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Texto de pré-visualização
O Guarani de José de Alencar Fonte ALENCAR José de O guarani 20ª ed São Paulo Ática 1996 Bom Livro Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro httpwwwbibvirtfuturouspbr A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Este material pode ser redistribuído livremente desde que não seja alterado e que as informações acima sejam mantidas Para maiores informações escreva para bibvirtfuturouspbr Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto Se você quer ajudar de alguma forma mande um email para bibvirtfuturouspbr e saiba como isso é possível O Guarani José de Alencar PRÓLOGO Minha prima Gostou da minha história e pedeme um romance acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura Enganase quando se conta aquilo que nos impressionou profundamente o coração é que fala quando se exprime aquilo que outros sentiram ou podem sentir fala a memória ou a imaginação Esta pode errar pode exagerarse o coração é sempre verdadeiro não diz senão o que sentiu e o sentimento qualquer que ele seja tem a sua beleza Assim não me julgo habilitado a escrever um romance apesar de já ter feito um com a minha vida Entretanto para satisfazêla quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa quando a comprei Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim esse roedor eterno que antes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé e pôde assim escapar ao cataclisma Previnolhe que encontrará cenas que não são comuns atualmente não as condene à primeira leitura antes de ver as outras que as explicam Enviolhe a primeira parte do meu manuscrito que eu e Carlota temos decifrado nos longos serões das nossas noites de inverno em que escurece aqui às cinco horas Adeus Minas 12 de dezembro AO LEITOR Publicado este livro em 1857 se disse ser aquela primeira edição uma prova tipográfica que algum dia talvez o autor se dispusesse a rever Esta nova edição devia dar satisfação do empenho que a extrema benevolência do público ledor tão minguado ainda mudou em bem para dívida de reconhecimento Mais do que podia fiou de si o autor Relendo a obra depois de anos achou ele tão mau e incorreto quanto escrevera que para bem corrigir fora mister escrever de novo Para tanto lhe carece o tempo e sobra o tédio de um labor ingrato Cingiuse pois às pequenas emendas que toleravam o plano da obra e o desalinho de um estilo não castigado PRIMEIRA PARTE OS AVENTUREIROS I CENÁRIO De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas tornase rio caudal É o Paquequer saltando de cascata em cascata enroscandose como uma serpente vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba que rola majestosamente em seu vasto leito Dirseia que vassalo e tributário desse rei das águas o pequeno rio altivo e sobranceiro contra os rochedos curvase humildemente aos pés do suserano Perde então a beleza selvática suas ondas são calmas e serenas como as de um lago e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas escravo submisso sofre o látego do senhor Não é neste lugar que ele deve ser visto sim três ou quatro léguas acima de sua foz onde é livre ainda como o filho indômito desta pátria da liberdade Aí o Paquequer lançase rápido sobre o seu leito e atravessa as florestas como o tapir espumando deixando o pêlo esparso pelas pontas do rochedo e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira De repente faltalhe o espaço fogelhe a terra o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças e precipitase de um só arremesso como o tigre sobre a presa Depois fatigado do esforço supremo se estende sobre a terra e adormece numa linda bacia que a natureza formou e onde o recebe como em um leito de noiva sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza sublime artista tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos em que o homem e apenas um simples comparsa No ano da graça de 1604 o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto a cidade do Rio de Janeiro tinhase fundado havia menos de meio século e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior Entretanto viase à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa construída sobre uma eminência e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique A esplanada sobre que estava assentado o edifício formava um semicírculo irregular que teria quando muito cinqüenta braças quadradas do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada encontravase uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha Continuando a descer chegavase à beira do rio que se curvava em seio gracioso sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens Aí ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores que alargando gradualmente iam fechar como dois braços o seio do rio entre o tronco dessas árvores uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira que ainda apresentam as nossas primitivas habitações tinha cinco janelas de frente baixas largas quase quadradas Do lado direito estava a porta principal do edifício que dava sobre um pátio cercado por uma estacada coberta de melões agrestes Do lado esquerdo estendiase até à borda da esplanada uma asa do edifício que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa havia uma coisa que chamaremos jardim e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica vigorosa e esplêndida que a vista abraçava do alto do rochedo Flores agrestes das nossas matas pequenas árvores copadas um estendal de relvas um fio de água fingindo um rio e formando uma pequena cascata tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável À primeira vista olhando esse rochedo da altura de duas braças donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água e o monte de grama que tinha quando muito o tamanho de um divã parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma miniatura O fundo da casa inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas que serviam de morada a aventureiros e acostados Finalmente na extrema do pequeno jardim à beira do precipício viase uma cabana de sapé cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras As abas do teto desciam até o chão um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem Agora que temos descrito o aspecto da localidade onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta história podemos abrir a pesada porta de jacarandá que serve de entrada e penetrar no interior do edifício A sala principal o que chamamos ordinariamente sala da frente respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto como era então aquele sitio As paredes e o teto eram calados mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco nos espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa Sobre a porta do centro desenhavase um brasão de armas em campo de cinco vieiras de ouro riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas No escudo formado por uma brica de prata orlada de vermelho viase um elmo também de prata paquife de ouro e de azul e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça Um largo reposteiro de damasco vermelho onde se reproduzia o mesmo brasão ocultava esta porta que raras vezes se abria e dava para um oratório Defronte entre as duas janelas do meio havia um pequeno dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis Cadeiras de couro de alto espaldar uma mesa de jacarandá de pés torneados uma lâmpada de prata suspensa ao teto constituíam a mobília da sala que respirava um ar severo e triste Os aposentos interiores eram do mesmo gosto menos as decorações heráldicas na asa do edifício porém esse aspecto mudava de repente e era substituído por um quer que seja de caprichoso e delicado que revelava a presença de uma mulher Com efeito nada mais loução do que essa alcova em que os brocatéis de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves enlaçadas em grinaldas e festões pela orla do teto e pela cúpula do cortinado de um leito colocado sobre um tapete de peles de animais selvagens A um canto pendia da parede um crucifixo em alabastro aos pés do qual havia um escabelo de madeira dourada Pouco distante sobre uma cômoda viase uma dessas guitarras espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de Portugal e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas Junto à janela havia um traste que à primeira vista não se podia definir era uma espécie de leito ou sofá de palha matizada de várias cores e entremeada de penas negras e escarlates Uma garçareal empalhada prestes a desatar o vôo segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ela abria com a ponta de suas asas brancas e caindo sobre a porta vendava esse ninho da inocência aos olhos profanos Tudo isto respirava um suave aroma de benjoim que se tinha impregnado nos objetos com o seu perfume natural ou como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava II LEALDADE A habitação que descrevemos pertencia a D Antônio de Mariz fidalgo português de cota darmas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro e depois da vitória alcançada pelos portugueses auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr Antônio de Salema contra os franceses que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de paubrasil Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda e depois da alfândega do Rio de Janeiro mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei Homem de valor experimentado na guerra ativo afeito a combater os índios prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo Em recompensa do seu merecimento o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão a qual depois de haver explorado deixou por muito tempo devoluta A derrota de AlcácerQuibir e o domínio espanhol que se lhe seguiu vieram modificar a vida de D Antônio de Mariz Português de antiga têmpera fidalgo leal entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza e que só a ele devia preito e menagem Quando pois em 1582 foi aclamado no Brasil D Felipe 11 como o sucessor da monarquia portuguesa o velho fidalgo embainhou a espada e retirouse do serviço Por algum tempo esperou a projetada expedição de D Pedro da Cunha que pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa colocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro D Antônio prior do Crato Depois vendo que esta expedição não se realizava e que seu braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade até a morte Tomou os seus penates o seu brasão as suas armas a sua família e foi estabelecerse naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá Aí de pé sobre a eminência em que ia assentar o seu novo solar D Antônio de Mariz erguendo o vulto direito e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno exclamou Aqui sou português Aqui pode respirar à vontade um coração leal que nunca desmentiu a fé do juramento Nesta terra que me foi dada pelo meu rei e conquistada pelo meu braço nesta terra livre tu reinarás Portugal como viverás nalma de teus filhos Eu o juro Descobrindose curvou o joelho em terra e estendeu a mão direita sobre o abismo cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza em face do sol que transmontava Isto se passara em abril de 1593 no dia seguinte começaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória até que os artesãos vindos do reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos D Antônio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros anos de sua vida aventureira e não só por capricho de fidalguia mas em atenção à sua família procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão todo o luxo e comodidade possíveis Além das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro para comprar fazendas e gêneros de Portugal que trocava pelos produtos da terra mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica para proverem os seus habitantes de todo o necessário Assim a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português menos as ameias e a barbacã as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável Na posição em que se achava isto era necessário por causa das tribos selvagens que embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos e se entranhassem pelas florestas costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição Em um circulo de uma légua da casa não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros S pobres desejosos de fazer fortuna rápida e que tinhamse animado a se estabelecer neste lugar em parcerias de dez e vinte para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas que iam vender na costa Estes apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios fazendo paliçadas e reunindose uns aos outros para defesa comum em ocasião de perigo vinham sempre abrigarse na casa de D Antônio de Mariz a qual fazia as vezes de um castelo feudal na idade Média O fidalgo os recebia como um ricohomem que devia proteção e asilo aos seus vassalos socorriaos em todas as suas necessidades e era estimado e respeitado por todos que vinham confiados na sua vizinhança estabelecerse por esses lugares Deste modo em caso de ataque dos índios os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão com os seus próprios recursos e por isso D Antônio como homem prático e avisado que era haviase premunido para qualquer ocorrência Ele mantinha como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior eram homens ousados destemidos reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido eram uma espécie de guerrilheiros soldados e selvagens ao mesmo tempo D Antônio de Mariz que os conhecia havia estabelecido entre eles uma disciplina militar rigorosa mas justa a sua lei era a vontade do chefe o seu dever a obediência passiva o seu direito uma parte igual na metade dos lucros Nos casos extremos a decisão era proferida por um conselho de quatro presidido pelo chefe e cumpriase sem apelo como sem demora e hesitação Pela força da necessidade pois o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo de alta e baixa justiça dentro de seus domínios devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem a disciplina e a harmonia Quando chegava a época da venda dos produtos que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro apurava o ganho fazia a troca dos objetos necessários e na volta prestava suas contas Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo como chefe a outra era distribuída igualmente pelos quarenta aventureiros que a recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo Assim vivia quase no meio do sertão desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens governandose com as suas leis os seus usos e costumes unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas Para D Antônio e para seus companheiros a quem ele havia imposto sua fidelidade esse torrão brasileiro esse pedaço de sertão não era senão um fragmento de Portugal livre de sua pátria primitiva ai só se reconhecia como rei ao duque de Bragança legitimo herdeiro da coroa e quando se corriam as cortinas do dossel da sala as armas que se viam eram as cinco quinas portuguesas diante das quais todas as frontes inclinavam D Antônio tinha cumprido o seu juramento de vassalo leal e com a consciência tranqüila por ter feito o seu dever com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto ainda mesmo em um deserto rodeado de seus companheiros que ele considerava amigos vivia feliz no seio de sua pequena família Esta se compunha de quatro pessoas Sua mulher D Lauriana dama paulista imbuída de todos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquele tempo no mais um bom coração um pouco egoísta mas não tanto que não fosse capaz de um ato de dedicação Seu filho D Diogo de Mariz que devia mais tarde prosseguir na carreira de seu pai e lhe sucedeu em todas as honras e forais ainda moço na flor da idade gastava o tempo em correrias e caçadas Sua filha D Cecília que tinha dezoito anos e que era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso e alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa feceirice D Isabel sua sobrinha que os companheiros de D Antônio embora nada dissessem suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações Demoreime em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passaram Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos III A BANDEIRA Era meiodia Um troço de cavaleiros que constaria quando muito de quinze pessoas costeava a margem direita do Paraíba Estavam todos armados da cabeça até aos pés além da grande espada de guerra que batia as ancas do animal cada um deles trazia à cinta dois pistoletes um punhal na ilharga do calção e o arcabuz passado a tiracolo pelo ombro esquerdo Pouco adiante dois homens a pé tocavam alguns animais carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira alcatroada que os abrigava da chuva Quando os cavaleiros que seguiam a trote largo venciam a pequena distancia que os separava da tropa os dois caminheiros para não atrasarem a marcha montavam na garupa dos animais e ganhavam de novo a dianteira Naquele tempo davase o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil à busca de ouro os brilhantes e esmeraldas ou à descoberta de rios e terras ainda desconhecidos A que nesse momento costeava a margem do Paraíba era da mesma natureza voltava do Rio de Janeiro onde fora vender os produtos de sua expedição pelos terrenos auríferos Uma das ocasiões em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos um moço de vinte e oito anos bem parecido e que marchava à frente do troço governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza quebrou o silêncio geral Vamos rapazes disse ele alegremente aos caminheiros um pouco de diligência e chegaremos com cedo Restamnos apenas umas quatro léguas Um dos bandeiristas ao ouvir estas palavras chegou as esporas à cavalgadura e avançando algumas braças colocouse ao lado do moço Ao que parece tendes pressa de chegar Sr Álvaro de Sá disse ele com um ligeiro acento italiano e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita Decerto Sr Loredano nada é mais natural a quem viaja do que o desejo de chegar Não digo o contrário mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja do que poupar os seus animais Que quereis dizer com isto Sr Loredano perguntou Álvaro com um movimento de enfado Quero dizer sr cavalheiro respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol que chegaremos hoje pouco antes das seis horas Álvaro corou Não vejo em que isto vos causa reparo a alguma hora havíamos chegar e melhor é que seja de dia do que de noite Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia replicou o italiano no mesmo tom Um novo rubor assomou às faces de Álvaro que não pôde disfarçar o seu enleio mas recobrando o desembaraço soltou uma risada e respondeu Ora Deus Sr Loredano estais ai a falarme na ponta dos beiços e com meias palavras à fé de cavalheiro que não vos entendo Assim deve ser Diz a Escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir Oh temos anexim Aposto que aprendeste isto agora em São Sebastião foi alguma velha beata ou algum licenciado em cânones que volo ensinou disse o cavalheiro gracejando Nem um nem outro sr cavalheiro foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores que por sinal também me mostrou custosos brocados e lindas arrecadas de pérolas bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à sua dama Álvaro enrubesceu pela terceira vez Decididamente o sarcástico italiano com o seu espírito mordaz achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava e isto no tom o mais natural do mundo Álvaro quis cortar a conversação neste ponto mas o seu companheiro prosseguiu com extrema amabilidade Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de que vos falei sr cavalheiro Não me lembro é de crer que não pois apenas tive tempo de arranjar os nossos negócios e nem um me restou para ver essas galantarias de damas e fidalgas disse o moço com frieza É verdade acudiu Loredano com uma ingenuidade simulada isto me faz lembrar que só nos demoramos no Rio de Janeiro cinco dias quando das outras vezes eram nunca menos de dez e quinze Tive ordem para haverme com toda a rapidez e creio continuou fitando no italiano um olhar severo que não devo contas de minhas ações senão àqueles a quem dei o direito de pedilas Per Bacco cavalheiro Tomais as coisas ao revés Ninguém vos pergunta por que motivo fazeis aquilo que vos praz mas também achareis justo que cada um pense à sua maneira Pensai o que quiserdes disse Álvaro levantando os ombros e avançando o passo da sua cavalgadura A conversa interrompeuse Os dois cavaleiros um pouco adiantados ao resto do troço caminhavam silenciosos um a par do outro Álvaro às vezes enfiava um olhar pelo caminho como para medir a distancia que ainda tinham de percorrer e outras vezes parecia pensativo e preocupado Nestas ocasiões o italiano lançava sobre ele um olhar a furto cheio de malícia e ironia depois continuava a assobiar entredentes uma cançoneta de condottiere de quem ele apresentava o verdadeiro tipo Um rosto moreno coberto por uma longa barba negra entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes olhos vivos a fronte larga descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro alta estatura e uma constituição forte ágil e musculosa eram os principais traços deste aventureiro A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio que não oferecia mais caminho e tomara por uma estreita picada aberta na mata Apesar de ser pouco mais de duas horas o crepúsculo reinava nas profundas e sombrias abóbadas de verdura a luz coando entre a espessa folhagem se decompunha inteiramente nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da criação ao qual serviam de colunas os troncos seculares dos acaris e araribás O silêncio da noite com os seus rumores vagos e indecisos e os seus ecos amortecidos dormia no fundo dessa solidão e era apenas interrompido um momento pelo passo dos animais que faziam estalar as folhas secas Parecia que deviam ser seis horas da tarde e que o dia caindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do ocaso Álvaro de Sá embora habituado a esta ilusão não pôde deixar de sobressaltarse um instante em que saindo da sua meditação viuse de repente no meio do claroescuro da floresta Involuntariamente ergueu a cabeça para ver se através da cúpula de verdura descobria o sol ou pelo menos alguma centelha de luz que lhe indicasse a hora Loredano não pôde reprimir a risada sardônica que lhe veio aos lábios Não vos dê cuidado sr cavalheiro antes de seis horas li estaremos sou eu que volo digo O moço voltouse para o italiano rugando o sobrolho Sr Loredano é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada pareceis querer dar a entender alguma coisa mas faltavos o animo de a proferir Uma vez por todas falai abertamente e Deus vos guarde de tocar em objetos que são sagrados Os olhos do italiano lançaram uma faisca mas o seu rosto conservouse calmo e sereno Bem sabeis que vos devo obediência sr cavalheiro e não faltarei dela Desejais que fale claramente e a mim me parece que nada do que tenho dito pode ser mais claro do que é Para vós não duvido mas isto não é razão de que o seja para outros Ora dizeime sr cavalheiro não vos parece claro à vista do que me ouvistes que adivinhei o vosso desejo de chegar o mais depressa possível Quanto a isto já vos confessei eu não há pois grande mérito em adivinhar Não vos parece claro também que observei haverdes feito esta expedição com a maior rapidez de modo que em menos de vinte dias eisnos ao cabo dela Já vos disse que tive ordem e creio que nada tendes a opor Não decerto uma ordem é um dever e um dever cumprese com satisfação quando o coração nele se interessa Sr Loredano disse o moço levando a mão ao punho da espada e colhendo as rédeas O italiano fez que não tinha visto o gesto de ameaça continuou Assim tudo se explica Recebestes uma ordem foi de D Antônio de Mariz sem dúvida Não sei que nenhum outro tenha direito de darme replicou o moço com arrogância Naturalmente por virtude desta ordem continuou o italiano cortesmente partistes do Paquequer em uma segundafeira quando o dia designado era um domingo Ah também reparastes nisto perguntou o moço mordendo os beiços de despeito Reparo em tudo sr cavalheiro assim não deixei de observar ainda que sempre em virtude da ordem fizestes tudo para chegar justamente antes do domingo E não observastes mais nada perguntou Álvaro com a voz trêmula e fazendo um esforço para conterse Não me escapou também uma pequena circunstância de que já vos falei E qual é ela se vos praz Oh não vale a pena repetir é coisa de somenos Dizei sempre Sr Loredano nada é perdido entre dois homens que se entendem replicou Álvaro com um olhar de ameaça Já que o quereis força é satisfazervos Noto que a ordem de D Antônio e o italiano carregou nessa palavra mandavos estar no Paquequer um pouco antes de seis horas a tempo de ouvir a prece Tendes um dom admirável Sr Loredano o que é de lamentar é que o empregueis em futilidades Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste sertão senão a olhar para seus semelhantes e ver o que eles fazem Com efeito é uma boa distração Excelente Vede vós tenho visto coisas que se passam diante dos outros e que ninguém percebe porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida Containos isto há de ser curioso Ao contrário é o mais natural possível um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite à luz das estrelas Pode haver coisa mais simples Álvaro empalideceu desta vez Sabeis uma coisa Sr Loredano Saberei cavalheiro se me fizerdes a honra de dizer Está me parecendo que a vossa habilidade de observador levouvos muito longe e que fazeis nem mais nem menos do que o oficio de espião O aventureiro ergueu a cabeça com um gesto altivo levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia à ilharga no mesmo instante porém dominou este movimento e voltou à bonomia habitual Quereis gracejar sr cavalheiro Enganaisvos disse o moço picando o seu cavalo e encostandose ao italiano falovos seriamente sois um infame espião Mas juro por Deus que à primeira palavra que proferirdes esmagovos a cabeça como a uma cobra venenosa A fisionomia de Loredano não se alterou conservou a mesma impassibilidade apenas o seu ar de indiferença e sarcasmo desapareceu sob a expressão de energia e maldade que lhe acentuou os traços vigorosos Fitando um olhar duro no cavalheiro respondeu Visto que tomais a coisa neste tom Sr Álvaro de Sá cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar entre nós dois deveis saber qual é o que tem a temer Esqueceis a quem falais disse o moço com altivez Não senhor lembro tudo lembro que sois meu superior e também acrescentou com voz surda que tenho o vosso segredo E parando o animal o aventureiro deixou Álvaro seguir só na frente e misturouse com os seus companheiros A pequena cavalgata continuou a marcha através da picada e aproximouse de uma dessas clareiras das matas virgens que se assemelham a grandes zimbórios de verdura Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a floresta e encheu a solidão com os ecos estridentes Os caminheiros empalideceram e olharam um para o outro os cavaleiros engatilharam os arcabuzes e seguiram lentamente lançando um olhar cauteloso pelos ramos das árvores IV CAÇADA Quando a cavalgata chegou à margem da clareira ai se passava uma cena curiosa Em pé no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores encostado a um velho tronco decepado pelo raio viase um índio na flor da idade Uma simples túnica de algodão a que os indígenas chamavam aimará apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates caíalhe dos ombros até ao meio da perna e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem Sobre a alvura diáfana do algodão a sua pele cor do cobre brilhava com reflexos dourados os cabelos pretos cortados rentes a tez lisa os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte a pupila negra móbil cintilante a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça da força e da inteligência Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro à qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas que descrevendo uma longa espiral vinham rogar com as pontas negras o pescoço flexível Era de alta estatura tinha as mãos delicadas a perna ágil e nervosa ornada com uma axorca de frutos amarelos apoiavase sobre um pé pequeno mas firme no andar e veloz na corrida Segurava o arco e as flechas com a mão direita calda e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo Perto dele estava atirada ao chão uma clavina tauxiada uma pequena bolsa de couro que devia conter munições e uma rica faca flamenga cujo uso foi depois proibido em Portugal e no Brasil Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distancia e se agitava imperceptivelmente Ali por entre a folhagem distinguiamse as ondulações felinas de um dorso negro brilhante marchetado de pardo às vezes viamse brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha ferida pela luz do sol Era uma onça enorme de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore e pés suspensos no galho superior encolhia o corpo preparando o salto gigantesco Batia os flancos com a larga cauda e movia a cabeça monstruosa como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo uma espécie de riso sardônico e feroz contraialhe as negras mandíbulas e mostrava a linha de dentes amarelos as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitarse já com o odor do sangue da vítima O índio sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco não perdia um só desses movimentos e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa Assim durante um curto instante a fera e o selvagem mediramse mutuamente com os olhos nos olhos um do outro depois o tigre agachouse e ia formar o salto quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira Então o animal lançando ao redor um olhar injetado de sangue eriçou o pêlo e ficou imóvel no mesmo lugar hesitando se devia arriscar o ataque O índio que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado endireitouse de novo sem deixar a sua posição nem tirar os olhos do animal viu a banda que parara à sua direita Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei que rei das florestas ele era intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha Como porém o italiano com o arcabuz em face procurasse fazer a pontaria entre as folhas o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência e exclamou apontando para o tigre e levando a mão ao peito É meu meu só Estas palavras foram ditas em português com uma pronúncia doce e sonora mas em tom de energia e resolução O italiano riu Por Deus Eis um direito original Não quereis que se ofenda a vossa amiga Está bem dom cacique continuou lançando o arcabuz a tiracolo ela volo agradecerá Em resposta a esta ameaça o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão como para exprimir que se ele o quisesse já teria abatido o tigre de um tiro Os cavaleiros compreenderam o gesto porque além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto não fizeram a menor demonstração ofensiva Tudo isso se passou rapidamente em um segundo sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo A um sinal de Álvaro de Sá os cavaleiros prosseguiram a sua marcha e entranharamse de novo na floresta O tigre que observava os cavaleiros imóvel com o pêlo eriçado não ousara investir nem retirarse temendo exporse aos tiros dos arcabuzes mas apenas viu a tropa distanciarse e sumirse no fundo da mata soltou um novo rugido de alegria e contentamento Ouviuse um rumor de galhos que se espedaçavam como se uma árvore houvesse tombado na floresta e o vulto negro da fera passou no ar de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário uma distancia de trinta palmos O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto a onça com os seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue tinha visto os cavalos e desdenhava o homem fraca presa para saciála Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço e esticou a corda do grande arco que excedia de um terço à sua altura Ouviuse um forte sibilo que foi acompanhado por um bramido da fera a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha e uma segunda açoitando o ar ia ferirlhe a mandíbula inferior O tigre tinhase voltado ameaçador e terrível aguçando os dentes uns nos outros rugindo de fúria e vingança de dois saltos aproximouse novamente Era uma lata de morte a que ia se travar o índio o sabia e esperou tranqüilamente como da primeira vez a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse desaparecera estava satisfeito Assim estes dois selvagens das matas do Brasil cada um com as suas armas cada um com a consciência de sua força e de sua coragem consideravamse mutuamente como vítimas que iam ser imoladas O tigre desta vez não se demorou apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo retraiuse com uma força de elasticidade extraordinária e atirouse como um estilhaço de rocha cortada pelo raio Foi cair sobre o índio apoiado nas largas patas detrás com o corpo direito as garras estendidas para degolar a sua vítima e os dentes prontos a cortarlhe a jugular A velocidade deste salto monstruoso foi tal que no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada já a fera tocava o chão com as patas Mas tinha em frente um inimigo digno dela pela força e agilidade Como a princípio o índio havia dobrado um pouco os joelhos e segurava na esquerda a longa forquilha sua única defesa os olhos sempre fixos magnetizavam o animal No momento em que o tigre se lançara curvouse ainda mais e fugindo com o corpo apresentou o gancho A fera caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo sentiu o forcado cerrarlhe o colo e vacilou Então o selvagem distendeuse com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote fincando os pés e as costas no tronco arremessouse e foi cair sobre o ventre da onça que subjugada prostrada de costas com a cabeça presa ao chão pelo gancho debatiase contra o seu vencedor procurando debalde alcançálo com as garras Esta luta durou minutos o índio com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça e o corpo inclinado sobre a forquilha mantinha assim imóvel a fera que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem Quando o animal quase asfixiado pela estrangulação já não fazia senão uma fraca resistência o selvagem segurando sempre a forquilha meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligandoas fortemente uma à outra depois fez o mesmo às pernas e acabou por amarrar as duas mandíbulas de modo que a onça não pudesse abrir a boca Feito isto correu a um pequeno arroio que passava perto e enchendo de água uma folha de cajueirobravo que tornou cova veio borrifar a cabeça da fera Pouco a pouco o animal ia tornando a si e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata e adiantando o focinho escondeuse arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado O índio saltou sobre o arco e abateua daí a alguns passos no meio da carreira depois apanhando o corpo do animal que ainda palpitava arrancou a flecha e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca fez uma contorção violenta e quis soltar um urro que apenas exalouse num gemido surdo e abafado O índio sorria vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento a não serem essas retorções do corpo em que debalde se agitava Por cautela tinhalhe ligado até os dedos uns aos outros para privarlhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas que são a sua arma mais terrível Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá e rogando rapidamente um contra o outro tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão Foi ao regato bebeu alguns goles de água lavou as mãos o rosto e os pés e cuidou em pôrse a caminho Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata Momentos depois no lugar desta cena já deserto entreabriuse uma moita espessa e surdir um índio completamente nu ornado apenas com uma trofa de penas amarelas Lançou ao redor um olhar espantado examinou cautelosamente o fogo que ardia ainda e os restos da caça deitouse encostando o ouvido em terra e assim ficou algum tempo Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta na mesma direção que o outro tomara pouco tempo antes V LOURA E MORENA Caía a tarde No pequeno jardim da casa do Paquequer uma linda moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma acácia silvestre que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e perfumadas Os grandes olhos azuis meio cerrados às vezes se abriam languidamente como para se embeberem de luz e abaixavam de novo as pálpebras rosadas Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da gardênia dos nossos campos orvalhada pelo sereno da noite o hálito doce e ligeiro exalavase formando um sorriso Sua tez alva e pura como um froco de algodão tingiase nas faces de uns longes corderosa que iam desmaiando morrer no colo de linhas suaves e delicadas O seu trajo era do gosto o mais mimoso e o mais original que é possível conceber mistura de luxo e de simplicidade Tinha sobre o vestido branco de cassa um ligeiro saiote de riço azul apanhado à cintura por um broche uma espécie de arminho cor de pérola feito com a penugem macia de certas aves orlava o talho e as mangas fazendo realçar a alvura de seus ombros e o harmonioso contorno de seu braço arqueado sobre o seio Os longos cabelos louros enrolados negligentemente em ricas tranças descobriam a fronte alva e caíam em volta do pescoço presos por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro feita com uma arte e perfeição admirável A mãozinha afilada brincava com um ramo de acácia que se curvava carregado de flores e ao qual de vez em quando seguravase para imprimir à rede uma doce oscilação Esta moça era Cecília O que passava nesse momento em seu espírito infantil é impossível descrever o corpo cedendo à languidez que produz uma tarde calmosa deixava que a imaginação corresse livre Os sopros tépidos da brisa que vinham impregnados dos perfumes das madressilvas e das açucenas agrestes ainda excitavam mais esse enlevo e bafejavam talvez nessa alma inocente algum pensamento indefinido algum desses mitos de um coração de moça aos dezoito anos Ela sonhava que uma das nuvens brancas que passavam pelo céu anilado rogando a ponta dos rochedos se abria de repente e um homem vinha cair a seus pés tímido e suplicante Sonhava que corava e um rubor vivo acendia o rosado de suas faces mas a pouco e pouco esse casto enleio ia se desvanecendo e acabava num gracioso sorriso que sua alma vinha pousar nos lábios Com o seio palpitante toda trêmula e ao mesmo tempo contente e feliz abria os olhos mas voltavaos com desgosto porque em vez do lindo cavalheiro que ela sonhara via a seus pés um selvagem Tinha então sempre em sonho um desses assomos de cólera de rainha ofendida que fazia arquear as sobrancelhas louras e bater sobre a relva a ponta de um pezinho de menina Mas o escravo suplicante erguia os olhos tão magoados tão cheios de preces mudas e de resignação que ela sentia um quer que seja de inexprimível e ficava triste triste até que fugia e ia chorar Vinha porém o seu lindo cavalheiro enxugavalhe as lágrimas e ela sentiase consolada e sorria de novo mas conservava sempre uma sombra de melancolia que só a pouco e pouco o seu gênio alegre conseguia desvanecer Neste ponto do seu sonho a portinha interior do jardim abriuse e outra moça roçando apenas a grama com o seu passo ligeiro aproximouse da rede Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura com o encantador contraste de languidez e malícia de indolência e vivacidade Os olhos grandes e negros o rosto moreno e rosado cabelos pretos lábios desdenhosos sorriso provocador davam a este rosto um poder de sedução irresistível Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede e não pôde furtarse à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada de contornos tão suaves e uma sombra imperceptível talvez de um despeito passou pelo seu rosto mas esvaeceuse logo Sentouse numa das bandas da rede reclinando sobre a moça para beijála ou ver se estava dormindo Cecília sentindo um estremecimento abriu os olhos e fitouos em sua prima Preguiçosa disse Isabel sorrindo É verdade respondeu a moça vendo as grandes sombras que projetavam as árvores está quase noite E desde o sol alto que dormes não é assim perguntou a outra gracejando Não não dormi nem um instante mas não sei o que tenho hoje que me sinto triste Triste tu Cecília não creio era mais fácil não cantarem as aves ao nascer do sol Está bem não queres acreditar Mas vem cá Por que razão hás de estar triste tu que durante todo o ano só tens um sorriso tu que és alegre e travessa como um passarinho É para veres Tudo cansa neste mundo Ah compreendo estás enfastiada de viver aqui nestes ermos Já me habituei tanto a ver estas árvores este rio estes montes que querolhes como se me tivessem visto nascer Então o que é que te faz triste Não sei faltame alguma coisa Não vejo o que possa ser Sim já adivinho Adivinhas o quê perguntou Cecília admirada Ora o que te falta Se eu mesma não sei disse a moça sorrindo Olha respondeu Isabel ali está a tua rola esperando que a chames e o teu veadinho que te olha com os seus olhos doces só falta o outro animal selvagem Peri exclamou Cecília rindose da idéia de sua prima Ele mesmo Só tens dois cativos para fazeres as tuas travessuras e como não vês o mais feio e o mais desengraçado estás aborrecida Mas agora me lembro disse Cecília tu já o viste hoje Não nem sei o que é feito dele Saiu antes de ontem à tarde não vá terlhe sucedido alguma desgraça disse a moça estremecendo Que desgraça queres tu que lhe possa suceder Não anda ele todo dia batendo o mato e correndo como uma fera bravia Sim mas nunca lhe sucedeu ficar tanto tempo fora sem voltar à casa O mais que pode acontecer é teremlhe apertado as saudades da sua vida antiga e livre Não exclamou a moça com vivacidade não é possível que nos abandonasse assim Mas então que pensas que andará fazendo por esse sertão E verdade disse a moça preocupada Cecília ficou um momento com a cabeça baixa quase triste nesta posição a vista caiu sobre o veado que fitava nela a sua pupila negra com toda a languidez e suavidade que a natureza pusera em seus olhos A moça estendeu a mão e deu com a ponta dos dedos um estalinho que fez o lindo animal saltar de alegria e vir pousar a cabeça no seu regaço Tu não abandonarás tua senhora não é disse ela passando a mão sobre o seu pêlo acetinado Não faças caso Cecília replicou Isabel reparando na melancolia da moca pedirás a meu tio para caçarte outro que farás domesticar e ficará mais manso do que o teu Peri Prima disse a moça com um ligeiro tom de repreensão tratas muito injustamente esse pobre índio que não te fez mal algum Ora Cecília como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia amarga que a filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente Isabel exclamou ela ressentida Sei que tu não pensas assim Cecília e que o teu bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma Mas os outros Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua todos te querem e te respeitam como devem Isabel abanou tristemente a cabeça Vaite bem o consolarme mas tu mesma tens visto se eu tenho razão Ora um momento de zanga de minha mãe E um momento bem longo Cecília respondeu a moça com um sorriso amargo Mas escuta disse Cecília passando o braço pela cintura de sua prima e chamandoa a si tu bem sabes que minha mãe é uma senhora muito severa mesmo para comigo Não te canses prima isto só serve para provarme ainda mais o que já te confessei nesta casa só tu me amas os mais me desprezam Pois bem replicou Cecília eu te amarei por todos não te pedi já que me tratasses como irmã Sim e isto me causou um prazer que tu não imaginas Se eu fosse tua irmã E por que não hás de sêlo Quero que o sejas Para ti que para ele Este ele foi murmurado dentro dalma Mas olha que exijo uma coisa O que é perguntou Isabel É que eu serei a irmã mais velha Apesar de seres mais moça Não importa Como irmão mais velha tu me deves obedecer Decerto respondeu a prima sem poder deixar de sorrir Pois bem exclamou Cecília beijandoa na face não te quero ver triste ouviste Senão fico zangada E tu não estavas triste há pouco Oh já passou disse a moça saltando ligeiramente da rede Com efeito aquela doce languidez com que se embalançava há pouco cismando em mil coisas tinha desaparecido completamente seu gênio de menina alegre e feiticeira havia cedido um momento ao enlevo mas voltava de novo Era agora como sempre uma moça risonha e faceira respirando toda a graciosa gentileza misturada de inocência e estouvamento que dão o ar livre e a vida passada no campo Erguendose apinhou em botão de rosa os lábios vermelhos e imitou com uma graça encantadora os arrulhos doces da juriti imediatamente a rola saltou dos galhos da acácia e veio aninharse no seu seio estremencendo de prazer ao contato da mãozinha que alisava a sua penugem macia Vamos dormir disse ela à rola com a garridice com que as mães falam aos filhinhos recémnascidos a rolinha está com sono não é E deixando sua prima um momento só no jardim foi agasalhar os seus dois companheiros de solidão com tanto carinho e solicitude que bem revelava a riqueza de sentimento que havia no fundo desse coração envolta pela graça infantil de seu espírito Nesta ocasião ouviuse um tropel de animais perto da casa Isabel lançou os olhos sobre as margens do rio e viu uma banda de cavaleiros que entravam a cerca Soltou um grito de surpresa de alegria e susto ao mesmo tempo Que é perguntou Cecília correndo para sua prima São eles que chegam Eles quem O Sr Álvaro e os outros Ah exclamou a moça corando Não achas que voltaram muito depressa perguntou Isabel sem reparar na perturbação de sua prima Muito quem sabe se houve alguma coisa Dezenove dias apenas disse Isabel maquinalmente Contaste os dias É fácil respondeu a moça corando por sua vez depois de amanhã faz três semanas Vamos a ver que lindas coisas eles nos trazem Nos trazem repetiu Isabel carregando sobre a palavra com um tom de melancolia Nos trazem sim porque eu encomendei um fio de pérolas para ti Devem irte bem as pérolas com tuas faces cor de jambo Sabes que eu tenho inveja do teu moreninho prima E eu daria a minha vida para ter a tua alvura Cecília Ai o sol está quase a se pôr Vamos E as duas moças tomaram pelo interior da casa dirigindose ao lado da entrada VI A VOLTA Ao mesmo tempo que esta cena se passava no jardim dois homens passeavam do outro lado da esplanada na sombra que projetava o edifício Um deles de alto porte conheciase imediatamente que era um fidalgo pela altivez do gesto e pelo trajo de cavalheiro Vestia um gibão de velado preto com alamares de seda cor de café no peito e nas aberturas das mangas os calções do mesmo estofo e também pretos caíam sobre as botas longas de couro branco com esporas de Ouro Uma simples preguilha de linho alvíssimo cercava o talho do seu gibão e deixava a descoberto o pescoço que sustentava com graça uma bela e nobre cabeça de velho De seu chapéu de feltro pardo sem pluma escapavamse os anéis de cabelos brancos que calam sobre os ombros através da longa barba alva como a espuma da cascata brilhavam suas faces rosadas sua boca ainda expressiva e seus olhos pequenos mas vivos Este fidalgo era D Antônio de Mariz que apesar de seus sessenta anos mostrava um vigor devido talvez à vida ativa trazia ainda o porte direito e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade O outro velho que caminhava a seu lado com o chapéu na mão era Aires Gomes seu escudeiro e antigo companheiro de sua vida aventureira o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo A fisionomia deste homem tinha quer pela sagacidade inquieta que era a sua expressão ordinária quer pelos seus traços alongados uma certa semelhança com o focinho da raposa semelhança que era ainda mais aumentada pelo seu trajo bizarro Trazia sobre o gibão de belbutina cor de pinhão uma espécie de véstia do pêlo daquele animal do qual eram também as botas compridas que lhe serviam quase de calções Em que o negues Aires Gomes dizia o fidalgo ao seu escudeiro medindo a passos lentos o terreno estou certo que és do meu parecer Não digo de todo que não sr cavalheiro confesso que D Diogo cometeu uma imprudência matando essa índia Dize uma barbaria uma loucura Não penses que com ser meu filho o desculpo Julgais com demasiada severidade E o devo porque um fidalgo que mata uma criatura fraca e inofensiva comete uma ação baixa e indigna Durante trinta anos que me acompanhas sabes como trato os meus inimigos pois bem a minha espada que tem abatido tantos homens na guerra cairmeia da mão se num momento de desvario a erguesse contra uma mulher Mas é preciso ver que casta de mulher é esta uma selvagem Sei o que queres dizer não partilho essas idéias que vogam entre os meus companheiros para mim os índios quando nos atacam são inimigos que devemos combater quando nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos mas são homens Vosso filho não pensa assim e bem sabeis que os princípios que lhe deu a Sra D Lauriana Minha mulher replicou o fidalgo com algum azedume Mas não é disto que discorríamos Sim faláveis dos receios que vos inspirava a imprudência de D Diogo E que pensas tu Já vos disse que não vejo as coisas tão negras como vós Sr D Antônio Os índios vos respeitam vos temem e não se animarão a atacarvos Digote que te enganas ou antes que procuras enganarme Não sou capaz de tal sr cavalheiro Conheces tão bem como eu Aires o caráter desses selvagens sabes que a sua paixão dominante é a vingança e que por ela sacrificam tudo a vida e a liberdade Não desconheço isto respondeu o escudeiro Eles me temem dizes tu mas desde o momento em que se julgarem ofendidos por mim sofrerão tudo para vingarse Tendes mais experiência do que eu sr cavalheiro mas queira Deus que vos enganeis Voltandose na beira da esplanada para continuarem o seu passeio D Antônio de Mariz e o seu escudeiro viram um moço cavaleiro que atravessava pela frente da casa Deixame disse o fidalgo a Aires Gomes e pensa no que te disse em todo o caso que estejamos preparados para recebêlos Se vierem retrucou o teimoso escudeiro afastandose D Antônio dirigiuse lentamente para o moço fidalgo que se havia sentado a alguns passos Vendo aproximarse seu pai D Diogo de Mariz ergueuse e descobrindose esperouo numa atitude respeitosa Sr cavalheiro disse o velho com um ar severo infringistes ontem as ordens que vos dei Senhor Apesar das minhas recomendações expressas ofendestes um desses selvagens e excitastes contra nós a sua vingança Pusestes em risco a vida de vosso pai de vossa mãe e de homens dedicados Deveis estar satisfeito de vossa obra Meu pai Cometestes uma ação má assassinando uma mulher uma ação indigna do nome que vos dei isto mostra que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis à cinta Não mereço esta injúria senhor Castigaime mas não rebaixeis vosso filho Não é vosso pai que vos rebaixa sr cavalheiro e sim a ação que praticastes Não vos quero envergonhar tirando essa arma que vos dei para combater pelo vosso rei mas como ainda não vos sabeis servir dela proíbovos que a tireis da bainha ainda que seja para defender a vossa vida D Diogo inclinouse em sinal de obediência Partireis brevemente apenas chegar a expedição do Rio de Janeiro e ireis pedir a Diogo Botelho que vos dê serviço nas descobertas Sois português e deveis guardar fidelidade ao vosso rei legitimo mas combatereis como fidalgo e cristão em prol da religião conquistando ao gentio esta terra que um dia voltará ao domínio de Portugal livre Cumprirei as vossas ordens meu pai Daqui até então continuou o velho fidalgo não arredareis pé desta casa sem minha ordem Ide sr cavalheiro lembraivos que tenho sessenta anos e que vossa mãe e vossa irmã breve carecerão de um braço valente para defendêlas e de um conselho avisado para protegêlas O moço sentiu as lágrimas borbulharem nos olhos mas não balbuciou uma palavra curvouse e beijou respeitosamente a mão de seu pai D Antônio de Mariz depois de olhálo um momento com uma severidade sob a qual transpareciam os assomos do amor de pai voltou pelo mesmo caminho e ia continuar o seu passeio quando sua mulher apareceu na soleira da porta D Lauriana era uma senhora de cinqüenta e cinco anos magra mas forte e conservada como seu marido tinha ainda os cabelos pretos matizados por alguns fios brancos que escondia o seu alto penteado coroado por um desses antigos pentes tão largos que cingiam toda a cabeça e fingiam uma espécie de diadema Seu vestido de lapim cor de fumo de cintura comprida um pouco curto na frente tinha uma cauda respeitável que ela arrastava com um certo donaire de fidalga resto de sua beleza há muito perdida Longas arrecadas de ouro com pingentes de esmeralda que lhe rogavam quase os ombros e um colar com uma cruz de ouro ao pescoço eram todos os seus ornatos Quanto ao moral já dissemos que era uma mistura de fidalguia e devoção o espírito de nobreza que em D Antônio de Mariz era um realce nela tornavase uma ridícula exageração No ermo em que se achava em lugar de procurar desvanecer um pouco a distinção social que podia haver entre ela e os homens no meio dos quais vivia ao contrário aproveitava o fato de ser a única dama fidalga daquele lugar para esmagar os outros com a sua superioridade e reinar do alto de sua cadeira de espaldar que para ela era quase um trono Em religião o mesmo sucedia e um dos maiores desgostos que ela sentia na sua existência era não se ver cercada de todo esse aparato do culto que D Antônio como os homens de uma fé robusta e de um espírito direito tinha sabido substituir perfeitamente Apesar desta diferença de caracteres D Antônio de Mariz ou por concessões ou por serenidade vivia em perfeita harmonia com sua mulher procurava satisfazêla em tudo e quando não era possível exprimia a sua vontade de um certo modo que a dama conhecia imediatamente que era escusado insistir Só em um ponto a sua firmeza tinha sido baldada e fora em vencer a repugnância que D Lauriana tinha por sua sobrinha mas como o velho fidalgo sentia talvez doerlhe a consciência nesse objeto deixou sua mulher livre de proceder como lhe parecesse e respeitou os seus sentimentos Faláveis a D Diogo com um ar tão severo disse D Lauriana descendo os degraus da porta e vindo ao encontro de seu marido Davalhe uma ordem e um castigo que ele mereceu respondeu o fidalgo Tratais esse filho sempre com excessivo rigor Sr D Antônio E vós com extrema benevolência D Lauriana Assim como não quero que o vosso amor o perca vejome obrigado a privarvos da sua companhia Jesus Que dizeis Sr D Antônio D Diogo partirá nestes dias para a cidade do Salvador onde vai viver como fidalgo servindo à causa da religião e não perdendo o tempo em extravagâncias Vós não fareis isto Sr Mariz exclamou sua mulher desterrar vosso filho da casa paterna Quem vos fala em desterro senhora Quereis que D Diogo passe toda a sua vida agarrado ao vosso avental e à vossa roca Mas senhor eu sou mãe e não posso viver assim longe de meu filho cheia de inquietações pela sua sorte Entretanto assim há de ser porque assim o decidi Sois cruel senhor Sou justo apenas Foi nesta ocasião que se ouviu o tropel de animais e que Isabel distinguiu a banda de cavaleiros que se aproximava da casa Oh exclamou D Antônio de Mariz eis Álvaro de Sá O moço que já conhecemos o italiano e seus companheiros apearamse subiram a ladeira que conduzia à esplanada e aproximaramse do cavalheiro e de sua mulher a quem cortejaram respeitosamente O velho fidalgo estendeu a mão a Álvaro de Sá e respondeu à saudação dos outros com uma certa amabilidade Quanto a D Lauriana a inclinação da cabeça foi tão imperceptível que seus olhos nem se abaixaram sobre o rosto dos aventureiros Depois de trocada essa saudação o fidalgo fez um sinal a Álvaro e os dois se separaram e foram conversar a um canto do terreiro sentados sobre dois grossos troncos de árvore lavrados toscamente que serviam de bancos D Antônio desejava saber noticias do Rio de Janeiro e de Portugal onde se haviam perdido todas as esperanças de uma restauração que só teve lugar quarenta anos depois com a aclamação do duque de Bragança O resto dos aventureiros ganhou o outro lado da esplanada e foi misturarse com os seus companheiros que saiam ao seu encontro Aí foram recebidos por um tiroteio de perguntas de risadas e ditos chistosos em que tomaram parte depois uns curiosos de novidades outros ávidos de contar o que viram começaram a falar ao mesmo tempo de modo que ninguém se entendia Nesse instante as duas moças apareceram na porta Isabel parou trêmula e confusa Cecília descendo ligeiramente os degraus correu para sua mãe Enquanto ela atravessava o espaço que a separava de D Lauriana Álvaro tendo obtido a permissão do fidalgo adiantouse e com o chapéu na mão foi inclinarse corando diante da moça Eisvos de volta Sr Álvaro disse Cecília com um certo repente para disfarçar o enleio que também sentia depressa tornastes Menos do que desejava respondeu o moço balbuciando quando o pensamento fica o corpo tem pressa de voltarse Cecília corou e fugiu para junto de sua mãe Durante que esta breve cena se passava no meio da esplanada três olhares bem diferentes a acompanhavam e partindo de pontos diversos cruzavamse sobre essas duas cabeças que brilhavam de beleza e mocidade D Antônio de Mariz sentado a alguma distancia considerava aquele lindo par e um sorriso intimo de felicidade expandia o seu rosto venerável Ao longe Loredano um pouco retirado dos grupos dos seus companheiros cravava nos moços um olhar ardente duro incisivo enquanto as narinas dilatadas aspiravam o ar com a delícia da fera que fareja a vítima Isabel a pobre menina fitava sobre Álvaro os seus grandes olhos negros cheios de amargura e de tristeza sua alma parecia coarse naquele raio luminoso e ir curvarse aos pés do moço Nenhuma das testemunhas mudas desta cena percebeu o que se passava além do ponto para onde convergiam os seus olhares à exceção do italiano que viu o sorriso de D Antônio de Mariz e o compreendeu Enquanto isto sucedia D Diogo que se havia retirado voltou a saudar Álvaro e seus companheiros recémchegados o moço tinha ainda no rosto a expressão de tristeza que lhe haviam deixado as palavras severas de seu pai VII A PRECE A tarde ia morrendo O sol declinava no horizonte e deitavase sobre as grandes florestas que iluminava com os seus últimos raios A luz frouxa e suave do ocaso deslizando pela verde alcatifa enrolavase como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas e o ouricuri abria as suas palmas mais novas para receber no seu cálice o orvalho da noite Os animais retardados procuravam a pousada enquanto a juriti chamando a companheira soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia Um concerto de notas graves saudava o pôrdosol e confundiase com o rumor da cascata que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde Era a AveMaria Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha esses raios perdidos que esvazandose pelo rendado da folhagem vão brincar um momento sobre a areia tudo respira uma poesia imensa que enche a alma O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras que reboando pelas longas crastas de verdura vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do ângelus A brisa rogando as grimpas da floresta traz um débil sussurro que parece o último eco dos rumores do dia ou o derradeiro suspiro da tarde que morre Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene e cediam involuntariamente a esse sentimento vago que não é bem tristeza mas respeito misturado de um certo temor De repente os sons melancólicos de um clarim prolongaramse pelo ar quebrando o concerto da tarde era um dos aventureiros que tocava a AveMaria Todos se descobriram D Antônio de Mariz adiantandose até à beira da esplanada para o lado do ocaso tirou o chapéu e ajoelhou Ao redor dele vieram gruparse sua mulher as duas moças Álvaro e D Diogo os aventureiros formando um grande arco de círculo ajoelharamse a alguns passos de distancia O sol com seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo e realçava a beleza daquele basto de antigo cavalheiro Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã meio selvagem em todos aqueles rostos iluminados pelos raios do ocaso respirava um santo respeito Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplála como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece Durante o momento em que o rei da luz suspenso no horizonte lançava ainda um olhar sobre a terra todos se concentravam em um fundo recolhimento e diziam uma oração muda que apenas agitava imperceptivelmente os lábios Por fim o sol escondeuse Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício e um tiro saudou o ocaso Era noite Todos se ergueram os aventureiros cortejaram e foramse retirando a pouco e pouco Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio e curvouse em face de D Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade Depois a família chegandose para junto da porta dispôsse a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia Álvaro em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família o que havia recebido como um favor imenso O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite era o regime caseiro que D Lauriana havia estabelecido na sua habitação Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família durante o dia corriam os matos e ocupavamse com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada onde quando o tempo estava bom as damas vinham também fazer a sua oração da tarde Quanto à família esta conservavase sempre retirada no interior da casa durante a semana o domingo era consagrado ao repouso à distração e à alegria então devase às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio uma caçada ou uma volta em canoa pelo rio Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos como dizia o italiano de chegar ao Paquequer em um sábado e antes das seis horas o moço sonhava com a aventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra Formado o grupo da família a conversa travouse entre D Antônio de Mariz Álvaro e D Lauriana Diogo ficara um pouco retirado as moças tímidas escutavam e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas o que rara vez sucedia Álvaro desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava procurou um pretexto que a chamasse à conversa Esqueciame contarvos Sr D Antônio disse ele aproveitandose de uma pausa um dos incidentes da nossa viagem Qual Vejamos respondeu o fidalgo A coisa de quatro léguas daqui encontramos Peri Inda bem disse Cecília há dois dias que não sabemos noticias dele Nada mais simples replicou o fidalgo ele corre todo este sertão Sim tornou Álvaro mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples O que fazia então Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho D Cecília Meu Deus exclamou a moça soltando um grito Que tens menina perguntou D Lauriana É que ele deve estar morto a esta hora minha mãe Não se perde grande coisa respondeu a senhora Mas eu serei a causa de sua morte Como assim minha filha disse D Antônio Vede vós meu pai respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos conversava quintafeira com Isabel que tem grande medo de onças e brincando disselhe que desejava ver uma viva E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo replicou o fidalgo rindo Não há que admirar Outras tem ele feito Porém meu pai isto é coisa que se faça A onça deve têlo morto Não vos assusteis D Cecília ele saberá defenderse E vós Sr Álvaro por que não o ajudastes a defenderse disse a moça sentida Oh se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal E o moço contou parte da cena passada na floresta Não há dúvida disse D Antônio de Mariz na sua cega dedicação por Cecília quis fazerlhe a vontade com risco de vida É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra o caráter desse índio Desde o primeiro dia que aqui entrou salvando minha filha a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo Credeme Álvaro é um cavalheiro português no corpo de um selvagem A conversa continuou mas Cecília tinha ficado triste não tomou mais parte nela D Lauriana retirouse para dar as suas ordens o velho fidalgo e o moço conversaram até oito horas em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília Não me perguntais pelo que me ordenastes D Cecília disse ele à meia voz Ah sim trouxestes todas as coisas que vos pedi Todas e mais disse o moço balbuciando E mais o quê perguntou Cecília E mais uma coisa que não pedistes Esta não quero respondeu a moça com um ligeiro enfado Nem por vos pertencer já replicou ele timidamente Não entendo É uma coisa que já me pertence dizeis Sim porque é uma lembrança vossa Nesse caso guardaia Sr Álvaro disse ela sorrindo e guardaia bem E fugindo foi ter com seu pai que chegava à varanda e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre que o moço fez conduzir e que continha as suas encomendas Estas consistiam em jóias sedas espiguilhas de linho fitas glacês holandês e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas Vendo essas armas a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo Meu pobre Peri Talvez já não te sirvam nem para te defenderes A ceia foi longa e pausada como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação seria e a mesa um altar que se respeitava Durante a colação Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança Logo que seu pai ergueuse Cecília recolheu ao seu quarto e ajoelhando diante do crucifixo fez a sua oração Depois erguendose foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo e estava deserta e solitária Sentia apertarse o coração com a idéia de que por um gracejo tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida e arriscava todos os dias a sua somente para fazêla sorrir Tudo nesta recâmara lhe falava dele suas aves seus dois amiguinhos que dormiam um no seu ninho e outro sobre o tapete as penas que serviam de ornato ao aposento as peles dos animais que seus pés rogavam o perfume suave de benjoim que ela respirava tudo tinha vindo do índio que como um poeta ou um artista parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira Ficou assim a olhar pela janela muito tempo nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro o jovem cavalheiro elegante tão delicado tão tímido que corava diante dela como ela diante dele De repente a moça estremeceu Tinha visto a luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão e pelas formas esbeltas e flexíveis quando o vulto entrou na cabana não lhe restou a menor dúvida Era Peri Sentiuse aliviada de um grande peso e pôde então entregarse ao prazer de examinar um por um com toda a atenção os lindos objetos que recebera e que lhe causavam um vivo prazer Nisto gastou seguramente meia hora depois deitouse e como já não tinha inquietação nem tristeza adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe fizera recusando o seu mimo VIII TRÊS LINHAS Tudo estava em sossego apenas quando o vento escasseava ouviase do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas A esta hora havia naquele lagar três homens bem diferentes pelo seu caráter pela sua posição e pela sua origem que entretanto tinham uma mesma idéia Separados pelos costumes e pela distancia os seus espíritos quebravam essa barreira moral e física e se reuniam num só pensamento convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existências que mais cedo ou mais tarde hão de cruzarse no seu vértice Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa no meio da qual trescalavam em escudelas de pau algumas peças de caça já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite dos convivas O catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar mas em compensação viamse aos cantos do alpendre grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás onde os aventureiros podiam beber à larga O vício tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens afora uma pequena diferença de sabor havia no fundo de todas elas o álcool que excita o espírito e produz a embriaguez A colação começara há meia hora nos primeiros momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes os beijos dados aos canjirões e o ranger da faca na escudela Depois um dos aventureiros proferiu uma palavra cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa a conversa tornouse uma espécie de coro confuso e discordante Foi no meio desta algazarra que um dos convivas erguendo a voz lançou estas palavras E vós Loredano nada dizeis Estais ai que não há modo de vos ouvir uma palavra Certo acudiu outro Bento Simões diz verdade se não é a fome que vos traz mudo algo tendes misser italiano Voto a Deus Martim Vaz disse um terceiro que são penares por alguma moçoila que andou reqüestando em São Sebastião Tiraivos lá com os vossos penares Rui Soeiro achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez E por que não Vasco Afonso Todos calçamos pelo mesmo sapato em que o aperte mais a uns do que a outros Não julgueis os mais por vós dom namorado homens há que trazem seu pensamento empregado em coisa de mor valia do que requebros e galanteios O italiano conservavase taciturno e deixava que os outros o trouxessem à baila sem darse por achado era fácil de ver que ele seguia com afinco uma idéia que lhe trabalhava no espírito Mas por Deus continuou Bento Simões falainos do que vistes na vossa viagem Loredano apostaria que alguma vos sucedeu Ide com o que vos digo retrucou Rui Soeiro misser italiano está penado de amores E por quem se vos parece perguntaram alguns Ora não custa sabêlo por aquele canjirão de vinho que ai lhe está fronteiro não vedes que olhos que lhe deita Os aventureiros largaramse a rir aplaudindo a lembrança Aires Comes apareceu à porta do saguão Eia rapazes disse ele com uma voz que se esforçava por tornar severa Leva rumor É um dia de chegada sr escudeiro e deveis leválo em conta acudiu Rui Soeiro Aires sentouse e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente dele Olá vós outros gritou ele com a boca cheia para dois aventureiros que se haviam levantado ide encher vosso quarto que já refizestes e os mais esperam sua vez Os dois aventureiros saíram para ir revezar os outros que era costume ficarem de sentinela à noite medida esta necessária naquele tempo Estais hoje muito severo Sr Aires Gomes disse Martim Vaz Aquele que dá as ordens sabe o que faz a nós cumpre obedecer respondeu o escudeiro Ah por que não dizíeis isto logo Pois ficareis agora entendidos boa guarda que talvez breve tenhamos que ver Venha isso acudiu Bento Simões que já me enfastio de atirar às pacas e porcos do mato E em honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de pólvora perguntou Vasco Afonso Tem que saber isso Quem senão os índios nos dão esta folia Loredano ergueu a cabeça Que histórias contais ai Supondes que os índios nos atacarão perguntou ele Oh eis misser italiano que acorda foi preciso cheirarlhe a chamusco exclamou Martim Vaz A presença de Aires Gomes reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros fez com que fossem uns após outros desamparando a mesa e deixassem o escudeiro na companhia dos canjirões e escudelas Loredano levantandose fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões e os três seguiram juntos até ao meio do terreiro o italiano murmuroulhes ao ouvido uma simples palavra Amanhã Depois como se nada se tivesse passado entre eles os dois aventureiros seguiram cada um de seu lado e deixaram Loredano continuar o seu caminho até à beira do precipício Do lado oposto o italiano viu refletirse sobre as árvores o tênue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecília cujas janelas não podia distinguir por causa do ângulo que formava a esplanada Aí esperou Álvaro deixando Cecília voltara triste e sentido da recusa que sofrera embora o consolasse a sua última palavra e sobretudo o sorriso que a acompanhou Não se podia resignar à perda desse prazer infinito com que havia contado de ver nos ornatos da moça uma prenda sua uma lembrança que lhe dissesse que pensava nele Tinha afagado tanto essa idéia tinha vivido tanto tempo dela que arrancála do seu espírito seria um sofrimento cruel Enquanto atravessava o espaço que o separava do seu aposento formulou um projeto e tomou uma resolução Meteu numa pequena bolsa de seda uma caixinha de jóias e envolvendose no seu manto costeou a casa e aproximouse do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecília Também ele viu a luz das janelas se refletir defronte e esperou que a noite se adiantasse e toda a casa dormisse Ao tempo que isto se passava Peri o índio que já conhecemos tinha chegado com o seu fardo tão precioso que não o trocaria por um tesouro No valado que se estendia à beira do rio deixou o seu prisioneiro depois de o ter metido numa espécie de tronco que arranjou curvando um galho de árvore Subiu então à esplanada e foi nesta ocasião que a moça o viu entrar na sua cabana o que porém não pôde distinguir foi a maneira por que saíra quase logo Havia dois dias que não via sua senhora que não recebia dela uma ordem que não adivinhava um desejo seu para satisfazêlo imediatamente O primeiro pensamento do índio foi pois ver Cecília ou ao menos a sua sombra entrando na cabana percebeu como os outros a réstia de luz que coava entre as cortinas da janela Suspendeuse a uma das palmeiras que servia de esteio à choça e por um desses movimentos ágeis que lhe eram tão naturais de um salto segurouse ao galho de um óleo 19 gigante que elevandose sobre a encosta fronteira deitava alguns ramos do lado da casa Durante um momento o índio pairou sobre o abismo balançandose no galho fraco que o sustinha depois equilibrouse e continuou essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gáveas e sobre as enxárcias Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da árvore e escondido pela folhagem aproximouse até um galho que ficava fronteiro das janelas de Cecília cerca de uma braça Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e Álvaro de outro e se colocavam igualmente a alguns passos A princípio Peri só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento Cecília examinava ainda por uma última vez as encomendas que lhe haviam chegado do Rio de Janeiro Nessa muda contemplação o índio esqueceu tudo Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragálo ao menor movimento e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante Era feliz tinha visto sua senhora ela estava alegre contente e satisfeita podia ir dormir e repousar Uma lembrança triste porem o assaltou vendo os lindos objetos que a moça recebera pensou que podia darlhe a sua vida mas que não tinha primores como aqueles para ofertarlhe O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero como para ver se colocado duzentos palmos acima da terra sobre as grimpas da árvore poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília Assim era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes De maneira por que estavam colocados formavam um verdadeiro triângulo cujo centro era a janela frouxamente iluminada Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer É que as paixões no deserto e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa são verdadeiras epopéias do coração IX AMOR As cortinas da janela cerraramse Cecília tinhase deitado Junto da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura de virgem velavam três sentimentos profundos palpitavam três corações bem diferentes Em Loredano o aventureiro de baixa extração esse sentimento era um desejo ardente uma sede de gozo uma febre que lhe requeimava o sangue o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava pela barreira que se elevava entre ele pobre colono e a filha de D Antônio de Mariz rico fidalgo de solar e brasão Para destruir esta barreira e igualar as posições seria necessário um acontecimento extraordinário um fato que alterasse completamente as leis da sociedade naquele tempo mais rigorosas do que hoje era preciso uma dessas situações em face das quais os indivíduos qualquer que seja a sua hierarquia nobres e párias nivelamse e descem ou sobem à condição de homens O aventureiro compreendia isto talvez que o seu espírito italiano já tivesse sondado o alcance dessa idéia em todo o caso o que afirmamos é que ele esperava e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo e uma constância a toda a prova os vinte dias que passara no Rio de Janeiro tinham sido verdadeiro suplício Em Álvaro cavalheiro delicado e cortês o sentimento era uma afeição nobre e pura cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade Sentirse perto de Cecília vêla e trocar alguma palavra a custo balbuciada corarem ambos sem saberem por quê e fugirem desejando encontrarse era toda a história desse afeto inocente que se entregava descuidosamente ao futuro librandose nas asas da esperança Nesta noite Álvaro ia dar um passo que na sua habitual timidez ele comparava quase com um pedido formal de casamento tinha resolvido fazer a moça aceitar malgrado seu o mimo que recusara deitandoo na sua janela esperava que encontrandoo no dia seguinte Cecília lhe perdoaria o seu ardimento e conservaria a sua prenda Em Peri o sentimento era um culto espécie de idolatria fanática na qual não entrava um só pensamento de egoísmo amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação mas para dedicarse inteiramente a ela para cumprir o menor dos seus desejos para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade Ao contrário dos outros ele não estava ali nem por um ciúme inquieto nem por uma esperança risonha arrostava a morte unicamente para ver se Cecília estava contente feliz e alegre se não desejava alguma coisa que ele adivinharia no seu rosto e iria buscar nessa mesma noite nesse mesmo instante Assim o amor se transformava tão completamente nessas organizações que apresentava três sentimentos bem distintos um era uma loucura o outro uma paixão o último uma religião Loredano desejava Álvaro amava Peri adorava O aventureiro daria a vida para gozar o cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar o selvagem se mataria se preciso fosse só para fazer Cecília sorrir Entretanto nenhum desses três homens podia tocar a janela da moça sem correr um risco iminente e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecília Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça de distancia da ribanceira D Antônio de Mariz para defender esta parte do edifício tinha feito construir um respaldo que se abaixava da precinta das janelas até à beira da esplanada era impossível pois caminhar sobre este plano inclinado cuja face lisa e polida não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais firme e o mais seguro Abaixo da janela abriase a rocha cortada a pique e formava um valado profundo coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a todos esses répteis de mil formas que pululam na sombra e na umidade Assim o homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda se por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha seria devorado em um momento pelas cobras e insetos venenosos que enchiam essas grotas e alcantis Havia alguns instantes que a cortina da janela se tinha cerrado apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verdenegro do óleo o quadro da janela O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho onde revia todas as imagens de sua louca paixão estremeceu de repente Na claridade debuxavase uma sombra móbil um homem se aproximava da janela Pálido com os olhos ardentes e os dentes cerrados pendido sobre o precipício seguia as menores evoluções da sombra Viu um braço que se estendia para a janela e a mão que deixava no parapeito um objeto qualquer mas tão pequeno que não se percebia a forma Pela manga larga do gibão ou antes pelo instinto o italiano adivinhou que este braço pertencia a Álvaro e compreendeu o que esta mão havia deitado na janela E não se enganava Álvaro segurandose a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo coseu o corpo à parede inclinando conseguiu realizar o seu intento Depois voltou partilhado entre o temor da ação que praticara e a esperança de que Cecília lhe perdoaria Loredano apenas viu desaparecer a sombra e ouviu os ecos dos passos do moço que se repercutiam surdamente no fundo do precipício sorriu Sua pupila fulva brilhou na treva como os olhos da irara Tirou a sua adaga e cravoua na parede tão longe quanto lhe permitiu a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o ângulo Suspendendose então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximarse da janela à menor indecisão ao menor movimento bastava que o pé lhe faltasse ou que o punhal vacilasse no cimento para precipitarse com a cabeça sobre as pedras Enquanto isto se passava Peri sentado tranqüilamente no galho do óleo e escondido pela folhagem assistia imóvel a toda esta cena Logo que Cecília cerrou as cortinas da janela o índio vira os dois homens que colocados à direita e a esquerda pareciam esperar Esperou também curioso de saber o que se ia passar mas resolvido se fosse preciso a lançarse de um pulo sobre aquele que ousasse fazer a menor violência e a caírem ambos do alto da esplanada Tinha reconhecido Álvaro e Loredano desde muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecília mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita O que podiam querer estes dois homens Que vinham eles fazer ali àquela hora silenciosa da noite O movimento de Álvaro explicoulhe parte do enigma o de Loredano ia fazerlhe compreender o resto Com efeito o italiano que se aproximara da janela conseguiu com um esforço fazer cair o objeto que Álvaro ai tinha deixado no fundo do precipício isto voltou do mesmo modo e retirouse retirouse o prazer dessa vingança simples mas cujo alcance ele previa Peri não se moveu Tinha compreendido com a sua sagacidade natural o amor de um e o ciúme do outro e formulou na sua inteligência selvagem e na sua adoração fanática um pensamento que para ele era muito simples Se Cecília julgasse que isto devia ser assim pouco lhe importava o mais porém se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de tristeza e empanasse um momento o brilho de seus olhos azuis então era diferente O índio sacrificaria tudo antes do que consentir que um pesar anuviasse o rostinho faceiro de sua bela senhora Assim tranqüilizado por esta idéia ganhou a cabana e dormiu sonhando que a lua lhe mandava um raio de sua luz branca e acetinada para dizerlhe que protegesse sua filha na terra E com efeito a lua se elevava sobre a cúpula das árvores e iluminava a fachada do edifício Então quem se aproximasse de uma das janelas que ficavam na extrema do jardim veria na penumbra do portal um vulto imóvel Era Isabel que velava pensativa enxugando de vez em quando uma lágrima que desfiavalhe pela face Pensava no seu amor infeliz na solidão de sua alma tão erma de recordações doces de esperanças queridas Toda essa tarde fora um martírio para ela vira Álvaro falar a Cecília adivinhara quase as suas palavras Há poucos momentos tinha percebido a sombra do moço que atravessara a esplanada e sabia que não era por sua causa que ele passava De vez em quando seus lábios tremiam e deixavam escaparemse algumas palavras imperceptíveis Se eu quisesse Tirava do seio uma redoma de ouro sob cuja tampa de cristal se via um anel de cabelos que se enroscava no estreito aro de metal O que havia dentro desta redoma de tão poderoso de tão forte que justificasse aquela exclamação e o olhar brilhante que iluminava a pupila negra de Isabel Seria um segredo um desses segredos terríveis que mudam de repente a face das coisas e fazem surgir o passado para esmagar o presente Seria algum tesouro inestimável e fabuloso a cuja sedução a natureza humana não devia resistir Seria uma arma poderosa e invencível contra a qual não houvesse defesa possível senão em um milagre da Providência Era o pó sutil do curare o veneno terrível dos selvagens Isabel colou os lábios no cristal com uma espécie de delírio Minha mãe minha mãe Um soluço rompeulhe o seio X AO ALVORECER No dia seguinte ao raiar da manhã Cecília abriu a portinha do jardim e aproximouse da cerca Peri disse ela O índio apareceu à entrada da cabana correu alegre mas tímido e submisso Cecília sentouse num banco de relva e a muito custo conseguiu tomar um arzinho de severidade que de vez em quando quase traiase por um sorriso teimoso que lhe queria fugir dos lábios Fitou um momento no índio os seus grandes olhos azuis com uma expressão de doce repreensão depois disselhe em um tom mais de queixa do que de rigor Estou muito zangada com Peri O semblante do selvagem anuviouse Tu senhora zangada com Peri Por quê Porque Peri é mau e ingrato em vez de ficar perto de sua senhora vai caçar em risco de morrer disse a moça ressentida Ceci desejou ver uma onça viva Então não posso gracejar Basta que eu deseje uma coisa para que tu corras atrás dela como um louco Quando Ceci acha bonita uma flor Peri não vai buscar perguntou o índio Vai sim Quando Ceci ouve cantar o sofrer Peri não o vai procurar Que tem isso Pois Ceci desejou ver uma onça Peri a foi buscar Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse silogismo rude a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade Mas estava resolvida a conservar a sua severidade e ralhar com Peri por causa do susto que lhe havia feito na véspera Isto não é razão continuou ela porventura um animal feroz é a mesma coisa que um pássaro e apanhase como uma flor Tudo é o mesmo desde que te causa prazer senhora Mas então exclamou a menina com um assomo de impaciência se eu te pedisse aquela nuvem E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite Peri ia buscar A nuvem perguntou a moça admirada Sim a nuvem Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça ele continuou Somente como a nuvem não é da terra e o homem não pode tocála Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci Estas palavras foram ditas com a simplicidade com que fala o coração A menina que um momento duvidara da razão de Peri compreendeu toda a sublime abnegação toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta A sua fingida severidade não pôde mais resistir deixou pairar nos seus lábios um sorriso divino Obrigada meu bom Peri Tu és um amigo dedicado mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez Senhora não está mais zangada com Peri Não apesar de que devia estar porque Peri ontem fez sua senhora afligirse cuidando que ele ia morrer E Ceci ficou triste exclamou o índio Ceci chorou respondeu a menina com uma graciosa ingenuidade Perdoa senhora Não só te perdôo mas quero também fazerte o meu presente Cecília correu ao seu quarto e trouxe o rico par de pistolas que havia encomendado a Álvaro Olha Peri não desejava ter umas Muito Pois aqui tens Tu não as deixarás nunca porque são uma lembrança de Cecília não é verdade Oh o sol deixará primeiro a Peri do que Peri a elas Quando correres algum perigo lembrate que Cecília as deu para defenderem e salvarem a tua vida Por que é tua não é senhora Sim porque é minha e quero que a conserves para mim O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um gozo imenso de uma felicidade infinita meteu as pistolas na cinta de penas e ergueu a cabeça orgulhoso como um rei que acabasse de receber a unção de Deus Para ele essa menina esse anjo louro de olhos azuis representava a divindade na terra admirála fazêla sorrir vêla feliz era o seu culto culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem Isabel entrou no jardim a pobre menina tinha velado toda a noite e o seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas dessas lágrimas ardentes que escaldam o seio e requeimam as faces A moça e o índio nem se olharam odiavamse mutuamente era uma antipatia que começara desde o momento em que se viram e que cada dia aumentava Agora Peri Isabel e eu vamos ao banho Peri te acompanha senhora Sim mas com a condição de que Peri há de estar muito quieto e sossegado A razão por que Cecília impunha esta condição só podia bem compreender quem tivesse assistido a uma das cenas que se passavam quando as duas moças iam banharse o que sucedia quase sempre ao domingo Peri com o seu arco companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra sentavase longe à beira do rio numa das pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma árvore e não deixava ninguém aproximarse num raio de vinte passos do lagar onde as moças se banhavam Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse círculo que o índio traçava com o olhar em redor de si Peri na posição sobranceira em que se colocara o percebia imediatamente Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéu ornarse de repente com uma pena vermelha que voava pelos ares sibilando se via uma seta arrebatarlhe o fruto que ele estendia a mão para colher se parava assustado diante de uma longa flecha emplumada que despedida por elevação vinha cairlhe a dois passos da frente como para embargarlhe o caminho e servir de baliza não se admirava Compreendia imediatamente o que isto queria dizer e pelo respeito que todos votavam a D Antônio de Mariz e à sua família arrepiava caminho e voltava lançando uma jura contra Peri que lhe crivara o chapéu e o obrigara a encolher a mão de susto E fazia bem em voltar porque o índio com o seu zelo ardente não duvidaria vazarlhe os olhos para evitar que chegandose à beira do rio visse a moça a banharse nas águas Entretanto Cecília e sua prima tinham o costume de banharse vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que ocultava inteiramente sob a cor escura as formas do corpo deixandolhes os movimentos livres para nadarem Mas Peri entendia que apesar disto seria uma profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu trajo de banho nem mesmo o dele que era seu escravo e por conseguinte não podia ofendêla a ela que era o seu único deus Enquanto porém o índio mantinha assim pela certeza de sua vista rápida e pela projeção das suas flechas esse círculo impenetrável para quem quer que fosse não deixava de olhar com uma atenção escrupulosa a corrente e as margens do rio O peixe que beijava a flor da água e que podia ir ofender a moca uma cobra verde inocente que se enroscava pelas folhas dos aguapés um camaleão que se aquecia ao sol fazendo cintilar o seu prisma de cores brilhantes um sagüi branco e felpudo que se divertia a fazer caretas maliciosas suspendendose pela cauda ao galho de uma árvore tudo quanto podia ir causar um susto à moça o índio fazia fugir se estava longe e se estava perto pregava o animal imóvel sobre o tronco ou sobre o chão Se um ramo arrastado pela corrente passava se um pouco do limo das águas despegavase da margem pedregosa do rio se o fruto de uma sapucaia pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cair o índio veloz como o tiro do seu arco lançavase e retinha o coco no meio da sua queda ou precipitavase na água e apanhava os objetos que boiavam Cecília podia ser ofendida pelo tronco que a correnteza carregava pela fruta que caía podia assustarse com o contato do limo julgando ser uma cobra e Peri não perdoaria a si mesmo a mais leve mágoa que a moça sofresse por falta de cuidado seu Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilância tão constante e infatigável uma proteção tão inteligente e delicada que a moça podia descansar certa de que se sofresse alguma coisa seria porque todo o poder do homem fora impotente para evitar Eis pois a razão por que Cecília recomendava a Peri que estivesse quieto e sossegado é verdade que ela sabia que essa recomendação era sempre inútil e que o índio faria tudo para que uma abelha sequer não viesse beijar os seus lábios vermelhos confundindoos com uma flor de pequiá Quando as duas mocas atravessaram a esplanada Álvaro passeava junto da escada Cecília saudou de passagem com um sorriso ao jovem cavalheiro e desceu ligeiramente seguida por sua prima Álvaro que tinha procurado lerlhe nos olhos e no rosto o perdão de sua loucura da véspera e nada havia percebido que acabasse com o seu receio quis seguir a moça e falarlhe Voltouse para ver se alguém estava ali que reparasse no que ia fazer e deu com o italiano que a dois passos dele o olhava com um dos seus sorrisos sarcásticos Bom dia sr cavalheiro Os dois inimigos trocaram um olhar que se cruzara como laminas de aço que rogassem uma na outra Nesse momento Peri se aproximava lentamente deles carregando uma das pistolas que Cecília lhe havia dado há alguns minutos O índio parou e com um ligeiro sorriso de uma expressão indefinível tomou as pistolas pelo cano e apresentouas uma a Álvaro e outra a Loredano Ambos compreenderam o gesto e o sorriso ambos sentiram que tinham cometido uma imprudência e que o espírito perspicaz do selvagem havia lido nos seus olhos um ódio profundo e talvez a causa desse ódio Voltaramse fingindo não ter visto o movimento Peri levantou os ombros e metendo as pistolas na cinta passou entre eles com a cabeça alta o olhar sobranceiro e acompanhou sua senhora XI NO BANHO Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília perguntava à sua prima Dizeme uma coisa Isabel por que é que tu não falas ao Sr Álvaro Isabel estremeceu Tenho reparado continuou a menina que nem mesmo respondes à cortesia que ele nos faz Que ele te faz Cecília replicou a moça docemente Confessa que não gostas dele Tenslhe antipatia A moça calouse Não falas olha que então vou pensar outra coisa continuou Cecília galanteando Isabel empalideceu e levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que pareciam queimarlhe os lábios Bem sabes que o aborreço Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua prima porque tendo chegado à baixa nesse momento esquecera a conversa e começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva Mas ainda que visse a perturbação da moça e o choque que ela tinha sentido decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo menos ao verdadeiro A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão inocente tão natural que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo que era isto é de um prazer que fazia sorrir e de um enleio que fazia corar Esse amor pois se era amor não podia conhecer o que se passava na alma de Isabel não podia compreender a sublime mentira que os lábios da moça acabavam de proferir Quanto a Isabel temendo trair o seu segredo tinha arrancado do seu coração cheio de amor essa palavra de ódio que para ela era quase uma blasfêmia Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma esse mistério essa ignorância que envolvia o seu amor e o escondia a todos os olhos tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível Podia assim fitar horas e horas o moço sem que ele o percebesse sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante podia reverse em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a fizesse sofrer O sol vinha nascendo O seu primeiro raio espreguiçavase ainda pelo céu anilado e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a terra e surpreendia as sombras indolentes que dormiam sob as copas das árvores Era a hora em que o cacto a flor da noite fechava o seu cálice cheio das gotas de orvalho com que destila o seu perfume temendo que o sol crestasse a alvura diáfana de suas pétalas Cecília com a sua graça de menina travessa corria sobre a relva ainda úmida colhendo uma gracíola azul que se embalançava sobre a haste ou um malvaísco que abria os lindos botões escarlates Tudo para ela tinha um encanto inexprimível as lágrimas da noite que tremiam como brilhantes das folhas das palmeiras a borboleta que ainda com as asas entorpecidas esperava o calor do sol para reanimarse a viuvinha que escondida na ramagem avisava o companheiro que o dia vinha raiando tudo lhe fazia soltar um grito de surpresa e de prazer Enquanto a menina brincava assim pela várzea Peri que a seguia de longe parou de repente tomado por uma idéia que lhe fez correr pelo corpo um calafrio lembrarase do tigre De um pulo sumiuse numa grande moita de arvoredo que se elevava a alguns passos ouviuse um rugido abafado um grande farfalhar de folhas que se espedaçavam e o índio apareceu Cecília tinhase voltado um pouco trêmula Que é isto Peri Nada senhora E assim que prometeste estar quieto Ceci não se há de zangar mais Que queres tu dizer Peri sabe respondeu o índio sorrindo Na véspera tinha provocado uma luta espantosa para domar e vencer um animal feroz e deitálo submisso e inofensivo aos pés da moça julgando que isso lhe causava um prazer Agora estremecendo com o susto que sua senhora podia sofrer destruíra em um instante essa ação de heroísmo sem proferir uma palavra que a revelasse Bastava que ele soubesse o que tinha feito e o que todos deviam ignorar bastava que sua alma sentisse o orgulho da nobre dedicação que se expandia no sorriso de seus lábios As moças que estavam bem longe de saber até que ponto tinha chegado a loucura de Peri e que não julgavam possível que um homem pudesse fazer o que ele tinha feito não compreenderam nem a frase nem o sorriso Cecília tinha chegado a uma latada de jasmineiros que havia à borda dágua e que lhe servia de casa de banho era um dos trabalhos do índio que o havia arranjado com aquele cuidado e esmero que punha em satisfazer as vontades da menina Peri já tinha ganho a margem do rio e estava longe Isabel sentouse na relva Então afastando as ramas dos jasmineiros que ocultavam inteiramente a entrada Cecília penetrou naquele pequeno pavilhão de verdura e examinou se as folhas estavam bem embastidas se não havia alguma fresta por onde o olhar do dia penetrasse A inocente menina tinha vergonha até do raio de luz que podia vir espiar o tesouros de beleza que ocultava a cambraia de suas roupagens Assim foi depois desse exame escrupuloso e ainda corando de si mesma que começou o seu vestuário de banho Mas quando o corpinho da anágua caindo descobriu suas alvas espáduas e seu colo paro e suave a menina quase morreu de pejo e de susto Um passarinho escondido entre as folhas um gárrulo travesso e malicioso gritara distintamente Bemtevi Cecília riuse do susto que tivera e acabou o seu vestuário de banho que a cobria toda deixando apenas nus os braços e o pezinho de menina Atirouse à água como um passarinho Isabel que a acompanhara por comprazer ficou sentada à beira do rio Como Cecília estava bela nadando sobre as águas límpidas da corrente com seus cabelos louros soltos e os braços alvos que se curvavam graciosamente para imprimir ao corpo um doce movimento Parecia uma dessas garças brancas ou colhereiras de rósea cor que deslizam mansamente à flor do lago nas tardes serenas espelhandose no cristal das águas Às vezes a linda menina se deitava de braços e sorrindo ao céu azul ia levada pela corrente ou perseguia as jaçanãs e marrecas que fugiam diante dela Outras vezes Peri que estava distante do lado superior do rio colhia alguma flor parasita que deitava sobre um barquinho feito de uma casca de pau e que vinha trazido pela correnteza A menina perseguia o barquinho a nado apanhava a flor e ia oferecêla na pontinha dos dedos a Isabel que desfolhandoa tristemente murmurava as palavras cabalísticas com que o coração procura iludirse Em vez porém de consultar o presente perguntava o futuro porque sabia que o presente não tinha esperanças para ela e se a flor dissesse o contrário mentia Havia meia hora que Cecília estava no banho quando Peri que colocado sobre uma árvore não deixava de lançar o olhar ao redor de si viu na margem oposta as guaximas se agitarem A ondulação produzida nos arbustos foise estendendo como um caracol e aproximandose do lagar onde a moça se banhava até que parou detrás de umas grandes pedras que havia à beira do rio Do primeiro lanço de olhos o índio conheceu que o largo sulco traçado entre as hastes verdes do arvoredo não podia deixar de ser produzido por um animal de grande corpulência Seguiu rapidamente pelos ramos das árvores atravessou o rio sobre essa ponte aérea e conseguiu escondido pelas folhas colocarse perpendicularmente ao lagar onde ainda se fazia sentir a oscilação dos arbustos Viu então sentados entre as guaximas dois selvagens mal cobertos por uma tanga de penas amarelas que com o arco esticado e a flecha a partir esperavam que Cecília passasse diante da fresta que formavam as pedras para despedirem o tiro E a menina descuidada e tranqüila já tinha estendido o braço e ferindo a água passava sorrindo por diante da morte que a ameaçava Se se tratasse de sua vida Peri teria sanguefrio mas Cecília corria um perigo e portanto não refletiu não calculou Deixouse cair como uma pedra do alto da árvore as duas flechas que partiam uma cravouselhe no ombro a outra rogandolhe pelos cabelos mudou de direção Ergueuse então e sem mesmo darse ao trabalho de arrancar a seta de um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora e despedaçou a cabeça dos selvagens Ouviramse dois gritos de susto que partiam da margem oposta e quase logo a voz trêmula e colérica de Cecília que chamava Peri Ele beijou as pistolas ainda fumegantes e ia responder quando a dois passos surgiu de entre a touça o vulto de uma índia que sumiuse ligeiramente no mato Enfiou um olhar pela fresta e julgando Cecília já fora do banho e em lugar seguro lançouse atrás da índia a que já lhe levava um grande avanço Uma larga fita vermelha que escapava da ferida tingia a sua alva túnica de algodão Peri sentiuse vacilar de repente e apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava Foi um momento de luta terrível entre o espírito e a matéria entre a força da vontade e o poder da natureza O corpo desfalecia os joelhos se dobravam e Peri erguendo os braços como para agarrarse à cúpula das árvores estorcendo os músculos para manterse em pó lutava debalde com a fraqueza que se apoderava dele Debateuse um momento contra a poderosa gravitação que o vergava para a terra mas era homem e tinha de ceder à lei da criação Entretanto sucumbindo o valente índio resistia sempre e vencido parecia querer lutar ainda Não caiu não quando a força lhe faltou de todo foise lentamente retraindo e tocou a terra com os joelhos Mas então lembrouse de Cecília de sua senhora a quem tinha de vingar e para quem devia viver a fim de salvála e de velar sobre ela Fez um esforço supremo contraindose conseguiu reerguerse deu dois passos vacilantes girou no ar e foi bater de encontro a uma árvore com a qual se abraçou convulsivamente Era uma cabuíba de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta e de cujo tronco cinzento borbulhava um óleo cor de opala que desfiava em lágrimas O suave aroma que recendia dessas gotas fez o índio abrir os olhos amortecidos que se iluminaram de uma brilhante irradiação de felicidade Colou ardentemente os lábios no tronco e sorveu o óleo que entrou no seu seio como um bálsamo poderoso Sentiuse renascer Estendeu o óleo sobre a ferida estancou o sangue e respirou Estava salvo XII A ONÇA Voltemos a casa Loredano depois do movimento de Peri tinha acompanhado com os olhos a Álvaro o qual seguia pela borda da esplanada para ver Cecília que dirigiase ao rio Apenas o moço dobrou o ângulo que formava o rochedo o italiano desceu a ladeira rapidamente e meteuse pelo mato Poucos instantes se tinham passado quando Rui Soeiro apareceu na esplanada ganhou a baixa e entranhouse por sua vez na floresta Bento Simões imitouo com pequeno intervalo e guiandose por alguns talhos frescos que viu nas árvores tomou a mesma direção O pátio ficou deserto Decorreu cerca de meia hora a casa tinha aberto todas as suas janelas para receber o ar paro da manhã e as emanações saudáveis dos campos um ligeiro penacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé anunciando que os trabalhos caseiros haviam começado De repente ouviuse um grito no interior da habitação todas as portas e janelas do edifício fecharamse com um estrépito e uma rapidez como se um inimigo caísse de assalto Pela fresta de uma janela entreaberta apareceu o rosto de D Lauriana pálida e com os cabelos sem estarem riçados o que era uma coisa extraordinária Aires Gomes O escudeiro Chamem Aires Gomes Que venha já gritou a dama A janela fechouse de novo com o ferrolho A personagem que já conhecemos pouco tardou e atravessando a esplanada dirigiuse à casa sem compreender a razão por que àquela hora com o sol alto ainda toda a habitação parecia dormir Fizestesme chamar disse ele chegandose à janela Sim estais armado perguntou D Lauriana por detrás da porta Tenho a minha espada mas que novidade há A fisionomia decomposta de D Lauriana apareceu de novo na fresta da janela A onça Aires Gomes A onça O escudeiro deu um salto prodigioso julgando que o animal de que se falava ia saltarlhe ao cangote e sacou da espada pondose em guarda A dama vendo o movimento do escudeiro supôs que a onça atiravase à janela e caiu de joelhos murmurando uma oração ao santo advogado contra as feras Alguns minutos se passaram assim D Lauriana rezando e Aires Gomes rodando no pátio como um corrupio com receio de que a onça não o atacasse pelas costas o que além de ser uma vergonha para um homem de armas da sua têmpera seria um pouco desagradável para sua saúde Por fim de pulo em pulo o escudeiro conseguiu ganhar de novo a parede do edifício e encostarse nela o que o tranqüilizou completamente pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar Então batendo com a folha da espada na ombreira da janela disse em voz alta Explicarmeeis que onça é essa de que falais Sra D Lauriana ou estou cego ou não vejo aqui sombra de semelhante animal Estais bem certo disso Aires Gomes disse a dama reerguendose Se estou certo Asseguraivos com os vossos próprios olhos E verdade Mas em alguma parte há de estar E por que quereis vós à fina força que aqui esteja uma onça Sra D Lauriana disse o escudeiro um tanto impacientado Pois não sabeis exclamou a dama O quê senhora Aquele bugre endemoninhado não se lembrou de trazer ontem uma onça viva para a casa Quem o perro do cacique E quem mais senão aquele cão tinhoso É das que ele costuma fazer Viuse já uma coisa semelhante Aires Gomes Mas a culpa não tem ele Quero ver se o Sr Mariz ainda teima em guardar essa boa jóia E que é feito da fera Sra D Lauriana Algures deve estar Procuraia Aires corram tudo matemna e tragamme aqui É dito e feito respondeu o escudeiro correndo tanto quanto lhe permitiam as suas botas de couro de raposa Com pouca demora cerca de vinte aventureiros armados desceram da esplanada Aires Gomes marchava na frente com um enorme chuço na mão direita a espada na mão esquerda e uma faca atravessada nos dentes Depois de percorrerem quase todo o vale e baterem o arvoredo voltavam quando o escudeiro estacou de repente e gritou Eila rapazes Fogo antes que faça o pulo Com efeito por entre a ramagem das árvores viase a pele negra e marchetada do tigre e os olhos felinos que brilhavam com o seu reflexo pálido Os aventureiros levaram o mosquete à face mas no momento de puxarem o gatilho largaram todos uma risada homérica e abaixaram as armas Que é lá isso Têm medo E o destemido escudeiro sem se importar com os outros mergulhou por sob as árvores e apresentouse arrogante em face do tigre Aí porém caiulhe o queixo de pasmo e de surpresa A onça embalavase a um galho suspensa pelo pescoço e enforcada pelo laço que apertandose com o seu próprio peso a estrangulara Enquanto viva um só homem bastara para trazêla desde o Paraíba até à floresta onde tinha sido caçada e da floresta até àquele lugar onde havia expirado Era depois de morta que fazia todo aquele espalhafato que punha em armas vinte homens valentes e corajosos e produzia uma revolução na casa de D Lauriana Passado o primeiro momento de admiração Aires Gomes cortou a corda e arrastando o animal foi apresentálo à dama Depois que de fora lhe asseguraram que o tigre estava bem morto entreabriuse a porta e D Lauriana ainda toda arrepiada olhou estremecendo o corpo da fera Deixeo ai mesmo O Sr D Antônio há de vêlo com seus olhos Era o corpo de delito sobre o qual pretendia basear o libelo acusatório que ia fulminar contra Peri Por diferentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a expulsar o índio que ela não podia sofrer e cuja presença bastava para causarlhe um faniquito Mas todos os seus esforços tinham sido baldados o fidalgo com a sua lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri e via nele embora selvagem um homem de sentimentos nobres e de alma grande Como pai de família estimava o índio pela circunstância a que já aludimos de ter salvado sua filha circunstância que mais tarde se explicará Desta vez porém D Lauriana esperava vencer e julgava impossível que seu marido não punisse severamente esse crime abominável de um homem que ia ao mato amarrar uma onça e trazêla viva para casa Que importava que ele tivesse salvado a vida de uma pessoa se punha em risco a existência de toda a família e sobretudo a dela Terminava esta reflexão justamente no momento em que D Antônio de Mariz assomava à porta Dirmeeis senhora que rumor é este e qual a causa Aí a tendes exclamou D Lauriana apontando para a onça com um gesto soberbo Lindo animal disse o fidalgo adiantandose e tocando com o pé as presas do tigre Ah achais lindo Inda mais achareis quando souberdes quem o trouxe Deve ter sido um hábil caçador disse D Antônio contemplando a fera com esse prazer de montearia que era um dom dos fidalgos daquele tempo não tem o sinal de uma só ferida E obra daquele excomungado caboclo Sr Mariz respondeu D Lauriana preparandose para o ataque Ah exclamou o fidalgo rindo é a caça que Peri ontem perseguia e de que nos falou Álvaro Sim e que trouxe viva como se fosse alguma paca Ah trouxe viva Mas não vedes que é impossível Como impossível se Aires Gomes vem de acabála agora mesmo Aires Gomes quis retrucar mas a dama impôslhe silêncio com um gesto O fidalgo curvouse e segurando o animal pelas orelhas ergueuo ao passo que examinava o corpo para ver se lhe descobria alguma bala notou que tinha as patas e as mandíbulas ligadas É verdade murmurou ele devia estar viva há coisa de uma hora ainda conserva o calor D Lauriana deixou que seu marido se fartasse de contemplar o animal certa de que as reflexões que esta vista produziria não podiam deixar de ser favorável ao seu plano Quando julgou que tinha chegado o momento deu dois passos arranjou a cauda do seu vestido e dando um certo descaído ao corpo dirigiuse a D Antônio Bom é que vejais Sr Mariz que nunca me iludo Que de vezes vos hei dito que fazíeis mal em conservar esse bugre Não queríeis acreditar tínheis um fraco inexplicável pelo pagão Pois bem A dama tomou um tom oratório e acentuou a palavra com um gesto enérgico apontando para o animal morto Aí tendes o pago Toda a vossa família ameaçada Vós mesmo que podíeis sair desapercebido vossa filha que ignorando o perigo que corria foi banharse e podia a esta hora estar pasto de feras O fidalgo estremeceu à idéia do perigo que correra sua filha e ia precipitarse mas ouviu um doce murmúrio de vozes que parecia um chilrear de sais eram as duas moças que subiam a ladeira D Lauriana sorriase do seu triunfo E se fosse só isto continuou ela Porém não pára aqui amanhã vereis que nos traz algum jacaré depois uma cascavel ou uma jibóia enchernosá a casa de cobras e lacraus Seremos aqui devorados vivos porque a um bugre arrenegado deulhe na cabeça fazer as suas bruxarias Exagerais muito também D Lauriana É certo que Peri fez uma selvajaria mas não há razão para que receemos tanto Merece uma reprimenda lha darei e forte Não continuará Se o conhecêsseis como eu Sr Mariz É bugre e basta Podeis ralharlhe quanto quiserdes ele o fará mesmo por pirraça Prevenções vossas que não partilho A dama conheceu que ia perdendo terreno e resolveu dar o golpe decisivo amaciou a voz e tomou um tom choroso Fazei o que vos aprouver Sois homem e não tendes medo de nada Mas eu continuou arrepiandose não poderei mais dormir só com a idéia de que uma jararaca sobeme à cama de dia a todo momento julgarei que algum gato montês vai saltarme pela janela que a minha roupa está cheia de lagartas de fogo Não há forças que resistam a semelhante martírio D Antônio começou a refletir seriamente sobre o que dizia sua mulher e a pensar no semnúmero de faniquitos desmaios e arrufos que ia produzir o terror pânico justificado pelo fato do índio contudo conservava ainda a esperança de conseguir acalmála e dissuadila D Lauriana espiava o efeito do seu último ataque Contava vencer XIII REVELAÇÃO Isabel e Cecília que voltavam do banho conversando aproximaramse da porta não sem algum susto do animal susto que se desfez com o sorriso do velho fidalgo revendose na beleza de sua filha Com efeito Cecília estava nesse momento de uma formosura que fascinava Tinha os cabelos ainda úmidos dos quais se escapava de vez em quando um aljôfar que ia perderse na covinha dos seios cobertos pelo linho do roupão a pele fresca como se ondas de leite corressem pelos seus ombros as faces brilhantes como dois cardos rosas que se abrem ao pôrdosol As duas meninas falavam com alguma vivacidade mas ao aproximaremse da porta Cecília que ia um pouco adiante voltouse para sua prima na pontinha dos pés e com um arzinho petulante levou o dedo aos lábios recomendando silêncio Sabes Cecília que tua mãe está muito zangada com Peri disse D Antônio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijandoa na fronte Por quê meu pai Fez ele alguma coisa Uma das suas e de que já sabes parte E eu vou contarte o resto atalhou D Lauriana tocando com a mão o braço de sua filha E de fato apresentou com as cores mais negras e com a ênfase mais dramática não só o risco iminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira mas os perigos que ameaçavam ainda a paz e sossego da família Referiu que se por um milagre a sua caseira não tivesse há coisa de uma hora chegado a esplanada e visto o índio fazendo partes diabólicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa todos àquela hora estariam defuntos Cecília empalideceu lembrandose do descuido e alegria com que atravessara o vale e se banhara Isabel conservouse calma mas seus olhos brilhavam Assim concluiu peremptoriamente D Lauriana não é concebível que continuemos com semelhante praga em casa Que dizeis minha mãe exclamou Cecília assustada pretendeis mandálo embora Sem dúvida essa casta de gente que nem gente é só pode viver bem nos matos Mas ele nos ama tanto Tem feito tanto por nós não é verdade meu pai disse a menina voltandose para o fidalgo D Antônio respondeu à sua filha por um sorriso que a sossegou Vós ralhareis com ele meu pai eu ficarei agastada continuou Cecília e ele se emendará e não fará mais outra E a de há pouco replicou Isabel dirigindose a Cecília D Lauriana que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças apesar da repugnância que sentia por Isabel conheceu que tinha nela um aliado e dirigiulhe a palavra o que sucedia uma vez por semana Chegate menina o que é que dizes ter acontecido há pouco É também um perigo que correu Cecília Qual minha mãe foi mais susto de Isabel do que outra coisa Susto sim mas pelo que vi Contame isso e tu Cecília fica ai sossegada A menina pelo respeito que tinha a sua mãe não se animou a dizer mais uma palavra porém aproveitandose do movimento que fez D Lauriana ao voltarse para ouvir a Isabel abanou a cabeça à sua prima pedindolhe que nada dissesse A moça fez que não viu o gesto e respondeu à sua tia Cecília estava se banhando e eu tinha ficado à beira do rio daí a algum tempo vejo Peri que passava ao longe pelo galho de uma árvore Ele sumiuse e de repente uma seta partida daquele lugar veio cair a dois passos de minha prima Ouça cá Sr Mariz exclamou D Lauriana ouça as estripulias do capeta No mesmo instante continuou Isabel ouvimos dois tiros de pistola que ainda mais nos assustaram porque decerto foram apontados também para nosso lado Senhor Deus É pior do que uma judiaria Mas quem deu pistolas a esse bugio Fui eu minha mãe respondeu timidamente Cecília Melhor seria que rezasses as tuas contas Era bemfeito que com elas mesmo Senhor Deus perdoaime D Antônio tinha ouvido as palavras de Isabel apesar de conservarse a alguma distancia o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave Fez um ligeiro aceno a Cecília e afastouse com ela em ar de quem passeava pela esplanada O que diz tua prima é verdade É meu pai mas estou certa que Peri não o fez por maldade Contudo replicou o fidalgo isto pode renovarse por outro lado tua mãe está atemorizada assim o melhor é afastálo Ele vai sentir muito E eu e tu também porque o estimamos mas não seremos ingratos eu pagarei a tua e a minha divida de gratidão deixa isto ao meu cuidado Sim meu pai exclamou a menina com um olhar úmido de reconhecimento e de admiração Sim Vós que sabeis compreender tudo que é nobre Como tu minha Cecília respondeu o fidalgo acariciandoa Oh eu aprendi no vosso coração e nas vossas menores ações D Antônio abraçoua Ah tenho uma coisa a pedirvos Dize há muito que não me pedes nada e eu já tenho queixa disso Mandareis conservar este animal Sim Desde que o desejas Será uma lembrança que teremos de Peri Para ti que para mim a melhor lembrança és tu Se não fosse ele podia eu agora apertarte nos meus braços Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar que ele se vai É natural minha filha as lágrimas são um bálsamo que Deus deu à fraqueza da mulher e que negou à força do homem O fidalgo separouse de sua filha e chegouse à porta onde se achavam ainda sua mulher Isabel e Aires Gomes Que decidistes Sr D Antônio perguntou a dama Decidi fazervos a vontade para sossego vosso e descanso meu Hoje mesmo ou amanhã Peri deixará esta casa mas enquanto ele aqui estiver eu não quero disse carregando ligeiramente sobre aquele monossílabo que se lhe diga uma palavra sequer de desagrado Peri sai desta casa porque lho peço e não porque isto sejalhe ordenado por alguém Entendeis minha mulher D Lauriana que compreendia o que havia de energia e resolução naquela imperceptível entonação dada pelo fidalgo a uma simples frase inclinou a cabeça Incumbome de falar eu mesmo a Peri Dirlheás de minha parte Aires Gomes que venha ter comigo O escudeiro inclinouse o fidalgo que se ia retirando voltouse Ah esqueciame Mandarás encher este lindo animal que desejo conservar será uma curiosidade para o meu gabinete de armas D Lauriana fez à sorrelfa uma careta de nojo E servirá para que minha mulher se habitue com sua vista e tenha menos medo de onças D Antônio afastouse A dama pôde então ir riçar os seus cabelos e preparar o seu toucado domingueiro tinha alcançado uma importante vitoria Peri ia finalmente ser expulso dessa casa onde na sua opinião nunca devera ter entrado Enquanto isto passava Cecília ao separarse de seu pai voltara o canto da casa para entrar no jardim e encontrara Álvaro que passeava inquieto e pensativo D Cecília disse o moço Oh deixaime Sr Álvaro respondeu Cecília sem parar Em que vos ofendi eu para que me trateis assim Desculpaime estou triste em nada me ofendestes É que quando se cometeu uma falta Uma falta perguntou a menina admirada Sim respondeu o moço abaixando os olhos E que falta cometestes vós Sr Álvaro Desobedecivos Ah é grave disse a moça com um meio sorriso Não zombeis D Cecília Se soubésseis que inquietações isto me tem feito passar Arrependome mil vezes do que pratiquei e contudo pareceme que era capaz de praticálo de novo Mas Sr Álvaro esqueceis que falais de uma coisa que ignoro sei apenas que se trata de uma desobediência Lembraivos que ontem me mandastes guardar um objeto que Sim atalhou a moça corando um objeto que Que vos pertencia e que eu contra vontade vossa restitui Como que dizeis Oh perdoai foi uma ousadia mas Mas enfim eu não entendo nem uma palavra de tudo isto exclamou a moça com um movimento de impaciência Álvaro vencendo enfim o seu acanhamento contou rapidamente o que tinha feito na véspera à noite Cecília ouvindoo iase tornando séria Sr Álvaro disse ela num tom de exprobação fizestes mal em praticar semelhante ação muito mal Que ninguém o saiba ao menos Eu juro pela minha honra Não basta vis mesmo desfareis o que fizestes Não abrirei aquela janela enquanto houver ali um objeto que não me veio de meu pai e em que não posso tocar Senhora balbuciou o moço pálido e abatido Cecília levantou os olhos e viu no rosto de Álvaro tanta amargura e desespero que sentiuse comovida Não me acuseis do que sucede disse ela com a voz meiga a culpa é vossa Eu o sinto e não me queixo Bem vistes que não podendo aceitar pedi que a conservásseis como uma lembrança Oh eu a conservarei ainda ela me ensinará a expiar a minha falta e ma recordará sempre Será agora uma triste recordação E possoas eu ter alegres Quem sabe disse Cecília desentrançando dos seus cabelos louros um jasmim é tão doce esperar Voltandose para esconder o rubor de suas faces Cecília viu perto a Isabel que devorava esta cena com um olhar ardente A menina soltou um grito de susto e entrou rapidamente no jardim Álvaro apanhou no ar a pequena flor que se escapara dos dedos de Cecília e beijoua julgando que ninguém ali estava Quando o cavalheiro deu com os olhos na moça ficou tão perturbado que deixou cair o jasmim sem sentir Isabel apanhouo e apresentandoo a Álvaro disse com um acento de voz inimitável É também uma restituição Álvaro empalideceu A moça trêmula passou diante dele e entrou no quarto de sua prima Cecília vendo chegar Isabel corou e não se animou a levantar os olhos lembrandose do que ela tinha visto e ouvido pela primeira vez a inocente menina conhecia que havia na sua pura afeição alguma coisa que se escondia aos olhos dos outros Isabel entrando no aposento da prima ao qual fora arrastada por um sentimento irresistível arrependerase imediatamente a perturbação que sentia era tão grande que temeu trairse encostouse no leito defronte de Cecília muda e com os olhos cravados no chão Assim passouse um longo intervalo depois as duas moças quase ao mesmo tempo ergueram a cabeça e lançaram um olhar para a janela seus olhos se encontraram e ambas coraram ainda mais Cecília revoltouse a menina alegre e travessa que conservava num cantinho do coração sob os risos e as graças o germe da firmeza de caráter que distinguia seu pai sentiuse ofendida por se ver obrigada a corar de vergonha diante de outrem como se tivesse cometido uma falta Revestiuse de coragem e tomou uma resolução cuja energia se desenhava em um movimento imperceptível das sobrancelhas Isabel abre esta janela A moça estremeceu como se uma faisca elétrica tivesse abalado o seu corpo hesitou mas por fim atravessou o aposento Dois olhares ávidos ardentes caíram sobre a janela no momento em que se abriu Nada havia ali A emoção que teve Isabel foi tão forte que involuntariamente voltouse para sua prima soltando uma exclamação de prazer sua fisionomia iluminouse com um desses reflexos divinos que parecem descer do céu sobre a cabeça da mulher que ama Cecília olhava sua prima sem compreendêla mas a pouco e pouco a admiração e o espanto desenharamse no semblante da menina Isabel A moça caiu de joelhos aos pés de Cecília Tinhase traído XIV A ÍNDIA Peri apenas sentiu voltaremlhe as forças continuou a sua marcha através da floresta Por muito tempo seguiu as pegadas da índia pelo meio do mato com uma rapidez e uma certeza incríveis para quem não conhecer a facilidade com que os selvagens percebem os mais fracos vestígios que deixam as pisadas de um animal qualquer Um ramo quebrado o capim abatido as folhas secas espalhadas e partidas um galho que ainda se agita as pérolas do orvalho desfeitas são aos seus olhos exercitados o mesmo que uma linha traçada na floresta e que eles seguem sem hesitação Uma razão havia para que Peri se encarniçasse assim em perseguir aquela índia inofensiva e a fazer esforços inauditos a fim de agarrála Para bem compreender esta razão é necessário conhecer alguns acontecimentos que se haviam passado nos últimos dias pelas vizinhaças do Paquequer No fim da lua das águas uma tribo de Aimorés descera das eminências da Serra dos Órgãos para fazer a colheita dos frutos e preparar os vinhos bebidas e diversos alimentos de que costumava fazer provisão Uma família dessa tribo trazida pela caça aparecera há dias nas margens do Paraíba compunhase de um selvagem sua mulher um filho e uma filha Esta última era uma bela índia cuja posse se disputavam todos os guerreiros Aimorés seu pai o chefe da tribo sentia o orgulho de ter uma filha tão formosa como a mais linda seta do seu arco ou a mais vistosa pena do seu cocar Estamos no domingo Na sextafeira eram dez horas da manhã Peri atravessava a mata imitando alegremente o canto do saixê cujas notas sibiladas ele traduzia pelo doce nome de Ceci Ia então em procura desse animal que tão importante papel representa nesta história especialmente depois de morto como não o satisfazia qualquer pequeno jaguar assentara buscar nos seus próprios domínios um dos reis das grandes florestas que corriam ao longo do Paraíba Cecília havia dito uma palavra e ele que não discutia os desejos de sua senhora tomara o seu arco e seu clavinote e se tinha posto a caminho Chegava a um pequeno regato quando um cãozinho felpudo saiu do mato e logo depois uma índia que deu dois passos e caiu ferida por uma bala Peri voltouse para ver donde partia o tiro e reconheceu D Diogo de Mariz que se aproximava lentamente acompanhado por dois aventureiros O moço ia atirar a um pássaro e a índia que passava nesse momento recebera a carga da espingarda e caíra morta O cãozinho lançouse para sua senhora Uivando lambendolhe as mãos frias e rogando a cabeça pelo corpo ensangüentado como procurando reanimála D Diogo apoiado sobre o arcabuz volvia um olhar de piedade sobre essa moça vitima de um capricho de caçador que não desejava perder a sua pontaria Quanto a seus companheiros riamse do acontecimento e divertiamse a fazer comentários sobre a qualidade de caça que o cavalheiro tinha escolhido De repente o cãozinho que acariciava sua senhora morta ergueu a cabeça farejou o ar e partiu como uma flecha Peri que tinha sido testemunha muda desta cena aconselhou a D Diogo que se recolhesse à casa por prudência e continuou a sua caminhada O espetáculo que acabava de presenciar o entristecera lembrouse de sua tribo de seus irmãos que ele havia abandonado há tanto tempo e que talvez àquela hora eram também vitimas dos conquistadores de sua terra onde outrora viviam livres e felizes Tendo andado cerca de meia légua avistou ao longe um fogo na mata ao redor estavam sentados dois selvagens e uma índia O mais velho de estatura gigantesca engastava as presas longas e aguçadas da capivara nas pontas de canas silvestres e afiava numa pedra essa arma terrível O mais moço enchia de pequenas sementes pretas e vermelhas um fruto oco ornado de penas e preso a um cabo de dois palmos de comprimento A mulher que ainda era moça cardava uma porção de algodão cujos flocos alvos e puros caiam sobre uma grande folha que tinha no regaço Junto do fogo havia um pequeno vaso vidrado com brasas no qual a índia de vez em quando deitava umas grandes folhas secas que levantavam grossos novelos de fumo Então os dois índios por meio de uma taboca aspiravam as baforadas deste fumo até que os olhos lhes choravam depois continuavam o seu trabalho No momento em que Peri examinava de longe esta cena o cãozinho saltava no meio do grupo o animal apenas respirou da corrida em que vinha puxou com os dentes a trota de penas do índio mais moço que o atirou a quatro passos com um empurrão Aproximouse então da índia repetiu o mesmo movimento e como fosse mal acolhido ainda saltou sobre o algodão e mordeuo a mulher tomouo pela coleira de frutos que trazia ao pescoço sacudiuo pelas costas e arranjou as suas pastas mas estavam tintas de sangue Examinou com inquietação o animal e não o vendo ferido lançou os olhos ao redor de si e soltou um grito rouco e gutural os dois índios ergueram a cabeça interrogando com os olhos a causa dessa exclamação Por toda resposta a índia mostrou o sangue que cobria o animal e pronunciou com a voz cheia de aflição uma palavra de uma língua desconhecida e que Peri não entendeu O índio mais moço saltou pela floresta como um campeiro atrás do cãozinho que lhe servia de guia o velho e a mulher o seguiram de perto Peri compreendeu perfeitamente o que se passava e seguiu seu caminho pensando que os colonos já deviam àquela hora estar fora do alcance dos selvagens Era isto o que o índio tinha visto o que ele ignorava o acontecimento do banho lhe revelara claramente Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua filha e reconhecido o sinal da bala por muito tempo procuraram debalde as pisadas dos caçadores até que no dia seguinte a cavalgata que passava serviulhes de guia Toda a noite rondaram em torno da habitação e nessa manhã vendo sair as duas moças resolveram vingarse com a aplicação dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que reconheciam Tinham morto sua filha era justo que matassem também a filha do seu inimigo vida por vida lágrima por lágrima desgraça por desgraça Como pretenderam realizar a sua vingança e o fim que tiveram já sabemos os dois selvagens dormiam para sempre nas margens do Paquequer sem que uma mão amiga lhes viesse dar sepultura Agora é fácil conhecer a razão por que Peri perseguia a índia resto da infeliz família sabia que ela ia direito ter com seus irmãos e que à primeira palavra que proferisse toda a tribo se levantaria como um só homem para vingar a morte do seu cacique e a perda da mais bela filha dos Aimorés Ora o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião que se alimentava de carne humana e vivia como feras no chão e pelas grutas e cavernas estremecia só com a idéia de que pudesse vir assaltar a casa de D Antônio de Mariz Era preciso pois exterminar toda a família e não deixar nem um vestígio de sua passagem Fazendo estas reflexões Peri tinha gasto perto de uma hora a percorrer a floresta inutilmente a índia ganhara um grande avanço durante o tempo em que ele lutava contra o desfalecimento produzido pela ferida Por fim julgou que o mais prudente era avisar a D Antônio imediatamente a fim de que tomasse todas as medidas de prevenção que exigia a iminência do perigo Tinha chegado a um campo coberto por algumas moitas de carrascos que se destacavam aqui e ali sobre um capim áspero e queimado pelo sol Apenas o índio deu alguns passos para atravessar o campo parou fazendo um gesto de surpresa diante dele arquejava um cãozinho que reconheceu pela coleira de frutos escarlates que tinha ao pescoço Era o mesmo que há dois dias encontrara na floresta e que naturalmente seguia a índia no momento em que ela fugia o índio não o tinha visto por causa das guaximas O animal mostrava ter sido estrangulado por uma torção tão violenta que lhe partira a coluna vertebral entretanto ainda agonizava Do primeiro lanço de olhos Peri tinha visto tudo isto e calculado o que se havia passado Aquela morte pensava ele não podia ter sido feita senão por uma criatura humana qualquer outro animal usaria dos dentes ou das garras e deixaria traços de ferimento O cão pertencia à índia fora ela pois quem o havia estrangulado há bem poucos momentos porque a fratura do pescoço era de natureza a produzir a morte quase imediatamente Mas por que motivo tinha feito essa barbaridade Porque respondia o espírito do índio ela sabia que era perseguida e o cão que a não podia acompanhar serviria para denunciála Apenas formulou este pensamento Peri deitouse e auscultou o seio da terra por muito tempo duas vezes ergueu a cabeça julgando iludirse e encostou de novo o ouvido ao chão Quando levantouse o seu rosto exprimia grande surpresa e admiração tinha ouvido alguma coisa de que parecia duvidar ainda como se os seus sentidos o iludissem Caminhou para o lado do nascente auscultando a terra a cada momento e assim chegou a alguns passos de uma grande touça de cardos que se elevava numa baixa do terreno Então colocandose de encontro ao vento aproximouse com toda cautela e ouviu um murmúrio de vozes confusas e o som de um instrumento que cavava a terra Peri aplicou o ouvido e procurou ver o que se passava além mas era impossível nem uma aberta nem uma fresta davam passagem ao som ou ao olhar Só quem tem viajado nos sertões e visto esses cardos gigantes cujas largas palmas crivadas de espinhos se entrelaçam estreitamente formando uma alta muralha de alguns pés de grossura poderá fazer idéia da barreira impenetrável que cercava por todos os lados as pessoas cuja voz Peri ouvia sem distinguir as palavras Entretanto esses homens deviam ter ai entrado por alguma parte e não podia ser senão pelo galho de uma árvore seca que se estendia sobre os cardos e ao qual se enroscava um cipó nodoso e forte como uma vide Peri estudava a posição e tratava de descobrir o meio de saber o que se passava atrás daquelas árvores quando uma voz que julgou reconhecer exclamou Per Dio eila O índio estremeceu ouvindo esta voz e resolveu a todo o custo conhecer o que faziam aqueles homens pressentiu que havia ali um perigo a conjurar e um inimigo a combater Inimigo talvez mais terrível do que os Aimorés porque se estes eram feras aquele podia ser a serpente escondida entre as folhas e a relva Assim esqueceu tudo e o seu pensamento concentrouse numa única idéia ouvir o que aqueles homens diziam Mas por que meio Era o que Peri procurava tinha rodeado a touça aplicando o ouvido e pareceulhe que em um lugar o ruído das vozes e do ferro que continuava a cavar lhe chegava mais distinto O índio abaixou os olhos que brilhavam de contentamento O que produzira essa agradável impressão fora um simples montículo de barro gretado que se elevava como um pão de açúcar dois palmos acima da terra e que estava encoberto por folhas de tanchagem Era a entrada de um formigueiro de uma dessas casas subterrâneas construídas pelos pequenos arquitetos que à força de paciência e trabalho minam um campo inteiro e formam verdadeiras abóbadas debaixo da terra Aquele que Peri descobrira tinha sido abandonado pelos seus habitantes em virtude da enxurrada que penetrara no pequeno subterrâneo O índio tirou a sua faca e cerceando a cúpula dessa torre em miniatura deixou a descoberto um buraco que penetrava pelo interior da terra e decerto ia ter à baixa onde estavam reunidas as pessoas que conversavam Este buraco tornouse para ele uma espécie de tubo acústico que lhe trazia as palavras claras e distintas Sentouse e ouviu XV OS TRÊS Loredano que nessa mesma manhã saíra de casa tão cedo apenas se entranhou na mata esperou Um quarto de hora depois vieram ter com ele Bento Simões e Rui Soeiro Os três seguiram juntos sem dar uma palavra o italiano caminhava adiante e os dois aventureiros o acompanhavam trocando de vez em quando um olhar significativo Por fim Rui Soeiro rompeu o silêncio Não foi decerto para espairecer pelos matos ao romper da alva que nos fizestes vir aqui misser Loredano Não respondeu o italiano laconicamente Mas então desembuchai de uma vez e não percamos tempo Esperai Que espereis vos digo eu atalhou Bento Simões ides numa batida Onde nos pretendeis levar nesta marcha Vereis Já que não há meio de vos sacar mais palavra segui com Deus misser Loredano Sim acudiu Rui Soeiro segui que nós tornamos por onde viemos Quando estiverdes de vez para falar nos avisareis E os dois aventureiros pararam dispostos a retroceder o italiano voltouse com um gesto de desprezo Parvos que sois disse ele Se vos parece revoltaivos agora que estais em meu poder e que não tendes outro remédio senão seguir a minha fortuna Voltai Também eu voltarei mas para denunciarvos a todos Os dois aventureiros empalideceram Não me façais lembrar Loredano disse Rui Soeiro abaixando um olhar rápido para o punhal que há um meio de fechar para sempre as bocas que se obstinam a falar Isto quer dizer replicou o italiano desdenhosamente que me mataríeis no caso de que eu vos quisesse denunciar À fé que sim respondeu Rui Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução E eu pela minha parte faria o mesmo Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas misser italiano E que ganharíeis vós em matarme perguntou Loredano sorrindo Essa é melhor que ganharíamos Achais que é coisa de pequena valia assegurar a sua existência e o seu descanso Néscios disse o italiano cobrindoos com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia ele deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes Bem vejo que estais armado e mais vale assim respondeu Rui Soeiro será morte antes que homizio Direis melhor execução Rui Soeiro retrucou Bento Simões O italiano continuou Não são essas armas que me servirão contra vós outras tenho eu que mais podem sabei unicamente que vivo ou morto a minha voz virá de longe ate mesmo da campa denunciarvos e vingarme Quereis gracejar misser italiano A ocasião não é azada A seu tempo vereis se gracejo Tenho na mão de D Antônio de Mariz o meu testamento que ele deve abrir quando me saiba ou me julgue morto Nesse testamento conto as relações que existem entre nós e o fim para que trabalhamos Os dois aventureiros tornaramse lívidos como espetros Compreendeis agora disse Loredano sorrindo que se me assassinardes se um acidente qualquer me privar da vida se me der na cabeça mesmo fugir e fazer supor que morri estais perdidos irremediavelmente Bento Simões ficou paralisado como se uma catalepsia o tivesse fulminado Rui Soeiro apesar do violento abalo que sentia conseguiu com um esforço recobrar a palavra É impossível gritou ele isso que dizeis é falso Não há homem que o fizesse Ponde à prova respondeu o italiano calmo e impassível Ele o fez estou certo balbuciou Bento Simões em voz sumida Não retrucou Rui Soeiro Satanás não o faria Vamos Loredano confessai que nos enganastes que quisestes atemorizarnos Disse a verdade Mentes gritou o aventureiro desesperado O italiano sorriu tirando a sua espada estendeu a mão sobre a cruz do punho e disse lentamente deixando cair as palavras uma a uma Por esta cruz e pelo Cristo que nela sofreu por minha honra neste mundo e minha alma no outro juro Bento Simões caiu de joelhos esmagado por este juramento que não deixava de ter alguma solenidade no meio da floresta sombria e silenciosa Rui Soeiro pálido com os olhos a saltaremlhe das órbitas os lábios trêmulos os cabelos eriçados e os dedos hirtos parecia a múmia do desespero Estendeu os braços para Loredano e exclamou com a voz trêmula e sufocada Pois vós Loredano confiastes a D Antônio de Mariz um papel onde existe a maquinação infernal que tramastes contra sua família Confieio E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a ele e a sua mulher e lançar fogo à casa se preciso for para a realização de vossos intentos Escrevi tudo Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer dela nobre moça a barregã de um aventureiro e réprobo como vós Sim E dissestes também continuou Rui no auge da desesperação que a outra sua filha nos pertencerá a nós que jogaremos a sorte para decidir a qual deverá tocar Não me esqueci de nada e menos desse ponto importante respondeu o italiano com um sorriso tudo isso está escrito em um pergaminho nas mãos de D Antônio de Mariz Para sabêlo basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira tabelião do Rio de Janeiro o cerrou na minha penúltima viagem Loredano pronunciou estas palavras com a maior calma contemplando os dois aventureiros pálidos e humilhados diante dele Passouse algum tempo em silêncio Já vedes disse o italiano que estais na minha mão sirvavos isto de exemplo Quando uma vez se pôs o pé sobre o precipício amigos é preciso caminhar por cima dele para não rolar e ir ao fundo Caminhemos pois Só de uma coisa vos advirto de hoje em diante obediência cega e passiva Os dois aventureiros não disseram palavra porém a sua atitude respondia melhor do que mil protestos Agora deixai essa cara triste e consternada Estou vivo e D Antônio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento Criai esperança confiai em mim que breve alcançaremos a meta A fisionomia de Bento Simões reanimouse Falai claro uma vez ao menos retrucou Rui Soeiro Não aqui seguime que vos levarei a um lugar onde conversaremos à vontade Esperai acudiu Bento Simões antes de tudo reparação vos é devida Há pouco vos ameaçamos aqui tendes as nossas armas Sim depois do que se passou é justo que desconfieis de nós tomai Os dois tiraram os punhais e as espadas Guardai as vossas armas disse Loredano escarnecendo servirão para me defenderdes Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existência Ambos os aventureiros empalideceram e seguiram o italiano que depois de uma meia hora de caminho chegou à touça de cardos que já descrevemos A um sinal de Loredano os seus companheiros subiram à árvore e desceram pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos que tinha quando muito três braças de comprimento sobre duas de largura De um lado na quebrada que fazia o terreno viase uma espécie de grata ou abóbada restos desses grandes formigueiros que se encontram pelos nossos campos já meio aluídos pela chuva Neste lagar à sombra de um pequeno arbusto que nascera entre os cardos sentaramse os três aventureiros Oh disse o italiano imediatamente há algum tempo já que não venho dessas bandas mas pareceme que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no goto Reclinouse e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que ali estava deitada e que colocou no meio do grupo É de Caparica mas do bom Deste cá não vem Diabo tendes uma adega exclamou Bento Simões a quem a vista da botija tinha restituído todo o bom humor A falar a verdade disse Rui esperaria tudo menos ver sair deste buraco uma botija de vinho É para verdes Como costumo vir a este lugar onde às vezes passo bem boas soalheiras precisava ter um companheiro com quem espairecesse E não podíeis achar melhor disse Bento Simões dando uma empinadela à botija e estalando a língua Já lhe tinha saudades Cada um dos três tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar Bom disse o italiano agora tratemos do que serve Prometi quando vos convidei a seguirme que vos faria ricos muito ricos Os dois inclinaram a cabeça A promessa que vos fiz vaise realizar a riqueza está aqui perto de nós podemos tocála Onde perguntaram os aventureiros lançando um olhar ávido em roda Não vai assim também falase figuradamente Digo que a riqueza está diante de nós mas para nos apoderarmos dela é preciso O quê Dizei A seu tempo agora quero contarvos uma história Uma história replicou Rui Soeiro Da carocha perguntou Bento Simões Não uma história verídica como uma bula do nosso santo padre Ouvistes falar algum dia em um certo Robério Dias Robério Dias Ah sei um tal do São Salvador disse Rui Soeiro O mesmo sem tirar nem pôr Vio há coisa de oito anos em São Sebastião donde se passou às Espanhas E sabeis o que ia fazer às Espanhas esse digno descendente de Caramuru amigo Bento Simões perguntou o italiano Ouvi rosnar que se tratava de um tesouro fabuloso que contava oferecer a Filipe 11 o qual em volta o faria marquês e grande fidalgo de sua casa E o resto não vos chegou à noticia Não nunca mais ouvi falar do tal Robério Dias Pois ouvi lá chegando a Madri o homem fez a sua oferta mui lampeiro e foi recebido na palma das mãos por elrei Filipe 1I que como sabeis tinha as unhas demasiado longas E cinzouo como uma raposa que era acudiu Rui Soeiro Enganaivos dessa vez a raposa tornarase macaco quis ver o coco antes de pagálo E então Então disse o italiano sorrindo maliciosamente o coco estava oco Como oco Sim amigo Rui tinhamlhe deixado apenas as cascas felizmente para nós que vamos lograr o miolo Sois um homem de caixas encouradas Loredano Dáse a gente a tratos e não é possível entendervos Tenho culpa eu que não sejais lido na história das coisas de vossa terra Nem todos são mitrados como vós dom italiano Bom acabemos de uma vez o que Robério Dias julgava oferecer em Madri a Filipe 11 amigos está aqui E Loredano dizendo estas palavras assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado Os dois aventureiros olharamse sem compreender e duvidando da razão de seu companheiro Quanto a este sem se importar com o que eles pensavam tirou a espada e depois de desenterrar a pedra começou a cavar Enquanto prosseguia neste trabalho os dois observandoo passavam alternadamente a botija de vinho e faziam conjeturas e suposições O italiano já cavava há tempo quando o ferro tocou num objeto duro que o fez tinir Per Dio exclamou eila Daí a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado a que os índios chamavam camuci este era pequeno e fechado por todos os lados Loredano tomandoo pelas duas mãos abalouo e sentiu o imperceptível vascolejar que fazia dentro um objeto qualquer Aqui tendes disse ele lentamente o tesouro de Robério Dias pertencenos Um pouco detento e seremos mais ricos que o sultão de Bagdá e mais poderosos que o doge de Veneza O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partiu em pedaços Os aventureiros com os olhares incendidos de cobiça esperando ver correr ondas de ouro de diamantes e esmeraldas ficaram estupefatos Do bojo do vaso saltara apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado e atado em cruz por um fio pardo Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço e abrindo rapidamente o pergaminho mostrou aos aventureiros um rótulo escrito em grandes letras vermelhas Rui Soeiro soltou um grito Bento Simões começou a tremer de prazer de pasmo e admiração Passado um momento o italiano estendeu a mão para o papel colocado no meio do grupo seus olhos tomaram uma expressão dura Agora disse ele com a sua voz vibrante agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a ocasião que obedecereis ao meu gesto à minha palavra como à lei do destino Juramos Estou cansado de esperar e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo A mim como chefe disse o italiano com um sorriso diabólico devia pertencer D Antônio de Mariz eu volo cedo Rui Soeiro Bento Simões terá o escudeiro Eu reclamo para mim Álvaro de Sá o nobre cavalheiro Aires Gomes vaise ver numa dança disse Bento Simões com um aspecto marcial Os mais se nos incomodarem irão depois se nos acompanharem serão bemvindos Unicamente vos aviso que aquele que tocar a soleira da porta da filha de D Antônio de Mariz é um homem morto essa é a minha parte na presa E a parte do leão Nesse momento ouviuse um rumor como se as folhas se tivessem agitado Os aventureiros não fizeram reparo e atribuíram naturalmente ao vento Mais alguns dias amigos continuou Loredano e seremos ricos nobres poderosos como um rei Tu Bento Simões serás marquês de Paquequer tu Rui Soeiro duque das Minas eu Que serei eu disse Loredano com um sorriso que iluminou a sua fisionomia inteligente Eu serei Uma palavra partiu do seio da terra surda e cavernosa como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado Traidores Os três aventureiros ergueramse de um só movimento hirtos e lívidos pareciam cadáveres surgindo da campa Os dois persignaramse O italiano suspendeuse ao ramo da árvore e lançou um olhar rápido Tudo estava em sossego O sol a pino derramava um oceano de luz nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa nenhum inseto saltitava sobre a relva O dia no seu esplendor dominava a natureza SEGUNDA PARTE PERI I O CARMELITA Corria o mês de março de 1603 Era portanto um ano antes do dia em que se abriu esta história Havia à beira do caminho que então servia às expedições entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo um vasto pouso onde habitavam alguns colonos e índios catequizados Estava quase a anoitecer Uma tempestade seca terrível e medonha como as há freqüentemente nas faldas das serranias desabava sobre a terra O vento mugindo açoitava as grossas árvores que vergavam os troncos seculares o trovão ribombava no bojo das grossas nuvens desgarradas pelo céu o relâmpago amiudava com tanta velocidade que as florestas os montes toda a natureza nadava num oceano de fogo No vasto copiar do pouso havia três pessoas contemplando com um certo prazer a luta espantosa dos elementos que para homens habituados como eles não deixava de ter alguma beleza Um desses homens gordo e baixo deitado em uma rede no meio do alpendre com as pernas cruzadas e os braços sobre o peito soltava uma exclamação a cada novo estrago produzido pela tempestade O segundo encostado num dos esteios de jacarandá que sustentava o teto da alpendrada era homem trigueiro de perto de quarenta anos a sua fisionomia apresentava uns longes do tipo da raça judaica tinha os olhos fitos em uma vereda que serpejava pela frente da casa até perderse no mato Defronte dele também apoiado sobre a outra coluna estava um frade carmelita que acompanhava com um sorriso de satisfação intima o progresso da borrasca animavalhe o rosto belo e de traços acentuados um raio de inteligência e uma expressão de energia que revelava o seu caráter Ao ver esse homem sorrindo à tempestade e afrontando com o olhar a luz do relâmpago conheciase que sua alma tinha a força de resolução e a vontade indomável capaz de querer o impossível e de lutar contra o céu e a terra para obtêlo Fr Ângelo di Luca achavase então no pouso como missionário incumbido da catequese e cura das almas entre o gentio daquele lugar em seis meses que apostolava conseguira aldear algumas famílias que esperava breve trazer ao grêmio da igreja Um ano havia que obtivera do priorgeral da ordem do Carmo a graça de passar do seu convento de Santa Maria Transpontina em Roma para a casa que a sua ordem tinha fundado em 1590 no Rio de Janeiro a fim de empregarse no trabalho das missões Tanto o geral como o provincial de Lisboa tocados por esse ardente entusiasmo apostólico o haviam recomendado expressamente a Fr Diogo do Rosário então prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro pedindolhe que empregasse no serviço do Senhor e na glória da ordem da Beatíssima Virgem do Monte Carmelo o zelo e o santo fervor do irmão Fr Ângelo di Luca Eis a razão por que o filho de um pescador saído das lagunas de Veneza achavase no sertão do Rio de Janeiro encostado ao esteio de um pouso contemplando a tempestade que redobrava de furor Sempre partireis esta noite Fernão Aines disse o homem que estava deitado na rede Ao quarto dalva respondeu o outro sem voltarse E o tempo que vais fazer Não é isso que me estorva bem o sabeis mestre Nunes Esta maldita caçada Receais que vossos homens não tornem dela a tempo Receio que não os leve a todos a breca por esses matos com semelhante borrasca O frade voltouse Aqueles que seguem a lei de Deus estão bem em toda a parte irmão em andurriais como neste pouso os maus é que devem temer o fogo do céu e a esses não há abrigo que os salve Fernão Aines sorriu ironicamente Credes isso Fr Ângelo Creio em Deus irmão Pois embora prefiro estar onde estou do que por ai metido nalgum despenhadeiro Contudo acudiu Nunes o que diz o nosso reverendo missionário Ora deixa falar Fr Ângelo Aqui sou eu que zombo da tempestade lá seria a tempestade que zombaria de mim Fernão Aines exclamou Nunes Maldita lembrança de caçada murmurou o outro sem atendêlo O silêncio se restabeleceu De repente uma nuvem abriuse a corrente elétrica enroscandose pelo ar como uma serpente de fogo abateuse sobre um tronco de cedro que havia defronte do pouso A árvore fendeuse desde o olho até à raiz em duas metades uma permaneceu em pé esguia e mutilada a outra tombando sobre o terreiro bateu nos peitos de Fernão Aines e o atirou esmagado no fundo do alpendre Seu companheiro ficou imóvel por muito tempo depois começou a tremer como se tiritasse com o frio de terças o polegar estendido para fazer o sinaldacruz os dentes chocando uns contra os outros o rosto contraído davamlhe aspecto terrível e ao mesmo tempo grotesco O frade se tinha voltado lívido como se ele fosse a vitima da catástrofe o terror decompôs um momento a sua fisionomia porém logo um sorriso sardônico fugiulhe dos lábios ainda descorados pelo choque violento que sofrera Passado o primeiro momento de susto os dois chegaramse para o ferido e quiseram prestarlhe socorro este fez um grande esforço e erguendose sobre um dos braços soltou numa golfada de sangue estas palavras Castigo do céu Reconhecendo que não havia mais cura para o corpo o moribundo exigiu o remédio espiritual com a voz fraca pediu a Fr Ângelo que o ouvisse de confissão Nunes fez recolher o seu companheiro a um aposento cuja porta dava para o alpendre e deitouo sobre uma cama de couro Já havia anoitecido o aposento estava na maior escuridão apenas por instantes o relâmpago brilhava lançando o clarão azulado sobre o confessor meio reclinado para o moribundo a fim de escutarlhe a voz que ia gradualmente enfraquecendo Ouvime sem me interromper meu padre sinto que poucos momentos me restam e embora não haja perdão para mim quero ao menos reparar o meu crime Falai irmão eu vos escuto Em novembro passado cheguei ao Rio de Janeiro fui hospedado por um parente meu tanto ele como sua mulher me fizeram o melhor acolhimento Ele que havia muito viajado pelo sertão e se dera à vida de aventureiro faloume um dia de tentarmos uma expedição cujo resultado seria grande riqueza para nós ambos Por diversas vezes nos entretivemos sobre esse objeto até que abriuse inteiramente comigo O pai de um Robério Dias colono da Bahia guiado por um índio havia descoberto nos sertões daquela província minas de prata tão abundantes que se poderiam calçar desse metal as ruas de Lisboa Como atravessasse sertões ínvios e inóspitos Dias escrevera um roteiro com as indicações necessárias para em qualquer tempo poderse achar o lugar onde estão situadas as ditas minas Este roteiro fora subtraído a seu dono sem que ele o percebesse e por uma longa sucessão de fatos que faltamme as forças para contarvos viera cair nas mãos do meu parente De quantos crimes já não tinha sido causa esse papel e de quantos não seria ainda meu padre se Deus não houvesse finalmente punido em mim o último herdeiro desse legado de sangue O moribundo parou um momento extenuado depois continuou com a voz débil Já então com a chegada do governador D Francisco de Sousa se sabia que Robério oferecera em Madri a Filipe 11 a descoberta das minas e que não o tendo elrei premiado como esperou obstinavase em guardar silêncio A razão desse silêncio que se atribuía geralmente ao despeito só a sabia meu parente em cujas mãos parava o roteiro Robério chegado às Espanhas se apercebera do roubo que lhe haviam feito e quisera aos menos lograr o prêmio O segredo das minas a chave dessa riqueza imensa que excedia todos os tesouros do Miramolim estavam nas mãos do meu parente que necessitando de um homem dedicado que o auxiliasse na empresa julgou que a ninguém melhor do que a mim podia escolher para partilhar os seus riscos e esperanças Aceitei essa meação do crime esse pacto de roubo meu padre Foi o meu primeiro erro A voz do aventureiro tornouse ainda mais sumida O frade inclinado sobre ele parecia devorar com os lábios entreabertos as palavras balbuciadas pelo moribundo Coragem filho Sim Devo dizer tudo Fascinado pela descrição desse tesouro fabuloso tive uma lembrança iníqua essa lembrança tornouse desejo depois idéia e projeto por fim realizouse foi um crime Assassinei meu parente e sua mulher E exclamou o frade com a voz surda E roubei o segredo O frade sorriu nas trevas Agora só me resta a misericórdia de Deus e a reparação do mal que fiz Robério é morto sua mulher vive desgraçada na Bahia Quero que este papel lhe seja entregue Prometeis Fr Ângelo Prometo O papel Está oculto Aonde Nes ta O moribundo agonizava Fr Ângelo debruçado inteiramente sobre ele com o ouvido colado à sua boca onde borbulhava uma espuma vermelha com a mão sobre o coração para ver se ainda palpitava parecia querer reter o último sopro da vida a fim de tirar dele uma palavra ainda Aonde murmurava de vez em quando o frade com a voz cava O enfermo agonizava sempre os soluços extremos da vida que se apaga como a lâmpada que bruxuleia agitavam apenas o corpo enregelado Por fim o frade viuo levantar o braço hirto apontando para a parede e sentiu os seus lábios gelados e convulsos que tremeram lançando no seu ouvido uma palavra que o fez saltar sobre o leito Cruz Fr Ângelo ergueuse circulando o aposento com a vista alucinada na cabeceira da cama havia um Cristo de ferro sobre uma grande cruz de pau tosca e mal lavrada Com um movimento de