculiar ele vada e oculta precisamente da construção figurai da História universal Cada peça do teatro medieval surgido da liturgia é parte de um contexto e mais propriamente do mesmo con texto parte de um drama único e imenso cujo começo é a criação do mundo e o pecado original cujo ponto culminante é a encarnação e a paixão e cujo final ainda futuro e esperado é o retorno de Cristo e o Juízo FinaL Os trechos que vão entre os pólos da ação são preenchidos parcialmente pela Figuração parcialmente pela imitação de Cristo Antes da sua aparição tratase das figuras e dos acontecimentos do Velho Testamento o tempo da Lei nos quais a aparição do Salvador se anuncia em form a figurai Êste é o sentido da procissão dos profetas depois de sua encarnação e paixão são os santos que se esforçam em viver segundo o seu modêlo e a própria cristandade a noi va prometida de Cristo que espera o retorno do noivo Todos os acontecimentos da história universal estão fundamentalmente contidos neste grande drama e tôdas as posições de altura ou baixeza do comportamento humano assim como todos os níveis da sua manifestação estilística têm no seu seio a sua justificativa moral e estética de existência justificativa bem fundamentada De tal forma não há motivo para uma separação entre o sublime e o baixoquotidiano os quais já aparecem na vida de Cristo unidos de maneira indissolúvel Também não há motivo para se preocupar com a unidade de lugar de tempo ou de ação pois há sòmente um lugar o mundo um tempo o agora que é sempiterno desde o princípio e uma só ação queda c sulvação do homem É claro que o desenvolvimento dc tfldn a história do mundo não é mostrado cm cada caso nos tempos primitivos ADAO E EVA 135 Estes se estendem até o assassinato de Abel Tudo se encerra com a procissão dos profetas do Velho Testamento que anunciam a aparição de Cristo As cenas nas quais aparece a vida quotidia na contemporânea as mais belas são aquelas em que aparecem o diabo e Eva e a que nós escolhemos dois trechos de pureza exemplar da mesma estirpe das melhores obras plásticas de Chartres Paris Reims ou Amiens estão pois engastadas nu ma moldura bíblica e históricouniversal O espírito desta mol dura permeiaas e êste espírito é o espírito da interpretação fi gurai dos acontecimentos Isto significa que cada acontecimento em tôda sua realidade quotidiana é ao mesmo tempo membro de um contexto históricouniversal sendo que todos os membros estão relacionados entre si e portanto são também compreensí veis como sempiternos ou supratemporais Conhecemos com o pró prio Deus que aparece após a criação do mundo e do homem para introduzir Adão e Eva no paraíso e para lhes comunicar a sua vontade Êle é chamado figura esta palavra pode ser interpre tada simplesmente como referida ao clérigo que devia representar figurar esta personagem e que se hesitava em chamar Deus assim como se chamava os outros atôres Adão Eva etc É também possível porém e mais verossimilmente explicar isto de forma realmente figurai pois se bem que Deus no verda deiro acontecimento da peça de Adão só tem o papel do legis lador e do juiz que castiga os culpados a presença do Salvador já existe nêle de forma figurai A indicação cênica que comu nica a sua aparição diz assim Tunc veniet Salvator indutus dal matica et statuantur choram eo Adam et Eva Et stent ambo coram Figura Deus é chamado pois primeiramente Salva tor e só depois Figura de maneira que parece ser justo com pletar figura salvatoris Esta interpretação figurai supratempo ral é retom ada mais tarde Quando Adão já comeu a maçã assaltao imediatamente profundo arrependimento Êle irrompe em desesperadas autoacusações que se dirigem no fim tam bém contra Eva e que acabam da seguinte maneira 375 Par ton conseil sui mis a mal De grant haltesce sui mis a vai Nen serrai trait por home né Si Deu nen est de majesté Que di jo las por quoi le nomai 380 11 me aidera Corocé lai Ne me ferat ja nul aïe For le filz que istra de Marie Ne sai de nus prendre conroi Quant a Deu ne portâmes foi 385 Or en soit tôt a Deu plaisir Ni ad conseil que del morir lor teu conselho cuf na desgraça de grande altura caí ao val Iuciii niio ncrci tirailo por homem nascido mortal sc não a fiV por Dru cm sim majestade Mas ai que iligo eu lor que 136 MIMESIS térios que deram motivo a um desenvolvimento realista espe cialmente chamativo Começa com o nascimento no estábulo em Belém onde não só aparecem o boi e o burro mas também às vêzes parteiras e comadres juntamente com as conversas correspondentes onde às vêzes se chega a choques bastante drásticos entre José e as criadas Também a anunciação aos pastores a chegada dos Reis Magos o infanticídio são adorna dos realisticamente Mais surpreendentes e para o gôsto pos terior mais inconvenientes são as cenas drásticas relacionadas com a Paixão as conversas cruas e amiúde chocarreiras entre os soldados durante a coroação de espinhos a flagelação a via crucis e finalmente durante a própria crucificação o jôgo de dados pelas roupas a cena de Longino etc dentre os acon tecimentos relacionados com a ressurreição tratase sobretudo da visita das três Marias ao tendeiro unguentarias para com prar ungüentos para o corpo de Cristo que se converte numa cena de mercado e da corrida dos apóstolos ao túmulo segundo João 2034 que se converte numa grande brincadeira A representação de Madalena no auge dos seus pecados é às vêzes pormenorizada e exata e na procissão dos profetas aparecem vez ou outra algumas figuras que dão lugar à apresentação grotesca Balaão com o jumento Esta enume ração é muito incompleta há conversas entre artesãos os quais por exemplo durante a construção da tôrre de Babel falam acêrca do seu trabalho e dos maus tempos há cenas ruidosas e rudes nas tavernas há brincadeiras farsescas e obs cenidades em demasia Tudo isto leva finalmente ao abuso e à desordem Também é correto que o mundo colorido da vida contemporânea ocupe um espaço cada vez mais amplo e con tudo leva a malentendidos falar de uma progressiva seculari zação do dram a cristão da Paixão como geralmente acontece Pois o século o mundo está incluído desde o princípio e de form a fundamental nestes dramas e não é o caso de se falar em mais ou menos um a verdadeira secularização só tem lugar quando a moldura é destruída quando a ação mundana se tom a independente isto é quando são representadas de ma neira séria ações humanas afora aquelas determinadas pelo pecado original pela Paixão e pelo Juízo Final na história uni versal cristã quando há outras possibilidades de compreensão e de representação dos acontecimentos humanos ao lado desta que reivindica ser a única verdadeira e válida Também a trans ferência dos acontecimentos para um contexto contemporâneo que aos nossos olhos é anacrônica está perfeitamente em ordem Também isto está apenas insinuado na peça de Adão na medida em que Adão e Eva falam como pessoas comuns da França do século X II tel paltonier qui ço ad fait em outras peças mais tarde isso é muito mais chamativo Num fragmento de uma peça pascal francesa de começos do séc XIII também conservada num único manuscrito utilizo o texto de Focrstcr Koschwitz Altfranzoesisches Übungsbuch 6 edição 1921 pág 214 ss no qual se trata das cenas entre José de Arimotéia e ADÂO E EVA 137 o cego Longino curado pelo sangue de Cristo os soldados de Pilatos são chamados chivalers ou apostrofados de vaissal e todo o tom de conversa entre as personagens por exemplo entre Pilatos e José ou entre José e Nicodemo é de um a maneira totalmente evidente e emocionante o tom da conversa da França do século XIII Para tanto a sempiternidade figurai dos acon tecimentos vai ao encontro do mais belo dos modos da fina lidade de acomodar a mesma na vida familiar e quotidiana do povo É claro que também se encontram tentativas muito modestas e ingênuas de separação dos estilos elas já aparecem nos mais antigos dramas litúrgicos até já na seqüência fre qüentemente mencionada como origem dos mesmos Victimae paschali quando após os versos introdutórios mais dogmáticos se inicia quase imediatamente o diálogo Dic nobis Maria Algo correspondente acontece na mudança do latim para o francês arcaico em algumas peças de inícios do século XII por exemplo no Sponsus Romania 22 177 ss o nosso mistério de Adão apresenta algumas passagens especialmente solenes em estrofes de quatro versos decassílabos rimados que tem uma tonalidade mais grave do que o verso usado no restante da peça o octossílabo rimado em pares de tempos muito poste riores do Mistère du vieil Testament são alguns trechos que Ferdinand Brunot cita na sua Histoire de la langue française I 526 ss nos quais Deus e os anjos falam um francês muito latinizado enquanto que alguns artesãos e pícaros mas também Balaão na sua conversa com a jumenta se exprimem numa linguagem quotidiana bastante apimentada Tudo isto está con tudo demasiado perto um do outro para valer realmente como separação de estilos ao contrário contribui para juntar muito estreitamente as duas esferas A estreita justaposição das duas esferas que resulta numa mistura dos estilos não se limita à literatura dramática cristã encontrase em tôda a literatura cristã da Idade Média em alguns países especialmente na Espanha também mais tarde sempre que ela se destina a um público mais amplo Isto deveria aparecer com maior nitidez nos ser mões populares dos quais temos porém exemplos mais nume rosos sòmentc de tempos posteriores Nêles aparece a justapo sição da utilização figurai das Escrituras e de um realismo drástico de uma forma que teve efeito grotesco para o gôsto posterior Podese ver para isto o ensaio muito instrutivo de E Gilson sôbre a Technique du sernion médiéval na coleção dos seus ensaios Lcs idées et les lettres Paris 1932 pág 93 ss Nos primórdios do século XIII aparece na Itália uma figura na qual u mistura que aqui tratamos de sublimitas com humili tas de uma ligação extática e sublime com Deus e da quotidia nidade humilde c concreta se materializa de maneira exemplar sendo que ação c expressão conteúdo e forma não mais se deixam separar êste e São Francisco de Assis O cerne do seu sor e o ímpeto dn sua aparição baseiamse na vontade da imita iiu nulical e prática de Cristo esta tinha adotado na Europa i piiilu do momcnlo cm que não mais houve mártires da fé 138 MIMESIS uma forma predominantemente místicocontemplativa êle con feriulhe um rumo para o prático o quotidiano o público e popular Por mais que êle próprio fôsse um místico dedicado e contemplativo a vida entre o povo entre os mais humiles foi tanto mais decisiva para êle e para os seus companheiros como os mais humildes e desprezados de todos sint minores et subditi omnibus Êle não era um teólogo e sua cultura ainda que não fôsse pequena e ainda que fôsse enobrecida pela sua fôrça poética era de espécie popular imediata e acessível aos senti dos a sua humildade não era de form a alguma daquela espécie que tivesse de temer uma aparição pública ou até um espetáculo público Êle empurrava o seu impulso íntimo na aparência externa seu ser e sua experiência converteramse num aconte cimento público e a partir daquele dia em que devolveu as roupas ao pai que o repreendia diante dos olhos do bispo e de tôda a cidade de Assis para livrarse de todo o terreno até aquêle outro em que moribundo fêz com que o deitassem nu sôbre a terra nua ut hora illa extrema in qua poterat adhuc hostis irasci nudus luctaretur cum nudo diz Tomás de Celano Legenda secunda 214 tudo o que fazia era uma cena e suas cenas eram de uma tal fôrça que tôdas as pessoas que as viam ou que até mesmo só ouviam acêrca delas eram arrastadas com êle Também o grande santo do século XII Bernardo de Clairvaux foi um pescador de homens e a sua eloqüência era arrebatadora também êle era contrário à sabedoria humana racional à sapientia secundum carnem e contudo quão mais aristocrática quão mais cultivadamente retórica é a sua forma de expressão Quero mostrar isto com um exemplo e escolho para tanto duas cartas de conteúdo semelhante N a carta 322 PL 182 5 2 7 8 Bernardo congratulase com um jovem aristo crata que abandonou voluntàriamente o mundo e entrou num convento louva a sua sabedoria que é celeste e agradece a Deus que lha concedeu estimulao e fortificao contra a tentação futura pela menção da ajuda de Cristo Si tentationis sentis aculeos exaltatum in ligno serpen tem aeneum intuere Num 218 Ioan 3 14 et suge non tam vulnera quam ubera Crucifixi Ipsi tibi erit in matrem et tu eris ei in filium nec pariter Crucifixum laedere aliquatenus poterunt clavi quin per manus eius et pedes ad tuos usque perveniant Sed inimici hominis domestici eius Mich 7 6 Ipsi sunt qui non te diligunt sed gaudium suum cx te Alioquin audiant ex puero nostro si diligeretis me gauderetis utiquc quia vado ad patrem Ioan 14 28 Si prostratus ait beatus Hieronymus jaceat in lirnine pater si nudato sinu quibus te lactavit ubera mater ostendat si parvulus a colle pendcat nepos per calcatum transi patrem per calcatam transi matrem et siccis oculis ad vexillum crucis evola Summum pietatis cst genus in hac parte pro Christo esse crudelem Phreneticorum lacry mis ne movearis qui te plangunt de gchennae filio fiictum filium Dei Heu Quncnam miscris tiim dirn cupido Vcrg Aen ADAO E EVA 139 721 Quis tam crudelis amor quae tam iniqua dilectio Corrumpunt bonos mores colloquia mala I Cor 15 33 Prop terea quantum poteris fili confabulationem hospitum declinato quae dum aures impient evacuant mentem Disce orare Deum disce levare cor cum manibus disce oculos supplices in caelum erigere et Patri misericordiarum miserabilem faciem repraesen tare in omni necessitate tua Impium est sentire de Deo quod continere possit super te viscera sua et avertere aurem a singultu tuo vel clamore De caetero spiritualium patrum consiliis haud secus quam majestatis divinae praeceptis acquiescendum in omni bus esse memento Hoc fac et vives hoc fac et veniet super te benedictio ut pro singulis quae reliquisti centuplum recipias etiam in praesenti vita Nec vero credas spiritui suadenti nimis id festinatum et in maturiorem aetatem differendum fuisse Ei potius crede qui dixit Bonum est homini cum portaverit iugum ab adolescentia sua Sedebit solitarius levavit enim se supra se Thren 3 2 7 8 Bene vale studeto perseverantiae quae sola coronatur Se sentires os espinhos da tentação dirige o teu olhar para a ênea serpente elevada na cruz e alimentate não tanto das feridas quanto do seio do Crucificado Êle próprio tornarseá tua mãe e tu serás o seu filho e os pregos não podem ferir o Crucificado de outra maneira que chegando através das suas mãos e dos seus pés aos teus Mas os inimigos do homem são os que vivem em sua própria casa Êles são os que não amam a ti mas a sua própria alegria que a êles chega por tua causa Se assim não fôsse ouviriam palavras do nosso infante se me amásseis alegrarvosíeis pois vou ao Pai Se o teu pai se tiver prostrado sôbre o limiar diz o beato Jerônimo se com o peito nu tua mãe te mostrar os seios com os quais te alimentara se o teu pequeno sobrinho se pendurar ao teu colo pisa por sôbre o teu pai pisa por sôbre a tua mãe e apressate de ôlho enxuto para junto da bandeira da cruz Esta é a maior espécie de piedade ser em tais casos cruel por causa de Cristo Não te deixes emocionar pelas lágrimas dos frenéticos que choram porque de filho do inferno passaste a ser filho de Deus Ai que insã paixão têm êstes infelizes Que espécie de amor cruel é êste que espécie de iníquo deleite Conversas más estragam os bons costumes Portanto meu filho evita o mais que puderes as conversas com o teu hóspede pois enquanto elas enchem o ouvido esvaziam a mente Aprende a orar a Deus aprende a levantar o coração com as mãos aprende a dirigir os teus olhos suplicantes ao céu e em qualquer necessidade a representar o teu rosto mise rável ao Pai da misericórdia É ímpio pensar que Deus possa fechar o seu coração para ti ou afastar o seu ouvido dos teus suspiros ou clamores De resto lembrate de seguir em tôdas as coisas os con selhos dos teus pais espirituais de forma não diversa daquela com que obedeces aos preceitos da majestade divina Faz isto e viverás faz isto c sobrevirá a bênção de tal forma que cada coisa que abandonaste receberás centuplicada alé mesmo já nesta vida E não acredites no espírito cuc quer te persuadir de que isto seja prematuro e que levcriiis têlo posterftudo paru urna idade mais madura Acredita muito iiniis iuiiurlr que ili é bom para um homem que êlc car iruiie o ilcutc ii udolrxcénciii Será solitário pois eleviu sc ii 140 MIMESIS sôbre si mesmo Passes bem procura a perseverança que é a única que é coroada Êste texto é sem dúvida vivaz e arrebatador e alguns dos seus pensamentos e formulações como por exemplo aquêle que fala dos parentes que não amam a ti mas gaudium suum ex te ou a asseveração de que o prêmio centuplicado darseá já nesta vida são se não me engano muito peculiarmente bernardinos Mas quão conscientemente tudo isto está com posto quantos pressupostos exige para a sua compreensão quan to contém de form a retórica Deve ser tomado em conta con tudo que as alusões figurais a certas passagens das Escrituras a serpente ênea como figura de Cristo o sangue das feridas de Cristo como leite alimentador a participação dos tormentos da cruz dos pregos que perfuram as mãos e os pés de Cristo como extático consolo amoroso na unio passionalis eram com preendidas de forma imediata nos círculos cistercienses esta forma de pensar e de interpretar deve terse arraigado mesmo no povo pois todos os sermões estão cheios dela Mas a pletora de citações bíblicas o seu encadeamento as citações de Jerônimo e de Virgílio conferem a esta carta pessoal uma aparência extre mamente literária e Bernardo não fica muito atrás de Jerônimo na utilização de perguntas retóricas de antíteses e de anáforas ao contrário até o sobrepuja na medida em que retoca com maior rigor as figuras retóricas do original cf CSEL vol 54 p 4647 Quero enumerar as antíteses e anáforas mais chama tivas Entre as antíteses encontramos non tam vulnera quam ubera ipse tibi in matrem tu ei in filium suas mãos e seus pés e os teus non te sed gaudium suum ex te no trecho de Jerônimo pietas crudelis depois filius gehennae fitius Dei crudelis amor iniqua dilectio dum aures implent evacuant men tem Quanto às anáforas começam com o trecho de Jerônimo maravilhoso no seu gênero si prostratus si nudato si parvulus per calcatum per calcatam et siccis oculis e depois vêm o próprio Bernardo quis tam crudelis amor q u a e disce orare disce levare disce erigere hoc fac et vives hoc fac et veniet A isto juntamse ainda os trocadilhos como patri mise ricordiarum miserabilem faciem repraesentare E agora ouçamos São Francisco de Assis Só há duas car tas pessoais que possam serlhe atribuídas com alguma seguran ça uma W quendam ministrum do ano 1223 a outra ao seu discípulo preferido dos últimos anos frei Leo Pecorella de Assis ambas são portanto da última parte de sua vida pois Francisco morreu em 1225 Escolho a primeira na qual se fala de um conflito dentro da ordem acêrca do tratamento que deveria ser dado a um irmão que tinha cometido um pecado mortal transcrevo sòmente a primeira parte mais geral da cartu segundo os Analekten zur Geschichte des Franciscus von Axxisl editados por H Boehmer Tübingcn c lxipig 1904 prtg 2H ADÃO E EVA 141 Ffatri N ministre Dominus te benedicat Dico tibi sicut possum de facto anime tue quod ea que te impediunt amare Dominum Deum et quicumque tibi impedimentum fecerint sive fratres sive alii etiamsi te verberarent omnia debes habere pro gratia Et ita velis et non aliud Et hoc sit tibi per veram obedientiam Domini Dei et meam quia firmiter seio quod illa est vera obedientia Et dilige eos qui ista faciunt tibi et non velis aliud de eis nisi quantum Dominus dederit tibi Et in hoc dilige eos et non velis quod pro te só num dos seis MS conservados sint meliores christiani Et istud sit tibi plus quam heremitorium Et in hoc volo cognoscere si diligis Deum et me servum suum et tuum si feceris istud scilicet quod non sit aliquis frater in mundo qui peccaverit quantumcumque po tuerit peccare quod postquam viderit occulos tuos unquam recedat sine misericórdia tua si querit misericordiam et si non quereret misericordiam tu queras ab eo si vult misericordiam Et si millies postea appareret coram occulis tuis dilige eum plus quam me ad hoc ut trahas eum ad Dominum et semper miserearis talibus Frei N ministro da ordem Deus te abençoe Falo a ti assim como posso sôbre a tua alma tudo aquilo que te impede de amar a Deus e todos aquêles que te colocam empecilhos quer sejam irmãos quer sejam outros e mesmo os que te açoitam tudo isto deves considerálo uma graça E queiras tudo assim e não de outro modo E isto te valha como a verdadeira obediência diante de Deus Nosso Senhor e diante de mim que sei com firmeza que esta é a verdadeira obediência E ama aquêles que te fazem essas coisas e não queiras outras coisas dêles afora as que Deus te dedicar E amaos por si mesmos e não queiras que sejam melhores cristãos E isto te valha mais do que o eremitério E nisto quero reconhecer se amas a Deus e a mim seu e teu servo em que faças isto que não haja nenhum irmão no mundo que havendo pecado o mais que pudesse pecar e que depois de ter visto o teu rosto nunca parta de ti sem a tua misericórdia se procurar a misericórdia e se não procurar a misericórdia que tu procures com êle se deseja a misericórdia E se mais tarde êle aparecer mil vêzes perante o teu rosto amao mais do que me amas agora para que o tragas ao Senhor e tende sempre misericórdia com tais Neste trecho não há nem exegeses das Sagradas Escrituras nem figuras de linguagem a construção das orações é apressa da inábil e sem subdivisão calculada do todo tôdas as orações começam com et Mas o homem que escreveu estas apressadas linhas está evidentemente tão arrebatado pelo seu objeto o mesmo o preenche tão completamente e a necessidade de se comtinicar e de ser entendido é tão avassaladora que a parataxe se converte numa arma de eloqüência tal como as poderosas ondas que sc formam continuamente numa forte ressaca as ora ções cm et butem do coração do santo contra o destinatário tal como é expresso logo de início com sicut possum e de facto anime tue 1ois o sicut possum exprime simultâncamente a lumiihlmle iiixmi como posso e 11 entrega total de tódus as 142 MIMESIS fôrças e de facto anime tue indica que na questão objetiva tratase também da salvação da alma daquele que deve decidila e o fato de se tratar de uma questão entre mim e ti Francisco não o esqueceu ao longo da carta tôda nem por um instante sabe que o outro o ama e admira e aproveitase a cada instante dêsse amor para levar o outro para o bom caminho ut trahat eum ad D om inum et in hoc volo cognoscere si diligis Deum et me servum suum et tuum assim o conjura ordenalhe amar mais o pecador renitente ainda que lhe apareça outra mil vêzes diante dos seus olhos mais do que tu me amas neste instante O conteúdo da carta é um ensinamento levado até o caso mais extremo no sentido de não se esquivar do mal e de não se opor a êle uma súplica não de abandonar o mundo mas de se misturar em meio ao seu tormento e de sofrer apaixonadamente o mal êle nem deve desejar outra coisa et ita velis et non aliud São Francisco vai com isto até um extremo quase perigoso do ponto de vista moralteológico quando escreve et in hoc dilige eos et non velis quod sint meliores Christiani pois será permitido reprimir o desejo de que o próximo se torne melhor cristão só por amor à própria provação pelo sofrimento Só pela submissão ao mal pode ser demonstrada segundo a sua convicção a fôrça do amor e da obediência quia firmiter seio quod illa est vera obedientia Isto é mais do que a meditação solitária longe do mundo et istud sit tibi plus quam heremito rium O caráter extremo desta visão exprimese também lin giiisticamente nos muitos demonstrativos que têm o sentido de exatamente assim e não de outra forma ou nos movimentos introduzidos com quicumque etiamsi quantumcumque et si millies todos os quais significam até mesmo se A imediatez da expressão totalmente aliterária muito pró xima da linguagem falada apóia portanto um conteúdo muito radical Certamente êste não é nôvo pois desde o princípio o sofrernomundo e a submissãoaomal são dois dos principais motivos cristãos mas os acentos estão colocados de uma nova maneira o sofrimento e a submissão não são mais um martírio patético mas uma incessante autohumilhação no decurso quo tidiano nas coisas Enquanto São Bernardo Jevava os negócios mundanos como um grande político da Igreja e se afastava dêles na solidão da contemplação São Francisco vê nos negócios mundanos o cenário propriamente dito para a imitação sendo que naturalmente para êle os negócios mundanos não são os grandes acontecimentos políticos nos quais São Bernardo tinha um papel preponderante mas a agitação quotidiana entre pes soas quaisquer seja dentro da ordem seja em meio ao povo Tôda a estrutura das ordens mendicantes e em especial as de origem franciscana levava os irmãos à vida quotidiana em público entre o povo e mesmo se a meditação solitária não perdeu sua grande importância religiosa com São Francisco nem com os seus seguidores ela não podia roubar à ordem o seu caráter tão pronunciadamente popular ADÃO E EVA 143 A aparição pública do santo tem sempre como já dissemos antes algo de muito impressivo evidente cênico até As ane dotas que dizem a respeito são numerosas e entre elas encon tramse algumas que para uma sensibilidade posterior têm um efeito quase grotesto ou farsesco Assim quando se narra que êle durante a festa de Natal no estábulo de Greccio com boi e burro no praesepium imitou cantando e pregando durante a pronúncia da palavra Bethlehem o balido de um carneiro ou que após uma doença durante a qual recebera alimentos mais selecionados ordenou a um dos irmãos que o passeasse por Assis am arrado com uma corda como um criminoso gritando aqui está o comilão que sem que vós o soubésseis empantur rouse de carne de galinha Mas tais aparições não tinham naquele tempo e naquele lugar efeito farsesco o chamativo exagerado e garrido não era considerado escandaloso mas era tido como uma manifestação clara e exemplar de uma vida santa de uma evidência imediata compreensível para todos e que convidava todos a fazer uma autoanálise comparativa e a experimentar também essa vida Ao lado de tais cenas chama tivas e de efeitos amplos há outras anedotas que são prova de grande ternura e amabilidade e que delatam uma capacidade psicológica importante e puramente instintiva São Francisco sabe nos instantes decisivos o que está acontecendo no coração dos outros e a sua intervenção toca em cada caso o ponto certo e decisivo ela comove e agita Em tôda parte e ocasião é a surpreendente e manifesta imediatez do seu ser o que tem um efeito tão poderoso tão exemplificador e inesquecível Quero transcrever aqui ainda mais uma anedota que caracte riza a sua atitude de maneira excelente mesmo quando de um motivo quotidiano e relativamente carente de importância Está na Legenda Secunda de Tomás de Celano S Francisco Assi siensis vita et miracula auctore Fr Thoma de Celano recensuit P Eduardus Alenconiensis Romae 1906 p 2 1 7 8 Factum est quodam die Paschae ut fratres in eremo Graecii mensam accuratius solito albis et vitreis praepararent Descen dens autem pater de cella venit ad mensam conspicit alto sitam vaneque ornatam sed ridenti mensae nequaquam arridet Fur tim et pcdetentim retrahit gressum capellum cuiusdam paupe ris qui tunc aderat capiti suo imponit et baculum gestans egre ilitur foras Exspectat foris ad ostium donec incipiant fratres siquidem soliti erant non exspectare ipsum quando non veniret ad signum Illis incipicntibus manducare clamat verus pauper ad ostiuni Amorc domini Dei facite inquit eleemosynam isti peregrino pauperi et infirmo Respondent fratres Intra huc honio illius amorc quem invocasti Repente igitur ingreditur el sese comcdcntibux offcrt Scd quantum stuporem credis pere Hiinum civitxis intulissc Diitur petenti scuteila et solo solus icvimilniiH Iín c iiiii ponil in cinere Modo sedeo ait ut frater M inoi 144 MIMESIS Aconteceu num dia de Páscoa que os irmãos da ermida de Greccio puseram a mesa com mais cuidado do que de costume com toalhas e vidros Quando o padre desce da cela para a mesa vê do alto a vã ostentação mas a agradável mesa não lhe agrada Secreta e silenciosamente afastase põe na cabeça o chapéu de um pobre qualquer que então lá estava pega em mãos o báculo e sai da casa Fora aguarda diante da porta até que os irmãos comecem pois estavam acostumados a não esperálo quando não vinha ao sinal Quando começaram a comer o verdadeiro pobre chamou à porta Pelo amor de Deus Nosso Senhor fazei uma esmola a êste pobre e enfêrmo peregrino Respondem os irmãos Entra aqui homem pelo amor daquele que invocaste Êle entra depressa e se põe diante dos comensais Qual não seria o estupor que êste estranho produziu aos habitantes A seu pedido dãolhe uma es cudela sentase sòzinho no chão e põe o prato sôbre as cinzas Estou sentado diz como frade m en o r O motivo como já foi dito é insignificante mas que idéia cênica genial é pegar o chapéu e o báculo de um pobre e ir pedir esmola aos mendicantes É fácil de imaginar o estupor e a vergonha dos frades quando se senta com o prato sôbre as cinzas e diz agora estou sentado como um frade menor A form a de vida e de expressão do santo transmitiramse à ordem e criaram uma atmosfera tôda peculiar ela tornouse no bom e no mau sentido incrivelmente popular O excesso de drástica fôrça expressiva converteu os irmãos em criadores e logo também em objeto de anedotas cênicas jocosas e fre qüentemente grosseiras ou obscenas O realismo mais grosseiro da tardia Idade Média tem muito a ver com a atitude e a ação dos franciscanos a sua influência neste sentido fazse sentir até o Renascimento Também isto foi esclarecido faz alguns anos por um ensaio de Etienne Gilson Rabetais frartciscain no volume já mencionado Les idées et les lettres p 197 ss ainda deveremos voltar a isto Por outro lado a fôrça de expres são franciscana levou a uma representação mais imediata e mais quente ainda dos acontecimentos humanos Ela se faz sentir na poesia religiosa popular que durante o século XIII descreve em especial a cena da Paixão M aria junto à cruz como um acontecimento vivo e dramático sob a influência dos francisca nos e de outros movimentos extáticos populares A peça mais importante transcrita em muitas antologias é de Jacopone da Todi um místico e poeta muito expressivo do tempo imediata mente anterior a Dante nascido em 1230 e que pertenceu na sua vida posterior à ordem franciscana e mais precisamente à sua ala mais radical a espiritual O poema passional tem forma dialogada falam um mensageiro a Virgem Mariu u turba e por fim o próprio Cristo Transcrevo o comêço do texto segundo a Crestomazia italiana dei primi secoli de F Mo naci Città di Castello 1912 p 479 ADÃO E EVA 145 NUNZIO Donna dei paradiso lo tuo figliolo è priso Jesu Christo beato Accurre donna e vide che la gente 1allide credo che 11o soccide tanto lon flagellato VERG IN E Como essere purria che non fe mai follia Christo la spene mia hom 1avesse pilgliato NUNZIO Madonna elPè traduto Juda si là venduto Trenta dinar nà uto facto nà gran mercato V ERG IN E Succurri Magdalena jonta mè adosso pena Christo figlio se mena como mè annuntiato NUNZIO Succurri donna ajuta chal tuo figlio se sputa e la gente 11o muta onlo dato a Pilato V ERG IN E O Pilato non fare il figlio mio tormentare chio posso mostrare como a torto è accusato TURBA Crucifi crucifige homo che si fa rege secondo nostra lege contradice al senato VERG IN E Prego che mentennate nel mio dolor pensate forsa mo ve mutate da quel chete parlato NUNZIO Tragon fuor li ladroni che sian sui compagnoni TURBA De spine si coroni ché rege sè chiamato V ERGINE O filglio filglio fiiglio filglio amoroso gilglio filglio chi dà consilglio al cor mio angustiato O filglio occhi jocundi filglio co non respundi filglio perchè tascundi dal pecto o se lactato NUNZIO M adonna ecco la croce che la gente laduce ove la vera luce dej essere levato MENSAGEIRO Senhora do paraíso o teu filho foi prêso Jesus Cristo o beato Corre senhora e vêde como a gente o maltrata creio que o matam de tanto que o flagelaram VIRGEM Como pôde acontecer pois nunca fêz nada de mal Cristo esperança minha que o tenham aprisionado MENSAGEIRO Senhora êle foi traído Judas vendeuo trinta dinheiros êle recebeu por isso êle fêz disso um grande negócio VIRGEM Socorreme Madalena sobreveiome uma pena Cristo meu filho é levado embora como me foi anunciado MENSAGEIRO Socorre senhora ajuda pois cospem sôbre o teu filho e a gente o leva embora deramno a Pilatos VIRGEM Ô Pilatos não faças atormentar o meu filho pois eu posso mostrarte como êle é injustamente acusado TIJKHA Crucifica crucifica o homem que se faz rei iritmido u nonxa lei lc vai contra o xenudo 146 MIMESIS VIRGEM Peço que me ouçais pensai na minha dor talvez mudeis logo a opinião que acabais de manifestar MENSAGEIRO Trazem para fora os ladrões que serão seus companheiros TURBA Coronaio de espinhos àquele que se chamou rei VIRGEM ó filho filho filho filho amável lírio filho quem dará conselho ao meu coração angus tiado Ó filho olhos alegres filho por que não respondes ó filho por que te escondes do peito do qual mamaste MENSAGEIRO Senhora eis a cruz que a gente está trazendo onde a verdadeira luz deverá ser levantada Êste texto apresenta de maneira que não difere daquela do texto francês arcaico comentado a princípio uma total aco modação do acontecimento sublime e sagrado na realidade si multaneamente contemporânea e italiana e sempiterna o que há de popular nisto apresentase antes de mais nada na língua com o que não quero dizer sòmente as formas dialetais mas também o que há de popular em sentido sociológico na expres são por exemplo jonta m è adosso pena na bôca da Virgem Apresentase outrossim na livre recriação do acontecimento bíblico que adjudica a Maria um papel bem mais amplo e ativo do que no Evangelho segundo São João de tal form a que há oportunidade para o desenvolvimento dramático do seu mêdo da sua dor e das suas queixas Com isto relacionase estreita mente a grande proximidade dada às cenas e às personagens de tal forma que M aria pode dirigirse imediatamente a Pilatos e que ainda no mesmo quadro seja trazida a cruz Madalena cujo socorro é solicitado e João a quem Cristo confia sua mãe no decurso sucessivo da peça aparecem unidos a M aria como um grupo de amigos e vizinhos O elemento popular manifes tase finalmente na concepção ilògicamente anacrônica acêrca da qual já falamos antes quando da versão francesa arcaica do pecado original por um lado M aria é uma mãe temerosa e que clama indefesa que não encontra salvação e se põe a suplicar por outro é chamada pelo mensageiro donna dei para diso e tudo já lhe foi anunciado com antecedência Em tôdas estas coisas que acomodam os acontecimentos no quotidiano popular êstes dois textos separados por perto de um século são parentes próximos só que é evidente que também êles apresentam uma diferença de estilos importante e fundamental O poema de Jacopone não possui mais quase nada da encantadora e clara frescura do mistério de Adão em com pensação é mais quente mais imediato mais trágico Isto não reside na diferença dos temas no fato de o poema de Jacopone ser a queixa de uma mãe ou antes não é casual o fato de a poesia religiosa popular italiana do século XIII ter produ zido as suas mais belas obras na recriação desta cena O livre fluxo e até o dramático gritar da dor do mêdo e da ADÃO E EVA 147 imploração que têm lugar em Jacopone através do amontoado de vocativos imperativos e de perguntas urgentes não deveria ser possível se não me engano em nenhuma outra língua euro péia vulgar do século XIII Pelata uma liberdade cênica de inibições um doce e quente deixarselevarpelosentimento uma liberação de tôda timidez na expressão pública ao lado das quais as obras anteriores e a maioria das obras contemporâneas da Idade Média parecem desajeitadas e inibidas Até mesmo o provençal que desde o princípio desde Guilhem de Peitieu possui uma grande liberdade de expressão fica atrás de uma tal peça mesmo porque não conhece temas trágicos desta enver gadura Seria talvez imprudente afirmar que o italiano deve tal liberdade de expressão dramática a São Francisco pois sem dúvida ela já estava no caráter do povo Mas pelo menos pode ser dito sem dúvida que êle que foi em si um grande poeta e um ator instintivamente magistral despertou pela pri meira vez as fôrças dramáticas do sentimento e da língua italiana Farinata e Cavalcante 8 O Tosco che per la città del foco vivo ten vai cosï parlando onesto 24 piacciati di restare in questo loco La tua loquela ti fa manifesto di quella nobil patria natio 27 a la quai forse fui troppo molesto Subitamente questo suono uscio duna de larche perô maccostai 30 temendo un poco più al duca mio Ed el mi disse Volgiti che fai Vedi là Farinata che sè dritto 33 da la cintola in su tutto 1 vedrai 1 avea già il mio viso nel suo fitto ed el sergea col petto e con la fronte 36 comavesse linferno in gran dispitto E lanimose man dei duca e pronte mi pinser tra le sépulture a lui 39 dicendo Le parole tue sien conte Comio al piè de la sua tomba fui guardommi un poco e poi quasi sdegnoso 42 mi dimandô Chi fur li maggior tui Io chera dubidir disideroso non gliel celai ma tutto glielapersi 45 ondei levô le ciglia un poco in soso FARINATA E CAVALCANTE 149 Poi disse Fieramente furo avversi a me e a miei primi e a mia parte 48 si che per due fiate li dispersi Sei fur cacciati ei tornar dogni parte rispuosi lui T una e 1altra fiata 51 ma i vostri non appreser ben quelfarte Allor surse a la vista scoperchiata unombra lungo questa infino al mento 54 credo che sera in ginocchie levata Dintorno mi guardò come talento avesse di veder saltri era meco 57 e poi che il sospecciar fu tutto spento piangendo disse Se per questo cieco cárcere vai per altezza dingegno 60 mio figlio ovè perché non è ei teco E io a lui Da me stesso non vegno colui chattende là per qui mi mena 63 Forse cui Guido vestro ebbe a disdegno Le sue parole e 1 modo de la pena mavean di costui già letto il nome 66 però fu la risposta cosi piena Di subito drizzato gridò Come dicesti elli ebbe non vivelli ancora 69 non fiere li occhi suoi il dolce lome Quando saccorse dalcuna dimora chio facea dinanzi a la risposta 72 supin riccade e piü non parve fora Ma quelFaltro magnanimo a cui posta restato mera non mutò aspetto 75 nè mosse collo nè piegò sua costa E Se continuando al primo detto egli han quellarte disse mal appresa 78 ciò mi tormenta piü che questo letto Ò Toscano que vais pela cidade do fogo ainda vivo falando Mo helas palavras comprazete em ficar neste lugar O teu modo ile fnliir manifestate como nutural daquela nobre pátria à qual talvez tul demasiado molesto Subitamente êste som saiu duma das arcas por Uno junteime temendo um pouco mais ao meu guia E 6le me illmte Vollnte One tens Vide 1 ti Kurinutu que se alçou 150 MIMESIS do cinto para cima todo o verás Eu já havia fixado meu olhar no seu e êle se ergueu com o peito e com a fronte como se tivesse o inferno em grão despeito E as animosas e prontas mãos do guia empurraramme entre as sepulturas para êle dizendo As tuas palavras sejam contadas Quando estive ao pé do seu túmulo olhoume um pouco e depois quase desdenhoso perguntoume Quem foram os teus maiores Eu que estava desejoso de obe decer não lho calei mas tudo lhe revelei então levantou um pouco os cílios para cima Depois disse Ferozmente foram adversos a mim aos meus antepassados e ao meu partido de modo que por duas vêzes os exilei Se foram expulsos voltaram de tôda parte respondilhe uma e outra vez mas os vossos não aprenderam bem essa arte Então surgiu à vista descoberta uma sombra ao longo desta até o queixo creio que se tinha pôsto de joelhos Olhou em tôrno a mim como se desejasse ver se havia outro comigo mas depois que a sua suposição se apagou chorando disse Se por êste cego cárcere vais pela fôrça do teu engenho onde está meu filho Por que não está contigo E eu a êle Não venho por mim mesmo aquêle que lá espera por aqui me leva talvez vosso Guido o desdenhasse As suas palavras e a forma da pena já me haviam revelado o seu nome por isso a resposta foi assim plena Subita mente erguido gritou Como dissestes Desdenhasse Não mais vive êle Não mais fere os seus olhos o doce lume Quando percebeu uma certa demora que eu fazia antes da resposta voltou a cair para trás e não mais apareceu Mas aquela outra alma pode rosa por cuja causa me havia detido não mudou de aspecto nem moveu o colo nem dobrou a cadeira e se continuando o seu primeiro discurso êles aprenderam mal aquela arte disse isso atormentama mais do que êste leito No início dêste acontecimento que consta do décimo canto do Inferno Virgílio e Dante vão por um estreito caminho entre ataúdes abertos e ardentes Conversam Virgílio explica que nesses túmulos há hereges e ímpios e promete a Dante que o seu desejo só expresso pela metade de entrar em comunicação com algum dos ocupantes será cumprido Dante está justa mente respondendo quando de baixo de um dos ataúdes come çando com os escuros sons em o de O Tosco brota um a voz de tal form a que estremece assustado Um dos condenados ergueuse no seu caixão e interpela os passantes Virgílio diz o seu nome é Farinata degli Uberti um chefe do partido gibe lino e capitãogeneral de Florença que morreu pouco antes do nascimento de Dante Dante dirigese ao pé do caixão e começa uma conversa que é interrompida contudo poucos versos adiante v 52 de form a tão imediata quanto antes a conversa entre Virgílio e Dante isto acontece pela intervenção de um outro ocupante dos ataúdes que é reconhecido por Dante imediatamente devido à sua situação e às suas palavras o interruptor é Cavalcante de Cavalcanti pai do seu amigo de juventude o poeta Guido Cavalcanti A cena que ora se desen volve entre os dois é breve 21 versos logo que acaba quando Cavalcante volta a se deitar Farinata continua a conversa inter rompida FARINATA E CAVALCANTE 151 No estreito espaço de cêrca de setenta versos ocorre portan to uma tripla mudança de cena são quatro cenas tôdas cheias de impulso e conteúdo que se entrechocam estreitamente nenhu ma delas tem um conteúdo meramente preparatório nem a pri meira a conversa relativamente calma entre Dante e Virgílio que não transcrevemos aqui Não obstante na primeira cena seja apresentado introdutòriamente tanto a Dante quanto ao leitor o nôvo cenário que se abre diante dêles o do sexto cír culo infernal a mesma cena também contém um processo psi cológico próprio existente de per si entre os dois interlocutores Diante da calma teórica e da ternura espiritual dêste prelúdio a segunda cena dramática ao extremo apresenta um violento contraste introduzido pela voz que ressoa sübitamente e pela repentina aparição do corpo que se ergue no caixão pelo susto de Dante e pelas palavras e gèStos encorajadores de Virgílio Nela se desenvolve tão alta e violenta quanto o seu corpo a figura moral igualmente maior do que o natural de Farinata que a morte e os tormentos infernais não puderam atingir ain da é o mesmo que era quando vivo São os sons toscanos da bôca de Dante o que o moveram a se erguer e a deter com amabilidade orgulhosa e mesurada o passante quando êste se lhe aproxima perguntalhe antes de mais nada acêrca da sua origem para certificarse com quem está lidando se com um homem de família importante se com um amigo ou com um inimigo e quando ouve que Dante é o rebento de um a prole guelfa diz com severa satisfação que banira por duas vêzes da cidade êste partido inimigo o destino da cidade de Florença e do partido gibelino é ainda o seu único pensamento A res posta de Dante que o banimento dos guelfos de nada servira no fim das contas aos gibelinos pois êstes acabaram ficando banidos é interrompido pela emersão de Cavalcante que ouviu as palavras de Dante e o reconheceu a sua cabeça observante tornase visível pertence a um corpo bem menor que o de Furinata procura o seu filho em companhia de Dante e quan do nfio o vê irrompe em temerosas perguntas delas resulta que também êle tem ainda o mesmo caráter e as mesmas paixões de quando era vivo caráter e paixões totalmente diversas evi dentemente das de Farinata amor pela vida terrena fé na livre grundeza do espírito humano e sobretudo amor e admiração pelo seu filho Guido Agitado quase suplicante e contrastando por isto fortemente com a grave e controlada figura de Farinata Cuvnlcante faz as suas prementes perguntas e quando acredita em razio que deve concluir das palavras de Dante que o eu filho está morto desfalece após o que impávido e sem ittenlur para o incidente Farinata dá uma resposta à última ohicrvtiçfto de Dante a êle dirigida que caracteriza totalmente o cu aer e como tu dizes os gibelinos banidos nfio conse guiram voltur à cidade isto é para mim um tormento maior do que o leito no quul jitzo 152 MIMESIS Neste trecho há mais coisas concentradas do que em qual quer outra das passagens que tratamos até aqui neste livro e não só há mais coisas mais grave e dramàticamente juntadas num espaço tão estreito mas também tudo é mais variado Não se trata da narração de um acontecimento mas de três aconteci mentos diferentes dos quais o segundo a cena de Farinata é interrompido pelo terceiro e é partido em duas partes Não existe portanto unidade de ação no sentido usual da palavra aqui também não acontece como na cena de Homero de que tratamos no primeiro capítulo onde a menção da cicatriz de Ulisses dá lugar a uma narração intermediária longa explícita e que leva muito longe aqui o objeto muda rápida e consecuti vamente de form a abrupta as palavras de Farinata interrompem subitamente a conversa entre Dante e Virgílio o Allor surse do verso 52 rasga em duas sem ligação a cena de Farinata e com ma queWaltro magnanimo ela é retom ada de maneira igual mente imediata A unidade de tudo isto repousa no cenário a paisagem físicomoral do círculo infernal dos hereges e ímpios e a rápida mudança de acontecimentos independentes de per si não ligados entre si como cenas isoladas repousa na estrutura total da Comédia Ela apresenta a peregrinação de um só ho mem com o seu guia através de um mundo cujos ocupantes per manecem nos lugares que lhes foram designados Apesar desta rápida mudança das cenas não se pode falar num a construção paratática do estilo de linguagem em si cada cena apresenta grandes riquezas de meios de ligação sintática e nos casos em que como aqui as cenas são contrapostas agudamente e sem ligação entre si utilizase para a contraposição formas de ex pressão variadas e artísticas que devem ser tidas antes como comutações do que como parataxes as cenas não são enfileiradas tesas umas ao lado das outras num mesmo tom pensese na versão latina da lenda de Aleixo ou mesmo na Canção de Rolando mas na peculiar modelagem do tom em cada caso elas sur gem das profundezas e estão em mútuo contraponto Para fazer com que isto apareça com maior clareza observaremos mais de perto as passagens nas quais a cena muda Farinata interrompe os que passam conversando com as palavras O Tosco che per la città dei foco vivo ten vai Isto é uma invocação um vocativo introduzido por o Seguido por uma oração relativa que com parada com a invocação é bastante pesada e carregada de conteúdo e que só depois é seguida pela oração volitiva car regada também pela cortesia grave e reservada não está dito Toscano detémte mas Toscano tu q u e queiras dig narte a ficar neste lugar A fórmula ó tu que é extrema mente solene e provém do estilo elevado da epopéia antiga Dante tem o seu som nos ouvidos assim como guardou o som de tanta coisa de Virgílio Lucano ou Estácio não acredito que antes dêle tenha sido empregada numa língua vulgar medieval Mas êle a emprega à sua maneira de forma extremamente invocadora tal como na Antigüidade apareceria apenas cm súplicas religiosas FARINATA E CAVALCANTE 153 e na oração relativa tão comprimida no seu conteúdo quanto pode o sentimento e a situação de Farinata perante o passante estão concentrados pelas três definições per la città dei foco ten vai vivo cosi parlando onesto de uma maneira tão dinâmica que o mestre Virgílio se realmente houvesse ouvido estas pala vras terseia asssustado mais profundamente do que Dante no poema As orações relativas que Virgílio junta aos vocativos ainda que sejam perfeitamente belas e harmônicas não são nem de longe tão agudamente concentradas e emocionantes por exemplo Eneida I 436 o fortunati quibus iam moenia surgunt ou mais interessante pela sua plenitude que se espraia retqricamente II 638 vos o quibus integer aevi sanguis oàt solidaeque suo stant robore vires vos agitate fugam Deve também ser observado de que forma a antítese entre pela cida de do fogo e vivo é expressa exclusivamente mas de maneira tanto mais efetiva pela colocação da palavra vivo Após esta invocação de três versos seguese o terceto no qual Farinata se dá a conhecer como compatriota e só depois só após ter acabado de falar a oração subitamente êste som saiu uma oração que em geral seria esperada como introdução de um acontecimento surpreendente mas que aqui após as orações precedentes resulta relativamente calma como explicação do acontecido e deveria ser lida por um recitador em voz mais baixa N ão é possível falar pois numa sucessão uniformemen te paratática entre a cena de Farinata e a cena anterior da con versa entre os dois peregrinos por um lado e isto não deve ser esquecido esta cena já foi anunciada brevemente durante a conversa de Virgílio versos 1618 e por outro lado ela é uma irrupção tão violenta forte prepotente num outro campo nos sentidos espacial moral psicológico è estético que não está ligada ao que lhe antecede pela simples ligação sucessiva mas pela relação viva do contraponto da brusca erupção de algo já levemente suspeitado Os acontecimentos não estão como dissemos quando tratamos da Canção de Rolando e da lenda de Aleixo divididos em pequenas parcelas mas vivem também na contradição e justamente através dela uns com os outros A segunda mudança de cena é dada com as palavras Allor surse do verso 52 aparece de maneira mais simples e menos digna de nota do que a primeira pois o que pode ser mais natural do que introduzir um acontecimento que ocorre de repente com as palavras então aconteceu Mas se fôr feita a pergunta acêrca de onde poderia ser encontrada nas linguus vulgares medievais anteriores a Dante um a form a de linguagem semelhante que interrompe tão cortante e drama ticamente uma ação em desenvolvimento com um então seria necessário procurar muito tempo não conheço nenhum caso Allora no eomêço das orações encontrase com bastante fre qüência no italiano préduntesco por exemplo nas narrações do Novrlllno mas com significação muito mais débil Cortes ile liil violência nfto laim pnrtc do estilo nem da consciência 154 MIMESIS temporal dos narradores anteriores a Dante nem nos da épica francesa onde pode ser encontrado com sentido semelhante mas muito mais fraco ez vos ou atant ez vos por exemplo Rolando 413 etc Quão mais rígida e complicadamente eram representadas mesmo as mudanças mais dramáticas dos acon tecimentos pode ser observado no caso de Villehardouin que introduz a sua narrativa sôbre a intervenção do velhíssimo e cego doge de Veneza quando do assalto de Constantinopla oca sião na qual êste ordena sob pena de morte à sua gente que hesita antes do desembarque que êle seja o primeiro a descer à terra com a bandeira de São Marcos com as seguintes palavras or porrez oir estrange proece exatamente como se Dante em lugar do allora tivesse escrito então aconteceu algo de ex traordinário O ez vos do francês arcaico levanos pelo rasto certo quando procuramos a expressão latina correspondente a êste então súbito e bruscamente interruptor não se trata pre cisamente de tum nem de tunc em alguns casos sed ou iam aproximarseiam melhor mas a correspondência mais apropria da a que possui tôda esta fôrça é ecce ou melhor ainda et ecce encontrase menos no estilo elevado do que em Plauto nas cartas ciceronianas em Apuleio etc e sobretudo na Vulgata quando Abraão pega a faca para sacrificar o seu filho Isaac está escrito et ecce Angelus Domini de caelo clamavi dicens Abraham Abraham Pareceme que êste movimento lingüísti co cortantemente interruptor é demasiado duro para ter sua origem no estilo elevado do latim clássico ao contrário cor responde perfeitamente ao estilo elevado da Bíblia além disso Dante emprega o et ecce bíblico literalmente em outra oportuni dade onde um a situação é interrompida súbitamente ainda que não de forma tão dramática Purgatório 217 ed ecco s come ne scrive Luca ci apparve segundo Lucas 2413 et ecce duo ex iltis Contudo não quero afirmar com cer teza que Dante introduziu no estilo elevado o movimento do então súbitamente interruptor e que êste movimento pene trou no seu ouvido a partir da Bíblia mas pelo menos deve ficar claro que o então dramaticamente arrebatador no tem po em que êle escrevia não era tão corriqueiro e não estava tão perto da expressão de qualquer pessoa como hoje e que o empregava de maneira muito mais radical do que qualquer outro antes dêle na Idade Média De mais a mais devem ainda ser tomados em consideração o significado e o som do surse que Dante emprega ainda em outra passagem com um efeito sonoro muito grande para exprimir um súbito levantarse Purgatório 6 7273 e Fombra tutta in se romita surse vêr lui O allor surse do verso 52 tem portanto um pêso em nada menor do que as palavras de Farinata que acarretam a primeira interrupção êste allor pertence àquelas formas paratá ticas que põem os membros que ligam em relação dinâmica entre si a conversa com Farinata é interrompida Cavalcante não é capaz de esperar o seu fim após as últimas palavru que FARINATA E CAVALCANTE 155 ouvira o seu autocontrole o abandona a sua aparição com os gestos espreitantes as palavras chorosas e a precipitada deses peração ao voltar a se deitar oferece um contraste violento frente à tranqüila gravidade de Farinata que volta a palavra com a terceira mudança verso 73 ss A terceira mudança ma quelValtro magnanimo etc é bem menos dram ática do que as primeiras é calma orgulhosa e grave Farinata domina esta cena sòzinho Mas o contraste com o precedente fica ainda mais ressaltado Dante chamao magnanimo um têrmo aristo télico que deve ter chegado a êle através de Santo Tomás de Aquino ou mais provàvelmente através de Brunetto Latini e que num a passagem anterior emprega para designar Virgí lio sem dúvida é consciente o contraste com Cavalcante cos tui e os três cólons da oração igualmente construídos que exprimem a imobilidade de Farinata non mutò aspetto ne mosse collo nè piegò sua costa não só devem descrever Fari nata em si mas também contrapor a sua atitude com a de Cavalcante Isto ressoa também para o ouvinte a partir das orações construídas com regularidade pois que lhe ficam ainda no ouvido as perguntas irregulares e queixosas do outro para a formulação destas perguntas versos 5860 e 6769 Dante certamente teve como modêlo a cena de Andrômaca Eneida III 310 isto é as queixas de um a mulher Por mais abruptamente que os acontecimentos se revezem portanto não é possível falar numa construção estilística para tática um movimento vivacíssimo agita tudo ininterruptamente Dante dispõe de meios estilísticos tão ricos como nenhuma lín gua européia vulgar conheceu antes dêle e não os emprega sò mente isolados mas os coloca em ininterrupta relação mútua O discurso animador de Virgílio 3133 só contém orações prin cipais sem qualquer ligação externa mediante conjunções uma curta oração imperativa uma curta pergunta outro imperativo com objeto e explicação relativa a uma oração futura convi dativa segundo o seu sentido com determinação adverbial Mas a rápida sucessão a composição aguda das partes isoladas e a sua m útua afinação criam o ímpeto completo de um dis curso dito com vivacidade Voltate O que estás pensando e assim por diante Com isto há articulações de pensamento da mais sutil das espécies ao lado do causal comum però aparece o onde que flutua entre um valor temporal e o causal hipoté tico e segundo a opinião de alguns comentaristas antigos cor têsmente moderador forse che aparecem as mais diversas liga ções temporais comparativas matizadamente hipotéticas apoia das pela maior elasticidade na colocação das formas verbais e no emprégo da sintaxe Observese por exemplo com que fa cilidade Dante conserva o domínio sintático sôbre a cena da upiirlçfto de Cavalcante de tal forma que ela corre de uma só tirada através de três tercetos até o fim da sua primeira fala vorio 60 A unidade du construção descansa nos três pilares verbali surii guardò disse no primeiro upóinmae o sujeito os 156 MIMESIS determinantes adverbiais e também ainda o parêntese expli cativo credo che sôbre guardò os dois primeiros versos do segundo terceto com a frase do como se enquanto o terceiro verso já se dirige para o disse e para o discurso direto de Caval cante no qual culmina todo o movimento que começara com fôrça para depois diminuir e para a partir do verso 57 nova mente crescer Se alguns dos leitores desta pesquisa forem me nos versados em literatura medieval em línguas vulgares pro vàvelmente surpreenderseão pelo fato de eu salientar e louvar como coisa extraordinária estruturas sintáticas que hoje são empregadas sem esforço por qualquer escritor de certo talento e até por alguns epistológrafos de certa cultura lingüística Mas quando se parte das anteriores a língua de Dante parece um milagre quase inacreditável Diante da expressão de todos os anteriores entre os quais certamente houve grandes poetas a expressão de Dante possui riqueza presença fôrça e maleabili dade tão incomparàvelmente maiores conhece e utiliza uma quantidade tão incomparàvelmente maior de formas compõe os mais diversos fenômenos e conteúdos com segurança tão incom paràvelmente maior que necessàriamente se chega à convicção de que êste homem através da sua língua redescobriu o mun do Muito freqüentemente é possível comprovar ou supor de onde êle hauriu esta ou aquela forma de expressão mas são tan tas as fontes êle as ouve e emprega de uma maneira tão exata primitiva mas também tão peculiar que tais comprovações ou suposições só aumentam a admiração pela fôrça do seu gênio lingüístico N um texto como o nosso podese procurar em qual quer lugar e em todos encontrarseão coisas surpreendentes ini magináveis nas literaturas vulgares até então Tomemos algo aparentemente tão insignificante quanto a oração da me stesso non vegno é possível imaginar a existência de uma formulação tão curta e completa de um tal pensamento é possível aliás imaginar um pensamento tão aguçado e um tal emprêgo do da na poesia de um autor em língua vulgar anterior a Dante Êste emprega da com êste sentido em muitas outras ocasiões Pur gatório 1 52 da me non venni Purgatório 19 143 buona da sè Paraíso 2 58 ma dimmi quel che tu da te ne pensi O significado pela minha própria vontade pela minha própria fôrça por mim só deve terse desenvolvido a partir do sig nificado a partir de Guido Cavalcanti escreve na Can zone Donna m i prega A more non è vertute ma da quella vene Naturalmente não é possível afirmar que Dante tenha criado esta variante de significado pois mesmo se não fôr possível achar nos textos mais antigos nenhuma passagem desta espécie ela poderia terse perdido e mesmo se nada de semelhante ti vesse sido escrito antes dêle poderia ter vivido na língua colo quial e assim é realmente como o demonstra uma passagem caricatural de Liutprando de Cremona Mas é certo que quan do Dante criou ou adotou esta curta formulação lhe conferiu uma fôrça e uma profundidade antes inimaginável c para isto FARINATA E CAVALCANTE 157 contribui no nosso texto a dupla contraposição por um lado per altezza dingegno pelo outro colui chattende là as duas são perífrases retóricas uma evita o nome altivamente a outra respeitosamente O da me stesso originase talvez da linguagem coloquial e também em geral fica claro que Dante não desdenha as for mas coloquiais O Volgiti Che fail ainda por cima na bôca de Virgílio e após a solene formulação da invocação de Farina ta tem um efeito muito forte de fala espontânea e não estilizada tal qual aparece a todo instante no trato dos que se falam todo dia N ão é muito diferente o que se dá com a pergunta dura e carente de todo enfeite perifrástico chi fur li maggior tui ou com as perguntas de Cavalcante Come dicesti egli ebbe etc Continuando a leitura do canto encontrase perto do fim a passagem em que Virgílio pergunta perchè sei tu si smarrito verso 125 Tôdas estas passagens desligadas do seu contexto poderiam ser encontradas em qualquer conversação comum em estilo baixo Junto a elas aparecem formulações do mais eleva do pathos lingüisticamente também elevadas no sentido antigo da palavra a intenção estilística do conjunto dirigese sem dúvi da para o sublime sentese isto mesmo sem se conhecer as ma nifestações expressas de Dante em cada verso do poem a por mais coloquial que seja a gravidade gravitas do tom de Dante é m antida de form a tão ininterrupta que não se pode du vidar nem um instante em qual nível de estilo nos encontramos Sem dúvida foram também os poetas antigos os que deram a Dante o modêlo do estilo elevado a êle antes de qualquer outro êle próprio diz em muitas passagens tanto na Comédia quanto na sua De vulgari eloquentia quanto lhes deve pelo estilo ele vado da língua vulgar êle o diz mesmo no texto que estamos estudando pois o tão discutido verso onde diz que talvez Guido Cavalcanti desprezara Virgílio contém entre outros muitos sig nificados também êste quase todos os comentadores antigos entenderamno no sentido estético Mas ao mesmo tempo é inegável que o conceito que Dante faz do sublime é essencial mente diferente daquele dos seus antigos modelos tanto no que se refere aos objetos quanto à sua formulação lingüística Os objetos apresentados pela Comédia estão misturados segundo a medidas antigas a partir do sublime e do baixo de maneira excessiva há entre êles personagens da história apenas passada c até da história contemporânea entre as quais apesar de Pa raíso 17 13638 pessoas quaisquer e carentes de fama são upresentadas muito freqüentemente na sua esfera vital plena baixamente realista sem reservas e em geral como todo leitor uhc Dante não conhece barreiras na imitação exata e não pcrifráMicit do quotidiano do grotesco e do repugnante coisas que cm si nunca poderiam ser consideradas sublimes no sen tido antigo tornanisc sublimes pela maneira como as forma e urdiM iit Já sc falou da mistura lingüística no seu estilo pensese iiiiula MÒmcntc no verso deixa que êles se coccm onde sentem 158 MIMESIS comichão num a das passagens mais solenes do Paraíso 17 129 para tornar clara tôda a distância que o separa por exem plo de Virgílio Muitos críticos importantes até séculos intei ros de gôsto clássico não se sentiram bem com esta proximida de presente demasiado violenta no meio do sublime com a grandeza repulsiva amiúde detestável de Dante são palavras de Goethe Annale 1821 e isto é muito compreensível Pois em nenhum outro lugar fica tão claro o choque entre as duas tradições a antiga de separação dos estilos e a cristã de mis tura dos estilos do que neste poderoso temperamento para o qual as duas também a antiga a qual êle se esforça em atingir sem poder deixar de lado a outra tornamse novamente cons cientes em nenhum lugar a mistura de estilos chega tão perto da ruptura de estilos As pessoas cultas da Antigüidade tardia entendiam que havia ruptura estilística também nas escrituras bíblicas da mesma maneira devem ter reagido os humanistas posteriores diante da obra do seu maior predecessor daquele que foi o primeiro a ler novamente os poetas antigos por causa da sua arte e recebeu em si próprio o seu tom daquele que foi o primeiro a formular e a realizar o pensamento do Volgare illustre da grande poesia em lígua materna e a sua reação se devia exatamente ao fato de ter feito tudo isso A mistura de estilos da poesia medieval anterior do teatro cristão por exemplo era perdoável por causa da sua ingenuidade parecia não ter pretensões a grande dignidade poética justificavase ou pelo menos perdoavase por causa do seu fim e do seu caráter populares nem entrava pròpriamente no campo daquilo que devia ser considerado e julgado com seriedade Aqui porém não se podia falar em ingenuidade ou em falta de pretensões muitas palavras textuais de Dante tôdas as apelações ao modêlo virgiliano as invocações às musas a Apoio a Deus a relação com a própria obra cheia de tensão que transparecia em muitas passagens e mais do que tudo isto o tom de cada um dos versos da obra tudo isto é testemunho da mais elevada preten são Não é surpreendente que o fato extraordinário desta obra fôsse incômodo para muitos humanistas posteriores e para mui tas pessoas educadas no humanismo O próprio Dante mostra nas suas declarações teóricas uma certa insegurança na questão da classificação estilística da Co média N a sua De vulgari eloquentia na qual trata da poesia das Canzioni e sôbre a qual a Comédia não parece ter ainda deitado qualquer sombra Dante faz ao estilo elevado e trágico exigências muito diferentes daquelas que cumpre mais tarde na Comédia muito mais estreitas com respeito à escolha do objeto muito mais puristas e fazendo maior questão da separa ção dos estilos quanto à escolha da forma e das palavras Esta va então sob o efeito da poesia do tardio provençal extrema mente artificiosa e destinada exclusivamente a um círculo esco lhido de iniciados e do estilo nôvo italiano e uniu com isto a antiga doutrina da separação dos estilos da forma como con FARINATA E CAVALCANTE 159 tinuavam a vegetar nas obras dos teóricos medievais da arte retórica Nunca se liberou totalmente destas opiniões senão não teria chamado sua grande obra Comédia em nítido contras te com a definição de Virgílio da Eneida como alta tragédia Inferno 20 113 parece portanto que não quer incomodar a dignidade do estilo trágico elevado para a sua grande obra a isto juntase ainda a justificação que dá nu décima parte da sua carta a Cangrande para o nomè Comédia Tragédia e comé dia diferenciamse assim diz na mencionada carta em primeiro lugar pela m archa da ação que levaria na tragédia de um comêço tranqüilo e nobre a um fim terrível e na comédia de forma contrária de um comêço amargo a um fim feliz depois e isto é para nós o mais importante pelo estilo pelo modus loquendi elate et sublime tragédia comedia vero remisse et humiliter e por isto o seu poema deveria chamarse comédia por um lado por causa do comêço infeliz e do fim feliz pelo outro por causa do modus loquendi remissus est modus et humilis quia locutio vulgaris in qua et muliercule communicant Devese acreditar antes de mais nada que isto se refere ao em prego da língua italiana então o estilo seria baixo simplesmente por isto porque a Comédia está escrita em italiano e não em latim mas um a tal declaração seria dificilmente crível em Dante que defendera a nobre dignidade da língua vulgar a partir do De eloquentia e que baseou o estilo elevado da língua vulgar nas suas Canzoni e que finalmente já havia completado a Comédia no tempo da carta a Cangrande por isto numerosos pesquisadores modernos entenderam locutio não como língua mas como modo de expressão de tal forma que Dante teria querido dizer que a form a de expressão da obra não seria a do italiano elevado do vulgare illustre cardinale aulicum et curiale para usar as suas próprias palavras De vulg el 1 17 mas a da linguagem popular quotidiana qualquer Em todo caso também aqui não requer o estilo trágico elevado para a sua obra mas no melhor dos casos um estilo médio e mesmo isto êle exprime de forma somente indistinta na medida em que cita a passagem da A rs poética de Horácio 93 ss na qual se diz que a comédia emprega também às vêzes tons trágicos e viccversa Declara que a sua obra como um todo pertence uo estilo baixo logo após ter falado na sua multiplicidade de sentidos o que não corresponde de forma alguma ao estilo buixo c apesar de que repetidamente fale da parte que jun tamente com a carta dedica a Cangrande o Paraíso como sen il ctiritlca sublimis designando a sua matéria como sendo admi rubilix Na própria Comédia persiste a incerteza mas aqui pre domina a consciência de que tanto o objeto quanto a forma podem reivindicar a mais elevada dignidade poética Já enu mcriimos acima tudo aquilo que fala a favor da sua plena cons ciência da essência c da dignidade do seu estilo Mas não ohMmilc cNcolha Virgílio como guiu não obstante invoque Apoio c iiH musiis Dimic evita tAdu designação do seu poentu como 160 MIMESIS unia obra sublime no antigo sentido para exprimir a sua pecu liar sublimidade forma uma palavra especial il poema sacro al quale ha posto mano e cielo e terra Par 25 2 3 É difícil acreditar que após ter encontrado esta palavra e ter completado a obra tenha se exprimido de form a tão escolar acêrca da sua essência como na passagem da carta a Cangrande que acabamos de comentar de cuja autenticidade duvidouse repetidamente Todavia o prestígio da antiga tradição obscurecida naquele tempo ainda pela sistematização pedante assim como a ten dência para posições teóricas firmes e aos nossos olhos absur das eram tão grandes que a coisa pode também parecer veros símil Os comentadores seus contemporâneos ou antes os seus sucessores imediatos manifestaramse também num sentido pu ramente escolar acêrca da questão do estilo por mais que haja naturalmente algumas exceções Boccaccio por exemplo cujas explicações espirituosas que atestam um conhecimento humanis ta já sério da Antigüidade não convencem pois eludem o pro blema e sobretudo o extremamente vivaz Benvenuto de Imola que depois de ter explicado a clássica tripartição dos estilos o elevadotrágico o médiopolêmicosatírico o baixocômico con tinua da seguinte forma Modo est hic attente notandum quod sicut in isto libro est omnis pars philosophiae tôda espécie de filosofia ut dictum est ita est omnis pars poetriae Unde si quis velit subtiliter investigare hic est tragoedia satyra et comoedia Tragoedia quidem quia describit gesta pontificum principum regum ba ronum et aliorum magnatum et nobilium sicut patet in toto libro Satyra it est reprehensoria reprehendit enim mirabiliter et audacter omnia genera viciorum nec parcit dignitati potes tati vel nobilitati alicuius Ideo convenientius posset intitulari satyra talvez aqui o pensamento vá também aos Sirventes quam tragoedia vel comoedia Potest etiam dici quod sit comoedia nam secundum Isidorum comoedia incipit a tristibus et termi natur ad laeta Et ita liber iste incipit a tristi matéria scilicet ab Inferno et term inatur ad laetam scilicet ad Paradisum sive ad divinam essentiam Sed dices forsan lector cur vis mihi baptizare librum de novo cum autor nominaverit ipsum Comoe diam Dico quod autor voluit vocare librum Comoediam a stylo infimo et vulgari quia de rei veritate est humilis respectu litteralis sic quamvis in genere suo sit sublimis et excellens Benvenuti de Rambaldis de Imola Comentum super D A Comoediam curarite Jacobo Philippo Lacaita Tomus Pri mus Florentiae 1887 p 1 9 1 1 Devese observar aqui atentamente que assim como neste livro há tôda espécie de filosofia como já foi dito assim também há tôda espécie de poesia Com efeito quem quiser investigálo mais sutilmente encontrará nêle a tragédia a sátira e a comédia A tragédia porque descreve os feitos dos pontífices príncipes reis barões e outros magnatas e nobres como é patente no livro todo A sátira porque é repreensório porque repreende admirável c audazmente tôda espécie de vícios e nem perdoa dignidade potctitiidc ou no breza de ninguém Por isso poderia chamarse sátira mais pròpriamento do que tragédia ou comédia Mnn tamhén é pomfvcl clmmMn tíc comédia poln FARINATA E CAVALCANTE 161 O temperamento de Benvenuto abre para si um caminho reto através do matagal da teoria escolástica êste livro contém tôda espécie de poesia assim como contém toda espécie de saber o seu autor chamouo Comédia porque o seu estilo é baixo e vulgar mas pertence todavia na sua especial forma de ser ao gênero da poesia sublime Já pela plenitude dos objetos tratados o problema do estilo elevado colocase para a Comédia de maneira totalmente nova Para os provençais e para os poetas do estilo nôvo o único tema grande era o amor sublime quando Dante enumera três dêstes temas no seu livro De eloquentia salus venus virtus isto é feitos de armas amor e virtude os dois outros estão subordinados em quase tôdas as grandes Canzoni ao amor ou estão disfarçados numa alegoria amorosa Ainda na Comédia êste bastidor é conservado pela figura e pelo efeito de Beatriz o bastidor porém cinge um domínio imenso A Comédia é entre outras coisas um poema didático enciclopédico no qual são apresentadas conjuntamente as ordens universais físicocos mológica ética e históricopolítica é também uma obra de arte imitativa da realidade na qual aparecem todos os campos con cebíveis da realidade passado e presente grandeza sublime e desprezível vulgaridade história e lenda tragédia e comédia homem e paisagem é finalmente a história do desenvolvimen to e da salvação de um único homem Dante e como tal uma história figurativa da história da salvação da humanidade em geral Nela aparecem figuras da mitologia antiga às vêzes mas não sempre fantàsticamente demonizadas personificações alegóricas e animais simbólicos originários da Antigüidade tar dia e da Idade Média anjos santos e beatos como portadores de um significado do mundo do cristianismo aparecem Apoio Lúcifer e Cristo Fortuna e a Senhora Pobreza Medusa como emblema dos círculos mais profundos do Inferno e Catão de Ütica como guardião do Purgatório Mas nada disto tudo é no contexto de um esforço pelo estilo elevado tão nôvo e tão problemático quanto o imediato agarrar da realidade presente da vida não escolhida nem préordenada mediante escalas esté ticas através do qual justamente surgem tôdas as formas ime diatus de linguagem inusuais no estilo elevado cuja dureza causava espécie ao gôsto clássico E todo êste realismo não se movimenta dentro de uma só ação mas numa pletora de ações que se revezam nos mais diferentes níveis de tom Todavia a unidade do poema é convincente Descansa nobre o lema geral sôbre o status animarum post mortem êste ilcve ser como sentença divina final uma unidade perfeitamente triimulo Uidoro o comédia começa com coisas tristes e term ina com coisas u litfjrr I A i i i m 6sic livro começa com mptéria triste ou seja o Inferno e litm ittn com itltfo nlciire ou xeja o Paraíso da essência divina Mas talvez tliUM Iclloi pui que queres que eu batize êste livro de nôvo se o seu autor A o iltnmnii ilc Comédia Digo que o autor quis chamar o livro de Comédia cm d ti Jitflrrm c vuljtar e com efeito a sua obm é humilde do iHHiin Op vitia liiciul híikIh qur no eu iitnero ncjti tubllmc c excelente 162 MIMESIS ordenada tanto como sistema teórico quanto como realidade prática e portanto também como criação estética deve repre sentar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pu ra e atual do que o mundo terreno ou algo que nêle acontece pois que o além ainda que inacabado até o Juízo Final não apresenta na medida em que o faz o mundo terreno desenvol vimento potencialidade e provisoriedade mas é o ato completo do plano divino A ordem unitária do além assim como Dante nola apresenta é tangível da maneira mais imediata como sis tema moral na repartição das almas nos três reinos e suas sub divisões o sistema segue em tudo a ética aristotélicotomista re parte os pecadores no Inferno antes de mais nada segundo a medida da sua má vontade e dentro desta divisão segundo a gravidade dos seus atos os penitentes no Purgatório segundo os maus impulsos dos quais devem se purificar e os venturosos no Paraíso segundo a medida da teofania da qual participam Neste sistema moral há entretecidos contudo outros sistemas de ordenação físicocosmológicos e históricopolíticos A si tuação do Inferno do Monte da Purificação e das Abóbadas Celestes oferece juntamente com uma visão moral uma visão física do universo a ciência espiritual que serve de base à ordem moral é também simultâneamente uma antropologia fisiológica psicológica e também de muitas outras maneiras a ordem moral está ligada fundamentalmente com a ordem física O mesmo ocorre com a ordem históricopolítica a comunidade dos venturosos na rosa branca do Empíreo é também ao mesmo tempo o alvo da história da salvação para o qual se dirigem to das as teorias históricopolíticas e segundo o qual devem ser julga dos todos os acontecimentos históricopolíticos isto é expresso constantemente no poema às vêzes muito claramente por exem plo nos acontecimentos simbólicos no cume do Purgatório no Paraíso terrestre de tal forma que de modo sempre presente e sempre comprovável os três sistemas da ordem o moral o físico e o históricopolítico aparecem como uma só figura Para compreender agora de forma prática de que maneira se realiza a unidade da ordenação do além como unidade do es tilo elevedo devemos voltar ao nosso texto A vida terrena de Farinata e de Cavalcante chegou ao seu fim a mudança do seu destino acabou estão numa situação definitiva e imutável na qual só acontecerá uma única modificação ou seja a recuperação dos seus corpos quando da ressurreição no Juízo Final Assim como são encontrados aqui são portanto almas separadas do corpo às quais Dante confere contudo uma espécie de corpo espectral de forma que possam ser reconhecidos que possam exprimir se e sofrer cf Purg 3 31 ss A sua relação com a vida ter rena limitase à memória além disto como Dante discute no nosso canto possuem certos conhecimentos do passado e do futuro que ultrapassam as medidas terrenas vêem com nitidez como se fôssem hipermétropes os acontecimentos que se dão na Terra num passado ou num futuro algo longínquo podendo FARINATA E CAVALCANTE 163 portanto predizer o futuro enquanto são cegos para o presente terreno êste é o motivo da hesitação de Dante diante da per gunta de Cavalcante sôbre se o seu filho ainda vive surpreende se por causa da ignorância de Cavalcante tanto mais quanto já antes outras almas profetizaramlhe coisas futuras Êles possuem portanto a sua própria vida terrena completa na me mória não obstante tenha acabado e não obstante se encon trarem numa situação que não só pràticamente estão deitados em ataúdes ardentes senão também fundamentalmente devido à sua imutabilidade espacial e temporal é diferente de qualquer situação terrena concebível não parecem mortos como o estão mas vivos Aqui chegamos ao mais surpreendente ao paradoxal naquilo que é chamado o realismo de Dante Imitação da rea lidade é imitação da experiência sensível da vida terrena a cujas características essenciais parecem pertencer a sua historicidade a sua mutação e o seu desenvolvimento por mais liberdade que se queira dar ao poeta imitativo para a sua criação esta quali dade que é a sua própria essência êle não deve tirar da realidade Os habitantes dos três reinos de Dante encontramse porém numa existência imutável esta palavra é usada por Hegel numa das mais belas páginas que jamais foram escritas acêrca de Dante nas suas conferências sôbre a estética e todavia Dan te introduz o mundo vivo do agir e do sofrer humanos e mais perto dos atos e dos destinos individuais nesta existência imutá vel Perguntamonos diante do nosso texto como isto acontece A existência dos dois sepulcrais habitantes e o cenário onde ela se realiza são certamente definitivos e eternos não são porém carentes de história Ao Inferno desceram Enéias e Paulo e também Cristo nêle passeiam Virgílio e Dante nele há paisa gens e nas paisagens movimentamse espíritos infernais diante dos nossos olhos realizamse fatos è acontecimentos até mudan ças As almas dos condenados no seu corpo espectral têm no seu eterno lugar aparência liberdade de palavra e de gestos li berdade para realizar alguns movimentos e portanto dentro da imutabilidade liberdade para certo grau de mudança abandona mos o mundo terreno estamos num lugar eterno e todavia en contramos nêle aparências concretas e acontecimentos concretos Isto é diferente daquilo que aparece e acontece na Terra e con tudo um está em relação evidentemente necessária poderosa com o outro A realidade das aparições de Farinata e Cavalcante é percebida na situação na qual se encontram e nas suas manifes tações Na sua situação de habitantes dos ataúdes ardentes exprimese a condenação que Deus concebeu para tôda a cate goria de pecadores à qual pertencem a dos hereges e infiéis nas M ias munifestações porém a sua essência pessoal aparece com uda fôrçu Isto é especialmente claro no caso de Farinata e de Cavalcante pois são pecadores da mesma categoria e se encon tram na mesma situação como indivíduos de caráter diferente Ic diferente destino na vida pregressa e de diferentes tendências o tlois siW poslm cm enérgico contraste O seu destino eterno 164 MIMESIS e imutável é o mesmo mas só no sentido de terem ambos de sofrer a mesma pena só no sentido objetivo pois ambos a recebem de forma diferente Farinata não dá a mínima atenção à sua situação Cavalcante chora no cego cárcere a luz perdida e ambos mostram em total configuração por gestos e palavras uma essência peculiar para cada um dêles que não pode ser e também não é outra senão aquela que outrora possuíram na vida terrena Mais do que isso pelo fato de que a vida terrena está detida de tal forma que nada nela poda ser desenvolvido ou mu dado enquanto as paixões e tendências que a movimentaram continuam a persistir sem descarregarse pela ação ocorre co mo que um tremendo armazenamento das mesmas tornase vi sível uma figura muito exacerbada fixada para a eternidade numa medida tremenda da essência individual de cada um tal como não poderia ter sido encontrada com tanta pureza e niti dez em nenhum momento da vida terrena de outrora Não há dúvida que também isto faz parte da condenação que Deus pronunciou sôbre êles as almas não foram sòmente classificadas em categorias e distribuídas correspondentemente entre os três reinos mas foi concebida uma situação individual para cada lima delas na medida em que a forma individual de cada uma não foi destruída mas ao contrário foi fixada na sentença eter na completandoa definitivamente só mediante êste último to que e livrandoa finalmente à observação Farinata é no meio do Inferno maior mais poderoso e nobre do que nunca pois nunca durante a sua vida teve a oportunidade de manifes tar assim a fôrça do seu coração e se os seus desejos e pensamentos ainda circulam imutados ao redor de Florença e dos gibelinos dos prêmios e dos erros da sua ação de outrora esta continuidade da sua essência terrena na sua grandeza e na sua desesperançada inutilidade pertence sem dúvida à sentença qua Deus pronunciou a seu respeito A mesma desesperada inu tilidade na continuação da sua essência terrena é apresentada por Cavalcante com certeza nunca durante a sua vida sentiu tão fortemente e exprimiu tão arrebatadoramente a sua fé no espírito do homem o seu amor pela doce luz e pelo seu filho Guido como agora quando tudo isso é inútil Também não deve ser esquecido que para as almas dos mortos a peregrina ção de Dante é a oportunidade única e última para tôda a eternidade de conversar com um ser vivo uma circunstância que leva muitos a se exprimirem com extrema intensidade e que introduz na imutabilidade do seu destino eterno um instante de dramática historicidade Da especial situação dos habitantes do Inferno ainda faz parte o campo peculiarmente restrito e ampliado do seu conhecimento perderam a visão de Deus que foi outorgada a todos os sêres na Terra no Purgatório e no Paraíso em diferentes graus e com ela perderam tôda espe rança conhecem o passado e o futuro dos acontecimentos terre nos e com isto a inutilidade da forma pessoal que lhe foi con servada mas que nunca poderá desembocar nu comunidade FARINATA E CAVALCANTE 165 divina e têm apaixonado interêsse pelo estado presente das coisas sôbre a Terra o qual lhes é oculto Muito impressionan te neste sentido ao lado de Cavalcante e de outros é Guido de Montefeltro que fala penosamente através da ponta da chama da sua cabeça no Canto XXVII cuja invocação longa supli cante embebida de lembrança e de queixume no sentido de que Virgílio se detenha e converse com êle culmina com as palavras do verso 28 dimmi se i Romagnuoli han pace o guerra Dante transferiu portanto a historicidade terrena para o seu além os seus mortos estão privados do presente terreno e das suas mudanças mas a lembrança e a intensiva participação no mesmo os arrebatam de tal forma que a paisagem do além está cheia disso Isto não é tão forte no Purgatório e no Paraí so pois lá a vista não está dirigida como no Inferno exclusi vamente para trás para a vida terrena mas para a frente e para 0 alto de tal forma que êle à medida que nos elevamos vê a existência terrena mais claramente concentrada com a sua me ta divina Mas a existência terrena fica sempre conservada pois cm tôda parte é a base da sentença divina e com isto da situa ção eterna na qual a alma se encontra e em tôda parte esta situação não é sòmente um estar classificado num determinado grupo de penitentes ou de venturosos mas uma estampa cons ciente da essência terrena de outrora e do lugar que lhe corres ponde no plano geral divino É justamente na completa atua lização do caráter outrora terreno no lugar que definitivamente lhe corresponde que consiste a sentença divina E em tôda purte as almas dos mortos têm liberdade bastante para manifes tar a sua essência individual e peculiar às vêzes é claro só com esforço pois às vêzes a pena ou a penitência ou mesmo o brilho da sua ventura dificulta a sua aparição e manifestação mas estas aparecem então de maneira ainda mais arrebatadora vcnccndo b obstáculo Êstcs pensamentos encontramse na página de Hegel que mencionei acima e fiz dêles uma base para uma investigação do realismo de Dante que publiquei em 1929 Dante ais Dichter tlrr Irdischen Welt Entretanto tenho me perguntado sôbre que visão da estrutura do acontecer sôbre que visão histórica portanto repousa êste realismo de Dante projetado para a eter nuludc imutável esperei com isto averiguar algo de mais pre cmi ucêrcu dos fundamentos do estilo elevado de Dante pois o hcu cittilo elevado consiste precisamente na ordenação do carac iiililiciimcnte individual às vêzes cruel feio grotesco e quo liiliuiio dentro da dignidade que ultrapassa qualquer sublimi dade terrestre da sentença divina Evidentemente a sua con i i kAo dos acontecimentos não é idêntica àquela que hoje está ilifiuulidu cm geral pelo mundo na medida em que não os ví Miciamcntc como desenvolvimento terreno como sistema de moiiOiicm tia Tcrru mas cm constante conexão com um plano divino tio uconlcccr pura cuja meta o acontecer terreno avança 1 oimiiintrmonk Isto nfto deve ser compreendido sòmente no 166 MIMESIS sentido de que a sociedade humana como um todo se aproxima em movimento progressivo do fim do mundo e da plenitude do reino de Deus com o que portanto todos os acontecimentos dirigirseiam horizontalmente para o futuro mas também no sentido de uma ligação sempiterna independente de todo movi mento progressivo entre qualquer acontecimento terreno qual quer fenômeno terreno e o plano divino portanto todo fenô meno terreno através de uma série de ligações verticais está re ferido imediatamente ao plano de salvação da providência Pois a criação tôda é uma constante multiplicação e irradiação do movimento do amor divino non è se non splendor di quella idea che partorisce amando il nostro Sire Par 13 534 e éste movimento de amor é atemporal e opera em todos os fenômenos sempitemamente A meta da história da salvação a rosa branca do Empíreo a comunidade dos eleitos na visão não mais velada de Deus não é somente uma esperança segura no futuro mas já está desde sempre completada em Deus e préfigurada para os homens assim como Cristo o estava em Adão fora do tempo ou em todo tempo no Paraíso se dá o triunfo de Cristo e a coroação de Maria e em todo tempo a alma cujo amor não está dirigido para uma meta falsa vai para o seu amado Cristo que a ela se prometera através do seu sangue Encontramse na Comédia diversas aparições terrenas cuja relação com o plano divino da salvação é explanado com exati dão também teoricamente dentre elas a mais surpreendente para um observador moderno é a monarquia romana universal ela é segundo a interpretação de Dante a préanunciação concreta e terrena do reino de Deus Já a viagem de Enéias pelo mundo subterrâneo foi permitida em vista da vitória secular e espiritual de Roma Inf 2 13 ss Roma está destinada desde o princí pio a dominar o mundo Cristo aparece quando o tempo está cumprido isto é quando o mundo habitado está em paz nas mãos de Augusto Brutus e Cássio os assassinos de César penam ao lado de Judas nas fauces de Lúcifer o terceiro César Tibé rio é como legítimo juiz do homem Cristo o vingador execu tivo do pecado original Tito é o legítimo executor da vingança contra os judeus a águia romana e a ave de Deus e o Paraíso é chamado uma vez quella Roma onde Cristo è Romano cf Par 6 Purg 21 82 ss Inf 34 61 ss Purg 32 102 etc e também muitas passagens da Monarchia e além do mais o papel de Virgílio no poema só é compreensível a partir desta pressuposição Isto lembra a figura da Jerusalém terrena e celeste e está pensado de forma essencialmente figurai Assim como no método de interpretação judeocristão realizado cabal mente por Paulo e pelos pais da Igreja com referência ao Velho Testamento Adão era uma figura de Cristo Eva uma figura da Igreja assim como absolutamente tôda aparição e todo acon tecimento do Velho Testamento é interpretado como sendo uma figura que sòmente pela aparição e pelos acontecimentos da en carnação de Cristo é cabalmente realizada ou como diz a cx FARINATA E CAVALCANTE 167 pressão habitual é consumada da mesma forma aparece aqui 0 Império Romano secular como figura da consumação celeste no reino de Deus No meu ensaio já anteriormente mencionado sôbre a figura demonstrei espero convincentemente que a Comédia está baseada absolutamente na interpretação figurai Tentei demonstrar corn base em três das suas mais importantes personagens Catão de Otica Virgílio e Beatriz que a sua apa rição no além é uma consumação da sua aparição na vida ter rena e que esta é uma figura daquela Ainda salientei o fato de que a estrutura figurai dos seus dois pólos da figura e da consumação permite que continue a existir o seu caráter de rea lidade histórica independentemente das suas formas simbólicas ou alegóricas de tal forma que não obstante figura e consumação se signifiquem mutuamente o seu conteúdo significativo não cxclui de maneira alguma a sua realidade Um acontecimento que deve ser interpretado figuralmente preserva o seu sentido literal histórico não se converte em mero signo continua sen do acontecimento Já os pais da Igreja especialmente Tertu liano Jerônimo e Agostinho defenderam vitoriosamente o rea lismo figurai quer dizer a conservação fundamental do caráter histórico real das figuras contra as tendências espiritualistas ulcgóricas Tais tendências que por assim dizer socavam o caráter real do acontecer e não vêem nêle senão um signo e uma importância extrahistóricos transbordaram da Antigüidade tar dia para a Idade Média O simbolismo e o alegorismo medie vais às vêzes são como se sabe extremamente abstratos e tam bém na Comédia encontramse muitos traços disto Mas o que prepondera de longe na vida cristã da alta Idade Média é o rciilismo figurai que é encontrado em pleno florescimento nos sermões nos hinos nas artes plásticas e nos mistérios cf o capítulo anterior e é êle também o que domina a visão de Dnnle O além é como já dissemos acima o ato consumado do plano divino em relação a êle os fenômenos terrenos são cm tudo figurais potenciais e carentes de consumação isto vale também para cada uma das almas dos mortos só aqui no ulém elas ganham a plenitude a verdadeira realidade da sua forma a sua aparição na Terra não foi senão uma figura dcMu consumação e na própria consumação encontram o cas iigo a penitência ou o prêmio A noção da provisoriedade e da iiuênciii de consumação no além da figura humana na Terra liinihém corresponde à antropologia tomista se fôr integralmente 1 iM to o que E Gilson escreveu certa vez a respeito desta última une sorte dr marge nous tient quelque peu en deçà de notre propre définition aticun de nous ne réalise plénièrement 1essen i e huniiirte ni mème la notion complete de sa propre indivi tlthillié le thomisme 3e éd Paris 1927 p 300 Precisamen te isto la notion complète de leur propre individualité é o que ii iilmus recebem no além de Dante através da sentença de IHmin o isto se dú de uma lormn que corresponde tanto à inte lucluçuo litiiinil ijimnto no conceito iiristotélicolomistu de for 168 MIMESIS ma como realidade atual A relação da figura consumada na qual se encontram os mortos de Dnte com respeito ao seu próprio passado terreno é comprovável com maior fa cilidade nos casos em que não só se cumpre o caráter e a essência mas também um significado já reconhecível na figura terrena assim nor exemplo no caso de Catão de Ütica que cumpre a sua função de guarda da liberdade política terrena que era somente figurai ao pé do Purgatório como guardião da liberdade eterna dos eleitos Purg I 71 ss libertà va cer cando e também Archiv Roman XXII 47881 Aqui a in terpretação figurai desvenda o enigma da aparição de Catão num lugar onde é surpreendente achar um pagão Uma tal prova pode ser achada só raramente contudo a partir dos casos nos quais pode ser encontrada é possível reconhecer a noção fun damental de Dante acêrca do indivíduo no aquém e no além Caráter e função do homem têm o seu lugar determinado no pensamento divino da ordem da forma como figuram na Terra e se cumprem no além Figura e consumação têm ambas como já dissemos a essência de acontecimentos e fenômenos reais e históricos a consumação a tem em grau ainda mais elevado e intenso pois é comparada à figura forma perfectior A partir daqui ex plicase o sobrepujante realismo do além dantesco Quando dizemos a partir daqui explicase não esquecemos natural mente o gênio do poeta que foi capaz de produzir tais cria ções para dizêlo com as palavras dos antigos comentaristas que conforme Boécio diferenciavam causa efficiens mate rialis formalis e finalis no poema causa efficiens in hoc opere velut in domo facienda aedificator est Dantes Allegherii de Florentia gloriosus theologus philosophus et poeta Pietro Ali ghieri e de forma semelhante também Jacopo delia Lana mas a maneira especial segundo a qual o seu gênio realista ganhou forma nós a explicamos a partir da visão figurai ela permite entender que o além é eterno e é contudo também fenômeno imutàvelmente sempiterno mas também pleno de historicidade Permite também esclarecer como êste realismo do além é diferente de todo e qualquer realismo puramente terreno No além o homem não mais está prêso a qualquer ação ou trama terrenas como acontece em qualquer mera imitação terrena de acontecimentos humanos antes está prêso a uma situação eterna que é a soma e o resultado de tôdas as suas ações terrenas e que simultâneamente lhe evidencia o que houve de decisivo na sua vida e na sua essência com o que a sua memória embora seja levada por um caminho desa gradável e infrutuoso para os infernícolas êste caminho não deixar de ser o certo em todos os casos um caminho que re vela sempre o que foi decisivo na vida É em tal situação que os mortos se apresentam a Dante o suspense diante do futuro ainda não revelado que é essencial para tôda situação terrena e para a sua imitação artística especialmente sc dra FARINATA E CAVALCANTE 169 mática séria e problemática não mais existe Na Comédia só Dante pode sentir essa tensão Os muitos dramas acabados unemse numa só e grande peça na qual se trata dêle mesmo e da humanidade Todos êles só são exemplos exempla para o ganho ou a perda da eterna bemaventurança Mas as pai xões os tormentos e as alegrias ficaram preservados encon tram expressão na situação nos gestos e na palavra dos mortos Diante de Dante todos os dramas são apresentados mais uma vez extremamente concentrados às vêzes em poucas linhas como o de Pia de Tolomei Purg 5 130 e nêles se desdo bra de forma aparentemente dispersa e parcelada mas toda via dentro de um certo plano a história florentina italiana e universal Tensão e desenvolvimento as características do acontecer terreno acabaram mas todavia as ondas da história rolam até o além em parte como lembrança de um passado terreno em parte como participação de um presente terreno em parte como preocupação com um futuro terreno em tôda parte como temporalidade figuralmente conservada na eter nidade atemporal Cada morto sente a sua situação no além como o último ato inacabado e sempiterno do seu drama terreno Dante diz a Virgílio no primeiro canto do poema só a ti devo agradecer o belo estilo que me trouxe a fama Isto certamente é correto e o é aliás muito mais para a Comédia do que para as obras anteriores e para as Canzoni O motivo da viagem através do mundo subterrâneo grande quantidade de motivos isolados e muitas formas de linguagem tudo isto Dante deve a Virgílio até a mudança da sua concepção esti lística com respeito ao tratado De vulgari eloquentia que o levou do meramente líricofilosófico para a grande epopéia e com isto para a grande representação dos acontecimentos hu manos só se pode ter realizado com base nos modelos antigos c em especial no de Virgílio Êle foi o primeiro dentre os que conhecemos que teve acesso imediato ao poeta Virgílio tom êle muito mais do que com a teoria medieval formase o seu sentido estilístico e a sua noção do sublime Através dêle foi capaz de romper a moldura da suprema comtructio pro vcriçal e contemporaneamente italiana ainda demasiado estreita Mas enquanto se dedicava à elevada obra que está sob o signo ile Virgílio foi ainda a outra tradição mais presente e vivaz ii que o subjugou o seu grande poema tornouse figurai e com mistura de estilos com base na interpretação figurai tornou ic uniu comédia e também como criação estilística cristã Depois de tudo o que dissemos a respeito no decorrer destas interpretações não é mais necessária uma nova explicação acêr iii dc que c de porque a interpretação de todo o acontecer leiicno como sublime imagem figurai misturando os estilos e nem limituçiío quanto ao objeto ou quanto a expressão é de CKpiiito c dc origem cristãos Juntase a isto ainda a unidade lo poemu lodo que colocu uma pletora dc gêneros e dc ações 170 MIMESIS num único contexto universal que une Céu e terra il poema sacro al quale ha posto mano e cielo e terra E por outro lado foi o primeiro que sentiu e realizou e até exacerbou a gravitas peculiarmente antiga do estilo elevado Êle próprio pode dizer o que quiser que o seu poema é baixo grotesco horrível ou irônico permanece no tom elevado nunca o rea lismo da Comédia poderia cair como o do teatro cristão no farsesco nunca poderia servir para o divertimento vulgar O nível do tom de Dante é impensável em obras épicas medievais anteriores e está formado como pode ser comprovado com base em muitos exemplos segundo modelos antigos um belo exem plo a sua fórmula invocatória com se a partir da forma clás sica com sic acêrca do qual falou recentemente G Bonfante nas Publications of the Med Lang Assoe LVII 930 A poe sia prédantesca em línguas vulgares sobretudo a cristã é no seu todo bastante ingênua em questões estilísticas apesar da influência da retórica escolástica que foi recente e repetida mente assinalada Dante porém não obstante pegue o seu material da língua popular mais viva às vêzes até da mais baixa perdeu essa ingenuidade Força tôdas as formas de lin guagem na gravidade do seu tom e quando canta a ordem universal divina põe a serviço desta tarefa construções perió dicas e instrumentos sintáticos que dominam imensas massas de pensamentos e concatenações de acontecimentos Nada seme lhante existiu na poesia desde a Antigüidade um exemplo dentre muitos Inf 2 1336 Será que o estilo de Dante é ainda um sernu remissus et humilis como êle próprio diz e como deve ser o estilo cristão também no sublime Talvez se pudesse responder afirmativamente também os pais da Igreja não desprezaram a arte consciente do discurso nem mesmo Santo Agostinho o fêz o decisivo porém são a causa e as convicções a cujo serviço estão os meios artísticos No nosso trecho são dois condenados os que são intro duzidos em estilo elevado e cujo ser terreno é conservado em tôda sua realidade no local ulterior Farinata é grande e or gulhoso como sempre e Cavalcante não ama menos a luz do mundo e o seu filho mais ardentemente até na sua desespe ração do que outrora na Terra Assim Deus o quis e assim encaixa no realismo figurai da tradição cristã Só que nunca até então êste foi levado a tal extremo nunca foi empregada tanta arte nem tanta fôrça expressiva nem mesmo quase na Antigüidade para tornar a forma terrena da figura humana de uma evidência quase dolorosamente penetrante Justamente a indestruetibilidade cristã do homem inteiro permitiu isto e justamente na medida em que êle o executou com tanta fôrça e com tartta realidade abriu caminho para a tendência do ser terrestre para a autonomia Criou em meio ao além um mun do de sêres e paixões terrestres que no seu efeito sai da mol dura e se toma independente A figura ultrapassa u consuma ção ou mais pròpriamenlc a consumação serve para fazer FARINATA E CAVALCANTE 171 sobressair a figura ainda mais eficazmente Devemos admirar Farinata e chorar com Cavalcante O que realmente nos co move não é o fato de Deus têlos condenado mas o fato de que o primeiro permanece vigoroso e de que o outro clama tão cortantemente pelo seu filho e pela doce luz A terrível situação da sua condenação serve por assim dizer só de meio para exa cerbar estes movimentos totalmente terrenos O problema fica porém em limites demasiado estreitos se fôr reduzido como aconteceu freqüentemente à mera admiração ou compaixão de Dante por alguns infemícolas O que queremos dizer de essen cial não se limita ao Inferno nem por outro lado à simpatia ou admiração de Dante Em tôda parte há exemplos nos quais o efeito da situação e do destino terrenos ultrapassa o da si tuação eterna ou põe esta última a seu serviço Certamente os nobres condenados como Francesca da Rimini Farinata Bru netto Latini ou Pier delia Vigna são bons exemplos para o meu pensamento mas colocase mal o acento acho se só se tomar êstes em consideração pois para uma doutrina que faz depen der o destino eterno da graça e do arrependimento tais figuras no Inferno são tão ineludíveis quanto os virtuosos pagãos no Limbo Tão logo é feita porém a pergunta por que Dante foi o primeiro a sentir o trágico de tais figuras e por que chegou a exprimilo com tôda sua fôrça sobrepujante amplia se de imediato o círculo de observação pois Dante tratou todo o terreno que estava ao seu alcance com igual fôrça Cavalcante não é grande e pessoas como o devasso Ciacco ou como Fi lippo Argenti desfigurado pela ira são tratados por êle seja com compassivo desprêzo seja com abominação Isto não im pede que também nestes casos o quadro das paixões terrenas sobrepuje o quadro da pena coletiva na sua consumação ulte rior e totalmente individual e que a pena sirva muito freqüen temente só para maior efeito do primeiro quadro Isto vale mesmo para os que são mencionados no Purgatório e no Pa raíso Casella que canta uma Canzone de Dante e os seus ouvintes Purg 2 Buonconte que narra a sua morte e o des tino do seu corpo Purg 5 Estácio que se prostra diante do seu mestre Virgílio Purg 21 o jovem rei dos húngaros Carlos Martel de Anjou que tão encantadoramente anuncia a sua afeição por Dante Par 8 Cacciaguida o orgulhoso ante passado de Dante patriarcal pleno da história urbana de Flo rença Par 1517 até mesmo o apóstolo Pedro Par 27 e quantos outros ainda desdobram diante de nós um mundo de vida terrenohistórica de atos empenhos sentimentos e paixões terrenos de uma forma tão plena e forte como o próprio ce nário terreno dificilmente poderia oferecer Certamente todos êlcs estão firmemente ensamblados na ordem divina certamen te um grande poeta cristão tem o direito de manter a humani dude terrena no além de manter a figura na consumação e de iiXrfciçoálana medida das suas fôrças Mas a grande arte de Duntc vui tão longe que o efeito reverte sôbre o terreno 172 MIMESIS e que a consumação da figura arrebata demasiadamente o ou vinte o além tornase teatro do homem e das suas paixões Pensese na arte figurai anterior nos mistérios nas artes plás ticas eclesiásticas que não se atreveram a se afastar ou se afas taram muito timidamente daquilo que era dado pela história bíblica de forma imediata que começaram a imitar a realidade e o indivíduo somente para tornar vivos os acontecimentos bí blicos e contraponhase a isto Dante que faz com que ganhe vida dentro da moldura figurai todo o universo histórico e dentro dêle fundamentalmente tôda figura humana que está ao seu alcance Isto contudo não deixa de ser a reivindicação da exegese judeocristã dos acontecimentos desde os primór dios reivindica validade universal mas a plenitude da vida encaixada nesta exegese é tão rica e forte que as suas aparições conquistam o seu lugar na alma do ouvinte também indepen demente de tôda e qualquer interpretação Quem ouvir o grito de Cavalcante non fiere li occhi suoi il dolce lome ou quem ler o belo suave e tão encantadoramente feminino verso dito por Pia de Tolomei antes de pedir a Dante que se lembre dela na Terra e riposato de la lunga via Purg 5 131 a sua emoção dirigirseá para o ser humano e não imediata mente para a ordem divina na qual acharam o seu cumpri mento a sua situação eterna na ordem divina só se torna cons ciente como cenário cuja irrevocabilidade somente exacerba o efeito da sua humanidade mantida em tôda a sua fôrça Che gase a uma experiência imediata da vida uma experiência que sobrepuja tôdas as outras a uma concepção do ser humano que tanto se espraia mültiplamente quanto penetra profundamente até as raízes do sentimento um esclarecimento das suas emoções e paixões que leva sem inibições à cálida participação e até à admiração da sua multiplicidade e grandeza E dentro desta participação imediata e admirada do ser humano a indestruti bilidade do ser humano total histórico e individual baseada na ordem divina dirigese contra a ordem divina põe a mesma a seu serviço e a obscurece a figura do ser humano colocase à frente da figura de Deus A obra de Dante tornou realidade a essência cristãfigural do homem e a destruiu na mesma reali zação a poderosa moldura rompeuse pela supremacia dos quadros que envolvia As grosseiras desordens em direção às quais levou o realismo farsesco dos mistérios na Idade Média posterior não são nem longinquamente tão perigosas para a manutenção de uma interpretação cristãfigural dos aconteci mentos como o estilo elevado de um tal poeta no qual os homens se vêem e se reconhecem a si próprios Nesta consu mação a figura tornase independente de tal forma que mesmo no Inferno ainda há grandes almas e que no Purgatório algumas almas esquecem por alguns instantes o caminho da purifica ção por causa da doçura de um poema da obra de um ser humano E em conseqüência das peculiares condições do auto cumprimento no além a figura humana se impõe dc maneira FARINATA E CAVALCANTE 173 mais forte concreta e peculiar do que por exemplo na poesia antiga Pois da autoconsumação que compreende tôda a vida passada tanto objetivamente como na memória faz parte um desenvolvimento históricoindividual uma história em cada caso individual de um devir cujo resultado está diante de nós como coisa pronta mas cujos estágios são apresentados porém em muitos casos pormenorizadamente nunca ela permanece totalmente oculta diante de nós averiguamos de maneira muito mais exata do que a poesia antiga era capaz de representar no ser atemporal o devir histórico interno Frate Alberto 9 Numa famosa novela do Decameron 4 2 Boccaccio conta acêrca de um homem de Imola que tinha feito a sua vida impossível na sua cidade natal pela sua devassi dão e pelas suas falcatruas de tal forma que preferiu abandonála Dirigiuse a Veneza lá tornouse monge franciscano e até sacerdote chamouse Frate Alberto e conseguiu mediante penitências chamativas e gestos e sermões pios pôrse em cena de tal forma que era tido por homem grato a Deus e digno de con fiança Ora um dia êle conta a uma confessada pessoa especial mente tôla e presunçosa mulher de um comerciante ausente da cidade que o anjo Gabriel estaria apaixonado pela sua beleza e desejaria visitála à noite êle próprio a visita como anjo Gabriel e goza com ela Isto vai em frente dessa maneira por um tempo mas acaba por levar um mau fim da seguinte forma Pure avenne un giorno che essendo madonna Lisetta con una sua comare et insieme di bellezze quistionando per porre Ia sua innanzi ad ogni altra si come colei che poco sale aveva in zucca disse Se voi sapeste a cui la mia belleza piace in verità voi tacereste delPaltre La comare vaga dudire si come colei che ben Ia conoscea disse Madona voi potreste dir vero ma tuttavia non sappiendo chi questo si sia altri non si rivol gerebbe cosi di leggiero Allora la donna che piccola levatura avea disse Comare egli non si vuol dire ma 1intendimento mio è 1agnolo Gabriello il quale piü che sè mama si come Ia piü bella donna per quello che egli mi dica che sia nel mon do o in maremma La comare allora ebbe voglia di ridere ma pur si tenne per faria piü avanti parlare e disse ln fè di Dio madonna se 1agnoio Gabriello è vostro intendimento c diccvi questo egli dee ben esser cos ma io non crcdcva che li agnolc facesson queste cose Disse la donna Comare voi xictc crratn FRATE ALBERTO 175 per le piaghe di Dio egli il fa meglio che mio marido e dicemi che egli si fa anche colassü ma perciocchè io gli paio piü bella che niuna che ne sia in cielo sè egli innamorato di me e viensene a star meco ben spesso mo vedi vu La comare par tita da madonna Lisetta le parve mille anni che ella fosse in parte ove ella potesse queste cose ridire e ragunatasi ad una festa con una gran brigata di donne loro ordinatamente rac contò la novella Queste donne il dissero a mariti et ad altre donne e quelle a quelTaltre e cosi in meno di due dl ne fu tutta ripiena Vinegia Ma tra gli altri a quali questa cosa venne agli orecchi furono i cognati di lei li quali senza alcuna cosa dirle si posero in cuore di trovare questo agnolo e di sapere se egli sapesse volare e piü notti stettero in posta Awenne che di questo fatto alcuna novelluzza ne venne a frate Alberto agli orecchi il quale per riprender la donna una notte andatovi appena spogliato sera che i cognati di lei che veduto Pavean venire furono alluscio delia sua camera per aprirlo II che frate Alberto sentendo e avvisato ciò che era levatosi non avendo altro rifugio aperse una finestra la qual sopra il mag gior canal rispondea e quindi si gittò nellaqua II fondo vera grande et egli sapeva ben notare si che male alcun non si fece e notato dalPaltra parte dei canale in una casa che aperta vera prestamente se nentrò pregando un buono uomo che dentro vera che per 1amor di Dio gli scampasse la vita sue favole dicendo perchè quivi a quella ora et ignudo fosse II buono uomo mosso a pietà convenendogli andare a far sue bisogne nel suo letto il mise e dissegli che quivi infino alia sua tomata si stesse e dentro serratolo andò a fare i fatti suoi I cognati delia donna entrati nella camera trovarono che 1agnolo Gabriello quivi avendo lasciate lali se nera volato di che quasi scornati grandíssima villania dissero alia donna e lei ultimamente sconsolata lasciarono stare et a casa lor tornarsi con gli amesi dellagnolo Ora aconteceu um dia estando madona Lisetta com uma sua comadre falando juntas acêrca de beleza que para pôr a sua à frente de tôdas as outras e como ela tivesse pouco sal na cabeça disse Se soubesses a quem apraz a minha beleza em verdade calarias acêrca de tôdas as outras A comadre sequiosa de ouvir como bem a conhecia disse Madona poderíeis dizer a verdade mas todavia não sabendo quem seja êste não poderei mudar de opinião tão depressa Então a mulher que pouca inteligência tinha disse Comadre não deveria dizêlo mas o meu bemamado é o unjo Gabriel que me ama mais do que a si próprio pois sou a mais bela mulher pelo que me diz que há no mundo ou no pântano A comadre teve então vontade de rir mas se conteve para fazêla fnlur mais e disse Pela fé em Deus madona se o anjo Gabriel é o vosso bemamado e vos disse isto isso bem deve ser assim mas eu nfio pensei que os anjos fizessem estas coisas Disse a mulher Comndre estais errada pelas chagas de Deus êle o faz melhor que o meu marido e diz que isso se fnz também lá em cima mas como lhe pnreço mnls bcln do que nenhuma das que estão no céu ena 176 MIMESIS morouse de mim e vem ter comigo muito amiúde que dizeis agora Tendo a comadre deixado madona Lisetta pareceulhe que se passaram mil anos antes que chegasse onde pudesse recontar estas coisas e chegada a uma festa com um grande grupo de mulheres contoulhe pormenorizadamente a novidade Estas mu lheres contaramnas aos maridos e a outras mulheres e estas por sua vez a outras de tal forma que em menos de dois dias tôda Veneza estava cheia disso Mas entre aquêles a cujos ouvidos esta coisa chegou estavam os cunhados de Lisetta e êstes tomaram sem nada dizerlhe a decisão de encontrar êste anjo e de averiguar se sabia voar e durante várias noites ficaram de guarda Aconteceu que dêste fato alguma notícia chegou aos ouvidos de frate Alberto o qual para repreender a mulher foi uma noite ter com ela Porém apenas se havia despido os cunhados dela que o haviam visto chegar já estavam à porta do quarto para abrila Ao ouvir isto frate Alberto que estava avisado levantouse e não tendo outro refúgio abriu uma janela que dava sôbre o Canal Maior e se jogou na água que ali era funda Êle sabia nadar bem de tal forma que não sofreu dano e tendo nadado até o outro lado dò canal entrou ràpidamente em uma casa que estava aberta pedindo a um bom homem que estava dentro que pelo amor de Deus lhe salvasse a vida dizendo suas fábulas acêrca do porque estava lá àquela hora e nu O bom homem sentiu piedade e tendo que partir para cuidar de seus negócios colocouo no seu leito e lhe disse que ali ficasse até a sua volta Depois encerrouo e foi cuidar dos seus negócios Os cunhados da mulher entrando no quarto acharam que o anjo Gabriel tendo deixado no lugar as suas asas tinha voado sen tindose escomados disseram as maiores grosserias à mulher e dei xaramna estar finalmente desconsolada e voltaram à sua casa com os arnêses do anjo A história acaba como disse de maneira muito ruim para frate Alberto O seu hospedeiro ouve no Rialto o que acon teceu de noite na casa de madona Lisetta e adivinha quem está albergando Extorque de Frate Alberto uma grande soma mas o trai assim mesmo e de uma forma tão vil que o frade acaba sendo o centro de uma cena pública de cujas conseqüências mo rais e práticas nunca mais se recupera Chegase a sentir pena dêle sobretudo considerando com que contentamento e aprova ção Boccaccio conta outros feitos eróticos de clérigos quenão são melhores do que êste por exemplo 34 a história do mon ge Dom Felice que convence o marido da sua amante a fazer uma penitência ridícula de modo que fica fora de casa à noite ou 38 a história de um abade que envia o marido da sua amante por um tempo para o purgatório e ainda mais lá o faz fazer penitência O trecho que aqui transcrevi traz a crise da novela Está constituído pela conversação de madona Lisetta com a sua co madre e pelas suas conseqüências a difusão do estranho boato pela cidade a decisão dos parentes a cujos ouvidos também chegou de caçar o anjo e a cena noturna na quul o frude sc salva dos perigos do momento pelo audaz pulo no Ciriindc Oi FRATE ALBERTO 177 nal A conversa entre as duas mulheres é uma vivíssima cena do quotidiano psicológica e estilisticamente formulada com mes tria Tanto a comadre que com maliciosa cortesia reprimindo o riso exprime algumas dúvidas para levar Lisetta a tagarelar cada vez mais como também esta última que se deixa atrair levada pela ostentação para além dos limites da sua tolice inata parecem extremamente legítimas e naturais Contudo jos recursos estilísticos que Boccaccio utiliza não são de maneira alguma puramente populares A sua prosa formada por mo delos antigos e pelas prescrições da retórica medieval põe em jôgo todos os seus recursos sumário de muitos fatos num só período mudança e interferências sintáticas para salientar o mais importante ou tempo mais rápido ou mais lento da pro gressão isto é o efeito rítmicomelódico Já a oração intro dutória é um período rico e os dois gerúndios essendo e quis tionando um no comêço e outro no fim com o confortável espaço que abrangem são tão bem calculadas como a evidencia ção sintática de la sua como fim da primeira de duas cláu sulas de construção rítmica bem semelhante a segunda das quais se encerra com ogni altra Quando depois começa a fala a boa Lisetta de tanto entusiasmo começa quase a cantar se voi sapeste a cui la mia bellezza piace Ainda mais bela é a sua segunda fala com as várias partes da oração curtas de número quase igual de sílabas nas quais predomina o assim chamado cursus velox a mais bela delas ma Tintendiménto míoè tágnolo Gabriéllo ressoa como eco na resposta da co madre se rágnolo Gabriélloè vóstro intendiménto Nesta se gunda fala aparecem pela primeira vez vulgarismos intendi mento de colorido antes social do que local dificilmente teria pertencido com esta acepção algo como desiderium no Libro dei bueti amor entendedera em português talvez namo rada à linguagem distinta tampouco como a forma que também constrói uma bela frase nel mondo o in maremma Quanto mais se esforça tanto mais freqüentes se tornam as formas de linguagem vulgar ou até dialetal o venezianò ma rido na encantadora frase que reforça o preço das proezas eróticas do anjo Gabriel com a fórmula conjuratória per le piaghe di Dio assim como o efeito final também venezianò mo vedi vu cujo tom ordinàriamente triunfal tem um efeito tanto mais cômico quanto ela acaba de cantar docemente ma perciocchè io gli paio piu bella che niuna che ne sia in cielo sè egli innamorato di me Os dois períodos seguintes re sumem a difusão do boato pela cidade em duas etapas a pri meira leva de la comare até a brigata di dorme a segunda de quesie donne até Virtegia ou se se quiser a primeira de par lltu até raccontò a segunda de dissero até fu tutta ripiena ambas têm grande emoção interna a primeira pela impaciência da comudrc dc passar adiante a história uma impaciência cuja ur gência c cujo upaiguumcnto final aparece excelentemente num movimento concspoiulente dos verbos puriita le parve 178 MIMESIS mille anni che ella fosse dove potesse e ragunatasi ordinatamente raccontò a segunda pela gradual ampliação ex pressa paratàticamente do campo de difusão Daqui em diante a narração tomase mais rápida e dramática Já a oração se guinte vai do momento em que o boato chega aos ouvidos dos parentes até o momento da sua espreita noturna não obstante nela sejam também ditos alguns pormenores em parte objetivos em parte psicologicamente descritivos Esta oração parece con tudo relativamente vazia e calma quando comparada com as duas subseguintes que deixam transcorrer tôda a cena notur na na casa de Lisetta até o audaz pulo de frate Alberto em dois períodos que juntos constituem contudo um só mo vimento Isto acontece pelo encadeamento de formas hipotáti cas sendo que as construções participiais muito empregadas em geral por Boccaccio têm aqui um papel preponderante A primeira oração começa ainda calmamente com o verbo principal avenne e com a oraçãosujeito correspondente c h e venne mas na oração relativa seguinte il quale isto é uma oração secundária de segundo grau desencadeiase a ca tástrofe andatovi appena spogliato sera che i cognati furotio alluscio E então segue uma tempestade de formas ver bais que se perseguem sentendo e avvisato levatosi non aven do aperse e si gittò Isto tem um efeito extremamente rápido e precipitado já pelo pouco comprimento das partes que se empurram umas às outras e justamente por isso e apesar da origem eruditamente antiga das formas estilísticas empregadas o efeito não é de maneira alguma o próprio da linguagem es crita mas permanece no tom da narrativa tanto mais quanto a colocação dos verbos e com ela o comprimento e o tempo dos trechos de orações que estão entre êles mudam constantemente de uma maneira artisticamente espontânea sentendo e avvisato estão muito próximos entre si assim também levatosi e non avendo logo mais seguese aperse mas somente após a oração relativa correspondente à janela aparece o conclusivo se gittò Aliás não me parece muito claro por que Boccaccio faz com que o frade tenha ouvido algo dos boatos que andavam por aí um homem tão ladino quanto êle dificilmente se arriscaria numa situação tão perigosa como essa só para repreender Lisetta se pressentisse o perigo Seria muito mais natural segundo me parece que não suspeitasse nada não é necessária nenhuma mo tivação especial através de uma suspeita anterior para a sua rápida e audaciosa fuga Ou Boccaccio tinha um outro motivo para esta observação Não vejo nenhum Enquanto o frade atravessa o canal a narração tomase um pouco mais calma mais relaxada e lenta aparecem verbos principais no imperfeito descritivo em ordem paratática mas apenas atingiu a outra margem do canal o apressado mecanismo dos verbos recomeça especialmente com a sua entrada na casa estranha prestamente se nentrò pregando che per 1amor di Dio gli scampasse Ia vita sue favole dicendo perchè fosse Também o Ire FRATE ALBERTO 179 chos que estão entre os verbos são curtos e prementes extrema mente concentrado o trecho quivi a quella ora e ignudo De pois há uma vazante as orações seguintes ainda estão repletas de indicações fatuais e portanto também de hipotaxes parti cipiais mas já há o predomínio de orações principais que pro gridem com mais regularidade unidas por e mise et dis segli e andò ainda bastante dramàticamente entrato trovano che se ríera volato relaxandose gradualmente na seqüência paratática dissero e ultimamente lasciarono stare e tornarsi Nada destas artes pode ser encontrado em narrações mais antigas Tomemos em primeiro lugar um exemplo qualquer das narrações burlescas em verso em francês arcaico as quais na sua maior parte surgiram aproximadamente um século antes de Boccaccio Escolho um trecho do Fablel du prestre qui ot mere a force do manuscrito berlinense Hamilton 257 segundo o texto de G Rohlfs Sechs altfranzoesische Fablels Halle 1925 pág 12 Falase aí num sacerdote que tem uma mãe muito malvada feia e avarenta que êle mantém afastada da sua casa enquanto mima muito a sua amante especialmente dandolhe vestimentas A velha briguenta queixase a respeito e êle res ponde Tesiez dist il vos estes sote 25 De quoi me menez vos dangier Se du pein avez a mengier De mon potage et de mes pois Encor est ce desor mon pois Car vos mavez dit mainte honte 30 La vieille dit Rien ne vos monte Que ie vodre dore en avant Que vos me teigniez par covent A grant honor com vostre mere Li prestre a dit Par seint pere 35 James du mien ne mengera Or face au pis quele porra Ou au mieus tant com il li loist Si ferai mes que bien vos poist Fet cele car ie men irai 40 A levesque et li conterai Vostre errement et vostre vie Com vostre meschine est servie A mengier a ases et robes Et moi volez pestre de lobes 45 De vostre avoir nai bien ne part A cest mot la vieille sen part Tote dolente et tôt irée Droit a levesque en est allée A li sen vient et si se claime 50 De son fiuz qui noient ne laime Ne plus que il ferait un chien 180 MIMESIS Ne li veut il fere nul bien De tôt en tôt tient sa meschine Quil eime plus que sa cosine 55 Cele a des robes a pienté Quant la vieille ot tôt conté A levesque ce que li pot Il li respont a un seul mot A tant ne li vot plus respondre 60 Que il fera son fiz semondre Quil vieigne a court le jour nommé La vieille len a encliné Si sen part sanz autre response Et levesque fist sa semonse 65 A son fil que il vieigne a court Il le voudra tenir si court Sil ne fet reson a sa mere Je criem trop que il le compere Quant le termes et le jor vint 70 Que li evesques ses plet tint Mout i ot clers et autres genz Des proverres plus de deus cens La vieille ne sest pas tue Droit a levesque en est venue 75 Si li reconte sa besoigne Levesque dit quil ne sesloigne Car tantost com ses fiz vendra Sache bien qui le soupendra Et toudra tôt son benefice Calaivos disse êle vós sois tôla de que vos queixais se heis pão para comer e também minha sopa e minhas ervilhas e mesmo isso faço de má vontade porque dizeis muita coisa vergo nhosa a meu respeito A velha diz Tudo isto não vos adiantará de nada quero que dora em diante vos comprometais a terme em grande honra como vossa mãe O padre disse Pelo santo pai esta nada mais comerá do que é meu faça o que fizer o pior que possa ou o melhor como ela quiser Sim assim farei falou ela de modo que muito vos pese pois irei ao bispo e contarlheei a vida licenciosa que levais como a vossa amante é servida como ela tem muito para comer e bastantes vestidos e a mim quereis alimentar com palavras não tenho a menor parte do vosso haver Com estas palavras a velha partiu tôda dolorida e irada Foi diretamente falar com o bispo vai a êle e clama que o seu filho a trata sem amor não melhor do que trataria um cão e que não quer fazerlhe nenhum bem Gosta mais da sua amante do que de tudo o mais amaa mais do que aos seus parentes ela tem vestidos em grande quantidade Quando a velha contou ao bispo tudo o que podia êle respondeu só com uma palavra que mais não lhe queria responder então que convocaria o seu filho para aparecer diante dêle num dia determinado A velha inclinouse e partiu sem outra resposta E o bispo mandou uma convocação a seu filho paru que viesse à FRATE ALBERTO 181 sua côrte êle o terá de rédea curta se não der à sua mãe o que e de direito temo muito que deverá pagálo caro Quando chegou o dia e a hora em que o bispo fazia o seu juízo havia lá muitos clérigos e outras pessoas de padres só havia mais de duzentos A velha não calou foi diretamente ao bispo e contalhe novamente a sua necessidade O bispo diz que não se afaste que tüo logo o seu filho chegue saiba que o suspenderá e lhe tirará todo o seu be nefício A velha entende a palavra soupendra erradamente acre dita que o seu filho será enforcado Arrependese então de têlo acusado e no seu terror mostra o primeiro clérigo que entra como sendo seu filho O bispo dirigese a êste incauto de maneira tão violenta que êste nem consegue abrir a bôca or denalhe que leve sua velha mãe imediatamente consigo e que a trate de ora em diante decentemente como se deve ai dêle se chegarem aos seus ouvidos novas queixas O homem estu pefato carrega a velha consigo no seu cavalo e encontra no seu caminho de volta o verdadeiro filho da velha a quem conta a sua aventura enquanto a velha faz sinais ao