raiva o frade apoderouse da cruz e quebroua de encontro ao joelho a imagem rolou pelo chão entre os estilhaços de madeira apareceu um rolo de pergaminho achatado pela pressão em que estivera Quebrou com os dentes o selo do papel chegando à janela leu à claridade vacilante do relâmpago as primeiras palavras de um rotulo de letras vermelhas que rezava nestes termos Roteiro verídico e exato em que se trata da rota que fez Robério Dias o pai em o ano da graça de 1587 às paragens de Jacobina onde descobriu com o favor de Deus as mais ricas minas de prataria que existam no mundo com a suma de todas as indicações de marcos balizas e linha equinocial onde demoram aquelas ditas minas começado em 20 de janeiro dia do mártir São Sebastião e terminado na primeira dominga de Páscoa em que chegamos com a mercê da Providência nesta cidade do Salvador Enquanto o frade se esforçava para ler o moribundo agonizava na última aflição esperando talvez a absolvição final e a extremaunção do penitente Mas o religioso não via nesse momento senão o papel que tinha nas mãos deixouse cair em um banco e com a cabeça pendida sobre o braço entregouse a funda meditação Que pensava ele Não pensava delirava Diante de seus olhos a imaginação exaltada lhe apresentava um mar argênteo um oceano de metal fundido alvo e resplandecente que ia se perder no infinito As vagas desse mar de prata ora achamalotavamse ora rolavam formando frocos de espumas que pareciam flores de diamantes de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol Às vezes também nessa face lisa e polida desenhavamse como em um espelho palácios encantados mulheres belas como as huris do profeta virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo Assim decorreu meia hora em que o silêncio era apenas interrompido pelo estertor do moribundo e pelo trovão que rugia depois houve uma calma sinistra o pecador expirava impenitente Fr Ângelo levantouse arrancou o hábito com um gesto desesperado e pisouo aos pés sobre o recosto do leito havia uma muda de roupa com que trajouse tirou as armas do cadáver apanhou o chapéu de feltro e apertando ao peito o manuscrito dirigiuse à porta Ouviamse os passos de Nunes que passeava fora no alpendre O frade estacou a presença inesperada desse homem diante da porta deulhe uma inspiração Tomou o hábito vestiuo sobre o seu novo trajo e escondendo na manga o chapéu do aventureiro cobriuse com o largo capelo então abriu a porta e dirigiuse a Nunes Consummatum est irmão disse ele com um tom compungido Deus tenha sua alma Assim o espero se não me faltarem as forças para cumprir o seu último voto que é uma reparação De um grave pecado De um crime irmão Daime luz vou escrever a Fr Diogo do Rosário nosso prior porque de onde vou talvez não volte nem tenhais mais novas de mim O frade escreveu à claridade de uma acha de paucandeia algumas linhas ao prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro e despedindose de Nunes partiu Quando dobrava o canto do pouso o céu abriuse e a terra incendiouse com a luz de um relâmpago tão forte que o deslumbrou Dois raios descrevendo listras de fogo tinham caído sobre a floresta e espalhado em torno um cheiro de súlfur que asfixiava O carmelita teve uma vertigem lembrouse da cena da tarde do tremendo castigo que ele próprio havia evocado na sua hipocrisia e se realizara tão prontamente Mas o deslumbramento passou estremecendo ainda e pálido de terror o réprobo levantou o braço como desafiando a cólera do céu e soltou uma blasfêmia horrível Podeis matarme mas se me deixardes a vida hei de ser rico e poderoso contra a vontade do mundo inteiro Havia nestas palavras um quer que seja da sanha e raiva impotente de Satanás precipitado no abismo pela sentença irrevogável do Criador Continuando o seu caminho pelas trevas costeou a cerca e chegou a uma grande choça que havia no fundo do pouso e onde o missionário conseguira aldear algumas famílias de índios entrou e acordou um dos selvagens a quem ordenou se preparasse para acompanhálo apenas rompesse o dia A chuva caia em torrentes o vento açoitava as paredes de sapé esfuziando por entre a palha O frade passou a noite em claro refletindo e traçando no seu espírito um plano infernal para cuja realização não trepidaria diante de nenhum obstáculo de vez em quando levantavase para ver se o horizonte já se iluminava Finalmente veio o dia a tempestade se tinha desfeito durante a noite o tempo estava sereno O carmelita acompanhado pelo selvagem partiu vagou pela floresta e pelo campo em todas as direções alguma coisa procurava Ele avistou depois de duas horas a touça de cardos junto da qual se passou a última cena que narramos examinoua por todos os lados e sorriu de satisfeito Trepando à árvore e escorregando pelo cipó entraram ele e o selvagem na área que já conhecemos o sol tinha nascido há pouco No dia seguinte por volta de duas horas da tarde saiu deste lagar um só homem não era ele o frade nem o selvagem Era um aventureiro destemido e audaz em cuja fisionomia se reconheciam ainda os traços do carmelita Fr Ângelo di Luca Este aventureiro chamouse Loredano Deixava naquele lugar e sepultado no seio da terra um terrível segredo isto é um rolo de pergaminho um burel de frade e um cadáver Cinco meses passados o vigário da ordem participava ao geral em Roma que o irmão Fr Ângelo di Luca morrera como santo e mártir no zelo de sua fé apostólica II IARA Dois dias depois da cena do pouso por uma bela tarde de verão a família de D Antônio de Mariz estava reunida na margem do Paquequer O lugar em que se achava era uma pequena baixa cavada entre dois outeiros pedregosos que se elevavam naquelas paragens A relva que tapeçava essas fráguas as árvores que haviam nascido nas fendas das pedras e reclinando sobre o vale teciam um lindo dossel de verdura tornavam aquele retiro pitoresco Não podia haver sitio mais agradável para se passar uma sesta de estio do que esse caramanchão cheio de sombra e de frescura onde o canto das aves concertava com o trépido murmúrio das águas Por isso apesar de ficar ele a alguma distancia da casa a família vinha às vezes quando o tempo estava sereno gozar algumas horas da frescura deliciosa que ali se respirava D Antônio de Mariz sentado junto de sua mulher contemplava por entre uma abertura das folhas o céu azul e aveludado de nossa terra que os filhos da Europa não se cansam de admirar Isabel encostada a uma palmeira nova olhava a correnteza do rio murmurando baixinho uma trova de Bernardim Ribeiro Cecília corria pelo vale perseguindo um lindo colibri que no vôo rápido iriavase de mil cores cintilando como o prisma de um raio solar A linda menina com o rosto animado rindose dos volteios que a avezinha lhe fazia dar como se brincasse com ela achava nesse folguedo um vivo prazer Mas afinal sentindose fatigada foi recostarse em um cômoro de relva que elevandose no sopé do rochedo formava uma espécie de divã natural Descansou a cabeça no declive e assim ficou com os pezinhos estendidos sobre a grama que os escondia como a lã de um rico tapete e o seio mimoso a arfar com o anélito da respiração Algum tempo se passou sem que o menor incidente perturbasse o suave painel que formava esse grupo de família De repente entre o dossel de verdura que cobria esta cena ouviuse um grito vibrante e uma palavra de língua estranha Iara É um vocábulo guarani significa a senhora D Antônio levantouse volvendo olhos rápidos viu sobre a eminência que ficava sobranceira ao lagar em que estava Cecília um quadro original De pé fortemente apoiado sobre a base estreita que formava a rocha um selvagem coberto com um ligeiro saio de algodão metia o ombro a uma lasca de pedra que se desencravara do seu alvéolo e ia rolar pela encosta O índio fazia um esforço supremo para suster o peso da laje prestes a esmagálo e com o braço estendido de encontro a um galho de árvore mantinha por uma tensão violenta dos músculos o equilíbrio do corpo A árvore tremia por momentos parecia que pedra e homem se enrolavam numa mesma volta e precipitavam sobre a menina sentada na aba da colina Cecília ouvindo o grito erguera a cabeça e olhava seu pai com alguma surpresa sem adivinhar o perigo que a ameaçava Ver lançarse para sua filha tomála nos braços arrancála à morte foi para D Antônio de Mariz uma só idéia e um só movimento que realizou com a força e a impetuosidade do sublime amor de pai que era toda a sua vida No momento em que o fidalgo deitava Cecília quase desmaiada sobre o regaço materno o índio saltava no meio do vale a pedra girando sobre si precipitada do alto da colina enterravase profundamente no chão Foi então que os outros espectadores desta cena paralisados pelo choque que haviam sofrido lançaram um grito de terror pensando no perigo que já estava passado Uma larga esteira que descia da eminência até o lugar onde Cecília estivera recostada mostrava a linha que descrevera a pedra na passagem arrancando a relva e ferindo o chão D Antônio ainda pálido e trêmulo do perigo que correra Cecília volvia os olhos daquela terra que se lhe afigurava uma campa para o selvagem que surgira como um gênio benfazejo das florestas do Brasil O fidalgo não sabia o que mais admirar se a força e heroísmo com que ele salvara sua filha se o milagre de agilidade com que se livrara a si próprio da morte Quanto ao sentimento que ditara esse proceder D Antônio não se admirava conhecia o caráter dos nossos selvagens tão injustamente caluniados pelos historiadores sabia que fora da guerra e da vingança eram generosos capazes de uma ação grande e de um estimulo nobre Por muito tempo reinou silêncio expressivo nesse grupo que se acabava de transformar de modo tão imprevisto D Lauriana e Isabel de joelhos oravam a Deus rendendolhe graças Cecília ainda assustada apoiavase ao peito de seu pai e beijavalhe a mão com ternura o índio humilde e submisso fitava um olhar profundo de admiração sobre a moça que tinha salvado Por fim D Antônio passando o braço esquerdo pela cintura de sua filha caminhou para o selvagem e estendeulhe a mão com gesto nobre e afável o índio curvouse e beijou a mão do fidalgo De que nação és perguntoulhe o cavalheiro em guarani Goitacá respondeu o selvagem erguendo a cabeça com altivez Como te chamas Peri filho de Ararê primeiro de sua tribo Eu sou um fidalgo português um branco inimigo de tua raça conquistador de tua terra mas tu salvaste minha filha ofereçote a minha amizade Peri aceita tu já eras amigo Como assim perguntou D Antônio admirado Ouve O índio começou na sua linguagem tão rica e poética com a doce pronúncia que parecia ter aprendido das auras da sua terra ou das aves das florestas virgens esta simples narração Era o tempo das árvores de ouro A terra cobriu o corpo de Ararê e as suas armas menos o seu arco de guerra Peri chamou os guerreiros de sua nação e disse Pai morreu aquele que for o mais forte entre todos terá o arco de Ararê Guerra Assim falou Peri os guerreiros responderam Guerra Enquanto o sol alumiou a terra caminhamos quando a lua subiu ao céu chegamos Combatemos como Goitacás Toda a noite foi uma guerra Houve sangue houve fogo Quando Peri abaixou o arco de Ararê não havia na taba dos brancos uma cabana em pé um homem vivo tudo era cinza Veio o dia e alumiou o campo veio o vento e levou a cinza Peri tinha vencido era o primeiro de sua tribo e o mais forte de todos os guerreiros Sua mãe chegou e disse Peri chefe dos Goitacás filho de Ararê tu és grande tu és forte como teu pai tua mãe te ama Os guerreiros chegaram e disseram Peri chefe dos Goitacás filho de Ararê tu és o mais valente da tribo e o mais temido do inimigo os guerreiros te obedecem As mulheres chegaram e disseram Peri primeiro de todos tu és belo como o sol e flexível como a cana selvagem que te deu o nome as mulheres são tuas escravas Peri ouviu e não respondeu nem a voz de sua mãe nem o canto dos guerreiros nem o amor das mulheres o fez sorrir Na casa da cruz no meio do fogo Peri tinha visto a senhora dos brancos era alva como a filha da lua era bela como a garça do rio Tinha a cor do céu nos olhos a cor do sol nos cabelos estava vestida de nuvens com um cinto de estrelas e uma pluma de luz O fogo passou a casa da cruz caiu De noite Peri teve um sonho a senhora apareceu estava triste e falou assim Peri guerreiro livre tu és meu escravo tu me seguirás por toda a parte como a estrela grande acompanha o dia A lua tinha voltado o seu arco vermelho quando tornamos da guerra todas as noites Peri via a senhora na sua nuvem ela não tocava a terra e Peri não podia subir ao céu O cajueiro quando perde a sua folha parece morto não tem flor nem sombra chora umas lágrimas doces como o mel dos seus frutos Assim Peri ficou triste A senhora não apareceu mais e Peri via sempre a senhora nos seus olhos As árvores ficaram verdes os passarinhos fizeram seus ninhos o sabiá cantou tudo ria o filho de Ararê lembrouse de seu pai Veio o tempo da guerra Partimos andamos chegamos ao grande rio Os guerreiros armaram as redes as mulheres fizeram fogo Peri olhou o sol Viu passar o gavião Se Peri fosse o gavião ia ver a senhora no céu Viu passar o vento Se Peri fosse o vento carregava a senhora no ar Viu passar a sombra Se Peri fosse a sombra acompanhava a senhora de noite Os passarinhos dormiram três vezes Sua mãe veio e disse Peri filho de Ararê guerreiro branco salvou tua mãe virgem branca também Peri tomou suas armas e partiu ia ver o guerreiro branco para ser amigo e a filha da senhora para ser escravo O sol chegava ao meio do céu e Peri chegava também ao rio avistou longe a tua casa grande A virgem branca apareceu Era a senhora que Peri tinha visto não estava triste como da primeira vez estava alegre tinha deixado lá a nuvem e as estrelas Peri disse A senhora desceu do céu porque a lua sua mãe deixou Peri filho do sol acompanhará a senhora na terra Os olhos estavam na senhora e o ouvido no coração de Peri A pedra estalou e quis fazer mal à senhora A senhora tinha salvado a mãe de Peri Peri não quis que a senhora ficasse triste e voltasse ao céu Guerreiro branco Peri primeiro de sua tribo filho de Ararê da nação Goitacá forte na guerra te oferece o seu arco tu és amigo O índio terminou aqui a sua narração Enquanto falava um assomo de orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros e dava certa nobreza ao seu gesto Embora ignorante filho das florestas era um rei tinha a realeza da força Apenas concluiu a altivez do guerreiro desapareceu ficou tímido e modesto já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas civilizadas cuja superioridade de educação o seu instinto reconhecia D Antônio o ouvia sorrindose do seu estilo ora figurado ora tão singelo como as primeiras frases que balbucia a criança no seio materno O fidalgo traduzia da melhor maneira que podia essa linguagem poética a Cecília a qual já livre do susto queria por força apesar do medo que lhe causava o selvagem saber o que ele dizia Compreenderam da história de Peri que uma índia salva havia dois dias por D Antônio das mãos dos aventureiros e a quem Cecília enchera de presentes de velórios azuis e escarlates era a mãe do selvagem Peri disse o fidalgo quando dois homens se encontram e ficam amigos o que está na casa do outro recebe a hospitalidade É o costume que os velhos transmitiram aos moços da tribo e os pais aos filhos Tu cearás conosco Peri te obedece A tarde declinava as primeiras estrelas luziam A família acompanhada por Peri dirigiuse a casa e subiu a esplanada D Antônio entrou um momento e voltou trazendo uma linda clavina tauxiada com o brasão de armas do fidalgo a mesma que já vimos nas mãos do índio É a minha companheira fiel a minha arma de guerra nunca mentiu fogo nunca errou o alvo a sua bala é como a seta do teu arco Peri tu me deste minha filha minha filha te dá a arma de guerra de seu pai O índio recebeu o presente com uma efusão de profundo reconhecimento Esta arma que vem da senhora e Peri farão um só corpo A campa do terreiro tocou anunciando a ceia O índio vexado no meio dos usos estranhos tomado de um santo respeito não sabia como se ater Apesar de todos os esforços do fidalgo que sentia um prazer indizível em mostrarlhe quanto apreciava a sua ação e remoçara com a alegria de ver sua filha viva o selvagem não tocou em um só manjar Por fim D Antônio de Mariz conhecendo que toda a insistência era inútil encheu duas taças de vinho das Canárias Peri disse o fidalgo há um costume entre os brancos de um homem beber por aquele que é amigo O vinho é o licor que dá a força a coragem a alegria Beber por um amigo é uma maneira de dizer que o amigo é e será forte corajoso e feliz Eu bebo pelo filho de Ararê E Peri bebe por ti porque és pai da senhora bebe por ti porque salvaste sua mãe bebe por ti porque és guerreiro A cada palavra o índio tocou a taça e bebeu um trago de vinho sem fazer o menor gesto de desgosto ele beberia veneno à saúde do pai de Cecília III GÊNIO DO MAL Peri voltou por diferentes vezes à casa de D Antônio de Mariz O velho fidalgo o recebia cordialmente e o tratava como amigo seu caráter nobre simpatizava com aquela natureza inculta Cecília porém apesar do reconhecimento que lhe inspirava a sua dedicação por ela não podia vencer o receio que sentia vendo um desses selvagens de quem sua mãe lhe fazia tão feia descrição e de cujo nome se servia para meterlhe medo quando criança Em Isabel o índio fizera a mesma impressão que lhe causava sempre a presença de um homem daquela cor lembrarase de sua mãe infeliz da raça de que provinha e da causa do desdém com que era geralmente tratada Quanto a D Lauriana via em Peri um cão fiel que tinha um momento prestado um serviço à família e a quem se pagava com um naco de pão Devemos porém dizer que não era por mau coração que ela pensava assim mas por prejuízos de educação Quinze dias depois que Cecília fora salva por Peri uma manhã Aires Gomes atravessou a esplanada e foi ter com D Antônio que estava no seu gabinete Sr D Antônio esse estrangeiro a quem destes hospedagem há duas semanas pedevos audiência Mandao vir Aires Gomes introduziu o estrangeiro Era esse mesmo Loredano que em se havia transformado o carmelita Fr Ângelo di Luca Que desejais amigo faltaramvos em alguma coisa Ao contrário sr cavalheiro achome tão bem que o meu desejo seria ficar E quem vos impede A nossa hospitalidade assim como não pergunta o nome do que chega também não lhe inquire o tempo de partida A vossa hospitalidade é de um verdadeiro fidalgo sr cavalheiro mas não é dela que desejo falar Explicaivos então Um homem da vossa banda vai ao Rio de Janeiro onde tem mulher e filhos que lhe chegaram do Reino Sim já ontem me falou disso Faltavos pois um homem eu posso ser este homem se não achais nisso inconveniente Nenhum absolutamente Nesse caso posso considerarme como admitido Atendei Aires Gomes vai dizervos as condições a que vos sujeitais se estiverdes por elas é negócio decidido Creio que já conheço essas condições disse o italiano sorrindo Ide sempre O fidalgo chamou o seu escudeiro e incumbiuo de pôr o italiano ao fato das condições do bando de aventureiros que tinha ao seu serviço Era este um dos privilégios de Aires Gomes que o desempenhava com toda a gravidade de que era suscetível a sua personagem um pouco grotesca Chegados à esplanada o escudeiro perfilouse e proferiu o seguinte intróito Lei estatuto regimento disciplina ou como melhor nome haja a que se sujeita todo aquele que entrar à soldada na banda do Sr cavalheiro D Antônio de Mariz fidalgo cota darmas do tronco dos Marizes em linha reta Aqui o escudeiro molhou a palavra e prosseguiu Primo Obedecer sem replicar Quem o contrário fizer pereça morte natural O italiano fez um gesto de aprovação Isto quer dizer misser italiano que se um dia o Sr D Antônio vos mandar saltar deste rochedo embaixo fazei a vossa oração e saltai porque de uma ou outra maneira pelos pés ou pela cabeça fé de Aires Gomes lá ireis Loredano sorriu Secundo Contentarse com o que há Quem o contrário Com o vosso respeito Sr Aires Gomes não vos deis a um trabalho inútil sei tudo o que ides rezarme e por isso dispensovos de continuar Que quereis dizer Quero dizer que todos os camaradas cada um por sua vez já me descreveram a cerimônia que ora pondes em prática Não obstante Escusado é Sei tudo aceito tudo juro tudo que quiserdes E dizendo isto o italiano fez uma viravolta e dirigiuse para o gabinete de D Antônio enquanto o escudeiro zangado por não ter levado ao fim a cena de iniciação a que dava tão grande valor resmungava Não pode ser boa casta de gente Loredano apresentouse a D Antônio Então disse o fidalgo Aceito Bem agora só falta uma coisa que Aires Gomes não vos disse naturalmente Qual sr cavalheiro É que D Antônio de Mariz disse o fidalgo pousando a mão sobre o ombro do italiano é um chefe rigoroso para seus homens porém um amigo leal para seus companheiros Sou aqui o senhor da casa e o pai de toda a família a que atualmente pertenceis O italiano curvouse para agradecer mas sobretudo para esconder a alteração da fisionomia Ouvindo as palavras nobres do fidalgo sentiuse perturbado porque já então lhe fermentava no cérebro o plano da trama que ia urdir e que vimos revelarse um ano depois Saindo do lugar em que deixara oculto o seu tesouro o aventureiro caminhou direito à casa de D Antônio de Mariz e pediu a hospitalidade que a ninguém se recusava sua intenção era passarse ao Rio de Janeiro onde concertaria os meios de aproveitar a fortuna Duas idéias se tinham apresentado ao seu espírito no momento em que se vira possuidor do roteiro de Robério Dias Iria à Europa vender o segredo a Filipe 11 ou a qualquer outro soberano de uma nação poderosa e inimiga da Espanha Exploraria por sua conta com alguns aventureiros que tomasse ao seu serviço esse tesouro fabuloso que devia eleválo ao fastígio da grandeza Esta última idéia lhe sorria mais entretanto não tomou nenhuma resolução definitiva posto o seu segredo em lugar seguro aliviado desse peso que o fazia estremecer a cada momento o italiano resolveu como dissemos ir pedir hospitalidade a D Antônio de Mariz Aí formularia o seu plano traçaria o caminho que devia seguir e então voltaria a procurar o papel que dormia no seio da terra e com ele marcharia à riqueza à fortuna ao poder Chegado à casa do fidalgo o excarmelita com o seu espírito de observação estudou o terreno e achouo favorável à realização de uma idéia que começou logo a germinar no seu espírito até que tomou as proporções de um projeto Homens mercenários que vendem a sua liberdade consciência e vida por um salário não têm dedicação verdadeira senão a um objeto o dinheiro seu senhor seu chefe e seu amigo é o que mais lhes paga Fr Ângelo conhecia o coração humano e por isso apenas iniciado no regimento da banda avaliou do caráter dos aventureiros Esses homens me serviriam perfeitamente disse ele consigo No meio dessas reflexões um fato veio produzir completa revolução nas suas idéias Viu Cecília A imagem dessa bela menina casta e inocente produziu naquela organização ardente e por muito tempo comprimida o mesmo efeito da faisca sobre a pólvora Toda a continência de sua vida monástica todos os desejos violentos que o hábito tinha selado como uma crosta de gelo todo esse sangue vigoroso e forte da mocidade passada em vigílias e abstinências refluíram ao coração e o sufocaram um momento Depois um êxtase de voluptuosidade imensa embebeu essa alma velha pela corrupção e pelo crime mas virgem para o amor O seu coração revelavase com toda a veemência da vontade audaz que era o móvel de sua vida Sentiu que essa mulher era tão necessária à sua existência como o tesouro que sonhava ser rico para ela possuíla para gozar a riqueza foi desde então o seu único pensamento a sua idéia dominante Um dos aventureiros deixava a casa Loredano solicitou o seu lagar e obteveo como acabamos de ver o seu plano estava traçado Qual era já o sabemos pelas cenas passadas o italiano contava tornarse senhor da banda apoderarse de Cecília ir às minas encantadas carregar tanta prata quanta pudesse levar dirigirse à Bahia assaltar uma nau espanhola tomála de abordagem e fazerse de vela para a Europa Aí armava navios de corso voltava ao Brasil explorava o seu tesouro tirava dele riquezas imensas e E o mundo abriase diante de seus olhos cheio de esperança de futuro e felicidade Durante um ano trabalhou nessa empresa com uma sagacidade e inteligência superior ganhara os dois homens influentes da banda Rui Soeiro e Bento Simões por meio deles preparava o desenlace final Ignorado pelos outros ele dirigia essa conspiração que lavrava surdamente só havia em toda a banda duas pessoas que o podiam perder Ora Loredano não era homem que deixasse de prever a eventualidade de uma traição e que entregasse aos seus dois cúmplices uma arma com que pudessem ferilo daí a lembrança desse testamento que entregara a D Antônio de Mariz Somente nesse papel em vez de ter revelado o seu plano como o italiano dissera a Rui Soeiro ele havia apenas indicado a traição dos dois aventureiros declarandose seduzido por eles o frade mentia pois até na hora extrema em que o papel devia falar A confiança que tinha e com razão no caráter de D Antônio tranqüilizavao completamente sabia que em caso algum o fidalgo abriria um testamento que lhe fora dado em depósito Eis como Fr Ângelo di Luca achavase sob o seu novo nome de Loredano pertencendo à casa de D Antônio de Mariz e preparandose para realizar afinal o seu pensamento de todos os instantes Um ano havia que esperava e como ele dizia estava cansado resolvera dar enfim o golpe e para isso depois de haver esmagado os dois cúmplices com a sua ameaça depois de os haver reduzido a autômatos obedecendo ao seu gesto entendeu que seria conveniente ao mesmo tempo animar esses manequins com algum sentimento que lhes desse o atrevimento a audácia e a força necessária para se lançarem na voragem e não trepidarem diante de nenhum obstáculo Este sentimento foi a ambição À vista do roteiro era impossível que não sentissem a febre da riqueza a auri sacra fames que se havia apoderado dele próprio no momento em que vira abrirse diante de seus olhos um mar de prata fundida em que os seus lábios podiam matar a sede ardente que o devorava O efeito não desmentiu a sua previsão lendo o rótulo cada um dos aventureiros ficara eletrizado para tocar aquele abismo insondável de riquezas nem um deles hesitaria em passar sobre o corpo de seu amigo ou mesmo sobre as cinzas de uma casa ou a ruína de uma família Infelizmente aquela voz inesperada saída do seio da terra viera modificar a situação Mas não antecipemos por ora ainda estamos em 1603 um ano antes daquela cena e ainda nos falta contar certas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história IV CECI Poucas horas depois que Loredano fora admitido na casa de D Antônio de Mariz Cecília chegando à janela do seu quarto viu do lado oposto do rochedo Peri que a olhava com uma admiração ardente O pobre índio tímido e esquivo não se animava a chegarse à casa senão quando via de longe a D Antônio de Mariz passeando sobre a esplanada adivinhava que naquela habitação só o coração nobre do velho fidalgo sentia por ele alguma estima Havia quatro dias que o selvagem não aparecia D Antônio supunha já que ele tivesse voltado com sua tribo para os lugares onde vivia e que só deixara para fazer a guerra aos índios e portugueses A nação Goitacá dominava todo o território entre o Cabo de São Tomé e o Cabo Frio era um povo guerreiro valente e destemido que por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas Tinha arrasado completamente a colônia da Paraíba fundada por Pero de Góis e depois de um assédio de seis meses conseguira destruir igualmente a colônia de Vitória fundada no espírito Santo por Vasco Fernandes Coutinho Voltemos dessa pequena digressão histórica ao nosso herói O primeiro movimento de Cecília vendo o índio fora de susto fugira insensivelmente da janela Mas o seu bom coração irritouse contra esse receio e disselhe que ela não tinha que temer do homem que lhe salvara a vida Lembrouse que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o índio lhe mostrava deixandolhe ver a repugnância que lhe inspirava Venceu pois a timidez e assentou de fazer um sacrifício ao reconhecimento e gratidão que devia ao selvagem Chegou à janela fez com a mão alva e graciosa um gesto dizendo a Peri que se aproximasse O índio não se contendo de alegria correu para a casa enquanto Cecília ia ter com seu pai e dizialhe Vinde ver Peri que chega meu pai Ah inda bem respondeu o fidalgo E acompanhando sua filha D Antônio foi ao encontro do índio que já subia a esplanada Peri trazia um pequeno cofo tecido com extraordinária delicadeza feito de palha muito alva todo rendado por entre o crivo que formavam os fios ouviamse uns chilidos fracos e um rumor ligeiro que faziam os pequenos habitantes desse ninho gracioso O índio ajoelhou aos pés de Cecília sem animarse a levantar os olhos para ela apresentoulhe o cabaz de palha abrindo a tampa a menina assustouse mas sorriu um enxame de beijaflores esvoaçava dentro alguns conseguiram escaparse Destes um veio aninharse no seu seio o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura como se tomasse a sua boquinha rosada por um fruto A menina admirava essas avezinhas brilhantes umas escarlates outras azuis e verdes mas todas de reflexos dourados e formas mimosas e delicadas Vendose esses íris animados acreditase que a natureza os criou com um sorriso para viverem de pólen e de mel e para brilharem no ar como as flores na terra e as estrelas no céu Quando Cecília se cansou de admirálos tomouos um por um beijouos aqueceuos no seio e sentiu não ser uma flor bela e perfumada para que eles a beijassem também e esvoaçassem constantemente em torno dela Peri olhava e era feliz pela primeira vez depois que a salvara tinha sabido fazer uma coisa que trouxera um sorriso de prazer aos lábios da senhora Entretanto apesar dessa felicidade que sentia interiormente era fácil de ver que o índio estava triste ele chegouse para D Antônio de Mariz e disselhe Peri vai partir Ah disse o fidalgo voltas aos teus campos Sim Peri volta à terra que cobre os ossos de Ararê D Antônio encheu o índio de presentes dados em seu nome e em nome de sua filha Perguntai a ele por que razão parte e nos deixa meu pai disse Cecília O fidaldo traduziu a pergunta Porque a senhora não precisa de Peri e Peri deve acompanhar sua mãe e seus irmãos E se a pedra quiser fazer mal à senhora quem a defenderá perguntou a menina sorrindo e fazendo alusão à narração do índio Ouvindo dos lábios de D Antônio a pergunta o selvagem não soube o que responder porque lhe lembrava um pensamento que já tinha passado por seu espírito temia que na sua ausência a menina corresse um perigo e ele não estivesse junto dela para salvála Se a senhora manda disse enfim Peri fica Cecília apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio riuse daquela cega obediência mas era mulher um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça Ver aquela alma selvagem livre como as aves que planavam no ar ou como os rios que corriam na várzea aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra prostrarse a seus pés submissa vencida escrava Era preciso que não fosse mulher para não sentir o orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigandoa a curvarse diante do seu olhar As mulheres têm isso de particular reconhecendose fracas a sua maior ambição é reinar pelo imã dessa mesma fraqueza sobre tudo o que é forte grande e superior a elas não amam a inteligência a coragem o gênio o poder senão para vencêlos e subjugálos Entretanto a mulher deixase bastantes vezes dominar mas e sempre pelo homem que não lhe excitando a admiração não irrita a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a força Cecília era uma menina ingênua e inocente que nem sequer tinha consciência do seu poder e do encanto de sua casta beleza mas era filha de Eva e não podia se eximir de um quase nada de vaidade A senhora não quer que Peri parta disse ela com um arzinho de rainha e fazendo um gesto com a cabeça O índio compreendeu perfeitamente o gesto Peri fica Vede Cecília replicou D Antônio rindo ele te obedece Cecília sorriu Minha filha te agradece o sacrifício Peri continuou o fidalgo mas nem ela nem eu queremos que abandones a tua tribo A senhora mandou respondeu o índio Ela queria ver se tu lhe obedecias conheceu a tua dedicação está satisfeita consente que partas Não Mas os teus irmãos tua mãe tua vida livre Peri é escravo da senhora Mas Peri é um guerreiro e um chefe A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri mil arcos ligeiros como o vôo do gavião Assim decididamente queres ficar Sim e como tu não queres dar a Peri a tua hospitalidade uma árvore da floresta lhe servirá de abrigo Tu me ofendes Peri exclamou o fidalgo a minha casa está aberta para todos e sobretudo para ti que és amigo e salvaste minha filha Não Peri não te ofende mas sabe que tem a pele cor de terra E o coração de ouro Enquanto D Antônio continuava a insistir com o índio para que partisse ouviuse um canto monótono que saia da floresta Peri aplicou o ouvido descendo à esplanada correu na direção donde partia a voz que cantava com a cadência triste e melancólica particular aos índios a seguinte endecha na língua dos Guaranis A estrela brilhou partimos com a tarde A brisa soprou nos leva nas asas A guerra nos trouxe vencemos A guerra acabou voltamos Na guerra os guerreiros combatem há sangue Na paz as mulheres trabalham há vinho A estrela brilhou é hora de partir A brisa soprou é tempo de andar A pessoa que modulava esta canção selvagem era uma índia já idosa encostada a uma árvore da floresta ela vira por entre a folhagem a cena que passava na esplanada Chegandose a ela Peri ficou triste e vexado Mãe exclamou ele Vem disse a índia seguindo pela mata Não Nós partimos Peri fica A índia fitou em seu filho um olhar de profunda admiração Teus irmãos partem O selvagem não respondeu Tua mãe parte O mesmo silêncio Teu campo te espera Peri fica mãe disse ele com a voz comovida Por quê A senhora mandou A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília Sentiu que ia perder o filho orgulho de sua velhice como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade Uma lágrima deslizou pela sua face cor de cobre Mãe toma o arco de Peri enterra junto dos ossos de seu pai e queima a cabana de Ararê Não se algum dia Peri voltar achará a cabana de seu pai e sua mãe para amálo tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu Peri abanou a cabeça com tristeza Peri não voltará Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero O fruto que cai da árvore não torna mais a ela a folha que se despega do ramo murcha seca e morre o vento a leva Peri é a folha tu és a árvore mãe Peri não voltará ao teu seio A virgem branca salvou tua mãe devia deixála morrer para não lhe roubar seu filho Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água queima e mata tudo que se chega a ela Estas palavras foram acompanhadas de um olhar de ameaça em que se revelava a ferocidade do tigre que defende os seus cachorrinhos Mãe não ofende a senhora Peri morreria e na última hora não se lembraria de ti Os dois ficaram algum tempo em silêncio Tua mãe fica disse a índia com um acento de resolução E quem será a mãe da tribo Quem guardará a cabana de Peri Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê forte entre os mais fortes Quem dirá quantas vezes a nação Goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros e ensinar aos filhos os costumes dos velhos Peri preferiu estas palavras com a exaltação que despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem a índia ficou pensativa e respondeu Tua mãe volta vai te esperar na porta da cabana à sombra do jambeiro se a flor do jambo vier sem Peri tua mãe não verá os frutos da árvore A índia pousou as mãos sobre os ombros de seu filho e encostou a fronte na fronte dele durante um momento as lágrimas que saltavam dos olhos de ambos se confundiram Depois ela afastouse lentamente Peri seguiua com os olhos ate que desapareceu na floresta esteve a correr chamála e partir com ela Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu pai ficou Nessa mesma noite construirá aquela pequena cabana que se via na ponta do rochedo e que ia ser o seu mundo Passaram três meses Cecília que um momento conseguira vencer a repugnância que sentia pelo selvagem quando lhe ordenara que ficasse não se lembrou da ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia Quando o índio chegavase a ela soltava um grito de susto ou fugia ou ordenavalhe que se retirasse Peri que já falava e entendia o português afastavase triste e humilde Entretanto a sua dedicação não se desmentia ele acompanhava a D Antônio de Mariz nas suas excursões ajudavao com a sua experiência guiavao aos lugares onde havia terrenos auríferos ou pedras preciosas De volta destas expedições corria todo o dia os campos para procurar um perfume uma flor um pássaro que entregava ao fidalgo e pedialhe desse a Ceci pois já não se animava a chegarse para ela com receio de desgostála Ceci era o nome que o índio dava à sua senhora depois que lhe tinham ensinado que ela se chamava Cecília Um dia a menina ouvindo chamarse assim por ele e achando um pretexto para zangarse contra o escravo humilde que obedecia ao seu menor gesto repreendeuo com aspereza Por que me chamas tu Ceci O índio sorriu tristemente Não sabes dizer Cecília Peri pronunciou claramente o nome da moça com todas as sílabas isto era tanto mais admirável quanto a sua língua não conhecia quatro letras das quais uma era o L Mas então disse a menina com alguma curiosidade se tu sabes o meu nome por que não o dizes sempre Porque Ceci é o nome que Peri tem dentro da alma Ah é um nome de tua língua Sim O que quer dizer O que Peri sente Mas em português Senhora não deve saber A menina bateu com a ponta do pé no chão e fez um gesto de impaciência D Antônio passava Cecília correu ao seu encontro Meu pai dizeime o que significa Ceci nessa língua selvagem que falais Ceci disse o fidalgo procurando lembrarse Sim É um verbo que significa doer magoar A menina sentiu um remorso reconheceu a sua ingratidão e lembrandose do que devia ao selvagem e da maneira por que o tratava achouse má egoísta e cruel Que doce palavra disse ela a seu pai parece um canto de pássaro Desde este dia foi boa para Peri pouco a pouco perdeu o susto começou a compreender essa alma inculta viu nele um escravo depois um amigo fiel e dedicado Chamame Ceci dizia às vezes ao índio sorrindose este doce nome me lembrará que fui má para ti e me ensinará a ser boa V VILANIA E tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns fatos anteriores Voltemos pois ao lagar em que se achavam Loredano e seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soara no meio deles Os dois cúmplices supersticiosos como eram as pessoas de baixa classe naquele tempo atribuíam o fato a uma causa sobrenatural e viam nele um aviso do céu Loredano porém não era homem que cedesse a semelhante fraqueza tinha ouvido uma voz e essa voz embora surda e cava devia ser de um homem Quem ele era Seria D Antônio de Mariz Seria algum dos aventureiros Não podia saber o seu espírito perdiase num caos de dúvidas e incertezas Fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões para que o seguissem e apertando ao seio o fatal pergaminho causa de tantos crimes lançouse pelo campo Teriam feito umas cinqüenta braças do caminho quando viram cortar pela vereda que eles seguiam um cavalheiro que o italiano reconheceu imediatamente era Álvaro O moço procurava a solidão para pensar em Cecília mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não podia compreender Vira de longe a janela de Cecília abrirse as duas moças aparecerem trocarem um olhar depois Isabel cair de joelhos aos pés de sua prima Se ele tivesse ouvido o que já sabemos teria perfeitamente compreendido mas longe como estava apenas podia ver sem ser visto das duas moças Loredano vendo o cavalheiro passar voltouse para os seus companheiros Eilo disse com um olhar que brilhou de alegria Imbecis que atribuís ao céu aquilo que não sabeis explicar E acompanhou estas palavras com um sorriso de profundo desprezo Esperaime aqui O que ides fazer perguntou Rui Soeiro O italiano se voltou surpreso depois levantou os ombros como se a pergunta do seu companheiro não merecesse resposta Rui Soeiro que conhecia o caráter desse homem entendeu o gesto um resquício de generosidade que ainda havia no seu coração corrompido o fez segurar o braço do seu companheiro para retêlo Quereis que fale disse Loredano E mais um crime inútil acudiu Bento Simões O italiano fitou nele os olhos frios como o contato do aço polido Há um mais útil amigo Simões cuidaremos dele a seu tempo E sem esperar a réplica meteuse pelas moitas que cobriam o campo nesse lugar e seguiu Álvaro que continuava lentamente o seu caminho O moço apesar de preocupado tinha o hábito da vida arriscada dos nossos caçadores do interior obrigados a romper as matas virgens Aí o homem vêse cercado de perigos por todos os lados da frente das costas à esquerda à direita do ar da terra pode surgir de repente um inimigo oculto pela folhagem que se aproxima sem ser visto A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe distinguir entre os rumores vagos da floresta aquele que é produzido por uma ação mais forte do que a do vento assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores Álvaro tinha esse dom dos caçadores hábeis apenas o vento lhe trouxe um estalido de folhas secas pisadas levantou a cabeça e circulou o campo com os olhos depois por prudência encostouse ao grosso tronco de uma árvore isolada e cruzando os braços sobre a clavina esperou Nessa posição o inimigo qualquer que ele fosse fera réptil ou homem não o podia atacar senão de face ele o veria aproximarse e o receberia Loredano agachado entre as folhas tinha notado este movimento e hesitara mas o seu segredo estava comprometido a suspeita que concebera de que Álvaro fora quem há pouco o ameaçara com a palavra traidores acabava de confirmarse no seu espírito vendo a prudência com que o moço evitava uma surpresa O cavalheiro era um inimigo terrível e jogava todas as armas com uma destreza admirável A lâmina de sua espada como uma cobra elástica flexível rápida volteava sibilando e atirava o bote com a velocidade e a certeza da cascavel O arremesso do seu punhal vibrado pelo braço ligeiro e auxiliado pela agilidade do corpo era como raio listrava no ar uma cruz de fogo e caia sobre o peito do inimigo e o fulminava A bala de sua clavina era uma mensageira fiel que ia buscar a ave que pairava no ar ou a folha que o vento agitava Muitas vezes na esplanada da casa o italiano vira Álvaro depois de ter feito milagres de pontaria quebrar no ar as setas que Peri atirava de propósito para lhe servirem de alvo Cecília aplaudia batendo as mãos Peri ficava contente por ver a senhora alegre e embora para ele que fazia muito mais aquilo fosse uma coisa vulgar deixava que o moço conservasse a superioridade e fosse por todos admirado Mas Álvaro sabia que só um homem podia lutar com ele e levarlhe vantagem em qualquer arma e esse era Peri porque juntava à arte a superioridade do selvagem habituado desde o berço à guerra constante que é a sua vida Loredano tinha pois razão de hesitar em atacar de frente um inimigo desta força mas a necessidade urgia e o italiano era corajoso e ágil também Endireitou para o cavalheiro resolvido a morrer ou a salvar a sua vida e a sua fortuna Álvaro vendoo aproximarse rugou o sobrolho depois do que se tinha passado na véspera e nessa manhã odiava aquele homem ou antes desprezavao Aposto que tivestes o mesmo pensamento que eu sr cavalheiro disse o aventureiro quando chegou a três passos de distancia Não sei o que pretendeis dizer replicou o moço secamente Pretendo sr cavalheiro que dois homens que se odeiam achamse melhor num lagar solitário do que no meio dos companheiros Não é ódio que me inspirais é deprezo é mais do que desprezo é asco O réptil que se roja pelo chão causame menos repugnância do que o vosso aspecto Não disputemos sobre palavras sr cavalheiro tudo vem dar no mesmo eu vos odeio vós me desprezais podia dizervos outro tanto Miserável exclamou o cavalheiro levando a mão à guarda da espada O movimento foi tão rápido que a palavra soou ao mesmo tempo que a ponta da lamina de aço batendo na face do italiano Loredano quis evitar o insulto mas não era tempo seus olhos injetaramse de sangue Sr cavalheiro deveisme satisfação do insulto que me acabais de fazer É justo respondeu Álvaro com dignidade mas não à espada que é a arma do cavalheiro tirai o vosso punhal de bandido e defendeivos Proferindo estas palavras o moço embainhou a espada com toda a calma seguroua à cinta para não embaraçarlhe os movimentos e sacou o seu punhal excelente folha de Damasco Os dois inimigos marcharam um para o outro e lançaramse o italiano era ágil e forte e defendiase com suma destreza por duas vezes já o punhal de Álvaro roçandolhe o pescoço tinha cortado o talho de seu gibão de belbute De repente Loredano fincando os pés deu um pulo para trás e ergueu a mão esquerda em sinal de trégua Estais satisfeito perguntou Álvaro Não sr cavalheiro mas penso que em vez de nos estarmos aqui a fatigar inutilmente melhor seria tomarmos um meio mais expedito Escolhei o que quiserdes menos a espada o mais me é indiferente Outra coisa ainda se nos batermos aqui podemos incomodarnos reciprocamente porque pretendo matarvos e creio que o mesmo desejo tendes a meu respeito Ora é preciso que desapareça o que ficar e o outro não leve um vestígio que o possa denunciar Que quereis fazer neste caso O rio está aqui perto tendes a vossa clavina colocarnosemos cada um sobre uma ponta do rochedo aquele que cair morto ou simplesmente ferido pertencerá ao rio e à cachoeira não incomodará o outro Tendes razão é melhor assim eu me envergonharia se D Antônio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade Sigamos sr cavalheiro nós nos odiamos bastante para não gastarmos tempo em palavras Ambos tomaram na direção do rio cujo estrépito ouviase distintamente Álvaro valente e corajoso desprezava muito o seu inimigo para ter o menor receio dele demais a sua alma nobre e leal incapaz da mais pequena vilania não pensava na traição Nunca podia lembrarlhe que um homem que o viera provocar e ia medirse com ele num combate franco levasse a infâmia a ponto de querer ferilo pelas costas Assim continuou a caminhar quando o italiano deixando cair de propósito a cinta da espada parou um instante para apanhála e prendêla de novo O que passava então no seu espírito não estava de acordo com as idéias nobres do cavalheiro vendo o moço adiantarse disse consigo Preciso da vida desse homem eu a tenho Seria uma loucura deixála escapar e pôr a minha em risco Um duelo neste deserto sem testemunhas é um combate em que a vitória pertence ao mais esperto Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina com toda a cautela e seguia de longe a Álvaro a fim de que o ranger do ferro ou o silêncio de suas pisadas não excitassem a atenção do moço Álvaro caminhava tranqüilamente seu pensamento estava bem longe dele e esvoaçava em torno da imagem de Cecília junto da qual via os grandes olhos negros e aveludados de Isabel embebidos numa languidez melancólica era a primeira vez que aquele rosto moreno e aquela beleza ardente e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro dos seus amores Donde provinha isto O moço não sabia explicar mas um quer que seja como um pressentimento lhe dizia que naquela cena da janela havia entre as duas moças um segredo uma confidência uma revelação e que esse segredo era ele Assim quando a morte se aproximava quando já o bafejava e ia tocálo ele descuidoso e pensativo repassava no pensamento idéias de amor e alimentavase de esperanças Não se lembrava de morrer tinha consciência de si e fé em Deus mas se por acaso uma fatalidade caísse sobre ele consolavao a idéia de que Cecília ofendida lhe perdoaria um resto de ressentimento que talvez conservasse Nisto meteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim que a moça lhe dera e que já tinha murchado ao contato dos seus lábios ardentes ia beijálo ainda uma vez quando lembrouse que o italiano podia vêlo Mas não ouviu os passos do aventureiro a primeira idéia que lhe veio foi que ele tinha fugido e como a cobardia para as almas grandes se associa à baixeza lembrouse de uma traição Quis voltarse e entretanto não o fez Mostrar que tinha medo daquele miserável revoltava os seus brios de cavalheiro ergueu a cabeça com altivez e seguiu Mal sabia ele que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro caia e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano VI NOBREZA Álvaro ouviu um sibilo agudo A bala rogando pela aba rebatida de seu chapéu de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro O moço voltouse calmo sereno impassível nem um músculo de seu rosto agitouse apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o lábio superior sombreado pelo bigode negro O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos causoulhe uma surpresa extraordinária não esperava decerto ver o que se passava a dez passos dele Peri mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organização de aço com a mão esquerda segura à nuca de Loredano curvavao sob a pressão violenta e obrigavao a ajoelhar O italiano lívido com o rosto contraído e os olhos imensamente dilatados tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante O índio arrancoua e sacando a longa faca levantou o braço para cravála no alto da cabeça do italiano Mas Álvaro tinhase adiantado e aparou o golpe depois estendeu a mão ao índio Solta este miserável Peri Não A vida deste homem me pertence atirou sobre mim é a minha vez de atirar sobre ele Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras armava a clavina e apoiava a boca na fronte do italiano Ides morrer Fazei a vossa oração Peri abaixou a faca recuou um passo e esperou O italiano não respondeu a sua oração foi uma blasfêmia horrível e satânica as palpitações violentas do coração batiam de encontro ao pergaminho que tinha no seio e lembravamlhe o seu tesouro que ia talvez cair nas mãos de Álvaro e darlhe a riqueza de que não pudera gozar Entretanto na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez o orgulho do crime não suplicou não disse uma palavra sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte fechou os olhos e julgouse morto Álvaro olhouo um instante e abaixou a clavina Tu és indigno de morrer à mão de um homem e por uma arma de guerra pertences ao pelourinho e ao carrasco Seria um roubo feito à justiça de Deus Loredano abriu os olhos seu rosto iluminouse com um raio de esperança Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D Antônio de Mariz e nunca mais porás o pé neste sertão por tal preço tens a vida salva Juro exclamou o italiano O moço tirou o colar que deva três voltas sobre os ombros e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Cristo que lhe pendia do peito o aventureiro estendeu a mão e repetiu o juramento Erguete e tirate dos meus olhos E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza o cavalheiro desarmou a sua clavina voltouse para continuar o seu caminho fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse O índio enquanto se passava a rápida cena que descrevemos refletia profundamente Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus dois companheiros quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de fazer mal à sua senhora e a D Antônio de Mariz a sua primeira idéia tinha sido lançarse aos três inimigos e matálos Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava a sua indignação mas imediatamente lembrouse que ele podia morrer e que nesse caso Cecília não teria quem a defendesse Pela primeira vez na sua vida teve medo teve medo por sua senhora e sentiu não possuir mil vidas para sacrificálas todas à sua salvação Fugiu então com bastante rapidez para não ser visto pelo italiano que subia à árvore afastouse deles chegando à beira do rio lavou a sua túnica de algodão que ficara manchada de sangue não queria que soubessem que estava ferido Enquanto se entregava a este trabalho combinava um plano de ação Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse nem mesmo a D Antônio de Mariz duas razões o levavam a proceder assim a primeira era o receio de não ser acreditado pois não tinha provas com que pudesse justificar a acusação que ele índio ia fazer contra homens brancos a segunda era a confiança que tinha de que ele só bastava para desfazer todas as tramas dos aventureiros e lutar contra o italiano Assentado este primeiro ponto passou à execução do plano esta reduziase para ele em uma punição aqueles três homens queriam matar portanto deviam morrer mas deviam morrer ao mesmo tempo do mesmo golpe Peri receava que combinados como estavam se um escapasse vendo sucumbir seus companheiros se deixaria levar pelo desespero e anteciparia a realização do crime antes que ele o pudesse prevenir A sua inteligência sem cultura mas brilhante como o sol de nossa terra vigorosa como a vegetação deste solo guiavao nesse raciocínio com uma lógica e uma prudência dignas do homem civilizado previa todas as hipóteses combinava todas as probabilidades e preparavase para realizar o seu plano com a certeza e a energia de ação que ninguém possuía em grau tão elevado Assim dirigindose para a casa onde o chamava um outro dever o de avisar a D Antônio da eventualidade de um ataque dos Aimorés ele tinha passado junto de Bento Simões e Rui Soeiro e guiado pelos olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o cavalheiro Correr cair sobre o italiano desviar a pontaria e dobrálo sobre os joelhos foi um movimento tão rápido que os dois aventureiros apenas o viram passar viram ao mesmo tempo o seu companheiro subjugado A realização do projeto de Peri apresentavase naturalmente sem ser procurada Tinha o italiano na sua mão depois dele caminhava aos dois aventureiros para os quais bastava a sua faca e quando tudo estivesse consumado iria ter com D Antônio de Mariz e lhe diria Esses três homens vos traiam mateios se fiz mal punime A intervenção de Álvaro cuja generosidade salvou a vida de Loredano transtornou completamente esse plano ignorando o motivo por que Peri ameaçava o aventureiro julgando que era unicamente para punilo da tentativa que acabava de cometer perfidamente contra ele o cavalheiro a quem repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade satisfezse com o juramento e a certeza de que deixaria a casa Enquanto isto se dava Peri refletia na possibilidade de fazer as coisas voltarem à mesma posição mas conheceu que não o conseguiria Álvaro tinha recebido de D Antônio de Mariz todos os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós o moço moldava todas as suas ações todas as suas idéias por aquele tipo de barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis o rei cavalheiro Peri conhecia o caráter do moço e sabia que depois de ter dado a vida a Loredano embora o desprezasse não consentiria que em presença dele lhe tocasse num cabelo e se preciso fosse tiraria a sua espada para defender este homem que acabava de tentar contra sua existência E o índio respeitava a Álvaro não por sua causa mas por Cecília a quem ele amava qualquer desgraça que sucedesse ao cavalheiro tornaria a senhora triste e isto bastava para que a pessoa do moço fosse sagrada como tudo o que pertencia à menina ou que era necessário ao seu descanso ao seu sossego e felicidade O resultado dessa reflexão foi Peri meter a sua faca à cinta e sem importarse mais com o italiano acompanhar o cavalheiro Ambos seguiram em direção da casa caminhando ao longo da margem do rio Obrigado ainda uma vez Peri não pela vida que me salvaste mas pela estima que me tens E o moço apertou a mão do selvagem Não agradece Peri nada te fez quem te salvou foi a senhora Álvaro sorriuse da franqueza do índio e corou da alusão que havia em suas palavras Se tu morresses a senhora havia de chorar e Peri quer ver a senhora contente Tu te enganas Cecília é boa e sentiria da mesma maneira o mal que sucedesse a mim como a ti ou a qualquer dos que está acostumada a ver Peri sabe por que fala assim tem olhos que vêem e ouvidos que ouvem tu és para a senhora o sol que faz o jambo corado e o sereno que abre a flor da noite Peri exclamou Álvaro Não te zanga disse o índio com doçura Peri te ama porque tu fazes a senhora sorrir A cana quando está à beira dágua fica verde e alegre quando o vento passa as folhas dizem Ceci Tu és o rio Peri é o vento que passa docemente para não abafar o murmúrio da corrente é o vento que curva as folhas até tocarem na água Álvaro fitou no índio um olhar admirado Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples mas graciosa onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade A cena que se desenrolava a seus olhos respondeulhe a natureza brasileira tão rica e brilhante era a imagem que produzia aquele espírito virgem como o espelho das águas reflete o azul do céu Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o cedro gigante quem no reino animal desce do tigre e do tapir símbolos da ferocidade e da força até o lindo beijaflor e o inseto dourado quem olha este céu que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados que anunciam as grandes borrascas quem viu sob a verde pelúcia da relva esmaltada de flores que cobre as nossas várzeas deslizar mil répteis que levam a morte num átomo de veneno compreende o que Álvaro sentiu Com efeito o que exprime essa cadeia que liga os dois extremos de tudo o que constitui a vida Que quer dizer a força no ápice do poder aliada à fraqueza em todo o seu mimo a beleza e a graça sucedendo aos dramas terríveis e aos monstros repulsivos a morte horrível a par da vida brilhante Não é isso a poesia O homem que nasceu embalouse e cresceu nesse berço perfumado no meio de cenas tão diversas entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima da flor e do espinho do mel e do veneno não é um poeta Poeta primitivo canta a natureza na mesma linguagem da natureza ignorante do que se passa nele vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação é a flor o céu a luz a cor o ar o sol sublimes coisas que a natureza fez sorrindo A sua frase corre como o regato que serpeja ou salta como o rio que se despenha da cascata às vezes se eleva ao cimo da montanha outras desce e rasteja como o inseto sutil delicada e mimosa Eis o que a decoração da cena majestosa no meio da qual se achava à beira do Paquequer disse a Álvaro mas rapidamente por uma dessas impressões que se projetam no espírito como a luz no espaço O moço recebeu a confissão ingênua do índio sem o mínimo sentimento hostil ao contrário apreciava a dedicação que o selvagem tinha por Cecília e ia ao ponto de amar a tudo quanto sua senhora estimava Assim disse Álvaro sorrindo tu só me amas por que pensas que Cecília me quer disse o moço Peri só ama o que a senhora ama porque só ama a senhora neste mundo por ela deixou sua mãe seus irmãos e a terra onde nasceu Mas se Cecília não me quisesse como julgas Peri faria o mesmo que o dia com a noite passaria sem te ver E se eu não amasse a Cecília Impossível Quem sabe disse o moço sorrindo Se a senhora ficasse triste por ti exclamou o índio cuja pupila irradiou Sim o que farias Peri te mataria A firmeza com que eram ditas estas palavras não deixava a menor duvida sobre a sua realidade entretanto Álvaro apertou a mão do índio com efusão Peri temeu ofender o moço para desculpar a sua franqueza disselhe com um tom comovido Escuta Peri é filho do sol e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci Peri ama o vento e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci Peri gosta de ver o céu e não levantava a vista se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci Compreendote amigo votaste a tua vida inteira à felicidade dessa menina Não receies que te ofenda nunca na pessoa dela Sabes se eu a amo e não te zangues Peri se disser que a tua dedicação não é maior do que a minha Antes que me matasses creio que me mataria a mim mesmo se tivera a desgraça de fazer Cecília infeliz Tu és bom Peri quer que a senhora te ame O índio contou então a Álvaro o que se tinha passado na noite antecedente o moço empalideceu de cólera e quis voltar em busca do italiano desta vez não lhe perdoara Deixa disse o índio Ceci teria medo Peri vai endireitar isto Os dois tinham chegado perto da casa e iam entrar a cerca do vale quando Peri segurou o braço de Álvaro O inimigo da casa quer fazer mal defende a senhora se Peri morrer manda dizer à sua mãe e veras todos os guerreiros da tribo chegarem para combaterem contigo e salvarem Ceci Mas quem é o inimigo da casa Queres saber Decerto como hei de combatêlo Tu saberás Álvaro quis insistir mas o índio não lhe deu tempo meteuse de novo pelo mato enquanto o moço subia a escada ele fazia uma volta ao redor da casa e ganhava o lado para onde dava o quarto de Cecília Já tinha avistado ao longe a janela quando debaixo de uma ramagem surdiu a figura magra e esguia de Aires Gomes coberta de urtigas e ervasdepassarinho e deitando os bofes pela boca O digno escudeiro tendo encontrado em cima de sua cabeça um maldito galho desajeitado foi de narizes ao chão e estendeuse maciamente sobre a relva Apesar disto ergueuse um pouco sobre os cotovelos e gritou com toda a força dos pulmões Olá mestre bugre D Cacique Caçador de onça viva Ouve cá Peri não se voltou VII NO PRECIPÍCIO Peri tinha parado para ver Cecília de longe Aires Gomes ergueuse correu para o índio e deitoulhe a mão ao braço Afinal pilheio dom caboclo Safa Deume água pela barba disse o escudeiro resfolgando Deixa respondeu o índio sem se mover Deixarte Uma figa Depois de ter batido esta mataria toda à tua procura Tinha que ver Com efeito D Lauriana desejando ver o índio fora de casa quanto antes havia expedido o escudeiro em busca de Peri para trazêlo à presença de D Antônio de Matiz Aires Gomes fiel executor das ordens de seus amos corria o mato havia boas duas horas todos os incidentes cômicos possíveis ou imagináveis tinhamse como que de propósito colocado em seu caminho Aqui era uma casa de marimbondos que ele assanhava com o chapéu e o faziam bater em retirada honrosa correndo a todo o estirão das pernas ali era um desses lagartos de longa cauda que pilhado de improviso se enrolara pelas pernas do escudeiro com uma formidável chicotada Isto sem falar das urtigas e das unhasdegato cabeçadas e quedas que faziam o digno escudeiro arrenegarse e maldizer da selvajaria de semelhante terra Ah quem o dera nos tojos e charnecas de sua pátria Tinha pois Aires Gomes razão de sobra para não querer largar o índio causa de todas as tribulações por que passara infelizmente Peri não estava de acordo Larga já te disse exclamou o índio começando a irritarse Tem santa paciência caboclinho de minha alma Fé de Aires Gomes não é possível e tu sabes Quando eu digo que não é possível é como se a nossa madre igreja Que diabo ia rezarlhe Ai que chamei sem querer a madre igreja de diabo Forte heresia Quem se mete a tagarelar dos santos com esta casta de pagão Tagarelar dos santos Virgem Santíssima Estou incapaz Calate boca não me pies mais Enquanto o escudeiro desfiava esse discurso meio solilóquio no qual havia ao menos o mérito da franqueza Peri não o ouvia embebido como estava em olhar para a janela depois desprendendose da mão que seguravalhe o braço continuou o seu caminho Aires acompanhouo pisada sobre pisada com a impassibilidade de um autômato Que vens fazer perguntoulhe o índio E esta Seguirte e levarte à casa é a ordem Peri vai longe Ainda que vás ao fim do mundo é o mesmo filho O índio voltouse para ele com um gesto decidido Peri não quer que tu o sigas Lá quanto a isto mestre bugre perdes o teu tempo por força ainda ninguém levou o filho de meu pai que bom é que saibas foi homem de faca e calhau Peri não manda duas vezes Nem Aires Gomes olha atrás quando executa uma ordem Peri o homem da cega dedicação reconheceu no escudeiro o homem da obediência passiva sentiu que não havia meio de convencer este executor fiel assim resolveu livrarse dele por meio decisivo Quem te deu a ordem D Lauriana Para quê Para te levar à casa Peri vai só Veremos O índio tirou a sua faca Hein gritou o escudeiro A conversa vai agora nesse tom Se o Sr D Antônio não me tivesse proibido expressamente eu te mostraria Mas Podes matarme que eu não arredo pé Peri só mata o seu inimigo e tu não és tu teimas Peri te amarra Como Como é lá isso O índio começou a cortar com a maior calma um longo cipó que se engranzava pelos galhos das árvores o escudeiro meio espantado sentia a mostarda subirlhe ao nariz esteve quase não quase atirandose ao selvagem Mas a ordem de D Antônio era formal viase pois obrigado a respeitar o índio o mais que o digno escudeiro podia fazer era defenderse valentemente Quando Peri cortou umas dez braças do cipó que ia enrolando ao pescoço embainhou a faca e voltouse para o escudeiro sorrindo Aires Gomes sem trepidar puxou a espada e pôsse em guarda segundo as regras da nobre e liberal arte do jogo de espadão que professava desde a mais tenra idade Era um duelo original e curioso como talvez não tenha havido segundo combate em que as armas lutavam contra a agilidade e o ferro contra um vime delgado Mestre Cacique disse o escudeiro rugando o sobrolho deixate de partes porque palavra de Aires Gomes se te encostas espetote na durindana Peri estendeu o lábio inferior em sinal de pouco caso e começou a voltear rapidamente em torno do escudeiro num círculo de seis passos de diâmetro que o punha fora do alcance da espada a sua tenção era assaltar o adversário pelas costas Aires Gomes apoiado a um tronco e obrigado a girar sobre si mesmo para defender as costas sentiu a cabeça tontear e vacilou O índio aproveitou o momento atirouse a ele pilhouo de costas agarrouo pelos dois braços e passou a amarrálo ao mesmo tronco da árvore em que estava encostado Quando o escudeiro voltou a si da vertigem uma rodilha de cipós ligavao ao tronco desde o joelho até os ombros o índio seguira seu caminho placidamente Bugre de um demo Perro infernal gritava o digno escudeiro tu me pagarás com língua de palmo Sem prestar a menor atenção à ladainha de nomes injuriosos com que o mimoseava Aires Gomes Peri aproximouse da casa Via Cecília com a face apoiada na mão a olhar tristemente o fosso profundo que passava embaixo de sua janela A menina depois do primeiro momento de surpresa em que adivinhou o ciúme de Isabel e o seu amor por Álvaro conseguiu dominarse Tinha a nobre altivez da castidade não quis deixar ver à sua prima o que sentia nesse momento era boa também amava Isabel e não desejava magoála Não lhe disse pois uma só palavra de exprobração nem de queixa ao contrário ergueua beijoua com carinho e pediulhe que a deixasse só Pobre Isabel murmurou ela como deve ter sofrido Esqueciase de si para pensar em sua prima mas as lágrimas que saltaram de seus olhos e o soluço que fez arfar os seios mimosos a chamaram ao seu próprio sofrimento Ela a menina alegre e feiticeira que só aprendera a sorrir ela o anjinho do prazer que bafejava tudo quanto a rodeava achou um gozo inefável em chorar Quando enxugou as lágrimas sofria menos sentiuse aliviada pôde então refletir sobre o que havia passado O amor revelavase para ela sob uma nova forma até aquele dia a afeição que sentia por Álvaro era apenas um enleio que a fazia corar e um prazer que a fazia sorrir Nunca se lembrara que esta afeição pudesse passar daquilo que era e produzir outras emoções que não fossem o rubor e o sorriso o exclusivismo do amor a ambição de tornar seu e unicamente seu o objeto da paixão acabava de serlhe revelado por sua prima Ficou por muito tempo pensativa consultou o seu coração e conheceu que não amava assim nunca a afeição que tinha a Álvaro podia obrigála a odiar sua prima a quem queria como irmã Cecília não compreendia essa lata do amor com os outros sentimentos do coração luta terrível em que quase sempre a paixão vitoriosa subjuga o dever e a razão Na sua ingênua simplicidade acreditava que podia ligar perfeitamente a veneração que tinha por seu pai o respeito que votava à sua mãe o afeto que sentia por Álvaro o amor fraternal que consagrava a seu irmão e a Isabel e a amizade que tinha a Peri Estes sentimentos eram toda a sua vida no meio deles sentiase feliz nada lhe faltava também nada mais ambicionava Enquanto pudesse beijar a mão de seu pai e de sua mãe receber uma carícia de seu irmão e de sua prima sorrir a seu cavalheiro e brincar com o seu escravo a existência para ela seria de flores Assustouse pois com a necessidade de quebrar um dos fios de ouro que teciam os seus dias inocentes e felizes sofreu com a idéia de ver em luta duas das afeições calmas e serenas de sua vida Teria menos um encanto na sua vida menos uma imagem nos seus sonhos menos uma flor na sua alma porém não faria a ninguém desgraçado e sobretudo à sua prima Isabel que às vezes se mostrava tão melancólica Restavamlhe suas outras afeições com elas pensava Cecília que a existência ainda podia sorrirlhe não devia tornarse egoísta Para assim pensar era preciso ser uma menina pura e isenta como ela era preciso ter o coração como recente botão que ainda não começou a desatarse com o primeiro raio do sol Estes pensamentos adejavam ainda na mente de Cecília enquanto ela olhava pensativa o fosso onde tinha caldo o objeto que viera modificar a sua existência Se eu pudesse obter essa prenda dizia consigo Mostraria a Isabel como eu a amo e quanto a desejo feliz Vendo sua senhora olhar tristemente o fundo do precipício Peri compreendeu parte do que passava no seu espírito sem poder adivinhar como Cecília soubera que o objeto tinha caldo ali percebeu que a moça sentia por isso um pesar Nem tanto bastava para que o índio fizesse tudo a fim de trazer a alegria ao rostinho de Cecília além de que já tinha prometido a Álvaro endireitar isto como ele dizia na sua linguagem simples Chegouse ao fosso Uma cortina de musgos e trepadeiras lastrando pelas bordas do profundo precipício cobria as fendas da pedra por cima era um tapete de verde risonho sobre o qual adejavam as borboletas de cores vivas embaixo uma cava cheia de limo onde a luz não penetrava Às vezes ouviamse partir do fundo do balseiro os silvos das serpentes os pios tristes de algum pássaro que magnetizado ia entregarse à morte ou o tanger de um pequeno chocalho sobre a pedra Quando o sol estava a pino como então viase entre a relva sobre o cálice das campânulas roxas os olhos verdes de alguma serpente ou uma linda fita de escamas pretas e vermelhas enlaçando a haste de um arbusto Peri pouco se importava com estes habitantes do fosso e com o acolhimento que lhe fariam na sua morada o que o inquietava era o receio de que não tivesse luz bastante no fundo para descobrir o objeto que ia procurar Cortou o galho de uma árvore que pela sua propriedade os colonizadores chamaram candeia tirou o fogo e começou a descer com o facho aceso Foi só nessa ocasião que Cecília embebida nos seus pensamentos viu defronte de sua janela o índio a descer pela encosta A menina assustouse porque a presença de Peri lembroulhe de repente o que se passara pela manhã era mais uma afeição perdida Dois laços quebrados ao mesmo tempo dois hábitos rompidos um sobre o outro era muito duas lágrimas correram pelas suas faces como se cada uma fosse vertida pelas cordas do coração que acabavam de ser vibradas Peri O índio levantou os olhos para ela Tu choras senhora disse ele estremecendo A menina sorriulhe mas com um sorriso tão triste que partia a alma Não chora senhora disse o índio suplicante Peri vai te dar o que desejas O que eu desejo Sim Peri sabe A moça abanou a cabeça Está ali e apontou para o fundo do precipício Quem te disse perguntou a menina admirada Os olhos de Peri Tu viste Sim O índio continuou a descer Que vais fazer exclamou Cecília assustada Buscar o que é teu Meu murmurou melancolicamente Ele te deu Ele quem Álvaro A moça corou mas o susto reprimiu o pejo abaixando os olhos sobre o precipício tinha visto um réptil deslizando pela folhagem e ouvido o murmúrio confuso e sinistro que vinha do fundo do abismo Peri disse empalidecendo não desças volta Não Peri não volta sem trazer o que te fez chorar Mas tu vais morrer Não tem medo Peri disse Cecília com severidade tua senhora manda que não desças O índio parou indeciso uma ordem de sua senhora era uma fatalidade para ele cumpriase irremissivelmente Fitou na moça um olhar tímido nesse momento Cecília vendo Álvaro na ponta da esplanada junto da cabana do selvagem retiravase para dentro da janela corando O índio sorriu Peri desobedecer à tua voz senhora para obedecer ao teu coração E o índio desapareceu sob as trepadeiras que cobriam o precipício Cecília soltou um grito e debruçouse no parapeito à janela VIII O BRACELETE O que Cecília viu debruçandose à janela geloua de espanto e horror De todos os lados surgiam répteis enormes que fugindo pelos alcantis lançavamse na floresta as víboras escapavam das fendas dos rochedos e aranhas venenosas suspendiamse aos ramos das árvores pelos fios da teia No meio do concerto horrível que formava o sibilar das cobras e o estrídulo dos grilos ouviase o canto monótono e tristonho da cauã no fundo do abismo O índio tinha desaparecido apenas se via o reflexo da luz do facho Cecília pálida e trêmula julgava impossível que Peri não estivesse morto e já quase devorado por esses monstros de mil formas chorava o seu amigo perdido e balbuciava preces pedindo a Deus um milagre para salválo Às vezes fechava os olhos para não ver o quadro terrível que se desenrolava diante dela e abriaos logo para perscrutar o abismo e descobrir o índio Em um desses momentos um dos insetos que pululavam no meio da folhagem agitada esvoaçou e veio pousar no seu ombro era uma esperança um desses lindos coleópteros verdes que a poesia popular chama lavandeiradedeus A alma nos momentos supremos de aflição suspendese ao fio o mais tênue da esperança Cecília sorriuse entre as lágrimas tomou a lavandeira entre os seus dedos rosados e acaricioua Precisava esperar esperou reanimouse e pôde preferir uma palavra ainda com a voz trêmula e fraca Peri No curto instante que sucedeu a este chamado sofreu uma ansiedade cruel se o índio não respondesse estava morto mas Peri falou Espera senhora Entretanto apesar da alegria que lhe causaram estas palavras pareceu à menina que eram pronunciadas por um homem que sofria a voz chegoulhe ao ouvido surda e rouca Estás ferido perguntou inquieta Não houve resposta um grito agudo partiu do fundo do abismo e ecoou pelas fráguas depois a cauã cantou de novo e uma cascavel silvando bravia passou seguida por uma ninhada de filhos Cecília vacilou soltando um gemido plangente caiu desmaiada de encontro à almofada da janela Quando passado um quarto de hora a menina abriu os olhos viu diante dela Peri que chegava naquele momento e lhe apresentava sorrindo uma bolsa de malha de retrós dentro da qual havia uma caixinha de velado escarlate Sem se importar com a jóia Cecília ainda impressionada pelo quadro horrível que presenciara tomou as mãos do índio e perguntoulhe com sofreguidão Não estás mordido Peri Não sofres Dize O índio olhoua admirado do susto que via no seu semblante Tiveste medo senhora Muito exclamou a menina O índio sorriu Peri é um selvagem filho das florestas nasceu no deserto no meio das cobras elas conhecem Peri e o respeitam O índio dizia a verdade o que acabava de fazer era a sua vida de todos os dias no meio dos campos não havia nisto o menor perigo Tinhalhe bastado a luz do seu facho e o canto da cauã que ele imitava perfeitamente para evitar os répteis venenosos que são devorados por essa ave Com este simples expediente de que os selvagens ordinariamente se serviam quando atravessavam as matas de noite Peri descera e tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos de uma trepadeira a bolsa de seda que adivinhou ser o objeto dado por Álvaro Soltou então um grito de prazer que Cecília tomou por grito de dor assim como antes tinha tomado o eco do precipício por uma voz cava e surda Entretanto Cecília que não podia compreender como um homem passava assim no meio de tantos animais venenosos sem ser ofendido por eles atribuía a salvação do índio a um milagre e considerava a ação simples e natural que acabava de praticar como um heroísmo admirável A sua alegria por ver Peri livre de perigo e por ter nas suas mãos a prenda de Álvaro foi tal que esqueceu tudo o que se tinha passado A caixinha continha um simples bracelete de pérolas mas estas eram do mais paro esmalte e lindas como pérolas que eram bem mostravam que tinham sido escolhidas pelos olhos de Álvaro e destinadas ao braço de Cecília A menina admirouas um momento com o sentimento de faceirice que é inato na mulher e lhe serve de sétimo sentido pensou que devia irlhe bem esse bracelete levada por esta idéia cingiuo ao braço e mostrou a Peri que a contemplava satisfeito de si mesmo Peri sente uma coisa O quê Não ter contas mais bonitas do que estas para darte E por que sentes isso Porque te acompanhariam sempre Cecília sorriu ia fazer uma travessura Assim tu ficarias contente se tua senhora em vez de trazer este bracelete trouxesse um presente dado por ti Muito E o que me dás tu para que eu me faça bonita perguntou a menina gracejando O índio correu os olhos ao redor de si e ficou triste podia dar a sua vida que de nada valia mas onde iria ele pobre selvagem buscar um adorno digno de sua senhora Cecília teve pena do seu embaraço Vai buscar uma flor que tua senhora deitará nos seus cabelos em vez deste bracelete que ela nunca deitará no seu braço Estas últimas palavras foram ditas com um tom de energia que revelava a firmeza do caráter desta menina ela fechou outra vez o bracelete na caixa e ficou um momento melancólica e pensativa Peri voltou trazendo uma linda flor silvestre que encontrara no jardim era uma parasita aveludada de lindo escarlate A menina prendeu a flor nos cabelos satisfeita por ter cumprido um inocente desejo de Peri que só vivia para cumprir os seus e dirigiuse ao quarto de sua prima ocultando no seio a caixinha de veludo Isabel pretextara uma indisposição não saíra do seu quarto depois que voltara do aposento de Cecília tendo traído o segredo de seu amor As lágrimas que derramou não foram como as de sua prima de alivio e consolo foram lágrimas ardentes que em vez de refrescarem o coração o queimam como o rescaldo da paixão Às vezes ainda umedecidos de pranto seus olhos negros brilhavam com um fulgor extraordinário parecia que um pensamento delirante passava rapidamente no seu espírito desvairado Então ajoelhavase e fazia uma oração no meio da qual suas lágrimas vinham de novo orvalharlhe as faces Quando Cecília entrou ela estava sentada à beira do leito com os olhos fitos na janela por entre a qual se via uma nesga do céu Estava bela da melancolia e languidez que prostrava o seu corpo num enlevo sedutor fazendo realçar as linhas harmoniosas de seu talhe gracioso Cecília aproximouse sem ser vista e estalou um beijo na face morena de sua prima Já te disse que não te quero ver triste Cecília exclamou Isabel sobressaltandose Que é isto Façote medo Não mas Mas o quê Nada Sei o que queres dizer Isabel julgaste que conservava uma queixa de ti Confessa Julguei disse a moca balbuciando que me tinha tornado indigna de tua amizade E por quê Fizesteme tu algum mal Não somos nós duas irmãs que nos devemos amar sempre Cecília o que tu dizes não é o que tu sentes exclamou Isabel admirada Algum dia te enganei replicou Cecília magoada Não perdoa porém é que A moça não continuou o olhar terminou o seu pensamento e exprimiu o espanto que lhe causava o procedimento de Cecília Mas de repente uma idéia assaltoulhe o espírito Cuidou que Cecília não tinha ciúmes dela porque a julgava indigna de merecer um só olhar de Álvaro esta lembrança a fez sorrir amargamente Assim está entendido disse Cecília com volubilidade nada se passou entre nós não é verdade Tu o queres Quero sim nada se passou somos as mesmas com uma diferença acrescentou Cecília corando que de hoje em diante tu não deves ter segredos para comigo Segredos Tinha um que já te pertence murmurou Isabel Porque o adivinhei Não é assim que desejo prefiro ouvir de tua boca quero consolarte quando estiveres toda tristezinha como agora e rirme contigo quando ficares contente Sim Ah nunca Não me peças uma coisa impossível Cecília Já sabes demais não me obrigues a morrer a teus pés de vergonha E por que te causaria isto vergonha Assim como tu me amas não podes amar uma outra pessoa Isabel escondeu o rosto nas mãos para disfarçar o rubor que subialhe às faces Cecília um pouco comovida olhava sua prima e compreendia nesse momento a causa por que ela própria corava quando sentia os olhos de Álvaro fitos nos seus Cecília disse Isabel fazendo um esforço supremo não me iludas minha prima tu és boa tu me amas e não queres magoarme mas não zombes da minha fraqueza Se soubesses como sofro Não te iludo já te disse não desejo que sofras e menos que sofras por minha causa entendes Entendo e jurote que saberei fazer calar meu coração se for preciso ele morrerá antes do que darte uma sombra de tristeza Não exclamou Cecília tu não me compreendes não é isto que eu te peço bem ao contrário quero que sejas feliz Que eu seja feliz perguntou Isabel arrebatadamente Sim respondeu a menina abraçandoa e falandolhe baixinho ao ouvido que o ames a ele e a mim também Isabel ergueuse pálida e duvidando do que ouvia Cecília teve bastante força para sorrirlhe com um dos seus divinos sorrisos Não é impossível Tu me queres tornar louca Cecília Quero tornarte alegre respondeu a menina acariciandoa quero que deixes esse rostinho melancólico e me abraces como tua irmã Não o mereço Oh sim minha irmã tu és um anjo de bondade mas o teu sacrifício é perdido eu não posso ser feliz Cecília Por quê Porque ele te ama murmurou Isabel A menina corou Não digas isto é falso E bem verdade Ele te disse Não mas adivinheio antes de ti mesma Pois te enganaste e sabes que mais não me fales nisto Que me importa o que ele sente a meu respeito E a menina conhecendo que a emoção se apoderava dela fugiu mas voltou da porta Ah esquecime de darte uma coisa que trouxe para ti Tirou a caixinha de veludo e abrindoa atou o bracelete de pérolas ao braço de Isabel Como te vão bem Como assentam no teu moreno tão lindo Ele te achará bonita Este bracelete Isabel teve de repente uma suspeita A menina percebeu ia mentir pela primeira vez na sua vida Foi meu pai que mo deu ontem mandou vir dois irmãos um para mim e outro que eu lhe pedi para ti Assim não tens que recusar senão agastome contigo Isabel abaixou a cabeça Não o tires eu vou deitar o meu e ficaremos irmãs Adeus até logo E apinhando os dedos atirou um beijo à prima e saiu correndo A travessura e jovialidade do seu gênio já tinham dissipado as impressões tristes da manhã IX TESTAMENTO No momento em que Cecília deixou Isabel D Antônio de Mariz subia a esplanada preocupado por algum objeto importante que dava à sua fisionomia expressão ainda mais grave que a habitual O velho fidalgo avistou de longe seu filho D Diogo e Álvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa fezlhes sinal de que se aproximassem Os moços obedeceram prontamente e acompanharam D Antônio de Mariz até o seu gabinete darmas pequena saleta que ficava ao lado do oratório e que nada tinha de notável a não ser a portinha de uma escada que descia para uma espécie de cava ou adega servindo de paiol Na ocasião em que se abriram os alicerces da casa os obreiros descobriram um socavão profundo talhado na pedra D Antônio como homem previdente lembrandose da necessidade que teria para o futuro de não contar senão com os seus próprios recursos mandou aproveitar essa abóbada natural e fazer dela um depósito que pudesse conter algumas arrobas de pólvora O fidalgo achara ainda uma outra grande vantagem na sua lembrança era a tranqüilidade de sua família cuja vida não estaria sujeita a um descuido de qualquer doméstico ou aventureiro porque no seu gabinete darmas ninguém entrava senão estando ele presente D Antônio sentouse junto da mesa coberta com um couro de moscóvia e fez sinal aos dois moços para que se sentassem a seu lado Tenho que falarvos de objeto muito sério de objeto de família disse o fidalgo Chameivos para me ouvirdes como em uma coisa que vos interessa e a mim antes do que a todos D Diogo inclinouse diante de seu pai Álvaro imitouo sentindo um sobressalto ao ouvir aquelas palavras graves e pausadas do velho fidalgo Tenho sessenta anos continuou D Antônio estou velho O contato deste solo virgem do Brasil o ar paro destes desertos remoçoume durante os últimos anos mas a natureza reassume os seus direitos e sinto que o antigo vigor cede a lei da criação que manda voltar à terra aquilo que veio da terra Os dois moços iam dizer alguma doce palavra como quando procuramos iludir a verdade àqueles a quem prezamos esforçando por nos iludirmos a nós próprios D Antônio conteveos com um gesto nobre Não me interrompais Não é uma queixa que vos faço é sim uma declaração que deveis receber pois é necessária para que possais compreender o que tenho de dizervos ainda Quando durante quarenta anos jogamos nossa vida quase todos os dias quando vimos a morte cem vezes sobre nossa cabeça ou debaixo de nossos pés podemos olhar tranqüilos o termo da viagem que fazemos neste vale de lágrimas Oh nunca duvidamos de vós meu pai exclamou D Diogo mas é a segunda vez em dois dias que me falais da possibilidade de uma tal desgraça e esta só idéia me assusta Estais forte e vigoroso ainda Decerto retrucou Álvaro dizíeis há pouco que o Brasil vos tinha remoçado e eu afirmovos que ainda estais na juventude da segunda vida que vos deu o novo mundo Obrigado Álvaro obrigado meu filho disse D Antônio sorrindo quero acreditar nas vossas palavras Contudo julgareis que é prudente da parte de um homem que chega ao último quartel da vida dispor a sua última vontade e fazer o seu testamento O vosso testamento meu pai disse D Diogo pálido Sim a vida pertence a Deus e o homem que pensa no futuro deve prevenilo E costume encarregarse isto a um escriba nem o tenho aqui nem o julgo necessário Um fidalgo não pode confiar melhor a sua última vontade do que a duas almas nobres e leais como as vossas Perdese um papel rompese queimase o coração de um cavalheiro que tem sua espada para defendêlo e seu dever para guiálo é um documento vivo e um executor fiel Este será pois o meu testamento Ouvime Os dois cavalheiros conheceram pela firmeza com que falava D Antônio que sua resolução era inabalável se dispuseram a ouvilo com uma emoção de tristeza e respeito Não trato de vós D Diogo a minha fortuna pertencevos como chefe da família que sereis não trato de vossa mãe porque perdendo um esposo restarlheá um filho devotado amovos a ambos e vos bendirei na última hora Há porém duas coisas que mais prezo neste mundo duas coisas sagradas que devo zelar como um tesouro ainda mesmo depois que me partir desta vida É a felicidade de minha filha e a nobreza do meu nome uma foi presente que recebi do céu o outro legado que me deixou meu pai O fidalgo fez pausa e volveu um olhar do rosto triste de D Diogo para G semblante de Álvaro que estava em extraordinária agitação A vós D Diogo transmito o legado de meu pai estou convencido que conservareis o seu nome tão puro como a vossa alma e os esforçareis por eleválo servindo uma causa santa e justa A vós Álvaro confio a felicidade de minha Cecília e creio que Deus enviandovos a mim fazem já dez anos não quis senão completar o dom que me havia concedido Os dois moços tinham deitado um joelho em terra e beijavam cada uma das mãos do velho fidalgo que colocado no meio deles envolviaos num mesmo olhar de amor paternal Ergueivos meus filhos abraçaivos como irmãos e ouvideme ainda D Diogo abriu os braços e apertou Álvaro ao peito um instante os dois corações nobres bateram um de encontro ao outro O que me resta a dizervos é difícil custa sempre confessar uma falta ainda mesmo quando se fala a almas generosas Tenho uma filha natural a estima que voto a minha mulher e o receio de fazer essa pobre menina corar de seu nascimento obrigaramme a darlhe em vida o titulo de sobrinha Isabel exclamou D Diogo Sim Isabel é minha filha Peçovos a ambos que a trateis sempre como tal que a ameis como irmã e a rodeeis de tanto afeto e carinho que ela possa ser feliz e perdoarme a indiferença que lhe mostrei e a infelicidade involuntária que causei à sua mãe A voz do velho fidalgo tornouse um tanto trêmula e comovida sentiase que uma recordação dolorosa adormecida no fundo do coração havia despertado Pobre mulher murmurou ele Levantouse passeou pelo aposento e conseguindo dominar a sua emoção voltou ao dois moços Eis a minha última disposição sei que a cumprireis não vos peço um juramento bastame a vossa palavra D Diogo estendeu a mão Álvaro levou a sua ao coração D Antônio que compreendeu tudo quanto dizia essa muda promessa abraçouos Agora deixai a tristeza querovos risonhos eu o estou vede A tranqüilidade sobre o futuro vai remoçarme de novo e esperareis muito tempo talvez antes que tenhais de executar a minha vontade que até lá fica sepultada no vosso coração como testamento que é Assim o tinha entendido disse Álvaro Pois então replicou o fidalgo sorrindo deveis ficar entendendo também um ponto é que talvez me incumba eu mesmo de realizar uma das partes do meu testamento Sabeis qual A da minha felicidade respondeu o moço corando D Antônio apertoulhe a mão Estou contente e satisfeito disse o fidalgo pena é que tenha um triste dever a cumprir Sabeis de Peri Álvaro Vio há pouco Ide e mandaio a mim O moço retirouse Fazei chamar vossa mãe e vossa irmã meu filho D Diogo obedeceu O fidalgo sentouse à mesa e escreveu numa tira de pergaminho que fechou com um retrós e selou com as suas armas D Lauriana e Cecília entraram acompanhadas por D Diogo Sentaivos minha mulher D Antônio reunia sua família para dar uma certa solenidade ao ato que ia praticar Quando Cecília entrou ele perguntoulhe ao ouvido Que queres tu darlhe A menina compreendeu imediatamente a afeição pouco comum que tinham a Peri a gratidão que lhe votavam era uma espécie de segredo entre esses dois corações era uma planta delicada que não queriam expor ao reparo que causaria aos outros amizade tão sincera por um selvagem Ouvindo a pergunta de seu pai Cecília que neste dia tinha sofrido tantas emoções diversas lembrouse do que se tratava Como sempre pretendeis mandálo embora exclamou ela É necessário eu te disse Sim mas pensei que depois houvésseis resolvido o contrário Impossível Que mal faz ele aqui Sabes quanto eu o estimo quando digo que é impossível deves crerme Não vos agasteis Assim não te opões Cecília calouse Se não queres absolutamente não se fará mas tua mãe sofrerá e eu porque lhe prometi Não a vossa palavra antes de tudo meu pai Peri apareceu na porta da sala uma vaga inquietação ressumbrava no seu rosto quando viuse no meio da família reunida A atitude era respeitosa mas o seu porte tinha a altivez inata das organizações superiores seus olhos grandes negros e límpidos percorreram o aposento e fixaramse na fisionomia venerável do cavalheiro Cecília prevendo o que se ia passar tinhase escondido por detrás de seu irmão D Diogo Peri acreditas que D Antônio de Mariz é teu amigo perguntou o fidalgo Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra cor Acreditas que D Antônio de Mariz te estima Sim porque o disse e mostrou Acreditas que D Antônio de Mariz deseja poder pagarte o que fizeste por ele salvando sua filha Se fosse preciso sim Pois bem Peri D Antônio de Mariz teu amigo te pede que voltes à tua tribo O índio estremeceu Por que pedes isto Porque assim é preciso amigo Peri entende estás cansado de darlhe hospitalidade Não Quando Peri te disse que ficava não te pediu nada sua casa é feita de palha em cima de uma pedra as árvores do mato lhe dão o sustento sua roupa foi tecida por sua mãe que veio trazêla na outra lua Peri não te custa nada Cecília chorava D Antônio e seu filho estavam comovidos D Lauriana mesma parecia enternecida Não digas isto Peri Nunca na minha casa te faltaria a menor coisa se tu não recusasses tudo e não quisesses viver isolado na tua cabana Mesmo agora dize o que desejas o que te agrada e é teu Por que então mandas Peri embora D Antônio não sabia o que responder e foi obrigado a procurar um pretexto para explicar ao índio o seu procedimento a idéia da religião que todos os povos compreendem pareceulhe a mais própria Tu sabes que nós os brancos temos um Deus que mora lá em cima a quem amamos respeitamos e obedecemos Sim Esse Deus não quer que viva no meio de nós um homem que não o adora e não o conhece até hoje lhe desobedecemos agora ele manda O Deus de Peri também mandava que ele ficasse com sua mãe na sua tribo junto dos ossos de seu pai e Peri abandonou tudo para seguirte Houve um momento de silêncio D Antônio não sabia o que replicar Peri não te quer aborrecer só espera a ordem da senhora Tu mandas que Peri vá senhora D Lauriana que apenas se tinha falado em religião voltara às suas prevenções contra o índio fez um gesto imperioso à sua filha Sim balbuciou Cecília O índio abaixou a cabeça uma lágrima deslizoulhe pela face O que ele sofria é impossível dizer a palavra não sabe o segredo das tormentas profundas de uma alma forte e vigorosa que pela primeira vez sentese vencida pela dor X DESPEDIDA D Antônio aproximouse de Peri e apertoulhe a mão O que eu te devo Peri não se paga mas sei o que devo a mim mesmo Tu voltas à tua tribo apesar da tua coragem e esforço pode a sorte da guerra não te ser favorável e caíres em poder de algum dos nossos Este papel te salvará a vida e a liberdade aceitao em nome de tua senhora e no meu O fidalgo entregou ao índio o pergaminho que há pouco tinha escrito e voltouse para seu filho Este papel D Diogo assegura a qualquer português de quem Peri possa ser prisioneiro que D Antônio de Mariz e seus herdeiros respondem por ele e pelo seu resgate qualquer que for É mais um legado que vos deixo a cumprir meu filho Ficai certo meu pai replicou o moço que saberei responder a essa divida de honra não só em respeito à vossa memória como em satisfação dos meus próprios sentimentos Toda a minha família aqui presente disse o fidalgo dirigindose ao índio te agradece ainda uma vez o que fizestes por ela reunimonos todos para te desejarmos a boa volta ao seio dos teus irmãos e ao campo onde nasceste Peri fitou o olhar brilhante no rosto de cada uma das pessoas presentes como para dizerlhes o adeus que seus lábios naquela ocasião não podiam exprimir Apenas seus olhos se fitaram em Cecília impelido por uma força invencível atravessou o aposento e foi ajoelharse aos pés de sua senhora A menina tirou do peito uma pequena cruz de ouro presa a uma fita preta e deitoua no pescoço do índio Quando tu souberes o que diz esta cruz volta Peri Não senhora de onde Peri vai ninguém voltou Cecília estremeceu O selvagem ergueuse e caminhou para D Antônio de Mariz que não podia dominar a sua emoção Peri vai partir tu mandas ele obedece antes que o sol deixe a terra Peri deixará tua casa o sol voltará amanhã Peri não voltará nunca Leva a morte no seio porque parte hoje levaria a alegria se partisse no fim da lua Por que razão perguntou D Antônio desde que é necessário que nos separemos tanto deves sentir hoje como daqui a três dias Não replicou o índio tu vais ser atacado amanhã talvez e Peri estaria contigo para defenderte Vou ser atacado exclamou D Antônio pensativo Sim podes contar E por quem Pelo Aimoré E como sabes isto perguntou D Antônio fitando nele um olhar desconfiado O índio hesitou durante um momento estudava a resposta Peri sabe porque viu o pai e o irmão da índia que teu filho matou sem querer olharem tua casa de longe soltarem o grito da vingança e caminharem para sua tribo E tu o que fizeste Peri viuos passar e vem te avisar para que te prepares O fidalgo fez com a cabeça um movimento de incredulidade É preciso não te conhecer Peri para acreditar no que dizes tu não podias olhar com indiferença para os inimigos de tua senhora e meus O índio sorriu tristemente Eram mais fortes Peri deixou que passassem D Antônio começou a refletir parecia evocar as suas reminiscências e combinar certas circunstâncias que tinha impressas na memória Seu olhar abaixandose do rosto de Peri caíra sobre os ombros a princípio vago e distraído como o de um homem que medita começou a fixarse e a distinguir um ponto vermelho quase imperceptível que aparecia no saio de algodão do índio À proporção que a vista se firmava e que o objeto se desenhava mais distinto o semblante do fidalgo se esclarecia como se tivesse achado a solução de um difícil problema Estás ferido exclamou o fidalgo de repente Peri recuou um passo mas D Antônio lançandose para ele entreabriu o talho de sua camisa e tiroulhe as duas pistolas da cinta examinouas e viu que estavam descarregadas O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços e contemplou o índio com admiração profunda Peri disse ele o que fizeste é digno de ti o que fazes agora é de um fidalgo Teu nobre coração pode bater sem envergonharse sobre o coração de um cavalheiro português Tomovos a todos por testemunhas que vistes um dia D Antônio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua raça e de sua religião como a seu igual em nobreza e sentimentos O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço fraternal consagrado pelos estilos da antiga cavalaria da qual já naquele tempo apenas restavam vagas tradições O índio de olhos baixos comovido e confuso parecia um criminoso em face do juiz Vamos Peri disse D Antônio um homem não deve mentir nem mesmo para esconder as suas boas ações Respondeme a verdade Fala Quem disparou dois tiros junto ao rio quando tua senhora estava no banho Foi Peri Quem atirou uma flecha que caiu junto de Cecília Um Aimoré respondeu o índio estremecendo Por que a outra flecha ficou sobre o lugar onde estão os corpos dos selvagens Peri não respondeu É escusado negares tua ferida o diz Para salvar tua senhora te ofereceste aos tiros dos inimigos depois os mataste Tu sabes tudo Peri não é mais preciso volta à sua tribo O índio lançou um último olhar à sua senhora e caminhou para a porta Peri exclamou Cecília fica tua senhora manda Depois correndo para seu pai e sorrindolhe entre as lágrimas disse com um tom suplicante Não é verdade Ele não deve partir mais Vós não podeis mandálo embora depois do que fez por mim Sim A casa onde habita um amigo dedicado como este tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos Ele ficará conosco e para sempre Peri trêmulo e palpitando de alegria e esperança estava suspenso dos lábios de D Antônio Minha mulher disse o fidalgo dirigindose a D Lauriana com uma expressão solene julgais que um homem que acaba de salvar pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida que despedido por nós apesar da nossa ingratidão a sua última palavra é uma dedicação por aqueles que o desconhecem julgais que este homem deva sair da casa onde tantas vezes a desgraça teria entrado se ele ai não estivera D Lauriana tirados os seus prejuízos era uma boa senhora e quando o seu coração se comovia sabia compreender os sentimentos generosos As palavras de seu marido acharam eco em sua alma Não disse ela levantandose e dando alguns passos Peri deve ficar sou eu que vos peço agora esta graça Sr D Antônio de Mariz tenho também a minha dívida a pagar O índio beijou com respeito a mão que a mulher do fidalgo lhe estendera Cecília batia as mãos de contente os dois cavalheiros sorriam um para o outro e compreendiamse O filho sentia um certo orgulho vendo seu pai nobre grande e generoso O pai conhecia que seu filho o aprovava e seguiria o exemplo que lhe dava Neste momento Aires Gomes apareceu no vão da porta e ficou estupefato O que passava era para ele uma coisa incompreensível um enigma indecifrável para quem ignorava o que sucedera anteriormente Pela manhã depois do almoço D Antônio de Mariz chegando a uma janela da sala vira uma grande nuvem negra abaterse sobre a margem do Paquequer A quantidade dos abutres que formavam essa nuvem indicava que o pasto era abundante devia ser um ou muitos animais de grande corpulência Levado pela curiosidade natural em uma existência sempre igual e monótona o fidalgo desceu ao rio encontrou junto da latada de jasmineiros que servia de casa de banho a Cecília uma pequena canoa em que atravessou para a margem oposta Aí descobriu os corpos dos dois selvagens que imediatamente reconheceu pertencerem à raça dos Aimorés viu que tinham sido mortos com arma de fogo Nesse momento não se lembrou de coisa alguma senão de que os selvagens iam talvez atacar a sua casa e um terrível pressentimento cerroulhe o coração D Antônio não era supersticioso mas não pudera eximirse de um receio vago quando soube da morte que D Diogo tinha feito involuntariamente e por falta de prudência fora este o motivo por que se tinha mostrado tão severo com seu filho Vendo agora o começo da realização de suas sinistras previsões aquele receio vago que a princípio sentira redobrou auxiliado pela disposição de espírito em que se achava tornouse em forte pressentimento Uma voz interior parecia dizerlhe que uma grande desgraça pesava sobre sua casa e a existência tranqüila e feliz que até então vivera naquele ermo ia transformarse numa aflição que ele não sabia definir Sob a influência desse movimento involuntário da alma que às vezes sem motivo nos mostra a esperança ou a dor o fidalgo voltou à casa Perto viu dois aventureiros a quem ordenou que fossem imediatamente enterrar os selvagens e guardassem o maior silêncio sobre isto não queria assustar sua mulher O mais já sabemos Pensou que podia a desgraça que ele temia recair sobre sua pessoa e quis dispor a sua última vontade assegurando o sossego de sua família Depois o aviso de Peri lembroulhe de repente o que tinha visto recordouse das menores circunstâncias combinouas com o que Isabel havia contado a sua tia e conheceu o que se tinha passado como se o houvesse presenciado A ferida do índio que se abrira com as emoções por que passou durante o momento cruel em que sua senhora o mandava partir tinha manchado o saio de algodão com um ponto quase imperceptível este ponto foi um raio de luz para D Antônio O escudeiro o digno Aires Comes que depois de esforços inauditos conseguira arrastar com o pé a sua espada levantála e com ela cortar os laços que o prendiam tinha pois razão de ficar pasmado diante do que se passava Peri beijando a mão de D Lauriana Cecília contente e risonha D Antônio de Mariz e D Diogo contemplando o índio com um olhar de gratidão tudo isto ao mesmo tempo era para fazer enlouquecer ao escudeiro Sobretudo para quem souber que apenas livre correra à casa unicamente com o fim de contar o ocorrido e pedir a D Antônio de Mariz licença para esquartejar o índio resolvido se o fidalgo lha negasse a despedirse do seu serviço no qual se conservava havia trinta anos mas tinha uma injúria a vingar e bem que lhe custasse deixar a casa Aires Gomes não hesitava D Antônio vendo a figura espantada do escudeiro riuse sabia que ele não gostava do índio e quis neste dia reconciliar todos com Peri Vem cá meu velho Aires meu companheiro de trinta anos Estou certo que tu a fidelidade em pessoa estimarás apertar a mão de um amigo dedicado de toda a minha família Aires Gomes não ficou pasmado só ficou uma estátua Como desobedecer a D Antônio que lhe falava com tanta amizade Mas como apertar a mão que o havia injuriado Se já se tivesse despedido do serviço seria livre mas a ordem o pilhara de surpresa não podia sofismála Vamos Aires O escudeiro estendeu o braço hirto o índio apertoulhe a mão sorrindo Tu és amigo Peri não te amarrará outra vez Por estas palavras todos adivinharam confusamente o que se tinha passado e ninguém pôde deixar de rirse Maldito bugre murmurava o escudeiro entredentes hás de sempre mostrar o que és Era hora do jantar o toque soou XI TRAVESSURA Na tarde desse mesmo domingo em que tantos acontecimentos se tinham passado Cecília e Isabel saiam do jardim com o braço na cintura uma da outra Estavam vestidas branco lindas ambas mas tinha cada uma diversa beleza Cecília era a graça Isabel era a paixão os olhos azuis de uma brincavam os olhos negros da outra brilhavam O sorriso de Cecília parecia uma gota de mel e perfume que destilavam os seus lábios mimosos o sorriso de Isabel era como um beijo ideal que fugialhe da boca e ia rogar com as suas asas a alma daqueles que a contemplavam Vendo aquela menina loura tão graciosa e gentil o pensamento elevavase naturalmente ao céu despiase do invólucro material e lembravase dos anjinhos de Deus Admirando aquela moça morena lânguida e voluptuosa o espírito apegavase à terra esquecia o anjo pela mulher em vez do paraíso lembravalhe algum retiro encantador onde a vida fosse um breve sonho No momento em que saiam do jardim Cecília olhava sua prima com um certo arzinho malicioso que fazia prever alguma travessura das que costumava praticar Isabel ainda impressionada pela cena da manhã tinha os olhos baixos parecialhe depois do que se havia passado que todos e principalmente Álvaro iam ler o seu segredo guardado por tanto tempo no fundo de sua alma Entretanto sentiase feliz uma esperança vaga e indefinida dilatavalhe o coração e dava à sua fisionomia a expressão de júbilo expansão da criatura quando acredita ser amada auréola brilhante que bem se podia chamar a alma do amor O que esperava ela Não sabia mas o ar lhe parecia mais perfumado a luz mais brilhante o olhar via os objetos corderosa e o leve roçar da espiguilha do vestido no seu colo aveludado causavalhe sensações voluptuosas Cecília com o misterioso instinto da mulher adivinhava sem compreender que alguma coisa de extraordinário se passava em sua prima e admirava a irradiação de beleza que brilhava no seu moreno semblante Como estás bonita disse a menina de repente E conchegando a face de Isabel aos lábios imprimiu nela um beijo suave a moça respondeu afetuosamente à carícia de sua prima Não trouxeste o teu bracelete exclamou ela reparando no braço de Cecília É verdade replicou a menina com um gesto de enfado Isabel julgou que este gesto era produzido pelo esquecimento mas a verdadeira causa foi o receio que teve Cecília de se trair Vamos buscálo Oh não ficaria tarde e perderíamos o nosso passeio Então devo tirar o meu já não estamos irmãs Não importa quando voltarmos prometote que ficaremos bem irmãs Dizendo isto Cecília sorria maliciosamente Tinham chegado à frente da casa D Lauriana conversava com seu filho D Diogo enquanto D Antônio de Mariz e Álvaro passeavam pela esplanada conversando Cecília se dirigiu ao pai levando Isabel que ao aproximarse do jovem cavalheiro sentiu fugirlhe a vida Meu pai disse a menina nós queremos dar um passeio A tarde está tão linda Se eu vos pedisse e ao Sr Álvaro para que nos acompanhassem Nós faríamos como sempre que tu pedes respondeu o fidalgo galanteando cumpriríamos a tua ordem Oh ordem não meu pai Desejo apenas E o que são os desejos de um lindo anjinho como tu Assim nos acompanhais Decerto E vós Sr Álvaro Eu obedeço Cecília falando ao moço não pôde deixar de corar mas venceu a perturbação e seguiu com sua prima para a escada que descia ao vale Álvaro estava triste depois da conversa que tivera com Cecília viraa durante o jantar a menina evitava os seus olhares e nem uma só vez lhe dirigira a palavra O moço supunha que tudo isto era resultado de sua imprudência da véspera mas Cecília mostravase tão alegre e satisfeita que parecia impossível ter conservado a lembrança da ofensa de que ele se acusava A maneira por que a menina o tratava tinha mais de indiferença do que de ressentimento dirseia que esquecera tudo que havia passado nem guardava já a mínima lembrança da manhã Era isto o que tornara Álvaro triste apesar da felicidade que sentira quando D Antônio o chamara seu filho felicidade que às vezes parecialhe um sonho encantador que ia esvaecerse As duas moças haviam chegado ao vale e seguiam por entre as moitas de arvoredo que bordavam o campo formando um gracioso labirinto Às vezes Cecília desprendiase do braço de sua prima e correndo pela vereda sinuosa que recortava as moitas de arbustos escondiase por detrás da folhagem e fazia com que Isabel a procurasse debalde por algum tempo Quando sua prima por fim conseguia descobrila riamse ambas abraçavamse e continuavam o inocente folguedo Uma ocasião porém Cecília deixou que D Antônio e Álvaro se aproximassem a menina tinha um olhar tão travesso e um sorriso tão brejeiro que Isabel ficou inquieta Esquecime dizervos uma coisa meu pai Sim E o que é Um segredo Pois vem contarmo Cecília separouse de Isabel chegandose para o fidalgo tomoulhe o braço Tende paciência por um instante Sr Álvaro disse ela voltandose conversai com Isabel dizeilhe vossa opinião sobre aquele lindo bracelete Ainda não o vistes E sorrindo afastouse ligeiramente com seu pai o segredo que ela tinha era a travessura que acabava de praticar deixando Álvaro e Isabel sós depois de lhes ter lançado uma palavra que devia produzir o seu efeito A emoção que sentiram os dois moços ouvindo o que dissera Cecília é impossível de descrever Isabel suspeitou o que se tinha passado conheceu que Cecília a enganara para obrigála a aceitar o presente de Álvaro o olhar que sua prima lhe lançara afastandose com seu pai lho tinha revelado Quanto a Álvaro não compreendia coisa alguma senão que Cecília tinhalhe dado a maior prova de seu desprezo e indiferença mas não podia adivinhar a razão por que ela associara Isabel a esse ato que devia ser um segredo entre ambos Ficando sós em face um do outro não ousavam levantar os olhos a vista de Álvaro estava cravada no bracelete Isabel trêmula sentia o olhar do moço e sofria como se um anel de ferro cingisse o seu braço mimoso Assim estiveram tempo esquecido por fim Álvaro desejoso de ter uma explicação animouse a romper o silêncio Que significa tudo isto D Isabel perguntou ele suplicante Não sei Fui escarnecida respondeu Isabel balbuciando Como Cecília fezme acreditar que este bracelete vinha de seu pai para me fazer aceitálo pois se eu soubesse Que vinha de minha mão Não aceitaríeis Nunca exclamou a moça com fogo Álvaro admirouse do tom com que Isabel proferiu aquela palavra parecia dar um juramento Qual o motivo perguntou depois de um momento A moça fitou nele os seus grandes olhos negros havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo que se Álvaro o compreendesse teria a resposta à sua pergunta Mas o cavalheiro não compreendeu nem o olhar nem o silêncio de Isabel adivinhava que havia nisto um mistério e desejava esclarecêlo Aproximouse da moça e disselhe com a vez doce e triste Perdoaime D Isabel sei que vou cometer uma indiscrição mas o que se passa exige uma explicação entre nós Dizeis que fostes escarnecida também eu o fui Não achais que o melhor meio de acabar com isso seja o falarmos francamente um ao outro Isabel estremeceu Falai eu vos escuto Sr Álvaro Escuso confessarvos o que já adivinhastes sabeis a historia deste bracelete não é verdade Sim balbuciou a moça Dizeime pois como ele passou do lugar onde estava ao vosso braço Não penseis que vos censuro por isso não desejo apenas conhecer até que ponto zombam de mim Já vos confessei o que sabia Cecília enganoume E a razão que teve ela para enganarvos não atinais Oh se atino exclamou Isabel reprimindo as palpitações do coração Dizeima então Eu volo peço e suplico Álvaro tinha deitado um joelho em terra e tomando a mão da moça implorava dela a palavra que devia explicarlhe o ato de Cecília e revelarlhe a razão que tivera a menina para rejeitar a prenda que ele havia dado Conhecendo esta razão talvez pudesse desculparse talvez pudesse merecer o perdão da menina e por isso pedia com instância a Isabel que lhe declarasse o motivo por que Cecília a havia enganado A moça vendo Álvaro a seus pés suplicante tinhase tornado lívida seu coração batia com tanta violência que viase o peito de seu vestido elevarse com as palpitações fortes e apressadas o seu olhar ardente caia sobre o moço e o fascinava Falai dizia Álvaro falai Sois boa e não me deixeis sofrer assim quando uma palavra vossa pode darme a calma e o sossego E se essa palavra vos fizesse odiarme balbuciou a moça Não tenhais esse receio qualquer que seja a desgraça que me anunciardes será bemvinda pelos vossos lábios é sempre um consolo receberse a má nova da voz amiga Isabel ia falar mas parou estremecendo Ah não posso seria preciso confessarvos tudo E por que não confessais Não vos mereço confiança Tendes em mim um amigo Se fôsseis E os olhos de Isabel cintilaram Acabai Se me fôsseis amigo me havíeis de perdoar Perdoarvos D Isabel Que me fizeste vós para que vos eu perdoe disse Álvaro admirado A moca teve medo do que havia dito cobriu o rosto com as mãos Todo este diálogo vivo animado cheio de reticências e hesitações da parte de Isabel tinha excitado a curiosidade do cavalheiro seu espírito perdiase num dédalo de dúvidas e incertezas Cada vez o mistério se obscurecia mais a princípio Isabel dizia que tinham escarnecido dela agora dava a entender que era culpada o cavalheiro resolveu a todo transe penetrar o que para ele era um enigma D Isabel A moça tirou as mãos do rosto tinha as faces inundadas de lágrimas Por que chorais perguntou Álvaro surpreso Não mo pergunteis Escondeisme tudo Deixaisme na mesma dúvida O que me fizestes vós Dizei Quereis saber perguntou a moça com exaltação Tanto tempo há que suplicovos Álvaro tomara as duas mãos da moça e com os olhos fitos nos dela esperava enfim uma resposta Isabel estava branca como a cambraia do seu vestido sentia a pressão das mãos do moço nas suas e o seu hálito que vinha bafejarlhe as faces Me perdoareis Sim Mas por quê Porque Isabel pronunciou esta palavra numa espécie de delírio uma revolução súbita se tinha operado em toda a sua organização O amor profundo veemente que dormia no intimo de sua alma a paixão abafada e reprimida por tanto tempo acordara e quebrando as cadeias que a retinham erguiase impetuosa e indomável O simples contato das mãos do moço tinha causado essa revolução a menina tímida ia transformarse na mulher apaixonada o amor ia transbordar do coração como a torrente caudalosa do leito profundo As faces se abrasaram o seio dilatouse o olhar envolveu o moço ajoelhado a seus pés em fluidos luminosos a boca entreaberta parecia esperar para pronunciála a palavra que sua alma devia trazer aos lábios Álvaro fascinado a admirava nunca a vira tão bela o moreno suave do rosto e do colo da moça iluminavase de reflexos doces e tinha ondulações tão suaves que o pensamento ia sem querer enlearse nas curvas graciosas como para sentirlhe o contato espreguiçarse pelas formas palpitantes Tudo isto passara rapidamente enquanto Isabel hesitava ao preferir a primeira palavra Por fim vacilou reclinando sobre o ombro de Álvaro como uma flor desfalecida sobre a haste murmurou Porque vos amo XII PELO AR Álvaro ergueuse como se os lábios da moça tivessem lançado nas suas veias uma gota do veneno sutil dos selvagens que matava com um átomo Pálido atônito fitava na menina um olhar frio e severo seu coração leal exagerava a afeição pura que votava a Cecília a tal ponto que o amor de Isabel lhe parecia quase uma injúria era ao menos uma profanação A moça com as lágrimas nos olhos sorria amargamente o movimento rápido de Álvaro tinha trocado as posições agora era ela que estava ajoelhada aos pés do cavalheiro Sofria horrivelmente mas a paixão a dominava o silêncio de tanto tempo queimavalhe os lábios seu amor precisava respirar expandirse embora depois o desprezo e mesmo o ódio o viessem recalcar no coração Prometestes perdoarme disse ela suplicante Não tenho que perdoarvos D Isabel respondeu o moço erguendoa peçovos unicamente que não falemos mais de semelhante coisa Pois bem Escutaime um momento um instante só e jurovos por minha mãe que não ouvireis nunca mais uma palavra minha Se quereis nem mesmo vos olharei Não preciso olhar para vervos E acompanhou estas palavras com um gesto sublime de resignação Que desejais de mim perguntou o moço Desejo que sejais meu juiz Condenaime depois a pena vindo de vos será para mim um consolo Mo negareis Álvaro sentiuse comovido por essas palavras soltas com o grito de um desespero surdo e concentrado Não cometestes um crime nem precisais de juiz mas se quereis um irmão para consolarvos tendes em mim um dedicado e sincero Um irmão exclamou a moça Seria ao menos uma afeição E uma afeição calma e serena que vale bem outras D Isabel A moca não respondeu sentiu a doce exprobração que havia naquelas palavras mas sentia também o amor ardente que enchia sua alma e a sufocava Álvaro tinhase lembrado da recomendação de D Antônio de Mariz o que a princípio fora uma simples compaixão tornouse simpatia Isabel era desgraçada desde a infância devia pois consolála e desde já cumprir a última vontade do velho fidalgo a quem amava e respeitava como pai Não recuseis o que vos peço disse ele afetuosamente aceitaime por vosso irmão Assim deve ser respondeu Isabel tristemente Cecília me chama sua irmã vós deveis ser meu irmão Aceito Sereis bom para mim Sim D Isabel Um irmão não deve tratar sua irmã pelo seu nome simplesmente perguntou ela com timidez Álvaro hesitou Sim Isabel A moça recebeu essa palavra como um gozo supremo parecialhe que os lábios do cavalheiro pronunciando assim familiarmente o seu nome a acariciavam Obrigada Não sabeis que bem me faz ouvirvos chamarme assim É preciso ter sofrido muito para que a felicidade esteja em tão pouco Contaime as vossas mágoas Não deixaias comigo talvez depois as conte agora só quero mostrarvos que não sou tão culpada como pensais Culpada Em quê Em querervos disse Isabel corando Álvaro tornouse frio e reservado Sei que vos incomodo mas é a primeira e a última vez ouvime depois ralhareis comigo como um irmão com sua irmã A voz de Isabel era tão doce seu olhar tão suplicante que Álvaro não pôde resistir Falai minha irmã Sabeis o que eu sou uma pobre órfã que perdeu sua mãe muito cedo e não conheceu seu pai Tenho vivido da compaixão alheia não me queixo mas sofro Filha de duas raças inimigas devia amar a ambas entretanto minha mãe desgraçada fezme odiar a uma o desdém com que me tratam fezme desprezar a outra Pobre moça murmurou Álvaro lembrandose segunda vez das palavras de D Antônio de Mariz Assim isolada no meio de todos alimentando apenas o sentimento amargo que minha mãe deixara no meu coração sentia a necessidade de amar alguma coisa Não se pode viver somente de ódio e desprezo Tendes razão Isabel Inda bem que me aprovais Precisava amar precisava de uma afeição que me prendesse à vida Não sei como não sei quando comecei a amarvos mas em silêncio no fundo de minha alma A moça embebeu um olhar nos olhos de Álvaro Isto me bastava Quando vos tinha olhado horas e horas sem que o percebêsseis julgavame feliz recolhiame com a minha doce imagem e conversava com ela ou adormecia sonhando bem lindos sonhos O cavalheiro sentiase perturbado mas não ousava interromper a Isabel Não sabeis que segredos tem esse amor que vive só de suas ilusões sem que um olhar uma palavra o alimente A mais pequenina coisa é um prazer uma ventura suprema Quantas vezes não acompanhava o raio de lua que entrava pela minha janela e que vinha a pouco e pouco se aproximando de mim julgava ver naquela doce claridade o vosso semblante e esperava trêmula de prazer como se vos esperasse Quando o raio se chegava quando a sua luz acetinada cala sobre mim sentia um gozo imenso acreditava que me sorríeis que vossas mãos apertavam as minhas que vosso rosto se reclinava para mim e vossos lábios me falavam Isabel pendeu a cabeça lânguida sobre o ombro de Álvaro o cavalheiro palpitando de emoção passou o braço pela cintura da moça e apertoua ao coração mas de repente afastouse com um movimento brusco Não vos arreceeis de mim disse ela com melancolia sei que não me deveis amar Sois nobre e generoso o vosso primeiro amor será o último Podeisme ouvir sem temor Que vos resta dizerme ainda perguntou Álvaro Resta a explicação que há pouco me pedíeis Ah enfim Isabel contou então como apesar de toda a força de vontade com que guardava o seu segredo se havia traído contou a conversa de Cecília e o modo por que a menina lhe fizera aceitar o bracelete Agora sabeis tudo o meu afeto vai de novo entrar no meu coração donde nunca sairia se não fosse a fatalidade que fez com que vos aproximásseis de mim e me dirigisse algumas palavras doces A esperança para as almas que não a conheceram ainda ilude tanto e fascina que devo merecervos desculpa Esqueceime meu irmão antes que lembrarvos de mim para odiarme Fazeime uma injustiça Isabel não posso é verdade ser para vós senão um irmão mas esse titulo sinto que o mereço pela estima e pela afeição que me inspirais Adeus minha boa irmã O moço pronunciou estas últimas palavras com uma terna efusão e apertando a mão de Isabel desapareceu precisava estar só para refletir sobre o que lhe acontecia Estava agora convencido que Cecília não o amava e nunca o havia amado e esta descoberta tinha lugar no mesmo dia em que D Antônio de Mariz lhe dava a mão de sua filha Sob o peso da mágoa dolorosa como é sempre a primeira mágoa do coração o cavalheiro afastouse distraído com a cabeça baixa caminhou sem direção seguindo a linha que lhe traçavam os grupos de árvores destacados aqui e ali sobre a campina Estava quase a anoitecer a sombra pálida e descorada do crepúsculo estendiase como um manto de gaza sobre a natureza os objetos iam perdendo a forma a cor e ondulavam no espaço vagos e indecisos A primeira estrela engolfada no azul do céu luzia a furto como os olhos de uma menina que se abrem ao acordar e cerramse outra vez temendo a claridade do dia um grilo escondido no toco de uma árvore começava a sua canção era o trovador inseto saudando a aproximação da noite Álvaro continuava o seu passeio sempre pensativo quando de repente sentiu um sopro vivo bafejarlhe o rosto erguendo os olhos viu diante de si uma longa flecha fincada no chão e que ainda oscilava com o movimento que lhe tinha imprimido o arco O moço recuou um passo e levou a mão à cinta logo refletindo aproximouse da seta e examinou a plumagem de que estava ornada eram de um lado penas de azulão e do outro penas de garça Azul e branco eram as cores de Peri eram as cores dos olhos e do rosto de Cecília Um dia a menina semelhante a uma gentil castelã da idade Média tinha se divertido em explicar ao índio como os guerreiros que serviam uma dama costumavam usar nas armas de suas cores Tu dás a Peri as tuas cores senhora disse o índio Não tenho respondeu a menina mas vou tomar umas para te dar queres Peri te pede Quais achas mais bonitas A de teu rosto e a de teus olhos Cecília sorriu Tomaas eu tas dou Desde este dia Peri enramou todas as suas setas de penas azuis e brancas seus ornatos além de uma faixa de plumas escarlates que fora tecida por sua mãe eram ordinariamente das mesmas cores Foi por esta razão que Álvaro vendo a plumagem da seta tranqüilizouse conheceu que era de Peri e compreendeu o sentido da frase simbólica que o índio lhe mandava pelos ares Com efeito aquela flecha na linguagem de Peri não era mais do que um aviso dado em silêncio e de uma grande distancia uma carta ou mensageira muda uma simples interjeição Alto O moço esqueceu os seus pensamentos e lembrouse do que Peri lhe havia dito pela manhã naturalmente o que acabava de fazer tinha relação com esse mistério que apenas deixara entrever Correu os olhos pelo espaço que se estendia diante dele e sondou com o olhar as moitas que o cercavam não viu nada que merecesse atenção não percebeu um sinal que lhe indicasse a presença do índio Álvaro resolveu pois esperar e parando junto da flecha cruzou os braços e com os olhos fitos na linha escura da mata que se recortava no fundo azul do horizonte esperou Um instante depois uma pequena seta açoitando o ar veio cravarse no tope da primeira e abaloua com tal força que a haste inclinouse Álvaro compreendeu que o índio queria arrancar a flecha e obedeceu à ordem Imediatamente terceira seta caiu dois passos à direita do cavalheiro e outras foramse sucedendo na mesma direção de duas em duas braças até que uma mergulhouse num arvoredo basto que ficava a trinta passos do lugar onde parara a princípio Não era difícil desta vez compreender a vontade de Peri Álvaro que acompanhava as setas a proporção que caiam e que sabia indicarem elas o lugar onde devia parar apenas viu a última sumirse no arvoredo escondeuse por entre a folhagem Daí com pequeno intervalo viu três vultos que passavam pouco mais ou menos pelo lagar que há pouco havia deixado Álvaro não os pôde conhecer por causa da ramagem das árvores mas viu que caminhavam cautelosamente e pareceulhe que tinham as pistolas em punho Os vultos afastaramse dirigindose à casa o cavalheiro ia seguilos quando as folhas se abriram e Peri resvalando como uma sombra sem fazer o menor rumor aproximouse dele e disselhe ao ouvido uma palavra São eles Eles quem Os inimigos brancos Não te entendo Espera Peri volta E o índio despareceu de novo nas sombras da noite que avançava rapidamente XIII TRAMA Tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companheiros O italiano depois que Álvaro e Peri se afastaram levantouse passada a primeira emoção sentira um acesso de raiva e desespero por lhe escaparem os seus inimigos Um instante lembrouse de chamar os cúmplices para atacar o cavalheiro e o índio mas essa idéia desvaneceuse logo o aventureiro conhecia os homens que o seguiam sabia que podia fazer deles assassinos mas nunca homens de energia e resolução Ora os dois inimigos que tinha a combater eram respeitáveis e Loredano temeu comprometer ainda mais a sua causa já muito mal parada Devorou pois em silêncio a sua raiva e começou a refletir nos meios de sair da posição difícil em que se achava Neste meio tempo Rui Soeiro e Bento Simões vinhamse aproximando receosos do que tinham visto e temendo o menor incidente que complicasse a situação Loredano e seus companheiros olharamse em silêncio um momento havia nos olhos destes últimos uma interrogação muda e inquieta a que respondia perfeitamente o rosto pálido e contraído do italiano Não era ele murmurou o aventureiro com a voz surda Como sabeis Se fosse acreditais que me deixasse a vida É verdade mas quem foi então Não sei porém agora pouco importa Quem quer que fosse é um homem que sabe o nosso segredo e pode denunciálo se já não o fez Um homem murmurou Bento Simões que até então se conservava silencioso Sim um homem Quereis que fosse uma sombra Uma sombra não mas um espírito acudiu o aventureiro O italiano sorriu de escárnio Os espíritos têm mais que fazer para se ocuparem com o que vai por este mundo guardai as vossas abusões e pensemos seriamente no partido que devemos tomar Lá quanto a isso Loredano é escusado ninguém me tira que anda em tudo isto uma coisa sobrenatural Quereis calarvos estúpido carola replicou o italiano com impaciência Estúpido Estúpido sois vós que não vistes que não há ouvido de criatura que pudesse ouvir as nossas palavras nem voz humana que saia da terra Vinde E vou mostrarvos se o que digo é ou não é verdade Os dois acompanharam Bento Simões e voltaram à touça de cardos onde tivera lugar a sua entrevista Ide Rui e falai à goela despregada para ver se Loredano ouve uma palavra sequer Com efeito a experiência mostroulhes o que Peri tinha conhecido que o som da voz entaipado dentro daquela espécie de tubo se elevava e perdia no ar sem que dos lados se pudesse perceber a menor frase Se porém o italiano se tivesse colocado sobre o formigueiro que penetrava até ao chão onde há pouco estavam sentados teria tido a explicação da cena anterior Agora disse Bento Simões entrai eu gritarei e vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sairá da terra Quanto a isso pouco se me dá respondeu o italiano A outra observação sim tranqüilizame O homem que nos ameaçou não ouviu desconfia apenas Ainda insistis em que fosse um homem Escutai amigo Bento Simões há uma coisa de que tenho mais medo do que de uma cobra é de um homem visionário Visionário dizei crente Um vale outro Visionário ou crente se me falais outra vez em espíritos e milagres prometovos que ficareis neste lugar onde servireis de carniça aos urubus O aventureiro tornouse esverdinhado não era a idéia da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa sofrem as almas cujos corpos ficam insepultos o que mais o horrorizava Pensastes Sim Admitis que fosse um homem Admito tudo Jurais Juro Sobre Sobre a minha salvação O italiano soltou o braço do miserável que caiu de joelhos pedindo ao Deus que ofendia perdão para o perjúrio que acabava de cometer Rui Soeiro voltou os três seguiram calados o caminho que tinham feito Loredano pensativo seus companheiros cabisbaixos Sentaramse à sombra de uma árvore ai permaneceram quase uma hora sem saber o que deviam fazer nem o que podiam esperar A posição era critica reconheciam que se achavam num desses lances da vida em que um passo um movimento precipita o homem no fundo do abismo ou o salva da morte que vai cair sobre ele Loredano media a situação com a audácia e energia que nunca o abandonava nas ocasiões extremas uma lata violenta se travara neste homem só tinha agora um sentimento uma fibra era a sede ardente do gozo sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do deserto Comprimida desde a infância a sua organização se expandira com veemência no meio deste pais vigoroso aos raios do sol ardente que fazia borbulhar o sangue Então no delírio dos instintos materiais surgiram duas paixões violentas Uma era a paixão do ouro a esperança de poder um dia deleitarse na contemplação do tesouro fabuloso que como Tântalo ele ia tocar e fugialhe A outra era paixão do amor a febre que lhe requeimava o sangue quando via aquela menina inocente e cândida que parecia não dever inspirar senão afeições castas A lata que naquele momento o agitava davase entre essas duas paixões Devia fugir e salvar o seu tesouro perdendo Cecília Devia ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene As vezes dizia consigo que bastavalhe a riqueza para poder escolher no mundo uma mulher que amasse outras parecialhe que o universo inteiro sem Cecília ficaria deserto e inútil lhe seria todo o ouro que ia conquistar Por fim ergueu a cabeça Seus companheiros esperavam uma palavra sua como o oráculo do seu destino prepararamse para ouvilo Só há duas coisas a fazer ou entrarmos na casa ou fugirmos daqui mesmo é preciso resolver Que pensais vós Eu penso disse Bento Simões trêmulo ainda que devemos fugir quanto antes e andar dia e noite sem parar E vós Rui sois do mesmo aviso Não fugir é nos denunciar e perder Três homens sós neste sertão obrigados a evitar o povoado não podem viver temos inimigos por toda a parte Que propondes então Que entremos em casa como se nada tivesse passado ou estamos descobertos e neste caso ainda faltam as provas para nos condenarem ou ignoram tudo e não corremos o menor risco Tendes razão disse o italiano devemos voltar nessa casa está a nossa fortuna ou a nossa ruína Achamonos numa posição em que devemos ganhar tudo ou perder tudo Houve longa pausa durante que o italiano refletia Com quantos homens contais Rui perguntou ele Com oito E vós Bento Sete Decididos Prontos ao menor sinal Bem disse o italiano com o desempeno de um chefe dispondo o plano da batalha trazei cada um os vossos homens amanhã a esta hora é preciso que à noite tudo esteja concluído E agora o que vamos fazer perguntou Bento Simões Vamos esperar que escureça à boca da noite nos achegaremos da casa Um de nós à sorte entrará primeiro se nada houver dará sinal aos outros Assim quando um se perca dois ao menos terão ainda esperança de salvarse Os aventureiros resolveram passar o dia no mato uma caça algumas frutas silvestres deramlhes simples mas abundante refeição Por volta de cinco horas da tarde se encaminharam à casa a fim de sondarem o que passava e realizarem o seu projeto Antes de partirem Loredano carregou a clavina mandou seus companheiros carregar as suas e disselhes Assentai bem nisto Na posição difícil em que estamos quem não é nosso amigo é nosso inimigo Pode ser um espião um denunciante em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós Os dois compreenderam a justeza dessa observação e seguiram com as armas engatilhadas olho vivo e ouvido alerta Apesar porém da sua atenção não viram agitarse as folhas a dois passos deles e estenderse pelos arbustos uma ondulação que parecia produzida pela correnteza do vento Era Peri havia um quarto de hora que ele acompanhava os aventureiros como a sua sombra o índio deixando D Antônio dera pela sua ausência e conjeturando que eles tramavam alguma coisa lançouse em sua procura O italiano e seus companheiros caminhavam já havia pedaço quando Bento Simões parou Quem entrará primeiro A sorte decidirá respondeu Rui Como Desta maneira disse o italiano Vedes aquela árvore O que primeiro chegar a ela será o último a entrar o último será o primeiro Está dito Os três meteram as armas à cinta e prepararamse para a corrida Peri ouvindoos teve uma inspiração os aventureiros iam separarse como Loredano ele também disse consigo O último será o primeiro E tomando três flechas esticou a corda do arco mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros Os três partiram mas não tinham feito uma braça de caminho quando Bento Simões tropeçando foi de encontro a Loredano e estendeuse no chão ao fio comprido do lombo Loredano soltou uma blasfêmia Bento gritou misericórdia Rui que já ia adiante voltou julgando que alguma coisa sucedia O plano de Peri tinha gorado Sabeis disse Loredano que no páreo perde aquele que se deixou cair Sereis o primeiro amigo Bento O aventureiro não tugiu Peri não perdera a esperança de lhe deparar a fortuna outra ocasião favorável para realizar o seu projeto seguiuos Foi então que de longe por baixo das árvores avistou Álvaro na mesma direção em que iam os aventureiros despedindo uma seta por elevação dera ao cavalheiro o primeiro sinal e os outros que o fizeram afastarse Deixando Álvaro a intenção do índio era atalhar os aventureiros esperálos junto à cerca e quando eles se separassem para entrar um a um matálos Mas uma fatalidade parecia perseguir o índio e proteger seus inimigos Quando Bento Simões destacandose dos companheiros entrou a cerca Peri ouviu naquela direção a voz de Cecília que voltava do passeio com seu pai e sua prima A mão do índio que nunca tremera no meio do combate caiu inerte escapoulhe o arco só com a idéia de que a seta que ia atirar pudesse assustar a menina quanto mais ofendêla Bento Simões passou incólume XIV A XÁCARA Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade O índio refletiu alguns momentos e tomou uma resolução definitiva modificou inteiramente o seu plano A princípio decidira não atacar os três inimigos de frente não porque os temesse mas sim porque receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto cujo segredo só ele sabia Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer a este expediente o tempo corria de um momento para outro podia o italiano executar a sua trama O que precisava era achar um meio para no caso de sucumbir prevenir a D Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava este meio havia já acudido ao pensamento do índio Foi ter com Álvaro que o esperava O moço já o tinha esquecido pensava em Cecília na sua afeição quebrada na sua mais doce esperança marcha e talvez perdida para sempre Às vezes também apresentavase ao seu espírito a imagem melancólica de Isabel lembravase que ela também amava e não era amada Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca ambos sofriam pela mesma causa ambos sentiam o mesmo pesar e curtiam igual desengano Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel amava sem querer repassava na memória as ternas palavras revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor Parecialhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça a pressão da cabeça desfalecida em seu ombro o contato das mãos trêmulas e o eco das queixas murmuradas pela voz maviosa O coração lhe palpitava com violência esqueciase revendo a bela imagem de um moreno suave a que o amor dava reflexos e uma auréola esplêndida Mas de repente estremecia como se a moça ainda estivesse perto dele passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências que o incomodavam e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas esperanças Quando Peri se aproximou Álvaro estava num dos momentos de tédio e desapego da vida que sucedem às dores profundas Dizeme Peri Falaste de inimigos Sim respondeu o índio Quero conhecêlos Para quê Para atacálos Mas são três Melhor O índio hesitou Não Peri quer combater só os inimigos de sua senhora se ele morrer tu saberás tudo acaba então o que Peri tiver começado Para que este mistério Não podes dizer já quem são esses inimigos Peri pode mas não quer dizer Por quê Porque tu és bom e pensas que os outros também são tu defenderás os maus Oh que não Fala Ouve Se Peri não aparecer amanhã tu não tornarás a vêlo mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles Como Tu verás São três querem ofender a senhora matar seu pai a ti a todos da casa Têm outros que os seguem Uma revolta exclamou Álvaro O primeiro deles quer fugir e levar Ceci que tu amas mas Peri não deixará É impossível disse o moço surpreendido Peri te diz a verdade Não creio Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D Antônio não podia acreditar no horrível atentado sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros nunca durante dez anos que o moço o acompanhava se tinha dado na banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe havia faltas de disciplina rixas entres os companheiros tentativas de deserção mas não passava disto O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se passava e por isso se obstinava em guardar parte do segredo receando que o moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros Tu duvidas de Peri Quem faz uma acusação tal precisa provála Tu és um amigo Peri mas os outros também o são e têm o direito de se defenderem Quando um homem vai morrer tu julgas que ele mente perguntou o índio com firmeza Que queres dizer com isso Peri vai vingar sua senhora vai se separar de tudo quanto ama se ele perder a vida dirás ainda que se engana Álvaro foi abalado pelas palavras do índio Melhor é que fales a D Antônio de Mariz Não ele e tu servem para combater homens que atacam pela frente Peri sabe caçar o tigre na floresta e esmagar a cobra que vai lançar o bote Mas então o que queres de mim Que se Peri morrer acredites no que ele te diz e faças o que ele fez que salves a senhora Assassinar Nunca Peri nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas Tu não amas Ceci Álvaro estremeceu Se tu a amasses matarias teu irmão para livrála de um perigo Peri talvez não compreendas o que vou dizerte Daria a minha vida sem hesitar por Cecília mas a minha honra pertence a Deus e à memória de meu pai Os dois homens olharamse um momento em silêncio ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste Em Álvaro a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável que ele havia traçado e era a linha do dever Em Peri a dedicação sobrepujava tudo viver para sua senhora criar em torno dela uma espécie de providência humana era a sua vida sacrificaria o mundo se possível fosse contanto que pudesse como o Noé dos índios salvar uma palmeira onde abrigar Cecília Entretanto essas duas naturezas uma filha da civilização a outra filha da liberdade selvagem embora separadas por distancia imensa compreendiamse a sorte lhes traçara um caminho diferente mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes sentimentos Peri conheceu que Álvaro não cederia Álvaro sabia que Peri apesar de sua recusa cumpriria exatamente o que tinha resolvido O índio a princípio parecia impressionado pela obstinação do cavalheiro porém ergueu a cabeça com um gesto altivo e batendo com a mão no peito largo e vitorioso disse em tom de energia Peri só defenderá sua senhora não precisa de ninguém É forte tem como a andorinha as asas de suas flechas como a cascavel o veneno das setas como o tigre a força do seu braço como a ema a velocidade de sua carreira Só pode morrer uma vez mas uma vida lhe basta Pois bem amigo respondeu o cavalheiro com nobreza vais realizar o teu sacrifício eu cumprirei o meu dever Tenho uma vida também e a minha espada Farei de uma a sombra de Cecília com a outra traçarei em torno dela um circulo de ferro Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo acharão o meu antes de chegarem à tua senhora Tu és grande podias ter nascido no deserto e ser o rei das florestas Peri te chamaria irmão Apertaram as mãos e dirigiramse a casa em caminho Álvaro lembrouse que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de defender Cecília perguntou seus nomes Peri recusou formalmente e prometeu que o cavalheiro saberia quando fosse tempo O índio tinha a sua idéia Chegando à casa os dois separaramse Álvaro ganhou o aposento que ocupava Peri encaminhouse para o jardim de Cecília Eram então oito horas da noite toda a família se achava reunida na ceia o quarto da menina estava às escuras Peri examinou os arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego e sentouse num banco do jardim Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto e a porta abrindose deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido A menina avistando o índio correu para ele Meu pobre Peri disse ela tu sofreste hoje muito não é verdade E achaste tua senhora bem má e bem ingrata porque te mandou partir Mas agora meu pai disse Ficarás conosco para sempre Tu és boa senhora tu choravas quando Peri ia partir pediste para ele ficar Então não tens queixa de Ceci disse a menina sorrindo O escravo pode ter queixa de sua senhora tornou o índio simplesmente Mas tu não és escravo respondeu Cecília com um gesto de contrariedade tu és um amigo sincero e dedicado Duas vezes me salvaste a vida fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita todos os dias te arriscas a morrer por minha causa O índio sorriu Que queres que Peri faça de sua vida senhora Quero que estime sua senhora e lhe obedeça e aprenda o que ela lhe ensinar para ser um cavalheiro como meu irmão D Diogo e o Sr Álvaro Peri abanou a cabeça Olha continuou a menina Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu e a rezar também e ler bonitas historias Quando souberes tudo isto ela bordará um manto de seda para ti terá uma espada e uma cruz no peito Sim A planta precisa de sol para crescer a flor precisa de água para abrir Peri precisa de liberdade para viver Mas tu serás livres e nobre como meu pai Não O pássaro que voa nos ares cai se lhe quebram as asas o peixe que nada no rio morre se o deitam em terra Peri será como o pássaro e como o peixe se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência Não te zanga senhora Não fazes o que Ceci pede Pois Ceci não te quer mais bem nem te chamará mais seu amigo Vê já não guardo a flor que me deste E a linda menina machucando a flor que arrancou dos cabelos correu para o seu quarto e bateu a porta com violência O índio voltou pesaroso à sua cabana De repente cortou o silêncio da noite voz argentina que cantava uma antiga xácara portuguesa com sentimento e expressão arrebatadora Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música A xácara dizia assim Foi um dia Infanção mouro Deixou Alcáçar de prata e ouro Montado no seu corcel Partiu Sem pajem sem anadel Do castelo à barbacã Chegou Viu formosa castelã Aos pés daquela a quem ama Jurou Ser fiel à sua dama A gentil dona e senhora Sorriu Ai que isenta ela não fora Tu és mouro eu sou cristã Falou A formosa castelã Mouro tens o meu amor Cristão Serás meu nobre senhor Sua voz era um encanto O olhar Quebrado pedia tanto Antes de verte senhora Fui rei Serei teu escravo agora Por ti deixo meu alcáçar Fiel Meus paços douro e de nácar Por ti deixo o paraíso Meu céu É teu mimoso sorriso A dona em um doce enleio Tirou Seu lindo colar do seio As duas almas cristãs Na cruz Um beijo tornou irmãs A voz suave e meiga perdeuse no silêncio do ermo o eco repetiu um momento as suas doces modulações TERCEIRA PARTE OS AIMORÉS I PARTIDA Na segundafeira eram seis horas da manhã quando D Antônio de Mariz chamou seu filho O velho fidalgo velara uma boa parte da noite ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família Peri lhe havia contado todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés e o cavalheiro que conhecia a ferocidade e o espírito vingativo dessa raça selvagem esperava a cada momento ser atacado Por isso de acordo com Álvaro D Diogo e seu escudeiro Aires Gomes tinha tomado todas as medidas de precaução que as circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam Quando seu filho entrou o velho fidalgo acabava de selar duas cartas que escrevera na véspera Meu filho disse ele com uma ligeira emoção refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer e assentei que deveis partir hoje mesmo para São Sebastião Não é possível senhor Afastaisme de vós justamente quando correis um perigo Sim É justamente quando um grande perigo nos ameaça que eu chefe da casa entendo ser do meu dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo o protetor de minha família órfã Confio em Deus meu pai que vossos receios serão infundados mas se ele nos quiser submeter a tal provança o único lagar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada ao vosso lado para defendervos e partilhar a vossa sorte qualquer que ela seja D Antônio apertou seu filho ao peito Eu te reconheço tu és meu filho é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias e o meu coração de moço que fala pelos teus lábios Deixa porém que os cinqüenta anos de experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à velhice o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família Eu vos escuto senhor mas pelo amor que vos consagro poupaime a dor e a vergonha de deixarvos no momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado O fidalgo prosseguiu já calmo Não é uma espada D Diogo que nos dará a vitória fosse ela valente e forte como a vossa entre quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos um de mais ou de menos não importa ao resultado Que assim seja respondeu o cavalheiro com energia reclamo o meu posto de honra e a minha parte do perigo não vos ajudarei a vencer porém morrerei junto dos meus E é por esse nobre mas estéril orgulho que quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos reste se como temo as minhas previsões se realizarem Que dizeis senhor Qualquer que seja a força e o número dos inimigos conto que o valor português e a posição desta casa me ajudarão a resistirlhe por algum tempo por vinte dias mesmo por um mês mas por fim teremos de sucumbir Então exclamou D Diogo pálido Então se meu filho D Diogo em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente tiver ido ao Rio de Janeiro e pedido o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão decerto poderá voar em socorro de seu pai e chegar com tempo para defender sua família Então verá que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo inútil D Diogo deitou o joelho em terra e beijou com ternura a mão do fidalgo Perdão meu pai por não vos ter compreendido Eu devia adivinhar que D Antônio de Mariz não pode querer para o filho senão o que é digno do pai Vamos D Diogo não há tempo a perder Lembraivos que uma hora um minuto de tardança talvez tenha de ser contado ansiosamente por aqueles que vão esperarvos Parto neste instante disse o cavalheiro dirigindose à porta Tomai esta carta é para Martim de Sá governador desta capitania esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa família Ide despedirvos de vossa mãe e vossas irmãs eu farei tudo preparar para a partida O fidalgo reprimindo a sua emoção saiu do gabinete onde se passava esta cena e foi ter com Álvaro que o procurava Álvaro escolhei quatro homens que acompanhem D Diogo ao Rio de Janeiro D Diogo parte perguntou o moço admirado Sim depois vos direi as razões Por agora daivos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma hora Álvaro dirigiuse imediatamente ao fundo da casa onde habitavam os aventureiros Havia ai grande agitação uns falavam em tom de queixa outros murmuravam apenas palavras entrecortadas e alguns finalmente riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros Aires Gomes com todo o seu arreganho militar passeava no meio do terreiro a mão no punho da espada a cabeça alta e o bigode retorcido Quando o escudeiro passava a voz dos aventureiros descia dois tons mas à medida que ele se afastava cada um dava livre desabafo ao seu mau humor Entre os mais inquietos e turbulentos distinguiamse três grupos presididos por personagens de nosso conhecimento Loredano Rui Soeiro e Bento Simões A causa desse descontentamento quase geral era a seguinte Por volta de seis horas da manhã Rui em virtude do emprazamento da véspera dirigiuse o primeiro à escada para ganhar o mato Chegando ao fim da esplanada admirouse de ver aí Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia o que era extraordinário pois só à noite se usava de uma tal precaução e esta cessava apenas amanhecia Ainda mais admirado porém ficou quando os dois aventureiros cruzando as espadas proferiram quase ao mesmo tempo estas palavras Não se passa E por que razão É a ordem respondeu Martim Vaz Rui empalideceu e voltou apressadamente a primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado e cuidou em prevenir a Loredano Aires Gomes porém embargoulhe o passo e dirigiuse com ele para o terreiro ai o digno escudeiro desempenando o corpo e levando a mão à boca em forma de buzina gritou Olá À frente toda a banda Os aventureiros chegaramse formando um círculo ao redor de Aires Gomes Rui já tinha tido ocasião de lançar uma palavra ao ouvido do italiano e ambos um pouco pálidos mas resolutos esperavam o desfecho daquela cena O Sr D Antônio de Mariz disse o escudeiro por meu intermédio vos faz saber a sua vontade e manda que ninguém se afaste um passo da casa sem sua ordem Quem o contrário fizer pereça morte natural Um silêncio morno acolheu a enunciação desta ordem Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois cúmplices Estais entendidos disse Aires Gomes O que nem eu nem meus companheiros entendemos e a razão disto retrucou o italiano avançando um passo Sim a razão exclamou em coro a maioria dos aventureiros As ordens cumpremse e não se discutem respondeu o escudeiro com uma certa solenidade Contudo nós ia dizendo Loredano Toca a debandar gritou Aires Gomes Aquele que não estiver contente que o diga ao Sr D Antônio de Mariz E o escudeiro com uma fleuma imperturbável rompeu o circulo e começou a passear pelo terreiro olhando de traves os aventureiros e rindo à sorrelfa do seu desapontamento Quase todos estavam contrariados sem falar dos conspiradores que se haviam emprazado para concertarem seu plano de campanha os outros cujo divertimento era caçar e bater os matos não recebiam a ordem com prazer Apenas alguns de gênio mais bonachão e jovial tinham tomado a coisa à boa parte e zombavam da contrariedade que sofriam seus companheiros Quando Álvaro se aproximou todos os olhos se voltaram para ele esperando a explicação do que se passava Sr cavalheiro disse Aires Gomes acabo de transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa Bem respondeu o moço e continuou dirigindose aos aventureiros assim é preciso meus amigos estamos ameaçados de um ataque dos selvagens e toda a prudência é pouca nestas ocasiões Não é só a nossa vida que temos a defender e essa pouco vale para cada um de nós é sim a pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem e mais ainda o sossego de uma família honrada que todos prezamos As nobres palavras do cavalheiro e a afabilidade do gesto que suavizava a firmeza de sua voz serenaram completamente os ânimos todos os descontentes mostraramse satisfeitos Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano pois era arriscado tentálo em casa onde o menor gesto o podia trair Álvaro trocou poucas palavras com Aires Gomes e voltouse para os aventureiros D Antônio de Mariz precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D Diogo à cidade de São Sebastião É uma missão perigosa quatro homens nestes desertos marcham de perigo em perigo Quem de vós se oferece para desempenhála Vinte homens se adiantaram o cavalheiro escolheu três entre eles Vós sereis o quarto Loredano O italiano que se tinha escondido entre os seus companheiros ficou como fulminado por estas palavras sair naquela ocasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança durante a ausência tudo podia se descobrir Pesame ser obrigado a negarme ao serviço que exigis de mim mas sintome doente e sem forças para uma viagem O cavalheiro sorriu Não há enfermidade que prive um homem de cumprir o seu dever sobretudo quando é um homem valente e leal como vós Loredano Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos outros aventureiros Se não partis sereis arcabuzado em uma hora Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos faço esmola mandandovos sair desta casa O italiano compreendeu que não tinha remédio senão partir bastava que o moço o acusasse de ter atirado sobre ele bastava a palavra de Álvaro para fazêlo condenar pelo chefe e pelos seus próprios companheiros Aviaivos disse o cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por ele partis em meia hora Álvaro retirouse Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade que pesava sobre ele mas a pouco e pouco foi recobrando a calma animandose por fim sorriu Para que sorrisse era necessário que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a essa inteligência votada ao crime Fez um aceno a Rui Soeiro e os dois encaminharamse para um cubículo que o italiano ocupava no fim da esplanada Aí conversaram algum tempo rapidamente e em voz baixa Foram interrompidos por Aires Gomes que bateu com a espada na porta Eh lá Loredano A cavalo homem e boa viagem O italiano abriu a porta e ia sair mas voltouse para dizer a Rui Soeiro Olhai os homens da guarda é o principal Ide tranqüilo Alguns minutos depois D Diogo com o coração cerrado e as lágrimas nos olhos apertava nos braços sua mãe querida Cecília que ele adorava e Isabel que já amava também como irmã Depois desprendendose com um esforço encaminhouse apressadamente para a escada e desceu ao vale ai recebeu a bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo que Aires Gomes tinha pela rédea A pequena cavalgata partiu com pouco sumiase na volta do caminho II PREPARATIVOS Ao tempo que D Antônio de Mariz e seu filho conversaram no gabinete Peri examinava as suas armas carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado na véspera e saia da cabana A fisionomia do selvagem tinha uma expressão de energia e ardimento que revelava resolução violenta talvez desesperada O que ia fazer nem ele mesmo sabia Certo de que o italiano e seus companheiros se reuniriam naquela manhã contava antes que a reunião se efetuasse ter mudado inteiramente a face das coisas Só tinha uma vida como dissera mas essa com a sua agilidade e a sua força e coragem valia por muitas tranqüilo sobre o futuro pela promessa de Álvaro não lhe importava o número dos inimigos podia morrer mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer ao cavalheiro Saindo de sua cabana Peri entrou no jardim Cecília estava sentada num tapete de peles sobre a relva e amimava ao seio a sua rolinha predileta oferecendo os lábios de carmim às carícias que a ave lhe fazia com o bico delicado A menina estava pensativa doce melancolia desvanecia a vivacidade natural de seu semblante Tu estás agastada com Peri senhora Não respondeu a menina fitando nele os grandes olhos azuis Não quiseste fazer o que eu pedi tua senhora ficou triste Ela dizia a verdade com a ingênua franqueza da inocência Na véspera quando se tinha recolhido enfadada pela recusa de Peri ficara contrariada Educada no fervor religioso de sua mãe embora sem os prejuízos que a razão de D Antônio corrigira no espírito de sua filha Cecília tinha a fé cristã em toda a pureza e santidade Por isso se afligia com a idéia de que Peri a quem votava uma amizade profunda