filho para que não se dê a conhecer O outro encerra a sua narrativa com a asseveração de que daria àquele que o livrasse dêste encargo qua renta libras e de boa vontade Bem diz o filho o negócio está feito daime o dinheiro eu fico com a velha E assim acontece Também aqui a narração transcrita começa com uma con versa realista uma cena do quotidiano a briga entre mãe e filho e também aqui a conversa contém um aumento gradativo muito vivaz assim como lá a comadre leva Lisetta a tagarelar cada vez mais mediante as suas observações maliciosamente amáveis até que esta desvende o seu segrêdo aqui a velha irrita o seu filho de tal forma com as suas falas rabugentas que Êste acaba por estourar e por ameaçála com deixar de darlhe iilimentos diante do qual a velha também irada corre ao bispo puru se queixar Não obstante não seja fácil determinar o dia leto desta peça Rohlfs acha provável que seja o da Ilede lrunce o tom da conversa certamente é muito mais pura mente popular muito menos estilizado do que o de Boccaccio Uniíormentc é assim que o povo ao qual também pertence o clero inferior sói falar geralmente de forma paratática com perguntas c exclamações vivazes com muitas expressões po pulares e de forma extremamente franca Também o tom do próprio narrador não difere muito do das suas personagens tiimbém êle narra neste tom simples e vivazmente sensível des crevendo u situação com os recursos mais modestos e com as piiluvrus mais corriqueiras A única estilização à qual recorre 6 o verso o octossílabo rimado par a par que favorece as cons Imçftc sintáticas muito simples c curtas e ainda não pressente iiudu dii diversidade rítmica dc futuras espécies de verso narra 182 MIMESIS tivo como o de Ariosto ou o de Lafontaine A ordenação da narração que segue a conversa tornase desta forma totalmente carente de arte ainda que seja agradável pela sua frescura na sucessão paratática sem epítase nem desenlace sem nenhum sumário do secundário sem nenhuma mudança do andamento a história corre ou tropeça em frente para acomodar o qui proquó do soupendre a cena da velha diante do bispo precisa ser repetida e o próprio bispo deve assumir a sua posição três vêzes Não há dúvida de que com isto e em geral com os muitos pormenores e versos de recheio que são intercalados para vencer dificuldades rímicas a narração ganha uma amplidão agradàvelmente confortável mas a sua composição é crua e o seu caráter é meramente popular no sentido de que o próprio narrador faz parte do povo acêrca do qual está falando e na turalmente também daquele ao qual está se dirigindo O seu próprio círculo visual não é nem social nem moralmente maior do que aquêle das suas personagens ou dos seus ouvintes cujo riso quer provocar com a sua narração narrador narração e ouvintes todos pertencem ao mesmo mundo o do povo miúdo inculto estética e moralmente despretensioso Disto também depende a caracterização das personagens que apesar de ser vivaz e manifesta é comparativamente crua e carente de ma tizes são tipos populares que todos conheciam um padre rús tico aberto aos gozos terrenos de tôda espécie uma velha ran zinza as personagens secundárias nem estão caracterizadas co mo sêres especiais sòmente o seu comportamento o é como resulta da situação Com respeito ao frade Alberto ao contrário é narrada tôda a história pregressa através da qual se explica a espécie tôda peculiar da sua astúcia maligna e picante a pouca inteli gência de madona Lisetta e a sua tôla jactância dos seus dotes físicos são nesta peculiar mistura únicas na sua espécie Não é diferente o que se dá com as personagens secundárias a comadre ou o buon uomo junto ao qual frate Alberto procura a salvação possuem vida e essência próprias nitidamente reco nhecíveis apesar de serem levemente insinuadas até mesmo acêrca do gênero e dos sentimentos dos parentes de Lisetta nos é revelado algo de muito característico no ferino gracejo si posero in cuore di travare questo agnolo e di sapere se egli sapes se volare as últimas palavras aproximamse na forma daquilo que últimamente é chamado fala vivenciada A tudo isto juntase ainda o fato de que o cenário de todo o acontecimento está mui to mais rigorosamente determinado do que no fablel êste pode ter lugar em qualquer região rural da França e a sua peculiarida de dialetal mesmo se pudesse ser determinada com maior exati dão seria totalmente casual e sem significado a narração de Boc caccio é pronunciadamente veneziana Com isto lembrase que o fablel francês está ligado de forma muito geral a um certo meio dé camponeses e pequenos burgueses cujas diferenças lo cais na medida em que se possa realmente perccbêliis estão FRATE ALBERTO 183 condicionadas pela casualidade do local de origem da peça em questão No caso de Boccaccio porém temos um autor que ao lado dêste cenário veneziano escolheu muitos outros cenários pa ra as suas estórias burlescas por exemplo Nápoles na novela de Andreuccio da Perugia 25 Palermo na de Sabaetto 810 Florença e seus arredores numa longa série de estórias E o que vale para os cenários vale também para o meio social Boccaccio examina e descreve da maneira mais concreta tôdas as camadas sociais todos os ofícios e as classes do seu tempo A distância entre a arte do fablel e a de Boccaccio não se ma nifesta absolutamente tão só no aspecto estilístico a caracte rização das personagens o cenário local e o social são simui tâneamente muito mais rigorosamente individualizados e espa cialmente amplos o consciente entendimento artístico de um homem que está por cima dos seus objetos e que só mergulha nêles na medida em que êle próprio quer modela as estruturas narrativas segundo a sua vontade No que se refere às narrações italianas que conhecemos do tempo de Boccaccio elas têm antes o caráter de anedotas mo rais ou cômicas tanto os seus recursos lingüísticos quanto o círculo da sua visão e das suas representações são demasiado limitados para conseguir uma representação peculiar das per sonagens ou dos cenários Freqüentemente apresentam uma cerla elegância frágil na expressão ficam porém muito atrás do fablel quanto à fôrça de ataque aos sentidos Eis um exem plo Uno sandò a confessare al prete suo ed intra 1altre cose disse Io ho una mia cognata el mio fratello è lontano e quando io ritorno a casa per grande domistichezza ella mi si pone a sedere in grembo Come debbo fare Rispose il prete A me il facesse ella chio la ne pagherei bene Do Novellino cil Letterio di Francia Torino 1930 Novella 87 pág 146 Um homem foi confessar com o seu padre e entre outras coisas ilissc tenho uma minha cunhada e o meu irmão está longe e quando volto para casa por grande familiaridade ela sentase no meu regaço Como devo fazer Respondeu o padre Se ela fizesse íkm comigo eu lhe daria boa paga Nesta pequena peça tudo gira em tôrno da resposta cômica mente ambígua do padre todo o resto só é preparação e é relatado numa estreita parataxe sem qualquer representação trnsível cm linha reta muitas outras narrações do Novellino níli anedotas curtas semelhantes que têm como objeto uma I i i Iii hilariante um dos subtítulos do livro diz de forma corres pondente Libro di Novelle e di bei parlar gentile Também con tém peças mais loiigns estas em geral não têm caráter bur Icneo mus xiio nnrruçtV morais e didáticas o estilo porém 184 MIMESIS é o mesmo em tôda parte estreitamente paratático enfileirando os acontecimentos como ao longo de um fio sem amplidão sen sível e sem o espaço vital das personagens O inegável enten dimento artístico do Novellino preocupase principalmente pela formulação curta e nítida dos dados principais do acontecimento narrado em cada caso nisto segue o exemplo das coleções me dievais de exemplos morais em língua latina as exempla e as supera em ordem elegância e frescura de expressão quase não se preocupa com a apresentação sensível mas fica claro que esta limitação no seu caso e no dos seus contemporâneos ita lianos está condicionada pela situação lingüística e espiritual na qual êles se encontravam O vulgare italiano era ainda de masiado pobre e desajeitado o horizonte visual e conceituai era ainda demasiado estreito e carente de liberdade como para permitir uma livre manipulação dos fatos e uma representação sensível de fenômenos ricos em variedade tôda a fôrça de re presentação sensível concentrase num qüiproquó como no ca so do nosso exemplo na resposta do padre Se fôr possível tirar uma conclusão de um só caso o do cronista Fra Salim bene de Adam um franciscano que escrevia em latim escritor de grandes dotes no fim do século XIII o latim sempre que fortemente carregado de vulgarismos italianos como o de Salim bene parecia ser capaz de dar uma fôrça expressiva bem maior do que o italiano escrito de então A crônica de Salimbene está cheia de anedotas uma delas que já foi citada repetidamente por outros e por mim mesmo trata de um franciscano de no me Detesalve e narra o seguinte a seu respeito Cum autem quadam die tempore yemali per civitatem Flo rentie ambularet contigit ut ex lapsu glatiei totaliter caderet Videntes hoc Florentini qui trufatores maximi sunt ridere ce perunt Quorom unus quesivit a fratre qui ceciderat utrum plus vellet habere sub se Cui frater respondit quod sic scili cet interrogantis uxorem Audientes hoc Florentini non habue runt malum exemplum sed commendaverunt fratrem dicentes Benedicatur ipse quia de nostris est Aliqui dixerunt quod alius Florentinus fuit qui dixit hoc verbum qui vocabatur fra ter Paulus Millemusce ex ordine Minorum Chronica ad annum 1233 edição Monumenta Germaniae histórica Scrip tores XXXII p 79 Quando certo dia de inverno passeava por Florença acon teceu que escorregou no chão gelado e liso e caiu quão longo era Quando os florentinos que são os maiores brincalhões viram isto começaram a rir e um dêles perguntou ao frade se não queria que deitassem algo em baixo dêle O frade respondeu que sim e que fôsse a mulher daquele que o interrogava Quando os florentinos ouviram isto não o levaram a mal mas louvaram o friide dizendo Abençoado seja êlc Êste é um d o s n o s s o s Alguns f i r m a m que FRATE ALBERTO 185 esta frase teria sido dita por um outro florentino chamado frade Paulo Milmoscas da ordem dos frades menores Também aqui tratase de uma resposta hilariante de um bei parlare mas tratase ao mesmo tempo de uma cena ver dadeira uma paisagem hibernal o monge que escorregou e está deitado os florentinos que estão ao seu redor e fazem gracejos A caracterização das personagens é muito mais vivaz e ao lado da graça central interrogantis uxorem encontramse ainda outras palavras divertidas e vulgarismos utrum plus vellet habere sub se benedicatur ipse quia de nostris est frater Pau lus Millemusce e já antes trufatores que pelo seu transpa rente disfarce latino tem um efeito duplamente cômico e pican te A evidenciação sensível e a liberdade de expressão estão aqui bem mais desenvolvidas do que no Novellino Mas seja o que fôr procurado nos tempos anteriores a amplidão rústica crua e sensível dos fabliaux ou a estreita e sensivelmente pobre elegância do Novellino ou o gracejo vivaz e plástico de Salimbene nada disto tudo é comparável a Boc caccio somente com êle o mundo dos fenômenos sensíveis é inteiramente dominado ordenado segundo uma consciente con vicção artística e apreendido pela linguagem Somente o seu Decameron fixa pela primeira vez após a Antigüidade um cer to nível estilístico dentro do qual a narração de acontecimen tos reais da vida presente se pode converter numa diversão cul ta não mais serve como exemplo moral e também não mais serve à despretensiosa vontade de rir do povo mas ao diverti mento de um círculo de pessoas jovens distintas e cultas damas c cavaleiros que se deleitam com o jôgo sensível da vida e que possuem sensibilidade gôsto e opinião refinados para anunciar esta intenção na sua narração êle criou a sua moldura O nível estilístico do Decameron lembra muito o gênero antigo corres pondente o antigo romance de amor a fabula milesiaca Isto não é surpreendente pois que a posição do escritor diante do seu objetivo e a camada do público à qual a obra se destinava correspondiamse bastante nas duas épocas e também pelo fato de que também para Boccaccio o conceito da arte de escre ver relacionavase com o da retórica Da mesma forma que no antigo romance a arte lingüística de Boccaccio descansa numa lormulação retórica da prosa da mesma forma que naqueles romances o estilo chega às vêzes aos limites do poético tam bém dá à conversação uma vez ou outra a forma de um dis curso bem composto e o quadro geral de um estilo médio ou misturado que combina realismo e erotismo com uma elegante ormufação da língua é muito semelhante nos dois casos Mas enquanto o romance antigo é uma forma tardia que se materia lia em línguas que já deram muito tempo atrás o que tinham dc melhor a vontade estilística de Boccaccio encontra uma lín Kim literária upenas nascida quase não formada ainda a tra diçilo retórica que nn praxlx medieval solidificouse até se cons 186 MIMESIS tituir num mecanismo quase espectralmente senil e que no tem po de Dante justamente era experimentada tímida e fràgilmente pelos primeiros tradutores de autores antigos no volgare italia no tornase nas mãos de Boccaccio um instrumento maravi lhoso que faz surgir com uma só manobra a prosa artística italiana a primeira prosa literária da Europa posterior à Anti güidade Surgiu no decênio que foi das suas primeiras obras de juventude até o Decameron A disposição de Boccaccio é espontâneamente sensível ten dendo para a formulação amàvelmente fluente embebida de sensualidade foi criado desde o princípio não para o estilo elevado mas para o estilo médio e a sociedade da côrte de Anjou em Nápoles onde muito mais do que no resto da Itá lia se apreciavam as formas tardias lüdicamente elegantes da cultura cavaleiresca do norte da França e onde êle passou a sua juventude alimentou ricamente esta sua tendência Suas pri meiras obras são adaptações de romances de amor franceses aventurosos e cavalheirescos do tardio estilo cortês e no seu gênero sentese segundo me parece algo de francês o caráter mais amplamente situacional das suas descrições o refinamento ingênuo e as tenras modulações do jôgo amoroso o caráter mun dano tardiamente feudal das suas descrições sociais o malicioso da sua graça mas à medida que amadurece tanto mais forte tornase ao lado disto tudo o elemento burguês e humanista e so bretudo o domínio do fortemente popular Em todo caso a tendência para a saliência retórica que também para êle tor nouse um perigo serve nas suas obras juvenis exclusivamente para a representação do amor sensual à qual também serve o excesso de didatismo mitológico e o alegorismo convencional que se fazem sentir em algumas das suas obras de juventude Com isto fica dentro dcs limites do estilo médio ainda que às vêzes tente ultrapassálos Teseida êste estilo pela união do idílico e do realista destinase à representação do amor sensual A sua última obra juvenil e também de longe a mais bela é também de estilo médio idílico o Ninfale fiesolano e também de estilo médio é o grande livro das cem novelas Para a de terminação do nível estilístico não importa saber quais das suas obras de juventude estão escritas total ou parcialmente em verso e quais em prosa em tôda parte a atmosfera é a mesma Dentro do nível estilístico médio as modulações do De cameron são evidentemente muito diversas e os limites são muito amplos mas mesmo quando as narrações se aproximam do trágico o tom e a atmosfera conservam o seu caráter sen timental e sensual evitando o sublime e o grave e também nas partes em que aproveitam muito mais do que nosso exemplo motivos da farsa grosseira a forma lingüística e a apresentação continuam sendo distintas na medida em que sempre c incon fundivelmente o narrador e o ouvinte permanecem muito por cima do objeto deliciandose leve c elegantemente à sua custa FRATE ALBERTO 187 observandoo criticamente de cima Justamente nos objetos mais popularmente realistas e até grosseiramente farsescos é mais fá cil de reconhecer a peculiaridade do estilo médio elegante pois da formulação de tais narrações é possível deduzir que existe uma camada que mesmo estando por cima das zonas mais bai xas da vida quotidiana divertese com a sua representação vi vaz e o faz com uma alegria que se dirige para o individual e humano e para o sensual e não para o tipo de classe social todos os Calandrinos Cipollas e Pietros as Peronellas Cateri nas e Belcolores são assim como Frate Alberto e Lisetta sêres humanos individualizadas vivazmente de forma totalmente dife rente à do villain ou da pastôra que tinham acesso uma vez ou outra à poesia cortesã são até muito mais vivazes e na sua forma peculiar mais exatos do que as figuras da farsa popular como vimos acima não obstante o público ao qual devem gostar seja de uma classe social diferente da dêles Evi dentemente no tempo de Boccaccio há uma classe social que sendo ela própria de nível elevado ainda que não feudal como é claro mas pertencente à aristocracia urbana sente um prazer culto com a realidade colorida da vida seja onde fôr que apa recer Certamente a separação dos campos fica conservada na medida em que as peças grosseiramente realistas têm lugar em geral entre pessoas das classes sociais mais baixas enquanto que as que sentimentalmente se aproximam do trágico ocorrem nas mais elevadas só que mesmo isto não é cumprido estritamen te pois que o caráter burguês e o caráter sentimentalidílico fàcil mente apresentam casos limítrofes em geral e neste sentido a mistura é freqüente por exemplo na novela de Griselda 10 10 As condições sociais necessárias para a aparição de um estilo médio no sentido antigo da palavra já existiam na Itá lia a partir da primeira metade do século XIV nas cidades surgira uma camada elevada de burgueses patrícios cujos cos tumes certamente estavam ainda muito ligados às formas e conceitos da cultura feudalcortês mas que lhe conferiram rà pidamente em conseqüência da estrutura social totalmente di ferente e sob a influência das primeiras tendências humanistas características novas menos baseadas em divisões de classe e mais fixadas nas características pessoais e na visão realista A visão interna e externa ampliouse deitou fora os grilhões das limitações de classe penetrando até no campo do saber ante riormente reservado aos especialistas do clero dandolhe gra dntivamente a forma agradável amável e propícia ao trato Noeial da instrução A linguagem que recentemente ainda era frAgil c desajeitada tornouse maleável rica matizada e flo rcftccnte e colocouse a serviço das necessidades da vida social encolhida e preenchida de elegante sensualidade a literatura so 1iiil obteve o que até então nunca possuíra um mundo real lrisenL Sem dúvida êste ganho está em ligação direta com o gunho universal muito muis importante obtido num nível cftliUfilico riiaift clcvmlo um século untos por Danto c é esta 188 MIMESIS ligação que ora trataremos de analisar Para tanto voltamos ao nosso texto O mais evidentemente peculiar nêle quando o compara mos com narrações mais antigas é a segurança com que os fatos multipartidos são por êle dominados tanto na sua visão quanto na articulação sintática e a flexibilidade com que adapta o nível do tom e o tempo da narrativa aos movimentos internos e externos dos acontecimentos acima tentamos demonstrar isto pormenorizadamente A conversa entre as duas mulheres a difusão do boato pela cidade e a dramática cena noturna na casa de Lisetta estão compostas dentro de uma estrutura claramente perceptível dentro da qual cada parte possui o seu próprio mo vimento independente rico e livre No capítulo anterior em base ao exemplo dos acontecimentos no início do décimo canto do Inferno procurei demonstrar exatamente que Dante possuía a mesma capacidade de dominar uma realidade tanto mais mul tipartida e matizada e a possuía num grau que não foi atingido nem de longe por qualquer escritor medieval de nosso conheci mento O encadeamento de tudo as mudanças do tom e do ímpeto rítmico por exemplo entre a conversa inicial e a apa rição de Farinata ou quando da emersão de Cavalcante e nas suas falas a soberana disposição dos instrumentos sintáticos da língua foi analisada anteriormente com a maior exatidão possí vel O domínio de Dante sôbre os fenômenos tem um efeito muito menos flexível porém mais significativo do que a mes ma capacidade de Boccaccio já o pesado ritmo dos tercetos com a sua severa articulação das rimas não lhe permite um movimento tão livre e leve quanto o que Boccaccio se consente e além do mais Dante teria desdenhado um tal movimento Mas é inegável que a obra de Dante abriu pela primeira vez a visão sôbre o mundo geral e múltiplo da realidade humana Pela primeira vez desde a Antigüidade ela se apresenta livre e multifacética sem limitações estamentais sem estreitamento do campo visual numa visualização que se dirige para todo lado livre de empecilhos num espírito que ordena vivazmente todos os fenômenos e numa língua que faz justiça tanto à ma terialidade dos fenômenos quanto à sua engrenagem mültipla mente ordenada Sem a Divina Comédia o Decameron nunca poderia ter sido escrito Isto é evidente e também é claro que o rico mundo de Dante é transposto para um nível estilístico mais baixo por Boccaccio isto fica especialmente claro quando se comparam dois movimentos semelhantes como em nosso texto a frase de Lisetta Comare egli non si vuol dire ma 1intendimento mio è 1agnolo Gabrieilo com Inf 1852 onde Venedico Caccianimico diz Mal volentier lo dicoma sforzami la tua chiara favellaJChe mi fa sovvenir dei mondo antico É claro que Boccaccio não deve a Dante a capacidade de ob servação nem a fôrça de expressão estas qualidades possuía de per si e elas eram de uma espécie tolalmentc diferenle das de Dante o seu interesso dirigesc parti tenômcnoN e sen FRATE ALBERTO 189 timentos que Dante teria desdenhado tratar O que deve a Dante é a possibilidade de fazer uso do seu talento com tal liberdade a obtenção de uma posição a partir da qual todo o mundo presente dos fenômenos pode ser visto tôda a sua multiplici dade pode ser apreendida e reproduzida mediante uma lingua gem flexível e rica em expressões Graças à fôrça de Dante que foi capaz de fazer justiça a tôdas as figuras humanas da sua obra a Farinata e a Brunetto Pia de Tolomei e Sordello Francisco de Assis e Cacciaguida de fazêlos surgir das suas próprias condições e falar na sua própria língua tornouse pos sível que Boccaccio conseguisse o mesmo para Andreuccio e para Frate Cipolla ou seu criado para Ciappelletto e o padeiro Cisti para Madonna Lisetta e Griselda Desta fôrça da visão sintética do mundo também faz parte uma consciência crítica sólida e ao mesmo tempo elástica e perspectiva a qual sem reflexões morais abstratas confere aos fenômenos o seu valor moral peculiar cuidadosamente matizado ou até faz com que êsse valor moral brilhe de per si de dentro delas Boccaccio continua com a nossa narrativa depois que os cunhados volta ram para casa con gli arnesi dei agnolo da seguinte forma In questo mezzo fattosi il di chiaro essendo il buono uomo in sul Rialto udi dire come 1agnolo Gabriello era la notte andato a giacere con Madonna Lisetta e da cognati trovatovi sera per paura gittato nel canale nè si sapeva che divenuto se ne fosse Entretanto fêzse dia claro e tendo o bom homem ido ao Rialto ouviu dizer como o anjo Gabriel tinha ido de noite dormir com Madonna Lisetta e tendo sido descoberto pelos cunhados jo garase de mêdo no canal não se sabendo o que tinha sido dêle O tom de seriedade aparente que nem diz que os venezia nos morrem de rir no Rialto insinua com tôda nitidez sem pronunciar uma só palavra de ordem moral ou estética ou crítica em qualquer outro sentido a valorização do aconteci mento c o estado de ânimo dos venezianos se em lugar disto Boccaccio tivesse dito quão ardiloso era Frate Alberto quão tôla e crédula Madonna Lisetta quão ridícula e absurda era a situação tôda e como os venezianos se divertiam com isso tudo no Rialto êste procedimento não somente teria sido muito mais pesado mas também não teria esclarecido a atmosfera moral que não pode ser exaurida por nenhuma quantidade de adje tivos com uma fôrça expressiva nem de longe comparável à que efetivamente existe no texto O recurso estilístico que Boccac cio emprega foi muito apreciado na Antigüidade e já então eru chamado ironia uma tal forma discursiva mediata e indi retamente insinuante tem como pressuposto um sistema com plexo e multifacético de possibilidades de valorização c tam bém uniu consciência perspectiva que juntamente com o acon 190 MIMESIS tecimento insinua o seu efeito ao lado disto Salimbene que inclui na anedota que citamos acima a frase videntes hoc Florentini qui trufatores maximi sunt ridere coeperunt parece ainda muito ingênuo A tonalidade de Boccaccio aqui presente a da ironia maliciosa é característica dêle não se encontra na Comédia Dante não é malicioso Mas criou a amplidão da visão o rigor na reprodução de uma valorização complexa e determinada com exatidão mediante recursos indiretamente in sinuantes a consciência perspectiva no resumo de acontecimen to e efeito Não nos diz quem é Cavalcante o que sente e como tudo isto deve ser julgado deixao emergir e falar e somente acrescenta le sue parole e il modo de la pena tnavean di costui già letto il nome Muito antes de averiguarmos qualquer por menor Dante já fixa a tonalidade moral do espisódio de Bru netto 15 Cosi adocchiato da cotai famiglia fui conosciuto da un che mi prese per Io lembo e gridò Qual maraviglia E io quando 1 suo braccio a me distese ficcai li occhi per Io cotto aspetto si che 1 viso abbrucciato non difese la conoscenza sua a mio inteletto e chinando la mia a la sua faccia rispuosi Siete voi qui ser Brunetto E quelli O figliuol m io Assim olhado por tal família fui reconhecido por um que me pegou pela aba e gritou Que maravilha E eu quando o seu braço para mim estendeu cravei os olhos no seu abrasado aspecto até que o rosto queimado não mais impediu o seu reconhecimento ao meu intelecto e inclinando a minha face em direção à sua res pondi Estais aqui senhor Brunetto E aquêle Ó filho m eu Sem uma palavra de comentário Dante nos dá Pia de Tolomei tôda em suas próprias palavras Purg 5 cf a nossa citação anterior Deh quando tu sarai tornato al mondo e riposato de la lunga via seguitò il terzo spirito al secondo ricorditi di me che son la Pia Ah quando estiveres de volta ao mundo e descansares do longo caminho assim continuou o terceiro espírito ao segundo lembrate de mim que sou a Pia E entre a multidão de exemplos nos quais Dante ilustra o efeito dos fenômenos ou ilustra os fenômenos a partir dos seus efeitos escolho o famoso símile coni as ovelhus que cHciifiiim FRATE ALBERTO 191 do cercado com o qual descreve a lenta solução da surprêsa do grupo do prépurgatório diante da aparição de Virgílio e Dante Purg 3 Comparado com êstes métodos de caracterização que procedem pela mais minuciosa observação do individual e utilizam os recursos mais variados e sutis da linguagem tudo o que lhes antecede parece estreitamente grosseiro e também carente de uma ordem certa tão logo tenta se aproximar dos fenômenos pensese por exemplo nos versos com os quais o poeta tenta descrever a velha mãe do sacerflote no fablel que citamos Qui avoit une vieille mere Mout felonnesse et mout avere Bochue estoit noire et hideuse Et de touz biens contralieuse Tout li mont 1avoit contre cruer Li prestres meisme a nul fuer Ne vosist pour sa desreson Quel entrast ja en sa meson Trop ert parlant et de pute e re Êle tinha uma velha mãe muito ruim e muito avarenta era corcunda preta e nojenta e contrária a todo bem Todo o mundo a detestava até o próprio padre não queria por causa da sua loucura que ela jamais entrasse em sua casa era demasiado faladora e repulsiva Isto de nenhum modo é difícil de visualizar e a passagem da característica geral para o seu efeito sôbre o meio ambiente c logo mais a intensificação dada pelo até o próprio padre mostram uma seqüência natural e vivaz mas tudo é dito da forma mais grosseira e primária sem nenhuma concepção pes soal ou acurada os adjetivos que devem arcar com a maior parte do trabalho da caracterização parecem ter sido espalhados a êsmonos versos segundo o permitiam a quantidade de sílabas e as rimas misturando despreocupadamente qualidades morais c físicas Evidentemente a caracterização tôda é dada direta mente É claro que Dante não despreza absolutamente a ca racterização imediata mediante adjetivos adjetivos êstes que às vézes possuem um conteúdo muito geral mas isto tem então o seguinte aspecto La mia sorella che tra bella e buona non so qual fosse piü Purg 24 134 Minha irmã que entre bela e boa não sei o que fôsse mais Tampouco Boccmxio despreza o método imediato de ca racterização No noiwo texto encontramos logo de início duas 192 MIMESIS formas populares de linguagem para a evidenciação direta da bobeira de Madonna Lisetta che poco sale avea irt zucca e che piccola levatura avea Lendose o princípio da novela encontrase tôda uma coleção da mesma espécie e intenção una giovane donna bamba e sciocca sentiva dello scemo donna mes tola donna zucca al vento la quale era anzi che no un poco dolce di sale madonna baderla donna poco fila Esta pequer na coleção é como um jôgo divertido que Boccaccio faz com o seu conhecimento de caçoadas populares e serve também talvez para descrever o vivaz humor da narradora Pampinea que quer alegrar novamente o grupo comovido até as lágrimas pela narração anterior Em todo caso Boccaccio gosta dêste jôgo com as variadas locuções que têm sua origem na fôrça enérgica e inventiva da fala popular pensese por exemplo na maneira como é caracterizado Guccio o criado de Frate Cipolla na décima novela do sexto dia em parte diretamente em parte pelo seu senhor tratase de um exemplo modelar da mistura própria de Boccaccio entre vulgaridade e malícia sutil e que acaba num dos períodos mais belos e extensos que Boccaccio escreveu ma Guccio Imbratta il quale era etc indo do nível estilístico do mais encantador movimento lírico piu vago di stare in cucina che sopra i verdi rami 1usignolo através do realismo mais crasso grassa e grossa e piccola e mal fatta e con un paio di poppe che parevan due ceston da letame etc até chegar a tocar no patèticamente horrível non altramenti che si gitta Vavoltoio alia carogna o conjunto é orde nado pela malícia do escritor que tudo transpassa Sem Dante tal riqueza de tonalidades e de perspectivas dificilmente teria sido possível Mas da visão figuralcristã que preenchia a imitação dantesca do mundo terreno e humano e lhe conferia a sua fôrça e profundidade nada mais aparece no livro de Boccaccio As suas personagens vivem sôbre a Terra e só sôbre a Terra vê a abundância de aparições de maneira imediata como um rico mundo de formas terrenas E tinha direito a fazêlo pois que não tinha de escrever nenhu ma obra grande grave e sublime com muito mais direito do que Dante chama o estilo do seu livro umilissimo e rimesso introdução ao quarto dia pois escreve realmente para di versão dos incultos para consolo e divertimento das nobilissime donne que não vão a Atenas Roma ou Bolonha para estudar Com muito humor e graça se defende no seu posfácio contra aquêles que dizem que fica mal um homem grave e sério ad un uom pesato e grave escrever um livro com tantas piadas e gracejos Io confesso dessere pesato e molte volte de miei di esser stato e perciò parlando a queile che pesato non nVhanno affermo che io non son grave anzi son io si lieve che io sto a galla nellacqua e considerato che Ie prediche fattc da frati per rimorder delle lor colpe gli uomini il piú oggi picnc di FRATE ALBERTO 193 motti e di ciance e di scede si veggono estimai che quegli me desimi non stesser male nelle mie novelle scritte per cacciar la malinconia delle femmine Eu confesso ser pesado e têlo sido a maior parte dos meus dias e portanto faiando com aquêles que nunca me pesaram afirmo que não sou grave aliás sou tão leve que fico boiando na água e considerando que os sermões feitos pelos frades para remorder os homens pela sua culpa estão hoje em dia cada vez mais cheios de graças e de brincadeiras e de caretas estimei que as mesmas coisas não estariam fora de lugar nas minhas novelas escritas para afastar a melancolia das mulheres Boccaccio certamente tem razão com esta sua pequena malícia contra os predicadores que aparece aliás quase com as mesmas palavras mas num nível de tom totalmente diferente em Dante Par 29 115 mas esquece ou nem tem consciência de que a jocosidade vulgar e ingênua dos sermões não é senão uma for ma do realismo cristãofigural uma forma é claro já um pou co deteriorada e em início de apodrecimento esta não é a ques tão no seu caso e justamente aquilo que o justifica a partir do seu próprio ponto de vista se até os pregadores fazem pia das e gracejos por que não o dçverei fazer eu neste meu livro destinado ao divertimento justamente aquilo faz com que o seu empreendimento pareça perigoso do ponto de vista cristão medieval aquilo que o sermão pode muito bem fazer sob o signo da figuralidade cristã os exageros podem chocar mas o direito fundamental é indiscutível um autor profano não po de tanto menos quanto a sua obra no fim das contas não é tão leve como diz justamente não é tão ingênua e tão carente de uma ideologia fundamental quanto a farsa popular Se assim fôsse poderia ser considerado a partir do ponto de vista cris tãomedieval como uma desordem tolerável do tipo das que surgem da vida impulsiva e da necessidade de diversão dos ho mens como um signo da sua imperfeição e da sua fraqueza mas êste não é o caso do Decatneron O livro de Boccaccio é dc nível estilístico médio e possui com tôda a sua leveza e graça uma ideologia muito definida e de maneira alguma uma ideologia cristã Com isto não me refiro tanto ao escarneci mento das superstições e das relíquias nem a tais gracejos blas fematórios como por exemplo la resurrezion delia carne com rcfcrência à excitação sexual do homem 3 10 tais coisas pertencem ao repertório burlesco medieval e não precisam ter ncccssàriamente uma significação fundamental não obstante ganharem naturalmente grande efeito propagandístico tão lo go sc criou um movimento anticristão e antieclesiástico Rabe lais por exemplo as emprega inegàvelmente como arma um gracejo blasfematório semelhante encontrase no fim do capí tulo IX do larxantua onde são empregadas palavras do Salmo 2l ati te levtivl com xignilicudo semelhante mas disto também 194 MIMESIS surge novamente o caráter tradicional e de repertório desta espécie de brincadeiras cf p ex também Tiers livre 31 per to do fim O realmente importante na ideologia do Deca meron o que vai absolutamente contra a ética cristãmedieval é a doutrina erótica e natural certamente apresentada quase sempre em tom muito leve mas muito segura de si mesma Na história do surgimento e na essência do cristianismo fundamen tase o fato de que a moderna revolta contra os seus ensina mentos e as formas de vida por êle preconizadas pôde experi mentar com bom êxito a sua fôrça prática e a efetividade da sua propaganda no campo da moral sexual aqui tornavase agudo o conflito entre a vontade mundana de viver e a tole rância cristã tão logo a primeira chegava a ter consciência de si Doutrinas naturais que louvavam a vida sexual impulsiva e promoviam a sua liberdade já tinham tido um papel impor tante em relação com a crise teológica de Paris na década de setenta do século XIII encontraram também expressão literá ria em língua vulgar na segunda parte do Roman de la Rose de Jean de Meun mas Boccaccio nada tem a ver imediatamente com isto não se preocupa com estas controvérsias teológicas ocorridas dezenas de anos antes não é um mestreescola semi escolástico como Jean de Meun A sua moral amorosa é uma transformação do amor trovadoresco afinado alguns graus mais para baixo quanto ao nível estilístico e dirigido puramente para o sensual e o real tratase agora sem lugar a dúvida do amor terreno Ainda paira um resplendor da magia trovadoresca sô bre algumas das novelas nas quais Boccaccio exprime com maior nitidez a sua ideologia assim a estória de Cimone 5 1 na qual como antes com Ameto é tratado o tema central da educação pelo amor mostra claramente a sua descendência da épica cortesã A doutrina segundo a qual o amor é a mãe de tôdas as virtudes e de tôda nobre disposição segundo a qual êle confere valentia autoconsciência capacidade de sacrifício forma a inteligência e os bons costumes tudo isto é parte da herança da cultura cortesã e do estilo nôvo Aqui porém é apresentado como moral prática válida para tôdas as classes e a amada não mais é a senhora inatingível ou uma encarna ção do pensamento divino mas o objeto do desejo sexual Até nos casos particulares formase é claro que sem tôda coerência uma espécie de moral amorosa Uma de suas regras poderia ser que contra terceiros por exemplo contra os ciumentos ou contra os pais ou contra outras fôrças avêssas ao amor é per mitida tôda astúcia e todo embuste o que não é permitido entre os amantes Se Frate Alberto goza tão pouco da simpa tia de Boccaccio isto se deve ao fato de ser um hipócrita c de não ter obtido o amor de Lisetta honestamente mas têlo ganho pèrfidamente No Decameron desenvolvese pois uma determinada moral ética baseada no direito ao amor essencial mente práticaterrena e que pela sua essênciu é nnticristü Ela é apresentada com muitu graça e sem rcivindicuçfto cnárgi FRATE ALBERTO 195 ca de validade doutrinal o livro só raramente abandona o nível estilístico do divertimento leve mas às vêzes o faz especialmente quando Boccaccio se defende de ataques Isto acontece na in trodução ao quarto dia onde dirigindose às mulheres diz E se mai con tutta la mia forza a dovervi in cosa alcuna compiacere mi disposi ora piú che mai mi vi disporrò per ciocchè io conosco che altra cosa dir non potrà alcun con raggione se non che gli altri et io che vi amiamo naturalmente operiamo Alie cui leggi cioè delia natura voler contrastare troppe gran forze bisognano e spesse volte non solamente in vano ma con grandíssimo danno dei faticante sadoperano Le quali forze io confesso che io non lho nè daverle disidero in questo e se io 1avessi piú tosto ad altrui le presterei che io per me Padoperassi Per che tacciansi i morditori e se essi riscáldar non si possono assiderati si vivano e ne lor diletti anzi appetiti corroti standosi me nel mio questa brieve vita che posta nè lascino stare E se até agora me dispus com tôda minha fôrça a compra zervos dora em diante mais do que nunca a isso dispormeei por que reconheço que outra coisa não poderá dizer qualquer pessoa com razão se não que os outros e eu que vos amamos agimos natural mente Para querer se opor às suas leis isto é às da natureza necessitarseiam fôrças demasiado grandes e serão postas em uso muitas vêzes não sòmente em vão mas com grandíssimo dano daquele que se esforçar As quais fôrças confesso que não as tenho nem quero têlas para isto se as tivesse antes as emprestaria a outro que as adotaria para mm Portanto calemse os mordedores e se não puderem se aquecer continuem a viver enregelados e ficando com os seus deleites aliás com os seus corrompidos apetites e eu ficando com o meu deixem estar esta breve vida que nos é dada Esta é creio uma das passagens mais agudas e enérgicas que Boccaccio escreveu em defesa da sua moral amorosa A opinião que quer exprimir não pode ser mal entendida mas ambém é indubitável o fato de que ela não tem qualquer pêso Uma tal luta não pode ser levada sèriamente com apenas algu mas palavras acêrca da irresistibilidade da natureza e algumas insinuações maliciosas acêrca dos vícios pessoais dos seus ini migos e Boccaccio nem queria fazêlo Não se lhe faz justiça c aplicaselhe uma escala errada quando se mede a ordem vital que surge da sua obra comparandoa com a de Dante ou de obras posteriores do Renascimento propriamente desenvol vido A unidade figurai do mundo terreno quebrouse no ins tante cm que com Dante ela ganhou domínio total sôbre a reali dade terrena o domínio da realidade na sua multiplicidade sen mívcI permaneceu conquistado mas a ordem na qual estava cnuiirçudu já cHtuva perdida c num primeiro momento nada tomou o seu lunar Isto nfio quer ser como já foi dito uma 1 MIMESIS crítica a Boccaccio mas deve ser fixado como fato histórico que vai além da sua pessoa o primeiro Humanismo não possui diante da realidade da vida qualquer fôrça ética construtiva abai xa o realismo novamente para um nível estilístico médio não pro blematizado e não trágico o qual na Antigüidade clássica se constituía no seu limite extremo superior e fixa da mesma for ma que lá como seu tema principal quase como seu tema único o erotismo No entanto há nêle agora algo que não era possí vel na cultura antiga um germe extremamente desenvolvível de problema e de conflito um ponto de partida prático para o movimento que estava se preparando contra a cultura medieval cristã mas num primeiro momento o erotismo de per si não é ainda suficientemente forte para formular a realidade de forma problemática ou trágica Tão logo Boccaccio quer repre sentar tôda a múltipla realidade da vida presente renuncia à uni dade do conjunto escreve um livro de novelas no qual há muita coisa justaposta amarrada somente pelo fim comum do diverti mento cultivado Os problemas políticos sociais ou históricos que eram totalmente penetrados pelo figuralismo de Dante e refun didos na mais quotidiana das realidades desaparecem por com pleto qual é a situação da problemática metafísica e da proble mática erótica qual é o grau de nível estilístico e de aprofun damento humano que atingem na obra de Boccaccio isto é fà cilmente verificável mediante comparações com Dante Encontramse no Inferno várias passagens nas quais almas Condenadas desafiam Deus escarnecemno ou maldizemno assim por exemplo a importante cena do Canto XIV na qual Capaneo um dos Sete contra Tebas desafia Deus em meio à chuva de fogo gritando Qual io fu vivo tal son morto ou o gesto sardónico do ladrão de igreja Vanni Fucci que acaba de ressurgir da horrível transformação que segue à mordida a serpente no Canto XXV Em ambos os casos tratase de uma revolta consciente correspondente à história ao caráter e à situação dos dois condenados No caso de Capaneo é a porfia invicta da rebelião prometeica a sôbrehumanidade inimiga da divindade no caso de Vanni Fucci a maldade exacerbada até o incomensurável pela desesperação A primeira novela de Boccaccio 1 1 conta a história do vicioso e trapaceiro no tário Ser Ciappelleto que adoece gravemente no estrangeiro na casa de dois usurários florentinos os seus hóspedes que co nhecem a sua péssima vida temem más conseqüências para êles próprios caso morra sob o seu teto sem confissão nem absol vição e acham certo que esta última serlheá negada se con fessar conforme a verdade Para livrar os seus hóspedes dêste incômodo o velho doente engana um ingênuo confessor com uma confissão mentirosa ridiculamente beata na qual êle pró prio se apresenta como um santarrão virginal quase desprovido de pecados torturado todavia por excessivos escrúpulos desta forma não só consegue a absolvição mas é honrado após a sua morte segundo as manifestações do confessor como um FRATE ALBERTO 197 santo O escárnio da confissão antes da morte o qual segundo tudo leva a pensar é dificilmente representáve sem uma ideo logia fundamentalmente anticristã por parte daquele que o co mete e sem uma tomada fundamental de posição do escritor diante do problema seja condenado cristãmente ou permitindo anticristãmente serve aqui tão somente para a elaboração de duas cenas de comicidade farsesca a confissão grotesca e o solene entêrro do pretenso santo O problema nem chega a ser colocado Ser Ciappeletto decidese com tôda leviandade a agir como age só para livrar os seus hóspedes de um perigo mediante um último truque astucioso digno do seu passado dá para isto uma justificação que na sua tôla leviandade demonstra que jamais pensara sèriamente acêrca de si mesmo ou de Deus já ofendi a Deus tantas vêzes durante a minha vida que pouco mais ou pouco menos diante da morte pouca diferença vai fazer e igualmente levianos considerando so mente o instante são os dois florentinos proprietários da casa que ficam ouvindo a confissão às escondidas e dizem um para o outro que espécie de homem é êste que estando velho e doente e perto da morte e muito perto de ter de aparecer diante do tribunal de Deus não deixa de fazer as suas trapaças e quer morrer assim como viveu mas logo mais quando vêem que 0 fim isto é um entêrro em regra é alcançado não voltam a se preocupar Ora é absolutamente verdade e corresponde com a experiência que muitos homens cometem as ações mais im portantes sem um convencimento pleno correspondente à ação simplesmente levados pela situação do instante pela inércia dos seus hábitos por um impulso passageiro mas pelo menos de um escritor que relata algo desta espécie esperase uma decisão ordcnadora E Boccaccio efetivamente faz com que o narra dor Pânfilo tome uma posição no fim da sua história com algumas palavras só que estas palavras são fracas indecisas e carentes de pêso nem são atéias nem decididamente cristãs como a situação o requereria é inegável que Boccaccio narrou ti tremenda aventura somente por causa do efeito cômico das duus cenas acima mencionadas evitando qualquer ordenação ou quulquer tomada de posição sérias Na história de Francesca de Rimini Dante pôs de forma que corresponde à sua espécie e ao estágio da sua evolução o lirnndc e o verdadeiro tratase pela primeira vez na Idade Mé diii de algo que não é aventure não é mágico conto de fadas algo que está livre de coqueteria amorosa e picante e do ceri monial amoroso da cultura cortesã que também não fica irre conhecível oculta por trás do véu do significado secreto como no estilo nôvo tratase de uma ação realmente presente no i i i í i í k elevado dos tons tão imediatamente real como memória de um destino terreno quanto como encontro no além Nas estó 1 ius amorosas que Boccaccio quer construir de maneira trá llicii ou nobre encontramse sobretudo entre as novelas do quarto dia prepondera o aventuroso c o sentimental sendo 198 MIMESIS que a aventura já não mais é como na épica cortês no seu florescimento a provação do eleito internamente necessária refundida no conceito ideal de cortesia cf mais acima mas efetivamente nada mais do que o casual o duradouramente inesperado no rápido e violento mudar dos acontecimentos O relêvo dado à aventura casual pode ser demonstrado até em novelas relativamente pobres em acontecimentos como a pri meira do quarto dia a de Guiscardo e Ghismonda Dante des denhou mencionar as circunstâncias nas quais Francesca e Pao lo foram surpreendidos pelo marido despreza quando trata de um tema semelhante tôda casualidade ressaltada à fôrça e a cena que descreve à da leitura em comum do livro é a mais corriqueira do mundo interessante somente por aquilo que ela desencadeia Boccaccio dedica uma parte do seu texto ao pro cesso complicado e aventuroso que os amantes devem empregar para ficarem juntos sem serem incomodados e à casual con catenação de circunstâncias que leva à sua descoberta pelo pai Tancredi São aventuras como as do romance cortês seme lhantes por exemplo à de Cligès e Fenice no romance de Chrétien de Troyes mas a atmosfera feérica da épica cortês volatilizouse e a ética da provação cavaleiresca tornouse uma moral natural e amorosa de caráter geral que se manifesta de forma extremamente sentimental Pelo seu lado o elemento sentimental freqüentemente unido a objetos sensíveis o cora ção da amada o falcão o que lembra os motivos feéricos é provisto na maioria dos casos de um excesso de retórica pen sese por exemplo no longo discurso defensivo de Ghismonda Tôdas estas novelas não possuem unidade estilística decisiva são demasiado aventurosas e feéricas para serem reais dema siado desencantadas e retóricas para serem feéricas e sentimen tais demais para serem trágicas As novelas que têm em mira o trágico não são imediatas nem no real nem no sentimento são quando muito aquilo que se chama comoventes Justamente nas passagens em que Boccaccio tenta pene trar no campo do problemático ou do trágico reconhecese a pouca clareza e a insegurança da sua ideologia do seu huma nismo prematuro O seu realismo livre rico e magistral no do mínio dos fenômenos totalmente natural nos limites do estilo médio tornase frouxo e superficial tão logo roça na proble mática ou na tragicidade Na Comédia de Dante a exegese fi gurai cristã tornou realidade o realismo humanotrágico tendo sido destruída ela própria ao mesmo tempo mas também o realismo trágico perdeuse logo mais a mundanidade de ho mens como Boccaccio era ainda demasiado insegura e instável como para poder oferecer uma base que como aquela exegese permitisse ordenar interpretar e representar o mundo todo como realidade Madame du Chastel Antoine de ia Sale um cavaleiro originário da Pro vença do tipo do tardio feudismo soldado cortesão m educador de príncipes e perito em heráldica e em I ginástica nasceu ao redor de 1390 e morreu depois de 1461 Estêve a maior parte da sua vida a serviço dos Anjou que até cêrca de 1440 lutaram pelo seu reino de Nápoles pos suindo simultaneamente também grandes propriedades na Fran ça abandonouos em 1448 para educar os filhos do conde Saint Pol Luís de Luxemburgo êste último teve um importante papel nas vicissitudinárias relações entre os reis da França e os duques du Borgonha Antoine de la Sale participou na sua juventude de uma expedição portuguesa ao norte da África estêve muitas vê zcs com os Anjou na Itália conhecia as côrtes da França e da Borgonha Segundo parece começou as suas atividades literá rias com compêndios para os seus principescos discípulos talvez descobriu com isto o talento e a disposição para narrar A sua obru mais conhecida é um romance de amor e de educação 1Hyxtoyre et plaisante Cronique du Petil Jehan de Saintré talvez o mais vivo documento literário do tardio feudalismo francês Durante certo tempo foramlhe atribuídas também outras obras na Quinze Joyes de Mariage e as Cent Nouvelles Nouvelles não obstante nenhuma destas duas obras possuírem nada da essência muito peculiar e muito claramente apreensível de La Sale Re centemente a maior parte dos pesquisadores parecem ter desis tido desta idéia após o livro de W Soederhjelm sôbre a novela IriinccHU do século XV Paris 1910 l inha já aproximadamente setenta anos de idade quando redigiu o seu consolatório para uma dama que havia perdido o primeiro filho flstc escrito le Réconfort de Madame du Fres ne Ioi publicado por J Nòve no seu livro sôbre Antoine de lii Siilo IMirw et Itruxcllc 1903 pp 101155 Começa com 200 MIMESIS uma introdução de tom muito cordial que além de admoestações pias contém citações da Bíblia de Sêneca e de São Bernardo de Clairvaux assim como a estória do sudário e o prêmio de um santo contemporâneo recentemente falecido depois seguem duas narrações acerca de mães valorosas Das duas a pri meira é de longe a mais importante Narra aliás com muitos erros e confusões um episódio da Guerra dos Cem Anos Os inglêses sob o comando do Príncipe Negro sitiam a fortaleza de Brest e o seu comandante o Seigneur du Chastel vêse finalmente obrigado a fazer um tratado segundo o qual se compromete a entregar a fortaleza ao príncipe num certo prazo se até então não tiver recebido auxílios Como refém entrega o seu único filho de treze anos de idade e sob estas condições o príncipe concorda com uma trégua No quarto dia anterior ao vencimento do prazo chega um navio com ali mentos ao pôrto reina grande alegria e o comandante envia um arauto ao príncipe intimandoo a devolver o refém pois chegara ajuda e simultâneamente segundo o costume cavalhei resco convidandoo a servirse das provisões que haviam che gado O príncipe irritado por ver que lhe escapa a fortaleza tão desejada que já acreditava estar em suas mãos não reco nhece a chegada de alimentos como auxílio no sentido do acor do e exige a entrega da fortaleza no prazo fixado caso contrá rio o refém estaria perdido As diferentes etapas do processo são narradas com grande insistência com um pouco de pedan tismo com reprodução exata da aparição cerimonial dos arau tos que trazem as diferentes mensagens como o príncipe envia uma resposta negativa mas ainda não totalmente clara como o senhor du Chastel cheio de maus pressentimentos reúne os seus parentes e amigos para se aconselhar e como êles no pri meiro momento só se entreolham em silêncio ninguém quer falar em primeiro lugar ninguém quer realmente acreditar que o príncipe está falando sério ninguém que dar um conselho como deveria ser o caso Touteffoiz conclurent que rendre ht place sans entier deshonneur à loyalement conseillier nen veoient point la fachon Então é narrado como à noite a mu lher do comandante percebe a sua preocupação e acaba sa bendo dêle a verdade como ela em conseqüência disto des maia como no dia anterior ao vencimento do prazo aparcccni os arautos do príncipe com a exigência inequívoca do cumpri mento do tratado como são recebidos e despedidos com ceri monial e cortesia que estão em contraste com a inimizade du palavras trocadas como o senhor du Chastel mostra aos pa rentes e amigos uma cara alegre e decidida mas como à noite sozinho com a sua mulher no leito perde a compostura c se entrega totalmente ao desespêro Aqui está o ponto culminante da narração Madame qui de lautre lez son très grand ducil fuixoit voyant perdre de son seigneur lonneur ou son très bel et jjrit MADAME DU CHASTEL 201 cieu filz que au dist de chascun de laaije de XIII ans ne sen trouvoit ung tel doubta que son seigneur nen preist la mort Lors en son cuer se appensa et en soy meismes dist Helasse moy dollente se il se muert or astu bien tout perdu Et en ce penssement elle lappella Mais il riens nentendit Alors elle en sescriant lui dist Ha Monseigneur pour Dieu aiez pitié de moy vostre povre femme qui sans nul ser vice reprouchier vous ay sy loyalment amé servy e honnouré vous à jointes mains priant que ne veuillez pas vous nostre filz et moy perdre a ung seul cop ainssy Et quand le sire entend de Madame son parler à chief de pièce luy respondit Helasse mamye et que est cecy Où est le cuer qui plus ne amast la mort que vivre ainssi où je me voy en ce très dur party Alors Madame comme très saige et prudente pour le resconfforter toutàcop changa son cruel dueil en très ver tueulx parier et lui dis Monseigneur je ne diz pas que vous ne ayez raison mais puisque ainssi est le voulloir de Dieu il vuelt et commande que de tous les malvaiz partis le mains pire en soit prins Alors le seigneur lui dist Doncques mamye conseilliez moy de tous deux le mains pire à vostre advis A Monseigneur distelle il y a hien grant choiz Mais de ceste chose à jointes mains vous supplie pardonnez moy car telles choses doivent partir des nobles cuers de vertueulx hommes et non pas de femelins cuers de femmes qui par lor donnance de Dieu sommes à vous hommes subgettes especia lement les espouseez et qui sont meres des enffants ainssi que je vous suis et à nostre filz Sy vous supplie Monseigneur que de ce la congnoissance ne sestende point à moy Ha mamye distil amour et devoir vuellent que de tous mes prin cipaux affaires comme ung cuer selon Dieux en deux corps vous en doye deppartir ainssi que jay toujours fait pour les biens que jay trouvez en vous Car vous dictes quil y a bien choiz Vous estes la mere et je suis vostre mary Pourquoy vous prie à peu de parolles que le choiz men declairiez Alors la très desconffortée dame pour obéir luy dit Monseigneur puisque tant vouliez que le chois vous en die alors renfforça la prudence de son cuer par la très grande amour que elle i lui avoit et lui dist Monseigneur quoy que je dye il me soit pardonné des deux consaulx que je vous vueil donner Dieux avant Nostre Dame et monseigneur saint Michiel que soient en ma pensee et en mon parler Dont le premier est que vous laissiez tous vos dueilz vos desplaisirs et vos pensers et ainssy lerayje Et les remettons tous ès mains de nostre vray Dieu qui fait tout pour le mieulx Le lime et derrain est que vous Monseigneur et chascun homme efem m e vivant savez que selon droit de nature et experience des yeulx est chose plus appa nmtc que les enffans sont filz ou filles de leurs meres que en leurs flans les ont portez et enffantez que ne sont de leurs maris ne de cculx à qui ont les donne Laquelle chose Monseigneur je ili pour cc que uinssi nostre filz est plus apparant mon vray 202 MIMESIS filz quil nest le vostre nonobstant que vous en soyez le vray pere naturel Et de ce jen appelle nostre vray Dieu à tesmoing au très espouventable jour du jugement Et car pour ce il est mon vray filz qui moult chier ma cousté à porter lespasse de IX mois en mes flans dont en ay receu maintes dures angoisses et par mains jours et puis comme morte à lenffanter lequel jay sy chierement nourry amé et tenu chier jusques au jour et heure que il fut livré Touttefoiz ores pour toujours mais je labandonne ès mains de Dieu et vueil que jamais il ne me soit plus riens ainssi que se jamaiz je ne le avoye veu ains libéralement de cuer et franchement sans force contrainte ne viollence aucune vous donne cede et transporte toute la naturelle amour laffection et le droit que mere puelt et doit avoir à son seul et très amé filz Et de ce jen appelle à tesmoing le trestout vray et puissant Dieu qui le nous a presté le espasse de XIII ans pour la tincion et gar de de vostre seul honneur à tous jours mais perdu se aultrement est Vous ne avez que ung honneur lequel après Dieu sur femme sur enffans et sur toutes choses devez plus amer Et sy ne avez que ung seul filz Or advisez duquel vous avez la plus grande perte Et vrayement Monseigneur il y a grant choiz Nous sommes assez en aaige pour en avoir se à Dieu plaist mais vostre honneur une foiz perdu lasse jamais plus ne le recouvrerez Et quant mon conseil vous tendrez les gens diront de vous mort ou vif que soiez Cest le preudomme et très loyal chevallier Et pour ce Monseigneur sy très humblement que je scay vous supplie fetes comme moy et en lui ne penssés que se ne leuissiez jamaiz eu ains vous resconffortez et remerciez Dieu de tout qui le vous a donné pour votre honneur rachetter Et quant le cappitaine oist Madame si haultement parler avec un contemplatif souspir remercia JhesusCrist le très hault et puissant Dieu quant du cuer de une femeline et piteuse créa ture partoient sy haultes et sy vertueuses paroi les comme celles que Madame disoit ayant ainssy du tout abandonné le grant amour de son seul et très aimé filz et tout pour lamour de lui Lors en briefves parolles luy dist Mamye tant que lamour de mon cuer se puelt estendre plus que oncques mais vous remercie du très hault et piteux don que mavez maintenant fait Jay ores oy la guette du jour corner et ja soit que ne dormissions à nuit sy me faultil lever et vous aucum peu repo serez Reposer distelle hellas Monseigneur je nay cuer œul ne membre sur mon corps qui en soit daccord Mais je me leveray et yrons à messe tous deux remerchier Nostre Sei gneur de tout Madame que do outrolado se entregava à sua grande dor enquanto pensava que ora estava perdida ou a honra do seu rnurido ou o seu filho mais belo e mais amado do quai todo mundo ilizia que em nenhmn lugar podia se achar alguém que se lhe asscniclliiifsc com a idade de treze anos temia que o seu espôso nSo sobrcvivcusc a tal tormento Entâo ela pensou no seu coraçfio e disse h xi i i i c m i i u MADAME DU CHASTEL 203 Ai de mim miserável Se também êle morrer terei perdido real mente tudo E com êste pensamento dirigiuse a êle Mas êle não a ouvia Então ela elevou sua voz e disse Oh meu senhor pelo amor de Deus tende piedade de mim vossa pobre mulher que sem nada reprocharvos vos amou lealmente vos serviu e vos honrou peçovos com as mãos juntas não percais a vós mesmo ao vosso filho e a mim de um só golpe assim E quando o senhor ouviu esta fala de Madame finalmente respondeu Ai minha amiga para que serve tudo isto Qual é o coração que não preferiria morrer a viver num dilema como o meu Então Madame que era muito sábia e prudente para reconfortálo mudou logo o seu cruel duelo em fala muito virtuosa e disselhe Meu senhor não digo que não tenhais razão mas pois que assim é a vontade de Deus êle quer e manda que de todos os males seja escolhido o menor Então o senhor lhe disse Então minha amiga aconselhaime qual é o menos pior dos dois em vossa opinião Ah meu senhor disse ela esta é uma escolha difícil Mas desta decisão com as mãos juntas vos peço livraime pois tais coisas devem partir dos nobres corações dos homens virtuosos e não dos femininos corações das mulheres que por ordem de Deus estamos a vós homens su jeitas especialmente as esposas e as que são mães de crianças assim como eu o sou de vós e de nosso filho Por isto vos suplico meu senhor que esta decisão não parta de mim Ah minha amiga disse amor e dever querem que todos os meus principais negócios sendo como somos um só coração em dois corpos segundo a vontade de Deus vos tenha deixado ter parte assim como o tenho feito pelo bem que achei em vós Pois dissestes que havia uma escolha Vós sois a mãe e eu sou vosso marido Pelo que vos peço que em poucas palavras me digais a vossa escolha Então a infeliz mulher para obedecer disse Meu senhor pois que tanto quereis que vos diga a minha escolha e aqui ela juntou tôda a prudência de seu coração pelo grande amor que lhe tinha e disse Meu senhor que o que eu disser me seja perdoado e que para os dois conselhos que quero darvos Deus antes de tudo Nossa Senhora e meu senhor São Miguel estejam em meu pensamento e na minha fala O primeiro é que deixeis todo o vosso luto vosso desprazer e vossos pensa mentos e assim farei eu E ponhamos tudo nas mãos de nosso verdadeiro Deus que faz tudo para melhor O segundo e último é que vós meu senhor e todo homem e mulher vivente saibais que segundo o direito da natureza e segundo a experiência dos olhos é coisa mais evidente que as crianças são filhos ou filhas de suas mães que as carregaram no seu seio e que as pariram mais do que de seus maridos ou de outros a quem são dados E digo isto meu senhor porque assim nosso filho é mais evidentemente meu filho verdadeiro do que o vosso não obstante vós sejais o seu verdadeiro pai natural E disto chamo como testemunha nosso ver dadeiro Deus no terrível dia do Juízo E por isto é meu verdadeiro filho que muito caro me custou carregálo pelo espaço de nove meses cm meu ventre pelo qual sofri muitas duras angústias durante muitos dias e depois quase morri ao parilo o qual tão caramente iiliincntei amei e cuidei até o dia e a hora em que foi entregue lodaviii ora para sempre jamais abandonoo nas mãos de Deus e quero que êle jumais seja nada para mim assim como se eu jamais o tiveMie tido e de livre coração e francamente sem fôrça constran Himrnto nem violcneiii ulitumii vos dou cedo e transfiro todo o 204 MIMESIS amor natural afeição e direito que uma mãe pode e deve ter sôbre o seu filho único e muito amado E disto chamo como testemunha o muito verdadeiro e todopoderoso Deus que nolo emprestou pelo espaço de treze anos para a manutenção e guarda de vossa única honra que estaria perdida para todo o sempre se assim não fôsse Não tendes senão uma honra a qual deveis amar depois de Deus mais do que a vossa mulher filho ou qualquer outra coisa E sim também não tendes senão um único filho Ora pensai qual das duas perdas seria maior para vós E em verdade meu senhor aqui há uma escolha a fazer Nós estamos ainda na idade de ter outros filhos se Deus quiser mas vossa honra uma vez perdida nunca mais podereis recuperála E quando seguirdes o meu conselho as gentes dirão de vós estejais morto ou vivo êste é um homem probo e um muito leal cavaleiro E por isto meu senhor peçovos muito humildemente fazei como eu e nunca mais penseis nêle como se nunca o tivésseis tido e reconfortaivos e agradecei a Deus de tudo pois êle volo deu para salvar a vossa honra E quando o capitão ouviu Madame falar tão nobremente com um suspiro contemplativo agradeceu Jesus Cristo o nobre e poderoso Deus porque de uma criatura feminina e triste partiam tão nobres e virtuosas palavras como as que Madame dissera que havia assim abandonado totalmente o grande amor do seu único e muito amado filho e tudo por amor a êle Logo em breves palavras disselhe Minha amiga tanto quanto o amor do meu coração pode se es tender mais do que jamais por outra coisa agradeçovos o grande e triste dom que ora me tendes feito Acabo de ouvir o toque do côrno do vigia do dia e ainda que não dormimos esta noite é necessário que me levante e vós podeis repousar ainda um pouco Repousar disse ela ai meu senhor não tenho coração nem ôlho nem membros no corpo que queiram fazêlo Mas eu me levantarei e iremos à missa os dois para agradecer Nosso Senhor por tudo Depois desta cena a narração ainda se estende longamente novamente aparecem os arautos do príncipe para exigir a entre ga e ameaçar com a execução da criança novamente êles são mandados embora então o comandante decide ordenar uma surtida para fazer uma tentativa violenta de salvação depois a narração passa para o campo inimigo onde o príncipe faz con duzir a criança acorrentada para a execução e obriga o arauto do senhor du Chastel que também se chama Chastel apesar du sua resistência a unirse ao cortejo aqui relatase como na fortaleza a mulher do comandante tenta impedir a surtida e desmaia quando os guardas já observam a volta do destacamento inimigo que levara a criança para a execução de tal forma que de qualquer modo é tarde para a ação planejada como o comandante faz com que sua mulher seja levada para a camu e como a consola como o arauto Chastel volta à fortaleza c narra os acontecimentos ao comandante com o que repetese muita coisa anteriormente dita de forma algo diferente mas ainda quero transcrever textualmente a descrição du morte da criança tal como ela é descrita pelo arauto MADAME DU CHASTEL 205 Mais lenffant qui au resconffort des gardes cuidoit que on le menast vers le chastel quand il vist que vers le mont Reont alloient lors sesbahist plus que oncques mais Lors tant se prist à plourer et desconfforter disant à Thomas le chief des gardes Ha Thomas mon amy vous me menez morir vous me menez morir hellas vous me menez morir Thomas vous me menez morir hellas monsieur mon pere já vois morir hellas madame ma mere je vois morir je vois morir hellas hellas hellas je vois morir morir morir morir Dont en criant et en plourant regardant devant et derrière et entour lui à vostre coste darme que je portoye lasse my et il me vist et quant il me vist à haute voix sescria tant quil peust Et lors me dist Ha Chastel mon ami je voiz morir hellas mon amy je voiz morir Et quant je ainssi le oys crier alors comme mort à terre je cheys Et convint par lordonnance que je fusse emporté après luy et là à force de gens tant soustenu que il eust prins fin Et quant il fust sur le mont descen du là fust un frere qui par belles parolles esperant en la grâce de Dieu peu à peu le eust confessé et donné labsolucion de ses menus pechiez Et car il ne povoit prendre la mort en gré lui convint tenir le chief les bras et les jambes lyez tant se estoit jusques aux os des fers les jambes eschiees ainsi que depuis tout me fut dit Et quand ceste sy très cruelle justice fut faitte et à chief de piece que je fus de pasmoison revenu lors je despouillay vostre coste darmes et sur son corps la mis Mas o menino que acreditava que seria levado para o cas telo pois isto tinhamlhe dito os guardas para consolálo quando vin que iam em direção ao monte Réont assustouse mais do que nunca Começou então a chorar e a horrorizarse e disse a Tomás o chefe da guarda Ah Tomás meu amigo vós me levais à morte Vós me levais à morte Tomás vós me levais à morte Ai senhor meu pui eu vou morrer Ai senhora minha mãe eu vou morrer eu vou morrer Ai ai ai eu vou morrer morrer morrer morrer1 E quando êle assim chorava e gritava e olhava ao seu redor à sua frente e atrás também me viu infeliz de mim com a vossa cota darmas e quando me viu gritou com tôda a sua força e disseme Oh Chastel meu amigo eu vou morrer Ai meu amigo eu vou morrer E quando o ouvi gritar assim caí ao chão como morto Mas havia sido ordenado que eu fôsse arrastado atrás dêle e assim fui segurado por muitas pessoas até que tudo chegou ao fim E quando chegaram ao monte lá havia um frade que com belas pala vras sôbre a esperança na graça de Deus pouco a pouco o confessou e lhe deu a absolvição dos seus pequenos pecados E pois que êle não queria absolutamente morrer foi necessário que lhe segurassem a ca beça e lhe amarrassem pernas e braços tão fortemente que as pernas ficuram feridas até os ossos o que me contaram mais tarde E quando cMa muito cruel condenação foi executada e acabei por recuperar o conhecimento despojeime da vossa cota darmas e a pus sôbre o ncii corpo 206 MIMESIS O arauto encerra o seu relato com as ásperas palavras que foram trocadas entre êle e o príncipe quando pediu o cadáver do menino e o obteve Descrevese então como o seigneur que ouviu isto tudo diz uma oração Beaux sires Dieux qui le me avez jusques à aujourduy presté vueillez en avoir lâme et lui pardonner de ce que il a la mort mal prinse en gré et à moi aussi quant pour bien faire lay mis en ce party Hellasse povre mere que dirastu quant tu saras la piteuse mort de ton chier filz combien que pour moy tu le avoyes de tous poins abandonné pour acquittier mon honneur Et beau sires Dieux soiez en ma bouche pour len resconforter Nobre senhor Deus que mo emprestastes até hoje recebei a suà alma e perdoailhc o fato de ter recebido a morte de mau grado e perdoaime a mim também pois que para fazer o bem o pus em tal situação Ai pobre mãe que dirás quando souberes da triste morte do teu caro filho não obstante o tenhas abandonado totalmente por minha causa para salvar a minha honra E nobre senhor Deus estai na minha bôca para reconfortála Depois seguese o solene enterro e a cena na qual êle comunica à mulher de quem tinha ocultado até então o acon tecido diante de muitas pessoas à mesa a morte do filho ela permanece resignada Alguns dias mais tarde o príncipe neces sita levantar o sítio o comandante encontra ainda a oportuni dade para um assalto exitoso durante o qual é feito um grande número de prisioneiros Doze dos mais distintos entre êles que querem resgatarse com grandes somas de dinheiro são enfor cados num cadafalso elevado visível a grande distância aos restantes é vazado o ôlho direito e cortada a orelha e a mão direitas depois do que são enviados de volta Allez à vostre seigneur Herodes et luy dittes de par vous grant mercis des autres yeulx oreilles et poings senestres que je vous laisse pour ce que il donna le corps morts et inncent de mon filz à Chastel mon herault Ide ao vosso senhor Herodes e dizeilhe do vosso grande agra decimento pelos outros olhos orelhas e mãos esquerdas que vos deixo porque êle deu o corpo morto e inocente de meu filho a Chastel meu arauto Êste texto que tenho apresentado de forma mais extensa em parte porque na sua extensão e circunstancialidade reside uma parte importante da sua essência em parte também porque êle não deveria ser tão fàcilmente acessível para a maioria dos meus leitores quanto os que comentamos até aqui é mnis do que um século mais jovem que o Decameron de Boccuccio parece porém incomparàvelmcnte mnis medieval c untiquiulo MADAME DU CHASTEL 207 Esta impressão é espontânea no leitor e é muito forte quero tentar o esclarecimento dos elementos isolados que fazem surgir No que se refere à forma tanto a sintaxe quanto a com posição do conjunto nada mostram da flexibilidade multiplici dade clareza e ordem antigashumanistas Apesar de as orações não estarem construídas preponderantemente de forma paratá tica a hipotaxe é freqüentemente inábil cheia de pesada ênfase e às vêzes pouco clara nos membros de ligação Uma oração como a seguinte da fala da mulher Et car pour ce il est mon vray filz gui moult chier ma cousté à porter lespasse de IX mois en mes flans dont en ay receu maintes dures angoisses et par maints jours et puis comme morte à lenffanter lequel jay si chierement nourry amé et tenu chier jusques au jour et heure que il fut livré já mostra na cadeia das ligações relativas certa falta de clareza nas relações de concordância as palavras et puis comme morte à Tenffanter caem totalmente fora da ordem sin tática enquanto o conjunto todo não é concebido de maneira alguma como manifestação emocionadamente desordenada mas como discurso cuidadoso e solene O caráter pesadamente sole ne pomposamente cerimonial dêste estilo repousa em última análise também nas tradições retóricas antigas nas suas trans formações pedantes medievais e não numa renovação humanista do seu caráter primordial Para isto também contribui o solene amontoar de sinônimos ou de expressões quase sinônimas como nourry amé et tenu chier que encontramos a todo passo como por exemplo logo na oração seguinte libéralement de cuer et franchement sans force contrainte ne viollence aucune vous donne cede et transporte toute la naturelle amour laffection et le droit Isto lembra o estilo pomposo dos documentos ofi ciais ou das escrituras jurídicas com o qual casam brilhante mente as muitas invocações a Deus a Nossa Senhora e aos santos Assim como em tais solenes documentos a coisa em si é introduzida freqüentemente por uma multidão de fórmulas alocuções determinações adverbiais e às vêzes até de um des file de orações preparatórias de tal forma que ela aparece como um príncipe ou como um rei solenemente precedido pelos seus arautos guardascostas oficiais da côrte e portaestandartes O diálogo noturno traz suficientes exemplos disto encontramse incessantemente quando os arautos entregam as suas mensagens e ainda que o processo seja conseqüência necessária do objeto neste último caso é impossível deixar de observar com quanta dedicação La Sale se delicia com êle tão logo se lhe apresenta a oportunidade Quando se lê Monseigneur le cappitaine de veste place nous comme officiers darmes et personnes public ques de par le prince de Galles nostre très redoubté seigneur reste foii pour tantes à vous nous mande de par sa clemence de prince vous signifier adviser et sommer é inconfundível o fiito de que mesmo num instante em que êle está estreme cido c revoltado contra a crueldade do principe La Sale delei tanc cxcrcvcndo est pompa estamcntal enfática mas sintática 208 MIMESIS mente confusa Com isto fica dito a sua linguagem é estamen tal e tudo o que é estamental é antihumanista A ordem estamental fixa da vida dentro da qual tudo tem e conserva o seu lugar e a sua forma refletese na retórica solene compli cada cheia de fórmulas e demasiado abundante em gestos e invocações Cada pessoa tem o seu vocativo correspondente Madame du Chastel chama o seu marido Monseigneur êle lhe diz mamye cada pessoa faz o gesto condigno com o seu estado e as suas circunstâncias como de acordo com um modêlo eterno fixado para todo o sempre à jointes mains vous supplie quan do o príncipe obriga o arauto do comandante a presenciar a execução do menino a cena é relatada duas vêzes isto soa assim alors en genoulx et mains jointes je me mis et lui dis A très redouté prince pour Dieu souffrez que la clarté de mes malheureux yeulx ne portent pas à mon très dollent cuer la très piteuse nouvelle de la mort de linnocent filz de mon maistre et seigneur il souffist bien trop se ma langue au rapport de mes oreilles le fait à icelui monseigneur vrayment Lors dist le prince Vous yrez veuilliez ou non A tradição dentro da qual se está aqui fazse sentir com máxima nitidez nas passa gens especialmente solenes nas quais como acabamos de dizer a coisa a ser comunicada é rodeada por um cinturão fortificado de fórmulas solenemente introdutórias Em tais passagens fica claro que se trata de formações decadentes da tardia Antigüi dade que a partir da baixa Idade Média foram admitidas e elaboradas nas culturas estamentais Nas línguas vulgares esta tradição vai desde a pesada e grandiosa retórica dos juramentos de Estrasburgo até os preâmbulos dos editos reais Louis par la grâce de Dieu etc No que se refere à construção da narrativa quase não é possível falar de uma ordem consciente a tentativa de relatar cronologicamente leva a muita confusão e repetição e mesmo que se puder tomar em consideração o fato do autor ter sido um homem muito velho há algo de senilmente maçante no estilo da obra o caráter paratático c um tanto confuso da composição pode ser encontrado também 110 romance do pequeno Jehan de Saintré que foi escrito alguns anos antes é um estilo de crônica que enumera os aconteci mentos uns após os outros pulando com freqüência um tanto repentinamente de um cenário para outro A ingenuidade dêste processo é salientada ainda mais pela fórmula mediante a qual é introduzida cada uma das mudanças dêsse tipo e agora deixa mos de narrar acêrca dêste assunto e nos voltamos para aquele A mistura entre a pesada pompa da linguagem e a enumeração ingênua na composição produz uma impressão de arrastada c pesada monotonia quanto ao tempo que não carece de grandio sidade é uma espécie de estilo elevado mas é estamental não é humanista não é clássico e é essencialmente medieval A mesma impressão de uma visão medievalestamcntiil é produzida pelo conteúdo da narração e aqui quero assinalar espe cialmente quão surpreendente é para um leitor moderno o fato MADAME DU CHASTEL 209 de que um acontecimento políticomilitar que se encontra num contexto histórico conhecido seja visto meramente como pro blema estamental Nunca se fala acerca da importância objetiva da fortaleza quais conseqüências negativas teria a sua perda para a causa da França e do rei pelo contrário tratase exclusi vamente da honra de cavaleiro do senhor du Chastel tratase da palavra empenhada e da sua interpretação da fidelidade do vassalo do juramento e da fiança pessoal o comandante até chega a oferecer ao príncipe uma vez o combate singular para decidir sôbre a diferença de interpretação do tratado Tudo o que é objetivo é sufocado por cerimônias solenes e cavalheirescas o que não impede que reine uma crua crueldade que não é ainda de forma alguma moderna ligada a um fim determinado e por assim dizer racionalizada mas continua sendo puramente pessoal e emocional A execução da criança é um ato de bar bárie totalmente carente de sentido assim como também é um ato de barbárie totalmente carente de sentido a vingança do comandante na pessoa de mais de cem inocentes que são enfor cados ou aleijados e que em outros casos não havendo a neces sidade pessoal de vingança do comandante teriam sido devol vidos contra um certo resgate em dinheiro Tudo isto dá a impressão de que a direção política e militar da guerra não conta com nenhuma espécie de racionalização de que nem existe espécie alguma de direção central das operações bélicas de tal forma que as medidas que são tomadas dependem em grande parte das circunstâncias pessoais das emoções e dos conceitos de honra cavalheiresca dos comandantes que se enfren tam em cada ação parcial Isto certamente ainda era assim de fato durante a Guerra dos Cem Anos Mesmo muito mais tarde até nas épocas do absolutismo totalmente desenvolvido encontramse precisamente na guerra onde as convenções do espírito cavalheiresco se conservaram durante mais tempo traços nítidos de relações totalmente pessoais e cavalheirescas entre ami go e inimigo Contudo é justamente no século XV na época de La Sale que começa a se fazer sentir a mudança Os métodos políticos e militares cavalheirescos fracassam o seu ethos tornase quebradiço e o seu papel pouco a pouco meramente decorativo O romance de La Sale sôbre o pequeno Jehan de Saintré dá um testemunho eliqüente e evidentemente desproposital da falta de sentido ostentatória e parasitária dos feitos de armas nessa época Da mudança que está se preparando La Sale contudo nada quer saber vive envolto na atmosfera estamental nos seus conceitos de honra nas suas cerimônias e na pompa heráldica Mesmo a sua erudição que aparece mais claramente nus suas outras obras do que no Réconfort é um mosaico de citações morais pertencente em espírito ao escolasticismo tardio ou mais pròpriumente é uma compilação escolástica estamental posta a serviço da educação feudal c cavalheiresca Inrii la Sale portanto o movimento que levou os grandes cNcrilorcs ilnlimio du léculo XIV apreensão da intcgralidade 210 MIMESIS da realidade contemporânea ainda não teve efeito A sua lin guagem e em geral a sua arte são estamentais o seu horizonte é estreito embora tenha viajado muito Viu em tôda parte muita coisa notável mas em tudo o que viu só percebeu o cortês e o cavalheiresco É neste espírito que está escrito também o Réconfort mas em meio ao seu estilo feudal e pom poso já um tanto alquebrado encontrase como o texto acima o mostra um acontecimento legitimamente trágico da mais alta dignidade que nos é relatado sem dúvida com certa cerimônia e pedanteria mas sem dúvida também como grande calidez e simplicidade de coração tal como lhe corresponde Na literatu ra medieval encontrase dificilmente um segundo exemplo de um conflito tão simples tão extremamente real tão modelarmente trágico e tenho ficado perplexo mais de uma vez pelo fato desta bela peça ser tão pouco conhecida O conflito não é de forma alguma esquemático não tem nada a ver com qualquer dos motivos tradicionais da poesia cortês e trata de uma mulher mas não de uma amada mas de uma mãe não é româticocomo vente como a estória de Griseldis mas é um acontecimento prático palpável na sua realidade O pano de fundo cavalhei rescocerimonial não causa nenhum dano à sua simples grandeza pois permitese a uma mulher sobretudo nesse tempo sem mais nem menos que se integre nas circunstâncias que lhe são dadas e aíé o caráter tolhido humilde que se inclina obedientemente à vontade do marido mostra mais efetivamente a fôrça pura e a liberdade do seu ser que se realça na necessidade O con flito atinge no fundo somente a ela pois ainda que êle se mostre indeciso e queixoso não há dúvidas acerca da decisão que deve tomar ao contrário é da atitude da mulher que depen de se e como êle ultrapassará êste estremecimento e com uma acomodação bem sentida rápida e clara às circunstâncias ela retoma o domínio de si mesma através da reflexão se il se muert or astu bien tout perdu E imediatamente ela se decide a liber tálo da inútil autotortura decidese a mostrarlhe o caminho que ela sabe que êle deve escolher precedendoo Tão logo consegue captar a atenção do marido a mulher lhe dá antes de mais nada aquilo de que tem mais necessidade ordem nos seus pensamentos consciência da situação que deve enfrentar devese escolher entre dois males e êle deve escolher o menor Quando êle ainda perplexo pergunta qual seria o menor ela começa por se furtar à resposta isto não deve ser decidido por uma fraca mulher deve sêlo pela virtude e pelo valor masculinos com o que obrigao a ordenarlhe imediatamente que exprima os seus pensamentos recolocandoo ainda que só aparentemente na posição costumeira de quem dirige e decide já com isto tirao da lamúria incontida que socava a sua fôrça e sua consciência de si E depois dálhe o exemplo que êle deve seguir as crianças assim diz ela são mais filhos da sua mãe que as carregou deu à luz c alimentou do que do seu pai o nosso filho é mais meu filho do que vosso c mesmo ussim MADAME DU CHASTEL 211 eu renuncio agora ao meu amor por êle assim como se nunca o tivesse tido sacrifico o meu amor por êle pois poderemos certamente ter outros filhos mas se a vossa honra se perder nunca poderá ser recuperada E se seguirdes o meu conselho a pessoas vos louvarão cest le preudomme et très loyal cheva lier É difícil decidir o que deve ser mais altamente louvado neste discurso se a abnegação ou o autodomínio se a bondade ou a clareza O fato de que uma mulher em meio a tal calamidade não se entregue à desesperação mas apreenda a situação real com tôda nitidez o fato de ela reconhecer que nunca poderia se pensar em entregar a fortaleza que a criança estaria perdida em qualquer caso se o príncipe levar a coisa a sério o fato de perceber que pode dar ao seu marido pela intervenção a segurança interna pelo seu exemplo o valor para se decidir e pela alusão à fama que ganhará ainda um certo consolo e sem dúvida uma orgulhosa consciência de si que lhe facilita tôda a sua atitude tudo isto junto é de uma beleza simples e de uma grandeza sòmente comparável à de um texto clássico E também é muito bela a conclusão na qual êle havendo perdido totalmente a sua tensão é capaz de orar e de agradecerlhe e até de convidála a repousar ainda um pouco Reposer ditelle hellas Monseigneur je nay cuer œul ne mem bre sur mon corps qui en soit daccord Fica claro que o estilo pomposo do tardio feudalismo pode visualizar uma tal cena legitimamente trágica e legitimamente real tão superficial quanto possa ser com referência aos elemen tos políticos ou militares onde não mais é capaz de apreender us verdadeiras relações e circunstâncias quando se trata de uma ação muito simples imediatamente humana tem bom êxito Isto é tanto mais notável quando se trata no nosso exemplo de um cenário muito domésticoquotidiano de um casal que discute na cama à noite as suas preocupações segundo as concepções clássicas antigas êste não seria de maneira alguma um local upropriado para uma ação trágica de estilo elevado Os ele mentos trágicos e sèriamente problemáticos apresentamse aqui cm meio à quotidianidade de uma família e não obstante se rutnr de pessoas da alta nobreza que vivem rigidamente segundo us formas e tradições feudais a situação em que são encon trados isto é à noite na cama e não como amantes mas como nuirido e mulher clamando em meio à grande miséria e pro curando ajudarse mutuamente é de uma espécie que parece muito mais burguesa ou antes humana criatural do que feudal Apesar da linguagem solene e cerimoniosa as coisas dãose de maneira muito simples e ingênua poucos pensamentos e senti mentos simples apresentamse justapostos ou contrapostos não c pode falar em separação de estilos entre tragédia e realismo quotidiano No tempo do seu florescimento no século XII a literatura feudal nadu nos deixou de tão real e criatural marido i mulher na cama isto poderia ter aparecido em último caso na lauta popular I o que deveria ser dito ainda da 212 MIMESIS apresentação do menino que chora e grita enquanto é levado à morte Não quero louvála nem para o leitor nem para o coitado do pai a quem se dirige o relato do arauto é necessário pintar os pormenores do acontecimento com tanta evidência sensível Tanto mais surpreendente é verificar que grande quan tidade de realismo criatural desencoberto é possível juntar em meio a êste pomposo estilo heráldico a um acontecimento trági co Tudo está urdido com o intuito de evidenciar a contradição entre a inocência do menino e a horrível execução entre a sua vida até então totalmente preservada e a realidade que nela irrompe súbita e impiedosamente a compaixão dos guardas que se tornaram amigos do menino durante a sua curta prisão como refém a sua gritaria infantilmente desconcertada que irrompe duas vêzes sôbre o leitor agarrandose a todos os possí veis protetores presentes e ausentes repetindo sempre as mesmas palavras a sua revolta contra a morte até o último instante apesar do monje que o consola e confessa de tal forma que pelo desesperado espernear dos membros amarrados formamse feridas que vão até os ossos o senhor du Chastel e o leitor em nada são poupados O que aqui acabamos de verificar o concurso do pomposo estilo cavalheirescocerimonial e do realismo fortemente criatural que não recua diante de um efeito crasso mas evidentemente gosta de desfrutálo não é nada nôvo Desde o Romantismo esta combinação pertence à concepção corrente da Idade Média a pesquisa mais acurada comprovou que foi principalmente durante o fim da Idade Média durante o século XIV e sobre tudo durante o século XV que tal combinação se formou com maior fôrça e sobressaiu com maior nitidez nas suas caracterís ticas Faz algumas décadas que possuímos uma excelente e muito difundida pesquisa sôbre esta época o Outono da Idade Média de Huizinga na qual êste fenômeno é analisado repeti damente e em diversos contextos O elemento comum que une ambos os aspectos é o pesado c o obscuro o que se arrasta no tempo e carrega nas côres do gôsto sensível daquela época de tal forma o seu estilo pomposo possui amiúde algo de dema siado intensivamente sensível e o seu realismo às vêzes algo de formalmente pesado e ao mesmo tempo algo de imediata mente criatural e carregado de tradição algumas formas realis tas como as danças da morte têm o caráter de uma procissão ou de um cortejo A grande carga de tradição do realismo criatural sério desta época explicase pela sua origem provém da visão figurai cristã e pede emprestado do cristianismo quase todos os motivos conceituais e artísticos A criatura que sofre está presente para êle na Paixão de Cristo cuja pintura tornase cada vez mais crassa e cuja sugestão sensívelmística tornase cada vez mais forte ou nas Paixões dos mártires A intimidade domiciliar o interieur sério sério em contraste com o interieur das farsas brota nêle a partir da Anunciação e de outras cenas domésticas que podiam ser encontradas nas MADAME DU CHASTEL 213 Sagradas Escrituras No século XV a acomodação dos acon tecimentos da história da salvação dentro da vida presente e quotidiana do povo tinha atingido um tal grau que o realismo religioso apresenta sinais de exacerbação e de crua corrupção já mencionamos isto anteriormente e também foi apresentado freqüentemente por exemplo de maneira muito rigorosa e im pressiva por Huizinga de maneira que não teremos de voltar a tratálo Contudo dentro do nosso contexto há outras coisas a serem salientadas com referência ao realismo do fim da Idade Média a saber antes de mais nada que a imagem do homem realmente vivo que tinha sido criada pela mistura cristã dos estilos ou seja a imagem criatural ora surge também fora do círculo considerado cristão no sentido mais estrito do têrmo encontramola na nossa narração que relata um acontecimento feudalmilitar Outrossim deve ser assinalado o fato de que a representação da vida realpresente se dirige agora com espe cial amor e grande arte para os elementos íntimos domésticos e quotidianos da vida familiar Também isto originase como acabamos de dizer da mistura cristã dos estilos e os motivos que estão em relação com o nascimento de Maria e com o de Cristo constituemse em modelos conceituais para tal desenvol vimento Por outro lado o simbolismo tipológico continua operando durante muito tempo dentro destas representações realistas O desenvolvimento realista também foi promovido pelo surgimento da cultura da alta burguesia que se fazia sentir com fôrça perto do fim da Idade Média sobretudo no norte da França c na Borgonha Esta cultura não tinha ainda plena consciência de si mesma levou muito tempo até que se formas se em teoria uma articulação do terceiro estado correspon dente às circunstâncias reais e ela ficou durante muito tempo iiinda tanto na sua atitude quanto no seu estilo de vida antes pequeno do que altoburguesa apesar do seu notável bem estar c da sua fôrça crescente mas fornecia motivos para as artes imitativas e justamente tratavase de motivos íntimodo mésticos tanto como interieur plástico quanto como represen tação de problemas e situações domésticas e econômicas O caráter doméstico íntimo quotidiano da vida pessoal fazse sentir às vêzes mesmo nos casos em que se trata de círculos feudais ou aristocráticos ou até principescos Também nestes círculos são representados com maior freqüência exatidão e qtiotidianidade do que antes acontecimentos íntimos como é o caso do nosso texto e também freqüentemente dos cronistas Froissart Chastelain etc de tal forma a arte e a literatura iípcHitr dti sim preferência pelo fausto feudalheráldico apre senta no seu conjunto uni caráter muito mais burguês do que nos primeiros tempos medievais Finalmente deve ser ressaltado i i i i u I i i u m terceiro elemento essencial para o realismo da tardia liliule Mediu jiiilmneiilc aquêle que me levou a introduzir neste 214 MIMESIS capítulo uma expressão até agora não empregada criatural É desde os primórdios uma das peculiaridades da antropologia cristã o fato de ela ressaltar o homem sujeito a sofrimentos e à mortalidade isto foi conferido obrigatoriamente pelo conceito modelar da Paixão de Cristo relacionada com a história da salvação Mas nos séculos XII e XIII ainda não se relacionava com isto uma tal desvalorização e desvirtuação da vida terrena como a que ora se fazia sentir Nos primeiros séculos da Idade Média ainda estava muito vivo o conceito segundo o qual a sociedade terrena tinha valor e metas tinha tarefas específicas a cumprir devia tornar real na terra uma determinada forma ideal para preparar os homens para o reino de Deus no campo desta pesquisa Dante oferece um exemplo com o qual pode re conhecerse quão importante èticamente relevante e decisiva para a salvação eterna era a atividade terrena planejadora e política de cada um dos homens e da sociedade não só para êle como para muitos dos seus contemporâneos Ora seja porque os conceitos sociais ideais daqueles primeiros séculos medievais tivessem perdido fôrça e prestígio porque os fatos os contradi ziam teimosamente e novos desenvolvimentos que não se deixa vam unir àqueles estavam abrindo o seu caminho seja porque os homens não conseguiam interpretar e ordenar estas novas formas políticas e econômicas de vida seja ainda porque as correntes popularextáticas a místicapassional que cada vez se tornava mais apaixonadamente realista a religiosidade que cada vez mais degenerava em superstição e fetichismo paralisavam a vontade de apreender teoricamente a vida terrena prática nos últimos séculos da Idade Média de qualquer forma fazse sen tir um cansaço e uma esterilidade no pensamento construtivo teórico sobretudo na medida em que se refere à ordem da vida prática de tal forma que aquele lado criatural da antro pologia cristã a sua sujeição ao sofrimento e à mortalidade apa recem ressaltados de forira crassa e em nada morigerada O que há de peculiar nesta imagem radicalmente criatural do homem o que está em contraste especialmente forte com as características do antigo humanismo reside no fato de que por mais respeito que demonstre diante da roupa terrena e social que o homem veste perde todo o respeito diante dêle mesmo tão logo a despe por baixo desta vestimenta não há nada além da carne que será ofendida pela idade e pela doença que será destruída pela morte e pelo apodrecimento Tratase se assim se quiser de uma teoria radical da igualdade de todos os homens mas não no sentido político ativo mas como desvalorização da vida que toca a todos e cada um de forma imediata tudo o que o homem faz é vão embora os seus instintos o obriguem a agir e a aferrarse à vida terrena ela não tem valor nem digni dade Não é em relação mútua nem perante a lei que todos os homens são iguais pelo contrário Deus dispôs de tal forma que êles sejam desiguais na vida terrcnu iguais êles o são diuntc da morte diuntc da decrepitude criatural diante dc Deus Con MADAME DU CHASTEL 215 tudo já então foram tiradas conclusões isoladas de caráter polí ticoeconômico na Inglaterra com bastante energia a partir desta doutrina igualitária mas a ideologia que predominava amplamente somente lia na criaturalidade do homem a inutili dade e a vaidade de todo esforço terreno Para muitos homens dos países ao norte dos Alpes a consciência da inelutável ruína de si próprios e de tôdas as suas obras teve um efeito parai i sante sôbre a formação dos pensamentos no tocante ao plane jamento prático da vida terrena uma atividade dirigida para o futuro no aquém parecelhes carente de todo valor e dignidade um mero jôgo dos instintos e das paixões e o seu relaciona namento com a realidade terrena compõese do reconhecimento da sua forma existente como um teatro sensivelmente expres sivo e do radical desvendamento do mesmo como passageiro e vão com o que os contrastes entre vida e morte juventude e velhice saúde e doença triunfal pompa do papel terreno e calamitosa defesa contra a inelutável destruição foram ressal tados com os recursos mais extremos Queixandose enfadonha ou apaixonadamente pia ou cinicamente ou as duas coisas jun tas êstes temas simples são sempre variados amiúde com fôrça arrebatadora a vida média e quotidiana com as suas alegrias sensuais as suas penas a sua decadência pela velhice e pela enfermidade o seu fim raramente foi representada de forma tão impressionante como nesta época e estas representações têm um caráter estilístico que se diferencia fortemente não só do da arte antiga o que é evidente mas também da arte realista dos primeiros séculos da Idade Média Há nesta época uma grande quantidade de representações literárias de conversações noturnas entre marido e mulher Daquelas que eu conheço é especialmente característica a cena da primeira das Quinze Joyes de Mariage na qual a mulher quer ter um vestido nôvo A minha citação segue a edição da Bibliothèque elzévirienne 2e éd Paris 1857 p 9 ss Lors regarde lieu et temps et heure de parler de la matière si son mary et voulentiers elles devraient parler de leurs choses espccialles là où leurs mariz sont plus subjets et doivent estre plus enclins pour octrier cest ou lit ouquel le compagnon dont jay parlé veult atendre à ses délitz et plaisirs et lui semble quil nu aultre chouse à faire Lors commence et dit ainsi la Dame Mon amy lessezmoy car je suis à grand malaise Mamie ditil et de quoy Certes faitelle je le doy bien estre mais je ne vous en diray jà rien car vous ne faites compte de chose que je vous dye Mamie faitil ditesmoy pour quoy vous me dites telles paroles Par Dieu faitelle sire il nest jà mestier que je le vous dye car cest une chose puis que je la vous auroye dite vous nen feriez compte et il vous semblerait que je le feissc pour autre chose Vrayement faitil vous me le lire lors elle dit Puis quil vous plest je le vous diruy Mon my fuitelle voim ave que je fuz lautrc jour à telle festc 216 MIMESIS où vous menvoiastes qui ne me plaisoit gueres mais quand je fus là je croy quil ny avoit femme tant fustelle de petit estât qui fust si mal abillée comme je estoye combien que je ne dy pas pour moy louer mais Dieu merci je suis daussi bon lieu comme dame damoiselle ou bourgeoise qui y fust je men rap porte à ceulx que scevent les lignes Je ne le dy pas pour mon estât car il ne men chaut comme je soye mais je en ay honte pour lamour de vous et de mes amis Avoy distil mamie quel estât avoientelles à ceste feste Par ma foy faitelle il ny avoit si petite de Testât dont je suis qui neust roba décar late ou de Malignes ou de fin vert fourrée de bon gris ou de menuver à grands manches et chaperon à lavenant à grant cruche avecques un tessu de soye rouge ou vert traynant jus quès à terre et tout fait à la nouvelle guise Et avoie encor la robe de mes nopces laquelle est bien usée et bien courte pour ce que je suis creue depuis quelle fut faite car je estoie encore jeune fille quand je vous fus donnée et si suy desja si gastée tant ay eu de peine que je sembleroye bien estre mere de telle à qui je seroye bien fille Et certes je avoye si grant honte quand je estoye entre elles que je nousoie ne savoye faire con tenance Et encore me fit plus grand mal que la Dame de tel lieu et la femme de tel me disrent devant tous que cestoit grandhonte que je nestoye mielx abillée Et par ma foy elles nont garde de my trouver mès en pièce Avoy mamie fait le proudomme je vous diray vous savez bien mamie que nous avons assez affaire et savez mamie que quant nous entrâmes en nostre ménagé nous navions gueres de meubles et nous a convenu achapter liz couchez chambres et moult dautres cho ses et navons pas grant argent à present et savez bien quil tault achapter deux beufs pour notre mestoier de tel lieu Et encore chaist lautre jour le pignon de nostre grange par faulte de couverture quil faut reffaire la premiere chouse Et si me fault aller à lassise de tel lieu pour le plait que jay de vostre terre mesme de tel lieu dont je nay riens eu ou au moins bien petit et my fault faire grand despence Haa sire je savoye bien que vous ne me sauriez aultre chose retraire que ma terre Lors elle se tourne de laultre part et dit Pour Dieu lessés moi ester car je nen parleray ja mais Quoy dea dit le proudomme vous vous courroucez sans cause Non fais sire faitelle car si vous nen avez rien eu ou peu je nen puis mais Car vous savez bien que jestoye parlée de marier à tel ou à tel et en plus de vingt aultres lieux qui ne me demendoyent seullement que mon corps et savez bien que vous alliez et veniez si souvent que je ne vouloie que vous dont je fus bien mal de Monseigneur mon père et suis encor dont je me doy bien haïr car je croy que je suy la plus maleurée femme qui fust oncques Et je vous demande sire faitelle si les femmes de tel et de tel qui me cuidèrent bien avoir sont en tel estât comme je suy Si ne sontelles pas du lieu dont je suy Par Sainct Jehan mieulx valicnt les robes que elles lessent à leurs MADAME DU CHASTEL 217 chamberieres que celles que je porte aux dimanches Ne je me scey que cest à dire dont il meurt tant de bonnes gens dont cest grand dommage à Dieu plaise que je ne vive gueres Au moins fussés vous quite de moy et neussés plus de desplesir de moy Par ma foy faitil mamie ce nest pas bien dit car il nest chose que je ne feisse pour vous mais vous devez regarder à nostre fait tournez vous vers moy et je feray ce que vous vouldrez Pour Dieu faitelle lessés moi ester car par ma foy il ne men tient point Pleust à Dieu quil ne vous en tenist jamès plus que il fait à moy par ma foy vous ne me toucheriez jamès Non faitil Certes faitelle non Lors pour lessaier bien ce lui semble il lui dit Si je estoie tres passé vous seriez tantoust mariée à ung aultre Seroye fait elle ce seroit pour le plaisir que gy ay eu Par le sacrement Dieu jamès bouche de homme ne toucheroit à la moye et si je savoye que je deusse demourer après vous je feroye chouse que je men iroye la premiere Et commence à plorer Então ela reflete sobre o lugar e a hora de falar sôbre a matéria com o seu marido e com muito prazer elas falam das suas coisas pessoais lá onde os seus maridos são mais fracos e mais fàcilmente inclinados a ceder isto é na cama onde o camarada do qual eu falava quer se dedicar a suas alegrias e divertimentos e pensa que não tem outra coisa a fazer Então a dama começa e diz Deixaime ora pois estou muito aflita Mas por quê diz êle Eu já tenho os meus motivos responde ela mas nada vos direi dêles pois que vós nunca vos preocupais com as coisas que eu digo Minha amiga responde êle dizeime por que falais assim Sabe Deus diz ela não tem sentido que volo diga pois vós não vos preocuparíeis com o que eu dissesse e jul garíeis a minha intenção de forma errada Em verdade res ponde êle dirmeloeis E então ela começa Pois que assim o quereis dirvoloei Vós sabeis que recentemente estive numa festa à qual me mandastes e que não me causou nenhum prazer mas quando estive lá não havia creio nenhuma mulher nem que fflsse do mais baixo estado que estivesse tão mal vestida quanto eu não o digo para me gabàr mas graças a Deus sou de origem tflo boa como qualquer uma das damas ou burguesas que lá estavam iipelo itqueles que entendem de linhagens Não o digo por mim mesma pois para mim é indiferente o jeito como eu ando vestida mas tive vergonha por vossa causa e por causa de meus amigos Pois é diz êle e o que vestiam as mulheres na festa Tu vos asseguro responde ela não havia nenhuma do meu estado por mais insignificante que fôsse que não tivesse um vestido de escarlate ou de pano de Malinas ou de fin vert forrado de gris ou de pele colorida com grandes mangas e um chapéu combinando de grande véu com um tecido de sêda vermelha ou verde até o chflo e tudo segundo a moda mais recente E eu vestia ainda o meu vestido de núpcias que já está todo gasto e demasiado curto poin eu cresci desde que foi feito pois eu ainda era menina quando vou fui dndii e estou ugora já tfio gasta por tôdas as penas que livr que piircvo miic dr algumas de quem poderia scr filha E 218 MIMESIS realmente passei tanta vergonha enquanto estava entre elas que fiquei tôda temerosa e nem sabia como me comportar E o que depois ainda me causou grande desgosto foi que a baronesa Fulana e a senhora Sicrana me disseram diante de todo mundo que era uma vergonha que eu não andasse melhor vestida Mas uma coisa é certa essas não me encontrarão tão cedo novamente Certo querida amiga diz o homem mas aqui devo dizervos uma coisa vós sabeis minha amiga que temos bastantes preocupa ções e sabeis também que quase não tínhamos móveis quando fun damos o nosso lar e que tivemos de comprar camas as armações e os quartos e muitas outras coisas e por isso não temos agora muito dinheiro contante e também sabeis que devemos comprar dois bois para o nosso arrendatário de tal lugar E depois faz pouco caiu a trave do nosso celeiro porque o telhado não estava em ordem e isso tem de ser consertado antes de mais nada E depois tenho de viajar ao juizado em tal outro lugar por causa do processo que estou tendo pelas vossas terras em tal lugar que não me ren deram nada ou muito pouco e isto causa grandes despesas Ah ah senhor eu já sabia que não viríeis com outra coisa senão com as minhas terras Então ela se vira para o outro lado e diz Deixaime em paz pelo amor de Deus eu nunca mais falarei sôbre isso Mas o que é isso diz o homem irritaisvos sem razão Não é isso diz ela pois se as minhas terras nada vos deram ou pouco isso não é minha culpa vós sabeis que eu poderia terme casado com êste ou com aqueloutro e que eu tinha ainda pelo menos outros vinte partidos que nada queriam além de meu corpo e também sabeis que tanto íeis e vínheis que acabei não querendo outro que não vós e por isso acabei brigando com o senhor meu pai e ainda estou brigada com êle pelo que muito me censuro acho que sou a mulher mais infeliz que já viveu E perguntovos senhor continua ela se a mulher dêste ou daqueloutro que qui seram me ter vivem na mesma situação que eu E elas nem são de tão boa família quanto eu Por São João os vestidos que elas dão de presente às suas camareiras são melhores do que os que eu visto aos domingos E eu não sei porque morre tanta gente boa de quem tenho tanta pena ah se Deus quisesse que eu não mais tivesse de viver Então pelo menos vervosíeis livre de mim e não teríeis mais aborrecimentos por minha causa Pela fé que eu tenho diz êle querida mulher não é certo que faleis assim pois não há nada que eu não faça por vós mas deveis pensar em nosso interêsse Mas agora viraivos para mim e eu farei o que quiserdes Oh Deus diz ela deixaime em paz não tenho vontade ne nhuma de fazêlo Deus queira que fizésseis tão pouca questão disso como eu então em verdade nunca mais me tocaríeis Então é não diz êle Certamente não diz ela E depois diz êle pois acha que pode pôla à prova dessa maneira Se eu estivesse morto estaríeis casada logo com um outro Isso é o que vós achais diz ela seria pelo prazer que achei nisto Juro por Deus que nunca a bôca de um homem tocará novamente a minha e se eu soubesse que vos sobreviveria faria alguma coisa para irme em primeiro lugar E então ela começa a chorar Este texto que deve ter sido escrito algumas décadas antes do Râconfort faz parte evidentemente de um cnmpo totalmente MADAME DU CHASTEL 219 diferente do acontecer e está portanto escrito num nível esti lístico totalmente diferente daquele da cena entre o senhor e a senhora du Chastel Nesta última tratase da vida do filho único na cena das Quinze Joyes de um vestido nôvo no Réconfort marido e mulher estão em bons têrmos vivem em real comu nidade nas Quinze Joyes não há confiança entre êles mas cada um segue os seus próprios instintos enquanto ao mesmo tempo observa os do outro mas não para entendêlos e ir ao seu encontro senão para usálos em seu próprio proveito a mulher faz isto com grande habilidade um pouco infantil e tôla o homem de forma muito mais crua e inconsciente mas também nêle falta o sentimento que faz parte do amor legítimo isto é o sentimento daquilo que pode causar alegria ao outro diante da maneira como êle trata das preocupações dela com a sua roupa também uma mulher menos tôla irritarseia por mais que êle possa ter razão objetivamente Finalmente na história do casal du Chastel a mulher é a heroína nas Quinze Joyes ela também o é mas não pela grandeza e pureza do seu coração senão pela superioridade das suas perfídias e pela sua fôrça na eterna luta que segundo é apresentado constitui o matrimônio Em correspondência com isto também o nível do estilo é total mente diferente às Quinze Joyes falta tôda pretensão a um tom elevado o diálogo entre marido e mulher não quer reproduzir nada além do tom da conversa quotidiana e somente nas pala vras introdutórias encontrase algo de moralismo didático o qual contudo é alimentado muito mais do que o moralismo medieval em geral de experiência práticopsicológica e concreta O caráter cerimonial pomposamente elevado que confere ao Réconfort o seu aspecto estamental característico está em claro contraste com o aspecto coloquial desencobertamente médio e burguês da expressão da conversa sôbre o vestido nôvo E mesmo assim uma reflexão de caráter histórico mostra que aqui duas espécies de estilo estão se aproximando uma da outra Já dissemos acima que a literatura feudal no seu auge nada pode apresentar de tão real e de tão domèsticamente íntimo como a cena entre a senhora e o senhor du Chastel um proble ma trágico representado numa conversação noturna entre ma rido e mulher é algo tão imediato que a pompa góticafeudal du língua antes aumenta de forma comovente a impressão de humanidade e de criaturalidade do que a enfraquece Por outro lado o tema que é tratado pela nossa cena das Quinze Joyes uma mulher que de noite na cama obtém mediante a sua tagarelice um vestido do marido é propriamente um tema furscsco mas aqui o tema é tomado sèriamente e não sòmente no seu sentido grosseiro e geral como ilustração ou exemplo nuis numa representação concreta que reproduz com exatidão i i s modulações c peculiaridades da situação material e espiritual Pois ainda que o autor tenha composto a sua obra como uma coleção de exemplos ela não tem nada a ver com as antigas coleçtVs de exempla totalmente carentes de realismo c mera 220 MIMESIS mente didáticas do tipo dos sete mestres sábios ou da Disciplina Clericalis para tanto é demasido concreta e também nada tem a ver com as farsas para tanto é demasiado séria Esta pequena obra cujo autor não conhecemos é um documento muito importante da préhistória do realismo moderno ela apre senta a vida quotidiana ou pelo menos um dos campos mais importantes da mesma matrimônio e família em tôda sua forma real e sensível e leva a sério êste tema do quotidiano chegando até fo problemático Certamente tratase de uma espécie pecu liar de seriedade já anteriormente a tendência misógina e misógama do moralismo clerical produziu uma espécie de lite ratura realista que com enfadonha e rabugenta didática enfei tando as representações com alegorias e exemplos enumerava as misérias e os perigos da vida matrimonial e doméstica da educação dos filhos etc de forma especialmente penetrante e às vêzes muito concreta êstes temas foram tratados por Eusta che Deschamps que tinha morrido pelos começos do século XV desta tradição muniuse o redator das Quinze Joyes não só de quase todos os motivos isolados da sua obra màs também da posição ainda um pouco moralista satírica e mais enfadada do que séria no sentido trágico Entretanto o próprio Eustache Deschamps comparese por exemplo as peças 15a 17a 19a 38a ou 40a do seu Miroir de Mariage não chegou a criar uma cena real entre marido e mulher na qual o jôgo das engrenagens que movimentam as profundezas da consciência êsse jôgo a dois que é o matrimônio ganhasse consistência o elemento realista fica na sua obra na superfície é algo assim como aquilo que no século XIX foi chamado scène de genre Os motivos do trecho acima trans crito encontramse quase todos também na sua obra Também nela a mulher quer ter vestidos novos também nela apela para o fato de outras mulheres estarem melhor vestidas do que ela embora não sejam de tão boa família quanto ela Mas a cena não se desenrola à noite na cama não em conexão com o jôgo das relações sexuais com o motivo do nôvo casamento após a morte do marido com tôdas as alusões à realização do matri mônio e às terras que ela trouxe como dote e que até agora nada produziram mas originaram um custoso processo Des champs enumera os motivos às vêzes com grande vivacidade geralmente tagarelando demais o autor das Quinze Joyes sabe o que é um matrimônio êle o sabe tanto no mau quanto no bom sentido pois na Quutorziesme Joye p 116 aparece a frase car Hz sont deux en une chose et nature y a ouvré tant par la douceur de sa forse que si lun avoit mal lautre le sentiroit Êle faz corn que os casais vivam realmente juntos combina os motivos de tal forma que o deux en une chose ganhc forma e isto geralmente no mau sentido como possibilidade de se ferir mùtuamente da maneira mais profunda como etermi luta dos que estão acorrentados um ao outro como fruudc c traição contra a comunidade Através disto o seu livro ndqiiirc MADAME DU CHASTEL 221 um caráter trágico não é uma tragicidade muito sublime nem constante para tanto o miúdo dos problemas é demasido estreito e mesquinho para tanto o caráter da vítima isto é do marido é demasiado prêso não tem nem bondade nem dignidade nem humor nem domínio de si não é nada além de um sofrido pai de família e o seu amor pela espôsa é totalmente egoísta sem qualquer compreensão pela essência da companheira êle se considera meramente como o seu proprietário cuja propriedade está constantemente ameaçada Mesmo querendo portanto evitar a palavra trágico não é possível deixar de reconhecer que aqui a miséria prática do ser humano na sua situação quotidiana achou uma expressão literária que antes não existia e existe realmente uma aproximação entre o nível estilístico do Réconfort que está escrito segundo a tradição feudal e o nível estilístico das Quinze Joyes que haurem os seus motivos das farsas e do moralismo clerical de baixo nível surge um nível estilístico dentro do qual o cenário da vida corrente merece uma representação mais exata e séria estendendose para o alto por vêzes até o trágico quase tocando por baixo em outras ocasiões o satíricomoralista tratando com penetração bem maior do que antes o imediato da existência humana o corpo ralsensível o doméstico o gôzo diário da vida a sua decadência e o seu fim e com isto tudo não se receia procurar os efeitos mais crus O presente sensível que aparece graças a isto movimentase inteiramente nas formas estamentais de então mas também se manifesta em tôda parte como uma realidade geral que une a todos os sêres humanos pelas condições vitais criaturais comuns la condition de lhomme como mais tarde será dito Já a partir do século XIV encontramse exemplos dêste realismo imediato mais sensível e exato São numerosos na obra de Eustache Deschamps e Froissart narra episódios nos quais se trata da vida e da morte com uma circunstancialidade sensível que não difere muito da forma como La Sale relata a morte do jovem du Chastel Quando os seis burgueses mais distintos de alais vestidos somente com calça e camisa com uma corda no pescoço e as chaves da cidade na mão ajoelhamse diante do rei da Inglaterra que quer executálos ouvimos ranger os ilcntcs dêste último a rainha que se joga aos seus pés pedindo clemência pelos prisioneiros está em avançado estado de gravi dez e êle concede a graça de mêdo que ela sofra algum dano no seu estado dizendo Ha dame jaimasse trop mieux que vous fussiez autre part que ci Chroniques I 321 Ainda mais marcantes no seu exato realismo são os episódios do ter ceiro livro que traiam da morte do jovem Gaston de Foix que forum udmirados por Rilke e aos quais Huizinga Outono da Idade Média p 404 reconhece força quase trágica relatase iiõlcN iicêrca de uma tragédia familiar na côrte de um princi pado do mil dii rritnça numa série de cenas extremamente plástica durai e nltidim em iodos os seus pormenores o vivís 222 MIMESIS simo conflito entre pai e filho adquire total imediatez nos quadros de costumes da côrte os dois príncipes que brincam e brigam entre si o duque com o seu galgo à mesa etc Durante o século XV o realismo tornase ainda mais sensível as côres tornamse ainda mais berrantes mas a representação permanece sempre dentro dos limites do estamental medieval e do cristão O aperfeiçoamento extremo de um realismo criatural que per manece totalmente no campo sensível e que apesar de todo o radicalismo dos sentimentos e da expressão não apresenta ne nhum traço de fôrça mentalmente ordenada ou de caráter revo lucionário nenhum vontade de formular o mundo terreno de outra forma diferente da que êle tem é encontrado em François Villon Aqui ainda se trata e isto é nitidamente reconhecível em Villon dos efeitos da mistura cristã de estilos sem ela a espécie de realismo que denominamos criatural não seria imaginável Mas êste realismo já se liberou do serviço ao pensamento ordena dor cristãouniversai não serve a nenhum pensamento ordenador tornouse independente tornouse fim em si mesmo No decor rer da nossa pesquisa já nos deparamos com um casal Adão e Eva no Mistério de Adão Lá a imitação imediata da realidade contemporânea servia a uma intenção atemporal e universal isto é à visualização da história da salvação e não ia além disto Mesmo agora o laço entre aquém e além entre o mundo terreno e a salvação eterna não está de forma alguma rôto a cria turalidade inclui forçosamente uma tal referência à ordem divina apelase constantemente à mesma aliás o século XV é justamente a época das grandes representações dramáticas da Paixão e está sob a impressão de uma mística que se regala com quadros criaturaisrealistas mas o acento mudou de lugar recai com fôrça bem maior sôbre a vida terrena e esta é contraposta com maior chamatividade e efetividade contra a decadência ter rena e contra a morte do que contra a salvação eterna O pro cesso de visualização dedicase agora muito mais imediatamente aos acontecimentos terrenos penetra no seu conteúdo sensível procura o seu suco e o seu tempêro procura a alegria e o tor mento que brotam imediatamente da própria vida terrena Com isto a arte realista adquiriu um círculo ilimitado de matérias assim como possibilidades de expressão muito mais sutis Mas o seu desenvolvimento limitase nesta época ao sensível enquanto as velhas ordens se decompõem lentamente não há no realismo francoborgonhês nenhum germe para a construção de uma nova ordem o realismo é pobre de pensamentos incapaz de uma ideo logia construtiva e não tem vontade para tanto ela exaure a realidade do quer existe e do que está em processo de decomposi ção ela a exaure até o fundo de tal forma que os sentidos e o sentimento por êles excitado podem degustar a vida imediata c não quer mais nada A própria sensualidade é estreita apesar dc tôda a intensidade da sua expressão o seu horizonte é limitado nenhum dos escritores dêstes círculos culturuis vê e domina tôilii MADAME DU CHASTEL 223 a realidade universal como Dante ou até Boccaccio cada um só conhece o seu próprio campo e êste é limitado mesmo no caso daqueles que como Antoine de la Sale viajaram muito É necessária uma ideologia uma vontade ativa de conferir uma forma ao mundo para que a capacidade de entender e reproduzir os fenômenos da vida ganhe a fôrça necessária para atravessar os limites do estreito campo da vida individual A morte do pe queno du Chastel ou do príncipe Gaston de Foix não apresentam nada além das experiências muito concretas da juventude do en rêdo e da morte cruel quando tudo passou nada fica ao leitor afora o horror sensível por assim dizer carnal diante da vivên cia da caducidade afora isto os narradores nada mais oferecem nenhum juízo que tenha pêso nenhuma perspectiva nenhuma ideologia e até mesmo a sua psicologia amiúde muito penetran te dirigida para o imediato para a coisa em si lembrese a conversação entre marido e mulher nas Quinze Joyes é muito mais criatural que individual É evidente que necessitavam da ex periência sensível que o seu círculo vital lhes oferecia e que por outro lado não almejavam ir além pois que todo e qual quer círculo vital oferece material suficiente em quanto a des tinos criaturais Boccaccio era conhecido na França sobretudo pela tradução de Laurent de Premierfait 1414 e talvez con temporâneamente com o Réconfort surgiu nos círculos borgo nheses uma coleção de narrativas segundo o modêlo do Deca meron as Cent Nouvelles Nouvelles edição de Th Wright Paris 185758 Mas a peculiaridade de Boccaccio não é imitada e provàvelmente nem é percebida As Cent Nouvelles são uma coleção de estórias fortes que é servida a um grupo de senhores c êstes senhores ainda que sejam de estado cortês e do alto feu dalismo alguns até de famílias principescas sentemse perfeita mente à vontade na atmosfera do estilo burlesco popular nada sobrou do elegante e humanista estilo médio de Boccaccio nem da sua doutrina amorosa do seu serviço de damas da perspecti va humana crítica e dominadora de um campo muito amplo do Decameron da diversidade dos seus cenários e dos seus relatos vitais evidentemente a linguagem também é saborosa e expres siva mas carece de tôda transformação humanista e é tudo me nos poética a prosa de Alain Chartier falecido cêrca de duas décadas antes é bem mais elegante e cuidada do ponto de vista do ritmo Entre as estórias encontrase uma grande quantidade que trata de motivos já tratados pelo Decameron o motivo do arcanjo Gabriel encontrase como na 14 novela na seguinte for ma um eremita com a ajuda de um bastão ôco que faz passar pela parede durante a noite incute numa viúva beata repetidas vôzes a ordem divina segundo a qual ela deve levar sua filha ao eremita desta união surgiria uma criança eleita para a dignidade papal c para a reforma da Igreja a viúva e a filha obedecem à ordem o eremita faz com que o seu consentimento lhe seja arrancado com dificuldade mas depois de êle se ter deleitado duriintc um Icnipo com a menina esta fica grávida e dá à luz 224 MIMESIS uma menina A novela está muito grosseiramente composta tripla ordem noturna tripla visita do eremita as caracteriza ções da mulher da filha e do eremita comparadas com as de Frate Alberto e Lisetta são meramente criaturais isto é não são de forma alguma carentes de vivacidade antes pelo con trário são bem autênticas mas sem qualquer individualização a estória tôda é bastante eficaz como reprodução sensível de um acontecimento cômico contém muito humor popular e idiomá tico la vieille de joye emprise cuidant Dieu tenir par les piez mas é também incomparàvelmente mais crua mais estreita de nível ideológico e formal muito mais baixo do que Boccaccio O realismo da cultura francoborguinhã do século XV é portanto estreito e medieval não tem nenhuma ideologia nova eonformadora do mundo terreno e dificilmente percebe que as ordens medievais estão perdendo gradativamente as suas forças construtivas ela apenas percebe como estão se executando mo dificações importantes na estrutura da vida e fica muito atrás quanto à amplidão do seu horizonte quanto à cultura da língua e quanto à fôrça formativa daquilo que já tinha sido criado um século antes pelo apogeu italiano do fim da Idade Média e do primeiro humanismo através de Dante e de Boccaccio Contudo nela ressaltou um aprofundamento do elemento sensívelcriatural e esta herança cristã foi por ela guardada e levada até o Renas cimento Na Itália Boccaccio e o primeiro humanismo não mais sentiam aquela seriedade criatural na experiência da vida na própria França e em tôda parte ao norte dos Alpes todo rea lismo sério estava ameaçado de morte por sufocação causada pela trepadeira da alegoria mas a fôrça espontânea do sensível era mais forte e desta forma o realismo medievalcriatural alcan çou o século XVI conferiu ao Renascimento um forte contra pêso oposto às fôrças separadoras dos estilos que brotaram da imitação humanista da Antigüidade O Mundo na Bôca de Pantagruel No trigésimosegundo capítulo do seu segundo livro I I que foi porém escrito e publicado como primeiro I I Rabelais narra como o exército de Pantagruel em I I campanha contra o povo dos Almirodes os salga dos é surprêso no meio do caminho por uma forte chuva como Pantagruel ordena que êles se ponham uns bem juntos dos outros pois êle vê por cima das nuvens que se trata de uma chu va passageira enquanto isso êle lhes dará abriga Então põe a língua de fora seulement à demi e os cobre como uma ga linha os seus pintinhos Só o próprio narrador je qui vous fais ces tant véritables contes que já antes encontrara proteção em outro lugar e que ora sai de onde está não encontra mais lugar embaixo da línguatelhado Doncques le mieulx que je peuz montay par dessus et che minay bien deux lieues sus sa langue tant que entray dedans sa bouche Mais ô Dieux et Deesses que veiz je là Jupiter me confonde de sa fouldre trisulque si jen mens Je y cheminoys comme lon faict en Sophie à Constantinoble et y veiz de grans rochiers comme les mons des Dannoys je croys que cestoient ses dentz et de grands prez de grandes forestz de fortes et grosses villes non moins grandes que Lyon ou Poic ticrs Le premier que y trouvay ce fut un homme qui plantoit des choulx Dont tout esbahy luy demanday Mon amy que fois tu icy Je plante distil des choùlx Et à quoy ny comment disje Ha Monsieur distil chascun ne peut avoir les couillons aussi pesant quun mortier et ne pouvons estre tous riches Je guigne ainsi ma vie et les porte vendre au marché en la cité qui est icy derrière Jésus disje il y a icy un nouveau mon de Certes distil il nest mie nouveau mais lon dist bien que hors dicy y une terre ncuivc où ilz ont et soleil et lune 226 MIMESIS et tout plein de belles besoignes mais cestuy cy est plus ancien Voire mais disje comment a nom ceste ville où tu portes vendre tes choulx Elle a dist il nom Aspharage et sont chris tians gens de bien et vous feront grande chere Bref je deli beray dy aller Or en mon chemin je trouvay un compaignon qui tendoit aux pigeons auquel je demanday Mon amy dont vous viennent ces pigeons icy Cyre dist il ils viennent de laultre monde Lors je pensay que quand Pantagruel basloit les pigeons à pleines volées entroyent dedans sa gorge pensans que teust un colombier Puis entray en la ville laquelle je trouvay belle bien forte et en bel air mais à lentrée les portiers me demandèrent mon bulletin de quoy je fuz fort esbahy et leur demanday Messieurs y a il icy dangier de peste O Seig neur dirent ilz lon se meurt icy auprès tant que le charriot court par les rues Vray Dieu dis je et où A quoy me di rent que cestoit en Laryngues et Pharyngues qui sont deux grosses villes telles que Rouen et Nantes riches et bien mar chandes et la cause de la peste a esté pour une puante et infecte exhalation qui est sortie des abysmes des puis na gueres dont ilz sont mors plus de vingt et deux cens soixante mille et seize personnes despuis huict jours Lors je pensé et calculé et trouvé quî cestoit une puante halaine qui estoit venue de lestomach de Pantagruel alors quil mangea tant daillade comme nous avons dict dessus De là partant passay entre les rochiers qui estoient ses dentz et feis tant que je montay sur une et là trouvay les plus beaux lieux du monde beaux grands jeuz de paulme belles galeries belles praries force vignes et une infi nité de cassines à la mode italicque par les champs pleins de delices et là demouray bien quatre moys et ne feis oncques telle chere pour lors Puis descendis par les dentz du derrière pour venir aux baulièvres mais en passant je fuz destroussé des bri gans par une grande forest que est vers la partie des aureilles Puis trouvay une petite bourgade à la devallée jay oublié son nom où je feiz encore meilleure chere que jamais et gaignay quelque peu dargent pour vivre Sçavezvous comment A dormir car lon loue les gens à la journée pour dormir et gai gnent cinq et six solz par jour mais ceulx qui ronflent bien fort gaignent bien sept solz et demy Et contois aux senateurs com ment on mavoit destroussé par la valée lesquelz me dirent que pour tout vray les gens de delà estoient mal vivans et bri gans de nature à quoy je cogneu que ainsi comme nous avons les contrées de deçà et delà les montz aussi ont ilz deçà et delà les dentz mais il fait beaucoup meilleur deçà et y a meilleur air Là commençay penser quil est bien vray ce que lon dit que la moytié du monde ne sçait comment lautre vit veu que nul avoit encores escrit de ce pais là ausquel sont plus de XXV royaulmes habitez sans les desers et un gros bras de mer mais jen ay composé un grand livre intitulé lHistoire des Gorgias car ainsi les ayje nommez parce quilz demourent en la gorge de mon maistre Pantagruel Finablcment vouluz re O MUNDO NA BÔCA DE PANTAGRUEL 227 tourner et passant par sa barbe me gettay sus ses epaulles et de là me devallé en terre et tumbé devant luy Quand il me apperceut il de demanda Dont viens tu Alcofrybas Je luy responds De vostre gorge Monsieur Et depuis quand y es tu dist il Despuis dis je que vous alliez contre les Almyrodes Il y a dist il plus de six moys Et de quoy vivois tu Que beuvoys tu Je reponds Seigneur de mesme vous et des plus frians morceaulx qui passoient par vostre gor ge jen prenois le barraige Voire mais dist il où chioys tu En vostre gorge Monsieur disje Ha ha tu es gentil compaignon dist il Nous avons avecques layde de Dieu conquesté tout le pays des Dipsodes je te donne la châtellenie de Salmigondin Grant mercy dis je Monsieur Vous me faictes du bien plus que nay deservy envers vous Então trepei o melhor que pude por êle acima e andei boas duas léguas sôbre a sua língua até que enfim entrei na sua bôca Mas ó deuses e deusas o quê vi eu lá Júpiter me confunda com o seu raio tridente se eu minto Caminhei por ela como se faz em Santa Sofia em Constantinopla e vi lá grandes rochas grandes como as montanhas da Dinamarca acho que eram os dentes e grandes prados grandes florestas cidades fortes e grandes não menores do que Lyon ou Poictiers O primeiro que lá achei foi um homem que plantava repolhos Muito surprêso por isso pergunteilhe Meu amigo o que fazes aqui Eu planto diz êle repolhos E para que e como digo eu Ai senhor diz êle não todos podem ter os colhões pesados como morteiros e não podemos todos ser ricos Ganho a minha vida assim e os levo a vender no mercado na cidade que fica cá trás Jesus digo há aqui um nôvo mundo Bom diz êle não há nada de nôvo nêle mas bem que o pessoal diz que fora daqui há uma terra nova onde têm sol e lua e tudo cheio das melhores coisas mas esta aqui é mais velha Está certo digo eu qual é o nome da cidade onde levas teus repolhos para vender Ela se chama diz êle Aspárago e são cristãos gente de bem e vos receberão càlidamente Enfim decidi ir lá Ora em meu caminho encontrei um camarada que estava pondo armadilhas para pombos ao qual perguntei Meu amigo donde vêm estas pombas para cá Senhor diz êle vêm do outro mundo Então pensei que quando Pantagruel bocejava os pombos entravam em grandes revoadas na sua goela pensando que fôsse um colum bário Depois entrei na cidade a qual achei bela bem fortificada e com bons ares mas à entrada os guardas pediramme o meu passaporte com o que fiquei muito surprêso e lhes perguntei Senhores há por aqui perigo de peste Ah senhor disseram por aqui perto o pessoal morre tanto que o carroção corre pelas ruas sem parar Santo Deus digo e onde é isso Ao que me disseram que era em Laryngés e Pharyngés que são duas grandes cidades tais como Rouen e Nantes ricas e de bom comércio e a ciiusu da peste foi por uma fedorenta e infecta exalação que vinha dos abismos desde há pouco tempo atrás e da qual morreram mais de vinte e dois centos e sessenta mil e dezesseis pessoas em oito dias 1nlflo pensei e citlciilei e achei que era um hálito fedorento que tinha vindo do eHiAmiigo de Piinfugriiel depois que êle comera tanto alho conto diHscmo iicimu Suiiulo de lá passei entre as rochas que são 228 MIMESIS seus dentes e tanto fiz que acabei subindo num dêles e lá encontrei os mais belos lugares do mundo lindos e grandes jogos de bola belas galerias belas pradarias muitas vinhas e uma infinitude de casinhas à moda italiana pelos campos cheios de delícias e lá fiquei quatro bons meses e nunca vivi tão bem na minha vida como lá Depois desci pelos dentes de trás para chegar aos beiços de baixo mas de passagem fui roubado por bandidos em meio a uma grande floresta que fica perto da parte das orelhas Depois encontrei ainda uma pequena aldeia vale abaixo esqueci o seu nome lá passei melhor ainda e ganhei um pouco de dinheiro para viver E sabem como Dormindo porque lá pagam as pessoas por jornada para dormirem e ganham cinco ou seis sous por dia mas aquêles que roncam bem forte ganham seus bons sete sous e meio E contei aos senadores como tinha sido roubado no vale os quais me disseram e assegu raram que o pessoal de lá levava uma vida má e eram ladrões por natureza do que deduzi que assim como temos condados de aquém e além os montes também êles têm aquém e além os dentes mas a vida é bem melhor do lado de cá e o ar é bem melhor também Lá comecei a pensar que é bem verdade o que se diz que a metade do mundo não sabe como vive a outra metade E como ninguém jamais escreveu nada daqueles países lá os quais são mais de vinte e cinco reinos habitados sem os desertos e um grande braço de mar mas compus sôbre isso um grande livro intiulado A História de Goelas pois assim os chamei porque vivem na goela do meu mestre Pantagruel Finalmente eu também queria voltar e passando pela sua barba pulei sôbre os seus ombros e de lá desci à terra e tombei diante dêle Quando se apercebeu de mim perguntoume Donde vens tu Alcofribas E lhe respondo Da vossa goela senhor E desde quando estás aí diz êle Desde digo eu que vós marchastes contra os almirodes Disso já faz mais de seis meses diz êle E do que vivias O que bebias Respondo Senhor do mesmo que vós e dos mais saborosos bocados que pas savam pela vossa goela cobrava o direito de trânsito Muito bem diz êle mas onde cagavas Em vossa goela senhor digo eu Ah ah tu és um bom camarada diz êle Nós com a ajuda de Deus conquistamos todo o país dos Dipsódios doute a castelania de Salmigôndia Muito obrigado digo senhor Vós me fazeis um bem muito maior do que mereço O motivo desta divertida aventura não foi inventado pelo próprio Rabelais No livro popular sôbre o gigante Gargantua o exemplar que tenho diante de mim é de Dresden da edição de W Weigand da tradução de Gottlob Regis 3 edição Ber lim 1923 tomo 2 pág 398 ss c também a nota 7 na edição crítica de Abel Lefranc IV 330 narrase como os 2943 ho mens armados que devem estrangular Gargantua durante o sono caem dentro da sua bôca cujos dentes tomam por grandes ro chas e como mais tarde quando êle mata a sua sêde ao acor dar todos morrem afogados menos três que se salvam num dente ôco Também dentro de um dente ôco numa passagem posterior Gargantua guarda provisoriamente cinqüenta prisio neiros lá até encontram uma sala para jôgo de bola um jeu de paume para o seu divertimento O dente ôco é empregado por Rabelais numa outru passagem no trigésimooituvo capítulo O MUNDO NA BOCA DE PANTAGRUEL 229 do livro primeiro onde Gargantua engole seis peregrinos junto com um pé de alface Além desta fonte francesa lembra nesta passagem um autor antigo que êle muito apreciava Lu ciano que em suas Histórias Verdadeiras I 30 ss informa acêrca de um monstro marinho que engole um navio com todos os seus ocupantes na sua goela encontram florestas montanhas e lagos lá habitam diversos povos semianimalescos e também dois sêres humanos pai e filho que foram jogados para lá por um naufrágio 27 anos antes também êles plantam repolhos e elevaram um santuário a Posseidon Êstes dois modelos fo ram refundidos por Rabelais a seu modo de tal forma que em butiu na bôca do gigante do livro popular a qual apesar do seu monstruoso tamanho não perde totalmente o caráter de bôca o quadro paisagístico e social de Luciano êle até o exage ra 25 reinos com grandes cidades enquanto que Luciano se limitava a pouco mais de mil sêres fabulosos sem se preocupar muito aliás com o entrosamento dos dois motivos não há rela ção entre a medida do tamanho que uma bôca tão povoada pres supõe e a velocidade da viagem de retorno menor ainda é a relação com o fato de que o gigante o percebe após a sua volta e fala com êle e ainda menor a relação com as informações sôbre a sua alimentação e digestão durante a permanência no interior da bôca que parecem ter esquecido ou propositalmente calado a desenvolvida agricultura e economia que se encontra va no interior da bôca evidentemente a conversa com o gigan te que encerra a cena serve meramente para dar uma diver tida caracterização de Pantagruel que demonstra ter um so lícito interêsse pelo bemestar físico dos seus amigos especial mente pelo fornecimento de boa bebida e que premia bona chonamente a destemida confissão acêrca da digestão com a concessão de um castclanato embora o bom Alcofribas tenha escolhido durante a guerra um pôsto não muito arriscado A maneira pela qual o presenteado agradece eu não merecia isto não é neste caso mero palavreado mas corresponde estri tamente às circunstâncias Apesar da lembrança de modelos literários Rabelais cons truiu o mundo na bôca de uma forma que lhe é totalmente peculiar Alcofribas não encontra sêres fabulosos semianima Icscos e alguns poucos sêres humanos que se adaptam às cir cunstâncias com dificuldade mas uma sociedade e uma econo mia desenvolvidas nas quais tudo acontece como na terra dêle nu Frmiça Num primeiro instante surpreendese pelo fato de lá huver sêres humanos mas também e sobretudo pelo fato dc i i s coisas não serem lá estranhas e diferentes mas exatamen te do jeito que são no mundo ao qual estava habituado Isto comcça já com o primeiro encontro O que é espantoso para 61c nüo é só o fato de encontrar lá um homem antes já vira un cidades dc longe mas de êsse homem estar tranqüilamente plimhimlo repolhos como sc u gente estivesse cm Touraine Por isto xruunliilhc toiit exbahy Amigo o que estás fazendo 230 MIMESIS e recebe uma resposta do tipo que poderia também ter rece bido de um camponês de Touraine calma e sonsa assim como muitos tipos soem aparecer em Rabelais Je plante dist il des choulx Isto lembrame a fala de um menininho que certa vez ouvi falando pelo telefone pela primeira vez na sua vida para que a sua avó que vivia em outra cidade pudesse ouvir a sua voz respondeu à pergunta sôbre o que estava fazendo da se guinte forma orgulhosa e objetiva estou telefonando Aqui a situação é um pouco diferente o camponês não é somente in gênuo e limitado tem também o humor um tanto matreiro tão característico dos franceses e sobretudo de Rabelais Pressente muito bem que o visitante vem do outro mundo a respeito do qual também já ouviu alguma coisa mas assume a aparência de quem nada notou e responde à nova pergunta que é também uma exclamação de surpresa algo como mas como como é possível novamente de forma ingênua com uma suculenta expressão idiomática camponesa que informa quç êle não é rico graças aos repolhos que vende na cidade vizinha pode ganhar a vida Ora finalmente o visitante começa a entender a situação Jesus exclama isto aqui é um nôvo mundo Não nôvo êle não é diz o camponês mas as pessoas dizem que ha veria lá fora um nôvo mundo onde há sol e lua e em geral uma série de coisas muito boas mas êste daqui é mais velho O homem fala do nôvo mundo como as pessoas em Tou raine ou em qualquer outro lugar da Europa ocidental e central devem ter falado naquele tempo acêrca das terras recémdes cobertas América ou Índia mas também é o suficientemente esperto como para pressupor no estranho um habitante daquele outro mundo pois o acalma com respeito aos habitantes da ci dade são bons cristãos e não vos receberão mal com isto dá por certo e tem razão neste caso que a denominação bons cristãos constitui também para o visitante uma garantia tran quilizadora Em resumo êste habitante dos arredores de As párago comportase da mesma forma como um seu igual em Touraine e assim a coisa vai em frente freqüentemente inter rompida por explicações grotescas as quais novamente não respeitam as proporções pois quando Pantagruel abre a bôca que abriga tantos reinos e cidades as dimensões da abertura dificilmente permitiriam uma confusão com um pombal Mas o motivo tudo é como lá em casa permanece imutável Quan do à porta da cidade lhe é pedido o seu atestado de saúde por que nas grandes capitais da região grassa a peste isto é uma alusão à epidemia que grassou durante os anos 1532 e 1533 nas cidades do norte da França c a introdução de A Lefranc à sua edição crítica pág XXXI a bela paisagem montanhosa dos dentes mostra a imagem das culturas européias ocidentais e as casas rurais são construídas no estilo italiano que então também começava a ser moda na França e no lugarejo onde transcorre o último tempo da sua estada na bôca de Pantagruel afora a grotesca forma de se ganhar dinheiro dormindo à razão O MUNDO NA BÔCA DE PANTAGRUEL 231 de cinco ou seis sous por dia com pagamento extra para bons roncadores uma lembrança dos contos da carochinha as coi sas acontecem à maneira européia quando os senadores se com padecem dêle porque foi roubado enquanto estava a caminho numa floresta montanhosa dãolhe a entender que as pessoas do lado de lá não são senão bárbaros incultos que não sabem como viver do qual êle deduz que na goela de Pantagruel há países qus estão do lado de cá e do lado de lá dos dentes assim como nós temos países que estão aquém e além das montanhas Enquanto Luciano transmite essencialmente uma fantás tica aventura de viagens e o livro popular só tem em mira a grotesca intensificação das proporções Rabelais faz com que joguem entre si constantemente diversos cnários diversos mo tivos vivenciais e diversos campos estilística Enquanto Alco fribas o abstractor da quintessência realiz a sua viagem de descoberta pela bôca de Pantagruel êste e o seu exército fazem a guerra contra os almirodes e os dispódios e na própria viagem de descoberta misturamse pelo menos três diferentes catego rias de experiência A moldura é dada pelo grotesco motivo das monstruosas proporções que não é perdido de vista em nenhum instante e que é retomado uma e outra vez mediante idéias absurdocômicas sempre novas pelas pombas que voam bôca adentro quando o gigante boceja pela explicação da peste em base à refeição de alhos que faz surgir vapores venenosos das profundezas do estômago de Pantagruel pela transforma ção dos dentes numa paisagem montanhosa pela forma da viagem de regresso e pela conversa final No meio disto po rém ressoa um tema totalmente diferente e nôvo de grande utualidade naquele tempo o tema do descobrimento de um nôvo mundo com tôda a surpresa o deslocamento do horizonte e a mudança da imagem do mundo que seguiram a tal desco brimento Êste é um dos grandes temas do Renascimento e dos dois séculos seguintes um dos motivos que serviram de ulavanca para a revolução política religiosa econômica e filo sófica Sempre reaparece quer os escritores façam uma ação se desenrolar naquele mundo ainda nôvo e semidesconhecido enquanto lá constroem uma situação mais pura e primordial do que a européia o que lhes permite uma forma eficaz e ao mesmo tempo um tanto graciosamente velada de crítica às si tuações locais quer introduzam um habitante daqueles estranhos países no mundo europeu fazendo então brotar a sua crítica sôbrc a situação européia constituída da sua ingênua surprêsa ou cm geral das suas reações diante do que vê na Europa em limbos os casos o motivo tem uma fôrça revolucionária uma fcVçu que sacode a situação existente pondoa num contexto iniiis amplo c tendo portanto um efeito relativizante No tre cho que transcrevemos Rabelais só fêz alusão a isso tudo não o executou u surprêsa de Alcofribas ao ver o primeiro orícola pertence a esta categoria de experiências e sobretudo a refle xfto que In uo fim da sua viagem então entendi como 6 ver 232 MIMESIS dade quando dizem que metade do mundo não sabe como vive a outra metade Encobre o motivo imediatamente com outras piadas grotescas de tal forma que no episódio todo não predomina Mas lembrese que Rabelais chamou o país dos seus gigantes inicialmente de Utopia um nome que pediu em prestado da obra de Thomas Morus aparecida dezesseis anos antes homem ao qual dentre todos os seus contemporâneos talvez mais devesse e que foi um dos primeiros a empregar o motivo do país longínquo na forma modelarreformista acima descrita Não é só o nome o país de Gargantua e Pantagruel com as suas formas de vida política religiosa e pedagógica não só se chama mas é Utopia um país longínquo ainda não bem descoberto um país que como o de Thomas Morus fica em algum lugar do longínquo Oriente embora às vêzes é claro pa reça poder ser encontrado em plena França Voltaremos a isto Baste isto acêrca do segundo dos motivos que se entrelaçam em nosso texto êle não se pode desenvolver livremente aqui em parte porque as grotescas piadas do primeiro o atrapalham cons tantemente em parte porque é imediatamente aprisionado e paralisado por assim dizer pelo terceiro motivo o motivo tout comme chez nous O mais surpreendente e absurdo dês te mundo goelano é justamente o fato de que não é totalmente diferente do nosso mas igualzinho ao nosso tintim por tintim superior ao nosso na medida em que tem conhecimento do nosso enquanto nós nada sabemos dêle mas no restante é totalmente igual Assim Rabelais tem a oportunidade de trocar os papéis isto é de fazer aparecer o cultivador de repolhos co mo europeu nato que recebe o estranho vindo do outro mundo com ingenuidade européia antes de mais nada tem a oportuni dade de desenvolver uma cena realista e quotidiana isto é um terceiro motivo que não casa com os outros dois a grotesca farsa do gigante e o descobrimento de um nôvo mundo e que está em contradição absurda proposital com os outros dois por tanto toda a maquinaria das proporções monstruosas e da audaz viagem de descoberta só parece ter sido posta em movi mento para nos apresentar um camponês de Touraine plantando repolhos Assim como os níveis de cenário e os motivos tam bém os estilos mudam o que predomina correspondendo ao motivo grotesco emoldurante é o nível estilístico grotescocô mico e baixo a saber na sua forma mais enérgita na qual des filam as expressões mais fortes trançados junto e dentro disto aparecem relatos objetivos relampejam pensamentos filosóficos e em meio a tôda a engrenagem grotesca elevase o espectro criatural da peste durante a qual os mortos são levados às car retas das casas Esta espécie de mistura de estilos não foi inven tada por Rabelais contudo êle a pôs a serviço do seu tempera mento e dos seus fins mas a sua origem paradoxalmente está nos sermões de fins da Idade Média nos quais a tradição cristã da mistura de estilos tinha se exacerbado até o extremo êstes sermões são simultaneamente populares na mais crua das uccp O MUNDO NA BOCA DE PANTAGRUEL 233 ções criaturalmente realistas e sábios e edificantes no sentido bíblicofiguralinterpretativo A partir do espírito dos sermões de fins da Idade Média e sobretudo a partir da atmosfera que envolvia as ordens mendicantes populares no bom e no mau sen tido do têrmo esta mistura de estilos foi retomada pelos hu manistas especialmente para os seus escritos polêmicosatíricos contra a Igreja da mesma fonte Rabelais a hauriu com maior pureza do que êles pois que na sua juventude tinha sido franciscano estudou esta forma de vida e de expressão na fonte e apropriouse delas à sua maneira não pôde mais se separar dela por mais que odiasse a ordem mendicante tanto mais sua espécie estilística saborosa e criatural visualizadora até 0 farsesco correspondia ao seu temperamento e à sua intenção e ninguém soube tirar dela como por encanto tanto quanto êle Esta filiação foi comprovada para todos os que até então não a viram com nitidez por E Gilson no seu belo ensaio Rabelais franciscain ainda voltaremos a esta questão estilística A passagem que aqui comentamos é relativamente simples É comparativamente fácil de visualizar o jôgo entre os cená rios os motivos e os níveis estilísticos e a análise não requer complicadas investigações Outras passagens são muito mais complicadas por exemplo aquelas nas quais Rabelais desabafa a sua erudição os seus milhares de alusões a coisas e pessoas contemporâneas e os seus furacões formadores de palavras Nossa análise permitiu com meios limitados reconhecer um princípio essencial para o seu modo de ver e de apreender o mundo o princípio do redemoinho baralhador que mistura as categorias do acontecer da experiência dos campos do saber das proporções e dos estilos Os exemplos para o conjunto ou para o particular podem ser multiplicados à vontade na sua obra Abel Lefranc demonstrou que os acontecimentos do livro primeiro sobretudo a guerra contra Picrochole se desenvolvem nas poucas milhas quadradas de uma zona que rodeia La Devi niòrc uma propriedade da família paterna de Rabelais mas também quem não sabe ou sabia disto tão pormenorizadamente sente que os nomes dos lugares e alguns acontecimentos agradà velmente locais que ocorrem antes e depois da guerra suge rem um local limitado e provinciano Enquanto isso marcham exércitos de centenas de milhares de soldados e gigantes em cujos cabelos se prendem como sevandijas as balas de canhão participam da luta enumerase o equipamento bélico e as pro visões em quantidades tais que na época não poderiam ter sido juntadas por nenhum grande reino só a quantidade de soldados que penetram na vinha do mosteiro de Seuillé e que lú são liquidados por Frère Jean é especificada como sendo de 1 V622 sem contar mulheres e crianças pequenas O motivo ilus medidas gigantescas serve a Rabelais para a obtenção de eleito de contraste em perspectiva que estremecem o equilíbrio do leitor mediante um humor com segundas intenções o leitor loiiitmitcniciitc jogmlo para cá e para lá entre formas de vida 234 MIMESIS provincianamente saborosas e confortáveis e acontecimentos mons truosos e grotescamente suprareais aiém de pensamentos utó picohumanitários nunca deve poder chegar a descansar no ní vel habitual dos acontecimentos Também os elementos forte mente realistas ou obscenos tornamse pelo tempo do discurso e das alusões que se seguem umas às outras um redemoinho es piritual as tempestuosas gargalhadas que tais passagens ocasio nam estremecem todos os conceitos da ordem costumeira da quele tempo Quando se lê um texto curso como por exemplo o discurso do irmão Jean des Entommeures no princípio do 42 capítulo do l9 livro encontrase nêle duas piadas fortes A primeira referese à bênção que protege contra a artilharia pe sada Frère Jean não diz apenas que não acredita nessa bênção mas muda brincalhonamente o nível de visão colocase no nível da Igreja que exige a fé como condição para o auxílio divino e diz a partir desta perspectiva a bênção de nada me servirá pois nela não tenho fé A segunda piada referese aos efeitos do hábito monacal frei João começa com a ameaça dc pôr o seu hábito sôbre qualquer um que se mostre covarde Naturalmen te achase num primeiro instante que se trata de um castigo ou de uma humilhação seria como se fôssem negadas as qua lidades masculinas a quem fôsse assim vestido Mas não é assim num abrir e fechar de olhos muda o ponto de vista o hábito é um remédio para homens pouco masculinos tomam se homens na hora de vestilo o que quer dizer com isto é que a privação acarretada pelo voto monacal e pelas prescrições referentes à vida monacal não faz senão exacerbar as capaci dades masculinas tanto o valor como a potência sexual e encerra o seu discurso com a anedota do galgo desancado do senhor de Meurle que foi coberto com um hábito dessa hora em diante não perdia rapôsa nem lebre e cobriu tôdas as cade las das redondezas embora antes fizesse parte dos frigidis et maleficiatis êste é um dos títulos decretais Ou leiase a muito extensa apresentação dos objetos que podem servir para a limpeza do ânus com a qual o jovem Gargantua nos regala no 139 capítulo que riqueza de improvisações Aqui há poe mas e silogismos medicina zoologia e botânica sátira do tem po e história das vestimentas no fim a êxtase que as vísceras comunicam ao corpo todo quando o procedimento em questão é levado a cabo com um jovem gansinho vivo e de suave pluma gem é comparada com a bemaventurança dos heróis e dos semi deuses nos Campos Elísios e Grandgousier compara a sagaci dade demonstrada pelo seu filho nesta ocasião com a do jovem Alexandre na conhecida anedota de Plutarco que narra como sò mente êle conseguiu descobrir o motivo do espanto de um cavalo o mêdo diante da sua própria sombra Observamos algumas pas sagens a êsmo nos livros posteriores No capítulo 319 do 39 livro o médico Rondibilis inquirido por Panurgo por causa dos seus pla nos matrimoniais enumera os meios que mitigam o impulso se xual demasiado intenso primeiro o consumo exagerado do vi nho segundo certos produtos medicinais terceiro Iriibulho fí O MUNDO NA BOCA DE PANTAGRUEL 235 sico contínuo quarto intenso estudo espiritual cada um destes quatro remédios é analisado com uma imensa demons tração de erudição médica e humanista ao longo de muitas pá ginas enquanto as enumerações anedotas e citações chovem como garoa fina quinto continua Rondibilis o ato sexual Alto diz Panurgo é isto o que eu estava esperando êste remé dio é bom para mim que os outros fiquem para quem tenha vontade Sim diz o irmão João que ficou ouvindo êste re médio era chamado pelo irmão Scyllino prior de São Victor junto a Marselha a mortificação da carn e Tudo não é senão uma brincadeira maluca mas Rabelais a encheu das suas pilhérias sempre em mudança que chacoalham propositalmente os campos do saber e do estilo Não é diferente o que se dá com a grotesca defesa do juiz Bridoye capítulos 3942 do mesmo livro que elaborava esmeradamente os seus processos deixavaos descansar durante longo tempo e depois os julgava com um lance de dados e assim durante quarenta anos pro nunciou sòmente sentenças sábias e justas Neste discurso mis turamse os desatinos senis e sabedoria da vida cheia de ironia e de segundas intenções são contadas as mais belas anedotas tôda a terminologia jurídica é derramada sôbre o leitor em gro tescas cascatas de palavras e tôda afirmação evidente ou absur da é acompanhada de um monte de citações cômicas do direito romano ou dos glossários é uma demonstração pirotécnica de graça experiência jurídica e humana sátira do tempo e histó ria dos costumes uma educação para o riso para a rápida mu dança do ponto de vista para a riqueza de modos de ver Escolhamos finalmente do quarto livro a cena do navio onde Panurgo regateia com o comerciante Dindenault por cau sa de um carneiro capítulo 6989 Esta é em tôda a obra de Rabelais talvez a cena mais forte que apresenta um jôgo entre dois homens O dono do rebanho de carneiro Dinde nault comerciante da Saintonge é um homem colérico e en fatuado mas possui a graça engenhosa idiomática e cheia de segundas intenções que é característica de quase tôdas as per sonagens de Rabelais já no primeiro encontro agrediu o tra vêsso Panurgo de forma tão grosseira que sem a intervenção do patrão do navio e de Pantagruel teria havido a maior pan cadaria Depois aparentemente reconciliados sentamse com os outros para beber vinho quando Panurgo lhe pede que lhe venda um carneiro Então Dindenault começa a se gabar da sua mercadoria ao longo de muitas páginas e recai mais ainda do que antes numa fanfarronice que fere Panurgo a quem trata com uma mistura de desconfiança desfaçatez bonomia c desdém como a um bôbo ou a um trapaceiro que nem me rece tal mercadoria digna de um rei Panurgo pelo contrário permanece desta vez cortês e calmo repetindo sòmente de cada vez o pedido de um carneiro Finalmente cedendo às picssòes dos circunstantes nimlenuult diz um preço bem sal KihId quando Punuio o avisa que iniiis de um não teve sorte 236 MIMESIS quando tentou ficar rico demasiado depressa Dindenault tem um ataque de raiva e de vitupérios Está certo diz Panurgo paga o preço escolhe um carneiro grande e bonito e enquanto Dindenault continua a troçar dêle joga o animal subitamente ao mar Todo o rebanho pula atrás o desesperado Dindenault procura detêlos mas é em vão é arrastado por um bode muito forte e morre afogado na mesma posição em que outrora Ulis ses fugira da caverna de Polifemo a mesma sorte têm os seus pastores e peões Panurgo armado de um longo remo im pede que aquêles que querem se salvar atinjam o navio e pro fere um belo discurso dirigido aos moribundos acêrca da bem aventurança da vida eterna e a miséria da vida terrena Assim esta brincadeira acaba de forma feroz e um tanto atemoriza dora considerandose o grau da necessidade de vingança de Panurgo que sempre está de bom humor Mas é sempre uma brincadeira dentro da qual Rabelais como de costume enfiou um monte de erudição grotesca e colorida desta vez sôbre os carneiros a sua lã a sua pele os seus intestinos a sua carne e tôda uma outra série das suas partes tudo ornado como de costume também com mitologia medicina e estranhas magias químicas Mas êste colorido mecanismo de engenhosidades que Dindenault apresenta durante a sua louvação dos carneiros não é desta vez a coisa principal mas é a ampla autorepre sentação da sua essência que motiva a forma da sua destruição é enganado e morre porque não sabe mudar de posição nem de atitude e porque na sua bitolada estupidez e fanfarronice co mo Picrochole ou écolier limousin corre limitadamente e ce go para o mundo sempre na mesma direção nem chega a pen sar que Panurgo poderia ser mais esperto do que êle que pode ria sacrificar algum dinheiro para ter oportunidade de se vingar A limitação a incapacidade de se adaptar a bitolação e as vi seiras que impedem a visão da multiplicidade da realidade tudo isto são vícios para Rabelais Esta é a forma de estupidez que escarnece e persegue Quase todos os elementos que se unificam no estilo de Ra belais são conhecidos a partir dos últimos séculos da Idade Média As farsas grosseiras a visão criatural do corpo humano a falta de vergonha e de descrição no campo sexual a mistura de uni tal realismo com conteúdos satíricos ou didáticos a erudição informemente amontoada e às vêzes abstrusa o emprêgo de figuras alegóricas nos livros posteriores isto tudo e mais ainda encontrase também na tardia Idade Média e poderia chegar a existir a tentação de pensar que aqui o nôvo só consistiria na desacostumada intensificação e concentração Só que isto dei xaria de lado o essencial a maneira como os elementos men cionados são intensificados e redemoinhados resulta numa mis tura totalmente nova e a intenção que Rabelais persegue estú como se sabe em oposição diametral com a ideologia medieval isto também confere um outro sentido aos elementos isolados As obras da tardia Idade Média são estamentiiis gcoirÍki O MUNDO NA BÔCA DE PANTAGRUEL 237 cosmológica religiosa e moralmente fortemente emoldurados dão das coisas só um aspecto caso por caso quando têm a ver com uma multiplicidade de aspectos procuram forçála na forte moldura da ordem geral Todo o esforço de Rabelais di rigese para o jôgo com as coisas e com a multiplicidade de vi sões posíveis e para atrair o leitor acostumado a determinadas maneiras de ver o mundo através do redemoinho dos fenô menos para que se aventure sôbre o grande mar do mundo sôbre o qual pode nadarse livremente e também em direção a todo e qualquer perigo Pareceme que não se está apontando exatamente para o essencial quando como certos críticos se dá valor decisivo à separação de Rabelais do dogma cristão cer tamente não é mais um crente no sentido da Igreja mas está muito longe de se fixar como um iluminista dos tempos pos teriores a determinadas formas da falta de fé também não se deve tirar conclusões demasiado amplas da sua sátira de obje tos cristãos pois neste sentido já a Idade Média oferece exem plos que não se diferenciam essencialmente das suas piadas blas femas O elemento revolucionário da sua ideologia não está propriamente no que ela tem de anticristão mas no que oferece de afrouxamento da visão do sentir e do pensar pro duzido pelo seu constante jôgo com as coisas e que convida o leitor a entrar em relação imediata com o mundo e com a ri queza dos seus fenômenos Num ponto é claro Rabelais se fixou e o fêz de uma forma essencialmente contrária ao cris tianismo para êle o homem que obedece à natureza e a vida natural seja dos homens ou das coisas são bons nem seria necessário o reforço expresso desta sua convicção que dá com a fundação da abadia de Thélème pois ela fala de cada uma das linhas da sua obra Com isto está relacionando o fato de que o seu tratamento criatural do homem não mais tem como o rea lismo correspondente de fins da Idade Média como seu tom básico o caráter lastimoso e passageiro do corpo e de todo o terreno em geral o realismo criatural adquiriu com Rabelais um sentido totalmente nôvo violentamente oposto ao sentido medieval o do triunfo vitalistadinâmico da corporalidade e das suas funções Com Rabelais não há mais pecado original nem Juízo Final e portanto também não mais há nenhum mêdo metafísico da morte Como parte da natureza o homem se alegra da sua vida palpitante das funções do seu corpo e das fôrças do seu espírito e como as outras criações da natureza 6 vítima da dissolução natural O amor de Rabelais pertence à vida palpitante do homem e da natureza a êles a sua sêde de Miber e a sua fôrça de imitação lingüística por sua causa tor nase poeta pois isto êle é até poeta lírico ainda que não sen timental A sua imitação realista vai para a vida terrena triun linte e isto é totalmente anticristão isto é também tão oposto i ideologia que ressoa 110 realismo criatural da tardia Idade Média que é j m l m n c n l c n o s iniços medievais do seu estilo que 238 MIMESIS se manifesta de forma mais concludente o seu afastamento da Idade Média êles mudaram totalmente de fim e de função A dissolução e a unificação do homem no mundo natural o triunfo do animalescocriatural permitem também observar com maior exatidão como é multívoca e portanto como dá lugar a malentendidos a palavra individualismo que muito amiúde e sem dúvida sem falta de justificativa foi empregada em relação ao Renascimento Indubitàvelmente o homem de Rabelais está mais aberto a tôdas as possibilidades com a sua visão do mundo que joga com todos os aspectos é mais livre no seu pensamento na asseveração dos seus instintos e desejos do que antes Mas é mais fortemente individual por causa disto tudo Isto não é fácil de estabelecer Pelo menos está menos prêso a sua essência peculiar é mais protéico mais inclinado a se enfiar numa outra pele e os traços comuns supraindividuais sobretudo os animalescos e instintivos são ressaltados muito fortemente Rabelais criou tipos muito marcados e unívocos mas não está sempre inclinado a fixálos univocamente fàcil mente começam a furtar côr imprevistamente uma outra pes soa nos olha do seu interior segundo a situação e o humor Quão fortemente mudam Pantagruel e Panurgo ao longo da obra E também no instante individual não se preocupa muito com a unidade da personagem quando mistura e remexe con fortável manha espirituosidade humanismo e crueldade esta última sempre aparecendo com o seu caráter naturalimpiedoso Se se chegar a comparar o grotesco mundo subterrâneo que êle apresenta no 30 capítulo do livro segundo no qual a si tuação e os papéis terrenos das personagens são postos de ponta cabeça com o além de Dante verificarseá quão sumàriamen te Rabelais procede com a individualidade humana divertese em emborcála De fato a unidade cristã da imagem do mundo e a conservação figurai da essência terrena na sentença divina conduzia para uma permanência muito forte e indestrutível do pessoal o que pode ser demonstrado com maior nitidez em Dante mas também aparece em outros casos é justamente isto que agora está em perigo quando a unidade e a imortalidade cristãs não mais dominam a imagem do homem A descrição do mundo subterrâneo que foi mencionada é também inspirada num diálogo de Luciano Menippus seu Ne cyomantia mas Rabelais levou a coisa muito mais longe e de forma muito mais colorida muito além dos limites de um gôsto mesurado A sua relação humanista com a literatura antiga aparece no seu imponente conhecimento dos autores que lhe fornecem seus motivos citações anedotas exemplos e compa rações na sua ideologia em questões políticas filosóficas e pe dagógicas a qual como a dos demais humanistas está sob influência do pensamento antigo e sobretudo na sua visão do homem libertada dos conceitos emoldurantes cristãos e esta mentais da Idade Média Mas nem por isso êle cube de forma alguma na moldura dos conceitos antigos a Antigüidade signi O MUNDO NA BOCA DE PANTAGRUEL 239 fica para êle libertação e ampliação do horizonte mas nunca uma nova limitação ou compromisso nada está mais longe dêle do que a antiga divisão dos gêneros estilísticos que levou na Itália já no seu tempo e logo mais na França ao purismo e ao classicismo Para êle não há medida estética tudo casa com tudo O real quotidiano está embutido na fantasia mais inverossímil a farsa mais grosseira está cheia de erudição e as elucidações filosóficomorais brotam de palavras e de estó rias obscenas Tudo isto é muito mais próprio da tardia Idade Média do que da Antigüidade pelo menos durante a Antigüi dade o dizer rindo a verdade não conheceu uma tal amplidão de ação para ambos os lados para isto carecia da mistura me dieval dos estilos Mas o estilo de Rabelais não é somente Ida de Média monstruosamente exacerbada Quando como um pregador da tardia Idade Média mistura erudição disformemen te amontoada com grosseira vulgaridade então a erudição não mais tem a função de apoiar um ensinamento doutrinal ou mo ral com a sua autoridade mas serve ao jôgo grotesco que faz aparecer como absurdo ou sem sentido tudo o que é apresen tado em cada caso ou pelo menos põe em dúvida o grau de seriedade que se teve em mente E também o seu caráter po pular diferenciase do medieval Não há dúvida que Rabelais é popular pois sempre é possível divertir muito um público inculto na medida em que conhece a língua com as suas es tórias mas os destinatários específicos da sua obra são uma elite espiritual não é o povo Os pregadores dirigiamse com fala vivaz a êste os sermões estavam destinados à apresentação imediata a obra de Rabelais pelo contrário estava destinada a ser impressa isto é à leitura e no século XVI isto ainda sig nifica que estava destinada a uma minoria muito restrita e mesmo dentro dela não se trata da mesma camada à qual esta vam destinadas as obras de literatura popular O próprio Rabelais manifestouse acêrca do nível estilístico da sua obra e não invocou para tanto modêlo medieval mas um modêlo antigo a saber Sócrates O texto é um dos mais belos e maduros da sua obra o prólogo ao Gargantua isto é ao livro primeiro o qual todavia como já foi dito somente foi escrito e publicado depois do segundo Beuveurs tres illus tres et vous Verolez tres précieux car à vous non a aultres xont dediez mes escriptz assim começa êste texto famoso comparável a uma abertura musical graças à sua riqueza de vozes c ao ressoar dos temas principais da obra Dificilmente um autor anterior terseia dirigido assim aos seus leitores e a vocação tornase ainda mais tremenda pela repentina aparição ilc um objeto que após tais acordes iniciais é o menos espe riulo de todos Alcibiades ou dialoge de Platon intitulé Le liancquet louant son precepteur Sócrates sans controverse prin te de phitosophes entre aultres parolles le dict estre semblable et Silenes O Haiuticlc dc Platão era para os místicos pla loniunlcN do Kciiiincimcnto puni o Hbertins spirituels na Itá 240 MIMESIS lia Alemanha e França algo assim como uma escritura sagrada é dêle que Rabelais tenciona narrar alguma coisa aos ilustres beberrões e aos mui preciosos venerianos já com a primeira frase é dado o tom da mais monstruosa e desmesurada mistura dos campos Logo mais segue uma paráfrase travêssa e gro tesca daquela passagem na qual Alcibíades compara Sócrates às estátuas de Sileno em cujo interior encontramse pequenas colunas estatuárias dos deuses êle seria como aquelas feio ridículo insignificante pobre desajeitado por fora uma figura grotesca e um mero bufão popular esta parte da comparação que Alcibíades só insinua brevemente na obra de Platão é desenvolvida amplamente por Rabelais mas no seu interior encontramse maravilhosos tesouros compreensão sôbrehumana virtude admirável valentia invencível incomparável sobrieda de constante contentamento perfeita firmeza incrível despre zo por tudo aquilo pelo qual os homens tanto fazem correm se esforçam lutam e viajam E qual é a minha intenção apro ximadamente assim continua Rabelais com êste prelúdio Que vós ao lerdes todos os divertidos títulos daquilo que escrevi seguese um desfile de grotescos títulos de livros não penseis que nêles só se encontram agradáveis tolices só coisas para rir e troçar Tão levianamente só segundo a impressão exterior não deveis julgar O hábito não faz o monge Deveis abrir o livro e sopesar cuidadosamente o que é apresentado dentro dêle vereis que o conteúdo possui um valor totalmente diferente da quilo que o continente prometia os objetos tratados não são de forma alguma tão tolos quanto o título fazia presumir E mesmo se no sentido textual do conteúdo ainda achardes bas tante matéria para rir da espécie que o título prometia não deveis contentarvos com isso deveis interpretálo com maior profundidade Já vistes alguma vez um cachorro que achou um osso com tutano Então tivestes a oportunidade de obser var com quanta unção o olha com quanto fervor o pega com quanta precaução o abocanha com quanta paixão o quebra com quanto esmêro o sorve Por que faz tudo isso o que espera de tanto esforço Só um pouco de tutano Mas é claro êste pouco é o alimento mais precioso e perfeito Seguindo o seu exemplo deveis ter um faro apurado para rastejardes êstes be los livros ces beaulx livres de haulte gresse para farejardes e valorizardes o seu conteúdo depois mediante a cuidadosa lei tura e constante meditação deveis quebrar o osso e dêle deveis sorver o tutano substancioso isto é aquêle ao qual aludo com os meus símbolos pitagóricos na esperança certa de que através dessa leitura adquirirdes prudência e valentia pois encontrareis nêle um gôsto muito mais belo e um ensinamento oculto que desvendarvosão profundos segredos e horrendos mistérios referentes tanto a nossa religião quanto a nossa política e economia Nas frases finais do prólogo Rabelais volta evidentemen te a puxar para o lado cômico tôda interpretação profunda nuis O MUNDO NA BOCA DE PANTAGRUEL 241 não pode haver nenhuma dúvida a respeito de que com o exemplo de Sócrates com a comparação dos seus leitores a um cachorro que quebra um osso e com a designação dos seus livros como livres de haulte gresse quis comunicar a respeito da sua intenção algo que muito lhe interessava A comparação de Sócrates com as figuras de Sileno que também é mencionada por Xenofonte parece ter feito uma profunda impressão no Renascimento Erasmo a utiliza nos Adagios e esta é talvez a fonte imediata de Rabelais ela fornece um conceito da perso nalidade e do estilo de Sócrates que parece justificar pela auto ridade da mais impressionante figura dos filósofos gregos a mistura dos campos herdada da Idade Média Também Mon taigne invoca Sócrates neste mesmo sentido como testemunha chave no livro terceiro no comêço do 129 ensaio o nível do tom desta passagem é totalmente diferente do de Rabelais mas a meta é a mesma a mistura de estilos Sócrates faict mouvoir son ame dun mouvement naturel et commun Ainci dict un paisan ainsi dict une femme Il na jamais en la bouche que cochers menuisiers savetiers et maçons Ce sont inductions et similitudes tirées des plus vulgaires et cogneues actions des hommes chacun lentend Sous une si vile forme nous neussions jamais choisi la noblesse et splendeur de ses conceptions admirables n Podemos deixar aqui de lado a questão de saber até que ponto Montaigne ou até Rabelais tinham razão ao apelar para Sócrates ao comunicarem a sua inclinação para um estilo forte e popular basta para nós que sob a idéia de um estilo socrá tico imaginavam algo livre sem constrangimento algo próxi mo da vida quotidiana e Rabelais até algo que se aproximava da bouffonerie ridicule en son maintien le nez pointu le re guard dun taureau le visaige dun fol tousjours riant tous jours beuvant dautant à un chascun tousjours se guabelant dentro do que se oculta tanto a sabedoria divina como a perfeita virtude Tratase de um estilo de vida tanto quanto de um estilo literário é como em Sócrates e também em Montaigne a expressão do homem Como nível estilístico esta mistura era excelentemente apropriada para Rabelais a partir já de um moti vo prático êste lhe permitia apresentar tudo o que pudesse ser chocante para as forças reacionárias da época sob uma meialuz entre o cômico e o sério o que em caso de necessidade lhe tornaria mais fácil eximirse de uma responsabilidade total Outrossim ela corresponde da maneira mais perfeita ao seu tem peramento do qual apesar de tôda a tradição da qual êle próprio era consciente ou não surgiu como fenômeno totalmente singu 3 Sócrates move n miu alma com um movimento natural e comum Assim fala um camponê nim fula uma mulher Jamais tem na bôc outra coisa onlo cocheiro marceneiros apnlelroí e pedreiros So induções e analogias tunda da nçftct mui vulgare e conhecida do homens todos o entendem Sob iimn formii Ao vil J i m i i n I icrfamo colhido a nobre e o esplendor das lia ttdmlrAvpl inm ciqfa 242 MIMESIS lar E sobretudo ela servia exatamente para a sua intenção a saber uma ironia produtiva que confunde os aspectos e as proporções habituais que faz aparecer a realidade na suprarea íidade a sabedoria na doidice a revolta na alegria confortável e saborosa de viver e que faz reluzir no jôgo das possibilidades a possibilidade da liberdade Não acho que seja feliz a idéia de procurar no sentido oculto isto é no tutano do osso algo definido exatamente descritível aquilo que se oculta na obra embora se comunique de mil maneiras é uma atitude de espí rito que o próprio Rabelais chama pantagruelismo uma forma de apanhar a vida que pega simultâneamente o espiritual e o sensível que não deixa escapar nenhuma das possibilidades que oferece Não é recomendável descrevêla mais pormenorizada mente porque isto obrigarnosia a concorrer com o autor êle próprio a descreve continuamente e o faz bem melhor do que nós Gostaria de acrescentar ainda uma só coisa isto é que a embriaguez do jôgo múltiplo nunca degenera na sua obra em fúria informe e com isto num caráter inimigo da vida por mais selvagem que seja a fúria às vêzes na sua obra em cada uma das linhas em cada uma das palavras ela se domina perfeitamente a si mesma A riqueza do seu estilo não é ilimitada a profundidade do sentimento ou a grande tragédia estão excluídas já pela moldura grotesca e não é verossímil que tivessem estado ao seu alcance Poderseia duvidar portanto se êle tinha realmente direito ao lugar que obteve na nossa pesquisa pois que o que estamos investigando é a unificação da quotidianidade com a seriedade trágica Com certeza ninguém poderá contestarlhe a quotidia nidade pois constantemente acomodada dentro do seu mundo suprareal êle a faz aparecer e é através dela que Rabelais se toma poeta O fato de que além de outras muitas coisas Rabelais foi um poeta lírico um poeta que cantou com muitas vozes as situações reais já foi freqüentemente notado e muitos são os trechos que foram citados para comproválo por exemplo no primeiro livro a magnífica frase no fim do AP capítulo que descreve a dança sôbre a relva Não nos queremos privar da citação de pelo menos um exemplo da sua polifonia líricoquo tidiana o poema dos carneiros que interpolou no curto instante entre o regateio e o inesperado arremêsso ao mar enquanto Dindenault faz troça de Panurgo ao seu modo largo divertido bôbo e desavergonhado IV 7 in finis Panurge ayant payé le marchant choisit de tout le trou peau un beau et grand mouton et 1emportoit cryant et bellant oyans tous les aultres et ensemblement bellans et regardans quelle part on menoit leur compaignon Panurgo tendo pago ao mercador escolheu dentre todo o rebanho um carneiro belo e grande e o carregou gritando e balindo O MUNDO NA BÔCA DE PANTAGRUEL 243 ouvindo isto todos os outros balindo juntos ficaram olhando para onde era levado o seu companheiro Esta oraçãozinha com os muitos particípios é uma ima gem e um poema Depois disto o tom e o tema são mudados Ce pendant le marchant disoit à ses moutonniers O quil a bien sceu choisir le challant Il se y entend le paillard Vrayement le bon vrayement je le reservoys pour le seigneur de Cancale comme bien cognoissant son naturel Car de sa nature il est tout joyeulx et esbaudy quand il tient une espaule de mouton en main bien seante et advenente comme une raquette gauschiere et avecques un cousteau bien tranchant Dieu sçait comment 1 sen escrime Entrementes o mercador dizia aos seus pastores Oh como soube escolher bem o cliente Êle entende da coisa o filho da puta Na verdade mas na verdade mesmo eu o reservava para o senhor de Cancale pois bem conheço o seu natural Porque pela sua natureza fica todo feliz e contente quando está com uma perna de carneiro na mão bem leve e ágil como uma raqueta basca e com uma faca bem trinchante Deus sabe que esgrima êle não faz A representação da natureza do senhor de Cancale oferece uma imagem totalmente diferente não menos impressionante sensual e engraçada no mais alto grau e ao mesmo tempo encai xandose perfeitamente no conjunto pois a ampla descrição de ulguém que é desconhecido para todos e das relações entre os dois ressalta ainda mais a enfatuação ampla porém divertida de Dindenault vrayement le bon vrayement Depois o carnei ro comprado é jogado ao mar e o tema lírico criant et bellant volta a ressoar de imediato começo do 89 capítulo Soubdain je ne sçay comment le cas feut subit je ne eus loisir le consyderer Panurge sans aultre chose dire jette en pleine mer son mouton criant et bellant Tous les aultres mou tons crians et bellans en pareille intonation commencèrent soy jecter et saulter en mer après à la file La foulie estoit à qui premier y saulteroit après leur compaignon Possible nestoit les en garder De repente não sei como a coisa foi súbita não tive tempo de prestar atenção Panurgo sem dizer uma só palavra joga em pleno mar o seu carneiro que estava gritando e balindo Todos os outros carneiros gritando e balindo em entonação parecida come çurum a se jogar e a pular ao mar atrás direitinho Havia um correcorre pura ver quem se jogava primeiro atrás do seu compa nheiro Possível nflo era contêlos o depois uniu lúbitn guinada pura uma crtidiçâo grotesca 244 MIMESIS comme vous sçavez estre du mouton le naturel tous jours suyvre le premier quelque part quil aille Aussi le dict Aristóteles lib IX de Histo animal estre le plus sot et inepte animant du monde como vós sabeis ser do natural do carneiro êle sempre segue o primeiro seja onde fôr que êie vá Também diz Aristóteles lib IX Histo Animal que são os mais imbecis e ineptos animais do mundo Baste isto quanto ao quotidiano A seriedade está porém na alegria do descobridor prenhe de tôdas as possibilidades que se arrisca a fazer qualquer experiência real e suprareal e que era peculiar do seu tempo da primeira metade do século renas centista e que ninguém transferiu de tal forma para o sensível como Rabelais com a sua linguagem Por isto é possível chamar a sua mistura de estilos a sua bouffonerie socrática de estilo elevado Êle próprio encontrou para o estilo elevado dos seus livros uma palavra encantadora que é em si mesma um exemplo modelar dêste estilo Tem sua origem no vocabulário próprio da criação de gado de engorda e já a mencionamos acima ces beaulx livres de haulte gresse LHumaine Condition Les autres forment lhomme je le recite et en repré M sente un particulier bien mal formé et lequel si I j avoy à façonner de nouveau je ferois vrayment bien autre quil nest Meshuy cest fait Or les traits de ma peinture ne fourvoyent point quoiquils se chan gent et diversifient Le monde nest quune branloire perenne Toutes choses y branlent sans cesse la terre les rochers du Caucase les pyramides dAegypte et du branle public et du leur La constance mesme nest autre chose quun branle plus languissant Je ne puis asseurer mon object il va trouble et chancelant dune yvresse naturelle Je le prens en ce poinct comme il est en linstant que je mamuse à luy je ne peinds pas lcstre je peinds le passage non un passage daage en autre ou comme dict le peuple de sept en sept ans mais de jour en jour de minute en minute Il faut accomoder mon histoire à lheure je pourray tantost changer non de fortune seulement mais aussi dintention Cest un contrerolle de divers et muables uccidens et dimaginations irrésolues et quand il y eschet contraires soit que je soys autre moymesmes soit que je saisis se les subjects par autres circonstances et considérations Tant y n que je me contredis bien à ladventure mais la vérité comme disoit Dcmades je ne la contredis point Si mon ame pouvoit prendre pied je ne messaierais pas je me résoudrais elle est toujours en apprentissage et en espreuve Je propose une vie basse et sans lustre cest tout un on Mttuchc aussi bien toute la philosophie morale à une vie popu laire et privée que à une vie de plus riche estoffe chaque homme porte lu forme entière de lhumaine condition Les autheurs se communiquent uu peuple par quelque marque particulière et cMritngicrc moy le premier pur mon estre universel comme Michel de Montaigne non comme grammairien ou pocte ou 246 MIMESIS jurisconsulte Si le monde se plaint de quoy je parle trop de moy je me plains de quoy il ne pense seulement pas à say Mais estce raison que si particulier en usage je pretende me rendre public en cognoissance estil aussi raison que je produise au monde où la façon et lart ont tant de crédit et de comman dement des effets de nature et crus et simples et dune nature encore bien foiblette estce pas faire une muraille sans pierre ou chose semblable que de bastir des livres sans science et sans art Les fantasies de la musique sont conduictes par art les miennes par sort Au moins jay cecy selon la discipline que jamais homme ne traicta subject quil entendist ne congneust mieux que je fay celuy que jay entrepris et quen celuylà je suis le plus sçavant homme qui vive secondement que jamais aucun ne pénétra en sa matière plus avant ni en esplucha plus particulièrement les membres et suites et narriva plus exactement et plus plainement à la fin quil sestoit proposé à sa besoingne Pour la parfaire je nay besoing dy apporter que la fidélité cellelà y est la plus sincere et pure qui se trouve Je dis vrai non pas tout mon saoul mais autant que je lose dire et lose un peu plus en vieillissant car il semble que la coustume concede à cet aage plus de liberté de bavasser et dindiscrétion à parler de soy Il ne peut advenir icy ce que je veoy advenir souvent que lartizan et sa besoingne se contrarient Un personnage sçavant nest pas sçavant partout mais le suffisant est partout suffisant et à ignorer mesme icy nous allons conformément et tout dun train mon livre et moy Ailleurs on peut recom mander et accuser louvrage à part de louvrier icy non qui touche lun touche lautre Os outros formam o homem eu relato ao seu respeito e re presento um em particular bastante mal formado e se tivesse de formálo de nôvo fáloia em verdade bem diferente do que é Mas hoje já está feito Ora os traços da minha pintura não deixam de ser fiéis embora mudem e se diversifiquem O mundo não é senão uma perene vacilação Tôdas as coisas vacilam nêle sem cessar a terra os rochedos do Cáucaso as pirâmides do Egito tanto pela vacilação geral quanto pela sua própria vacilação A mesma constância não é outra coisa senão uma vacilação mais lenta Não posso fixar o meu objeto êle vai confuso e titubeante com uma ebriedade natural Pegoo em qualquer lugar como está no instante a passagem de uma idade a outra ou como diz o povo de sete em sete anos mas dia a dia minuto a minuto Devo acomodar a minha história à hora eu mesmo poderia mudar um outro tanto não só de fortuna mas também de intenção É um relatório de acidentes diversos e mutáveis de imagens indefinidas e às vêzes contrárias quer porque eu mesmo não seja sempre o mesmo quer porque apreenda os objetos em outras circunstâncias ou sob outras considerações É certo que me contradigo uma vez ou outra mas na verdade como dizia Demades nunca contradigo Se a minha alma pudesse ganhar pé eu não faria experiências comigo rcsolver meia mas ela está sempre em aprendizagem e sendo postn provu LHUMAINE CONDITION 247 Descrevo uma vida baixa e sem lustre dá na mesma é possível achar tôda a filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica cada homem leva em si a forma inteira da humana condição Os autores comunicamse com o povo através de uma qualidade particular e rara eu sou o primeiro a fazêlo através de meu ser universal como Michel de Montaigne não como gramático ou poeta ou jurisconsulto Se o mundo se queixa de que falo demais sôbre mim mesmo queixome de que êle nem pensa em si próprio Mas justificase que sendo eu pràticamente tão limitado pretenda tornarme público em conheci mento Outrossim justificase que eu apresente ao mundo onde a forma e a arte têm tanto crédito e poder processos crus e simples da minha natureza que é ainda por cima uma natureza bastante franzina Não é como fazer muros sem pedras ou coisa seme Ihahte quando se constroem livros sem ciência e sem arte As fantasias da música são conduzidas pela arte as minhas pelo acaso Pelo menos tenho o seguinte que respeita a disciplina científica que jamais ninguém tratou de um assunto do qual entendesse ou o qual cr ecesse melhor do que faço com êste que empreendi pois neste iito sou o homem mais sapiente que existe segundo que jamais ninguém penetrou no seu assunto tão profundamente nem destrinchou mais os seus membros e articulações nem chegou mais exata e plenamente ao fim que tinha proposto à sua obra Para atin gir isto não tenho necessidade de contribuir com nada além da fidelidade e esta está aqui a mais sincera e pura que se possa en contrar Digo a verdade não tão abertamente quanto desejo mas até o ponto ao qual posso me atrever a chegar e atrevome mais à medida que envelheço pois parece que o costume concede a esta idade maior liberdade de tagarelar e de ser indiscreto ao falar de si Aqui não pode acontecer o que vejo acontecer tantas vêzes que o artesão e a obra se contradizem Uma pessoa sábia não é sábia em tudo mas o suficiente é sempre suficiente também na igno rância Aqui andamos conformes e ao mesmo passo meu livro e eu Alhures podese recomendar ou acusar a obra independente mente do autor aqui não quem toca um toca a outra Este é o comêço do segundo capítulo do terceiro livro dos Essais de Montaigne na edição de Villey Paris Alcan 1930 à qual referirseão também as indicações de páginas que fizer mos para as futuras citações aparece no terceiro tomo à pági na 39 Ê uma das numerosas passagens nas quais Montaigne fala do objeto dos seus ensaios da sua intenção de representar a si próprio Em primeiro lugar ressalta o caráter vacilante e mutável do seu objeto depois descreve o processo que empre ga para o tratamento de um objeto assim vacilante finalmente ventila a questão da utilidade da sua emprêsa A linha de pensamento do primeiro parágrafo pode ser cômodamente en quadrada num silogismo descrevo a mim mesmo sou um ser que muda constantemente logo também a descrição deve adap tarie a isto e mudar constantemente Tentaremos analisar como cada um dos membros é expresso no texto Descrevo a mim meimo Montaigne nfio diz isto de forma imediata Apreentão pelo contraste com outros de forma 248 MIMESIS mais enérgica e como se verá a seguir mais rica em nuanças do que teria podido acontecer pelo enunciado direto Les autres forment Thomme moy aqui resulta que o contraste é duplo Os outros formam eu relato cf mais adiante je nenseigne pas je raconte os outros formam o homem eu relato um homem Isto dá dois graus de contraste formere cite lhommeun particulier Êste particulier é êle próprio mas também isto êle não diz imediatamente mas o parafraseia com a sua modéstia irônica e carregada de segundas intenções e até um pouquinho presumida A paráfrase é trimembre e o seu segundo membro está composto de oração principal e secundária bien mal formé si javoy je ferois meshuy cest fait A premissa maior do silogismo contém portanto na sua redação pelo menos três grupos de pensamentos que com os seus diver sos movimentos justa e contrapostos a constroem e comentam 1 os outros formam eu relato 2Ç os outros formam o homem eu relato acêrca de um homem 39 êste homem eu infelizmente já está formé Tudo isto está resumido num único movimento rítmico sem a mínima possibilidade de con fusão e é feito quase totalmente sem parênteses sintáticos sem conjunções nem ligações semelhantes às conjunções a mera coerência o laço espiritual tecido com a unidade de sentido e com o ritmo da frase é suficiente Para melhor esclarecer o dito acrescentarei aqui alguns parênteses Tandis que les autres forment lhomme je le recite encore fautil ajouter que je represente un particulier ce particulier cest moimême qui suis je le sais bien mal formé soyez surs que si javais à le façonner de nouveau je le ferais vrayment bien autre quil nest Mais malheuresement meshuy cest fait Natural mente aquilo que acrescento só tem valor aproximado os mati zes que Montaigne exprime omitindoos não são totalmente apreensíveis A premissa menor do silogismo sou um ser que se modi fica constantemente Montaigne não a exprime imediatamente suspende a continuação lógica e apresenta em primeiro lugar a conclusão como surpreendente asseveração Or les traits de ma peinture ne fourvoyent pas quoy quils se changent et diver sifient A palavra Or indica que a continuidade foi interrompida e que se começa de nôvo mitiga simultaneamente o súbito e o surpreendente da afirmação a palavra quoique posta aqui com fôrça como parêntese sintático salienta enèrgicamente o pro blema Só agora segue a premissa menor e também não imediata mente mas como conclusão de um silogismo subordinado que diz assim o mundo modificase constantemente eu sou uma parte do mundo lQgo modificome constantemente A premissa maior é provista de exemplos e a espécie de modificação do mundo é analisada como sendo dupla cada coisa experimenta a modificação geral e ainda a sua modificação própria logo seguese um movimento polivocal introduzido pela nfirmaçrto i LHUMAINE CONDITION 249 paradoxal acêrca da constância que também seria uma forma de vacilação mais lenta No mencionado movimento polivocal que preenche todo o resto do parágrafo ressoa a premissa menor do segundo silogismo como coisa evidente de forma muito fra ca Os dois temas que se entrelaçam são premissa menor e conclusão do pensamento principal sou um ser que se modi fica constantemente logo devo também adaptar a representação a êste fato Aqui Montaigne está no ponto central do seu campo mais próprio o jôgo entre eu e eu entre Montaigne escritor e Montaigne objeto brotam as locuções carregadas de sentido e de musicalidade referindose ora a um ora ao outro ora aos dois temse a possibilidade de escolher qual pode ser conside rada a mais aguda a mais peculiar ou a mais verdadeira e portanto qual é a mais admirável aquela acêrca da embriaguez natural aquela acêrca da pintura da mudança aquela acêrca da modificação externa fortune e interna intention a citação de Demades o contraste entre sessayer e Se résoudre por um lado e a bela imagem si mon âme pouvait prendre pied pelo outro para cada uma delas assim como para o conjunto vale o que Horácio disse da obra absolutamente perfeita decies repetita placebit Espero que não se considere a dissolução do parágrafo em silogismos como demasiado pedante Ela mostra que a cons trução do pensamento neste trecho vivaz e tão rico em movi mentos que surgem inopinadamente é rigorosa e lógica que a grande quantidade de movimentos completivos distributivos aprofundantes e em parte até concessivamentê recíprocos serve para apresentar o pensamento por assim dizer na sua eficácia prática outrossim que a ordem está repetidas vêzes rompida que membros isolados são antecipados e outros são totalmente deixados de lado para que o leitor os complete O leitor tem dc colaborar é arrastado para dentro da movimentação do pensamento mas a todo instante esperase dêle que se surpreen da investigue e complete Deve adivinhar quem são les autres e também quem é o particulier a oração com or parece leválo para muito longe e só depois de um certo tempo pode reco nhecer paulatinamente para onde ela vai depois como é evi dente o essencial lhe é oferecido em uma rica plenitude de for mulações que arrastam consigo a sua fôrça imaginativa mas ainda assim sempre de tal forma que deve permanecer ativo pois cada uma das formulações é tão peculiar que pede para ser elaborada nenhuma encaixa num esquema pronto de pensa mento ou de discurso Embora o conteúdo do texto seja lógico quanto à formu liiçuo dos pensamentos e o seja até severamente embora se tnite de uni trabalho mental rigoroso aprofundando singular mente o problema da autocontemplação a vivacidade da von tiule de expressão é tão forte que o estilo quebra a moldura de um tratado teórico Presumo que todos os que lêem Mon taigne em pmíimdidmle têm n mesma experiência que eu tive 250 MIMESIS depois de têlo lido durante um certo tempo e de ter adquirido uma certa familiaridade com a sua maneira de escrever pare ciame ouvilo falar e ver os seus gestos Esta é uma expe riência que raramente se tem com escritores teóricos mais anti gos e com a intensidade do caso de Montaigne certamente com nenhum Omite freqüentemente as conjunções e as outras ligações sintáticas mas as sugere passa por cima de membros do pensamento mas suplanta o faltante com uma espécie de contacto que se estabelece involuntàriamente entre os membros não unidos rigorosamente pela lógica entre as orações la cons tance mesme nest autre chose e je ne puis asseurer mon o b je c t falta evidentemente um membro que deveria dizer que eu objeto da minha observação como parte do mundo estou também sujeito à dupla mudança Montaigne diz isto mais tarde extenso mas já aqui criou a atmosfera que estabelece piwisòriamente o contacto deixando todavia o leitor numa tensão ativa Às vêzes repete pensamentos que são importantes para êle muitas vêzes em formulações sempre novas elaborando cada vez um nôvo ponto de vista uma nova particularidade uma nova imagem de tal forma que o pensa mento irradia em tôdas as direções Tudo isto são peculiari dades que estamos muito mais habituados a encontrar na con versação é claro que sòmente com pessoas especialmente ricas em pensamentos e expressividade do que num escrito impresso de conteúdo teórico pareceria que para a obtenção de um tal efeito seriam indispensáveis o nível do tom os gestos e o aquecimento mútuo que uma conversação agradável traz con sigo Mas Montaigne que está sòzinho consigo mesmo en contra no seu pensamento bastante vida e por assim dizer calor corpóreo suficiente como para escrever como se estivesse falando Isto está em relação com a maneira segundo a qual êle está empenhado em apreender o seu objeto isto é a si próprio a maneira que descreve justamente no nosso trecho Tratase de uma constante audição das vozes mutantes que ressoam dentro dêle e vacila no seu nível entre a ironia com segundas intenções um pouquinho presumida e uma seriedade muito enérgica que avança até o fundo da existência Dentro da ironia que apresenta misturamse por sua vez vários mo tivos uma aversão extremamente sincera de considerar o homem com tragicidade o homem é un subject merveilleusement vain divers et ondoyant 1 1 p 10 autant ridicule que risible1 1 50 p 582 le badin de la farce 3 9 p 434 um leve tom de orgulhoso desdém de um grande senhor perante as atividades de escritor jetais faiseur de livres 1 20 p 162 e outra vez em 2 37 p 902 e finalmente e isto é o princi pal uma tendência a menoscabar a sua própria espécie de obser vação Chama o seu livro ce fagotage de tant de diverses pièces 2 37 p 850 cette fricassée que je barbouille icy 3 13 p 590 e uma vez comparao até com a digeitlo de LHUMAINE CONDITION 251 um senhor de idade ce sont icy des excremens dun vieil esprit dur tantost tantost lasche et toujours indigeste 39 p 324 Não se cansa de salientar o caráter simples privado natural e imediato da sua maneira de escrever e o faz de tal forma que pareceria que devesse se desculpar por sua causa e não sempre a ironia de tal modéstia desvendase tão completa mente e com tanta nitidez quanto no segundo parágrafo do nosso texto que analisaremos mais adiante Baste o dito provi sòriamente quanto à ironia Tratase de um tempero do seu estilo extremamente encantador e também extremamente ade quado ao objeto mas não nos deixemos emaranhar demais por êle Montaigne fala séria e enfàticamente quando diz que a sua representação por mais cheia de mudanças e múltipla que seja nunca erra caminho e que por vêzes pode se contradizer a si próprio mas nunca à verdade Nestas palavras fala uma concepção do homem de caráter muito realista originada na experiência e sobretudo na experiência de si próprio precisa mente a que diz que o homem é um ente vacilante sujeito às mudanças do mundo do destino e dos seus próprios movimentos interiores de tal forma o modo de trabalhar de Montaigne aparentemente tão volúvel não dirigido por plano nenhum que segue elàsticamente as mudanças do seu ser é no fundo um método rigorosamente experimental o único que se adequa a tal objeto Quem quiser descrever com exatidão e objetividade um objeto que se modifica constantemente deve acompanhar exata e objetivamente as mudanças do mesmo deve descrever o objeto a partir do maior número possível de experiências da forma como êle foi visto em cada caso e pode desta forma ter a esperança de poder determinar o âmbito das possíveis modificações obtendo assim finalmente uma imagem de con junto Êste é um método rigoroso que pode ser considerado científico até no sentido moderno do têrmo e é justamente êste que Montaigne procura seguir Êle provàvelmente teria resis tido ao têrmo método demasiado cientificamente pretensioso mas é um método e dois críticos modernos Villey Les sources et lévolution des Essais de Montaigne 2e éd Paris 1933 II 321 e Lanson Les Essais de Montaigne Paris sd 265 empregaram esta palavra com referência à sua atividade ainda que não tivessem feito exatamente no sentido aqui considerado Montaigne descreveu pormenorizadamente o método afora c nosso texto há ainda outros que são dignos de nota O nosso parágrafo mostra muito claramente que êle se vê obrigado a usar o seu processo e por que é assim justamente para poder se adaptar aos seus objetos mais tarde explica o sentido do título Essais que acertadamente mas é claro de forma não muito bonita seria reproduzível assim Ensaios consigo mesmo ou Autoensaios Outra passagem 2 37 p 850 salienta o conccito de desenvolvimento entendido pelo seu processo com uma concluilo extremamente característica de Montaigne que de forma alguma í òmente IrAnico Je veux représenter le 252 MIMESIS progrez de mes humeurs et quon voye chaque piece en sa naissance Je prendrois plaisir dauoir commencé plus tost et à recognoistre le train de mes mutations Je me suis envielly de sept ou huict ans depuis que je commençay Ce na pas esté sans quelque nouvel acquest Jy ay pratiqué la colique par la libéralité des ans leur commerce et longue conversation ne se passe aysément sans quelque tel fru it Uma passagem ainda mais importante 2 6 p 934 diz sem qualquer ironia com a ênfase tranqüila porém vivaz que se constitui no limite supe rior do estilo de Montaigne êle nunca eleva o tom acima disso quão elevada é a opinião que faz da sua emprêsa Cest une espineuse entreprinse et plus quil ne semble de suyvre une allure si vagabonde que celte de nostre esprit de penetrer dans les profondeurs opaques de ses replis internes de choisir et arrester tant de menus airs de ses agitations et est un amusement nouveau et extraordinaire qui nous retire des occupations commu nes du monde ouy et des plus recommandées Il y a plusieurs années que je nay que moy pour visée à mes pensées que je ne contrerolle et estudie que moy et si jestudie autre chose cest pour soudain le coucher sur moy ou en moy Estas frases são importantes também porque demarcam os limites da sua emprêsa porque não somente dizem o que quer fazer mas tam bém o que não quer fazer isto é estudar o mundo exterior êste interessao tão somente como cenário e motivação para os seus próprios movimentos interiores Aqui chegamos a uma outra forma da sua ironia enganadora e cheia de segundas inten ções à freqüente protestação do seu desconhecimento e da sua falta de responsabilidade com respeito a tudo o que toca ao mundo exterior o qual designa de preferência com a palavra les choses A peine respondroysje à autruy de mes discours qui ne men respcmds pas à m oy ce sont icy mes fantasies par lesquelles je ne tasche point à donner à connoistre les choses mais moy 2 10 p 152 As coisas são para êle somente meios para a autoprovação só servem à essayer ses facultés naturelles ibid e não se sente no dever de assumir qualquer posição responsável diante delas Também isto é dito da melhor forma com as suas próprias palavras De cent membres et visages qua chaque chose jen prens un Jy donne une poincte non pas le plus largement mais le plus profondément que je sçay sans dessein sans promesse je ne suis pas 1 Quero representar o progresso dos meus humores e que se veja cadu peça em seu nascedouro Teria tido prazer em começar mais cedo e em reconhecer a m archa das minhas mutações E nvelheci sete ou oito anos desde que comecei Isto não ocorreu sem alguma nova aquisição Pratiquei a cólica pela liberalidade dos anos o seu comércio e longa conversação não se passam fàcilmente sem algum fruto semelhante 2 É uma tarefa espinhosa mais ainda do que parece esta de seguir um rasto tão vagabundo quanto o de nosso espírito de penetrar nas profundezas opacas das suas sinuosidades internas de escolher e deter tantos pequenos sopros das suas agitações e é um divertimento nôvo e extraordinário que no retira das ocupações comuns do mundo sim e das mais recomendável Faz jú vários anos que não tenho senão o mim como alvo dos meu penamcnto que não relato nem estudo senfio u mim e sc ostudo uutru coim 4 pnrn nbrl gála logo sob mim ou em mim LHUMAINE CONDITION 253 tenu den faire bon ny de my tenir moy mesme sans varier quand il me plaist et me rendre au double et à lincertitude et à ma maistresse forme qui est lignorance 3 1 50 p 578 Aqui já se vê com tôda nitidez o que pretende com esta igno rância atrás da autoironia e da modéstia escondese uma ati tude muito definida dirigida para a sua intenção principal que mantém com a sua peculiar tenacidade entre amável e elástica Aliás revelanos ainda mais exatamente o que esta ignorância sua maistresse forme significa para êle Pois conhece uma ignorance forte et genereuse 3 11 p 493 que aprecia mais do que qualquer saber objetivo e para cuja aquisição é necessária maior sabedoria do que para a aquisição da ciência Ela não é somente um meio de lhe livrar o caminho para o conhecimento acêrca do qual êle faz questão o conhecimento de si mesmo mas é até mesmo um caminho imediato para alcançar aquilo que é a meta final da sua pesquisa isto é viver corretamente le grand et glorieux chef dœuvre de lhomme cest vivre à propos 3 13 p 651 e há dentro dêste homem vivaz uma tal entrega à natureza e ao destino que lhe parece inútil querer conhecer mais acêrca dêles do que aquilo que nos deixam sentir de si Le plus simplement se commettre à nature cest sy commettre le plus sagement Oh que cest un doux et mol chevet et sain que lignorance et lincuriosité à reposer une teste bien faicte 3 13 p 580 e pouco antes diz je me laisse ignoramment et négligemment aller à la loy generale du monde je la sçauray assez quand je la sentiray A ignorância e a indiferença premeditadas perante as coi sas pertencem ao seu método nelas êle só se procura a si próprio Em inumeráveis experiências realizadas em instantes quaisquer examina êste seu objeto iluminao de todos os lados e como que o circunscreve o resultado não é porém um monte de instantâneos sem referência entre si mas é a unidade de uma pessoa apreendida espontâneamente composta da multipli cidade das observações No fim tudo vai dar realmente na uni dade e na verdade finalmente ainda é o ser o que aparece enquanto representa a mudança Estar à caça de si mesmo com um tal método isto já é um caminho para a posse de si mesmo lentreprise se sent de la qualité de la chose quelle regarde car cest une bonne portion de leffect et consubstan tielle 1 20 p 148 Montaigne conserva em cada instants da mudança o conjunto da sua pessoa e sabe disto il nest personne sil sescoute qui ne descouvre en soy une forme sienne une forme maistresse 5 3 2 p 52 ou num outro trecho 3 Dos ccm membros c rostos que tem cada coisa pego uma Dou uma iaçada nfio o mais largamente mas o mais profundamente que sei tem desígnio sem promessa nfio sou obrigado a cumprila nem eu próprio me obrigo a Isso sem varier quando bem entender e entregarme à dúvida e à Inccrtca c fi minha forma dominante que é a ignorância 4 O empreendimento ne rciiftcnte da qualidade da coisa que visa pois conititui uma boa parle do efelto e consubutancial 5 NKo há ninguém que m w eicular n li próprio nfio descubra cm I iimn forma iim iintn formn dominante 254 MIMESIS les plus fermes imaginations que faye et generalles sont celles qui par maniere de dire nasquirent avec moy elles sont natu relles et toutes miennes8 2 17 p 6523 É claro que esta forme sienne não pode ser descrita com algumas palavras pre cisas é demasiado múltipla e real para caber tôda numa defi nição Todavia também para Montaigne a verdade é uma por mais múltiplas que sejam as suas aparências talvez êle se con tradiga a si mesmo mas não à verdade Ao método de Montaigne também pertence a forma pecu liar dos Essais Não são uma autobiografia nem constituem um diário Nenhum plano artístico lhes serve de base e também não seguem uma ordem cronológica Seguem o acaso les fantasies de la musique sont conduictes par art les miennes par sort Considerandose tudo com rigor são as próprias coisas as que o guiam êle se movimenta entre as coisas vive nelas pode sempre ser encontrado nelas pois encontrase com olhos muito abertos e espírito sempre pronto a receber impressões em meio ao mundo só que êle não segue o seu decurso no tempo e também não segue um método que tenha por fim o conhecimento de uma coisa ou de um grupo de coisas determi nadas mas segue o seu próprio ritmo interno o qual embora seja movimentado e alimentado sempre de nôvo pelas coisas não se ata a elas mas pula livremente de uma para outra Prefere une alleure poetique à sauts et à gambades 3 9 p 421 Villey demonstrou Les Sources etc II p 3 ss que a forma dos Essais tem a sua origem nas coleções de exemplos citações e provérbios uma espécie de escritos que já era muito apreciada na tardia Antigüidade e na Idade Média e que no século XVI serviu para a difusão do gênero humanista Mon taigne começou desta forma o seu livro era originalmente uma coleção dos frutos das suas leituras acompanhadas de observa ções Esta moldura foi logo rompida as observações acompa nhantes preponderaram e como tema ou motivo serviu não sòmente o lido mas também o vivido quer o que êle próprio tinha vivido quer o que ouvia de outros ou o que acontecia ao seu redor Mas o princípio de se sujeitar às coisas concretas ao acontecido êsse êle nunca abandonou assim como também não abandonou a sua liberdade de não se atar a um método de pesquisa objetiva ou ao decurso dos acontecimentos no tem po das coisas pega a vivacidade que o preserva de fazer psico logia abstrata ou prospecção em si mesmo carente de substância mas cuidase muito para não se submeter à lei de qualquer coisa para não atordoar e para finalmente não perder o ritmo do movimento interno próprio Louva muito o processo especial mente no nono ensaio do terceiro livro du qual acabamos de transcrever algumas palavras e apela a Platão e a outros autores antigos como modelos A referência a alguns diálogos de 6 A i im tgintçflei m ali flrm qu tenho t u m ili Iira li ilo qut por m im d lu r n u c trim comigo iio n iiu riti totilmnt m lnhii LHUMAINE CONDITION 255 Platão cuja construção é aparentemente frouxa e cujo tema não é abstratamente desprendido mas parece estar acomodado na espécie e na situação humanas dos interlocutores não parece totalmente injustificada mas também não parece ser totalmente acertada Montaigne é algo nôvo o tempêro do elemento pes soal e precisamente de uma única pessoa apresentase mais penetrantemente e a forma de expressão é ainda mais espon tânea e próxima da linguagem falada quotidianamente embora aqui não se trate de diálogos Também a descrição do estilo socrático em outro trecho do 12 ensaio que citamos no nosso capítulo sôbre Rabelais mostra um Sócrates com um colorido fortemente montaignês Partindo tão fortemente do querer da própria existência concreta tão suculenta corpórea e espontânea mente nenhum filósofo antigo escreveu nem Platão quando representa Sócrates falando No fundo Montaigne também sabe disso Num trecho no qual se defende do louvor da sua lin guagem remetendo o leitor somente ao sentido e ao objeto 1 40 p 483 acrescenta Si suis je trompé si gueres dautres donnent plus à prendre en la matiere et comment que ce soit mal ou bien si nul escrivain la semée ny gueres plus matérielle ny au moins plus drue en son papier 7 A segunda parte do texto transcrito no início ventila a questão se o seu empreendimento é justificado ou útil a per gunta que como se sabe Pascal respondeu negativamente com tanta energia le sot projet quil a de se peindre Novamente a sua ordenação e expressão estão plenas de modéstia irônica e com segundas intenções Parece que êle próprio não se atreve a responder a pergunta com um sim claro é como se preferisse pedir desculpas e apresentar circunstâncias atenuantes A apa rência engana êle já decidiu a questão na primeira oração muito antes de colocála propriamente e aquilo que mais tarde quase soa como uma desculpa au moins ja y metamorfoseiase abruptamente numa autoafirmação tão firme fundamental e que ousa tão conscientemente ser como é que não mais se pode falar em modéstia ou em desculpa A seqüência segundo a qual Mon taigne apresenta os seus pensamentos é a seguinte 1 Descrevo uma vida baixa e sem lustre mas isto não importa também na mais baixa das vidas está o todo da hu manidade 2 Não descrevo como os outros uma ciência especiali zada ou uma aptidão especial que eu tenha adquirido sou o primeiro a apresentarme a mim mesmo Montaigne em tôda a minha pessoa 39 Quando me lançam no rosto o fato de eu falar dema siado a respeito de mim mesmo respondo com o reproche vós nem pensais cm vós mesmos 7 Se estou enganado m nenhum outro oferece mais possibilidades dentro d matéria e como iicr que sea mal ou bem se nenhum escritor a semeou nem mais m atrrlal nrm pelo menos mais rija em seu papel 256 MIMESIS 49 Só agora formula a questão não é acintoso o querer tornar de conhecimento público e geral um caso individual tão limitado É razoável apresentar a um mundo que só sabe apre ciai a forma e a arte um produto natural tão pouco elaborado e tão singelo ainda por cima um produto tão insignificante 5 Em lugar de uma resposta seguem só circunstâncias atenuantes a ninguém jamais foi tão perito no seu assunto como eu no meu b ninguém jamais aprofundou tanto o seu assunto nem o perseguiu tanto em tôdas as suas articulações e ramificações ninguém jamais levou a cabo tão exata e completa mente a sua intenção ó9 Para conseguir isto nada preciso além da sinceridade sem rebuços e esta não me falta As convenções tolhemme um pouco bem que gostaria de ir um pouco além mas desde que estou envelhecendo permitome neste sentido alguma liber dade que é mais fàcilmente perdoável a um homem velho 7 A mim não pode acontecer o que acontece a mais de um especialista que o homem e a obra não estejam em concor dância que se admire a obra mas que se considere o autor no trato bastante medíocre ou viceversa Um homem sábio não é sábio em tudo mas um homem inteiro é inteiro em tudo também naquilo que ignora Meu livro e eu somos uma coisa em comum quem falar de um falará simultâneamente do outro Esta combinação mostra como é rica em planos secundários a sua modéstia mostrao quase mais claramente do que o ori ginal justamente porque desconexa e sêca não possui a fluente amabilidade da expressão Mas também o original é suficiente mente decidido o contraste eu os outros a malícia contra os peritos e sobretudo os motivos sou o primeiro a e ninguém jamais não podem passar despercebidos e sobressaem com maior rigor a cada leitura renovada Tentaremos agora tratar por menorizadamente de cada um dos sete pensamentos acima enu merados isto evidentemente constitui um meio de informação um tanto pobre já pelo fato de êles dificilmente poderem ser mantidos separados entre si e entrelaçaremse continuamente não obstante é necessário fazêlo se se quiser tentar tirar do texto tudo o que êle contém A protestação de que descreve uma vida baixa e sem brilho é muito exagerada Montaigne foi um grande senhor respeitado e influente e só dependeu dêle o fato de ter aproveitado só me surada e renitentemente a sua posição para fins políticos Mas esta modesta exageração que repete freqüentemente servelhe pa ra salientar com maior plasticidade o pensamento principal um destino humano qualquer une vie populaire et privée bastalhe para o seu fim La vie de Cesar diz Montaigne em outro lugar 3 13 p 580 ria point plus dexemple que la nostre pour nous et emperiere et populaire cest tousjours une vie que tous accidens humains regardent Escoutons y seulement E de pois vem a famosa frase acêrca da humaine condition que quai LHUMAINE CONDITION 257 quer homem torna realidade Evidentemente com esta frase já respondeu a pergunta acêrca do sentido e da utilidade da sua emprêsa se cada homem oferece motivo e matéria suficiente para a representação de tôda a filosofia moral então a exata e sincera autoinvestigação de qualquer homem justificase de per si e é até possível dar um passo além ela é até necessária pois é o único caminho que segundo Montaigne pode ser percorrido pela ciência do homem enquanto ser moral O método do escu tar escoutons y só pode ser aplicado com alguma exatidão à própria pessoa tratase em verdade do método de auscultarse asipróprio da observação dos movimentos internos próprios Não é possível examinar tão exatamente outra pessoa II ríy a que vaus qui sçache que vous estes lasche et cruel ou loyal et devotieux les autres ne vous voyent point ils vous devinent par conjectures incertaines 8 3 2 p 456 E a vida pró pria cujos movimentos é necessário auscultar é sempre uma vida qualquer pois cada vida não é senão uma entre milhões de variantes das possibilidades humanas de vida em geral A base obrigatória do método de Montaigne é a vida própria qual quer E esta vida própria qualquer deve ser tomada como um todo Isto é o que acima designamos como a segunda parte da sua declaração Esta exigência é evidente tôda especialização falseia o quadro moral só nos apresenta em um dos nossos pa péis deixa conscientemente no escuro amplas regiões da nossa vida e do nosso destino A partir de um livro de gramática grega ou de direito público não é possível conhecer a existên cia própria do autor ou só em alguns poucos casos onde o seu temperamento é tão forte e peculiar que surge involuntàriamente em tôda e qualquer uma das suas manifestações vitais A situa ção social e econômica de Montaigne facilitoulhe o formarse e conservarse por inteiro o seu tempo que ainda não tinha estabelecido totalmente para as camadas mais altas da socie dade os seus deveres a técnica e o ethos do trabalho especiali zado mas muito pelo contrário esforçavase sob a impressão da antiga civilização oligárquica na procura de uma formação o mais ampla e humana possível vinha ao encontro das suas ne cessidades Contudo nenhum dos seus contemporâneos por nós conhecidos levou a coisa tão longe quanto êle Comparados a êle todos são especialistas teólogos filólogos filósofos esta distas médicos poetas artistas todos se apresentam ao mundo par quelque marque particuliere et estrangiere Também Mon taigne foi ocasionalmente quando as circunstâncias o obrigavam a tanto jurista soldado político durante uma série de anos loi maire de Bordéus Mas êle próprio não se entregava a êstes negócios só se emprestava por tempo determinado e até nova ordem e prometia àqueles que lhe vinham a negócios de les prendre eu wain ium pas au poulmon et au foye 3 10 p H NAo liA ruAo vrt itir Rnihni w uniu covurde c cruel ou leal c devotado ui outioi 11A0 vm vfrm udivlnhiim vou por conjeturn Inccrtu 258 MIMESIS 438 O método de fazer da vida própria qualquer como um todo o ponto de partida para a filosofia moral para a pesquisa de humaine condition está em acentuado contraste com todos aqueles métodos que investigam um grande número de sêres humanos segundo um plano determinado à procura por exem plo da posse ou da falta de determinadas qualidades ou para verificar o seu comportamento em determinadas situações todos êstes processos parecem a Montaigne abstrações escolares e vazias êle não reconhece o homem isto é a si mesmo nêles pois disfarçamno simplificamno e sistematizamno de tal for ma que a sua realidade se perde Montaigne limitase à exata pesquisa e descrição de um só exemplar de si próprio e tam bém durante esta pesquisa está muito longe de isolar o objeto de alguma forma de desligálo das situações e condições casuais nas quais se encontra caso por caso para assim talvez obter o seu ser propriamente dito durável e absoluto uma tal tentativa de se obter caso parecerlheia falta de sentido pôsto que segundo em cada caso parcelheia falta de sentido posto que segundo a sua convicção a essência se perde imediatamente logo que é desligada da casualidade respectiva Justamente por isso Mon taigne deve renunciar a uma definição última de si mesmo ou do homem pois esta necessàriamente precisaria ser abstrata deve limitarse a se experimentar a si próprio sempre de nôvo e a de sistir do se résoudre Mas êle é um daqueles homens para quem tal desistência não é difícil pois está convencido que o todo do conhecimento se furta à expressão Outrossim o seu método não obstante a sua aparente incoerência é muito firme na me dida em que se limita à observação não se dedica a espécie alguma de pesquisa das causas quando Montaigne indica causas tratase de causas próximas que são elas próprias acessíveis à observação A êste respeito há uma passagem polêmica que ainda hoje tem atualidade Ils laissent là les choses et samu sent à traicter les causes plaisans causeurs La cognoissance des causes appartient seulement à celuy qui a la conduite des choses non à nous qui nen avons que la souffrance et qui en avons lusage parfaictement plein selon notre nature sans en penetrer lorigine et lessence Ils commencent ordinaire ment ainsi Comment est ce que cela se faict Mais se faict il faudrait il dire 3 11 p 485 Deixamos propositalmente em tôdas estas observações acêrca do método Montaigne de mencionar os modernos têrmos filosóficos que se impõem e que estão em relação de parentesco ou de oposição aos seus O leitor entendido no assunto completálosá desistimos de fazêlo porque as comparações não são totalmente válidas em nenhum caso e uma explicação mais pormenorizada levarnosia dema siado longe da nossa intenção principal 9 Abandonam as coisas e divertemse em tratar das causas graciosos tagarelas O conhecimento das causas pertence sòmente àquele que tem a dlrcçBo das coisas nSo a nós que não temos senão o seu sofrimento e quo dela temos o hábito perfeitamente amplo segundo nossa natureza sem penetrar em sua origem e essência Começam ordinariamente aaim Como é que isso se faz Mas será que realmente e faz seria precito d lu r LHUMAINE CONDITION 259 Ainda não comentamos algumas palavras que Montaigne escreveu em relação à apresentação do seu método de repre sentar a vida própria qualquer como um todo como fim da investigação da humaine condition numa localização sintàtica mente excelente São as palavras moy le premier e elas nos colocam duas questões Montaigne faz esta afirmação sèriamen te Tem razão de fazêla A primeira pergunta pode ser res pondida ràpidamente êle fala sério pois repete freqüentemente aquela asseveração o tema ninguém jamais pouco mais adian te no nosso texto é somente uma variante disso e uma outra passagem da qual já citamos uma parte mais acima a passagem acêrca do amusement nouveau et extraordinaire de penetrer dans les profondeurs de ses replis internes come ça da seguinte forma Nous navons nouvelles que de deux ou trois anciens qui ayent battu ce chemin et si ne pouvons dire si cest du tout en pareille maniéré à cetteci nen connaissant que leurs noms Nul depuis ne sest jeté sur leur trace 10 2 6 p 93 Não há pois a menor dúvida de que Montaigne apesar de tôda a sua modéstia e autoironia fala sèriamente Mas será que tem razão Não temos realmente nenhuma obra semelhante de tempos anteriores Ocorreme o nome de Santo Agostinho Montaigne não menciona as Confissões em parte alguma e Villey presume Les Sources I 75 que não as co nhecesse bem Mas é impossível que não estivesse pelo menos informado acêrca da existência e do caráter dêste famoso livro Talvez tivesse um certo receio perante esta comparação e talvez seja uma modéstia totalmente legítima e carente de ironia aquilo que o impede de relacionar a si próprio e o seu método com o mais importante dos pais da Igreja tem também razão ao afir mar que de maneira alguma seria en pareille maniere a intenção e a atitude são muito diferentes e contudo no método de Mon taigne não se acha conservado nada proveniente de um autor anterior que seja tão fundamental quanto a autoinvestigação coerente e franca de Santo Agostinho Com referência ao terceiro membro de sua elocução o contrareproche vós nem pensais em vós mesmos podese observar que o conceito peculiar de Montaigne do eu mesmo lhe serve de fundamento tácito Os que são interpelados de tal forma pensam muito em si mesmos no sentido corriqueiro de masiado até pensam nos seus interêsses nos seus desejos suas preocupações conhecimentos atividades família e amigos Isto tudo não é segundo Montaigne si próprio Tudo isto não é senão uma parte do eu mesmo e até pode contribuir como cm geral acontece para o obscurecimento e perda do mesmo a saber quando a pessoa se dedica tanto a uma ou mais coisas que a consciência presente da própria existência como um todo a plena consciência da vida própria se desvanece Da consciên 10 N lo tomo notícia u n lo üe dois ou r6s antigos que tenham seguido éite cam inho o n lo podemos absolutamente dizer se foi do mesmo modo que éMe aqui uma ve que nfto conhecemos senlo os seus nomes Ninguém a partir de entlo seguiu a suas pegadas 260 MIMESIS cia plena da vida própria faz parte também para êle a cons ciência da própria morte Ils vont ils viennent ils trottent ils dansent de mort nulles nouvelles 1 20 p 1545 A quarta e quinta partes da declaração as dúvidas acêrca do fato de se justificar a publicação de uma tal obra e as des culpas com as quais enfrenta as dúvidas podem ser tratadas em conjunto A resposta certa à pergunta Montaigne já a deu por antecipado colocaa agora somente para fazer so bressair fortemente mediante algumas antíteses excelentemente construídas p ex particulier en usage contra public en cog noissance ou par art contra par sort a peculiaridade da sua emprêsa Outrossim o texto é importante pela inesperada vira gem que faz com que as palavras formadas em tom de desculpa passem a uma confissão decidida do sentimento da sua própria importância Esta confissão introduzida pelo motivo jamais homme ou jamais aucun mostra uma nova facêta do seu método Nunca assim diz êle aproximadamente nunca homem algum do minou tão cabalmente o seu assunto nunca homem algum o per seguiu tão profundamente em tôdas as suas particularidades e ramificações nunca homem algum atingiu a sua meta tão intei ramente Apesar da silenciosa autoironia que talvez exista na formulação en celuylà je suis le plus sçavant homme qui vive estas frases são um grifo surpreendentemente aberto claro e enfático da singularidade do seu livro e vão ainda além do moy le premier de que tratamos antes na medida em que revelam a convicção de Montaigne de que não há absolutamente nenhum conhecimento ou ciência cuja aquisição seja possível com tal perfeição e exatidão quanto o conhecimento de si mesmo Pa ra êle o conheceteatimesmo não é só uma exigência prática e moral mas também uma exigência da teoria do conhecimento E justamente por isso tem pouco interêsse por conhecimentos das ciências naturais e não nutre confiança por êles só o que é moralmente humano o prende como Sócrates poderia dizer que as árvores nada lhe ensinam mas somente os homens na cidade Arma o pensamento até de uma ponta polêmica quando fala das pessoas que se gabam dos seus conhecimentos em ciências naturais Puisque ces là nont pas peu se résoudre de la cognoissance deux mesmes et de leur propre condition qui est continuellement presente à leurs yeux qui est dans eux comment les croirois je de la cause du flux et du re flux de la riviere du Nil 11 2 17 p 605 Todavia a primazia do autoconhecimento adquire um significado positivo do pon to de vista da teoria do conhecimento somente para a pesquisa moral do homem pois Montaigne visa com a sua investigação da vida própria qualquer como um todo a pesquisa da humaine condition em geral e manifesta assim o princípio heurístico do qual fazemos uso continuamente consciente ou inconscien 11 Um a vez que essas pessoas não puderam resolverse acêrca do conhc cimento de si mesmas e da sua própria condição que está continuamente pre sente ante os seus olhos que está nêles como acreditarei no que dizem da causa do fluxo e do refluxo do rio do Nilo LHUMAINE CONDITION 261 temente sensatamente ou não quando estamos empenhados em entender e julgar os atos dos outros homens sejam êstes reali zados ao nosso imediato redor sejam longínquos históricos ou políticos aplicamoslhes as escalas que a nossa própria vida e a nossa própria experiência interna nos oferecem de tal forma que o nosso conhecimento dos homens ou da história depende da profundidade do nosso conhecimento de nós mesmos e da amplidão do nosso horizonte moral Montaigne interessouse sempre calorosamente pela vida dos outros Evidentemente nutre uma certa desconfiança con tra os historiadores Acha que apresentam os homens dema siado exclusivamente em situações extraordinárias e heróicas e que estão demasiado ràpidamente inclinados a fornecer um qua dro fixo e unitário dos caracteres les bons autheurs mesmes ont tort de sopiniastrer à former de nous une constante et solide contexture 2 1 p 9 Parecelhe falso fazerse a partir de um ou de vários pontos culminantes de uma vida uma imagem do homem completo a vacilação e a mudança do estado inter no não são nem de longe suficientemente respeitadas pour juger un homme il faut suivre longuement et curieusement sa trace 2 1 p 18 Deseja averiguar o comportamento quoti diano comum e espontâneo dos sêres humanos e para isto o ambiente que o circunda e que pode observar através da sua própria experiência é para êle tão valioso quanto o material da história moy qui estime ce siècle comme un autre passé allégué aussi volontiers un mien amy que Aulu G elle et que Macrobe 313 p 595 Os acontecimentos privados e pessoais interessamlhe tanto ou talvez até mais do que as ações públicas e nem é necessário que tenham ocorrido real mente en ï estude que je traitte de noz moeurs et mouve ments les témoignages fabuleux pourvu quils soient possibles y servent comme les vrais advenu ou non advenu à Paris ou à Rome à Jean ou à Pierre cest toujours un tour de lhumaine capacité 12 1 21 p 194 Todo êste afã pela experiência da vida dos outros passa pelo filtro da própria experiência A gente não se deve deixar confundir por algumas manifestações de Montaigne nas quais por exemplo adverte contra o julga mento dos outros segundo a própria pessoa ou contra ter como impossível aquilo que não puder ser imaginado ou que estiver cm contradição com os nossos costumes Isto só pode se refe rir a homens cuja autoexperiência é demasiado estreita e plana c o ensinamento que poderia ser tirado de tais manifestações é u cxig6ncia de dar à nossa consciência interna maior elasticida de e amplidão Pois Montaigne não saberia dar um outro prin cípio heurístico para o conhecimento históricomoral do que o uinhccimcnlo de si mesmo e há várias passagens nas quais ilesercvc o seu método a partir dêste ponto de vista por exem li No euüo que trato ilc nomos costume e movimentos os testemunhos fnhiilnioi rmpre que sejam possíveis servem tanto quanto os verdadeiros m oninU lo ou nflo acontecido em lnrls ou cm Roma com Joflo ou com A ftcmtH um aupecto ón cupucldmlc humana 262 MIMESIS pio a seguinte Cette longue attention que jemploye à me con sidérer me dresse à juger aussi passablement des autres Pour mestre dès mon enfance dressé à mirer ma vie dans celle dautruy jay acquis une complexion studieuse en cela13 3 13 p 585 Mirer sa vie dans celle dautrui nestas palavras está o método todo das atividades que visam compreender as ações ou os pensamentos alheios tudo o mais o colecionamento das fon tes e documentos a crítica e a ordenação externa da tradição não é senão trabalho auxiliar e preparatório A parte da sua declaração que acima indicamos como sen do a sexta trata da sinceridade de Montaigne é somente dela que precisa para levar a cabo a sua intenção e êle a possui êle próprio o diz e é verdade É extremamente sincero em tudo o que toca a êle próprio e gostaria assim como diz aqui e em muitas outras passagens dos Essais já no prefácio de ser um pouco mais aberto e franco as regras do decoro impõemlhe algumas limitações Os seus críticos objetaram porém quando muito o excesso nunca a falta de sinceridade Fala muito de si mesmo e o seu leitor é informado pormenorizadamente não sòmente acerca da sua existência espiritual e psíquica mas tam bém acêrca da sua existência corporal Grande número de informações acêrca das suas características e costumes mais pes soais suas doenças sua alimentação e suas peculiaridades se xuais encontrase espalhado nos Essais Certamente isto não acontece sem um tanto de vaidade Montaigne contentase con sigo mesmo sabe que é em todos os sentidos um homem livre rico inteiro excelentemente realizado e não pode ocultar êste contentamento com a própria pessoa apesar de tôda sua auto ironia Mas tratase de uma autoconsciência calma baseada em si própria isenta de mesquinhez presunção insegurança ou coqueteria Está orgulhoso da sua forme toute sienne Mas o contentamento consigo mesmo não é o motivo mais importante e central da sua sinceridade que se refere uniformemente ao espírito e ao corpo a sinceridade é uma parte essencial do seu método de representação da vida própria qualquer como um todo Montaigne está convicto de que para obter uma tal re presentação espírito e corpo não devem ser separados e con feriu a esta convicção com tôda calma sem acompanhar a sua autorepresentação com qualquer movimento convulsivo uma forma prática e franca tão franca e real como dificilmente alguém antes dêle e poucos depois dêle conseguiram Fala ex tensamente do seu corpo e do seu ser corpóreo porque são par tes essenciais dêle próprio e conseguiu impregnar o seu livro com o tempêro corpóreo da sua pessoa sem nunca provocar escândalo As suas funções corpóreas as suas doenças e a sua própria morte corporal da qual fala muito para acostumarse à noção da própria morte estão fundidos na sua eficácia con 13 Esta longa atenção que emprego em me considerar adestroume a julgar também razoàvelmente os outros Por terme adestrado desde a minha infncia a m irar minha vida na de outrem adquiri niiso uma complciçAp estudiosa LHUMAINE CONDITION 265 creta e sensível com o conteúdo moralespiritual do seu livro em tal medida que qualquer tentativa de separação seria carente de sentido Isto está relacionado por sua vez com a sua repulsa contra os sistemas escolásticos da filosofia moral da qual já falamos o que lhes lança no rosto o caráter abstrato o que disfarça a realidade da vida nos seus métodos e o caráter enfatuado da sua terminologia tudo isto pode ser atribuído em última aná lise ao fato de que êles separam parcialmente já na sua teoria parcialmente pelo menos na sua prática doutrinária o espírito do corpo e não deixam falar êste último Tôdas elas têm se gundo Montaigne uma opinião demasiado arrogante do homem falam nêle como se só fôsse espírito e falseiam assim a reali dade da vida Ces exquises subtilitez ne sont propres quau presche ce sont discours qui nous veulent envoyer touts basiez en lautre monde La vie est un mouvement matériel et corpo rel action impariaicte de sa propre essence et desreglée je memploie à la servir selon elle 14 3 9 p 40910 As passagens nas quais fala da unidade do espírito e do corpo são muito numerosas e transmitem muitos diferentes as pectos da sua visão Por vêzes prepondera a modéstia irônica moy dune condition mixte grossier si simple que je me laisse tout lourdement aller aux plaisirs presentes de la loy humaine et generale intellectuellement sensibles sensiblement intellectuels15 3 13 p 649 Uma outra passagem extrema mente interessante esclarece a sua relação com o platonismo e com isto também com a filosofia moral antiga em geral Pla ton craint nostre engagement aspre à la douleur et à la volupté dautant que porque il oblige et attache par trop lâme au corps moy plutost au rebours dautant quil len desprend et clescloue10 1 40 p 1001 Pois para Platão o corpo é um inimigo da moderação que seduz a alma e a arrasta consigo pura Montaigne o corpo possui como anexo natural un juste rt modéré tempérament envers Ia volupté et envers la douleur enquanto que ce qui aiguise en nous la douleur et la volupté cest la poincte de nostre esprit As passagens mais importantes paru o nosso contexto são contudo aquelas que mostram as fontes cristãscriaturais da sua visão das coisas No capítulo De lu présomption 2 17 p 615 escreve Montaigne le corps a une grand part à nostre estre il y tient un grand rmiji ainsi sa structure et composition sont de bien juste consi 14 I HhRM requintadas sutilezas não são apropriadas senão para os sermões Ao tllfcLuno que no querem enviar bem arreados ao outro mundo a vida é movimento mnierial c corporal ação imperfeita de sua própria essência e drfticmudii cmpcnhomc cm servila tal qual 13 eu de condição mista grosseiro tão simples que me entrego tmlmrntc nos prazeres presentes da lei humana e geral intelectualmente sen Iveit MMuWcImcmc intelectuais Ifi rinto cme noMH vlncutaçAo áspcio à dor e à volúpia sobretudo porque riu ithiltfa pinmtc drmuilndmncnte n alma tio corpo eu antes pelo contrário MhiMtido ptmitir riu rt ilctprcndc f dcuprcun dílc 264 MIMESIS dération Ceux qui veulent desprendre nos deux pièces principa les et les sequestrer lun de lautre ils ont tort au rebours il les faut raccupler et rejoindre il faut ordonner à lâme non de se tirer à quartier de sentretenir à part de mespriser et aban donner le corps aussi ne le sçauroit elle faire que par quelque singerie contrefaicte mais de se rallier à luy de lembrasser lespouser en somme et luy servir de mary à ce que leurs effects ne paraissent pas divers et contraires ains accordans et unifor mes Les Chrestiens ont une particulière instruction de cette liaison ils sçavent que la justice divine embrasse cette société et joincture du corps et de lâme jusques à rendre le corps capable de recompenses éternelles et que Dieu regarde agir tout lhomme et veut quentier il reçoive le chastiment ou le loyer selon ses mérités17 E encerra com o louvor da filosofia aristotélica La secte Peripatetique de toutes sectes la plus sociable attribue à la sagesse ce seul soing de pourvoir et procurer en commun le bien de ces deux parties associées et montre les autres sectes pour ne sestre assez attachez à la considération de ce meslange sestre partialisées cettecy pour le corps cette autre pour lâme dune pareille erreur et avoir escarté leur sub ject qui est lhomme et leur guide quils advouent en general estre Nature 1R Outra passagem importante no mesmo sentido está no fim do livro terceiro no capítulo final De lexpérience 3 13 p 663 A quoy faire demembrons nous en divorce un bastiment tissu dune si joincte et fraternelle correspondance Au rebours renouons le par mutuels offices que lesprit esveille et vivifie la pesanteur du corps le corps arreste la legereté de lesprit et la fixe Qui velut summum bonum laudat animae naturam et tamquam malum naturam carnis accusat profecto et animam 17 O corpo constitui uma grande parte do nosso ser nêle ocupa uma alta posição assim sua estrutura e composição são de mui justa consideração Os que querem desprender nossas duas peças principais e seqüestrálas usna da outra estão errados pelo contrário élhes necessário reacoplarse e rejuntar se é necessário ordenar à alma não que se ponha de lado que se mantenha separada que despreze e abandone o corpo também não saberia ela fazêlo senão por alguma macaquice contrafeita mas que se alie a êle que o abra ce que o espose enfim e que lhe sirva de marido para que os efeitos não pareçam diversos e contrários mas antes acordes e uniformes Os Cristãos têm uma instrução particular desta ligação sabem que a justiça divina abraça esta sociedade e juntura do corpo e dalma até fazer o corpo capaz de re compensas eternas e que Deus observa agir o homem todo e quer que inteiro êle receba o castigo ou o prêmio segundo os seus méritos 18 A seita peripatética de todas as seitas a mais sociável atribui à sabe doria êste único cuidado de prover e procurar em comum o bem destas duas partes associadas e m ostra as outras seitas uma vez que não se dedicaram bastante à consideração desta mistura assumiram atitudes parciais esta a favor do corpo esfoutra a favor dalm a cometendo erros semelhantes e descar taram o seu objeto que é o homem e eu guia que geralmente contenant ser a Natureza LHUMAINE CONDITION 265 camaliter appétit et carnem carnaliter fugit quoniam id vani tate sentit humana non veritate divina cf Santo Agostinho De civitate Dei 14 5 Il ny a piece indigne de notre soin en ce present que Dieu nous a faict nous en devons conte jusques à un poil et nest pas une commission par acquit secundária à lhomme de conduire lhomme selon sa condition elle est expresse naifve et très principale et nous la le Createur donnée sérieusement et severement Aquêles que querem desfazerse de seus corpos veulent se mettre hors deux et eschapper à lhomme cest folie au lieu de se transformer en anges il se trans forment en bestes au lieu de se hausser ils sabattent Ces humeurs transcendentes meffrayent ln O fato de a unidade corpoespirito de Montaigne ter suas raízes na antropologia cristãcriatural poderia ser demonstrado também sem êstes documentos nela repousa a sua introspecção realista e sem ela esta última seria inconcebível Mas tais pas sagens poderseia acrescentar ainda uma outra 3 5 p 219 na qual se encontra uma importante observação sôbre a ascese dos santos mostram até que ponto Montaigne era consciente desta relação Êle se refere ao dogma da ressurreição da carne e a passagens bíblicas louva justamente neste contexto a filo sofia aristotélica a qual a bem dizer não aprecia demais em outras circunstâncias Je ne recognois chez Aristote la plus parte de mes mouvements ordinaires cita uma das muitas passagens nas quais Santo Agostinho combate as tendências dua listas e espiritualistas do seu tempo emprega o contraste ange bête que Pascal tomou dêle Poderia ter multiplicado ainda muito mais as citações cristãs favoráveis ao seu ponto de vista poderia ter chamado em seu auxílio antes de mais nada a pró pria carnificação do verbo Não o fêz ainda que o pensamento sem dúvida lhe tenha surgido para um homem educado cristã mente no seu tempo deveria terse tornado molesto com êste molivo Evitou tal alusão evidentemente de forma proposital pois isto teria conferido às suas declarações involuntàriamente o caráter de uma confissão cristã o que estava longe das suas intenções Montaigne prefere evitar temas tão delicados Mas ii questão ucêrca das suas convicções religiosas questão que me piirccc aliás ociosa não tem nada a ver com a comprovação IV Por que desmembramos em divórcio um a construção tecida com um a cor iftpondíncin ifio una e fraternal Ao contrário reatemola através de compro inlMOR mútuo que o espírito desperte e vivifique o pêso do corpo que o corpo irrmlu u levea do espírito e o fixe Quem quer que iouve como bem supremo a naiiuea du olmu e acuse a natureza da carne como idêntico mal na verdade Md Mimnio tempo deseja a alma carnalmente e foge da carne carnalmente enle luto com uma vaidade humana e não como verdade divina de Snnlo ÁRoMlnho Cidade de Deus 145 Não há peça indigna de nosso cuidado MiMi présente quo Deus nos fêz devemos prestar contas dêle até de um cabelo o iiAo i paru o homem um encargo secundário o de conduzir o homem segundo a na condição fclc 6 expresso ingênuo e muito principal e o Criador nolo iliHi 1rU e aeveramente Aquêlcs que querem desfazerse de seus corpos 4iin ui colocar M fora de ai meamos e fugir ao homem é loucura em lugar iim ufoiinur cm nnjoa tranformamsc em bêstas cm lugar de se elevar nlialHuni M r lr humore Iranacondcntea am edrontam m e 266 MIMESIS de que as raízes da sua visão realista do homem estão no cria turalismo cristão Chegamos agora à parte final do nosso texto Tratase da unidade que no seu caso existe entre obra e autor de for ma diversa do que acontece com os especialistas que demons tram conhecimentos específicos só frouxamente ligados à sua pessoa Montaigne já disse a mesma coisa com alguns matizes diferentes numa outra passagem 2 18 p 666 Je nay pas plus faict mon livre que mon livre ma faict livre consubstan tiel à son autheur dune occupation propre membre de ma vie non dune occupation et fin tierce et estrangiere comme tous autres livres 20 Nada pode ser acrescentado a isto Mas a malí cia contra o especialista e contra a especialização requer ainda um esclarecimento que tenta mostrar a posição histórica de tais manifestações O humanismo deve o ideal do homem cul tivado em todos os sentidos não especializado à antiga teoria e também ao exemplo antigo mas a estrutura social do século XVI não permitiu a sua plena realização aliás a grande quan tidade de trabalho que se fazia necessária pela redescoberta da herança antiga criou um nôvo tipo de especialista humanista Rabelais talvez ainda acreditasse que a formação cultural plena requeresse a posse individual de tôda a ciência e que portanto a universalidade fôsse a soma de todos os conhecimentos espe cializados talvez o programa educativo surrealista que propõe para Gargantua seja levado a sério neste sentido Em todo caso isso não se deixava tornar realidade e para o trabalho científico que deve ser realizado começa ora muito mais do que na Idade Média a prevalecer a especialização Diante disto o conceito ideal de um homem polifacético e uniformemente perfeito colo case numa posição diametralmente oposta êle era tanto mais eficaz quanto não era somente sustentado pelo humanismo tam bém o conceito do perfeito cortesão próprio do tardio feudalismo retomado pelo absolutismo e enriquecido com tendências plato nizantes ia em seu auxílio e o número fortemente aumentado daqueles que pelo crescente bemestar e pela maior difusão dos conhecimentos elementares exigiam uma participação da vida espiritual pertencendo em parte à aristocracia e em parte à burguesia urbana necessitava de uma forma de conhecimento que não fôsse a erudição especializada Assim surgiu uma forma de conhecimento geral não dirigida para fins profissionais muito social e até com características de moda pelo seu alcance não era evidentemente enciclopédica por mais que representasse como que um extrato de todo o conhecimento com preferência pelos elementos literários e em geral por aquêles relacionados com o gôsto justamente o humanismo estava em condições de fornecer a maior parte do material Surgiu assim a camada daqueles que mais tarde foram chamados cultos Como esta camada recruta va o seu pessoal entre os círculos social e economicamente mais 20 Não fiz o meu livro mais do que le me fdz livro consubstanciai com seu autor de uma ocupação própria membro da minha vida n lo de uma ocupação e fim terceiros e estranhou como todo o nutro livro LHUMAINE CONDITIQN 267 influentes para os quais no sentido da moda a boa euucação e as atitudes corretas a amabilidade no trato e no desembaraço nas relações com as pessoas a presença de ânimo tudo isto era muito mais importante do que qualquer competência especial como nos mencionados círculos mesmo quando eram de origem burguesa ainda prevaleciam conceitos de valor aristocráticoca valheiresco como êstes eram apoiados ainda mais pelos ideais antigos do humanismo na medida em que também na Antigüi dade as camadas dirigentes consideravam a dedicação à arte e à ciência não como profissão mas como otium como um en feite necessário para a existência mais geral e para o homem destinado à atividade política de liderança deuse ràpidamente uma espécie de desprêzo peia especialização o sábio fixado nu ma determinada especialidade e em geral o homem fixado pro fissionalmente que ficava absorvido pelo seu conhecimento e deixava com que isto transparecesse na sua atitude e na sua conversa era considerado cômico inferior e plebeu Esta ideo logia atingiu pleno florescimento sob o absolutismo francês do século XVII e ainda deveremos falar a seu respeito pois não foi pouca o que contribuiu para o ideal da separação dos estilos que domina o classicismo francês Pois quanto mais geral é a formação quanto menos ela reconhece um conhecimento es pecializado e um trabalho especializado ao menos como ponto de partida de uma visão mais geral tanto mais se afasta a pro curada perfeição universal do concreto do vivo e do prático Dentro dêste desenvolvimento embora não o tivesse acha do certamente do seu agrado Montaigne ocupa um lugar im portante o seu homme suffisant que é sempre siiffisant même í ignorer é sem dúvida um predecessor daquele honnête homme que como os marqueses de Molière não precisa ter aprendido nada em especial para poder emitir sôbre tôdas as coisas um juízo seguro segundo a moda Pois Montaigne é o primeiro cscritor que escrevia para essa mesma camada de gente culta foi com o êxito dos Essais que essa camada demonstrou pela primeira vez a sua existência Montaigne não escreve para uma determinada classe social não para um campo de especia liiiçfio específica não para o povo não para os cristãos não cHcrcvc para partido algum não se sente poeta escreve o pri meiro livro da autoconsciência leiga e eis que havia sêres hu iininos homens e mulheres que se sentiam seus destinatários Alguns trudutores humanistas especialmente Amyot de quem Montiiigne se lembra neste sentido louvandoo fizeram um tra balho preparatório mas como escritor independente é o pri meiro Assim é perfeitamente natural que tenha aquêles con ceitos do que seja formação cultural que correspondiam àquela ptímeira camuda dc pessoas cultas ainda predominantemente miülocrátieus e não premidas para a realização de um trabalho cípccinliado Hvidentcmcnte isto não tem para Montaigne a iinuqti6iicia dc tornar u sua própria cultura c o seu modo dc viver ubfttriitoA vuiox dc realidude alienados do quotidiano 268 MIMESIS qualquer e separadores estilisticamente O caso é justamente o contrário A sua natureza rica e feliz não precisava de qual quer trabalho prático ou de qualquer atividade espiritual espe cializada num determinado objeto para ficar próxima da reali dade ela como que se especializava a cada instante em outra coisa penetrava a cada instante numa nova impressão e a apro fundava de forma tão concreta que certamente teria sido con siderada imprópria no século do honnête homme ou também poderseia dizer especializouse em si mesmo na vida própria qualquer como um todo Desta forma o seu homme suffisant ainda não é o honnête homme mas um homem inteiro Além disso Montaigne viveu num tempo durante o qual o absolutis mo que estandardizou com o seu efeito igualador a forma de vida do honnête homme ainda não estava totalmente desen volvido Por isso êle ocupa certamente um lugar importante na préhistória desta forma de vida mas não faz ainda parte dela O texto por nós analisado é um bom ponto de partida pa ra tornar consciente a maior quantidade possível dos conteúdos e dos pontos de vista da emprêsa de Montaigne da representa ção da vida própria qualquer como um todo Êle próprio apre sentase de forma totalmente séria a fim de esclarecer as con dições gerais da existência humana apresentase embutido nas situações casuais quaisquer da sua vida ocupase dos movimen tos mutantes escolhidos a êsmo da sua consciência e são jus tamente o êsmo a a falta de escolha prévia que constituem o seu método Fala de mil coisas e de uma passa fàcilmente à outra quer conte uma anedota quer fale das suas ocupações diutur nas quer pondere um antigo ensinamento moral ou experimente o sabor prematuro da própria morte tudo é igual para êle ape nas se muda de tom Êste último é no conjunto o de uma conversação vivaz mas não agitada cheia de modulações di ficilmènte pode ser chamado de solilóquio pois parece dirigirse constantemente a alguém Sempre se faz sentir um algo de iro nia amiúde ela sobressai claramente mas não tira nada da sin ceridade espontânea que reluz em cada linha Montaigne nun ca é carregado nem patético nunca renuncia por respeito à dig nidade do tema a uma forma de expressão fortemente popular ou a uma imagem tirada da vida quotidiana o limite mais alto do seu estilo é como já dissemos antes aquela ênfase que do mina o nosso texto em especial o segundo parágrafo quase por inteiro Aqui manifestase como muito amiúde mediante uma sintaxe enèrgicamente contrastante geralmente antitética com formulações aguçadas e mordentes às vêzes porém ressoa um movimento quase poético como nas frases de 2 6 que cita mos acima as profondeurs opaques são quase líricas mas logo mais interrompe o grande lance poético com o forte e coloquial ouy Montaigne não conhece e não quer um tom elevado prò priamente dito acha o seu fortíssimo deleite num nível dc LHUMAINE CONDITION 269 tom que êle próprio designa como stile comique et privé 1 40 p 485 Isto é uma alusão inconfundível ao estilo realista da comédia antiga ao sermo pedester ou humilis e há alusões se melhantes aos montes Mas aquilo que o conteúdo oferece não é cômico de maneira alguma tratase da condition humaine com tôdas as suas cargas os seus problemas e abismos com tôda a sua fundamental incerteza com tôdas as ligações criaturais que lhe são impostas Assustadoramente palpável sugestiva e hor rorizante assim aparece a vida animal e a morte nela incluída sem dúvida um tal realismo criatural sem a anterior concep ção cristã do homem especialmente a da tardia Idade Média seria impensável e o próprio Montaigne também o sente sente que a sua união corpoespírito extremamente concreta está aparentada com concepções cristãs do homem Mas evi dentemente o seu realismo criatural abandonou a moldura cris tã na qual outrora surgira A vida terrena não mais é uma figura da vida no além não mais pode se permitir desprezar e negligenciar o aqui por amor a um ali A vida terrena é a única que possui quer apreciála car enfin cest nostre estre cest nostre tout 2 3 p 47 Viver aqui é a sua meta e a sua arte c êle diz isto tendo em mente uma maneira muito sim ples mas nada trivial de viver dela faz parte antes de mais nada a libertação daquilo que desencaminha ou dificulta o gô zo da existência e que desvia o vivente de si mesmo Pois cest chose tendre que la vie et aysée à troubler 3 9 p 334 É necessário conservarse livre conservarse para a própria exis tência subtrairse das responsabilidades demasiado grandes do mecanismo não se atar a isto ou àquilo la plus grande chose du monde cest de sçavoir estre à soy 1 39 p 4645 Tudo isto é bastante sério e fundamental demasiado elevado para o sermo humilis assim como o entendia a antiga teoria todavia não seria exprimível num estilo elevado e patético sem repre sentação concreta do quotidiano a mistura de estilos é criatu ral e cristã Mas a ideologia não é mais cristã nem medieval Hesitase em chamála antiga para isto está demasiado concre lamentc fundamentada e há mais ainda O desligamento das concepções da moldura cristã não colocou Montaigne apesar ilo conhecimento exato e sempre cultivado da cultura antiga simplesmente dentro das visões e circunstâncias nas quais vi viam os seus semelhantes no tempo de Cícero ou de Plutarco A liberdade ora adquirida era muito mais excitante atual mais lignda ao sentimento da insegurança o perturbador excesso de fenômenos para os quais ora se dirigia a vista parecia sobre pujiinte o mundo quer o exterior quer o interior parecia imen so ilimitado inconcebível a necessidade de se orientar nêle purccia ser difícil de satisfazer mas mesmo assim urgente Não obstante de todos os homens importantes e por vêzes sôbre liiimimiimcute grandes dêsse século Montaigne é o mais cal mo tem dentro de si gravidade e elasticidade suficientes possui i u i h U t i i ç i u imtiiriil e pouco precisa île segurança pois ela se 270 MIMESIS reconstrói espontâneamente sempre de nôvo dentro dêle mes mo para isto ajudao o seu afastamento resignado do conheci mento da natureza a sua imutável procura de nada mais do que si próprio Contudo também no seu livro treme a excita ção proveniente do súbito e