não salvasse a sua alma e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia suas preces Conhecia que a razão por que sua mãe e os outros desprezavam o índio era o seu gentilismo e a menina no seu reconhecimento queria elevar o amigo e tornálo digno da estima de todos Eis a razão por que ficara triste era a gratidão por Peri que defendera sua vida de tantos perigos e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma Nesta disposição de espírito seus olhos caíram sobre a guitarra espanhola que estava em cima da cômoda e veiolhe vontade de cantar É coisa singular como a melancolia inspira Seja por uma necessidade de expansão seja porque a música e a poesia suavizem a dor toda a criatura triste acha no canto um supremo consolo A menina tirou ligeiros prelúdios do instrumento enquanto repassava na memória as letras de alguns solaus e cantigas que sua mãe lhe havia ensinado A que lhe acudiu mais naturalmente foi a xácara que ouvimos havia nessa composição uns longes um quer que seja que ela não sabia explicar mas ia com seus pensamentos Quando acabou de cantar levantouse apanhou a flor de Peri que tinha atirado ao chão deitoua nos cabelos e fazendo a sua oração da noite adormeceu tranqüilamente O último pensamento que rogou a sua fronte alva foi um voto de gratidão pelo amigo que lhe salvara a vida naquela manhã Depois um sorriso adejou sobre seu rosto gracioso como se a alma durante o sono dos olhos viesse brincar nos lábios entreabertos O índio ouvindo as palavras que acabava de proferir Cecília sentiu que pela primeira vez tinha causado uma mágoa real a sua senhora Tu não entendeste Peri senhora Peri te pediu que o deixasses na vida em que nasceu porque precisa desta vida para servirte Como Não te entendo Peri selvagem é o primeiro dos seus só tem uma lei uma religião é sua senhora Peri cristão será o último dos teus será um escravo e não poderá defenderte Um escravo Não Serás um amigo Eu te juro exclamou a menina com vivacidade O índio sorriu Se Peri fosse cristão e um homem quisesse te ofender ele não poderia matálo porque o teu Deus manda que um homem não mate outro Peri selvagem não respeita ninguém quem ofende sua senhora é seu inimigo e morre Cecília pálida de emoção olhou o índio admirada não tanto da sublime dedicação como do raciocínio ela ignorava a conversa que o índio tivera na véspera com o cavalheiro Peri te desobedeceu por ti somente quando já não correres perigo ele virá ajoelhar a teus pés e beijar a cruz que tu lhe deste Não fica zangada Meu Deus murmurou Cecília pondo os olhos no céu É possível que uma dedicação tamanha não seja inspirada por vossa santa religião A alegria serena e doce de sua alma irradiava na fisionomia encantadora Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi assim não exijo mais espero Lembrate somente que no dia em que tu fores cristão tua senhora te estimará ainda mais Não ficas triste Não agora estou satisfeita contente muito contente Peri quer pedirte uma coisa Dize o que é Peri quer que tu risques um papel para ele Riscar um papel Como este que teu pai deu hoje a Peri Ah queres que eu escreva Sim O quê Peri vai dizer Espera Ligeira e graciosa a menina correu à banquinha e tomando uma folha de papel e uma pena fez sinal a Peri que se aproximasse Não devia ela satisfazer os desejos do índio como este satisfazia às suas menores fantasias Vamos fala que eu escrevo Peri a Álvaro disse o índio É uma carta ao Sr Álvaro perguntou a menina corando Sim é para ele Que vais tu dizerlhe Escreve A menina traçou a primeira linha e depois por pedido de Peri o nome de Loredano e dos seus dois cúmplices Agora disse o índio fecha Cecília selou a carta Entrega à tarde antes não Mas que quer isto dizer perguntou Cecília sem compreender Ele te dirá Não que eu A menina balbuciou corando estas palavras ia dizer que não falaria ao cavalheiro e arrependeuse não queria revelar a Peri o que se tinha passado Sabia que se o índio suspeitasse a cena da véspera odiaria Isabel e Álvaro só por lhe terem causado um pesar involuntário Enquanto Cecília confusa procurava disfarçar o enleio Peri fitava nela o seu olhar brilhante mal pensava a menina que aquele olhar era o adeus extremo que o índio lhe dizia Mas para isto fora preciso que adivinhasse o plano desesperado que ele havia concebido de exterminar naquele dia todos os inimigos da casa D Diogo entrou nesse momento no quarto de sua irmã vinha despedirse dela Quanto a Peri deixando Cecília dirigiuse à escada e achou os mesmos vigias que depois embargaram a passagem de Rui Soeiro Não se passa disseram os aventureiros cruzando as espadas O índio levantou os ombros desdenhosamente e antes que as sentinelas voltassem a si da surpresa tinha mergulhado sob as espadas e descido a escada Então ganhou a mata examinou de novo as suas armas e esperou já estava cansado quando viu passar a pequena cavalgata Peri não compreendeu o que sucedia mas conheceu que o seu plano tinha abortado Foi ter com Álvaro O cavalheiro explicoulhe como se aproveitara da ida de D Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o italiano sem rumor e sem escândalo Então o índio por sua vez contou ao moço o que tinha ouvido na touça de cardos o projeto que formara de matar os três aventureiros naquela manhã e finalmente a carta que lhe escrevera por intermédio de Cecília para no caso de sucumbir ele saber o cavalheiro quem eram os inimigos Álvaro duvidava ainda acreditar em tanta perfídia do italiano Agora concluiu Peri é preciso que os dois também saiam se ficarem o outro pode voltar Não se animará disse o cavalheiro Peri não se engana Manda sair os dois Fica descansado Falarei com D Antônio de Mariz O resto do dia passou tranqüilamente mas a tristeza tinha entrado nessa casa ainda na véspera tão alegre e feliz a partida de D Diogo o temor vago que produz o perigo quando se aproxima e o receio de um ataque dos selvagens preocupavam os moradores do Paquequer Os aventureiros dirigidos por D Antônio executavam trabalhos de defesa tornando ainda mais inacessível o rochedo em que estava situada a casa Uns construíam paliçadas em roda da esplanada outros arrastavam para a frente da casa uma colubrina que o fidalgo por excesso de cautela mandara vir de São Sebastião havia dois anos Toda a casa enfim apresentava um aspecto marcial que indicava as vésperas de um combate D Antônio preparavase para receber dignamente o inimigo Apenas em toda esta casa uma pessoa se conservava alheia ao que passava era Isabel que só pensava no seu amor Depois de sua confissão arrancada violentamente ao seu coração por uma força irresistível por um impulso que ela não sabia explicar a pobre menina quando se vira só no seu quarto à noite quase morreu de vergonha Lembravase de suas palavras e perguntava a si mesma como tivera a coragem de dizer aquilo que antes nem mesmo os seus olhos se animavam a exprimir silenciosamente Parecialhe que era impossível tornar a ver Álvaro sem que cada um dos olhares do moço queimasse as suas faces e a obrigasse a esconder o rosto de pejo Entretanto nem por isso seu amor era menos ardente ao contrário agora é que a paixão por muito tempo reprimida se exacerbava com as lutas e contrariedades As poucas palavras doces que o moço lhe dirigia a pressão das mãos e o aperto rápido sobre o coração de Álvaro num momento de alucinação passavam e repassavam na sua memória a todo o momento Seu espírito como uma borboleta em torno da flor esvoaçava constantemente em torno das reminiscências ainda vivas como para libar todo o mel que encerravam aquelas sensações as primeiras de seu infeliz amor Nesse mesmo dia de segundafeira à tarde Álvaro encontrouse um momento com Isabel na esplanada Ambos ficaram mudos e coraram Álvaro ia retirarse Sr Álvaro balbuciou a moça trêmula Que quereis de mim D Isabel perguntou o moço perturbado Esquecime o restituirvos ontem o que não me pertence E ainda esse malfadado bracelete Sim respondeu a moça docemente é este malfadado bracelete Cecília teima que é ele vosso Se meu é vos peço que o aceiteis Não Sr Álvaro não tenho direito Uma irmã não tem direito de aceitar a prenda que lhe oferece seu irmão Tendes razão respondeu a moça suspirando eu o guardarei como lembrança vossa não será adorno para mim senão relíquia O moço não respondeu retirouse para cortar a conversa Desde a véspera Álvaro não podia eximirse à impressão poderosa que causara nele a paixão de Isabel era preciso que não fosse homem para não se sentir profundamente comovido pelo amor ardente de uma mulher bela e pelas palavras de fogo que corriam dos lábios de Isabel impregnadas de perfume e sentimento Mas a razão direita do cavalheiro recalcava essa impressão no fundo do coração ele não se pertencia tinha aceitado o legado de D Antônio de Mariz e jurado dar a sua mão a Cecília Embora não esperasse mais realizar o seu sonho dourado entendia que estava vigorosamente obrigado a sujeitarse a vontade do fidalgo a proteger sua filha a dedicarlhe sua existência Quando Cecília o repelisse abertamente e D Antônio o desobrigasse de sua promessa então seu coração seria livre se não estivesse morto pelo desengano O único fato notável que se deu nesse dia foi a chegada de seis aventureiros das vizinhanças que prevenidos por D Diogo vinham oferecer seus serviços a D Antônio Chegaram ao luscofusco à frente deles vinha o nosso conhecido mestre Nunes que um ano antes dera hospitalidade no seu pouso a Frei Ângelo di Luca III VERME E FLOR Eram onze horas da noite O silêncio reinava na habitação e seus arredores tudo estava tranqüilo e sereno Algumas estrelas brilhavam no céu os sopros escassos da viração sussurravam na folhagem Os dois homens de vigia apoiados ao arcabuz e reclinados sobre o alcantil sondavam a sombra espessa que se estendia pela aba do rochedo O vulto majestoso de D Antônio de Mariz passou lentamente pela esplanada e desapareceu no canto da casa O fidalgo fazia sua ronda noturna como um general na véspera de uma batalha Passados alguns momentos ouviuse cantar uma coruja no vale junto da escada de pedra um dos vigias abaixouse e tomando dois pequenos seixos deixouos cair um depois do outro O som fraco que produziu a queda das pedras sobre o arvoredo da várzea foi quase imperceptível seria difícil distinguilo do rumor do vento nas folhas Um instante depois um vulto subiu ligeiramente a escada e reuniuse aos dois homens que faziam a guarda noturna Tudo está pronto Só esperamos por vós Vamos Não há tempo a perder Trocadas estas palavras rapidamente entre o que chegava e um dos vigias os três encaminharamse com todas as precauções para a alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros Aí como no resto da casa tudo estava calmo e tranqüilo apenas viase luzir na soleira da porta do aposento de Aires Gomes a claridade de uma luz Um dos três chegouse à entrada do alpendre e esgueirandose pela parede perdeuse na escuridão que havia no interior Os outros dois se dirigiam ao fim da casa e ai ocultos pela sombra e pelo ângulo que formava um largo pilar do edifício começaram um diálogo breve e rápido Quantos são perguntou o homem que chegara Vinte ao todo Restamnos Dezenove Bem A senha Prata E o fogo Pronto Aonde Nos quatro cantos Quantos sobram Dois apenas Seremos nós Precisais de mim Sim Houve uma pequena pausa em que um dos aventureiros parecia refletir profundamente enquanto o outro esperava por fim o primeiro ergueu a cabeça Rui vós me sois dedicado Deivos a prova Preciso de um amigo fiel Contai comigo Obrigado O desconhecido apertou a mão de seu companheiro Sabeis que amo uma mulher Vós mo dissestes Sabeis que é mais por essa mulher do que por este tesouro fabuloso que concebi esse plano horrível Não não o sabia Pois é a verdade pouco me importa a riqueza sede meu amigo servime lealmente e tereis a maior parte do meu tesouro Falei que quereis que eu faça Um juramento mas um juramento sagrado terrível Qual Dizei Hoje essa mulher me pertencerá entretanto se por qualquer acaso eu vier a morrer quero que O desconhecido hesitou Quero que nenhum homem possa amála que nenhum homem possa gozar a felicidade suprema que ela pode dar Mas como Matandoa Rui sentiu um calafrio Matandoa para que a mesma cova receba nossos dois corpos não sei por quê mas pareceme que ainda cadáver o contato dessa mulher deve ser para mim um gozo imenso Loredano exclamou seu companheiro horrorizado Sois meu amigo e sereis meu herdeiro disse o italiano agarrandolhe convulsivamente no braço É a minha condição se recusais outro aceitará o tesouro que rejeitais O aventureiro estava em lata com dois sentimentos opostos mas a ambição violenta cega esvairada abafou o grito fraco da consciência Jurais perguntou Loredano Juro respondeu Rui com a voz estrangulada Avante então Loredano abriu a porta do seu cubículo e voltou algum tempo depois trazendo uma tábua longa e estreita que colocou sobre o despenhadeiro como uma espécie de ponte suspensa Ides segurar esta tábua Rui Entrego em vossas mãos a minha vida e nisto douvos a maior prova de confiança Basta que deixeis esta prancha moverse para que eu me precipite sobre os rochedos O italiano achavase então no mesmo lugar que na noite da chegada algumas braças distante da janela de Cecília onde não podia chegar por causa do ângulo que formavam o rochedo e o edifício A tábua foi colocada na direção da janela a primeira vez tinhalhe bastado o seu punhal agora também necessitava de um apoio seguro e do livre movimento de seus braços Rui colocouse sobre a ponta da tábua e segurandose a um frechal do alpendre manteve imóvel sobre o precipício essa ponte pênsil em que o italiano ia arriscarse Quanto a este sem hesitar tirou as suas armas para ficar mais leve descalçouse segurou a longa faca entre os dentes e pôs o pé sobre a prancha Esperarmeeis do outro lado disse o italiano Sim respondeu Rui com voz trêmula A razão por que a voz de Rui tremia era um pensamento diabólico que começava a fermentar no seu espírito Lembroulhe que tinha na mão Loredano e o seu segredo que para verse livre de um e senhor do outro bastava afastar o pé e deixar a tábua inclinar sobre o abismo Entretanto hesitava não que o remorso antecipado lhe exprobrasse o crime que ia cometer já tinhase afundado muito no vício e na depravação para recuar Mas o italiano exercia sobre os seus cúmplices tal prestigio e influência tão poderosa que Rui não podia mesmo nesse momento esquivarse a ela Loredano estava suspenso sobre o abismo pela sua mão podia salválo ou precipitálo no despenhadeiro e contudo dessa posição ainda ele impunha respeito ao aventureiro Rui tinha medo não compreendia o motivo desse terror irresistível mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo No entanto a imagem da riqueza esplêndida brilhante radiando galas e luzimentos passava diante de seus olhos e o deslumbrada um pouco de coragem e seria o único senhor do tesouro fabuloso cujo era o italiano depositário do segredo Mas coragem é o que lhe faltava por duas ou três vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspenderse ao frechal e deixar a tábua rolar no abismo não passou de um desejo Venceu afinal a tentação Teve um momento de desvario os joelhos acurvaramse a tábua sofreu uma oscilação tão forte que Rui admirouse de como o italiano se tinha podia suster Então o medo desapareceu foi substituído por uma espécie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro o primeiro esforço lhe dera a ousadia como a vista do sangue excita a fera Um segundo abalo mais forte agitou a tábua que oscilou à borda do rochedo porém não se ouviu o baque de um corpo não se ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra Rui desesperado ia soltar a prancha quando chegoulhe ao ouvido abafada e sumida a voz do italiano que apenas se percebia no silêncio profundo da noite Estais cansado Rui Podeis tirar a tábua não preciso mais dela O aventureiro ficou espavorido decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo e escarnecia do perigo um ente superior a quem a morte não podia tocar Ele ignorava que Loredano com a sua previdência ordinária quando entrara no seu cubículo para tirar a prancha tivera o cuidado de passar por um caibro do alpendre que era de telhavã a ponta de uma longa corda que caiu sobre a parte de fora da parede uma braça distante da janela de Cecília Assim apenas deu o primeiro passo sobre a ponte improvisada o italiano não se descuidou de estender o braço e agarrar a ponta da corda que logo atou à cintura então se o apoio lhe faltasse ficaria suspenso no ar e embora com mais dificuldade realizaria o seu intento Foi por isso que os dois abalos produzidos pelo seu cúmplice não tiveram o resultado que ele esperava logo do primeiro Loredano adivinhou o que se passava na alma de Rui mas não querendo darlhe a perceber que conhecia a sua traição serviuse de um meio indireto para dizerlhe que estava em segurança e que era inútil a tentativa de precipitálo A tábua não fez mais um só movimento conservouse imóvel como se estivera solidamente pregada ao rochedo Loredano adiantouse tocou a janela da moça e com a ponta da faca conseguiu levantar a aldraba as gelosias abrindose afastaram as cortinas de cassa que vendavam o asilo do pudor e da inocência Cecília dormia envolta nas alvas roupas do seu leito sua cabecinha loura aparecia entre as rendas finíssimas sobre as quais se desenrolavam os lindos anéis dourados de seus cabelos O doce amortecimento de um sono calmo e sereno vendava seu rosto gracioso como a sombra esvaecida que desmaia o semblante das virgens de Murilo seu sorriso era apenas enlevo O talho de sua anágua abrindose deixava entrever um colo de linhas puras mais alvo do que a cambraia e com a ondulação que a respiração branda imprimia ao seu peito desenhavamse sob a lençaria diáfana os seios mimosos Tudo isto ressaltava como um quadro dentre as ondas de uma colcha de damasco azul que nas suas largas dobras moldava sobre a alvura transparente do linho os contornos harmoniosos e puros Havia porém nessa beleza adormecida uma expressão indefinível um quer que seja de tão casto e inocente que envolvia essa menina no seu sono tranqüilo e parecia afugentar dela um pensamento profano Chegandose à beira daquele leito um homem ajoelharia antes como ao pé de uma santa do que se animaria a tocar na ponta dessas roupagens brancas que protegiam a inocência Loredano aproximouse tremendo pálido e ofegante toda a força de sua vigorosa organização toda a sua vontade poderosa e irresistível estava ai vencida subjugada diante de uma menina adormecida O que sentiu quando seu olhar ardente caiu sobre o leito é difícil dizer é talvez mesmo difícil de compreender Foi a um tempo suprema ventura e horrível suplício A paixão brutal o devorava escaldandolhe o sangue nas veias e fazendo saltarlhe o coração entretanto o aspecto dessa menina que não tinha para sua defesa senão a sua castidade o encadeava Sentia que o fogo queimavalhe o seio sentia que seus lábios tinham sede de prazer e a mão gelada e inerte não se podia erguer e o corpo estava paralisado apenas o olhar cintilava e as narinas dilatadas aspiravam as emanações voluptuosas de que estava impregnada a sua atmosfera E a menina sorria no seu plácido sono enleandose talvez nalgum sonho gracioso nalgum dos sonhos azuis que Deus esparge como folhas de rosas sobre o leito das virgens Era o anjo em face do demônio era a mulher em face da serpente a virtude em face do vício O italiano fez um esforço supremo e passando a mão pelos olhos como para arrancar uma visão importuna encaminhouse a um bufete e acendeu uma vela de cera corderosa O aposento até então esclarecido apenas por uma lamparina colocada sobre uma cantoneira iluminouse e a imagem graciosa de Cecília apareceu cercada de uma auréola Sentindo a impressão da luz sobre os olhos a menina fez um movimento e voltando um pouco o rosto para o lado oposto continuou o sono que nem fora interrompido Loredano passou entre o leito e a parede e pôde então admirála em toda a sua beleza não se lembrava de nada mais esquecera o mundo e seu tesouro nem pensava no rapto que ia praticar A rolinha que dormia sobre a cômoda no seu ninho de algodão ergueuse e agitou as asas o italiano despertado por este rumor conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a perder IV NA TREVA Alguns esclarecimentos são necessários aos acontecimentos que acabavam de passar Quando Loredano viuse obrigado pela ameaça de Álvaro a partir para o Rio de Janeiro ficou sucumbido mas depois de alguns momentos um sorriso diabólico tinha enrugado os seus lábios Este sorriso era uma idéia infame que luzira no seu espírito como a flama desses fogos perdidos que brilham no seio das trevas em noites de grande calma O italiano lembrouse que no momento em que todos o supunham em viagem podia preparar a execução do seu plano que ele realizaria naquela mesma noite Na conversa que tivera com Rui Soeiro transmitiulhe as suas instruções breves simples e concisas consistiam em livraremse dos homens que podiam pôr embaraços à sua empresa Para isso os seus cúmplices receberam ordem de quando se recolhessem para dormir colocaremse ao lado de cada um dos homens da banda fiéis a D Antônio de Mariz Naquele tempo e naqueles lugares não era possível que os aventureiros tivessem cada um o seu cubículo poucos gozavam desse privilégio e assim mesmo eram obrigados a partilhar o seu aposento com um companheiro os outros dormiam na vasta alpendrada que ocupava quase toda essa parte do edifício Rui Soeiro tinha conforme as instruções de Loredano arranjado as coisas de tal modo que naquele momento cada um dos aventureiros dedicados a D Antônio de Mariz tinha a seu lado um homem que parecia adormecido e que só esperava ouvir pronunciar a senha convencionada para enterrar o seu punhal na garganta do seu companheiro Ao mesmo tempo havia pelos cantos da casa grandes molhos de palha seca colocados junto das portas ou metidos pela beirada do telhado e que só esperavam uma faisca para atear o incêndio em todo o edifício Rui Soeiro com uma sagacidade e uma prudência dignas de seu chefe dispusera tudo isto parte durante o dia e parte nas horas mortas da noite em que tudo estava recolhido Não se esqueceu da recomendação especial de Loredano e ofereceuse voluntariamente a Aires Gomes para fazer a guarda noturna com um dos seus companheiros visto recearse ataque do inimigo o digno escudeiro que o conhecia como um dos mais valentes da banda caiu no laço e aceitou o oferecimento Senhor do campo o aventureiro pôde então acabar livremente seus preparativos e para mais segurança arranjou traça de verse livre do escudeiro que podia de um momento para outro vir incomodálo Aires Gomes em companhia de seu velho amigo mestre Nunes esvaziava uma botelha de vinho de Valverde que eles bebiam lentamente trago a trago para assim disfarçarem a módica porção do liquido destinado a umedecer as goelas de dois formidáveis bebedores Mestre Nunes aplicou voluptuosamente os lábios à borda do canjirão tomou uma vez de vinho e dando um ligeiro estalinho com a língua no céu da boca repimpouse na tripeça em que estava sentado cruzando as mãos sobre o seu ventre proeminente com uma beatitude celeste Ora estou desde que cheguei para perguntarvos uma coisa amigo Aires e sempre a passar Não a deixeis passar agora Nunes Aqui me tendes para respondervos Dizeime cá quem é um tal que acompanhava D Diogo e a quem dais um diabo de nome que não é português Ah quereis falar de Loredano Um tunante Conheceis esse homem Aires Por Deus se ele é dos nossos Quando pergunto se o conheceis quero dizer se sabeis donde veio quem era e o que fazia À fé que não Apareceunos aqui um dia a pedir hospitalidade e depois como saísse um homem ficou em lagar dele E quando isso se vos lembra Esperai Estou com os meus cinqüenta e nove O escudeiro contou pelos dedos consultando o seu calendário que era a sua idade Foi por este tempo há um ano princípios de março Estais bem certo exclamou mestre Nunes Certíssimo é conta que não engana Mas que tendes Com efeito mestre Nunes se erguera espantado Nada Não é possível Não acreditais É outra coisa Aires É um sacrilégio uma obra de Satã uma simonia horrenda Que dizeis homem explicaivos lá de uma vez Mestre Nunes conseguiu restabelecerse da sua perturbação e contou ao escudeiro as suas desconfianças a respeito de Frei Ângelo di Luca e da sua morte que nunca fora possível explicar notoulhe a coincidência do desaparecimento do carmelita com o aparecimento do aventureiro e o fato de serem da mesma nação Depois concluiu Nunes aquela voz aquele olhar quando o vi hoje estremeci e recuei espavorido julgando que o frade tinha saído de baixo da terra Aires Gomes levantouse furioso e saltando sobre o seu catre agarrou o espadão que tinha à cabeceira Que ides fazer gritou mestre Nunes Matálo e desta vez às direitas que não torne Esqueceis que vai longe É verdade murmurou o escudeiro rangendo os dentes de raiva Ouviuse um ligeiro rumor na porta os dois amigos o atribuíram ao vento e não se voltaram sentados em face um do outro continuaram em voz baixa a sua conversa interrompida pela brusca revelação de Nunes Entretanto fora passavamse coisas que deviam excitar a atenção do digno escudeiro O rumor que ouvira fora produzido pela volta que Rui dera à chave fechando a porta O aventureiro tinha ouvido toda a conversa a princípio aterrado cobrou animo e lembrouse que em todo o caso era bom estar senhor do segredo do italiano para qualquer emergência futura Confiado nessa excelente idéia Rui meteu a chave no peito do gibão e foi reunirse a seu companheiro que estava de vigia junto da escada Esperava por Loredano que devia entrar na casa alta noite para dirigir toda essa trama que havia urdido com uma inteligência superior O italiano tinha facilmente iludido a D Diogo de Mariz sabia que o ardente cavalheiro ia de rota batida e que não se demoraria em caminho por motivo algum As três léguas do Paquequer inventou um pretexto de terse quebrado a cilha de sua cavalgadura e parou para arranjála enquanto D Diogo e seus companheiros pensavam que os seguia de perto ele tinha voltado sobre os passos e escondido nas vizinhanças esperava que a noite se adiantasse Quando percebeu que tudo estava em silêncio aproximouse trocou o sinal convencionado que era o canto de coruja e introduziuse furtivamente na habitação O mais já vimos Sabendo que tudo estava preparado e pronto ao primeiro sinal Loredano deu começo à execução de seu projeto e conseguiu penetrar no quarto de Cecília Tomar a menina nos braços raptála atravessar a esplanada chegar à porta da alpendrada e pronunciar a senha convencionada era coisa que ele contava realizar num momento Quando Cecília arrancada do seu leito lançasse um grito que ele não pudesse abafar isto pouco lhe importava antes que alguém despertasse teria chegado ao outro lado e então a uma palavra sua o fogo e o ferro viriam em seu socorro Rui lançaria a chama à palha preparada para esse fim e a faca de cada um dos seus cúmplices se enterraria na gorja dos homens adormecidos Depois no meio desse horror e confusão os vinte demônios acabariam a sua obra e fugiriam como os maus espíritos das lendas antigas quando a primeira luz da alvorada terminava o sabbat infernal Iam ao Rio de Janeiro ai ligados todos por um mesmo laço do crime por um mesmo perigo e uma só ambição Loredano contava ter neles agentes fiéis e dedicados para levar a cabo a sua empresa Enquanto a traição solapava assim o sossego a felicidade a vida e a honra dessa família todos dormiam tranqüilos e descuidados nem um pressentimento os vinha advertir da desgraça que os ameaçava Loredano graças à sua agilidade e à sua força tinha conseguido chegar até ao leito da menina sem que o menor rumor traísse a sua presença sem que na habitação alguém tivesse podido perceber o que se passava Certo pois do resultado o italiano advertido pela inocente avezinha que não sabia o mal que fazia cuidou em consumar a sua obra Abriu a cômoda de Cecília tirou roupas de seda e linho e fez de tudo isso um embrulho tão pequeno quanto era possível depois envolveuo em uma das peles que serviam de tapete e colocou numa cadeira a jeito de o poder apanhar com facilidade Era coisa original o pensamento deste homem Ao passo que cometia um crime tinha a lembrança delicada de querer suavizar a desgraça da menina fazendo que nada lhe faltasse na viagem incômoda que tinha de fazer Quando tudo estava preparado abriu a portinha que dava para o jardim e estudou o caminho que tinha de seguir Era preciso porque apenas tomasse Cecília nos braços devia partir e chegar de uma só corrida direita rápida e cega A porta ficava num canto do aposento defronte do vão que havia entre o leito e a parede colocado nesse lagar não tinha senão um movimento a fazer agarrar a menina e lançarse fora do aposento Na ocasião em que ele se aproximava ouviuse um gemido quase um suspiro abafado e cheio de angústia Os cabelos eriçaramse sobre a fronte do italiano gotas de suor frio e gelado sulcaram as suas faces pálidas e contraídas A pouco e pouco foi saindo do estupor que o paralisara e volvendo lentamente ao redor de si uns esgares de olhos alucinados Nada Nem um inseto parecia acordado na solidão profunda da noite em que tudo dormia exceto o crime o verdadeiro duende da terra o mau gênio das crenças de nossos pais Tudo estava em sossego até o vento parecia se ter abrigado no cálice das flores e adormecido nesse berço perfumado como num regaço de amante O italiano restabeleceuse do violento abalo que sofrera deu um passo e inclinouse sobre o leito Cecília sonhava nesse momento Seu rosto esclareceuse com uma expressão de alegria angélica sua mãozinha que repousava aninhada entre os seios moveuse com a indolência e a moleza do sono e recaiu sobre a face A pequena cruz de esmalte que tinha ao colo e que estava agora presa entre os dedos da mão roçoulhe os lábios e uma música celeste escapouse como se Deus tivesse vibrado uma das cordas de sua harpa eólia Foi a princípio um sorriso que adejoulhe nos lábios depois o sorriso colheu as asas e formou um beijo por fim o beijo entreabriuse como uma flor e exalou um suspiro perfumado Peri O colo arfou docemente e a mão descaindo foi de novo aninharse entre o talho da sua anágua de cambraia O italiano ergueuse pálido Não se animava a tocar naquele corpo tão casto tão puro não podia fitar aquela fisionomia radiante de inocência e de candura Mas o tempo urgia Fez um esforço supremo sobre si mesmo firmou o joelho à borda do leito fechou os olhos e estendeu as mãos V DEUS DISPÕE O braço de Loredano estendeuse sobre o leito porém a mão que se adiantava e ia tocar o corpo de Cecília estacou no meio do movimento e subitamente impelida foi bater de encontro à parede Uma seta que não se podia saber de onde vinha atravessara o espaço com a rapidez de um raio e antes que se ouvisse o sibilo forte e agudo pregara a mão do italiano ao muro do aposento O aventureiro vacilou e abateuse por detrás da cama era tempo porque uma segunda seta despedida com a mesma força e a mesma rapidez cravavase no lugar onde há pouco se projetava a sombra de sua cabeça Passou se então ao redor da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura uma cena horrível porem silenciosa Loredano nos transes da dor por que passava compreendera o que sucedia tinha adivinhado naquela seta que o ferira a mão de Peri e sem ver sentia o índio aproximar se terrível de ódio de vingança de cólera e desespero pela ofensa que acabava de sofrer sua senhora Então o réprobo teve medo erguendose sobre os joelhos arrancou convulsivamente com os dentes a seta que pregava sua mão à parede e precipitouse para o jardim cego louco e delirante Nesse mesmo instante dois segundos talvez depois que a última flecha caíra no aposento a folhagem do óleo que ficava fronteiro à janela de Cecília agitouse e um vulto embalançandose sobre o abismo suspenso por um frágil galho da árvore veio cair sobre o peitoril Aí agarrandose à ombreira saltou dentro do aposento com uma agilidade extraordinária a luz dando em cheio sobre ele desenhou o seu corpo flexível e as suas formas esbeltas Era Peri O índio avançouse para o leito e vendo sua senhora salva respirou com efeito a menina a meio despertada pelo rumor da fugida de Loredano voltarase do outro lado e continuara o sono forte e reparador como é sempre o sono da juventude e da inocência Peri quis seguir o italiano e matálo como já tinha feito aos seus dois cúmplices mas resolveu não deixar a menina exposta a um novo insulto como o que acabava de sofrer e tratou antes de velar sobre sua segurança e sossego O primeiro cuidado do índio foi apagar a vela depois fechando os olhos aproximouse do leito e com uma delicadeza extrema puxou a colcha de damasco azul até ao colo da menina Parecialhe uma profanação que seus olhos admirassem as graças e os encantos que o pudor de Cecília trazia sempre vendados pensava que o homem que uma vez tivesse visto tanta beleza nunca mais devia ver a luz do dia Depois desse primeiro desvelo o índio restabeleceu a ordem no aposento deitou a roupa na cômoda fechou a gelosia e as abas da janela lavou as nódoas de sangue que ficaram impressas na parede e no soalho e tudo isto com tanta solicitude tão sutilmente que não perturbou o sono da menina Quando acabou o seu trabalho aproximouse de novo do leito e à luz frouxa da lamparina contemplou as feições mimosas e encantadoras de Cecília Estava tão alegre tão satisfeito de ter chegado a tempo de salvála de uma ofensa e talvez de um crime era tão feliz de vêla tranqüila e risonha sem ter sofrido o menor susto o mais leve abalo que sentiu a necessidade de exprimirlhe por algum modo a sua ventura Nisto seus olhos abaixandose descobriram sobre o tapete da cama dois pantufos mimosos forrados de cetim e tão pequeninos que pareciam feitos para os pés de uma criança ajoelhou e beijouos com respeito como se foram relíquia sagrada Eram então perto de quatro horas pouco tardava para amanhecer as estrelas já iam se apagando a uma e uma e a noite começava a perder o silêncio profundo da natureza quando dorme O índio fechou por fora a porta do quarto que dava para o jardim e metendo a chave na cintura sentouse na soleira como cão fiel que guarda a casa de seu senhor resolvido a não deixar ninguém aproximarse Aí refletiu sobre o que acabava de passar e acusavase a si mesmo de ter deixado o italiano penetrar no aposento de sua senhora Peri porem caluniavase porque só a Providência podia ter feito nessa noite mais do que ele porque tudo quanto era possível à inteligência à coragem à sagacidade e à força do homem o índio havia realizado Depois da partida de Loredano e da conversa que teve com Álvaro certo de que sua senhora já não corria perigo e de que os dois cúmplices do italiano iam ser expulsos como ele o índio não pensando mais senão no ataque dos Aimorés partiu imediatamente O seu pensamento era ver se descobria pelas vizinhanças do Paquequer indícios da passagem de alguma tribo da grande raça Guarani a que ele pertencia seria um amigo e um aliado para D Antônio de Mariz O ódio inveterado que havia entre as tribos da grande raça e a nação degenerada dos Aimorés justificava a esperança de Peri mas infelizmente tendo percorrido todo o dia a floresta não encontrou o menor vestígio do que procurava O fidalgo estava pois reduzido às suas próprias forças mas embora fossem estas pequenas o índio não desanimou tinha consciência de si e sabia que na última extremidade a sua dedicação por Cecília lhe inspiraria meios de salvar a ela e a tudo que ela amava Voltou à casa já noite fechada foi ter com Álvaro perguntoulhe o que era feito dos dois aventureiros o cavalheiro disselhe que D Antônio de Mariz recusara crer na acusação De fato o fidalgo leal habituado ao respeito e à fidelidade de seus homens não admitia que se concebesse uma suspeita sem provas entretanto como a palavra de Peri tinha para ele toda a valia ficara de ouvir de sua boca a narração do que presenciara para conhecer o peso que devia dar a semelhante acusação Peri retirouse inquieto e arrependido de não ter persistido no seu primeiro projeto enquanto esses dois homens que ele supunha já expulsos estivessem ali sabia que um perigo pairava sobre a casa Assim resolveu não dormir tomou o seu arco e sentouse na porta de sua cabana apesar de possuir a clavina que lhe dera D Antônio o arco era a arma favorita de Peri não demandava tempo para carregar não fazia o menor estrépito lançava quase instantaneamente dois três tiros e a sua flecha era tão terrível e tão certeira como a bala Passado muito tempo o índio ouviu cantar uma coruja do lado da escada esse canto causoulhe estranheza por duas razões a primeira porque era mais sonoro do que é o cacarejar daquela ave agoureira a segunda porque em vez de partir do cimo de uma árvore saia do chão Esta reflexão o fez levantar desconfiou da coruja que tinha hábitos diferentes de suas companheiras quis conhecer a razão desta singularidade Viu do outro lado da esplanada três vultos que atravessavam ligeiramente isto aumentou a sua desconfiança os homens de vigia eram ordinariamente dois e não três Seguiuos de longe mas quando chegou ao pátio não viu senão um dos homens que entrava na alpendrada os outros tinham desaparecido Peri procurouos por toda a parte e não os viu estavam ocultos pelo pilar que se elevava na ponta do rochedo e não lhe era possível descobrilos Supondo que tivessem também entrado no alpendre o índio agachouse e penetrou no interior de repente a sua mão tocou uma lamina fria que conheceu imediatamente ser a folha de um punhal És tu Rui perguntou uma voz sumida Peri emudeceu mas de chofre aquele nome de Rui lembroulhe Loredano e o seu projeto percebeu que se tramava alguma coisa e tomou um partido Sim respondeu com a voz quase imperceptível Já é hora Não Todos dormem Enquanto trocavam estas duas perguntas a mão de Peri correndo pela lâmina de aço tinha conhecido que outra mão segurava o cabo do punhal O índio saiu do alpendre e dirigiuse ao quarto de Aires Gomes a porta estava fechada e junto dela tinham colocado um grande montão de palha Tudo isto denunciava um plano prestes a realizarse Peri compreendia e tinha medo de já não ser tempo para destruir a obra dos inimigos Que fazia aquele homem deitado que fingia dormir e que tinha o punhal desembainhado na mão como se estivesse pronto a ferir Que significava aquela pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam Que queria dizer a palha encostada à porta do escudeiro Não restava dúvida havia ali homens que esperavam um sinal para matarem seus companheiros adormecidos e deitarem fogo à casa tudo estava perdido se o plano não fosse imediatamente destruído Cumpria acordar os que dormiam prevenilos do perigo que corriam ou ao menos preparálos para se defenderem e escaparem de uma morte certa e inevitável O índio agarrou convulsivamente a cabeça com as duas mãos como se quisesse arrancar à força de seu espírito agitado e em desordem um pensamento salvador Seu largo peito dilatouse uma idéia feliz luzira de repente na confusão de tantos pensamentos desencontrados que fermentavam no cérebro e reanimara sua coragem e força Era uma idéia original Peri lembrarase que o alpendre estava cheio de grandes talhas e vasos enormes contendo água potável vinhos fermentados licores selvagens de que os aventureiros faziam sempre uma ampla provisão Correu de novo ao saguão e encontrando a primeira talha tirou a torneira o liquido começou a derramarse pelo chão ia passar à segunda quando a voz que já lhe tinha falado soou de novo baixa mas ameaçadora Quem vai lá Peri compreendeu que a sua idéia ia ficar sem efeito e talvez não servisse senão de apressar o que ele queria evitar Não hesitou pois e quando o aventureiro que falava erguiase sentiu duas tenazes vivas que caiam sobre o seu pescoço e o estrangulavam como uma golilha de ferro antes que pudesse soltar um grito O índio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer o menor rumor e consumou a sua obra todas as talhas do alpendre esvaziaram se a pouco e pouco e inundavam o chão Dentro de um segundo a frialdade acordaria todos os homens adormecidos e os obrigaria a sair do alpendre era o que Peri esperava Livre do maior perigo o índio rodeou a casa para ver se tudo estava em sossego e teve então ocasião de notar que por todo o edifício tinham disposto feixes de palha para atear um incêndio Peri inutilizando estes preparativos chegou ao canto da casa que ficava defronte de sua cabana parecia procurar alguém Aí ouviu a respiração ofegante de um homem cosido com a parede junto do jardim de Cecília O índio tirou a sua faca a noite estava tão escura que era impossível descobrir a menor sombra o menor vulto entre as trevas Mas ele conheceu Rui Soeiro Peri tinha o ouvido sutil e delicado e o faro do selvagem que dispensa a vista o som da respiração servialhe de alvo escutou um momento ergueu o braço e a faca enterrandose na boca da vitima cortoulhe a garganta Nem um gemido escapou da massa inerte que se estorceu um momento e quedou de encontro ao muro Peri apanhou o arco que encostara à parede e voltandose para lançar um olhar sobre o quarto de Cecília estremeceu Acabava de ver pela soleira da porta o reflexo vivo de uma luz e logo depois sobre a folhagem do óleo um clarão que indicava estar a janela aberta Ergueu os braços com um desespero e uma angústia inexprimível estava a dois passos de sua senhora e entretanto um muro e uma porta o separavam dela que talvez àquela hora corria um perigo iminente Que ia fazer Precipitarse de encontro a essa porta quebrála espedaçála Mas podia aquela luz não significar coisa alguma e a janela ter sido aberta por Cecília Este último pensamento tranqüilizouo tanto mais quando nada revelava a existência de um perigo quando tudo estava em sossego no jardim e no quarto da menina Lançouse para a cabana e segurandose às folhas da palmeira galgou o ramo do óleo e aproximouse para ver por que sua senhora estava acordada àquela hora O espetáculo que se apresentou diante de seus olhos fez correrlhe um calafrio pelo corpo a gelosia aberta deixoulhe ver a menina adormecida e o italiano que tendo aberto a porta do jardim dirigiase ao leito Um grito de desespero e de agonia ia romperlhe do seio mas o índio mordendo os lábios com força reprimiu a voz que se escapou apenas num som rouco e plangente Então prendendose à árvore com as pernas o índio estendeuse ao longo do galho e esticou a corda do arco O coração batialhe violentamente e por um momento o seu braço tremeu só com a idéia de que a sua flecha tinha de passar perto de Cecília Quando porém a mão do italiano se adiantou e ia tocar o corpo da menina não pensou não viu mais nada senão esses dedos prestes a mancharem com o seu contato o corpo de sua senhora não se lembrou senão dessa horrível profanação A flecha partiu rápida pronta e veloz como o seu pensamento a mão do italiano estava pregada ao muro Foi só então que Peri refletiu que teria sido mais acertado ferir essa mão na fonte da vida que a animava fulminar o corpo a que pertencia esse braço a segunda seta partiu sobre a primeira e o italiano teria deixado de existir se a dor não o obrigara a curvarse VI REVOLTA Quando Peri acabou de refletir sobre o que passara ergueuse abriu de novo a porta fechoua por dentro e seguiu pelo corredor que ia do quarto de Cecília ao interior da casa Estava tranqüilo sobre o futuro sabia que Bento Simões e Rui Soeiro não o incomodariam mais que o italiano não lhe podia escapar e que àquela hora todos os aventureiros deviam estar acordados mas julgou prudente prevenir D Antônio de Mariz do que ocorria A esse tempo Loredano já tinha chegado à alpendrada onde o esperava uma nova e terrível surpresa uma última decepção Lançandose do quarto de Cecília sua intenção era ganhar o fundo da casa pronunciar a senha convencionada e senhor do campo voltar com seus cúmplices raptar a menina e vingarse de Peri Mal sabia porém que o índio tinha destruído toda a sua maquinação chegando ao pátio viu o alpendre iluminado por fachos e todos os aventureiros de pé cercando um objeto que não pôde distinguir Aproximouse e descobriu o corpo de seu cúmplice Bento Simões que jazia no chão alagado do pavimento o aventureiro tinha os olhos saltados das órbitas a língua saída da boca o pescoço cheio de contusões todos os sinais enfim de uma estrangulação violenta De lívido que estava o italiano tornouse verde procurou com os olhos a Rui Soeiro e não o viu decididamente o castigo da Providência caia sobre as suas cabeças conheceu que estava irremediavelmente perdido e que só a audácia e o desespero o podiam salvar A extremidade em que se achava inspiroulhe uma idéia digna dele ia tirar partido para seus fins daquele mesmo fato que parecia destruílos ia fazer do castigo uma arma de vingança Os aventureiros espantados sem compreenderem o que viam olhavamse e murmuravam em voz baixa fazendo suposições sobre a morte do seu companheiro Uns despertados de sobressalto pela água que corria das talhas outros que não dormiam apenas admirados se haviam erguido e no meio de um coro de imprecações e blasfêmias acenderam fachos para ver a causa daquela inundação Foi então que descobriram o corpo de Bento Simões e ficaram ainda mais surpreendidos os cúmplices temendo que aquilo não fosse um começo de punição os outros indignados pelo assassinato de seu companheiro Loredano percebeu o que passava no espírito dos aventureiros Não sabeis o que significa isto disse ele Oh não explicainos exclamaram os aventureiros Isto significa continuou o italiano que há nesta casa uma víbora uma serpente que nós alimentamos no nosso seio e que nos morderá a todos com o seu dente envenenado Como Que quereis dizer Falai Olhai disse o frade apontando para o cadáver e mostrando a sua mão ferida eis a primeira vítima e a segunda que escapou por um milagre a terceira Quem sabe o que é feito de Rui Soeiro É verdade onde está Rui disse Martim Vaz Talvez morto também Depois dele virá outro e outro até que sejamos exterminados um por um até que todos os cristãos tenham sido sacrificados Mas por quem Dizei o nome do vil assassino É preciso um exemplo O nome E não adivinhais respondeu o italiano Não adivinhais quem nesta casa pode desejar a morte dos brancos e a destruição da nossa religião Quem senão o herege o gentio o selvagem traidor e infame Peri exclamaram os aventureiros Sim esse índio que conta assassinarnos a todos para saciar a sua vingança Não há de ser assim como dizeis eu vos juro Loredano exclamou Vasco Afonso Bofé gritou outro deixai isto por minha conta Não vos dê cuidado E não passa desta noite O corpo de Bento Simões pede justiça E justiça será feita Neste mesmo instante Sim agora mesmo Eia Seguime Loredano ouvia estas exclamações rápidas que denunciavam como a exacerbação ia lavrando com intensidade quando porém os aventureiros quiseram lançarse em procura do índio ele os conteve com um gesto Não lhe convinha isto a morte de Peri era coisa acidental para ele o seu fim principal era outro e esperava conseguilo facilmente O que ides fazer perguntou imperativamente aos seus companheiros Os aventureiros ficaram pasmados com semelhante pergunta Ides matálo Mas decerto E não sabeis que não podereis fazêlo Que ele é protegido amado estimado por aqueles que pouco se importam se morremos ou vivemos Seja embora protegido quando é criminoso Como vos iludis Quem o julgará criminoso Vós Pois bem outros julgarão inocente e o defenderão e não tereis remédio senão curvar a cabeça e calarvos Oh isso é demais Julgais que somos alimárias que se podem matar impunemente retrucou Martim Vaz Sois piores que alimárias sois escravos Por São Brás tendes razão Loredano Vereis morrer vossos companheiros assassinados infamemente e não podereis vingálos e sereis obrigado a tragar até as vossas queixas porque o assassino é sagrado Sim não o podereis tocar repito Pois bem eu volo mostrarei E eu gritou toda a banda Qual é vossa tenção perguntou o italiano A nossa tenção é pedirmos a D Antônio de Mariz que nos entregue o assassino de Bento Justo E se ele recusar estamos desligados do nosso juramento e faremos justiça pelas nossas mãos Procedeis como homens de brio e pundonor liguemonos todos e vereis que obteremos reparação mas para isto é preciso firmeza e vontade Não percamos tempo Quem de vós se incumbe de ir como parlamentário a D Antônio Um aventureiro dos mais audazes e turbulentos da banda ofereceuse chamavase João Feio Serei eu Sabeis o que lhe deveis dizer Oh ficai descansado Ouvirá boas Ides já Neste instante Uma voz calma sonora e de grave entonação uma voz que fez estremecer todos os aventureiros soou na entrada do alpendre Não é preciso irdes pois que vim Aqui me tendes D Antônio de Mariz calmo e impassível adiantouse até o meio do grupo e cruzando os braços sobre o peito volveu lentamente pelos aventureiros o seu olhar severo O fidalgo não tinha uma só arma e entretanto o aspecto de sua fisionomia venerável a firmeza de sua voz e altivez de seu gesto nobre bastaram para fazer curvar a cabeça de todos esses homens que ameaçavam Advertido por Peri dos acontecimentos que tinham tido lagar naquela noite D Antônio de Mariz ia sair quando apareceram Álvaro e Aires Gomes O escudeiro que depois de sua conversa com mestre Nunes tinha adormecido fora despertado de repente pelas imprecações e gritos que soltavam os aventureiros quando a água começou a invadir as esteiras em que estavam deitados Admirado desse rumor extraordinário Aires bateu o fuzil acendeu a vela e dirigiuse para a porta para conhecer o que perturbava o seu sono a porta como sabemos estava fechada e sem chave O escudeiro esfregou os olhos para certificarse do que via e acordando Nunes perguntoulhe quem tomara aquela medida de precaução seu amigo ignorava como ele Nesse momento ouviase a voz do italiano que excitava os aventureiros à revolta Aires Gomes percebeu então do que se tratava Agarrou mestre Nunes encostouo à parede como se fosse uma escada e sem dizer palavra trepou do catre sobre seus ombros e levantando as telhas com a cabeça enfiou por entre as ripas dos caibros Apenas ganhou o telhado o escudeiro pensou no que devia fazer e assentou que o verdadeiro era dar parte a Álvaro e ao fidalgo a quem cabia tomar as providências que o acaso pedia D Antônio de Mariz sem se perturbar ouviu a narração do escudeiro como tinha ouvido a do índio Bem meus amigos sei o que me cumpre fazer Nada de rumor não perturbemos o sossego da casa estou certo que isto passará Esperaime aqui Não posso deixar que vos arrisqueis só disse Álvaro dando um passo para seguilo Ficai vós e estes dois amigos dedicados velareis sobre minha mulher Cecília e Isabel Nas circunstâncias em que nos achamos assim é preciso Consenti ao menos que um de nós vos acompanhe Não basta a minha presença enquanto que aqui todo o vosso valor e fidelidade não bastam para o tesouro que confio à vossa guarda O fidalgo tomou o seu chapéu e poucos momentos depois aparecia imprevistamente no meio dos aventureiros que trêmulos cabisbaixos corridos de vergonha não ousavam proferir uma palavra Aqui me tendes repetiu o cavalheiro Dizei o que quereis de D Antônio de Mariz e dizeio claro e breve Se for de justiça sereis satisfeitos se for uma falta tereis a punição que merecerdes Nem um dos aventureiros ousou levantar os olhos todos emudeceram Calaivos Passase então aqui alguma coisa que não vos atreveis a revelar Acaso vermeei obrigado a castigar severamente um primeiro exemplo de revolta e desobediência Falai Quero saber o nome dos culpados O mesmo silêncio respondeu às palavras firmes e graves do velho fidalgo Loredano hesitava desde o princípio desta cena não tinha a coragem necessária para apresentarse em face de D Antônio mas também sentia que se ele deixasse as coisas marcharem pela maneira por que iam estava infalivelmente perdido Adiantouse Não há aqui culpados Sr D Antônio de Mariz disse o italiano animandose progressivamente há homens que são tratados como cães que são sacrificados a um capricho vosso e que estão resolvidos a reivindicarem os seus foros de homens e de cristãos Sim gritaram os aventureiros reanimandose Queremos que se respeite a nossa vida Não somos escravos Obedecemos mas não nos cativamos Valemos mais que um herege Temos arriscado a nossa existência para defendervos D Antônio ouviu impassível todas estas exclamações que iam subindo gradualmente ao tom da ameaça Silêncio vilões Esqueceis que D Antônio de Mariz ainda tem bastante força para arrancar a língua que o pretendesse insultar Miseráveis que lembrais o dever como um beneficio Arriscastes a vossa vida para defenderme E qual era a vossa obrigação homens que vendeis o vosso braço e sangue ao que melhor paga Sim Sois menos que escravos menos que cães menos que feras Sois traidores infames e refeces Mereceis mais do que a morte mereceis o desprezo Os aventureiros cuja raiva fermentava surdamente não se contiveram mais das palavras de ameaça passaram ao gesto Amigos gritou Loredano aproveitando habilmente o ensejo Deixareis que vos insultem atrozmente que vos cuspam o desprezo na cara E por que motivo Não Nunca vociferaram os aventureiros furiosos Desembainhando as adagas estreitaram o círculo ao redor de D Antônio de Mariz era uma confusão de gritos injúrias ameaças que corriam por todas as bocas enquanto os braços suspensos hesitavam ainda em lançar o golpe D Antônio de Mariz sereno majestoso calmo olhava todas essas fisionomias decompostas com um sorriso de escárnio e sempre altivo e sobranceiro parecia sob os punhais que o ameaçavam não a vítima que ia ser imolada mas o senhor que mandava VII OS SELVAGENS Os aventureiros com o punhal erguido ameaçavam mas não se animavam a romper o estreito círculo que os separava de D Antônio de Mariz O respeito essa força moral tão poderosa dominava ainda a alma daqueles homens cegos pela cólera e pela exaltação todos esperavam que o primeiro ferisse e nenhum tinha a coragem de ser o primeiro Loredano conheceu que era necessário um exemplo o desespero de sua posição as paixões ardentes que tumultuavam em seu coração deramlhe o delírio que supre o valor nas circunstâncias extremas O aventureiro apertou convulsivamente o cabo de sua faca e fechando os olhos e dando um passo às cegas ergueu a mão para desfechar o golpe O fidalgo com um gesto nobre afastou o seio do gibão e descobriu o peito nem um tremor imperceptível agitou os músculos de seu rosto sua fronte alta conservou a mesma serenidade o seu olhar límpido e brilhante não se turvou Tal era a influência magnética que exercia essa coragem nobre e altiva que o braço do italiano tremeu e a ponta do ferro tocando a véstia do fidalgo paralisou os dedos hirtos do assassino D Antônio sorriu com desdém e abaixando a sua mão fechada sobre o alto da cabeça de Loredano abateuo a suas plantas como uma massa bruta e inerte então erguendo a ponta do pé à fronte do italiano o estendeu de costas sobre o pavimento O baque do corpo no chão ecoou no meio de um silêncio profundo todos os aventureiros mudos e estáticos pareciam querer sumirse pelo seio da terra Abaixai as armas miseráveis O ferro que há de ferir o peito de D Antônio de Mariz não será manchado pela mão cobarde e traiçoeira de vis assassinos Deus reserva uma morte justa e gloriosa àqueles que viveram uma vida honrada Os aventureiros artudidos embainharam maquinalmente os punhais aquela palavra sonora calma e firme tinha um acento tão imperativo uma tal força de vontade que era impossível resistir O castigo que vos espera há de ser rigoroso não deveis contar com a clemência nem com o perdão quatro dentre vós à sorte sofrerão a pena de homizio os outros farão o oficio dos executores da alta justiça Bem vedes que tanto a pena como o ofício são dignos de vós O fidalgo pronunciou estas palavras com um soberano desprezo e encarou os aventureiros como para ver se dentre eles partia alguma reclamação algum murmúrio de desobediência mas todos esses homens há pouco furiosos estavam agora humildes e cabisbaixos Dentro de uma hora continuou o cavalheiro apontando para o corpo de Loredano este homem será justiçado à frente da banda para ele não há julgamento eu o condeno como pai como chefe como um homem que mata o cão ingrato que o morde É ignóbil demais para que o toque com as minhas armas entregoo ao baraço e ao cutelo Com a mesma impassibilidade e o mesmo sossego que conservava desde o momento em que aparecera imprevistamente o velho fidalgo atravessou por entre os aventureiros imóveis e respeitosos e caminhou para a saída Aí voltouse e levando a mão ao chapéu descobriu a sua bela cabeça encanecida que destacava sobre o fundo negro da noite e no meio do clarão avermelhado das tochas com um vigor de colorido admirável Se algum de vós der o menor sinal de desobediência se uma das minhas ordens não for cumprida pronta e fielmente eu D Antônio de Mariz vos juro por Deus e pela minha honra que desta casa não sairá um homem vivo Sois trinta mas a vossa vida de todos vós tenhoa na minha mão bastame um movimento para exterminarvos e livrar a terra de trinta assassinos No momento em que o fidalgo ia retirarse apareceu Álvaro pálido de emoção mas brilhante de coragem e indignação Quem se animou aqui a erguer a voz para D Antônio de Mariz exclamou o moço O velho fidalgo sorrindo com orgulho pôs a mão no braço do cavalheiro Não vos ocupeis disto Álvaro sois bastante nobre para vingar uma afronta desta natureza e eu bastante superior para não ser ofendido por ela Mas senhor cumpre que se dê um exemplo O exemplo vai ser dado e como cumpre Aqui não há senão culpados e executores da pena O lugar não vos compete Vinde O moço não resistiu e acompanhou D Antônio de Mariz que se dirigiu lentamente a sala onde achou Aires Comes Quanto a Peri voltara ao jardim de Cecília decidido a defender sua senhora contra o mundo inteiro O dia vinha rompendo O fidalgo chamou Aires Gomes e entrou com ele no seu gabinete de armas onde tiveram uma longa conferência de meia hora O que aí se passou ficou em segredo entre Deus e estes dois homens apenas Álvaro notou quando a porta do gabinete se abriu que D Antônio estava pensativo e o escudeiro lívido como um morto Neste momento ouviuse um pequeno rumor na entrada da sala quatro aventureiros parados imóveis esperavam uma ordem do fidalgo para se aproximarem D Antônio fezlhes um sinal e eles vieram ajoelharse a seus pés as lágrimas rolavam por essas faces queimadas pelo sol e a palavra tremia balbuciante nesses lábios pálidos que há instantes vomitavam ameaças Que significa isto perguntou o cavalheiro com severidade Um dos aventureiros respondeu Viemonos entregar em vossas mãos preferimos apelar para o vosso coração do que recorrer às armas para escaparmos à punição de nossa falta E vossos companheiros replicou o fidalgo Deus lhes perdoe senhor a enormidade do crime que vão cometer Depois que vos retirastes tudo mudou preparamse para atacarvos Que venham disse D Antônio eu os receberei Mas vós por que não os acompanhais Não sabeis que D Antônio de Mariz perdoa uma falta mas nunca uma desobediência Embora disse o aventureiro que falava em nome de seus camaradas aceitaremos de bom grado o castigo que nos impuserdes Mandai que obedeceremos Somos quatro contra vinte e tantos dainos essa punição de morrer defendendovos de reparar pela nossa morte um momento de alucinação É a graça que vos pedimos D Antônio olhou admirado os homens que estavam ajoelhados a seus pés e reconheceu neles os restos dos seus antigos companheiros de armas do tempo em que o velho fidalgo combatia os inimigos de Portugal Sentiuse comovido sua alma grande e inabalável no meio do perigo orgulhosa em face da ameaça deixavase facilmente dominar pelos sentimentos nobres e generosos Essa prova de fidelidade que davam aqueles quatro homens na ocasião da revolta geral dos seus companheiros a ação que acabavam de praticar e o sacrifício com que desejavam expiar a sua falta elevouos no espírito do fidalgo Ergueivos Reconheçovos Já não sois os traidores que há pouco repreendi sois os bravos companheiros que pelejastes a meu lado o que fazeis agora esquece o que fizestes há uma hora Sim Mereceis que morramos juntos combatendo ainda uma vez na mesma fileira D Antônio de Mariz vos perdoa Podeis levantar a cabeça e trazêla alta Os aventureiros ergueramse radiantes do perdão que o nobre fidalgo tinha lançado sobre suas cabeças todos eles estavam prontos a dar sua vida para salvarem o seu chefe O que tinha ocorrido depois da saída de D Antônio do alpendre seria longo de escrever Loredano tornando a si da vertigem que lhe causara o atordoamento e a violência da queda soube da ordem que havia a seu respeito Não era preciso tanto para que o audaz aventureiro recorresse à sua eloqüência a fim de excitar de novo à revolta Pintou a posição de todos como desesperada atribuiu o seu castigo e as desgraças que iam suceder ao fanatismo que havia por Peri esgotou enfim os recursos da sua inteligência D Antônio não estava mais ai para conter com a sua presença a cólera que ia fermentando a excitação que começava a lavrar a princípio surdamente as queixas e os murmúrios que afinal fizeram coro Um incidente veio atear a chama que lastrava Peri apenas começou a romper o dia viu a alguma distancia do jardim o cadáver de Rui Soeiro e temendo que sua senhora acordando presenciasse esse triste espetáculo tomou o corpo e atravessando a esplanada veio atirálo no meio do pátio Os aventureiros empalideceram e ficaram estupefatos depois rompeu a indignação feroz raivosa delirante estavam como possessos de furor e vingança Não houve mais hesitação a revolta pronunciouse apenas o pequeno grupo de quatro homens que desde a saída de D Antônio se conservava em distancia não tomou parte na insubordinação Ao contrário quando viram que seus companheiros com Loredano à frente se preparavam para atacar o fidalgo foram como vimos oferecerse voluntariamente ao castigo e reunirse ao seu chefe para partilharem a sua sorte Pouco tardou para que João Feio não se apresentasse como parlamentário da parte dos revoltosos o fidalgo não o deixou falar Dize a teus companheiros rebelde que D Antônio de Mariz manda e não discute condições que eles estão condenados e verão se sei ou não cumprir o meu juramento O fidalgo tratou então de dispor os seus meios de defesa apenas podia contar com quatorze combatentes ele Álvaro Peri Aires Comes mestre Nunes com os seus companheiros e os quatro homens que se haviam conservado fiéis os inimigos eram em número de vinte e tantos Toda a sua família já então despertada recebeu a triste noticia de tantos acontecimentos passados durante aquela noite fatal D Lauriana Cecília e Isabel recolheramse ao oratório e rezavam enquanto se preparava tudo para uma resistência desesperada Os aventureiros comandados por Loredano arregimentaramse e marcharam para a casa dispostos a dar um assalto terrível o seu furor redobrava tanto mais quanto o remorso no fundo da consciência começava a mostrarlhes toda a hediondez de sua ação No momento em que dobravam o canto ouviuse um som rouco que se prolongou pelo espaço como o eco surdo de um trovão em distancia Peri estremeceu e lançandose para a beira da esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta Quase ao mesmo tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano caiu traspassado por uma flecha Os Aimorés Apenas soltou Peri esta exclamação uma linha movediça longo arco de cores vivas e brilhantes agitouse ao longe da planície irradiando à luz do sol nascente Homens quase nus de estatura gigantesca e aspecto feroz cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates armados de grossas clavas e arcos enormes avançavam soltando gritos medonhos A inúbia retroava o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras Os Aimorés repetiram os aventureiros empalidecendo VIII DESÂNIMO Dois dias passaram depois da chegada dos Aimorés a posição de D Antônio de Mariz e de sua família era desesperada Os selvagens tinham atacado a casa com uma força extraordinária diante deles a índia terrível de ódio os excitava à vingança As setas escurecendo o ar abatiamse como uma nuvem sobre a esplanada e crivavam as portas e as paredes do edifício À vista do perigo iminente que corriam todos os aventureiros revoltados retiraramse e trataram de defenderse do ataque dos selvagens Houve como que um armistício entre os rebeldes e o fidalgo sem se reunirem os aventureiros conheceram que deviam combater o inimigo comum embora depois levassem ao cabo a sua revolta D Antônio de Mariz encastelado na parte da casa que habitavam rodeado de sua família e de seus amigos fiéis resolvera defender até à última extremidade esses penhores confiados ao seu amor de esposo e de pai Se a Providência não permitisse que um milagre os viesse salvar morreriam todos mas ele contava ser o último a fim de velar que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto Era o seu dever de pai e o seu dever de chefe como o capitão que é o último a abandonar o seu navio ele seria o último a abandonar a vida depois de ter assegurado às cinzas dos seus o respeito que se deve aos mortos Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e tão animada Parte do edifício que tocava com o fundo onde habitavam os aventureiros tinha sido abandonada por prudência D Antônio concentrara sua família no interior da habitação para evitar algum acidente Cecília deixara o seu quartinho tão lindo e tão mimoso e nele estabelecera Peri o seu quartelgeneral e o seu centro de operações porque é preciso dizer o índio não partilhava o desanimo geral e tinha uma confiança inabalável nos seus recursos Seriam dez horas da noite a lâmpada de prata suspensa no teto da grande sala iluminava uma cena triste e silenciosa Todas as janelas e portas estavam fechadas de vez em quando ouviase o estrépito que fazia uma seta cravandose na madeira ou enfiandose por entre as telhas Nas duas extremidades da sala e na frente tinhamse praticado no alto da parede algumas seteiras junto das quais os aventureiros faziam à noite uma sentinela constante a fim de prevenir uma surpresa D Antônio de Mariz sentado numa cadeira de espaldar sob o dossel repousava um instante o dia fora rude os índios tinham investido por diferentes vezes a escada de pedra da esplanada e o fidalgo com o pequeno número de combatentes de que dispunha e com o auxilio da colubrina conseguira repelilos A sua clavina carregada descansava de encontro ao espaldar da cadeira e as suas pistolas estavam colocadas em cima de um bufete ao alcance do braço Sua bela cabeça encanecida pendida ao seio ressaltava sobre o veludo preto de seu gibão coberto por uma rede finíssima de malhas de aço que lhe guarnecia o peito Parecia adormecido mas de vez em quando erguia os olhos e corria o vasto aposento contemplando com uma melancolia extrema a cena que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala Depois voltava à mesma posição e continuava suas dolorosas reflexões o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem mas interiormente tinha perdido a esperança Do lado oposto Cecília recostada em um sofá parecia desfalecida seu rosto perdera a habitual vivacidade seu corpo ligeiro e gracioso alquebrado por tantas emoções prostravase com indolência sobre uma colcha de damasco A mãozinha caia imóvel como uma flor a que tivessem quebrado a haste delicada e os lábios descorados agitavamse às vezes murmurando uma prece De joelhos à beira do sofá Peri não tirava os olhos de sua senhora dirseia que aquela respiração branda que fazia ondular os seios da menina e que se exalava de sua boca entreaberta era o sopro que alimentava a vida do índio Desde o momento da revolta não deixou mais Cecília seguiaa como uma sombra sua dedicação já tão admirável tinha tocado o sublime com a iminência do perigo Durante estes dois dias ele havia feito coisas incríveis verdadeiras loucuras do heroísmo e abnegação Sucedia que um selvagem aproximandose da casa soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto à menina Peri lançavase como um raio e antes que tivesse tempo de contêlo passava entre uma nuvem de flechas chegava à beira da esplanada e com um tiro de sua clavina abatia o Aimoré que assustara sua senhora antes que ele tivesse tempo de soltar um segundo grito Cecília aflita e doente recusava tomar o alimento que sua mãe ou sua prima lhe traziam Peri correndo mil perigos arriscandose a despedaçarse nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagens ganhava a floresta e daí a uma hora voltava trazendo um fruto delicado um favo de mel envolto de flores uma caça esquisita que sua senhora tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação As loucuras do índio chegaram a ponto que Cecília foi obrigada a proibirlhe que saísse de junto dela e a guardálo à vista com receio de que não se fizesse matar a todo o momento Além da amizade que lhe tinha um quer que seja uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavam se alguma salvação podia haver para sua família seria à coragem à inteligência e à sublime abnegação de Peri que a deveriam Se ele morresse quem velaria sobre ela com a solicitude e o ardente zelo que tinha ao mesmo tempo o carinho de uma mãe a proteção de um pai a meiguice de um irmão Quem seria seu anjo da guarda para livrála de um pesar e ao mesmo tempo seu escravo para satisfazer o seu menor desejo Não Cecília não podia de modo algum admitir nem a possibilidade de que seu amigo viesse a morrer por isso mandou pediu e até suplicoulhe que não saísse de junto dela queria por sua vez ser para Peri o bom anjo de Deus o seu gênio protetor Do mesmo lado em que estava Cecília mas num outro canto da sala viase Isabel sentada de encontro à ombreira da janela enfiava um olhar ardente cheio de ansiedade e de susto por uma pequena fresta que ela entreabrira a furto O raio de luz que filtrava por esta aberta da janela servia de mira aos índios que faziam chover setas sobre setas naquela direção mas Isabel alheia de si nem se importava com o perigo que corria Ela olhava Álvaro que no alto da escada com a maior parte dos aventureiros fiéis fazia a guarda noturna o moço passeava pela esplanada ao abrigo de uma ligeira paliçada Cada seta que passava por sua cabeça cada movimento que fazia causava em Isabel uma aflição imensa sentia não poder estar junto dele para amparálo e receber a morte que lhe fosse destinada D Lauriana sentada em um dos degraus do oratório rezava a boa senhora era uma das pessoas que mais coragem e mais calma mostravam no transe horrível em que se achava a família animada pela sua fé religiosa e pelo sangue nobre que girava nas suas veias ela se tinha conservado digna de seu marido Fazia tudo quanto era possível pensava os feridos encorajava as meninas auxiliava os preparativos de defesa e ainda em cima dirigia sua casa como se nada se passasse Aires Gomes encostado à porta do gabinete com os braços cruzados e imóvel dormia o escudeiro guardava o posto que lhe fora confiado pelo fidalgo Desde a conferência que os dois tinham tido Aires se postara naquele lagar donde não saia senão quando D Antônio vinha sentarse na cadeira que havia junto da porta Dormia de pé porém mal um passo por mais sutil que fosse soava no pavimento acordava sobressaltado com a pistola em punho e a mão sobre o fecho da porta D Antônio de Mariz levantouse e passando à cinta as suas pistolas e tomando a sua clavina dirigiuse ao sofá onde repousava sua filha e beijoua na fronte fez o mesmo a Isabel abraçou sua mulher e saiu O fidalgo ia render a Álvaro que fazia o seu quarto desde o anoitecer poucos momentos depois de sua saída a porta abriuse de novo e o cavalheiro entrou Álvaro trajava um gibão de lã forrado de escarlate quando ele apareceu no vão da porta Isabel soltou um grito fraco e correu para ele Estais ferido perguntou a moça com ansiedade e tomandolhe as mãos Não respondeu o moço admirado Ah exclamou Isabel respirando Tinhase iludido o rasgão que uma flecha fizera sobre o ombro mostrando o forro escarlate do gibão tinha de repente lhe parecido uma ferida Álvaro procurou desprender suas mãos das mãos de Isabel mas a moca suplicandoo com o olhar e arrastandoo docemente levouo até o lugar onde estava há pouco e obrigou o cavalheiro a sentarse junto dela Muitos acontecimentos se tinham passado entre eles nestes dois dias há circunstâncias em que os sentimentos marcham com uma rapidez extraordinária e devoram meses e anos num só minuto Reunidos nesta sala pela necessidade extrema do perigo vendose a cada momento trocando ora uma palavra ora um olhar sentindose enfim perto um do outro esses dois corações se não se amavam compreendiamse ao menos Álvaro fugia e evitava Isabel tinha medo desse amor ardente que o envolvia num olhar dessa paixão profunda e resignada que se curvava a seus pés sorrindo melancolicamente Sentiase fraco para resistir e entretanto o seu dever mandava que resistisse Ele amava ou cuidava amar ainda Cecília prometera a seu pai ser seu marido e na situação em que se achavam aquela promessa era mais do que um juramento era uma necessidade imperiosa uma fatalidade que se devia cumprir Como podia ele pois alimentar uma esperança de Isabel Não seria infame indigno aceitar o amor que ela lhe oferecera suplicando Não era seu dever destruir naquele coração esse sentimento impossível Álvaro pensava assim e evitava todas as ocasiões de estar só com a moça porque conhecia a impressão veemente a atração poderosa que exercia essa beleza fascinadora quando a paixão animandoa cercavaa de um brilho deslumbrante Dizia a si mesmo que não amava que nunca amaria Isabel Entretanto sabia que se ele a visse outra vez como no momento em que lhe confessara seu amor cairia de joelhos a seus pés e esqueceria o dever a honra tudo por ela A luta era terrível mas a alma nobre do cavalheiro não cedia e combatia heroicamente podia ser vencida mas depois de ter feito o que fosse possível ao homem para conservarse fiel à sua promessa O que tornava a lata ainda mais violenta era que Isabel não o perseguia com o seu amor depois daquela primeira alucinação concentravase e resignada amava sem esperança de nunca ser amada IX ESPERANÇA Sentandose junto da moça Álvaro sentiu a sua coragem vacilar Que me quereis Isabel perguntou ele com a voz um pouco trêmula A menina não respondeu estava embebida a contemplar o moço saciavase de olhálo de sentilo junto de si depois de ter sofrido a angústia de ver a morte rogando a sua cabeça e ameaçando a sua vida É preciso amar para compreender essa voluptuosidade do olhar que se repousa sobre o objeto amado que não se cansa de ver aquilo que está impresso na imaginação mas que tem sempre um novo encanto Deixaime olharvos respondeu Isabel suplicando Quem sabe Talvez seja pela última vez Por que essas idéias tristes disse Álvaro com brandura A esperança ainda não está de todo perdida Que importa exclamou a moça Ainda há pouco vos vi de longe que passeáveis sobre a esplanada e a cada momento me parecia que uma seta vos tocava vos feria e Como Tivestes a imprudência de abrir a janela O moço voltouse e estremeceu vendo a janela entreaberta crivada da parte exterior pelas setas dos selvagens Meu Deus exclamou ele por que expondes assim a vossa vida Isabel Que vale a minha vida para que a conserve disse a moça animandose Tem ela algum prazer alguma ventura que me prenda De que serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso de nossa alma A minha felicidade é acompanharvos com os olhos e com o pensamento Se esta felicidade me deve custar a vida embora Não faleis assim Isabel que me partis a alma E como quereis que fale Mentirvos é impossível depois daquele dia em que trai o meu segredo de escravo que ele era tornouse senhor senhor despótico e absoluto Sei que vos faço sofrer Nunca disse semelhante coisa Sois bastante generoso para dizêlo mas sentis Eu conheço eu leio nos vossos menores movimentos Vós me estimais talvez como irmão mas fugis de mim e tendes receio que Cecília pense que me amais não é verdade Não exclamou Álvaro insensivelmente tenho receio tenho medo mas é de amarvos Isabel sentiu uma comoção tão violenta ouvindo as palavras rápidas do moço que ficou como estática sem fazer um movimento as palpitações fortes do seu coração a sufocavam Álvaro não estava menos comovido subjugado por aquele amor ardente impressionado pela abnegação da menina que expunha sua vida só para acompanhálo de longe com um olhar e protegêlo com a sua solicitude tinha deixado escapar o segredo da luta que se passava em sua alma Mas apenas pronunciara aquelas palavras imprudentes conseguiu dominarse e tornandose frio e reservado falou a Isabel em um tom grave Sabeis que amo Cecília mas ignorais que prometi a seu pai ser seu marido Enquanto ele por sua livre vontade não me desligar de minha promessa estou obrigado a cumprila Quanto ao meu amor este me pertence e só a morte me pode desligar dele No dia em que eu amasse outra mulher que não ela me condenaria a mim mesmo como um homem desleal O moço voltouse para Isabel com um triste sorriso E compreendeis o que faz um homem desleal que tem ainda a consciência precisa para se julgar a si Os olhos da moça brilharam com um fogo sinistro Oh compreendo É o mesmo que faz a mulher que ama sem esperança e cujo amor é um insulto ou um sofrimento para aquele a quem ama Isabel exclamou Álvaro estremecendo Tendes razão Só a morte pode desligar de um primeiro e santo amor aos corações como os nossos Deixaivos dessas idéias Isabel Credeme uma única razão pode justificar semelhante loucura Qual perguntou Isabel A desonra Há ainda outra respondeu a moça com exaltação outra menos egoísta mas tão nobre como esta a felicidade daqueles que se amam Não vos compreendo Quando se sabe que se pode ser uma causa de desgraça para aqueles que se estima melhor é desatar o único laço que nos prende à vida do que vêlo despedaçarse Não dizíeis que tendes medo de amarme Pois bem agora sou eu que tenho medo de ser amada Álvaro não soube o que responder estava numa terrível agitação conhecia Isabel e sabia que força tinham aquelas palavras ardentes que soltavam os lábios da moça Isabel disse ele tomandolhe as mãos Se me tendes alguma afeição não me recuseis a graça que vou pedirvos Repeli esses pensamentos Eu vos suplico A moça sorriuse melancolicamente Vós me suplicais Me pedis que conserve esta vida que recusastes Não é ela vossa Aceitaia e já não tereis que suplicar O olhar ardente de Isabel fascinava Álvaro não se pôde mais conter ergueuse e reclinandose ao ouvido da moça balbuciou Aceito Enquanto Isabel pálida de emoção e felicidade duvidava ainda da voz que ressoava no seu ouvido o moço tinha saído da sala Durante que Álvaro e Isabel conversavam a meia voz Peri continuava a contemplar a sua senhora O índio estava pensativo e viase que uma idéia o preocupava e absorvia toda a sua atenção Por fim levantouse e lançando um último olhar repassado de tristeza a Cecília encaminhouse lentamente para a porta da sala A menina fez um ligeiro movimento e levantou a cabeça Peri Ele estremeceu e voltando foi de novo ajoelharse junto do sofá Tu me prometeste não deixar tua senhora disse Cecília com uma doce exprobração Peri quer te salvar Como Tu saberás Deixa Peri fazer o que tem no pensamento Mas não correrás nem um perigo Por que perguntas isso senhora disse o índio timidamente Por quê exclamou Cecília levantandose com vivacidade Porque se para nos salvar é preciso que tu morras eu rejeito o teu sacrifício rejeitoo em meu nome e no de meu pai Sossega senhora Peri não teme o inimigo sabe o modo de vencêlo A menina abanou a cabeça com ar incrédulo Eles são tantos O índio sorriu com orgulho Sejam mil Peri vencerá a todos aos índios e aos brancos Ele pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do poder Contudo Cecília não podia acreditar o que ouvia parecialhe inconcebível que um homem só embora tivesse a dedicação e o heroísmo do índio pudesse vencer não só os aventureiros revoltados como os duzentos guerreiros Aimorés que assaltavam a casa Mas ela não contava com os recursos imensos de que dispunha essa inteligência vigorosa que tinha ao seu serviço um braço forte um corpo ágil e uma destreza admirável não sabia que o pensamento é a arma mais poderosa que Deus deu ao homem e que com ela se abatem os inimigos se quebra o ferro se doma o fogo e se vence por essa força irresistível e providencial que manda ao espírito dominar a matéria Não te iludas vais fazer um sacrifício inútil Não é possível que um homem só vença tantos inimigos ainda mesmo que esse homem seja Peri Tu verás respondeu o índio com segurança E quem te dará força para lutar contra um poder tão grande Quem Tu senhora tu só respondeu o índio fitando nela o seu olhar brilhante Cecília sorriu como devem sorrir os anjos Vai disse ela vai salvarnos Mas lembrate que se tu morreres Cecília não aceitará a vida que lhe deres Peri ergueuse O sol que se levantar amanhã será o último para todos os teus inimigos Ceci poderá sorrir como dantes e ficar alegre e contente A voz do índio tornouse trêmula sentindo que não podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e saiu Chegando à esplanada Peri olhou as estrelas que começavam a apagarse e viu que o dia pouco tardaria a raiar não tinha tempo a perder Qual era o projeto que havia concebido e que lhe dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado Que meio ousado tinha ele para contar com a destruição dos inimigos e a salvação de sua senhora Fora difícil adivinhar Peri guardava no fundo do coração esse segredo impenetrável e nem a si mesmo o dizia com receio de trairse e de anular efeito que esperava com uma confiança inabalável Tinha todos os inimigos na sua mão e bastavalhe um pouco de prudência para fulminálos a todos como a cólera celeste como o fogo de raio Peri dirigiuse ao jardim e entrou no quarto de Cecília então abandonado por sua senhora por causa da proximidade em que ficava do fundo da casa ocupada pelos aventureiros revoltados O quarto estava às escuras mas a tênue claridade que entrava pela janela bastava ao índio para distinguir os objetos perfeitamente a perfeição dos sentidos era um dom que os selvagens possuíam no mais alto grau Ele tomou suas armas uma a uma beijou as pistolas que Cecília lhe havia dado e deitouas no chão no meio do aposento tirou os seus ornatos de penas sua faixa de guerreiro a pluma brilhante do seu cocar e lançouos como um troféu sobre as suas armas Depois agarrou o seu grande arco de guerra apertouo ao seio e curvandoo de encontro ao joelho quebrouo em duas metades que foram juntarse às armas e aos ornatos Por algum tempo Peri contemplou com um sentimento de dor profunda esses despojos de sua vida selvagem esses emblemas de sua dedicação sublime por Cecília e de seu heroísmo admirável Em luta com essa emoção poderosa insensivelmente murmurou na sua língua algumas dessas palavras que a alma manda aos lábios nos momentos supremos Arma de Peri companheira e amiga adeus Teu senhor te abandona e te deixa contigo ele venceria contigo ninguém poderia vencêlo E ele quer ser vencido O índio levou a mão ao coração Sim Peri filho de Ararê primeiro de sua tribo forte entre os fortes guerreiro goitacá nunca vencido vai sucumbir na guerra A arma de Peri não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo o arco de Ararê já quebrado não salvará o filho Sua cabeça altiva e sobranceira enquanto pronunciava estas palavras caiulhe sobre o seio por fim venceu a sua emoção e cingindo nos seus braços esses troféus de suas armas e de suas insígnias de guerra estreitouas ao peito em um último abraço de despedida Um aroma agreste das plantas que começavam a se abrir com a aproximação do dia avisoulhe que a noite estava a acabar Quebrou a axorca de frutos que trazia na perna sobre o artelho como todos os selvagens este ornato era feito de pequenos cocos ligados por um fio e tingidos de amarelo Peri tomou dois destes frutos e partiuos com a faca sem contudo separar as cascas fechandoos então na sua mão levantou o braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrível e lançouse fora do aposento X NA BRECHA Quando Peri entrou no quarto de Cecília Loredano passeava do outro lado da esplanada em frente do alpendre O italiano refletia sobre os acontecimentos que haviam passado nos últimos dias sobre as vicissitudes que correra a sua vida e a sua fortuna Por diferentes vezes tinha posto o pé sobre o túmulo tinha tocado a sua última hora e a morte fugira dele e o respeitara Também por diferentes vezes havia encarado a felicidade o poder a fortuna e tudo se esvaecera como um sonho Quando à frente dos aventureiros revoltados ia atacar a D Antônio de Mariz que não lhe podia resistir os Aimorés tinham aparecido de repente e mudado a face das coisas A necessidade da defesa contra o inimigo comum trouxe uma suspensão de hostilidades acima da ambição estava o instinto da vida e da conservação A luta de interesses e de ódios cedeu à grande luta das raças inimigas Por isso no primeiro ataque dos selvagens todos por um movimento espontâneo trataram de repelir o inimigo e de salvar a casa da ruína que a ameaçava Depois separaramse de novo e sempre observandose sempre prontos a defenderemse um do outro os dois grupos continuaram a repelir os índios com a maior coragem No meio disto porém Loredano que se constituíra o chefe da revolta não abandonava o seu projeto de apoderarse de Cecília e vingarse de D Antônio de Mariz e de Álvaro Seu espírito tenaz trabalhava incessantemente procurando o meio de chegar àquele resultado atacar abertamente o fidalgo era uma loucura que não podia cometer A menor luta que houvesse entre eles entregavaos todos aos selvagens que excitados pela vingança e pelos seus instintos sanguinários e ferozes atacavam o edifício sem repouso e sem descanso A única barreira que continha os Aimorés era a posição inexpugnável da casa assentada sobre um rochedo apenas acessível por um ponto pela escada de pedra que descrevemos no primeiro capitulo desta história Esta escada era defendida por D Antônio de Mariz e pelos seus homens a ponte de madeira tinha sido destruída mas apesar disso os selvagens a substituiriam facilmente se não fosse a resistência desesperada que o fidalgo opunha aos seus ataques Desde o momento pois que impelido pelo seu amor D Antônio corresse em defesa de sua família e abandonasse a escada os duzentos guerreiros Aimorés se precipitariam sobre a casa e não havia coragem que lhes pudesse resistir O italiano que compreendia isto estava bem longe de tentar o menor ataque a peito descoberto a prudência o aconselhava então como o tinha aconselhado no dia do primeiro assalto O que ele procurava era um meio de sem estrépito sem luta imprevistamente fazer morrer D Antônio de Mariz Peri Álvaro e Aires Gomes feito isto os outros se reuniriam a ele pela necessidade da defesa e pelo instinto da conservação Tornarseia então senhor da casa ou repelia os índios salvava Cecília e realizava todos os seus sonhos de amor e de felicidade ou morria tendo ao menos esgotado até ao meio a taça do prazer que seus lábios nem sequer haviam tocado Era impossível que esse espírito satânico fixandose em uma idéia durante três dias não tivesse conseguido achar um meio para a consumação desse novo crime que planejara Não só o tinha achado mas já havia começado a pôlo em prática tudo o protegia até mesmo o inimigo que o deixava em repouso atacando unicamente o lado da casa protegido por D Antônio de Mariz Passeava pois embalandose de novo nas suas esperanças quando Martim Vaz saindo do alpendre chegouse a ele Uma com que não contávamos disse o aventureiro O quê perguntou o italiano com vivacidade Uma porta fechada Abrese Não com essa facilidade Veremos Está pregada por dentro Terão pressentido Foi a idéia que já tive Loredano fez um gesto de desespero Vem Os dois encaminharamse para o alpendre onde dormiam os aventureiros armados prontos ao menor sinal de ataque O italiano acordou João Feio e por precaução mandouo fazer a guarda na esplanada apesar de não haver receio que os selvagens atacassem do seu lado O aventureiro ainda tonto de sono ergueuse e saiu Loredano e seu companheiro caminharam para uma sala interior que servia de cozinha e despensa a esta parte da casa Quando iam entrar a luz que o aventureiro levava na mão para esclarecer o caminho apagouse de repente Sois um desazado disse Loredano contrariado E tenho eu culpa Queixaivos do vento Bom não gasteis o tempo em palavras Tirai fogo O aventureiro voltou a procurar o seu fuzil Loredano ficou em pé na porta à espera que o seu companheiro voltasse e pareceulhe ouvir perto dele a respiração de um homem Aplicou o ouvido para certificarse e por segurança tirou o seu punhal e colocouse no centro da porta para impedir a saída de quem quer que fosse Não ouviu mais nada porém sentiu de repente um corpo frio e gelado que tocoulhe a fronte o italiano recuou e brandindo a sua faca deu um golpe às escuras Pareceulhe que tinha tocado alguma coisa entretanto tudo conservouse no mais profundo silêncio O aventureiro voltou trazendo a luz É singular disse ele o vento pode apagar uma candeia mas não lhe tira o pavio O vento dizeis Acaso o vento tem sangue Que quereis dizer Que o vento que apagou a vela é o mesmo que deixou o seu sinal neste ferro E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca cuja ponta estava tinta de sangue ainda liquido Há aqui então um inimigo Decerto os amigos não precisam ocultarse Nisto ouviram um rumor no telhado e um morcego passou agitando lentamente as grandes asas estava ferido Eis o inimigo exclamou Martim rindose É verdade respondeu Loredano no mesmo tom confesso que já tive medo de um morcego Tranqüilos a respeito do incidente que os havia demorado os dois entraram na cozinha e daí por uma brecha estreita praticada na parede penetraram no interior da casa há pouco habitada por D Antônio de Mariz e sua família Atravessaram parte do edifício e chegaram a uma varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecília e do outro com o oratório e o gabinete de armas do fidalgo Aí o aventureiro parou e mostrando a Loredano a porta adufada de jacarandá que dava entrada para o gabinete disselhe Não é com duas razões que a deitaremos dentro Loredano aproximouse e reconheceu que a solidez e fortaleza da porta não lhe permitia a menor violência todo o seu plano estava destruído Contava durante a noite se introduzir furtivamente na sala e assassinar a D Antônio de Mariz Aires Gomes e Álvaro antes que eles pudessem ser socorridos por seus companheiros consumado o crime estava senhor da casa Como remover o obstáculo que lhe aparecia A menor violência contra a porta despertaria a atenção de D Antônio de Mariz e inutilizaria todo o seu projeto Enquanto refletia nisso os seus olhos caíram sobre uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratório e que servia mais para dar ar do que luz Por esta abertura o italiano conheceu que aquela parte da parede era singela e feita de um só tijolo com efeito o oratório tinha sido outrora um corredor largo que ia da varanda à sala e que fora separado por uma ligeira divisão Loredano mediu a parede de alto a baixo e acenou ao seu companheiro É por aqui que havemos de entrar disse ele apontando para a parede Como A menos de não ser um mosquito para passar por aquela fresta Esta parede assenta sobre uma viga tirada ela está aberto o caminho Entendo Antes que possam tomar a si do susto teremos acabado O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco da parede e descobriu a viga que lhe servia de alicerce Então Não há dúvida Daqui a duas horas douvos isto pronto Martim Vaz depois da morte de Rui Soeiro e Bento Simões tinhase tornado o braço direito de Loredano era o único a quem o italiano confiara o seu segredo oculto para os outros em quem receava ainda a influência de D Antônio de Mariz O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho e voltou pelo mesmo caminho chegando à cozinha sentiuse sufocado por uma fumaça espessa que enchia todo o alpendre Os aventureiros acordados de repente blasfemavam conta o autor de semelhante lembrança Quando Loredano no meio deles procurava indagar a causa do que sucedia João Feio apareceu na entrada do alpendre Havia na sua fisionomia uma expressão terrível de cólera e ao mesmo tempo de espanto de um salto aproximouse do italiano e chegandolhe a boca ao ouvido disse Renegado e sacrílego doute uma hora para ires entregarte a D Antônio de Mariz e obter dele o nosso perdão e o teu castigo Se o não fizeres dentro desse tempo é comigo que te hás de avir O italiano fez um movimento de raiva mas contevese Amigo o sereno transtornouvos o juízo ide deitarvos Boa noite ou antes bom dia A alvorada despontava no horizonte XI O FRADE Saindo do quarto de Cecília Peri tomara pelo corredor que comunicava com o interior do edifício O índio a cuja perspicácia nada escapava do que se passava no interior da casa por mais insignificante que fosse havia percebido o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha Na véspera o som do ferro na parede tinha ido despertar a sua atenção na sala onde ele repousava um momento deitado aos pés do leito de sua senhora seu ouvido fino e delicado auscultara o seio da terra Levantouse de salto e atravessando todo o edifício chegou guiado pelas pancadas ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavam a abrir uma fenda no muro Em vez de atemorizarse com esta nova audácia do italiano o índio sorriuse a brecha que praticava seria a sua perdição por que ia dar fácil passagem a ele Peri Contentouse pois em examinar todas as portas que comunicavam com a sala e pregálas por dentro seria um novo obstáculo que demoraria os aventureiros e lhe daria tempo de sobra para exterminálos Foi por isso que do quarto de Cecília cuja porta fechou sobre caminhou direito à brecha e por ela penetrou na despensa dos aventureiros Era uma sala bastante espaçosa onde havia uma mesa algumas talhas e uma grande quartola de vinho o índio mesmo às escuras chegouse a cada um desses vasos e por alguns instantes ouviuse o fraco vascolejar do liquido que eles continham Então Peri viu uma luz que se aproximava era Loredano e o seu companheiro A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração Tal ódio votava a esse homem abjeto e vil que teve medo de si medo de o matar Isso fora agora uma imprudência pois inutilizaria todo o seu plano Muita vez depois da noite em que Loredano penetrara na alcova de Cecília Peri tivera ímpetos de ir vingar a injúria feita a sua senhora no sangue do italiano para quem pensava que uma morte não era bastante punição Mas lembravase que não se pertencia que precisava da vida para consumar sua obra salvando Cecília de tantos inimigos que a cercavam E recalcava a vingança no fundo do coração Fez o mesmo então cosido com a parede conseguiu apagar a vela Ia sair quando sentiu que o italiano tomava a porta Hesitou Podia lançarse sobre Loredano e subjugálo mas isso produziria uma luta e denunciaria a sua presença era preciso que fugisse sem que restasse um só vestígio de sua passagem a mais leve suspeita faria abortar o seu plano Teve uma idéia feliz ergueu a mão molhada e tocou o rosto do italiano enquanto este recuava para atirar a punhalada às escuras o índio resvalou entre ele e a porta A faca de Loredano tinhalhe ferido o braço esquerdo não soltou porém nem um gemido não fez um movimento que o traísse ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz Mas Peri não estava contente o seu sangue ia denunciálo não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que ele ali tinha estado Os morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do alpendre lembraramlhe um excelente expediente agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance do braço e abrindolhe uma cesura com a faca soltouo Ele sabia que o vampiro procuraria a luz e iria esvoaçar em torno dos dois aventureiros contava que as gotas de sangue que caiam de sua asa ferida os enganaria a realidade correspondeu às suas previsões Apenas Loredano desapareceu Peri continuou a execução do seu plano chegouse a um canto do alpendre onde havia um resto de fogo encoberto pela cinza e atirou sobre ele alguma roupa dos aventureiros que ai estava a enxugar Este incidente por insignificante que pareça entrava nos planos de Peri a roupa queimandose devia encher a casa de fumaça acordar os aventureiros e excitarlhes a sede Era justamente o que desejava o índio Satisfeito do resultado que obtivera Peri atravessou a esplanada ai porém foi obrigado a recuar surpreendido do que via Um homem do lado de D Antônio de Mariz e um aventureiro revoltado conversavam através da estacada que dividia esses dois campos inimigos havia realmente motivo para que o índio se admirasse Não só isso era contra a ordem expressa de D Antônio de Mariz que proibira qualquer relação entre os seus homens e os revoltados como contrariava o plano de Loredano que temia ainda o respeito e o hábito de obediência que os aventureiros tinham para com o fidalgo O que se tinha passado antes explicava esse acontecimento extraordinário O aventureiro a quem Loredano mandara rondar a esplanada enquanto ele entrava tinha começado o seu giro de uma ponta à outra do pátio Sempre que chegava junto da estacada notava que do outro lado um homem se aproximava como ele voltava e se alongava pela beira da esplanada adivinhou facilmente que era também uma sentinela João Feio era um franco e jovial companheiro e não podia suportar o tédio de um passeio alta noite no meio de um sono interrompido sem uma pinga para beber sem um camarada para conversar sem uma distração enfim Para maior desprazer uma das vezes que se aproximava da estacada sentiu uma baforada de tabaco e viu que o seu companheiro de guarda fumava Levou a mão ao bolso das bragas e achou algumas folhas de fumo mas não trazia o seu cachimbo ficou desesperado e decidiu dirigirse ao outro Olá amigo também fazeis a vossa guarda O homem voltouse e continuou o seu caminho sem dar resposta No segundo giro o aventureiro atirou segunda isca Felizmente o dia não tarda a raiar não vos parece O mesmo silêncio que a primeira vez o aventureiro contudo não desanimou e na terceira volta retrucou Somos inimigos camarada mas isso não impede a um homem cortês de responder quando outro lhe fala Desta vez o silencioso sentinela voltouse de todo Antes da cortesia está a nossa santa religião que manda a todo cristão não falar a um herege a um réprobo a um fariseu Que é lá isso Falais sério ou quereis fazerme enraivar por nonadas Falovos sério como se estivesse diante do nosso Santo Redentor confessando as minhas culpas Pois então digovos que mentis Porque tão bom podeis ser porém melhor crente que eu não o é outrem Tendes a língua um pouco longa amigo Mas Belzebu vos fará as contas que não eu perderia a minha alma se tocasse o corpo de endemoninhados Por São João Batista meu patrão não me façais saltar esta estacada para perguntarvos a razão por que tratais em ar de mofa a devoção dos mais Chamainos rebeldes mas hereges não E como quereis então que chame os companheiros de um frade sacrílego maldito que abjurou dos seus votos e atirou o seu hábito as urtigas Um frade Dissestes vós Sim um frade Não o sabíeis O quê De que frade falais vós Do italiano bofé Ele O homem que não era outro senão o nosso antigo conhecido mestre Nunes contou então exagerando com o fervor de seus sentimentos religiosos aquilo que sabia da história de Loredano O aventureiro horrorizado tremendo de raiva não deixou mestre Nunes acabar a sua história e lançouse para o alpendre onde viuse a ameaça que fez ao italiano Quando eles se separaram Peri saltou por cima da estacada e dirigiuse para o quarto que há pouco tinha deixado O dia vinha então rompendo os primeiros raios do sol iluminavam já o campo dos Aimorés assentado sobre a várzea à margem do rio Os selvagens irritados olhavam de longe a casa fazendo gestos de raiva por não poderem vencer a barreira de pedra que defendia o inimigo Peri olhou um momento aqueles homens de estatura gigantesca de aspecto horrível aqueles duzentos guerreiros de força prodigiosa ferozes como tigres O índio murmurou Hoje cairão todos como a árvore da floresta para não se erguerem mais Sentouse no vão da janela e encostando a cabeça sobre a curva do braço começou a refletir A obra gigantesca que empreendera obra que parecia exceder todo o poder do homem estava prestes a realizarse já tinha levado ao cabo metade dela faltava a conclusão a parte a mais difícil e a mais delicada Antes de lançarse Peri queria prever tudo fixar bem no seu espírito as menores circunstâncias traçar a sua linha invariável a fim de marchar firme direito infalível ao alvo a que visava a fim de que a menor hesitação não pusesse em risco o efeito do seu plano Seu espírito percorreu em alguns segundos um mundo de pensamentos guiado pelo seu instinto maravilhoso e pelo seu nobre coração formulou num rápido instante um grande e terrível drama do qual devia ser o herói drama sublime de heroísmo e dedicação que para ele era apenas o cumprimento de um dever e a satisfação de um desejo As almas grandes têm esse privilégio suas ações que nos outros inspiram a admiração se aniquilam em face dessa nobreza inata do coração superior para o qual tudo é natural e possível Quando Peri ergueu a cabeça estava radiante de felicidade e orgulho felicidade por salvar sua senhora orgulho pela consciência de que ele só bastava para fazer o que cinqüenta homens não fariam o que o próprio pai o amante não conseguiriam nunca Não duvidava mais do resultado via nos acontecimentos futuros como no espaço que se estendia diante dele e no qual nem um objeto escapava ao seu olhar límpido tanto quanto é possível ao homem ele tinha a certeza e a convicção de que Cecília estava salva Cobriu o peito e as costas com uma pele de cobra que ligou estreitamente ao corpo vestiu por cima o seu saiote de algodão experimentou os músculos dos braços e das pernas e sentindose forte ágil e flexível saiu inerme XII DESOBEDIÊNCIA Álvaro recostado da parte de fora a uma das janelas da casa pensava em Isabel Sua alma lutava ainda mas já sem força contra o amor ardente e profundo que o dominava procurava iludirse mas a sua razão não o permitia Conhecia que amava Isabel e que a amava como nunca tinha amado Cecília a afeição calma e serena de outrora fora substituída pela paixão abrasadora Seu nobre coração revoltavase contra essa verdade mas a vontade era impotente contra o amor não podia mais arrancálo do seu seio não o desejava mesmo Álvaro sofria o que dissera na véspera a Isabel era realmente o que sentia não se exagerara no dia em que deixasse de amar Cecília e fosse infiel à promessa feita a D Antônio se condenaria como um homem sem honra e sem lealdade Consolavao a idéia de que a situação em que se achavam não podia durar muito pouco tardava que exaustos enfraquecidos sucumbissem à força dos inimigos que os atacavam Então nos momentos extremos à borda do túmulo quando a morte o tivesse já desligado da terra poderia com o último suspiro balbuciar a primeira palavra do seu amor poderia confessar a Isabel que a amava Até então lutaria Nisto Peri chegouse e tocoulhe no ombro Peri parte Para onde Para longe Que vais fazer O índio hesitou Procurar socorro Álvaro sorriuse com incredulidade Tu duvidas De ti não mas do socorro Escuta se Peri não voltar tu farás enterrar as suas armas Podes ir tranqüilo eu te prometo Outra coisa O que é O índio hesitou de novo Se tu vires a cabeça de Peri desligada do corpo enterraa com as suas armas Por que este pedido A que vem semelhante lembrança Peri vai passar pelo meio dos selvagens e pode morrer Tu és guerreiro e sabes que a vida é como a palmeira murcha quando tudo reverdece Tens razão Farei tudo quanto pedes mas espero verte ainda O índio sorriu Ama a senhora disse ele estendendo a mão ao moço O seu adeus era uma última prece pela felicidade de Cecília Peri entrou na sala onde se achava reunida a família Todos dormiam só D Antônio de Mariz velava sempre apesar da velhice sua vontade poderosa cobrava novas forças e reanimava o corpo gasto pelos anos Não lhe restava senão uma esperança a de morrer rodeado dos entes que amava cercado de sua família como um fidalgo português devia morrer com honra e coragem O índio atravessou a sala e colocandose junto do sofá em que Cecília adormecida repousava contemploua um instante com um sentimento de profunda melancolia Dirseia que nesse olhar ardente fazia uma última e solene despedida que partindose o escravo fiel e dedicado queria deixar a sua alma enleada naquela imagem que representava a sua divindade na terra Que sublime linguagem não falavam aqueles olhos inteligentes animados por um brilhante reflexo de amor e de fidelidade Que epopéia de sentimento e de abnegação não havia naquela muda e respeitosa contemplação Por fim Peri fez um esforço supremo e a custo conseguiu quebrar o encanto que o prendia e o conservava imóvel como uma estátua diante da linda menina adormecida Reclinou sobre o sofá e beijou respeitosamente a fimbria do vestido de Cecília quando ergueuse uma lágrima triste e silenciosa que deslizava pela sua face caiu sobre a mão da menina Cecília sentindo aquela gota ardente entreabriu os olhos mas Peri não viu esse movimento porque já se tinha voltado e aproximavase de D Antônio de Mariz O fidalgo sentado na sua poltrona recebeuo com um sorriso pungente Tu sofres perguntou o índio Por eles por ela especialmente por minha Cecília Por ti não disse Peri com intenção Por mim Daria a minha vida para salvála e morreria feliz Ainda que ela te pedisse que vivesses Embora me suplicasse de joelhos O índio sentiuse aliviado como de um remorso Peri te pede uma coisa Fala Peri quer beijar a tua mão D Antônio de Mariz tirou o seu guante e sem compreender a razão do pedido do índio estendeulhe a mão Tu dirás a Cecília que Peri partiu que foi longe não deves contarlhe a verdade ela sofrerá Adeus Peri sente te deixar mas é preciso Enquanto o índio proferia estas palavras em voz baixa e inclinado ao ouvido do fidalgo este surpreendido procurava ligarlhes um sentido que lhe parecia vago e confuso Que pretendes tu fazer Peri perguntou D Antônio O mesmo que tu querias fazer para salvar a senhora Morrer exclamou o fidalgo Peri levou o dedo aos lábios recomendando silêncio mas era tarde um grito partido do canto da sala fêlo estremecer Voltandose viu Cecília que ao ouvir a última palavra de seu pai quisera correr para ele e caíra de joelhos sem força para dar um passo A menina com as mãos estendidas e suplicantes parecia pedir a seu pai que evitasse aquele sacrifício heróico e salvasse a Peri de uma morte voluntária O fidalgo a compreendeu Não Peri eu D Antônio de Mariz não consentirei nunca em semelhante coisa Se a morte de alguém pudesse trazer a salvação de minha Cecília e de minha família era a mim que competia o sacrifício E por Deus e pela minha honra o juro que a ninguém o cederia quem quisesse roubarme esse direito me faria um insulto cruel Peri volvia os olhos de sua senhora aflita e suplicante para o fidalgo severo e rígido no cumprimento de seu dever temia aquelas duas oposições diferentes mas que tinham ambas um grande poder sobre a sua alma Podia o escravo resistir a uma súplica de sua senhora e causarlhe uma mágoa quando toda a sua vida fora destinada a fazêla alegre e feliz Podia o amigo ofender a D Antônio de Mariz a quem respeitava praticando uma ação que o fidalgo considerava como uma injúria feita à sua honra Peri teve um momento de alucinação em que pareceulhe que o coração lhe estacava no peito e a vida lhe fugia e a cabeça se despedaçava com a pressão violenta das idéias que tumultuavam no cérebro No rápido instante que durou a vertigem ele viu girarem rapidamente em torno de si as figuras sinistras dos Aimorés que ameaçavam a vida preciosa daqueles a quem mais amava no mundo Viu Cecília suplicando não a ele mas ao inimigo feroz e sanguinário prestes a manchála com as mãos impuras viu a bela e nobre cabeça do velho fidalgo rojar mutilada com os alvos cabelos tintos de sangue O índio horrorizado com estas imagens lúgubres que lhe desenhava a sua imaginação em delírio apertou a cabeça entre as mãos como para arrancála daquela febre Peri balbuciava Cecília tua senhora te pede Morreremos todos juntos amigo quando chegar o momento dizia D Antônio de Mariz Peri levantou a cabeça e lançou sobre a menina e o fidalgo um olhar alucinado Não exclamou ele Cecília ergueuse com um movimento instantâneo de pé e pálida soberba de cólera e indignação a gentil e graciosa menina de outrora se tinha de repente transformado numa rainha imperiosa Sua bela fronte alva resplandecia com um assomo de orgulho seus olhos azuis tinham desses reflexos fulvos que iluminam as nuvens no meio da tormenta seus lábios trêmulos e ligeiramente arqueados pareciam reter a palavra para deixála cair com toda a sua força Atirando a cabecinha loura sobre o ombro esquerdo com um gesto de energia ela estendeu a mão para Peri Proíbote que saias desta casa O índio julgou que ia enlouquecer quis lançarse aos pés de sua senhora mas recuou anelante opresso e sufocado Um canto ou antes uma celeuma dos selvagens soava ao longe Peri deu um passo para a porta D Antônio o reteve Tua senhora disse o fidalgo friamente acaba de te dar uma ordem tu a cumprirás Tranqüilizate minha filha Peri é meu prisioneiro Ouvindo esta palavra que destruía todas as suas esperanças que o impossibilitava de salvar sua senhora o índio retraindose deu um salto e caiu no meio da sala Peri é livre gritou ele fora de si Peri não obedece a ninguém mais fará o que lhe manda o coração Enquanto D Antônio de Mariz e Cecília admirados desse primeiro ato de desobediência olhavam espantados o índio de pé no meio do vasto aposento ele lançouse a um cabide de armas e empunhando um pesado montante como se fora uma ligeira espada correu à janela e saltou Perdoa a Peri senhora Cecília soltou um grito e precipitouse para a janela Não viu mais Peri Álvaro e os aventureiros de pé sobre a esplanada tinham os olhos fitos sobre a árvore que se elevava a um lado da casa na encosta oposta e cuja folhagem ainda se agitava Longe descortinavase o campo dos Aimorés a brisa que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos selvagens XIII COMBATE Eram seis horas da manhã O sol elevandose no horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas O tempo estava soberbo o céu azul esmaltado de pequenas nuvens brancas que se achamalotavam como as dobras de uma lençaria Os Aimorés grupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza faziam preparativos para dar um ataque decisivo O instinto selvagem supria a indústria do homem civilizado a primeira das artes foi incontestavelmente a arte da guerra a arte da defesa e da vingança os dois mais fortes estímulos do coração humano Nesse momento os Aimorés preparavam setas inflamáveis para incendiar a casa de D Antônio de Mariz não podendo vencer o inimigo pelas armas contavam destruílo pelo fogo A maneira por que arranjavam esses terríveis projéteis que lembravam os pelouros e bombardas dos povos civilizados era muito simples envolviam a ponta da flecha com flocos de algodão embebidos na resina da almécega Essas setas assim inflamadas despedidas dos seus arcos voavam pelos ares e iam cravarse nas vigas e portas das casas o fogo que o vento incitava lambia a madeira estendia a sua língua vermelha e lastrava pelo edifício Enquanto se ocupavam com esse trabalho um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras nas quais a braveza a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana Os cabelos arruivados caiamlhe sobre a fronte e ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto criada por Deus para a sede da inteligência e para o trono donde o pensamento deve reinar sobre a matéria Os lábios decompostos arregaçados por uma contração dos músculos faciais tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra de lábios de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido Os dentes agudos como a presa do jaguar já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos a pele áspera e calosa faziam de suas mãos antes garras temíveis do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo Alguns se ornavam de penas e colares de ossos outros completamente nus tinham o corpo untado de óleo por causa dos insetos Entre todos distinguiase um velho que parecia ser o chefe da tribo Sua alta estatura direita apesar da idade avançada dominava a cabeça dos seus companheiros sentados ou agrupados em torno do fogo Não trabalhava presidia apenas aos trabalhos dos selvagens e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a casa que se elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnável Ao lado dele uma bela índia na flor da idade queimava sobre uma pedra cova algumas folhas de tabaco cuja fumaça se elevava em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma espécie de brama ou névoa Ele aspirava esse aroma embriagador que fazia dilatar o seu vasto peito e dava a sua fisionomia terrível um quer que seja de sensual que se poderia chamar a voluptuosidade dos seus instintos de canibal Envolta pelo fumo espesso que se enovelava em torno dela aquela figura fantástica parecia algum ídolo selvagem divindade criada pelo fanatismo desses povos ignorantes e bárbaros De repente a pequena índia que soprava o brasido queimando as folhas de pitima estremeceu levantou a cabeça e fitou os olhos no velho como para interrogar a sua fisionomia Vendoo calmo e impassível a menina debruçouse sobre o ombro do selvagem e tocandolhe de leve na cabeça disselhe uma palavra ao ouvido Ele voltouse tranqüilamente um riso sardônico mostrou os seus dentes sem responder obrigou a índia a sentarse de novo e a voltar à sua ocupação Pouco tempo havia passado depois deste pequeno incidente quando a menina tornou a estremecer tinha ouvido perto o mesmo rumor que já ouvira ao longe Ao passo que ela espantada procurava confirmarse um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar fez o mesmo movimento que a índia e levantou a cabeça Como se um fio elétrico se comunicasse entre esses homens e imprimisse a todos sucessivamente o mesmo movimento um após outro interrompeu o seu trabalho de chofre e inclinando o ouvido pôsse à escuta A menina não escutava só colocandose longe do fumo e de encontro à brisa que soprava de vez em quando aspirava o ar com a finura de olfato com que os cães farejam a caça Tudo isto passou rapidamente sem que os atores desta cena tivessem nem sequer o tempo de trocar uma observação e dizer o seu pensamento De repente a índia soltou um grito todos voltaramse para ela e a viram trêmula ofegante apoiandose com uma mão sobre o ombro do velho cacique e a outra estendida na direção da floresta que passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro O velho ergueuse então sempre com a mesma calma feroz e sinistra e empunhando a sua pesada tangapema que parecia uma clava de ciclope fêla girar sobre a sua cabeça como um junco depois fincandoa no chão e apoiandose sobre ela esperou Os outros selvagens armados de arcos e tacapes espécie de longas espadas de pau que cortavam como ferro colocaramse a par do velho e prontos para o ataque esperavam como ele As mulheres misturaramse com os guerreiros as crianças e meninos defendidos pela barreira que opunham os combatentes conservaramse no centro do campo Todos com os olhos fitos os sentidos aplicados contavam ver o inimigo aparecer a cada momento e se preparavam para cair sobre ele com a audácia e ímpeto de ataque que distinguia a raça dos Aimorés Um segundo se passou nesta expectativa inquieta O estalido que a princípio tinham ouvido cessou completamente e os selvagens cobrandose do susto voltaram aos seus trabalhos convencidos de que tinham sido iludidos por algum vago rumor na floresta Mas o inimigo caiu no meio deles subitamente sem que pudessem saber se tinha surgido do seio da terra ou se tinha descido das nuvens Era Peri Altivo nobre radiante da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos o índio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança Caindo do alto de uma árvore sobre eles tinha abatido dois e volvendo o seu montante como um raio em torno de sua cabeça abriu um círculo no meio dos selvagens Então encostouse a uma lasca de pedra que descansava sobre uma ondulação do terreno e preparouse para o combate monstruoso de um só homem contra duzentos A posição em que se achava o favorecia se isso é possível à vista de uma tal disparidade de número apenas dois inimigos podiam atacálo de frente Passado o primeiro espanto os selvagens bramindo atiraramse todos como uma só mole como uma tromba do oceano contra o índio que ousava atacálos a peito descoberto Houve uma confusão um turbilhão horrível de homens que se repeliam tombavam e se estorciam de cabeças que se levantavam e outras que desapareciam de braços e dorsos que se agitavam e se contraiam como se tudo isto fosse partes de um só corpo membros de algum monstro desconhecido debatendose em convulsões No meio desse caos viase brilhar aos raios do sol com reflexos rápidos e luzentes a lamina do montante de Peri que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e atravessa o espaço Um coro de gritos imprecações e gemidos roucos e abafados confundindose com o choque das armas se elevava desse pandemônio e ia perderse ao longe nos rumores da cascata Houve uma calma aterradora os selvagens imóveis de espanto e de raiva suspenderam o ataque os corpos dos mortos faziam uma barreira entre eles e o inimigo Peri abaixou o seu montante e esperou seu braço direito fatigado desse enorme esforço não podia mais servirlhe e caía inerte passou a arma para a mão esquerda Era tempo O velho cacique dos Aimorés se avançava para ele sopesando a sua imensa clava crivada de escamas de peixe e dentes de fera alavanca terrível que o seu braço possante fazia jogar com a ligeireza da flecha Os olhos de Peri brilharam endireitando o seu talhe fitou no selvagem esse olhar seguro e certeiro que não o enganava nunca O velho aproximandose levantou a sua clava e imprimindolhe o movimento de rotação ia descarregála sobre Peri e abatêlo não havia espada nem montante que pudesse resistir àquele choque O que passouse então foi tão rápido que não é possível descrevêlo quando o braço do velho volvendo a clava ia atirála o montante de Peri lampejou no ar e decepou o punho do selvagem mão e clava foram rojar pelo chão O velho selvagem soltou um bramido que repercutiu ao longe pelos ecos da floresta e levantando ao céu o seu punho decepado atirou as gotas de sangue que vertiam sobre os Aimorés como conjurandoos à vingança Os guerreiros lançaramse para vingar o seu chefe mas um novo espetáculo se apresentava aos seus olhos Peri vencedor do cacique volveu um olhar em torno dele e vendo O estrago que tinha feito os cadáveres dos Aimóres amontoados uns sobre os outros fincou a ponta do montante no chão e quebrou a lamina Tomou depois os dois fragmentos e atirouos ao rio Então passouse nele uma luta silenciosa mas terrível para quem pudesse compreendêla Tinha quebrado a sua espada porque não queria mais combater e decidira que era tempo de suplicar a vida ao inimigo Mas quando chegou o momento de realizar essa súplica conheceu que exigia de si mesmo uma coisa sobrehumana uma coisa superior às suas forças Ele Peri o guerreiro invencível ele o selvagem livre o senhor das florestas o rei dessa terra virgem o chefe da mais valente nação dos Guaranis suplicar a vida ao inimigo Era impossível Três vezes quis ajoelhar e três vezes as curvas de suas pernas distendendose como duas molas de aço o obrigaram a erguerse Finalmente a lembrança de Cecília foi mais forte do que a sua vontade Ajoelhou XIV O PRISIONEIRO Quando os selvagens se precipitavam sobre o inimigo que já não se defendia e se confessava vencido o velho cacique adiantouse e deixando cair a mão sobre o ombro de Peri fez um movimento enérgico com o braço direito decepado Esse movimento exprimia que Peri era seu prisioneiro que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto a mão sobre ele como seu vencedor e que todos deviam respeitar o seu direito de propriedade o seu direito de guerra Os selvagens abaixaram as armas e não deram um passo esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de guerra essa conquista do fraco pelo forte Tinham em tanta conta a glória de trazerem um cativo do combate e sacrificálo no meio das festas e cerimônias que costumavam celebrar que nenhum selvagem matava o inimigo que se rendia faziao prisioneiro Quanto a Peri vendo o gesto do cacique e o efeito que produzia a sua fisionomia expandiuse a humildade fingida a posição suplicante que por um esforço supremo conseguira tomar desapareceu imediatamente Ergueuse e com um soberbo desdém estendeu os punhos aos selvagens que por mandado do velho se dispunham a ligarlhe os braços parecia antes um rei que dava uma ordem aos seus vassalos do que um cativo que se sujeitava aos vencedores tal era a altivez do seu porte e o desprezo com que encarava o inimigo Os Aimorés depois de ligarem os punhos do prisioneiro o conduziram a alguma distancia à sombra de uma árvore e ai o prenderam com uma corda de algodão matizada de várias cores a que os Guaranis chamavam muçurana Depois ao passo que as mulheres enterravam os mortos reuniramse em conselho presididos pelo velho cacique a quem todos ouviam com respeito e respondiam cada um por sua vez Durante o tempo que os guerreiros falavam a pequena índia escolhia os melhores frutos as bebidas mais bem preparadas e oferecia ao prisioneiro a quem estava encarregada de servir Peri sentado sobre a raiz da árvore e apoiado contra o tronco não percebia o que se passava em torno dele tinha os olhos fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma distancia Via o vulto de D Antônio de Mariz que assomava por cima da paliçada e suspensa ao seu braço reclinada sobre o abismo Cecília sua linda senhora que lhe fazia de longe um gesto de desespero ao lado Álvaro e a família Tudo o que ele havia amado neste mundo ali estava diante de seus olhos sentia um prazer intenso por ver ainda uma vez esses objetos de sua dedicação extrema de seu amor profundo Adivinhava e compreendia o que sentia então o coração de seus bons amigos sabia que sofriam vendoo prisioneiro próximo a morrer sem terem o poder e a força para salválo das mãos do inimigo Consolavao porém essa esperança que estava prestes a realizarse esse gozo inefável de salvar sua senhora e de deixála feliz no seio de sua família protegida pelo amor de Álvaro Enquanto Peri preocupado por essas idéias enlevavase ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a figura de Cecília a índia de pé defronte dele olhavao com um sentimento de prazer misturado de surpresa e curiosidade Comparava suas formas esbeltas e delicadas com o corpo selvagem de seus companheiros a expressão inteligente de sua fisionomia com o aspecto embrutecido dos Aimorés para ela Peri era um homem superior e excitavalhe profunda admiração Foi só quando Cecília e D Antônio de Mariz desapareceram da esplanada que Peri lançando ao redor um olhar para ver se a sua morte ainda se demoraria muito descobriu a índia perto dele Voltou o rosto e continuou a pensar em sua senhora e a rever a sua imagem debalde a menina selvagem lhe apresentava um lindo fruto um alimento um vinho saboroso ele não lhe dava atenção A índia tornouse triste por causa dessa obstinação com que o prisioneiro recusava o que lhe oferecia e achegandose levantou a cabeça pensativa de Peri Havia nos olhos da menina tanto fogo tanta lubricidade no seu sorriso as ondulações mórbidas do seu corpo traiam tantos desejos e tanta voluptuosidade que o prisioneiro compreendeu imediatamente qual era a missão dessa enviada da morte dessa esposa do túmulo destinada a embelezar os últimos momentos da vida O índio voltou o rosto com desdém recusava as flores como tinha recusado os frutos repelia a embriaguez do prazer como havia repelido a embriaguez do vinho A menina enlaçouo com os braços murmurando palavras entrecortadas de uma língua desconhecida da língua dos Aimorés que Peri não entendia era talvez uma súplica ou um consolo com que procurava mitigar a dor do vencido Mal sabia que o índio ia morrer feliz e esperava o suplício como a realização de um sonho doce como a satisfação de um desejo querido e por muito tempo afagado com amor Mas podia ela pobre selvagem pressentir e mesmo compreender semelhante coisa O que sabia era que Peri ia ser morto que ela devia suavizarlhe a última hora e cumpria esse dever com um certo contentamento Peri sentindo os braços da menina cingirem seu colo repeliua vivamente para longe de si e voltando procurou ver por entre as folhas se descobria os preparativos que os Aimorés faziam para o sacrifício Tardavalhe o momento supremo em que devia ser imolado à cólera e à vingança dos inimigos sua altivez revoltavase contra essa humilhação do cativeiro A índia continuava a olhálo tristemente e sem compreender por que a repelia ela era linda e desejada por todos os jovens guerreiros de sua tribo seu pai o velho cacique tinhaa destinado para o mais valente prisioneiro ou para o mais forte dos vencedores Depois de conservarse muito tempo nesta posição a menina adiantouse de novo tomou um vaso cheio de cauim e apresentouo a Peri sorrindo e quase suplicante Ao gesto de recusa que fez o índio ela deitou o vaso no rio e escolhendo sobre as folhas um cardo vermelho e doce como um favo de mel estendeu a mão e tocou com o fruto a boca do prisioneiro Peri enjeitou o fruto como tinha enjeitado o vinho e a virgem selvagem atirandoo por sua vez ao rio aproximouse e ofereceu ao prisioneiro seus lábios encarnados ligeiramente distendidos como para receberem o beijo que pediam O índio fechou os olhos e pensou em sua senhora Elevandose até Cecília seu pensamento desprendiase do invólucro terrestre e adejava numa atmosfera pura e isenta da fascinação dos sentidos que escraviza o homem Contudo Peri sentia o hálito ardente da menina que lhe requeimava as faces entreabriu os olhos e viua na mesma posição esperando uma carícia um afago daquele a quem a sua tribo mandara que amasse e a quem ela já amava espontaneamente Na vida selvagem tão próxima da natureza onde a conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do coração o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol Nos tempos de civilização ao contrário o sentimento tornase planta exótica que só vinga e floresce nas estufas isto é nos corações onde o sangue é vigoroso e o fogo da paixão ardente e intenso Vendo Peri no meio do combate só contra toda a sua tribo a índia o admirara contemplandoo depois quando prisioneiro o achara mais belo do que todos os guerreiros Seu pai a destinara para esposa do inimigo que ia ser sacrificado e portanto ela que começara por admirálo acabava por desejálo por amálo algumas horas apenas depois que o tinha visto Mas Peri frio e indiferente não se comovia nem aceitava essa afeição passageira e efêmera que tinha começado com o dia e devia acabar com ele sua idéia fixa a lembrança de seus amigos o protegia contra a tentação Voltando as costas levantou os olhos ao céu para evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua vista como certas flores acompanham a rotação aparente do sol Entre a folhagem das árvores passavase uma das cenas graciosas e singelas que a cada momento no campo se oferecem à atenção daqueles que estudam a natureza nas suas pequenas criaturas Um casal de corrixos que tinha feito o seu ninho num ramo sentindo a habitação do homem e o fogo embaixo da árvore mudava a sua pequena casa de palha e algodão Um desfazia com o bico o ninho e o outro conduzia a palha para longe para o lugar onde iam novamente fabricálo quando acabaram este trabalho acariciaramse e batendo as asas foram esconder o seu amor nalgum lindo retiro Peri se divertia em ver esse inocente idílio quando a índia levantandose de repente soltou um pequeno grito de alegria e de prazer e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dois passarinhos que voavam um a par do outro sobre a cúpula da floresta Enquanto ele procurava compreender o que queria dizer este aceno a virgem desapareceu e voltou quase imediatamente trazendo um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco de guerra Aproximouse do índio soltoulhe os laços que lhe ligavam os punhos e partiu a muçurana que o prendia à árvore Executou isto com uma extrema rapidez e entregando a Peri o arco e as flechas estendeu a mão na direção da floresta mostrandolhe o espaço que se abria diante deles Seus olhos e seu gesto falavam melhor do que a sua linguagem inculta e exprimiam claramente o seu pensamento Tu és livre Partamos QUARTA PARTE A CATÁSTROFE I ARREPENDIMENTO Quando Loredano afastouse de João Feio que o acabava de ameaçar chamou quatro companheiros em que mais confiava e retirouse com eles para a despensa Fechou a porta a fim de interceptar a comunicação com os aventureiros e poder tranqüilamente tratar o negocio que tinha em mente Nesse curto instante havia feito uma modificação no seu plano da véspera as palavras de ameaça há pouco proferidas lhe revelaram que o descontentamento começava a lavrar Ora o italiano não era homem que recuasse diante de um obstáculo e deixasse roubaremlhe a esperança que nutria desde tanto tempo Resolveu fazer as coisas rapidamente e executar naquele mesmo dia o seu intento seis homens fortes e destemidos bastavam para levar ao cabo a empresa que projetara Tendo fechado a porta guiou os quatro aventureiros à sala que tocava com o oratório e onde Martim Vaz continuava a sua obra de demolição minando a parede que os separava da família Amigos disse o italiano estamos numa posição desesperada não temos força para resistir aos selvagens e mais dia menos dia havemos de sucumbir Os aventureiros abaixaram a cabeça e não responderam sabiam que aquela era a triste verdade A morte que nos espera é horrível serviremos de pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana nossos corpos sem sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais A expressão do horror se pintou na fisionomia daqueles homens que sentiram um calafrio percorrerlhes os membros e penetrar até à medula dos ossos Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz sobre esses rostos decompostos Tenho porém um meio de salvarvos Qual perguntaram todos a uma voz Esperai Posso salvarvos mas isto não quer dizer que esteja disposto a fazêlo Por que razão Por quê Porque todo o serviço tem o seu preço Que exigis então disse Martim Vaz Exijo que me acompanheis que me obedeçais cegamente suceda o que suceder Podeis ficar descansado disse um dos aventureiros eu respondo pelos meus companheiros Sim exclamaram os outros Bem Sabeis o que vamos fazer já neste momento Não mas vós nos direis Escutai Vamos acabar de demolir esta parede e atirála dentro entrar nesta sala e matar tudo quanto encontrarmos menos uma pessoa E essa pessoa É a filha de D Antônio de Mariz Cecília Se algum de vós deseja a outra pode tomála eu vola dou E depois disso feito Tomamos conta da casa reunimos os nossos companheiros e atacamos os Aimorés Mas isto não nos salvará retrucou um dos aventureiros há pouco dissestes que não temos força para resistirlhes Decerto acudiu Loredano não lhes resistiremos mas nos salvaremos Como disseram os aventureiros desconfiados O italiano sorriu Quando disse que atacaremos o inimigo não falei claro queria dizer que os outros o atacarão Não vos entendo ainda falai mais claro Ai vai pois Dividiremos os nossos homens em duas bandas nós e mais alguns pertenceremos a uma que ficará sob a minha obediência Até aqui vamos bem Isto feito uma das bandas sairá da casa para fazer uma sortida enquanto os outros atacarão os selvagens do alto do rochedo é um estratagema já velho e que deveis conhecer meter o inimigo entre dois fogos Adiante continuai Como a expedição de sair é a mais perigosa e arriscada tomoa sobre mim vós me acompanhais e marchamos Somente em lugar de marchar sobre o inimigo marchamos sobre o mais próximo povoado Oh exclamaram os aventureiros Sob pretexto de que os selvagens podem cortarnos a entrada da casa por alguns dias levamos provisão de viveres Caminhamos sem parar sem olhar atrás e prometovos que nos salvaremos Uma traição gritou um dos aventureiros Entregarmos nossos companheiros nas mãos dos inimigos Que quereis A morte de uns é necessária para a vida dos outros este mundo é assim e não seremos nós que o havemos de emendar andemos com ele Nunca Não faremos isso É uma vilania Bom respondeu Loredano friamente fazei o o que vos aprouver Ficai quando vos arrependerdes será tarde Mas ouvi Não não conteis já comigo Julguei que falava a homens a quem valesse salvar a vida vejo que me enganei Adeus Se não fora uma traição Que falais em traição replicou o italiano com arrogância Dizeime credes vós que algum escapará daqui na posição em que nos achamos Morreremos todos Pois se assim é mais vale que se salvem alguns Os aventureiros pareceram abalados por este argumento Eles mesmos continuou Loredano a menos de serem egoístas não terão o direito de se queixarem e morrerão com a satisfação de que sua morte foi útil aos seus companheiros e não estéril como deve ser se ficarmos todos de braços cruzados Vá feito tendes razões a que não se resiste Contai conosco acudiu um aventureiro Contudo levarei sempre um remorso disse outro Faremos dizer uma missa por sua alma Bem lembrado respondeu o italiano Os aventureiros foram ajudar o seu companheiro na demolição surda da parede e Loredano ficou só retirado a um canto Por algum tempo acompanhou com a vista o trabalho dos cincos homens depois tirou um largo cinto de escamas de aço que apertava o seu gibão Na parte interior desse cinto havia uma estreita abertura pela qual ele sacou um pergaminho dobrado ao comprido era o famoso roteiro das minas de prata Revendo esse papel todo o seu passado debuxouse na sua memória não para deixarlhe o remorso mas para excitálo a prosseguir em busca desse tesouro que lhe pertencia e do qual não podia gozar Foi tirado da sua distração por um dos aventureiros que se achegara para ele despercebido e depois de olhar por muito tempo o papel dirigiulhe a palavra Não podemos derrubar a parede Por quê perguntou Loredano erguendose Está segura Não é isso basta um empurrão mas o oratório Que tem o oratório Que tem Os santos as sagradas imagens bentas não são coisas que se atire ao chão Se tão danada tentação nos tomasse pediríamos a Deus que nos livrasse dela Loredano desesperado dessa nova resistência cuja força ele conhecia passeava pela sala de uma ponta à outra Estúpidos murmurava ele Basta um fragmento de madeira um pouco de argila para fazêlos recuar E dizem que são homens Animais sem inteligência que nem sequer têm o instinto da conservação Alguns momentos decorreram os aventureiros parados esperavam a resolução do seu chefe Tendes medo de tocar nos santos disse Loredano avançando para eles pois bem serei eu que deitarei a parede abaixo Continuai e avisaime quando for tempo Enquanto isto se passava o resto dos aventureiros que ficara no alpendre ouvia a narração de João Feio que lhes comunicava as revelações de mestre Nunes Quando eles souberam que Loredano era um frade que abjurara dos seus votos ergueramse furiosos e quiseram procurálo e espedaçálo Que ides fazer gritou o aventureiro Não é assim que ele deve acabar a sua morte há de ser uma punição uma terrível punição Deixaime arranjar isto Para que mais demora respondeu Vasco Afonso Prometovos que não haverá demora hoje mesmo será condenado amanhã receberá o castigo de seus crimes E por que não hoje Deixemoslhe o tempo de arrependerse é preciso que antes de morrer sinta o remorso do que praticou Os aventureiros decidiram por fim seguir este conselho e esperaram que Loredano aparecesse para se apoderarem dele e o condenarem sumariamente Passouse um bom espaço de tempo e nada do italiano sair era quase meiodia Os aventureiros estavam desesperados de sede a sua provisão de água e de vinho já bastante diminuída depois do sitio dos selvagens achavase na despensa cuja porta Loredano fechara por dentro Felizmente descobriram no quarto do italiano algumas garrafas de vinho que beberam no meio de risadas e chacotas fazendo brindes ao frade que iam dentro em pouco condenar à pena de morte No meio da hilaridade algumas palavras revelavam o arrependimento que começava a se apoderar deles falavam de ir pedir perdão ao fidalgo de se reunir de novo a ele e ajudálo a bater o inimigo Se não fosse a vergonha da má ação que tinham praticado correriam a lançarse aos joelhos de D Antônio de Mariz imediatamente mas resolveram fazêlo quando o principal autor da revolta tivesse recebido o castigo do seu crime Seria esse o seu primeiro titulo ao perdão que iam suplicar seria mais a prova da sinceridade do seu arrependimento II O SACRIFÍCIO Peri compreendera o gesto da índia não fez porém o menor movimento para seguila Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu Por sua vez a menina também compreendeu a expressão daquele sorriso e a resolução firme e inabalável que se lia na fronte serena do prisioneiro Insistiu por algum tempo mas debalde Peri tinha atirado para longe o arco e as flechas e recostandose ao tronco da árvore conservavase calmo e impassível De repente o índio estremeceu Cecília aparecera no alto da esplanada e lhe acenara sua mãozinha alva e delicada agitandose no ar parecia dizerlhe que esperasse Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil de sua senhora apesar da distancia brilhar um raio de felicidade Quando com os olhos fitos naquela graciosa visão ele esforçavase por adivinhar a causa de tão súbita alegria a índia soltou um segundo grito selvagem um grito terrível Tinha pela direção do olhar do prisioneiro visto Cecília sobre a esplanada tinha percebido o gesto da menina e compreendera vagamente a razão por que Peri recusara a liberdade e o seu amor Precipitouse sobre o arco que estava atirado ao chão mas apesar da rapidez desse movimento quando ela estendia a mão já Peri tinha posto o pé sobre a arma A selvagem com os olhos ardentes os lábios entreabertos trêmula de ciúme e de vingança leventou sobre o peito do índio a faca de pedra com que lhe cortara os laços há pouco mas a arma caiulhe da mão e vacilando apoiouse no seio que ameaçara Peri tomoua nos braços deitoua sobre a relva e sentouse de novo junto ao tronco da árvore tranqüilo a respeito de Cecília que desapareceu da esplanada e estava fora de perigo Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas e o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol O ar estrugiu com os sons roucos da inúbia e do maracá ao mesmo tempo um canto selvagem o canto guerreiro dos Aimorés misturouse com a harmonia sinistra daqueles instrumentos ásperos e retumbantes A índia deitada junto da árvore sobressaltouse e erguendose rapidamente acenou ao prisioneiro mostrandolhe a floresta e suplicandolhe que fugisse Peri sorriu como da primeira vez tomando a mão da menina a fez sentar perto dele e tirou do pescoço a cruz de ouro que Cecília lhe havia dado Então começou entre ele e a selvagem uma conversa por acenos de que seria difícil dar uma idéia Peri dizia à menina que lhe dava aquela cruz como lembrança mas que só depois que ele morresse é que devia tirála do pescoço A selvagem entendeu ou julgou entender o que Peri procurava exprimir simbolicamente e beijoulhe as mãos em sinal de reconhecimento O prisioneiro obrigoua a atar de novo os laços que o ligavam e que ela no seu generoso impulso de darlhe a liberdade havia desfeito Nesse momento quatro guerreiros Aimorés dirigiamse à árvore em que se achava Peri e segurando as pontas da corda o conduziram ao campo onde tudo estava já preparado para o sacrifício O índio ergueuse e caminhou com o passo firme e a fronte alta diante dos quatro inimigos que não perceberam o olhar rápido que nessa ocasião ele lançou às pontas de sua túnica de algodão torcidas em dois nós pequenos O campo cortado em elipse no meio das árvores estava cercado por cento e tantos guerreiros armados em guerra e cobertos de ornatos de penas No fundo as velhas pintadas de listras negras e amarelas de aspecto hórrido preparavam um grande brasido lavavam a laje que devia servir de mesa e afiavam as suas facas de ossos e lascas de pedra As moças grupadas de um lado guardavam os vasos cheios de vinho e bebidas fermentadas que ofereciam aos guerreiros quando estes passavam diante delas entoando o canto de guerra dos Aimorés A menina que fora incumbida de servir ao prisioneiro e o acompanhara ao lugar do sacrifício conservavase a alguma distancia e olhava tristemente todos esses preparativos pela primeira vez seu instinto natural parecia revelarlhe a atrocidade desse costume tradicional de seus pais a que ela tantas vezes assistira com prazer Agora que ia representar como heroína no drama terrível e como esposa do prisioneiro devia acompanhálo até o momento supremo insultandolhe a dor e a desgraça o seu coração confrangiase porque realmente amava Peri tanto quanto era possível a uma natureza como a sua amar Chegados ao campo os selvagens que conduziam o prisioneiro passaram as pontas da corda ao tronco de duas árvores e esticando o laço o obrigaram a ficar imóvel no meio do terreiro Os guerreiros desfilaram em roda entoando o canto da vingança as inúbias retroaram de novo os gritos confundiramse com o som dos maracás e tudo isso formou um concerto horrível À medida que se animavam a cadência apressavase de modo que a marcha triunfal dos guerreiros se tornava uma dança macabra uma corrida veloz uma valsa fantástica em que todos esses vultos horrendos cobertos de penas que brilhavam à luz do sol passavam como espíritos satânicos envoltos na chama eterna A cada volta que fazia esse sabbat um dos guerreiros destacavase do circulo e adiantandose para o prisioneiro o desafiava ao combate e conjuravao a que desse provas de sua coragem de sua força e de seu valor Peri sereno e altivo recebia com um soberbo desdém a ameaça e o insulto e sentia um certo orgulho pensando que no meio de todos aqueles guerreiros fortes e armados ele o prisioneiro o inimigo que ia ser sacrificado era o verdadeiro o único vencedor Talvez pareça isso incompreensível mas o fato é que Peri o pensava e que só o segredo que ele guardava no fundo de sua alma podia explicar a razão desse pensamento e a tranqüilidade com que esperava o suplício A dança continuava no meio dos cantos dos alaridos e das constantes libações quando de repente tudo emudeceu e o mais profundo silêncio reinou no campo dos Aimorés Todos os olhos se voltaram para uma cortina de folhas que ocultava uma espécie de cabana selvagem construída a um lado do campo em face do prisioneiro Os guerreiros se afastaram as folhas se abriram e entre aquelas franjas de verdura assomou o vulto gigantesco do velho cacique Duas peles de tapir ligadas sobre os ombros cobriam seu corpo como uma túnica um grande cocar de penas escarlates ondeava sobre a sua cabeça e realçavalhe a grande estatura Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e oleosa e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes do tucano no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavam como dois fogos vulcânicos no seio das trevas Trazia na mão esquerda a tangapema coberta de plumas resplandecentes e amarrada ao punho direito uma espécie de buzina formada de um osso enorme da canela de algum inimigo morto em combate Chegando à entrada do campo o velho selvagem levou à boca o seu instrumento bárbaro e tirou dele um som estrondoso os Aimorés saudaram com gritos de alegria e de entusiasmo o aparecimento do vencedor Ao cacique cabia a honra de ser o algoz da vitima o matador do prisioneiro seu braço devia consumar a grande obra da vingança esse sentimento que constituía para aqueles povos fanáticos a verdadeira glória Apenas cessaram as aclamações com que foi acolhida a entrada do vencedor um dos guerreiros que o acompanhavam adiantouse e fincou na extrema do campo uma estaca destinada a receber a cabeça do inimigo logo que ela fosse decepada do corpo Ao mesmo tempo a jovem índia que servia de esposa ao prisioneiro tirou o tacape que pendia do ombro de seu pai e caminhando para Peri desligoulhe os braços e ofereceulhe a arma fitando nele um olhar triste ardente e cheio de amarga exprobração Nesse olhar dizialhe que se tivesse aceitado o amor que lhe oferecera e com o amor a vida e a liberdade ela não seria obrigada pelo costume tradicional de sua nação a escarnecer assim da sua morte Com efeito esse oferecimento que os selvagens faziam ao prisioneiro de uma arma para se defender era uma ironia cruel ligado pelo laço que o prendia imóvel pela tensão da corda de que lhe servia vibrar o tacape no ar se não podia atingir os inimigos Peri aceitou a arma que a menina lhe trazia calcandoa aos pés cruzou os braços e esperou o cacique que avançava lentamente terrível e ameaçador Chegando em face do prisioneiro a fisionomia do velho esclareceuse com um sorriso feroz reflexo dessa embriaguez do sangue que dilata as narinas do jaguar prestes a saltar sobre a presa Sou teu matador disse em guarani Peri não se admirou ouvindo a sua bela língua adulterada pelos sons roucos e guturais que saiam dos lábios do selvagem Peri não te teme És goitacá Sou teu inimigo Defendete O índio sorriu Tu não mereces Os olhos do velho fuzilaram de raiva a mão cerrou o punho da tangapema mas ele reprimiu logo o assomo da cólera A esposa do prisioneiro atravessou o campo e ofereceu ao vencedor um grande vaso de barro vidrado cheio de vinho de ananás ainda espumante O selvagem virou de um trago a bebida aromática e endireitando o seu alto talhe lançou ao prisioneiro um olhar soberbo Guerreiro goitacá tu és forte e valente tua nação é temida na guerra A nação Aimoré é forte entre as mais fortes valente entre as mais valentes Tu vais morrer O coro dos selvagens respondeu a esta espécie de canto guerreiro que preludiava o tremendo sacrifício O velho continuou Guerreiro goitacá tu és prisioneiro tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré teu corpo aos filhos de sua tribo tuas entranhas servirão ao banquete da vingança Tu vais morrer Os gritos dos selvagens responderam de novo e o canto se prolongou por muito tempo lembrando os feitos gloriosos da nação Aimoré e as ações de valor de seu chefe Enquanto o velho falava Peri o escutava com a mesma calma e impassibilidade nem um dos músculos do seu rosto traia a menor emoção seu olhar límpido e sereno ora fitavase no rosto do cacique ora volviase pelo campo examinando os preparativos do sacrifício Apenas quem o observasse veria que de braços cruzados como estava uma das mãos desfazia imperceptivelmente um dos nós que havia na ponta de seu saio de algodão Quando o velho acabou de falar encarou o prisioneiro e recuando dois passos elevou lentamente a pesada clava que empunhava na mão esquerda Os Aimorés ansiosos esperavam as velhas com as suas navalhas de pedra estremeciam de impaciência as jovens índias sorriam enquanto a noiva do prisioneiro voltava o rosto para não ver o espetáculo horrível que ia apresentarse Nesse momento Peri levando as duas mãos aos olhos cobriu o rosto e curvando a cabeça ficou algum tempo nessa posição sem fazer um movimento que revelasse a menor perturbação O velho sorriu Tens medo Ouvindo estas palavras Peri ergueu a cabeça com ar senhoril Uma expressão de júbilo e serenidade irradiava no seu rosto dirseia o êxtase dos mártires da religião que na última hora através do túmulo entrevêem a felicidade suprema A alma nobre do índio prestes a deixar a terra parecia exalar já do seu invólucro e pousando nos seus lábios nos seus olhos na sua fronte esperava o momento de lançarse no espaço para ir se abrigar no seio do Criador Erguendo a cabeça fitou os olhos no céu como se a morte que ia cair sobre ele fosse uma visão encantadora que descesse das nuvens sorrindolhe Era que nesse último sonho da existência via a linda imagem de Cecília feliz alegre e contente via sua senhora salva Fere disse Peri ao velho cacique Os instrumentos retumbaram de novo os gritos e os cantos se confundiram com aqueles sons roucos e reboaram pela floresta como o trovão rolando pelas nuvens A tangapema coberta de plumas girou no ar cintilando aos raios do sol que feriam as cores brilhantes No meio desse turbilhão ouviuse um estrondo uma ânsia de agonizante e o baque de um corpo tudo isto confusamente sem que no primeiro instante se pudesse perceber o que havia passado III SORTIDA O estrondo que se ouviu fora causado por um tiro que partiu dentre as árvores O velho Aimoré vacilou seu braço que vibrava o tacape com uma força hercúlea caiu inerte o corpo abateuse como o ipê da floresta cortada pelo raio A morte tinha sido quase instantânea apenas um estertor de agonia ressoou no seu peito largo e ainda há pouco vigoroso caíra já cadáver Enquanto os selvagens permaneciam estáticos diante do que se passava Álvaro com a espada na mão e a clavina ainda fumegante precipitavase no meio do campo De dois talhos rápidos cortou os laços de Peri e com as evoluções de sua espada conteve os selvagens que voltando a si calam sobre ele bramindo de furor Imediatamente ouviuse uma descarga de arcabuzes dez homens destemidos tendo à sua frente Aires Gomes saltaram por sua vez com a arma em punho e começaram a talhar de alto a baixo a grandes golpes de espada Não pareciam homens e sim dez demônios dez máquinas de guerra vomitando a morte de todos os lados enquanto a sua mão direita imprimia à lamina da espada mil voltas que eram outros tantos golpes terríveis a esquerda jogava a adaga com destreza e segurança admiráveis O escudeiro e seus homens tinham feito um semicírculo em roda de Álvaro e de Peri e apresentavam uma barreira de ferro e fogo às ondas de inimigos que bramiam recuavam e lançavamse de novo quebrandose de encontro a esse dique No curto instante que mediou entre a morte do cacique e o ataque dos aventureiros Peri de braços cruzados olhava impassível para tudo o que se passava em torno dele Compreendia então o gesto que sua senhora há pouco lhe fizera do alto da esplanada e o raio de esperança e de alegria que ele julgara ver brilhar no seu semblante Com efeito no primeiro momento de aflição Cecília se lançara para ver o índio chamálo ainda e suplicarlhe mesmo que não expusesse a sua vida inutilmente Não tendo mais visto Peri a menina sentiu um desespero cruel voltouse para seu pai e com as faces orvalhadas de lágrimas com o seio anelante com a voz cheia de angústia pediulhe que salvasse Peri D Antônio de Mariz antes que sua filha lhe fizesse esse pedido já tinha se lembrado de chamar os seus companheiros fiéis e seguido por eles correr contra o inimigo e livrar o índio da morte certa e inevitável que procurava Mas o fidalgo era um homem de uma lealdade e de uma generosidade a toda a prova sabia que aquela empresa era de um risco imenso e não queria obrigar os seus companheiros a partilhar um sacrifício que ele só faria de bom grado à amizade que votava a Peri Os aventureiros que se haviam dedicado com tanta constância à salvação de sua família não tinham as mesmas razões para se arriscarem por causa de um homem que não pertencia à sua religião e que não tinha com eles o menor laço de comunidade D Antônio de Mariz perplexo irresoluto entre a amizade e o seu escrúpulo generoso não soube o que responder a sua filha procurou consolála aflito por não poder satisfazer imediatamente a sua vontade Álvaro que contemplava esta cena pungente a alguma distancia no meio dos aventureiros fiéis e dedicados que tinha sob suas ordens tomou repentinamente uma resolução Seu coração partiase vendo Cecília sofrer e embora amasse Isabel a sua alma nobre sentia ainda pela mulher a quem votara os seus primeiros sonhos uma afeição pura respeitosa uma espécie de culto Era uma coisa singular na vida dessa menina todas as paixões todos os sentimentos que a envolviam sofriam a influência de sua inocência e iam a pouco e pouco depurandose e tomando um quer que seja de ideal um cunho de adoração O mesmo amor ardente e sensual de Loredano quando se tinha visto em face dela adormecida na sua casta isenção emudecera e hesitara um momento se devia manchar a santidade do seu pudor Álvaro trocou com os aventureiros algumas palavras e dirigiuse para o grupo que formavam D Antônio de Mariz e sua filha Consolaivos D Cecília disse o moço e esperai A menina fitou nele os olhos azuis cheios de reconhecimento aquela palavra era ao menos uma esperança Que contais fazer perguntou D Antônio ao cavalheiro Tirar Peri das mãos do inimigo Vós exclamou Cecília Sim D Cecília disse o moço aqueles homens dedicados vendo a vossa aflição sentiramse comovidos e desejam pouparvos uma justa mágoa Álvaro atribuía a generosa iniciativa aos seus companheiros quando eles não tinham feito senão aceitála com entusiasmo Quanto a D Antônio de Mariz sentira uma intima satisfação ouvindo as palavras do moço seus escrúpulos cessavam desde que seus homens espontaneamente se ofereciam para realizar aquela difícil empresa Me cedereis uma parte dos nossos homens quatro ou cinco me bastam continuou o moço dirigindose ao fidalgo ficareis com o resto para defendervos no caso de algum ataque imprevisto Não respondeu D Antônio levaios todos já que se prestam a essa tão nobre ação que não me animava a exigir de sua coragem Para defender a minha família basto eu apesar de velho Desculpaime Sr D Antônio replicou Álvaro mas é uma imprudência a que me oponho pensai que a dois passos de vós existem homens perdidos que nada respeitam e que espiam o momento de fazervos mal Sabeis se prezo e estimo este tesouro cuja guarda me foi confiada por Deus Julgais que haja neste mundo alguma coisa que me faça expôlo a um novo perigo Acreditaime D Antônio de Mariz só defenderá sua família enquanto vós salvareis um bom e nobre amigo Confiais demasiado em vossas forças Confio em Deus e no poder que ele colocou em minha mão poder terrível que quando chegar o momento fulminará todos os nossos inimigos com a rapidez do raio A voz do velho fidalgo pronunciando estas palavras tinhase revestido de uma solenidade imponente o seu rosto iluminouse com uma expressão de heroísmo e de majestade que realçou a beleza severa do seu busto venerável Álvaro olhou com uma admiração respeitosa o velho cavalheiro enquanto Cecília pálida e palpitante das emoções que sentira esperava com ansiedade a decisão que iam tomar O moço não insistiu e sujeitouse à vontade de D Antônio de Mariz Obedeçovos iremos todos e voltaremos mais pronto O fidalgo apertoulhe a mão Salvaio Oh sim exclamou Cecília salvaio Sr Álvaro Jurovos D Cecília que só a vontade do céu fará que eu não cumpra a vossa ordem A menina não achou uma palavra para agradecer essa generosa promessa toda a sua alma partiuse num sorriso divino Álvaro inclinouse diante dela foi juntarse aos aventureiros e deulhes ordem de se prepararem para partir Quando o moço entrou na sala então deserta para tomar as suas armas Isabel que já sabia do seu projeto correu a ele pálida e assustada Ides batervos disse ela com a voz trêmula Em que isso vos admira Não nos batemos todos os dias com o inimigo De longe Defendidos pela posição Mas agora é diferente Não vos assusteis Isabel Daqui a uma hora estarei de volta O moço passou a clavina a tiracolo e quis sair Isabel tomoulhe as mãos com um movimento arrebatado seus olhos cintilavam com um fogo estranho suas faces estavam incendiadas de vivo rubor O moço procurou tirar as mãos daquela pressão ardente e apaixonada Isabel disse ele com uma doce exprobração quereis que falte à minha palavra que recue diante de um perigo Não Nunca eu vos pediria semelhante coisa Era preciso que não vos conhecesse e que não vos amasse Mas então deixaime partir Tenho uma graça a suplicarvos De mim Neste momento Sim Neste momento Apesar do que me dizíeis há pouco apesar do vosso heroísmo sei que caminhais a uma morte certa inevitável A voz de Isabel tornouse balbuciante Quem sabe se nos veremos mais neste mundo Isabel disse o moço querendo fugir para evitar a comoção que se apoderava dele Prometestes fazerme a graça que vos pedi Qual Antes de partir antes de me dizer adeus para sempre A moça fitou no cavalheiro um olhar que fascinava Falai Falai Antes de nos separarmos eu vos suplico deixaime uma lembrança vossa Mas uma lembrança que fique dentro de minha alma E a menina caiu de joelhos aos pés de Álvaro ocultando seu rosto que o pudor revoltado em luta com a paixão cobria de um brilhante carmim Álvaro ergueua confusa e vergonhosa do