violento enriquecimento da imagem do universo e da consciência das possibilidades inerentes e ainda não hauridas e o que tem ainda maior importância viu com maior nitidez do que qualquer um dos seus contemporâneos o problema da autoorientação do homem a tarefa de se criar no âmbito da existência a habitabilidade sem contar com pontos fixos de apoio Com êle a vida humana a vida própria qual quer como umtodo tomase problemática no sentido moderno pela primeira vez Nada mais deve ser dito a sua ironia a sua aversão contra as grandes palavras a sua calma e profunda satisfação consigo mesmo impedemno de ir além do problemá tico para atingir o trágico que já aparece inconfundivelmente na obra de Michelangelo por exemplo e que na geração se guinte à de Montaigne também se manifesta literàriamente em diversas partes da Europa Foi dito freqüentemente que a Idade Média cristã não conheceu a tragédia talvez seria mais exato dizer que na Idade Média tôda tragicidade está encerrada na tragédia de Cristo Mas agora ela irrompe como a coisa mais pessoal do indivíduo e ainda comparada com a da Antigüidade muito menos represada por conceitos tradicionais referentes a limites do destino da terra das fôrças naturais das formas po líticas e da essência interna do homem lá dissemos que na obra de Montaigne ainda não se encontra a tragédia êle a afasta de si demasiado pouco patético demasiado irônico de masiado cômodo tomandose esta palavra num sentido digno êle se considera apesar de tôda intromissão na própria inseguran ça demasiado calmamente Não experimentarei decidir se isto é uma fraqueza ou uma fôrça de qualquer forma êste peculiar equilíbrio do seu ser impede que o trágico cuja possibilidade é conferida ao homem no seu quadro chegue a se exprimir já na sua obra O Príncipe Cansado 13 Prince Henry Before God 1 am exceeding weary Poins Is it comc to that 1 had thought weari ness durst not have attached one of so high blood Prince Henry Faith it does me though it discolours the com plexion of my greatness to acknowledge it Does it not show vilely in me to desire small beer Poins Why a prince should not be so loosely stu died as to remember so weak a composition Prince Henry Belike then my appetite was not princely got for by my troth I do now remember the poor creature small beer But indeed these humble considerations make me out of love with my greatness What a disgrace is it to me to re member thy name or to know thy face to morrow or to take note how many silk stockings thou hast viz these and those that were thy peachcoloured ones or to bear the inventory of thy shirts as one for superfluity and one other for use 1 I Principe Henrique Poins Por Deus estou extremamente preocupado Já chegou a isso Pensei que a preocupação não se atrevesse a atacar alguém de sangue tão nobre Príncipe Henrique Por minha fé o fêz embora descore a compleição da minha grandeza o fato de reconhecêlo Não parece uma vilania da minha parte desejar cerveja fraca Poins Como Um príncipe não deveria ser tão desleixa damente criado como para lembrar um a m istura tão fraca Prfncipw Henrique Parece entio que o meu apetite não foi adquirido prindpcscamento poli por minha fé estou agora lembrando a pobro criatura a cerveja fraca Man d t fato estai humildei considerações nSo eitlo de I 272 MIMESIS Esta é uma conversação entre o príncipe Henrique o fu turo rei Henrique V e um companheiro das suas travessuras juvenis Encontrase na segunda parte do Henrique IV de Shakespeare no comêço da segunda cena do segundo ato A cômica reprovação do fato de uma pessoa de tão elevada posi ção ser atacada pelo cansaço e pelo desejo por cerveja fraca do seu espírito estar obrigado a tomar conhecimento de uma pessoa tão baixa como Poins e até guardar na sua memória o inventá rio das suas roupas é uma paródia das tendências já bastante fortes no tempo de Shakespeare no sentido de uma severa se paração entre o sublime e o realismo quotidiano Os esforços neste sentido foram inspirados pelos modelos antigos especial mente por Sêneca e difundidos pelos imitadores humanistas do drama antigo na Itália na França e na própria Inglaterra mas ainda não se haviam impôsto Por mais importante que tivesse sido a influência antiga sôbre Shakespeare ela não conseguiu seduzilo para uma tal separação estilística não a êle nem a outros poetas dramáticos da época elizabetana a tradição medie valcristã e simultâneamente popularinglêsa que se rebelava contra ela era ainda demasiado forte Num tempo muito pos terior mais de século e meio após a sua morte a poesia de Shakespeare tornouse ideal e modêlo de todos os movimentos que se revoltavam contra a severa separação dos estilos do clas sicismo francês Procuraremos verificar o que significa a mis tura de estilos na sua obra O motivo é lançado por Poins c apanhado imediatamente pelo príncipe e êle o faz com um pathos cômico levemente precioso que grifa os contrastes it discolours the complexion f my greatness contra small beer Estimulado pela segunda réplica de Poins o príncipe penetra ainda mais profundamente no tema small beer convertese então numa pobre criatura que se enfiou por assim dizer ilicitamente na distinta atmosfera da sua consciência com isto ocorremlhe outras humble conside rations que lhe tiram o gôsto da própria grandeza entre estas escolhe espirituosa encantadora e insolentemente o próprio Poins que está diante dêle não é vergonhoso para mim que lembre o teu nome o teu rosto e até o inventário do teu ves tuário Tôda uma série de elementos da mistura de estilos é men cionada ou insinuada nestas poucas linhas o elemento da cria turalidade corpórea o dos objetos baixos e quotidianos e o da mistura de classes entre pessoas de posição alta e baixa também é marcada na expressão a mistura de formas idiomáticas altas e baixas e mesmo uma das senhas clássicas do estilo baixo Príncipe H enrique acordo com a minha grandeza Que dcsvruça mc 6 lembrar o teu nome Ou reconhecer o teu route amanhã Ou tom ar nota de quantas meios de seda tens ou seja estas e aquelas que ernm de cAr de pêssego Ou fazer o inventario dns m m camixiii que sfio duas uma Hobressnlcnto e um outra pnrn j usitr J O PRÍNCIPE CANSADO 273 humble é pronunciada Tudo isto aparece copiosamente na obra trágica de Shakespeare Os exemplos da pintura do cor póreocriatural são numerosos Hamlet é gordo e perde o fôlego segundo outra leitura não é gordo mas ardente César des maia por causa do fedor do povo que lhe rende um a homena gem Cássio em Otelo está bêbado fome e sêde frio e calor atacam também as personagens trágicas elas sofrem as incle mências do tempo e da doença a loucura é representada no caso de Ofélia com uma psicologia tão realista que resulta nu ma imagem estilística totalmente diferente do que por exem plo no caso do Hércules de Eurípides e a morte que também pode ser representada de form a puramente sublime adquire aqui muito freqüentemente esqueletos fedor da putrefação o seu aspecto medievalcriatural Nunca é evitada a menção de aparelhos quotidianos nem em geral a representação con creta do decurso quotidiano da vida e isto ocupa um espaço bem maior do que na antiga tragédia embora nela e mesmo antes de Eurípides isso não estivesse tão totalmente desacredi tado como com os classicistas dos séculos XVI e XVII M uito mais importante do que isso tudo é a mistura das personagens e a mistura relacionada com isto entre o trágico e o cômico Contudo tôdas as personagens que Shakespeare trata trágica e sublimemente são de elevada posição social Não considera como a Idade Média todos os homens tràgicamente também é mais conscientemente aristocrático do que Montaigne la condition humaine refletese para êle de maneira muito di ferente nas diversas classes sociais não só do ponto de vista prático mas também no que se refere à dignidade estética Os seus heróis trágicos são reis príncipes generais nobres e as grandes figuras da história romana Um caso limítrofe é Shy lock contudo também não é de modo algum comum e quo tidiano pela sua posição social mas é um pária todavia de qualquer forma de posição social baixa O enrêdo leve movi mentado por motivos feéricos do Mercador de Veneza fica até demasiadamente sobrecarregado pela gravidade e problemá tica da sua pessoa e muitos atôres ao interpretar o papel ten taram dirigir todo o interêsse da peça para êle e fazer dêle um herói trágico A sua figura incita a uma hiperinterpretação trágica o seu ódio é motivado do modo mais profundo e hu mano mais profundamente do que a maldade de Ricardo III 61c parece importante pela sua violência e tenacidade juntase a isto o fato de que Shylock encontra para êle formulações que fazem lembrar grandes pensamentos humanistas e justamente pensamentos que emocionaram profundamente os séculos se guintes a mais famosa delas é a resposta que dá ao doge no comfiço du grande cena do julgamento IV 1 para defender NÒiiiho c contra todos o seu rígido e inclemente ponto de vista jurídico por que não tratais os vossos escravos como voNHos semelhantes yon will answer lhe slaves are ours xi do I iinswrr yon Nonte instante e cm alguns outros Shylock 274 MIMESIS possui algo de grandeza obscura e humana em geral não lhe faltam a profundeza problemática a energia na sua aparência a fôrça nas suas paixões e a violência na sua expressão Toda via Shakespeare deixa que os motivos trágicos caiam no fim numa negligente e olímpica alegria já antes marcara fortemen te alguns traços ridiculamente grotescos a saber a avareza e o temor já um pouco senil do judeu e na cena com Tubal fim de III 1 onde êle alternadamente lamenta a perda das pre ciosidades levadas por Jessica e se rejubila pela ruína de Antô nio Shylock aparece quase como figura farsesca no fim Sha kespeare o deixa ir sem grandeza como diabo logrado assim co mo constava nos seus modelos e depois da sua partida há ainda todo um ato inteiro de poético jôgo amoroso e feérico durante o qual Shylock fica esquecido e afundado Sem dúvida os ato res que querem fazer de Shylock um herói trágico estão errados isto repugna a economia geral da peça Shylock tem menos gran deza do que o cruel Jew of Malta de Marlowe isto sem consi derar o fato de que Shakespeare reconheceu e compreendeu com muito maior profundidade a problemática hum ana do seu judeu Para êle Shylock é do ponto de vista da sua posição social e do ponto de vista estético uma figura baixa indigna do trágico cuja tragicidade é invocada durante um instante mas não pas sa de ser mais um tempêro do triunfo de uma humanidade mais elevada mais nobre e livre e também mais aristocrática Tam bém o nosso príncipe pensa dêste modo Está longe de respeitar Poins como um seu igual ainda que êle seja o melhor do grupo de Falstaff ainda que tenha sagacidade e valentia Quanta arrogância há nas palavras que lhe dirige poucas linhas depois das que transcrevemos I could tell to thee as to one it pleases me for fault of a better to call my friend Ainda voltaremos a falar da maneira como Shakespeare representa em geral as classes médias e baixas de qualquer forma nunca as apresenta tràgicamente A sua concepção do trágicosublime é integralmente aristocrática Deixando porém de lado esta limitação de classes a mis tura de estilos na representação das personagens é muito mar cada O trágico e o cômico o sublime e o baixo estão entrela çados estreitamente na maioria das peças que pelo seu caráter de conjunto são trágicas sendo que para tanto trabalham em conjunto diversos métodos Enredos trágicos nos quais ocor rem ações capitais ou públicas ou outros acontecimentos trági cos alternam com cenas cômicas populares ou gaiatas que estão ligadas ao enrêdo principal por vêzes estreitamente por vêzes um pouco mais frouxamente ou nas próprias cenas trágicas aparecem ao lado dos heróis bufões ou outros tipos cômicos que acompanham interrompem e comentam à sua maneira as ações os sofrimentos e as falas das personagens principais ou finalmente muitas personagens trágicas têm em si próprias a tendência para a quebra de estilo cômica realista ou amarga mente grotesca Os exemplos são nos três casos numerosos O PRINCIPE CANSADO 275 e muito freqüentemente duas destas maneiras de proceder ou até as três agem em conjunto Para o primeiro caso a alter nância de cenas trágicas e cômicas dentro da tragédia podese indicar as cenas populares nos dramas romanos ou os episódios falstaffianos nos dramas reais ou a cena do coveiro em Hamlet esta última já tem um certo resplendor trágico e poderia pela intervenção do próprio Hamlet servir como exemplo do segundo ou até do terceiro caso O exemplo mais famoso do segundo caso o acompanhamento de personagens trágicosublimes por outras cômicas e comentaristas é o bufão de Rei Lear mas ainda no próprio Rei Lear em Hamlet Romeu e Julieta e em outras peças é fácil encontrar muitos outros exemplos dêste caso O terceiro caso é ainda mais decisivo para o caráter estilístico da tragédia de Shakespeare a mistura de estilos dentro das pró prias personagens Já Shylock em cujo caso Shakespeare se decide todavia finalmente por uma visão de conjunto cômi cobaixa é um exemplo dêste furtacor entre o trágico e o cô mico dentro de uma mesma personagem isto é encontrável também em misturas muito diferentes nas personagens que mereceram um tratamento fundamentalmente trágico Já o pró prio surgimento do amor de Romeu por Julieta tem quase ca ráter de comédia e quase inconscientemente as personagens principais dêste jôgo de am or se desenvolvem do infantil para o trágico O exitoso pedido de casamento dirigido por Gloster a Lady Anne junto ao féretro de Henrique VI King Richard III I 2 tem algo de obscuro e grotesco Cleópatra é infantil e volúvel o próprio César é indeciso supersticioso e o seu pa tético orgulho está um pouco cômicamente exagerado dentro desta espécie encontrase muita coisa em primeiro lugar são Hamlet e Lear os que fornecem os melhores exemplos para êste caso A loucura meio verdadeira meio fingida de Ham Iet delira às vêzes até dentro de uma mesma cena ou até de uma mesma fala através de todos os níveis estilísticos êle pula por exemplo do gracejo indecente para o lírico ou para o sublime da ironia absurda para a obscura e profunda medi tação do humilhante escarnecimento dos outros e de si mesmo para a patética função judiciária e a orgulhosa autoafirmação A rica arbitrariedade de Lear cheia de poder e de sentimento mostra em meio a uma sublimidade ímpar traços de um a pe nosa senilidade e teatralidade já as falas do fiel bufão puxam do manto da sua sublimidade mais profundas são ainda as quebras de estilo que estão dentro do seu próprio ser os ex cessos do seu sentimento as explosões impotentes e desvalidas dc ira a tendência para a teatralidade amarga e grotesca Na quarta cena do segundo ato cai de joelhos diante da sua mal vada filha Regan que o magoara da forma mais sangrenta e ainda o magoa para representar por assim dizer a ação que c pretende que realize isto é pedir desculpas a Goneril sua outra filh a um gesto dc amarga c grotesca autohumilhação extremamente gárrula e teatral êle está sempre pronto a exa 276 MIMESIS gerar ao extremo quer obrigar céu e terra a observar o extre mo da sua ignomínia e a ouvir as suas queixas Tais gestos parecem exageradamente chocantes num ancião de oitenta anos num grande rei todavia não ferem a sua dignidade nem a sua grandeza as suas maneiras são tão incondicionalmente reais que o rebaixamento somente as faz ressaltar com ainda m aior poder Shakespeare faz com que êle próprio pronuncie as famosas palavras ay every inch a king enquanto faz na mais profunda loucura grotescamente enfeitado o papel de rei por um instante e não o faz para que riamos mas para que choremos não só por compaixão mas também simultâneamente por admiração por tanta grandeza que parece ainda maior e mais indestrutível na sua frágil criaturalidade Bastem êstes exemplos só devem servir para relembrar ao leitor os fatos que são amplamente conhecidos assim como para ordenálos da forma necessária para o nosso questionamento Shakespeare mistura o sublime e o baixo o trágico e o cômico numa inesgotável plenitude de modulações o quadro fica ainda mais rico quando se lhe juntam as feèricamente fantásticas comé dias nas quais também por vêzes ressoam elementos trágicos Entre as tragédias não há nenhum a na qual um só nível estilístico seja conservado do princípio ao fim até em Macbeth encontrase a cena grotesca com o porteiro II 1 No decorrer do século XVI a divisão dos destinos humanos nas categorias do trágico e do cômico tornouse novamente cons ciente Evidentemente uma divisão semelhante támbém não foi totalmente estranha aos séculos medievais mas nêles a concepção do trágico não pôde se desenvolver livremente e isto não se deveu somente ou melhor não se deveu de form a alguma à cir cunstância de a teoria antiga ter sido esquecida ou mal compre endida circunstâncias desta espécie não teriam impedido a formação de um a tragicidade peculiar mas devese ao fato de a visão cristãfigural da vida humana terse oposto a um a formação do trágico Por sôbre todos os acontecimentos do decurso terreno por mais sérios que fôssem estava a dignidade superla tiva que tudo abrangia de um único acontecimento a aparição de Cristo e tôda tragédia não era senão figura ou reflexo de um só conjunto de acontecimentos no qual necessàriamente de sembocava o conjunto do pecado original nascimento e sofri mento de Cristo Juízo Final Com isto relacionase a transfe rência do centro de gravidade da vida terrena para a vida no além de tal forma que a tragédia nunca chegava ao seu fim no aquém Contudo já antes tivemos oportunidade especialmente no capítulo sôbre Dante de observar que isto não significa de forma alguma uma desvalorização da vida terrena ou da indi vidualidade humana sem embargo trouxe consigo um embota mento do fim trágico aqui na Terra e uma transferência da catarse para o além No decorrer do século XVI afrouxousc finalmente a concepção da moldura cristãfigural cm quiise tôdn O PRÍNCIPE CANSADO 277 a Europa a saída para o além ainda que só poucas vêzes fôsse totalmente abandonada perdeu em segurança e em univocidade ao mesmo tempo os modelos antigos primeiro Sêneca depois também os gregos e a teoria antiga reapareceram distintamente A poderosa influência dos autores antigos fomentou grandemen te a formação do trágico mas também não podia deixar de acontecer que ela estivesse por vêzes em contradição com as novas fôrças que a partir das circunstâncias do tempo e da pró pria cultura impeliam para o trágico A Antigüidade via os acontecimentos dramáticos da vida hum ana preponderantemente na forma das mudanças de fortu na que irrompiam de fora e de cima por sôbre o homem ao passo que na tragédia elizabetana a primeira form a peculiarmen te moderna de tragédia é muito maior o papel desempenhado pelo caráter singular do herói como fonte do seu destino Esta é acredito a opinião dominante e ela me parece acertada em conjunto Evidentemente ela precisa ser matizada e completada Na introdução a uma edição de Shakespeare que tenho diante de mim The Complete Works of W S London Glasgow sd Introduction by St John Ervine p X II encontro que tal opi nião vem expressa da seguinte form a And here we come on the great difference between the Greek and the Elizabethan drama the tragedy in the Greek plays is an arranged one in which the liaractem have no decisive part Theirs but to do and die But the tragedy in the Elizabethan plays comes straight from the heart of the people themselves Hamlet is Hamlet not because 1 capricious god has compelled him to move to a tragic end hut because there is a unique essence in him which makes him incapable of behaving in any other way than he does E o crí tico continua salientando a liberdade de ação de Hamlet a qual o faz duvidar e hesitar diante de decisões uma liberdade de açíio que Édipo ou Orestes não possuem Nesta forma o con traste está sendo considerado de maneira demasiado absoluta Não no poderá deixar de conceder por exemplo também à Medéia de Itirípides uma unique essence e até uma liberdade de ação até mesmo instantes de hesitação e de luta contra a própria e horrenda paixão pois até Sófocles que vale como modêlo clás ilcoantigo mostra no comêço de Antigone na conversação entre ui duas irmãs um exemplo de duas pessoas que colocadas dian lr ile exatamente a mesma situação sem nenhuma coerção do iliilino se decidem a partir unicamente das diversas particula mlailcs dos seus caracteres a agir de modos diferentes Apesar ilinli o conceito básico do crítico inglês é correto o caráter do herói é muito mais exata e mültiplamente formulado na tragé dia cliiibetana sobretudo cm Shakespeare do que nas tragédias mliHin e tem uma parte mais ativa na formação do seu destino A ililcnnça pode porém ser entendida de outra forma dizendo iiu a concepção do destino na tragédia elizabetana é ao mesmo tiiiipo concebida com mnior amplidão e mais estreitamente liga ilii ao ciiiYiUi ila HHoniiKitn ilo que na Iragédiu antiga Nesta 278 MIMESIS última o destino não significa nada além do contexto trágico do enrêdo atual a tram a presente dentro da qual a personagem se encontra em cada caso Fazse pouca referência àquilo que pode terlhe acontecido no restante da sua vida na medida em que não pertença à préhistória do conflito atual àquilo que chamamos o seu milieu e afora a sua idade sexo posição social e uma insinuação totalmente tipificada do seu temperamento nada ficamos sabendo sôbre a sua existência normal meramente dentro da ação trágica em questão é que o seu ser se desenvolve todo o restante fica de lado Isto decorre da forma como o antigo dram a surgiu e dos seus pressupostos técnicos a liberdade de movimentos que adquiriu só muito paulatinamente é também nas peças de Eurípides bem menor do que nas modernas Em especial a limitação ao conflito trágico atual decorre do fato de os temas de tragédia antiga terem sido tirados quase exclusiva mente do mythos nacional e em alguns poucos casos da história nacional temas sagrados cujos acontecimentos e protagonistas eram conhecidos dos ouvintes também o milieu era conhecido e além do mais era sempre quase o mesmo não havia portanto motivo para descrever seu peculiar caráter ou sua peculiar atmos fera Eurípides estremeceu a tradição na medida em que intro duziu nos temas tradicionais novas versões tanto dos enredos quanto das personagens mas também isto não pode ser compa rado à multiplicidade de temas à liberdade de criação e de inven ção que possui o teatro elizabetano e o teatro moderno em geral Graças à multiplicidade dos temas e à notável liberdade de movi mentos do teatro elizabetano são mostrados nitidamente em cada caso a atmosfera tôda peculiar as condições de vida a préhistó ria das personagens o desenredo sôbre o palco não mais se limita rigorosamente ao desenrêdo do conflito trágico mas há conversa ções cenas e personagens que a ação pròpriamente dita não re quer necessariamente averiguamos assim muita coisa a mais acêrca das personagens principais formase um conceito de sua vidâ normal e do seu caráter peculiar independentemente da trama na qual se encontram presos no momento Desta forma o destino significa aqui muito mais do que só o conflito atual N a tragédia antiga é quase sempre possível distinguir claramente entre o caráter natural da personagem e o destino que lhe cabe N a tragédia elizabetana defrontamonos na maioria dos casos não com o caráter puramente natural mas com um caráter já pré formado pelo nascimento pelas circunstâncias vitais pela pré história isto é pelo destino um caráter do qual o destino já participa em grande medida antes dêle se cum prir na form a do conflito clássico determinado êste é amiúde tão somente o motivo através do qual se atualiza um a tragicidade preparada há muito Isto é visto com especial clareza nos casos de Shylock ou de Lear O que acontece com cada um dêles lhes está destinado especialmente para o caráter especial de Shylock ou dc Lear e êste caráter não sòmente é o caráter natural mas é o caráter já préformadp pelo nascimento pela situação pcln préhistória O PRÍNCIPE CANSADO 279 quer dizer pelo destino até atingir um a peculiaridade inconfun dível e a tragédia a êle destinada Já mencionamos uma das causas ou pelo menos pressu postos desta representação do destino humano de alcance mais am plo o teatro elizabetano oferece um mundo dos homens muito mais múltiplo do que o teatro antigo à sua disposição estão todos os países e tempos e também tôdas as combinações da fantasia há temas da história nacional e da história romana da préhistória fabulosa de novelas e contos de fadas os cenários são a Ingla terra a Escócia a França a Dinamarca a Itália a Espanha as ilhas do Mediterrâneo o Oriente a Grécia antiga a Rom a antiga e o antigo Egito Já a provocação sensível que o estrangeiro por exemplo Veneza ou Verona para um público inglês de 1600 1 podia oferecer é um elemento que senão totalmente é quase totalmente desconhecido do teatro antigo uma figura como a de Shylock coloca pela sua mera existência um a série de problemas que ficaria fora de sua esfera Aqui deve ser assinalado o fato de que o século XVI já possui em grande medida uma cons ciência perspectiva histórica O teatro antigo tinha pouco motivo para desenvolver esta consciência porque o círculo dos seus obje tos era demasiado limitado e porque o público antigo considerava que outros círculos culturais ou vitais não tinham o mesmo valor do próprio e não constituíam objetos artisticamente dignos de consideração Durante a Idade Média perdeuse até o conhe cimento prático de culturas estranhas e de outras condições de vida em bora duas delas pertencentes ao passado a antiga e a judeucristã tivessem grande importância no contexto das cultu ras medievais e ambas sobretudo a judeucristã fôssem repre sentadas freqüentemente na literatura e na arte a consciência pcrspectivohistórica faltava na medida em que os acontecimentos c os sêres humanos daquelas longínquas épocas eram transferidos pura as próprias formas e condições de vida César Enéias Pila tos tornaramse cavalheiros José de Arimatéia burguês e Adão um camponês do século X II ou XIII do tipo que podia ser encontrado na França na Inglaterra ou na Alemanha Desde o alvorecer do humanismo começase a achar que os acontecimentos da lenda e da história antigas e também os da liibliu estão separados dos da própria época não sòmente pelo transcurso do tempo mas também pela total diversidade das con dições de vida O humanismo com o seu programa de renovações dnii antigas formas de vida e de expressão cria em primeiro lugar umu visão histórica em profundidade tal como nenhuma época unterior que conhecemos possuiu em tal medida vê a Antigüidade em profundidade histórica e contrastando com ela os tempos obituros da Idade Média que fica de permeio e para a aquisi çlko deita visão perspectiva não faz diferença quantos erros de comprcemfio e de interpretação êle possa ter cometido indivi ilimlincnte Já a partir de Dante 6 possível com provar a exis tência de um traço deita viifto hiitórica perspectiva no século 280 MIMESIS XVI tornase mais exata e difundida e mesmo se como veremos mais tarde a tendência para a absolutização do modêlo antigo e para a desconsideração de tudo o mais que estivesse de per meio procurasse desalojar novamente a perspectiva histórica da consciência ela nunca o conseguiu em tal medida que o viver emsimesmo natural da cultura antiga ou a ingenuidade histó rica dos séculos XII ou X III tivessem sido alcançados jamais novamente Juntase a isto no século XVI o efeito das grandes descobertas que ampliaram violentamente o horizonte cultural geográfico e simultâneamente também os conceitos acêrca das possíveis formas de vida hum ana formouse junto aos diferentes povos da Europa o sentimento nacional de tal form a que co meçaram a tom ar consciência das suas diferentes peculiaridades finalmente também o cisma da Igreja contribuiu para contrapor os diferentes grupos humanos de tal forma que em lugar dos contrastes relativamente simples entre gregos ou romanos e bár baros ou entre cristãos e pagãos difundiuse uma imagem muito mais variada da sociedade humana Isto não aconteceu de uma só vez preparouse longamente mas no século XVI avança aos trancos e numa escala impressionante tanto no que se refere à amplidão da visão perspectiva quanto à quantidade de pessoas que a adquiriram A realidade dentro da qual os homens vivem modificase tornase mais ampla mais rica em possibilidades e iíimitada assim ela também se modifica no mesmo sentido quando se torna objeto da representação O círculo vital apre sentado em cada caso não é mais o único possível ou parte dêste único possível firmemente limitado muito amiúde mudase de um círculo para outro e mesmo quando isto não acontece é possível reconhecer como fundamento da representação uma consciência mais livre que abrange um mundo ilimitado Já fi zemos menção disto ao falarmos de Boccaccio mas sobretudo no nosso capítulo sôbre Rabelais poderíamos têlo feito também ao falarmos de Montaigne N a tragédia elizabetana e sobretudo na obra de Shakespeare a consciência perspectiva tornouse natural embora não seja muito exata e não chegue a ser ex pressa com grande uniformidade Shakespeare e os poetas da sua geração têm às vêzes conceitos errados acêrca de culturas e países estranhos misturam às vêzes propositalmente cenas e alusões contemporâneas em meio a um tema estranho assim co mo acontece por exemplo com as observações sôbre o teatro londrino em Hamlet muito freqüentemente Shakespeare apre senta um país feérico só vagamente ligado a tempos ou espaços reais como cenário das suas peças mas também isto não são senão formas lúdicas da visão perspectiva a consciência da mul tiplicidade das condições da vida humana existe nêle e êle pode presumila no seu público Dentro do gênero isolado o elemento perspectivo mostrase ainda de uma outra maneira A Shakespeare e a muitos dos contemporâneos repugna desligar radicalmente do contexto geral dos acontecimentos uma única viragem do destino que atinja O PRÍNCIPE CANSADO 281 somente poucas pessoas num só nível estilístico tal como o fizeram os poetas trágicos da Antigüidade e no qual os seus imitadores dos séculos XVI e XVII chegaram às vêzes a supe rálos êste processo isolante que é explicável a partir de pres supostos culturais míticos e técnicos do teatro antigo contraria um conceito do concêrto universal mágico e polivocal que sur gia no Renascimento O teatro de Shakespeare não apresenta golpes isolados do destino que quase sempre caem de cima e cujas conseqüências se resolvem entre poucas personagens en quanto que o mundo circundante fica limitado a outras poucas absolutamente necessárias para a prossecução do enrêdo pelo contrário apresenta urdiduras inerentes ao mundo sur gidas de determinadas circunstâncias e do encontro de carac teres formados de múltiplas maneiras e das quais participa tam bém o mundo circunstante até a paisagem até mesmo os espí ritos dos mortos e outros sêres supraterrenos enquanto isso o papel dos participantes freqüentemente não contribui em nada ou o faz em muito pouco para o avanço da ação mas permanece num jôgo simpático conjunto ou contrário num outro nível estilístico Aparecem personagens secundárias e ações paralelas cm grande quantidade das quais a economia da ação poderia prescindir totalmente ou pelo menos em grande parte assim por exemplo o episódio de Gloster no Rei Lear a cena entre Popeu e Meria em Antônio e Cleópatra 2 7 muitas cenas c personagens de Hamlet todo mundo conhece outros exem plos Evidentemente tais ações e tais personagens não são to talmente inúteis na economia dos dramas mesmo uma charge como Osric em Hamlet está tão bem acabada porque libera um importante reflexo do espírito e do estado de ânimo momentâneo de Hamlet mas para a prossecução da ação o acabamento da figura de Osric não é necessário A economia das peças de Shukespeare é de uma pródiga generosidade e serve como teste munha da sua alegria de modelar os mais diferentes fenômenos vituis a qual por sua vez está inspirada pela concepção da concatenação universal do mundo de tal forma que a cada corda que é tangida no destino humano ressoam harmônica ou ilcsurmônicamente uma pletora de vozes A tempestade para u qual Rcgan impele o seu velho pai o rei não é um a casuali dade é uma manifestação de potências mágicas as quais são mobilizadas para impulsionar o processo para o seu cimo e tam bém as falas do bôbo e depois do pobre Tom são vozes da quclu orquestra universal enquanto que o seu papel dentro da culiuturu meramente racional da ação é apenas secundário Assim npiirccc uma riqueza no gradiente dos níveis estilísticos a qual ilontro do tom principal que é sublime desce até o farsesco e o tolo Ptc quadro estilístico é muito peculiarmente elizabetano e slmkcxpcriuno mas as suas raízes estão na tradição popular a siiher originalmente no drama universal da história de Cristo imliiviii há degraus intermediários c também se introduziram 282 MIMESIS outros motivos folclóricos individuais que não são de origem cristã mas a concepção criatural do homem a estrutura frouxa com as muitas ações e personagens secundárias e a mistura do sublime com o baixo não pode provir em última análise de nenhuma outra fonte afora o teatro medieval cristão no qual tôdas estas coisas eram necessárias e estavam unidas à essência da questão Até a participação dos elementos num destino im portante tem o seu modêlo mais conhecido no terremoto que sobreveio à morte de Cristo Mat 27 51 ss e êste modêlo conservou grande eficácia ao longo da Idade Média cf Canção de Rolando 1423 ss ou Vita Nova 23 Mas ora no teatro elizabetano a superestrutura do conjunto perdeuse o drama de Cristo não mais é o drama geral não é mais o vaso para o qual flui todo destino humano a história dramatizada recebe uma determinada ação humana como ponto central adquire a sua unidade a partir dela e o caminho está livre para a tragédia humana independente A velha e grande ordem do pecado ori ginal sacrifício divino Juízo Final retrocede o dram a humano encontra a sua ordem em si mesmo e aqui intervém o1 modêlo antigo com epítase crise e solução trágica também a divisão dos acontecimentos em atos é tirada de lá Contudo a liberdade do trágico e em geral o campo de ação dos homens não mais conhecem os antigos limites a dissolução do cristianismo me dieval que se estava realizando em grandes crises faz surgir uma necessidade dinâmica de autoorientação uma vontade de rastejar as fôrças secretas da vida sendo que com isto entram em mútua relação os elementos mágicos e os científicos o elementar e o moralhumano uma imensa simpatia parece permear o mundo Além do mais o cristianismo havia compreendido os problemas humanos bem e mal culpa e destino de uma forma mais fortemente excitante antitética e até paradoxal do que a Anti güidade também quando a solução através do pecado original e do drama da salvação começou a perder sua validade a com preensão mais profundamente excitante do problema e as con comitantes concepções acêrca da natureza do homem conser varam longamente sua eficácia A obra de Shakespeare mostra o desdobramento das fôrças liberadas mas que carregam ainda em si tôda a riqueza moral do passado logo depois os movi mentos contrários represadores conseguiram predominar o pro testantismo e a contrareforma a organização absolutista da sociedade e da vida espiritual a imitação acadêmicopurista da Antigüidade o racionalismo e o cientificismo empírico todos êstes operaram em conjunto no sentido de evitar que esta liber dade no trágico continuasse a evoluir O mundo moral e mental de Shakespeare é desta forma muito mais movimentado mais rico em camadas e de per si antes mesmo de qualquer ação determinada mais dramático do que o da Antigüidade a própria base sôbre a qual os homens se mo vimentam e os acontecimentos se desenrolam é mais insegura e parece estar agitada por comoções internas nâo há qualquer O PRINCIPE CANSADO 283 mundo fixo como pano de fundo mas um mundo que se re produz constantemente a partir das fôrças mais múltiplas Isto é sentido certamente por qualquer leitor ou espectador mas talvez não seja inútil descrever um pouco mais pormenorizada mente a dinâmica dos seus processos mentais e dar um exemplo Na tragédia antiga o filosofar é em geral nãodramático é sen tença abstraída dos acontecimentos e generalizada desligada da personagem e do seu destino nas peças de Shakespeare tornase pessoal brota imediatamente da situação atual de quem fala e permanece ligada à mesma não é resultado da experiência ad quirida através dos acontecimentos e também não é uma res posta eficaz no diálogo versificado mas é autoobservação dra mática que procura o lugar certo para a sua entrada ou se de sespera à sua descoberta Quando o mais revolucionário dos trágicos gregos Euripides polemiza contra as diferenças de classe entre os homens isto acontece em um verso em forma de sentença que diz por exemplo que só o nome envergonha o escravo afora isso um escravo nobre não é menos do que um homem livre Shakespeare não polemiza contra a ordem esta mental e parece que êle não nutria qualquer intenção social mente revolucionária Contudo quando uma das suas figuras a partir da sua situação externa tais pensamentos isto acontece com um a fôrça atual e dramática que confere ao pensamento algo de arrebatador e cortante Deixai os vossos escravos viver como vós mesmos dailhes o mesmo alimento e habitação ca saios com os vossos filhos Dizeis que êstes escravos são vossa propriedade Pois bem da mesma forma vos respondo esta libra de carne eu comprei é m in h a O pária Shylock não pela para o direito natural mas para a injustiça existente quan ta dinâmica atualidade há numa tal ironia amarga trágica O grande número de fenômenos morais que o todo do inundo em constante mudança faz vir à tona e que participam iilivamcnte êles próprios da sua renovação produz uma riqueza dc níveis tonais que a tragédia antiga nunca pode produzir Abro a êsmo um volume de Shakespeare e encontro Macbeth to terceiro cena sexta onde Lennox um nobre escocês co munica a um seu amigo a sua opinião sôbre os últimos aconte cimentos My former speeches have but hit your thoughts Which can interpret further only I say Things have been strangely borne The gracious Duncan Was pitied of Macbeth marry he was dead And the rigthvaliant Banquo walkd too late Whom you might say if t please you Fleance killd For Fleance fled Men must not walk too late Who cannot want the thought how monstruous It wai for Malcolm and for Donalbain 284 MIMESIS To kill their gracious father damned fact How dit it grieve Macbeth did he not straight In pious rage the two delinquents tear That were the slaves of drinks and thralls of sleep Was not that nobly done Ay and wisely too For twould have angerd any heart alive To hear the men denyt 2 A espécie de discurso utilizada nesta peça na qual se dá a entender algo de maneira maliciosa insinuase sem pro nunciálo era bem conhecida na Antigüidade Quintiliano tra ta dela no nono livro quando fala das controversiae figuratae e encontramse exemplos nos grandes oradores Mas assim tão totalmente sem retórica em meio a uma conversação privada e contudo totalmente dentro da atmosfera carregada e trágica isto constitui um a mistura que era totalmente estranha à Antigüi dade Folheio um tanto e encontro as palavras com as quais Macbeth imediatamente antes de sua última luta recebe a no tícia da morte da sua mulher S e y t o n The queen my lord is dead M acbeth She should have died hereafter There would have been a time for such a w ord Tomorrow and tomorrow and tomorrow Creeps in this petty pace from day to day To the last syllable of recorded time And all our yesterdays have lighted fools The way to dusty death Out out brief candle Lifes but a walking shadow a poor player That struts and frets his hour upon the stage And then is heard no more it is a tale Told by an idiot full of sound and fury Signifying nothing Enter a Messenger Thou comst to use thy tongue thy story quickly 3 2 Minhas falas anteriores apenas bateram em teus pensamentos os quais podem interpretar além só digo as coisas nasceram estranhamente O gentil Duncan foi objeto de pena para M acbeth claro estava morto e o reto e valente Banquo passeou tarde demais êste podeis dizer foi morto por Fleance pois Fleance fugiu Os homens não devem passear muito tarde Quem não pode fugir da idéia de quão monstruoso foi para Malcolm e Donalbain matar o seu gentil pai M aldito fato Como angustiou Macbeth N ão é verdade que ele com ira piedosa matou logo os dois delinqüentes que eram escravos da bebida e prêsas do sono N ão foi isso feito com nobreza Sim e com prudência também pois teria irado qualquer coração vivo ouVilos n e g ar 3 Seyton A rainha senhor está morta Macbeth Deveria ter morrido mais tarde teria havido tempo para tal n o tíc ia Amanhã e amanhã e amanhã arrastase com êsse passo miúdo dia a dia até a última sílaba do tempo rememorado e todos os nossos ontens iluminaram aos tolos o caminho para a morte sombria Apagatc apagate curta vela A vida não é senão uma sombra andante um mau ator que passa pomposamente pelo palco e depois não mal é ouvido é um conto nnrrado por um Idiota cheio de som e fúria significando mtda Entra um mensageiro Vens para uxnr tun língua tua hixtòrla deprcM H O PRÍNCIPE CANSADO 285 Macbeth através de tudo o que de terrível fêz e sofreu pela sua ação tornouse duro e destemido dificilmente algo pode ainda assustálo have suppd full with horrors além disto tôdas suas fôrças estão em máxima tensão para aquela última defesa então chegalhe a notícia da morte da companheira que outrora o em purrara para o crime e que foi abandonada antes dêle pela fôrça da vida e o joga só por um instante em obscuras cismas um relaxamento evidentemente um relaxamento que só pode levar para a desesperação e a gravidade mas nesta gravi dade também pesa a humanidade e a sabedoria Macbeth car regouse de sabedoria adquirida por êle próprio brotada do seu fado ficou maduro para o conhecimento e para a morte o seu último grau de maturidade êle o atinge neste instante quando a sua última e única companheira o abandona Assim como aqui a partir do horrendo e trágico assim também surge uma outra vez do grotesco e risível puro o homem assim como êle foi propriamente concebido e tal como talvez em instantes felizes se realizou Polônio é tolo senil e doido mas quando dá ao filho que parte os seus últimos conselhos e sua bênção I 3 possui a sabedoria e a dignidade do ancião Não só a grande quantidade de fenômenos e a mistura entre 0 alto e o baixo o sublime e o quotidiano o trágico e o cômico apresentada sempre em novas tonalidades e extremamente huma na devem ser assinaladas aqui mas também aquela concepção dificilmente exprimível com palavras claras mas que opera em lôda parte segundo a qual há uma base universal que se tece constantemente a si própria se renova e está internamente ligada cm tôdas suas partes de onde tudo isto flui e que torna impossí vel isolar um acontecimento ou um nível estilístico A figura 1 idade comum claramente delimitada de Dante dentro da qual tudo chegará a prestar contas no além no reino definitivo de Deus e no qual as pessoas só no além atingem a sua plena realidade não mais existe já no aquém as personagens trágicas atingem a sua plenitude final quando cheias dos seus destinos amadurecem como Hamlet M acbeth e Lear e contudo não estão prêsas sòmente ao destino que coube a cada um mas estão todos unidos como atôres naquela peça que foi escrita pelo desconhecido e inescrutável poeta do universo que está ainda sendo escrita por êle uma peça cuja verdadeira significação e realidade nem êles nem nós conhecemos Citarei a êste respeito alguns versos d A Tempestade IV 1 these our actors As I foretold you were all spirits and Are melted into air into thin air And like the baseless fabric of this vision The cloudcappd towers the gorgeous palaces The solemn temples the great globe itself Yen all which it inherit shall dissolve And like this unsubstimtiiil pageant faded 286 MIMESIS Leave not a rack behind we are such stuff As dreams are made of and our little life Is ronded with a sleep4 Com isto fica dito simultaneamente que em bora Shakes peare contenha a realidade terrena e também suas formas mais quotidianas em mil refrações e misturas a sua intenção ultra passa de longe a representação da realidade nas suas ligações meramente terrenas êle abrange a realidade mas também a sobrepuja Isto fica aparente já com as aparições dos espíritos e das bruxas e no estilo das falas amiúde nãorealista no qual se fundem as influências de Sêneca do petrarquismo e de outras tendências da moda de uma maneira peculiarmente concreta mas só imperfeitamente realista Isto manifestase ainda mais essencialmente na estrutura interna dos acontecimentos os quais freqüentemente e justamente nas peças mais importantes são apenas de um realismo um tanto desconexo e gretado e apre sentam repetidamente a tendência de passar para o feérico ou para o fantàsticamente lúdico ou ainda para o supraterreno e demoníaco E vista ainda de um outro ângulo a tragédia de Shakespeare não é totalmente realista já falamos no comêço dêste capítulo a respeito êle não leva a sério ou não considera tràgicamente a realidade comum e quotidiana trata tràgicamente só pessoas nobres príncipes e reis homens de estado generais e heróis da Antigüidade quando aparecem pessoas do povo ou soldados ou membros das classes médias ou inferiores isto sempre acon tece em estilo baixo num dos muitos matizes do cômico dos quais êle dispõe Esta separação estamental dos estilos pode ser encontrada na sua obra mais conseqüentemente do que nas obras da literatura ou da arte medievais sobretudo as cristãs e tratase indubitàvelmente de uma irradiação do antigo conceito do trágico Todavia como já assinalamos as suas figuras trági cas pertencentes às altas esferas apresentam freqüentemente que bras estilísticas para o corpóreocriatural para o grotesco e o discrepante mas isto raramente acontece viceversa Shylock é talvez a única figura que poderia ser considerada como exce ção e já vimos como mesmo no seu caso os motivos trágicos são abandonados no fim O espírito universal de Shakespeare não é de form a alguma um espírito popular e isto diferenciao também fundamentalmente dos seus admiradores e imitadores do Sturm und Drang e do Romantismo A ação dinâmica das fôrças elementares que sentimos na sua obra não tem nada a ver com as profundezas da alma popular com a qual aquêles pósteros a ligaram Neste sentido é elucidativo comparar as 4 êstes nossos atôres como vos antecipei eram todos espíritos e derreteramse em ar em ar sutil e como a fábrica infundada desta visto as tôrres coroadas de nuvens os esplêndidos palácios os solenes templpa o próprio grande globo sim tudo o que herda dissolverseà e como êste cenário iniubs tandal um a vez dissipado n ío deixará atrás de il nem uma rufna lomoa do mesmo estôfo de que os sonhos sto feltoi e a noisa breve vida te perfaz com um sono O PRÍNCIPE CANSADO 287 suas cenas populares com as de Goethe A primeira cena de Romeu e Julieta durante a qual há o encontro dos criados dos Montescos e dos Capuletos apresenta uma grande semelhança com o encontro dos líderes camponeses com os cavaleiros de Bamberg no comêço do Goetz von Berlichingett quanto mais sérias mais humanas e mais conscientemente participantes dos acontecimentos são as personagens de Goethe E mesmo se neste caso fôsse talvez possível objetar que os problemas que são ventilados do Goetz são muito diferentes e atingem diferentemen te o povo esta objeção fica invalidada quando a comparação é feita entre as cenas populares de algum dos dramas romanos Júlio César ou Coriolano e as de Egmont Não somente o enfiarse na alma popular estava longe de Shakespeare mas também não há na sua obra qualquer elementp precursor do flu minismo da moral burguesa ou do culto dos sentimentos nas suas obras cujo autor fica sendo pràticamente anônimo sopra um vento diferente daquele das criações do tempo do despertar alemão nas quais se percebe sempre a personalidade profundamente sen sível e de rico caráter que sentada num quarto velho burguês se entusiasma pela liberdade e pela grandeza Considerese quão inimagináveis seriam figuras como a de Clara ou M argarida ou uma tragédia conlo Luise Millerin no mundo de Shakespeare um enrêdo trágico no qual se trate da virgindade de um a jovem burguesa é no contexto da literatura elizabetana um disparate Lembrese em conexão com isto a famosa interpretação do Hamlet dada por Goethe em Wilhelm Meisters Lehrjahre livro 4 capítulo 3 e 13 É profunda e bela com razão não só os românticos mas também muitos leitores posteriores na Alemanha e na Inglaterra admiraramna A maneira pela qual Goethe explica a tragédia de Hamlet a partir da súbita ruína da vida exterior e moralmente assegurada na sua juventude a partir do desmoronamento da confiança na ordem ética que era representada para êle anteriormente pelo laço ora tão hor rendamente rompido entre os seus pais os quais amava e hon rava êste tipo de explicação é de grande fôrça de convicção A interpretação de Goethe é contudo simultâneamente tam bém um a imagem estilística do seu próprio tempo da Goethe zeit Hamlet aparece na sua interpretação como um jovem tenro sensível que procura o mais elevado pelo caminho do ideal modesto e com insuficiente fôrça no seu ser interior para citar as próprias palavras resumidoras de Goethe uma grande ação é imposta a uma alma que não está em condições de rea lizála ou um pouco mais tarde Um ser belo puro nobre elevadamente moral sem a fôrça sensível que faz o herói su cumbe sob uma carga que não pode levar nem jogar longe de i Será que Goethe não sentiu a fôrça original e ainda crescente durante a peça de Hamlet o seu hum or cortante diante do qual recuam todos os que o circundam a astúcia e a temeridade dos seus ataques a sua selvagem dureza contra Ofélia u violência com a qual enfrenta sua mãe a fria calma 288 MIMESIS com que tira do seu caminho os cortesãos que se lhe atraves sam a elástica audácia íe tôdas as suas palavras e de todos os seus pensamentos Por mais que adie constantemente a ação decisiva êle é de longe a figura mais forte da peça ao seu redor há uma aura de demonismo que cria respeito timidez e não raramente mêdo quando então algum movimento ativo irrompe dêle êste é rápido audaz e por vêzes pérfido e atinge com violência certeira o centro do alvo Evidentemente é verdade que justamente os acontecimentos que o acordam para a vingança paralisam a sua fôrça de decisão mas será que isto pode ser explicado a partir de uma fraqueza vital a partir da falta da fôrça sensível que faz o herói Não será antes que numa natureza forte e dotada de uma riqueza quase demoníaca ganhem em fôrça a dúvida e o desgosto pela vida e que todo o pêso dêsse ser se desloque precisamente nesse sentido Que justamente pela paixão com que uma natureza forte se entrega aos seus impulsos êstes se tornem tão dominadores que o dever de viver se tom e molesto e o de agir um tormento Não é o caso de tentar aqui a oposição de uma outra interpretação contrastante com a de Goethe tratase de indicar o sentido em que se movimentavam Goethe e o seu tempo quando se esfor çavam em igualar Shakespeare às suas próprias convicções Aliás a pesquisa mais recente demonstra diante de tais inter pretações uniformemente psicológicas das personagens de Sha kespeare um ceticismo bastante marcado excessivo até para o meu modo de sentir A riqueza de níveis estilísticos que está contida na obra trágica de Shakespeare vai além do realismo propriamente dito além disso ela é mais dura mais isenta de pressupostos e de uma form a divina mais imparcial do que os seus posteriores de ao redor de 1800 Por outro lado como tentamos demonstrar acima ela é condicionada pelas possibilidades da mistura esti lística que foram criadas pela Idade Média cristã Somente pela mistura estilística cristã pôde se tornar realidade o pressentimento que Platão pronuncia no fim do Banquete quando Sócrates de madrugada explica aos últimos bebedores Agatão e Aristófa nes que estão quase vencidos pelo cansaço que um e o mesmo poeta deveria dominar a tragédia e a comédia e que o legítimo criador de tragédias também é um comediógrafo O fato de que êste pressentimento ou exigência de Platão somente poderia ama durecer pelo caminho da visão cristãmedieval do homem e so mente poderia se tornar realidade depois de essa visão ter sido ultrapassada já foi reconhecido e enunciado freqüentemente pe lo menos em suas linhas gerais até pelo próprio Goethe Quero citar aqui uma passagem na qual êle fala nisso pois ela própria é um fenômeno estilístico reúne uma compreensão engenhosa e uma certa limitação da visão crítica que sc apresenta como sendo de um humanismo burguês ultrapassado avêsso i Uladc O PRINCIPE CANSADO 289 Média A passagem consta das notas à sua tradução da narra ção de Diderot O sobrinho de Rameau perto do fim da secção importante de per si sôbre Gôsto foi escrita em 1805 e diz assim Wohl findet sich bei den Griechen so wie bei manchen Roemern eine sehr geschmackvolle Sonderung und Laeuterung der verschiedenen Dichtarten aber uns Nordlaender kann man auf jene M uster nicht ausschliesslich hinweisen W ir haben uns anderer Voreltern zu rühmen und haben manch anderes Vorbild im Auge Waere nicht durch die romantische Wendung unge bildeter Jahrhunderte das Ungeheure mit dem Abgeschmackten in Berührung gekommen woher haetten wir einem Hamlet einen Lear eine Anbetung des Kreuzes einen standhaften Prinzen Uns auf der Hoehe dieser barbarischen Avantagen da wir die antiken Vorteile wohl niemals erreichen werden mit Mut zu erhalten ist unsere Pflicht s As duas peças que Goethe enumera elogiosamente após as de Shakespeare são de Calderón e isto levanos para a litera tura do siglo de oro espanhol na qual apesar de tôdas as dife renças de pressupostos de atmosfera aparece um tratamento da realidade vital que se aproxima muito daquele do teatro clizabetano tanto no que se refere à mistura dos níveis estilís ticos quanto na intenção geral que embora inclua a representa ção do realquotidiano não o considera a sua meta vai além disto o esforço numa constante poetização e soerguimento do real é ainda mais fortemente sensível do que na obra de Shakes peare Mesmo no que se refere à divisão estamental de estilos podese constatar certas semelhanças mas estas são somente superficiais o orgulho nacional espanhol pode considerar todo espanhol como figura de estilo elevado não só os espanhóis de nobre estirpe pois o motivo da honra feminina tão importante c a bem dizer central na literatura espanhola dá origem a enredos trágicos até entre camponeses e surgem desta forma drumas populares de caráter trágico como por exemplo Fuente Ovejuna de Lope de Vega ou El Alcaide de Zalamea de Cal tlcrón Neste sentido o realismo espanhol é mais decididamente popular e preenchido da vida do povo do que o inglês de igual época em geral transmite muito mais a realidade quotidiana contemporânea Enquanto na maioria dos estados europeus e obretudo na França o absolutismo fêz o povo calar de tal ormu que durante dois séculos a sua voz quase não se fêz 5 Certamente encontrase nos gregos assim como em alguns romanos urna M paritçlo e depuração das diferentes espécies de poesia feita com muito bom mau a nós nórdicos não se pode indicar exclusivamente tais modelos rnttamox louvarnos de ter outros antepassados e temos sob os olhos alguns outros Mtmfoloa Sc graças ao jeito romântico de séculos incultos o monstruoso não HveiMJ entrado em contato com o desenxabido de onde teríam os obtido um Htimfot um tenr uma Devoção da Crui um Príncipe Constante Maniermono corajosamente à altura deita bárbaras v a n ta g e n s uma vez Jhç certam en te nunca atlngircmoN mn vantagenN dos antigos Cate 6 o nosso Invar 290 MIMESIS ouvir na Espanha êle estava tão intimamente ligado ao que a tradição nacional tinha de mais próprio que durante a sua vigên cia o povo conseguiu uma expressão literária colorida e vivaz Todavia a literatura espanhola do grande século não tem uma importância muito grande na história da conquista literária da realidade moderna a sua importância é bem menor que a de Shakespeare mesmo que a de Dante Rabelais ou Montaigne Embora também tivesse influenciado fortemente o Romantismo a partir do qual como esperamos poder mostrar mais tarde evoluiu o moderno realismo a literatura espanhola do siglo de oro fecundou dentro do romantismo muito mais o fantástico o aventuroso e o teatral do que a tendência para o real A poesia medieval espanhola tinha sido realista de um a form a espe cialmente legítima e concreta mas o realismo do siglo de oro é em si como que um a aventura e parece quase exótico é mesmo na representação dos campos mais baixos da vida extre mamente colorida poetizante e ilusionista ilumina a realidade quotidiana com raios das formas cerimoniais de trato com construções lingüísticas rebuscadas e preciosas com o grande pathos dos ideais cavalheirescos e com tôda a magia interior e exterior da devoção barrococontrareformadora faz do mundo um teatro prodigioso E dentro dêste teatro prodigioso e também isto é essencial para a sua relação com o moderno rea lismo reina porém apesar da aventurosidade e da prodigio sidade uma ordem fixa em bora no mundo tudo seja sonho nada é um enigma que exija ser decifrado há paixões e con flitos mas não há problemas Deus o rei honra e amor classe e posição estamental são inamovíveis e indubitados e nem as figuras trágicas nem as cômicas colocamnos questões que sejam difíceis de responder Entre os autores espanhóis do apogeu que conheço Cervantes é certamente aquêle cujas perso nagens mais podem chegar a apresentar uma certa problemática mas basta comparar a doidice apenas errada fácil de interpretar e em última análise curável de Dom Quixote com o estado fundamental multívoco e incurável de loucuranomundo de Hamlet para perceber a diferença Uma vez que o bastidor da vida é tão forte e seguro por mais coisas erradas que nêle acon teçam não se sente nas obras espanholas apesar de todo o movimento colorido e vivaz nada que possa ser tido como um movimento nas profundezas da vida e menos ainda alguma vontade de pesquisa fundamental ou de formulação prática As ações dos sêres humanos têm nestas peças o fim preponderante de demonstrar e provar deslumbrantemente a posição moral seja como fôr trágica cômica ou uma mistura das duas se elas têm algum efeito se levam alguma coisa adiante ou põem alguma coisa em movimento isto tem pouca importância e de qualquer forma a ordem do mundo pcrmanccc depois tão inamovível mente firme quanto antes só dentro dela é possível a O PRÍNCIPE CANSADO 291 provação ou o desencaminhamento Quão mais importante é a atitude moral e a intenção do que o êxito isto é parodiado por Cervantes no 19 capítulo do livro primeiro do Dom Quixote quando o cavaleiro fica sabendo através do ferido bachiller Alonso López da desgraça que causou com o seu ataque ao cortejo fúnebre não sente nenhum a espécie de consternação ou em baraço havia considerado o cortejo como um a aparição satâ nica e tinha portanto o dever de atacálo está satisfeito de ter cumprido com o seu dever e gabase disso Aliás raramente um tema colocou tão perto a tarefa da pesquisa problemática da realidade contemporânea quanto Dom Quixote O conflito entre as concepções ideais de um a época passada e de um a classe que perdeu a sua função por um lado e a realidade contempo rânea pelo outro deveria levar para uma representação proble máticocrítica desta última tanto mais que o doido Dom Quixote é amiúde superior aos seus antagonistas sensatos graças à sua firmeza ética e ao seu espírito Mas Cervantes não desenvolveu a sua obra neste sentido A sua representação da realidade espanhola se desfibra em muitas aventuras e imagens isoladas os seus fundamentos permanecem intocados e inamovidos A Dulcinéia Encantada n Yo no veo Sancho dijo Don Quijote sino a três labradoras sôbre tres borricos1 I Ahora me libre Dios dei diablo respondió Sancho I Y es posible que tres hacaneas o como se llaman blancas como el ampo de la nieve le parezcan a vuesa merced borricos Vive el Senor que me pele estas barbas si tal fuese verdad Pues yo te digo Sancho amigo dijo D Quijote que es tan verdade que son borricos e borricas como yo soy Don Quijote y tu Sancho Panza a lo menos a mil tales me parecen Calle senor dijo Sancho no diga la tal palabra sino despabile esos ojos y venga a hacer reverencia a la senora de sus pensa mientos que ya llega cerca y diciendo esto se adelantó a recebir a las tres aldeanas y apeándose del rucio tuvo dei cabestro al jumento de una de las tres labradoras y hincando ambas rodillas en el suelo dijo Reina y princesa y duquesa de la hermosura vuestra altivez y grandeza sea servida de recebir en sua gracia y buen talante al cautivo caballero vuestro que alli está hecho piedra marmol todo turbado y sin pulsos de verse antes vuestra magni fica presencia Yo soy Sancho sua escudero y él es el asendereado caballero D Quijote de la Mancha llamado per otro nombre el Caballero de la Triste Figura A esta sazón ya se habia puesto D Quijote de hinojos junto a Sancho y miraba con ojos desencajados y vista turbada a la que Sancho llamaba reina y senora y como no descubría en ella sino una moza aldeana y no de muy buen rostro porque 1 Êstc capítulo só foi acrescentado em 1949 tré ano após a nporlçío ila primeira edição em alem lo especialmente para a trnduçlo em epanhol A DULCINÉIA ENCANTADA 293 era cariredonda y chata estaba suspenso y admirado sin osar desplegar los labios Las labradoras estaban asi mismo atônitas viendo aquellos dos hombres tan diferentes hincados de rodillas que no dejaban pasar adelante a su companera pero rompiendo el silencio la detenida toda desgraciada y mohina dijo Apártense nora en tal dei camino y déjenmos pasar que vamos de priesa A lo que respondió Sancho O princesa y senora universal de Toboso como vuestro magnifico corazón no se enternece viendo arrodillado ante vues tra sublimada presencia a la coluna y sustento de la andante caballeria Oyendo lo qual otra de las dos dijo Mas jo que te estrego burra de mi suegro m irad con que se vienen los senoritos ahora a hacer burlas de las aldeanas como se aqui no supiésemos echar pullos como ellos vayan su camino y déjenmos hacer el nueso y series ha sano Levántate Sancho dijo a este punto Don Quijote que ya vco que Ia fortuna de mi mal no harta tiene tomados los tiuninos todos por donde pueda venir algun contento a esta anima mesquina que tengo en las carnes Y tu o extremo valor que puede desearse termino de la humana gentileza unico re mcilio de esto afligido corazón que te adora ya que el maligno encantador me persigue y ha puesto nubes y cataratas en mis iiJoh y para solo ellos y no para otros ha mudado y transformado Ui nin igual hermosura y rostro en el de una labradora pobre ii ya tambien el mio no le ha cambiado en el de algun vesti lo para haccrle aborrecible a tus ojos no dejes de mirarme bluiulii y amorosamente echando de ver en esta sumisión y iimulillamicnto que a tu contrahecha hermosura hago la hu iiuldml con que mi alma te adora Toma que mi aguelo respondió la aldeana amiguita iiiy yo dc oir resquebrajos Apártense y déjenmos ir y agrade iftueli liemos ApmtÓHc Sancho y dejola ir contentisimo de haber salido liliii de nu enredo Apenas se vió libre la aldeana que habia Invito In figura dc Dulcinea cuando picando a su cananea con um iiyuijon que en un paio traia dió a correr por el prado iiilcliinlo y como Ia borrica sentia Ia punta dei aguijón que le 1 uilliihii num de lo ordinário comenzó a dar corcovos de ma luiii iiii dirt con la seftora Dulcinea en tierra lo cual visto por l Jiilote acudió a levantaria y Sancho a componer y cinchar iil nlliiiiilii que tumbien vino a la barriga de la pollina Acomo iliitlii Mim el nlbiirda y queriendo D Quijote levantar a su en wmimlit eftoru en los brazos sobre la jumenta la senora levan laiiilitHi ilil Mielo lc quitó de aquel trabajo porque haciendose ulgtm timtu uii Ah tomó una corridica y puestas ambas manos miltir lii umiim dc lu pollina dió con su cucrpo mas ligcro que 294 MIMESIS un halcón sobre la albarda y quedó a horcajadas como si fuera hombre y entonces dijo Sancho Vive Roque que es la senora nuestra ama mas ligera que un alcotán y que puede ensenar a subir de la gineta al mas diestro Cordobés o Mejicano el arzón trasero de la silla pasó de un salto y sin espuelas hace correr la hacanea como una cebra y no le van en zaga sus doncellas que todos corren como el viento Y así era la verdad porque en viendose a caballo Dulcinea todas picaron tras ella y dispararon a correr sin volver la cabeza atras por espacio de más de media legua Siguiólas D Quijote con la vista y cuando vió que no parecian volviendose a San cho le dijo Sancho qué te parece cuan mal quisto soy de encan tadores Eu não vejo Sancho disse D Quixote senão três lavradoras sôbre três burrinhos Agora livreme Deus do diabo respondeu Sancho e é pos sível que três hacanéias ou como se chamam brancas como o floco da neve pareçam a vossa mercê burrinhos Viva o Senhor que me pele estas barbas se tal fôsse verdade Pois eu te digo Sancho amigo disse D Quixote que é tão verdade que são burrinhos ou bêstas como eu sou Dom Quixote e tu Sancho Pança ao menos a mim tais parecem Cale senhor disse Sancho não diga tal palavra senão abra êsses olhos e venha fazer reverência à senhora dos seus pensamentos que já vem perto e dizendo isto adiantouse a receber as três aldeãs e apeandose do ruço segurou pelo cabresto o jumento de uma das três lavradoras e fincando ambos os joelhos no chão disse Rainha e princesa e duquesa da formosura vossa altivez e grandeza seja servida de receber em sua graça e bom talante o cativo cavaleiro vosso que ali está feito pedra mármore todo tur bado e sem pulsos de verse ante vossa magnífica presença Eu sou Sancho seu escudeiro e êle é o afadigado cavaleiro D Quixote da Mancha chamado por outro nome o Cavaleiro da Triste Figura Nesta sazão já se havia pôsto D Quixote de joelhos junto a Sancho e olhava com olhos desencaixados e vista turbada à que Sancho chamava rainha e senhora e como não descobria nela senão uma môça aldeã e não de muito bom rosto porque tinha a face re donda e chata estava suspenso e admirado sem ousar despregar os lábios As lavradoras estavam também atônitas vendo aqueles dois homens tão diferentes fincados de joelhos que não deixavam passar adiante a companheira mas rompendo o silêncio a detida tôda sem graça e mofina disse Apartemse ora do caminho e deixemnos passar que vamos com pressa Ao que respondeu Sancho Ó princesa e senhora universal do Toboso como vosso magnífico coração não se enternece vendo ajoelhado ante vossa sublimada presença a coluna e sustento da nndante cavalaria A DULCINÉIA ENCANTADA 295 Ouvindo o qual outra das duas disse Mas eu que te estrago burra do meu sogro olhai com o que vêm os senhorinhos agora fazer burlas das aldeãs como se aqui não soubéssemos deitar pulhas como êles vão pelo seu caminho e deixemnos fazer o nosso e serlhesá são Levantate Sancho disse a isto D Quixote que já vejo que a fortuna do meu mal não farta tem tomado os caminhos todos por onde possa vir algum contento a esta alma mesquinha que tenho nas carnes E tu extremo valor que possa desejarse término da humana gentileza único remédio dêste aflito coração que te adora pois que o maligno encantador me persegue e pôs nuvens e cata ratas em meus olhos e para somente êles e não para outros mudou e transformou tua sem igual formosura e rosto no de uma lavradora pobre se já também o meu não lhe tem mudado nêle de algum vestígio para fazêlo aborrecível a teus olhos não deixes de olhar me branda e amorosamente achando ver nesta submissão e ajoelha mento que à tua contrafeita formosura faço a humildade com que minha alma te adora Olha pelo meu avô respondeu a aldeã amiguinha sou eu de ouvir requebros Apartemse e deixemnos ir e agradecerlho emos Apartouse Sancho e deixoua ir contentíssimo de terse saído fio bem do seu enrêdo Tão logo viuse livre a aldeã que havia feito a figura de Dulcinéia quando picando sua cananéia com um ugulhão que num pau trazia deu a correr pela charneca adiante e como a burra sentisse que a ponta do agulhão a afatigava mais do que de ordinário começou a dar corcovos de maneira que deu com u senhora Dulcinéia em terra o qual visto por D Quixote acorreu h levantála e Sancho a compor e cinchar a albarda que também veio à barriga da jumenta Acomodada pois a albarda e querendo I Quixote levantar a sua encantadora senhora nos braços sôbre n jumenta a senhora levantandose do chão tiroulhe aquêle tra balho porque pondose um tanto atrás deu um corridinha e postas mbat as mfios sôbre as ancas da jumenta deu com seu corpo mais llgelro do que um falcão sôbre a albarda e ficou escarranchada como K fôsse homem e então disse Sancho Vive Roque que é a senhora nossa ama mais ligeira do que um páisaro e que pode ensinar a subir a gineta ao mais destro cor dobli ou mexicano o arção traseiro da sela passou de um pulo e ui iporas faz correr a hacanéia como uma zêbra e não lhe ficam k Mv i tuas donzelas que tôdas correm como o vento H aiilm era a verdade porque vendose a cavalo Dulcinéia tAUi picaram atrs dela e dispararam a correr sem voltar a cabeça aiiái por espaço de mais de meia légua Seguiuas D Quixote com vlila quando viu que no apareciam voltandose a Sancho dliMlh Sancho que achas quo malquisto sou de encantadores ftite 4 um trecho do décimo capítulo da segunda parte do lom Q ulxolt de Cervantes O cavaleiro mandou Sancho Pança à vila do Toboio para procurar Dulcinéia e anunciarlhe a sua vliliN Sancho envolvido por mentira anteriorei em meio ao maior embaraço para achar a dama imaginária decide enganar 296 MIMESIS o seu amo Espera durante um tempo diante da vila o bastan te para fazer Dom Quixote acreditar que o seu pedido foi executado quando vê então que três lavradoras saem montadas em burros volta ràpidamente para perto do cavaleiro e informa que Dulcinéia com duas das suas damas aproximase para cumprimentálo A rrasta o cavaleiro subjugado pela sur prêsa e pela alegria de encontro às lavradoras enquanto des creve com côres ardentes a beleza e pompa do cortejo mas desta vez Dom Quixote não vê senão a realidade isto é três lavradoras sôbre três asnos e assim se desenvolve a cena que transcrevemos Entre os muitos episódios que representam o embate entre a ilusão de Dom Quixote com uma realidade quotidiana e oposta à ilusão êste ocupa uma posição especial Em primeiro lugar porque se trata da própria Dulcinéia a ideal e incomparável senhora do seu coração é o cume da sua ilusão e da sua desi lusão e mesmo que também neste caso encontre uma saída para salvar a ilusão esta saída Dulcinéia está encantada é tão di ficilmente suportável que dali em diante todos os seus pensa mentos estão dirigidos para a meta da sua salvação e da quebra do encantamento a noção ou o pressentimento de que isto nun ca será conseguido é nos últimos capítulos do livro a prepa ração imediata da sua doença da libertação da sua ilusão e da sua morte Depois esta cena distinguese pelo fato de que nela pela primeira vez os papéis estão trocados até ali era Dom Quixote que compreendia espontâneamente e transformava as aparições da vida quotidiana com que se deparava segundo o sentido dos romances de cavalaria enquanto Sancho em geral duvidava ou retorquia ou tentava evitar as absurdas ações do seu amo agora é o contrário Sancho improvisa uma cena de romance enquanto que a capacidade de Dom Quixote de trans formar os acontecimentos segundo a sua ilusão falha diante da crua vulgaridade do aspecto das lavradoras Tudo isto parece ser altamente significativo tal como nós o apresentamos aqui lpropositadam ente parece triste amargo e quase trágico Mas se simplesmente lemos o texto de Cervantes lemos uma brincadeira e ela é subjugantemente cômica Muitos ilus tradores fixaram a imagem Dom Quixote ajoelhado ao lado de Sancho olhando com olhos arregalados e rosto confuso para o feio espetáculo que se lhe oferece Contudo são só o con traste estilístico das falas e o grotesco movimento do fim queda e levantamento de Dulcinéia o que dá o pleno gôzo do acon tecimento O contraste estilístico das falas desenvolvese só pau latinamente pois as lavradoras estão a princípio demasiado perplexas As primeiras palavras de Dulcinéia com as quais ela pede que seja liberado o caminho são ainda moderadas Só nas falas seguintes das camponesas aparecem as pérolas da sua eloqüência Como representante do estilo cavalheiresco aparece em primeiro lugar Sancho e é surpreendentemente divertido ver quão excelentemente faz o seu papel Êle desce do burro A DULCINÉIA ENCANTADA 297 Jogase aos pés das mulheres e fala como se em tôda sua vida não tivesse ouvido outra coisa senão o jargão dos romances de cavalaria Alocução e sintaxe metáforas e epítetos descrição da atitude do seu amo e petição de graça tudo isto dá muito certo em bora não saiba ler e deva a sua cultura só ao modêlo de Dom Quixote E também tem bom êxito com a sua fala pelo menos na medida em que arrasta o seu senhor consigo Dom Quixote ajoelhase ao seu lado Poderseia pensar que aqui se estaria chegando a uma ter rível crise Dulcinéia é verdadeiramente la sefíora de sus pettsamientos o protótipo da beleza o sentido da sua vida Pôr a sua esperança de tal form a em tensão e depois decepcionála de tal forma isto é uma experiência que encerra bastante peri go poderia ocasionar um choque que teria como conseqüência uma loucura mais profunda também poderia através do cho que levar à cura à libertação instantânea da idéia fixa N e nhuma das duas coisas acontece Dom Quixote supera o cho que Na sua própria idéia fixa encontra uma saída que o livra tanto do desespêro quanto da cura Dulcinéia está encantada Esta saída encontrase em todos os casos tão logo a situação exterior se coloca em contraste invencível com a ilusão permite a Dom Quixote conservar a atitude do nobre e invencível he rói que é perseguido por um mago poderoso e invejoso da sua fama Neste caso especial no caso de Dulcinéia o pensamento dc uma encantação tão feia e vulgar certamente é difícil de suportar contudo a situação pode ser enfrentada com meios que estão à disposição no campo da ilusão isto é com as virtu des cavalheirescas da fidelidade imutável da dedicada prontidão para o sacrifício e da insuspeita valentia Além do mais é certo que no fim a virtude há de vencer o final feliz está garantido Tnnto a tragédia quanto a cura são evitadas E assim Dom Quixote depois de uma curta perplexidade começa a falar Dirige suas palavras em primeiro lugar a Sancho elas mostram que file já se orientou novamente que interpretou a situação se jliindo a sua ilusão esta interpretação já está tão firmemente cristalizada dentro dêle que mesmo as fortes formas coloquiais ila fala de uma das camponesas posta imediatamente diante iléle por mais gàrrulamente que contrastem com o estilo elevado ilo costume cavalheiresco não têm o poder de pôr em dúvida ii Hita posição a estratagem de Sancho teve êxito A segunda I i h s c de Dom Quixote dirigese a Dulcinéia fi maravilhosamente bela Acabamos de dizer quão des inimente e com quanta graça Sancho sabe utilizar o estilo dos lo tiii in c c s de cavalaria que aprendeu do seu senhor aqui fica evulente de que calibre era o seu mestre O período começa DiiH uma oração com uma alocução invocativa invocatio tom o unia prece contém três gradações extremo dei valor tfimino unico remedio moduladas de forma muito Itrm eiilculitdii sendo que cm primeiro lugar é salientada uma mi Iriçfto iibsolulii depois uina perfeição com respeito aos sêres 298 MIMESIS humanos e finalmente a dedicação especial e pessoal da pes soa que fala esta construção tripartite fica armada pelas pala vras iniciais y tu e termina na sua terceira parte longamente expandida com as palavras certamente convencionais do ponto de vista rítmico mas que encaixam maravilhosamente no con junto corazón que te adora aqui o tema principal que aparece no fim já foi aludido no seu conteúdo palavras e ritmos de tal form a criase uma passagem para a supplicatio que obri gatoriamente é esperada após a invocatio para a qual fica re servada a oração principal optativa no dejes de m irarm e mas esta se faz esperar ainda por longo tempo Em pri meiro lugar segue um a construção concessiva múltipla gra duada que contrasta dramàticamente com a invocatio e com a supplicatio ya que y y si ya t a m b i e n o seu sentido é e mesmo se e o seu cume rítmico está em meio à primeira parte ya que nas palavras fortemente salientadas y para solo ellos Somente quando se apagaram os ecos de tôda a magnificência dramáticomelódica da oração concessiva pode aparecer a oração principal tão longamente retida con tendo a supplicatio e mesmo ela se contém ainda amontoa ainda paráfrases e pleonasmos até que finalmente surge o motivo principal para o qual mirava tôda esta longa oração as palavras que devem simbolizar a atitude presente e a vida tôda de Dom Quixote la humildad con que mi alma te adora Êste é o estilo que já na primeira parte no capítulo 259 Sancho tan to admira quando Dom Quixote lê a sua carta a Dulcinéia como que le dice vuestra merced ahi todo cudnto quiere y qué bien que encaja en la firma El Caballero de la Triste Figura Mas esta fala é incomparàvelmente mais bela e com tôda sua arte não tão mesquinhamente preciosa como a carta Cervantes ama tais peças de bravura da retórica cortês ricas em ritmos e imagens bem articuladas e semelhantes a composi ções musicais mas que estão também fundamentadas na tra dição antiga e é um mestre na sua composição neste sen tido também não é somente um crítico e um destruidor mas um continuador e um aperfeiçoador da grande tradição épico retórica para a qual também a prosa é uma arte regrada Tão logo se trata de grandes sentimentos e paixões ou de aconteci mentos sublimes êste estilo elevado aparece com tôdas as suas artes em bora através das longas convenções tenha deixado seu caráter altamente trágico para passar a ser amável suave e um pouquinho autoirônico ainda predomina no campo do sério também quando se lê por exemplo a declaração de Dorotéia ao seu amante infiel no capítulo 369 da primeira parte com as suas muitas figuras imagens e cláusulas rítmicas sentese que êste estilo ainda está vivo também no campo da seriedade e da tragicidade Aqui porém diante de Dulcinéia só serve para o efeito contrastante é a impertinente e rude resposta da camponesa o que lhe dá o seu sentido estamos em meio ao eitilo baixo e A DULCINÉIA ENCANTADA 299 a elevada retórica de Dom Quixote só serve para tornar total mente eficaz a cômica quebra estilística Cervantes ainda não está satisfeito com isto acrescenta à quebra estilística nas falas ainda um caso extremo de quebra estilística na ação fazendo que Dulcinéia caia do jumento e que pule com extrema agilidade de volta à sela enquanto Dom Quixote ainda está preocupado em m anter o estilo cavalheiresco O fato de êle estar tão fir memente prêso à sua ilusão que nem a réplica de Dulcinéia nem a cena do jumento o confundem constitui o cúmulo da brincadeira Mesmo a exuberante hilaridade de Sancho Vive Roque que ainda por cima é uma impertinência em nada o toca Segue com os olhos as lavradoras que se afastam e quando desaparecem dirigese a Sancho com palavras que ex primem muito menos tristeza ou desespêro do que um a espécie de satisfação triunfante com o fato de terse tornado o alvo das mais malignas artes dos malvados encantadores isto lhe dá a oportunidade de se sentir único insigne e isto de um a forma que encaixa maravilhosamente bem nas convenções dos cava leiros em busca de aventuras yo naci para ejemplo de desdi chados y para ser blanco y terreno donde tomen la mira y asesten las flechas de la mala fortuna E a observação que ora exprime acêrca de que o encantamento malvado também tenha atingido o odor de Dulcinéia pois seu hálito teria sido desa gradável atinge tão pouco a sua ilusão como a descrição gro tesca que Sancho faz das particularidades da sua beleza San cho acorçoado pelo completo êxito do seu embate toma agora realmente impulso e brinca com a doidice do seu amo para o seu próprio divertimento Procuramos no nosso estudo representações da vida quo tidiana nas quais ela seja mostrada sèriamente com os seus pro blemas humanos e sociais ou até nos seus enredos trágicos Sem dúvida a nossa cena é realista tôdas as personagens são npresentadas na sua realidade atual e na sua existência viva e quotidiana não só as lavradoras mas também Sancho e não nó Sancho mas até Dom Quixote aparecem como personagens iU esfera vital espanhola contemporânea Pois o fato de Sancho luer um jôgo insolente ou de Dom Quixote estar prêso à sua lluiAo não tira os dois da sua existência quotidiana Sancho é um camponês da Mancha e Dom Quixote não é precisamente Amndii ou Rolando mas um pequeno fidalgo rural que perdeu n mo Poderseia dizer em todo caso que a loucura do fi dalgo o transfere para uma outra esfera vital para um a esfera Imaginária mas também assim o caráter quotidiano da nossa loim e de acontecimentos semelhantes fica preservado pois que personagens e os acontecimentos da vida quotidiana estão uonllnuumente em contraste com aquela loucura e aparecem iRllntdoi com ainda maior rigor graças àquele contraste Multo maii difícil 6 determinar o nível da cena e do ro iiinnc em geral na eicala que vai do trágico ao cômico Assim 1nmo la aparece n narraçlo com as três lavradoras nâo 6 se 300 MIMESIS não cômica A idéia de fazer Dom Quixote encontrar uma Dulcinéia concreta já deve ter ocorrido a Cervantes ao escre ver a primeira parte do romance construíla a partir de uma manobra enganadora de Sancho de tal forma que os papéis apa reçam trocados é uma idéia genial e está realizada de forma tão perfeita que a brincadeira apesar de todo o emaranhado absurdo de todos os pressupostos e relações se apresenta ao lei tor como algo natural e até como algo que resulta necessària mente Mas sem dúvida é uma brincadeira Tentamos demons trar acima que no que se refere à unica personagem partici pante para a qual existe uma possibilidade de solução proble mática ou trágica do caso isto é no que se refere a Dom Qui xote esta solução é absolutamente evitada O seu refúgio quase instantâneo e como que automático na interpretação do encan tamento de Dulcinéia exclui a tragicidade Êle está sendo em baído e desta vez até por Sancho ajoelhase e perora em ele vado estilo sentimental diante de algumas camponesas feias e depois gabase da sua sublime desgraça Mas o sentimento de Dom Quixote é verdadeiro e profundo Dulcinéia é realmente a senhora dos seus pensamentos e êle está realmente imbuído de uma missão que considera o mais alto dever do homem é realmente fiel valente e disposto a qualquer sacrifício Um sentimento tão incondicional e uma re solução tão incondicionada merecem admiração mesmo quando estão baseados numa ilusão doida e esta admiração Dom Quixote a encontrou em quase todos os leitores Deve haver poucos amantes da arte literária que não liguem a Dom Quixote a con cepção da grandeza idealista embora absurda aventurosa e gro tesca não deixa de ser idealista incondicionada e heróica So bretudo depois do romantismo esta idéia tornouse quase genera lizada e ela se mantém mesmo contra a crítica filológica na medida em que esta pretende demonstrar que Cervantes não tinha a intenção de despertar uma tal impressão A dificuldade reside no fato de que na idéia fixa de Dom Quixote o nobre o puro e o redentor estão ligados com o ab solutamente insensato Um a luta trágica pelo ideal e pelo dese jável em primeiro lugar só pode ser representada de tal modo que intervenha de form a sensata no estado real das coisas es tremecendoo e importunandoo de tal maneira que contra o sensatamente ideal surja uma oposição igualmente sensata quer ela seja proveniente da inércia da maldade mesquinha e da inveja quer de uma visão mais conservadora A vontade idea lista deve estar de acordo com a realidade existente pelo menos até o ponto de poder atingila de tal forma que uma penetre na outra e surja um verdadeiro conflito O idealismo de Dom Quixote não é desta espécie Não se baseia num a visão das circunstâncias fatuais da vida embora Dom Quixote tenha uma tal visão ela o abandona tão logo o idealismo da idéia fixa to ma posse dêle Tudo o que faz depois é totalmente carente de sentido e tão inconciliável com o mundo existente que a única A DULCINÉIA ENCANTADA 301 coisa que resulta disso é um a cômica confusão Não só não tem possibilidade de êxito mas não encontra mais nenhum pon to de apoio na realidade atinge o vazio O mesmo pensamento pode ainda ser desenvolvido de ou tra forma de maneira a tom ar visíveis outras conclusões O tema do doido nobre e gudaz que sai em campanha para tornar realidade o seu ideal e para melhorar o mundo poderia ser con siderado de forma tal que os problemas e conflitos existentes no mundo pudessem aparecer e ser questionados A própria pureza e imediatez do doido poderia sem intenção nem efeito concretos ser de uma espécie tal que em tôda parte onde apa recesse atingisse espontânea e involuntàriamente o cerne das coisas de tal forma que os conflitos suspensos ou ocultos se tornassem atuais lembrese o Idiota de Dostoievski Com isto poderia acontecer que o próprio louco se envolvesse em responsabilidades e culpas tomandose desta forma trágico Nada disso acontece no romance de Cervantes O encontro com Dulcinéia não é um exemplo válido para a relação de Dom Quixote com a realidade concreta na medi da cm que não se trata da defesa da sua vontade ideal em luta contra a realidade mas da visão e adoração do ideal encarnado Não obstante também êste encontro é simbólico para a mencio nada relação entre o cavaleiro doido e os fenômenos dêste inundo Devese lembrar quais eram as concepções tradicionais contidas no motivo de Dulcinéia e como estas ainda ressoam nas palavras grotescamente sublimes de Sancho e de Dom Qui xote La senora de sus pensamientos extremo valor que pue de desearse termino de la humana gentileza e assim por diante estão aqui o arquétipo platônico da beleza a hohe Minne a donna gentile do doce estilo nôvo Beatrice la gloriosa donna delia mia mente E tôda esta munição é desperdiçada para três feias e vulgares lavradoras É um tiro no vazio Dom Quixote não pode ser nem graciosamente aceito nem rejeitado nüo há nada afora uma divertida confusão carente de sentido 1ara achar nesta cena algo sério ou um sentido mais profundo oculto ela deveria ser violentada pela interpretação As três mulheres estão estupefatas e vão em bora o mais rápido que podem êste é um efeito que a aparição de Dom Quixote produz freqüentemente Amiúde há também brigas e piiiiciidnrias as pessoas ficam furiosas quando êle as perturba an u os seus disparates Muito freqüentemente acontece tam bém que fazem o jôgo da sua idéia fixa e se divertem às suas custas Já o vendeiro e as dorçzelas quando da sua primeira ida reagem desta forma mais tarde a mesma coisa acontece wo iii us pessoas reunidas na segunda venda com o pároco e o hurlwiro Dorotéia e Dom Fernando e até M aritornes contudo illiiinx querem aproveitar a brincadeira para levar o cavaleiro do volta i sim cusa levando a coisa porém para muito mais Itmjic do que a intcnçúu prática o requereria N a segunda par 302 MIMESIS te o licenciado Sansão Carrasco constrói o seu plano de cura em tôm o do jôgo com a idéia fixa e mais tarde no palácio do duque e em Barcelona a doidice de Dom Quixote é utilizada metodicamente como passatempo de tal form a que já não há mais quase aventuras legítimas mas somente fingidas isto é aventuras que são preparadas para a diversão dos seus organi zadores especialmente à medida da doidice do cavaleiro Em tôda esta multidão de reações tanto na primeira quanto na se gunda parte falta inteiramente uma coisa complicações trági cas e conseqüências sérias Mesmo o elemento satírico e o elemento de crítica do seu tempo são muito fracos deixando de lado o elemento puramente críticoIiterário faltam quase por completo limitamse a curtas observações ou a eventuais carica turas de alguns tipos por exemplo o clérigo na côrte do duque nunca são fundamentais e sempre são moderados em sua atitude Antes de mais nada não é através das aventuras de Dom Quixote que são eventualmente descobertos alguns problemas fundamen tais da sociedade contemporânea A sua atividade não desco bre nada É um motivo para apresentar a vida espanhola em colorida plenitude durante os múltiplos choques de Dom Qui xote com a realidade nunca surge uma situação que ponha em questão esta realidade quanto ao seu direito de vida ela sem pre tem razão contra êle e depois de um pouco de alegre con fusão continua a fluir indiferente e intata H á um a única cena onde isto poderia ser pôsto em dúvida tratase da libertação dos condenados às galés no 22 capítulo da primeira parte Aqui Dom Quixote intervém na ordem jurídica e podese en contrar alguns críticos que afirmam que êle o faz em nome de uma moral mais elevada Esta versão é compreensível pois certamente a frase que Dom Quixote pronuncia allá se lo haya cada uno con su pecado Dios hay en el cielo que no se descuida de castigar al maio ni de premiar al bueno y no es bien que los hombres honrados sean verdugos de los otros hombres no yéndoles nada en ello certamente uma frase como esta é de uma categoria mais elevada do que a de qualquer direito vi gente Mas um a tal moral mais elevada deve ter conseqüência e método se tiver de ser tomada a sério Mas nós sabemos que Dom Quixote nem pensa em atacar fundamentalmente a ordem jurídica não é nem um anarquista nem um profeta do reino de Deus antes mostra um a e outra vez que sempre que a sua idéia fixa não está em jôgo êle se adapta prazerosamente às circunstâncias e que é só na sua idéia fixa que pede uma po sição especial para o cavaleiro andante Aquelas belas palavras allá se lo haya etc em bora estejam profundamente baseadas na bondosa sabedoria da sua verdadeira essência ainda volta remos a isto não deixam de ser no momento em que são pronunciadas uma improvisação o que o determina a libertar os prisioneiros é a sua idéia fixa ela o leva a compreender tudo o que encontra como objeto de uma aventura cavaleiresca dá lhe os motivos da ajuda aos oprimidos e da libertaçlo dos A DULCINÉIA ENCANTADA 303 forçados e segundo êles Dom Quixote atua Pareceme to talmente errado querer ver aqui qualquer coisa de fundamental algo assim como um conflito entre direito naturalcristão e di reito positivo Para um tal conflito seria necessário afinal que também aparecesse um antagonista o qual como o Grande In quisidor em Dostoïevski tivesse direito e vontade de tom ar par tido a favor do princípio do direito positivo contra Dom Qui xote O comissário que dirige o transporte dos presos é inade quado para tanto e também não está disposto a fazêlo talvez êle como pessoa privada seja até acessível ao pensamento não julgueis para que não sejais julgados Mas êle próprio não julgou nem representa o direito positivo Tem as suas instru ções e com todo direito apela para as mesmas Tudo acaba tendo um final hilariante e sempre os danos que Dom Quixote causa ou sofre são tratados como confusões cômicas com graça estóica Mesmo o bachiller Alonso López que sai malparado com a perna prêsa pelo seu jumento jogado no chão consolase com trocadilhos escarnecedores Esta cena se encontra no 199 capítulo do primeiro livro mostra também que a idéia fixa preserva Dom Quixote de se sentir responsável pelo que apronta de tal forma até para a sua consciência não há possibilidade de existir qualquer conflito trágico ou qualquer seriedade sombria Agiu segundo as regras da cavalaria andante isto o justifica embora se apresse em ajudar o bachiller por que é um homem bom e solícito nem se lhe ocorre o sentirse culpado D a mesma forma não se sente culpado quando o pa dre para pôlo à prova lhe conta no comêço do 3O9 capítulo das péssimas conseqüências que teve a libertação dos condena dos responde irado que é dever dos cavaleiros andantes ajudar os oprimidos mas não verificar se sofreram justa ou injustamente c com isto a questão está liquidada para êle N a segunda parte cuja hilaridade é ainda mais livre e elegante nem mais há tal tipo de enredos Encontrase pois muito pouco de problemático ou de trá gico no livro de Cervantes em bora seja uma das obraspri mas de um a época durante a qual se formaram a problemática c a tragédia européias A doidice de Dom Quixote nada revela disto o livro todo é um jôgo no qual a loucura se tom a ridícula quando exposta a uma realidade bem fundamentada E contudo Dom Quixote não é somente ridículo não é como o velho engraçado ou o soldado fanfarrão ou o médico pedante e ignorante N a nossa cena Dom Quixote é logrado lor Sancho mas Sancho o despreza o engana constantemente Absolutamente não só o engana porque não encontra outra fri amao e venerao ainda que seja consciente da sua doi dice geralmente cm parte às vêzes totalmente aprende com o ncu amo c não quer dcixálo tornase na companhia de Dom Quixote mais prudente c melhor do que antes Com tôda a mm doidice Dom Quixote preserva uma dignidade e superiori 304 MIMESIS dade naturais às quais os muitos lastimosos fracassos nada podem fazer Não é baixo como os tipos cômicos acima men cionados geralmente o são não é de forma alguma um tipo dessa espécie pois não é em seu conjunto um autômato para efeitos cômicos também êle próprio se desenvolve fica mais bondoso e sábio enquanto sua doidice persiste Tratase então no sentido da ironia romântica de uma loucura sábia Desven daselhe a sabedoria através da sua loucura Fornecelhe a loucura uma compreensão que em seu são juízo nunca poderia ter atingido e fala nêle a sabedoria através da loucura como no caso do bôbo de Shakespeare ou no de Charlie Chaplin Não a coisa também não é assim Tão logo a loucura quer dizer1 a idéia fixa da cavalaria andante toma posse dêle age sem sa bedoria e como um autômato como os tipos cômicos acima enumerados Possui sabedoria e bondade independentemente da sua loucura Uma loucura como a sua não deixa de poder surgir somente num homem puro e nobre e também é verdade que a sabedoria a bondade e a decência transluzem através da sua loucura e fazemna parecer amável Ainda assim a sabe doria e a loucura estão claramente separadas no seu caso de modo diferente do que se dá na obra de Shakespeare e do que acontece com os loucos românticos ou com Carlitos O padre já o diz na primeira parte 309 capítulo e mais tarde é dito uma e outra vez só quando a sua idéia fixa entra em jôgo é doido afora isso é um homem normal e muito inteligente A sua loucura não é da espécie que remate tôda a sua essência e que seja totalmente idêntica a ela uma idéia fixa tomou con ta dêle num determinado momento deixando livres mesmo assim partes da sua personalidade de tal forma que em muitos ca sos age e fala como uma pessoa sã e um dia pouco antes da morte esta idéia fixa o abandona Tinha perto de cinqüenta anos de idade quando sob a influência da leitura excessiva de romances de cavalaria formulou o seu absurdo plano Isto é estranho U m a exaltação alimentada por leituras solitárias seria mais fàcilmente concebível no caso de uma pessoa muito jovem Julien Sorel Madame Bovary e existe a tentação de pergun tar por um a explicação psicológica especial como é possível que um cinqüentão que leva uma vida regrada e que possui um entendimento bom e em muitos sentidos cultivado e equi librado possa empreender algo tão disparatado Cervantes dá nas primeiras frases do romance algumas informações sôbre a condição social do seu herói delas pode se deduzir na melhor das hipóteses que ela o oprimia que não lhe oferecia possibili dades alguma para uma atividade efetiva que correspondesse às suas capacidades estava como que paralisado pelas limitações que lhe eram impostas por um lado pela sua posição social e pelo outro pela sua pobreza Poderseia portanto presumir que a decisão doida seria uma fuga de uma situação que se tor nara insuportável uma libertação violenta Uma tal explicação sociológica e psicológica também já foi defendida na literatura A DULCINÉIA ENCANTADA 305 eu mesmo a apresentei numa passagem anterior dêste livro e a deixo estar lá porque no contexto em que se encontra ela se justifica Mas como interpretação da intenção artística de Cer vantes é insatisfatória pois não é verossímil que tenha querido dar algo assim como uma motivação psicológica para a idéia fixa de Dom Quixote mediante aquelas poucas frases sôbre a posição social e os costumes do seu herói se assim fôsse de veria têla exprimido mais claramente e desenvolvido mais mi nuciosamente Um psicólogo moderno poderia encontrar ainda outras interpretações para a estranha loucura de Dom Quixote Mas tais problemas estão longe das cogitações de Cervantes Não dá à pergunta acêrca das causas da loucura de Dom Qui xote outra resposta do que esta leu demasiados livros de ca valaria e êstes lhe viraram o juízo O fato de que isto aconteça a um cinqüentão é explicável a partir da obra de Cervantes só por motivos estéticos a partir da visão do cômico que lhe veio quando da concepção do romance um senhor de certa idade comprido sêco com a sua armadura anacrônica e chué uma imagem que exprime excelentemente além do doido o ascético e o idealista Temos que nos satisfazer com o fato de que êste prudente e culto fidalgo rural enlouquece de repente mas não em conseqüência de um terrível estremecimento como Ajax ou Hamlet mas porque leu demasiados romances de ca valaria Isto estaria como me escreve Leo Spitzer de acôrdo com a patologia humoral que salientou o excesso quantitativo como causa patológica dei mucho leer se le secó el celebro de numera que vitio a perder el juicio Mas em todo caso aqui não há nada de trágico Devemos deixar de lado o trágico du rante a análise da sua loucura assim como devemos esquecer a combinação especificamente shakesperiana e romântica de sa bedoria e loucura na qual uma coisa é inconcebível sem a outra A sabedoria de Dom Quixote não é a sabedoria de um iloido é o entendimento a nobreza a decência e a dignidade dc um homem prudente e equilibrado nem demoníaco nem paradoxal um homem que não está cheio de dúvidas de dile mas c que não se sente apátrida neste mundo mas que é regular ponderado receptivo e amável e modesto até na ironia tam bém é antes um conservador ou em todo caso um homem que está de acôrdo com as circunstâncias dadas Isto se mostra em tôila parte no seu trato das pessoas e especialmente no trato tom Sancho Pança sempre que por um tempo maior ou me nor a sua idéia fixa descansa lá desde o princípio mas muito mais evidentemente na segunda parte fazse presente junto ao aventureiro doido o caráter bom e prudente amistoso e dis tinguido por uma dignidade naturalmente superior Alonso Qui nno el hueno leiase com que ironia alegre e boa trata Sancho quando êste seguindo o conselho de sua mulher Teresa no nóllmo capítulo da segunda parte começa a lhe apresentar o seu prilulo de um salário fixo n loucura só intervém no momento rin que êle justifica a mui negativa com os costumes dos cava 306 MIMESIS leiros andantes Passagens como estas podem ser encontradas aos montes em tôdas fica evidente que há um Dom Quixote sensato e um doido lado a lado e que a sua sensatez não é de forma alguma dialèticamente inspirada pela loucura mas é simplesmente normal e por assim dizer média Já isto produz uma combinação desusada há camadas na tônica as quais não é costumeiro encontrar no puramente cô mico Um louco é um louco é habitual vêlo representado num só nível de expressão justamente naquele que corresponde ao cômico e ao amalucado com o qual ao mesmo tempo e pelo menos na literatura mais antiga estava ligado o baixo e o tolo e por vêzes o malévolo O que se diz de um louco que ao mesmo tempo é sábio daquela sabedoria que parece ser a que menos casa com a loucura isto é a da prudente moderação Já isto a prudente moderação combinada com a absurda imode ração da idéia fixa produz uma multiplicidade que não se deixa pôr totalmente em harmonia com o meramente cômico Mas isto de longe ainda não é tudo Pois é nas asas da loucura que a sabedoria alça vôo atravessa o mundo e se enriquece nêle pois se Dom Quixote não tivesse enlouquecido não teria deixado a sua casa E então também Sancho teria ficado em casa não teria podido obter da sua essência tudo aquilo que como observamos com alegre surprêsa estava latente nêle o múltiplo jôgo entre os dois o jôgo dos dois no mundo não se teria realizado O jôgo não é em momento algum trágico como espe ramos ter demonstrado e nunca os problemas humanos quer os pessoais do indivíduo quer os da sociedade são postos diante dos nossos olhos de modo tal que tremamos ou sintamos com paixão sempre ficamos no campo do divertimento Mas tra tase de um divertimento que está disposto em camadas tão numerosas como nunca antes acontecera Voltemos mais uma vez ao texto com o qual começamos Dom Quixote fala com as camponesas num estilo que é realmente o estilo elevado do amor cortês e que em si nada tem de grotesco estas frases não são assim ridículas como podem parecer a um leitor hodierno mas pertencem à tradição de então e constituem uma obrapri ma da expressão elevada daquele tempo Se Cervantes tencio nava polemizar contra os livros de cavalaria o que sem dúvida fêz não polemizava contudo contra o estilo elevado da ex pressão cortês pelo contrário censura os livros de cavalaria por não dominarem êsse estilo por estarem escritos dura e se camente E assim acontece que em meio a uma paródia con tra a ideologia amorosa cavaleiresca aparece um dos mais be los textos em prosa que tenha surgido daquela form a tardia da poesia trovadoresca As camponesas respondem com rudeza rural um estilo camponês como êste já tinha sido utilizado há muito pela literatura cômica se bem que talvez nunca o fôsse com tanta moderação juntamente com tanta verve mas o que com certeza nunca tinha acontecido é isto que seguisse A DULCINÊIA ENCANTADA 307 imediatamente a uma fala como a de Dom Quixote uma fala que considerada de per si não deixa transparecer de forma alguma que se encontra num contexto grotesco O motivo do cavaleiro que pede a um a camponesa que dê ouvidos ao seu amor um motivo que resulta num a situação semelhante é anti quíssimo é o motivo da pastoreia já fôra cultivado pela antiga poesia provençal e teve como veremos mais tarde com Voltai re uma longa vida Só que na pastoreia os dois participantes se acomodaram um ao outro entendemse mutuamente e o que resulta é um nível estilístico unitário que fica no limite entre o idílico e o quotidiano No caso de Cervantes devido à lou cura de Dom Quixote os dois modos de vida e os dois níveis estilísticos chocamse entre si sem qualquer possibilidade de unificação cada um fechado em si e juntados por nada mais do que a alegre neutralidade do jôgo cujo diretor e mestre é desta vez Sancho o desajeitado camponês que até há pouco acreditava em quase tudo que o seu amo contava que nunca e acomodaram um ao outro entendemse mutuamente e o que sòmcntc segundo a situação do momento Aqui o embaraço dti situação permitiulhe enganar o seu senhor e êle próprio se encontra na posição do diretor do jôgo com a mesma verve e capacidade de adaptação com a qual mais tarde se acomodará i situação de governador de um a ínsula Primeiro joga no esti lo elevado e muda depois para o baixo é claro que não como nu camponesas mas com superioridade dominando a situação que êlc próprio levado pela necessidade criou e com a qual aora se deleita esplêndidamente O que Sancho faz aqui isto é assumir um papel transfor marse e brincar com a loucura do seu senhor isto é feito por mitras personagens constantemente A loucura de Dom Quixote dá lugar a inesgotáveis disfarces e encenações Dorotéia como princesa Micomicona o barbeiro como o seu escudeiro Sansão arrusco como cavaleiro errante Ginés de Pasamonte como titeriteiro isto não são senão poucos exemplos Tais transfor mações tornam a realidade um teatro que funciona incessante mente sem que ela cesse de ser realidade Quando as pes soas não se transformam voluntariamente é Dom Quixote quem at transforma com a sua doidice tal como sempre volta a acon tecer desde o caso do vendeiro e das donzelas na primeira hos pedagem A realidade oferecese prestimosa a um jôgo que a dularça a cada instante de maneira diferente nunca ela des Irói a alegria do jôgo com a grave seriedade das suas necessi dade preocupações e paixões A doidice de Dom Quixote dis Holvc tudo isso converte o mundo real e quotidiano num palco hilariante Lembremse ainda as diversas aventuras com mulhe ir que além do encontro com Dulcinéia ainda aparecem no decorrer do livro A renitente Maritornes nos seus braços Donitéia como princesa Micomicona a serenata da enamorada Alliüidora o encontro noturno com a duena Rodriguez do qual Cide lliimctc licncngeli di que daria a sua melhor vestimenta 308 MIMESIS para têlo presenciado cada uma destas histórias está num estilo diferente cada uma contém em si mudanças do nível es tilístico tôdas são desatadas pela loucura de Dom Quixote e tôdas permanecem no campo do divertido Contudo há algu mas dentre elas que não forçosamente deveriam pertencer a êsse campo A descrição de Maritornes e do seu arreeiro é cruamente realista Dorotéia é infeliz e a duena Rodriguez está em meio a grande necessidade e preocupação pois sua filha foi seduzida Pela intervenção de Dom Quixote nada disso muda nem a vida rude de Maritornes nem a triste situação da filha da duena Rodriguez Mas acontece que não nos preo cupamos com isso que a situação e a vida dessas mulheres nos parecem divertidas e que a nossa consciência não se incomoda por sua causa Assim como Deus faz o sol brilhar e a chuva cair sôbre justos e injustos assim também a loucura de Dom Quixote ilumina tudo o que encontra no seu caminho com alegre indiferença e deixa tudo em alegre confusão A tensão mais múltipla e na mais sábia alegria do livro mostrase na relação em que Dom Quixote se encontra constan temente a sua relação com Sancho Pança Esta relação não é de form a alguma tão univocamente descritível como a que existe entre Rocinante e o ruço ou entre o ruço e o próprio Sancho Pança Êles não estão sempre e ininterruptamente uni dos em am or e fidelidade Muito freqüentemente Dom Quixote fica tão irado por causa de Sancho que o insulta e maltrata por vêzes envergonhase por sua causa e uma vez no 27 capítulo da segunda parte até o abandona no meio do perigo Sancho por sua parte segue Dom Quixote primeiramente por tolice e por egoísmo material porque espera fantásticas vantagens da emprêsa e também porque o vaguear apesar de tôdas as fadi gas lhe dá maior prazer do que o trabalho regular e a vida monótona em casa Logo começa a presumir que algo não pode estar certo na mente de Dom Quixote e depois acontece que o engana faz troça dêle e fala despectivamente a seu respeito Por vêzes e também ainda na segunda parte está tão zangado e decepcionado que pouco falta para que abandone Dom Qui xote O caráter vacilante e misturado das relações humanas o caprichoso e o que depende do instante nas nossas ligações mesmo nas mais próximas isto é mostrado uma e outra vez ao leitor No texto do qual partimos Sancho engana o seu senhor e brinca de form a quase cruel com a sua doidice Mas que amoroso consentimento na loucura que habituação com o mun do de Dom Quixote não deve ter precedido êste momento para que êle pudesse pensar num tal plano e representar o seu papel tão excelentemente Poucos meses antes nada pressentira de tudo isto agora vive à sua maneira no mundo das aventuras cavaleirescas e bebe os ventos por êle está enamorado pela loucura do seu senhor e também pelo seu próprio papel desen volveuse da forma mais surpreendente H apesar disto é e A DULCINÉIA ENCANTADA 309 fica sendo Sancho da família dos Panças cristão velho bem conhecido na sua aldeia também fica sendo isso mesmo quando é sábio governador e mesmo quando ou justamente quando só quer casar Sanchica com um conde Êle é sempre Sancho e só a Sancho poderia acontecer tudo isso mas o fato de que tudo isso aconteça que o seu corpo e o seu espírito sejam tão vio lentamente movimentados e que nesta movimentação passem galhardamente pela prova da sua incomovível e peculiar legiti midade isto êle deve a Dom Quixote su amo y natural senor A experiência da personalidade de Dom Quixote não é apanhada por ninguém de forma tão total não é trabalhada imediatamente como um todo tão puro quanto por Sancho todos os outros sc surpreendem irritamse ou divertemse ou querem curálo Sancho penetra na sua vida e a doidice e a sabedoria de Dom Quixote tornamse produtivas para êle embora não possua nem do longe suficiente senso crítico para poder form ular e expri mir uma sentença sintética a seu respeito é através dêie em ifldii sua atitude que entendemos melhor Dom Quixote Isto por outro lado ata Dom Quixote a Sancho êste é o seu consolo e o seu antagonista a sua criação mas ainda assim um outro mu próximo que se afirma contra êle e impede que a doidice prenda como numa gaiola isolante Duas figuras que apa n v e m simultaneamente em mútuo contraste cômicas ou semi róm iuis êste é um motivo muito antigo que ainda hoje tem sua eheúciii cm tôda parte na piada na caricatura no circo ou no lilme o magro alto e o gordo baixinho o astuto e o tolo o iciihor c o criado o homem distinto e culto e o camponês in KÍmio c outras combinações ou cruzas que possa haver em di lei entes países e culturas O que Cervantes fêz disso é mara vilhoso e único I alvc não seja muito acertado dizer o que Cervantes fêz i Ii h m i Muis correto seria dizer o que se fêz disso nas suas inftiis Iir séculos e especialmente depois do romantismo fui lula muita coisa na sua obra que êle nem pressentia ou ten i ioiiitvii Tais rcinterpretações e hiperinterpretações de um velho texto são amiúde frutíferas um livro como o Dom Juhoir soltase da intenção do seu autor e vive uma vida inde livmlenie apresenta a cada época que nêle acha prazer um iiíHo loslo Mas para o historiador que procura determinar o luiu de uma obra dentro de um processo histórico é con liulo neiessiirio na medida Ou possível esclarecer o que signi lltoii ii obia paru o seu autor e para os seus contemporâneos Iniici me eni interpretar o menos possível especialmente Mlieiilei uma c outra vez quão pouco há de trágico e de pro liluiimlli o no texto Pareceme um jôgo alegre em muitos ní vil especialmente também no nível do realismo quo lltliMtio e dileronle nisto por exemplo da alegria igualmente tttfiile ile pioblemiis de Ariosto mas contudo ainda um jô Hii Se eu poiliinlo me esforcei cm interpretar na menor mc illilii potKiivfl unto porém que também os meus pensamentos 310 MIMESIS aeêrca do livro vão freqüentemente muito mais longe do que a intenção artística de Cervantes Seja qual tivesse sido esta inten ção não queremos ocuparnos aqui dos problemas da estética do seu tempo ela certamente não estava dirigida desde o princípio e conscientemente para a criação de uma relação co mo a que há entre Dom Quixote e Sancho Pança da forma como se nos apresenta quando lemos o romance Antes as duas figuras foram primeiramente só uma visão e o que se têz dêles de cada um e dos dois juntos isto surgiu paulatina mente a partir de centenas de idéias individuais de centenas de situações nas quais Cervantes os deixa entrar onde reagem co mo o instante o sugere a partir da incessantemente fluente e renovada fôrça imaginativa do poeta Às vêzes há até esquisi tices e contradições não só no campo do fatual como já foi repetidamente observado mas também no psicológico atitudes que não concordam com a imagem geral dos heróis um sinal da medida em que Cervantes se deixava levar pela situação do momento pelas necessidades de cada aventura isto também acontece e até com maior freqüência na segunda parte De sintencionada e paulatinamente as duas personagens vão se construindo cada uma de per si e a relação entre os dois É claro que é justamente por isso que o peculiarmente cervantes co a soma da experiência de vida e da fôrça criativa de Cer vantes flui tanto mais rica e espontaneamente para dentro dos acontecimentos e das falas O peculiarmente cervantesco não pode ser descrito com palavras contudo tentarei dizer alguma coisa a respeito para esclarecer as suas fôrças e os seus limites É em primeiro lugar algo espontâneamente sensível uma apti dão enérgica de imaginar sêres humanos muito diferentes em situações muito diversas de se exprimir e apresentar com vi vacidade todos os pensamentos que vêm à mente todos os sentimentos que vêm ao coração e tôdas as palavras que vêm aos lábios Esta aptidão êle a possui tão imediata e fortemente e ao mesmo tempo tão independentemente de tôda intenção que quase todo o realismo de tempos anteriores parece ao seu lado limitado convencional ou prêso aos seus fins Igualmen te sensível é a capacidade de elucubrar constantemente novas combinações de sêres humanos e de acontecimentos ou de deixar oue elas ocorram à mente em bora exista neste sentido a ve lha tradição dos romances de aventuras e da sua renovação atra vés de Bojardo e Ariosto mas ninguém havia deixado antes que dêste brilhante jôgo combinatório carente da intenção participasse também a realidade quotidiana E finalmente Cervantes possui algo um algo que ordena isto tudo e o faz aparecer sob uma determinada luz cervantesca Aqui a coisa tomase muito difícil Poderseia evitar esta dificuldade dizendo que êste algo consiste simplesmente no tema na idéia do fidalgo que enlouquece e se convence de que deve fazer renascer a cavalaria andante êste tema dá ao livro a sua unida de e a sua posição Mas êste tema que Cervantes tomou aliás A DULCINÊIA ENCANTADA 311 de uma obra contemporânea pequena e carente de todo interêsse afora êste o Entremés de los Romances também poderia ter sido tratado de form a muito diferente o herói poderia ter tido um aspecto totalmente diferente do que o de Dom Quixote e não teria sido necessária a existência de qualquer espécie de Dulcinéiâ e sobretudo de Sancho algum e sobretudo o que provocava tanto Cervantes nesta idéia O que o provoca era a possibilidade nela contida da multiplicidade e da perspectiva a mistura entre fantasia e quotidianidade o caráter maleável amassável e esticável do tema podiase enfiar dentro dêle tôdas as espécies de artes e de estilos Podiase mostrar o mais colorido dos mundos sob uma luz que correspondia à sua essência à de Cervantes E assim voltamos novamente à difícil pergunta que acabamos de colocar o que é êste algo que ordena tudo e faz com que apareça sob uma certa luz cervantesca Não é qualquer filosofia nem tendência e nem mesmo é uma comoção pela insegurança da existência hum ana ou pela violência do destino como é o caso de Montaigne ou de Sha kespeare É uma atitude uma atitude diante do mundo e portanto também diante dos objetos da sua arte da qual a valentia e a indiferença fazem a maior parte Ao lado da ale gria com o jôgo múltiplo e sensível há nêle algo meridionalmente áspero e orgulhoso Impedelhe de levar o jôgo muito a sério Êlc o vê êle o constrói e se diverte às suas custas também deve divertir o leitor de uma form a cultivada Mas não tom a parti do salvo contra os livros mal escritos fica neutro Não é suficiente dizer que não emite juízos e não tira conclusões o processo nem é iniciado as perguntas nem são feitas Ninguém c nada afora os maus livros e as más peças é condenado neste livro nem Ginés de Pasamonte nem Roque Guinart nem Mari tornes nem Zoraida é para nós que a atitude de Zoraida diante do seu pai se torna um problema moral e nós nos colocamos o enigma mas Cervantes narra a história sem delatar o que pen hii u respeito ou melhor não é êle quem a narra mas o prisio neiro que naturalmente admite a atitude de Zoraida e isto é suficiente Certamente há algumas caricaturas no livro o bis cuinho o clérigo no castelo do duque a duena Rodriguez mas ôIch não contêm qualquer problemática moral e nenhum juízo fiiiulumental Porém também ninguém é louvado como modêlo Aqui poderseia pensar no fidalgo da capa verde Dom Diogo de Miranda que dá no 169 capítulo da segunda parte uma descri t o dii sua moderada vida e com isto impressiona profundamen le Simcho Êle é moderado e compreensivamente ponderado cMKontru tanto para Dom Quixote como para Sancho o tom iipropriudo da cortesia bemintencionada modesta e contudo icgura de si as suas tentativas de vencer a loucura de Dom Quixote ou dc mitigálu são amistosas e compreensivas não se ilevo colocálo ludo u lado com o clérigo parvo e intolerante da lArtc do duque assim como o fêz o grande estudioso espanhol 3 1 2 MIMESIS Américo de Castro Dom Diogo é um modêlo da sua classe a variante espanhola do nobre humanista otium cuni dignitate Mas com certeza também não é nada mais do que isto não é um modêlo absoluto Para isto é demasiado cuidadoso e me diano e é bem possível que haja uma sombra de ironia na ma neira como Cervantes representa a sua maneira de viver e de caçar e as suas opiniões sôbre as tendências literárias do seu filho nisto Castro talvez tenha razão A atitude de Cervantes é tal que o seu mundo se torna um jôgo dentro do qual tôda peça peia sua mera existência no seu lugar se justifica O único que está errado é Dom Ouixote na sua loucura E êle também está absolutamente errado contra o moderado e pacífico Dom Diogo a quem Cervantes obriga with inspired perversity como escreve Castro a servir de testemunha para a aventura dos leões Seria violência querer ver nisto um louvor da heroicidade aventurosa perante a pru dência calculista mesquinha e mediana Se possivelmente houver um certo traço de ironia na representação de Dom Diogo então Dom Quixote não é visto possivelmente mas absolutamente e não com um traço de ironia mas totalmente de forma ridícula O capítulo é introduzido pela descrição do seu absurdo orgulho pela sua vitória sôbre Carrasco disfarçado em cavaleiro e por uma conversação entre êle e Sancho a res peito Releiamse êstes trechos e verificarseá que em poucas ocasiões no livro todo Dom Quixote é ridicularizado também moralmente no grau em que acontece aqui Doidamente en funada é a autodescrição com que êle se apresenta a Dom Diogo neste estado de ânimo se dirige à aventura com os leões e o leão nem se toca viralhe as costas Isto é paródia pura e à paródia pura correspondem também os pormenores o pedido ao guarda de lhe dar uma certidão escrita da sua herói ca valentia a maneira como recebe Sancho a mudança de nome de ora em diante quer ser chamado Cavaleiro dos Leões e rrtuita outra coisa Dom Quixote só está errado enquanto está louco só êle está errado em meio a um mundo bem ordenado no qual todos afora êle está no seu lugar e êle próprio o reconhece no fim quando volta moribundo ao seio da ordem Mas será que o mundo está realmente bem ordenado Esta pergunta não é feita O certo é que à luz da loucura de Dom Quixote con frontado com êle o mundo parece bem ordenado e até parece um jôgo divertido Pode haver nêle muita desgraça injustiça e desordem Encontramos raparigas criminosos condenados às galés môças seduzidas bandidos enforcados e muita outra coisa semelhante Mas tudo isso não nos incomoda A aparição de Dom Quixote que nada melhora e não ajuda em parte alguma transforma felicidade e infelicidade num jôgo O tem a do fidalgo doido que quer fazer renascer a cava laria andante deu a Cervantes a possibilidade de mostrar o mundo como um jôgo com aquela neutralidade múltipla pers A DULCINÉÍA ENCANTADA 313 pectiva não julgadora e nem interrogadora que é uma corajosa sabedoria Poderia ser expressa muito simplesmente com as palavras de Dom Quixote que já citamos acima allá se lo haya cada uno con su pecado Dios hay en el cielo que se descuida de castigar al maio ni de premiar al bueno ou também com aquelas que no 89 capítulo da segunda parte no fim da conversa sôbre monges e cavaleiros diz a Sancho muchos son los caninos por donde lleva Dios a los suyos al cielo Com isto fica dito que no fim tratase de uma sabedoria pia Está longinquamente aparentada com a atitude neutra pela qual Gustave Flaubert tanto se esforçou e é ao mesmo tempo totalmente diferente dela Flaubert queria modificar a realidade através do estilo para que êle aparecesse da maneira como Deus a vê de forma que a ordem divina na medida em que se referisse à porção de reali dade tratada em cada caso devesse encarnarse no estilo do autor Para Cervantes um bom romance não serve a nenhum outro fim afora o divertimento culto honesto entretenimiento isto não foi dito recentemente por ninguém de forma tão clara como por W J Entwistle no seu livro sôbre Cervantes 1940 aliás êle sugere uma relação muito bela entre recreação e recriação Cervantes nunca teria pensado que o estilo de um romance e mesmo do melhor de todos pudesse desvendar a ordem univer sal Contudo também para êle os fenômenos da realidade já se haviam tornado difíceis de serem abrangidos e não mais se deixavam ordenar de uma forma unívoca e tradicional Em outros lugares da Europa já se havia começado há muito tempo a questionar e duvidar e até a construir de nôvo a partir do próprio Mas isto não condizia nem como o espírito do seu país nem com o seu próprio temperamento nem com o seu conceito acêrca do ofício do escritor Êle achou a ordem da realidade no jôgo Não mais é o jôgo de Jedermann onde se julgava segundo normas fixas o que era bom e o que era mau assim era também ainda na Celestina A coisa já não é tão simples Cervantes só julga as coisas que se referem ao seu trabalho à literatura No que se refere ao mundo terreno cm geral somos todos pecadores Deus providenciará pafa que o malvado seja castigado e o bom premiado Aqui na erra a ordem do que não pode ser abrangido com os olhos está no jôgo por mais difíceis de abranger e de julgar que sejam os fenômenos diante do doido cavaleiro da Mancha êles sc convertem numa dança de roda de alegre e divertida confusão Hsta é segundo me parece a função da loucura de Dom Juixotc Quando o tema a saída do fidalgo doido que quer tornar realidade o ideal do caballero andante começou a inflamar a fôrça imaginativa de Cervantes mostrouselhe o qniuho da realidade contemporânea tal como confrontada com tal doiilicc cia ilcvcria ser representada e êle gostou deste quadro 314 MIMESIS tanto pela sua multiplicidade quanto pela hilaridade neutra que a doidice espalha sôbre tudo o que encontra O fato de se tratar de uma loucura heróica e idealista que deixasse espaço para a sabedoria e a humanidade certamente não lhe agradou menos Mas considerar esta loucura simbólica ou tràgicamente isto eu acho um ato de violêncja É possível introduzilo através da interpretação mas não está no texto Uma alegria tão universal e diversificada e ao mesmo tempo tão livre de crítica e de problemas na representação da realidade quotidiana constitui uma emprêsa que nunca voltou a ser tentada na Euro pa não posso imaginar onde e quando isso pideria ter acontecido O Santarrão j O retrato do santarrão que encontra no capítulo De I la mode dos Caractères de La Bruyère contém uma I V série de alusões polêmicas ao Tartufo de Molière O I santarrão assim diz La Bruyère logo no princípio nào fala em ma hcãre et ma discipline au contraire il passeroit pour ce quil est pour un hypocrite et il veut passer pour ce quil nest pas pour un homme dévot il est vrai quil fait en sorte que lon croit sans quil le dise quil porte une haire et quil se lionne la discipline Mais tarde êle critica o procedimento de Tnrtufo na casa de Orgon Sil se trouve bien dun homme opulent à qui il a su imposer dont il est le parasite et dont il peut tirer de grands accours il ne cajole point sa femme il ne lui fait du moins ni avance ni déclaration il senfuira il lui laissera son manteau il nest assui sûr delle que de luimême Il est encore plus éloigné demployer pour la flatter et pour la séduire le jargon do lu dévotion ce nest point par habitude quil le parle mais iivce dessein et selon quil lui est utile et jamais quand il ne lrviroit quà le rendre trèsridicule Il ne pense point à profiter de toute sa succession ni sattirer une donation générale tic tous scs biens sil sagit surtout de les enlever à un fils le lé gitime héritier un homme dévot nest ni avare ni violent ni in iitc ni même intéressé Onuphre nest pas dévot mais il veut être cru tel et par une parfaite quoique fausse imitation de la piété ménuger sourdement ses intérêts aussi ne se jouetil pas à ligue directe et il ne sinsinue jamais dans une famille où se trou vent tout à la fois une fille à pourvoir et un fils à établir Il y a là des droits trop forts et trop inviolables on ne les imvrrac point sans faire de léclat et il lappréhende sans quune purcillc entreprise vienne mix oreille du Prince à qui il dérobe 316 MIMESIS sa marche par la crainte quil a dêtre découvert et de paroitrc ce quil est 11 en veut à la ligne collatérale on lattaque plus impunément il est la terreur des cousins et des cousine du neveu et de la nièce le flatteur et lami déclaré de tous les oncles qui fait ont fait fortune il se donne pour lhéritier légitime de tout vieillard qui meurt riche et sans en fan ts Evidentemente La Bruyère pensa aqui no tipo perfeito como que ideal de santarrão que não é outra coisa afora santar rão e que realiza conseqüentemente sem qualquer fraqueza humana e sem qualquer lacuna em vigilância contínua e guiada pela razão o plano elaborado com fria premeditação e que cor responde ao papel do santarrão Mas Molière nem poderia ter tido a intenção de levar à cena a encarnação perfeita do adjetivo santarrão precisava para o palco de efeitos forte mente cômicos e os encontrou de maneira extremamente espiri tuosa no papel do santarrão que o seu Tartufo interpreta em contraste com o seu caráter natural Êste rapaz forte e sadio gros et gras le teint frais et la bouche vermeille com o seu forte apetite deux perdrix avec une moitié de gigot en hachis para um jantar e as suas demais necessidades sensíveis não me nos desenvolvidas não tem o mínimo talento para a beatice nem que fôsse para uma beatice fingida o burro aparece em tôda parte por baixo da pele do leão êle interpreta o seu papel pèssimamente pois exagera insensatamente e logo perde o con trôle de si quando os seus sentidos são excitados as suas intrigas são cruas e simplórias e ninguém afora Orgon e sua mãe póde ser enganado por êle nem por um instante nem os restantes protagonistas nem o público Tartufo justamente não é a encarnação de um hipócrita inteligente e autocontrolado mas é um sujeito grosseiro com fortes e crus desejos que tenta ado tar a promissora atitude do beato por mais que esta não vá absolutamente com a sua cara e contrarie tôda a sua maneira de ser interna e externa e justamente isto é subjugantemente cômico Os críticos do século XVII que como La Bruyère I Se se trata exatamente de um homem opulento a quem soube se impor de quem é parasita e de quem pode tirar grandes proveitos não corteja sua mulher ou pelo menos não lhe faz nem insinuações nem declaração fugirá deixarlheá sua capa se não estiver tão seguro dela como de si mesmo Está ainda mais longe de empregar para adulála e seduzila o jargão da devoção não é por hábito que o fala mas de propósito e segundo lhe fôr útil e jamais quando lhe serviria apenas para se tornar muito rid ícu lo Não pensa em aproveitar tôda a sua herança nem em ganhar para si uma doação geral de todos os seus bens se se tratar sobretudo de tirámos a um filho o legítimo herdeiro um homem devoto não é nem avaro nem violento nem injusto nem sequer interessado Onofre não é devoto mas quer ser tido como tal e através de uma perfeita embora falsa imitação da piedade cuidar surda mente dos seus interesses também êle não ataca a linha reta c não se insinua jamais numa família onde se encontram simultaneamente uma filha para dotar c um filho a sor estabelecido Lá há direitos demasiado fortes e demasiado invioláveis não se pode atravessálos sem fazer barulho e isto êle tem e sem que uma tal empreitada chegue aos ouvidos do Príncipe de quem oculta o seu caminho por mêdo de ser descoberto e de aparecer como o que é Prefere a linha colateral atacase a mesma mais impunemente é o terror dos primos c das primas do sobrinho e da sobrinha o adulador 6 o amigo declarado de todos os tios que fizeram fortuna apresentase como herdeiro legítimo dc todo velho que morre rico e sem filhos O SANTARRÃO 317 só consideram verossímil o que fôsse razoàvelmente compreen sível devem terse perguntado como era possível que até mesmo só Orgon e Madame Pernelle caíssem no laço só que a expe riência mostra que até a mais crua das trapaças e a mais tôla das seduções têm êxito por vêzes e o têm quando adulam os costumes e os instintos dos trapaceados e satisfazem os seus desejos ocultós A necessidade mais instintiva e oculta de Orgon à qual pode se abandonar justamente entregandose de corpo e alma a Tartufo é o sadismo do tirano familiar aquilo ao qual sem a legitimação da beatice êle não se poderia atrever pois é tão sentimental e inseguro quanto colérico a isto pode se dedicar agora com a consciência tranqüila faire enrager le monde est ma plus grande joie 3 7 cf também 43 je porte en ce contrat de quoi vous faire rire êle ama Tartufo pela possibilidade que êste lhe dá de satisfazer esta necessidade instintiva de tiranizar e atorm entar o próximo e por isso deixa se envolver por êle desta forma a sua capacidade de julgamento aliás não muito desenvolvida fica ainda mais debilitada e no caso de Madame Pernelle ocorre um processo psicológico muito semelhante E é novamente espirituoso em extremo o fato de Molière utilizar justamente a beatice para remover as inibições que se opõem ao livre desdobramento do sadismo de Orgon Nesta como em muitas outras peças de Molière fica evi dente que Molière tipifica muito menos apanha a realidade muito mais individualmente do que a maioria dos moralistas do seu século Não criou o avarento mas um muito específico velho monômano e tossegoso não o misantropo mas um jovem fanático da sinceridade da melhor sociedade inflexível c imbuído das suas próprias opiniões que se constitui em tri bunal do mundo e o julga indigno de si não o hipocondríaco mas um tirano doméstico abastado extremamente forte sadio c colérico que esquece constantemente o seu papel de enfêrmo I mesmo assim como todo mundo sente Molière se inclui completamente no século moralistatipificante pois procura o individualmente real só por causa do seu ridículo e o ridículo iitnifica para êle o desvio do médio e do habitual um ser humano que tivesse de ser levado a sério seria também para èlc típico Procura efeitos cênicos o seu gênio é mais vivaz f brinca mais livremente a técnica de esboçamento de La Bru yiVe que compõe o tipo puramente moral a partir de muitas peculiaridades e anedotas é inutilizável para o palco pois êste piccisa de efeitos fortes e de mais unidade no concretamente vivo ilo que no abstratamente típico mas a atitude moralista é fundamentalmente a mesma IJma outra crítica não menos elucidativa à obra de Molière iMKontrasc cm alguns famosos versos da Art poétique de Boileau M Wl a 405 ltudie la Cour et eonnoissez la Ville I une et lautre est toujours en modèles fertile 318 MIMESIS Cest par là que Molière illustrant ses écrits Peutêtre de son art eût remporté le prix Si moins ami du peuple en ses doctes peintures Il neût point souvent grimacer ses figures Quitté pour le bouffon lagréable et le fin Et sans honte à Térence allié Tabarin Dans se sac ridicule où Scapin senveloppe Je ne reconnois plus lauteur du Misanthrope Le Comique ennemi des soupirs et des pleurs N admet point en ses vers de tragiques douleurs Mais son emploi nest pas daller dans une place De mots sales et bas charmer la populace Il faut que ses acteurs badinent noblement A seu modo esta crítica está totalmente justificada como no fundo Boileau admirava muito Molière ela até resultou em branda e comedida Pois os gestos as palavras e os truques cênicos farsescos não se encontravam somente nas farsas propria mente ditas às quais pertence Les Fourberies de Scapin que Boileau cita mas se introduzem também nas comédias de socie dade no Tartufo por exemplo a cena do trio OrgonDorine Marianne 22 na qual Orgon se coloca em posição para dar uma bofetada em Dorine se ela o interromper mais uma vez contém um efeito puramente farsesco e isto é quase ainda mais válido para a cena em que Orgon e Tartufo caem ambos de joelhos 3 6 Mesmo o Misanthrope indicado por Boileau como modêlo de comédia de caráter social de fato a comédia mais uniformemente afinada num só tom distintamente social em tôda a obra de Molière contém uma pequena cena farsesca a saber a aparição do criado de Alcestes Dubois 44 Molière nunca renunciou aos efeitos que lhes oferecia o seu domínio da técnica da farsa e talvez as suas idéias mais geniais são justamente aquelas que lhe permitiram incorporar no sentido e na vida do seus conflitos aquela comicidade de situações de per si meramente mecânica e clownesca A intenção de faire rire les honnêtes gens sans personnages ridicules desde as pri meiras comédias de Corneille ambição específica de cena cômica francesa nunca fêz de Molière um purista do estilo Quem viu as suas peças em apresentações de qualidade ou possui bas tante fantasia para imaginar o jôgo cênico durante a leitura sabe que há efeitos grotescos e farsescos dispersos por tôda parte também nas comédias mais distintas até no Misanthrope atôres que possuem verve e fantasia cênica encontram em tôda 2 Estudai a Côrte e conhecei a Cidade uma e outra são sempre férteis em modelos É por aí que Molière ilustrando os seus escritos talvez tivesse arrebatado o prêmio pela sua arte se menos amigo do povo em suas doutas pinturas não tivesse feito amiúde caretear suas personagens abandonando pelo bufão o agradável e refinado e sem pêjo aliado Terêncio a Tabarim Nesse saco ridículo em que Escapino se envolve não reconheço mais o autor do Misantropo O Cômico inimigo dos suspiros e dos prantos não admite em seui versos trágicas dores mas o seu ofício não é o de ir a u m t praça encantar com palavras sujas e baixas o populacho fi m itter que os seus ntôres gracejem nobrem ente O SANTARRÃO 319 parte a ocasião de modelar tais oportunidades e também de improvisar o próprio Molière que era um cômico excelente aproveitou na sua interpretação tôdas as oportunidades para o exagero grotesco Evidentemente os efeitos farsescos não se limitam de forma alguma só a personagens que pertencem ao povo às quais Boileau alude aqui exclusivamente Molière toma personagens de tôdas as classes e as torna objeto de tais gracejos e nadisputa acêrca da École des femmes êle se gaba expressa mente de ter introduzido o marquis ridicule e até de terlhe conseguido o papel que antes estava reservado à figura clownesca do criado cômico Le marquis aujourdhui est le plaisant de la comédie et comme dans toutes les comédies anciennes on voit toujours un valet bouffon qui fait rire les auditeurs de même dans toutes nos pièces de maintenant il faut toujours un marquis ridicule qui divertisse la compagnie 3 LImpromptu de Versailles scène I Embora isto seja um exagêro insolentemente polêmico nascido da situação momentânea não deixa de delatar a intenção que Molière também levou a cabo de modelar o ridículo de Iodos os homens de forma grotesca sem se lim itar exclusiva mente a tipos cômicos das classes baixas Boileau pelo contrá rio deseja na sua crítica um a severa tripartição dos níveis estilísticos inspirada nos modelos antigos conhece em primeiro lugar o estilo elevado e sublime da tragédia depois o estilo médio da comédia de costumes que trata de honnêtes gens e deve ser destinada a honnêtes gens nas quais os atôres badi nent noblement e finalmente o estilo baixo da farsa popular nu qual tanto nos acontecimentos quanto na linguagem domina le bouffon e que Boileau já por causa das suas mots sales et bax que fazem as delícias da plebe despreza profundamente censura a Molière de form a muito branda como vimos o 1er misturado o estilo médio com o baixo O que mais nos interessa nesta crítica de Boileau é o conceito de povo nela contido É evidente que não pode con lcbcr outros tipos populares afora os grotescamente cômicos pelo menos não como objeto de reprodução artística La cour et lu ville significa no século XVII aquilo que nós hoje chamaríamos liilvcz a sociedade culta ou também o público estava com posto de nobreza da côrte do séquito do rei la cour e da alta hiirgucsia parisiense la ville que em grande número já perten u u à nobreza burocrática noblesse de robe ou se esforçava por entrar nela pela compra de cargos esta é a camada à qual prrtcnce o próprio Boileau e a grande maioria das cabeças IniUcntcs do século La cour et la ville é a expressão mais 1 m n r iu i 4 h o je o jra c lo io d a c o m é d ia e c o m o em tô d a s a s c o m í liU h 11 I v é ie w m p re um c ria d o b u f lo q u e p ro v o c a o riso n o s o u v in te s d a ntfmin foimn como em Adiu noiai peça do agora 6 necessário sempre um tliHcuio que divlrla a audiência 320 MIMESIS usual para os círculos dirigentes da nação imediatamente antes de Luís XIV e durante o seu reinado especialmente também a mais corrente para aquêles aos quais se destinam as obras literárias e ela é contrastada com le peuple não somente aqui mas também muito freqüentemente em outras ocasiões por exemplo nas disputas acêrca do bom uso da língua La cour et la ville assim diz Boileau devem ser estudadas para acertar no estilo médio no nível estilístico da comédia distinta e para se livrar do bouffon das caretas do povo Boileau não parece achar possíveis outras imagens do povo e da sua vida E aqui manifestamse claramente os limites do seu contraste com Mo lière da mesma forma que antes dos limites do contraste entre Molière et La Bruyère Embora Molière tenha empregado efeitos farsescos até em meio às suas comédias elegantes em bora tenha mesmo caricaturizado pessoas da sociedade culta até o grotescamente farsesco não deixa de ser verdade que também êle conhece o povo como personnages ridicules Podese considerar a arte de Molière como o máximo daquele realismo que na literatura clássica francesa totalmente desenvolvida sob o reinado de Luís XIV ainda podia ser apre ciado marcou o limite do que era possível naquele tempo Não se entregou totalmente à tendência predominante da tipificação psicológica mas também para êle o peculiar o característico é sempre só o ridículo e o extravagante não evitou o farsesco e o grotesco mas também não se pode falar no seu caso tão pouco quanto no caso de Boileau de uma representação real da vida das camadas populares nem que fôsse sustentada por uma atitude tão aristocràticamente desdenhosa como a de Shakes peare Todos os seus criados e camareiras camponeses e lavradoras até os seus comerciantes notários médicos e boti cários não são senão caricaturas cômicas e somente dentro dos lares da alta burguesia ou da aristocracia a criadagem espe cialmente a feminina defende por vêzes o partido do bom e robusto senso comum além do mais a sua ação referese sempre aos problemas dos seus senhores e nunca à sua própria vida Falta qualquer sombra de política de crítica social ou econômica ou de investigação dos fundamentos políticos sociais ou econômicos da vida a sua crítica dos costumes é puramente moralista isto é aceita a estrutura existente na sociedade como dada pressupõe que ela seja justificada duradoura e universal mente válida e castiga as extravagâncias que ocorrem no seu seio como dignas de riso Neste sentido Molière até fica atrás de La Bruyère mais limitado no seu talento representativo mas muito mais sèriamente ético o qual embora também não apresen te qualquer crítica da estrutura da vida social escrevendo perto do fim do século quando o brilho do rei já não irradiava tão ofuscamente não deixou de tomar consciência desta limitação da arte literária e exprimiu eficazmente esta consciência em várias passagens da sua obra tanto mais eficazmente quanto é possível sentir que cala muito mais do que diz Un homme O SANTARRÃO 321 né Chrétien et François assim escreve perto do fim da secção Des ouvrages de lesprit se trouve contraint dans la satire les grands sujets sont défendus E neste contexto quero tam bém citar a conhecida e peculiarmente emocionante passagem acêrca dos camponeses que se encontra no capítulo De 1homme parágrafo 128 na edição dos Grands Ecrivains Lon voit certains animaux farouches des mâles et des femelles répandus par la campagne noirs livides et tout brûlés du soleil attachés à la terre quils fouillent et quils remuent ave une opiniâtreté invincible ils ont comme une voix articulée et quand ils se lèvent sur leurs pieds ils montrent une face humaine et en effet ils sont des hommes Ils se retirent la nuit dans des tanières où ils vivent de pain noir deau et de racines ils épargnent aux autres hommes la peine de semer de labourer et de recueillir pour vivre et méritent ainsi de ne pas manquer de ce pain quils ont semé4 Embora êste trecho importante já a partir da sua afirmação moral não negue o seu século não deixa de ser verdade que provúvelmente está sòzinhp nas belas letras do seu tempo pen samentos como êstes não ocorreriam a Molière nem a Boileau c tanto um quanto o outro receariam exprimilos ultrapassam o limite daquilo que Boileau chama 1agreáble et le fin claro que itflo por se tratar de grands sujets grandes temas pois isto êles nrto eram segundo a visão de então mas porque conferem a um objeto quotidiano e contemporâneo através de um tratamento demasiado concreto e sério mais pêso do que estèticamente lhe eulic Também para o satírico ou em geral para o moralista o grandes temas não estão a bem dizer proibidos o próprio 141 Hruyère escreveu capítulos que tratam do m onarca e do I nlHilo dos homens e dos livrespensadores por isso na passa lem cima citada un homme né Chrétien et François não se uns ver uma consciência fundamental dos limites do seu ofício U escritor mas sòmente uma discreta crítica a seu amigo e imicnus Boileau uma interpretação eminentemente digna de ponderação e fàcilmente defensável mas que acho contudo imtuiil ussim como conhecemos a maneira e o temperamento ilr I ii Hruyère que não eram absolutamente revolucionários iniiN íi profundamente críticos e inclinados a ir ao fundo dos imllcmus sociais preferiria supor que êle também pensava em 1 mesmo e nu situação política e estética geral uma situação Hiic embora lhe permitisse tratar dos grandes temas não deixava il évitai que passasse de um certo muro intransponível il les iiihinir parfois et se détourne en su ite sòmente podia se 4 Yfcin nc dispersos pelo campo certos animais ferozes machos e fêmeas iiri llvldoi c totalmente queimados pclo sot presos à terra que escavam iH iifirin coin tmm nbitinnçfio invencível têm como que uma voz articulada iHiiMilii r cigucm Ahrc os scui pis apresentam uma face humana e com lin J n Im niriu Kctlnwn e A nolle cm covl onde vlvem de pfio príto Atfun min home n tuibiithn de semeur lnvrar c colhtr ltm vlvri p m cirrnn ih iMmiUo iiir nAit llic folle Nie pQo que semcAram 322 MIMESIS ocupar dêles numa generalização elevada e moralizante o tra tamento totalmente livre da sua estrutura concreta e contem porânea era proibido tanto por motivos políticos quanto por motivos estéticos e ambas as espécies de motivos estão em mútua relação Em Molière são extremamente raras as alusões políticas contemporâneas e quando elas aparecem estão tão discreta mente insinuadas como se se tratasse de algo impróprio que só é mencionado com muita precaução ou que é melhor peri frasear No Tartufo Orgon evidentemente estêve do lado da côrte durante a Fronde Nos troubles lavaient mis sur le pied dhomme sage Et pour servir son prince il montra du courage 5 12 De forma não menos discreta insinuase que êle apesar disso guardou secretamente os papéis de um comprometido que lhe era pessoalmente próximo quando êste teve de fugir De forma igualmente discreta tratase de tudo aquilo que tivesse referência a coisas profissionais ou econômicas Já dissemos acima que no caso de Molière da mesma forma que em qualquer outro caso da literatura contemporânea não são apresentados somente camponeses ou outros tipos do povo baixo mas também comer ciantes notários médicos e boticários meramente como cari caturas cômicas Isto relacionase com o fato de que o ideal social do tempo do honnête homme pedia uma educação e uma atitude o mais universal possível esforçavase para se manter longe de qualquer especialização ainda que se tratasse da do poeta ou do sábio quem quisesse ter valor inteiro na sociedade não devia deixar transparecer as bases econômicas da sua vida nem a sua especialização profissional caso a possuísse caso contrário era tido por pedante extravagante e ridículo só era permitido mostrar aquelas aptidões que também pudessem ser tidas por hobbies elegantes e que contribuíssem para o diverti mento leve e agradável em sociedade Isto também contribui como gostaríamos de mencionar aqui para que por vêzes mesmo coisas difíceis e importantes fôssem representadas de uma maneira modelarmente simples elegante e despretensiosa e tam bém como se sabe para que a expressão lingüística francesa chegasse a uma clareza e universalidade ímpar Mas a espe cialização profissional tornouse desta forma impossível tanto social quanto estèticamente era só na categoria do grotesco objeto da imitação literária Para isto é claro também a tra dição da farsa trouxe a sua parte mas isto ainda não explica por que no nôvo gênero da comédia social e distinta de nível 5 Nossas discórdias tornaramno homem prudente e para servir a eu príncipe mostrou coragem O SANTARRÃO 323 estilístico médio a visão grotesca do profissional se manteve de forma tão geral e sem exceções É também possível fazer um a contraprova Um a série de comédias de Molière passase nos círculos da alta burguesia por exemplo Lavare Le bourgeois gentilhomme Les Femmes savantes Le Malade Imaginaire Em todos êstes lares as pessoas são muito abastadas mas em nenhum dêles falase em profissão ou em qualquer atividade economicamente produtiva Nem che gamos a saber como Harpagon o avarento chegou a acumular u sua fortuna talvez a herdou e o único negócio que é mencionado a usura é grotesco de uma universalidade atemporal c além do mais não é produtivo mas o investiménto de um homem que vive de rendas N ão se fica sabendo a profissão ile nenhum dêstes burgueses parece evidente que todos vivem ile rendas Só uma vez falase acêrca da origem de uma for tuna é no Bourgeois gentilhomme onde a senhora Jourdain liKrepn a seu marido Descendonsnous tous deux que de bonne hougeoisie Et votre père nétaitil pas marchand aussi bien que le mien E com respeito à filha diz ses deux urandpères vendaient du drap auprès de la porte SaintInno ient Mas estas indicações só servem para fazer salientar ain iln mais crassamente a grotesca doidice do seu marido o se nhor Jourdain êste é um arrivista inculto que não entende bem o iilciil social do seu tempo e tenta conseguir a sua ascensão social com meios imprestáveis em vez de tentar se tom ar um culto honnête homme da classe da alta burguesia comete a pior faita i k i i i I que podia ser cometida naquele tempo quer parecer o iiu não é isto é um nobre um gentilhomme Isto fica total mente nítido quando se pensa no seu genro presuntivo Cléonte que é pósto por Molière em contraste com o senhor Jourdain anuo moilêlo de um honnête homme de origem burguesa Omindo Cléonte pede a mão da filha de Jourdain êste lhe iwigiintii se é gentilhomme e êle responde Monsieur la plupart des gens sur cette question nhésitent nu beaucoup on tranche le mot aisément Ce nom ne fait miiim scrupule à prendre et lusage aujourdhui semble en auto iik c i le vol Pour moi je vous lavoue jai les sentiments sur tir matière un peu plus délicats Je trouve que toute impos du est indigne dun honnête homme et quil y a de la lâcheté iliuiiiscr ce que le ciel nous a fait nature à se parer au monde dun titie dérobé à se vouloir donner pour ce quon nest pas lo r iiii né de parents sans doute qui ont tenu des charges honorables je me suis acquis dans les armes lhonneur de six mis île service et je me trouve assez de bien pour tenir dans le momie un rmiK iiHNcs passable mais avec tout cela je ne veux nml nie donner un nom où dinitres en ma place croiraient 324 MIMESIS pouvoir prétendre et je vous dirai franchement que je ne suis point gentilhomme Êste é pois o aspecto de um jovem burguês consciente do seu estado um honnête homme que conhece o seu lugar na sociedade Êle não se deixa levar por esta vontade de se fazer passar por nobre na qual caem os arrivistas do tipo do senhor Jourdain que é rico só de segunda geração e cujo pai ainda comerciava com panos Mas está igualmente afastado do povo e de uma profissão concreta Nenhuma palavra sôbre se a sua família é prestigiosa por exemplo na indústria da sêda ou no comércio de vinhos Antes ils ont tenu des charges honora bles isto é compraram cargos que os elevaram para a catego ria do estado intermediário a noblesse de robe êle próprio foi oficial durante seis anos e é o bastante rico pour tenir dans le monde un rang assez passable1 Nenhum pensamento sôbre ideologia econômica ou sôbre a burguesia produtiva pode ocorrer a êste jovem pelo contrário êle se esforça em se afastar disso A sua burguesia é para êle tal como a aristocracia o seria para um jovem aristocrata nada mais que un rang quon tient dans le monde também êle por sua vez com prará uma charge honorable ou a herdará como os seus pais e parentes Estas últimas observações foram tiradas quase textualmente do meu escrito anterior Das franzoesische Publikum des 17 Jahr hunderts München 1933 páginas 40 a 42 também mais adiante neste capítulo utilizarmeei repetidamente dêste trabalho Molière como vimos não receou empregar elementos far sescos nas suas comédias de sociedade mas evita totalmente a concretização realista da situação política ou econômica do meio em que suas personagens atuam e muito mais o aprofundamento crítico está muito mais inclinado a franquear a entrada do nível estilístico médio ao grotesco do que ao elemento sério e inteiramente realista da vida econômicopolítica O seu realis mo na medida que tem um lado sério e problemático limitase ao psicológicomoral para reconhecer isto com tôda nitidez lembrese a descrição da origem da fortuna dos Grandet que Honoré de Balzac apresenta no comêço do seu romance Eugénie Grandet dentro da qual está entretecida tôda a história fran cesa a partir de 1789 e até a Restauração e ponhase ao seu lado a total generalidade e a absoluta carência de historicidade da situação econômica de Harpagon Não se deverá objetar que 6 Senhor a maioria das pessoas acerca desta questão não hesita muito resolve logo o que vai dizer Não há escrúpulo nenhum em tom ar êste nome e o seu hábito hoje parece autorizar o seu roubo Por minha parte vos confesso tenho os sentimentos a êste respeito um pouco mais delicados Acho que tôda impostura é indigna de um homem honesto e que há covardia em encobrir a condição em que o céu nos fêz nascer em se adornar diante do mundo com um título roubado em querer passar pelo que não se é Nasci de pais que sem duvida tiveram cargos honoráveis adquiri pela armas a honra de seis anos de serviço e enho bens suficiente paru ter no mundo uma posição bastante sofrível mas com tudo isso nfio quero darme um nome que outros em meu lugar acreditariam poder pretender c dirvosei francamente que nfio sou um cavalheiro O SANTARRÂO 325 no âmbito de uma comédia Molière não tivesse espaço para tinia descrição como a de Balzac também sôbre o palco teria tido possível mostrar em lugar de Harpagon um atacadista ou um financista contemporâneos em meio aos seus negócios mus algo semelhante só aparece após o classicismo com Dan court ou com Lesage e mesmo nestes casos sem um a proble mática séria no que se refere à história ou à economia As comprovações acêrca das limitações do realismo que firamos até agora referiamse tôdas ao estilo médio da comédia e ilu sátira elas são ainda mais severas no âmbito do estilo ele vndo no âmbito da tragédia Nesse âmbito e naquele tempo a Hcpnrnção do trágico dos acontecimentos da vida quotidiana e hu nmnacriatural foi realizada de form a tão radical como nunca an tCR nem na época cujo estilo servia de modêlo a Antigüidade gre coromana Corneille ainda sentiu por vêzes quanto mais longe i gósto da sua época ia neste sentido do que a antiga tradição o cxijiM Sôbre o palco trágico francês não deve aparecer nem o quotidiano dos acontecimentos nem o criatural das pessoas um tipo da personagem trágica que é totalmente estranho A Antigüidade Para dar uma imagem concreta dêle quero imtiiKir algumas imagens estilísticas características são das tra jlíilln ilc Rucinc Bérénice e Esther mas encontramse exemplos krtiHIImntcs cm tôdas as obras trágicas da época ainda que niM de Racine atinjam tal aperfeiçoamento na sua forma No comòço de Bérénice somos introduzidos a um aposento ilii pitlikio imperial Ia pompe de ces lieux Je le vois bien Arsace est nouvelle à tes yeux Souvent ce cabinet superbe et solitaire Des secrets de Titus est le dépositaire est ici quelquefois quil se cache à sa cour A iHto corresponde a forma pela qual o imperador se expri m i i i i i i i h Io neccssita de solidão lmilin quon vous laisse avec moi 21 l l l l Oue lon me laisse7 43 mi i i h i i h Io dcticja falar com alguém lu n i A ton vu de ma part le roi de Comagène Suitil que je lattends ft A pompa dénie lugnre vejo bem Arsácio é nova para os oliii Amlrittf éMo reclnio lobcrbo e solitário dos segredos de Tito ê n I1 Mu que por vézc ocultnie da sua c ô rte f luulinn iu9 vos dcUem comigo Oh me ilflKctti 326 MIMESIS P a u l i n De vos ordres seigneur jai dit quon lavertisse T itu s Il suffit 8 21 Quando Tito encarrega o rei Antioco de acompanhar a rainha Berenice na sua viagem isto tem o seguinte aspecto Vous que lamitié seule attache sur ses pas Prince dans son malheur ne labandonnez pas Que lOrient vous voie arriver à sa suite Que ce soit un triomphe et non pas une fuite Quune amitié si belle ait déternels liens Que mon nom soit toujours dans tous vos entretiens Pour rendre vos Etats plus voisins lun de lautre LEuphrate bornera son empire et le vôtre Je sais que le sénat tout plein de votre nom D une commune voix confirmera ce don Je joins la Cilicie à votre Comagène 9 Das palavras de Antioco cito Titus maccable ici du poids de sa grandeur Tout disparaît dans Rome auprès de sa splendeur Mais quoique lOrient soit plein de sa mémoire Bérénice y verra des traces de ma gloire10 3 1 e 2 A apresentação do rei no prólogo de Esther é demasiado longa para ser transcrita aqui e também da descrição da procura de uma espôsa para o rei e da sua escolha que é dita por Ester na primeira cena só transcreverei algumas amostras De PInde à 1HelIespont ses esclaves coururent Les filles de lEgypte à Suse comparurent Celles mêmes du Parthe et du Scythe indompté Y briguèrent le sceptre offert à la beauté11 8 Tito Viram da minha parte o rei de Comagênia Sabe êle que o espero Paulino De vossas ordens senhor disse que o advertissem T ito Basta 9 Vós que só a amizade ata aos seus passos Príncipe na sua des graça não a abandoneis que o Oriente vos veja chegar empós ela que seja um triunfo e não um a fuga que uma amizade tão bela tenha laços eternos que meu nome esteja sempre em tôdas vossas conversações Para tornar vossos Estados mais vizinhos um do outro o Eufrates lim itará o seu império e o vosso Sei que o senado pleno de vosso nome de uma só voz confirm ará êste dom Junto a Cilicia à vossa Comagênia 10 Tito me oprime com o pêso da sua grandeza tudo desaparece em Roma perto do seu esplendor mas em bora o Oriente esteja pleno de sua memória Berenice lá verá os rastos da minha glória 11 Da Índia ao Helesponto seus escravos correram as filh as do Egito às de Susa compararam mesma a s da Pátria c da Cftla Indomável disputaram o cetro oferecido à belezn 0 SANTARRÃO 327 E mais tarde Il mobserva longtemps dans un sombre silence E t le ciel qui pour moi fit pencher la balance Dans ce tempslà sans doute agissait sur son coeur Enfin avec des yeux où régnait la douceur Soyez reine ditil 12 O que Racine fêz da cena na quai Ester aparece diante do rei sem ter sido chamada está na memória de todo leitor de Racine A s s u é r u s Sans mon ordre on porte ici ses pas Quel mortel insolent vient chercher le trépas Gardes Cest vous Esther Quoi sans être attendue IÎSTH e r Mes filles soutenez votre reine éperdue Je me meurs Elle tombe évanouie A ü s u Îr u s Dieux puissants quelle étrange pâleur De son teint tout à coup efface la couleur Esther que craignezvous Suisje pas votre frère Estce pour vous quest fait un ordre si sévère Vivez le sceptre dor que vous tend cette main Pour vous de ma clémence est un gage certain I Ht iiiih Seigneur je nai jamais contemplé quavec crainte Lauguste majesté sur votre front empreinte Jugez comment ce front irrité contre moi Dans mon âme troublée a dû jeter deffroi Sur ce trône sacré quenvironne la foudre Jai cru vous voir tout prêt à me réduire en poudre Hélas sans frissonner quel coeur audacieux Soutiendrait les éclairs qui partaient de vos yeux Ainsi Dieu vivant la colère étincelle Ah i i i k u Calmez reine calmez la frayeur qui vous presse Du coeur dAssuérus souveraine maîtresse prouvez seulement son ardente amitié Fautil de mes Etats vous donner la moitié13 J voutnc longamente em um sombrio silêncio e o céu que por litliH H t pender balança nesse tempo sem dúvida agia sôbre o seu coração infini ioiH olhos onde reinava a doçura sêde rainha d isse Il A tiu tro Sm minha ordem encaminhamse para cá Que mortal vm huttar a morte Guardas Sois vós Ester Comoî Sem Minhas fllhai sustentai v o u a rainha desvairada m orro cai multtla i n u tr o i Deuses poderososl que estranha palidez da sua tez de repente laga a i rl Kster que temeis N lo sou vosso irm ão Ê para vós que é feita m i l niiUm lio ivr7 Vivait o estro de ouro que voi eitendo eit m io loia Ai il mltihn cltniíncU 4 penhor certo 328 MIMESIS Esta oferta é acompanhada no texto do livro de Esther é claro que não neste momento mas muito mais tarde durante o banquete pela observação sóbria postquam vinum biberat abundanter nada disso aparece em Racine da mesma forma já antes calara uma indicação realista dêsse texto embora esta indicação muito mais do que a mera proibição de aparecer sem ser chamada deita sôbre a coragem de Esther uma luz mais correta Ego igitur quo modo ad regem intrare potero quae triginta iam diebus non sum vocata ad eum O que surge de tôdas estas citações é o sobreerguimento da personagem trágica até o seu extremo limite tratese somente de um príncipe que em seu cabinet superbe et solitaire se entrega ao seu amor depois de ter dito ao seu séquito que fon me laisse tratese de uma princesa que suba por exemplo a tim navio que a aguarda souveraine des mers qui vous doivent porter Mithri date 1 3 a personagem trágica assume sempre umaatitude sublime em primeiro plano rodeada pelos apetrechos pelo sé quito pelo povo pela paisagem e pelo universo como se fôssem troféus triunfais que lhe servem e estão às suas ordens Nesta atitude entregase às suas paixões principescas e entre as mais eficazes imagens estilísticas da espécie das que acima enume ramos estão aquelas nas quais países inteiros continentes ou também o universo aparecem como espectadores testemunhas pano de fundo ou eco da emoção principesca Também para este caso especial quero apresentar alguns exemplos Em Andro maque 22 diz Hermione Pensezvous avoir seul éprouvé des alarmes Que lEpire jamais nait vu couler mes larmes14 Muito mais famoso é o magnífico verso da declaração de amor de Antioco Bérénice 1 4 que reproduzo aqui com o contexto próximo e no qual o elemento barrôcamente exaltado parece encontrarse com o romântico Rome vous vit madame arriver avec lui Dans lOrient désert quel devint mon ennui Je demeurai longtemps errant dans Césarée Lieux charmants où mon cœur vous avait adorée Esther Senhor jamais contemplei senão com temor a augusta majestade impressa em vossa fronte julgai como essa fronte irritada contra mim em minh alma alvoroçada deve ter provocado o pavor SôbTe êste trono sagrado que envolve o raio cri vos ver pronto a me reduzir a pó Ai sem tremer que coração audacioso sustentaria os relâmpagos que partiam dos vossos olhos Assim do Deus vivo faísca a có lera A ssuero Acalmai rainha acalmai o temor que vos acossa D o coração dc Assuero soberana senhora gozai sòmente sua ardente amizade Ê mister que dos meus estados vos dê a metade 14 Pensais que só vós sentistes temores que o Epiro jnmai viu correr as minhas lágrimas O SANTARRÀO 329 Je vous redemandais à vos tristes Etats Je cherchait en pleurant les traces de vos pas 1i E finalmente ainda um quadro da mesma Bérénice Aidezmoi sil se peut à vaincre ma faiblesse A retenir les pleurs qui méchappent sans cesse Ou si nous ne pouvons commander à nos pleurs Que la gloire du moins soutienne nos douleurs Et que tout lunivers reconnaisse sans peine Les pleurs dun empereur et les pleurs dune reine 45 A consciência que a personagem trágica tem do seu estado principesco é tão forte que nunca a abandona Mesmo na mais profundu desgraça na emoção mais extrema chamamse a si mcunius com o seu estado não dizem infeliz de mim mas illem cu príncipe infeliz Une triste princesse diz Hermione ilc ui Andromaque 22 e Bérénice em meio à mais terrível iniifiiüo invoca Antíoco com as seguintes palavras O ciel quel discours Demeurez lrince cest trop cacher mon trouble à votre vue Vous voyez devant vous une reine éperdue Qui la mort dans le sein vous demande deux mots 17 33 I ilo falu de si sempre como prince malheureux e no ins Imilt ilriimâlico cm que Athalie vendose sùbitamente traída e irnlltlii cai no desespêro ela diz Où suisje O trahison ô reine infortunée Diirmcs et dennemis je suis environnée18 55 A i ciiu cm que Esther desmaiando grita Mch filles soutenez votre reine éperdue19 rt fui ciliulu por nós mais acima O estado principesco e o Ptulliimrnlo com êle relacionado tornouse uma parte da sua Il Nom voi viu senhora chegar com êle No Oriente deserto quai ius o Hi0u tédto Fiquei longamente errando em Cesaréia lugares encan uIhm iiinlr meu comçKo vos adorara tornava a pedirvos aos vossos tristes I ihiIh iM K i i r v a chorando os rastos dos vossos passos Ift Ajudai m i M possível a vencer minha fraqueza a reter os prantos qiiH te mp M iipiim icm ceisar ou se nSo pudermos mandar nos nossos prantos iu h glrtfln ao menu imenlc nossas dores e que todo universo reconheça em im pranloi dr um imperador e os prantos de uma rainha 17 t4oil Que dlftcurtol Ficai Príncipe 6 supérfluo ocultar minha u h ivRn mo i voltou olhot ve diante dc vós uma rainha desvairada que m iiMiito no In vou pede dua palavras II Mitlr liou rt traiçfto ó rainha infortunada De armas e inimigos tin piMmi mo luOamlal IV M intnu Ilha kumentni voain rainha desvairada 330 MIMESIS essência natural inseparável da sua substância e mesmo perante Deus ou a morte aparecem na atitude que lhes cabe como sobe ranos totalmente ao contrário da concepção criatural que ten tamos descrever no capítulo sôbre o século XV Não obstante seria absolutamente errado querer negarlhes o caráter natural humano imediato e simples tal como por vêzes o fizeram os românticos pelo menos no que se refere a Racine um tal juízo revela total incompreensão as suas personagens são de forma perfeita e exemplar naturais e humanas só que a sua vida exemplar e emocionantemente humana se desenrola numa posi ção exaltada que se tomou natural para êles Acontece até por vêzes que do próprio exaltamento resulte o efeito mais en cantadora e profundamente humano como exemplo poderseia citar muita coisa de Phèdre mas quero limitarme aqui à fala da incautamente feliz Bérénice na qual ela descreve quase exta siada a majestade do seu amado Tito durante a cerimônia noturna no senado para acabar dizendo algo que só uma pessoa que ama pode dizer Parle peuton le voir sans penser comme moi Quen quelque obscurité que le sort leût fait naître Le monde en le voyant eût reconnu son maître Embora como vimos a consciência do estado principesco esteja refundida na própria substância da personagem trágica o elemento propriamente funcional isto é o reinar a sua atividade prática manifestase somente em insinuações muito gerais o seu estado de príncipe é muito mais uma atitude do que uma função prática Nas primeiras peças especialmente em Alexandre a atividade amorosa e bélica do príncipe é posta exclusivamente a serviço do seu amor Alexandre conquista o mundo só para pôlo aos pés da sua amada e a peça tôda está cheia de imagens estilísticas barrocas da espécie do que segue A l e x a n d r e Maintenant que mon bras engagé sous vos lois Doit soutenir mon nom et le vôtre à la fois Jirai rendre fameux par léclat de la guerre Des peuples inconnus au reste de la terre Et vous faire dresser des autels en des lieux Où leurs sauvages mains en refusaient aux dieux C l é o p h i l e Oui vous y tramerez la victoire captive Mais je doute seigneur que lamour vous y suive Tant dEtats tant de mers qui vont nous désunir Meffaceront bientôt de votre souvenir Quand lOcéan troublé vous verra sour son onde Achever quelque jour la conquête du monde Quand vous verrez les rois tomber à vos genoux 20 Fala podese vêlo sem pensar como eu que seja quai fdue a cicurl dão em que a sorte o tivesse feito nascer o mundo ao vêlo rcccmhoctlolu seu senhor O SANTARRAO 331 Et la terre en tremblant se taire devant vous Songerezvous seigneur quune jeune princesse Au fond de ses Etats vous regrette sans cesse Et rappelle en son coeur les moments bienheureux Où ce grand conquérant lassurait de se feux A l e x a n d r e Et quoi vous croyez donc quà moimême barbare Jabandonne en ces lieux une beauté si rare Mais vousmême plutôt voulezvous renoncer Au trône de lAsie où je vous veux placer21 36 Esta ordem fictícia dos acontecimentos que tem sua origem imediata nos romances galantes e mediata na épica cortês en contrase ainda muito marcada em Andromaque onde Pirro diz a Andrômaca Mais parmi ces périls où je cours pour vous plaire Me refuserezvous un regard moins sévère22 O 4 mi mais tarde num exemplo modelar de hipérbole barrôca quundo compara o seu tormento amoroso com os tormentos que Infligiu aos troianos Je souffre tous les maux que jai faits devant Troie Vaincu chargé de fers de regrets consumé Mrulé de plus de feux que je nen allumai Hélas fusje jamais si cruel que vous lêtes2 A lito correspondem as expressões de Orestes que atormentado wnlo ou nmor procurou em vão sua morte junto aos citas Enfin je viens à vous et je me vois réduit A chercher dans vos yeux une mort qui me fuit 21 Alexandre A or a que o meu braço alistado sob vossas leis deve Miintnr meu nome e o vosso ao mesmo tempo tom arei famosos pelo estrondo il povo desconhecidos para o resto da terra vos farei erguer altares m Tugares onde suas selvagens mãos os recusavam aos deuses leAfUa Sim para lá levareis a vitória cativa mas duvido senhor que o Htm vos lua Tantos Estados tantos mares que vão nos desunir apagarmeão lngo la voin memória Quando o Oceano agitado vos vir sôbre sua onda M MliHr algum dia a conquista do mundo quando verdes os reis cair a vossos ii4t r terra tremente calarse diante de vós cuidareis senhor que uma princesa no fundo dos vossos Estados sente saudade de vós sem ciam relembra em seu coraçSo os momentos felizes em que êste grande con imiMiHlttr lhe assegurava o seu ardor A tew ndre Como então Creeís então que bárbaro comigo mesmo Nlmmlnnarei aqui uma beldade tio rara E vós então vós mesma quereis re nunciar ao torno da A lia onde vos quero sentar i l M ai em melo a ésses perigos aos quais corro para vos aprazer recusar m ali um olhar menos severo J llofro todos oi males que fiz ante Tróia vencido carregado de UtMa com um ldo p tloi remorsos queimado por mal ferros dos que acen d i Al fui eu alguma ve tio cruel como vós 332 MIMESIS Madame cest à vous de prendre une victime Que les Scythes auraient dérobée à vos coups Si jen avais trouvé daussi cruels que vous24 2 2 Nas peças posteriores tais motivos aparecem com menos fre qüência por exemplo em Bérénice 2 2 et de si belles mains Semblent vous demander lempire des humains25 Em seu conjunto a visão dos negócios do govêrno e da ordenação política dos acontecimentos é diferente mas continua sempre sendo sublime e geral muito afastada do prático e do objetivo Tratase sempre de intrigas da côrte e de lutas pelo poder que não transcendem além das mais altas esferas que rodeiam o príncipe e isto permite ao poeta manter os elementos políticos dentro de uma moldura pessoalpsicológica e dentro de um número limitado de personagens que são tratadas de forma moralista o que há por baixo e por trás não é expresso de forma alguma ou somente de forma muito geral êste último é o caso por exemplo daquela loi qui ne se peut c h a n g e r que impede o imperador Tito Bérénice de casar com uma rainha estrangeira Quando Tito neste conflito averigua acêrca dos sentimentos do povo isso tem o seguinte aspecto Que diton des soupirs que je pousse pour elle28 A maneira totalmente moralista de ordenar os acontecimentos políticos que exclui qualquer observação objetivoproblemática e qualquer comprometimento com o lado concreto e prático dos negócios do govêrno deixase estudar da melhor forma possível em Britannicus Bérénice e Esther Em tôda parte o bemestar e o malestar do Estado dependem exclusivamente das qualidades morais do príncipe o qual ou bem domina as suas paixões e põe a sua onipotência ao serviço da virtude e portanto do bem do Estado ou bem deixase vencer pelas paixões seduzir pelos aduladores do seu séquito e fortificar nos seus desejos malignos O indiscutível é a sua onipotência que não encontra resistência em lugar algum e todos os problemas e as resistências objetivas que se opõem na realidade viva tanto à boa quanto à má vontade ficam sendo totalmente desconsiderados tudo isto está muito por baixo de nós Dêste ponto de vista o quadro é o mesmo em tôda parte seja na alusão aos primeiros e virtuosos anos de govêrno de Nero 24 Enfim venho a vós e vejome reduzido a buscar em vossos olhos uma morte que foge de mim Senhora cabevos escolher uma vítima que os citas teriam furtado a vossos golpes se tivesse encontrado dentre êles algum tão cruéis como vós 25 e mfios tfio belas purecem pcdirvoi o império do hum anos 26 Que dizem dos sunpíro qwc exalo por ela O SANTARRÃO 333 Depuis trois ans entiers quatil dit quatil fait Qui ne promette à Rome un empereur parfait Rome depuis trois ans par ses soins gouvernée Au temps de ses consuls croit être retournée Il la gouverne em père27 Britannicus 11 seja na maneira como a ambição de Tito de ser um bom monarca é expressa Jentrepris le bonheur de mille malheureux On vit de toutes parts mes bontés se répandre28 Bérénice 2 2 ou Où sont ces heureux jours que je faisais attendre Quels pleurs aije séchés Dans quels yeux satisfaits Aije déjà goûté le fruit de mes bienfaits Lunivers atil vu changer ses destinées29 Ibid 44 ujii na descrição do bom rei Jadmire un roi victorieux Que sa valeur conduit triomphant en tous lieux Mais un roi sage et qui hait linjustice Qui sous la loi du riche impérieux Ne souffre pas que le pauvre gémisse Fst le plus beau présent des cieux La veuve en sa défense espère De lorphelin il est le père lit les larmes du juste implorant son appui Sont précieuses devant lui30 Esther 33 m finalmente na representação do adulador da côrte De labsolu pouvoir vous ignorez livresse lit des lâches flatteurs la voix enchanteresse J7 Ocmüc há três anos completos que disse que fèz que não prometesse a IM ita uitt Imperador perfeito Roma desde há três anos governada pelos h niUUdoB ao tempo dos seus cônsules parece ter retornado êle a governa m m i i i i mi pnl JM I mprcendl a felicidade de mil desgraçados viuse em tôda parte der iMMiMifmMt minha bondades JV Omle estio êsses dias felizes que fiz esperar Que prantos sequei I m i ijoe olho satisfeitos saboreei já o fruto das minhas benfeitorias Viu h imlverto mudar oa seus destinos 10 Admiro um rei vitorioso cujo valor conduz triunfante em tôda parte ut um rei prudenlo o que odeia a injustiça que sob a lei do rico imperioso Hl tottalnia uue o pobre pema 6 o mais belo presente dos céus A viúva tu defesa lo ócfla é o nui R a s lágrimas do Justo imploctndo i ii apolu fto preciosas diante dlle 334 MIMESIS Bientôt il vous diront que les plus saintes lois Maîtresses de vil peuple obéissent aux rois Quun roi na dautre frein que sa volonté même Quil doit immoler tout à sa grandeur suprême31 Athalie 43 Êste modo de ver o político que meramente diferencia o branco do prêto extremamente simplificante e exclusivamente moralista encontrase como vimos não somente nas peças destinadas à senhorinha de SaintCyr onde são explicáveis pelo fim ao qual se destinam mas também nas outras Nas tragédias da série de SaintCyr o que mais parece ter inspirado a mencionada manei ra de ver os acontecimentos é o moralismo bíblico nas anterio res o moralismo da tardia Antigüidade em ambos os casos porém há um motivo que sobressai fortemente e que nas fontes inspiradoras não aparece de forma alguma ou o faz muito mais dèbilmente tratase da onipotência do príncipe um motivo re presentativo do absolutismo barroco O príncipe é sôbre a terra como Deus a comparação dos dois já foi por nós apresentada na passagem que citamos de Esther a isto corresponde a repre sentação de Deus como um grãorei moralista LEternel est son nom le monde est son ouvrage 11 entend les soupirs de lhumble quon outrage Juge tous les mortels avec dégales lois Et du haut de son trône interroge les rois32 Esther 34 Algo semelhante encontrase por exemplo no côro final do pri meiro ato de Athalie com isto lembramse involuntàriamente aquêles períodos magnificamente rolantes de Bossuet no comê ço do elogio fúnebre da rainha da Inglaterra HenrietteMarie de France que acabam com o som de um verso sálmico Et nunc reges intelligite erudimini qui iudicatis terram êste discurso foi proferido em 1669 no primeiro período de brilho do rei e de Racine vinte anos antes de Esther Nas tragédias do classicismo francês reina como ficou evi dente depois de tudo o que foi dito o mais severo isolamento por baixo das personagens trágicas e dos acontecimentos trágicos até do séquito mais próximo do príncipe são escolhidas algumas poucas figuras as indispensáveis para a ação ministros e pessoas de confiança e tudo o resto é on Acerca do povo falase raramente e só empregando as expressões mais gerais possíveis indicações sôbre o decurso quotidiano da vida sôbre dormir comer ou beber sôbre o tempo a paisagem e a hora do dia 31 D o poder absoluto ignorais a embriaguez e dos covardes aduladores a voz encantadora Logo dirvosão que as mais santas leis senhoras do povo vil obedecem aos reis que um rei não tem outro freio que sua própria vontade que deve imolar tudo à sua grandeza su p rem a 32 O Eterno é o seu nome o mundo a sua obra ouve os suspiros do humilde ultrajado julga todos os m ortais com leli iguais t do alto do seu trono interroga os reis O SANTARRÃO 335 faltam quase por completo e quando aparecem estão refun didas no estilo sublime O fato de nenhuma palavra comum nenhuma designação corrente para algum objeto de uso quoti diano ser permitida é conhecido através da violenta polêmica dos românticos contra êste estilo dentro da qual o mais enérgico e espirituoso ataque provàvelmente se encontra no poema de Victor Hugo Réponse à un acte daccusation nas Contempla tions dentre estes versos quase demasiado eloqüentes nos quais descreve a sua revolta contra o ideal clássico de sublimidade ficoume na lembrança um verso que acho especialmente carac terístico On entendit un roi dire Quelle heure estil33 Algo assim ocorre no Hernani de Hugo séria de fato total mente incompatível com o estilo sublime de Racine Dentro desta sublimidade segregadora e isolante os prín cipes e as princesas trágicas entregamse às suas paixões So mente as considerações mais importantes livradas da confusão do quotidiano purificadas do cheiro e do gôsto do quotidiano penetram em suas almas que desta forma estão inteiramente livres para as maiores e mais fortes emoções O poderoso efeito tlus paixões nas obras de Racine e já de Corneille baseiase em hou parte do isolamento atmosférico do acontecimento tal como ucabamos de descrevêlo é comparável com a preparação iso lante das condições propícias tal como é usual na realização dus modernas experiências O acontecimento pode ser visto sem interferência e sem interrupção algumas No âmbito moral a inclinação para a separação estilística estamental vai tão longe iuc as considerações e escrúpulos de ordem prática que surgem ii cnda caso partem de personagens de círculos relativamente Imixos os heróis e heroínas principescos mantêmse livres disto mm apaixonada sublimidade despreza qualquer ponderação priílicu Em Bérénice é a confidente Fenícia quem aconselha a minha a não descorçoar Antíoco totalmente pois Tito não se Ii t í i i declarado ainda com clareza 1 5 e na mesma peça é o iimigo fiel de Antíoco Arsácio quem faz notar ao rei a favorá vtl situação forçada em que Bérénice se encontra segundo a opinião de Arsácio pôsto que Tito a abandona ela deve casarse com Antíoco 3 2 considerações calculistas como estas que ohucrvam as necessidades práticas da situação e julgam segundo ui mcnmas são demasiado baixas para achar lugar na alma do príncipe movido por sublimes paixões e acabam se mostrando liimhém como sendo falsas O mesmo sentimento estilístico moveu Racine a não pôr a calúnia contra Hipólito na bôea da piòpriu Fcdra como ocorre no seu modêlo clássico euripidiano num nu du suu unia Ocnonc êlc diz isto no seu prefácio 11 OuvitiM um rd dlwr quo horai nfto 336 MIMESIS Jai même pris soin de la rendre un peu moins odieuse quelle nest dans les tragédias des anciens où elle se résout dellemême à accuser Hippolyte Jai cru que la calomnie avait quelque chose de trop bas et de trop noir pour la mettre dans la bouche dune princesse qui a dailleurs des sentiments si no bles et si vertueux Cette bassesse ma paru plus convenable à une nourrice qui pouvait avoir des inclinations plus ser viles34 Contudo pareceme que Racine nesta passagem na quai tenta defender o valor moral da tragédia contra os ataques que se lhe dirigiam por inspiração cristãdevota dá ao pensamento um aspecto demasiado virtuoso pois não é propriamente o ele mento moralmente mau mas é o elemento que premedita baixa e pràticamente o que é incompatível com a sublimidade dos seus heróis principescos Um outro sinal muito essencial da sublimidade das perso nagens trágicas consiste na sua integridade corporal tudo o que acontece aos seus corpos deve ser em grande estilo e tudo o que fôr baixo e criatural deve ficar de fora Ainda Corneille tinha uma sensação da medida em que o sentimento estilístico do seu tempo ultrapassava neste sentido tôda a tradição mes mo a da Antigüidade Quando a sua peça Théodore fracassou atribuiuse o fracasso em parte à circunstância de que na pe ça se falasse da ameaça de prostituição da heroína Dans cette disgrâce assim diz êle no seu Examen Œuvres éd Grands Écrivains V 11 jai de quoi congratuler à la pure té de notre scène de voir quune histoire qui fait le plus bel ornement du second livre de SaintAmbroise se trouve trop licencieuse pour y être supportée Queûton dit si comme ce grand Docteur de lEglise jeusse fait voir cette vierge dans le lieu infâme31 Também todo sinal de decadência corpóreocriatural é incom patível com a concepção clássica francesa do sublime só a pró pria morte como acontecimento de estilo elevado é imprescin dível mas nenhum herói trágico pode ser velho doente decré pito ou deformado Sôbré êste palco não há nem Lear nem Édipo ou então devem se acomodar ao sentimento estilístico vigente No prefácio do seu Œdipe Corneille fala do seu modêlo Sófocles 34 Até tive o cuidado dc tornála um pouco menos odiosa do que é nas tragédias dos antigos onde ela própria se decide a acusar Hipólito Pensei que a calúnia tinha algo de demasiado baixo e de demasiado negro para pôla na bôca de uma princesa que aliás tem sentimentos tão nobres e vir tuosos Esta baixeza pareceume mais conveniente a uma ama que podia ter inclinações mais servis 35 Nesta desgraça tenho de que congratularme com a pureza de nosso palco vendo que uma história que faz o mais belo ornato do segundo livro de São Ambrósio é considerada demasiado licenciosa para poder ser suportada aí O que se diria se como aquêle grande Doutor da Igrcjn cu tivesse mostrado essa virgem no lugar infnmc O SANTARRÃO 337 Je nai pas laissé de trembler quand je lai envisagé de près et un peu plus à loisir que je navais fait en le choisissant Jai connu que ce qui avait passé pour miraculeux dans ces siècles éloignés pourrait sembler horrible au nôtre et que cette élo quente et curieuse description de la manière dont ce malheureux prince se crève les yeux et le spectacle de ces mêmes yeux cre vés dont le sang lui distille sur le visage qui occupe tout le cinquième acte chez ces incomparables originaux ferait soulever la délicatese de nos dames jai tâché de rémédier à ces désordres3 Œuvres VI 26 Sentese pelo tom destas duas citações que Corneille não se defrontava com o sentimento estilístico do tempo de Luís XIV to talmente sem contradições internas Na sua primeira obrapri ma que é também a mais eficaz no Cid existe Dom Diogo que é esbofeteado e que pelo menos durante um instante é um velho indefeso e no Attila que foi escrito somente no tempo de Boileau e de Racine o herói morre por causa de uma he morragia nasal o que causou grande escândalo Nas tragédias île Racine tais coisas seriam inconcebíveis Para a sua geração cru evidente que as coisas corpóreonaturais ou até criaturais hS podiam ser toleradas no palco cômico e mesmo aí só dentro ile certos limites Também nas tragédias de Racine aparece um herói velho a saber Mitridates mas tratase de uma figura lotiilmcntc sublime e a sua idade dá ocasião para imagens esti 1 inticas da espécie da seguinte Ce coeur nourri de sang et de guerre affamé Malgré le faix des ans et du sort qui mopprime Traîne partout lamour qui lattache à Monime37 2 3 I iiwilmente é também o sentimento do corporalmente decoroso o qual para um leitor moderno está em estranho contraste itiiu ii puixão amorosa que esbraveja por tôda parte desmesura iliiincntc o que levou Racine a mitigar a espécie da acusação iiiMlni llipólito em Phèdre No seu prefácio diz llippolyte est accusé dans Euripide et dans Sénèque davoir iM effet violé sa bellemère vim corpus tulit Mais il nest ici N lo dclxcl de tremer quando o vi perto e um pouco mais ilfcvannr do que quando o escolhi Percebi que aquilo que passava por ser mllfliiiojio nonne séculos longínquos poderia parecer horrível ao nosso e que elmllcntc curiosa descrição da maneira como o infeliz príncipe fura os m u i olho o o espetáculo disses mesmos olhos furados cujo sangue lhe destila Ahr n rosto que ocupa todo o quinto ato naqueles incomparáveis originais uhirniilinrln a delicadeza das nossas d n m a s tentei remediar essas desordens 17 PMc cornçlo nutrido dc sangue e faminto de guerra malgrado o fardo iíh no c da íorie que me oprime arrasta por tôda parte o amor que o Mm n Mimima 338 MIMESIS accusé que den avoir eu le dessein Jai voulu épargner à Thésée une confusion qui laurait pu rendre moins agréable aux spectateurs3 Com isto podese comprovar um contraste muito gérai corn a Antigüidade nas obras antigas o amor é só muito raramente um dos objetos do estilo elevado lá êle é tratado quando apa rece como tema principal isto é sem ligação com outros moti vos divinos ou fatais somente em criações poéticas de nível médio porém tão logo se fala nêle mesmo que se trate de uma obra sublimemente épica ou trágica falase também imediata mente e sem pejo na sua parte corpórea Com a tragédia fran cesa acontece justamente o contrário Ela tomou a concepção sublime do amor tal como se desenvolveu durante a Idade Mé dia na cultura cortês e não sem ajuda da mística e tal como continuou a se desenvolver no petrarquismo já em Corneille o amor é um motivo trágicosublime sob a influência dos roman ces galantes expulsa quase todos os outros objetos elevados e Racine lhe dá aquela fôrça hiperpotente que arranca os ho mens do seu caminho e os destrói Mas com tudo isto dificil mente pode se chegar a sentir o hálito daquilo que o gôsto de então considerava baixo e impróprio do corporal e sexual Da segregação e isolamento do processo trágico dos quais falamos também participam de forma significativa as leis das unidades Elas limitam o engaste do processo no seu ambiente a um mínimo Num só lugar e sempre no mesmo no curto espaço de vinteequatro horas com uma ação totalmente desli gada de suas ramificações o enraizamento histórico social econômico e paisagístico do acontecimento só pode ser expresso com insinuações muito gerais É digno de admiração porém como apesar disso Racine cria uma atmosfera com um míni mo de meios e totalmente a partir da ação em si só que con segue isto com máxima felicidade em Phèdre e Athalie onde o espaço e o tempo num caso o grecomítico no outro o do Velho Testamento aproximamse do absoluto e do extrahistó rico Cenas referentes a um instante determinado que ficasse nítido na sua especificidade devido a referências à hora do dia ou à paisagem são muito raras Podese mencionar a passagem do Britannicus 2 2 na qual Nero descreve a chegada noturna de Júnia é magistral e mostra assim como outra da qual fala remos a seguir que Racine não foi tão parcimonioso com instan tâneos desta espécie por pobreza poética mas está severamente incrustada na estrutura psicológica da ação principal e leva o sêlo do estilo de então generalizadoramente perifrástico espe cialmente nos versos que descrevem a veste noturna de Júnia Belle sans ornement dans le simple appareil Dune beauté quon vient darracher au sommeil1 38 Hipólito é acusado cm Euripides e Sêncca de ter efetivamente violen tado sua m adrasta vm corpus tuUí Mas aqui êle nSo é acusado enfio de ter tido essa intenção Quis poupar a Teseu uma confusfio que poderia tôlo tor nado menos agradável aos espectadores 39 Belo sem ornumentos no simples prepuro de uniu helro que r uitibu dc u r ra nc ur do so n o O SANTARRÃO 339 A outra cena que tenho em mente é a paisagem matutina imi tada de Eurípides na primeira cena de Iphigénie Contém o soberbo verso Mais tout dort et larmée et les vents et Neptune10 e é pelo seu conteúdo instantâneo realista o rei que acorda um criado que ainda dorme única na sua espécie Mas tam bém ela está totalmente fundamentada no decurso psicológico da ação principal o seu conteúdo sensível não é um fim em si e a sua expressão lingüística nada contém de espontaneidade realista é sublime e cheio de metáforas Podese dizer em conjunto que a unificação de tempo e de lugar destaca a ação lio temporal e do espacial o leitor ou o ouvinte recebem a impressão de um cenário absoluto mítico e terrenamente não determinável Não é mais o aventuroso nenhures enchido de forma pedante e absurda de amantes dos romances galantes disso Racine liberouse cedo É um cenário exaltado e isolado iu qual personagens trágicas sobreerguidas por cima de qual quer acontecimento quotidiano falando em sublime estilização sc entregam aos seus apaixonados sentimentos A tragédia clássica dos franceses representa a medida ex irenia de separação dos estilos de desprendimento do trágico do rcalquotidiano que a literatura européia produziu A sua concepção do ser humano trágico e a sua expressão lingüística hílo o resultado de um processo de criação estética muito espe cinl fundamentado em tradições muito complicadas e estratifi iiuliis c que se afasta muito da vida média de qualquer época tiic seja Isto é contudo uma compreensão moderna ainda que nfto seja muito nova A teoria estética sua contemporânea não h possuía Ela precisava para fundamentar louvar ou defen dei a tragédia de Racine e outras obras semelhantes expressões i uniu natureza razão bom senso e verossimilhança Nas obras tir Racine o seu século e ainda o século seguinte viram rea liuilos le naturel la raison le bon sens e la vraisemblance e no lado disso ainda la bienséance e a mais perfeita imitação da Antigüidade uma imitação que até chegava a superar os mode lou Um tal juízo precisa de interpretação pois hoje não mais é cluro É razoável e natural sobreerguer os sêres humanos de ml forma fazêlos falar de maneira tão estilizada É verossímil que crises evoluam em tão curto tempo e tão sem estorvos e f por acaso verossímil que tudo o que é importante aconteça mi mesmo lugar Tôda pessoa imparcial quer dizer tôda pes miii que não tiver crescido vendo estas obrasprimas desde a mliinciu e a escola de tal forma que sinta como naturais as mais surpreendentes das suas peculiaridades responderá a estas IHiKuntas negativamente O fato de que no século XVII a arte ilr Racine tivesse sido considerada não somente como magistral o iirrcbaliidoru mas também como razoável correspondente ao Imm Nciiso natural c verossímil isto só se deixa explicar a par 40 Mas tudo doim r o ciàfclln vonlo e Netuno 340 MIMESIS tir da perspectiva do próprio tempo êste tinha outras medidas que não as nossas para o razoável e para o natural Quando se julgava a obra de Racine comparavase a mesma com a arte da geração que lhe precedera imediatamente Verificavase as sim que a tragédia de Racine era composta de poucos aconte cimentos simples e claramente relacionados entre si enquanto que os seus predecessores tinham amontoado um excesso de acontecimentos extraordinários e aventurosos que outrossim as situações e conflitos anímicos nos quais estão prêsas as perso nagens de Racine possuem uma singeleza modelar exemplar e universalmente válida enquanto que durante a geração imedia tamente anterior em parte por influência de Comeille estavam na moda os conflitos excessivamente heróicos aguçados e in verossímeis e em parte também sob a influência das preciosas as extravagâncias de galanteria sentimental e pedante Podese ouvir ainda o eco da luta contra as correntes anteriores em algu mas polêmicas de Boileau nas primeiras comédias de Molière e nos prefácios de Racine especialmente nos das peças Andro maque Brítannicus e Bérénice e a partir de Boileau e de Racine podese também reconhecer em que medida e de que forma se honrava aos poetas antigos como modelos É a simplicidade do acontecimento e a elegância da expressão o que encantava a elite dos contemporâneos de Racine no teatro grego Algumas décadas antes no tempo da juventude de Corneille quando os círculos da côrte e da melhor sociedade urbana começaram a se interessar pelo teatro foram adotadas as regras das unidades dramáticas sobretudo a partir de uma concepção da verossimi lhança que hoje já não nos é habitual achavase inverossímil aue durante as poucas horas de uma representação teatral sô bre o palco espacialmente limitado e distante só poucos passos do espectador se desenrolassem acontecimentos muito distantes entre si no tempo e no espaço Esta verossimilhança não se refere pois aos acontecimentos em si mas à sua reprodução sôbre o palco à possibilidade da ilusão cênica e o estado téc nico do teatro francês especialmente na primeira metade do século era de fato tal que as grandes mudanças de cenário di ficilmente podiam ser sugeridas convincentemente Mas tão logo se chegou à fixação da convenção da unidade de lugar e da unidade das vinteequatro horas a partir dos motivos agora mencionados e também do esforço de imitar a Antigüi dade os acontecimentos precisavam ser ordenados de tal forma que cedessem a êsses pressupostos e justamente nisso Racine é um mestre Cômoda e naturalmente a ação colocase nas suas obras dentro da moldura estabelecida se levou o isolamento do cenário e o segregamento da ação contra tudo o que era baixo exterior e supérfluo até aos seus extremos isto serve sem dúvida sob as condições prescritas pelas regras das unidades à natura lidade do efeito Logo a seguir todavia e isto é talvez o mais importante devemos evidenciarnos o fato de que no tempo de Raune 0 SANTARRÃO 341 ljiiülm uma outra idéia do natural diferente daquela de épocas miHlrriores Não se colocava o conceito do natural em oposição ii riviliação não se ligava o mesmo com as idéias acêrca das uh uras primitivas do que seria puramente popular das paisa urim livres pelo contrário identificavase êsse conceito com uma foi tniião bem acabada do ser humano uma formação de mo vlimnloi cheios de decência capaz de se adaptar a qualquer ilium vital mesmo à mais cheia de pressuposições de forma wmrílumte ainda nós louvamos numa pessoa extremamente iillivatla a naturalidade do seu ser Natural era quase sinô nimo tle razoável e d e decente Neste sentido sentiase com mim ou sem ela que se estava em harmonia com os tempos tluiro ila cultura antiga os quais teriam possuído as vantagens ilinlii liirinação harmônicorazoávelnatural de modo exemplar ilui mu o reinado de Luís XIV tinhase a coragem de achar iiii a própria cultura juntamente com a antiga tinha valor mo dulai r cmIu concepção foi imposta efetivamente à Europa do limit Com base nesta concepção segundo a qual o natural iiiiriiiila como produto da cultura e da criação continuouse ü i nmitiuir c mais tarde foi tido por natural aquilo que em qualquer tempo e sob tôdas as circunstâncias comove o cora itii iln homens os seus sentimentos e as suas paixões O na tn ui ei M ao mesmo tempo também o eternamente humano pa mhiii 1 1 1h ii tarefa máxima da poesia fôsse dar expressão pura ao iiMiiiiniiiite humano e acreditavase que o eternamente huma iin iiiiuricse de forma mais clara e sem mistura nas alturas iciilinliii iln vida do que na baixa e confusa balbúrdia histórica Mmvés ilisto porém foi fixada simultâneamente uma limita Vflu ilu eternamente humano só as grandes paixões podiam ípi himmlas como objeto e também o amor só era representá ii l na Inima que correspondesse às concepções contemporâneas li mAmm decência I mi toilo caso no tempo de Luís XIV o natural é algo tiuiimiMiti psicológico c dentro do psicológico algo invarià vtlmiiili ilado é a suma do invariàvelmente humano Se isto irn i1piiin nas formas dos próprios costumes era porque se íliilui a intençíio de rotular êstes últimos como modelares como li iitr irpi escutavam o eternamente humano de forma exem pliu a rujo lado ou acima dos quais só tinham valor os tem tii4 muros das culturas antigas Aos costumes do tempo perten w liiiultíni o sobreerguimento barroco das personagens princi itm ii A mciafórica antiga e a medieval cortês já entraram a fii1 1ii ili üriiilo XVI a serviço do absolutismo ascendente e a Alui liiiniiiniilaile renascentista coalhou no barroco na imagem iln nininiiiii A cflríe de Luís XIV é o ponto culminante do ilimuiviilvimeiitii do absolutismo tanto objetivamente quanto no ttiH irlfie à lorma externa a pessoa do rei rodeado da gran di mu inlaili cuidadosamente graduada segundo o seu nível m iui 1 1 1uiniiii11 ila antiga aristocracia feudal a qual despojada 1i f11 piiilri r ila sua lunvao original não é o ra senáo séquito 342 MIMESIS do rei apresenta o quadro perfeito do soberano absoluto bar rôcamente sobreerguido e a côrte era até continuada pela ci dade pois também a grande burguesia parisiense via no rei o seu centro social e as fronteiras entre côrte e cidade não estavam traçadas rigorosamente Do sobreerguimento também se aproveitavam os príncipes e princesas da casa real e em menor medida também aquêles que representavam o rei nos cargos mais elevados do exército e da administração como mo delo ideal a ser imitado num degrau inferior o rei e sua côrte ganharam em valor universal dentro e fora da França A cons tante publicidade na qual se desenrolava a vida do rei a inin terrupta manutenção da situação sobreerguida em cada palavra e em cada gesto a forma de trato entre êle e o seu séquito fir memente regulamentada e tornada natural pelo costume e pela educação tudo isto compõe uma obra de arte social que se re flete em numerosos documentos do tempo e que foi representada freqüente excelente e especialmente também no trabalho de Taine sôbre Racine Nouveaux Essais de critique et dhistoire 109163 O importante e imponente nisso tudo é a correspon dência entre dignidade interna e externa que é exigida e tam bém mostrada constantemente pelos participantes embora pos suam uma medida muito limitada de liberdade o mais perfeito domínio de si o juízo certo acêrca de qualquer situação e do próprio lugar nela a atitude correta acabada até nos pontos mais sutis e todavia espontânea em cada palavra e em cada gesto estas excelências dificilmente chegaram a atingir em qualquer época a perfeição que atingiram na côrte francesa da segunda metade do século XVII e elas manifestamse nas formas lingüís ticas e de vida do barroco tardio que aqui resplandecem nova mente e ganham com isso uma elegância e uma calidez que antes não possuíam Esta é a sociedade estas são as formas do barroco tardio preenchidas com nova elegância êste é sobre tudo o sobreerguimento das figuras principescas que se espe lham nas tragédias de Racine Uma auréola de dignidade irra dia de todos os seus heróis ma gloire é uma palavra que empre gam com freqüência para designar a intangibilidade da sua dig nidade corporal e espiritual pois a sua dignidade não é somente algo exterior mas uma parte componente da sua essência o que é expresso de modo especialmente digno de admiração no caso das mulheres pensese em Monime Tudo isto foi bem res saltado por Taine à sua maneira rigorosa embora me pareça que o juízo que tira de tais ponderações acêrca de Racine seja um pouco parcial Em todo caso foi o primeiro a empregar o método sociológico que é indispensável para uma compreensão perspectivohistórica da literatura do grande século Sem uma visão da situação social não se poderia explicar como o sobreer guimento e os ornatos barrocos da expressão puderam ganhar um tal valor modal e uma tal irradiação numa época que em tantos sentidos em tantos âmbitos filosòficamcntc cicntificamcntc política econômica e até socialmente possui um caráter mo O SANTARRÂO 343 iliMorucionalista e que até fundamentou em muitos sentidos ui métodos modemoracionalistas nem como é possível que a crí líia contemporânea julgasse tais formas barrocas e hiperbólicas irgmidu a razão e o bom senso admirando algumas despre h i h Io outras dando provas com isto de possuir muito gôsto e Miinirccnsão artística sem perceber porém a contradição que iU cntrc o mundo formal barroco como um todo e um jiilumurnlo puramente racional Êste mundo formal é a expres irtn dc uniu parte da sociedade uma parte muito específica que v i v i nol condições muito especiais e a importância funcional ilriin piirle era muito menor do que o prestígio que ela possuía itimuui presumir Pois o sentido histórico do absolutismo per fi lio mio fôra criar um monarca sobreerguido rodeado de uma tiinlu còrtc o seu sentido fôra muito mais concentrar as fôr viii In unção destruir as tendências centrífugas organizar uni tiHiiirmrntc a política a administração e a economia A côrte h i i tiiiim dizer só um subproduto dêste processo ela deve a ma rmulôiicin não a uma função que necessàriamente devia ser ni i m hulii mas u aristocracia confluiu em direção ao rei por iiu im qualquer outra parte não tinha mais função alguma miiiii nii ii pnrtir da sua nova existência ao redor do rei surgiu llit M I i i i i v Ao de servir à côrte Considerandose como é abso liiiiiiiii nIo necessário que não somente a côrte mas também In illr foi portadora da cultura francesa clássica também i íi1 1 1A0 t Kcnfto uma pequena minoria que embora não deixas i tlr tnfiticiiciiir a matização do gôsto do tempo não possuía iiiia iiiMoiomdência positivamente burguesa nem no âmbito po llin o iirm no estético La ville e la cour coincidem em duas im ntiiiiiiici características era gente culta quer dizer não se era ui ui iinlito como os especialistas nem cru e ignorante como o li li ui na sc eru bem educado e munido daqueles conhecimen ini iin ifi triiccm u um julgamento de gôsto esforçavase por i iiliiiuii o ideul nflocspecializado e nãoprofissional do honnête imiinir i Himiilcrandosc também a origem burguesa como un imiv inin tlrnt d uris le monde já falamos a respeito disto tn IHII0V11 capítulo A piutir do caráter da minoria à qual se dirigia a poesia iMmuii fiiinccnii especialmente a partir da sua imagem social I i I m h I ii moda dut formas barrôcas e sobreerguidas e também n u h i i i Imikiru com categorias racionais do gôsto podem ser vniitimlnicntr compreendidas ou pelo menos intuídas em algu ntn i i i i mI í iI u A partir do gôsto do público de elite da sociedade i tília ilu círculoi imediata e mediatamente próximos da côrte uni expllcur também contudo a separação radical do trá gti ii e do reullitu da qual as formas barrôcas que sobreerguem i i m i tiâtflco n to no senâo um sintoma especialmente evidente A rimBao clíiiicofrancesa dos estilos é muito mais do que iiii n Imltnvfto du Antigüidade no sentido dos humanistas do 4i iiln XVI o niodêlo nntlgo é intensificado e há uma quebra ImIv iiih com n tradição popular milenar cristã e misturadora 344 MIMESIS de estilos a exacerbação da personagem trágica ma gloire e o culto das paixões levado ao extremo é precisamente anticristão Isto foi reconhecido com grande acuidade pelos teólogos con temporâneos que condenaram o teatro especialmente por Nicole e Bossuet Ouçamse algumas palavras das Maximes et Réfle xions sur la Comédie que Bossuet escreveu em 1964 Ainsi tout le dessin dun poète toute la fin de son travail cest quon soit comme son héros épris des belles personnes quon les serve comme des divinités en un mot quon leur sacri fie tout si ce nest peutêtre la gloire dont lamour est plus dangereux que celui de la beauté même41 Cap 4 1 Isto está totalmente certo pelo menos do ponto de vista do teólogo a paixão amorosa tal como a representa a tragédia raciniana é arrebatadora e seduz o espectador apesar do desen lace trágico conduzindoo à admiração e à imitação de um destino tão grande e sublime mais intensamente é êste o caso de Phèdre embora ela tenha realmente como amiúde foi dito e como Racine o sentia um algo de cristã à qual Deus negou sua graça o efeito do conjunto sem dúvida não é cristão de forma alguma todo coração jovem e sensível é vencido pela admiração pela sua grande paixão que tudo despreza e tudo esquece Igualmente acertadas e ainda mais argutas são as pala vras de Bossuet acêrca da gloire elas acertam no sobreergui mento das personagens trágicas o qual falando cristãmente nada mais é do que superbia Mas também Bossuet ou Nicole não poderiam ter feito amizade com o teatro cristão popular estilisticamente misto cujas apresentações tinham sido proibidas um século antes pelo parla mento de Paris o seu sentido estilístico éticoestético terseia revoltado contra aquilo Êles próprios tinham caído no gôsto do tempo separador dos estilos A grande e importante litera tura cristã do século XVII francês o qual com razão compa rado com as crises de fé do século XVI e com o iluminismo do século XVIII é tido como um século cristãoortodoxo está integramente escrita em tom elevado e sublime acentuandose esta característica cada vez mais no decurso do século ela evita qualquer palavra baixa qualquer realismo tangível ela própria participa do sobreerguimento das personagens principescas e quase tôdas as suas obras soam como se tivessem sido escritas para uma sociedade de elite para la cour et la ville Sabese quão grande foi a força do estilo clássico francês em tôda a Europa Só muito mais tarde e sob condições total mente mudadas a seriedade trágica e a realidade quotidiana puderam voltar a se encontrar 41 Assim tôda a intenção de um poeta tôda a finalidade do seu tra balho é que sejamos como o seu herói apaixonados pelas belas pessoas que as sirvamos como divindades em uma palavra que lhes sacrifiquemos tudo afora talvez a glória cujo amor i mais perigoso que aquCie que temo pelu própria beleza A Ceia Interrompida On nous servit à souper Je me mis à table dun air fort gai mais à la lumière de la chandelle qui était entre V clic et moi je crus apercevoir de la tristesse sur le visa B ge et dans les yeux de ma chère maîtresse Cette IHinrV mcn inspira aussi Je remarquai que ses regards satta i Ititictil sur moi dune autre façon quils navaient accoutumé I ne pouvais démêler si cétait de lamour ou de la compassion nie parût que cétait un sentiment doux et languissant Ii lu MKiinlai avec la même attention et peutêtre navaitelle pas molli lo peine il juger de la situation de mon coeur par mes unil Nous ne pensions ni à parler ni à manger Enfin je vi Io iiiIxm des larmes de ses beaux yeux perfides larmes Ali Dieu mécriaije vous pleurez ma chère Manon viiii Al fi affligée jusquà pleurer et vous ne me dites pas un itiil mol île vos peines Elle ne me répondit que par quelques oiiilii iiii augmentèrent mon inquiétude Je me levai en trem tiliinl n lit conjurai avec tous les empressements de lamour de mi iliioiivnr le sujet de ses pleurs jen versai moimême en i nmyimt Ion mens jétais plus mort que vif Un barbare aurait ii iiiic ih Ii I des témoignages de ma douleur et de ma crainte I 1 0 1 le temps que jétais ainsi occupé delle jentendis le Ih ml ilr pltiHicurs personnes qui montaient lescalier On frappa 11mii wuinl A lu porte Manon me donna un baiser et séchap iHMl tli mm bru clic entra rapidement dans le cabinet quelle h imii mmllAt sur elle Je me figurai quétant un peu en désor lîle voulait ne cacher aux yeux des étrangers qui avaient CkIIhI leur ouvrir moimême A pritu itviiiitje ouvert que je me vis saisir par trois hom tim r irconmiN pour les laquais de mon père I ntm iimu mm n Jnniui Sonlelmc II menu de multo bom humor mas à lu iU iiin ratnv pnlie cia 0 mlm nereditel pcrccbcr ccrta trlsteza no imIh mi iiilin H mlnlm epr nmnnlc ftnte pcniumcnto insplroumc trlatcz 346 MIMESIS Êste texto pertence à estória de Manon Lescaut do Abbé Prévost Êste pequeno romance apareceu pela primeira vez em 1731 isto é pouco antes das Lettres anglaises de Voltaire e do livro sôbre os romanos de Montesquieu A situação na qual se encontram as duas personagens que aparecem Manon e o Chevalier des Grieux no princípio da cena é a seguinte o chevalier um rapaz de dezessete anos de boa família que acaba de terminar a escola viu casualmente na posta de Amiens poucas semanas antes Manon Lescaut mais jovem ainda do que êle que estava sendo levada a um convento e fugiu com ela para Paris Lá os dois se divertiram e viveram idilicamente até que o dinheiro ameaçou acabar nesta situação Manon entrou em relações com um vizinho muito rico um finan cista que por sua vez informou a família do chevalier Embo ra na manhã do mesmo dia em que êle deve ser seqüestrado o chevalier soubesse casualmente da ligação entre Manon e o financista o que o agitara profundamente a confiança ingênua e o enamoramento venceram êle formulou mentalmente uma explicação inofensiva isto é que Manon através do financista teria procurado dinheiro com os seus parentes e quisesse sur preendêlo com a notícia quando volta a casa à noite não lhe faz nenhuma pergunta pois espera que ela comece a falar no assunto Com êste sentimento alegremente esperançoso mas também um pouco inseguro senta à mesa Como o romance todo está construído como uma narração feita pelo chevalier é êle próprio quem relata a cena Ela é vivaz dramática quase teatral na sua construção e muito cheia de sentimento nela podemse distinguir três partes A primeira contém a muda tensão dos dois os quais estão sen tados à mesa uma vela de permeio olhandose furtivamente sem comer Êle sente que ela está deprimida e isto faz vacilar ràpidamente o seu bom humor procura interpretar a sua tristeza fica inquieto mas na sua inquietação há muito mais participação amorosa no desgosto dela do que desconfiança na maneira como também Observei que os seus olhares se fixavam em mim de um forma dife rente da costumeira Não podia discernir se se tratava de am or ou de com paixão embora me parecesse que era um sentimento doce e lânguido Observeía com a mesma atenção e talvez ela não tivesse menos dificuldades em julgar a situação do meu coração através dos meus olhares Não pensávamos nem em falar nem em comer Enfim vi cair lágrimas dos seu belos olhos pérfidas lágrimas Ah D eus exclamei chorais minha cara M anon estais aflita a ponto de chorar e não me dizeis nem um a palavra acérca das vossas penas Ela não me respondeu senão com alguns suspiros que aumentaram a minha inquie tação Levanteime tremendo conjureia com todo o zêlo do amor a me descobrir o objeto dos seus prantos eu mesmo chorei ao secar Buas lágrimas estava mais morto do que vivo Um bárbaro teria ficado enternecido pelos testemunhos da minha dor e do meu temor Enquanto estava assim totalmente ocupado com ela ouvi o barulho do várias pessoas que subiam a escada Bateram suavemente à porta M anon deume um beijo e soltandose dos meus braços entrou ràpidam ente em seu quarto cuja porta fechou imediatamente Imaginei que estando um pouco desarrumada ela quisesse ocultarse dos olhos doi estranhos que haviam batido Fui abrirlhes eu meimo Mal abri a porta vlme segurado por irts homem que reconheci como Ncndo os Ih c r Ío s do meu p a i A CEIA INTERROMPIDA 347 lenta interpretar os sentimentos dela na terna descrição da sua aparência até mesmo nas censuras que êle como narrador que já conhece o andamento da ação introduz aqui e mais adiante perfides larmes fala o seu emocionante e apesar de todos os motivos de suspeita cândido enamoramento No ânimo facil mente emocionado de Manon presumese a dor pela próxima icparação pois ela o ama à sua maneira talvez um pouco ile arrependimento e certamente também temor dc que êle pres unta alguma coisa da sua traição pois também ela observa que 61c não está como de costume O contato instintivo entre dois lôrcs humanos tão jovens tão estreitamente unidos entre si é expresso magnificamente nesta cena muda ela está totalmente embebida de sensualidade embora não se fale em objetos eróticos c mesmo olhando para um passado já remoto o narrador con ulerii esta cena de intenso caráter cômico na qual êle é atraído pura uma armadilha de forma vulgar e ridícula de forma total mente sensível e patética juger de la situation de mon coeur om as lágrimas de Manon desfazse a tensão muda e romeçu uma segunda cena fortemente movimentada Êle não piulc ficar olhando simplesmente enquanto ela chora e quando riu responde às suas perguntas instantes emocionantes devido i enumorada censura com apenas suspiros êle perde totalmente h ilomtnio de si Pula do seu lugar tremulo e enquanto a assal iii com perguntas e procura secar suas lágrimas êle próprio iiiMicçu a chorar Também esta cena êle ainda considera muito il e sentimentalmente na sua lembrança un barbare aurait té attendri As lágrimas começam a adquirir na literatura In énilo XVIII uma importância que antes não possuíam como mnlivo independente a sua eficácia que está no limite entre o uilmico c o sensível é aproveitada demonstrase especialmente iiiumulu para exercer o estímulo composto de erotismo e de niihiliiladc que estava então em moda Muito especificamente an ni llígrimas isoladas que caem dos olhos de um ser feminino M u lileilmente emocionado e fàcilmente inflamável ou que iitlnm pclus suas faces as que ganham crescente preferência na iir plrinticu e na literatura vêse e gozase por assim dizer uma lAgrlmu upós a outra on les voit tomber des beaux yeux e são uliuiliii por assim dizer pela sua quantidade na expressão que iiiilnrii nfio apareça aqui é muito freqüente quelques larmes mim locuçOo dificilmente interpretável sem pedantismo mais que tlíKlgiut dc forma muito penetrante a situação estilística e sen lv da época Tem sua origem talvez no preciosismo chamou li lu prlmciru vez a minha atenção na dedicatória de Andromaque ttuJiwi ii cedo falecida HenrietteAnne dAngleterre onde Mino cicreve on savait enfin que vous laviez minha IrHgéillii honorée de quelques larmes Neste caso a limi itilo iunntltutivu exprime o elevado nível social da princesa qu A fn grande honrn à tragédia de Racine ao dedicarlhe Igumni lágrimiK No néculo XVIII pelo contrário quelques 348 MIMESIS larmes são o sinal de uma confusão erótica de curta duração que pede consolação estas lágrimas quon verse quon fait tom ber ou quon cache querem ser sêcas Ora começa a terceira cena Ouvese subir gente pela esca da batem à porta Manon beijao ràpidamente ainda uma vez anos mais tarde êle ainda não esqueceu o beijo depois ela se desvencilha e desaparece no quarto ao lado O chevalier mesmo agora ainda não suspeita nada ela está un peu en désordre seja porque veio à ceia vestida de négligé seja porque durante a cena anterior fortemente movimentada a sua aparên cia externa ficou um pouco abalada nada mais natural do que ela se retirar no momento da visita de estranhos O próprio chevalier abre a porta aos recémchegados são os lacaios do seu pai pegamno o idílio amoroso acabou por esta vez Nesta ocasião queremos dizer alguma coisa a respeito do désordre da toilette feminina também isto sobressai com maior vigor no século XVIII do que antes Já o encontramos distintamente perifraseado numa cena de Britannicus dans le simple appareil dune beauté quon vient darracher au sommeil agora tais mo tivos são procurados e explorados o elemento íntimoerótico nas descrições e insinuações tornase grande moda a partir da Regên cia motivos desta espécie encontramse durante todo o século em tôda a literatura e não sòmente na literatura propriamente eró tica um idílio interrompido um golpe de vento uma queda um pulo tôda ocasião em que se puderem desvendar partes normal mente escondidas do corpo feminino ou em que se puder apre sentar em conjunto uma provocante desordem Uma tal forma de erotismo não existe na época clássica no tempo de Luís XIV nem sequer na comédia Molière nunca é lúbrico Agora com binamse a intimidade sentimental e a erótica e a erotização penetra até nas anedotas do iluminismo filosófico e científico O processo todo de nosso texto lembra na sua intimidade a moldura doméstica de algumas descrições do fim da Idade Média só que lhe falta inteiramente o elemento tão importante para aquelas da criaturalidade é muito mais de uma elegância lisa e coquete objeto e representação estão muito longe de todo aprofundamento existencial Como as ilustrações para livros feitas pelos famosos gravadores que chegaram à mestria perto daquela época êle apresenta um quadro lindamente emoldurado vivaz e íntimo para o qual pode ser empregada a expressão intérieur Manon Lescaut e muitas outras obras coetâneas ou algo posteriores são ricas em tais interiores cuja limpa elegân cia lacrimosa sensibilidade e frivolidade eróticomoral represen tam uma mistura única em sua espécie Os temas são forneci dos por cenas de amor ou de família nas quais por vêzes prepondera o erótico por vêzes o comovente mas raramente falta um dêstes elementos por completo as vestes os aparelhos a mobília dos aposentos são descritos ou insinuados com coquete cuidado sempre que a ocasião o permite e com grande alegria A CEIA INTERROMPIDA 349 cromática e cinemática não se faia em severa separação dos estilos nestas obras personagens do ambiente de tôdas as classes processos comerciais e quadros culturais contemporâneos em geral entretecemse na ação os intérieurs são ao mesmo tempo quadros de costumes Em Manon Lescaut falase muito em dinheiro há lacaios hospedarias cárceres aparecem funcioná rios uma cena diante do teatro é descrita com indicação exata da rua um transporte de prostitutas que devem ser embarcadas para a América passa diante de nós as coisas acontecem de forma profundamente realista Por outro lado o autor quer que levemos a sua história a sério está empenhado em cons truíla de forma eminentemente moral e elevadamente trágica No que respeita à moral falase muito em honra e virtude e embora o chevalier acabe se tornando batoteiro embusteiro e quase rufião não perde nunca o costume de exprimir sentimen tos nobres e de se comprazer com ponderações morais as quais embora sejam extremamente triviais e de vez em quando bas tante sujas não deixam de ser levadas evidentemente a sério pelo autor Até a própria Manon é na sua opinião na verda de virtuosa só a sua natureza infelizmente é tal que ela ama o prazer sôbre tôdas as outras coisas No A vis de Fauteur diz assim Elle connaît la vertu elle la goûte même et cependant elle commet les actions les plus indignes Elle aime le Chevalier des Grieux avec une passion extrême cependant le désir de vivre dans labondance et de briller lui fait trahir ses sentiments pour le Chevalier auquel elle préfère un riche financier Quel art natil fallu pour intéresser le lecteur et lui inspirer de la com passion par rapport aux funestes disgrâces qui arrivent à cette fille corrompue2 lista é uma corrupção trivial faltalhe tôda grandeza e digni dade mas o autor parece não sentir isto A insensata servidão sexual do chevalier e a amoralidade quase cândida de Manon lôm algo de exemplar justamente por causa da sua trivialidade c justamente pelo seu caráter exemplar êste pequeno romance t mcrecidamente famoso Mas o Abbé Prévost quer fazer de qualquer modo das duas personagens dois heróis que na ver dade são bons e que se diferenciam enormemente dos patifes comuns O vivo sentimento da vergonha que assalta o che valier uma vez quando é exposto e todos os seus embustes são desvendados lhe dá motivo para se declarar um caráter todo cxpcciul c excelente que sente com maior profundidade e rique ii do que le commun des hommes e evidentemente Prévost 2 Conhccc u virtude até a saboreia c entretanto comete as ações mais imiitfiiuft Atnit o cuvtileiro des Grieux com extrema paixSo entretanto o desejo île vlvet na ubundAncin o de brilhar faz com que ela traia os seus sentimentos pelo cavaleiro no qual prefere um rico financista Qual nfio foi a arte necessária 1aiu iMieíCMnr o leitor o para iiuplrurhc contpaixAo pclns funestas desgraças MU iK oirtm u eln jovem corrompida 350 MIMESIS leva totalmente a sério esta interpretação infantil e patética constrói os seus heróis de forma totalmente sensível e patética Adieu fils ingrat et rebelle diz o pai ao chevalier Adieu père barbare et dénaturé responde o filho Êste é o tom da Comédie larmoyante que estava então na moda Ao vício trivial corresponde também uma concepção igualmente trivial da virtude ela está total e integramente virada para a vida sexual para a sua ordem ou desordem e em conseqüência disso ela mesma está inteiramente erotizada o que aqui se entende por virtude nem é concebível sem o aparato das sensações eróticas O prazer que o autor tenta despertar no leitor pela representa ção da corrupção infantilmente lúdica e inconstante dos seus amantes é no fundo um estímulo sexual que é interpretado constantemente de forma sentimentalmoral cuja calidez é abusa da para a produção de um moralismo sentimental Esta mis tura é freqüentemnete encontrável no século XVIII mesmo a moral de Diderot está baseada numa entusiástica sensibilidade na qual há alusões eróticas e mesmo em Rousseau podese sentir ainda algo disso O crescente aburguesamento da sociedade a estabilidade das condições políticas e econômicas que durou durante a maior parte do século a normalização e o abrigo da vida nas camadas médias abastadas a falta disso resultante de preocupações profissionais e políticas na juventude originária dessas camadas tudo isto fomentou a modelagem das formas morais e estéticas que podem ser vistas neste texto e em muitos outros semelhantes mesmo quando a ordem social se desnudou ante todos como problemática quando começou a vacilar e quando desmoronou muita sentimentalidade burguesa afluiu para a nova criação dos conceitos revolucionários mantendose até o século XIX Temos pois a ver no nosso texto como uma espécie de estilo médio no qual os elementos realistas se misturam com a seriedade o próprio romance até tem um fim trágico a mis tura é exatamente agradável mas os dois elementos que a com põem o realista e o sèriamente trágico são de brincalhona superficialidade Os quadros realistas são coloridos múltiplos vivazes e evidentes não falta a representação dos mais vulgares vícios mas a expressão lingüística fica sempre dentro do amável e do elegante não se encontra traço algum de problemática o ambiente social é uma moldura que é tomada como é dada Muito diferente disto é o nível estilístico daqueles textos realistas que estão a serviço da propaganda iluminista Tais textos podem ser encontrados a partir da Regência e no decor rer do século tornamse cada vez mais numerosos e cada vez mais rigorosos na sua polêmica O seu mestre é Voltaire Escolhemos em primeiro lugar um trecho dos seus primeiros escritos da sexta das suas cartas filosóficas nas quais estão elaboradas as suas impressões da Inglaterra A CEIA INTERROMPIDA 351 Entrez dans la bourse le Londres cette place plus respecta ble que bien des cours vous y voyez rassemblés les députés de toutes les nations pour lutilité des hommes Là le juif le mahométan et le chrétien traitent lun avec lautre comme sils étaient de la même religion et ne donnent le nom dinfidèles quà ceux qui font banqueroute là le presbytérien se fie à lana baptiste et langlican reçoit la promesse du quaker Au sortir de ces pacifiques et libres assemblées les uns vont à la synago gue les autres vont boire celuici va se faire baptiser dans une grande cuve au nom du Père par le Fils au SaintEsprit celuilà fait couper le prépuce de son fils et fait marmotter sur lenfant des paroles hébraiques quil nentend point ces autres vont dans leurs églises attendre linspiration de Dieu leur chapeau sur la tête et tous sont contents 3 Êste quadro da bôlsa de Londres não está escrito com intenção propriamente realista o que nela acontece só o averiguamos de maneira muito grosseira A intenção é antes insinuar certos pensamentos que na sua forma mais crua e sêca teriam o seguinte teor A vida comercial internacional livre ditada pelo egoísmo individual é útil para a sociedade humana reúne os homens para uma atividade comum e pacífica as religiões pelo contrário são absurdas e a absurdidade fica comprovada já pela sua grande quantidade sendo que cada uma afirma ser a verdadeira assim como pela falta de sentido dos seus dogmas e cerimônias Contudo num país em que há muitas religiões diferentes não causam muito dano e podem ser consideradas uma doidice inofensiva A coisa só fica ruim quando elas se combatem e perseguem entre si Mas mesmo nesta sêca repre sentação do pensamento há um artifício retórico que não posso excluir porque já está contido na concepção de Voltaire a sur preendente contraposição da religião com o comércio dentro da qual o comércio é pôsto prática e moralmente numa posição mais elevada do que a religião Já a justaposição dos dois como se fôssem secções da atividade humana que estão no mesmo nível que devem ser julgadas a partir do mesmo ponto de vista não é somente uma ousadia mas também uma colo cação de problemas ou se se quiser uma ordenação experi mental dentro da qual a religião perde automàticamente aquilo que constitui o seu valor e a sua essência ela é apresentada numa situação dentro da qual parece ridícula desde o princípio Esta é uma técnica que os sofistas e propagandistas aplicaram 3 Entrai na bôlsa dc Londres este lugar mais respeitável do que muitas côrtes lá vêdes reunidos os deputados dc tôdas as nações para a utilidade dos homens Lá o judeu o maometano e o cristão tratam um ao outro como se fôasem da mesma religião e não dão o nome de infiéis senão àqueles que chegam fc bancarrota lá o presbiteriano fiase no anabaptista e o anglicano recebe M promessa do auacre Ao saírem destas pacíficas e livres assembléias uns vlo A sinagoga outro vfio beber éste vai fazerse batizar numa grande cuba em nome do Pnl pelo Filho e ao Fsplrito Santo aquêle faz cortar o prepúcio do seu filho c faz rcimungnr 6brc a criança pulavras hebraicas que não entende êMc outros vAo A una liren esperar u inspiruçlo de Deu com os chapéus Abir suai cabeça e lodo rslln contentes 352 MIMESIS em todo tempo com êxito e na qual Voltaire é um mestre Justamente por isso não escolheu nesta passagem uma atividade agrícola ou um escritório ou uma fábrica para mostrar as bênçãos do trabalho produtivo mas a bôlsa onde se encontram pessoas de tôdas as crenças e origens O convite para entrar na bôlsa é feito quase solenemente chama a bôlsa um lugar que merece mais respeito do que muitas côrtes principescas e chama os seus freqüentadores de deputados de tôdas as nações que se reúnem para o bem da humanidade Depois voltase para a descrição mais pormenorizada dos fre qüentadores observandoos primeiramente dentro da sua ativi dade na bôlsa e logo mais na sua outra existência na vida privada sendo que em ambos os casos é salientada a diversi dade das suas crenças Enquanto estão na bôlsa a diversidade de suas crenças não tem significação não prejudica os negócios a propósito disto oferecese a possibilidade do trocadilho feito com a palavra infidèle Tão logo abandonam a bôlsa estas assembléias livres e pacíficas em contraste com as assembléias de clérigos litigantes aparece o esfacelamento das suas crenças religiosas e o que até há pouco era um todo algo assim como um símbolo do ideal de colaboração de tôda a sociedade humana decompõese em muitas partes faltas de ligação e também impossíveis de unir o resto do parágrafo está dedicado à rápida descrição de várias dessas partes Os comerciantes que abandonam a bôlsa dispersamse alguns vão à sinagoga outros vão beber a equação sintática mostra as duas coisas como possibilidades equivalentes de fazer o tempo passar Depois são caracterizados três grupos de freqüentadores crentes da bôlsa anabatistas judeus e quacres sendo que Voltaire salienta em cada grupo o meramente exterior diferente em cada caso de todos os outros carentes de relação entre si e ao mesmo tempo algo em si absurdocômico Não aparece a essência em si dos judeus ou dos quacres o fundamento ou a formação especial das suas convicções mas uma visão do seu cerimonial estra nhamente cômica sobretudo para o nãoiniciado Isto também é um exemplo para uma prestigiosa técnica propagandística que freqüentemente é empregada de forma mais crua e maligna do que neste caso pode ser chamada de técnica do holofote Con siste em iluminar excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto deixando na escuridão todo o restante que puder explicar ou ordenar aquela parte e que talvez serviria como contrapêso daquilo que é salientado de tal forma dizse aparentemente a verdade pois que o dito é indiscutível mas tudo não deixa de ser falsificado pois que da verdade faz parte tôda a verdade assim como a correta ligação das suas partes O público sempre volta a cair nestes truques sobre tudo em tempos de inquietação e todos conhecemos bastantes exemplos disto do nosso passado mais imediato Contudo o truque é na maior parte dos casos fácil de ser descoberto mas talta ao povo ou ao público em tempos de tensão a vontade A CEIA INTERROMPIDA 353 séria de fazêlo quando uma forma de vida ou um grupo huma no cumpriram o seu tempo ou perderam prestígio e tolerância tôda injustiça que a propaganda comete contra êles é recebida apesar de se ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça com alegria sádica Gottfried Keller descreve êste estado de coisas psicológico de forma muito bela numa das novelas da sua obra Leute von Seldwyla a estória do riso perdido onde se fala de uma campanha de difamação política na Suíça eviden temente as coisas das quais fala relacionamse com aquilo que nós vivemos como uma leve turbação de um riachinho claro com um mar de sujeira e sangue Gottfried Keller que trata do processo com a sua livre e calma clareza sem borrar o mais mínimo sem embelezar em nada a injustiça nem falar num direito superior parece contudo ver em tais coisas algo natural e por vêzes benéfico pois que mais de uma vez de um motivo injusto ou de um pretexto falso surgiram a modificação do estado e o alargamento da liberdade O feliz Gottfried Keller não podia imaginar qualquer modificação do estado que não levasse ao alargamento da liberdade Nós vimos coisas dife rentes Voltaire termina com uma locução inesperada et tous sont contents Com uma velocidade de prestidigitador parodiou em três orações rigorosamente construídas três convicções ou seitas e com igual velocidade surpreendente e alegremente as quatro palavras finais pulam para fora Elas são extremamente ricas em conteúdo Por que estão todos contentes Porque deixase que façam tranqüilamente os seus negócios com os quais ficam ricos e porque de forma igualmente tranqüila permitese que fiquem com as suas tolices religiosas de tal forma que não se tornam perseguidores nem perseguidos Viva a tolerância Ela deixa a cada um os seus negócios e a sua diversão que pode consistir tanto na bebida quanto em qualquer espécie absurda de adoração divina A maneira de colocar o problema desde o primeiro mo mento de tal forma que a solução desejada já esteja contida na própria colocação assim como a técnica do holofote que ilumina em demasia o que há de ridículo absurdo ou repelente no inimigo são duas técnicas que foram empregadas já muito tempo antes de Voltaire Mas êle tem uma forma determinada especialmente peculiar de construílas O que lhe é peculiar é nntcs de mais nada o tempo a rápida e precisa concentração do desenvolvimento as rápidas mudanças das imagens a com binação surpreendentemente repentina de coisas que não é habi tual ver juntas nisto é quase único e incomparável e neste tempo está grande parte da sua graça Quando se lêem os seus maravilhosamente lindos quadrinhos rococó isto fica especial mente claro um exemplo 354 MIMESIS Comme il était assez près de Lutèce Au coin dun bois qui borde Charenton Il aperçut la fringante Marton Dont un ruban nouait la blonde tresse Sa taille est leste et son petit jupon Laisse entrevoir sa jambe blanche et fine Robert avance il lui trouve une mine Qui tenterait les saints du paradis Un beau bouquet de roses et de lis Est au milieu de deux pommes dalbâtre Quon ne voit point sans en être idolâtre Et de son teint la fleur et lincarnat De son bouquet auraient terni léclat Pour dire tout cette jeune merveille A son giron portait une corbeille Et sen allait avec tous ses attraits Vendre au marché du beurre et des œufs frais Sire Robert ému de convoitise Descend dun saut laccole avec franchise Jai vingt écus ditil dans ma valise Cest tout mon bien prenez encor mon coeur Tout est à vous Cest pour moi trop dhonneur Lui dit Marton 4 Esta peça pertence a uma narração em verso bastante tardia Ce qui plaît aux dames e está muito cuidadosamente composta como pode ser deduzido da gradação das impressões da beleza de Marton que o cavaleiro admira primeiro de longe depois de uma distância cada vez menor Uma grande parte do seu atrativo está no seu tempo se fôsse mais esticado perderia frescura e tornarseia trivial E justamente no tempo está também a graça da peça a declaração amorosa só é cômica porque concentra o essencial de forma tão espantosamente breve O tempo é aqui como sempre em Voltaire também uma parte da sua filosofia aqui lhe serve para salientar nitidamente para desvendar por assim dizer os motivos essenciais da ação huma na assim como os entende como sendo altamente materialistas mas com isto nunca chega porém a ser grosseiro Nada de elevado nem de espiritual há neste quadrinho amoroso só há a expressão do desejo e da cobiça a declaração de amor começa com a exposição direta sem frases do lado comercial do pro cesso e mesmo assim é amável elegante e impetuosa Todo 4 Como estivesse bastante perto de Lutécia num canto de um bosque que bordeia Charenton avistou a graciosa Marton cujas louras tranças estavam atadas com uma fita seu talhe é ágil e sua pequena saia deixa entrever sua perna branca e fina Roberto avança acha que o seu aspecto tentaria os santos do paraíso um belo buquê de rosas e de lírios está em meio a duas maças de alabastro que não se pode ver sem idolatrálas e da sua tez a flor e o encarnado teriam apagado o brilho do seu próprio buquê Para dizer tudo esta jovem maravilha levava uma cesta no colo c ia com todos os seus atrativos vender manteiga e ovos frescos no mercado Sire Roberto movido pela cobiça desce de um salto e a aborda com franqueza Tenho vinte escudos diz file na m inha valise é tudo o que tenho tomai também meu coraçSo tudo vós pertence Ê para mim demasiada honra lhe diz M arton A CEIA INTERROMPIDA 355 mundo sabe também Robert e Marton o sabem muito bem que as palavras Prenez encore mon cœur tout est à vous nada mais são do que um arabesco para exprimir o desejo de satis fação imediata do impulso sexual e todavia elas possuem todo o encanto e a doçura que Voltaire e sua época herdaram do classicismo neste caso principalmente de Lafontaine e que são postos neste caso a serviço de uma ilustração e de um desvendamento materialistas Os conteúdos tornaramse total mente diferentes só o claro e o totalmente agradável 1agréable et le fin do classicismo é conservado está em cada palavra em cada locução em cada movimento do ritmo lingüístico Pecu liarmente voltairiano é o tempo apressado o qual apesar de tôda a sua ousadia de tôda sua inescrupulosidade na moral de tôda a sua técnica sofista de ataques imprevistos nunca perde a limpeza estética É totalmente isento da semierótica e portanto algo turva sensibilidade que tentamos analisar com base no texto do Manon Lescaut os seus desvendamentos esclarecedores nunca são crus ou pesados mas são leves impetuosos e por assim dizer apetitosos e Voltaire está antes de mais nada totalmente livre do pathos nebuloso que borra todos os contornos e que destrói por igual a clareza do pensamento e a pureza do senti mento e que apareceu nos iluministas da segunda metade do século sobressaiu na literatura revolucionária e se desenvolveu com ainda maior exuberância no século XIX por efeitos do lomantismo produzindo até nos tempos mais recentes as mais atrozes florações Pròximamente aparentada com a velocidade do tempo porém mais geralmente difundida como método de propaganda emos a forte simplificação dos problemas todos Em Voltaire ii velocidade quase diríamos a ligeireza está a serviço da sim plificação A simplificação ocorre em quase todos os casos pela redução do problema a uma antítese e pela sua apresentação mima narração redemoinhante divertida e rápida dentro da quiil estão clara e simplesmente postos frente a frente o branco c o prêto ou a teoria e a prática e assim por diante Isto pode cr observado no nosso texto sôbre a bôlsa de Londres onde o contraste negócio e religião um útil e fomentador da coope ração humana a outra disparatada e separadora dos homens é apresentado num quadro vivaz ao mesmo tempo que é sim plificado enèrgicamente e com parcialidade enquanto problema junto u êsse contraste ressoa também não menos simplificado o contraste tolerânciaintolerância Mesmo na estorinha eró tico há a redução a uma fórmula simples e antitética prazer negócio não já de um problema mas da substância de um ueontecimento Queremos observar ainda outro exemplo O romance Candide contém uma polêmica contra o otimismo meta fÍNico do pensamento de Leibniz acêrca do melhor dos mundos possíveis No capítulo 89 do Candide a novamente encontrada Cunegundcs começa a narrar a aventura que lhe aconteceu depois dti expulsão de fimlido do castelo do seu pai 356 MIMESIS Jétais dans mon lit et je dormais profondément quand il plut au ciel denvoyer les Bulgares dans notre beau château de Thundertentronckh ils égorgèrent mon père et mon frère et coupèrent ma mère par morceaux Un grand Bulgare haut de six pieds voyant quà ce spectacle javais perdu connaissance se mit à me violer cela me fit revenir je repris mes sens je criai je me débattis je mordis jégratignai je voulais arracher les yeux à ce grand Bulgare ne sachant pas que tout ce qui arrivait dans le château de mon père était une chose dusage le brutal me donna un coup de couteau dans le flanc gauche dont je porte encore la marque Hélas jespère bien la voir dit le naïf Candide Vous la verrez dit Cunégonde mais continuons Continuez dit Candide 5 Os horrendos acontecimentos parecem cômicos porque se pre cipitam com uma ligeireza quase clownesca e porque são apre sentados como sendo fruto da vontade divina e universalmente habituais o que está em contradição cômica com o seu horror e com a vontade da pessoa atingida a isto juntase ainda o gracejo erótico do fim A simplificação antitética e a anedo tização do problema a remoinhante ligeireza do tempo dominam o romance todo as desgraças correm umas atrás das outras e sempre são interpretadas como sendo necessárias ordenadas razoáveis e dignas do melhor dos mundos possíveis o que é evidentemente disparatado Desta forma o pensamento tran qüilo é asfixiado no riso e o leitor divertido chega dificilmente ou nem chega a compreender que Voltaire não faz justiça de forma alguma ao pensamento de Leibniz nem em geral ao pensamento da harmonia universal metafísica sobretudo porque uma obra tão divertida como a de Voltaire encontra muito mais leitores do que os trabalhos dos seus adversários filosóficos que exigem um trabalho muito mais difícil e sério A maioria dos seus leitores contemporâneos provàvelmente nem chegou a adqui rir a noção de que a pretensa realidade empírica que Voltaire constrói não corresponde absolutamente à experiência de que ela está artificiosamente ajeitada para os seus fins polêmicos e se chegou a adquirir essa noção dificilmente soube aprovei tála O ritmo das fatalidades que acontecem a Cândido e aos seus companheiros não pode ser observado em parte alguma da realidade empírica nunca acontece uma tal chuvarada inin terrupta e desconexa de desgraças caindo do céu limpo sôbre pessoas totalmente alheias às mesmas e despreparadas só casual mente envolvidas nelas lembra antes as desgraças de uma figura 5 Estava em meu leito e dormia profundamente quando prouve ao céu enviar os Búlgaros a nosso belo castelo dc Thunderteníronck degolaram meu pai e meu irmão e cortaram minha mãe em pedaços U m grande Búlgaro da altura de seis pés vendo que com êste espetáculo eu tinha perdido consciência pôsse a me violentar isto me fêz voltar a mim recuperei os sentidos gritei debatime mordi arranhei quis arrancar os olhos dêste grande Búlgaro sem saber que tudo o que acontecia no castelo do meu pai era um a coisa usual o bruto deume uma facada do lado esquerdo da qual ainda me fica a marca Aliás espero vêla disse o ingênuo Cândido Vêlacis disse Cunegundes mas continuemos Continuai disse Cândido A CEIA INTERROMPIDA 357 cômica da farsa ou o joãobôbo do circo Deixando de lado 0 desmesurado amontoamento de desgraças e o fato de elas não estarem em demasiados casos em qualquer relação interna com as personagens que atingem Voltaire também falseia a reali dade na medida em que simplifica demais as causas dos acon tecimentos As causas dos destinos humanos que aparecem nos seus escritos iluministicamente realistas são ou bem aconteci mentos naturais ou bem casual idades ou também na medida em que entrem em consideração ações humanas como causas são os instintos a maldade e sobretudo a estupidez Nunca vai atrás das condições históricas de surgimento dos destinos humanos atrás das convicções e disposições humanas isto é válido tanto para a história dos indivíduos quanto para a dos estados religiões e da sociedade humana em geral Tão absur dos estúpidos e casuais como no nosso exemplo da bôlsa lon drina aparecem o anabaptismo o judaísmo ou a seita dos quacres no Candide aparecem as campanhas bélicas os alistamentos as perseguições religiosas as idéias dos aristocratas ou dos clérigos c êle dá como absoluta e evidentemente comprovado o fato de que nenhum homem inteligente acredita em qualquer ordenação interna dos acontecimentos ou em qualquer justificação interna ilas idéias Da mesma forma óbvia dá por comprovado que na história individual de cada homem qualquer um pode sofrer qualquer destino que estiver em harmonia com as leis naturais cm qualquer consideração pelas possibilidades de uma ligação entre caráter e destino e por vêzes êle se compraz em construir correntes de causas que só são explicadas como processos natu rais surrupiando conscientemente o moral e o históricoindivi diml leiase por exemplo no quarto capítulo de Candide as explicações de Pangloss acêrca da origem da sua sífilis vous avez connu Paquette cette jolie suivante de notre uiigustc baronne jai goûté dans ses bras les délices du paradis qui ont produit ces tourments denfer dont vous me voyez dévo lé elle en était infectée elle en est peutêtre morte Paquette tenait ce présent dun cordelier très savant qui avait remonté A lu source car il lavait eue dune vieille comtesse qui lavait irçue dun capitaine de cavalerie qui la devait à une marquise qui lu tenait dun page qui lavait reçue dun jésuite qui étant novice lavait eue en droite ligne dun des compagnons de Chris tophe Colomb 1 Jmn tal representação que só considéra as causas naturais e quanto no moral só salienta a sátira contra os costumes dos v conhecestes Paquette aquela bela cam areira de vossa augusta intime gozei nos icu t braços as delícias do paraíso que produziram êstes lurinrnio do inferno pcloi quais me vêdex devorado ela estava infectada por êlcs laivrr morreu disso Paquette recebeu êste presente de um franciscano muito Ahln que tlnhn cheiiado ùs fonte pois o tinha recebido de uma velha çondêssa Mf i havia recebido de um CMpitio de cavalaria que o devia a uma marquesa iHi o havia itanho de uni pagem que o hnvú recebido de um iesuíta que mMIo noviço o Imvln lido rm linho direta de um dos companheiros de iIslóvAn nlomhn 358 MIMESIS clérigos também homossexualidade suprimindo todavia com alegre ligeireza todos os dados históricoindividuais que levaram ao surgimento de cada relação amorosa insinua uma concepção muito determinada do encadeamento dos acontecimentos da qual é desligada a responsabilidade de cada ser humano em particular pelas ações que seguem seus impulsos naturais assim como tudo o que leva a determinadas ações a partir da sua disposição peculiar do seu peculiar desenvolvimento interior e exterior Voltaire vai só raramente tão longe quanto nesta passagem e quanto no Candide em geral no fundo é um mora lista e encontramse sobretudo nos escritos históricos retratos nos quais o elemento individual sobressai com clareza Mas sempre está inclinado a simplificar e a simplificação sempre ocorre de tal forma que a razão sã prática e iluminista tal como estava se formando no seu tempo e com a sua colabora ção tornase a escala única de julgamento e que de tôdas as condições sob as quais se desenrola a vida humana só são consideradas sèriamente as de caráter materialnatural as con dições históricas e espirituais porém são por êle desprezadas e descuidadas Isto está em relação com a inspiração ativa e valente que alentava o iluminismo a sociedade humana deveria ser liberada de todos os pesos que se opunham ao progresso racional tais pesos eram evidentemente as condições religiosas políticas e econômicas que se haviam formado històricamente irracionalmente em contradição com tôda clara razão e que se haviam emaranhado num confuso aglomerado parecia neces sário desacreditálos não entendêlos ou justificálos Voltaire constrói a realidade de tal forma que se adapta às suas finalidades É inegável que em muitos dos seus escri tos se encontra a realidade quotidiana cheia de vida e de côr mas ela é incompleta conscientemente simplificada e portanto apesar da seriedade da intenção didática brincalhonamente superficial No que se refere ao nível estilístico a mentalidade que domina os escritos ilifministas já inclui um rebaixamento da posição do homem ainda que não seja tão insolentemente gra ciosa quanto a de Voltaire o sobreerguimento trágico do herói clássico desaparece desde o comêço do século XVIII a própria tragédia tomase com Voltaire mais colorida e espirituosa perde em gravidade por outro lado florescem os gêneros poéticos mé dios assim como o romance e a narração em verso e entre a tra gédia e a comédia introduzse o gênero médio da Comédie lar moyante A tendência da época não se dirige para o sublime mas para o gracioso elegante espirituoso sentimental racional e útil tudo o qual pertence ao nível médio No que respeita ao nivelamento médio o estilo eróticosentimental de Manon Les caut e o propagandístico de Voltaire coincidem Em ambos os casos os sêres humanos que aparecem não são sublimes extraídos do contexto do decurso quotidiano da vida mas são personagens engastadas nas suas circunstâncias vitais geralmente medíocres dependentes das mesmas prêsas às mesmas exterior A CEIA INTERROMPIDA 359 e até interiormente Como não pode ser negado um certo grau de seriedade também não no caso de Voltaire que formula os seus pensamentos com tôda seriedade devese verificar que ao contrário do que acontecia no classicismo ora ocorre nova mente uma mistura de estilos Só que ela não penetra muito longe nem muito fundo dentro do quotidiano nem do sério Está ligada à tradição do gôsto clássico na medida em que o realismo continua sendo de agrado o aprofundamento no trá gico e no criatural o emaranhamento no histórico ambas estas coisas são evitadas o realista por mais colorido e divertido que seja não é senão espuma No caso de Voltaire o agra dável e o espumoso do realismo que sòmente aparece a serviço do pensamento iluminista está modelado com tanta arte que êle próprio acaba sendo capaz de utilizar como introdução gra ciosa e amável a umas considerações filosóficopopulares as representações criaturais da própria decadência e do próprio fim que o atingiram nos últimos anos da sua vida Quero dar um exemplo disto que já foi analisado anteriormente por Leo Spitzer Romanische Stil und Literaturstudien Marburg 1931 II 238 ss Tratase de uma carta que o macilento patriarca de ses senta c sete anos o da descarnada máscara que todos conhecem escreveu a Madame Necker quando o escultor Pigalle foi a Ferncy para modelar o seu busto Diz assim Ferney 19 juin 1770 A Madame Necker Quand les gens de mon village ont vu Pigalle déployer quelques instruments de son art Tiens tiens disaientils on va le disséquer cela sera drôle Cest ainsi madame vous le savez que tout spectacle amuse les hommes on va également aux mnrionettes au feu de la SaintJean à lOpéraComique à la ynindmesse à un enterrement Ma statue fera sourire quelques philosophes et renfrognera les sourcils éprouvés de quelque coquin dhypocrite ou de quelque polisson de follicullaire vanité île vanités Mais tout nest pas vanité ma tendre reconnaissance pour mes amis et surtout pour vous madame nest pas vanité Milles tendres obéissances à M Necker7 7 Ferney 19 de Junho de 1770 A enhora Necker Quttndo a gcnie da minha vila viu Pigalle ostentar alguns instrumentos lu du rte Pois pois disseram vão dissccálo isso será divertido IS nMlm enhora vós o sabeis que todo espetáculo diverte os homens vaise lu ntcumit forma ver on marionetes as fogueiras de São JoSo à ópera cômica A mlim nmlor n um entérro Minha estátua fará sorrir alguns filósofos e fará fniiwir o ccnhn experimentado de qualquer hipócrita semvergonha ou de MUMlquer moleque foliculárlo vaidade de vaidades Mu iwdu nlo é viiidndc meu torno reconhcclmonto uoi meus amigos c m vói Bcnhnro nlo é vaidade Meu dfelwnioH m p ciln t no rnhor Necker 360 MIMESIS Remeto o leitor à excelente análise de Spitzer que persegue e interpreta todos os matizes de expressão do texto e só quero completar ou resumir aqui o que é essencial para o problema estilístico aqui tratado A anedota realista que serve de motivo é ou bem inventada ou bem adaptada para a finalidade não é verossímil que a idéia da dissecção fôsse mais familiar aos camponeses de 1770 do que a da escultura deve ter corrido o boato sôbre quem era Pigalle e o fato de que se fizessem retratos do seu famoso castelão que vivia entre êles fazia uma década deve terlhes parecido muito mais natural do que a idéia de que fôsse seccionado em vida Evidentemente não é impos sível que algum trocista semiinstruído tenha dito a êles qual quer coisa semelhante mas acredito que à maioria dos leitores que se perguntarem a respeito parecerá mais verossímil que êsse trocista tivesse sido o próprio Voltaire Seja que êle tenha cons truído êste cenário sozinho para si como presumo seja que a casualidade o tenha pôsto à sua disposição desta forma em qualquer caso tratase de uma porção de realidade deslocada exagerada jogada excelente e exclusivamente utilizável para aquilo que êle gosta uma sabedoria mundana trivial apresen tada com amabilidade e charme o fogo de artifício da exempli ficação na qual misturamse com ousadia iluminista coisas pro fanas e sagradas a ironia diante da própria fama as alusões polêmicas aos seus inimigos a concentração de tudo no tema básico salomônico e finalmente o entrelaçamento com a pala vra vanité para encontrar a formulação que encerra a carta que faz rebrilhar todo o encanto dêste ancião ainda amável e vivaz e do século todo que êle ajudou a formar com tanto afinco o conjunto mostra como diz Spitzer uma forma única em seu gênero o bilhete rococó iluminista É tanto mais única porque a trama de sabedoria mundana e de espiritualidade amá vel está amarrada aqui a uma anedota que evoca a criaturali dade do corpo velho decrépito próximo do túmulo ainda diante de um tal objeto Voltaire permanece espirituoso e agradável Quanta coisa junta encontrase neste texto o caráter artificioso e preparado do realismo o charme perfeito das relações huma nas que apesar de tôda a calidez da expressão guardam grande reserva a superficialidade do defrontarse criatural consigo mesmo a qual é ao mesmo tempo aquela elevada amabilidade que não quer incomodar os outros com as próprias sensações turvas e o ethos educacional do grande iluminista que seria capaz de empregar a fôrça do último suspiro para a formulação espirituosa e amável de um conhecimento Espero que os exemplos de Prévost e de Voltaire tenham fornecido tôdas as características essenciais do nível estilístico médio peculiarmente excitante e peculiarmente superficial no qual o realismo e a seriedade que no tempo de Luís XIV esta vam tão severamente separados começaram a se aproximar novamente alguma coisa ficará mais nítida quando comentar mos outros textos com uma retrospecçio explicativa Só me A CEIA INTERROMPIDA 361 resta falar de um gênero literário que segundo o seu caráter não pode separar o realismo da visão séria das coisas e que portanto não se submete incondicionalmente à separação esté tica dos estilos nem durante o século XVII francês são as me mórias e os diários A partir do Renascimento há em diferentes países europeus obras interessantes e importantes dêste gênero no período absolutista dos séculos XVII e XVIII especialmente na França e nos países fortemente influenciados pelo modêlo francês tratase sobretudo de autores dos círculos da côrte muitas vêzes de berço principesco e de temas da política das intrigas cortesãs e da vida das mais altas camadas sociais Me rece ser mencionado o fato de que cf SainteBeuve Causeries du Lundi XV 425 entre os mais talentosos peculiares e famo sos memorialistas da França não há nenhum que pertença à geração de Luís XIV tratase ou bem de membros da geração anterior como Retz La Rochefoucauld Tallemant des Réaux ou da seguinte Durante o reinado do próprio Luís XIV e sob o domínio incondicionado do gôsto representado pelo seu nome o moralismo sob cuja influência a literatura memorialista fran cesa já estava desde antes dirigiuse para formas e temas mais gerais evitando a reprodução realista de acontecimentos con temporâneos determinados O fato de tratarmos das memórias sòmente aqui no contexto da primeira metade do século XVIII devese justamente a que nós achamos que o mais importante escritor desta espécie o duque Louis de SaintSimon pertence untes ao século XVIII do que ao século XVII Nasceu em 1675 chegou à côrte em 1691 e começa as anotações muito cedo com dezenove anos em julho de 1694 isto êle próprio narra Só que a atividade propriamente dita de redação de conjunto xó pôde terse iniciado muito mais tarde isto é depois da morte do regente em 1723 quando SaintSimon se retirou da côrte Depois viveu e escreveu durante ainda 32 anos alusões a acon tecimentos das décadas de trinta e quarenta que se encontram incidcntalmente mostramno trabalhando em meio ao século XVIII assim nas memórias do ano 1700 onde fala do surgi mento da monarquia da Prússia êle menciona a morte de Fre derico Guilherme I e o acesso ao trono de seu sucessor como tratiindose de acontecimentos recentes uma prova de que es creveu a passagem em questão logo após maio de 1740 Os cililôres da edição crítica na coleção dos Grands Ecrivains dicgurum à convicção que a redação das Mémoires se deu entre 1739 e 1749 Notes sur lédition des Mémoires tomo 41 p 442 Cronològicamente a obra pertence sem dúvida alguma uo século XVIII mais difícil é a classificação interna histórico oipiritual do duque pois a bem dizer êle não é comparável com nada e só há uma coisa que salta à vista imediatamente ineimo após um conhecimento sumário o fato de que segundo n sun maneira de escrever e segundo as suas opiniões êle não pertence de qualquer forma à época de Luís XIV A sua munelrii de eicrever nlo tem nada da ponderada bienséance 362 MIMESIS nada do esforço clássico à procura da harmonia nada da exal tada distância do objetivo dos grandes decênios ela lembra antes se forçosamente se quiser compararlhe alguma coisa à prosa préclássica de princípios do século XVII Segundo as suas idéias êle é um adversário enérgico do absolutismo centrali zador deseja uma constituição estamental do reino com muito maior liberdade estamental e sobretudo com a alta aristocracia como classe dirigente em questões religiosas apesar da sua grande e certamente legítima devoção mostrase livre de pre conceitos e reprova tôda perseguição e opressão em questões de fé Como ideal pairalhe a imagem do govêrno de Luís XIII sem dúvida um malentendido perspectivo pois que foi justa mente sob o reinado de Luís XIII que Richelieu assentou as bases para o absolutismo total e para a ruína política da nobreza aqui SaintSimon deixase enganar pela tradição familiar pois seu pai que quando do seu nascimento já tinha perto de setenta anos de idade contou durante a sua juventude entre os favo ritos