que tinha feito e chegando seus lábios ao ouvido proferiu ou antes murmurou uma frase O semblante de Isabel expandiuse uma auréola de ventura cingiu a sua fronte seu seio dilatouse e respirou com a embriaguez do coração feliz Eu te amo Era a frase que Álvaro deixara cair na sua alma e que a enchia toda como um eflúvio celeste como um canto divino que ressoava nos seus ouvidos e fazia palpitar todas as suas fibras Quando ela saiu deste êxtase o moço tinha saído da sala e uniase aos seus companheiros prontos a marchar Foi nessa ocasião que Cecília chegando imprudentemente à paliçada fez a Peri um aceno que lhe dizia esperasse A pequena coluna partiu comandada por Álvaro e por Aires Gomes que depois de três dias não deixava o seu posto dentro do gabinete do fidalgo Quando os bravos combatentes desapareceram na floresta D Antônio de Mariz recolheuse com sua família para a sala e sentandose na sua poltrona esperou tranqüilamente Não mostrava o menor temor de ser atacado pelos aventureiros revoltados que estavam a alguns passos de distancia apenas e que não deixariam de aproveitar um ensejo tão favorável D Antônio tinha a este respeito uma completa segurança tendo fechado as portas e examinado a escorva de suas pistolas recomendou silêncio a fim de que nenhum rumor lhe escapasse Vigilante e atento o fidalgo refletia ao mesmo tempo sobre o fato que se acabava de passar e que o tinha profundamente impressionado Conhecia Peri e não podia compreender como o índio sempre tão inteligente e tão perspicaz se deixara levar por uma louca esperança a ponto de ir ele só atacar os selvagens A extrema dedicação do índio por sua senhora o desespero da posição em que se achavam podia explicar essa alucinação se o fidalgo não soubesse quanto Peri tinha a calma a força e o sanguefrio que tornam o homem superior a todos os perigos O resultado de suas reflexões foi que havia no procedimento de Peri alguma coisa que não estava clara e que devia explicarse mais tarde Ao passo que ele se entregava a esses pensamentos Álvaro tinha feito uma volta e favorecido pela festa dos selvagens se aproximara sem ser percebido Quando avistou Peri a algumas braças de distancia o velho cacique levantava a tangapema sobre a sua cabeça O moço levou a clavina ao rosto e a bala sibilando foi atravessar o crânio do selvagem IV REVELAÇÃO Apenas Álvaro com a chegada dos seus companheiros viuse livre dos inimigos que o atacavam voltou a Peri que assistia imóvel a toda esta cena Vinde disse o moço com autoridade Não respondeu o índio friamente Tua senhora te chama Peri abaixou a cabeça com uma profunda tristeza Dize à senhora que Peri deve morrer que vai morrer por ela E tu parte porque senão seria tarde Álvaro olhou a fisionomia inteligente do índio para ver se descobria nela algum sinal de perturbação de espírito porque o moço não compreendia nem podia compreender a causa dessa obstinação insensata O rosto de Peri calmo e sereno não lhe deixou ver senão uma resolução firme inabalável tanto mais profunda quanto se mostrava sob uma aparência de sossego e tranqüilidade Assim tu não obedeces à tua senhora Peri custou a arrancar a palavra dos lábios A ninguém Quando pronunciava esta palavra um grito fraco soou ao lado dele voltandose viu a índia que lhe haviam destinado por esposa caindo atravessada por uma flecha O tiro fora destinado a Peri por um dos selvagens e a menina lançandose para cobrir o corpo daquele que amara uma hora recebera a seta no peito Seus olhos negros desmaiados pelas sombras da morte volveram a Peri um último olhar e cerrando tornaram a abrirse já sem vida e sem brilho Peri sentiu um movimento de piedade e simpatia vendo essa vitima de sua dedicação que como ele sacrificava sem hesitar a sua existência para salvar aquele a quem amava Álvaro nem se apercebeu do que acabava de passar lançando um olhar para seus homens que batiamse valentemente com os Aimorés fez um aceno a Aires Gomes Escuta Peri tu sabes se costumo cumprir a minha palavra jurei a Cecília levarte e ou tu me acompanhas ou morreremos todos neste lagar Faze o que quiseres Peri não sairá daqui Vês estes homens são os únicos defensores que restam à tua senhora se todos eles morrem bem sabes que é impossível que ela se salve Peri estremeceu Ficou um momento pensativo depois sem dar tempo a que o seguissem lançouse entre as árvores D Antônio de Mariz e sua família tendo ouvido os tiros de arcabuzes esperavam com ansiedade o resultado da expedição Dez minutos haviam decorrido na maior impaciência quando sentiram tocar na porta e ouviram a voz de Peri Cecília correu e o índio ajoelhouse a seus pés pedindolhe perdão O fidalgo livre do pesar de perder um amigo assumira a sua costumada severidade como sempre que se tratava de uma falta grave Cometeste uma grande imprudência disse ele ao índio fizeste sofrer teus amigos expuseste a vida daqueles que te amam não precisas de outra punição além desta Peri ia salvarte Entregandote nas mãos do inimigo Sim Fazendote matar por eles Matar e Mas qual era o resultado dessa loucura O índio calouse É preciso explicareste para que não julguemos que o amigo inteligente e dedicado de outrora tornouse um louco e um rebelde A palavra era dura e o tom em que foi dita ainda agravava mais a repreensão severa que ela encerrava Peri sentiu uma lágrima umedecerlhe as pálpebras Obrigas Peri a dizer tudo Deves fazêlo se desejas reabilitarte na estima que te votava e que sinto perder Peri vai falar Álvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto da esplanada os seus companheiros já livres de perigo e quites por algumas feridas que não eram felizmente muito graves Cecília apertou as mãos do moço com reconhecimento Isabel envioulhe num olhar toda a sua alma As pessoas presentes se gruparam ao redor da poltrona de D Antônio em face do qual Peri de pé com a cabeça baixa confuso e envergonhado como um criminoso ia justificarse Dirseia que confessava uma ação indigna e vil ninguém adivinhava que sublime heroísmo que concepção gigantesca havia neste ato que todos condenavam como uma loucura Ele começou Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para não tornar a erguêlo chamou Peri e disse Filho de Ararê teu pai vai morrer lembrate que tua carne é a minha carne e o teu sangue e o meu sangue Teu corpo não deve servir ao banquete do inimigo Ararê disse e tirou suas contas de frutos que deu a seu filho estavam cheias de veneno tinham nelas a morte Quando Peri fosse prisioneiro bastava quebrar um fruto e ria do vencedor que não se animaria a tocar no seu corpo Peri viu que a senhora sofria e olhou as suas contas teve uma idéia a herança de Ararê podia salvar a todos Se tu deixasses fazer o que queria quando a noite viesse não acharia um inimigo vivo os brancos e os índios não te ofenderiam mais Toda a família ouvia esta narração com uma surpresa extraordinária compreendiam dela que havia em tudo isto uma arma terrível o veneno mas não podiam saber os meios de que o índio se servira ou pretendia servirse para usar desse agente de destruição Acaba disse D Antônio por que modo contavas então destruir o inimigo Peri envenenou a água que os brancos bebem e o seu corpo que devia servir ao banquete dos Aimorés Um grito de horror acolheu essas palavras ditas pelo índio em um tom simples e natural O plano que Peri combinara para salvar seus amigos acabava de revelarse em toda a sua abnegação sublime e com o cortejo de cenas terríveis e monstruosas que deviam acompanhar a sua realização Confiado nesse veneno que os índios conheciam com o nome de curare e cuja fabricação era um segredo de algumas tribos Peri com a sua inteligência e dedicação descobrira um meio de vencer ele só aos inimigos apesar do seu número e da sua força Sabia a violência e o efeito pronto daquela arma que seu pai lhe confiara na hora da morte sabia que bastava uma pequena parcela desse pó sutil para destruir em algumas horas a organização a mais forte e a mais robusta O índio resolveu pois usar deste poder que na sua mão heróica ia tornarse um instrumento de salvação e o agente de um sacrifício tremendo feito à amizade Dois frutos bastaram um serviu para envenenar a água e as bebidas dos aventureiros revoltados e o outro acompanhouo até o momento do suplício em que passou de suas mãos aos seus lábios Quando o cacique vendoo cobrir o rosto perguntoulhe se tinha medo Peri acabava de envenenar o seu corpo que devia daí a algumas horas ser um germe de morte para todos esses guerreiros bravos e fortes O que porém dava a esse plano um cunho de grandeza e de admiração não era somente o heroísmo do sacrifício era a beleza horrível da concepção era o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos que os submetera à sua vontade fazendoos sucederse naturalmente e caminhar para um desfecho necessário e infalível Porque é preciso notar a menos de um fato extraordinário desses que a previdência humana não pode prevenir Peri quando saiu da casa tinha a certeza de que as coisas se passariam como de fato se passaram Atacando os Aimorés a sua intenção era excitálos à vingança precisava mostrarse forte valente destemido para merecer que os selvagens o tratassem como um inimigo digno de seu ódio Com a sua destreza e com a precaução que tomara tornando o seu corpo impenetrável contava evitar a morte antes de poder realizar o seu projeto quando mesmo caísse ferido tinha tempo de passar o veneno aos lábios A sua previsão porém não o iludiu tendo conseguido o que desejava tendo excitado a raiva dos Aimorés quebrou a sua arma e suplicou a vida ao inimigo foi de todo o sacrifício o que mais lhe custou Mas assim era preciso a vida de Cecília o exigia a morte que o havia respeitado até então podia surpreendêlo e Peri queria ser feito prisioneiro como foi e contava ser O costume dos selvagens de não matar na guerra o inimigo e de cativálo para servir ao festim da vingança era para Peri uma garantia e uma condição favorável à execução do seu projeto Quanto à peripécia final que a intervenção de Álvaro obstara não fora esse incidente imprevisto que seria igualmente infalível Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro toda a tribo devia tomar parte no festim as mulheres moças tocavam apenas na carne do prisioneiro mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado adubado pelo prazer da vingança e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevam no sangue de suas vítimas Peri contava pois com toda a segurança que dentro de algumas horas o corpo envenenado da vitima levaria a morte às entranhas de seus algozes e que ele só destruiria toda uma tribo grande forte poderosa apenas com o auxilio dessa arma silenciosa Podese agora compreender qual tinha sido o seu desespero vendo esse plano inutilizado depois de ter desobedecido à sua senhora depois de haver tudo realizado quando só faltava o desfecho quando o golpe que ia salvar a todos caia mudarse de repente a face das coisas e ver destruída a sua obra filha de tanta meditação Ainda assim quis resistir quis ficar esperando que os Aimorés continuariam o sacrifício mas conheceu que a resolução de Álvaro era inabalável como a sua que ia ser a causa da morte de todos os defensores fiéis de D Antônio sem ter já a certeza de sua salvação No primeiro momento que sucedeu à confissão de Peri todos os atores desta cena pálidos tomados de espanto e de terror com os olhos cravados no índio duvidavam ainda do que tinham ouvido o espírito horrorizado não formulava uma idéia os lábios trêmulos não achavam uma palavra D Antônio foi o primeiro que recobrou a calma no meio da admiração que lhe causava aquela ação heróica e das emoções produzidas por essa idéia ao mesmo tempo sublime e horrível uma circunstância o tinha sobretudo impressionado Os aventureiros iam ser vitimas de envenenamento e por maior que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens pela sua traição a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio Ele os puniria a todos com a morte ou com o desprezo essa outra morte moral mas o castigo na sua opinião elevava a morte à altura de um exemplo enquanto que a vingança a fazia descer ao nível do assassinato Vai Aires Gomes gritou D Antônio ao seu escudeiro corre e previne a esses desgraçados se ainda é tempo V O PAIOL Cecília ouvindo a voz de seu pai estremeceu como se acordasse de um sonho Atravessou o aposento com passo vacilante e chegandose a Peri fitou nele os seus lindos olhos azuis com uma expressão indefinível Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração imensa que lhe causava a ação heróica do índio a dor profunda que sentia pela sua perda e uma exprobração doce por não ter ele ouvido as suas súplicas O índio nem se animava a levantar os olhos para sua senhora não tendo realizado o seu desejo considerava agora tudo quanto fizera como uma loucura Sentiase criminoso e de toda a sua ação heróica e sublime para os outros só lhe restava o pesar de ter ofendido Cecília e de lhe haver causado inutilmente um desgosto Peri disse a menina com desespero por que não fizeste o que tua senhora te pedia O índio não sabia o que responder temia ter perdido a afeição de Cecília e essa idéia martirizava os últimos momentos que lhe restavam a viver Cecília não te disse continuou a menina soluçando que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida Peri já te pediu que perdoasses murmurou o índio Oh Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a tua senhora Mas ela te perdoa Ah exclamou Peri cuja fisionomia iluminouse Sim Cecília te perdoa tudo que sofreu e tudo que vai sofrer Mas será por pouco tempo A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação conhecia que não havia mais esperança de salvação e esta idéia quase a consolava Não pôde acabar porém a palavra ficoulhe presa aos lábios trêmula convulsa seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento de terror e de espanto A fisionomia do índio se tinha decomposto seus traços nobres alterados por contrações violentas o rosto encovado os lábios roxos os dentes que se entrechocavam os cabelos eriçados davamlhe um aspecto medonho O veneno gritaram os espectadores dessa cena horrorizados Cecília fez um esforço extraordinário e lançandose para o índio procurou reanimálo Peri Peri balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo Peri vai te deixar para sempre senhora Não Não exclamou a menina fora de si Não quero que tu nos deixes Oh tu és mau muito mau Se estimasses tua senhora não a abandonarias assim As lágrimas orvalhavam as faces da menina que no seu desespero não sabia o que dizia Eram palavras entrecortadas sem sentido mas que revelavam a sua angústia Tu queres que Peri viva senhora disse o índio com a voz comovida Sim respondeu a menina suplicante Quero que tu vivas Peri viverá O índio fez um esforço supremo e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos dirigiuse à porta e desapareceu Todas as pessoas presentes o acompanharam com os olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo A última palavra que ele proferira tinha um momento restituído a esperança a D Antônio de Mariz mas quase logo a dúvida apoderouse do seu espírito julgou que o índio se iludia Cecília porém tinha mais do que uma esperança tinha quase uma certeza de que Peri não se enganara a promessa de seu amigo lhe inspirava uma confiança profunda Nunca Peri lhe havia dito uma coisa que se não realizasse o que parecia impossível aos outros tornavase fácil para sua vontade firme e inabalável para o poder sobrehumano de que a força e a inteligência o revestia Quando D Antônio de Mariz e sua família se recolheram tristemente impressionados Álvaro de pé na porta do gabinete fez um gesto de espanto ao fidalgo e apontoulhe para o oratório A parede do fundo prestes a tombar oscilava sobre a sua base como uma árvore balançada pelo vento D Antônio sorriu e ordenando à sua família que entrasse no gabinete tirou a pistola da cinta armoua e esperou na porta ao lado de Álvaro No mesmo instante ouviuse um grande estrondo e no meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruínas seis homens precipitaramse na sala Loredano foi o primeiro apenas tocou o chão ergueuse com extraordinária rapidez e seguido pelos seus companheiros caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a família Recuaram porém lívidos e trêmulos horrorizados diante da cena muda e terrível que se apresentava aos seus olhos espantados No meio do aposento viase um desses grandes vasos de barro vidrado feitos pelos índios e que continha pelo menos uma arroba de pólvora De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia perderse no fundo do paiol onde se achavam enterradas todas as munições de guerra do fidalgo Duas pistolas a de D Antônio de Mariz e a de Álvaro esperavam um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca ao vulcão D Lauriana Cecília e Isabel de joelhos oravam julgando a cada momento ver confundiremse no turbilhão todos os espectadores dessa cena Era esta a arma terrível de que falara há pouco D Antônio quando dizia à Álvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar todos os seus inimigos O moço compreendeu então a razão por que o fidalgo o tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Peri julgandose bastante forte para defender ele só a sua família Quanto aos aventureiros lembraramse do juramento solene de D Antônio de Mariz o fidalgo os tinha a todos fechados na sua mão e bastava apertar essa mão para esmagálos como um torrão de argila Lançando um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quiseram fugir mas não tiveram animo de dar um passo e ficaram como pregados ao solo Ouviuse então um rumor de vozes da parte de fora e Aires Gomes seguido pelos aventureiros apresentouse à porta da sala Loredano conheceu que desta vez estava irremediavelmente perdido e assentou de vender caro a sua vida mas a desgraça pesava sobre ele Dois dos seus companheiros caíram a seus pés estorcendose em convulsões horríveis e soltando gritos que metiam dó e compaixão A princípio ninguém compreendeu a causa dessa morte súbita e violenta mas a lembraça do veneno de Peri acudiu logo à memória de alguns e explicou tudo Os aventureiros que chegavam guiados por Aires Gomes apoderaramse de Loredano e foram ajoelharse confusos e envergonhados aos pés de D Antônio de Mariz pedindolhe o perdão de sua falta O fidalgo tinha assistido a todos esses acontecimentos que se sucediam tão rapidamente sem deixar a sua primeira posição dirseia que sobre essas paixões humanas que se debatiam a seus pés ele plainava como um gênio prestes a vibrar o raio celeste A vossa falta é daquelas que não se perdoam disse D Antônio mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer todas as ofensas Levantaivos e preparemonos todos para morrer como cristãos Os aventureiros ergueramse e arrastando Loredano para fora da sala retiraramse para o alpendre com a consciência aliviada de um grande peso A família pôde então depois de tantas emoções gozar um pouco de sossego e repouso apesar da posição desesperada em que se achavam a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre de esperança Só D Antônio de Mariz não se iludia e desde aquela manhã tinha conhecido que quando os Aimorés não o vencessem pelas armas o venceriam pela fome Todos os viveres estavam consumidos e só uma sortida vigorosa podia salvar a família desse martírio que a ameaçava martírio muito mais cruel do que uma morte violenta O fidalgo resolveu esgotar os últimos recursos antes de confessarse vencido queria morrer com a consciência tranqüila de haver cumprido o seu dever e de haver feito o que fosse humanamente possível Chamou Álvaro e entretevese com o moço durante algum tempo em voz baixa concertavam um meio de realizar essa idéia de que dependia toda a esperança de salvação Ao mesmo tempo que isto se passava os aventureiros reunidos em conselho julgavam a Frei Ângelo di Luca e o condenavam por um voto unânime Proferida a sentença apresentaramse diversas opiniões sobre o suplício que devia ser infligido ao culpado cada um lembrava o gênero de morte o mais cruel porém a opinião geral adotou a fogueira como o castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges Fincaram no meio do terreiro um alto poste e o cercaram com uma grande pilha de madeira e outros combustíveis depois sobre essa pira ligaram o frade que sofria todos os insultos e todas as injúrias sem proferir uma palavra Uma espécie de atonia se apoderara do italiano desde o momento em que os aventureiros o haviam arrastado da sala de D Antônio de Mariz ele tinha a consciência do seu crime e a certeza de sua condenação Entretanto na ocasião em que o atavam à fogueira um incidente despertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela idéia da morte e pela convicção de que não podia escapar a ela Um dos aventureiros um dos cinco cúmplices da última conspiração chegouse a Loredano e tirandolhe a cinta que prendia o seu gibão mostroua aos seus companheiros O italiano vendose separado do seu tesouro sentiu uma dor muito mais forte do que a que ia sofrer na fogueira para ele não havia suplício não havia martírio que igualasse a este O que o consolava na sua última hora era a idéia de que esse segredo que possuía e do qual não pudera utilizarse ia morrer com ele e ficaria perdido para todos que ninguém gozaria do tesouro que lhe escapava Por isso apenas o aventureiro tiroulhe a cinta onde guardava o roteiro soltou um rugido de cólera e de raiva impotente seus olhos injetaramse de sangue e seus membros crispandose feriramse contra as cordas que os ligavam ao poste Era horrível de ver nesse momento seu aspecto tinha a expressão brutal e feroz de um hidrófobo seus lábios espumavam silvando como a serpente e seus dentes ameaçavam de longe os seus algozes como as presas do jaguar Os aventureiros riramse do desespero do frade por ver roubaremlhe o seu precioso tesouro e divertiramse em aumentarlhe o suplício prometendo que apenas livres dos Aimorés fariam uma expedição às minas de prata A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou a cinta ao corpo e disselhe sorrindo Bem sabeis o provérbio O bocado não é para quem o faz VI TRÉGUA Eram oito horas da noite Os aventureiros sentados no terreiro em roda de um pequeno fogo esperavam tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados à magra ceia A penaria tinha sucedido à abundância de outrora privados da caça sua alimentação ordinária estavam reduzidos a simples vegetais Os seus vinhos e as bebidas fermentadas de que faziam largas libações tinham sido envenenados por Peri e foram pois obrigados a deitálos fora muito felizes ainda por não terem sido vitimas deles Loredano fechando a porta da despensa é que os tinha salvado apenas dois dos aventureiros que o haviam acompanhado tinham tocado nessas bebidas e por isso poucas horas depois caíram mortos como vimos na ocasião em que iam atacar D Antônio de Mariz Não eram porém essas cenas de lato e a situação critica em que se achavam que infundiam nesses homens sempre alegres e tão galhofeiros aquela tristeza que não lhes era habitual Morrer com as armas na mão batendose contra o inimigo era para eles uma coisa natural uma idéia a que a sua vida de aventuras e de perigos os tinha afeito O que realmente os entristecia era não terem uma boa ceia e um canjirão de vinho diante de si era o seu estômago que se contraia por falta de alimento e que tiravalhes toda a disposição de rir e de folgar A chama avermelhada da fogueira às vezes oscilava ao sopro do vento e estendendose pelo terreiro ia iluminar a alguma distância com o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pira de lenha Os aventureiros tinham resolvido demorar o suplício e dar tempo a que o frade se arrepende se dos seus crimes e se decidisse a morrer como cristão humilde e penitente por isso deixaramlhe a noite para refletir Talvez entrasse também nessa resolução um requinte de maldade e de vingança julgando o italiano a verdadeira causa da posição em que estavam colocados os seus companheiros o odiavam e queriam prolongar o seu sofrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito Assim de vez em quando algum deles se erguia e chegandose ao frade exprobravalhe a sua perversidade e cobriao de impropérios e de injúrias Loredano estorciase de raiva mas não proferia uma palavra porque os seus algozes o tinham ameaçado de cortarlhe a língua Aires Gomes veio chamar os aventureiros da parte de D Antônio de Mariz todos se apressaram em obedecer e pouco depois entraram na sala onde estava toda a família Tratavase de uma sortida com o fim de procurar víveres que pudessem alimentar os habitantes da casa até que D Diogo tivesse tempo de chegar com o socorro que tinha ido procurar D Antônio de Mariz reservava dez homens para defenderse os outros partiriam com Álvaro se fossem felizes havia ainda uma esperança de salvação de fossem malsucedidos uns e outros os que fossem e os que ficassem morreriam como cristãos e portugueses Imediatamente a expedição preparouse a favorecida pelo silêncio da noite partiu e internose pela floresta devia afastarse sem ser percebida pelos Aimorés e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla provisão de alimentos Durante a primeira hora que sucedeu à partida todos os que ficaram com o ouvido atento escutaram temendo ouvir a cada momento o estrondo de tiros que anunciasse um combate entre os aventureiros e os índios Tudo conservouse em silêncio e uma esperança bem que vaga e tênue veio pousar nesses corações quebrados por tantos sofrimentos e tantas angústias A noite passouse tranqüilamente nada indicava que a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrível como os Aimorés D Antônio admiravase que os selvagens depois do ataque da manhã se conservassem tranqüilos no seu campo e não tivessem investido a habitação uma só vez Passoulhe pelo espírito a idéia de que se tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principais guerreiros mas ele conhecia de há muito o espírito vingativo e a tenacidade dessa raça para admitir semelhante suposição Cecília recostouse num sofá e alquebrada de fadiga conseguiu adormecer apesar das idéias tristes e das inquietações que a agitavam Isabel com o coração cerrado por um terrível pressentimento lembravase de Álvaro e acompanhavao de longe na sua perigosa expedição misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor Assim passouse esta noite a primeira depois de três dias em que a família de D Antônio de Mariz pôde gozar alguns momentos de sossego De vez em quando o fidalgo chegando à janela via ao longe perto do rio brilharem os fogos do campo dos Aimorés mas uma calma profunda reinava em toda aquela planície Nem mesmo se ouvia o eco enfraquecido de uma dessas cantigas monótonas com que os selvagens costumam à noite acompanhar o embalançar de sua rede de palha apenas o sussurrar do vento nas folhas a queda da água sobre as pedras e o grito do oitibó Contemplando a solidão o fidalgo insensivelmente voltava a essa esperança que há pouco sorrira e que o seu espírito tinha repelido como uma simples ilusão Tudo com efeito parecia indicar que os selvagens haviam abandonado o seu campo deixando nele apenas os fogos que haviam servido para esclarecer os seus preparativos de partida Para quem conhecia como D Antônio os costumes desses povos bárbaros para quem sabia quanto era ativa agitada ruidosa esta existência nômada o silêncio em que estava sepultada a margem do rio era um sinal certo de que os Aimorés já ali não estavam Contudo o fidalgo demasiadamente prudente para se fiar em aparências recomendara aos seus homens que redobrassem de vigilância para evitar alguma surpresa Talvez que aquele sossego e aquela serenidade fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludiam as grandes tempestades e durante as quais os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem nessa luta espantosa que tem por campo de batalha o espaço e o infinito As horas correram silenciosamente a viuvinha cantou pela primeira vez e a luz branca da alvorada veio empalidecer as sombras da noite Pouco e pouco o dia foi rompendo o arrebol da manhã desenhouse no horizonte tingindo as nuvens com todas as cores do prisma O primeiro raio do sol desprendendose daqueles vapores tênues e diáfanos deslizou pelo azul do céu e foi brincar no cabeço dos montes O astro assomou e torrentes de luz inundaram toda a floresta que nadava num mar de ouro marchetado de brilhantes que cintilavam em cada uma das gotas do orvalho suspensas às folhas das árvores Os habitantes da casa despertando admiravam esse espetáculo magnífico do nascer do dia que depois de tantas tribulações e de tantas angústias lhes parecia completamente novo Uma noite de quietação e sossego os tinha como que restituído à vida nunca esses campos verdes esse rio puro e límpido essas árvores florescentes esses horizontes descortinados se haviam mostrado a seus olhos tão belos tão risonhos como agora É que o prazer e o sofrimento não passam de um contraste em lata perpétua e continua eles se acrisolam um no outro e se deparam não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça Cecília com a frescura da manhã tinhase expandido como uma flor do campo suas faces coloriramse de novo como se um raio do sol beijandoas lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado os olhos brilharam e os lábios entreabrindose para aspirarem o ar puro e embalsamado da manhã arquearamse graciosamente quase sorrindo A esperança esse anjo invisível essa doce amiga dos que sofrem tinha vindo pousar no seu coração e murmuravalhe ao ouvido palavras confusas cantos misteriosos que ela não compreendia mas que a consolavam e vertiam em sua alma um bálsamo suave Sentiase em todas as pessoas de casa um quer que seja uma animação um começo de bemestar que revelava uma grande transformação operada na situação da véspera era mais do que a esperança menos do que a seguridade Só Isabel não partilhava essa impressão geral como sua prima ela também viera contemplar o raiar do dia mas fora para interrogar a natureza e perguntar ao sol à luz ao céu se as lúgubres imagens que tinham passado e repassado na sua longa vigília eram uma realidade ou uma visão E uma coisa singular Esse sol tão brilhante essa luz esplêndida esse céu azul que aos outros reanimara e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento pareceulhe ao contrário uma amarga ironia Comparou a cena radiante que se apresentava aos seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma enquanto a natureza sorria o seu coração chorava No meio dessa festa esplêndida do nascer do dia a sua dor só isolada não achava uma simpatia e repelida pela criação voltava a recalcarse em seu seio A moça recostou a cabeça sobre o ombro de sua prima e escondeu ai o rosto para não perturbar a doce serenidade que se expandia no semblante de Cecília Entretanto D Antônio tinha tratado de averiguar se as suas suspeitas da véspera eram reais certificouse de que os selvagens haviam abandonado o campo Aires Gomes acompanhado de mestre Nunes chegou mesmo a sair da casa e aproximarse com todas as cautelas do lugar onde na véspera os Aimorés festejavam o sacrifício de Peri Tudo estava deserto não se viam mais no campo os vasos de barro as peças de caça suspensas aos galhos da árvore e as redes grosseiras que indicavam a alta de uma horda selvagem Não havia já dúvidas os Aimorés tinham partido desde a véspera à noite depois de enterrarem os seus mortos O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo que recebeua menos favoravelmente do que se devia supor ignorava a causa e o fim dessa partida repentina e desconfiava dela Não há que admirar nisto D Antônio era um homem prudente e avisado a sua experiência de quarenta anos o tinha tornado suspeitoso por coisa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrarse VII PELEJA Quando a família de D Antônio de Mariz gozava dos primeiros momentos de tranqüilidade que sucediam a tantas aflições soou um grito na escada de pedra Cecília levantouse estremecendo de alegria e felicidade tinha reconhecido a voz de Peri No momento em que ia correr ao encontro do seu amigo mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça e Peri chegava à porta da sala D Antônio de Mariz sua mulher e sua filha ficaram mudos de espanto e terror Isabel caiu fulminada como se a vida lhe faltasse de repente Peri trazia nos seus ombros o corpo inanimado de Álvaro e no rosto uma expressão de tristeza profunda Atravessando a sala depôs sobre o sofá o seu fardo precioso e olhando o rosto lívido daquele que fora seu amigo enxugou uma lágrima que lhe corria pela face Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silêncio solene que envolvia aquela cena lúgubre os aventureiros que haviam acompanhado Peri quando passara no meio deles correndo pararam na porta tomados de compaixão e respeito por aquela desgraça Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri salvo seus olhos apesar dos sofrimentos passados ainda tinham lágrimas para chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar Quanto a D Antônio de Mariz sua dor era de um pai que havia perdido um filho era a dor muda e concentrada que abala as organizações fortes sem contudo abatêlas Depois dessa primeira comoção produzida pela chegada de Peri o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a narração breve dos acontecimentos cuja peripécia tinha diante dos olhos Eis o que havia passado Partindo na véspera no momento em que começava a sentir os primeiros efeitos do veneno terrível que tomara Peri ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecília Ia procurar a vida em um contraveneno infalível cuja existência só era conhecida pelos velhos pajés da tribo e pelas mulheres que os auxiliavam nas suas preparações medicinais Sua mãe quando ele partira para a primeira guerra lhe tinha revelado esse segredo que devia salválo de uma morte certa no caso de ser ferido por alguma seta ervada Vendo o desespero de sua senhora o índio sentiuse com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a ganharlhe o corpo e ir ao fundo da floresta e procurar essa erva poderosa que devia restituirlhe a saúde o vigor e a existência Contudo quando atravessava a mata parecialhe às vezes que já era tarde que não chegaria a tempo então tinha medo de morrer longe de sua senhora sem poder volver para ela o seu último olhar Arrependiase quase de ter partido de casa e não deixarse ficar aos pés de Cecília até exalar o seu último suspiro mas lembravase que a menina o esperava lembravase que ela ainda precisava de sua vida e criava novas forças Peri entranhouse no mais basto e sombrio da floresta e aí na sombra e no silêncio passouse entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem dessa vida primitiva cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada O dia declinou veio a tarde depois a noite e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário nem um rumor revelara o que ai se passou Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte as folhas se abriram e Peri exausto de forças vacilante emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade saiu do seu retiro Mal se podia suster e para caminhar era obrigado a sustentarse aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem assim adiantouse pela floresta e colheu alguns frutos que lhe restabeleceram um tanto as forças Chegando à beira do rio Peri já sentiu o vigor que voltava e o calor que começava a animarlhe o corpo entorpecido atirouse à água e mergulhou Quando voltou à margem era outro homem uma reação se havia operado seus membros tinham adquirido a elasticidade natural o sangue girava livremente nas veias Então tratou de recuperar as forças que havia perdido e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno O sol tinha raiado havia horas Peri acabada a sua refeição caminhava pensativo quando ouviu uma descarga de armas de fogo cujo estrondo reboou pelo âmbito da floresta Lançouse na direção dos tiros e a pouca distancia num claro da mata decobriu um espetáculo grandioso Álvaro e os seus nove companheiros divididos em duas colunas de cinco homens com as costas apoiadas às costas uns dos outros estavam cercados por mais de cem Aimorés que se precipitavam sobre eles com um furor selvagem Mas as ondas dessa torrente de bárbaros que soltavam bramidos espantosos iam quebrarse contra essa pequena coluna que não parecia de homens mas de aço as espadas jogavam com tanta velocidade que a tornavam impenetrável no raio de uma braça o inimigo que se adiantava caia morto Havia uma hora que durava esse combate começado com armas de fogo mas os Aimorés atacavam com tanta fúria que breve tinham chegado a luta corpo a corpo e à arma branca No momento em que Peri assomava à margem da clareira um incidente veio modificar a face do combate O aventureiro que dava as costas a Álvaro levado pelo ardor da peleja adiantouse alguns passos para ferir um inimigo os selvagens o envolveram deixando a coluna interrompida e Álvaro sem defesa Entretanto o valente cavalheiro continuava a fazer prodígios de valor e de coragem cada volta que descrevia sua espada era um inimigo de menos uma vida que se extinguia a seus pés num rio de sangue Os selvagens redobravam de furor contra ele e cada vez o seu braço ágil moviase com mais segurança e mais certeza fazendo jogar como um raio a lamina de aço que mal se via brilhar nas suas rápidas evoluções Desde porém que os Aimorés viram o moço sem defesa pelas costas e exposto aos seus golpes concentraramse nesse ponto um deles adiantandose ergueu com as duas mãos a pesada tangapema e atiroua ao alto da cabeça de Álvaro O moço caiu mas na sua queda a espada descreveu ainda um semicírculo e abateu o inimigo que o tinha ferido à traição a dor violenta dera a esse último golpe uma força sobrenatural Quando os índios iam precipitarse sobre o cavalheiro Peri saltou no meio deles e agarrando a espingarda que estava a seus pés fez dela uma arma terrível uma clava formidável cujo poder em breve sentiram os Aimorés Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos o índio tomou Álvaro nos seus ombros e abrindo caminho com a sua arma temível lançouse pela floresta e desapareceu Alguns o seguiram mas Peri voltouse e fêlos arrependerse de sua ousadia livrandose do peso que levava carregou a espingarda com as munições que Álvaro trazia e mandou uma bala àquele que o perseguia mais de perto os outros que já o conheciam pelo combate da véspera retrocederam A idéia de Peri era salvar Álvaro não só pela amizade que lhe tinha como por causa de Cecília que ele supunha amar o cavalheiro vendo porém que o corpo continuava inanimado acreditou que Álvaro estava morto Apesar disto não desistiu do seu propósito morto ou vivo devia leválo àqueles que o amavam ou para o restituírem à vida ou para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida Quando Peri acabou a sua narração o fidalgo comovido chegouse à beira do sofá e apertando a mão gelada e fria do cavalheiro disse Até logo bravo e valente amigo até logo A nossa separação é de poucos instantes breve nos reuniremos na mansão dos justos onde deveis estar e onde espero que Deus me concederá a graça de entrar Cecília deu à memória do moço as ultimas lágrimas e ajoelhando aos pés do moribundo com sua mãe dirigiu ao céu uma prece ardente D Lauriana tinha esgotado todos os recursos dessa medicina doméstica que no interior das casas substituía a falta dos homens profissionais muito raros naquela época e sobretudo longe das cidades o moço não deu porém o menor sinal de vida D Antônio de Mariz que compreendera perfeitamente o que devia esperar da pretendida retirada dos Aimorés mandou que os seus homens se preparassem para a defesa não que tivesse a menor esperança mas porque desejava resistir ate o último momento Peri depois de ter respondido a todas as perguntas de Cecília a respeito do modo por que se havia salvado do veneno saiu da sala e percorreu a esplanada observando os arredores O índio infatigável sempre que se tratava de sua senhora apenas acabava de uma empresa gigantesca como a que o tinha levado ao campo dos Aimorés cuidava já em combinar outro projeto para salvar Cecília Depois do seu exame estratégico entrou no quarto que havia abandonado na antevéspera e no qual encontrou ainda as suas armas do mesmo modo que as tinha deixado Lembrouse do pedido que fizera a Álvaro da contradição do destino que lhe restituía a vida a ele um homem três vezes morto e roubavaa ao cavalheiro a quem ele havia deixado são e salvo VIII NOIVA Uma hora depois dos acontecimentos que acabamos de narrar Peri recostado à janela do quarto que tinha pertencido a sua senhora olhava com uma grande atenção para uma árvore que se elevava a algumas braças de distancia Seu olhar parecia estudar as curvas dos galhos retorcidos medindolhes a distancia a altura e o tamanho como se disso dependesse a solução de uma grande dificuldade com que lutava o seu espírito No momento em que estava todo entregue a esse exame minucioso o índio sentiu uma mão tímida e delicada tocarlhe de leve no ombro Voltouse era Isabel que estava junto dele e que se havia aproximado como uma sombra sem fazer o menor rumor Uma palidez mortal cobria as feições da moça que apenas sala do seu desmaio mas o rosto tinha uma calma ou antes uma imobilidade que assustava Voltando a si Isabel correu um olhar pelo aposento como para certificarse de que não era um sonho o que havia passado A sala estava deserta D Antônio de Mariz tinha saído para dar as suas ordens sua mulher ajoelhada no oratório sobre um montão de ruínas rezava ao pé de uma cruz que ficara junto ao altar No fundo do aposento sobre o sofá destacavase o vulto imóvel do cavalheiro aos pés do qual ardia uma vela de cera lançando pálidos clarões Cecília é que estava perto dele e apertava no seio a sua cabeça desfalecida procurando reanimálo Quando o olhar de Isabel caiu sobre o corpo de seu amante ela ergueuse como impelida por uma força sobrenatural atravessou rapidamente a sala e foi por sua vez ajoelharse em face desse leito mortuário Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava era para embeberse na contemplação desse rosto lívido e gelado desses lábios frios desses olhos extintos que ela amava apesar da morte Cecília respeitou a dor de sua prima e por um instinto de delicadeza que só possuem as mulheres compreendeu que o amor mesmo em face de um cadáver tem o seu pudor e a sua castidade saiu para deixar que Isabel chorasse livremente Passado algum tempo depois da saída de Cecília a moça ergueuse percorreu automaticamente a casa e vendo Peri de longe aproximouse dele e tocoulhe no ombro O índio e a moça se odiavam desde o primeiro dia em que se tinham visto em Isabel era o ódio de uma raça que a rebaixava a seus próprios olhos em Peri era essa repugnância natural que sente o homem por aqueles em quem reconhece um inimigo Por isso Peri vendo Isabel junto dele ficou extremamente admirado sobretudo quando reparou no gesto suplicante que a moça lhe dirigia como se esperasse dele uma graça Peri O índio sentiuse comovido ao aspecto daquele sofrimento e pela primeira vez na sua vida dirigiu a palavra a Isabel Precisas de Peri disse ele Vinha pedirte um serviço Não mo negarás sim balbuciou a moça Fala se for coisa que Peri possa fazer ele não te negará Prometes então exclamou Isabel cujos olhos brilharam com uma expressão de alegria Sim Peri te promete Vem Dizendo essa palavra a mova fez um gesto ao índio e dirigiuse acompanhada por ele à sala que ainda estava deserta como tinha deixado Parou junto do sofá e apontando para o corpo inanimado de seu amante acenou a Peri que o tomasse nos seus braços O índio obedeceu e acompanhou Isabel até um gabinete retirado a um lado da casa ai deitou o seu fardo sobre um leito cujas cortinas a moça entreabriu corando como uma noiva Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o quarto em que habitara e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu amor porque o leito que recebia seu amante era o seu leito de virgem casta e pura porque ela era realmente uma noiva do túmulo Peri tendo satisfeito o desejo da moça retirouse e voltou ao seu trabalho que ele prosseguia com uma constância infatigável Apenas ficou só Isabel sorriu mas o seu sorriso tinha um quer que seja do êxtase da dor da voluptuosidade do sofrimento que faz sorrir na sua última hora os mártires e os desgraçados Tirou do seio a redoma de vidro onde guardava os cabelos de sua mãe e fitou nela um olhar ardente mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinível Tinha mudado de resolução o segredo que encerrava essa jóia o pó sutil que empenava a face interior do cristal a morte que sua mãe lhe confiara não a satisfazia era muito rápida quase instantânea Saiu então furtivamente e acendeu uma vela de cera que havia sobre a cômoda ao lado de um crucifixo de marfim depois fechou a porta cerrou as janelas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia penetrar O gabinete ficou às escuras apenas em torno do círio que ardia uma auréola pálida se destacava no meio das trevas e iluminava a imagem do Cristo A moça ajoelhou e fez uma oração breve pedia a Deus uma última graça pedia a eternidade e a ventura do seu amor que tinha passado tão rápido pela terra Acabando a prece tomou a luz deitoua na cabeceira do leito afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com enlevo Álvaro parecia adormecido apenas sua bela fisionomia não tinha a menor alteração a morte imprimindo nos seus traços a descor da cera e do mármore havia unicamente imobilizado a expressão e feito do gentil cavalheiro uma bela estátua Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação para chegarse de novo à cômoda onde se viam algumas conchas de mariscos tintas de nácar que se apanham nas nossas praias e uma cesta de palha matizada Esta cesta continha todas as resinas aromáticas todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra o anime da aroeira as pérolas do benjoim as lágrimas cristalizadas da embaíba e gotas do bálsamo esse sândalo do Brasil A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes e acendeu algumas bagas de benjoim o óleo de que estavam impregnadas alimentando a chama comunicoua às outras resinas Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes embriagadores se elevaram da caçoula em grossas espirais e encheram o gabinete de nuvens transparentes que oscilavam à luz pálida do círio Isabel sentada à beira do leito com as mãos do seu amante nas suas e com os olhos embebidos naquela imagem querida balbuciava frases entrecortadas confidências intimas sons inarticulados que são a linguagem verdadeira do coração Às vezes sonhava que Álvaro ainda vivia que lhe murmurava ao ouvido a confissão do seu amor e ela falavalhe como se seu amante a ouvisse contavalhe os segredos de sua paixão vertia toda a sua alma nas palavras que caiam dos lábios Sua mão delicada afastava os cabelos do moço descobria sua fronte animava a sua face gelada e rogava aqueles lábios frios e mudos como pedindolhe um sorriso Por que não me falas murmurava ela docemente não conheces tua Isabel Dize outra vez que me amas Dize sempre essa palavra para que minha alma não duvide da felicidade Eu te suplico E com o ouvido atento com os lábios entreabertos o seio palpitante ela esperava o som dessa voz querida e o eco dessa primeira e última palavra de seu triste amor Mas o silêncio só lhe respondia seu peito aspirava apenas as ondas dos perfumes inebriantes que faziam circular nas suas veias uma chama ardente O aposento apresentava então um aspecto fantástico no fundo escuro desenhavase um circulo esclarecido envolto por uma névoa espessa Nessa esfera luminosa como no meio de uma visão surgiam Álvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante a quem continuava a falar como se ele a escutasse A menina começava a sentir a respiração faltarlhe seu seio opresso sufocavaa e entretanto uma voluptuosidade inexprimível a embriagava um gozo imensa havia nessa asfixia de perfumes que se condensavam e rarefaziam no ar Louca perdida alucinada ela ergueuse seu seio dilatouse e sua boca entreabrindose colouse aos lábios frios e gelados de seu amante era o seu primeiro e último beijo o seu beijo de noiva Foi uma agonia lenta um pesadelo horrível em que a dor lutava com o gozo em que as sensações tinham um requinte de prazer e de sofrimento ao mesmo tempo em que a morte torturando o corpo vertia na alma eflúvios celestes De repente pareceu a Isabel que os lábios de Álvaro se agitavam que um tênue suspiro se exalava de seu peito ainda há pouco insensível como o mármore Julgou que se iludia mas não Álvaro estava vivo realmente vivo suas mãos apertavam as dela convulsamente seus olhos brilhando com um fogo estranho se tinham fitado no rosto da moça um sopro reanimou seus lábios que exalaram uma palavra quase imperceptível Isabel A moça soltou um grito débil de alegria de espanto de medo entre as idéias confusas que se agitavam na sua cabeça desvairada lembrouse com horror que era ela quem matava seu amante quem o ia sacrificar por causa de um engano fatal Fazendo um esforço extraordinário conseguiu erguer a cabeça e ia precipitarse para a janela abrila e dar entrada ao ar livre sabia que a sua morte era inevitável mas salvaria Álvaro No momento porém em que se levantava sentiu as mãos do moço que apertavam as suas e a obrigavam a reclinarse sobre o leito seus olhos encontraram de novo os olhos de seu amante Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heróico sacrifício deixou cair a cabeça desfalecida e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo em que essas duas almas irmãs confundindose numa só voaram ao céu e foram abrigarse no seio do Criador As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original impossível de descrever Por volta de duas horas da tarde a porta do gabinete impelida por um choque violento abriuse e um turbilhão de fumo lançouse por essa aberta e quase sufocou as pessoas que ai estavam Eram Cecília e Peri A menina inquieta pela longa ausência de sua prima soube de Peri que ela estava no seu quarto mas o índio ocultou parte da verdade e não disse onde deitara o corpo de Álvaro Duas vezes Cecília viera até à porta escutara e nada ouvira por fim resolveuse a bater a falar a Isabel e não teve a menor resposta Chamou Peri e contoulhe o que se passava o índio tomado de um pressentimento meteu o ombro à porta e abriua Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do aposento Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos A menina recuou e respeitando esse mistério de um amor profundo fez um gesto a Peri e retirouse O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua senhora Ela morreu feliz disse Peri Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis e corou IX O CASTIGO O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estenderse sobre o verdenegro da floresta D Antônio de Mariz apoiado ao umbral da porta junto de sua mulher passava o braço pela cintura de Cecília O sol a esconderse iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro majestoso que lhe servia de baixorelevo O fidalgo Cecília e sua mãe com os olhos no horizonte recebiam esse último raio de despedida e mandavam o adeus extremo à luz do dia as montanhas que os cercavam as árvores aos campos ao rio a toda a natureza Para eles esse sol era a imagem de sua vida o ocaso era a sua hora derradeira e as sombras da eternidade se estendiam já como as sombras da noite Os Aimorés tinham voltado depois do combate em que os aventureiros venderam caro a sua vida e cada vez mais sequiosos de vingança esperavam que anoitecesse para assaltar a casa Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento tinham tratado de destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos Isto era fácil além da escada de pedra o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados e só a árvore que lançava os galhos sobre a cabana de Peri oferecia um ponto de comunicação praticável para quem tivesse a agilidade e a força do índio Os selvagens que não queriam que lhes escapasse um só inimigo e ainda menos que esse fosse Peri abateram a árvore e cortaram assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo no momento do ataque Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do óleo Peri estremeceu e saltando sobre a sua clavina ia despedaçar a cabeça do selvagem mas sorriuse e encostou tranqüilamente a arma à parede Sem inquietarse com a destruição que faziam os Aimorés continuou no seu trabalho interrompido e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana Ele tinha o seu plano e para realizálo começara por cortar as duas palmeiras e trazêlas para o quarto de Cecília depois rachou uma das árvores e durante toda a manhã ocupouse em torcer essa longa corda a que dava uma extraordinária importância Quando Peri terminava a sua obra ouviu o baque da árvore que tombava sobre o rochedo chegouse de novo à janela e seu rosto exprimiu uma satisfação imensa O óleo cortado pela raiz deitarase sobre o precipício elevando a uma grande altura os seus galhos seculares mais frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta Os Aimorés tranqüilos por esse lado continuaram nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas da noite Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra Peri dirigiuse à sala Aires Gomes sempre infatigável guardava a porta do gabinete D Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar e Cecília sentada sobre seus joelhos recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava Bebe minha Cecília dizia o fidalgo é um cordial que te fará muito bem De que serve meu pai Por uma hora se tanto nos resta viver não vale a pena respondia a menina sorrindo tristemente Tu te enganas Ainda não estamos de todo perdidos Tendes alguma esperança perguntou ela incrédula Sim tenho uma esperança e esta não me iludirá respondeu D Antônio com um acento profundo Qual Dizeime És curiosa replicou o fidalgo sorrindo Pois só te direi se fizeres o que te peço Quereis que beta essa taça Sim Cecília tomou a taça das mãos de seu pai e depois de beber volveu para ele o seu olhar interrogador A esperança que eu tenho minha filha é que nenhum inimigo passara nunca do limiar daquela porta podes crer na palavra de teu pai e dormir tranqüila Deus vela sobre nos Beijando a fronte pura da menina ele ergueuse tomoua nos seus braços e recostandoa sobre a poltrona em que estivera sentado saiu do gabinete e foi examinar o que se passava fora da casa Peri que tinha assistido a esse diálogo entre o pai e a filha estava ocupado em procurar no gabinete vários objetos de que tinha necessidade aparentemente Logo que achou quanto desejava o índio encaminhouse para a porta Onde vais disse Cecília que tinha acompanhado todos os seus movimentos Peri volta senhora E por que nos deixa Porque é preciso Ao menos volta logo Não devemos morrer todos juntos da mesma morte O índio estremeceu Não Peri morrerá mas tu hás de viver senhora Para que viver depois de ter perdido todos os seus amigos Cecília que há alguns momentos sentia a cabeça vacilar os olhos cerraremse e um sono invencível apoderarse dela deixouse cair sobre o espaldar da cadeira Não Antes morrer como Isabel murmurou a menina já entorpecida pelo sono Um meigo sorriso veio adejar nos seus lábios entreabertos por onde se escapava a respiração doce branda e igual Peri a princípio assustou se com esse sono repentino que não lhe parecia natural e com a palidez súbita de que se cobriram as feições de Cecília Seus olhos caíram sobre a taça que estava em cima da mesa deitou nos lábios algumas gotas do liquido que tinham ficado no fundo e tomoulhes o sabor não podia conhecer o que continha mas satisfezse em não achar o que receara Repeliu a idéia que lhe assaltara o espírito e lembrouse que D Antônio sorria no momento em que pedia à sua filha para beber e que a sua mão não tremera apresentandolhe a taça Tranqüilo a este respeito o índio que não tinha tempo a perder ganhou a esplanada correu para o quarto que ocupava e desapareceu A noite já estava fechada e uma escuridão profunda envolvia a casa e os arredores Durante esse tempo nenhum acontecimento extraordinário viera modificar a posição desesperada em que se achava a família a calma sinistra que precede a grandes tempestades plainava sobre a cabeça dessas vitimas que contavam não as horas mas os instantes de vida que lhes restavam D Antônio passeava ao longo da sala com a mesma serenidade de seus dias tranqüilos e plácidos de outrora de vez em quando o fidalgo parava na porta do gabinete lançava um olhar sobre sua mulher que orava e sua filha adormecida depois continuava o passeio interrompido Os aventureiros grupados junto à porta seguiam com os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala ou se destacava cheio de vigor e de colorido na esfera luminosa que cingia a lâmpada de prata suspensa ao teto Mudos resignados nenhum desses homens deixava escapar uma queixa um suspiro que fosse o exemplo de seu chefe reanimava neles essa coragem heróica do soldado que morre por uma causa santa Antes de obedecerem à ordem de D Antônio de Mariz eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste em que estava atado o frade uma língua vermelha que lambia a fogueira enroscandose pelos toros de lenha O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça que enovelandose envolviao numa névoa espessa é impossível descrever a raiva a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os principais personagens desta história e onde se vão passar as cenas talvez mais importantes do drama A calma profunda que reinava nessa solidão não tinha sido perturbada tudo estava em silêncio e as trevas espessas da noite não deixavam perceber os objetos a alguns passos de distancia De repente listras de fogo atravessaram o ar e se abateram sobre o edifício eram as setas inflamadas dos selvagens que anunciavam o começo do ataque durante alguns minutos foi como uma chuva de fogo uma cascata de chamas que caiu sobre a casa Os aventureiros estremeceram D Antônio sorriu É chegado o momento meus amigos Temos uma hora de vida preparaivos para morrer como cristãos e portugueses Abri as portas para que possamos ver o céu O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida porque tendo destruído o resto da escada de pedra os selvagens não podiam subir ao rochedo senão escalandoo e por maior que fosse a sua habilidade não era possível que consumissem nisso menos tempo Quando os aventureiros abriram as portas um vulto resvalou na sombra e entrou na sala Era Peri X CRISTÃO O índio dirigiuse rapidamente a D Antônio de Mariz Peri quer salvar a senhora O fidalgo abanou a cabeça em sinal de dúvida Escuta replicou o índio Aproximando os lábios do ouvido de D Antônio faloulhe por algum tempo em voz baixa e num tom rápido e decisivo Tudo está preparado parte desce o rio quando a lua estender o seu arco chegarás à tribo dos Goitacás A mãe de Peri te conhece cem guerreiros te acompanharão à grande taba dos brancos D Antônio de Mariz ouviu em profundo silêncio as palavras do índio e quando ele terminou apertoulhe a mão com reconhecimento Não Peri o que me propões é impossível D Antônio de Mariz não pode abandonar a sua casa a sua família e os seus amigos no momento do perigo ainda mesmo para salvar aquilo que ele mais ama neste mundo Um fidalgo português não pode fugir diante do inimigo qualquer que ele seja morre vingando a sua morte Peri fez um gesto de desespero Assim tu não queres salvar a senhora Não posso respondeu o cavalheiro o meu dever manda que fique e partilhe a sorte de meus companheiros O índio no seu fanatismo não compreendia que houvesse uma razão capaz de sacrificar a vida de Cecília que para ele era sagrada Peri pensou que tu amasses a senhora disse ele fora de si D Antônio olhouo com uma expressão de dignidade e nobreza Perdôote a ofensa que me fizeste amigo porque é ainda uma prova de tua grande dedicação Mas acreditame se fosse preciso que eu me votasse só ao sacrifício bárbaro dos selvagens para salvar minha filha eu o faria sorrindo E por que recusas o que Peri te pede Por quê Porque o que tu pedes não é um sacrifício é uma vergonha é uma traição Tu abandonarias tua mulher teus companheiros para salvarte do inimigo Peri O índio abaixou a cabeça com abatimento Demais essa empresa demanda forças com que um velho como eu já não pode contar Havia duas pessoas que a poderiam realizar Quem perguntou Peri com um raio de esperança Uma era meu filho que a esta hora está bem longe daqui a outra deixounos esta manhã e nos espera era Álvaro Peri fez pela senhora o que podia tu não queres salvála Peri vai morrer a seus pés Morrer disse o fidalgo Quando tens a liberdade e a vida à tua disposição E julgas que consentirei nisto Nunca Vai Peri conserva a lembrança de teus amigos a nossa alma te acompanhará na terra Adeus Parte o tempo urge O índio ergueu a cabeça com um gesto soberbo de indignação Peri arriscou bastantes vezes a sua vida por ti para ter o direito de morrer contigo tu não podes abandonar teus companheiros o escravo não pode abandonar sua senhora És injusto amigo exprimi um desejo não quis irrogarte uma injúria Se exiges uma parte do sacrifício esta te pertence e tu és digno dela fica Um grito dos selvagens retroou nos ares D Antônio fazendo um gesto aos aventureiros encaminhouse para o gabinete Cecília adormecida sobre a cadeira de espaldar sorria como se algum sonho alegre a embalasse no seu sono tranqüilo o rosto um pouco pálido moldurado pelas tranças louras de seus cabelos tinha a expressão suave da inocência feliz O fidalgo contemplando sua filha sentiu uma dor pungente e quase arrependeuse de não ter aceitado o oferecimento de Peri e de não tentar ao menos esse último esforço para defender aquela vida que apenas começava a expandirse Mas podia ele mentir ao seu passado e faltar ao dever imperioso que o obrigava a morrer no seu posto Podia trair na sua última hora àqueles que haviam partilhado a sua sorte Tal era o sentimento de honra naqueles antigos cavalheiros que D Antônio nem um momento admitiu a idéia de fugir para salvar sua filha se houvesse outro meio decerto o receberia como um favor do céu mas aquele era impossível Enquanto o espírito do fidalgo se debatia nessa luta cruel Peri de pé junto de Cecília parecia querer ainda protegêla contra a morte inevitável que a ameaçava Dirseia que o índio esperava algum socorro imprevisto algum milagre que salvasse sua senhora e que aguardava o momento de fazer por ela tudo quanto fosse possível ao homem D Antônio vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem tornouse ainda mais pensativo quando passado esse momento de reflexão ergueu a cabeça seus olhos brilhavam com um raio de esperança Atravessou o espaço que o separava de sua filha e tomando a mão de Peri disselhe com uma voz profunda e solene Se tu fosses cristão Peri O índio voltouse extremamente admirado daquelas palavras Por quê perguntou ele Por quê disse lentamente o fidalgo Porque se tu fosses cristão eu te confiaria a salvação de minha Cecília e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro à minha irmã O rosto do selvagem iluminouse seu peito arquejou de felicidade seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do intimo da alma Peri quer ser cristão exclamou ele D Antônio lançoulhe um olhar úmido de reconhecimento A nossa religião permite disse o fidalgo que na hora extrema todo o homem possa dar o batismo Nós estamos com o pé sobre o túmulo Ajoelha Peri O índio caiu aos pés do velho cavalheiro que impôslhe as mãos sobre a cabeça Sê cristão Doute o meu nome Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou e ergueuse altivo e sobranceiro pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e defenderes minha filha Conheço a tua alma nobre conheço o teu heroísmo e a tua sublime dedicação por Cecília Mas quero que me faças um outro juramento Qual Peri está pronto para tudo Juras que se não puderes salvar minha filha ela não cairá nas mãos do inimigo Peri te jura que ele levará a senhora à tua irmã e que se o Senhor do céu não deixar que Peri cumpra a sua promessa nenhum inimigo tocará em tua filha ainda que para isso seja preciso queimar uma floresta inteira Bem estou tranqüilo Ponho minha Cecília sob tua guarda e morro satisfeito Podes partir Manda fechar todas as portas Os aventureiros obedeceram a ordem do fidalgo todas as portas se fecharam o índio empregava este meio para ganhar tempo Os gritos e bramidos dos selvagens que continuavam com algumas interrupções foram se aproximando da casa conheciase que escalavam o rochedo nesse momento Alguns minutos se passaram numa ansiedade cruel D Antônio de Mariz depositou um último beijo na fronte de sua filha D Lauriana apertou ao seio a cabeça adormecida da menina e envolveua numa manta de seda Peri com o ouvido atento o olhar fito na porta esperava Ligeiramente apoiado sobre o espaldar da cadeira as vezes estremecia de impaciência e batia com o pé sobre o pavimento da sala De repente um grande clamor soou em torno da casa as chamas lamberam com as suas línguas de fogo as frestas das portas e janelas o edifício tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se lançava furiosa no meio do incêndio Peri apenas ouviu o primeiro grito reclinou sobre a cadeira e tomou Cecília nos braços quando o estrondo soou na porta larga do salão o índio já tinha desaparecido Apesar da escuridão profunda que reinava em todo o interior da casa Peri não hesitou um momento caminhou direito ao quarto onde habitara sua senhora e subiu à janela Uma das palmeiras da cabana estendiase por cima do precipício e apoiavase a trinta palmos de distancia sobre um dos galhos da árvore que os Aimorés tinham abatido durante o dia para tirarem aos habitantes da casa a menor esperança de fuga Peri apertando Cecília nos braços firmou o pé sobre essa ponte frágil cuja face convexa tinha quando muito algumas polegadas de largura Quem lançasse os olhos nesse momento para aquela banda da esplanada veria ao pálido clarão do incêndio deslizarse lentamente por cima do precipício um vulto hirto como um dos fantasmas que segundo a crença popular atravessavam à meianoite as velhas ameias de algum castelo em ruínas A palmeira oscilava e Peri embalando se sobre o abismo adiantavase vagarosamente para a encosta oposta Os gritos dos selvagens repercutiam nos ares de envolta com o estrépito dos tacapes que abalavam as portas da sala e as paredes do edifício Sem se inquietar com a cena tumultuosa que deixava após si o índio ganhou a encosta oposta e segurando com uma mão nos galhos da árvore conseguiu tocar a terra sem o menor acidente Então fazendo uma volta para não aproximarse do campo dos Aimorés dirigiuse à margem do rio ai estava escondida entre as folhas a pequena canoa que servia outrora para os habitantes da casa atravessarem o Paquequer Durante a ausência de uma hora que Peri tinha feito quando deixara Cecília adormecida ele havia tudo preparado para essa empresa arriscada que devia salvar sua senhora Graças à sua atividade espantosa armou com o auxilio da corda a ponte pênsil sobre o precipício correu ao rio amarrou a canoa no lugar que lhe pareceu mais propicio e em duas viagens levou a esse barquinho que ia servir de morada a Cecília durante alguns dias tudo quanto a menina podia carecer Eram roupas uma colcha de damasco com que se poderia arranjar um leito alguns alimentos que restavam na casa lembrouse até que D Antônio devia ter necessidade de dinheiro logo que chegasse ao Rio de Janeiro porque Peri contava que o fidalgo não duvidaria salvar sua filha Chegando à beira do rio o índio deitou sua senhora no fundo da canoa como uma menina no seu berço envolveua na manta de seda para abrigála do orvalho da noite e tomando o remo fez a canoa saltar como um peixe sobre as águas A algumas braças de distancia por entre uma aberta da floresta Peri viu sobre o rochedo a casa iluminada pelas chamas do incêndio que começava a lavrar com alguma intensidade De repente uma cena fantástica terrível passou diante de seus olhos como uma dessas visões rápidas que brilham e se apagam de repente no delírio da imaginação A frente da casa estava às escuras o fogo ganhara as outras faces do edifício e o vento o lançava para o fundo Peri do primeiro olhar tinha visto os vultos dos Aimorés a se moverem nas sombras e a figura horrível e medonha de Loredano erguendose como um espectro no meio das chamas que o devoravam De repente a fachada do edifício tombou sobre a esplanada esmagando na sua queda um grande número de selvagens Foi então que o quadro fantástico se desenhou aos olhos de Peri A sala era um mar de fogo os vultos que se moviam nessa esfera luminosa pareciam nadar em vagas de chamas No fundo destacava o vulto majestoso de D Antônio de Mariz de pé no meio do gabinete elevando com a mão esquerda uma imagem do Cristo e com a direita abaixando a pistola para a cava escura onde dormia o vulcão Sua mulher abraçava os seus joelhos calma e resignada Aires Gomes e os poucos aventureiros que restavam imóveis e ajoelhados a seus pés formavam o baixorelevo dessa estátua digna de um grande cinzel Sobre o montão de ruínas formado pela parede que desmoronara desenhavamse as figuras sinistras dos selvagens semelhantes a espíritos diabólicos dançando nas chamas infernais Tudo isso Peri viu de um só relance de olhos como um painel vivo iluminado um momento pelo clarão instantâneo do relâmpago Um estampido horrível reboou por toda aquela solidão a terra tremeu e as águas do rio se encapelaram como batidas pelo tufão As trevas envolveram o rochedo há pouco esclarecido pelas chamas e tudo entrou de novo no silêncio profundo da noite Um soluço partiu o peito de Peri talvez a única testemunha dessa grande catástrofe Dominando a sua dor o índio vergou sobre o remo e a canoa voou pela face lisa e polida do Paquequer XI EPÍLOGO Quando o sol erguendose no horizonte iluminou os campos um montão de ruínas cobria as margens do Paquequer Grandes lascas de rochedos talhadas de um golpe e semeadas pelo campo pareciam ter saltado do malho gigantesco de Novos Ciclopes A eminência sobre a qual estava situada a casa tinha desaparecido e no seu lugar viase apenas uma larga fenda semelhante à cratera de algum vulcão subterrâneo As árvores arrancadas dos seus alvéolos a terra revolta a cinza enegrecida que cobria a floresta anunciavam que por ai tinham passado algum desses cataclismas que deixam após si a morte e a destruição Aqui e ali entre os cômoros das ruínas aparecia alguma índia resto da tribo dos Aimorés que tinha ficado para chorar a morte dos seus e levar às outras tribos a noticia dessa tremenda vingança Quem plainasse nesse momento sobre aquela solidão e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abriam em torno se a vista pudesse devassar a distancia de muitas léguas veria ao longe na larga esteira do Paraíba passar rapidamente uma forma vaga e indecisa Era a canoa de Peri que impelida pelo remo e pela viração da manhã corria com uma velocidade espantosa semelhando uma sombra a fugir das primeiras claridades do dia Toda a noite o índio tinha remado sem descansar um momento não ignorava que D Antônio de Mariz na sua terrível vingança havia exterminado a tribo dos Aimorés mas desejava apartarse do teatro da catástrofe e aproximarse dos seus campos nativos Não era o sentimento da pátria sempre tão poderoso no coração do homem não era o desejo de ver sua cabana reclinada à beira do rio e abraçar sua mãe e seus irmãos que dominava sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo era o sentimento de orgulho que se apoderava dele pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os obstáculos e realizar a missão de que se havia encarregado Quando o sol no meio de sua carreira lançava torrentes de luz sobre esse vasto deserto Peri sentiu que era tempo de abrigar Cecília dos raios abrasadores e fez a canoa abicar à beira do rio na sombra de uma ramagem de árvores A menina envolta na sua manta de seda com a cabeça apoiada sobre a proa do barquinho dormia ainda o mesmo sono tranqüilo da véspera as cores tinham voltado e sob a alvura transparente de sua pele brilhavam esses tons corderosa esse colorido suave que só a natureza artista sublime sabe criar Peri tomou a canoa nos seus braços como se fora um berço mimoso e deitoua sobre a relva que cobria a margem do rio depois sentouse ao lado e com os olhos fitos em Cecília esperou que ela saísse desse sono prolongado que começava a inquietálo Tremia lembrandose da dor que sua senhora ia sentir quando soubesse a desgraça de que ele fora testemunha na véspera e não se achava com forças de responder ao primeiro olhar de surpresa que a menina lançaria em torno de si logo que despertasse no meio do deserto Enquanto durou o sono Peri com o braço apoiado à borda da canoa e o corpo reclinado sobre o rosto da menina esperando com ansiedade o momento que ele desejava e temia ao mesmo tempo velava sobre Cecília com um cuidado e uma solicitude admirável A mãe a mais extremosa não se desvelaria tanto por seu filho como esse amigo dedicado por sua senhora uma réstia de sol que enfiandose pelas folhas vinha brincar no rosto da menina um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto um inseto que saltava na relva tudo ele afastava para não perturbar o seu repouso Cada minuto que passava era uma nova inquietação para ele porém era também um instante mais de sossego e de tranqüilidade que a menina gozava antes de saber a desgraça que pesava sobre ela e que a privara de sua família Um longo suspiro elevou o seio de Cecília seus lindos olhos azuis se abriram e cerraram deslumbrados pela claridade do dia ela passou a mão delicada pelas pálpebras rosadas como para afugentar o sono e seu olhar límpido e suave foi pousar no rosto de Peri Soltou um gritozinho de prazer e sentandose com vivacidade lançou um olhar de surpresa e admiração em torno da espécie de pavilhão de folhagem que a cercava parecia interrogar as árvores o rio o céu mas tudo emudecia Peri não se animava a pronunciar uma palavra via o que se passava na alma de sua senhora e não tinha a coragem de dizer a primeira letra do enigma que ela não tardaria a compreender Por fim a menina baixando a vista para ver onde estava descobriu a canoa e lançando um volver rápido para o vasto leito do Paraíba que se espreguiçava indolentemente pela floresta ficou branca como a cambraia do seu roupão Voltouse para o índio com os olhos extremamente dilatados os lábios trêmulos a respiração presa o seio ofegante e suplicando com as mãozinhas juntas Meu pai meu pai exclamou soluçando O selvagem deixou cair a cabeça sobre o peito e escondeu o rosto nas mãos Morto Minha mãe também morta Todos mortos Vencida pela dor a menina apertou convulsamente o seio que lhe estalava com os soluços e reclinandose como o cálice delicado de uma flor que a noite enchera de orvalho desfezse em lágrimas Peri só podia salvar a ti senhora murmurou o índio tristemente Cecília ergueu a cabeça altiva Por que não me deixaste morrer com os meus exclamou ela numa exaltação febril Pedite eu que me salvasses Precisava de teus serviços Seu rosto tomou uma expressão de energia extraordinária Tu vais me levar ao lugar onde descansa o corpo de meu pai É ai que deve estar sua filha Depois partirás Não careço de ti Peri estremeceu Escuta senhora balbuciou ele em tom submisso A menina lançoulhe um olhar tão imperioso tão soberano que o índio emudeceu e voltando o rosto escondeu as lágrimas que lhe molhavam as faces Cecília caminhou até a beira do rio e com os olhos estendidos pelo horizonte que ela supunha ocultar o lugar em que habitara ajoelhou e fez uma oração longa e ardente Quando ergueuse estava mais calma a dor tinhase repassado do consolo sublime da religião dessa doçura e suavidade que infiltra no coração a esperança de uma vida celeste que reuna aqueles que se amaram na terra Ela pôde então refletir sobre o que se tinha passado na véspera e procurou lembrarse das circunstâncias que haviam precedido à morte de sua família Todas as suas recordações porém chegavam unicamente até o momento em que já meio adormecida falava a Peri e dizia essa palavra ingênua e inocente que lhe escapara do intimo da alma Antes morrer como Isabel Lembrandose dessa palavra corou e vendose só no deserto com Peri sentiu uma inquietação vaga e indefinida um sentimento de temor e de receio cuja causa não sabia explicar Seria essa desconfiança súbita proveniente da cólera que ela sentira porque o índio salvara a sua vida e a arrancara da desgraça que tinha destruído toda a sua família Não não era essa a causa ao contrário Cecília conhecia que fora injusta para com seu amigo que tinha talvez feito impossíveis por ela e a não ser o receio instintivo que se aponderara involuntariamente de sua alma já o teria chamado para pedirlhe perdão daquelas palavras duras e cruéis A menina ergueu os olhos tímidos e encontrou o olhar triste e súplice de Peri não pôde resistir esqueceu os seus receios e um tênue sorriso fugiulhe pelos lábios Peri O índio estremeceu mas desta vez de alegria e de contentamento veio cair aos pés de sua senhora que ele encontrava de novo boa como sempre tinha sido Perdoa a Peri senhora És tu que me deves perdoar porque te fiz sofrer não é verdade Mas bem sabes Não podia abandonar meu pobre pai Foi ele que mandou a Peri que te salvasse disse o índio Como exclamou a menina Contame meu amigo O índio fez a narração da cena da noite antecedente desde que Cecília tinha adormecido até o momento em que a casa saltara com a explosão restando dela apenas um montão de ruínas Contou que ele tinha preparado tudo para que D Antônio de Mariz fugisse salvando Cecília mas que o fidalgo recusara dizendo que a sua lealdade e a sua honra mandavam que morresse no seu posto Meu nobre pai murmurou a menina enxugando as lágrimas Houve um instante de silêncio depois do qual Peri concluiu a sua narração e referiu como D Antônio de Mariz o tinha batizado e lhe havia confiado a salvação de sua filha Tu és cristão Peri exclamou a menina cujos olhos brilharam com uma alegria inefável Sim teu pai disse Peri tu és cristão doute o meu nome Obrigado meu Deus disse a menina juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu Depois envergonhada desse movimento