de Luís XIII e foi por êle elevado à categoria de duc et pair SaintSimon é portanto um reacionário antiabsolutista e quan do fala da dignidade e da importância da mais alta aristocracia dos ducs et pairs as suas opiniões têm algo de anacrônico e de maníaco Não obstante possui muito bom senso político o olhar certeiro e perspicaz Não se deve esquecer que a oposi ção que começou a se formar com alguns homens importantes da própria côrte de Luís XIV durante os últimos decênios do seu reinado pensava quase que exclusivamente na restauração das antigas instituições estamentais viase nelas e em primeiro lugar na reimplantação da alta nobreza no seu antigo estado um meio eficaz de combater o absolutismo e o s seus instru mentos os ministros do rei que eram totalmente suas criaturas com tais pensamentos associavamse planos práticos e relativa mente libertários para uma política de paz para a reestruturação interna das finanças e das relações eclesiásticas Podese desig nar a ideologia dos grupos oposicionistas da côrte como estamen tal patriarcal e liberal a sua influência ainda se faz sentir em Montesquieu SaintSimon estava perto dêste grupo os seus membros importantes foram seus amigos compartilhava muitas das suas idéias e as desenvolveu mais à sua maneira Na sua ideologia política misturamse tendências reacionárias cujas raí zes estão nos tempos de Luís XIV com outras tendências libe rais da espécie que começa a ser modelada pelo incipiente século XVIII também do ponto de vista político SaintSimon nada tem do estilo Luís XIV Desde a sua juventude tinha sido amigo do duque de Orléans que ocupou o cargo de regente após a morte do rei desta forma como membro do conselho de regência adquiriu grande influência mas não soube muito bem o que fazer com ela Evidentemente não era um estadista demasiado altivo demasido honorável demasiado temperamen tal e nervoso estragado certamente também pela vida na côrte e pela sua secreta dedicação às letras para o trabalho objetivo A CEIA INTERROMPIDA 363 político E também desta vez não encaixava na época cuja leve e elegante Iudicidade não era capaz nem de acompanhar nem de dominar Sem embargo são os decênios entre aproximada mente 1694 e 1723 primeiro a oposição secreta no fim do reinado de Luís XIV e depois a participação do governo do duque de Orléans os que viram o desenrolar da sua essência dêstes decênios tratam também as partes mais importantes das memórias que foram redigidas nas décadas seguintes Depois disto tudo acredito que êle se deixe classificar sobretudo como um homem de começos do século XVIII como um caso origi nalmente excepcional de ideologia antiabsolutista aristocrático cstamental liberalreformadora que antedeceu imediatamente os começos do iluminismo Muito foi escrito acêrca da sua essência como escritor e acêrca do seu estilo Segundo a minha sensação o mais acer tado foi escrito por Taine na quarta secção de um ensaio que apresenta antes uma descrição brilhante porém parcial e que não apreende o essencial do século X V II Essais de Criti que et dHistoire I 188 ss Todos os críticos concordam em admirar a mestria de SaintSimon na reprodução do homem vivente os melhores e mais famosos retratos das memórias ante riores empalidecem ao lado dos seus e na literatura européia em geral não deve haver senão muito poucos escritores capazes de oferecer ao leitor uma tal pletora de sêres humanos apresen tudos cada vez em tão evidente peculiaridade e unidade e mani festado cada vez a existência da pessoa em questão até os seus fundamentos SaintSimon não inventa trabalha com o material que a sua vida lhe oferece casualmente e sem selecio níilo poderseia chamálo um material quotidiano embora se origine exclusivamente no ambiente da côrte da França o cená rio é tão amplo e rico em figuras que contém todo um mundo ele seres humanos e SaintSimon não despreza nada nem nin guém a sua atividade literária comparável a um vício ataca com os instrumentos da expressão lingüística qualquer objeto Já isto nos dá um ponto de partida para a observação do seu estilo à luz da nossa colocação do problema Mas preferimos construíla mesmo aqui com base na exemplificação a esco lha é evidentemente muito difícil entre uma tal multidão Comecemos com algo relativamente superficial Numa noite de abril de 1711 morreu no seu castelo de Mctidon o único filho legítimo do rei Monseigrteur ou le grand Ihntphin como era chamado na côrte vítima da varíola À tarde i i s notícias sôbre o seu estado tinham sido favoráveis e acre ditavase cm Versailles que o perigo tivesse passado à noite ilicgou a notícia de que estava agonizando Tôda a côrte entrou iiii Ivorôço ninguém pensava em dormir as damas e os cava lheiros nu sua maioria já vestidos com roupas de dormir saíram dos seus apartamentos e se reuniram ao redor dos dois filhos do moribundo os duques de Horgonha e de Herry c de suas espsns logo mais a duquesa de Horgonha que se tinha afas 364 MIMESIS tado um instante para ir ao encontro da carruagem do rei que voltava de Meudon traz a notícia fúnebre As diferentes emo ções que se refletem nas expressões e nas atividades de tantas pessoas atingidas pelo inesperado acontecimento das formas mais diversas fornecem um espetáculo significativo e rico ainda mais dramàticamente salientado pela noite e pelo cenário por assim dizer improvisado SaintSimon que estava otimamente disposto o que intenta reprimir com grande esforço levado pela cons ciência e pelo decoro pois considera o desaparecimento de Monseigneur como um caso afortunado para a França para os seus amigos e para si próprio aproveita a ocasião a Çundo e haure dela uma pletora de cenas esboços de retratos autoaná lises e observações dentro dos quais o contraditório e o confuso de um tal momento a balbúrdia de espanto desespêro cons ternação embaraço alegria reprimida a justaposição da digni dade da morte com pormenores grotescos chegam a uma expres são totalmente unitária Queremos escolher desta descrição que se estende por muitas páginas uma pequena cena Referese a Madame a cunhada do rei duquesaviúva de Orléans a palatina Elisabeth Charlotte famosa pelas suas cartas Depois dé Saint Simon ter descrito o grupo choroso dos jovens príncipes e princesas e o duque de Beauvilliers que se preocupa com êles cuidando com tranqüilidade e circunspeção da sua função na côrte continua do seguinte modo 21 35 Madame rhabillée en grand habit arriva hurlante ne sa chant bonnement pourquoi ni lun ni lautre les inonda tous de ses larmes en les embrassant fit retentir le château dun renouvellement de cris et fournit le spectacle bizarre dune prin cesse qui se remet en cérémonie en pleine nuit pour venir pleurer et crier parmi une foule de femmes en déshabillé de nuit presque en mascarades8 O período está constituído de quatro membros coordena dos com o verbo no tempo passado arriva inonda fit retentir et fournit dos quais os três primeiros apresentam as etapas de uma ação em desenvolvimento e o quarto amplamente movi mentado uma interpretação resumidora da ação A interpre tação que salienta o contraste entre o efeito desejado e o efeito real da ação já se introduz porém nos primeiros membros Logo no comêço esperase depois das palavras Madame rhabil lée en grand habit algo solene e grave mas esta espera é escan dalizada pelas palavras arriva hurlante depois vem o parêntese participial ne sachant e nos membros posteriores inonda e fit retentir de tal forma numa construção periódica fluentemente coordenada que não contém nenhuma forma sin 8 Madame vestida de nôvo em grande gala chegou berrando n lo labendo muito bem o porquê nem de uma nem de outra coisa inundouoi todos com as suas lágrimas ao abrasálos fêz ressoar o castelo com oi seus gritos renovados e forneceu o espetáculo bizarro de uma princesa que ie veste com cerimônia em plena noite para vir chorar e gritar entre uma m ultldlo de mulheres em roupa de noite quase fantasiadas A CEIA INTERROMPIDA 365 lática que indique contraste ou restrição são incluídas somente antíteses de sentido Madame não tem um motivo racional nem para se vestir solenemente nem para berrar é ridículo fazer o primeiro com a finalidade do segundo e para êste último ela não tem motivo algum pois que Monseigneur e o seu séquito eram inimigos dos seus interêsses e dos do seu filho não havendo qual quer amizade entre os dois grupos Por outro lado a sua maneira de agir mostra tudo o que há de contraditório no seu ser sua be nignidade carente de tato mas cheia de temperamento e de baru lho que esquece num momento como êsse tôda inimizade pessoal e só sente o espanto da morte e a compaixão com os que sofrem e por outro lado o seu sentimento acêrca daquilo que deve à sua dignidade principesca sentimento um tanto quadrado ale mão bàsicamente diferente daquele da côrte francesa apesar das dezenas de anos de vida em comum de tal forma que embora esteja sinceramente estremecida e soluçante faz com que lhe vistam primeiramente uma roupagem de gala antes de fazer a sua grande aparição Tudo isto completa excelentemente as indicações que SaintSimon faz a seu respeito em outras pas sagens a bofetada que dá no seu filho diante da côrte reunida por ter consentido em se casar com uma filha ilegítima do rei contra o desejo dela e também contra o seu próprio a sua inepta e insociável censura do modo de vida na côrte do seu esposo a sua não menos inepta e grosseira inimizade para com Madame de Maintenon que finalmente levou a uma humilhação terrível para ela e finalmente combina muito bem com a itniigem geral que SaintSimon dá a seu respeito quando da m u i morte 41 117 Elle était forte courageuse allemande au dernier point Irimchc droite bonne et bienfaisante noble et grande en toutes ici manières et petite au dernier point sur tout ce qui regardait te qui lui était dû Elle était sauvage toujours enfermée à ierire hors les courts temps de cour chez elle du reste seule avec scs dames dure rude se prenant aisément daversion et iciloutublc par ses sorties quelle faisait quelquefois et sur qui conque nulle complaisance nul tour dans lesprit quoiquelle ne manquât pas desprit nulle flexibilité jalouse comme on la dit jusquà la dernière petitesse de tout ce qui lui était dû lu ligure et le rustre dun Suisse capable avec cela dune amitié le mire et inviolable 9 Vêse neste trecho com o seu amontoamento desordenado u nun repetições e encurtamentos sintáticos que SaintSimon V lit orle co rtjo alemS ao extremo franca direita boa e benfa in nnhra e grande em tôdas sua atitudes e mesquinha até o extremo em tudo quilo ijut dizia respeito ao que lhe era devido E ra selvagem sempre encerra ila escrevendo afora o curto tempo de côrte em sua residência de resto Ailnhi com suas damas dura rude ficava fkdlm ente com aversfies e temível IM saldas que tinha por vties a respeito de quem quer fôsse nenhuma iiMiinlacIncla nenhuma esplrltuosldade embora n lo lhe faltasse espirito nenhuma MetlmlUlad ciumenta como foi dito até a dltlma mesquinharia de tudo o que llie 0i s devldoi a figura a rustlcldada de um suíço capaz contudo da uma inliiiil ttrna e Inviolável 366 MIMESIS nem sempre ou antes muito raramente escreve períodos tão amplos e uniformemente sonoros como aquêle que reproduz a aparição noturna da duquesa a sua sintaxe muda segundo o objeto o arraste consigo emporté toujours par la matière et peu attentif à la manière de la rendre sinon pour la bien expliquer como êle mesmo diz 41 335 Naquele trecho noturno a lembrança da tempestuosa aparição arrastao com o seu ímpeto mas não em tal medida que chegue a prejudicar a sua observação crítica o salientamento do grotesco êle a embute no ímpeto da frase Por mais diferentes que sejam os dois textos a apari ção noturna e o retrato da duquesa de Orléans êles têm muito em comum antes de mais nada o comprimido e sobrecarregado por assim dizer do conteúdo A lembrança das pessoas e das aparições oferecese ao duque escrevente com tal premente vio lência e com tal pletora de pormenores que a sua pena parece poder acompanhála a duras penas e evidentemente êle está convencido de que tudo o que lhe vem à memória é indispensável para o conjunto e se deixa também incorporar ao conjunto sem que tenha que se preocupar antecipadamente com isso Não se dá o tempo de levar em primeiro lugar ao fim a aparição de Madame para depois dizer em novas frases primeiro que ela tinha pouco motivo para prantear e segundo que o vestido cerimonioso estava fora de lugar o que a bem dizer são duas coisas bem diferentes senão que como as duas coisas lhe vêm à mente ao mesmo tempo da lembrança da irrupção da duquesa e como êle está demasiado acossado por pensamentos e lembran ças demasiado temeroso de que com a tentativa de ordenar as coisas mais calmamente deixando algo para depois algum por menor possa se perder deslocado por novas imagens e pensa mentos deve enfiálas imediatamente e com isto acontece que da necessidade se faz uma virtude êle descobre que as duas coisas deixamse unir pois ambas as coisas são igualmente impró prias igualmente instintivas e emocionantes e porque ambas iluminam até o mais íntimo a índole de Madame e eis que o o período já está construído um pouco assimétrico nas suas correspondências relativas mas por isso mesmo mais contun dente ne sachant bonnement pourquoi ni lun ni lautre Desta forma ultraapressada e impaciente chegam a se constituir os cruzamentos e recruzamentos sintáticos que se encontram em tôda parte em sua obra e que se convertem quase sempre em sínteses como o genial jamais à son aise ni nul avec lui que diz do presidente Harlays ou sachant tout parlant tout f esprit orné mais décorce a respeito do duque de Noailles ou as construções logicamente absurdas mas totalmente claras no sen tido como esta pour la faire connaître et en donner lidée quon doit avoir pour sen former une qui soit véritable Madame des Ursins ou divers traits de ce portrait plus fidèle que la gloire quil a dérobée et quà exemple du roi il a transmise à ta postérité acêrca do marechal Villars também a continua ção do período é característica para a compressão encurtadora A CEIA INTERROMPIDA 367 A mesma pressa premente existe quando da enumeração das qualidades de Madame no seu retrato SaintSimon muito evidentemente não se deu o tempo de ordenálas com antece dência nem tem calma suficiente para evitar repetições de pen samentos palavras e sons courtscour começa duas vêzes com elle était e se mais tarde não volta a fazêlo isto acontece porque não mais encontra tempo para isso êle insiste duas vêzes mediante au dernier point o que dá involuntariamente um efeito retórico combina dois adjetivos curtos colocados em forma absoluta dure rude com uma formação adverbial de nove sílabas continua com um nôvo adjetivo motivado extensamente 14 sílabas e pendura nisso tudo o sur quiconque que cai completamente fora da construção e dá uma impressão exagera damente concisa e abrupta com suas quatro sílabas a partir da frase seguinte amontoa simplesmente substantivos e o mais sur preendente da construção tôda pareceme o final onde não mais se sabe onde acaba o corporal e começa o moral e onde êle não se esforça por achar para o mais contundente dos contrastes enumerados realmente comovedor pela verdade que encerra nenhuma outra expressão conjuntiva a não ser a tão conhecida de todo leitor de SaintSimon inesquecível na sua inexpressivi ilude em meio a tanta expressão avec cela Que monumento pura uma mulher la figure et le rustre dun Suisse capable avec cela dune amitié tendre et inviolable Isto nos leva a uma outra peculiaridade que se encontra nos dois textos e em geral na obra de SaintSimon da mesma forma que não se dá ao trabalho de construir as frases harmô nicamente igualmente não se preocupa em harmonizar os con Iciklos Êle não pensa em ordenar o seu material segundo qual quer concepção de ordem ética ou estética segundo uma idéia preconcebida daquilo que pertence à beleza e daquilo que pér imée à fealdade à virtude ou ao vício ao corpo ou à alma Ioga tudo o que surge no seu interior para dentro de suas lianes com plena confiança em que tudo se ajeite em unidade i clarcn pois não é que êle tem diante de si na sua consciência a imagem unitária do ser que descreve o quadro completo da comi que narra Não se importa de engatar la figure et le rustre Aun Suisse onde rustre já começa a deslizar do corpóreo para o moral com amitié tendre et inviolable Outros casos ainda mais crassos encontramse em tôda parte Acêrca de Monsei gneur diz Lépaisseur dune part la crainte de lautre formaient en ce prince une retenue qui a peu dexemples a magnífica des riiçAo da duquesa dc Borgonha que êle achava como quase loiliiH os que a conheceram encantadora começa com as pala vras Régulièrement laide les joues pendantes le front trop iiviini f un nez qui ne disait rien de grosses lèvres mordantes Acicilitase talvez que quisesse começar com o feio para ter m i Imi i i coin o belo e talvez êste tenha sido o seu piano por um instante mas não o cumpre pois após des yeux les plus parlants etles plus beaux du monde aimla segue peu de dents et toutes 368 MIMESIS pourries dont elle parlait et se moquait la première E depois disso tudo ainda vem entre outras coisas peu de gorge mais admirable le cou long avec un soupçon de goitre qui ne lui seyait point mal une taille longue ronde menue aisée par faitement coupée une marche de déesse sur les nuées elle plaisait au dernier point 22 280 E mesmo então a coisa ainda não acabou De Villars diz Cétait un assez grand homme brun bien fait devenu gros en vieillissant sans en être appesanti avec une physionomie vive ouverte sortante et véritablement un peu folle Quem estaria preparado para este final A passagem que Proust cita com admiração e outras semelhantes que se encontram em grande quantidade não devem ser julgadas se gundo as nossas experiências literárias hodiernas combinações inesperadas ainda que evidentemente dificilmente dêsse tipo são apresentadas hoje em dia por qualquer jornalista de talento medíocre e até por muitos redatores de textos publicitários Devem ser julgadas a partir das concepções morais e estéticas do classicismo e do pósclassicismo francês onde se tinham formado categorias fixas sôbre aquilo que combina ou aquilo que não combina categorias de vraisemblance e de bienséance que não permitiam nem que se observasse o que delas divergia só então podese apreciar o caráter peculiar e incomparável da percepção e da expressão de SaintSimon O mais importante na falta de tôda harmonização precon cebida a partir da qual porém se constrói depois a harmonia do individuum ineffabile na sua realidade palpitante é a inin terrupta confusão do corporal e do moral de sinais externos e internos o sinal externo tem sempre valor expressivo caracte rológico o ser interno nunca ou só raramente é descrito sem suas formas fenomenais sensíveis e freqüentemente as duas coi sas se fundem numa única palavra ou imagem como é o caso acima comentado de la figure et le rustre dun Suisse Este entrelaçamento continua a se impor mesmo quando SaintSimon tenciona mostrar o exterior e o interior como formando um contraste um tal contraste só pode ser enganador só pode se basear numa falsa interpretação do exterior SaintSimon des creve por ocasião do concílio de 1700 a surprêsa dos clérigos quando o cardealarcebispo de Paris Noailles desconhecido para a maioria e inesperadamente encarregado de presidir as reuniões cujo exterior não parecia justificar grandes esperanças demons tra ter uma cabeça extremamente erudita capaz e clara un air de béatitude que sa physionomie présentait avec un parler gras lent et nasillard la faisait volontiers prendre pour niaise et sa simplicité en tout pour bétise observemse as reduções la surprise était grande quand Não contrapõe o exterior contra o interior mas dá uma interpretação falha do conjunto já misturada com elementos morais air de béatitude simplicité e se dá a interpretação correta isto acontece de tal forma que os traços mal interpretados por observadores superficiais encai xam excelentemente nela c também na interpretação correta A CEIA INTERROMPIDA 369 misturase o espiritual e o corporal o exterior e o interior avec son siège sa pourpre sa faveur sa douceur ses mœurs sa piété et son savoir il gouverna toute rassemblée sans peine 0 encerramento é dado por uma descrição dos seus costumes alimentares O entrelaçamento de corpo e espírito que apreende em cada caso o mais íntimo do conjunto ligada a isto e de igual forma indissolùvelmente misturada a situação politico social da pessoa em questão son siège sa pourpre sa faveur sa douceur ses mœurs sa piété et son savoir tudo num só nível c finalmente cada um como um todo fundido dentro da uni dade da atmosfera geral políticohistórica da côrte francesa de tal forma que cada um está incessantemente em meio a uma confusão de relacionamentos tudo isto é dominado por êste estilo Também a relação pessoal do autor com cada uma das personagens aparece cuidadosamente matizada O caráter de nüoinvenção de nãointencional de coisa tirada do fenômeno imediato confere a SaintSimon uma profundidade vital que mesmo os mais famosos representadores de sêres humanos dos grandes decênios Molière por exemplo ou Labruyère não atin giram Leiase um retrato menos conhecido a de uma cunhada de SaintSimon a duchesse de Lorge filha de um ministro que fAra poderoso mas derrubado mais tarde ma grande biche como ii chamou numa carta 24 275277 La duchesse de Lorge troisième fille de Chamillart mourut A luris en couche de son second fils le dernier mai jour de la lêleDieu dans sa vingthuitième année Cétait une grande ircáture très bien faite dun visage agréable avec de lesprit cl un naturel si simple si vrai si surnageant à tout quil en ótiiít ravissant la meilleure femme du monde et la plus folle île tout plaisir surtout du gros jeu Elle navait quoi que ce oit îles sottises de gloire et dimportances des enfants des minis tics mais tout le reste elle le possédait en plein Gâtée dès première jeunesse par une cour prostituée à la faveur de son pòrc avec une mère incapable daucune éducation elle ne crut jnmniN que la France ni le Roi put se passer de son père Elle no connut aucun devoir pas même de bienséance La chute de on père ne put lui en apprendre aucun ni émousser la passion lu jeu et des plaisirs Elle lavouait tout le plus ingénuement ilu monde et ajoutait après quelle ne pouvait se contraindre liimuiN personne si peu soigneuse dellemême si dégingandée coiffure de travers habits qui traînaient dun côté et tout le nHie île même et tout cela avec une grâce qui réparait tout Su mité elle nen faisait aucun compte et pour sa dépense illr ne croyait que terre put jamais lui manquer que teria itrmpre o bastante que não lhe faltaria o solo sob os pés 1 lit éliiit délicate et su poitrine saltérait On le lui disait elle li wnluil mais de se retenir sur rien elle en était incapable I Ile tidieva de se pousser i bout de jeu tle courses de veilles 370 MIMESIS en sa dernière grossesse Toutes les nuits elle revenait couchée en travers de son carrosse On lui demandait en cet état quel plaisir elle prenait elle répondait dune voix qui de faiblesse avait peine à se faire entendre quelle avait bien du plaisir Aussi finitelle bientôt Elle avait été fort bien avec Madame la Dauphine et dans la plupart de ses confidences Jétais fort bien avec elle mais je lui disais toujours que pour rien je neusse voulu être son mari Elle était très douce et pour qui navait que faire à elle fort aimable Son père et sa mère en furent fort affligés ln Neste retrato de ma grande biche há a mais cordial afeição até se sente algo assim como lágrimas que lhe surgem com a lembrança Que escritor dessa época ou da anterior teria sido capaz de descrever uma tal dama como sendo uma criatura tão jovem e coitada de introduzir a descrição com as palavras cétait une grande créature de inventar a intensificação si simple si vrai si surnageant à tout de engatar à locução trivial cétait la meilleure femme du monde o forte acento et la plus folle de tout plaisir de resumir a desordem da sua vestimenta do seu modo de vida e da sua saúde num quadro tão encantador de desperdício de si mesmo e finalmente de conservar aquela cena na qual atravessada na sua carruagem diz com voz moribunda quelle avait bien du plaisir E com tudo isto êste trecho de texto está cheio de clara e calma objetividade que descreve o substrato social e em geral ambiental de uma planta tão sin gular Devese esperar até estar bem avançado o século XIX até talvez o século XX para encontrar na literatura européia um nível tonal semelhante um síntese de um ser humano tão livre da tradicional harmonização que avance nas profundezas 10 A duquesa de Lorge terceira filha de Chamillart m orreu em Paris de parto do seu segundo filho em maio passado no dia de CorpusChristi em seu vigésimooitavo ano de vida E ra um a grande criatura muito bem feita de rosto agradável espirituosa e uma natureza tão simples tão verdadeira que superava tudo tão fàcilmcntc que por causa disso tomavase encantadora a melhor mulher do mundo e a mais louca por todo prazer sobretudo peio grande jôgo E la não tinha nada das tolices de glória e das im portâncias que se dão os filhos dos ministros mas todo o resto possuía plenamente M imada desde a sua prim eira juventude por uma côrte prostituída a favor do seu pai com um a mãe incapaz de qualquer educação ela nunca acreditou que a França e o Rei pudessem prescindir do seu pai Não conheceu nenhum dever nem o da decência A queda do seu pai não pôde ensinarlhe nenhum nem abrandar a sua paixão pelo jôgo e pelos prazeres Ela confessava tudo da forma mais ingênua possível e acrescentava depois que não podia dominarse Nunca houve pessoa que cuidasse menos de si nem tão desalinhada penteado torto vestidos que arrastavam de um lado e tudo o restante igual e tudo isso com uma graça que reparava tudo D a sua saúde ela não cuidava absoluta mente e nunca acreditou que pudesse lhe faltar o chão sob os pés Era deli cada e seu peito alteravase Diziamlhe isto ela o sentia mas era incapaz de se privar de nada Ela terminou por se acabar com o jôgo com as corridas e as noites em claro durante sua última gravidez Tôdas as noites voltava deitada atravessada na sua carruagem Perguntavaselhe qual era o prazer que ela tinha em tal estado respondia com uma voz que de tanta debilidade mal era audível que sentia bastante prazer Assim ela logo se acabou Davase muito bom com M adame la Dauphine e sabia dn maior parte das suas confidências Davame bastante bem com ela mas dizialhe sempre que por nada dêste mundo teria gostado de ser seu marido Era muito doce c para quem nada tivesse a ver com ela muito amável Seu pnl o nua mSc ficaram muito aflitos A CEIA INTERROMPIDA 371 da existência partindo tão imediatamente dos dados casuais do fenômeno Queremos apresentar ainda alguns exemplos que esclare çam algo mais do que os anteriores os aspectos históricos e polí ticos No ano de 1714 começou a longa luta contra a bula papal antijansenista Unigenitus SaintSimon é um adversário da bula em parte porque detesta qualquer coação de consciência e qulaquer violência em questões de fé em parte também por que a bula contém determinações sôbre a excomunhão que lhe parecem politicamente perigosas O padre jesuíta Tellier con fessor do rei que deseja impor a aceitação da bula por todos ou meios gostaria de ganhar SaintSimon para sua causa e lhe pede finalmente um encontro confidencial As circunstâncias ficram com que êste encontro tivesse lugar num gabinete tra ieiro a boutique de SaintSimon sem janelas iluminado só por velas enquanto que no salão ao lado são esperadas visitas que nada devem notar do que acontece no gabinete A conver khvAo fica agitada com surpreendente franqueza o velho jesuíta i o vela o seu plano composto com aleivosia e brutalidade para obter sua aceitação à fôrça procura com tôda espécie de sofis mn refutar os escrúpulos de SaintSimon e à medida que vai hcuIindo resistência encolerizase cada vez mais SaintSimon á ict ralou numa passagem anterior 17 60 o Père Tellier eis ultinuis frases do retrato Su tête et sa santé étaient de fer sa conduite en était aussi on nuturcl cruel et farouche il était profondément faux tiompeur caché sous mille plis et replis et quand il put se iminlicr et se faire craindre exigeant tout ne donnant rien e moquant des paroles les plus expressément données lorsquil nr lin importait plus de les tenir et poursuivant avec fureur ceux iil Ici avaient reçues Cétait un homme terrible Le pro lilKlriix île cette fureur jamais interrompue dun seul instant par ilvn leut quil ne se proposa jamais rien pour luimême quil nhvnil ni parents ni amis quil était né malfaisant sans être loin lii iluiium plaisir dobliger et quil était de la lie du peuple t ni en iichait pas violent jusquà faire peur aux jésuites les plu une1 Son extérieur ne promettait rien moins et tint im iiiiient parole il eût fait peur au coin dun bois Sa physio nomie fiait ténébreuse fausse terrible les yeux ardents mé liiinlii extrêmement de travers on était frappé en le voyant11 11 Nu h cnbevn e sua saúde eram de ferro sua conduta também o era a mm MMimr cruel e fe ro z era profundamente falso enganador escondido li miII iltibruR o preuns c quando pôde se mostrar e se fazer temer exigindo iimIm nRti tlundo nndu zombando das palavras mais expressamente empenhadas ihmihIo tilo timia lho Interessava mantêlas e perseguindo com furor aquêles que d ihihnm recebido Ern um homem te rrív el O prodigioso dêste furor IhhmO iiiiruom pldo um só instante por nada é que jamais se propôs qualquer mIm pni h mesmo que nfto tinha nem parentes nem amigos que tinha Hftfti Mo mnlvjulti Km ser tocado por qualquer prazer em ser amável e que era ti h do povo e nfio o ocultava violento a ponto de causar mêdo aos ImmIImk mnU prurientes Seu exterior nSo prometia nada menos e cumpria rufltumrrUc ntatutarlo cncontrálo no meio dc um boiquc Sua tialoiiniMlM ri lfnrlrna falta terrível ou olhos ardentes maus extremamento iititltliiua ripiinlnvii ví Um 372 MIMESIS Ora os dois estão sentados naquele gabinete frente a frente 24 117 Je ie voyais bec à bec entre deux bougies nayant du tout que la largeur de la table entre deux Jai décrit ailleurs son horrible physionomie Eperdu tout à coup par louïe et par la vue je fus saisi tandis quil parlait de ce que cétait quun jésuite qui par son néant personnel et avoué ne pouvait rien espérer pour sa famille ni par son état et par ses voeux pour soimême pas même une pomme ni un coup de vin plus que les autres qui par son âge touchait au moment de rendre compte à Dieu et qui de propos délibéré et amené avec grand artifice allait mettre lEtat et la religion dans la plus terrible combustion et ouvrir la persécution la plus affreuse pour des questions qui ne lui faisaient rien et qui ne touchaient que lhonneur de leur école de Molina Ses profondeurs les violences quil me montra tout cela me jeta en un tel sic extase que tout à coup je me pris à lui dire en linterrompant Mon Père quel âge avezvous Son extrême surprise car je le regardais de tous mes yeux qui la virent se peindre sur son visage rappela mes sens12 SaintSimon consegue borrar o efeito da sua pergunta imprópria e fica sabendo que o Père Tellier tem 73 anos de idade A cena mostra com grande nitidez como SaintSimon apreende os fenô menos com que se defronta vê no homem que tem bec à bec diante de si de forma totalmente instintiva uma unidade de corpo espírito situação e história vitais isto lhe dá uma fôrça de penetração que através do homem se adentra no tema polí tico e tão profundamente que por vêzes a parte especificamente atual do objeto como é o caso aqui escapa ao seu olhar desven dandose por baixo dela compreensões muito mais profundas e universais quando olha o seu interlocutor de tous ses yeux esquece o motivo presente a disputa acêrca de um determinado artigo da Constitutio Unigenitus e vê em tôda sua vivacidade a essência do jesuitismo e até por cima disso a essência de qualquer comunidade solidária rigidamente organizada Esta é uma forma de percepção que o seu interlocutor com tôda sua agudez dificilmente seria capaz de adivinhar nem o século 12 Eu o via frente a frente entre duas velas não havendo ao todo mais do que a largura da mesa entre os dois Descrevi anteriormente sua horrível fisionomia Pasmado simultâneamente pelo ouvido e pela vista fui abismado enquanto falava pelo que era um jesuíta que pela sua insignificância pessoal e confessa nada podia esperar para a sua família nem peio seu estado e peto seus votos para si mesmo nem mesmo uma maçã ou um copo de vinho n mais do que os outros que pela sua idade estava perto da hora de prestar contas a Deus e que deliberadamente e por fôrça de grandes artifícios ia pôr o Estado e a religião na mais terrível combustão e abrir a perseguição mais medonha por questões que nada lhe importavam e que no tocavam nada além da honra da escola de Molina As suas profundezas as vloltncias que me mostrou tudo isso me atirou em um tal êxtase que de repente comecei a dizerlhe interrompendoo M eu pai que idade tendes Sua extrema turprêsa pois eu o olhava fixamente t i v pintar no teu roito fêxm voltar a m im A CEIA INTERROMPIDA 373 XVII nem o XVIII conhecem outros exemplos de um tal olhar crasc de forma racional demasiado superficial e erase tam bím até internamente demasiado discreto demasiado cheio de timidez ante a pessoa do outro demasiado deliberadamente dis tante de tal forma que se evitava um tal desvendamento A magcm mostra também com isto que SaintSimon adquire os 0 1 1 conhecimentos mais profundos não através de uma análise lauonal de pensamentos e problemas mas através de um empi i i m i u exercido sôbre o fenômeno sensível com o qual se defron I iiv ii no acaso e aprofundado até o existencial enquanto isso paiu citar um exemplo próximo o jesuíta das primeiras Lettres lirovint iales muito evidentemente está estilizando segundo um i niihccimcnto racional prévio Mencionemos ainda um último trecho SaintSimon conhe lu o duque de Orléans o futuro regente desde a infância e imulo liem c tinha uma alta opinião da sua inteligência e das M in aptidòes mostra como somente a sua posição incômoda i nhllqim diante de seu tio Luís XIV estragou o seu caráter e ii iiiiH fòrçus tornandoo o homem indeciso pouco digno de i mil lança cinicamente indiferente e dissoluto que acabou sendo Nlío muito untes da morte do regente SaintSimon toma cons i I í i h Iii île que êste está chegando ao seu fim e descreve como iImuiiii h ter esta noção O regente havia conferido ao duque 1 I lumières um cargo importante I v duc dHumières voulut que je le menasse à Versailles itiniiiin M le duc dOrléans le matin Nous le trouvâmes iii II nlliiil ihnhillcr et quil était encore dans son caveau um i i i i i i i I i i mu iintlar térreo que é mencionado freqüentemente iliMil il vint fuit sa garderobe Il y était sur sa chaise percée IHiiini c valets et deux ou trois de ses premiers officiers I fit tu ellrayé Je vis un homme la tête basse dun rouge lniiiiii avec un uir hébété qui ne me vit seulement pas appro i lu i Scs non le lui dirent Il tourna la tête lentement vers mm i i i ii presque la lever et me demanda dune langue épaisse te iiu mamenait Je le lui dis Jétais entré là pour le presser ilt vum dans le lieu où il shabillait pour ne pas faire attendre If ilm dIlumières mais je demeurai si étonné que je restai mini le pris Simiane premier gentilhomme de sa chambre iliin une lenétre à qui je témoignai ma surprise et ma crainte ilt I iiiil ou je voyais M le duc de Orléans Simiane me répondit tii il iMmt depuis fort longtemps ainsi les matins quil ny avait lotit lu lien dextraordinaire en lui et que je nen étais surpris iiir put i l qui je ne le voyais jamais à ces heureslà quil ny nui mil ail plu tant quand il se serait secoué en shabillant Il ne Ih i m i i h i i dy parailre encore beaucoup lorsquil vint shabiller II m v iI li icmereiement du duc dHumièrcs dun air étonné et lttain cl lui qui était toujours gracieux ct poli envers tout le iiiimtlp rt qui savait si bien dire il propos et il point h peine lui tratiilii il Vi état de M le duc dOrléans me fil faire 374 MIMESIS beaucoup de réflexions Cétait le fruit de ses soupers12 41 229 Não se deve ficar surprêso pelo fato do regente estar rodeado de criados e de funcionários da côrte enquanto evacua e que até receba os seus dignitários nessa ocasião Os príncipes dos séculos XVII e XVIII quase nunca ficavam sozinhos quando Louvois irrompe numa cena dramática para junto do rei para impedir que anuncie oficialmente suas bodas com a senhora de Maintenon encontrao justamente levantandose da chaise percée e arrumando ainda as suas vestes da duquesa de Borgo nha conta SaintSimon que costumava manter as conversações mais confidenciais com as suas damas justamente em tais oca siões Mas nenhuma dessas cenas tem a fôrça arrebatadora daquela que transcrevemos acima Em tôda a literatura conhe cida e sobretudo na mais antiga provàvelmente não há nenhum texto que considere um tal objeto de forma dramática e trágica Êste o faz o espanto de SaintSimon ante a imagem da decre pitude e da morte próxima que se lhe oferece tem gravidade trá gica A imagem é desenvolvida lenta exata e paulatinamente em duas frases relativamente longas Je vis un homme e Il tourna la tête emolduradas por três frases muito curtas jen fus effrayé ses gens le lui dirent je le lui dis as quais se referem tôdas elas ao ambiente e que têm com a sua abrupta agudeza o efeito de golpes que procuram em vão quebrar a apatia do regente A imagem em si SaintSimon a começa com as palavras eu vi um homem não eu vi o duque com o que são expressas duas coisas primeiro que no pri meiro instante não o reconhece ou não quer acreditar quem seja a pessoa que tem diante de si segundo que o infeliz já quase não mais é M le duc dOrléans mas tão somente um homem E a lenta exatidão da segunda frase com o laborioso movimento da cabeça e a pesada língua tem um nível estilístico que não se encontrará certamente em parte alguma durante 12 O duque de Himiières quis que o levasse a Versailles agradecer o duque de Orléans logo da manhã Encontramolo enquanto se vestia estando ainda na sua adega da qual tinha feito o seu quarto de vestir L á estava sôbre a sua cadeira de retrete entre os seus criados e dois ou três dos seus primeiros oficiais Fiquei espantado Vi um homem com a cabeça abaixada de um vermelho purpúreo com um ar bastificado que nem me viu enquanto me apro ximava Seus homens disseramlho G irou a cabeça lentamente em minha direção sem quase levantála e perguntoume com a língua espêssa o que me trazia Disselho Havia entrado lá para apressálo a ir ao lugar onde se vestia para não fazer esperar o duque de Humières mas fiquei tão espantado que me faltaram as palavras Levei Simiane primeiro cavalheiro da sua câmara para junto de uma janela a quem testemunhei minha surprêsa e meu temor pelo estado em que via o senhor duque de Orléans Simiane respon deume que fazia muito tempo que êle ficava assim pelas manhãs que não havia nesse dia nada de extraordinário nêle e que eu não estava surprêso senão porque nunca o via a essas horas que o seu aspecto já não seria o mesmo depois de terse agitado ao se vestir Êle não mudou muito quando veio vestirse Recebeu os agradecimentos do duque de Humières com um ar espantado e pesado e êle que era sempre gracioso e polido para com todo mundo e que sabia tão bem dizer coisas apropriadas e engenhosas mal lhe respondeu Êste estado do senhor duque de Orléans fêzme fazer muitas reflexões Era o fruto das suas c e ia s A CEIA INTERROMPIDA 375 0 século XVIII e mesmo no século XIX dificilmente antes dos Goncourt e de Zola Não se trata com isto de forma alguma exclusivamente da representação inclemente do quotidiano do feio e daquilo que segundo a estética clássica seria indigno êste realismo radical é encontrado também em outras partes mesmo nos séculos XVII e XVIII Tratase do emprêgo do mesmo para a representação de sêres humanos de forma totalmente séria pro blemàticamente aprofundante que até vai além do meramente inoral para mergulhar nas profondeurs opaques do nosso ser 1 odo leitor é obrigado a sentir que todo o destino e tôda a tragicidade do duque de Orléans estão contidas nesta cena com ti chaise percée No seu nível estilístico SaintSimon é um precursor das modernas das mais modernas formas de apreen Rfto c reprodução da vida Êle apanha os sêres humanos em meio ao seu ambiente quotidiano com a sua origem as suas múltiplas relações as suas posses cada parte do seu corpo os eux gestos cada matiz das suas palavras Lauzun as suas esperanças e os seus temores muito freqüentemente ela chega a exprimir aquilo que hoje chamaríamos a sua massa hereditá ila c também aqui considerando o corporal e o espiritual como um todo percebe as peculiaridades do ambiente com uma exa liilrto que nada despreza e que vai diretamente ao alvo que MUlor do seu tempo teria sido capaz e estado disposto a salientar ulo como as peculiaridades espirituais ou lingüísticas da famí Iiii Mortcmart que êle menciona repetidamente ao falar de Mme dc Montespan da sua filha a duquesa de Orléans de Mme Ir Castries etc E tudo isto serve a representação da condi llnn de lhomme Embora o círculo das suas experiências seja limitado pois que se trata sempre da côrte francesa não deixa ilr ser verdade que apresenta grande unidade e é como se a unidade do conjunto fôsse preconcebida e o cenário é suficien temente grande para fornecer um mundo de sêres humanos e a possibilidade de acontecimentos quaisquer não escolhidos e quotidiunos Dissemos antes que a literatura memorialista dos HÍiiilo XVII e XVIII não seguiu também em outros casos irgru estética que exigia a separação dos objetos quotidianos e Intixo dos elevados e sérios pelo contrário ela desvenda e desmascara freqüentemente aquilo que em outras ocasiões é itpiewsnludo de forma realçada os príncipes e as suas côrtes Nrt que no caso de SaintSimon a coisa é levada muito mais liiulo do quo no caso de qualquer outro memorialista tem outra iihutitciu e outro nível No caso dos outros mesmo no dos rsnitores talentosos que se encontram entre êles justamente o prssoalquotidiano o nãoescolhido aquilo que só raramente pri mite uma visüo de conjunto contribui para que sejam con tidiiiuln antes dc mais nada pelo seu caráter documentário e ilm rulvo de unm cultura gozando das suas eventuais qualidades litiMArias como dc um brinde gracioso A anedota a intriga h apologia o exclusivamente pessoal preponderam demais os 376 MIMESIS acontecimentos políticos apresentados por assim dizer minuto a minuto e escolhidos segundo os limites do campo visual pes soal e dos interêsses de cada um não ocupam a melhor parti cipação humana ninguém lerá Retz com a prontidão para a participação humana como o faria com Shakespeare ou Mon taigne Também SaintSimon foi medido segundo a minha opinião demasiado freqüentemente com o mesmo metro apli cável àquelas êle foi considerado demasiado exclusivamente co mo documento da história da cultura Evidentemente é isso também e o é de forma mais perfeita do que os outros Mas êle é mais do que isso e é algo diferente Justamente aquilo que limita os outros nos seus efeitos humanoartísticos o ane dótico o pessoal o demasiado individual e freqüentemente ca rente de importância daquilo que relatam justamente aquilo é o seu forte justamente porque êle é o único que a partir do elemento individual qualquer não escolhido amiúde pessoal e parcial até o absurdo penetra inadvertidamente nas profundezas da existência humana Que distância do nível médio gracioso e superficial que encontramos nos textos da primeira metade do século XVII discutidos no início dêste capítulo Que contraste com a reali dade agradàvelmente ajeitada convidativa para o deleite ou com provando propagandjsticamente uma ideologia iluminista que êies oferecem ao leitor E todavia SaintSimon cabe muito mais na época durante a qual redigiu a sua obra do que no século XVII dentro do qual é repetidamente colocado porque se trata da côrte de Luís XIV embora não se trate da côrte de 1660 ou 1670 mas dos últimos decênios E mesmo êstes últi mos decênios em cuja existência penetrou eram no tempo em que êle escrevia um passado já remoto A primeira metade do século XVIII não é escassa em geral em homens pensa mentos e movimentos isolados que parecem prenunciar desen volvimentos muito posteriores e que estão em sua época total mente isolados Quem diria que Giambattista Vico que nasceu sete anos antes de SaintSimon e que escreveu a sua obra prin cipal algo antes do que SaintSimon a sua pertence ao século XVII Assim como Vico era anticartesiano SaintSimon era contrário ao grande rei e assim como aquêle admirava o seu adversário e estava profundamente impressionado por êle Mas há ainda outras semelhanças menos exteriores entre êstes dois contemporâneos tão diferentes entre si Ambos recorrem nas suas tendências e na peculiaridade dos seus espíritos a um pas sado que caiu da moda no seu tempo ambos escreveram obras que em contraste com o estilo elegantemente formulado e limi tado dos seus contemporâneos pareciam à primeira vista uma farragem disforme em ambos a pressão do impulso interno confere à expressão lingüística algo desusado por vêzes violen to extremamente expressivo contrário ao leve e amável gôsto da época e sobretudo ambos vêem o homem profundamente en gastado nas circunstâncias históricas da sua existência um dêles A CEIA INTERROMPIDA 377 o íaz totalmente por instinto na representação dos indivíduos que conviveram com êle o outro de forma especulativa numa visão do decurso da história universal ambos porém em con traste total com a ideologia racional e antihistórica do seu tem po SaintSimon não possuía ainda uma base teóricohistórica 1 1 0 sentido do historicismo cujas primeiras manifestações come çaram a se fazer sentir justamente então quando escreveu as suas memórias o individual da sua representação limitase ao ser humano isolado as fôrças históricas num sentido supra pcssoal e contudo individualistas estão fora do seu campo visual O que êle entende por história viva explicao nas im pressionantes Considérations préliminaires 1 5 s é sòmente ii compreensão do psicológico pessoal das pessoas que agem nssim como as relações e contrastes que disso resultam a fina lidade da sua historiografia segundo a indica é moralista c didática num sentido totalmente préhistoricista Mas a multi plicidade do real dentro do qual viveu e no qual se inflamou o seu gênio levouo para muito além daqueles limites O Músico Miller M i l l e r schnell auf und abgehend Einmal für I K allemal Der Handel wird ernsthaft Meine M Tochter kommt mit dem Baron ins Geschrei I m Mein Haus wird verrufen Der Praesident bekommt Wind und kurz und gut ich biete dem Junker aus F r a u D u hast ihn nicht in dein Haus geschwatzt hast ihm deine Tochter nicht nachgeworfen M i l l e r Hab ihn nicht in mein Haus geschwatzt hab ihm s Maedel nicht nachgeworfen wer nimmt Notiz davon Ich war Herr im Haus Ich haett meine Tochter mehr koram nehmen sollen Ich haett dem Major besser auftrumpfen sollen oder haett gleich alles Seiner Excellenz dem Herrn Papa stecken sollen Der junge Baron bringts mit einem Wischer hinaus das muss ich wissen und alles Wetter kommt über den Geiger F r a u schlürft eine Tasse aus Possen Geschwaetz Was kann über dich kommen Wer kann dir was anhaben Du gehst deiner Profession nach und raffst Scholaren zusamenn wo sie zu kriegen sind M i l l e r Aber sag mir doch was wird bei dem ganzen Commerz auch herauskommen Nehmen kann er das Maedel nicht Vom Nehmen ist gar die Rede nicht und zu einer dass Gott erbarm Guten Morgen Gelt wenn so ein Musje von sich da und dort und dort und hier schon herumbeholfen hat wenn er der Henkr veiss wns als gclocst hat schmcckt meinem O MÚSICO MILLER 379 guten Schlucker freilich einmal auf süss Wasser zu graben Gib du Acht Gib du Acht und wenn du aus jedem Astloch ein Auge strecktest und vor jedem Blut stropfen Schildwache staendest er wird sie dir auf der Nase beschwatzen dem Maedel eins hinsetzen und führt sich ab und das Maedel ist verschimpfiert auf ihr Lebenlang bleibt sitzen oder hats Handwerk versch meckt treibts fort die Faust vor die Stirn Jesus Christus F r a u Gott behüt uns in Gnaden M i l l e r E s hat sich zu behüten Worauf kann so ein Windfuss wohl sonst sein Absehen richten Das Maedel ist schoen schlank führt seinen netten Fuss Unterm Dach mags aussehen wies will Darüber guckt man bei euch Weibsleuten weg wenns nur der liebe Gott par terre nicht hat fehlen lassen Stoebert mein Spring insfeld erst noch dieses Capitel aus he da geht ihm ein Licht auf wie meinem Rodney wenn er die Witte rung eines Franzosen kriegt und nun müssen alle Segel dran und drauf los und ich verdenks ihm gar nicht Mensch ist Mensch Das muss ich wissen F r a u I M iller indo e vindo rapidam ente Oe uma vez por tôdas A coisa oitA ficando séria M inha filha começa a discutir com o barão M inha casa ê difamada O presidente fareja qualquer coisa e no fim das contas eu despeço o fidalgo Mulher N ão foi você que o apalavreou para que fosse à sua casa não jogou sua filha em seus braços Miller N ão o trouxe não joguei a môça em seus braços quem toma noin disso Eu era senhor em minha casa E u deveria ter lido melhor a cartilha à minha filha Eu deveria ter dito quatro verdades ao major ou devia ter delatado tudo logo à Sua Excelência o senhor papai O jovem barão ml douta com uma descompostura e a tormenta tôda cai sôbre o violinista M ulher sorve uma ta ç a Brincadeiras Palavrório O que pode vir por clrnn de você Quem pode fazerlhe nada Você segue a sua profissão e junta alunos onde possam ser achados Miller Mas digame por favor no que vai dar o negócio todo Casar com a môça êle não pode nem se fala em casamento e de uma Deus no acuda Bom dia Ora quando um dêsscs senhores nobres andou para cima e para baixo e se virou ao seu modo quando decide sabe o diabo o quê ê cloro que o meu bom bebedor gosta de encontrar água doce Tome cuidado Tome cuidado E se você puser um ôlho por trás de cada buraco e ficar de Miiarda diante de cada gôta de sangue êle vai tirála de baixo do seu nariz vai dolxar à môça alguma lembrança e dá o fora e a môça está difam ada para a tua vida tôda fica para tia ou gostou do ofício e o leva avante o punho ôbre a teita Jesus Cristo M ulher Deu nos proteja M ltlen N lo lho falta quem proteger Que outra intenção pode ter um tal iirôlna A menina 6 bonita esbelta tem bonitos pés N o sótão pode havor o que quer quo seja Quanto a isso a gente faz vista gorda com vocês nmthere to no térreo o bom D eui nada deixou faltar então o meu traquinas ramexo primeiro neste capítulo olhe lá então uma luz se lhe acende como o m tu Rodney quando fareja um francêi e entfio tôdas as velas têm de Hr Içadni e vamos c eu nem o condeno por isso Homem é homem I m o u devo saber M ulher 380 MIMESIS Êste comêço do drama burguês de Schiller Luísa Miller escrito em 178283 desenvolvese num quarto pequenoburguês o quarto do músico as indicações cênicas salientam isto pela observação a uma mesa está sentada a senhora Miller ainda de camisola e bebe o seu café A isto corresponde a forma de expressão dos dois interlocutores especialmente do homem cuja natureza bonachona e barulhenta nem chega a se satisfazer nes tes momentos de excitação com expressões saborosas gros seiras pequenoburguesas e populares Apesar da sua profis são não é absolutamente um artista mas algo assim como um artesão de categoria e não haveria quebra de estilo se um ator o fizesse falar em dialeto suábio Êle tem coração e sen timentos mas opiniões totalmente pequenoburguesas algumas linhas mais tarde na continuação da primeira cena que não mais transcrevemos o pensamento de que sua filha que teria ficado altiva pelo amor do barão no fim vai acabar deixando escapar um genro íntegro e honesto que teria entrado tão càli damente em minha freguesia o faz ficar ainda mais fora de si Nesta moldura desenrolase o drama Não só a família Miller e o secretário Wurm introduzem uma atmosfera pequeno burguesa mas o conflito todo é burguês e mesmo as duas pes soas de classe o presidente e o seu filho não têm nada daque le realçamento heróico afastado da quotidianidade da grande tragédia francesa O filho é nobre sensível idealista o pai dia bólico dominador e no fim também sensível ambos não são sublimes no sentido clássicofrancês Para isto o próprio espa ço uma pequena capital alemã com um príncipe absoluto é demasiado estreito Schiller não foi o primeiro que considerou tràgicamente êstes cenários e conflitos ou outros parecidos O romance sentimen talburguês e o drama burguês mencionamolo no capítulo pre cedente como comédie larmoyante tinhamse formado na In glaterra e na França fazia tempo na Alemanha onde a mistura estilística cristãcriatural se manteve atráves do século XVII c também mais tarde não foi totalmente suplantada pela influên via clássicofrancesa a evolução burguêsreaiista adquiriu formas especialmente vigorosas as influências de Shakespeare e as de Diderot e Rousseau encontraramse aqui as circunstâncias lo cais estreitas e dilaceradas forneciam temas arrebatadores sur giram quadros que eram simultâneamente sensíveis estreita mente burgueses realistas e revolucionários A primeira peça alemã do gênero a obra juvenil de Lessing Miss Sara Sampson 1755 surgida sob influência inglêsa e com o seu enrêdo sc desenvolvendo na Inglaterra não apresenta contudo nada de contemporâneo nem político mas Minna von Barnhelm surgida doze anos mais tarde cava fundo na mais atual história do seu tempo Goethe chama esta peça no sétimo livro da segundii parte de Dichtung und Wahrheit edição do jubileu 23 80 a primeira produção teatral tirada da vida importante de tcoi especificamente temporal tumbém unsimila um iituuliduilc lA O MÚSICO MILLER 381 da especial da peça que hoje dificilmente chama a atenção do leitor mas que então não deve ter contribuído pouco para a espécie que causou a hostil tensão em que se encontravam Prússia e Saxônia durante essa guerra a dos sete anos a qual também com o fim da mesma não foi desfeita de tal forma que a obra de Lessing deveria operar no palco para que a paz entre os ânimos pudesse ser restabelecida Ora Minna von Barnhelm é na verdade uma comédia não é uma tragédia bur guesa o seu tema já se diferencia desta última pela disposição pelo cenário pela independência da personagem principal fe minina e pela condição aristocrática das duas personagens prin cipais não obstante na bonachona severidade na simples pro bidade dos conceitos de honra e também na expressão lingüística há algo de burguês às vezes até comezinho de tal forma que se tende fàcilmente a sentir que os protagonistas aristocráticos como por vêzes a aristocracia alemã em geral da época viviam num ambiente burguêsdoméstico Sem dúvida Goethe diz com tôda razão naquela passagem pois êle mesmo o tinha sentido de forma imediata quando a obra apareceu durante o seu tempo de estudante em Leipzig que foi esta a produção que abriu com felicidade os olhos para um mundo mais elevado e impor tunte do que o literário e burguês em que a arte poética tinha ü c movimentado até então Mas de forma alguma abandonase o simples e sentimentalmente quase burguês das relações huma nas em prol da visão mais elevada que põe diante dos olhos ilo leitor ou do ouvinte a história contemporânea precisamente o ligação imediata das duas esferas constitui o atrativo da peça Ic uma forma totalmente diferente não menos importante apa rece a politização em Emilia Galotti aqui o tema principal da tragédia burguesa sedução de uma inocente está pôsto em relação com o fenômeno político do absolutismo de pequeno uNtudo Porém o elemento políticocontemporâneo tem ainda cm Lmilia Galotti um efeito relativamente fraco e não pròpria monte revolucionário o cenário não é alemão mas um princi pado italiano e embora seja dito expressamente que a família íiilotti não tem nenhum nível social nem aristocrático não ilcixu de ser verdade que a sua posição e atitude especialmente iiH do pai Odoardo não parecem burguesas mas pronunciada mente militares e aristocráticas A ligação propriamente dita entre o realismo sensívelbur guôi c os elementos políticoidealistas e de direitos humanos só leve lugar durante a época do Sturm und Drang e as suas pega da encontramse em quase todos os escritores dessa geração em Ciocthe em Heinrich Leopold Wagner em Lenz Leisewitz Klinger e alguns outros mesmo em J H Voss Entre as obras que ulndu hoje têm vida Luísa Miller é a que mais importa para o nosso problema pois procura apreender imediatamente a rea lulmlc prática e fundamentar o caso particular sôbre as circuns tAnciitH gerais o realismo sensfvelburguês áspero ou idílico que i exprime cm outrn parle freqüentemente em temas históricos 382 MIMESIS ou fantásticos ou pessoais e apolíticos de tal forma que não ocorre uma apreensão imediata e fundamental da realidade do tempo dirigese aqui sem rodeios nem inibições a partir da própria experiência para o presente político O ambiente atual e o interêsse político atual revolucionário até diferenciam êste drama da Emília Galotti de Lessing e também dos outros dra mas burgueses do tempo que eu conheço tratase na sua época de um caso extremo de reprodução fundamental e problemática da realidade com meios literários As primeiras palavras levam energicamente para o meio da situação prática O filho do todopoderoso ministro de um príncipe alemão corteja uma môça de classe pequenoburguesa vai freqüentemente à sua casa ficamos sabendo mais tarde que lhe escreve cartas cheias de sentimento que está preocupado pela sua instrução e lhe faz presentes A mãe uma mulher li mitada está tão encantada com o distinto namorado da sua filha e tão orgulhosa dêle que não reconhece o perigo O pai o reconhece teme complicações com o presidente teme o pior para a fama da sua filha para a sua felicidade terrena e para a salvação da sua alma pois casar com a moça êle não pode Só pode seduzila E depois a môça está estragada pra vida tôda fica pra tia ou gostou da coisa Sabe como o caso deve acabar com o seu bom senso comezinho Nem condena o major Homem é homem Mas ama sua filha e quer salvá la Quer ir ao presidente e delatar tudo por mais que se trate de uma ação que não está de acôrdo com a sua natureza a bem dizer não é homem que se imiscua em aventuras amorosas mas o perigo é demasiado grande O passo desesperado não chega a ser dado a evolução das coisas é demasiado rápida Êle pró prio precisa reconhecer na cena seguinte que é demasiado tar de a sua filha está demasiado emaranhada O mundo para o qual olha o observador é estreito até o desespêro tanto espacial quanto moralmente O estreito quarto de um pequenoburguês um ducado de território tão reduzido que como é dito várias vêzes se pode atravessar a fronteira a cavalo em menos de uma hora e limitações de classe nos costumes na sua forma mais antinatural e aleivosa Nos cír culos da côrte tudo é permitido mas não como nobre liberdade mas como insolência corrupção e hipocrisia entre o povo rege o conceito mais abafante de virtude uma môça que se entre gasse a um homem que depois não se poderia casar com ela segundo a ordem social vigente seria imediatamente considerada uma prostituta e desprezada como tal a própria ordem social vigente é reconhecida pelos súditos até pela própria Luísa como ordem universal e eterna a submissão surda tornase sempre um dever cristão e disso se aproveitam os donos do poder espe cialmente o presidente um lamentável tirano em miniatura u quem Schiller se esforça evidentemente em conferir alguma imponência alguma grandeza aparente embora falte para tanto tôda motivação interna pois os seu crimes e intrigas só tier 0 MÚSICO MILLER 383 vem aos fins limitadamente pessoais a saber obter e conservar o poder sem que a sua vontade chegue a ter algum efeito obje tivo e sem que chegue a ser expresso em parte alguma qualquer sentimento objetivo de vocação pelo mando A situação de Miller e de sua família é representada por tanto de forma trágica realista e contemporânea o realismo e a tragédia burguesa pelo menos à primeira vista não mais se limitam a escumar a superfície da vida social com a finalidade de construir um destino pessoal sentimentalmente trágico mas revolvem tôda a profundeza sóciopolítica do seu tempo parece haver aqui uma primeira tentativa de fazer ressoar num desti no individual tôda a realidade contemporânea para entender o fado de Luísa o ouvinte contemporâneo é obrigado a se repre sentar a estrutura da sociedade em que vive E contudo sente se que a êste realismo trágico quando comparado seja com o realismo medievalfigural seja com o realismo modernoprá tico lhe falta alguma coisa para atingir a plena realidade Luísa Miller é ainda muito mais uma peça política até uma peça demagógica do que legitimamente realista Certamente é uma peça política H A Korff escreveu a respeito algumas páginas magníficas Geist der Goethezeit I 209211 que resumirei aqui embora o tema não tenha uma ligação necessária mas somente casual com a idéia política de liberdade êste drama é contudo como poucos outros uma pu nhalada no coração do absolutismo luzes cruas iluminam as criminosas maquinações do despotismo principesco os súditos carecem de todos os direitos dependem da clemência ou da in clemência arbitrárias do príncipe dos seus favoritos e amantes e através do processo todo reconhecemse com espanto as atadu ras c a dependência interna dos dominados que são propria mente a explicação psicológica da possibilidade do despotismo principesco Isto é indiscutível e somente é de lamentar que Schiller oubesse muito mais exatamente contra o que lutava do que a fuvor do quê e que a peça dê fàcilmente a impressão de que liulo estaria em ordem se algumas pessoas dirigentes não fôssem libidinosas e patifes mas pessoas decentes Sem dúvida assim como a peça é ela deve ter causado um significativo efeito político mas precisamente as côres fortes e garridas da tendên cia revolucionária prejudicaram a autenticidade do realismo não é que eu queira dizer que a realidade da vida nos pequenos prin cipados absolutistas tenha sido melhor do que Schiller a mostra intiK dc qualquer forma era diferente e se dava menos melo dramaticamente No tempo em que Schiller escreveu Luísa Miller ainda não possuía a medida e a maturidade necessárias puni a criação artística Ê uma peça tempestuosa arrebatadora íirniiil extremamente eficaz mas é também depois de uma ob ucrvaçfto um pouco mais acurada uma peça ruim é um drama lltiH melodramático escrito por um homem genial A ação está ilcmiifiiiulo calculada com base cm intrigas c é amiúde inverossí 384 MIMESIS mil para se tratar de uma peça séria para mantêla em funciona mento as personagens com exceção de Miller devem ser pin tadas demasiado ingênuamente de prêto ou de branco as mani festações e decisões são por vêzes inesperadas e insuficiente mente motivadas o diálogo freqüentemente é desmesuradamente patético e sentimental e quando quer ser espirituoso agudo ou distinto tornase quase sempre rebuscado dificilmente compreen sível e não poucas vêzes involuntàriamente cômico leiase por exemplo a grande cena entre a Lady e Luísa 4 7 na qual quase tôdas as palavras são artificiosas Porém a imperfeição do senso artístico de Schiller no tempo da criação da peça não é ainda o decisivo a insuficiência do seu realismo está sobretudo no gênero do drama burguês em si tal como se havia formado durante o século XVIII êste gênero estava ligado ao pessoal doméstico comovente e sentimental não podia renunciar a isso e isso se opunha pelo tom e pelo nível estilístico a uma amplia ção do cenário social e a uma inclusão dos problemas político sociais gerais Contudo foi justamente ao longo dêste caminho que se deu a irrupção do político e do social no sentido mais amplo do têrmo na medida em que o comovente laço amoroso totalmente privado pela sua essência não mais encontrava a oposição de parentes pais ou tutores malvados ou obstáculos morais privados mas se defrontava com um inimigo público a ordem social estamental que era contra a natureza Já mostra mos em capítulos anteriores que no grande classicismo francês do século XVII o amor tinha ascendido ao nível dos mais ele vados objetos trágicos abstraídos da realidade quotidiana como mais tarde nos começos do romance de costumes na Europa ocidental assim como da comédie larmoyante voltou a entrar em contato com a realidade comum da vida perdendo contudo em dignidade tornouse mais nitidamente erótico comovente e sentimental nesta forma o amor foi tomado pelos revolucioná rios do Sturm und Drang que lhe conferiram novamente seguin do as pegadas de Rousseau mas sem abandonar no mais mínimo o seu caráter burguês realista e sentimental a mais elevada dig nidade trágica o amor tornouse para cada ser humano dentro de todos os ambientes sublime como o mais natural e imediato as suas mais simples e puras relações pareceram condições de uma virtude natural e a sua liberdade diante da mera convenção objeto do direito natural inalienável Assim o amor tornouse em Luísa Miller o ponto de partida do politicamente revolucionário e de um realismo poli ticamente fundamentado Mas a base de uma estória de amor era demasiado estreita e o estilo sentimental e comovente de masiado inapropriado para a criação de uma realidade autêntica O caráter fortuito pessoal e sentimental do caso específico so licita a atenção em demasia para dar ao conflito o rigor neces sário o presidente e Wurm têm de scr apresentados como patifes completos segundo o modelo dos melodramas familiares sc nfto o fôssem c se além disso o presidente não lóssc ohrinmlo c O MÜSICO MILLER 385 sualmente nesse preciso instante a casar com a amante do prín cipe seria possível uma saída ou pelo menos um adiamento A respeito das circunstâncias gerais da vida no principado ouvi mos somente alguns pormenores isolados desconexos e nem sempre bem compreensíveis êstes são sempre de gênero horripi lante quer se trate da venda de filhos da terra para servir como soldados na América quer se trate das coisas da côrte tal como são desvendadas na grande discussão entre Fer dinand e a Lady 2 3 sempre são apresentadas com grande pathos terrífico sempre deixam a impressão de que o príncipe e a côrte não têm função alguma mas simplesmente depaupe ram o povo com a sua prodigalidade e se utilizam dêle para os seus viciosos divertimentos A respeito da problemática interna do emaranhamento histórico da função das causas de deca dência moral dos dominadores das condições práticas do duca do ouvimos e sentimos pouco menos que nada Isto não é rea lidade é melodrama muito apropriado para desencadear um forte e sentimental efeito político mas não é uma prestação de contas artística da realidade da época Tratase de uma carica tura mesmo quando descreve condições e acontecimentos reais porque ao desprendêlos das suas raízes ao roubarlhes a sua essência interna sôbreiluminaos entusiástica e tendenciosamen te e o motivo talvez mais importante para a apreensão da estru tura social aquêle que também H A Korff salienta a submissão interna 3 4 é mal entendida por Ferdinand porque a intriga rientada reconhecem a opressão que é exercida sôbre êles como direito eterno êste motivo não aparece com suficiente niti dez a negativa de Luísa surgida da sua carência de liberdade interna 3 4 é mal entendida por Ferdinando porque a intriga exige que êle nutra uma suspeita ciumenta contra ela a qual é totalmente inverossímil depois de tudo o que a antecedeu de tal forma que o interêsse do espectador é imediatamente des viado do motivo da negativa da mesma forma Luísa está tão fornida de comovente inocência tão cheia de sentimentos no bres que a consciência da sua limitação e pusilanimidade não pode chegar espontâneamente ao espectador mas somente ao crítico que analise a ela e a Schiller pois não é que mesmo naquela cena ela parece uma heroína que se sacrifica e mesmo quando cai na ridícula trapaça de Wurm parece grande e tremenda Contudo esta trama é de grande importância no contexto da nossa pesquisa já pelo fato de que entre as obras conhe cidas do classicismo e do romantismo alemão acabou sendo a unicu no seu género Mais tarde na época de Goethe não mais se tentou considerar tragicamente um ambiente burguês médio c contemporâneo com base em sua condição social atual total mente sòinho no seu nível estilístico ficou sobretudo o músico Millcr uma excelente figura muito muis unitária e natural do iie a da sua filha O próprio Schiller e em geral o movimento ila literatura alemã afastaram se do realismo do presente que 386 MIMESIS mistura enèrgicamente os estilos e representa concreta e rigo rosamente o político e o econômico a mistura de estilos entu siàsticamente recebida sob os auspícios de Shakespeare aparece quase exclusivamente em assuntos históricos ou poéticofantás ticos quando trata do presente aferrase a âmbitos pequenos e apolíticos ou se apresenta de forma idílica ou irônica exclusi vamente dirigida para o pessoal o realismo enérgico e a pro blemática temporal considerada tràgicamente nunca coincidem Isto é tanto mais digno de atenção e se se quiser tanto mais pa radoxal quanto foi justamente o movimento espiritual alemão da segunda metade do século XVIII o que criou o fundamento estético para o realismo moderno refirome àquilo que recente mente denominouse historicismo O modo de observar a vida do ser humano e da sociedade humana é fundamentalmente o mesmo quer se trate de assuntos do passado ou do presente uma modificação do modo de obser var a história necessàriamente se transfere sem demora à ob servação dos assuntos presentes Quando se reconhece que as épocas e sociedades não devem ser julgadas segundo uma con cepção modelar daquilo que é absolutamente digno de esforço mas que cada uma delas deve ser julgada segundo as suas pró prias pressuposições quando se contam entre estas pressuposi ções não mais sòmente as naturais como clima e solo mas também as espirituais e históricas se desta forma desperta o senso da eficiência das fôrças históricas da incomparabilidade dos fenômenos históricos e da sua constante mobilidade quando se adquire o conceito da unidade vital das épocas de tal forma que cada uma delas apareça como uma unidade cuja essência se reflete em tôdas suas formas fenomênicas quando finalmen te se impõe a convicção de que o importante do acontecimento não é apreensível mediante conhecimentos abstratos e gerais e de que o material para tanto não deve ser procurado sòmente nas partes elevadas da sociedade e nas ações capitais ou públicas mas também na arte na economia na cultura material e espiri tual nas profundezas do diaadia e do povo porque só lá pode ser apreendido o verdadeiramente peculiar o que é intimamen te móvel o que tem validade universal tanto num sentido mais concreto quanto num sentido mais profundo então é de esperar que tais noções sejam também aplicadas à atualidade de tal forma que também ela apareça como sendo incomparàvel mente peculiar movimentada por fôrças internas e em constante desenvolvimentoquer dizer como um pedaço de história cujas profundezas quotidianas e cuja estrutura interna de conjunto se tornam interessantes tanto no seu surgimento quanto na sua direção evolutiva Ora é conhecido o fato de que os conceitos enumerados logo acima que se concentram todos numa determi nada direção espiritual que se chama historicismo desenvolve ramse totalmente na Alemanha durante a segunda metade do século XVIII embora já tivesse havido antes e cm outros luga res correntes que prepararam o historicismo c que influencia O MÜSICO MILLER 387 ram a sua formação não deixa de ser verdade que a sua crista lização ocorreu na Alemanha na época de Goethe Não preci samos nos dedicar a esta questão pois a seu respeito já foi escrita muita coisa e muita coisa excelente o livro de Friedrich Mei necke sôbre o surgimento do historicismo München e Berlim 1936 constitui a mais bela e madura apresentação que conheço Na Alemanha de então a revolta contra o gôsto francês clás sico e racionalista foi levada aos seus extremos com isso su perouse aquilo que chamamos separação de estilos a segrega ção entre o realismo e a alta tragédia o que constituiu um pres suposto básico para um realismo tanto histórico quanto contem porâneo de nível trágico E contudo pelo menos o segundo o realismo contemporâneo não atingiu uma formação plena Até mesmo o tratamento literário de assuntos históricos que havia começado nas obras de juventude de Goethe com tão grande veracidade sensível voltou a cair numa espécie de separação estilística na posterior evolução de Schiller a disposição dualis ta de Schiller que dividia rigorosamente a idéia da sensação foi se impondo cada vez mais e o seu interêsse se dirigiu mais tarde muito mais para os efeitos do moral sôbre o homem e para a sua liberdade fundada com base no moral do que para a sua peculiaridade sensível historicamente engastada Mas o que nos preocupa aqui sobretudo é o realismo apli cado a temas coetâneos e tentaremos determinar as causas que impediram a sua plena formação apesar das pressuposições es téticas tão favoráveis Elas estão nas mesmas circunstâncias da época na relação dos maiores escritores e em geral das clas ses dirigentes da Alemanha com essas circunstâncias tratarse 6 sobretudo de Goethe em parte devido à sua influência do minadora em parte também porque nenhum outro escritor levava consigo tanta disposição natural para a apreensão do sensível e do real As circunstâncias contemporâneas na Alemanha eram difi cilmente apropriadas para um realismo generoso o quadro so cial era heterogêneo a vida do conjunto realizavase numa confusão de pequenas paisagens históricas e de parcelas que o haviam constituído sob circunstâncias dinásticopolíticas Em cada uma delas o caráter estreitante e por vêzes asfixiante era compensado por um certo conforto devoto e pelo sentimento de ti ter um embasamento histórico tudo o que era mais favorável A especulação à introspecção ao autoencasulamento e à obsti niiçáo local do que a uma apreensão decidida do prático e do le n i que abrangesse contextos maiores e espaços mais amplos O primórdios do historicismo alemão mostram claramente os ruços deixados pelas circunstâncias nas quais se formou Justus Mooscr baseou os seus pensamentos na sua penetração na evolu çAo histórica de uma região muito limitada a diocese de Osna hrtlck Hcrder pelo contrário viu o mais geral e o mais amplo c tumhém o profundamente peculiar no histórico mas apresen iiivii o dc lormi tão pouco concreta que dôle não se pode 388 MIMESIS obter imediatamente nenhum apoio para a construção do real Nêles já se anunciam as direções principais que o historicismo alemão conservou durante longo tempo tradicionalismo parti cular e popular por um lado e um esforço especulativo pela to talidade pelo outro ambas estão muito mais interessadas no espírito supratemporal da história e no processo de gestação do existente do que nos germes atualmente existentes de um futuro concreto assim ficou sendo em tudo o essencial até Karl Marx e o fato de que tudo ficou assim deviase em boa parte ao fato de que o concretamente futuro o qual irrom pendo de fora anunciavase a partir dos últimos decênios do século XVIII de forma cada vez mais imperiosa produzia na maioria dos alemães de destaque atitudes de espanto e de de fesa A Revolução Francesa com tôdas as suas irradiações as reviravoltas que trouxe os germes de uma nova estrutura social que se desenvolveram a partir dela de forma irresistível apesar de tôdas as reações encontrou uma Alemanha passiva defensiva alienada Não eram só os ameaçados podêres do passado os que a enfrentaram inamistosamente mas também o ainda jovem movimento espiritual alemão e aqui defrontamonos com Goethe É conhecida a relação de Goethe com a Revolução com a época napoleônica e com as guerras de libertação assim como com as tendências do século XIX que já estavam se prenun ciando foi o resultado da sua origem antigoburguesa e esta mental da singular posição social que escolheu como forma de vida das suas inclinações e instintos mais profundos e finalmen te da sua formação que o levava cada vez mais a honrar o que se formava paulatinamente e a abominar o que fermentava de maneira informe e se opunha a qualquer articulação A sua posição política não nos interessa aqui como objeto em si mas só de forma mediata na medida em que determinou a sua ma neira de tratar literàriamente os objetos contemporâneos Aquelas dentre suas obras que se ocupam total ou parcial mente mediata ou imediatamente com acontecimentos revolu cionários têm tôdas em comum o fato de não se imiscuírem com as fôrças dinâmicas em funcionamento Por vêzes apre sentam da forma mais concreta sintomas isolados também re flexões e conseqüências que se mostram no destino de exilados de regiões fronteiriças atingidas de outros indivíduos famílias ou grupos tão logo se trata da coisa em conjunto Goethe voltase para o geral e o moralizante por vêzes aborrecido por vêzes com uma sabedoria alegremente pessimista acêrca das coisas do mundo e do estado A um espírito ativo produtivo assim escreve nos Anais de 1793 a um homem de intenções verdadeiramente patrióticas que fomenta a literatura nacional não se lhe tomará a mal que o espante a derrubada de tudo o que existe sem que o mínimo pressentimento lhe diga o que poderá surgir de melhor ou mesmo de diferente de tudo isso Concordarseá com êle quando o agasta o fato de tais influências se estenderem para a Alemanha c dc pessoas loucas O MÚSICO MILLER 389 iité indignas tomarem o mando Era justamente o agasta mento o que lhe impedia ocuparse com as transformações so ciais de forma tão amorosamente genética com que se ocupou de tantos outros assuntos uma forma que como êle mesmo sa bia melhor do que qualquer outro é a única que pode levar a que os pressentimentos falem Numa bela página do seu livro sôbre 0 historicismo II 579 diz Meinecke o que é que Goethe apreen de do histórico o lento devir e crescer das conformações históri cas a partir de fôrças impulsoras internas a conformação do indi vidual a partir do típico e a intervenção de fôrças incalculáveis do destino neste crescimento Seria de tal forma prossegue Meinecke que sempre perceberia a corrente vital geral da história mas só escolheria nela os fenômenos que pudesse dominar imediatamente com os seus mais próprios princípios do conhecimento por que os amava Assim viria à luz o princípio seletivo de Goethe frente à história tal como está contido no pesaroso epílogo da 1liuhtigen Schilderung florentinischer Zustaendé no apêndice A tradução de Benvenuto Cellini Ali Goethe diz Haette Lorenzo o magnífico laenger leben und eine fort mhrcitcnde stufenhafte Ausbildung des gegriindeten Zustandes stillthaben koennen so wiirde die Geschichte von Florenz eines der Hchocnsten Phaenomene darstellen allein wir sollen wohl im 1 mil der irdischen Dinge die Erfüllung des schoenen Moeglichen imr sclten erleben 2 Nestas declarações de Meinecke há algo que não me pa leec todavia totalmente claro pareceme que Goethe teria tam bém podido dominar imediatamente com os seus mais próprios princípios do conhecimento as partes da história que deixou de liulo se as tivesse amado A sua aversão impediulhe aplicar iiquêlcs princípios do conhecimento e por isso os fenômenos iifto Re lhe desvendavam A dinâmica das lutas sociais e o subs Imto econômico da história florentina que não considerou ou liiiiiiuou só muito de leve parafraseio com estas palavras a ohm ile Meinecke as agitações burguesas que flagelou como k mhIo defeitos de um estado mal governado e policiado tudo iito é muito desgradável para Goethe e por isso afastase de liu ou qiiundo se vê necessitado a se ocupar de tais coisas trans Iiu iiiiihc de observador do dialéticotrágico em moralista clás lio em tais momentos pareceme não mais sente a corrente vil ui geral da história O cumprimento do belo possível está mi um opinião no florescimento das grandes culturas aristocrá litiu dentro das quais os indivíduos importantes podem desen volvo se tranqüilamente e o conceito de ordem que paira no uru rupirito é bastante cudcmonístico Precisamente a sua aver nut cmitru tudo o que fôsse violento ou explosivo que não dei 1 Sr limicmin o Munníflco iIvcmc podido viver mais longamente e se iivMM nIiIo Kvol iintu progrcMlvn o yrndunl cvoluçfto da altuaçlo crlndn rniltii hulllllu d l liircnvu emintltulrwlu num do mnl beto fenAmenos tjM nrt nfumcnic itavcmo cHpcilmcnUr no riccuriin do cols terronex it iHVHinnilo do hclti p im lv rl 390 MIMESIS xasse também de ser um resultado da corrente vital da história explica que frente a ela sempre permaneça no sinto mático pessoal e moralizante explica que tenha dado tanta importância à história do colar feita de anedotas e intrigâs que não era senão um sintoma de certas circunstâncias dos círculos mais elevados e que não manifestou absolutamente qualquer coi sa de essencial acêrca das fôrças históricas da crise revolucionária explica que estivesse inclinado durante longo tempo a ver na importante figura de Napoleão um final que desvendaria o enigma de forma tão definitiva quanto inesperada Kampagne in Frankreich perto do fim explica enfim para citar dentre as suas muitas declarações uma bem marcante que nos Wan derjahre a propósito de uma polêmica contra opiniões domi nantes na ciência que escrevesse a seguinte frase Em todo caso o estado e a igreja poderão encontrar motivos para se de clararem dominantes pois têm a fazer com a massa recalcitran te e se a ordem deve ser mantida tanto faz por quais meios o será mas nas ciências é necessária a mais absoluta liberdade Wanderjahre livro 3 cap 149 Tais atitudes e declarações são importantes para nós aqui não tanto de forma imediata na medida em que mostram a ideologia conservadora aristocrática e antirevolucionária de Goethe quanto de forma mediata pois esclarecem de que forma Goethe foi impedido pela sua ideologia de apreender os processos revolucionários com o seu método genéticorealistasensível que lhe era habitual em outros casos Não gostava dêles procurava antes livrarse dêles do que com preendêlos e encontrava a libertação num moralismo em parte rejeitante em parte serenamente filosófico representam para êle o ordinário que nos sujeita a todos o vil que é o poderoso o que quer que se diga Com isto concorda o fato de os restantes escritos de cará ter sério que descrevem situações sociais do presente apresen tarem os destinos das pessoas sôbre uma base firme antigobur guesa e estamental sem que os movimentos políticoeconômicos profundos da época se façam sentir muito O espaço e o tempo estão freqüentemente determinados somente de forma muito geral de tal maneira que apesar da grande evidência dos aspec tos individuais parece que nos movimentamos no que diz res peito ao conjunto políticoeconômico num campo incerto não identificável com segurança A obra que de longe é a mais realista é Wilhelm Meisters Lehrjahre Jacobi achou nela como Goethe relata nos Anais 1795 que o real além do mais pertencente a círculos infe riores não é edificante Precisamente êste real encantou outros contemporâneos e pósteros mas não se deve encobrir com isto quão estreitamente está limitado o âmbito do real não se fala em situações concretas de ordem política ou políticoeconômica as reviravoltas contemporâneas na divisão social mal aparcccm são mencionadas é claro uma vez a saber quiimlo um grupo O MÛS1CO MILLER 391 de pessoas das classes dirigentes toma medidas de precaução contra as agitações revolucionárias como atualmente nada se ja menos aconselhável do que ser proprietário num só lugar confiar o seu dinheiro a uma só praça espalhamse por tôdas as partes do mundo adquirem propriedades em tôda parte e asseguramse mutuamente a existência para o único caso de uma revolução política privar um ou outro totalmente das suas posses livro 8 cap 79 Tais medidas de precaução são di ficilmente compreensíveis a partir do próprio livro pois nas suas outras partes especialmente nas anteriores nada se faz sentir de uma inquietação políticosocial que justifique um plano de segurança ainda insólito nessa época O mundo burguêsesta mcntal repousa diante dos olhos do leitor numa calma quase atemporal Quando se lê por exemplo acêrca do pai de Gui lherme o seu avô o pai de seu amigo Werner acêrca dos seus hábitos coleções negócios e opiniões temse a impressão de es tnr numa sociedade totalmente calma que se modifica muito gradualmente só pela sucessão das gerações Quão perfeita mente tranqüila e incomovível parece ser a estrutura estamental na carta que o jovem Guilherme escreve ao seu amigo Werner pura justificar a sua intenção de se tornar ator Diz assim li vro 59 cap 39 Ich weiss nicht wie es in fremden Laendern ist aber in Deutschland ist nur dem Edelmann eine gewisse allgemeine wenn ich sagen darf personelle Ausbildung moeglich Ein Bür ger kann sich Verdienst erwerben und zur hoechsten Not seinen icist tiusbilden seine Persoenlichkeit aber geht verloren er mag ich stellen wie er will Wenn der Edelmann im gemeinen Leben gar keine Grenze kennt wenn man aus ihm Koenige oder koenigsaehnliche Figuren iichuffcn kann so darf er überall mit einem stillen Bewusstsein vor seinesgleichen treten er darf überall vorwaerts dringen ans tatt dass dem Bürger nichts besser ansteht als das reine stille iefülil der Grenzlinie die ihm gezogen ist Er darf nicht fra gen Was bist du sondern nur Was hast du welche Einsicht welchc Kenntnis welche Faehigkeit wie viel Vermoegen Wenn iler ldclmann durch die Darstellung seiner Person alles gibt o gibt der Bürger durch seine Persoenlichkeit nichts und soll nicht geben Jener darf und soll scheinen dieser soll nur sein und was er scheinen will ist laecherlich oder abgeschmackt Jener oll tun und wirken dieser soll leisten und schaffen er soll einzelne Faehigkeiten ausbilden um brauchbar zu werden und es wird schon vorausgesetzt dass in seinem Wesen keine Harmonie I noch sein dürfe weil er um sich auf eine Weise brauchbar zu machen alles übrige vernachlaessigen muss An diesem Unterschiede ist nicht etwa die Anmassung der lidelleutc und die Nachgiebigkeit der Bürger sondern die Ver eisung der Gesellschaft selbst schuld ob sich daran einmal etwa uendern wird und was sich aendern wird bekümmert mich wnlg genug ich habe wie die Sachen jetzt stehen an mich 392 MIMESIS selbst zu denken und wie ich mich selbst und das was mir cin unerlaessliches Bediirfnis ist rette und erreiche Ich habe nun einmal gerade zu jener harmonischen Ausbil dung meiner Natur die mir meine Geburt versagt eine unwi derstehliche Neigung 3 Também isto é um importante trecho da grande confissão também Goethe era filho de uma família burguesa da ordem social estamental também êle possuía uma inclinação irresistí vel para aquela formação harmônica da sua natureza também o seu ideal de formação estava enraizado na concepção esta mentalaristocrática da universalidade elevada e nãoespecializadá e da aparência embora nas suas mãos evoluísse para uma de dicação universal aos assuntos especiais também êle procurava como Wilhelm Meister um caminho totalmente individual que conduzisse para fora da burguesia sem se preocupar com o fato de que alguma vez pudesse mudar algo na constituição da sociedade e o quê e encontrou muito mais rápida e segura mente do que Wilhelm Meister que espera atingir a sua meta como ator o caminho que estava de acôrdo com os seus dese jos quando contrariando o instinto desconfiado do seu pai se guiu o chamado do duque de Weimar criandose ali aquêle pôsto singular universal no espaço mais estreito que estava feito integralmente à sua medida Quando dezessete anos mais tar de voltava da campanha na França onde compreendera da forma mais penetrante que a partir daqui e de hoje iniciase uma nova época da história universal chegalhe em Tréve ris uma carta da sua mãe o seu tio que havia sido vereador por cujo motivo os seus parentes próximos foram excluídos da posição de senador em Frankfurt falecera perguntavase se aceitaria agora a posição de senador caso fôsse escolhido In dubitàvelmente deveria recusar fazia tempo que havia decidi do diferentemente acêrca da sua vida É instrutivo ler as consi derações que formulou nesta ocasião e os motivos que aduziu 3 NSo sei como é em países estrangeiros mas na Alemanha só ao nobre é possível uma certa formação geral e se assim posso dizer pessoal Um burguês pode obter lucros e em caso de extrema necessidade ilustrar o seu espírito mas a sua personalidade perdese faça o que q u iser Uma vez que o nobre não conhece limite algum na vida comum um a vez que com êle é possível criar reis ou figuras semelhantes a reis pode apancccr com a consciência tranqüila em tôda parte diante dos seus iguais pode avançar em tôda parte enquanto que ao burguês não cabe nada melhor do que a sen sação pura e simples dos limites que lhe são postos NSo pode perguntar o que és mas sòmente o que tens Que inteligência que conhecimentos que capacidades que fortuna Enquanto o nobre dá tudo pela representação de sua pessoa o burguês nada dá através da sua personalidade e nada deve dar Aquêle pode e deve parecer êste só deve ser o que êle quer parecer é ridículo ou de mau gôsto Aquêle deve fazer e agir êste deve realizar produzir deve aperfeiçoar habilidades isoladas para tornarse útil e já se pres supõe que não há harmonia em seu ser nem deveria havêla pois êle para se fazer útil de uma forma deve negligenciar todo o resto Desta diferença não são culpados como poderia parecer a arrogância du nobreza nem a transigência da burguesia mas a constituição da própria sodo dade se alguma vez algo disto m udará e o quê mudará importame pouco basta com que eu do modo como estão as coisas tenha de pensar em nilm e na m aneira como posso salvar e atingir a mim mesmo o aquilo que mo è uma necessidade indispensável Ora tenho uma inclinação irresistível precisamente pura formação harmo harmoniosa da minha natureza quo o meu nascimento me recusa O MÜSICO MILLER 393 Kampagne in Frankreich Tréveris 29 de outubro Encerram se com as seguintes frases Denn wie sollt ich mich in dem ganz eigentümlichen Kreise taetig wirksam erzeigen wozu man vielleicht mehr als zu jedem ändern treulich herangebildet sein muss Ich hatte mich seit so viel Jahren zu Geschaeften meinen Faehigkeiten angemessen gewoehnt und zwar solchen die zu staedtischen Bedürfnissen und Zwecken kaum verlangt werden moechten Ja ich durfte hinzu fügen dass wenn eigentlich nur Bürger in den Rat aufgenommen werden sollten ich nunmehr jenem Zustand so entfremdet sei um mich voellig als einen Auswaertigen zu betrachten 4 O panodefundo social nas Wahlverwandtschaften é ainda mais imóvel do que no Wilhelm Meister Pelo contrário nas obras autobiográficas aparece a mais vivaz movimentação da época os mais diferentes cenários acontecimentos e situações du vida pública são apresentadas com verdade sensível Porém nus suas mudanças estão determinadas pelo andamento da vida c da evolução de Goethe e cada um dêles tornase objeto de representação menos de per si do que segundo a sua significa ção para Goethe O verdadeiro interêsse que se evidencia no tratamento dinâmicogenético reside preponderantemente no pes h o i I e nos movimentos espirituais dos quais Goethe participou enquanto que as circunstâncias públicas embora sejam apre ncntudas freqüentemente com vivacidade e plasticidade são apreen didus como situações dadas e estáticas O resultado disso é que Goethe nunca representou a reali dnde da vida social que foi sua contemporânea de forma dinâ micu nunca como germe de situações futuras ou em estado de gcitnção Quando se dedica às tendências do século XIX isso ueontcce na forma de observações gerais que são quase sempre vtilorativas preponderantemente desconfiadas e rejeitantes A iwolução técnica do maquinismo a participação crescente das miissus na vida pública consciente eram coisas que o desagra duvum previa um achatamento da vida espiritual não via nada que pudesse compensar tal perda Estava também como se sa lie afastado do patriotismo político que sob circunstâncias mais felizes poderia ter conduzido precisamente então para uma uniformização das condições sociais na Alemanha se isso tives Hc acontecido então talvez também a acomodação da Alemanha i nova realidade em gestação na Europa e no mundo poderia ter nulo preparada mais calmamente conformada com menor su jciço à insegurança e à violência Goethe lamentava a situa çfto política da Alemanha mas sem paixão e consideravaa co mo iludu Num escrito polêmico Literarischer Sansculottismus MK Poli como poderia mostrarme ativo e eficiente nos círculos tão peculia I pura o qual 6 necessário mais do que talvez para quaisquer outros um a pifpurayfio dedicada Faz tantos anos que me acostumei com assuntos na iiiftlliU da minha faculdades e precisamente com assuntos que difldlmente loilein er apropriado para ai necessidades e finalidades civis Sim poderia Mucccniar qu se a bem dizer ó burguoscs deveriam ser admitidos no con ho tou miora tio alienado dêe estado quo devo considerarme inteira itinito corno um eMruntfcho 394 MIMESIS edição do jubileu 36 139 declara que obras clássiconacionais só podem surgir quando o autor encontre na história da sua nação grandes acontecimentos e os seus sucessos em unidade feliz e significativa na Alemanha êste não seria o caso Vejase a nossa situação a dos escritores alemães tal como era e tal como é observemse as circunstâncias individuais nas quais se formam os escritores alemães e facilmente se encon trará o pontodevista a partir do qual devem ser julgados Na Alemanha não há em parte alguma um ponto central de for mação social da vida onde pudessem se reunir os escritores pa ra se formarem cada um na sua especialidade segundo um gê nero segundo um sentido Nascidos dispersos educados das formas mais diferentes abandonados quase sempre somente a si próprios e às impressões de circunstâncias totalmente diferen tes Contudo lamentase só um pouco pois pouco antes dissera Mas também não se deve censurar à nação alemã o fato de a sua situação geográfica a unificar tão firmemente en quanto a sua situação política a despedaça Não queremos de sejar as reviravoltas que poderiam ser preparadas na Alemanha por obras clássicas Na verdade esta dissertação foi escrita já em 1795 porém também mais tarde Goethe não quereria desejar as reviravoltas que poderiam ter criado na Alemanha um ponto central de formação social da vida Ê completamente maluco desejar que Goethe tivesse sido diferente do que foi os seus instintos as suas inclinações a posição social que se criou os limites que impôs à sua atividade fazem parte dêle de nada disso podese prescindir sem destruir o conjunto Mas voltando os olhos para o que aconteceu da quele tempo para cá temse a tentação de imaginar quais teriam sido os efeitos sôbre a literatura e sôbre a sociedade alemãs se Goethe com a sua fôrça sensível com sua mestria da vida com a ampla liberdade do seu olhar tivesse tido uma maior in clinação e dedicado maior vontade criadora à moderna estru tura da vida que estava então em formação A fragmentação e a limitação do realista ficaram sendo as mesmas também nos seus contemporâneos mais jovens e nas gerações imediatas até perto do fim do século XIX as obras mais importantes que de alguma forma tentaram conformar sèriamente temas da sociedade contemporânea permaneceram no âmbito semifantástico ou idílico ou pelo menos no estri to âmbito do local apresentam o quadro do econômico social e político como sendo estático Isto vale igualmente para escri tores tão diferentes e importantes como Jean Paul E T A Hoffmann Jeremias Gotthelf Adalbert Stifter Hebbel Storm até mesmo com Fontane o realismo social mal penetra em profundidade e o movimento político na obra de Gottfried Keller é pronunciadamente suíço Talvez Kleist ou mais tarde Büchnef teriam podido trazer uma mudança mas nenhum dou dois estava fadado a ter uma evolução livre morreram dema siado cedo Na Mansão de la Mole Julien Sorel o herói do romance Le Rouge et le Noir de Stendhal 1830 um jovem ambicioso e apaixo I J n a d o filho de um pequenoburguês do Franco Con I b d a d o consegue chegar através de um encadeamento de circunstâncias do seminário eclesiástico de Besançon onde estudava teologia a secretário de um grande senhor em Paris o marquês de La Mole cuja confiança conquista Matilde a filha do marquês é uma môça de dezenove anos espirituosa mimada cheia de fantasia e tão altiva que a sua própria situação c o seu próprio ambiente começam a aborrecêla O surgimento da sua paixão pelo domestique do seu pai é uma obraprima de Stendhal muito admirada Uma das cenas preparatórias nas quais começa a despertar o seu interêsse por Julien é a seguinte do quarto capítulo do segundo livro Um matin que labbé travaillait avec Julien dans la biblio thèque du marquis à léternel procès de Frilair Monsieur dit Julien tout à coup dîiïer tous les jours avec madame la marquise estce un de mes devoirs ou estce une bonté que lon a pour moi Cest un honneur insigne reprit labbé scandalisé Ja mais M N lacadémicien qui depuis quinze ans fait une cour assidue na pu lobtenir pour son neveu M Tanbeau Cest pour moi monsieur la partie la plus pénible de mon emploi Je mennuyais moins au séminaire Je vois bâiller quelquefois jusquà mademoiselle de La Mole qui pourtant doit lire accoutumé à lamabilité des amis de la maison Jai peur de mendormir De grâce obtenezmoi la permission daller dî ner à quarante sous dans quelque auberge obscure Labbé véritable parvenu était fort sensible à lhonneur de dtnor avec un grand seigneur Pendant quil sefforçait de 396 MIMESIS faire comprendre ce sentiment par Julien un léger bruit leur fit tourner la tête Julien vit mademoiselle de La Mole qui écou tait Il rougit Elle était venue chercher un livre et avait tout entendu elle prit quelque considération pour Julien Celuilà nest pas né à genoux pensatelle comme ce vieil abbé Dieu quil est laid A dîner Julien nosait pas regarder mademoiselle de La Mole mais elle eut la bonté de lui adresser la parole Ce jourlà on attendait beaucoup de monde elle lengagea à rester Esta cena faz parte como foi dito dos sucessos que servem de base e preparam um entrecho amoroso passional e extrema mente trágico A sua função e o seu valor psicológico não serão discutidos aqui isto fica fora do nosso objetivo O que nesta cena nos interessa é o seguinte seria quase completa mente incompreensível sem o conhecimento mais exato e deta lhado da situação política da estratificação social e das condi ções econômicas de um momento histórico muito definido a saber a França pouco antes da revolução de julho de acôrdo com o subtítulo do romance apôsto pelo editor Chronique de 1830 Já o enfado à mesa e nos salões desta família da alta aristocracia acêrca do qual Julien se queixa não é um enfado comum não provém da casual estupidez pessoal dos sêres humanos que ali se encontram há entre êles também alguns altamente instruídos espirituosos até importantes e o senhor da casa é inteligente e amável tratase com êste enfado muito mais de um fenômeno político e sóciohistórico da época da Restauração No século XVII ou até no século XVIII os salões correspondentes eram tudo menos aborrecidos Mas o ensaio empreendido pelo governo bourbônico com meios insu ficientes para reimplantar condições definitivamente superadas e condenadas fazia tempo pelos acontecimentos cria nos círculos oficiais e dirigentes dos seus adeptos uma atmosfera de mera convenção de falta de liberdade e de afetação contra a qual o espírito e a boa vontade das pessoas implicadas eram impo 1 Um a manhã em que o abade trabalhava com JuJjão na biblioteca do marquês no eterno processo de Frilair Senhor disse Juüão de repente jantar todos os dias com a senhora marquesa é um dos meus deveres ou é um a bondade que se tem por mim Ê uma honra insigne respondeu o abade escandalizado Nunca o senhor N o acadêmico que desde h á quinze anos faz uma côrtc assídua pôde obter êsse favor para o seu sobrinho o senhor Tanbeau Ê para mim senhor a parte mais penosa do meu emprêgo A borreda me menos no seminário Vejo bocejar às vêzes até a senhorita de La Mole que no entanto deve estar acostumada às amabilidades dos amigos da cas Tenho m êdo de adormecer Por favor obtenhame a permissão de ir jantar por quarenta centavos em algum albergue escuro O abade verdadeiro parvenu era muito sensível à honra de jantar com um grande senhor Enquanto se esforçava em fazer compreender êste sentimento a Julião um ligeiro ruído os fez voltar a cabeça Juüão viu a senhorita do La Mole que escutava Enrubesceu E la havia vindo buscar um livro e tinhn ouvido tudo teve então certa consideração por Julião Êsse aí nSo nasceu do joelhos pensou como o velho abade Deus como é feiot Durante o jantar Julifio nfto ousou olhar para a senhorita dc La Moio mas ela teve u bondade de lhe dirigir a palavra ftue dia ciperavnm vmilln ucnlc e cln o convidou para que flcoc NA MANSÃO DE LA MOLE 397 tentes Nestes salões não se deve falar daquilo que interessa a todo mundo dos problemas políticos e religiosos e conse qüentemente também não da maioria dos temas literários da época ou do passado imediato quando muito podem ser ditas frases oficiais que são tão mentirosas que um homem de gôsto e de tato prefere evitálas Que diferença com a ousadia espiritual dos famosos salões do século XVIII que evidente mente nem sonhavam com os perigos que desencadeavam contra a sua própria existência Agora conhecemse os perigos e a vida é dominada pelo temor de que a catástrofe de 1793 se possa repetir Devido à consciência que se tem de que não mais se acredita na causa que se representa e de que ela seria vencida em qualquer discussão pública preferese falar somente do tempo de música ou dos mexericos da côrte e existe a obrigação de admitir como aliados pessoas snobs e corruptas dos círculos da burguesia enriquecida as quais pela desavergonhada baixeza dos seus afãs e pelo mêdo pela fortuna mal ganha acabam por dete riorar completamente a atmosfera Baste isto quanto ao enfado Mas também a reação de Julien e mais absolutamente a sua presença assim como a do antigo diretor de seminário o Abbé Pirard na casa do marquês da La Mole só são compre ensíveis a partir da constelação políticosocial do instante histó rico atual A natureza apaixonada e fantasiosa de Julien entu siasmouse desde a sua primeira juventude pelas grandes idéias ila Revolução e de Rousseau pelos grandes acontecimentos da época napoleônica Desde a sua primeira juventude não sente outra coisa senão repugnância e desprêzo pela mesquinha hipo crisia e pela corrupção mentirosa das classes que dominam o puís desde a queda de Napoleão É demasiado fantasioso dema MÍaüo ambicioso e sequioso de domínio para se satisfazer com uma existência medíocre no seio da burguesia como o seu umigo Fouquet lho propõe a partir da observação de que um homem de origem pequenoburguesa só pode atingir uma posição ilc domínio através da igreja quase onipotente tomouse de plena consciência um hipócrita e o seu grande talento assegurar Ihcia uma brilhante carreira eclesiástica se os seus verdadeiros xcntimentos pessoais e políticos o caráter imediatamente passio mil da sua natureza não irrompessem em momentos decisivos Uni al instante de autodelação existe também aqui quando confia ao seu antigo mestre e protetor o Abbé Pirard os seus Hcntimentos no salão da marquesa pois a liberdade espiritual iiic nêlcs se documenta não é concebível sem uma mistura ilc altivez espiritual e de sentimento interno de superioridade o que não fica nada bem num jovem clérigo e protegido da casa I Neste caso específico a sua sinceridade não lhe acarreta qual quer diino pois o Abbé Pirard é seu amigo e sôbre a casual iprcituiloru a declaração de Julien faz uma impressão total niciilc diferente daquela que deveria esperar a temer O Abbé 6 ilcsiKiimlo aqui como vrai parvenu que sabe apreciar altamente ii Itonrii ilc comer junto n um grande senhor c que portanto 398 MIMESIS censura a declaração de Julien para justificar a censura Stendhal poderia também ter aduzido o fato de que a submissão isenta de crítica ao mal dêste mundo ou plena consciência de que se trata do mal é uma atitude típica dos jansenistas severos e o Abbé Pirard é um jansenista Sabemos das partes anteriores do romance que como diretor do seminário de Besançon teve de suportar muitas perseguições e arbitrariedades devido à sua posi ção de jansenista e à sua devoção severa inacessível a qualquer intriga pois o clero da sua província estava sob a influência dos jesuítas Por ocasião de um processo que o seu poderoso rival o vigáriogeral do bispo Abbé de Frilair movia contra o marquês da La Mole êste último teve a oportunidade de ganhar para si como seu homem de confiança o Abbé Pirard tendo assim podido apreciar a sua inteligência e retidão De tal forma finalmente para livrálo da sua insustentável situação em Besan çon o marquês conseguiu para o padre uma paróquia em Paris e pouco mais tarde acolheu em sua casa também o discípulo preferido do Abbé Julien Sorel como secretário privado Os caracteres as atitudes e as relações das personagens atuantes estão portanto estreitamente ligados às circunstâncias da história da época As suas condições políticas e sociais da história contemporânea estão enredadas na ação de uma forma tão exata e real como nunca antes fôra o caso em nenhum romance aliás em nenhuma obra literária em geral a não ser naquelas que se apresentavam como escritos políticosatíricos propriamente ditos O fato de embutir de forma tão funda mental e conseqüente a existência tràgicamente concebida de um ser humano de tão baixa extração social como aqui a de Julien Sorel na mais concreta história da época e de desen volvêla a partir dela constitui um fenômeno totalmente nôvo e extremamente importante Com a mesma precisão com que acontece com a mansão de La Mole também os outros círculos vitais nos quais Julien Soiel se movimenta a família do seu pai a casa do burgomestre M de Rênal em Verrières o semi nário de Besançon estão determinádos sociologicamente segundo o momento histórico e nenhuma personagem secundária como por exemplo o velho Chélan ou o diretor do dépôt de mendicité Valenod seria concebível da forma como são apre sentados aqui fora da situação histórica específica de época da Restauração A mesma fundamentação na história contem porânea encontrase também nos restantes romances da Stendhal ainda imperfeita e limitada a um quadro demasiado estreito em Armance mas completamente desenvolvida nas obras poste riores tanto na Chartreuse de Parme que evidentemente apre senta um cenário ainda pouco atingido pela evolução moderna de tal forma que o livro às vêzes produz o efeito de um romance histórico quanto em Lucien Leuwen um romance da época de LuísFilipe que Stendhal deixou inacabado Na forma em que êste último se nos apresenta o elemento contemporâneopolltico prepondera até demais nfio está fundido sempre com necessidade NA MANSAO DE LA MOLE 399 no andamento da ação e é apresentado em relação ao tema principal demasiado minuciosamente Talvez na reelaboração definitiva Stendhal tivesse atingido uma articulação orgânica do conjunto Finalmente também os escritos autobiográficos apesar do egotismo caprichoso e saltitante da sua posição estilística estão ligados ao político sociológico e econômico da época muito mais estreita essencial consciente e concretamente do que por exemplo os escritos correspondentes de Rousseau ou de Goethe Sentese que a história grande e real atacou Stendhal de forma muito diferente do que Rousseau ou Goethe Rousseau já não a viveu e Goethe soube tirar o corpo fora dela e até se fôr permitida esta expressão o corpo do seu espírito Com isto já fica dito ao mesmo tempo quais foram as circunstâncias que fizeram despertar neste instante e num homem desta época o realismo moderno trágico e historicamente fundamentado era o primeiro dos grandes movimentos dos tempos modernos do qual participavam conscientemente as gran des massas humanas a Revolução Francesa com tôdas as agitações que se espalharam pela Europa tôda e que foram suas conseqüências Diferenciase do movimento da Reforma não menos violento e que não agitou menos as massas pelo tempo muitíssimo mais rápido da sua difusão do seu efeito sôbre as massas e das mudanças práticas da vida num espaço relativamente amplo pois os progressets técnicos alcançados simultaneamente no campo dos transportes e da transmissão de informações assim como a difusão do ensino elementar resultante das tendências da própria Revolução possibilitaram uma mobilização dos povos relativamente muito mais rápida e mais uniforme no seu sentido Todos foram atingidos muito muis rápida mais consciente e mais uniformemente pelos mes mos pensamentos e acontecimentos Começava para a Europa aquêle processo de concentração temporal tanto dos aconte cimentos históricos em si como do seu tornarse conscientes puru todos um processo que de lá para cá fêz enormes pro gressos e que permite profetizar uma uniformização da vida dos homens sôbre tôda a Terra a qual em certo sentido já lói atingida Uma tal evolução estremece ou enfraquece tôdas iis ordens e classificações da vida que vigiam até então o tempo das modificações exige um esforço constante e extre mamente dificultoso em prol de uma adaptação interna assim como provoca violentas crises de adaptação Quem pretender ilar a si próprio razão da sua vida real da sua posição dentro ila sociedade humana é obrigado a fazêlo sôbre uma base prliticu muito mais ampla e dentro de um contexto temporal muito maior do que outrora para manter a consciência cons tante de que o chão social sôbre o qual se vive não está em repouso ein nenhum instante mas é modificado incessantemente pelos mais múltiplos estremecimento 400 MIMESIS Poderseia perguntar como se deu o fato de a moderna consciência da realidade ter se conformado literàriamente pela primeira vez na obra de Henri Beyle de Grenoble Beyle Stendhal foi um homem espirituoso vivaz interiormente inde pendente e corajoso mas não propriamente uma grande figura Os seus pensamentos são amiúde enérgicos e geniais mas são também saltitantes e arbitràriamente apresentados e apesar de tôda a sua ostentação da audácia não tem segurança nem coesão internas Todo o seu ser tem algo de fragmentário A mudan ça entre a abertura realista no conjunto e o néscio ocultamento no pormenor entre o frio domínio de si mesmo a ardentemente gozadora entrega ao sensível e a insegura e por vêzes senti mental vaidade não é sempre fácil de suportar A sua formulação lingüística é muito impressionante e inconfundivelmente original mas tem o fôlego curto é desigual nos seus êxitos e só rara mente apreende e retém o seu objeto de forma total Mas precisamente assim do jeito que era entregouse ao momento as circunstâncias pegaramno jogaramno de cá para lá confia ramlhe um destino inesperado e peculiar formaramno de tal modo que se viu obrigado a se entender com a realidade de uma forma que ninguém antes conhecera Quando eclodiu a Revolução Stendhal era um menino de seis anos de idade quando abandonou a sua cidade natal Gre noble e a sua família antigoburguesa e reacionária sombria mente amuada com as novas circunstâncias e então ainda muito abastada para se dirigir a Paris tinha dezesseis anos de idade IÁ chegou imediatamente após o golpe de Estado de Napoleão um seu parente Pierre Daru era um influente colaborador do primeiro cônsul Stendhal fêz depois de algumas vacilações e interrupções uma carreira brilhante na administração napoleô nica Viu a Europa durante as campanhas de Napoleão tornou se homem isto é um homem do mundo muito elegante tornouse também como parece um funcionário administrativo muito apto e um organizador de confiança cujo sangue frio não lhe deixava perder a calma nem nos momentos de perigo Quando a queda de Napoleão o fêz cair do cavalo estava no trigésimo segundo ano de sua vida A primeira parte da sua carreira ativa bem sucedida e brilhante tinha passado Dêsse momento em diante não tem mais qualquer profissão nem qualquer lugar ao qual pertencer Pode ir para onde quiser enquanto tiver dinheiro suficiente e enquanto as desconfiadas autoridades da época pósnapoleônica nada tenham a objetar contra a sua permanência Mas as suas condições econômicas pioram gradativamente em 1821 é expulso pela polícia de Met ternich da cidade de Milão onde se havia instalado num primeiro momento vai a Paris e vive lá durante nove anos sem profissão sozinho com meios muito parcos Depois da revolução de julho os seus amigos lhe conseguem um pôsto no serviço diplomático Como os austríiicos lhe ncgnnim o excquutur ptirii NA MANSÃO DE LA MOLE 401 Trieste deve ir como cônsul a Civitavecchia uma cidadezinha portuária esta é uma residência triste e por vêzes rabujavam no quando estendia demais suas visitas a Roma contudo pode passar algus anos de férias em Paris enquanto um dos seus protetores é ministro das relações exteriores Finalmente adoece sèriamente em Civitavecchia concedemlhe novamente férias em Paris onde morre em 1842 acometido por um ataque de apoplexia no meio da rua com menos de sessenta anos de idade Esta é segunda parte de sua vida neste tempo adquire a fama de um homem espirituoso excêntrico política e moralmente indigno de confiança durante êste tempo começa a escrever Primeiro escreve sôbre música sôbre a Itália e a arte italiana sôbre o amor só em Paris aos quarentaetrês anos em meio ao florescimento do movimento romântico no qual interveio a seu modo Stendhal publica o seu primeiro romance Êste esbôço da sua vida quer mostrar que só se deu razão de si mesmo e só se dedicou ao ofício de escrever de forma realista quando procurava náufrago num barquinho um pôrto seguro e quando descobriu com isto que para o seu barquinho não havia pôrto apropriado nem seguro quando embora não estivesse de modo algum cansado ou desacorçoado não deixava de ser um quarentão cuja primeira e brilhante carreira estava muito longe no tempo um homem sozinho e rela tivamente pobre chegou a sentir com todo rigor que não havia lugar algum que pudesse ocupar Só então o mundo social que o circundava tornouse para êle um problema o sentimento de ser diferente dos demais que até então carregara leve e orgulhosa mente tornouselhe só então objeto de urgente prestação de con lus e finalmente de criação artística A literatura realista de Stendhal brotou do seu malestar no mundo pósnapoleônico nssim como da consciência de não pertencer ao mesmo e de não ter nêlc um lugar certo O malestar no mundo dado e a incapa cidade de se incorporar a êle são evidentemente elementos rous scaunianoromânticos e é provável que Stendhal já possuísse algo disso na sua juventude há algo semelhante na sua natureza e a história da sua juventude só pode ter fortalecido tais inclinações uc por assim dizer correspondiam à moda da sua geração Por outro lado escreveu suas memórias de juventude a Vie de Henri Hndard só nos anos trinta e devese contar com que vistos tia perspectiva da sua evolução posterior da perspectiva de 1832 tenha acentuado tais motivos de isolamento individualista O corto é que os motivos e as manifestações do seu isolamento e ilu sua posição problemática perante a sociedade são totalmente diferentes dos fenômenos correspondentes em Rousseau ou nos seus seguidores do primeiro Romantismo Steiulhal tinha em contraste com Rousseau inclinação e m lamente também capacidade para o agir prático esforçavase por consojiuir o gôo sensível dit vida dada não se subtrai de 402 MIMESIS entrada à realidade prática assim como também não a censu lou como um todo logo de início senão que tentou pela primeira vez com êxito dominála O êxito e o prestígio mate riais eram apetecíveis para êle admira a energia e o domínio da vida e mesmo os seus amados sonhos le silence du bonheur são mais sensíveis mais plásticos mais fortemente dependentes da sociedade humana e das obras humanas Cimarosa Mozart Shakespeare a arte italiana do que as do promeneur solitaire Somente quando o êxito e o gôzo começaram a escaparselhe somente quando as circunstâncias práticas ameaçaram tirarlhe o chão de sua vida a sociedade do seu tempo tornouse para êle problema e assunto Rousseau não estava à vontade no mundo social que encontrava e que não se modificou grandemen te durante a sua vida ascendeu dentro dêle sem se tornar mais feliz por causa disso e sem melhorar as suas relações com o mesmo que parecia permanecer inamovível Stendhal viveu enquanto um terremoto atrás do outro sacudiu o chão social Um dêstes tremores desligouo do andamento quotidiano da sua vida que estava prédeterminado para homens da sua classe jogouo como a muitos dos seus semelhantes em meio a antes inconcebíveis aventuras vivências responsabilidades autopro vações experiências de liberdade e de domínio Outro estreme cimento jogouo de volta para um quotidiano que lhe pareceu mais enfadonho tolo e carente de atrativos do que o primeiro o mais interessante nêle era que também não prometia ser durável novos tremores estavam no ar e eclodiam cá e lá ainda que não tão violentamente como os primeiros O inte rêsse de Stendhal dirigiase pelo fato de ter brotado das expe riências da sua existência própria não para a estrutura de uma sociedade possível mas para as modificações da sociedade real mente existente Nêle a perspectiva dos tempos é sempre píesente a imagem das formas e modas de vida que se modificam incessantemente domina os seus pensamentos tanto mais que são uma esperança para êle em 1880 ou 1930 encontrarei leito res que me entendam Quero apresentar alguns exemplos Quando fala do esprit de La Bruyère no 30 capítulo de Henri Brulard evidenciaselhe que esta espécie de formação espiritual perdeu validade a partir de 1789 Lesprit si délicieux pour qui le sent ne dure pas Comme une pêche passe en quelques jours lesprit passe en deux cent ans et bien plus vite sil v a révolution dans les rapports que les classes dune société ont entre elles Os Souvenirs dégotisme contêm uma multidão de tais observações de perspectiva temporal às vêzes realmenlc proféticas Prevê cap VII perto do fim que no tempo em que êste palavreado fôr lido terseá convertido em lugarco mum responsabilizar as classes dominantes pelos crimes dos ladrões e dos assassinos teme no comêço do nono capítulo que tôdas as suas audaciosas declarações que só ousa fazer com temor serão trivialidades dez anos após h sua morte sc o céu lhe conceder uma vida de duração relativamente decente de NA MANSÃO DE LA MOLE 403 oitenta ou noventa anos no capítulo seguinte fala de um seu amigo que despende uma soma extraordinàriamente elevada quinhentos francos pelos favores de uma honnête femme du peuple e acrescenta à guisa de explicação cinq cent francs en 1832 cest comme mille en 1872 isto é 40 anos após o momento em que escreve e 30 anos após sua morte E poucas páginas mais adiante encontrase uma outra frase muito interes sante também neste sentido mas quase incompreensível devido à sua rápida estrutura diz nela que seria injusto que falasse mal de uma mulher muito jovem ainda pois possivelmente o seu palavreado seria publicado dez anos após a sua morte e continua Si je mets vingt toutes les nuances de la vie seront changées le lecteur ne verra plus que les masses Et ou diable sont les masses dans ces jeux de ma plume Cest une chose à examiner Para contribuir à interpretação desta passagem quero observar que masses se entendo corretamente seria tra duzível aproximadamente como grandes linhas Teme por tanto que vinte anos após a sua morte a vida terá mudado tão profundamente que tôdas as nuanças tornarseiam incompre ensíveis de tal forma que o leitor só poderia ver as grandes linhas de sua representação Mas onde diabo estão as gran des linhas nestes jogos da minha pena Poderíamos citar aqui muitas outras passagens semelhantes mas não é necessário pois o elemento perspectivo temporal apresentase em tôda parte na própria representação Stendhal sempre trata nos seus escritos realistas da realidade com que se defronta je prends au hasard ce qui se trouve sur ma route é assim que diz não longe da passagem que acabamos de trans crever não escolheria o homem neste seu afã de conhecêlo fiste método que Montaigne já conhecia é o melhor para excluir a arbitrariedade da construção própria e para se entregar íi realidade dada Mas a realidade com que se defrontava estava construída de tal forma que não podia ser representada sem lima referência constante às violentas mudanças do passado imediato e sem um tatear présensível das mudanças futuras Tòdas as figuras humanas e todos os acontecimentos humanos upresentamse na sua obra sôbre uma base política e social mente movimentada Para figurarnos o que isto significa comparemolo com os mais conhecidos escritores realistas do século XVIII prérevolucionário com Lésage ou com o Abbé Prévost com o excelente Henry Fielding ou com Goldsmith considerese quão mais exata e profundamente dedicase às condições reais da sua época do que Voltaire Rousseau e a obra realista da juventude de Schiller e como é mais larga a base sAbrc a quul se apóia do que a de SaintSimon que tinha lido muito emboru numa edição muito incompleta que era a que existiu então Na medida cm que o realismo moderno sério mio pode representar o homem engastado numa realidade polí licoióuiorcouòmicii ile conjunto concreta em constante evo 404 MIMESIS lução assim como agora ocorre em qualquer romance ou filme Stendhal é o seu fundador Contudo a ideologia segundo a qual Stendhal apreende o acontecer e procura reproduzir as suas engrenagens apresenta ainda pouca influência do historicismo êste último penetrou durante o seu tempo na França mas o afetou pouco precisa mente por isto embora tenhamos falado nas últimas páginas de perspectivismo histórico e da constante consciência das mu danças e estremecimentos não falamos de uma compreensão das evoluções Não é totalmente fácil descrever a sua posição interna perante os fenômenos sociais É sua intenção captar cada uma das suas nuanças êle constrói com a maior exatidão a estrutura individual de cada ambiente não possui qualquer sistema racionalista preconcebido acêrca dos fatores gerais que determinam a vida social nem uma imagem modelar de como deveria ser a sociedade ideal mas em seus pormenores a sua representação dos acontecimentos dirigese em tudo de acôrdo com o sentido da psicologia clássicamoral para uma analyse du coeur humain e não para uma pesquisa ou para um pressen timento de fôrças históricas encontramse nêle motivos raciona listas empíricos sensualistas mas dificilmente motivos român ticohistóricos Mathilde de La Mole e a sua família estão orgulhosas da sua origem ela própria rende um culto fantástico a um dos seus antepassados que foi executado no século XVI por causa de uma conjuração Stendhal apresenta isto como elemento sociológica e psicologicamente importante da sua re presentação mas está muito longe de ter uma compreensão genética da essência e da função da aristocracia no sentido dos românticos Absolutismo religião e Igreja privilégios de classe tudo isto observa de modo não muito diferente de um iluminista médio isto é como uma rêde de superstições embus tes e intrigas em geral a intriga astuciosamente urdida junto com a paixão desempenha um papel decisivo na sua estruturação da ação enquanto que as fôrças históricas que lhe servem de base mal aparecem Evidentemente tudo isto pode ser expli cado a partir de sua ideologia política que era democrático republicana só isto já teria sido suficiente para tornálo imune contra o historicismo romântico e além do mais desgostavao extremamente a ênfase de escritores como Chateaubriand e também de Rousseau a quem amara em sua juventude afastouse mais e mais Por outro lado Stendhal também trata das classes da sociedade que segundo os seus ideais deveriam estar Ihe próximas de forma extremamente crítica e sem qualquer traço dos valores sentimentais que o Romantismo ligava à palavra povo A burguesia ativa na pratica que ganha decentemente o seu dinheiro causalhe um enfado insuperável tem horror da vertu républicaine dos Estados Unidos c não obstante tôda a sua objetividade lamenta a ruína da cultura social do ancien regime Ma foi Fesprit manque assim diz o capítulo XXX de I Ir uri Rrttlartl chaciin reserve toutes vrv NA MANSÃO DE LA MOLE 405 forces pour un métier que lui donne un rang dans le monde Não mais é o nascimento e também não mais o espírito ou a autoformação como honnête homme o que é decisivo é a destreza no ofício Êste não é um mundo no quai Stendhal Dominique possa viver e respirar Contudo também pode assim como os seus heróis trabalhar e ser ativo em caso de necessidade Mas como é possível levar a sério por muito tempo algo assim como um trabalho profissional objetivo Amor música paixão intriga heroísmo estas são coisas por cuja causa vale a pena viver Stendhal é um aristocrático filho ila grande burguesia do ancien régime não quer nem pode tornarse um bourgeois do século XIX Êle próprio o diz repe tidamente as minhas opiniões já foram republicanas desde a minha juventude mas a minha família legoume instintos aris tocráticos BruUtrd XIV depois da Revolução o público teatral embruteceu Brulard X X II eu mesmo fui liberal no tino 1821 mas achava os liberais outrageusement niais Souve nirs dégotisme V I a conversação com um gros marchand de province deixame embotado e infeliz para o dia todo Egotisme VII e pas sim tais manifestações e outras semelhantes que por vêzes se referem também à sua constituição física La nature ma donné les nerfs délicats et la peau sensible dune hmme Brulard XXXII encontramse em grande quantidade As vêzes tem acessos pronunciadamente socialistas no ano de IK11 só teria podido encontrarse energia na classe qui est en lutte avec les vrais besoins Brulard II e isto era válido não siSmentc para 1811 Mas acha insuportáveis o cheiro e o barulho ilii massa e nas suas obras por mais desconsideradamente rea listas que sejam no respeito a todo o resto não há povo nem no sentido românticonacional nem no sentido socialista vi pequenos burgueses e volta e meia figuras decorativas i iimii soldados criados e garçonetes Êle trata de preferência ile peculiaridades paisagísticas e nacionais por exemplo das ililorenças entre Paris e a província ou entre franceses e italia nos ou do caráter dos inglêses amiúde com perspicácia mas sempre a partir da própria experiência às vêzes de forma um Imito brusca e parcial Mas embora se trate de pormenores olvservados não de exemplos para formas estruturais universais mino seria o caso de Montesquieu não deixa de ser verdade que mui estão interpretados de forma genéticohistórica mas servem h iimn psicologia nacional moralísticoanedótica Poderseia liiliir de moralismo local Para entender de forma mais con i ixtii o que queremos dizer leiamse por exemplo as manifesta los de I9 c 4 de janeiro de 1817 em Rome Naples et Florence I iimlmentc vê o homem individual muito menos como produto ilii m u i situiiçiu histórica c como coadjuvante da mesma do que i miiii 11ni átomo dentro dela O homem parece ter sido jogado puise loituiliimente no ambiente cm que vive é um obstáculo um quiil se pode dar melhor ou pior não é pròpriamente um solo mil ri com o qual cslíi unido orgànicumcntc Além 406 MIMESIS disso a concepção stendhaliana do homem é no seu conjunto preponderantemente materialista e sensualista e disto encontrase um comprovante excelente em Henri Brulard XXVI Jappelle caractère dun homme sa manière habituelle daller à la chasse du bonheur em termes plus clairs mais moins qualificatifs len semble de ses habitudes morales Mas a felicidade mesmo quando no caso dos sêres humanos mais altamente organizados só pode ser encontrada no espírito na arte na paixão ou na fama conserva em Stendhal sempre uma tonalidade mais sensual e terrena do que nos românticos A sua aversão pela eficiência da burguesia provinciana contra o tipo de bourgeois que estava a se formar também poderia ser romântica mas um romântico dificilmente encerraria uma descrição da sua aversão pelas ativi dades lucrativas com as seguintes palavras Jai eu le rare plaisir de faire toute ma vie à peu près ce qui me plaisait Brulard XXXII A sua concepção do espírito e da liberdade é ainda totalmente a do século XVIII prérevolucionário embora só possa tornála real na sua própria pessoa mediante esforço e um tanto convulsivamente Êle deve pagar a liberdade com pobre za e com solidão interior e até também com solidão exterior e o esprit tornase fàcilmente paradoxal amargo e mordaz une gaîté qui fait peur Brulard VI O seu esprit não mais possui a segurançaemsi da época de Voltaire não domina com a mestria de um grande senhor do ancien régime nem a sua existência social nem uma parte especialmente importante da mesma as suas relações sexuais Até afirma que só chegou a ser engenhoso porque queria ocultar a sua paixão por uma mulher que não possuíra cette peur mille fois répétée a été dans le fait le principe dirigeant de ma vie pendant dix ans Egotisme cap 19 Tais traços fazemno parecer alguém nascido demasiado tarde que procura em vão tornar realidade a forma de vida de uma época passada Outros elementos da sua natureza a desconsiderada objetividade da sua fôrça rea lista a corajosa autoafirmação da sua pessoa diante do trivial juste milieu que estava em ascensão e outras coisas mais mostramno como precursor de certas formas posteriores de espírito e de vida Mas sempre sente e vivência a realidade do seu tempo como um obstáculo Por isso mesmo o seu realismo embora não tenha surgido de modo algum ou só muito tênuemente de uma compreensão genética amorosa dos desenvolvimentos isto é de uma ideologia histórica está tão enérgica e estreitamente ligado à sua existência o realismo dêste cheval ombrageux é um produto da luta pela sua autoafir mação e a partir disto explicase que o nível estilístico dos seus grandes romances realistas se aproxime muito mais do antigo conceito grande e heróico do trágico do que aquêle da maioria dos realistas posteriores Julien Sorel é muito mais herói do que as figuras de Balzac ou de Flaubert A partir de um outro ponto dc vista que já acabamos dc insinuar é evidente que está muito próximo do eu contem NA MANSÃO DE LA MOLE 407 porâneos românticos na luta contra as fronteiras estilísticas entre o realista e o trágico Nisto até os sobrepuja pois é muito mais conseqüente e legítimo e com base nesta coinci dência lhe foi possível também em 1822 aparecer como partidário da nova tendência É fato conhecido que a regra estilística clássica que excluía todo e qualquer realismo material das obras trágico sérias já se afrouxara durante o século XVIII tratamos disso nos dois capítulos precedentes Mesmo na França êste afrou xamento é perceptível já na primeira metade do século XVIII Durante a segunda metade foi sobretudo Diderot quem pro pagou tanto teórica como pràticamente um nível estilístico médio sem ultrapassar contudo o burguêscomovente Nos seus romances especialmente no Neveu de Rameau apresenta personagens da vida quotidiana e da classe média quando não baixa com uma certa seriedade Mas esta seriedade lembra mais o moralista e satírico do iluminismo do que o realismo do sécu lo XIX Na figura e na obra de Rousseau há decididamente um germe de evolução posterior Rousseau podia como diz Meinecke no seu ljvro sôbre o historicismo II 390 mesmo Km penetrar até o pensamento cabalmente histórico coadjuvar ii despertar o nôvo sentido pelo individual somente pelo desven diimcnto da sua própria e incomparável individualidade Mei nccke fala aqui do pensamento histórico coisa semelhante po deria ser dita do realismo Rousseau não é propriamente realis ta trata dos seus temas sobretudo da sua própria vida com um intcrêsse tão fortemente apologético e críticomoral o seu juízo iicêrcu dos acontecimentos está tão fortemente determinado pelos HiMiíi princípios de direito natural que a realidade do mundo Hoanl não se torna imediatamente um objeto para êle Contudo 0 exemplo das Confessions que procuram representar a própria uxiHtÊncia na sua situação real com respeito à vida contemporânea f importante como modêlo estilístico para aquêles escritores que possuíam mais sentido para a realidade dada do que êle Miiis importante talvez na sua influência mediata sôbre o rea liHmo sério é a sua politização do conceito idílico da natureza rlii criou uma imagem ideal para a conformação da vida que como é sabido exerceu forte sugestão e que se acreditava pudesse ser tornada realidade de forma imediata Estava em contraste mm ii reulidadet histórica existente historicamente devinda e êste routruRle tornavase tanto mais forte quanto mais claramente se evidenciava que a realização do ideal estava fadada ao fracasso 1 cuia forma a realidade prática histórica converteuse em proble mii dc uma maneira antes desconhecida mais concreta e mais próxima Nos primeiros decênios após a morte de Rousseau no préromiintismo francês o efeito daquela terrível desilusão foi evidentemente totulmente contrário apresentouse justamente mi cno do encritore mui importantes uma tendência para u fuiii dn rciilidmle contemporftnea A Revolução o Império 408 MIMESIS e ainda a época da Restauração são pobres em obras literárias realistas Os heróis dos romances préromânticos delatam uma aversão por vêzes quase mórbida a entrar em contato com a vida contemporânea Já para Rousseau a contradição entre o natural que desejava e o real historicamente fundamentado com que se deparava tornarase trágica mas esta contradição incitarao para a luta pelo natural Não mais vivia quando a Revolução e Napoleão criaram uma situação totalmente nova mas não uma situação natural no sentido de Rousseau mas ainda uma situação ligada historicamente A geração seguinte profundamente impressionada com os seus pensamentos e com as suas esperanças viveu a resistência vitoriosa do históricoreal e precisamente aquêles que mais profundamente sentiram a sua influência encontramse num mundo nôvo que destruíra totalmen te as suas esperanças e no qual não puderam se sentir à vontade Entraram em oposição com êle ou afastaramse dêle Da herança de Rousseau guardaram somente a cisão interna a tendência para a fuga da sociedade a necessidade de se isolar e de ficar sòzinho o outro lado da natureza de Rousseau o lado revolucionário e combatente êste êles perderam As circunstâncias externas que destruíram a unidade da vida espiritual e a influência dominadora da literatura na França também contribuíram para esta evolução Dificilmente se encontrará uma obra literária importante desde a eclosão da Revolução até a queda de Napoleão na qual não se apresentem sintomas desta fuga do real e çontemporâneo e mes mo entre os grupos românticos posteriores a 1826tais sintomas estão muito difundidos Êles se apresentam da maneira mais pura e completa em Senancour A relação da maioria dos pré românticos com a realidade social do seu tempo é justamente no seu caráter negativo muito mais sèriamente problemática do que a da sociedade iluminista O movimento rousseauniano e a grande decepção que sofreu foram pressupostos para o surgimen to da visão moderna da realidade Na medida em que Rousseau contrapunha com paixão o estado natural do homem e a realida de da vida existente e historicamente devinda converteu esta úl tima em problema prático somente então desvalorizouse a re presentação historicamente aproblemática e imóvel da vida no estilo do século XVIII O romantismo que se tinha desenvolvido muito antes na Alemanha e na Inglaterra e cujas tendências históricas e indivi dualistas estavam se preparando também na França fazia muito tempo chegou a se desenvolver por completo após 1820 e como é sabido foi precisamente o princípio da mistura de estilos aquilo que Victor Hugo e seus amigos levantaram como grito de guerra próprio do seu movimento nêle se manifestava da maneira mais evidente o contraste com o tratamento clássico dos temas e com a linguagem literária clássica Mas já na formulação de Hugo se apresenta algo de demasiado exaccrbadamente antitético tratase para êle da mistura do sublime com o grotesco Ambos são pólos estilísticos que não tomam em consideração u rcul NA MANS AO DE LA MOLE 409 De fato não tinha a intenção de representar a realidade dada de forma compreensiva antes ressalta nos temas históricos ou contemporâneos os pólos estilísticos do sublime e do grotesco ou também outras contradições éticas ou estéticas e o faz com lanto vigor que êles se chocam entre si com violências desta forma embora surjam efeitos fortes pois a fôrça de expressão de Hugo é poderosa e sugestiva são inverossímeis e como reprodução da vida humana falsos Outro escritor da geração romântica Balzac que possuía lanta capacidade criadora e muito maior proximidade do real tomou a representação da vida contemporânea como a tarefa mais própria e pode ser considerado juntamente com Stendhal como 0 criador do realismo moderno É dezesseis anos mais nôvo do que êste mas os seus primeiros romances característicos apa recem bastante simultâneamente com os de Stendhal isto é ao redor de 1830 Como exemplo da sua maneira de representar mostraremos primeiramente o retrato de Mme Vauquer a dona ila pensão do romance Le Père Goriot surgido em começos de 1834 Antecedeo uma descrição muito exata do bairro em que se encontra a pensão da casa em si das duas habitações do térreo dêste conjunto todo resulta a impressão intensa de descon solada pobreza desgaste e rancidez sendo que juntamente com a descrição material sugerese também a atmosfera moral Depois ila descrição da instalação da sala de jantar aparece finalmente a dona da casa em pessoa Cette pièce est dans tout son lustre au moment où vers sept heures du matin le chat de Mme Vauquer précède sa maîtresse unité sur les buffets y flaire le lait que contiennent plusieurs jattes couvertes dassiettes et fait entendre son ronron matinal Ilientôt la veuve se montre attifée de son bonnet de tulle sous lequel pend un tour de faux cheveux mal mis elle marche en niinussant ses pantoufles grimacées Sa face vieillotte gras souillette du milieu de laquelle sort un nez à bec de perroquet seit petites mains potelées sa personne dodue comme un rat dé jiIiho son corsage trop plein et qui flotte sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur où sest blottie la spéculation el dont Mme Vauquer respire lair chaudement fétide sans en itie écœurée Sa figure fraîche comme une première gellée dautomne scs yeux ridés dont lexpression passe du sourire pres i it aux danseuses à lamer renfrognement de lescompteur enfin toute sa personne explique la pension comme la pension implique sa personne Le bagne ne va pas sans Pargousin vous nima limciiez pas lun sans lautre Lembonpoint blafard de cette petite femme est le produit de cette vie comme le typhus est la 1 uiiscqueiice des exhalaisons dun hôpital Son jupon de laine li notée qui dépasse sa première jupe faite avec une vieille robe et ilmit lu ouate séchappe par les fentes de létoffe lézardée résume le silo n la salle à manger le jardinet annonce la cuisine et luit piessentii les pensionnaires Q u a n d elle est lá ce spectacle 410 MIMESIS est complet Agée denviron cinquante ans Mme Vauquer ressem ble à toutes les femmes qui ont eu des malheurs Elle a loeil vitreux lair innocent dune entremetteuse qui va se gendarmer pour se faire payer plus cher mais dailleurs prête à tout pour adoucir son sort à livrer Georges ou Pichegru si Georges ou Pichegru étaient encore à livrer Néanmoins elle est bonne femme au fond disent les pensionnaires qui la croient sans fortune en lentendant geindre et tousser comme eux Quavait été M Vauquer Elle ne sexpliquait jamais sur le défunt Comment avaitil perdu sa fortune Dans les malheurs répondaitelle Il sétait mal conduit envers elle ne lui avait laissé que les yeux pour pleurer cette maison pour vivre et le droit de ne compatir à aucune infortune parce que disaitelle elle avait souffert tout ce quil est possible de souffrir2 O retrato da dona da pensão está ligado à sua aparição matutina na sala de jantar aparece neste ponto central de sua atividade introduzida um pouco à maneira das bruxas pelo gato que pula sôbre o aparador e imediatamente começa uma descri ção pormenorizada da sua pessoa A descrição é feita sob um motivo principal que é repetido várias vêzes o motivo da harmo nia entre a sua pessoa por um lado e o espaço em que se encontra a pensão que dirige a vida que leva pelo outro em poucas palavras a harmonia entre a sua pessoa e aquilo que nós e às vêzes também já Balzac chamamos de meio Esta harmonia é sugerida da forma mais penetrante em primeiro lugar o aspecto gasto gordo sujamente quente e repulsivamente sexual do seu corpo e das suas roupas o que concorda com o Z Êste cômodo está em todo o seu esplendor quando perto das sete horas de manhã o gato da senhora V auquer precede sua dona salta sôbre os apara dores para farejar o leite contido em várias jarras cobertas com pires e faz ouvir o seu romrom matinal Logo a viúva aparece ataviada com a sua touca de tule sob a qual pende um a mecha de cabelo postiço mal colocada cia anda arrastando os seu chinelos tortos Seu rosto velhote rechonchudo do meio do qual surge um nariz de bico de papagaio suas pequenas mãos roli ças sua pessoa redonda como um rato de igreja o seu corpete demasiado cheio e flutuante estão em harmonia com esta sala onde ressuma a desdita onde se acaçapa a especulação e cuio ar mormente fétido a senhora Vauouer respira sem repugnância Sua figura fresca como uma prim eira geada outonal seus olhos enrugados cuja expressão passa do sorriso prescrito às dançarinas ao franzimento amargo do usurário enfim tôda a sua pessoa explica a pensão como a pensão implica a sua pessoa As galés não ficam bem sem o comitre não imaginaríeis uma sem o outro A gordura baça desta peauena mulher é o produto desta vida como o tifo é a conseqüência das exalações de um hospi tal A sua anágua de lá tricofada que sobressai da sua saia feita de um velho vestido cujo recheio escapa pelos rasgos do tecido puído resume o alão a sala de jantar o jardinzinho anuncia a cozinha e faz pressentir os pen sionistas Quando ela está lá êste espetáculo está completo Com cèrca de cinqUenta anos a senhora Vauquer parecese com tôdas as mulheres que tiveram desgraças Tem os olhos vítreos o ar inocente de uma alcoviteira que se deixa irritar para se fazer pagar mais caro mas antes de mais nada disposta a tudo para adocicar a sua sorte disposta a entregar Jorge ou Pichegru se Jorge ou Pichegru pudessem ainda ser entregues NSo obstante ela é uma boa mttlhïr no fundot dizem os pensionistas que acham que ela não tem fortuna e a ouvem gemir e tossir como âles O que tinha lido o senhor Vauquer Ela nunca explicava a sorte do defunto Como havia perdido sua fortuna Na des graças respondia Êle tinha ie comportado mal para com la n lo lhe tinha deixado senão os olhos para chorar esta casa para viver e o direito d i nlo se compadecer com nenhum infortúnio porqu dlzlt la tinha sofrido tudo o que é possível sofrer NA MANSÃO DE LA MOLE 411 ar da habitação que ela respira sem nojo pouco mais tarde em ligação com o seu rosto e com os seus gestos faciais o motivo é considerado de forma um pouco mais moralista a saber acen tuando enèrgicamente a relação mútua entre pessoa e meio sa personne explique la pension comme la pension implique sa per sonne A isto juntase a comparação com as galés A isso segue se uma interpretação mais médica na qual o embonpoint blafard da senhora Vauquer como produto da sua vida é comparado com o tifo como conseqiiência das exalações de um hospital Final mente o seu saiote é valorizado como uma espécie de síntese das diferentes especialidades da pensão como antegosto dos produtos da cozinha e como préanúncio dos hóspedes da pensão Êste saiote tornase por um instante símbolo do meio e depois o conjunto todo é ainda resumido na frase quand elle est là ce spectacle est complet não é necessário esperar o desjejum e os hóspedes tudo isso já está incluído na sua pessoa Não parece existir uma ordenação consciente das diferentes retomadas do motivo da harmonia assim como não parece que Balzac tivesse seguido um plano sistemático na descrição da aparência de Mme Vauquer a seqüência das coisas mencionadas cobertura da cabeça penteado chinelos rosto mãos corpo novamente rosto olhos corpulência saiote não permite reconhecer qualquer iraço de composição também não é indicada nenhuma separação entre roupa e corpo nem entre um traço físico e o seu significado moral A descrição tôda até o ponto em que a consideramos dirigese para a fantasia recriativa do leitor às imagens lem brudas de pessoas semelhantes e de meios semelhantes que êle possa ter conhecido A tese da unidade de estilo do meio na qual são também incluídos os sêres humanos não é fundamentada racionalmente mas é apresentada como um estado de coisas sen nlvelmente penetrantes de forma imediata de maneira puramente sugestiva sem provas Numa frase como esta ses petites mains potelées sa personne dodue comme un rat déglise sont en harmonie avec cette salle où suinte le malheur et dont Mme Vauquer respire lair chaudement fétide pressupõe a tese du harmonia com tudo o que ela traz consigo significação ociológicomoral dos móveis e das peças de vestuário possibilida de de determinar os elementos ainda não visíveis do meio a partir dos que já foram dados etc Também a menção das galés e In tifo só são comparações sugestivas não são provas nem tenta tivas para tanto A falta de ordem e o desleixo racional do texto são conseqüências da pressa com que Balzac trabalhava mu mesmo assim não são casuais pois a própria pressa é em bon purte um resultado da própria possessão por imagens suges 11vim O motivo da unidade do meio apossouse do próprio lliiliic com tanto ímpeto que os objetos e as pessoas que aiiutltuem um meio ganham para êle freqüentemente uma espé cie de egundu lignificaço diferente da significação racionalmente cugnuictvcl mu muito mais essencial uma significação que é ilrflnliln du melhor miinelrn poível pelo adjetivo demoníaco 412 MIMESIS Na sala de jantar com os seus móveis e apetrechos gastos e mesquinhos mas que não deixam de ser tranqüilos e inofensivos para uma mente não influenciada pela fantasia ressuma a desgraça acaçapase a especulação em meio a esta quotidiani dade trivial ocultamse bruxas alegóricas e no lugar da viúva rechonchuda e desordenadamente vestida vêse surgir por um instante uma ratazana Tratase portanto da unidade de um espaço vital determinado sentida como uma visão de conjunto demoníacoorgânica e descrita com meios extremamente suges tivos e sensíveis A parte seguinte do nosso texto na qual o motivo da har monia não mais é mencionado ocupase do caráter e da história pregressa da senhora Vauquer Mas seria um êrro ver nesta separação entre por um lado a aparência e pelo outro o cará ter e a história pregressa um princípio proposital de compo sição Mesmo nesta segunda parte aparecem ainda caracterís ticas físicas ceiV vitreux e muito freqüentemente Balzac também ordena de forma diferente ou mistura totalmente entre si os elementos físicos morais e históricos de um retrato O tratamento do caráter e da história pregressa não tem no nosso caso a finalidade de esclarecer algo disso tudo mas serve para colocar a obscuridade de Mme Vauquer sob uma luz apro priada isto é sob o luscofusco do demonismo subalterno e trivial No que se refere à história pregressa a dona da pensão integra a categoria das mulheres aproximadamente cinqüentonas qui ont eu des malheurs plural Balzac não dá explicação alguma acêrca da sua vida pregressa mas reproduz parcialmen te em discurso indireto a tagarelice informemente plangente perdidamente coloquial que ela mesma sói apresentar diante de inquirições compadecidas Também aqui apresenta o plural suspeito que se exime da informação precisa o seu falecido marido teria perdido a sua fortuna dans les malheurs de forma totalmente semelhante àquela em que mais tarde outra viúva suspeita indica que o seu marido que tinha sido conde e general morrera sur les champs de bataille A isto corresponde o baixo demonismo do caráter de Mme Vauquer parece bonne femme au fond parece ser pobre mas possui como é dito mais tarde uma bela fortuninha e é capaz de qualquer baixeza vulgar para melhorar um pouco a própria sorte a limitação baixa e vulgar das metas dêste egoísmo a mistura de tolice astúcia e fôrça vital escondida dá novamente a impressão de algo repulsivamente fantasmagórico novamente impõese a comparação com um rato ou comi um outro animal que tem sôbre a fôrça imaginativa dos homens um efeito demoníaco e vil A segunda parte da descrição é portanto uma complementação da primeira depois de Mme Vauquer ter sido apresentada na primeira parte como síntese da unidade do espaço vital por ela dominado na segundn aprofundase a opacidade e a baixeza do seu ser que deve agir no mencionado espaço NA MANSÃO DE LA MOLE 413 Em tôda a sua obra como neste texto Balzac sentiu os meios por mais diferentes que fôssem como unidades orgânicas demoníacas até e tentou transmitir esta sensação ao leitor Êle não somente localizou os sêres cujo destino contava sèriamente na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada como o fazia Stendhal mas também considerou esta relação como necessária todo espaço vital tornase para êle uma atmos fera éticosensível cuja paisagem habitação móveis acessórios vestuário corpo caráter trato ideologia atividade e destino permeiam o ser humano ao mesmo tempo que a situação histó rica geral aparece novamente como atmosfera geral que abrange todos os espaços vitais individuais É digno de ser notado que conseguiu isto da maneira mais perfeita e legítima com referên cia aos círculos da burguesia média e pequena de Paris e da província enquanto que a sua representação da sociedade dis tinta é amiúde melodramática ilegítima e às vêzes até de um efeito cômico contrário às suas intenções Em geral Balzac não está isento de exageros melodramáticos mas enquanto isto só raramente prejudica a legitimidade do conjunto nas esferas baixas ou médias não é capaz de criar a atmosfera certa para as zonas mais elevadas da vida também não para as espirituais O realismo atmosférico de Balzac é um produto da sua época é êle próprio parte e produto de uma atmosfera A mes ma forma espiritual isto é a romântica que começava a perceber sensivelmente com tanta intensidade a unidade atmos férica de estilo das épocas anteriores que descobria a Idade Mé dia o Renascimento e também a forma historicamente peculiar das culturas estranhas Espanha o Oriente esta mesma forma espiritual desenvolveu também a compreensão orgânica para a peculiaridade atmosférica da própria época em tôdas as suas variadas formas O historicismo atmosférico e o realismo atmos lérico estão em estreita correlação Michelet e Balzac são arras Imlos pelas mesmas correntes Os acontecimentos que tiveram lugiir na França precisamente entre 1789 e 1815 e as suas conseqüências nos anos sucessivos trouxeram como seqüela o Imo de ser precisamente na França onde o realismo moderno contemporâneo chegou mais cedo e mais fortemente se desen volvcu e a unidade políticocultural do país deulhe neste sen lido um avanço importante com respeito à Alemanha A rea lidade francesa podia ser abrangida em tôda a sua variedade como um todo Em grau não menor do que a simpatia român tica pelu totalidade atmosférica dos espaços vitais também uma outrii corrente romântica contribuiu para o desenvolvimento do iciilismo moderno a saber aquela da qual já falamos tão repe tiiliimciilc a mistura de estilos Foi ela que permitiu que perso nagens de qualquer classe social com todos os seus entrelaça mentos vitais práticoquotidiunos tanto Julien Sorel como o velho íoiiot ou Mmc Viiuquer se tornassem objetos da representação litcniriii sórin 414 MIMESIS Estas considerações gerais parecemme evidentes é muito mais difícil descrever com alguma exatidão a ideologia que domina precisamente a especial maneira de representar de Bal zac As indicações que êle próprio faz a respeito são numerosas e dão também muitos pontos de apoio mas são confusas e contraditórias Por mais que êle seja rico em idéias e em ima ginação não possui a qualidade de separar entre si os diversos elementos da sua própria ideologia não é capaz de represar a irrupção de imagens e comparações sugestivas mas carentes de clareza em meio a análises racionais e em geral não conse gue adotar uma posição crítica diante da corrente da sua própria inspiração Tôdas as suas análises racionais embora estejam cheias de observações isoladas agudas e originais levam a uma fantasiosa macroscopia que lembra o seu contemporâneo Hugo No entanto para uma explicação de sua arte realista é neces sária precisamente uma nítida separação das correntes que nela confluem No Avantprapos à Comédie humaine publicada em 1842 Balzac começa a explicação da sua obra com uma comparação entre o reino animal e a sociedade humana para a qual se deixa inspirar pelas teorias de Geoffroy SaintHiiaire Êste biólogo sustentava sob a influência da filosofia natural especu lativa alemã da época o princípio da unidade típica na organi zação isto é a idéia de que na organização das plantas e dos animais haveria um plano geral Balzac lembra nesta ocasião os sistemas de outros místicos filósofos e biólogos Swedenborg SaintMartin Leibniz Buffon Bonnet Needham para formu lar finalmente os seus pensamentos da seguinte forma Le créateur ne sest servi que dun seul et même patron pour tous les êtres organisés Lanimal est un principe qui prend sa forme extérieure ou pour parler plus exactement les différences de sa forme dans les milieux où il est appelé à se développer A Êste princípio é transferido imediatamente à sociedade humana La Société com maiúscula como pouco antes Nature ne faitelle pas de lhomme suivant les milieux où son action se déploie autant dhommes différents quil y a de variétés en zoologie4 E depois compara as diferenças entre um soldado um trabalha dor um funcionário um advogado um vadio um sábio um estadista um comerciante um marinheiro um poeta um pobre 3 O Crlador nSo se serviu senão de um só modêlo para todos os sire organizados O animal é um princípio que assume sua forma exterior ou para falar mais exatamente as diferençai de sua forma nos meios onde chamado a se desenvolver 4 A Sociedade nlo faz do homem legundo os melos onde sua aclo 0 desenvolve tanto homens diferentes quantas há variedades zoológicas NA MANSÃO DE LA MOLE 415 um sacerdote com as que existem entre lôbo leão burro corvo tubarão e assim por diante Disto surge em primeiro lugar que Balzac tenta funda mentar as suas opiniões acêrca da sociedade humana tipo huma no diferenciado pelo meio mediante analogias biológicas A palavra meio milieu que aparece aqui pela primeira vez em sentido sociológico e à qual estava destinada uma tão grande carreira Taine parece têla recebido de Balzac Balzac apren deua de Geoffroy SaintHilaire o qual por sua vez a tinha transferido do campo da física para o da biologia Agora ela emigra da biologia para a sociologia O biologismo que Balzac tem em mente é como pode ser deduzido dos nomes por êle citados místico especulativo e vitalista com isto a representa ção ideal o princípio animal ou homem não está conce bido de modo algum de forma imanente mas como que uma idéia real platônica As diferentes espécies e gêneros são só formes extérieures E além do mais elas próprias não são vistas como historicamente mutantes mas como fixas um sol dado um trabalhador etc assim como um leão um burro A significação própria da idéia de meio assim como a apli cava na prática nos seus romances Balzac não parece têla reconhecido totalmente aqui Não a palavra mas a coisa o meio em sentido social já existiu muito antes dêle Montes quieu possui esta idéia inconfundivelmente mas enquanto Mon tesquieu dá muito maior consideração às condições naturais clima solo do que às que surgiram da história da humanidade c enquanto se afana em construir os diferentes meios como representações modelares inamovíveis às quais é possível aplicar cuso por caso o modêlo de constituição e de legislação apro priado para elas Balzac está na prática inteiramente sob o sortilégio dos elementos estruturais históricos e constantemente mutantes do seu meio E nenhum leitor chega de per si à idéia que Balzac parece defender no Avantpropos ou seja que o que lhe interessa é o tipo homem ou até mesmo somente os lipos especiais soldado comerciante o que se vê é a figura individual concreta internamente corpórea e histórica surgidu da imanência da situação histórica social física etc o cm constante mutação não o soldado mas por exemplo o coronel Bridau em Issoudun La Rabouilleuse licenciado após ii queda de Napoleão desmoralizado e entregue à aventura Após a audaciosa comparação entre a diferenciação zooló gica c sociológica Balzac se esforça contudo em salientar as peculiaridades da Société em contraste com a Nature Êle as vê mites de mais nada na muito maior variedade da vida humana c dos costumes humanos assim como na possibilidade inexistente no reino animal de se transformar uma espécie em ontra Lépicier devient pair de France et le noble descend parfois au dernier rang social outrossim há o acasalamento de ripéeie diferentes la femme dun marchand est quelquefois ililtnr dêtre celle dun prince dam la Société la femme ne 416 MIMESIS se trouve pas toujours être la femelle dun mâle também são mencionados os dramáticos conflitos amorosos raramente exis tentes no reino animal e os diferentes graus de inteligência de diferentes sêres humanos A oração que resume tudo diz LEtat social a des hasards que ne se permet pas la Nature car il est la Nature plus la Société Por mais inexato e macroscópico que seja êste período por mais que sofra por causa do proton pseudos falsidade inicial da comparação que lhe serve de fundamento não deixa de conter uma compreensão histórica instintiva les habitudes les vêtements les paroles les demeures changent au gré des civilisations e algo de dinamismo vitalista si quel ques savants nadmettent pas encore que lAnimalité se trans borde dans lHumanité par un immense courant de vie Não se fala nas especiais possibilidades de compreensão de que o homem dispõe frente ao homem também não em uma formu lação negativa isto é que comparados com êle osanimais não a possuem pelo contrário a simplicidade relativa da vida social e espiritual dos animais é colocada como fato objetivo e só no fim encontrase uma insinuação do caráter subjetivo de tais conhecimentos les habitudes de chaque animal sont à nos yeux du moins constamment semblables en tout temps Depois desta transfusão do biológico ao históricohumano Balzac prossegue com uma polêmica contra a historiografia habi tual à qual lança em rosto ter negligenciado até então a histó ria dos costumes esta seria a tarefa à qual êle terseia avocado Com isto não menciona os ensaios de história dos costumes que foram feitos a partir do século XVIII Voltaire portanto não se chega também a uma análise que explicasse a diferença entre a sua representação dos costumes e a dos seus eventuais predecessores somente menciona Petrônio Ao observar as di ficuldades da sua tarefa um drama com três ou quatro mil personagens sentese encorajado pelo exemplo dos romances de Walter Scott movimentamonos estritamente no mundo do his toricismo romântico Também aqui a clareza do pensamento vêse prejudicada pelas formulações cheias de efeitos e fantasia por exemplo faire concurrence à lEtatCivil é incompreensível e a frase le hasard est le plus grand romancier du monde neces sita dentro de uma mentalidade histórica ao menos de um comentário Contudo alguns motivos significativos e caracte rísticos ressaltam bem antes de mais nada a concepção do romance de costumes como história filosófica e em geral a interpretação sustentada enèrgicamente por Balzac também alhu res de que a sua atividade deve ser considerada como historio grafia ainda voltaremos a êste ponto outrossim a justificação de tôdas as espécies e de todos os níveis estilísticos em obras dêste gênero e finalmente a sua intenção de superar Walter Scott na medida em que encerra todos os seus romances num conjunto único numa representação global da sociedade fran cesa do século XIX o que volta a designar aqui como obra histórica NA MANSÃO DE LA MOLE 417 Mas com isto o seu plano não se esgota quer prestar con tas pormenorizadas ainda acêrca de les raisons ou la raison de ces effets sociaux e se teve êxito pelo menos na procura de ce moteur social quer finalmente também méditer sur les principes naturels et voir en quoi les Sociétés sécartent ou se rapprochent de la règle éternelle du vrai du beau Não é necessário que insistamos acêrca da sua incapacidade de tecer considerações teóricas fora dos limites de uma narração nem acêrca do fato de que portanto só poderia tentar a realização dos seus planos em forma de romances Aqui somente interessa constatar que não lhe bastava a filosofia imanente dos seus romances de costumes e que esta insatisfação o induz aqui após tanta dis cussão biológica e histórica a empregar imagens modelares clás sicas la règle éternelle le vrai le beau categorias que não mais pode aproveitar de forma prática era seus romances Todos êstes motivos biológicos históricos clàssicamente morais encontramse espargidos efetivamente pela sua obra Gosta muito de comparações biológicas fala em fisiologia ou zoologia motivado por fenômenos sociais fala da anatomie du cœur humain no texto acima citado compara os efeitos de determinado meio social com as exalações que produzem o tifo e numa outra passagem do Père Goriot diz que Rastignac se leria entregue aos ensinamentos e seduções do luxo avec lardeur dont est saisi limpatient calice dun dattier femelle pour les fécondantes poussières de son hyménée É desnecessário enume rar motivos históricos pois o espírito atmosféricoindividuali zante do historicismo é o espírito de tôda a sua obra mas quero citar pelo menos uma de muitas passagens para mostrar que cru constantemente consciente das concepções historicistas A passagem consta do seu romance de província La vieille fille tratase de dois senhores de certa idade que moram em Alen çon um dêles é um típico cidevant o outro um oportunista da revolução falido Les époques déteignent sur les hommes qui les traversent Ces deux personnages prouvaient la vérité de cet axiome par lopposition des teintes historiques empreintes dans leurs physio nomies dans leurs discours dans leurs idées et leurs coutumes5 r numa outra passagem do mesmo romance fala por ocasião île uma casa de Alençon do archétype que ela representaria aqui não se trata do arquétipo de um ente abstrato histórico mas laqueie das maisons bourgeoises de uma grande parte da Irança A casa cujo saboroso caráter local descreveu anterior mente mereceria o seu lugar nesta obra tanto mais quil expliiue de tnarurs et représente des idées Elementos bioló Ah época dcftboinnt Abre ou homens que as atravessam Estas duas IHHtnnnycn ptnvitvmn a verdade díxle axioma pela oposiço das tintas hís irtih m impie cm iuai ÍU ionom lai nai ftuan palavras nas siuls icfâias e t nlttHIH 418 MIMESIS gicos e historicistas reúnemse na obra de Balzac e o fazem bastante bem não obstante algumas faltas de clareza e de muitos exageros pois ambos encaixam no caráter românticodinâmico da mesma caráter que por vêzes transborda no românticomá gico e demoníaco Em ambos os casos sentese a ação de fôrças irracionais Em contraste o elemento clássicomora lista age freqüentemente com um corpo estranho Manifestase particularmente na propensão de Balzac para a formulação de sentenças morais de caráter generalizador Por vêzes e como observações isoladas são engenhosas mas sofrem em geral de uma generalização desmedida por vêzes nem são engenhosas e quando crescem até se converterem em análises mais prolonga das surge o que vulgarmente se denomina de palavrório Quero citar aqui algumas máximas que se encontram no Père Goriot i Le bonheur est la poésie des femmes comme la toilette en est le fard La science et lamour sont des asymptotes que ne peuvent jamais se rejoindre Sil est un sentiment inné dans le cœur de lhomme nestce pas lorgueil de la protec tion exercé à tout moment en faveur dun être faible Quand ou connaît Paris on ne croit à rien de ce qui sy dit et lon ne dit rien de ce qui sy fait Un sentiment nest ce pas le monde dans une pensée O mínimo que pode ser dito sôbre tais sentenças é que não merecem em sua maioria a generalização de que gozam São as ocorrências surgidas da situação do instante por vêzes muito oportunas por vêzes absurdas nem sempre de bom gôsto Balzac ambiciona ser um moralista clássico ocasionalmente en contramse nêle até reminiscências de La Bruyère por exemplo uma passagem no Père Goriot onde são descritos os efeitos físi cos e espirituais da posse de dinheiro por ocasião da remessa de dinheiro que Rastignac recebe de sua família Mas isto não casa nem com o seu estilo nem com o seu temperamento As melhores formulações encontraas em meio às narrações quan do nem pensa em moralizar assim quando na Vieille Fille diz acerca de Mlle Cormon aproveitando a oportunidade do ins tante Honteuse ellemême elle ne devinait pas la honte dautrui Acêrca do plano do conjunto que ia se formando paula tinamente dentro dêle há ainda outras interessantes declarações dêle próprio sobretudo do tempo em que o fixou definitivamente nas cartas escritas ao redor de 1834 Há três motivos que devem ser salientados especialmente nestas autointerpretações 6 A felicidade é a poesia das mulheres assim como a toilette é seu disfarce A ciência e o am or são assíntotas que nunca podem se encon trar Se há um sentimento inato no coração do homem não 6 êle o orgulho da proteção exercida em favor de um ser débil Quando ne conhece Pariu não se acredita em nada do que dizem a seu respeito o nfto w dit nndn acêrtn do que lá se faz Um sentimento não é o mundo num pcnanmcnln NA MANSÃO DE LA MOLE 419 encontramse todos os três juntos numa carta à senhora von Hanska Lettres à FEtrangère Paris 1899 carta de 26 de outu hro de 1834 pp 200206 onde diz p 205 Les Etudes de Mœurs représenteront tous les effets sociaux sans que ni une situation de la vie ni une physionomie ni un caractère dhomme ou de femme ni une manière de vivre ni une profession ni une zone sociale ni un pays français ni quoi que ce soit de lenfance de la vieillesse de lâge mur de la politique de la justice de la guerre ait été oublié Cela posé lhistorié du coeur humain tracée fil à fil lhis toire sociale faite dans toutes ses parties voilà la base Ce ne seront pas des faits imaginaires ce sera ce qui se passe partout7 Dos três motivos que tenho em mente dois podem ser reconhecidos imediatamente primeiramente o caráter universal c vitalmente enciclopédico da intenção nenhuma parte da vida deve faltar logo depois o caráter realqualquer da mesma ce qui se passe partout O terceiro motivo reside na palavra histoire Nesta histoire du coeur humain ou histoire sociale não se trata de História no sentido corrente não da investigação científica de acontecimentos ocorridos mas de uma invenção relativamente livre não se trata de history mas de fiction os têrmos inglêses são especialmente claros não se trata de forma alguma do passado mas do presente contemporâneo que se estende quando muito por alguns anos ou décadas no passado Quando Balzac designa os seus Etudes de Mœurs au dixneuvième siècle como história de forma semelhante Stendhal já tinha dado ao seu romance Le Rouge et le Noir o subtítulo Chronique du dixneu vième siècle isto significa em primeiro lugar que considéra a sua atividade inventiva artisticamente conformadora como xendo uma atividade historicamente interpretativa até como uma atividade de filosofia da história como já podia ser apreen dido no Avantpropos em segundo lugar significa que consi dera o presente como história isto é o presente é algo que ocorre surgindo da história De fato os seus homens e os seus ambientes por mais presentes que sejam estão sempre represen I lidos como fenômenos que emanaram dos acontecimentos e das íórçiis históricas Basta reler por exemplo a descrição da ori gem da fortuna de Grandet Eugénie Grandet ou a carreira île Du Bousquier La vieille Fille ou a do velho Goriot para se aperceber disso nada semelhantemente consciente nem exato se encontra em parte alguma antes do aparecimento de Stendhal c de Halzac c êste último ultrapassa o primeiro de longe no 7 O fCstuüos de Costumes representarão todos os efeitos sociais sem liir nenhuma aituaçfio da vida nenhum fisionomia nenhum caráter de homem uii ile mulher nenhuma maneira de viver nenhuma profissão nenhuma zona ocinl nenhuma província francesa nada do que disser respeito à infância à vrlhUc h idade madura i política justiça à guerra tenha sido esquecido Uto pAftto ii hifttárlu do coraçfto humano traçada fio por fio a história um In feiu cm Adiu n Minn piirtc ei n bane N lo wrflo fatos imaginários oiA n ir um nlcrr rm Mn parte 420 MIMESIS que se refere à ligação orgânica entre homem e história Uma tal concepção e uma tal prática são totalmente historicistas Voltemos ainda uma vez ao segundo motivo ce ne seront pas des faits imaginaires ce sera ce qui se passe partout Com isto fica dito que a invenção não haure da livre fôrça imaginativa mas da vida real tal como se apresenta em tôda parte Ora Balzac possui diante desta vida múltipla embebida de história representada sem rebuços com tudo o que tiver de quotidiano prático feio e comum uma posição semelhante à que Stendhal já possuíra levaa a sério e até a considera tràgicamente nesta forma real quotidiana intrahistórica Isto não existiu em parte alguma no tempo posterior ao surgimento do gôsto clássico nem antes nesta forma prática e intrahistórica dirigida para uma autoresponsabilização social do homem A partir do classicismo francês e sobretudo após o absolutismo não somente o trata mento do quotidianoreal tinha se tornado muito mais limitado e decoroso mas também a atitude que se tinha diante dêle privavase por assim dizer fundamentalmente do trágico e do problemático Tentamos analisar isto nos capítulos precedentes um objeto da realidade prática podia ser tratado de forma cômi ca satírica didáticomoralizante certos objetos de campos bem circunscritos e determinados do contemporâneo e quotidiano atingiam até o nível estilístico mediano do comovente mas não se ia para além disto A vida realquotidiana mesmo das cama das médias da sociedade era considerada como de estilo baixo 0 engenhoso e importante Henry Fielding que toca tantos pro blemas morais estéticos e sociais mantém a representação sem pre nos limites do tom satíricomoralista e diz no Tom Jones livro XIV cap I that kind of novels which like this 1 am vriting is of the comic class A irrupção da seriedade trágica e existencial no realismo tal como a constatamos em Stendhal e Balzac está sem dúvida em estreita correlação com o grande movimento romântico da mistura dos estilos designado pelo slogan Shakespeare contra Racine e considero a forma stendhalbalzaquiana a mistura do sério com a realidade quotidiana muito mais decisiva autêntica importante do que a do grupo de Victor Hugo que queria unir o sublime ao grotesco A novidade da atitude e a nova espécie de objetos que eram tratados séria problemática tràgicamente tiveram como efeito o desenvolvimento progressivo de uma espécie totalmente nova de estilo sério ou se se quiser elevado não seria possível trans ferir para os novos objetos sem mais nem menos os níveis antigos nem os cristãos nem os shakesperianos nem os níveis racinianos de percepção e de expressão num primeiro momento mostravase uma certa insegurança nesta nova espécie de atitude grave Stendhal cujo realismo surgira a partir de umn resistência contra um presente que lhe era desprezível ainda conservou nu NA MANSÃO DE LA MOLE 421 sua atitude muito dos instintos do século XVIII Nos seus heróis ainda aparecem os espectros das lembranças de figuras tais como Romeo Don Juan Valmont das Liaisons Dangeu reses e SaintPreux sobretudo vive nêle a figura de Napoleão os heróis dos seus romances pensam e sentem contra o tempo rcbaixamse sòmente com desprêzo às intrigas e maquinações do presente pósnapoleônico embora se imiscuam constante mente motivos que segundo as concepções anteriores teriam caráter cômico não deixa de prevalecer para êle o conceito de que uma figura pela qual sente uma participação trágica parti cipação que também exige do leitor deve ser um herói autên tico grande e audacioso nos seus pensamentos e paixões A liberdade do coração grande a liberdade da paixão ainda têm no caso de Stendhal muito da altura aristocrática e do jôgo com a vida que pertencem antes ao ancien régime do que à burguesia do século XIX Balzac submerge os seus heróis bem mais profundamente na temporalidade com isto perdemselhe a medida e os limites da quilo que anteriormente era considerado trágico e a seriedade objetiva diante da realidade moderna que se desenvolveu mais tarde esta êle ainda não possui Qualquer enrêdo por mais tri vial ou corriqueiro que fôr é por êle tratado grandiloqüente mente como se fôsse trágico qualquer mania é por êle vista como paixão Está sempre disposto a marcar qualquer infeliz tomo herói ou como santo se se tratar de uma mulher com pitrun com um anjo ou com uma madona Demoniza todo e qualquer malvado enérgico e em geral qualquer figura leve mente sombria e chega até a chamar o coitado do velho Goriot d Christ de la paternité Correspondia ao seu temperamento agitado cálido e carente de crítica correspondia também à moda ilr vida romântica farejar por tôda parte fôrças demoníacas wiictas c exacerbar a expressão até o melodramático Na geração seguinte que faz sua aparição nos anos cin qüenta apresentase neste sentido uma violenta reação com Haubert o realismo tornase apartidário impessoal e objetivo Num Irabulho preparatório sôbre a imitação séria do quotidia no analisei um trecho de Madame Bovary a partir dêste pon lo ile vista c repetirei aqui aquelas páginas com poucas modi tliaçrteii c abreviações pois encaixam perfeitamente na atual roiientc de idéias e porque o local e a data da sua publicação I litiimbiil 1937 devem ter impedido que chegassem a ter mui ion leitores O trecho em questão está no nono capítulo da iimieim parte de Madame Bovary e diz assim Mai cétait surtout aux heures des repas quelle nen pou vait plim dan cette petite salle au rezdechaussée avec le poêle iin Imitait la porte qui criait les murs qui suintaient les pavés I i i i i i i i i Ii h toute lamertume de lexistence lui semblait servie sur on umtlcllc et il la fumée du bouilli il montait du fond de son imii iiimiuc dmitie bouffées daffadissement Charles était 422 MIMESIS long à manger elle grignotait quelques noisettes ou bien ap puyée du coude samusait avec la pointe de sou couteau de faire des raies sur la toile cirée8 A passagem constitui o ponto culminante de uma descrição cujo objeto é a insatisfação de Emma Bovary com a sua vida em Tostes Longo tempo esperou um acontecimento repentino que imprimisse uma nova direção a essa vida sem elegância aventura nem amor no mais profundo da província ao lado de um homem medíocre e enfadonho Ela até se preparou para êsse acontecimento cuidou de si e da sua casa como que para merecer essa virada do destino e para ser digna dela como ela não ocorre o desassossêgo e a desesperação apoderamse dela Isto é descrito por Flaubert em várias imagens que pintam o ambiente que rodeia Emma tal como êle se lhe apresenta somen te quando não vê mais esperança alguma de fugir dêsse mundo apareceselhe nitidamente o que êle tem de desconsolado mo nótono cinzento enfadonho asfixiante e irremediável A pas sagem que transcrevemos é o ponto culminante da descrição do seu desespêro Depois narrase como desleixa tudo na sua casa como deixa de se cuidar a si mesma e começa a ficar adoentada de tal forma que o seu marido se decide a deixar Tostes pois acredita que o clima não lhe faz bem A própria passagem mostra um quadro marido e mulher juntos durante uma refeição Mas êste quadro não é mostrado de forma alguma em si ou por si mesmo mas está subordinado ao objeto dominante ao desespêro de Emma Por isso mesmo também não é apresentado ao leitor de forma imediata eis duas pessoas sentadas à mesa e lá está o leitor que as observa mas o leitor vê em primeiro lugar Emma da qual muito se falou nas páginas anteriores e sòmente através dela é que vê o quadro De forma imediata o leitor vê apenas o estado interno de Emma e de forma mediata a partir dêste estado à luz da sua sensação vê o processo da refeição à mesa As primeiras palavras do trecho Mais cétait surtout aux heures des repas quelle nen pouvait plus anunciam o tema e tudo o que se segue só é desenvolvimento do tema Não só as determinações dependentes de dans e avec que indicam as espacialidades se constituem com o seu amontoado de pormenores do maltstar num comentário para elle nen pouvait plus mas também a ora ção seguinte que fala do nojo que lhe causam as comidas su jeitase no seu sentido e no seu ritmo à intenção principal Quando mais tarde se lê Charles était long à manger embora se trate gramaticalmente de uma nova oração e ritmicamente 8 M as era sobretudo às horas de refeição que ela não agüentava mais nesta pequena sala do andar térreo com a estufa que fumegava a porta que rangia os muros que ressumavam os pavimentos úmidos tôda a amargura dn existência parecialhe servida no seu prato e como a fumaça do cozido lubiont do fundo de sua alma como que outras baforadas de enjôo Carlos era domo rado a comer ela mordiscava ulgumn avelA ou bem apoiada no cotavéln divertlasc a fiter riscoa com w poniu dn facti nôbre o oleado NA MANSÃO DE LA MOLE 423 dc um nôvo movimento não deixa de ser apenas uma retomada uma variante do movimento principal somente a partir do con traste entre o seu tranqüilo comer e a sua repugnância e os movimentos descritos logo a seguir do seu nervoso desespêro h oração ganha a sua significação própria O homem que come despreocupado tornase ridículo e algo espectral quando Emma olha para êle assim como está sentado e come tornase o mo tivo principal propriamente dito do elle rien pouvait plus pois tudo o mais que origina o desespêro o triste recinto a comida habitual a falta de toalha de mesa o desconsolador do conjun to todo parece a ela e por conseguinte também ao leitor algo que tem a ver com Charles Bovary que emana dêle algo que seria totalmente diferente se êle fôsse diferente Desta forma a situação não é apresentada simplesmente como quadro mas o que é apresentado em primeiro lugar é a personagem Emma e através dela apresentase a situação Ain ilii não se trata contudo como em alguns romances em primei iii pessoa e em outras obras posteriores de espécie semelhante tlii simples reprodução do conteúdo da consciência de Emma daquilo que ela sente e do modo como ela o sente Embora wju dela que se irradie a luz que ilumina o quadro ela própria mio deixa de ser uma parte do quadro está em meio a êle Lem lua assim o falante da cena de Petrônio no nosso segundo ca pitulo só que os meios que Flaubert emprega são diferentes Niio é Emma quem fala aqui mas o escritor Le poêle qui fu niiilt la porte qui criait les murs qui suintaient les pavés hu niltlrx certamente Emma sente e vê tudo isto mas ela não unia capa de ajuntálo desta forma Toute 1amertume de Fexis írK c lui semblait servie sur son assiette ela certamente tem uma ui sensução mas se quisesse exprimila não sairia desta forma iiini chegar a esta formulação faltamlhe a agudeza e a fria ho nestidade que resulta de uma prestação de contas consigo mesmo Indavia não é de modo algum a existência de Flaubert mas a ilo Im m a a única que se apresenta nestas palavras Flaubert mui la senão tornar lingüisticamente maduro o material que ela nlricce em sua plena subjetividade Se Emma pudesse fazêlo uinlm não mais seria o que é terseia emancipado de si mes ma o com isto estaria salva Mas ela não somente não vê as nti mas é vista como vidente c através disto pela mera desig 111111111 nftidn da sua existência subjetiva a partir das suas pro pilas sensações é julgada Quando se lê uma passagem poste imi 2 parte capítulo 12 perto da segunda página jamais luirlfx nc lui paraissait aussi désagréable avoir les doigts aussi i wn iM 1txprlt aussi lourd les façons si communes pensase tiilvr por um instunte que esta singular justaposição seja o re mitindo de um amontoamento afetivo dos motivos que fazem jmiiii o desgôsto de Emma pelo seu marido que seja ela pró piin quem por assim dizer pronunciasse internamente estas pa lavra que se trate de um caso de discurso indireto Mas isto p i I m um érro Irutasc dc fnto dc alguns motivos paradigmá 424 MIMESIS ticos do desgosto de Emma mas foram concatenados muito pre meditadamente pelo autor e não por Emma movida pelas suas emoções Pois Emma sente muito mais e de maneira muito mais confusa vê também outras coisas afora estas no seu cor po nos seus modos nas suas vestimentas misturamse lembran ças entrementes ouveo dizer alguma coisa sente talvez sua mão a sua respiração vêo andar de cá para lá bonachão limitado inapetitoso e despreocupado é um semnúmero de impressões confusas A única coisa que aparece com contornos nítidos é a repugnância que sente por êle e que deve ocultar Flaubert transpõe a agudeza nas impressões escolhe três dentre elas de forma aparentemente involuntária mas que são tiradas de forma exemplar do físico do espiritual e do comportamento e coloca as assim como se fôssem três choques que atingem Emma um após o outro Isto evidentemente não é uma reprodução natu ralista da consciência Os choques naturais ocorrem sempre de forma totalmente diferente Há nisto a mão ordenadora do escritor que compendia de forma fechada a confusão do con teúdo interno e o dirige no sentido em que êle próprio avança na direção repugnância diante de Charles Bovary Esta orde nação do conteúdo interno evidentemente não recebe as suas escalas de fora mas do próprio material de que se constitui É pôsto em ordem aquilo que deve ser empregado para que o próprio conteúdo se transforme em linguagem sem mistura alguma Quando se compara esta forma de representação com as de Stendhal ou Balzac devese expor preliminarmente que também aqui podem ser encontradas as duas características decisivas do realismo moderno também aqui acontecimentos quotidianos e reais de uma camada social baixa da burguesia provinciana são levados muito a sério ainda falaremos sôbre o caráter especial desta seriedade e também aqui os acontecimentos quotidia nos estão submersos muito exata e profundamente numa época históricocontemporânea determinada a época da monarquia burguesa embora isto ocorra de forma menos evidente do que no caso de Stendhal ou de Balzac não deixa de ser incontestá vel Nestas duas características fundamentais existe em con traste com todo o realismo anterior unanimidade entre os três escritores mas a posição de Flaubert diante do seu objeto é to talmente diferente No caso de Stendhal e de Balzac ouvimos com freqüência quase sempre aliás como o autor pensa acêrca das suas personagens e dos acontecimentos sobretudo Balzac acompanha as suas narrações constantemente com comentários comovidos ou irónicos ou morais ou históricos ou econômi cos Ouvimos também muito amiúde o que as próprias perso nagens pensam ou sentem e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa si tuação dada Estas duas coisas faltam em Flaubert quitsc intei ramente A sua opinião sôbrc os acontecimentos e as pcrsonii NA MANSÃO DE LA MOLE 425 gens não é expressa e quando as próprias personagens se ma nifestam isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identi fique com a sua opinião ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela Embora ouçamos o autor falar êle não exprime qualquer opinião e não comenta O seu papel limitase a escolher os acontecimentos e a traduzilos em linguagem e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento se fôr possível exprimilo limpa e integralmente interpretaria intei ramente a si próprio e os sêres humanos que dêle participassem muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qual quer opinião ou juízo que lhe fôsse acrescentado Sôbre esta convicção isto é sôbre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade honestidade e es mfiro repousa a arte de Flaubert Isto é uma tradição muito antiga clàssicamente francesa Já no verso de Boileau sôbre o poder da palavra bem empregada ucêrca de Malherbe dun mot mis en sa place enseigna le pouvoir há algo disto considerações semelhantes encontramse cm Ja Bruyère Vauvenargues disse Il riy aurait point derreurs qui ne périssent dellesmêmes exprimées clairement A con litinçu de Flaubert na linguagem vai além da de Vauvenargues iicrcdita que também a realidade do acontecimento se desvende nu expressão lingüística Flaubert é um homem que trabalha muito conscientemente e possui senso artístico crítico num grau pouco comum até na França Por isso encontramse em sua cor icipondência especialmente a dos anos 1852 a 1854 durante n quais escreveu Madame Bovary Troisième Série na Nouvelle 1illtlon augmentée da Correspondance 1927 muitas manifesta nte esclarecedoras acêrca das suas intenções artísticas Elas ilcKcmbocam numa teoria que é em última análise mística mas que repousa na prática como tôda mística legítima sôbre a mAo u experiência e a disciplina uma teoria da submersão mm objetos da realidade esquecendose de si mesmo através ilu qiml êstes objetos seriam transformados par une chimie merveilleuse e evoluiriam até atingir a maturidade verbal Des tu forum os objetos preenchem inteiramente o escritor êle se qticcc a si próprio o seu coração servelhe tão sòmente para iilir o dos outros e quando êste estado atingível sòmente pela viol6nciu dc uma paciência fanática fôr alcançado a expressão linguistica plena que ao mesmo tempo apanha integralmente o ohjcln cm questão e o julga imparcialmente apresentase de per m o objetos são vistos como Deus os vê na sua verdadeira idiiliiliulc A isto juntase uma concepção da mistura de estilos que Hiirgc du mesma visão místicorealista não haveria objetos ilivuloM e baixos a criação seria uma obra de arte criada sem piiidiiltdiKlc o artista realista deveria imitar os processos da iiiiiVtto c ciidu objeto conteria na sua peculiaridade perante o Alfii dc Deu Imilo a seriedade quanto a comicidade tanto a tllgniilmlr quiinto n baixeza Sc fôr reproduzido correta e exa iiiiiunic ciilúo também será utingido exutumente o nível dc esti 426 MIMESIS lo que lhe corresponde não é necessária nem uma teoria geral dos níveis pela qual os objetos seriam graduados segundo a sua dignidade nem qualquer análise por parte do escritor que comente o objeto após sua apresentação para fins de melhor compreensão e mais exata ordenação tudo isto deveria surgir por si próprio a partir da representação do objeto É evidente o contraste que existe entre esta concepção e a evidenciação grandiloqüente e ostentatória do próprio sentimen to e das escalas por êle conferidas tal como tinha surgido a partir de Rousseau e por sua causa uma interpretação compara tiva entre a frase de Flaubert Notre coeur ne doit être bon quà sentir celui des autres e a de Rousseau no início das Con fessions Je sens mon coeur et je connais les hommes podfria representar exaustivamente a mudança de posição que acabava de se completar Porém da correspondência também surge com clareza quão penosamente e com que convulsionado esfôrçó Flau bert chegou às suas convicções Os grandes objetos e a atuação livre e carente de responsabilidades da fantasia criadora ainda têm um grande atrativo para êle sob êste ponto de vista vê Shakespeare Cervantes e até Hugo com olhos totalmente ro mânticos e maldiz por vêzes o seu próprio objeto estreito e pequenoburguês que o obriga a realizar um trabalho estilístico miniatural dos mais penosos dire à la fois simplement et pro prement des choses vulgaires Isto vai por vêzes tão longe que diz coisas que contradizem as suas posições fundamentais et ce quil y a de désolant cest de penser que même réussi dans la perfection cela Madame Bovary ne peut être que passable et ne sera jamais beau à cause du fond même Juntase ainda a isto o fato de êle como tantos importantes artistas do século XIX odiar o seu tempo vê com grande agudeza os seus pro blemas e as crises que estão em preparação vê a anarquia inter na o manque de base théologique o comêço da massificação o historicismo corrompido e eclético o domínio do chavão não vê contudo qualquer solução qualquer escapatória o seu faná tico misticismo artístico é quase como uma religião sucedânea à qual se aferra convulsivamente e a sua honestidade tornase muito freqüentemente resmungona mesquinha colérica e ner vosa Com isto sofre por vêzes o amor imparcial pelos objetos comparável ao amor do criador Todavia a passagem que ana lisamos está intata por essas lacunas e debilidades do seu ser permitenos observar limpamente o efeito da sua intenção ar tística A cena mostra marido e mulhec à mesa a mais quotidiana das situações que possam ser imaginadas anteriormente só se riam concebíveis literariamente como parte de uma farsa de um idílio de uma sátira Aqui é um retrato do malestar a sa ber não de um malestar momentâneo e passageiro mas de um malestar crônico que domina inteiramente tôda uma existência a de Emma Bovary Embora mais arde apareçam tôda classe de acontecimentos inclusive histórins amorosiis ninguém pode NA MANSÃO DE LA MOLE 427 rá ver nesta cena à mesa só uma parte da exposição de uma his tória de amor nem quererá designar Madame Bovary como um romance de amor O romance é a representação de tôda uma existência humana sem escapatória e o nosso trecho é uma par te disso que contém contudo o todo em seu bôjo Nesta cena não acontece nada de extraordinário e nada de extraordinário aconteceu no passado imediato É um instante qualquer da hora regularmente recorrente em que marido e mulher comem jun tos Os dois não brigam não se apresenta nenhum conflito tan gível Emma está totalmente desesperada mas o seu desespêro não é causado por qualquer catástrofe determinada não há nada lc totalmente concreto que tenha perdido ou desejado Embora tenha muitps desejos êstes são totalmente vagos elegância ámor uma vida cheia de variações Um tal desespêro carente de con creção pode ter existido sempre mas antes nunca se pensou em leválo a sério em obras literárias Uma tal tragicidade carente dc forma se fôr possível chamála de tragicidade que é desen cadeada pela própria situação como um todo só se tornou apreen aível literàriamente através do romantismo Flaubert deve ter ido o primeiro a representála junto a sêres humanos de baixa formação espiritual e de baixo nível social E certamente é o primeiro a apreender imediatamente o caráter circunstancial des ta situação anímica Nada acontece mas êste nada tornouse um algo pesado surdo e ameaçador Já vimos como Flaubert consegue isto ordena na linguagem as confusas impressões do malestar que surgem em Emma pela observação do recinto da comida e do marido até conferirlhes uma densa univocidade lim cral também narra só raramente acontecimentos que impe lem h ação ràpidamente mediante uma série de meros quadros que fazem do nada do diaadia indiferente uma duradoura pre cnça do desgosto do enfado de falsas esperanças de decepções imraliftuntcs e de lastimáveis temores um destino humano cin zento qualquer arrastase lentamente para o seu fim lambém a interpretação da situação está contida em si menina Os dois estão sentados juntos à mesa o homem nada niiiHitu do estado interno da mulher têm tão pouco em comum que nem chega a haver uma disputa uma discussão um conflito nlieiio Cada um dêlcs está de tal modo encasulado no seu pró mundo ela no desespêro e nos vagos sonhos desejosos êle nu m u i tAla satisfação provinciana que os dois estão totalmente tnilillírioi Nada têm em comum mas nada também de próprio im cuja causa valesse a pena ficar sozinho Pois cada um tem puni i um mundo falso e néscio que não é possível coadunar mm a realidade da sua situação de tal modo que cada um dêles iltHnliça as possibilidades da vida que se lhes oferecem O iiie iioinlcec com êstes dois vale para quase tôdas as personagens lo lomimcc Cada um dos muitos sêres humanos medíocres itie nôlc o movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez n6ilii r medíocre um mundo de ilusões hábitos impulsos e i liuvfton aula um catá nà nenhum pode compreender o outro 428 MIMESIS nenhum pode ajudar o outro a atingir a compreensão Não existe um mundo comum dos sêres humanos porque êste so mente poderia surgir quando muitos dêles encontrassem o cami nho para a realidade autêntica e própria conferida a cada um dêles realidade esta que seria também então a autêntica realidade comum Certamente os homens se encontram para os seus afazeres e divertimentos mas êste encontro não dá ne nhum sinal de comunidade tornase esquerdo ridículo penoso e está carregado de incompreensão vaidade mentira e ódio estúpido O que seria realmente o mundo o mundo dos sábios isto Flaubert nunca nos diz No seu livro o mundo é feito de mera estupidez que não atina para a verdadeira realidade de tal forma que esta nem poderia ser encontrável Todavia ela existe Existe na linguagem do escritor que desmascara a estu pidez pelo seu mero relato A linguagem tem pois uma escaia para a estupidez e com isto tem também parte daquela realida de dos sábios que não aparece em nenhuma outra forma nes te livro Também Emma Bovary a figura principal do romance está totalmente enfiada na falsa realidade na bêtise humaine assim como o herói do outro romance realista de Flaubert Frédéric Moreau da Education sentimentale Como encaixa a modalidade da representação flaubertiana de tais personagens nas categorias tradicionais do trágico e do cômico Sem dúvida a existência de Emma é apreendida em tôda a sua pro fundidade sem dúvida as categorias intermediárias que antes existiram como por exemplo comovente ou satírico ou talvez didático não são aplicáveis e muito amiúde o leitor é arrebatado pelo seu destino de uma forma que se parece muito com a compaixão trágica Mas ela não é um autêntico herói trá gico A maneira como a linguagem desnuda o tolo o imaturo e o desordenado da sua vida até o miserável defcta vida no qual fica prêsa toute lamertume de F existence lui semblait servie sur son assiette exclui a idéia da autêntica tragicidade e o autor e o leitor nunca podem se sentir de tal forma unos com ela como deve ser o caso com o herói trágico Ele é sem pre posta à prova julgada e juntamente com todo o mundo em que está prêsa condenada Mas também não é cômica não o é com tôda certeza para tanto é compreendida muito profun damente demais a partir do envolvimento do seu destino em bora Flaubert não leve a cabo qualquer espécie de psicologia da compreensão mas deixe falar simplesmente os fatos En controu uma posição diante da realidade da vida contemporânea que difere totalmente das posições e dos níveis estilísticos ante riores mesmo dos de Stendhal e de Balzac aliás precisamente dos destes dois Poderiam ser chamados muito simplesmente dc seriedade objetiva Isto parece estranho como denominação estilística para uma obra de arte literária Seriedade objetiva que procura penetrar até as profundezas dus paixões c enredos dc uma vida humana sem contudo entrar cia própriu num cs NA MANSÃO DE LA MOLE 429 tado de excitação ou pelo menos sem delatar essa excitação esta é uma posição que se pode esperar mais de um clérigo de um educador ou de um psicólogo do que de um artista Mas êstes querem agir de forma imediatamente prática o que está longe das intenções de Flaubert Através da sua atitude pas de cris pas de convulsion rien que la fixité dun regard pensif quer obrigar a linguagem a produzir a verdade acêrca dos objetos da sua observação le style étant à lui tout seul une nwnière absolue de voir les choses Corr II 346 Em todo caso atingese também através disto no fim das contas uma intenção pedagógica e de crítica do seu tempo não se deve ter receio de exprimir isto assim por mais que Flaubert faça ques tão de ser artista e nada mais que artista Quanto mais a gente sc ocupa com Flaubert tanto mais se evidencia a profundidade du sua visão da problemática e da socavação da cultura bur guesa do século XIX contida nas suas obras realistas e muitas pussagens importantes da sua correspondência confirmam êste fulo A demonização dos processos sociais que se encontra em Hulzac falta evidentemente em Flaubert de forma total e ab soluta A vida não mais embate e escuma mas flui viscosa e pesadamente Para Flaubert o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nus paixões muito movimentadas não em sêres ou fôrças de moníacas mas no que se faz presente durante longo tempo aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão entrementes por baixo ocorre um outro movimento quase im perceptível mas universal e ininterrupto de tal forma que o Mibsolo político econômico e social parece ser relativamente cutAvcl mas ao mesmo tempo parece também estar insuportá vel mente carregado de tensão Todos os acontecimentos pare cem modificálo muito pouco mas na concreção da duração li qual Flaubert sabe sugerir tanto no acontecimento isolado como no nosso exemplo quanto no conjunto do panorama da ópoeu mostrase algo como uma ameaça oculta é um tempo ipio com a sua estúpida falta de escapatórias parece carregado como com um explosivo Através do nível estilístico de uma seriedade fundamental i objetiva a partir da qual as coisas falam de per si e se orde nam dc per si diante do leitor sem importunálo segundo 0 eu valor como sendo trágicas ou cômicas e até mesmo na maioria dos casos como sendo as duas coisas simultâneamente rlmihcrt superou o ímpeto romântico e a romântica insegurança no tratamento dos objetos contemporâneos já se vê claramente ulgo ilo positivismo mais antigo no seu critério artístico embora oriiaioniilmcntc pronuncie acêrca de Comte um juízo muito ilmlnvorávcl Sôbrc a base desta objetividade tornaramse pos nlvciii desenvolvimentos posteriores dos quais trataremos em ca pitulo subseqüentes Aliás poucos dos que o seguiram avo 1 ui mu i a tiircfa du representação da realidade contemporâ 430 MIMESIS nea com a mesma clareza e responsabilidade sem dúvida po rém houve entre êles espíritos mais livres espontâneos e ricos do que o seu O tratamento sério da realidade quotidiana a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemáticoexistencial por um la do e pelo outro o engarçamento de personagens e aconteci mentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história con temporânea do pano de fundo historicamente agitado êstes são segundo nos parece os fundamentos do realismo moderno e é natural que a forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para uma reprodução que abarcava tantos elementos Se observamos corretamente a França teve durante todo o século XIX a mais importante participação no surgimento e no desenvolvimento do moderno realismo A si tuação d Alemanha foi por nós ventilada no fim do último capítulo Na Inglaterra embora a evolução fôsse fundamental mente a mesma da França ela se desenvolveu mais calma e gradualmente sem a quebra brusca entre 1780 e 1830 já se inicia muito antes e preserva durante muito mais tempo até bem entrados os tempos vitorianos formas e modos de ver tra dicionais Já na arte de Fielding Tom Jones apareceu em 1749 há muito mais enérgico realismo contemporâneo da vida como um todo do que nos romances franceses do mesmo perío do também a agitação do panodefundo histórico contempo râneo não falta inteiramente Mas o conjunto é concebido de forma mais moralista e mantémse afastado da seriedade pro blemática e existencial Por outro lado ainda em Dickens cu jas obras foram publicadas a partir dos anos trinta do século XIX não obstante o forte sentimento social e a sugestiva densi dade do seu meio quase nada se faz sentir da agitação do panodefundo políticohistórico Entrementes Thackeray que embute os acontecimentos de Vanity Fair 18478 muito con cretamente na história do seu tempo os anos anteriores e pos teriores a Waterloo conserva em conjunto a espécie de visão moralista meio satírica e meio sentimental que foi transmitida sem muitas mudanças já a partir do século XVIII Infelizmente devemos renunciar a falar ainda que seja com indicações as mais vagas do surgimento do moderno realismo russo As almas mortas de Gogol apareceu em 1842 a narração O capote já em 1835 isto é impossível para o nosso fim quando não po demos ler as obras na sua própria língua Deveremos conten tarnos com falar da influência que exerceu mais tarde Germinie Lacerteux No ano de 1864 os irmãos Edmond e Jules de Gon I court publicaram o romance Germinie Lacerteux I que descreve os enredos eróticos e a graduai perdi I çâo de uma criada Antepuseram ao livro o seguinte prctácio Il nous faut demander pardon au public de lui donner ce livre et lavertir de ce quil y trouvera Ijc public aime les romans faux ce roman est un roman vrai Il aime les livres qui font semblant daller dans le monde ic livre vient de la rue Il aime les petites oeuvres polissones les mémoires de filles les confessions dalcôves les saletés érotiques le scandale qui se retrousse dans une image aux devantures des librairies ce quil vu lire est sévère et pur Quil ne sattende point à la photogra phie décolletée du Plaisir létude qui suit est la clinique de lamour Ie public aime encore les lectures anodines et consolantes le aventures qui finissent bien les imaginations qui ne déran gent ni sa digestion ni sa sérénité ce livre avec sa triste et vio lente distraction est fait pour contrarier ses habitudes et nuire A iton hygiène Porquoi donc lavonsnous écrit Estce simplement pour thHiicr le public et scandaliser ses goûts Non Vivant au XIX siècle dans un temps de suffrage universel île démocratie de libéralisme nous nous sommes demandé si it quon appelle les basses classes navait pas droit au Roman I er momie sou un monde le peuple devait rester sous le coup 432 MIMESIS de linterdit littéraire et des dédains dauteurs qui ont fait jus quici le silence sur lâme et le coeur quil peut avoir Nous nous sommes demandé sil y avait encore pour lécrivain et pour le lecteur en ces années dégalité où nous sommes des classes indignes des malheurs trop bas des drames trop mal embou chés des catastrophes dune terreur trop peu noble Il nous est venu la curiosité de savoir si cette forme conventionelle dune littérature oubliée et dune société disparue la Tragédie était définitivement mort si dans uns pays sans caste et sans aris tocratie légale les misères des petits et des pauvres parleraient à lintérêt à lémotion à la pitié aussi haut que les misères de grands et des riches si en un mot les larmes quon pleure en bas pourraint faire pleurer comme celles quon pleure en haut Ces pensées nous avaient fait oser lhumble roman de Soeur Philomène en 1861 elles nous font publier aujourdhui Germi nie Lacerteux Maintenant que ce livre soit calomnié peu lui importe Aujourdhui que le Roman sélargit et grandit quil commence à être la grande forme sérieuse passionnée vivante de létude littéraire et de lenquête sociale quil devient par lanalyse et par la recherche psychologique lHistoire morale contemporai ne aujourdhui que le Roman sest imposé les études et les de voirs de la science il peut en revendiquer les libertés et les fran chises Et quil cherche lArt et la Vérité quil montre des mi sères bonnes à ne pas laisser oublier aux heureux de Paris quil fasse voir aux gens du monde ce que les dames de charité ont le courage de voir ce que les Reines autrefois faisaient toucher de loeil à leurs enfants dans les hospices la souffrance humaine présente et toute vive qui apprend la charité que le Roman ait cette religion que le siècle passé appelait de ce large et vaste nom Humanité il lui suffit de cette conscience son droit est là1 1 É necessário que peçamos perdão ao público por darlhe êste livro e que o advirtamos do que nêle encontrará O público sosta de romances falsos êste romance é um romance verdadeiro Gosta dos livros fingem pertencer à alta sociedade êste livro vem da rua Gosta das pequenas obras licenciosas das memórias de mocinhas das confissões de alcova das sujeiras eróticas do escândalo que se arregaça numa imagem nas frentes das livrarias o que lerá é severo e puro Que não espere a fotografia decotada do Prazer o estudo que segue é a clínica do amor O público gosta também das leituras anódinas e consoladoras das aventuras que terminam bem das imaginações que não desarranjam nem sua digestão nem sua serenidade êste livro com a sua triste e violenta distração é feito para contrariar os seus hábitos e prejudicar sua higiene Por que então o escrevemos É simplesmente para chocar o público e escandalizar seus gostos Não Como vivemos no século XIX num tempo de sufrágio universal de demo cracia de liberalismo perguntamonos se o que é chamado do o classe baixas não teria direito ao Romance se êste mundo sob um mundo o povo devia ficar submisso à interdição literária e ao desprézo dos autores quo guar daram silêncio até aqui aoêrca da alma e do corpo que possa 1er Pcrguntamo nos se havia ainda para o escritor e para o leitor nestes ono de Itftialdnde GERMIN1E LACERTEUX 433 A respeito da violenta polêmica contra o público com a qual começa o prefácio falaremos mais tarde ocupamonos em primeiro lugar da intenção artística programática que é expres sa nos parágrafos seguintes que começam com as palavras Vivant au X I X e siècle Corresponde exatamente àquilo que aqui entendemos por mistura de estilos e ainda mais baseiase em considerações de ordem políticosociológica Vivemos di zem os Goncourt numa época do sufrágio universal da demo cracia do liberalismo merece ser lembrado que êles de ma neira alguma eram amigos incondicionais destas instituições e fenômenos portanto é injusto excluir as assim chamadas clas ses mais baixas da população o povo do tratamento literário sério tal como ainda acontece assim como é injusto conservar na literatura uma aristocratização dos objetos que não mais corresponde ao nosso quadro social devese admitir que não há nenhuma forma de desgraça que seja demasiado baixa para ser representada literàriamente O fato de o romance ser a for ma mais apropriada para uma tal representação é admitido co mo evidente com as palavras avoir droit au Roman Numa frase posterior il nous est venu la curiosité insinuase que o romance realista autêntico tem assumido a herança da tra gédia clássica e o último parágrafo contém um compêndio retòricamente entusiasmado da função desta forma de arte no mundo moderno um resumo que contém um motivo especial o do cientificismo um motivo que embora ressoe já em Balzac tornouse aqui muito mais enérgico e programático O romance leria ganho em amplitude e em importância seria a forma séria npnixonada viva do estudo literário e da pesquisa social obser vcmsc as palavras étude e especialmente enquête tomarseia pclux suas análises e investigações psicológicas uma Histoire mortile contemporaine terseia imposto os métodos e os deveres iln ciência e poderia também portanto reivindicar os seus direi lo c as suas liberdades Fundamentase aqui o direito de liittur qualquer objeto mesmo o mais baixo de forma séria que citam os classes indignas desgraças baixas demais dram as demasiado Ifkhocadoi catástrofes de um horror demasiado pouco nobre Veionos a im insldade de saber se esta forma convencional de uma literatura esquecida e unia sociedade desaparecida a Tragédia estava definitivamente m orta se mmi pais nem casta e sem aristocracia legal as misérias dos pequenos e dos p n h raa falariam ao interêsse à emoção à piedade tão alto quanto as misérias los mande c dos ricos se em uma palavra as lágrimas choradas lá embaixo fazer chorar como as que choram lá em cima Kstas Idéias fizeramnos ousar o humilde romance da irm ã Filomena em Mftl faremnos publicar hoje Germinie Lacerteux 1ntrotanto que êste livro seja caluniado pouco lhe importa H oje quando HHiunco o amplia e cresce quando começa a ser a grande forma séria apai oiimta viva do estudo literário e da pesquisa social quando se torna pela NitAiltr e pcltt pesquisa psicológica a História moral contemporânea hoje Hnr ii loumnce se Impós 01 estudos c os deveres da ciência pode reivindicar itiM liberdades e franquias Hoje que procura a Arte e a Verdade que mostra mUíriu dignai de nlo serem esquecidas pelos felizardos de Paris que r vr penou da alta sociedade aquilo que as damas de caridade têm a uMNMrnt tlr ver aquilo que aa Rainhas outrora faziam ver aos filhos nos hos I ilUl o sofrimento humano presente e vivo que ensina a caridade que o lomuNc lenha raia relijiilo mie o século passado chamou com êste largo e vio Homf bastalhe eita consciência lá está o seu direito 434 MIMESIS isto é a extrema mistura de estilos simultâneamente com argu mentos políticosociais e científicos A atividade do romancista é comparada com a atividade científica sendo que com isto indubitàvelmente se pensa em métodos biológicoexperimentais Encontramonos sob a influência do entusiasmo científico dos primeiros decênios do positivismo durante os quais todos os que exerciam atividades mentais na medida em que procura vam métodos novos e conformes com seu tempo tentavam apro priarse dos sistemas e processos experimentais Nisto os Gon court estão em primeira linha o seu ofício é por assim dizer estar em primeira linha O final do prefácio traz uma virada evidentemente menos moderna a virada para o moralista o caritativo e humanitário Com isto ressoa uma série de moti vos muito diferentes segundo a sua origem a alusão aos heu reux de Paris e às gens du monde que devem lembrarse da miséria do seu próximo pertence ao socialismo sentimental do meio do século as rainhas de outrora que dispensavam sua atenção aos enfermos e os mostravam aos seus filhos lembram a Idade Média cristã e finalmente aparece a religião humanitá rià do iluminismo procedese muito eclèticamente e um tanto arbitràriamente neste retórico ftnale Todavia seja como fôr que se julguem os motivos isolados dêste prefácio e em geral a maneira dos Goncourt defenderem a sua causa êles tinham indubitàvelmente razão e faz tempo que o processo foi julgado a seu favor Nos primeiros grandes realistas do século em Stendhal Balzac e ainda em Flaubert as camadas mais baixas do povo o povo propriamente dito mal aparece e quando aparece não é visto a partir dos seus próprios pressupostos na sua própria vida mas é visto de cima Ainda no caso de Flaubert cujo Coeur simple apareceu aliás só uma década após Germinie Lacerteux de maneira que no tempo do prefácio não havia quase nada disponível no gênero afora a cena da entrega de prêmios durante os comices agricoles em Madame Bovary tratase em geral de criados ou de figuras subalternas Mas a irrupção da mistura realista de estilos que Stendhal e Balzac tinham impôsto não podia deterse diante do quarto estado devia seguir a evolução política e social o rea lismo devia abranger tôda a realidade da cultura contemporânea na qual embora predominasse a burguesia as massas já come çavam a pressionar ameaçadoramente na medida em que se tor navam cada vez mais conscientes da sua própria função e do seu poder O povo baixo em tôdas suas partes devia ser in cluído no realismo sério como tema os Goncourt tinham razão e também conservaram a razão assim o demonstra a evolução da arte realista Os primeiros representantes dos direitos do quarto estado tanto políticos como literários não pertenciam quase todos ao estado que defendiam mas à burguesia Isto também é vá lido para os Goncourt que estavam aliás bastante afastados do socialismo político Ernm não sòmente devido í sua estirpe GERMIN1E LACERTEUX 435 grãoburgueses semiaristocráticos mas também nas suas ati tudes e no seu modo de vida nas suas opiniões preocupações e instintos Além do mais estavam dotados de nervos ultra sensíveis dedicaram sua vida à busca de impressões artísticosen síveis foram de forma mais integral e exclusiva do que quais quer outros literatos estéticos ecléticos Encontrálos como paladinos do quarto estado ainda que seja somente do quarto estado como campo temático literário é surpreendente O que os unia aos homens do quarto estado o que sabiam da sua vida dos seus problemas e sensações E foi realmente só um senti mento de justiça social e estético o que os levou a tentar esta experiência Não é difícil formular uma resposta para estas per guntas a resposta pode ser dada já a partir da bibliografia dos Goncourt Escreveram tôda uma série de romances que se fun damentavam quase todos na sua experiência e observação pes soais nêles ao lado do meio do povo baixo aparecem ainda outros meios a grande burguesia o submundo da metrópole diversos tipos de círculos artísticos tratase sempre de temas singulares extraordinários freqüentemente de temas patológi cos Ao lado dêstes escreveram também livros que tratam de viugens de artistas contemporâneos das mulheres e da arte do século XVIII de arte japonêsa a isto juntase ainda o espelho das suas vidas o Journal Já da própria bibliografia resulta o princípio da sua escolha de temas eram colecionadores e apre sentadores de impressões sensíveis a saber daquelas que tives sem valor de raridade ou de novidade eram de ofício desco bridores ou redescobridores de experiências estéticas especial mente de experiências mórbidoestéticas que poderiam satisfa zer um gôsto exigente farto das coisas habituais A partir dêste ponto de vista é que o povo baixo os seduzia como tema Ed mond de Goncourt exprimiu êle próprio êste fato de forma excelente num registro do Journal datado em 3 de dezembro ilc 1871 Miim pourquoi choisir ces milieux Parce que cest dans I lii que dans leffacement dune civilisation se conserve le ciiniclèrc des choses des personnes de la langue de tout Pourquoi encore peutêtre parce que je suis un littérateur bien né et que le peuple la canaille si vous voulez a pour moi liillmit de populations inconnues et non découvertes quelque i liotc de lexotique que les voyageurs vont chercher Alé o ponto em que êste impulso os conduzia podiam entender d povo não podiam ir além com o que fica excluído de ime tlmlo ludo o que é funcionalmente essencial o seu trabalho o Mui por que escolher êstes ambientes Porque é cm baixo que itmuiMr n tlrcm línclu de uma civiHzaçfio se conserva o caráter das coisas das lrMon du Ifnuun tio tudo H por que mais Talvez porque sou um literato hriu numUlo r porque o povo n cunnlhn se preferirdes tem para mim o atrativo Ou HiuluvfaN desconhecido e nflo descobertas nluo de exótico que o viajantes M I H l i t IWH 436 MIMESIS seu lugar dentro da sociedade moderna os movimentos políti cos sociais e morais que vicejam nêle e que visam o futuro Já o fato de o romance Germinie Lacerteux tratar novamente de uma criada isto é de um pingente da burguesia mostra que a tarefa da inclusão do quarto estado na representação artísti ca séria não é entendida nem atacada em seu cerne O que os cativava no tema era algo totalmente diferente era o estímulo sensível do feio do repulsivo e do doentio É claro que nisto não são totalmente originais não são realmente os primeiros pois as Fteurs du Mal de Baudelaire já tinham aparecido em 1857 Contudo devem ter sido os primeiros a introduzir tais motivos no romance e êste era o atrativo que sôbre êles exerciam as singulares aventuras eróticas de uma velha criada pois tra tase de uma história real que conheceram após a morte da criada e a partir da qual construíram o seu romance De uma forma inesperada coincidiram nêles e não somente nêles a inclusão do povo baixo com a necessidade de representar de forma sensível o feio o repulsivo e o patológico uma necessidade que ia muito além do que seria objetivamente necessário típico e representativo Havia nisso um protesto radical e encarniçado contra as formas do estilo elevado idealizador e aplainante já decaídas mas que ainda dominavam o gôsto médio do público tanto pelas de origem clássica como pelas de origem romântica contra a concepção da literatura e da arte em geral como dis tração confortável e calmante uma mudança fundamental na interpretação daquele prodesse e delectare que era a sua meta Com isto chegamos à primeira parte do prefácio à polêmica contra o público Ela é surpreendente Talvez não o seja mais para nós pois temos tido que ouvir desde então muita coisa semelhante ou pior dita por escritores mas quando se pensa nas épocas anteriores um vitupério tão desconsiderado contra aquêles aos quais a obra se dirige é um fenômeno espantoso O escritor é um produtor o público o seu cliente Podese também for mular esta relação de forma diferente quando é observada de outro lado Podese considerar o escritor cpmo educador como guia como voz representativa e por vêzes profética mas ao lado disto e a bem dizer em primeiro lugar aquela formulação econômica da relação tem boa parte de razão e os Goncourt não deixavam de reconhecer êste fato Embora não dependes sem totalmente dos seus ingressos literários pois tinham for tuna não deixavam de ter o mais vivo interêsse pelo êxito e pela venda dos seus livros Como pode o produtor insultar tão desconsideradamente o seu cliente Nos séculos em que o escri tor dependia de um mecenas principesco ou de uma minoria aristocrática fechada um tom semelhante teria sido totalmente impossível Na década de sessenta do século passado diante de um público anônimo e não claramente delimitado um escri tor podia se arriscar a tanto í claro que com isto contiiva com a sensação que o prefácio deveria despeitar pois o pior perigo GERM1NIE LACERTEUX 437 que a obra corria não era a resistência a crítica malévola nem sequer as medidas de opressão das autoridades tôdas estas coisas embora pudessem ocasionar desgosto dilações incon venientes pessoais não eram insuperáveis e favoreciam muito freqüentemente a publicidade da obra atingida o pior dos perigos que ameaçavam uma obra de arte era a indiferença Os Goncourt lançam ao rosto do público o fato de o seu gôsto ser errado e corrompido preferiria as coisas falseadas u elegância estúpida a obscenidade à leitura de entretenimento confortável e tranqüilizante na qual tudo chegava a bom fim e o leitor não precisava se excitar sèriamente culpamnos nu mu palavra de preferir aquilo que chamamos kitsch Em lugar disso oferecerlheiam um romance que seria verdadeiro que procuraria o seu tema na rua um romance cujo conteúdo sério e puro representaria a patologia do amor um romance que in comodaria os hábitos do público e seria nocivo para a sua higie ne O conjunto tem um tom irritado É nítido o fato de que os escritores são conscientes há tempo de até que ponto o seu gôsto se afastou daquele do público médio é claro também que files estão convictos de ter razão que tentam com todos os meios desaninhar o público da sua segurança e do seu conforto iissim como é claro que já um tanto amargurados mal acredi liim que os seus esforços tenham grande êxito A polêmica dêste prefácio é um sintoma é característica lo relacionamento que no decorrer do século XIX se formou entre o público e quase todos os escritores e poetas pintores escultores e compositores importantes não somente na França mas lá mais cedo e com maior agudeza do que alhures Podese constatar com poucas exceções que os artistas importantes do lurdio século XIX esbarraram na incompreensão na inimizade ou nu indiferença do público só mediante lutas violentas e lon KUH atingiram o reconhecimento geral alguns só após a sua morte muitos em vida só perante uma comunidade muito res i it Viceversa podese fazer também a observação novamente com poucas exceções de que aquêles artistas que durante o ióciiIo XIX sobretudo na sua segunda metade e ainda no prin cipio ilo século XX ganharam rápida e fàcilmente o reconhe cimento geral não possuíam significação real e duradoura rnuse com base nesta experiência em muitos críticos e artis Ini ii convicção de que isto devia ser necessariamente assim liiHlnmcntc u originalidade da obra nova e importante traria con sigo o lato de que o público ainda não acostumado com a sua loi mu de expressão sentirseia primeiramente apenas confuso inquieto devendo acostumarse só paulatinamente à nova lin iMingcm íorniiil Contudo êste fenômeno nunca se tinha dado mu tempos anteriores de forma tão rçeral nem tão violenta in to que freqüentemente o reconhecimento exterior dos giiiiules uriistus foi cerceado por circunstâncias infelizes ou pela mveu é vordmle Inmbém que files forum postos freqüentemente ii iiirMim ti11iiiii de iilguns rivms que hoje nos parecem total 438 MIMESIS mente indignos de tal comparação Mas o fato de que vistas as condições favoráveis para a técnica de divulgação o medíocre fôsse quase sempre preferido em detrimento do realmente im portante o fato de que quase todos os artistas significativos sentissem pelo público médio segundo o seu temperamento amar gura ou desprezo ou o tenham considerado simplesmente como inexistente isto é uma especialidade do século passado Esta situação já começa a se conformar durante o romantismo e pos teriormente foi se agravando cada vez mais perto do fim do século havia alguns grandes poetas cujos modos e atitudes da vam a entender que de antemão renunciavam a qualquer divul gação ou reconhecimento mais amplos Como explicação apresentase em primeiro lugar a expan são violenta e constantemente crescente do público leitor desde o comêço do século e o concomitante embrutecimento do gôsto O gênio a elegância dos sentimentos o cultivo das formas da vida e da expressão tudo isto decai Já Stendhal lamenta esta decadência como mencionamos anteriormente O rebaixamento do nível foi acelerado ainda mais pela exploração comercial da imponente necessidade de leitura feita pelos empresários edi toriais ou jornalísticos a maiorja dos quais não todos prefe riu o caminho do ganho mais fácil e da menor resistência for necendo portanto ao público aquilo que êle pedia ou talvez coisa pior do que teria pedido Mas quem era o público leitor Consistia em sua maior parte na burguesia urbana que havia crescido de forma impressionante e que tinha se tornado graças à maior divulgação da educação capaz e sequiosa de ler Era o bourgeois aquêle ser cuja estupidez preguiça mental enfa tuação mendacidade e covardia foram repetidamente motivo das mais violentas diatribes por parte dos poetas escritores artis tas e críticos desde o romantismo Podemos subscrever êste juízo sem mais nem menos Não se trata dos mesmos bur gueses que empreenderam a audaciosa aventura da cultura eco nômica científica e técnica do século XIX a mesma de cujos círculos surgiram também os dirigentes dos movimentos revo lucionários que foram os primeiros a reconhecer as crises os perigos e os focos de corrupção daquela cultura Também o burguês médio do século XIX participa do imponente mecanismo de vida e de trabalho da época todo dia leva uma vida muito mais movimentada e esforçada do que a das elites dificilmente importunadas pela sobrecarga ou pela premência do tempo que constituíam o público leitor durante o ancien régime A sua segurança física e a sua propriedade estavam melhor protegidas do que em tempos passados possuía possibilidades de ascensão incomparàvelmente maiores mas a conquista e a conservação da propriedade o aproveitamento das possibilidades de ascensão a acomodação às circunstâncias em rápida mudança tudo isto em meio à acirrada luta da concorrência exigiam um dispêndio de energia e de nervos tão intenso e tão incessante como nunca se conhecera em tempos anteriores Através las pkíiuih choiiis GERMINIE LACERTEUX 439 de fantasia mas também plenas da observação do real que Balzac escreveu no comêço do romance La fille aux yeux dor acêrca dos homens de Paris podese mensurar quão esfalfante era a vida nessa cidade já nos primeiros tempos da monarquia burguesa Não nos devemos surpreender diante do fato de que essas pessoas esperavam e pediam da literatura e das artes em geral um recreio uma distensão ou em último caso um esta do de embriaguez fàcilmente acessível nem diante do fato de que se defendessem contra a triste et violente distraction para empregar a expressiva frase dos Goncourt que a maioria dos escritores importantes lhes queria impingir Outra coisa vem juntarse a isto A efetividade da religião tinha sido abalada na França mais profundamente do que em qualquer outra parte as instituições políticas estavam em cons tante mudança e não ofereciam qualquer apoio interno os gran des pensamentos do iluminismo e da Revolução tinham sofrido um desgaste surpreendentemente rápido e tinham se convertido em chavões como seu resultado desentranhouse uma enérgica lutu dos egoísmos que era considerada válida pois que o tra balho livre era consierado condição natural e autoreguladora do bemestar e do progresso gerais Mas a autoregulação não funcionava de tal modo que fôsse satisfeita a necessidade de justiça o que decidia acêrca do êxito ou do fracasso do indi víduo ou de camadas sociais inteiras não era sòmente a inteligên cia e a aplicação mas também as condições de partida as rela ções pessoais os acasos da fortuna e não raramente a robusta Fulta de consciência Embora no mundo as coisas nunca se ti vessem dado segundo a justiça não se podia negar que já não crti sèriamente possível interpretar a injustiça como provação divina e aceitála como tal Já muito cedo surgiu um violento mulcstar moral mas o ímpeto da movimentação econômica era demusiado forte para que ela pudesse ser detida por ten ImIí v h s de desaceleração puramente morais O desejo de expan iAo econômica e o malestar moral existiam lado a lado Paulati namente começaram a se configurar os perigos reais que amea çiiviim o desenvolvimento econômico e a estrutura da sociedade Inirguesu a luta das grandes potências pelos mercados e a ameaça tio quurto estado que se estava organizando Começava a se tipiirnr a grande crise cuja eclosão nós vivemos e estamos ain dii vivendo No sécuio XIX muito poucos já possuíam uma com IvviDHüo sintética capaz de avaliar corretamente as fontes de perigo decisivas quiçá os estadistas a possuíssem em menor jtimi nu sua maioria ainda estavam presos a idéias desejos e mótmlos que lhes impossibilitavam a compreensão da situação minAmicii o humana elementar Descrevemos estas circunstâncias que mais recentemente ointii vistas com clareza e descritas com freqüência da forma itiiiiH resumida possível para obtermos uma base para o julga iiii nli d fiinçAo que a arte literária criou para si dentro da iiiltuiii bmjtiicmi e cm primeiro lugar dentro da cultura fran 440 MIMESIS cesa do século XIX Teve ela interesse e compreensão pelos problemas que como reconhecemos mais tarde eram os deci sivos sentiu alguma responsabilidade frente a êles No que respeita ainda aos mais importantes homens da geração român tica Victor Hugo e Balzac estas perguntas devem ser respondi das afirmativamente tinham superado as tendências românticas no sentido de fuga da realidade pois não correspondiam aos seus poderosos temperamentos e é digno de admiração o grau de instinto diagnosticador do seu tempo que Balzac possuía Mas já na geração seguinte cujas obras começaram a aparecer nos anos cinqüenta a coisa muda totalmente Surge o conceito e o ideal de uma arte literária que não interviria de forma alguma nos acontecimentos práticos do tempo que evita qual quer direção moral política qualquer direção que seja como fôr movimente pràticamente a vida dos homens e cuja única tarefa é o desenvolvimento do estilo Êste último exige que os objetos quer sejam fenômenos exteriores quer sejam imagens da sensibilidade ou da fôrça de imaginação do escritor sejam tornados evidentes com fôrça sensível e que o sejam numa forma nova ainda não gasta manifestadora da peculiaridade do escritor Segundo esta ideologia que negava aliás tôda hierarquia dos objetos o valor da arte isto é da expressão perfeita e original era considerado de forma absoluta e tôda participação na luta das cosmovisões estava desacreditada Pare cia levar necessàriamente ao clichê e ao chavão Se se intro duzir os dois conceitos originários da tradição antiga prodesse et delectare então a utilidade da poesia era totalmente negada porque se pensava de imediato em utilidade prática ou em ermo didaticismo Seria ridículo lêse no registro do Journal dos Goncourt de 8 de fevereiro de 1866 de demander à une oeuvre dart quelle serve à quelque chose Não se era porém de modo algum tão modesto quanto Malherbe que teria dito que um bom poeta não é mais útil do que um bom jogador de boliche pelo contrário a poesia e a arte em geral tornaramse do valor mais absoluto tornaramse objeto de um culto devoto como uma religião com isto conferiuse imediatamente ao deleite embora fôsse em primeiro lugar um gôzo sensível da expressão um grau hierárquico tão elevado que a palavra deleite delectatio não mais parecia corresponderlhe esta expres são parecia desacreditada porque designava algo demasiado trivial e demasiado confortàvelmente atingível A mentalidade aqui descrita a qual já começa a se esboçar em alguns românticos tardios domina a geração que nasceu ao redor de 1820 Leconte de Lisle Baudelaire Flaubert os Goncourt ainda mais tarde na segunda metade do século ela predominava embora apresentasse é claro já desde o comê ço variações muito diversificadas em cada caso particular per correndo tôdas as gradações desde a colheita estétlcohedonista de impressões até a destruidora autotortura e a entrega a cias GERMINIE LACERTEUX 441 e a sua formação artística As fontes desta ideologia devem ser procuradas na repulsa que justamente os mais eminentes escritores sentiam diante da cultura e da sociedade contempo râneas à qual os obrigava a um afastamento de tôda proble mática do tempo afastamento êste que era tanto maior quanto estava misturado com perplexidade pois êles próprios estavam indissoluvelmente ligados à sociedade burguesa Pertenciam a ela pela sua estirpe e pela sua formação gozavam da segurança e da liberdade de expressão que tinha ganho para si não podiam senão achar no seu seio o grupo talvez reduzido dos seus leitores e admiradores encontravam também nela a vontade quase ilimi tada de empreendimento e de experimentação que qualquer me cenas e qualquer editor forneciam a qualquer tendência literária mesmo à mais singular ou extravagante A diferença tão amiúde salientada entre artista e burguês não deve levar a que se iidmita que a literatura e arte do século XIX tivessem tido um solo nutriz diferente do da burguesia Nem existia qualquer outro Pois o quarto estado ia atingindo só muito paulatina mente durante êsse século o estado da autoconsciência político eeonômica Ainda faltava muito para que nêle se fizesse sentir qualquer traço de uma autonomia estética as suas necessidades estéticas eram pequenoburguesas Em meio a êste dilema entre ii repulsa instintiva e o envolvimento simultâneamente também em meio a uma liberdade quase anárquica de opiniões de possi bilidades de escolha de temas de desfraldamento da peculiaridade pessoal com respeito a formas de vida e de expressão os escritores itie eram demasiado orgulhosos ou demasiado peculiarmente dotados para fornecerem a mercadoria de massas universalmente desejada e corrente foram impelidos para um isolamento quase eonvulsivo no campo do puramente estéticoestilístico e para uma uversão diante de qualquer possibilidade de intervenção prática por parte de suas obras nos problemas do tempo Para estas águas também veio parar o realismo misturador de estilos e isto era mais nítido precisamente quando como no caso de itrm inie Lacerteux pretendia ter intenções sociais e tempo uilmente problemáticas Tratase como resulta imediatamente de uma investigação exata do seu conteúdo não de um impulso social mas de um impulso estético e não de um tema que iitinja o cerne da estrutura social mas da descrição de um fenô meno isolado e singular à margem dessa estrutura Para os loncourt tratase da atração estética do feio e do patológico Com isto não queremos negar de forma alguma o valor da eorujosa experiência que os Goncourt empreenderam ao escrever e publicar Oerminle Lacerteux O seu exemplo contribuiu para inipimr e encorajar outros que não ficaram presos no meramente eilético fi lurpreendente mas é também inegável que a inclu lo do quarto citado no realismo aério foi decisivamente fomen tadu por uquêlei que à caça de novas impressões estéticas desco briram o ntmtlvo do feio e do patológico no caso de Zola 442 MIMESIS ou dos naturalistas alemães do fim do século esta relação é ainda inconfundível Também Flaubert que tinha aliás quase a mesma idade de Edmond de Goncourt era um dos que se isolaram totalmente no campo do estético êle até é talvez dentre êles o que levou mais longe a renúncia ascética a uma vida própria na medida em que não servisse mediata ou imediatamente ao estilo No capí tulo anterior tentamos descrever a sua ideologia artística com parável a uma teoria mística de afundamento e também tentamos mostrar como foi precisamente êle quem pela coerência incoer cível e pela profundidade do seu esforço penetrou na profundeza das coisas de forma a tornar visível a problemática do tempo embora o autor não assuma qualquer posição frente a ela Isto conseguiu nos seus melhores tempos mais tarde não O isolamento no estético e a observação da realidade meramente co mo objeto de reprodução literária no fim das contas não acabou bem para êle nem para a maioria dos seus contemporâneos que compartilhavam esta posição Quando se compara o mundo de Stendhal ou ainda o de Balzac com o de Flaubert ou com o dos dois Goncourt êste último parece apesar da pletora de impressões estranhamente estreito e mesquinho O que é digno de admiração em documentos tais como a correspondência de Flaubert ou o diário dos Goncourt é a pureza e a insubornabili dade da moral artística a riqueza das impressões processadas o refinamento da cultura sensível Mas ao mesmo tempo também sentimos pois hoje lemos com olhos diferentes do que os de vinte ou trinta anos atrás que há nestes livros algo de angustiante e de apertado São cheios de realidade e de gênio mas pobres de humor e de calma interna O puramente literário mesmo no degrau mais elevado da compreensão artística e em meio à maior riqueza das impressões limita o juízo empobrece a vida e distorce por vêzes a visão dos fenômenos E enquanto os escritores se afastam depreciativamente do burburinho do polí tico e do econômico valorizando a vida sempre só como tema literário mantendose sempre longe dos grandes problemas prá ticos cheios de altivez e de amargura para conquistar cada dia de nôvo amiúde com grande esforço o isolamento artístico para o seu trabalho enquanto isso o prático penetra apesar de tudo em mil formas mesquinhas até atingilos surgem desgostos com editores e críticos nasce o ódio contra o público que se quer conquistar enquanto escasseia uma base para um sentimento e um pensamento comuns por vêzes há também problemas de dinheiro e quase ininterruptamente superexcitação nervosa c mêdo pela própria saúde Todavia como em geral levam a vida de burgueses remediados moram confortávellYiente comem do bom e do melhor e se entregam ao gôzo de todos os deleites da sensibilidade mais elevada como a sua existência nunca se vê ameaçada por grandes estremecimentos e perigos o ique surge é não obstante todo o gênio e tôda a insubornabilidade tístieu um quadro de conjunto singularmente mesquinho o do grão GERMINIE LACERTEUX 443 burguês egocêntrico preocupado pelo seu conforto estético ner voso torturado pelos aborrecimentos maníaco enfim só que a sua mania chamase no seu caso literatura Emile Zola é vinte anos mais jovem do que a geração de Flaubert e dos Goncourt está ligado a êles sofre a sua influência apóiase nêles e tem muito em comum com êles Também parece não ter sido isento de neurastenia mas é de origem mais pobre cm dinheiro em tradição familiar em refinamento sensível Destacase enèrgicamente dentre o grupo dos realistas estéticos Queremos tomar novamente como exemplo um texto para poder mos trabalhar com a maior exatidão possível Escolhemos uma passagem de Germinal 1888 o romance que trata da vida numa comarca carvoeira do norte da França tratase do encer ramento do segundo capítulo da terceira parte É uma quermesse um entardecer de domingo de julho os trabalhadores da comarca passaram a tarde inteira indo de uma taverna à outra beberam jogaram boliche assistiram a tôda espécie de espetáculos O encerramento do dia é constituído pelo baile o bal du BonJoyeux no local da viúva Désir gorda e cinqüentona mas ainda muito cheia de alegria de viver O baile para o qual chegaram final mente também as mulheres de mais idade com as suas crianças de colo já se prolongou durante várias horas Jusquà dix heures on resta Des femmes arrivaient toujours pour rejoindre et emmener leurs hommes des bandes denfants suivaient à la queue et les mères ne se gênaient plus sortaient des mamelles longues et blondes comme des sacs davoine bar bouillaient de lait les poupons joufflus tandis que les petits qui marchaient déjà gorgés de bière et à quatre pattes sous les Inhles se soulageaient sans honte Cétait une mer montante de bière les tonnes de la veuve Désir éventrées la bière arrondis sant les panses coulant de partout du nez des yeux et dailleurs On gonflait si fort dans le tas que chacun avait une épaule ou un genou qui entrait chez le voisin tous égayés épanouis de e sentir ainsi les coudes Un rire continu tenait les bouches ouvertes fendues jusquaux oreilles 11 faisait une chaleur de lour on cuisait on se mettait à laise la chair dehors dorée dnns lépaisse fumée des pipes et le seul inconvénient était de se déranger une fille se levait de temps à autre allait au fond près de lu pompe se troussait puis revenait Sous les guirlandes de papier peint les denseurs ne se voyaient plus tellement ils suaient iv qui encourageait les galibots à culbuter les herscheuses au Imsiird des coups de reins Mais lorsquune gaillarde tombait i i v c c un homme par dessus elle le piston couvrait leur chute de nu sonnerie enragée le branle des pieds les roulait comme si le Iml se tilt éboulé sur eux Quelquun en passant avertit Pierron que sa fille Lydie iloimuit à lu porte en travers du trottoir Elle avait bu sa part de lu Ih u iIc íIIc volée elle était soûle et il dut lemporter à son cou peiulmil que leimliu et Hébert plus solides le suivaient de loin 444 MIMESIS trouvant ça très farce Ce fut le signal du départ des familles sor tirent du BonJoyeux les Maheu et les Levaque se décidèrent à retourner au coron A ce moment le père Bonnemort et le vieux Mouque quittaient aussi Montsou du même pas de somnambules entêtés dans le silence de leurs souvenirs Et lon rentra tous ensemble on traversa une dernière fois la ducasse les poêles de friture qui se figeaient les estaminets doù les dernières chopes coulaient en ruisseaux jusquau milieu de la route Lorage menaçait toujours des rires montèrent dès quon eut quitté les maisons éclairées pour se perdre dans la campagne noire Un souffle ardent sortait des blés mûrs il dut se faire beaucoup denfants cette nuitlà On arriva débandé au coron Ni les Levaque ni les Maheu ne soupèrent avec appétit et ceuxci dor maient en achevant leur bouilli du matin Etienne avait emmené Chaval boire encore chez Rasseneur Jen suis dit Chaval quand Je camarade lui eut expli qué laffaire de la caisse de prévoyance Tape làdedans tu es un bon Un commencement divresse faisait flamber les yeux dEtien ne 11 cria Oui soyons daccord Voistu moi pour la justice je donnerais tout la boisson et les filles Il nya quune chose qui me chauffe le coeur cest lidée que nous allons balayer les bourgeois3 3 Ficouse até as dez Continuavam a chegar mulheres para juntarse e para levar embora os seus homens bandos de crianças seguiamnos e as mães não faziam cerimônia punham para fora mamas longas e loiras como sacos de aveia borravam de leite os seus bebês bochechudos enquanto os pequenos que já andavam empanturrados de cerveja e de quatro sob as mesas alivia vamse sem vergonha Era uma maré alta de cerveja os tonéis da viúva Désir estripados a cerveja arredondando as panças correndo em tôda parte do nariz dos olhos e de outras partes Estavam tão inchados e enroscados que cada um tinha um ombro ou um joelho que entrava no seu vizinho todos alegres expansivos por se sentirem assim os cotovelos Um riso contínuo mantinha tôdas as bôcas abertas fendidas até as orelhas Fazia um calor de forno cozi nhavase ficavase à vontade a carne de fora dourada na espêssa fumaça dos cachimbos e o único inconveniente era o de se incomodar um a moça levantavase de vez em quando ia até o fundo perto da bomba arregaçava se depois voltava Sob as guirlandas de papel pintado os dançarinos não mais se viam de tanto que suavam o que encorajava os rapa2es serventes nas minas a derrubar as rastilheiras ao acaso das nadegadas M as quando unta rapariga caía com um rapaz por cima dela o pistão cobria a sua queda com o seu ressoar irado o movimento dos pés os rolava como se a dança tivesse desabado por cima deles Alguém de passagem advertiu Pierron que sua filha Lídia dorm ia à porta atravessada na calçada Havia bebido sua parte da barrafa roubada estava bêbada e êle teve de carregála no ombros enquanto Jeanlin e Bébert mais sólidos seguiamnos de longe achando tudo muito engraçado Foi o sinal da partida famílias saíram do BonJoyeux os Maheu e os Levaque decidlramse a voltar ao vilarejo Nesse momento o compadre Bonnemort e o velho M ouque deixavam também Montsou no mesmo passo de sonâmbulos obstinados no silêncio das suas lembranças E voltouse todos juntos e atravessouse pela última vez a quermesse as frigideiras que se endureciam as tavernas onde oi últimos chopes escorriam como riachos até o meio da estrada A tempestade ameaçava sempre risadas subiram logo que se deixou para trás as últimas caias iluminadas para perderse no campo escuro Um sôpro ardente subia dos trigais maduros devese ter feito multas crianças nessa noite Chegaram deban dados ao vilarejo Nem os Levaque nem os Maheu cearam com apetite éstes dormiam enquanto terminavam com o cozido da m anhl Etienne tinha levado Chaval para beber ainda no Raiseneur Estou nesial disse Chaval quando o cam arada acabou de lhe explicar o caso da caixa de providência Toca aí você é doi bons GERMINIE LACERTEUX 445 Êste trecho pertence àqueles que quando da primeira apari ção das obras de Zola nos últimos trinta anos do século passado provocaram repulsa horror mas também junto a uma minoria notável grande admiração muitos dos seus romances alcançaram logo após a sua publicação grandes tiragens ao mesmo tempo que começou um forte movimento pró ou contra a justificação de tal arte Quem não sabendo nada acêrca disso e não lesse nada da obra de Zola afora o primeiro parágrafo do texto que reproduzimos aqui poderia acreditar por um instante que se tratasse de uma forma literária dêsse naturalismo grosseiro que já se conhece da pintura flamenga e sobretudo da pintura holandesa do século XVII não seria mais do que uma orgia de bebida e de dança nas çamadas mais baixas da população como podem ser encontradas ou imaginadas na obra de Rubens ou Jordaens de Brouwer ou Ostade embora não sejam camponeses os que aqui bebem e dançam mais operários industriais Outrossim há também uma diferença no efeito na medida em que os por menores particularmente grosseiros têm para a duração em que itío pronunciados ou lidos um efeito mais duro e penoso do une teriam em meio a um quadro mas estas diferenças não são fundamentais Poderseia acrescentar ainda que Zola conferiu grande valor evidentemente ao elemento puramente sensível da pintura literária de uma orgia da plebe que o seu talento revela neste trecho traços de inspiração decididamente pictórica por exemplo na pintura da carne les mères sortaient des mamelles longues et blondes comme des sacs et avoine c mais tarde la chair dehors dorée dans lépaisse fum ée des plprs c também a cerveja que corre a emanação do suor as hAeiis grandemente arreganhadas tornamse impressões óticas unto a elas são provocados efeitos acústicos e outros efeitos ciiHÍvcis em resumo poderseia achar por um instante que o que Re desenrola à nossa frente não é mais do que um processo purlicularmente vigoroso de estilo baixo uma devassa grosseira Sobretudo o encerramento do parágrafo o furioso soprar e o lelvugem dançar que encobre e engole a queda de um casal tft ti nota grotesca e orgiástica que faz parte de tais quadros llllWHCOH Mas só por causa disto os contemporâneos de Zola no se tcriiim irritado tanto Entre os seus inimigos que se assanhavam lclo repugnante o sujo o obsceno da sua arte havia certamente muitos que observavam o realismo grotesco ou cômico de épocas MMlcriores também suas representações mais cruas ou mais amo iitli com indiferença ou até com deleite O que os enchia de exci luçfto ora muito mais a circunstância de que Zola não apresentava u luu arte de forma alguma como sendo de estilo baixo ou cAmico quase cada uma das suas linhas delatava que tudo era Um oom lco d embriaguez fazia chamejar 01 olho de Etlenne Gritou Mim d acirdo V ocl vl au deixaria tudo pela Juitlça a bebida e as mAei 90 h uma cola qut ma antuilaama 4 Id4ta de que vamo varrer oi tmrftieeea 446 MIMESIS considerado da forma mais séria e moralista possível que o conjunto não seria um divertimento ou um jôgo artístico mas um retrato verdadeiro da sociedade contemporânea tal como êle Zola a via tal como também o público era intimado nestas obras a vêla Dificilmente poderíamos sentir isto a partir apenas do pri meiro parágrafo do nosso texto quando muito poderíamos surpreendernos por causa da objetividade quase protocolar do relato o qual com tôda a sensibilidade da sua apresentação contém algo de sêco de claro de mais de quase cruel nenhum autor que tencione apenas um efeito cômico ou grotesco escreve desta forma A primeira frase Jusquà dix heures on resta seria inconcebível em meio de uma orgia grotesca da plebe Para que é dado de antemão o fim da orgia Isto tem um efeito demasiado despoetizante para fazer parte de uma intenção mera mente cômica ou grotesca E por que tão cedo Que espécie de orgia é esta que acaba tão cedo A gente das minas de carvão deve cair da cama cedo na segundafeira alguns dêles já às quatro E após a primeira surprêsa há outras coisas que chamam a atenção Para uma orgia mesmo junto ao pova réu é necessária a superabundância Certamente há fartura mas é uma fartura pobre e parca nada além da cerveja O conjunto mostra como são desconsoladas e miseráveis as alegrias desta gente A verdadeira intenção do texto tomase mais nítida no segundo parágrafo que descreve a partida e a volta ao lar A filha do mineiro Pierron Lydie é encontrada dormindo totalmente bêbada na rua diante do local do baile Lydie é uma menina de doze anos que estêve vadiando com dois meni nos de igual idade vizinhos seus Jeanlin e Bébert Os três já trabalharam na mina puxando os carrinhos são crian ças prematuramente estragadas especialmente o astuto e malévolo Jeanlin Desta vez incitou os outros dois a roubar uma garrafa de genebra de uma das barracas da quermesse beberamna juntos mas para a menina a dose foi grande demais é carre gada pelo pai para casa e os dois meninos seguem a certa distância trouvant cela très farce Entrementes partem as famílias vizinhas Maheu e Levaque juntandose ainda dois mineiros que já foram cortadores de carvão Bonnemort e Mouque que como de costume passaram o dia juntos Embora tenham apenas sessenta anos de idade já são os últimos da sua geração consumidos e embotados servem apenas para trabalhar na mina junto aos cavalos No seu tempo livre estão quase sempre juntos quase sem se falar Assim vão juntos mais uma vez através do burburinho cada vez mais fraco da quermesse dirigindose à vila onde todos moram Logo após deixarem atrás de si as casas iluminadas onde começa o campo aberto sobem risadas até êlcs da escuridão do trigo maduro solx uma exalação quente muitiis crianças são geradiis diminti c s s h GERMINIE LACERTEUX 447 noite Finalmente chegam è sua casinhola onde meio adorme cidos comem os restos requentados do almôço guardados para a noite Entrementes dois homens mais jovens foram ainda a uma outra taverna Em geral os dois não se dão muito bem por causa de uma garôta mas hoje têm algo importante a tratar Etienne quer conquistar Chaval para o seu projeto de uma caixa de previdência para que o pessoal não fique sem recursos quando se chegar à greve Chaval está de acôrdo Aquecidos pelas suas esperanças revolucionárias e pelo álcool esquecem a sua inimizade é claro que não por muito tempo e se unem no ódio comum contra o burguês Alegrias pobres e grosseiras corrupção prematura e rápido desgaste do material humano embrutecimento da vida sexual c em relação às condições de vida natalidade demasiado ele vuda pois a cópula é o único deleite gratuito por trás disto tio caso dos mais enérgicos e inteligentes ódio revolucionário que se apressa para a eclosão êstes são os motivos do texto Éles são postos em evidência sem rebuços sem mêdo diante das palavras mais claras nem diante dos acontecimentos mais feios A arte do estilo renunciou totalmente a procurar efeitos agradáveis no sentido tradicional serve à verdade desagradável oprimente desconsolada Mas esta verdade serve simultânea inente como incitação para uma ação no sentido da reforma social Não mais se trata como no caso dos Goncourt do iitrutivo sensível do feio tratase sem qualquer dúvida do ccrne do problema social do tempo da luta entre o capital industrial e a classe operária O princípio fart pour lart está liquidado Podese constatar que também Zola sentiu e apro veitou a sugestão sensível do feio e do repugnante podeselhe liunbém lançar em rosto que a sua fantasia um tanto grosseira e violenta levouo a cometer exageros brutais simplificações c li empregar uma psicologia demasiado materialista Mas tudo into não é decisivo Zola levou a sério a mistura dos estilos foi além do realismo meramente estético da geração que o precedeu é um dos pouquíssimos escritores do século que fizeram a sua obra a partir dos grandes problemas do seu tempo Neste sentido apenas Balzac é comparável com êle mas escre veu num tempo em que muito daquilo que Zola reconheceu não se tinha ainda desenvolvido ou não podia ainda ser reconhecido Se Zola exagerou êle o fêz na direção que interessava e se tinha predileção pelo feio fêz dela o uso mais frutífero possível irrm inal é ainda hoje após bem mais de meio século cujas ui limas décadas nos presentearam destinos com os quais Zola nem sonhava um livro terrível mas também hoje nada perdeu ila sim importância quase nada da sua atualidade Há nêle iieilios que merecem ser considerados clássicos que merecem eiitrnr nos livros dc leitura porque apresentam com clareza e simplicidade modelares a situação do quarto estado c o seu despertar num estágio temporão da época dc transição cm que 448 MIMESIS ainda nos encontramos Penso por exemplo na conversação noturna em casa do mineiro Maheu que está no terceiro capí tulo da terceira parte A conversa gira num primeiro momen to acêrcâ do excessivo aperto nas casas demasiado pequenas da vila com as suas desvantagens para a saúde e para a moral e continua depois desta forma Dame répondait Maheu si lon avait plus dargent on aurait plus daise Tout de même cest bien vrai que ça ne vaut rien pour personne de vivre les uns sur les autres Ça finit toujour par des hommes soûls et par des filles pleines Et la famille partait de là chacun disait son mot pendant que le pétrole de la lampe viciait lair de la salle déjà empuantie doignon frit Non sûrement la vie nétait pas drôle On travaillait en vraies brutes à un travail qui était la punition des galériens autrefois on y laissait sa peau plus souvent quà son tour tout ça pour ne pas même avoir de la viande sur sa table le soir Sans doute on avait sa pistée quand même on mangeait mais si peu juste de quoi souffrir sans crever écrasé de dettes poursuivi comme si lon volait son pain Quand arrivait le dimanche on dormait de fatigue Les seuls plaisirs cétait de se soûler ou de faire un enfant à sa femme encore la bière vous engraissait trop le ventre et lenfant plus tard se foutait de vous Non non ça navait rien de drôle Alors la Maheude sen mêlait Lembêtant voyezvous cest lorsquon se dit que ça ne peut pas changer Quand on est jeune on simagine que le bonheur viendra on espère des choses et puis la misère recom mence toujours on reste enfermé làdedans Moi je ne veux du mal à personne mais il y a des fois où cette injustice me révolte Un silence se faisait tous soufflaient un instant dans le malaise vague de cet horizon fermé Seul le père Bonnemort sil était là ouvrait des yeux surpris car de son temps on ne se tracassait pas de la sorte on naissait dans le charbon on tapait à la veine sans en demander davantage tandis que mainte nant il passait un air qui donnait de lambition aux charbon niers Faut cracher sur rien murmuraitil Une bonne chope est une bonne chope Les chefs cest souvent de la canaille mais il y aura toujours des chefs pas vrai Inutile de se casser la tête à réfléchir làdessus Du coup Etienne sanimait Comment la réflexion serait défendue à louvrier Eh justement les choses changeraient bientôt parce que louvrier réfléchissait à cette heure 4 Diacho respondeu Maheu se a gente tivesse mais dinheiro a sente cstaria mais folgado Mesmo assim é bem verdade que isso n lo faz bem a ninguém isto de viver uns sôbre os outros Isso ucnba sempre cm homens bêbados e môças grávidas E a fam ília saiu daí endu um dlzln nlyiimn colin cnqoimto o querosene du lâmpada viclnvn o nr dn nln A cmpcttemlo pelo cheiro de ccboln frltn N lo GERMINIE LACERTEUX 449 Não se trata de uma conversação determinada mas apenas de um exemplo uma das muitas conversas que tôda noite ocor rem na casa dos Maheu sob a influência do seu inquilino Etienne Lantier daí também o imperfeito A lenta tran sição da embotada submissão à consciência da própria situação o germinar de esperanças e planos as diferentes posições das gerações e junto a isto o lôbrego e miserável e enfumaçado do ambiente os sêres humanos apinhados a simples praticidade das palavras que surgem tudo isto dá um quadro modelar da classe operária da primeira época socialista e hoje ninguém quererá ainda negar sèriamente a importância históricouniversal do tema Qual é o nível estilístico que se deve atribuir a um texto como êste Tratase sem qualquer dúvida de uma grande tragédia histórica de uma mistura de humile com sublime na qual devido ao conteúdo predomina o último Frases tais como ii de Maheu si lon avait plus dargçnt on aurait plus daise ou Ça finit toujours par des hommes soûls et par des filles pleines para não falar nas da sua mulher tornaramse frases de grande estilo longo caminho foi percorrido desde Boileau que só podia imaginar o povo fazendo momices grotescas na farsa mais baixa Zola sabe como êstes sêres humanos pensaram t falaram Conhece também todos os detalhes da mineração conhece a psicologia de cada classe de operários e da adminis tração o funcionamento da gerência central a luta entre os grupos capitalistas a colaboração dos interêsses capitalistas com o governo com o exército Mas não escreveu apenas romances sobre operários industriais tal como Balzac porém de forma mais metódica e exata quis abranger tôda a vida do seu tempo o segundo Império o povo de Paris os camponeses o teatro as grandes lojas a bôlsa e muitas coisas mais Em todos os cnmpos Zola se tornou perito em tôda parte penetrou na islrutura social e na técnica Nos RougonMacquart há uma icMumcntc a vida não cra divertida Trabalhavase como verdadeiras bêstas num trabalho que em outros tempos era o castigo dos galeotes mais freqüente mrnic perdiase lá a pele antes do tempo tudo isso para não ter nem carne à mciu h noite Sem dúvida a gente tinha a sua bóia a gente comia mas tão pm uo Justinho o necessário para sofrer sem m orrer aplastado pelas dívidas ivcricHuldo como se a gente roubasse o próprio pão Quando chegava o domingo dormiu k c de cansaço Os únicos prazeres eram o de se embebedar ou o de ftticr um filho à sua mulher e ainda a cerveja engordava demais o ventre e a cilançu mal tnrdc se cagava cm você Não não isso não tinha graça nenhuma I nlflo a Maheu metiase O chuto vejam é quando a gente se diz que isto não pode m udar Omindo n gente é jovem a gente imagina que virá a felicidade a gente rprrn coisas c depois a miséria sempre recomeça de nôyo a gente fica prío IA dentro Eu não quero mal a ninguém mas há vêzes em que esta ImJu r IM mo revolta Iuiane um silêncio todos ressopravam por um instante no vago malestar horlontc fechado Só o compadre Bonnemort quando estava lá abria mIIio i RurprcROft poii no seu tempo a gente não se inquietava dêsse jeito nasciase no eurvfto murrctnvuiw na mina sem pedir mais nada enquanto que agora tipiMV um vento que dava ambição m o s carvoeiros MNílo c dove cuiplr cm ninguém murmurava Um bom chope é um bom thopf O chefe qtiukc sempre são cunalhas mas haverá sempre chefes tiA ê vcrtluilo f Inútil quebrar u cabeça pensando nisso Ir irpcnlc l Ucnnr c unlmava om nt tt reflexão estaria proibida para o ipiàili fll juMnmcnlr n coUm mudariam logo porque o operário estava ifflrllniiit ngmu 450 MIMESIS soma inimaginável de inteligência e de trabalho Hoje estamos saturados de tais impressões Zola achou muitos seguidores e cenas semelhantes à da casa dos Maheu poderiam ser encon tradas em qualquer reportagem moderna Mas Zola foi o primeiro e a sua obra está plena de quadros de espécie e d hierarquia semelhantes Será que alguém antes dêle viu jamais um cortiço como êle o fêz no segundo capítulo de LAssommoir Dificilmente aliás êle não apresenta um quadro visto por êle mesmo mas as impressões de uma lavadeira jovem que não vive há muito tempo em Paris que espera ao portão também estas páginas parecemme clássicas Os erros da concepção antropológica de Zola e os limites do seu gênio são evidentes elas não ferem a sua importância artística moral e sobretudo histórica e quero acreditar que a sua figura crescerá à medida que ganharmos distância do seu tempo e dos seus problemas tanto mais quanto êle foi o último dos grandes realistas fran ceses Já durante a última década da sua vida a reação antinaturalista tornouse muito forte e além do mais não havia mais ninguém que pudesse medirse com êle quanto à fôrça de trabalho quanto ao domínio da vida do seu tempo quanto a fôlego e a coragem A literatura francesa do século XIX está muito à frente das literaturas dos outros países europeus quanto à apreensão da realidade contemporânea Acêrca da Alemanha ou melhor do espaço lingüístico alemão já falamos ràpidamente em páginas anteriores Se considerarmos que Jeremias Gotthelf nascido em 1797 é apenas dois anos mais velho Adalbert Stifter 1805 seis anos mais jovem do que Balzac que os coetâneos alemães de Flaubert 1821 e de Edmond de Goncourt 1822 são por exemplo Freytag 1816 Storm 1817 Fontane e Keller ambos 1819 que os narradores de maior renome relativo nascidos mais ou menos no tempo de Zola isto é ao redor de 1840 se chamam Anzengruber e Rosegger então só êstes nomes já mostram que na Alemanha a própria vida era muito mais provinciana mais antiquada muito menos contem porânea As paisagens do espaço lingüístico alemão viviam cada uma delas na sua peculiaridade e em nenhuma delas chegou a medrar a consciência da vida moderna e das evoluções que se estavam preparando Mesmo após 1871 esta consciência nasceu só muito lentamente ou pelo menos demorou muito até que ela se documentasse enèrgicamente na representação literária da realidade contemporânea Durante longo tempo a própria vida permaneceu enraizada no individual no singular no tradicional mais fortemente do que na França não fornecia temas para um realismo tão universal e nacional tão materialmente moder no que analisasse o destino em formação de tôda a sociedade européia da forma como o realismo francês o fazia E entre os escritores alemães que quase todos alimentados pelas fontes da vida pública francesa apareciam como críticos radicais das situações da sua pátria não surgiu nenhum talento realista GERMINIE LACERTEUX 451 significativo Os escritores alemães de nível que se ocupavam da representação da realidade contemporânea tinham em comum o enleamento nas tradições do recanto em que estavam enrai zados Com isto o poético o romântico o à maneira de JeanPaul ou também o antiquado o solidamente burguês ou as duas ordens de coisas juntas tornaram impossível por muito tempo um tal radicalismo da mistura de estilos tal como tinha surgido muito cedo na França Somente no fim do século ela conseguiu se impor após pesadas lutas Em compensação reina entre os melhores dêsses escritores uma tão íntima devo ção vital e uma pureza na visão do ofício humano como não podem ser encontradas na França em parte alguma Stifter ou Keller por exemplo podem provocar no leitor um enlêvo muito mais puro e íntimo do que Balzac Flaubert ou até Zola c nada é mais injusto do que uma declaração de Edmond de Goncourt de 1871 que se encontra no quarto tomo de Journal aliás podese explicar talvez pela natural amargura de um francês fortemente atingido pelos acontecimentos da guerra francoprussiana nega aos alemães todo humanismo não teriam nem romance nem drama É claro que justamente as melhores obras alemãs desta época não tinham qualquer validez universal e não podiam devido a tôda a sua condição ser aces síveis a um homem como Edmond de Goncourt Algumas datas podem proporcionar uma visão panorâmica começaremos com os anos quarenta Em 1843 apareceu a mais importante tragédia realista da época Maria Magdalena de Hcbbel aproximadamente ao mesmo tempo surge Stifter pri meiro volume dos Studien em 1844 Nachsommer em 1857 também os mais conhecidos escritos narrativos de Gotthelf que era um tanto mais velho são dêste decênio Na década seguinte aparece Storm Immensee 1852 que porém só mais tarde chegou à maturidade Keller primeira edição de Der grüne Heinrich em 1855 Leute von Seldwyla primeiro tomo 1856 Frcytag Soll und Haben 1855 Raabe Chronik der Sper lingsgasse 1856 Der Hungerpastor 1864 Nas décadas ante rior e posterior à criação do império alemão não se vê nada de pròpriamente nôvo no realismo contemporâneo contudo formouse algo assim como um moderno romance de costumes cujo representante mais apreciado então e até a década de noventa foi Friedrich Spielhagen hoje totalmente esquecido A língua o conteúdo e o gôsto decaem nestas décadas só alguns poucos representantes da geração mais velha sobretudo Keller escreviam uma prosa com som e com pêso Só após 1880 Fontane que já tinha mais de sessenta anos chegou a um desenvolvimento pleno como narrador de temas contemporâneos pareceme de nível muito mais baixo do que Gotthelf Stifter ou Keller mas u sua arte inteligente e amável ainda nos dá o melhor retrato da sociedade do seu tempo com que contamos Além disso ela pode cr considerada não obstante a sua limitação a Berlim c ita terra n leste do Flha como passagem para um realismo 452 MIMESIS mais livre menos ensimesmado mais espaçoso Ao redor de 1890 as influências estrangeiras penetram por tôda parte no que respeita à representação da realidade contemporânea isto leva ao surgimento de uma escola naturalista alemã cuja figura mais importante é de longe a do dramaturgo Hauptmann Die Weber Der Biberpelz Fuhrmann Henschel pertencem ainda ao século XIX Já ao século XX pertence o primeiro grande romance realista que embora muito peculiar na sua forma corresponde no seu nível estilístico às obras dos realistas fran ceses do século XIX Buddenbrooks de Thomas Mann apare ceu em 1901 Deve ser salientado o fato de que também Haupt man e até Thomans Mann estavam nos seus começos mais fortemente ancorados no solo das suas regiões natais as montanhas da baixa Silésia e Lübeck respectivamente do que a maioria dos franceses de que tratamos aqui Nenhum dos homens de entre 1840 e 1890 desde Jeremias Gotthelf até Theodor Fontane apresentou de forma totalmente desenvolvida e unificada as características principais do realismo francês isto é do realismo europeu em formação a saber representação séria da realidade social quotidiana contemporâ nea fundamentada na constante movimentação histórica tal como surge das análises dos últimos capítulos Duas figuras tão fundamentalmente diferentes como Gotthelf homem prá tico vigoroso que não retrocedia diante de nenhuma realidade segundo a melhor tradição dos pastores de almas e Hebbel jovem oprimido e sombrio que escreveu o drama pesado como o chumbo do marceneiro Anton e sua filha têm em comum a característica de que o pano de fundo histórico dos aconteci mentos por êles narrados parece totalmente imóvel As casas dos camponeses do Bernbiet parecem destinadas a permanecer ainda durante séculos na mesma calma em que ficaram desde há séculos movimentada apenas pela mudança das estações e das gerações E também parece carecer totalmente de movi mento histórico a moral atrozmente antiquada e pequenobur guesa por cuja causa se asfixiam as pessoas em Maria Magda lena Aliás Hebbel não deixa suas personagens falarem uma linguagem tão popular como por exemplo a que Schiller permite ao seu músico Miller não as localiza pois o cenário é uma cidade mediana a linguagem da qual Fr Th Vischer já disse que nenhuma burguesa nenhum marceneiro a falaria contém juntamente com formas populares muito pathos convulsivamen te poético cujo efeito é por vêzes tão antinatural mas também tão terrivelmente sugestivo como o poderia ser um Sêneca trans portado para uma linguagem pequenoburguesa As coisas se dão de maneira muito semelhante a partir do ponto de vista do nosso problema no caso de um escritor totalmente diferente no caso de Adalbert Stifter também êle estiliza a fala das suas personagens e o faz de uma maneira simples pura c nobre de tal forma que não é possível encontrar na sua obru qualquer palavra crua c muito poucas palavras saborosamente populares GERMINIE LACERTEUX 453 A sim linguagem toca o ordinário e o quotidiano com distinção Hiiavc inocente e um tanto tímida relacionase estreitamente com isto o fato de suas personagens viverem também numa vida històricamente quase imóvel Tudo o que penetra na sua obra oriundo das engrenagens da história contfmporânea da inuudanidade moderna a política os negócios o dinheiro as atividades profissionais a não ser as atividades agrícolas ou artcsanuis tudo isto êle circunscreve com palavras simples e nobres mas também extremamente generalizantes insinuantes precavidas para que absolutamente nada daquela feia e impura confusão chegue até êle ou até o seu leitor Muito mais polí tico certamente também mais moderno é Gottfried Keller mas não vai além do peculiar e estreito espaço da Suíça otimismo democráticoliberal em que vive onde a persona lidade pode ainda procurar livre e impoluta o seu próprio caminho parecenos hoje uma estória dos velhos tempos Além tin mais êle se mantém num nível médio de seriedade aliás a mais forte mágica do seu ser consiste na sua peculiar alegria Icli capaz dc brincar amável e ironicamente até com as coisas mais erradas ou horrendas As guerras vitoriosas coroadas pela formação do império alemão tiveram as piores conseqüências morais e artísticas A nobre pureza das paisagens isoladas do moderno burburinho universal não mais se pôde sustentar na vida pública ou literá iiii e o elemento moderno que se impunha na literatura pareceu imliuno da tradição alemã ilegítimo e cego diante da sua pró li in ilegitimidade e diante dos problemas da época Houve m tumente alguns escritores cujos olhos viam com maior agu ilra talvez Vischer que já era velho então também Jacob Miiickhardt mas êste era suíço e sobretudo Nietzsche com quem também se deu pela primeira vez aquêle conflito entre rv n to r e público que na França pôde ser observado muito miles Contudo Nietzsche não representou realisticamente a iiiilidiulc contemporânea entre os que o fizeram entre os auto iiH ilr romances ou dramas não parece haver entre 1870 e IMi nenlmmu figura nova de pêso e de nível ninguém que tivessr siilo capuz de configurar sèriamente algo da estrutura tin viila contemporânea somente no caso de Fontane já idoso r mesmo aqui apenas nos seus últimos romances que são liiitiliím o h mais belos os que surgiram após 1890 apresentam sr ri me dc um autêntico realismo temporal Mas não che Uiim a se desenvolver totalmente porque o seu tom ainda não vai nlrm da meia seriedade de uma tagarelice amável em parte ntimisla em parle resignada Lançar isto em rosto a Fontane u i in injusto e desleal pois êle nunca pretendeu ser um realista liMiilaiiuntalmcnle crítico do seu tempo da espécie que foram pm cKcmplo Halac e Zola Pelo contrário basta para sua liiiim ii luto de o seu nome ser o único que se impõe apesar dc tiniu ujinili se tala na sua geração no sentido do realismo sério 454 MIMESIS Também nos restantes países da Europa ocidental e meridio nal o realismo não atinge durante a segunda metade do século a mesma fôrça independente nem a mesma coerência do rea lismo francês nem sequer na Inglaterra embora entre os roman cistas inglêses se contem importantes realistas O calmo desenvolvimento da vida pública durante a época vitoriana refletese no mais reduzido movimento do pano de fundo contemporâneo contra o qual se desenrolam os acontecimentos da maioria dos romances Os motivos tradicionais religiosos e morais fornecem um contrapêso de tal forma que o realismo não assume formas tão ásperas quanto na França É claro que de tempos em tempos especialmente perto do fim do século a influência francesa é significativa Por êste tempo isto é a partir da década de oitenta apresentamse à luz do público europeu os países escandinavos e sobretudo a Rússia com obras realistas Entre os escan dinavos a personalidade mais vigorosa é a do dramaturgo norue guês Henrik Ibsen Os seus dramas sociais são tendenciosos levantamse contra o entorpecimento a falta de liberdade e de veracidade da vida moral das camadas mais elevadas da burgue sia Embora todos se desenvolvam na Noruega e tratem de situações pronunciadamente norueguesas não deixaram de atingir com os seus problemas a burguesia da Europa central em geral a sua magistral técnica dramática a pontaria na direção da ação e a agudeza dos perfis das personagens sobre tudo de algumas figuras femininas arrastaram o público O efeito da sua obra foi muito grande especialmente na Alemanha onde o movimento naturalista de 1890 o honrou lado a lado com Zola como mestre onde os melhores palcos apresentaram as suas peças em ótimas montagens onde a importante reno vação do teatro que se estava realizando lá está em geral ligada ao seu nome Devido à total modificação da situação social da burguesia que se iniciou em 1914 e em geral devido às reviravoltas originadas pela grande crise mundial os seus problemas perderam em atualidade e hoje se percebe com maior clareza até que ponto a sua arte era deliberada e artificiosa Mas ficalhe o mérito histórico de ter conferido ao drama burguês sério um estilo uma questão que já se tinha colocado a partir da comédie larmoyante do século XVIII e que foi solucionada realmente só por êle A sua desgraça mas também quiçá um pouco o seu mérito foi que desde então a burguesia se modificou até tornálo irreconhecível Mais persistente e mais importante é a influência dos russos embora Gogol quase não a tivesse na Europa e Turgueniev que era amigo de Flaubert e de Edmond de Goncourt provà velmente recebeu mais no fim das contas do que deu Tolstoi e Dostoievski começam a se introduzir a partir da década de oitenta a partir de 1887 encontramse os seus nomes e discus sões a seu respeito no Journal dos Goncourt Contudo a compreensão das suas ohms sobretudo a dc Dosloicvnki piircce GERMIN1E LACERTEUX 455 Il t s c formado só lentamente as traduções alemãs da obra dêste último já pertencem ao século XX Não podemos falar aqui dos escritores russos em geral nem das suas raízes e pressupostos nem acêrca da sua importância individual dentro da própria literatura russa apenas podemos falar da sua influên eiu sôbre o modo de ver e de representar a realidade na luropa Parece que a capacidade de conceber o quotidiano de lorma séria já coube aos russos de antemão que uma estética dassicista que exclui fundamentalmente do tratamento sério 11uiii categoria literária do baixo nunca pôde obter um solo linne na Rússia Ao mesmo tempo ao observarmos o realis mo russo que chegou a seu auge apenas no século XIX e até iípciias na segunda metade impõese a observação de que está lundamcntado numa idéia cristã e patriarcal da dignidade cria tiiral de cada ser humano independentemente da sua classe soe iul ou da sua situação e que portanto está aparentado mm seus fundamentos muito mais com o antigo realismo cris lAo do que com o moderno realismo europeu ocidental A burguesia esclarecida ativa em ascensão para uma posição de domínio econômico e espiritual que estava em tôda parte na hiisi da cultura moderna e especialmente do moderno realis mo parece nem ter existido na Rússia Pelo menos não é possível encontrála nos romances também ainda não nos de lolstoi ou Dostoievski Nos romances realistas há membros dii nltii aristocracia proprietários aristocráticos de diferentes níveis e fortunas há hierarquias de funcionários e de clérigos nutrossim há pequenos burgueses e camponeses isto é há povo na mais vivaz das variedades Mas o que fica no meio a grande burguesia rica os comerciantes tudo isto ainda está dividido nas corporações e é de qualquer forma totalmente patriarcal na m u i mentalidade e no seu modo de vida Pensese por exem plo no comerciante Samsonov que tem um papel nos Irmãos Ktiramtiiov de Dostoievski ou na casa e na família de Ro Ifonluii no Idiota Isto não tem a mínima relação com a bur jiuosia esclarecida da Europa central e ocidental Os refor madores revolucionários e conspiradores que aparecem em tii tiiule número são originários das classes mais diferentes e o género da sua rebeldia por mais diferente que possa ser cm cada caso mostra sempre ainda uma estreita adesão ao imimlo cristãopatriarcal do qual não conseguem se libertar rniio com torturada violência Mais uma peculiaridade que chama a atenção do leitor nudiMituI da literatura russa é a uniformidade da população e dn sua vida neste país tão extenso uma unidade evidentemente opiuitjiiicii ou pelo menos existente há muito tempo de tudo o que é russo dc tal forma que freqüentemente parece supérfluo i i i i I k ui cm que região a ação se desenrola em cada caso Mes mo a paisagem é muito mais uniforme do que em qualquer nutro pai europeu Afora tis duas capitais Moscou c São 456 MIMESIS Petersburgo cujo caráter muito diferente de uma para outra é claramente reconhecível a partir da literatura raramente as cidades as vilas ou as províncias são designadas com exatidão Já as Alm as martas de Gogol ou a sua famosa comédia O Ins petor Geral indicam como cenário uma cidade governamen tal e uma cidade de província respectivamente e coisa muito semelhante acontece com os Demônios de Dostoievski ou com os Irmãos Karamasov Os proprietários de terras funcionários comerciantes clérigos pequenoburgueses e os camponeses parecem ser russos da mesma espécie em tôda e qualquer parte só raramente é chamada a atenção sôbre peculiaridades da fala e quando isto acontece não se trata de pormenores dialetais mas de detalhes ora individuais ora sociais como por exemplo a pronúncia do o usual entre o povo baixo ou finalmente de variedades de fala que carac terizam as minorias que moram no país judeus poloneses alemães pequenosrussos Todavia no que diz respeito aos legítimos russos ortodoxos de nascença todos êles parecem formar no país todo não obstante as diferenças de classe uma única família patriarcal coisa semelhante pode ser observada no século XIX também em algumas outras regiões talvez em algumas regiões alemãs mas em parte alguma de forma tão intensa e sobretudo em nenhuma extensão tão grande Em todos os cantos dêste gigantesco país parece soprar o mesmo vento da pátria russa Deptro desta grande e uniforme família que se diferencia da sociedade européia contemporânea sobretudo pelo fato de nela quase não existir ainda a burguesia esclarecida consciente de si mesma que trabalha planejadamente reina durante o século XIX o mais intenso movimento interno isto pode ser reconhe cido a partir da literatura sem lugar a dúvidas Nas outras literaturas européias da época também reinava grande agitação sobretudo na francesa mas ela é de caráter diferente A carac terística essencial da agitação interna tal como a documenta o realismo russo é a falta de pressupostos a ilimitação e o apai xonamento nas vivências dos sêres humanos representados Esta é a impressão mais forte tida pelo leitor ocidental num primeiro instante e antes de tôdas as outras sobretudo nas obras de Dostoievski mas também nas de Tolstoi e outros Parece que os russos conservaram para si uma imediaticidade das vivências como já era difícil encontrar na civilização ocidental no século XIX um estrecimento forte vital ou moral ou espiritual atiçaos imediatamente nas profundezas dos seus instintos e êles caem num instante de uma vida calma e uniforme por vêzes quase vegetativa para precipitarse nos mais terríveis excessos tanto práticos como espirituais A amplitude da oscilação pendular das suas essências das suas ações pensamentos impressões pa rece muito mais ampla do que no resto da Europa Também isto lembra o realismo cristão tal como tratamos dc uprcxcn táio nos primeiros capítulos dêstc livro O que é prodigioso GERMINIE LACERTEUX 457 especial mente em Dostoievski mas também em outros casos é u alternância de amor e ódio de entrega humilde e de crueza animal de amor apaixonado pela verdade e da mais vulgar sensualidade de simplicidade crente e de cinismo atroz A mu dança apresentase muito freqüentemente no mesmo ser quase sem transição em oscilações violentas e imprevisíveis e ao mesmo tempo êstes sêres se entregam inteiramente em todos os casos de tal forma que nas suas palavras e ações se manifestam profundezas instintivas caóticas que embora também fôssem conhecidas em países europeus não eram expressas devido a um temor inspirado pela frialdade científica pelo senso da forma e pelo decôro Quando os grandes russos especialmente Dos loievski ficaram conhecidos na Europa Central e Ocidental a amplitude da tensão das fôrças espirituais e a imediaticidade da expressão da forma em que embatiam nos leitores a partir das nuas obras tiveram o efeito de uma revelação que pareceu conferir finalmente pela primeira vez a verdadeira perfeição A mistura de realismo e tragédia Juntase a isto ainda uma última coisa Ao perguntarse o que propriamente teria desencadeado nos sêres humanos das obras russas a violenta movimentação interna do século XIX n resposta é em primeiro lugar a infiltração de formas de vida e espirituais européias modernas especialmente alemãs e france Htis Estas chocaramse na Rússia com tôda sua fôrça contra uma sociedade que embora estivesse corrompida em muitos as pectos era também muito independente e voluntariosa e sobre tudo estava muito pouco preparada para tanto Por motivos mo ruÍN e práticos era inevitável esta confrontação com a cultura eu inpéiii moderna enquanto que as épocas preparatórias que leva ram a Europa aonde então estava não haviam sido vividas ainda na Rússia O conflito tornouse dramático e confuso ao olmrválo da forma que se reflete em Tolstoi ou Dostoievski tomase nitidamente visível o que havia de selvagem tempes tuoso íibsoluto na aceitação ou na recusa da essência européia lá a escolha de pensamentos e sistemas com os quais se realiza a confrontação é um tanto casual e arbitrária imediatamente dêles se espreme por assim dizer apenas o resultado e êste não é provado cm relação a outros sistemas ou pensamentos como contribuição mais ou menos valiosa em meio a uma produção rspintual rica e variada mas é julgado imediatamente de forma Im o Ii iIii verdadeiro ou falso iluminação ou obra do demônio Improvisamse nonstruosos contrasistemas teóricos acêrca de lenômcnos muito complexos dificilmente formuláveis de forma imlóticn devido à sua carga histórica acêrca da cultura oci lentul liberalismo socialismo igreja católica julgase com pouca palavras a partir de um ponto de vista determinado e liiiilunU amiúde errado e em tôda parte tratase imediatamente do problemas últimos de caráter moral religioso e social P xtiiMiiamente característica a frase que Ivan Karamasov apre niiln c que constitui o tema fundamental do grande romance 458 MIMESIS e que diz que sem Deus e sem imortalidade não pode haver moral e que inclusive o crime deve ser reconhecido como esca patória ineludível e razoável para a situação de qualquer ateu uma frase na qual a paixão radical do tudo ou nada se mistura com o pensamento de forma diletante e também simul tâneamente desconcertantemente grandiosa Mas a confronta ção russa com a cultura européia durante o século XIX não foi importante apenas para a Rússia Por mais confusa e dile tante que apareça freqüentemente por mais agravada que esteja de informação insuficiente falsa perspectiva preconceito e paixão ela não deixava de possuir um instinto extremamente seguro para detetar aquilo que na Europa estava quebradiço e sujeito a crises Também neste sentido a influência de Tolstoi e ainda mais a de Dostoievski foram muito grandes na Europa e se durante o decênio que precedeu a primeira guerra mundial se aguçou em muitas partes também na literatura realista a crise moral e se algo assim como um pressentimento da catás trofe iminente se fêz sentir a influência dos realistas russos contribuiu essencialmente para tanto A Meia Marrom And even if it isnt fine tomorrow said Mrs Ramsay M m raising her eyes to glance at William Bankes and Lily I m Briscoe as they passed it will be another day And now she said thinking that Lilys charm was her Chinese eyes aslant in her white puckered little face but it would take a clever man to see it and now stand up and let me measure your leg for they might go to the Lighthouse after nil und she must see if the stocking did not need to be an inch or two longer in the leg Smiling for an admirable idea had flashed upon her this very second William and Lily should marry she took the heather mixture stocking with its crisscross of steel needles at the mouth of it and measured it against James leg My dear stand still she said for in his jealousy not liking to serve as measuringblock for the Lighthouse keepers liltle boy James fidgeted purposely and if he did that how could she see was it too long was it too short she asked She looked up what demon possessed him her youngest her cherished and saw the room saw the chairs thought them fearfully shabby Their entrails as Andrew said the other day were all over the floor but then what was the point she asked herself of buying good chairs to let them spoil up here all through the winter when the house with only one old woman to see to it positively dripped with wet Never mind the rent w iin precisely twopence halfpenny the children loved it it did her husband good to be three thousand or if she must be accu rate three hundred miles from his library and his lectures and hi disciples and there was room for visitors Mats camp hell eray ghosts of chairs and tables whose London life of wrvicc was done they did well enough here und a photograph or two urul book Hook he thought grew of themselves 460 MIMESIS She never had time to read them Alas even the books that had been given her and inscribed by the hand of the poet himself For her whose wishes must be obeyed The happier Helen of our days disgraceful to say she had never read them And Croom on the Mind and Bates on the Savage Customs of Polynesia My dear stand still she said neither of those could one send to the Lighthouse At a certain moment she supposed the house would become so shabby that something must be done If they could be taught to wipe their feet and not bring the beach in with them that would be something Crabs she had to allow if Andrew really wished to dissect them or if Jasper believed that one could make soup from seaweed one could not prevent it or Roses objects shells reeds stones for they were gifted her children but all in quite different ways And the result of it was she sighed taking in the whole room from floor to ceiling as she held the stocking against James leg that things got shabbier and got shabbier summer after summer The mat was fading the wallpaper was flapping You couldnt tell any more that those were roses on it Still if every door in a house is left perpetually open and no lockmaker in the whole of Scotland can mend a bolt things must spoil What was the use of flinging a green Cashmere shawl over the edge of a picture frame In two weeks it would be the colour of pea soup But it was the doors that annoyed her every door was left open She listened The drawingroom door was open the hall door was open it sounded as if the bedroom doors were open and certainly the window on the landing was open for that she had opened herself That windows should be open and doors shut simple as it was could none of them remember ir She would go into the maids bedrooms at night and find them sealed like ovens except for Maries the Swiss girl who would rather go without a bath than without fresh air but then at home she had said the mountains are so beautiful She had said that last night looking out of the window with tears in her eyes The moun tains are so beautiful Her father was dying there Mrs Ram say knew He was leaving them fatherless Scolding and demons trating how to make a bed how to open a window with hands that shut and spread like a Frenchwomans all had folded itself quietly about her when the girl spoke as after a flight through sunshine the wings of a bird fold themselves quietly and the blue of its plumage changes from bright steel to soft purple She had stood there silent for there was nothing to be said He had cancer of the throat At the recollection how she had stood there how the girl had said At home the mountains are so beautiful and there was no hope no hope whatever she had a spasm of irritation unci speaking sharply said to James A MEIA MARROM 461 Stand still Dont be tiresome so that he knew instantly that her severity was real and straightened his leg and she mea sured it The stocking was too short by half an inch at least making allowance for the fact that Sorleys little boy would be less well grown than James Its too short she said ever so much too short Never did anybody look so sad Bitter and black halfway down in the darkness in the shaft which ran from the sunlight to the depths perhaps a tear formed a tear fell the waters swayed this way and that received it and were at rest Never did anybody look so sad But was it nothing but looks people said What was there behind it her beauty her splendour Had he blown his brains out they asked had he died the week before they were married some other earlier lover of whom rumours reached one Or was there nothing nothing but an incomparable beauty which she lived behind and could do nothing to disturb For easily though she might have said at some moment of intimacy when stories of great passion of love foiled of ambition thwarted came her way how she too had known or feit or been through it herself she never spoke She was silent always She knew then she knew without having learnt Her simplicity fathomed what clever people falsified Her singleness of mind made her drop plumb like a stone alight exact as a bird gave her natu rally this swoop and fall of the spirit upon truth which delighted cased sustained falsely perhaps Nature has but little clay said Mr Bankes once hearing her voice on the telephone and much moved by it though she was only telling him a fact about a train like that of which the moulded you He saw her at the end of the line Greek liluecycd straightnosed How incongruous it seemed to be telephoning to a woman like that The Graces assembling icemed to have joined hands in meadows of asphodel to compose that fuce Yes he would catch the 1030 at Euston Hut shes no more aware of her beauty than a child xiil Mr Bankes replacing the receiver and crossing the room In sec what progress the workmen were making with an hotel which they were building at the back of his house And he thought of Mrs Ramsay as he looked at that stir among the iinlinished walls For always he thought there was something incongruous to be worked into the harmony of her face She dapped a deerstalkers hat on her head she ran across the lawn in goloshes to snatch a child from mischief So that if it was hoi beauty merely that one thought of one must remember the iiiiveiiug thing the living thing they were carrying bricks up a little plank as he watchcd them and work it into the picture h i it one thought of her simply as a woman one must endow liri willi some Irciik of idiosyncrasy or suppose some latent 462 MIMESIS desire to doff her royalty of form as if her beauty bored her and all that men say of beauty and she wanted only to be like other people insignificant He did not know He did not know He must go to his work Knitting her reddishbrown hairy stocking with her head out lined absurdly by the gilt frame the green shawl which she had tossed over the edge of the frame and the authenticated masterpie ce by Michael Angelo Mrs Ramsay smoothed out what had been harsh in her manner a moment before raised his head and kissed her little boy on the forehead Lets find another picture to cut out she said J 1 E mesmo se amanhã o tempo não estiver bom disse a senhora Ramsay levantando os seus olhos para olhar William Bankes e Lily Briscoe que passavam será outro dia E agora disse pensando que o encanto de Lily eram os seus olhos chineses enviesados no seu rostinho branco e franzido mas só um homem inteligente poderia vêlo e agora fique de pé e deixeme medir sua perna pois poderiam ir ao farol apesar de tudo e cia precisava ver se a meia não precisava ser uma polegada ou duas mais com prida na perna Sorrindo pois uma idéia admirável tinha cintilado nela neste mesmo segundo W illiam e Lily deveriam casarse pegou a meia côr de urzes com a sua cruz de agulhas de aço na bôea e a mediu contra a perna de James Meu querido fique quieto disse pois por causa dos seus ciúmes não querendo servir de manequim para o menino do guarda do farol James bulia de propósito o se ele fizesse isso como é que ela poderia ver se era demasiado longa se sera demasiado curta perguntou Levantou o olhar que demônio o possuía o seu caçula o seu querido e viu a habitação viu as cadeiras pensou que estavam terrivelmente gastas As suas entranhas como Andrew disse outro dia estavam tôdas pelo chão mas também para que serviria perguntouse a si mesma com prar cadeiras boas para deixar que estragassem aqui durante o inverno todo quando a casa com apenas uma velha para cuidar dela positivamente pingava de umidade Não tinha im portância o aluguel era preesiamente dois peniques e meio as crianças adoravamna fazia bem ao seu marido estar a três mil ou se devesse ser exata trezentas milhas das suas bibliotecas das suas aulas e discípulos e havia espaço para visitas Esteiras cam as de campanha loucos fantasm as de cadeiras e mesas cuja vida ativa iondonense havia chegado ao seu fim serviam bas tante bem aqui e uma fotografia ou duas e livros Os livros pensou crescem de per si Ela nunca tinha tempo de lêlos Ai mesmo os livros que lhe haviam sido dados e dedicados pela própria mão do poeta Para aquela cujos desejos devem ser obedecidos A mais feliz Helena dos nossos dias i era vergonhoso dizêlo mas nunca os tinha lido E Croom acerca da Mente e Bates sôbre os Costumes Selvagens na Polinésia Querido fique quieto falou nenhum dêsses a gente podia mandar para o farol Num determinado momento pensou a casa ficaria tão estragada que alguma coisa deveria ser feita Se ao menos pudessem ser ensinados a secar os pés e a não trazer a praia com êles já seria algo Caranguejos ela precisava permitir se Andrew queria realmente dissecálos ou se Jasper pensava que se podia fazer sopa com algas a gente não podia impedilo ou as coisas de Rosas conchas juncos pedras pois eram todos bem dotados seus filhos mas todos de modo bem diferente E o resultado era que suspirou abrangendo a habitação tôda do chão ao fôrro enquanto segurava a meia contra o pé de James as coisas ficavam cada vez mais gastas de um verão para o outro O tapête estava des corando o papel de parede estava esfarrapado A gente nem mais poderia dizer que o que havia nêle eram rosas E ainda se tôdas as portas da casa ficam perpètuamente abertas e nenhum chaveiro em tôda Escócia sabe conser tar uma fechadura as coisas têm de estragar Para que pôr um xale flc cachemir verde sôbre a moldura de quadro Em dois dias ficaria da côr de sopa de ervilhas Mas eram as portas o que a incomodava tôdas as porlan eram deixadas abertas Escutou A porta da sala estava aberta a porta do hail estava aberta parecia que as portas dos quartos estivessem abertas e certamente a janela do patamar estava aberta pois essa ela mesma tinha aberto Que as janelas devem ficar abertas e as portas fechadas por mais simples que fôsse ninguém podia lembrar Iria aos quartos das criadas à noite c cncontrAlosla selado como fornos exceto o de Marie a môça suíça que preferia ficar xcm tomar banho a não ter ar fresco mas também lá em cusa cln huvin dito u mon tanhas s8o tfio belas Dinncm isso mi noite panada olhnmlo pelu Jnncla com lágrima not olho A montanha fio tfio b elo cu pai cvluvu A morte A MEIA MARROM 463 Êste trecho de prosa narrativa é a quinta secção da primeira parte do romance de Virginia Woolf To the Lighthouse que apa receu pela primeira vez em 1927 A situação em que se en contram as personagens pode ser compreendida quase comple tamente a partir do texto ela não é apresentada de forma dife rente da que aqui se vê isto é num contexto sistemático numa espécie de exposição ou introdução em nenhuma parte do romance Mas quero resumir brevemente a situação no comêço U a senhora Ramsay o sabia Estava deixandoas órfãs Ralhando e demons trando como se faz uma cama como se abre uma janela com mãos que se fcchavnm e sc abriam como as de um a francesa tudo dobrouse silenciosamente no açu redor quando a môça falou como quando depois de um vôo através In luz do sol as asas de um pássaro se dobram silenciosamente e o azul da u a plumagem muda do aço brilhante à púrpura suave Ficara de pé lá ftilcncloan pois não havia nada a dizer Êle tinha câncer na garganta Com eatn lembrança como ela ficou de pé lá como a m ôça disse Em casa as montanhas são tão belas e não havia esperança nenhuma esperança teve um CRpnsmo de irritação e falando severamente disse a James Fique quieto N ão seja cacete de tal forma que êle soube instantânea mento que a sua severidade era real endireitou sua perna e ela mediu A mein era demasiado curta faltava pelo menos m eia polegada conside iwndoRc que o menino de Sorley não estaria tão crescidinho como James curta demais disse muito curta demais Nunca ninguém pareceu tão triste Am arga e prêta a meio caminho para tmixo na escuridão no poço que ia da luz do sol às profundezas talvez um a Ugrlmn se formou uma lágrima caiu as águas oscilaram para cá e para lá receberamna e ficaram de repouso N unca ninguém pareceu tão triste Mas nfio era nada mais que aparência perguntavam as pessoas O que é que lutvia por trás disso da sua beleza do seu esplendor Tinha feito saltar os miolos perguntavam tinha morrido um a semana antes do casamento algum outro nmante anterior acêrca do qual a gente ouvia boatos Ou não Ii u v Im nada Nada além de um incomparável beleza atrás da qual ela vivia o njuln podia fazer para disturbála Pois por mais fàcihnente que ela piKlciiftc ter dito em algum momento de intimidade quando histórias de grande paixAo dc amor frustrado dc ambição contrariada vinham pelo seu caminho como cia tutnbém soube ou sentiu ou atravessou isso por si mesma ela nunca falava Estava sempre silenciosa Então sabia sabia sem ter aprendido A tuu fiimplicidnde sondava o que as pessoas inteligentes falsificavam A sin iiuUrldndc da sua mente faziaa cair no prumo como um a pedra iluminada rntumcntc como um pássaro davalhe naturalmente esta queda do espírito Rfthre a verdade que deleitava aliviava sustentava falsamente talvez A natureza nfio tem senão pouca argila disse o senhor Bankes certa vez ouvindo a sua voz ao telefone e muito comovido por ela em bora sòmente lhe IImo r k c ilgo a respeito de um trem como esta de que ela a fêz Viaa no fim da linha grega de olhos azuis o nariz reto Como parecia ser incongruente lelrfonar para uma mulher como essa As Graças reunidas pareciam ter jun u d o hr mflos em charnecas de asfódelos para compor esse rosto Sim êle ptgarla o da 10 e 30 em Euston Mn cio não é mais consciente da sua beleza do que uma criança disse o icnhor Bankes recolocando o fone e atravessando a habitação para ver o lronrcRo do operários que construíam um hotel atrás da sua casa E pensou tta Mmlmru Ramsay enquanto olhava para o movimento entre os muros inacabados lol Romprc pensou havia algo dc incongruente que devia ser recomposto na liuunonl do seu rosto Enfiava um chapéu de caçador de veados na cabeça lo irla através do gramado em galochas para impedir a travessura de um a itJiwicu Assim que sc a gente pensava só na sua beleza a gente precisava Innhrur u coisa palpitante a coisa viva carregavam tijolos por um a pequena lAIxm enquanto o olhava e encaixála no retrato ou se a gente pensava nela RlinpIpRincnte como mulher deviase dotála com alguma excentricidade idiossin irAtlca ou impor algum desejo latente de livrarse da sua realeza de forma Muno nr a r iim beleza u aborrecesse e tudo o que os homens dizem da beleza e Ih Ju Iic r r o RÒmentc cr como outras pessoas insignificante Êle não sabiam NAn nubla Devia voltar ao eu trabalho I ilcotando nuu peluda mein marromavermelhada com a sua cabeça recor ihiIii ubRiiulnincntc contra a moldura dourada o xale verde que jogara sôbre a nmlilum p m obraprima autenticada de Michelângelo a senhora Ramsay sua vUnti it iir Imvla sido rude no seu Jeito um InRtante antes levantou a cabeça e ti eu menino nAhio n c r í i i Vamos achar outra gravuru para recor Imi ilíiftcv 464 MIMESIS do nosso trecho para facilitar ao leitor a compreensão da aná lise seguinte também para salientar com mais vigor alguns motivos importantes de parágrafos anteriores que aqui são insi nuados apenas dèbilmente Mrs Ramsay é a espôsa muito bela mas há tempo não mais jovem de um renomado professor de filosofia de Londres o local em que se encontra com o seu filho caçula James de seis anos de idade é um lugar à janela de uma ampla casa de verão que o professor aluga há alguns anos numa das ilhas Hébridas Além do casal Ramsay dos seus oito filhos e da criadagem moram ou circulam pela casa uma quantidade de convidados amigos entre os quais um conhecido botânico William Bankes um senhor de certa idade viúvo e a pintora Lily Briscoe os quais justamente passam juntos diante da janela James sentado no çfrão está ocupado em recortar gravuras de um catálogo ilustrado A sua mãe asseguroulhe pouco antes que no dia seguinte se o tempo fôsse bom velejariam juntos até o farol James há tempo que se alegra com esta excursão há diversos presentes destinados aos moradores do farol entre os quais as meias para o menino do guarda do farol A intensa alegria que James sentiu quando do anúncio da excursão alegria que o invadiu totalmente por um instante foi contudo destruída com igual violência pela acerba observação do seu pai de que no dia seguinte o tempo não seria bom Um dos convidados completou ainda esta observação com ênfase um tanto malé vola fazendo algumas considerações meteorológicas Quando todos os outros deixaram o recinto Mrs Ramsay dirige a James as palavras de consolo com que começa o nosso trecho A unidade do trecho é fornecida por um processo externo entre Mrs Ramsay o ato de medir o comprimento da meia Logo após as suas palavras consoladoras se amanhã o tempo não fôr bom então iremos outro dia Mrs Ramsay faz com que James fique de pé para experimentar na sua perna a meia destinada ao filho do guarda do farol Pouco mais adiante ela diz um tanto distraída que James deve ficar quieto pois a criança está inquieta um tanto obstinado por causa dos ciúmes e talvez ainda sob a influência da recente decepção Muitas linhas mais adiante a admoestação de James é repetida em tom mais acerbo e James obedece A medição é feita e o seu resultado indica que a meia está ainda demasiado curta Após um nôvo intervalo longo o processo é levado ao seu fim com o beijo na testa mediante o qual Mrs Ramsay compensa a severidade da sua segunda ordem de ficar quieto e mediante o convite para procurarem juntos uma nova gravura para ser recortada Aqui também acaba o trecho Neste episódio totalmente carente de importância são en tretecidos constantemente outros elementos os quais sem inter romper o seu prosseguimento requerem muito mais tempo para A MEIA MARROM 465 scrcm contados do que êle duraria na realidade Tratase pre ponderantemente de movimentos internos isto é de movimen tos que se realizam na consciência das personagens e não so mente de personagens que participam do processo externo mas também de nãoparticipantes e até de personagens que no mo mento nem estão presentes people Mr Bankes Simultanea mente introduzemse ainda acontecimentos como que secundá rios exteriores de lugares e tempos totalmente diferentes como a conversação telefônica os trabalhos de construção que servem de andaime para os movimentos nas consciências ilas terceiras pessoas Estudemos isto pormenorizadamente Já as primeiras palavras de Mrs Ramsay são interrompidas duas vêzes pela imagem que fere os seus olhos William Bankes c Lily Briscoe passam juntos e depois só após mais algumas palavras que servem ao processo exterior pela impressão que deixaram no seu interior os passantes aquilo que há de encan tador nos olhos achinesados de Lily que nem todos os homens perceberiam após o que ela termina a sua frase e deixa que também a sua consciência repouse por um instante na medição da meia no fim das contas iremos sim ao farol e então devo verificar se a meia está bastante comprida Aqui relampeja o pensamento já preparado pela observação dos olhos chineses de lily William e Lily deveriam casarse isto é uma idéia muito boa cia gosta de provocar casamentos Sorridente volta à medição Mas a criança movida pelo seu amor obstinado e ciumento por ela não fica quieta como é que ela pode ver assim se a meia tem o comprimento certo O que há com lames o seu caçula o seu querido Levanta os olhos o seu olhar se espraia pelo recinto e assim começa um amplo pa rêntese A partir das poltronas estragadas das quais Andrew d seu filho mais velho dissera recentemente que espalhavam ii suas entranhas pelo chão os seus pensamentos vagueiam apalpando os objetos e os sêres que a rodeiam Os móveis es tragados mas bastante bons para cá as vantagens da morada do verão barata e boa para as crianças para o seu marido lilcil mente equipada com alguns móveis velhos e mais alguns quadros e livros Livros há muito que ela não tem tempo de lélos nem aqueles que lhe foram dedicados aqui aparece de relance o farol para onde não se pode mandar livros tão cien tíficos como muitos dos que estão por aí Depois novamente ii ciisii se os habitantes tomassem um pouco mais de cuidado mas é claro Andrew traz caranguejos que êle quer dissecar as outra crianças juntam algas conchas pedras isto ela tem de permitir tôdas as crianças são bem dotadas cada uma de ma neira diferente mas é claro que assim uma casa fica cada vez cm maior desordem interrompese aqui o parêntese por um instante ela encosta a meia na perna de James tudo se dete iinra Se pelo menos as portas não estivessem sempre abertas in n iiii tudo sc deita a perder também êste xale de cachemir iiic estrt XMluiiilo na moldura do quadro Tôdas as portas estão 466 MIMESIS escancaradas mesmo agora Escuta Sim estão tôdas abertas A janela do patamar também está aberta ela mesma a abriu As janelas devem ficar abertas as portas fechadas Por que ninguém quer se lembrar disto Quando se chega de noite nos quartos das criadas as janelas tôdas estão fortemente fechadas Só a criada suíça mantém sua janela sempre aberta Ela pre cisa de ar fresco Ontem ao olhar pela janela disse com os olhos cheios de lágrimas lá em casa as montanhas são tão lindas Mrs Ramsay sabia que lá em sua casa o seu pai está à morte Mrs Ramsay estava justamente lhe indicando como se fazem as camas como se abrem as janelas Falou e ralhou intensamente Mas depois ficou em silêncio comparação com as asas de um pássaro que se fecham enquanto volta de um vôo através dos raios do sol Ficou silenciosa pois aqui não havia nada a dizer Tinha câncer na garganta Com esta lem brança de como ela ficou parada de como a criada disse lá em casa as montanhas são tão lindas e não há mais esperança alguma sobe nela uma convulsa amargura amargura contra a cruel falta de sentido da vida cujo prosseguimento ela está empenhada em incentivar em apoiar em assegurar com tôdas as suas fôrças a amargura vertese para o acontecimento exte rior o parêntese acaba bruscamente só pode ter durado poucos segundos há pouco ainda sorria por causa da idéia de um casa mento de Mr Bankes com Lily Briscoe e diz severamente a James fica quieto não sejas tolo Êste é o primeiro grande parêntese O segundo começa logo após depois que a medição da meia foi levada a cabo dando como resultado de que ela está ainda curta demais Co meça com o parágrafo que está emoldurado pelo motivo never did anybody look so sad Quem é que fala neste parágrafo Quem observa Mrs Ramsay faz a constatação de que ninguém jamais parecera tão triste e exprime conjecturas de espécie tão duvidosa e recôndita acêrca da lágrima que talvez se forme e cai no escuro da água que agitandose de cá para lá a recebe para ficar depois novamente quieta No lugar junto à janela só estão Mrs Ramsay e James êstes dois não podem ter sido e tampouco aquêle se peopte que começa a falar no parágrafo seguinte Portanto tratase talvez do próprio escritor Só que se assim fôr não se manifesta acêrca das suas personagens neste caso acêrca de Mrs Ramsay como alguém que sabe ao certo a seu respeito e que consegue descrever a partir dêsse conheci mento o seu caráter e o seu estado interno a cada instante com objetividade e segurança Virginia Woolf escreveu êste parágrafo também não o distinguiu mediante características gramaticais ou tipográficas como fala ou pensamento de um terceiro Devese pois admitir que contém manifestações ime diatas dela própria Mas ela não parece pensar que é escritora e que portanto deveria saber qual a situação das suas persona gens Quem fala aqui seja quem fôr aprcsentiise como uma A MEIA MARROM 467 pessoa que somente recebeu uma impressão de Mrs Ramsay que vò o seu rosto e que reproduz a sua impressão de forma subjetiva duvidando acêrca da sua interpretação Never did anybody look so sad não é uma constatação objetiva é a repro dução que raia no sobrenatural da agitação de um alguém que vislumbra o rosto de Mrs Ramsay E naquilo que se segue nem mais parece que são sêres humanos a falar mas espíritos entre o céu e a terra espíritos carentes de nome que podem penetrar nas profundidades de um ser humano sabem algo a seu respeito mas não podem obter uma visão clara acêrca do que líí acontece de tal forma que a sua informação parece in certa de forma talvez semelhante a dos certain airs detached I rum the body of the wind que num trecho posterior II 2 m urrustam de noite pela casa adormecida questioning and wondering Seja como for não se trata aqui também não da mimifcNtução objetiva do escritor sôbre as suas personagens Ninguém sube nada com certeza aqui tudo não é serião conje tiiiu olhares que alguém deita sôbre outro cujos enigmas não é cupaz de solucionar Isto também continua no parágrafo seguinte externamse e discutemse conjeturas acêrca do significado da expressão facial ile Mrs Kamsay Mas o nível tonal desce um pouco do poético sobrcnatural para o práticoterreno sendo que agora também é introduzido quem fala people said As pessoas se perguntam He nfio se ocultaria qualquer lembrança de um acontecimento infeliz na sua vida pregressa por trás da sua deslumbrante beleza Correram boatos a êsse respeito Mas talvez sejam Inlsos Dela mesma nada pode ser averiguado calase quando ii conversa recai sôbre tais coisas Mas mesmo se nada disso lhe aconteceu sabe de tudo mesmo sem experiência A sim plicidade e a retidão do seu modo de ser atingem infalivelmente ii verdude das coisas e têm falsamente talvez o efeito de um encantamento de um alívio de uma ajuda P ainda people quem fala aqui Poderseia quase duvidar disso pois as últimas palavras têm um tom quase demasiado pessoal c reflexivo para se tratar do falatório das pessoas e imediatamente depois é introduzido inesperadamente repentina mente um nôvo portavoz uma cena totalmente nova e um outro tempo Encontramos Mr Bankes ao telefone falando com Mrs Ramsay Esta chamouo para comunicarlhe algo ncêrca de uma conexão de estradadeferro evidentemente devi do a um encontro para uma viagem em comum Já o parágrafo sôbre a lágrima levounos para longe do recinto onde Mrs Kamsay e James estão à janela levounos para um cenário inde terminável suprarcal aquêle no qual se fala do falatório das pessoas tem um cenário concretamente terrestre mas não cla ramente determinado agora encontramonos num lugar clara mente ilctcrminmlo mas muito longínquo da casa de verão mi londrcs nu residüncia ile Mr Bankes o tempo não é i omunicmlii oure mas ó evidente que a conversa telefônica 468 MIMESIS teve lugar há bastante tempo talvez vários anos antes da estada na casa da ilha Mas o que Mr Bankes diz ao telefone continua com exatidão o parágrafo anterior é como se resumisse nova mente porém não de forma objetiva mas como impressão sôbre um ser humano determinado num instante determinado o que aconteceu a cena com a criada suíça a tristeza oculta no belo rosto de Mrs Ramsay os pensamentos das pessoas a seu respeito o seu efeito a natureza tem pouca argila como aquela da qual a formou Será que realmente lhe disse isso pelo telefone Ou será que só quis dizêlo ao ouvir a sua voz que o emocionou profundamente e quando atingiu sua consciência a noção de quão estranho era falar ao telefone com esta mulher tão mara vilhosa tão comparável à figura de uma divindade grega As palavras estão entre aspas deverseia admitir que êle as tivesse dito realmente Mas não pode haver certeza a respeito pois também as primeiras palavras do solilóquio seguinte estão entre aspas e de qualquer forma êle recobra ânimo ràpidamente pois responde objetivamente pegaria o trem às 10 e 30 na estação de Euston Mas a emoção interna não se apaga tão ràpidamente En quanto põe o fone no gancho e se dirige à janela atravessando o quarto para observar os progressos de uma construção vizi nha uma atitude que evidentemente lhe é costumeira e peculiar para se distender e para deixar livre curso aos seus pensamentos continua a se ocupar de Mrs Ramsay Nela há sempre algo de singular algo que não casa bem com a sua beleza assim como um instante atrás o ato de telefonar nada sabe da sua beleza ou quando muito tanto quanto uma criança Os seus vestidos os seus atos denotam isto por vêzes Continuamente se imiscui na realidade da vida que é dificilmente unificável com a harmonia do seu rosto À sua maneira metódica Mr Bankes tenta explicarse as contradições da sua figura e levanta algumas conjeturas sem poder contudo se decidir enquanto por instantes se introduzem as suas observações sôbre o anda mento das obras Finalmente desiste com a objetividade um tanto impaciente decidida de um homem que trabalha metódica e cientificamente desfazse do problema insolúvel chamado Mrs Ramsay Não conhece qualquer solução a repetição de he did not know simboliza o movimento impaciente do desfazerse Deve voltar ao seu trabalho Aqui finaliza a segunda interrupção longa e somos retrans feridos para o recinto em que se encontram Mrs Ramsay e James o processo eterno é encerrado com o beijo na testa de James e com a volta aos recortes Mas também aqui se trata apenas de uma mudança externa um cenário anteriormente aban donado toma a aparecer repentinamente e com tal falta de transição como se nunca tivesse sido abandonado como se a longa interrupção só fôsse um olhar deitado por alguém quem a partir dêle na direção das profundezas do tempo O tcmu porém Mrs Ramsay a sua beleza o enigmu da sua essência A MEIA MARROM 469 n mui qualidade de absoluto que não obstante se movimenta lonxtuntcmente no relativo no duvidoso no que a vida tem de innpropriado para a sua beleza desfiase imediatamente da últi ma fuse da interrupção isto é das observações carentes de rcuiltndo de Mr Bankes para passar à situação em que toma mo ii encontrar Mrs Ram say with her head outlined absurdly v Ilif gilt frame etc pois é novamente algo de incongruente sumething incongruous o que a rodeia E o beijo que dá ao wii Kqueno as palavras que lhe diz embora sejam uma ofe icihIii vital totalmente pura recebida por Jam es como a mais imturiil e simples das verdades não deixam de ser carregadas di enigmas insolúveis A purtir da nossa análise resultam algumas características ffttilíftticns que trataremos de formular agora O escritor como narrador de fatos objetivos desaparece ijiiihc que completamente quase tudo o que é dito aparece como irllexo nu consciência das personagens do romance Quando if triitn por exemplo da casa ou da criada suíça não nos é tiiiiiHinitido o conhecimento objetivo que Virginia W oolf tem iKW objetos da sua fôrça de imaginação criadora mas aquilo iiu Mrtt Ramsay pensa ou sente a respeito num determinado HKliintc Tampouco nos é comunicado o conhecimento que Viiuiiiiii Woolf tem da essência de Mrs Ramsay mas reflexos ilriiu essência e dos seus efeitos sôbre diferentes figuras do iniimiicc junto aos espíritos sem nome que presumem algo m liu i dc uma lágrima junto às pessoas que tecem enigmas a wh respeito junto a Mr Bankes Isto vai tão longe no nosso lin h o que nem parece existir de modo algum um ponto de vuin exterior ao romance a partir do qual os sêres e os aconteci monioH internos ao mesmo são observados assim como também iiAo purccc existir uma realidade objetiva diversa do conteúdo ilii loiiKuênciu das personagens do romance Quando muito há tonto denta última que persistem nas curtas indicações corres 1iiMiliiiicn a curtos acontecimentos periféricos como por exem plo rur Mrs Ramsay raising her eyes ou said Mr Bankes out c hearing her voice O último parágrafo Knitting her irihllsh brown hairy sto c k in g poderia também ser arrolado ihiii mas isto já é duvidoso O acontecimento é descrito obje tivamente mus com respeito à interpretação resulta do tom rmpicitudo que o escritor não observa Mrs Ram say com olhos iipiiMiieH mui com olhos duvidosos interrogativos da mesma liiimn como uma personagem do próprio romance que visse Mix KimiNity na situação descrita teria ouvido o pronunciamento ilim mi I it v i i i h cm questão O meio empregados aqui è também por outros escritores i oiilrm poiíincox paru reproduzir o conteúdo da consciência das Hioniiiiii do romance foram analisados sintàticamente e des u iloí ulgimn ilílc receberam nomes específicos como discurso vivem nulo ou monólogo interno Mas estas formas estilís llii nohirtiiilo ii prim cini já foram empregudas muito antes na 470 MIMESIS literatura mas não com a mesma intenção artística e ao lado delas há outras possibilidades sintàticamente quase inconcebí veis de fazer com que se confunda ou até que desapareça totalmente a impressão de uma realidade objetiva dominada perfeitamente pelo escritor possibilidades que não residem no campo do formal mas na tonalidade e no contexto do conteu dístico Assim por exemplo aqui onde o escritor atinge a impressão mencionada colocandose a si próprio por vêzes como quem duvida interroga e procura como se a verdade acêrca da sua personagem não lhe fôsse mais bem conhecida do que às próprias personagens ou ao leitor Tudo é portanto uma questão da posição do escritor diante da realidade do mundo que representa posição que é precisamente totalmente diferen te da posição daqueles autores que interpretam as ações as situações e os caracteres das suas personagens com segurança objetiva da forma que anteriormente ocorria em geral Goethe ou Keller Dickens ou Meredith Balzac ou Zola comunicavam nos partindo de um conhecimento seguro o que as suas persona gens faziam o que pensavam ou sentiam ao agirem de que forma deveriam ser interpretadas as suas ações ou pensamentos esta vam perfeitamente informados acêrca dos seus caracteres É claro que também anteriormente ocorria com freqüência que nos fôssem comunicadas as representações subjetivas das perso nagens de um romance ou de uma narração por vêzes até em forma de discurso indireto mas freqüentemente como monólo gos e evidentemente na maioria dos casos após uma introdução que dizia algo assim como pareceulhe que ou sentiu nesse instante que ou coisa que o valha Só que em tais casos quase nunca se tentava reproduzir o vaguear e o jogar da consciência que se deixa impelir pela mudança das impressões como é o caso no nosso texto tanto com Mrs Ramsay quanto com Mr Bankes senão que o conteúdo consciente indicado limitavase racionalmente àquilo que se referia ao acon tecimento narrado em cada caso ou à situação descrita assim como é o caso no trecho que interpretamos em páginas ante riores de Madame Bovary E o que é ainda mais importante conservavase sempre o escritor com o seu conhecimento da verdade objetiva como instância suprema e diretriz Outrossim já havia antes especialmente após o fim do século XIX obras narrativas que tentavam nos transmitir em seu conjunto uma impressão extremamente individualista subjetiva amiúde excên tricamente marginal da realidade e que evidentemente nem ten tavam ou não eram capazes de averiguar qualquer coisa de universalmente válido ou de objetivo acêrca da realidade Por vêzes tais obras tinham a forma de romances em primeira pessoa por vêzes porém não Como exemplo do último caso menciono o romance A rebours de Huysmans Mas também isto é funda mentalmente diferente do processo moderno aqui descrito com base no texto de Virginia Woolf embora também êste tenha se desenvolvido a partir daquele O que é csscnciul para o A MEIA MARROM 471 ptoicitxo e pura a maneira de Virginia Woolf é que não se 11 ala iipenas dc um sujeito cujas impressões conscientes são irpioduidax mas de muitos sujeitos amiúde cambiantes no iiomio texto Mrs Ramsay people Mr Bankes e em meio a êles por instantes James a criada suíça em retrovisão e os semnome que externam conjeturas acêrca da lágrima Da pluralidade dos iticii podcsc concluir que apesar de tudo tratase da inten Vrtn tlc pesquisar uma realidade objetiva ou seja neste caso concreto dc pesquisar a verdadeira Mrs Ramsay Embora wju um enigma e o fique sendo de forma totalmente fundamen tal 6 como que circunscrita pelos diferentes conteúdos de cons ciénciu dirigidos para ela inclusive o dela mesma é tentado aproximarse dela de muitos lados até atingir a menor distância ao alcance das possibilidades humanas de conhecimento e de fuprcisão A intenção de aproximação da realidade autêntica e objetivu mediante muitas impressões subjetivas obtidas por di ferente pessoas em diferentes instantes é essencial para o pro cesso moderno que estamos considerando Diferenciase nisto fundamentalmente do subjetivismo unipessoal que só permite que fale um único ser geralmente muito peculiar e que só con sidera válida a sua visão da realidade Do ponto de vista his tóncolitcrário é claro que há uma estreita relação entre a leprescntação da consciência unipessoal e subjetiva e a pluripes iioal que visa a síntese esta última nasceu da outra e há obras em que as duas formas se entrecruzam de tal forma que se pode observar o seu surgimento sobretudo o grande romance ilc Mareei Proust Voltaremos a isto Uma outra peculiaridade estilística estreita e necessària iiH M ite relacionada com a representação pluripessoal da cons iifliieiu que pode ser observada no nosso texto referese ao tratamento do tempo Há muito tempo que já se observou que algo de especial ocorre com ela na moderna literatura narrati va e muitas investigações a respeito já vieram à luz Tentouse ciprciulmcnte relacionar os fenômenos pertinentes com as dou iimas ou correntes filosóficas contemporâneas sem dúvida isto loi leito com razão e com benefício para a compreensão do oniiini para o que se dirige o interêsse e a intenção íntima da atividade dc muitos dos nossos contemporâneos Queremos Irm rcvcr primeiramente éste processo com base no exemplo que linon ante nós Já dissemos acima que o processo da medição do comprimento da meia e as palavras ditas em conexão com o mesmo só poderiam ter levado muito menos tempo do que um leitor atento que nada deixa escapar precisa para ler o lici ho mesmo admitindo que entre a medição e o beijo re ronriliiidor nu testu tenha havido uma pequena pausa Mas o iciiipo da muraçfio não é empregado para o processo em si sie í Mproduido com bastunte brevidade mas para as in litiiivtcn há intereuludas duas longas digressões cuja relação ttMiipoial com o processo periférico parece contudo ser muito ilifriiiiie A primeira a representação daquilo que acontece na 472 MIMESIS consciência de Mrs Ramsay durante a medição mais precisa mente entre a primeira admoestação distraída e a segunda acer ba dirigidas a James para que fique com a perna firme en caixa temporalmente no processo periférico e é meramente a sua representação o que requer mais segundos ou talvez até mais minutos do que a medição porque o caminho percorrido pela consciência é completado por vêzes muito mais ràpida mente do que a linguagem é capaz de reproduzir pressupondo se que se queira ser compreendido por um terceiro e é isto o que aqui se tenciona O que ocorre dentro de Mrs Ramsay não tem em si nada de enigmático são as representações que pode riam quase ser chamadas de normais que surgem de sua vida quotidiana o seu segrêdo está por baixo delas e só no ins tante do salto da janela aberta para as palavras da criada suíça acontece algo que levanta um pouco o véu no conjunto porém êste reflexo da consciência é muito mais fàcilmente compreen sível do que aquilo que outros escritores por exemplo James Joyce nos oferecem em casos análogos Contudo por mais simples e corriqueiras que sejam as séries de representações que surgem na consciência de Mrs Ramsay tanto mais essenciais são elas simultâneamente Fornecem uma síntese das relações vitais nas quais ficou prêsa a sua incomparável beleza nas quais ela aparece ao mesmo tempo que se oculta Certamente tam bém antes alguns autores empregaram algum tempo e algumas frases para comunicar ao leitor o que passava pela cabeça das suas personagens em determinado instante mas dificilmente teriam tomado para um tal fim um motivo tão casual como o levantar de olhos de Mrs Ramsay pelo qual o seu olhar des propositadamente recai sobre os móveis também não te riam pensado em reproduzir a continuação da trama interna da consciência na sua liberdade natural e despropositada e finalmente não teriam intercalado o processo interno todo en tre dois acontecimentos externos tão próximos temporalmente como as duas admoestações dirigidas a James no sentido de ficar quieto no fim das contas as duas ocorrem enquanto está ocupada em apoiar a meia inacabada na sua perna de tal for ma que de um modo surpreendente totalmente desusado em tempos anteriores ressalta violentamente o contraste entre o curto lapso de um acontecimento exterior e a riqueza semelhan te aos sonhos dos processos da consciência que sobrevoam todo um universo vital Estas são as características distintivas c novas do processo motivo casual que desencadeia os processos da consciência reprodução natural ou se se quiser até natura lista dos mesmos na sua liberdade não limitada por qualquer intenção nem por qualquer objeto determinado ressalto do con traste entre tempo exterior e tempo interior Tôdas as três têm algo em comum na medida em que delatam a posição do escritor êste abandonouse muito mais do que acontecia antes nas obras realistas ao acaso da casualidade do real e embora como é natural ordene e estilize o material do rcul isto não A MEIA MARROM 473 mui acontece de forma racional e não com vistas a uma inten ção do levar planejadamente a um fim um contexto de aconte cimentos exteriores No caso de Virginia Woolf os acontecimen to exteriores perderam o seu domínio por completo servem paru deslanchar e interpretar os interiores enquanto que ante uormente e em muitos casos ainda hoje os movimentos inter no serviam preponderantemente para a preparação e a funda mentação dos acontecimentos exteriores importantes Também ito vem à luz no acaso e na casualidade do motivo externo um levantar de olhos porque James não deixa de mexer a perna que desencadeia o processo interno muito mais importance A relação temporal da segunda digressão com o processo periférico é de espécie diferente o seu conteúdo parágrafo Abre a lágrima pensamentos das pessoas sôbre Mrs Ramsay o telefonema com Mr Bankes e os seus pensamentos ao obser viir a construção do hotel não faz parte temporalmente nem cxpacialmcnte do processo periférico Tratase de outros tem pos e outros cenários é uma digressão da espécie da história da origem da cicatriz de Ulisses que foi tratada no primeiro ca pitulo dêste livro Mas na sua estrutura é totalmente diferente também desta No texto de Homero a digressão ligavase à cicutri que Euricléia toca com as suas mãos e embora o mo mento em que ocorre o ato de tocar seja de elevada tensão dra mática introduzse um outro presente claro e luminoso como o iliu que parece até ter como intenção desligar a tensão dra mática e relegar ao esquecimento por um instante tôda a cena do laviipés Aqui no trecho de Virginia Woolf não se pode Itiliir cm suspense não acontece nada importante em sentido dramático tratase do comprimento de uma meia A digressão t ligada à expressão facial de Mrs Ramsay never did anybody lnok xo sud Ligamse a isto várias digressões ou mais exata1 mente três tôdas elas diferentes no tempo e no espaço e tam bém diferentes quanto à exata determinabilidade no espaço e no tempo sendo que a primeira é totalmente incerta a segunda já i muis determinada e a terceira é fixada com relativa exati dão Nenhuma delas contudo é vista com a mesma exatidão trmporal dos episódios subseqüentes da história da juventude do Ulisses pois mesmo para a cena do telefonema é indicado apenas vagamente quando acontecera Desta forma a despedi da do lugar junto à janela é efetuada muito mais imperceptível i paulatinamente do que a mudança de cenário e de tempo no episódio da cicatriz No parágrafo acerca da lágrima o leitor podeiá uindu duvidar se realmente houve alguma mudança os viu nome que aqui falam podem ter penetrado aqui no re mito c podem ter dirigido os seus olhares para o rosto de Mrs Kamiiiv No segundo parágrafo onde isto evidentemente não c MiaiH possível as pessoas cujo falatório é reproduzido dirigem iiiiiiln os seus olhares para o rosto de Mrs Ramsay mas não o laem contudo aqui e agora junto à janela da casa de campo mu o Inem ainda sAbre o mesmo rosto com a mesma expres 474 MIMESIS são E ainda na terceira parte onde o rosto não é mais per cebido como presente pois Mr Bankes fala com Mrs Ramsay ao telefone o é ainda pelo seu ôlho interno de tal forma o tema isto é a interpretação de Mrs Ramsay não desaparece da memória do leitor em nenhum instante nem mesmo no ins tante em que o problema é colocado a expressão do seu rosto enquanto mede o comprimento da meia Como acontecimen tos externos as três partes da digressão nada têm a ver entre si não têm qualquer decurso comum e exteriormente conexo como os episódios da juventude de Ulisses narrados em rela ção com a origem da cicatriz só estão unidos pelo olhar comum sôbre Mrs Ramsay mais precisamente sôbre a Mrs Ramsay que com aquela expressão insondável de tristeza por trás da sua des lumbrante beleza faz a constatação de que a meia ainda está demasiado curta Somente mediante esta sua direção comum estão unidas entre si as três partes da digressão aliás inteira mente diferentes entre si Só que esta união é suficientemente forte para roubarlhes a presença independente que o episódio da cicatriz possui nada são senão tentativas de interpretação de never did anybody look so sad continuam fiando o tema o qual mesmo após o seu encerramento continua a ser fiado nem se deu qualquer mudança de tema entretanto a cena na qual Euricléia reconhece Ulisses é interrompida pela inser ção da origem da cicatriz que a corta em duas partes Não há aqui semelhante divisão clara entre dois processos exteriores e entre dois presentes por mais insignificante que seja como acontecimento externo o processo periférico da medição da meia a imagem que dêle surge a do rosto de Mrs Ramsay perma nece presente durante tôda a inserção A inserção não é senão pano de fundo desta imagem que parece como que abrirse em profundidade temporal isto não é diferente do que se dá com a primeira digressão que fôra liberada pelo olhar involuntário de Mrs Ramsay sôbre o mobiliário e que era um abrirse da imagem nas profundidades da consciência Ambas as digressões não são portanto tão diferentes quan to pareciam de início Não é tão importante assim que a pri meira se desenvolva no tempo e no espaço dentro do pro cesso periférico e que o segundo ao contrário evoque outros tempos e lugares Os tempos e os espaços da segunda não são independentes apenas servem ao tratamento polivocal da ima gem que a libera até têm o efeito de forma semelhante em tudo ao tempo interior da primeira digressão que em nada dife re do processo que ocorreria na consciência de qualquer obser vador evidentemente inominado que visse Mrs Ramsay no instante descrito e cuja meditação acêrca do enigma insolúvel da sua pessoa contivesse lembranças daquilo que terceiros pea ple Mr Bankes dizem ou pensam a seu respeito Tratase com estas duas digressões de ensaios de esquadrinhar uma rea lidade mais peculiar mais profunda até umu realidade mui real com o que o acontecimento provocudor purccc cunual A MEIA MARROM 475 v é polne cm conteúdo e com o que pouco importa que sejam iipeims empregados nas digressões conteúdos conscientes isto r tempo interior ou também mudanças temporais exteriores lois mesmo o processo consciente da primeira digressão con liin vlíriiis mudanças de tempo e de cenário sobretudo a cena com ii criada suíça O que é essencial é que um acontecimen lo exterior insignificante libera idéias e fileiras de idéias que abandonam o seu presente para se movimentarem livremente nas profundidades temporais É como se um texto aparentemente sim ples manifestasse o seu verdadeiro conteúdo só no seu comen tário ou como se um tema musical simples o fizesse apenas na suit interpretação Com isto fica também nítida a estreita rela ção que existe ettfre o tratamento do tempo e a representação da consciência pluripessoal de que falamos antes As repre sentações da consciência não estão prêsas à presença do acon tecimento exterior pelo qual foram liberadas O procedimento peculiar de Virginia Woolf tal como se apresenta no nosso tex lo consiste em que a realidade exterior objetiva do presente dc cada instante que é relatada pelo autor de forma imediata e que aparece como fato seguro isto é a medição da meia nada é senão ocasião ainda que não seja uma ocasião total mente casual todo o pêso repousa naquilo que é desencadeado o que não é visto de forma imediata mas como reflexo e o que não está prêso ao presente do acontecimento periférico liberador Ora aqui se aproxima muito a lembrança da obra de Mar cel Proust Foi o primeiro que levou a cabo algo semelhante ile forma coerente e tôda a sua forma de proceder está atada o reencontro da realidade perdida na memória liberada por um acontecimento exteriormente insignificante e aparentemente ciiNiial O processo é descrito muitas vêzes dè forma muito exata c com a teoria da arte que dêle resulta apenas no segundo volume de Le Temps retrouvé pela primeira vez porém e de forma muito impressionante já na primeira secção de Du côté lr chez Swann ondé o sabor de um biscoito petite Madeleine molhado no chá durante uma noite desagradável de inverno ilesHrtu 110 narrador um encantamento subjugante mas inde limilo num primeiro instante Com esforço violento muitas víes repetido tenta sondar a sua espécie e a sua origem o que o demonstra é que há um reencontro no fundo dêste encanta mento o reencontro do sabor daquela petite Madeleine molhada no iliA que lhe dava sua tia ao domingo quando ainda era iiieniiio ao entrar no seu quarto para dizerlhe bomdia na ca mi ila velha cidadezinha campestre de Combray onde ela habita vu sem quase deixar a cama e onde êle passava os meses de verflo em companhia dos seus pais E desta lembrança reen loiili mia su rue de forma mais autêntica e real do que qualquer pioionU vivido o mundo da sua infância à luz da representabi iiiliido e fie começa a narrar Aqui no caso de Proust man lAm ui sempre um eu narrativo embora não se trate de um lHtnloi que observa de fora mas uma personagem subjetiva 476 MIMESIS enredada na ação que a perpassa com o especial sabor da sua essência De tal forma que se poderia sentir a tenta ção de contar o seu romance entre os produtos do subjeti vismo unipessoal dos quais falamos antes Tal associação não seria falsa mas seria demasiado insuficiente não abrangeria totalmente a estrutura do romance de Proust pois êste não apre senta o mesmo olhar fechadamente unipessoal sôbre a realidade que vemos para falar em dois exemplos fundamentalmente diferentes mas comparáveis neste sentido em A rebours de Huysmans ou Pan de Knut Hamsun Proust visa a objetividade e a essência do acontecido procura atingir esta meta confiando se à direção da sua própria consciência mas não da consciência presente em cada instante mas da consciência rememorante O surgimento da realidade de dentro da consciência rememorante a qual abandonou há tempo as circunstâncias em que se achava em cada momento em que o real acontecia presentemente vê e ordena o seu conteúdo de uma forma que é totalmente dife rente do meramente individual ou subjetivo Liberada das di versas prevenções de outrora a consciência vê as suas próprias camadas passadas com o seu conteúdo de forma perspectiva confrontandoas constantemente entre si liberandoas da sua se qüência temporal exterior assim como da significação mais es treita e dependente da atualidade que pareciam ter em cada caso Ao mesmo tempo a moderna representação do tempo in terior unese a uma concepção neoplatônica segundo a qual o verdadeiro arquétipo do objeto estaria na alma do artista de um artista que encontrandose êle próprio no objeto libe rouse como observador do objeto e enfrenta o seu próprio passado Quero incluir aqui uma curta passagem do romance de Proust para ilustrar o que acabo de dizer Tratase de um ins tante da infância do narrador encontrase no primeiro volume perto do fim da primeira secção É claro que se trata de um exemplo demasiado bom claro demais da ordenação em ca madas da consciência rememorante não é em tôda parte que se pode ler isto tão claramente como aqui Em outros trechos seria necessário analisar a ordenação da matéria a introdução o desaparecimento e a reaparição das personagens o cruzamen to dos diferentes presentes e dos diferentes conteúdos conscien tes para fazer com que a estrutura aparecesse com clareza Mas todo leitor de Proust concordará conosco em que a obra tôda está escrita segundo o processo que pode ser reconhecido no nosso trecho sem análise nem comentário A situação é a se guinte o narrador certa noite da sua infância não pôde ador mecer sem o costumeiro beijo de boa noite da sua mãe quan do se deitou a mãe não pôde ir até êle pois tinha um convida do para o jantar Num estado de superirritação nervosa decide ficar acordado e deter a mie à porta quando após a despedida do convidado fôsse dormir ela própria Isto é uma falta grave pois os seus pais tentam corrigir a sua hiperscnsibilidudc inedian A MEIA MARROM 477 te ti severa repressão de tais emoções deve contar com um castigo severo talvez o afastamento da casa a reclusão num internato Só que a necessidade de satisfação imediata é mais torte do que o mêdo das conseqüências Muito inesperadamen te porém ocorre que o pai normalmente mais severo e mais duramente autoritário mas também menos coerente sobe as es cudas atrás da mãe e ao ver a criança fica emocionado pela desesperada expressão do seu rosto e aconselha a espôsa a dor mir essa noite no quarto do menino para acalmálo Depois 0 relato segue assim On ne pouvait pas remercier mon père on leût agacé par ce quil appelait des sensibleries Je restai sans oser faire un mouvement il était encore devant nous grand dans sa robe de nuit blanche sous le cachemire de lInde violet et rose quil nouait autour de sa tête depuis quil avait des névralgies avec le geste dAbraham dans la gravure daprès Benozzo Gozzoli que mavait donnée M Swann disant à Hagar quelle a à se départir du côté dIsaac Il y a bien des années de cela La muraille de lescalier où je vis monter le reflet de sa bougie nexiste plus depuis longtemps En moi aussi bien des choses ont été détruites que je croyais devoir durer toujours et de nouvelles se sont édifiées donnant naissance à des peines et à des joies nouvelles que je naurais pu prévoir alors de même que les anciennes me sont devenues difficiles à comprendre Il y u bien longtemps aussi que mon père a cessé de pouvoir dire A maman Va avec le petit La possibilité de telles heures ne renuftra jamais pour moi Mais depuis peu de temps je rocornmcnce à très bien percevoir si je prête loreille les san glots que jeus la force de contenir devant mon père et qui néclutèrcnt que quand je me retrouvai seul avec maman En réalité ils nont jamais cessé et cest seulement parce que la vie hc tait maintenant davantage autour de moi que je les entends de iiouvcuu comme ces cloches de couvents que couvrent si bien les bruits de la ville pendant le jour quon les croirait arrêtées mais qui sc remettent à sonner dans le silence du soir2 2 Nfto s podia agradecer a meu pai a gente o irritaria pelo que êle 1 hmitav de sentimentaüsmos Fiquei sem ousar fazer qualquer movimento êle ainda ostava diante dc nós grande em seu chambre branco sob o cachemirda Imlta violeta e rosa que amarrava ao redor da sua cabeça desde que tinha nvvruUiins com o gesto de Abraão na gravura segundo Benozzo Gozzoli que o rnhnr Swartn me dera dizendo a Agar que deve separarse de Isaac Faz muitos anos Uso A parede da escada onde vi subir o reflexo da sua vela mAo m alt existe há tempo Hm mim também muitas coisas foram destruídas m quais pensei que deveriam durar para sempre e novas foram edificadas daiuln urigein a novas penas e novas alegrias que não teria podido prever então tiHilin como ns antigas tornaramscme de difícil compreensão Faz também nmlto tempo que meu pai cessou de poder dizer a mamãe Vá com o pequeno A possibilidade de tais horas nunca mais renascerá para mim M as desde há pouco lempo tecumcço u perceber muito bem se presto atenção os soluços ittr tlvo ii fArçt de conter diante do meu pai c que não estouraram senão quando allvr tftlnho com rmtmfte Em realidade nunca cessaram e sòmente porque h vitlu m m in mais ao tncu redor que eu os ouço novamente como êsses Nlnti ilr lOMVcnto que cohrcm tflo bem os ruídos da cidade durante o dia que h am ie primaria ntic íle rsifio pnrados ma que voltam n soar no siifincio da Mitllr 478 MIMESIS Aqui já cintila através da perspectiva temporal algo da simbólica sempitemidade do acontecimento fixado na consciên cia rememorante De caráter ainda mais nítido e sistemático e evidentemente também mais enigmático são as relações sim bólicas no Ulysses de James Joyce onde é empregado o pro cesso da múltipla reflexão da consciência e da divisão em ca madas do tempo da maneira talvez mais radical O livro visa inconfundivelmente uma síntese simbólica do tema cada qual todos os grandes motivos da história interna européia estão con tidos nêle embora parta de indivíduos muito especiais e de um presente fixado com exatidão Dublin a 16 de junho de 1904 Pode exercer sôbre pessoas predispostas um efeito imediato muito forte entendêlo verdadeiramente todavia não é sim ples pois o constante redemoinhar dos motivos a riqueza de palavras e de conceitos o jôgo rico em conexões que é feito com êles a dúvida sempre despertada de nôvo e nunca satisfeita acêrca de qual seria a ordem que em última instância se escon deria por trás de tanta arbitrariedade aparente tudo isto coloca ao leitor grandes exigências quanto à formação e à paciência De forma tão coerente como nos casos até aqui discutidos o reflexo da consciência e a estratificação do tempo só foram empregados por poucos escritores mas as suas influências e as pegadas mostramse em quase tôda parte recentémente até em autores que não soem ser levados totalmente a sério por leitores exigentes Alguns escritores acharam os seus próprios métodos ou empreenderam tentativas no sentido de fazer com que a realidade que tomavam como objeto aparecesse sob uma iluminação cambiante e estratificada ou para abandonar a po sição da representação aparentemente objetiva ou da represen tação puramente subjetiva em favor de uma perspectiva mais rica Entre êstes encontramse mestres mais velhos há muito cunhados na sua peculiaridade os quais nos tempos da sua maturidade nos anos ao redor da Primeira Guerra Mundial foram arrebatados pela corrente e procuram chegar cada um à sua maneira através do caminho do relaxamento e da disso lução da realidade exterior a uma interpretação mais rica e essencial da mesma Assim por exemplo Thomas Mann quem a partir do Zauberberg sem abandonar no mais mínimo o seu nível tonal no qual está sempre presente o escritor que narra comenta objetiva e se dirige ao leitor dedicase cada vez mais à perspectiva temporal e à sempitemidade simbólica do aconte cer Ou de forma totalmente diferente André Gide que nos Faux Monnayeurs muda constantemente o ponto de vista a par tir do qual são observados acontecimentos que já em si são ricos em estratificação indo nisto tão longe que de uma for ma românticoirônica o romance e a história do surgimento do romance estão entretecidos entre si Ou ainda de forma total mente diferente e muito mais simples Knut Hamsun que por exemplo no romance Segen der Erde esfuma mediante o seu nível tonal o limite entre as manifestações das personagens do A MEIA MARROM 479 romance mantida em discurso direto ou indireto e aquilo que 0 escritor relata de tal forma que não se tem nunca a certeza ilc estar ouvindo o escritor localizado fora do romance as fra ses ressoam como se se originassem de um dos atôres ou ainda ilc Iguém que passasse casualmente e observasse o acontecido Finalmente devem ser ainda mencionadas aqui certas peculia 1 idades que se referem à espécie do material Muito amiúde nos romances modernos não se trata de uma ou de algumas poucas personagens cujos destinos são perseguidos uns ligados aos outros amiúde nem se trata de contextos de acontecimen tos levados a cabo Muitas personagens ou muitos fragmentos de acontecimentos são articulados por vêzes frouxamente de tal forma que o leitor não consegue segurar constantemente qualquer fio condutor determinado Há romances que procu ram reconstruir um meio a partir de uma série de farrapos de ucontecimentos com personagens constantemente mutantes por vfizes reaparecidas Neste último caso temse a propensão de presumir que o escritor teria a intenção de aproveitar para o romancc as possibilidades estruturais que oferece o cinema isto seria porém desencaminhado pois uma tal concentração de espa ço c de tempo como o cinema é capaz de atingir por exemplo representar a situação de um grupo de pessoas espalhadas em muitos lugares de uma grande cidade um exército uma guerra um país etc mediante algumas imagens no espaço de poucos segundos não poderá ser atingida nunca apenas pela palavra escrita ou lida Não obstante a épica possua grande liberdade nu suu disposição do espaço e do tempo muito maior do que a du drama précinematográfico mesmo com desrespeito das severas regras da unidade clássica o romance tem aproveitado nos últimos decênios dessa liberdade de uma maneira que não oncontra modelos nas épocas literárias anteriores Quando mui to há ulguns laivos no romantismo sobretudo no romantismo alcmfio o qual não se ateve porém apenas ao material do real Simultâneamente porém o romance conheceu a partir do ci nema com uma nitidez nunca antes atingida os seus limites os limites da sua liberdade no tempo e no espaço que lhe são impostos pelo seu instrumento a linguagem Desta forma a relação é a inversa da anterior e o drama cinematográfico tem possibilidades muito maiores de estruturação espaçotemporal ilot objetos do que o romance Nas peculiaridades aqui constatadas no romance realista ilo período de entre as duas guerras representação consciente pluripcssoal estratificação temporal relaxamento da conexão com os acontecimentos externos mudança da posição da qual m reluta us quais estão tôdas entrelaçadas e são difíceis lc serem separadas mostramse segundo achamos certos em IHnhos tendências c necessidades tanto do escritor como do publico Sfio muitos cm parte contradizemse uns aos outros iipaicutrmcnte c contudo constituem de tal forma um todo 480 MIMESIS que durante a exposição analítica dos mesmos se corre cons tantemente o perigo de deslizar inadvertidamente de um para o outro Comecemos com uma tendência que é especialmente evi dente no texto de Virginia Woolf Ela se atém a acontecimen tos pequenos insignificantes escolhidos ao acaso a medição da meia um fragmento de conversa com uma criada um tele fonema Não ocorrem grandes mudanças momentos cruciais exteriores da vida ou catástrofes e também em geral no ro mance do farol elas são mencionadas só rapidamente sem pre paração nem contexto de forma aproximada e por assim dizer apenas informacional A mesma tendência apresentase também com os outros escritores muito diferentes entre si como por exemplo em Proust e Hamsun Nos Buddenbrooks de Thomas Mann o andaime do romance é constituído ainda da seqüência cronológica dos destinos exteriormente significativos que atin gem a família Buddenbrook e embora Flaubert um precursor em muitos sentidos se detenha longa e fundamentalmente em acontecimentos insignificantes e em circunstâncias quotidianas que mal fazem avançar a ação em Madame Bovary mas o que não teria acontecido em Bouvard et Pécuchet não deixa de ser sensível uma aproximação cronològicamente ressumante pri meiro às crises parciais e finalmente à catástrofe final aproxi mação esta que domina a obra Mas agora teve lugar uma des locação do acento muitos escritores apresentam os aconteci mentos pequenos e enquanto mudança exterior de destino in significantes por si próprios ou antes como pretexto para o desenvolvimento de motivos de aprofundamento perspectivo num meio ou numa consciência ou no pano de fundo histórico Re nunciaram a representar a história das suas personagens com pretensão a integridade exterior sob a conservação do decurso cronológico e acentuando as mudanças exteriores e significati vas do destino O grandioso romance de James Joyce uma obra enciclopédica espelho de Dublin da Irlanda espelho tam bém da Europa e dos seus milênios tem como moldura o decurso de um dia exteriormente insignificante de um professor de ginásio e de um corretor de anúncios abrange menos ie vinte e quatro horas das suas vidas de forma semelhante ao romance do farol de Virginia Woolf que descreve partes de dois dias muito distantes entre si comparável todavia também com a Comédia de Dante como não podemos deixar de constatar aqui Proust apresenta dias e horas isolados de diferentes épo cas só que as mudanças exteriores do destino que atingiram as personagens no ínterim são mencionadas só incidentalmente ou retrospectivamente ou também antecipadamente sem que a meta da narração esteja nelas Freqüentemente devem ser comple tadas pelo leitor A maneira como no texto acima transcrito se fala na morte do pai isto é incidentalmente insinuando c antecipando é um bom exemplo disso Neste deslocamento do centro de gravidade exprimese algo assim como um desloca A MEIA MARROM 481 incniii ilu confiança conferese menos importância aos grandes lundu cruciais externos e aos grandes golpes do destino julga w que sAo menos capazes de fornecer algo de decisivo acêrca do pelo contrário existe a confiança de que no decurso vi iiil escolhido ao acaso em qualquer instante está contida a niihnlúncia tôda do destino e que nêle pode ser tomado repre mniAvcl Confiase mais nas sínteses que são obtidas mediante 0 exaurimento de um acontecimento quotidiano do que num tnitiimcnlo global cronologicamente ordenado que persegue o iiinn do princípio ao fim que está empenhado em não deixar li loru nuda exteriormente essencial e que salienta enèrgica i h p i i Ic iis grandes mudanças do destino como se fôssem articu IttVrtc ilo acontecer Podese comparar êste procedimento dos rm ntoicK modernos com o que alguns filólogos modernos que ui liam que da interpretação de poucas passagens de Harnlet ou Fausto podemse obter informações maiores e mais ln imv mh HÔbre Shakespeare Racine ou Goethe e sôbre suas tpuui do que a partir de conferências que tratem sistemática e 1 mnològicamcnte das suas vidas e das suas obras o presente iiiihiilho pode ser tomado como exemplo disso Eu nunca pode iii ler escrito algo como a história do realismo europeu terme iii afogado na matéria deveria ter entrado em desesperadas dis t uVs acêrca da delimitação das diferentes épocas da classifi i iivfto do escritores nas mesmas e sobretudo acêrca da defini rão do conceito de realismo Outrossim a bem da perfeição rim tido que me dedicar a fenômenos que me são conhecidos n miu in fugazmente de tal modo que teria sido obrigado a ler lApitlumcnte o necessário ad hoc e isso é na minha opinião uniu miinciru arriscada de obter e de aproveitar conhecimentos o motivos que guiam a minha investigação por cuja causa ricrovo teriam ficado soterrados totalmente sob a massa de iniliciiçAc materiais que são conhecidas há tempo e que podem ei rclidns nos manuais Pelo contrário o método de me deixar ilulgir por alguns motivos de forma paulatina e despropositada ilc pÃlos à prova mediante uma série de textos que se me Itnmirum conhecidos e vivos durante a minha atividade filológi ca piircceme fecundo e factível pois estou convencido de que iiquêlcx motivos fundamentais da história da representação da iriilidiulc se os vi corretamente devem poder ser encontrados rm qualquer texto realista escolhido ao acaso Para voltar agora uo escritores modernos que preferem o exaurimento de aconte i uneuton quotidianos quaisquer durante poucas horas e dias à irpirscntuço perfeita c cronológica de um decurso integral rftirnor também êlcs são guiados mais ou menos consciente niciitc pela ponderação de que não pode haver esperança algu ma do icr dentro de um decurso exterior integral realmente i omplcto fuiulo reluzir ao mesmo tempo o essencial também cclum impor à vida ao seu tema uma ordem que ela própria nRo ofciccc Quem representa do princípio ao fim o decurso intui de uma vidii humana ou de um conjunto de acontecimentos 482 MIMESIS que se estende por espaços temporais maiores corta e isola pro positadamente a cada instante a vida começou há tempo e a cada instante continua a fluir incessantemente e ocorrem às personagens das quais fala muito mais coisas que as que êle pode esperar narrar Mas podese esperar relatar com certa perfeição aquilo que aconteceu a poucas personagens no decurso de alguns piinutos horas ou em último caso dias e com isto encontrase também a ordem e a interpretação da vida que surge dela pró pria isto é aquela que se forma em cada caso em cada perso nagem aquela que é encontrável em cada caso na sua cons ciência nos seus pensamentos e de forma mais velada tam bém nas suas palavras e ações Pois dentro de nós realizase incessantemente um processo de formação e de interpretação cujo objeto somos nós mesmos a nossa vida com passado pre sente e futuro o meio que nos rodeia o mundo em que vivemos tudo isso tentamos incessantemente interpretar e ordenar de tal forma que ganhe para nós uma forma de conjunto a qual evi dentemente segundo sejamos obrigados inclinados e capazes de assimilar novas experiências que se nos impinjam modifica se constantemente de forma mais rápida ou mais lenta mais ou menos radical Estas são as ordenações e as interpretações que os escritores modernos de que tratamos tentam apanhar no ins tante qualquer e não uma mas muitas quer de diferentes per sonagens quer da mesma personagem em instantes diferentes de tal forma que a partir do entrecruzamento da complemen tação e da contradição surge algo assim como uma visão sin tética do mundo ou pelo menos uma tarefa para a vontade de interpretar sintèticamente do leitor Aqui chegamos ao reflexo múltiplo da consciência nova mente É fàcilmente compreensível que um tal processo deve terse formado paulatinamente e que se formou precisamente nos decênios ao redor da Primeira Guerra Mundial e depois dela O alargamento do horizonte do ser humano e o enrique cimento em experiências conhecimentos pensamentos e pos sibilidades de vida que começara no século XVI avança no decurso do século XIX em ritmo sempre crescente e desde o princípio do século XX o faz com uma aceleração tão violenta que a cada instante tanto produz ensaios de interpretação sintéti coobjetivos como os derruba O violento ritmo das modifica ções causou uma confusão tanto maior quanto não era possível vêlas em conjunto levavamse a cabo simultâneamente em mui tos campos da ciência da técnica e da economia de tal forma que ninguém nem os que tiveram papel diretor em algum dêstes setores isolados podia prever ou julgar as situações que em cada caso resultavam em conjunto As modificações também não ocorreram uniformemente em tôda parte de tal forma que as diferenças de nível entre as diferentes camadas de um mesmo povo e entre os diferentes povos se tornaram quando não maio res pelo menos mais perceptíveis A difusão da publicidade e o estreitarse dos homens na Terra que se tornara menor agu A MEIA MARROM 483 Vurnm a consciência das diferenças dos níveis de vida e de visão imbiliunim os interêsses e os modos de vida que foram incen tivados ou ameaçados pelas novas mudanças Em todos os mulos do mundo surgiram crises de adaptação que se amontoa i m n c aglutinaram levaram para as perturbações que ainda não acabamos de sobreviver Através desta violenta movimentação uuinudn pelo embate das mais heterogêneas formas de vida e de ideais na Europa tornaramse vacilantes não somente as vi N ftes religiosas filosóficas morais e econômicas que pertenciam a antiga herança e que apesar de algumas agitações anteriores ainda conservaram graças a uma lenta acomodação e transforma vio considerável autoridade também não sòmente os pensa mentos do iluminismo revolucionários no século XVII e ainda tia primeira metade do século XIX a democracia e o liberalismo itiax também as novas fôrças revolucionárias do socialismo surgidas elas próprias já em meio ao auge do capitalismo amea a v a n i fenderse e desfibrarse perdiam a sua unidade e a sua i lara delimitabilidade devido aos numerosos grupos que se com batiam mutuamente devido às singulares ligações que determi nados grupos fizeram com pensamentos não socialistas devido A capitulação interna da maioria dêles durante a Primeira Guerra M i i i h I i u I c finalmente devido à tendência de alguns dos seus seguidores mais radicais de se passar ao campo dos seus con t i Á i i o s mais opostos Em geral também cresceu a formação d e seitas cristalizandose por vêzes ao redor de importantes poetas filósofos e sábios na maioria dos casos de forma semi i lontlfica sincrética e primitiva A tentação de se confiar a uma seita a qual com uma única receita solucionava todos os problemas fomentava com sugestiva fôrça interna a comuni d a d e e excluía tudo o que não se submetesse ou inserisse esta lentiiçíío era tão grande que para muitos sêres humanos o fascismo quase não precisava da violência externa ao expandir se pelos antigos píases civilizados da Europa absorvendo as s e i t n s menores Ainda durante o século XIX e mesmo durante o comêço do século XX reinava nestes países uma comunidade de pensamen tos c sentimentos tão claramente formulável e tão reconhecida que um escritor que representasse a realidade tinha à sua dispo siçBo critérios dignos de confiança para ordenála pelo menos era lhe possível dentro do movimentado pano de fundo contem porâneo reconhecer direções determinadas e delimitar entre si ideologias ou formas de vida antagônicas É claro que há tempo i s t o ia se tornando cada vez mais difícil já Flaubert para faliinnos sòmente em escritores realistas sofria pela escassez de fundamentos válidos para a sua atividade e a tendência mais tarde crescente no sentido das perspectivas impiedosamente subjetivas é mais um sintoma Nos anos de ao redor e de após a 1rimcira Guerra Mundial numa Europa demasiado rica em m a s s a s de pensamentos e cm formas de vida descompen nadas insegura e grávida de desastre escritores distinguidos 484 MIMESIS pelo instinto e pela inteligência encontram um processo mediante o qual a realidade é dissolvida em múltiplos e multívocos reflexos da consciência O surgimento do processo nesse mo mento do tempo não é difícil de entender Mas o processo não é somente um sintoma da confusão e do desconcertamento não é só um espelho da decadência do nosso mundo Não obstante muito fala em favor desta posição há algo assim como uma sensação de fim de mundo em tôdas estas obras sobretudo no Ulysses como o seu zom beteiro redemoinhar da tradição européia inspirado por um ódio amoroso com o seu cinismo gritante e doloroso com o seu simbolismo ininterpretável pois também a mais cuidadosa das análises não poderá trazer à luz muito mais do que intros pecções no múltiplo entrelaçamento dos motivos nada porém semelhante a uma intenção ou a um sentido da obra Também a maioria dos outros romances que empregam o processo da reflexão múltiplo da consciência dão ao leitor uma sensação de falta de escapatórias apresentase freqüentemente algo de con fuso ou de velado algo que é inimigo da realidade que repre sentam não raramente uma alienação da vontade prática de viver ou o gôsto na representação das suas formas mais cruas hostilidade à cultura expressa com os meios estilísticos mais sutis que a cultura criou por vêzes um encarniçado e radical afã de destruição A quase todos é comum o caráter velado indelimitável do seu sentido precisamente essa mesma simbo logia ininterpretável que se encontra também nas outras formas de arte na mesma época Mas ocorre aqui também algo totalmente diferente Vol temonos mais uma vez ao texto do qual partimos Está cheio de tristeza velada e irremediável Não chegamos a saber como vai realmente a Mrs Ramsay do seu segrêdo só se desprende o tristemente vão da sua beleza e da sua fôrça vital Ao lermos o todo do romance fica inexprimido enigmático e somente accessível à intuição o que significa o processo de relação entre a viagem ao farol planejada e a viagem realizada muitos anos mais tarde e qual o conteúdo da visão de encerramento de Lily Briscoe aquela visão final que lhe possibilita terminar o seu quadro com uma única pincelada É um dos poucos livros desta espécie que está cheio de bom e legítimo amor mas também a seu modo feminino de ironia de tristeza informe e de dúvida vital Mas quão grande é a profundidade real que ganha em tôda parte o acontecimento isolado por exem plo a medição da meia Surgem circunscrições do aconteci mento e conexões com outros acontecimentos que anteriormente mal foram vislumbrados nunca vistos nem considerados e que são contudo decisivos para a nossa vida real O que ocorre aqui no romance do farol isto foi tentado em tôda parte nas obras dêste gênero claro que nem sempre com a mesma introspecção e mestria colocar o acento sôbrc o acontecimento qualquer não aproveitálo a serviço de um contexto planejado A MEIA MARROM 485 d iiç ü o mas em si mesmo e com isto tornouse visível algo do totalmente nôvo e elementar precisamente a pletora de ícaiidadc e a profundidade vital de qualquer instante ao qual iuin entregarmos desintencionadamente Aquilo que nêle ocorre untese de acontecimentos internos ou externos embora concer nii muito pessoalmente aos homens que nêle vivem concernem liimhém e justamente por isso ao elementar e comum a todos d homens cm geral Precisamente o instante qualquer é rela tivamente independente das ordens discutidas e vacilantes pela quais os homens lutam e se desesperam Transcorre por baixo Iiih mesmas como vida quotidiana Quanto mais fôr vaiori futo tanto mais aparece claramente o caráter elementarmente tomum da nossa vida quanto mais apareçam mais diversos e iniiiH simples sêres humanos como objetos de tais instantes iiiiisqucr tanto mais efetivamente deverá transluzir a sua lomtmidade Deve ser deduzível da representação indeliberada c iiprofundante da espécie mencionada até que ponto por Imixo das lutas já agora as diferenças entre as formas de viver 0 dt pensar dos homens diminuíram Os estratos populacio nal c as suas diferentes formas de vida foram chacoalhados rnirr si também já não há mais povos exóticos Um século nlián para Mérimée por exemplo os corsos ou os espanhóis laiiTimn ainda exóticos hoje esta palavra seria totalmente ina iIiiiik Ui para os camponeses chineses de Pearl Ruck Por liiiixo iliis lutas e também através delas realizase um processo Ir iiulização econômica e cultural ainda há um longo cami nho ii ser percorrido para se chegar a uma vida comum do homem sôbre a Terra mas esta meta já começa a se tornar vluível Li ela se torna mais visível e concreta já agora na i piricnlHçSo dcsproposital exata interna e externa do ins iiiiiii1 vital qualquer dos diferentes homens Desta maneira o 1 ompllciiilo processo de dissolução que levou ao esfacelamento iln uvAo exterior à reflexão da consciência e à estratificação do Irmpo parece tender para uma solução muito simples Talvez dii teju demasiado simples para aquêles que não obstante todos o perigos e catástrofes e tanto por causa da sua riqueza vital i omo por causa da incomparável posição histórica que oferece Hlinmim e ainnm a nossa época Mas êstes são poucos apenas picmimlvclmcnte não viverão senão os primeiros indícios da iiniliumiaçAo da simplificação que se prenuncia Epílogo O tema dêste escrito a interpretação da realidade através da representação literária ou imitação ocupame há longo tempo Parti originalmente da interrogação platônica no décimo livro da República que coloca a Mimesis em terceiro lugar após a verdade em relação com a pretensão de Dante de apresentar na Comédia realidade verdadeira Ao observar os cambiantes modos de interpretação dos acontecimentos humanos nas literaturas européias o meu interesse concentrouse e pre cisouse desenvolvendose algumas idéias diretrizes que procu rei perseguir A primeira destas idéias referese à doutrina antiga mais tarde retomada por tôda corrente classicista acêrca dos níveis da representação literária Tomouseme claro que o realismo moderno da forma que se formou no comêço do século XIX na França realiza como fenômeno estético uma total solução daquela doutrina mais total e mais significativa para a formação posterior da visão literária da vida do que a mistura do sublime com o grotesco proclamada pelos românticos contemporâneos Na medida em que Stendhal e Balzac fizeram de personagens quaisquer da vida quotidiana no seu condicionamento às cir cunstâncias históricas objetos de representação séria proble mática e até trágica quebraram a regra clássica da diferenciação dos níveis segundo a qual o quotidiano e pràticamente real só poderia ter seu lugar na literatura no campo de uma espécie estilística baixa ou média isto é só de forma grotescamente cômica ou como entretenimento agradável leve colorido c elegante Completaram assim uma evolução que vinha se pre parando fazia tempo desde o romance de costumes c a comédie larmoyante do século XVIII e mais nitidamente dcsdc o Slurm EPÍLOGO 487 uml Drang e o préromantismo e abriram o caminho para d realismo moderno que se desenvolveu desde então em formas cuda vez mais ricas correspondendo à realidade em constante mutuço e ampliação da nossa vida Simultâneamente com êste modo de ver impôsse a con clusão de que a revolução contra a doutrina clássica dos níveis do princípio do século XIX não poderia ter sido a primeira de nua espécie as barreiras que os românticos e os realistas que lirurum então foram levantadas somente ao redor do fim do século XVI e durante o século XVII pelos partidários da imitação nevera da literatura antiga Antes tanto durante a Idade Média tfldu como ainda no Renascimento houve um realismo sério tínhu sido possível representar os acontecimentos mais corriquei ros da realidade num contexto sério e significativo tanto na poe i mu como nas artes plásticas a doutrina dos níveis não tinha vali I dez universal Por mais diferente que o realismo medieval seja do I moderno coincidem nesta modalidade de concepção Entretanto Já muito antes eu tecera conjecturas acêrca de como se formara esta mentalidade artística medieval como e quando ocorrera a l irnciru irrupção contra a teoria clássica foi a história de Cristo com a sua desconsiderada mistura do real quotidiano com u mais elevada e sublime das tragicidades a que venceu u antiga regra estilística Sc compararmos porém as duas irrupções na doutrina dos níveis entre si é logo evidente que elas se realizaram sob con illçAcs diferentes e que amadureceram em resultados totalmente diferentes A visão da realidade que fala a partir das obras crislAs da tardia Antigüidade e da Idade Média é totalmente diferente da do realismo moderno É muito difícil formular a cculiaridadc do modo de ver cristão antigo de tal forma que fique salientado o essencial e que todos os fenômenos pertinentes sejam abrangidos Achei uma solução que me sa tisfez cm geral através da interpretação da história da signifi ciiçtto du palavra figura e é por isso que chamo figurai a visão ilu realidade da tardia Antigüidade e da Idade Média cristã 1xpliquei repetidamente neste livro o que entendo por isso a apresentação mais pormenorizada encontrase na pesquisa sôbre liltura novamente reimpressa nas minhas Neue Dantestudien hum buler Schriften Nr 5 1944 posteriormente Berna Para a visão mencionada um acontecimento terreno significa sem prejuízo da sua fôrça real concreta aqui e agora não sòmente a I próprio mas também um outro acontecimento que repete prcanunciudora ou confirmativamente e a conexão entre os acontecimentos não é vista preponderantemente como desenvol vimento temporal ou causal mas como unidade dentro do plano divino cujos membros e reflexos são todos os acontecimentos a sua mútua c imediata conexão terrena é de menor importância o o conhecimento da mesma é por vêzes totalmente irrelevante pura a sua interprctuçfio 488 MIMESIS A pesquisa fundamentase nestas três idéias estreitamente ligadas entre si que deram forma ao problema original mas que também lhe impuseram evidentemente limites mais estrei tos Ela contém certamente também muita coisa entre moti vos e problemas da forma como em cada caso surgiu da pletora dos fenômenos históricos que deviam ser tratados contudo a maior parte delas está de alguma forma conexa com aquelas idéias e em todo caso recorrese constantemente a elas Acêrca do método já falei anteriormente no último capí tulo Uma história sistemática e completa do realismo não somente teria sido impossível como também não teria servido à intenção pois devido às idéias diretrizes o tema ficou deli mitado de uma forma muito determinada já não se tratava mais do realismo em geral mas da medida e espécie da serie dade da problematicidade e da tragicidade no tratamento de temas realistas de tal forma que as obras meramente cômicas e que pertencem fora de tôda dúvida ao âmbito do estilo baixo ficaram excluídas só entraram em consideração ocasionalmente como exemplo contrário e como tais podiam ser apresentadas por vêzes obras totalmente irrealistas de estilo elevado Evitei ressaltar teoricamente e descrever sistemàticamente a categoria das obras realistas de estilo e caráter sérios que como tais nunca foram tratadas em si nem sequer reconhecidas isto teria resultado logo de início num definir trabalhoso e cansativo para qualquer leitor pois nem sequer a expressão realista é unívoca e eu provàvelmente não teria podido me arranjar sem uma terminologia desusada e escabrosa O método de trabalho que adotei isto é o de apresentar para cada época uma certa quantidade de textos para com base nos mesmos pôr à prova os meus pensamentos leva imediatamente para dentro do assunto de tal forma que o leitor chega a sentir do que se trata antes que lhe seja impingida uma teoria O método da interpretação de textos deixa à discrição do intérprete um certo campo de ação pode escolher e colocar os acentos do modo que preferir Contudo aquilo que afirma deve ser encontrável no texto As minhas interpretações são dirigidas sem dúvida por uma intenção determinada mas esta intenção só ganhou forma paulatinamente sempre durante o jôgo com o texto e durante longos trechos deixeime levar pelo texto Os textos também são em sua grande maioria escolhidos ao acaso muito antes graças ao encontro casual e à inclinação pessoal do que à intenção precisa Em pesquisas desta espécie não se mexe com leis mas com tendências e correntes que se entrecruzam e complementam da forma mais variada possível Estava longe de mim oferecer sòmente aquilo que servisse no sentido mais estrito à minha intenção pelo contrário empenheime em oferecer espaço suficiente à varie dade e elasticidade bastante às minhas formulações Cada um dos capítulos trata de uma época por vêzes umu época relativamente curta meio século por vêzes também EPÍLOGO 489 uma época mais longa Em meio a isso há freqüentemente lacunas isto é épocas que ficaram sem serem tratadas como é o caso da Antigüidade que só me serviu de introdução e ilos primórdios da Idade Média da qual demasiado pouco se conserva Mais tarde também poderiam ter sido introduzidos capítulos sôbre textos ingleses alemães espanhóis teria tratado com prazer mais longamente do siglo de oro e com muito prazer leria acrescentado um capítulo sôbre o realismo alemão do sécu lo XVII Mas as dificuldades eram demasiado grandes mesmo assim tratei de textos de três milênios e muito freqüentemente tive de abandonar o âmbito que me é próprio as literaturas românicas Juntase a isto ainda o fato da pesquisa ter sido escrita durante a guerra em Istambul Aqui não há nenhuma biblioteca bem provida para estudos europeus as comunicações internacionais estavam paralisadas de tal forma que tive de renunciar a quase tôdas as publicações periódicas à maioria das pesquisas maisi recentes e por vêzes a edições críticas dignas ilc confiança dos meus textos Portanto é possível e até pro vável que muita coisa me tenha passado despercebida muita coisa que deveria ter considerado e que por vêzes afirme algu ma coisa que tenha sido refutada ou modificada por pesquisas mais recentes Espero que entre êstes prováveis erros não haja nenhum que toque em qualquer parte o cerne do sentido das idéias expostas Também é resultado da escassez de literatura especializada e de periódicos o fato dêste livro não conter notas aforu os textos cito relativamente pouca coisa e êste pouco deixouse introduzir fàcilmente no texto Aliás é bem possí vel que êste livro deva agradecer a sua existência precisamente à falta de uma grande biblioteca especializada se tivesse podido tentar informarme a respeito de tudo o que foi feito acêrca de tantos temas talvez nunca teria chegado a escrever Com isto acho ter dito tudo o que ainda devia ao leitor Srt resta encontrálo encontrar o leitor Queira a minha pes quisa alcançar seus leitores tanto os meus amigos sobreviventes de outrora como também todos os outros aos quais se destina c que contribua a reunir aquêles que conservaram sem turvação o amor por nossa história ocidental índice A Abel v Caim e Abel Abraão Oferenda de 5ss 17 19 154 Absalão 9s 17 19 Acta Sanctorum 99 Adfio 15 AdfioCristo Figura de 41s 63 I33s 166 Adfio Mistério de 122ss 222 Agamenão 14 Alegoria v também Figura 10 224 Aleixo Lenda Latina de Santo 99ss 153 Aleixo Vida de Santo 95ss 153 Amiano Marcelino 43ss 56 59 KOs Amor como tema 120 161 337 384 Amyot 267 Anjo Casa de 199 Anzengruber Ludwig 450 Apuléio 52ss 161 Aquiles 9 14 Arlosto 119s 182 309 310 Aristóteles 162 167 264s Artur Rei 105 Altiuun et Ntcolettr 120 A vaniurr 11 Jiw B Balzac Honoré de 27s 324 406 409ss 433 470 486 Bartsch Karl 93 96 Baudelaire Charles 436 440 Bédier Joseph 88 Bel parlare 39 183ss Benvenuto da Imola 132 160 Bernardo de Clairvaux São 129ss 138ss Bocaccio 160 174ss 206 222 223 280 Boileau 94 318ss 337 340 425 Bojardo 310 Bonfante G 170 Bonnet M 70 Bossuet 334 344 Bretagne Matière de Hiss Brouwer Adriaen 445 Brunetto Latini 155 Brunot Ferdinand 137 Büchner Georg 394 Buck Pearl 485 Burckhardt Jacob 453 Burguês v Drama burguês C Caim e Abel 19 Calderón 289s Calipso 6 Castiglione Conde Baltasar 119 Castro Américo 312 Cavalcanti Guido 156 492 MIMESIS Cent Nouvelles nouvelles 199 223s Cento novelle antiche 183ss Cervantes 117s 120 290 292ss 426 Oésr 72 Chambers EK 132 135 Chanson de geste 82ss 109 112 114 Chanson de toile 112 Chaplin Charles 304s Chartier Alain 223 Chastellain Georges 213 Chateaubriand 404 Chrétien de Troyes 105ss 198 Cícero 59 76 269 Cimarosa 402 Cistercienses 116 Comédia antiga 26 Comédie larmoyante 358 380 384 454 486 Comte Auguste 429 Consciência representação da 469 Corneille 318 325 335 336 338 340 Criatura criatural 212ss 238 269 272 330 336 348 359s Cristo História e Paixão de 13 35ss 61 129ss 212s 276 281 487 Crônicas em língua vulgar 104 Curteisie 114 Curtius E R 89 99 D Dança da Morte 212 Dancourt F 325 Dante 109 113 121 132 148ss 187ss 214 222 224 238 276 279 281 285 290 480 486 Davi 9 14 15 17 19 Deschamps Eutace 220ss Dickens Charles 430 470 Diderot Denis 289 350 380 407 Disciplina clericalis 219 Discurso direto 8s 34s 39s 74s 101 Discurso indireto discurso viven ciado 412 469 Dolce Stil Nuovo 120s 158 161 194 197 301 Dostoiévski F M 27 301 303 454ss Drama burguês 387ss 454 Drama litúrgico 124 159 E Eberwein Elena 115ss Édipo 25 Elisabeth Charlotte de Orleans Madame 364ss Eloista 5 11 Épica Teoria do épico 3 479 Epítetos 3 7 Erasmo de Rotterdam 241 Ervine St John 277s Estácio 152 Estilos piisturas e separação de 19 20 27s 33 35s 38 48 61 s 78s 94s 104 112s 118 129ss 157ss 169ss 185ss 211ss 232ss 241 268ss 272ss 296s 308 310 319ss 339ss 349ss 358ss 375ss 375ss 386ss 406s 413 419ss 433ss 447ss 486 Estilo nôvo v Dolce Stil Nuovo Estrasburgo juramentos de 208 Estrutura figurai v Figura Ethelwold 132 Etienne 126 Euricléia lss 18 Euripides 273 278s 283 335 Exaltação trágica 328ss Exempla 184 219 F Fabliaux farsas medievais em verso 179ss 191 219 Fabula milesiaca romance anti go 26 51 185 Faral E 89 Fascismo 483 Fielding Henry 403 420 430 Figura Estrutural figurai 12s 41s 62ss 99s 102s 133s I40s 165s 276s 285 487 Filipe Augusto rei de França 117 Filipe de Orléans regente 362 374 Filme 479 Flaubert Gustave 304 313 406 42lss 434ss 480 483 Folie Tristan la 93 109 Fontane Theodor 394 450ss Francesa Revolução 388s 397ss 406s Franciícnno 144 233 ÍNDICE 493 Francisco de Assis São 137s 140s Freytag Gustav 405ss Froissart 213 221 Fustel de Coulanges NumaDe nis 71 G Geoffroy de SaintHilaire Etien ne 414ss Gide André 478 Gilson Etienne 137 144 167 233 Goethe 3ss 89 158 286ss 380SS 387ss 399 470 Gogol N 430 454ss Goldsmith Oliver 403 Goncourt Edmond e Charles de 375 431 ss 450 üormund et Isembarg 93 Gotthelf Jeremias 394 405ss Oregório de Tours São 66ss Grillparzer Franz 74 Guilhem de Peitieu 147 Gunkel H 6 Hamsun Knut 476 478 480 Hnnska von 419 Hnrnuck A von 36 Hutcher A G 109 Hauptmann Gerhart 452 Hebbel Friedrich 394 451s Kegel 163 165 Menriquc II rei da Inglaterra 117 Herder 387 Hcrodax 26 llerrud von Lansberg 135 llildebrund Canção de 95 Hipotiixe v também Parataxe H iatoricismo 377 386ss 404 413 Hoffmann E TA 394 Hofman JB 34 Momero 23 24 25 91s 152 Honnête homme 267s 319ss 143 405 HorAcio 54 159 249 IInet 94 Huo Victor 335 408 426 440 llulringa 212 221 lliimaniiimo 158 233 266 272 279 342 llumllltassubllmitax 129s Iluymimn JK 470 476 Ibsen H 454 Interieur 348 Interpretação v Figura Isaac v Abraão Oferenda de J Jacobi F R 390 Jacopo della Lana 168 Jacopone da Todi 144 Jansenistas 398 Javista 10 Jean de Meun 194 Jerônimo São 54ss 59s 139s 167 Jeruel 7s Jespersen Otto 50 Jeu dAdam v Adão Mistério de Jó 19 Joab 9 Jordaens Jacob 445 José 15 Joyce James 472 478 480s Juvenal 54 K Kafka Franz 52 Keller Gottfried 353s 394 450ss 470 Kleist Heinrich von 394 Klinger Friedrich Maximilian 381 Korff HA 383ss L La Bruyère 315ss 369 402 418 425 Laclos Ch de Liaisons dange reuses 421 La Fontaine 182 355 Lanson G 251 La Rochefoucauld 361 La Sale Antoine de 199ss 222 Leconte de Lisle 440 Lefranc A 228 Leibniz 355 Leisewitz 381 Lenda e história 15s Lenz J M R 381 Leo Pecorella Fra 140 Lesage 325 403 Lessing 380ss Libertins spirituels 239 ligaçfio consecutiva 109 494 MIMESIS Litúrgico Drama v Drama li túrgico Lívio 72 Lofsted E 70 Lope de Vega 289 Lucano 152 Luciano 229ss 238 Luís VTI rei de França 117 Luís Xin 362 Luís XIV 320s 337 341ss 348 360ss M Madame v Elizabeth Charlot te de Orléans Mâle E 132 Malherbe 440 Mann Thomas 425 478 480 Marie de France 115 Marlowe 274 Marx Karl 388 Matière de Bretagne v Bretag ne Matière de Meinecke F 387ss 407 Meredith George 470 Merimée Prosper 485 Mettemich 400 Meun Jean de v Jean de Meun Michelangelo 270 Michelet Jules 413 Mimo 27 Mirmidôes 4 Mistère v Mystère Misticismo v Bernardo de Clairvaux São Victorinos e Cistercienses Mistura de estilos v Estilos Molière 267 315ss 340 348 369 Monólogo interno 469 Monod Gabriel 71 Montaigne 241 245ss 280 311 376 403 Montesquieu 346 362 405 415ss Moralismo antigo 27ss 39 Moralismo francês 317ss Morte Dança da v Dança da Morte Morus Thomas 232 Moser Justus 387 Mozart 402 Mystère dAdam v Adão Mis tério de Mystère du Vieil Testament 137 N Nacionalsocialismo 16 Napoleão época napoleônica 388 390 397ss 407s 421 Natural 340ss Necker Madame 359 Neoplatonismo 476 Nibelungos 95 Nicole Pierre 344 Nietzsche 453 Níveis v Estilos Noé 19 Norden Ed 40 50 52 Novelino v Cento novelle anti che Nôvo estilo italiano v Dolce stil nuovo O Orleans v Elizabeth Charlotte e Filipe de Ostade 445 P Panodefundo 3 5s 9s 474 Parataxe v também Hipotaxe 60s 64 84ss 109 141 152ss 178ss 207 Pascal 255 265 Pastoreia 307 Paulo São 13 41 59 166 Pedro São 35ss 59 Perspectiva perspectivismo 4 23 28 192ss 279ss 401 471ss Petrarca petrarquismo 286 338 Petrönio 22ss 77s 416 423 Petrus Lombardus 131 Pietro Alighieri 168 Pigalle JB 360 Platão platonismo 119 239 254 263 288 486 Plauto 154 Plínio o Jovem 16 Plutarco 234 269 Preciosas preciosidade 340 347 Prédica medieval 137 167 239 Premierfait Laurent de 223 Prévost Abbé 403 Profecia 17 18 Proust Mareei 24 40 368 471 475ss Provençal poesia 120st 147 158 161 169 307 Público ias pessoas cultn 187 266 319 439 ÍNDICE 495 Q Quintiliano 284 Quinze Joyes de Mariage Les 199 215ss R Raabe Wilhelm 451 Rabelais 193 225ss 255 280 290 Racine 96 325ss 347 420 Realismo espanhol 289ss Regis Gottlob 228 Regressões na Chanson de Geste 88ss Restauração 396 408 Retardador efeito na épica 3 89 Retórica cortês 297s Retz cardeal de 361 376 Revolução francesa v Francesa Revolução Richelíeu 362 Ritter Hellmut 117 Rohlfs G 179 181 Rolundo Canção de 82ss 111 114 I52s 282 Romance antigo v Fabula mi lesiaca Homan courtois romance cortês I05ss 135 Homan de la Rose 194 Romantismo 287 290 300 330 335 401s 404 405ss 413ss 478ss 486ss Rosegger Peter 450 Rontovtzeff M 33ss Rousseau 350 380 384 397 399 401s 403 404 407ss 426 Rubens 445 S SuinteBeuve ChA de 361 SaintPol Louis de Luxembourg 199 SnintSimon Louis de 361ss 403 Sale v La Sale Snlimbene de Adam Fra 184s I89s Siilúdtio 35 48 73 Suniuel livros de 17 Sátiru antiga 26s Snul 9 Schiller 3ss 8 89 380ss 403 Scott Walter 416 Sonnncour E de 408 Sêneca 46 49 80 272 277 286 452 Sete mestres sábios 219 Shakespeare 272ss 304s 311 320 376 380 386 402 420 426 Siglo de oro 289ss Símbolo interpretação simbólica v também Figura Simmel G 115 Sócrates 239ss 255 260 288 Sòderhjelm W 199 Sófocles 277 336 Solidariedade círculo de 117 119 372 Solon e Creso anedota 39 Sorte mudança da 25 272 Spielhagen Friedrich 451 Spitzer L 305 359 Sponsus 137 Stendhal 395ss 434ss 486 Stichomytia 39 Stifter Adalbert 394 450ss Storm Theodor 394 450s Sturm und Drang 381 384 486s Sublime v Estilos Suger de SaintDenis 132 Suspense v Tensão T Tácito 29ss 45s 49 51 72 80 Taine H 342 363 415 Tallemant des Reaux 361 Tensão 2s 308 473 Teócrito 26 Térsites episódio de 18 Tertuliano 167 Thackeray W M 28 430 Thara pai de Abraão 64s Tolstoi 27 454ss Tomás de Aquino Santo 155 Tomás de Celano 138 143 Trajano 16 Tristão e Isolda v também Fo lie Tristan Tucídides 34 37 Turgueniev 454 U Ulisses 3ss V Vasselage 114 Vauvenargues 425 Verdade sua exigência na Bí blia II 496 MIMESIS Vico Giambattista 33 376s Victimae Paschali sequência 137 Victorinos 116 129 Vida de Santo Aleixo v Aleixo Vida de Santo Vigny Alfred de 91 Villehardouin 154 Villey P 247 251 254 259 Villon François 222 Virgílio 140 150ss 169 Vischer Fr Th 452s Voltaire 307 346 350ss 403 406 416 Voss J H 381 W Wagner H L 381 X Xenofonte 241 Z Zeus S 9 Zola Emile 375 441 443ss 470