espontâneo escondeu o rosto o rubor que cobriu as suas faces tingiu de uns longes corderosa as linhas puras do colo acetinado Peri ergueuse e foi colher alguns frutos delicados que serviram de refeição à sua senhora O sol tinha quebrado a sua força era tempo de continuar a viagem e aproveitar a frescura da tarde para vencer a distancia que os separava do campo dos goitacás O índio chegouse trêmulo para a menina Que queres tu que Peri faça senhora Não sei respondeu Cecília indecisa Não queres que Peri te leve à taba dos brancos É a vontade de meu pai deves cumprila Peri prometeu a D Antônio levarte à sua irmã O índio fez a canoa boiar sobre as águas do rio e quando tomou a menina nos seus braços para deitála no barquinho ela sentiu pela primeira vez na sua vida que o coração de Peri palpitava sobre o seu seio A tarde estava soberba os raios do sol no ocaso filtrando por entre as folhas das árvores douravam as flores alvas que cresciam pela beira do rio As rolas começavam a soltar os seus arrulhos no fundo da floresta e a brisa que passava ainda tépida das exalações da terra vinha impregnada de aromas silvestres A canoa resvalou pela flor da água como uma garça ligeira levada pela correnteza do rio Peri remava sentado na proa Cecília deitada no fundo meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado engolfavase nos seus pensamentos e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas e a frescura do ar e das águas Quando os seus olhos encontravam os de Peri os longos cílios desciam ocultando um momento o seu olhar doce e triste A noite estava serena A canoa vogando sobre as águas do rio abria essas flores de espuma que brilham um momento à luz das estrelas e se desfazem como o sorriso da mulher A brisa tinha escasseado e a natureza adormecida respirava a calma tépida e perfumada das noites americanas tão cheias de enlevo e encanto A viagem fora silenciosa essas duas criaturas abandonadas no meio do deserto sós em face da natureza emudeciam como se temessem despertar o eco profundo da solidão Cecília repassava na memória toda a sua vida inocente e tranqüila cujo fio dourado tinhase rompido de uma maneira tão cruel mas era sobretudo o último ano dessa existência desde o dia do aparecimento imprevisto de Peri que se desenhava na sua imaginação Por que interrogava ela assim os dias que tinha vivido no remanso da felicidade Por que o seu espírito voltava ao passado e procurava ligar todos esses fatos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros anos dera tão pouco apreço Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia sua alma inocente e ignorante tinhase iluminado com uma súbita revelação novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento Volvendo ao passado admiravase de sua existência como os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo não se reconhecia na imagem do que fora outrora na menina isenta e travessa Toda a sua vida estava mudada a desgraça tinha operado essa revolução repentina e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança as cores tinham tons harmoniosos o ar perfumes inebriantes a luz reflexos aveludados que seus sentidos não conheciam Uma flor que antes era para ela apenas uma bela forma parecialhe agora uma criatura que sentia e palpitava a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis notas místicas que ressoavam no seu coração Peri julgando sua senhora adormecida remava docemente para não perturbar o seu repouso a fadiga começava a vencêlo apesar de sua coragem indomável e de sua vontade poderosa as forças estavam exaustas Apenas vencedor da luta terrível que travara com o veneno tinha começado a empresa quase impossível da salvação de sua senhora havia três dias que seus olhos não se cerravam que seu espírito não repousava um instante Tudo quanto a natureza permitia à inteligência e ao poder do homem ele tinha feito e contudo não era a fadiga do corpo que o vencia eram sim as emoções violentas por que passara durante esse tempo O que ele tinha sentido quando plainava sobre o abismo e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso de uma oscilação da haste frágil que lhe servia de ponte pênsil ninguém compreenderia O que sofreu quando Cecília no seu desespero pela morte de seu pai o acusava por têla salvado e lhe dava ordem de levála ao lugar onde repousavam as cinzas do velho fidalgo é impossível de descrever Foram horas de martírio de sofrimento horrível em que sua alma sucumbiria se não achasse na sua vontade inflexível e na sua dedicação sublime um conforto para a dor e um estimulo para triunfar de todos os obstáculos Eram essas emoções que o venciam e ainda depois de vencidas ele conheceu que seus músculos de aço escravos submissos que obedeciam ao seu menor desejo se distendiam como a corda do arco depois do combate Lembrouse que sua senhora precisava dele e que devia aproveitar esses momentos em que ela repousava para pedir ao sono novo vigor e novas forças Ganhou o meio do rio e escolhendo um lugar onde não chegava nem um galho das árvores que cresciam nas ribanceiras amarrou a canoa nos nenúfares que boiavam à tona da água Tudo estava quieto a terra ficava a uma distancia de muitas braças portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão prateado debaixo da abobada azul do céu as ondinhas a embalariam no seu berço as estrelas vigiariam o seu sono Livre de inquietação Peri encostou a cabeça na borda da canoa um momento depois suas pálpebras entorpecidas cerraramse a pouco e pouco seu último olhar esse olhar vago e incerto que adeja na pupila já meio adormecida viu desenharse na sombra uma forma alva e graciosa que se reclinava docemente para ele Não era um sonho essa linda visão Cecília sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações sentouse e debruçandose um pouco viu que seu amigo dormia e acusouse por não ter há mais tempo exigido dele esse instante de repouso O primeiro sentimento que se apoderou da menina vendose só foi o terror solene e respeitoso que infunde a solidão no meio do deserto nas horas monas da noite O silêncio parece falar as sombras se povoam de seres invisíveis os objetos na sua imobilidade como que oscilam pelo espaço É ao mesmo tempo o nada com o seu vácuo profundo imenso infinito e o caos com a sua confusão as suas trevas as suas formas incriadas a alma sente que faltalhe a vida ou a luz em torno Cecília recebeu essa impressão com um temor religioso mas não se deixou dominar pelo susto a desgraça a habituara ao perigo e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta que mesmo dormindo parecialhe que Peri velava sobre ela Contemplando essa cabeça adormecida a menina admirouse da beleza inculta dos traços da correção das linhas do perfil altivo da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito dantes via com os olhos do corpo agora via com os olhos da alma Peri que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado aparecialhe de repente como um herói no seio de sua família estimavao no meio dessa solidão admiravao Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz de um fundo brilhante e de uma moldura simples para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas o selvagem precisava do deserto para revelarse em todo o esplendor de sua beleza primitiva No meio de homens civilizados era um índio ignorante nascido de uma raça bárbara a quem a civilização repelia e marcava o lagar de cativo Embora para Cecília e D Antônio fosse um amigo era apenas um amigo escravo Aqui porém todas as distinções desapareciam o filho das matas voltando ao seio de sua mãe recobrava a liberdade era o rei do deserto o senhor das florestas dominando pelo direito da força e da coragem As altas montanhas as nuvens as catadupas os grandes rios as árvores seculares serviam de trono de dossel de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza Que efusão de reconhecimento e de admiração não havia no olhar de Cecília Era nesse momento que ela compreendia toda a abnegação do culto santo e respeitoso que o índio lhe votava As horas correram silenciosamente nessa muda contemplação a aragem fresca que anuncia o despontar do dia bafejou o rosto da menina e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do horizonte Sobre o relevo que formava o perfil escuro da floresta nas sombras da noite luziu límpida e brilhante a estreladalva as águas do rio arfaram docemente e os leques das palmeiras se agitaram rumorejando A menina lembrouse do seu despertar tão plácido de outrora de suas manhãs tão descuidosas de sua prece alegre e risonha em que agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ela e sua família Uma lágrima pendeu nos cílios dourados e caiu sobre a face de Peri abrindo os olhos e vendo ainda a mesma doce visão que o adormecera o índio julgou que o sonho continuava Cecília sorriulhe e passou a mãozinha pelas pálpebras ainda meio cerradas de seu amigo Dorme disse ela dorme Ceci vela A música dessas palavras despertou completamente o selvagem Não balbuciou ele envergonhado de ter cedido à fadiga Peri sentese forte Mas tu deves ter necessidade de repouso Há tão pouco tempo que adormeceste O dia vai raiar Peri deve velar sobre sua senhora E por que tua senhora não velará também sobre ti Queres tomar tudo e não me deixas nem mesmo a gratidão O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina Peri não entende o que tu dizes A rolinha quando atravessa o campo e sentese fatigada descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme que vai buscar o alimento que a defende e que a protege Tu és como a rolinha senhora Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo E tu perguntou ela confusa e trêmula de emoção Peri é teu escravo respondeu o índio naturalmente A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa A rolinha não tem escravo Os olhos de Peri brilharam uma exclamação partiu de seus lábios Teu Cecília com o seio palpitante as faces vermelhas os olhos úmidos levou a mãozinha aos lábios de Peri e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado Tu és meu irmão disse ela com um sorriso divino Peri olhou o céu como para fazêlo confidente de sua felicidade A claridade da alvorada estendiase sobre a floresta e os campos como um véu finíssimo a estrela da manhã cintilava em todo o seu fulgor Cecília ajoelhouse Salve rainha O índio contemplavaa com uma expressão de ventura inefável Tu és cristão Peri disse ela lançandolhe um olhar suplicante Seu amigo compreendeua e ajoelhando juntou as mãos como ela Tu repetirás todas as minhas palavras e faze por não esquecêlas Sim Elas vêm de teus lábios senhora Senhora não irmã Daí a pouco os murmúrios das águas confundiamse com os acenos maviosos da voz de Cecília que recitava o hino cristão repassado de tanta unção e poesia A palavra de Peri repetia como um eco a frase sagrada Terminada a prece cristã talvez a primeira que tinha ouvido aquelas árvores seculares a viagem continuou Logo que o sol chegou ao zênite Peri procurou como na véspera um abrigo para passar as horas de calma A canoa pojou num pequeno seio do rio Cecília saltou em terra e seu companheiro escolheu uma sombra onde ela repousasse Espere aqui Peri já volta Onde vais perguntou a menina inquieta Ver frutos para ti Não tenho fome Tu os guardarás Pois bem eu te acompanho Não Peri não consente E por quê Não me queres junto de ti Olha tuas roupas olha teu pé senhora os espinhos do cardo te ofenderiam Com efeito Cecília estava vestida com um ligeiro roupão de cambraia e seu pezinho que descansava sobre a relva calçava um borzeguim de seda Então me deixas só disse a menina entristecendo O índio ficou um momento indeciso mas de repente sua fisionomia expandiuse Cortou a haste de um íris que se balançava ao sopro da aragem e apresentou a flor à menina Escuta disse ele Os velhos da tribo ouviram de seus pais que a alma do homem quando sai do corpo se esconde numa flor e fica ali até que a are do céu vem buscála e a leva li bem longe É por isso que tu vês o guanumbi saltando de flor em flor beijando uma beijando outra e depois batendo as asas e fugindo Cecília habituada à linguagem poética do selvagem esperava a última palavra que devia fazêla compreender o seu pensamento O índio continuou Peri não leva a sua alma no corpo deixaa nesta flor Tu não ficas só A menina sorriu e tomando a flor escondeua no seio Ela me acompanhará Vai meu irmão e volta logo Peri não se afastará se tu o chamares ele ouvirá E me responderás sim para que eu te sinta perto de mim O índio antes de partir circulou a alguma distancia o lugar onde se achava Cecília de uma corda de pequenas fogueiras feitas de louro de canela urataí e outras árvores aromáticas Desta maneira tornava aquele retiro impenetrável o rio de um lado e do outro as chamas que afugentariam os animais daninhos e sobretudo os répteis o fumo odorífero que se escapava das fogueiras afastaria até mesmo os insetos Peri não sofreria que uma vespa e uma mosca sequer ofendesse a cútis de sua senhora e sugasse uma gota desse sangue precioso por isso tomara todas essas precauções Cecília devia pois ficar tranqüila como se estivesse em um palácio e de fato era um palácio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa as folhas de dossel as grinaldas em flores de cortinas os sabiás de orquestra as águas de espelho e os raios do sol de arabescos dourados A menina viu de longe o desvelo com que seu amigo tratava de sua segurança e acompanhouo com o olhar até o momento em que ele desapareceu no mais espesso da mata Foi então que ela sentiu a soledade estenderse em torno e envolvêla insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flor que Peri lhe tinha dado Apesar de sua fé cristã não pôde vencer essa inocente superstição do coração pareceulhe olhando o íris que já não estava só e que a alma de Peri a acompanhava Qual é o seio de dezesseis anos que não abriga uma dessas ilusões encantadoras nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer e não vê numa borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança Como a humanidade na infância o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia mitologia mais graciosa e mais poética do que as criações da Grécia o amor é o seu Olimpo povoado de deusas ou deuses de uma beleza celeste e imortal Cecília amava a gentil e inocente menina procurava iludirse a si mesma atribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma afeição fraternal e ocultando sob o doce nome de irmão um outro mais doce que titilava nos seus lábios mas que seus lábios não ousavam pronunciar Mesmo só de vez em quando um pensamento que passava no seu espírito incendialhe as faces de rubor fazia palpitarlhe o seio e pender molemente a cabeça como a haste da planta delicada quando o calor do sol fecunda a florescência Em que pensava ela com os olhos fitos no íris que o seu hálito bafejava com as pálpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre os joelhos Pensava no passado que não voltaria no presente que devia escoarse rapidamente e no futuro que lhe aparecia vago incerto e confuso Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão de sangue cujo destino ignorava e um irmão de alma em que tinha concentrado todas as afeições que perdera Um sentimento de tristeza profunda anuviava o seu semblante lembrandose de seu pai de sua mãe de Isabel de Álvaro de todos que amava e que formavam o universo para ela então o que a consolava era a esperança de que os dois únicos corações que lhe restavam não a abandonariam nunca E isto a fazia feliz não desejava mais nada não pedia a Deus mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e enchendo o futuro com as recordações do passado A sombra das árvores já beijava as águas do rio e Peri ainda não tinha voltado Cecília assustouse e temendo que lhe tivesse sucedido alguma coisa chamou por ele O índio respondeu longe e pouco depois apareceu entre as árvores o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado a julgar pelos objetos que trazia Como tardaste disselhe Cecília erguendose e indo ao seu encontro Tu estavas sossegada Peri aproveitou para não te deixar amanhã Amanhã só Sim porque depois chegaremos Aonde perguntou a menina com vivacidade Aos campos dos goitacás à cabana de Peri onde tu mandarás a todos os guerreiros da tribo E depois como iremos ao Rio de Janeiro Não te inquietes os goitacás têm igaras grandes como aquela árvore que toca às nuvens quando eles atiram o remo elas voam sobre as águas como a atiati de asas brancas Antes que a lua que vai nascer tenha desaparecido Peri te deixará com a irmã de teu pai Deixará exclamou a menina empalidecendo Tu queres me abandonar Peri é um selvagem disse o índio tristemente não pode viver na taba dos brancos Por quê perguntou a menina com ansiedade Não és tu cristão como Ceci Sim porque era preciso ser cristão para te salvar mas Peri morrerá selvagem como Ararê Oh não disse a menina eu te ensinarei a conhecer Deus Nossa Senhora as suas virgens e os seus anjinhos Tu viverás comigo e não me deixarás nunca Vê senhora a flor que Peri te deu já marchou porque saiu de sua planta e a flor estava no teu seio Peri na taba dos brancos ainda mesmo junto de ti será como esta flor tu terás vergonha de olhar para ele Peri exclamou a menina ofendida Tu és boa mas todas as que têm a tua cor não têm o teu coração Li o selvagem seria um escravo dos escravos e quem nasceu o primeiro pode ser teu escravo mas é senhor dos campos e manda aos mais fortes Cecília admirando o reflexo de nobre orgulho que brilhava na fronte do índio sentiu que não podia combater a sua resolução ditada por um sentimento elevado Reconheceu que havia no fundo de suas palavras uma grande verdade que o seu instinto adivinhava ela tinha a prova na revolução que se operara no seu espírito vendo Peri no meio do deserto livre grande majestoso como um rei Qual não seria pois a conseqüência dessa outra transição muito mais brusca Numa cidade no meio da civilização o que seria um selvagem senão um cativo tratado por todos com desprezo No íntimo de sua alma quase que aprovava a resolução de Peri mas não podia afazerse à idéia de perder seu amigo seu companheiro a única afeição que talvez ainda lhe restava no mundo Durante esse tempo o índio preparava a simples refeição que lhes oferecia a natureza Deitou sobre uma folha larga os frutos que tinha colhido eram os araçás os jambos corados os ingás de polpa macia os cocos de várias espécies A outra folha continha favos de uma pequena abelha que fabricara a sua colmeia no tronco de uma catuíba de sorte que o mel puro e claro tinha perfumes deliciosos dirseia mel de flores O índio tornou côncava uma palma larga e encheua com o suco do ananás cuja fragrância é como a essência do sabor era o vinho que devia servir ao banquete frugal Numa segunda palma também côncava apanhou a água cristalina da corrente que murmurava a alguns passos devia servir para Cecília lavar as mãos depois da refeição Quando acabou esses preparativos que ele fazia com uma satisfação inexprimível Peri sentouse junto da menina e começou a trabalhar num arco de que precisava O arco era a sua arma favorita e sem ele embora possuísse a clavina e as munições que por precaução deitara na canoa para servirem a D Antônio de Mariz não tinha tranqüilidade de espírito e confiança plena na sua agilidade Reparando porém que sua senhora não tocava nos alimentos ergueu a cabeça e viu o rosto da menina banhado de lágrimas que calam em pérolas sobre os frutos e os rociavam como gotas de orvalho Não era preciso adivinhar para conhecer a causa dessas lágrimas Não chora senhora disse o índio aflito Peri te falou o que sentia manda e Peri fará a tua vontade Cecília olhouo com uma expressão de melancolia que partia a alma Queres que Peri fique contigo Ele ficará todos serão seus inimigos todos o tratarão mal desejara defenderte e não poderá quererá servirte e não o deixarão mas Peri ficará Não respondeu Cecília não exijo de ti esse último sacrifício Deves viver onde nasceste Peri Mas tu vais ainda chorar Vê disse a menina enxugando as lágrimas estou contente Agora toma uma fruta Sim juntaremos juntos como jantavas outrora no meio das matas com tua irmã Peri nunca teve irmã Mas tens agora respondeu ela sorrindo E como uma filha das florestas uma verdadeira americana a gentil menina fez a sua refeição partilhandoa com seu companheiro e acompanhandoa dos gestos inocentes e faceiros que só ela sabia ter Peri admiravase da mudança brusca que se tinha operado em sua senhora e no fundo do seu coração sentia um aperto pensando que ela se consolara bem depressa com a lembrança da separação Mas ele não era egoísta e preferia a alegria de sua senhora a seu prazer porque vivia antes da vida dela do que da sua própria Depois da refeição Peri voltou ao seu trabalho Cecília que desde o primeiro dia sentiase abatida e lânguida tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons dias O rosto mimoso conservava ainda a sombra melancólica que lhe deixaram impressas as cenas tristes de que fora testemunha e sobretudo a última desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãe Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma expressão angélica e tal mansuetude e suavidade que dava novo encanto à sua beleza ideal Deixando seu companheiro distraído com a sua obra chegou à beira do rio e sentouse junto de uma moita de uvaias à qual estava amarrada a canoa Peri viua afastarse e sempre seguindoa com os olhos continuou a preparar a vergôntea que devia servirlhe de arco e as canas selvagens as quais o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira A menina com a face apoiada na mão e os olhos postos na correnteza do rio cismava às vezes as pálpebras cerravamse os lábios se agitavam imperceptivelmente nesses momentos parecia que conversava com algum espírito invisível Outras vezes um doce sorriso despontava nos seus lábios e desfaziase logo como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a esconderse no fundo do coração donde se tinha escapado Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha que às vezes tomava a sua cabecinha loura à qual só faltava o diadema a fisionomia mostrou uma expressão de energia que lembrava o caráter de D Antônio de Mariz Tinha tomado uma resolução uma resolução firme inabalável que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdara de seu pai e dormia no fundo de sua alma para só revelarse nas ocasiões extremas Levantou os olhos ao céu e pediu a Deus um perdão para uma falta e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa ação que ia praticar sua oração foi breve mas ardente e cheia de fervor Enquanto isso se passava Peri vendo que as sombras da terra já se deitavam sobre o leito do Paraíba conheceu que era tempo de partir e preparouse para continuar a viagem No momento em que levantavase Cecília correu para ele e colocouse em face de modo a lhe ocultar a vista do rio Tu sabes disse ela sorrindo tenho uma coisa a pedirte Esta só palavra bastava para que Peri não visse mais nada senão os olhos e os lábios de sua senhora que iam dizerlhe o que ela desejava Quero que apanhes muito algodão para mim e me tragas uma pele bonita Sim Para quê perguntou o índio admirado Do algodão fiarei um vestido da pele tu cobrirás os meus pés Peri cada vez mais admirado ouvia sua senhora sem compreendêla Assim disse a menina sorrindo tu me deixarás acompanharte os espinhos não me farão mal O espanto do índio tinhao tornado imóvel mas de repente soltou um grito e quis precipitarse para o rio A mãozinha de Cecília apoiandose no seu peito reteveo Espera Olha respondeu o índio inquieto apontando para o rio A canoa desprendida do tronco a que estava amarrada resvalava à discrição das águas e girando sobre si desaparecia levada pela correnteza Cecília depois de olhar se voltou sorrindo Fui eu que soltei Tu senhora Por quê Porque não precisamos mais dela Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos sua irmã fica com ele no deserto no meio das florestas Era essa idéia que ela há pouco acariciava no seu espírito e para a qual tinha invocado a graça divina Não foi sem algum esforço que ela conseguiu dominar os primeiros temores que a assaltaram quando encarou em face essa existência longe da sociedade na solidão no isolamento Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado Não era ela quase uma filha desses campos criada com o seu ar puro e livre com as suas águas cristalinas A cidade lhe aparecia apenas como um recordação da primeira infância como um sonho do berço deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos e nunca mais ali voltara O campo esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas auras o botão desatara aos raios desse sol esplêndido Toda a sua vida todos os seus belos dias todos os seus prazeres infantis viviam ali falavam naqueles ecos da solidão naqueles murmúrios confusos naquele silêncio mesmo Ela pertencia pois mais ao deserto do que à cidade era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã seus hábitos e seus gostos prendiamse mais as pompas singelas da natureza do que às festas e às galas da arte e da civilização Decidiu ficar A única felicidade que ainda podia gozar neste mundo depois da perda de sua família era viver com os dois entes que a amavam essa felicidade não era possível devia escolher entre um deles Ai o seu coração foi impelido pela força invencível que o arrastava mas depois envergonhandose de ter cedido tão depressa procurou desculparse a si mesma Disse então que entre seus dois irmãos era justo que acompanhasse antes aquele que só vivia para ela que não tinha um pensamento um cuidado um desejo que não fosse inspirado por ela D Diogo era um fidalgo herdeiro do nome de seu pai tinha um futuro diante de si tinha uma missão a cumprir no mundo ele escolheria uma companheira para suavizarlhe a existência Peri tinha abandonado tudo por ela seu passado seu presente seu futuro sua ambição sua vida sua religião mesmo tudo era ela e unicamente ela não havia pois que hesitar Depois Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã queria darlhe um lugar perto dela na mansão dos justos aos pés do trono celeste do Criador É impossível descrever o que se passou no espírito do selvagem ouvindo as palavras de Cecília sua inteligência inculta mas brilhante capaz de elevarse aos mais altos pensamentos não podia compreender aquela idéia duvidou do que escutava Cecília fica no deserto balbuciou ele Sim respondeu a menina tomandolhe as mãos Cecília fica contigo e não te deixará Tu és rei destas florestas destes campos destas montanhas tua irmã te acompanhará Sempre Sempre Viveremos juntos como ontem como hoje como amanhã Tu cuidas Eu também sou filha desta terra também me criei no seio desta natureza Amo este belo pais Mas senhora tu não vês que tuas mãos foram feitas para as flores e não para os espinhos teus pés para brincar e não para andar teu corpo para a sombra e não para o sol e a chuva Oh Eu sou forte exclamou a menina erguendo a cabeça com altivez Junto de ti não tenho medo Quando eu estiver cansada tu me levarás nos teus braços A rolinha não se apóia sobre a asa de seu companheiro Era preciso ver a gentileza e a garridice com que ela dizia todas essas frases graciosas que borbulhavam dos seus lábios A irradiação do seu olhar a animação do seu rosto e a travessura de seu gesto fascinavam Peri ficou extático diante da perspectiva dessa felicidade imensa com a qual nunca sonhara mas jurou de novo em sua alma que cumpriria a promessa feita a D Antônio A tarde descaia e era preciso tratar de prover aos meios de passar a noite em terra o que seria muito mais perigoso não para ele a quem bastava o galho de uma árvore mas para Cecília Seguindo pela margem para escolher o lugar mais favorável Peri soltou uma palavra de surpresa vendo a canoa que se tinha embaraçado numa dessas ilhas flutuantes feitas pelas parasitas do rio que bóiam sobre as águas Era o melhor leito que podia ter a menina no meio do deserto puxou a canoa alcatifou o fundo com as folhas macias das palmeiras e tomando Cecília nos braços deitoua no seu berço A menina não consentiu que Peri remasse a canoa deslizou docemente pelo leito do rio apenas impelida pela correnteza Cecília brincava debruçavase sobre as águas para colher uma flor de passagem para perseguir um peixe que beijava a face lisa das ondas para ter o prazer de molhar as mãos nessa água cristalina para rever a sua imagem nesse espelho vacilante Quando tinha brincado bastante voltavase para seu amigo e falavalhe com o gazeio argentino mimoso chilrear dos lábios travessos de uma linda menina onde as coisas mais ligeiras e mais frívolas revestem encantos e graça suprema Peri estava distraído seu olhar fitavase no horizonte com uma atenção extraordinária a inquietação que se desenhava no seu semblante era o indício de algum perigo embora ainda remoto Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos que se destacava num fundo de púrpura e rosicler amontoavamse grossas nuvens escuras e pesadas que feridas pelos raios do ocaso lançavam reflexos acobreados Daí a pouco a serrania desapareceu envolta nesse manto cor de bronze que se elevava como as colunas e abóbadas de estalactites que se encontram nas grutas das nossas montanhas O azul puro e risonho que cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura que ia enegrecendo gradualmente à medida que a noite caia Peri voltouse Tu queres ir para terra senhora Não estou tão bem aqui Não foste tu que me trouxeste Sim mas O quê Nada podes dormir sem receio Ele tinha se lembrado que entre dois perigos o melhor era preferir o mais remoto aquele que ainda estava longe e talvez não viesse Por isso resolveu não dizer nada a Cecília e conservarse atento e vigilante para salvála se o que ele temia se realizasse Peri havia lutado com o tigre com os homens com uma tribo de selvagens com o veneno e tinha vencido Era chegada a ocasião de lutar com os elementos com a mesma confiança calma e impassível esperou pronto a aceitar o combate Anoiteceu O horizonte sempre negro e fechado se iluminava às vezes com um lampejo fosforescente um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas como o seio de uma vela enfunada pelo vento Entretanto ao redor tudo estava quieto as estrelas recamavam o azul do céu a viração aninhavase nas folhas das árvores os murmúrios doces da solidão cantavam o hino da noite Cecília adormeceu no seu berço murmurando uma prece Era alta noite sombras espessas cobriam as margens do Paraíba De repente um rumor surdo e abafado como de um tremor subterrâneo propagandose por aquela solidão quebrou o silêncio profundo do ermo Peri estremeceu ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio que enroscandose como uma serpente monstruosa de escamas prateadas ia perderse no fundo negro da floresta O espelho das águas liso e polido como um cristal refletia a claridade das estrelas que já desmaiavam com a aproximação do dia tudo estava imóvel e quedo O índio curvouse sobre a borda da canoa e de novo aplicou o ouvido pela superfície do rio rolava um som estrepitoso semelhante ao quebrarse da catadupa precipitandose do alto dos rochedos Cecília dormia tranqüilamente sua respiração ligeira ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao sopro tênue da aragem Peri lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio Quebrou o laço que prendia a canoa e impeliua para a terra com toda a força do remo que fendeu a água rapidamente À beira do rio elevavase uma bela palmeira cujo alto tronco era coroado pela grande cúpula verde formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas Os cipós e as parasitas engrazandose pelos ramos das árvores vizinhas desciam até o chão formando grinaldas e cortinas de folhagem que se prendiam às hastes da palmeira Tocando a margem Peri saltou em terra tomou Cecília meio adormecida nos seus braços e ia entranharse pela mata virgem que se elevava diante dele Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendose em convulsões e deitouse de novo no seu leito soltando um gemido profundo e cavernoso Ao longe o cristal da corrente achamalotouse as águas frisaramse e um lençol de espuma estendeuse sobre essa face lisa e polida semelhante a uma vaga do mar desenrolandose pela areia da praia Logo todo o leito do rio cobriuse com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa rumorejando como um manto de seda Então no fundo da floresta troou um estampido horrível que veio reboando pelo espaço dirseia o trovão correndo nas quebradas da serrania Era tarde Não havia tempo para fugir a água tinha soltado o seu primeiro bramido e erguendo o colo precipitavase furiosa invencível devorando o espaço como algum monstro do deserto Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo em vez de ganhar a mata suspendeuse a um dos cipós e galgando o cimo da palmeira ai abrigouse com Cecília A menina despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava interrogou seu amigo A água respondeu ele apontando para o horizonte Com efeito uma montanha branca fosforescente assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta e atirouse sobre o leito do rio mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas A torrente passou rápida veloz vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores que estremeciam com o embate hercúleo Depois outra montanha e outra e outra se elevaram no fundo da floresta arremessandose no turbilhão lutaram corpo a corpo esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem Dirseia que algum monstro enorme dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água mordendo a raiz de uma rocha fazia girar a cauda imensa apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens Ou que o Paraíba levantandose qual novo Briareu no meio do deserto estendia os cem braços titânicos e apertava ao peito estrangulandoa em uma convulsão horrível toda essa floresta secular que nascera com o mundo As árvores estalavam arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco prostravamse vencidas sobre o gigante que carregandoas ao ombro precipitava para o oceano O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam o estampido da torrente os trôos do embate desses rochedos movediços que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa formavam um concerto horrível digno do drama majestoso que se representava no grande cenário As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto onde um dos elementos reinava como soberano Cecília apoiada ao ombro de seu amigo assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso Peri sentia o seu corpinho estremecer mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa um só grito de susto Em face desses transes solenes desses grandes cataclismas da natureza a alma humana sentese tão pequena aniquilase tanto que se esquece da existência o receio é substituído pelo pavor pelo respeito pela emoção que emudece e paralisa O sol dissipando as trevas da noite assomou no oriente seu aspecto majestoso iluminou o deserto as ondas de sua luz brilhante derramaramse em cascatas sobre um lago imenso sem horizontes Tudo era água e céu A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar as grandes massas de água que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba desceram das serranias e de torrente em torrente haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira que aparecia coberta por um nevoeiro escuro mas o céu azul e límpido sorria mirandose no espelho das águas A inundação crescia sempre o leito do rio elevavase gradualmente as árvores pequenas desapareciam e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos A cúpula da palmeira em que se achavam Peri e Cecília parecia uma ilha de verdura banhandose nas águas da corrente as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso onde os dois amigos estreitandose pediam ao céu para ambos uma só morte pois uma só era a sua vida Cecília esperava o seu último momento com a sublime resignação evangélica que só dá a religião do Cristo morria feliz Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios Podemos morrer meu amigo disse ela com uma expressão sublime Peri estremeceu ainda nessa hora suprema seu espírito revoltavase contra aquela idéia e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal Não exclamou ele Tu não podes morrer A menina sorriu docemente Olha disse ela com a sua voz maviosa a água sobe sobe Que importa Peri vencerá a água como venceu a todos os teus inimigos Se fosse um inimigo tu o vencerias Peri Mas é Deus É o seu poder infinito Tu não sabes disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento Falou com um tom solene Foi longe bem longe dos tempos de agora As águas caíram e começaram a cobrir toda a terra Os homens subiram ao alto dos montes um só ficou na várzea com sua esposa Era Tamandaré forte entre os fortes sabia mais que todos O Senhor falavalhe de noite e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu Quando todos subiram aos montes ele disse Ficai comigo fazei como eu e deixai que venha a água Os outros não o escutaram e foram para o alto e deixaram ele só na várzea com sua companheira que não o abandonou Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira ai esperou que a água viesse e passasse a palmeira dava frutos que o alimentavam A água veio subiu e cresceu o sol mergulhou e surgiu uma duas e três vezes A terra desapareceu a árvore desapareceu a montanha desapareceu A água tocou o céu e o Senhor mandou então que parasse O sol olhando só viu céu e água e entre a água e o céu a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira A corrente cavou a terra cavando a terra arrancou a palmeira arrancando a palmeira subiu com ela subiu acima do vale acima da árvore acima da montanha Todos morreram A água tocou o céu três sóis com três noites depois baixou baixou até que descobriu a terra Quando veio o dia Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea e ouviu a avezinha do céu o guanumbi que batia as asas Desceu com a sua companheira e povoou a terra Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a uma as suas palavras como se fossem as partículas do ar que respirava parecialhe que a alma de seu amigo essa alma nobre e bela se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes e vinha embeberse no seu coração que se abria para recebêla A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira e uma gota resvalando pelo leque foi embeberse na alva cambraia das roupas de Cecília A menina por um movimento instintivo de terror conchegouse ao seu amigo e nesse momento supremo em que a inundação abria a fauce enorme para tragálos murmurou docemente Meu Deus Peri Então passouse sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda heróica sobrehumana um espetáculo grandioso uma sublime loucura Peri alucinado suspendeuse aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos abalouo até as raízes Três vezes os seus músculos de aço estorcendose inclinaram a haste robusta e três vezes o seu corpo vergou cedendo a retração violenta da árvore que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado Luta terrível espantosa louca esvairada luta da vida contra a matéria lata do homem contra a terra lata da força contra a imobilidade Houve um momento de respouso em que o homem concentrando todo o seu poder estorceuse de novo contra a árvore o ímpeto foi terrível e pareceu que o corpo ia despedaçarse nessa distensão horrível Ambos árvore e homem embalançaramse no seio das águas a haste oscilou as raízes desprenderamse da terra já minada profundamente pela torrente A cúpula da palmeira embalançandose graciosamente resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante formada pelas vegetações aquáticas Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada e tomandoa nos braços disselhe com um acento de ventura suprema Tu viverás Cecília abriu os olhos e vendo seu amigo junto dela ouvindo ainda suas palavras sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna Sim murmurou ela viveremos lá no céu no seio de Deus junto daqueles que amamos O anjo espanejavase para remontar ao berço Sobre aquele azul que tu vês continuou ela Deus mora no seu trono rodeado dos que o adoram Nós iremos lá Peri Tu viverás com tua irmã sempre Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo e lânguida reclinou a loura fronte O hálito ardente de Peri bafejoulhe a face Fezse no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia E sumiuse no horizonte GONÇALVES DIAS POESIA COMPLETA E PROSA ESCOLHIDA MANUEL BANDEIRA A Vida e a Obra do Poeta A Poética de Gonçalves Dias ANTÔNIO HOUAISS O Texto dos Poemas ALEXANDRE HERCULANO Futuro Literário de Portugal e do Brasil Prólogo aos Cantos RIO DE JANEIRO EDITÔRA JOSÉ AGUILAR LTDA 1959 MEDITAÇÃO FRAGMENTO 1846 CAPÍTULO PRIMEIRO I II Então o velho estendendo a mão descarnada e macilenta tocou as minhas pálpebras E as minhas pálpebras cintilaram como sentindo o contacto de um corpo eletrizado E diante dos meus olhos se estendeu uma corrente de luz suave e colorida como a luz de uma aurora boreal E o ancião me disse Olha do norte ao sul do ocaso ao nascer do sol té onde alcançar a luz dos teus olhos e dizeme o que vês E o seu gesto era soberano e tremendo como o gesto de um monarca irritado E a sua voz solene e grave como a voz do sacerdote que salmeia uma oração fúnebre em noite de enterramento E eu levei os meus olhos do norte ao sul do ocaso ao nascer do sol té onde eles alcançavam e respondi Meu pai vejo diante de meus olhos uma prodigiosa extensão de terreno é por ventura algum grande império tão grande espaço me parece que encerra E as árvores que o sombreiam são robustas e frondosas como se desde a criação presenciassem o incessante volver dos séculos E a relva que o tapisa é densa e aveludada e as suas flôres melin drosas e perfumadas e às suas aves canoras e brilhantes como as suas flores E o céu que cobre essa terra bendita é sereno e estrelado e parece refletir nas suas cores fulgentes o sorriso benévolo e carinhoso de quando o Criador o suspendia nos ares como um rico diamante pendente do seu trono E sobre essa terra mimosa por baixo dessas árvores colossais vejo milhares de homens de fisionomias discordes de côr vária e de caracteres diferentes E esses homens formam círculos concêntricos como os que a pedra produz caindo no meio das águas plácidas de um lago E os que formam os círculos externos têm maneiras submissas e respeitosas são de côr preta e os outros que são como um punhado de homens formando o centro de todos os círculos têm maneiras senhoris e arrogantes são de côr branca E os homens de côr preta têm as mãos presas em longas correntes de ferro cujos anéis vão de uns a outros eternos como a maldição que passa de pais a filhos III E eu falava ainda quando um mancebo imberbe saindo dentre os homens de côr branca acoitou as faces de outro de côr preta com o reverso de sua mão esquerda E o ofendido velho e curvado sob o peso dos anos cruzou os braços musculosos apesar da velhice e deixou pender a cabeça sobre o peito E após um instante de silêncio profundo arrojouse aos pés de um ancião de côr branca clamando justiça com voz abafada E um dentre estes na flor da idade ergueuse iroso entre o homem de cabelos brancos e o preto injuriado que pedia justiça e o lançou por terra E o ancião de côr branca que longe do bulício do mundo havia meditado longos anos soltou um suspiro das profundezas do peito E os elos da corrente que manietava os homens de côr preta soltaram um som áspero e discorde como o rugido de uma pantera E eu vi que esses homens tentavam desligarse das suas cadeias e que dos pulsos roxeados lhes corria o sangue sobre as suas algemas E vi que o ferro resistia às suas tentativas mas também vi que a sua raiva era frenética e que o sangue que lhes manava das feridas cerceava o ferro como o enxôfre incendio PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO I 743 IV E o ancião me disse Afasta os olhos dos homens que sofrem e dos que fazem sofrer como de um objeto impuro e volveos em redor de ti E eu afastei os olhos desse espetáculo lutuoso e volvios em redor de mim E vi algumas cidades vilas e aldeias disseminadas pela vasta extensão daquele império como árvores raquíticas plantadas em desertos infrutíferos E nessas cidades vilas e aldeias havia um fervilhar de homens velhos e crianças correndo todos em direções diversas e com rapidez diferente como homens carentes de juízo E as suas ruas eram tortuosas estreitas e mal calçadas como obra da incúria e as suas casas baixas feias e sem elegância não rivalizavam com a habitação dos castores E os seus palácios eram sem pompa e sem grandeza e os seus templos sem dignidade e sem religião E os seus rios obstruídos por alguns troncos desenraizados eram cortados por jangadas mal tecidas ou por miseráveis canoas de um só toro de madeira E nessas cidades vilas e aldeias nos seus cais praças e chafarizes vi somente escravos E à porta ou no interior dessas casas mal construídas e nesses palácios sem elegância escravos E no adro ou debaixo das naves dos templos de costas para as imagens sagradas sem temor como sem respeito escravos E nas jangadas mal tecidas e nas canoas de um só toro de madeira escravos e por toda a parte escravos Por isto o estrangeiro que chega a algum porto do vasto império consulta de novo a sua derrota e observa atentamente os astros porque julga que um vento inimigo o levou às costas dÁfrica E conhece por fim que está no Brasil na terra da liberdade na terra ataviada de primores e esclarecida por um céu estrelado e magnífico Mas grande parte da sua população é escrava mas a sua riqueza consiste nos escravos mas o sorriso o deleite do seu comerciante do seu agrícola e o alimento de todos os seus habitantes é comprado à custa do sangue do escravo 256 GONÇALVES DIAS POESIA COMPLETA E PROSA 744 E nos lábios do estrangeiro que aporta ao Brasil desponta um sorriso irônico e despetioso e ele diz consigo que a terra da escravidão não pode durar muito porque ele é crente e sabe que os homens são feitos do mesmo barro sujeitos às mesmas dores e às mesmas necessidades V E sabes tu perguntoume o ancião por que as vossas ruas são estreitas tortuosas e mal calçadas e por que as vossas casas são baixas feias e sem elegância Sabes por que são vossos palácios sem pompa e sem grandeza e os vossos templos sem dignidade e sem religião Sabes por que é miserável a vossa marinha e por que se ri o estrangeiro que aporta ao Brasil E porque o belo e o grande é filho do pensamento e o pensamento do belo e do grande é incompatível com o sentir do escravo E o escravo é o pão de que vos alimentais as telas que vestis o vosso pensamento cotidiano e o vosso braço incansável Vê as pirâmides do Egito sarcófagos gigantescos que lá se vão perder nas entranhas das nuvens tão elevadas como o mais elevado pensamento Vê os templos gregos cuja elegante arquitetura buscava assento em meio de vales deleitosos harmonizandose com o céu da Grécia e com a fertilidade e vida da sua gleba Vê nas cúpulas árabes essa floresta de colunas de mil côres rodando em um peristilo circular semelhante às tendas das tribos nômades e patriarcais Vê os templos da Idade Média essas epopéias do Cristianismo com os seus zimbórios volumosos com os seus campanários terminados em agulhas sutis e afiadas que elevam o pensamento além das nuvens Esses túmulos bem como as ruínas dos palácios e dos templos de Mênfis revelam uma idéia porque os egípcios a gravaram nas suas obras debaixo dos hieroglíficos que os sacerdotes multiplicaram na fachada dos seus templos e nas paredes dos seus edifícios Os gregos realizaram o beloideal e os árabes tentando realizálo transformaram a sua tenda de um dia em habitações duradouras porque eles eram livres nos atos e nos pensamentos livres como o simum dos areais PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO I 745 E os bizarros brutescos da arquitetura gótica representam a vida porém a vida multiplice e variada e a agulha dos seus templos figuravam o infinito e o seu cimento indestrutível traz à lembrança as idéias mais puras da moral Deus e a imortalidade E os pagodes da China ou a pedra druídica no meio das florestas gaulesas ou mesmo as inscrições e imperfeitos desenhos dos vossos índios na superfície lisa dos rochedos do Iapurá dizem mais e são mais belos que os vossos edifícios sem expressão nem sentimento E o escravo não pode ser arquiteto porque a escravidão é mesquinha e porque a arquitetura filha do pensamento é livre como o vento que varre a terra E o escravo será negligente e inerte porque não lhe aproveitará o suor do seu rosto porque a sua obra não será a recompensa do seu trabalho porque a sua inteligência é limitada e porque ele não tem o amor da glória E o homem livre dará de mão às boasartes porque não quer ombrear com o escravo que é infame e desonroso E não se dará às artes mecânicas que são o emprego do liberto e daqueles que não são homens E não se dará à marinha esse potente veículo do comércio e da civilização porque a marinha está inçada de escravos E se os seus vestidos roçarem a opa do escravo ou a escrava do liberto ele os sacudirá com asco e se a sua mão tocar amigavelmente a mão do escravo ele a cerceará do pulso como pois o chamará colega VI Um dia aparecestes sobre a terra com todos os vicios de uma nação decadente como se houvesseis vivido longos anos E nem sequer provastes aquelas amargas lições da experiência que as nações colhem durante a sua existência política bem como os homens durante a sua vida E como a juventude orgulhosos e fatuos julgais que todos vos obedecem quando a todos vos sujeitais julgais que existis quando sois meramente prelúdio de vida um feto gigante que começa a desenvolverse debaixo da influência poderosa do sol dos trópicos E se possível fosse que um dos grandes homens do velho mundo hoje se erguesse em meio de vós outros do seu sepulcro onde ele dorme o sono eterno embalado pelos encomios das gerações que passam 746 GONÇALVES DIAS POESIA COMPLETA E PROSA ele pediria os vossos anais para que soubesse que passo andastes no caminho do progresso e que bem fizestes à humanidade Porque eles sabem que as nações formamse pogridem e decaem com o mesmo movimento que talvez se podesse marcar por uma como dinâmica e terapêutica social E ele vos diria que antes que os helenos curvassem a cabeça ao jugo otomano foram guerreiros da Iliada os de Maratônia e Salamina e os sábios do tempo de Péricles E antes que os romanos passassem meia vida nas suas termas perfumadas e antes que fôssem os autores de moles serenatas e de cançonetas de amor foram os conquistadores da Gália da Ibéria e da Escandinávia e os senhores do mundo conhecido e os artistas de Leão X E antes que os bretões se dessem à orgia e à intemperança depois das sessões dos seus parlamentos antes que dessem ao mundo estupefato o espetáculo das suas fantásticas extravagâncias foram os companheiros dos reis Artur Henrique e Ricardo e os filósofos e literatos do século XVI e do século XVII E os gauleses também foram os guerreiros de Breno os companheiros de Luís o Santo de Baiardo o último cavaleiro e de Francisco o rei cavalheiro e os homens de Luís XIV Passaram todos da idade da força à idade da razão do reinado das armas ao reinado da inteligência para depois adormecerem sobre o fruto dos seus trabalhos como o vindimador junto aos cestos que ele mesmo encherá de apetitosos cachos Não assim vós que sois uma anomalia na ordem social como o que nasce adulto com os vícios e as fraquezas da idade provecta e com e ceticismo do homem pervertido E não tereis vós de retroceder pelo mesmo caminho por onde agora divagais ou vos lançou Deus sobre a terra por que servisseis de lição ao porvir e de escarmiento às gerações futuras VII E o ancião falava ainda porém o meu pensamento não o escutava que os meus olhos seguiam um objeto horrível como o talvez de um grande infortúnio Como Laocoomte sofrendo terríveis agonias concentrava todas as suas forças para livrarse dos anéis vigorosos da serpente que o enlacava Como no meio de uma habitação que arde o homem louco e delirante agarrase às traves em brasa meio comidas pelo incêndio e não sente a dor do fogo que lhe rói a carne dos membros PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO II 747 Os homens que sofriam reuniramse como um só homem e soltaram um grito horríssono como seria o desabar dos mundos E pareceume que eles se transformavam em unidade como um colosso enorme e válido cuja fronte se perdia nas nuvens e cujos pés se enterravam em uma sepultura imensa e profunda como um abismo E o colosso tinha as feições horrivelmente contraídas pela raiva e com os braços erguidos tentava descarregar às mãos ambas um golpe que seria de extermínio E a vítima era um povo inteiro eram os filhos de uma numerosa família levados ao sacrifício por seus pais como Abraão levou a Isaque seu filho E como Isaque as vítimas deste sacrifício cruento tinham cortado a lenha para a sua fogueira e adormeceram sobre ela sonhando um festim suntuoso E como Isaque também eles acordaram com as espadas sobre as suas cabeças e o seu despertar foi terrível porque sómente Deus os poderia salvar E um calafrio de terror percorreu a medula dos meus ossos e o meu sangue parou nas minhas veias e o meu coração cessou de bater E o ancião que tudo sabia compreendeu o meu sofrimento e tirou a mão de sobre as minhas pálpebras e os meus olhos se abriram de novo E um manto de trevas impenetráveis se desenrolou súbitamente diante dos meus olhos como diante dos olhos de Tobias quando o Senhor quis provar a sua virtude E eu percebi que a vida fugia dos meus sentidos e caí de face contra a terra com a inércia de um corpo sem vida Caxias 23 de junho de 1845 CAPÍTULO II Vir vanus in superbiam erigitur et tanquam pullus onagri se liberum natum putat JOB I II E eu continuei dizendo Ancião eu falarei na tua presença e derramarei minha alma a teus pés para que escutes as palavras do meu pensamento Porque tu esclareceste a minha alma como a luz às trevas e porque de te ouvir o pensamento me estua nos lábios Porque um poder superior quebra a mudez dentro do meu peito e eu mesmo me desconheço no arrojo das minhas palavras E se elas te parecerem mal pensadas perdoa ao sentir da juventude em favor da minha sinceridade Porque eu falo de coração singelo e na verdade da minha consciência Assim eu falarei na tua presença e derramarei minha alma a teus pés E ele disse Os velhos vêem tudo ao través de um manto de gelo e o seu pensamente gravita incessante em redor do passado essa quadra feliz em que seus olhos gostavam de rosicler da aurora E nas suas palavras traveja o severo da verdade e de involta com o azedume do homem que viveu inutilmente longos anos Porque no fim da sua carreira ele derramou os olhos sobre o caminh0 por onde viajara interpelando a si mesmo na sua consciência e disse o que fiz eu Sublime por certo é a missão do homem sobre a terra sofrer e ajudar a sofrer E eu que fiz Vegetei como a palmeira do deserto cuja copa não abriga o viajol fatigado cujo tronco não ampara a vergonha dos arbusto semimorto que lambe a terra com as folhas amarelas Meus dias tão breves como fogo de palha declinaram como a sombra vivi como o regato sem nome e caio sobre o meu sepulcro como a árvore mesquinha cujo baquear não desperta o eco velador das montanhas Não assim o mancebo Seus olhos são como um prisma seu coração como uma fogueira e o seu génio impetuoso como a torrente Enlevado contempla a natureza e não compreende como tanto frescor ameigasse os olhos das gerações que passaram olhos que pularam em órbitas hoje escavadas pelos vermes dos sepulcros Rei do Universo ele o observa ressumbrando ardimento e majestade fogo da vida lhe anima a cór das faces e do sangue que lhe arde nas veias é de que se nutrem o heroísmo e a magnanimidade Mas entre a severidade do velho e o devaneio do mancebo está a verdade Porque o céu não tem só luzeiros nem a terra só produz flores mas entre as flores está a serpente e com os luzeiros do céu as asas negras da noite e a cauda oblonga do cometa Assim a vida também é uma alternativa de dor e de prazer de luz e de trevas de esperança e desesperação Porque ela é semelhante a tela urdida de cânhamo e de seda onde igualmente se encontra aspereza e brandura Assim pois eu falarei na tua presença e tu pesarás as minhas palavras e a força do meu discurso III Como falas tão seguro de ti mesmo quando só Deus é infalível Ou por ventura asilas no peito a verdade sómente como na alêmpada do Tabernáculo óleo puríssimo e sem mistura Falas do futuro como se houvesses lido a palavra do livro eterno onde a Providência lavra os seus decretos Falas do presente com a presciência do futuro e as tuas palavras são como o vinagre que se misturou com o fel A um povo recente e cheio de vida chamaste caduco e breve Aos vícios da juventude mas de nobre e de arrojada juventude apelidaste princípios de decadência Aos seus erros aos preconceitos que lhe são inerentes filhos da ignorância ou da inexperiência julgas filhos de más entranhas e de intenções danadas Observaste atentamente a multidão dos seus vícios e não atentaste na força da sua vitalidade Viste que a aurora se ressentia de noite trovejada e não julgas que o sol ao meiodia possa esplender magnífico e fulgurante Ancião mentido será o teu vaticínio como carnes de um falso profeta Porque uma infinidade de mancebos se ergueu diante dos teus olhos como um bando de voláteis de sob os pés do viandante que vai distraído por meio da floresta sem caminho E eles se ergueram bons de vontade simples de coração e ardidos de inteligância e vão caminho do progresso a passos de gigante Eles marcham rápidos como a corrente da catadupa como a bala inverossímil e ai do que ousar interporselhes Eles galgam montes e precipícios como os pombos do Levante como os corcéis da Ucrânia como a zebra indomável Que mole pois poderá interceptarlhes o caminho ou que braço válido e musculoso poderá retêlos na carreira desassombrada Ancião folgo de crer que será mentido o teu vaticínio como fantasmas criados por um espírito exaltado no ardor da febre que o devora IV E o velho me tornou com um sorriso cheio de inefável doçura Meu filho a verdadeira ciência não se colhe dos livros ela vem com a meditação A meditação essa filha do céu que desce sobre o coração do solitário tão silenciosa e docemente como orvalho noturno sobre o cálex de uma flor Rainha grave e madura que não traja o ouro pel da imaginação que não se adorna com pedrarias porque ela é sublime na sua simplicidade majestosa no recolhimento do seu porte Esse livro dalma que vós outros mancebos não consultais porque é austero e cheio de rigidez nos seus ditames e porque não vos fala a linguagem acalorada e veemente das paixões Perguntas que braço os poderá reter ou que mole interceptarlhes o passo Quem mancebo Será o tempo que passa veloz e fugaz como a sombra será a folha escorregadia em que pode resvalar o pé do gigante Será a vontade daquele que marcou os caminhos da aurora e que por um invento maravilhoso suspendeu o mundo nos ares Daquele que derrama a luz sobre a terra que dirige a harmônia dos astros que ao sol disse vai incessante e ao mar acabarás aqui Que ao homem disse caminha mas não lhe fêz saber os limites da sua viagem porque a sua Providência está com eles e os leva como o guia conduz ao cego como os olhos guiam a criatura V E não sois vós como o cego de nascimento que não compreende o que é a vista nem outra existência além da sua Sabeis por ventura que outros melindrosos sentidos terieis se Deus os entornasse sôbre vós com mão dadivosa de padrinho sobre o regaço de noiva recémcasada Não e todavia vós dizeis na vossa consciência a razão é a só motora do homem e eu andarei confiado nela pelo caminho da vida E andais andais semelhantes ao coveiro que se alumia com uma luz vacilante tropeçando a cada momento nas pedras dos sepulcros Insensatos pois a luz que vacila não é a primeira que diz aos olhos dos que a vêem que ela está prestes a falecer Insensatos pois a mesma razão não vos diz que ela é insuficiente para guiarvos no caminho da vida Certo porém vós cerrastes os vossos olhos para não verdes e os vossos ouvidos para não ouvires semelhantes ao avarento que não escuta o gemido da miséria nem as preces do infortúnio sentado no mantalote do arcaz abaulado de preciosidades VI E eles vão caminho do progresso a passos de gigante Quem volo disse Por ventura basta sobrepormos um dia a outro dia um ano a outro ano e um século a outro século para avançarmos em civilização Se não chamais Progressista ao homem que vai servilmente colocando os pés sóbre as pegadas de outrem como chamais grande ou progressista ao povo que só imita Ao povo que a êsm0 adota dos estranhos usos leis e costumes às vezes do pior que há entre eles e que deles passa e vós perpetuais A nacionalidade que é dela O característico de um povo que é dele Não sabeis vós que a planta exótica perde o mais excelente de seu aroma e que a roseira dos Alpes produz espinhos plantada em vales Dirvosei que as nações se melham os indivíduos E se milhões de indivíduos morreram sem nome também foram povos cujos nomes se deliram dos anais da humanidade E como existiram homens sem génio povos também existirão sem ele Porque eles dirão em sua indolência Porque plantarei um pomar se não hei de provar dos seus frutos E o mesmo dirão vossos filhos e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos e não plantarão o pomar E dirão mais no seu egoísmo Se eu incendiar esta deveza ainda me fica sombra para me asilar na calma do verão E o mesmo dirão vossos filhos e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos e incendiaráo as suas devezas E direi mais Não construirei uma ponte sobre este rio porque uma árvore colossal caiu sóbre elé a flor da água e que me importa que o seu leito se encha de areias e que não haja comunicação entre os homens que habitam a sua nascença e os da sua embocadura E o mesmo dirão vossos filhos e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos e o tronco permanecerá à flor dágua e o seu leito se encherá de areias e não haverá comunicação entre os homens que habitam a sua nascença e os que moram na sua embocadura VII Se quiserdes atravessar o oceano construireis primeiro um navio e a sua construção esgotará a vossa paciência Cercareis árvores gigantescas alisareis seus troncos e depois ficarão expostas ao sol e isto leva tempo Dareis uma têmpera vigorosa aos vossos alviões e às vossas alavancas preparareis os instrumentos e as máquinas de escavação e isto leva tempo Cavareis a terra e dela estraireis metais para a vossa obra e os moldareis aos usos para que os heis mister Plantareis linha e virá o tempo da colheita tendes depois de o secar ao sol de o maçar cansando os músculos dos vossos braços de o cardar em dentes de ferro de fiar longos fios de tecer longas teias de preparar cabos e amarras e isto leva tempo Tereis de aplainar a madeira de juntar suas tábuas fortemente preparareis tudo apprendreis Matemática Mecânica Geografia e Astronomia e o largareis do estaleiro E por fim o poreis em lastro para que ele não mostre a quilha e obedeça ao leme e então vos aventureis sobre o oceano PROSA MEDITAÇÃO CAPITULO II Fazeis assim também com o povo preparai tudo de antemão porque ele carece de mais cuidados do que no navio e o seu caminho é mais vago e mais perigoso que o oceano Se quereis plantar utilmente adubai vossos campos se quereis colhêr muito esperai a estação da messe Se quereis fundar um edifício cavailhe os alicerces na razão da sua altura Porque não haveis de plantar em solo indomado nem haveis de colhêr frutos temporãos nem edificar sôbre a areia Fazei assim com o povo dailhe idéias do útil e do justo e ele irá caminho do progresso Mas isto leva tempo e vós o não quereis perder para o haverdes em tresdôbro Não o deixeis ir à mercê do destino como um navio sem lastro Instruio primeiro e elé será livre Instruio para que se não diga que edificastes em terra sáfara que quereis colhêr frutos temporãos ou que edificastes sôbre a areia Dailhe Deus por base da sua instrução porque Deus é o princípio da moral e da justiça e sem moral e sem justiça que será do povo Dailhe Deus por base da sua instrução porque Deus é o caminho a luz e a verdade e fora dele não há progresso VIII Mas vós dissestes no vosso orgulho O povo manda o povo é soberano e eu governo o povo Porque eu lhe infundo respeito e ele aninha minhas palavras no fundo do seu coração como em vaso cerrado um licor precioso Porque eu o intimido com a minha presença e ele se curva diante de mim como um tigre diante do homem que o soube domar Porque eu não censuro os seus vícios nem repreendo as suas maldades mas protejo vícios e maldades que me não prejudicam e domino por via da lisoja E o povo disse Se eles nos lisonjeiam é porque somos os mais fortes e se sofremos por que também não faremos sofrer Não nos disseram eles O homem é livre E o que é ser o homem livre se não pode fazer aquilo que lhe aprouver semelhante à cria do onagro Não nos disseram êles Todos somos iguais somos todos irmãos E o que é sermos iguais se não formos todos aferidos pela mesma medida O que é sermos todos irmãos se não é que devemos ter todos uma igual porção de bens como se partilha a herança de um pai pelos filhos que lhe sobrevivem Eles o dirão e no aferimento lançarão na balança todos os seus vícios e turpitudes para contrastar à ciência e virtudes daqueles de quem se dizem iguais E para que o fiel da balança os não atraçãoe no dia em que reinar a soberania do povo êles interporão a lâmina da sua espada e ai do que ousar ir contra à força porque ela é soberana E os que julgavam dominálo por todo o tempo da sua vida serão os primeiros ludibriados escarnecidos e martirizados porque êle se lembrará que obedeceu passivamente e serlheá grato saborear a vingança do escravo feito senhor Serlheá doce a vingança e a crueldade porque ambas são instintos da fera e tal como a fera é o povo que despedaça a obediência qual o tigre aos varões da sua jaula IX Vós introduzistes um cisma entre o povo iludindoo com palavras dobradas entusiasmandoo com lábios dolosos Desteslhes esperanças de uma néscia utopia assegurastelhes direitos impossíveis de se realizarem Nas trevas e em silêncio preparastes um veneno subtilíssimo com uma máscara de vidro no rosto Nas trevas e em silêncio aguçastes o punhal da discórdia e dissestes nós o embotaremos quando nos aprouver E quando nos fór mister rejeitar a sua força nós lhe poremos um dique como à fúria do oceano e êle se conterá nos seus limites Mas porventura pode contar com a vida aquêle que prepara venenos em tamanho segrêdo como o que fabrica moeda falsa Não será tão forte o veneno que despedaçe a máscara de vidro do seu rosto ou será ela tão hermeticamente fechada que o alquimista não deve ter receio de aspirar sequer um átomo desse licor pernicioso E o alfageme ou cutileiro que burne uma espada ou adereça um punhal pode acaso dizer de convicção esta espada não se empregará no meu corpo nem êste punhal se há de tingir do meu sangue Pois em verdade vos digo que será o primeiro escarnecido ludi briado e martirizado aquêle que se julgar dominador por todo o tempo da sua vida Porque o Senhor disse E se algum de vós quiser dominar sôbre os seus irmãos tornarseá o último dentre êles E assim será por todo o sempre porque a palavra do Senhor é eterna X E a voz do ancião morreu nos seus lábios como o apenas perceptível murmúrio da água quando o clepsidra marcou a sua hora derradeira E eu escutei as suas palavras ainda muito tempo depois que êle cessara de falar triaga amarga que em minha alma despertou mil pensamentos dolorosos Mas a esperança me não abandonou neste momentâneo abatimento do meu espírito e eu alevantei a minha voz no ardor da minha esperança e do meu entusiasmo Será como dizeis que me parece que em silêncio e longos anos haveis meditado com espírito sossegado e consciência tranqüila Mas eu alevantarei a minha voz na tua presença porque me quero enriquecer com a tua sabedoria E quem sabe Acaso não resulta o clarão do relâmpago do choque de duas nuvens carregadas de eletricidade opostas Pois talvez que a verdade resulte da imaginação e da experiência a imaginação que é fogo e crê e a experiência que é gēlo e duvida Direi pois A vista humana em que penetraste pode acaso espreitar o segrêdo da abelha ou seguir a germinação da semente no seio da terra Como pois poderá ela aventar o futuro que é mais imperscrutável que o seio da terra e mais opaco que o cortiço da abelha Tu disseste Vós vos lançastes no caminho da vida tão loucos como o corcel generoso em cujos ouvidos mãos de gēnio maléfico houvessem derramado o azougue inquieto E na vossa carreira pasmosa arrastais convosco o povo porque êle vos é mister para as vossas maquinações E para que o povo não sentisse os espinhos de que está irritada a senda por onde o tencionáveis levar mandastes soalhála com tapêtes de recamos triplicados E mandastes pavesar as suas alamêdas com flôres recḗmcolhidas e com arbustos verdejantes trazidos de longas terras para que ao traves delas não visse o povo a terra inculta e a fome de dentes pontiagudos batendo com força uma contra a outra as maxilas emagrecidas E dissesteslhe O vosso caminho é êste e êle seguiu servilmente o caminho que lhe indigitastes porque vós o dominais por via da lisonja pactuando cobardemente com a sua imoralidade E no vosso correr desvanecido não perfazeis um momento qualquer rematado com algum pensamento útil ou grande E embalde vós mesmos procurareis para o futuro alguma obra vossa em que possais descansar os olhos enfraquecidos pela velhice dizendo convosco na vossa consciência Minha vida não foi inteiramente inútil E debalde procurarão vossos filhos pela extensão do vasto Império uma pedra que indique o que seus pais fizeram e à vista da qual pudessem êles clamar gloriosos Nossos pais foram grandes Ancião tu enumeraste escrupulosamente os seus erros e concluíste contigo o povo vaanglorioso e impávido não pode durar muito Eu porém levantarei a minha voz na tua presença e derramarei meu pensamento na tua alma para que escutes a minha voz e para que respondas ao meu pensamento Porque tu esclareceste a minha alma e eu me quero enriquecer com a tua sabedoria XI Escutame pois O homem que pela primeira vez entra em Pisa e vê o pendor da sua tôrre sôbre que ainda não ouviu dissertar dirá com a sua orgulhosa ignorância a tôrre cairá E o mesmo dirá aquêle que de sôbre a tôrre de Asinelli vir a Gravisenda curvarse para o seu lado como um gigante em postura humilhada aos pés do que o domina E pasmará se lhe disserdes que muito tempo se consumiu com a Gravisenda e mais de dois séculos com a tôrre de Pisa E subirá de ponto o seu pasmo se acrescentardes que a obliquidade dessa tôrre causada por terremotos resiste há muitos séculos à foice do tempo à intempérie das estações e às violentas comoções do terreno Porém o arquiteto reconhece que ela é tão estável quanto o podem ser obras de homens e que a sua força aí está inteira no equilíbrio do seu centro de gravidade E as suas mãos delicadas adornavam a frecha com penas de mil cores e embutiam a maçã com relevos trabalhados E os seus lábios entoavam canções de guerra tão enérgicas que exal tavam o espírito dos homens como se foram taças de cauim fortíssimo E ai do cobarde porque nunca a flor da acácia desceria sôbre a sua fronte orgulhosa deitada pela mão da donzela no ardor dos seus amôres E ai dêle porque nunca a môça enamorada viria debruçarse sôbre o seu leito para arrancarlhe com mão trêmula a frecha que teste munha a sua valentia E ai dêle porque a terra é dos valentes e o cobarde não tem ingresso no banquete dos céus onde os velhos contam as suas proezas e folgam de avistar densas florestas onde pula a onça mosqueada e o tigre reluzente II E a visão levoume insensivelmente dos homens da natureza aos que chamamos civilizados Uma infinidade de navios aportavam a todos os pontos do vasto Império como se dos fundos mares surgissem os gigantes monstros que ai dormem séculos sem fim nas grutas imensas de coral tapetadas de sargaço E êsses navios tinham o pez do casco todo cortado e amarelecido com o salitre das ondas e o velame roto pela fúria da tormenta e os cabos puídos com o forcejar contínuo dos marujos E nesses barcos vinham quase tantos homens de tripulação como nos navios monstros da antigüidade suntuosamente construídos por Ptolomeu e Philopator E quem visse tantos homens apinhados sôbre o convés emaranha dos pelos cabos guindandose pelos mastros ruidosos confundidos baralhados julgaria ver êsses navios portugueses da carreira da Índia que o viajante encontra na solidão dos mares Não eram homens crentes que por amor da religião viessem pro pôla aos idólatras nem argonautas sedentos de glória em busca de renome Eram homens sôrdidamente cubiçosos que procuravam um pouco de ouro pregando à religião de Cristo com armas ensangüentadas Eram homens que se cobriam com o verniz da glória destroçando uma multidão inerme e bárbara opondo a bala à frecha e a espada ao tacape sem gume História cioso da liberdade em que nascera morreu nobremente de morte ignominiosa por ordem de um Albuquerque E a Europa inteligente aplaudiu a nação marítima e guerreira que ao através do oceano fundava um novo Império em mundo novo vician dolhe o princípio com o cancro da escravatura e transmitindolhe o amor do ouro sem amor do trabalho E os valentes soltaram o grito da vitória e em lembrança dela quise ram assentar uma cruz no solo por êles conquistado E no chão que êles cavavam para o assento da cruz encontraram uma veia de ouro que os distraiu do seu trabalho E a cruz ficou por terra em quanto êles espalhavam pródigamente o azougue fugitivo para descobrir o depósito do metal precioso E viu Deus que a nação conquistadora se tinha pervertido e mar coulhe o último período da sua grandeza E deulhe uma longa série de anos para que ela lastimasse a sua decadência e conhecesse a justiça inexorável do TodoPoderoso Ela tornarseia fraca porque tinha escravizado o fraco incrédula porque tinha abusado da religião pobre porque sobremaneira tinha amado as riquezas e curvada sob um jugo de ferro porque tinha sido tirana E tôdas as nações do mundo passariam diante dela comparando a sua grandeza doutros tempos com a sua miséria de então E ela tornarseia o opróbrio das gentes de maravilha que tinha sido desouça difendido cio social III E os vencedores exultavam com a sua glória Tranquilos êles haviam adormecido no regaço da vitória prodigali zando desprezo à nação conquistada E a nação conquistada sentiu enraizarse cada vez mais profunda mente em seu coração a malquerença de rivais e o sentimento do ódio que alguns míopes chamaram inveja E entre a suposta inveja de uns e o despeito mal disfarçado de outros crescìa o desejo da vingança como a planta de fácil crescimento no chão em que ela sói nascer E ela apareceria com o andar dos tempos tão horrorosa como o rebate noturno em cidade sitiada ou como os sons freqüentes do bronze que apregoa o incêndio pelo meio da noite E ai do que se julgasse invencível ou que houvesse usado do des preço como de uma arma defensiva adormecendo desdenhosamente na víspera da batalha E ai do valente e corajoso que despreza a força do homem ou da natu reza por insensível que seja esta por desprezível que pareça aquela Porque éle será como o navio imprudente que despreza o grão de areia onde se irá encalhar ou como a baleia orgulhosa que zomba da atração poderosíssima do Maelstron IV E os vencedores conheceram que para subjugar as opiniões de um povo é preciso gênio além de incomparável força bruta E conheceram também que desprezar o vencido é excitar um esforço magnânimo no gladiador que arqueja sobre a arena do anfiteatro E él que poderia morrer vencido exalará o derradeiro alento sol tando o grito de triunfo E assim aconteceu de feito Uma voz sonora e retumbante partiu do Ipiranga e foi do mar aos Andes e do Prata às margens do Amazonas E todos se ergueram violenta e instantâneamente como um cadáver por virtude do galvanismo E soltaram o mesmo brado com voz entusiasta e forte e travaram das armas com a impavidez do guerreiro e com a esperança do homem que pugna em favor da justiça E a corrente que prendia um Império a outro Império fraca com o seu comprimento estalou violentamente em mil pedaços E os dois Impérios soltaram dois gritos simultâneos era de um lado o despeito do caçador que vê fugirlhe a presa e do outro o con tentamento da águia quando pela primeira vez ousa fitar a luz do sol e a balançarse nos campos incomensuráveis do espaço E os homens que eram livres regozijavamse com a vitória do povo emancípado e os que eram tiranizados afiavam com mais ardor a espada da liberdade nas escadas dos potentes E a Europa da outra extremidade do Atlântico aplaudiu o arrojô do povo nascente semelhante ao militar encanecido nas fadigas da guerra que sorrise de prazer aos altos feitos do novel lidador que tão grande se revela em seu começo A extremidade da corrente que era soldada ao Império conquistador era um espigão adentado que ao destacarse lhe arrancou as entranhas das províncias é sobretudo necessário que o homem se convença da sua própria dignidade e tenha conhecimento da moral e da religião 1 VI E a minha visão quebrouse repentinamente e os meus olhos divagaram por toda a extensão do vasto Império E como insetos embelezados em redor do clarão vivíssimo de alâmpada noturna ênes fixaramse fascinados sôbre uma cidade populosa que lá se erguia em uma das suas extremidades E a cidade era soturna e silenciosa e erguiase tão soberba como a palmeira da várzea entre arbustos mal nascidos Nessa mudez apenas se ouvia o passo compassado das suas vigias e o grito das sentinelas bradando alerta de espaço a espaço E em uma das suas extremidades erguiase um castelo como que isolado das outras habitações por um sentimento de respeito E ao través das janelas amplamente rasgadas désse castelo viase a luz dos candelabros de prata e de ouro e de lustres de mil faces que refrangiam a luz com côres vivas e brilhantes É êsse luzeiro repercutindo nas vidraças coloridas das janelas amplamente rasgadas derramava sôbre os tetos distantes e sôbre a praça deserta uma luz amortecida e avermelhada E assim no meio de trevas tão espessas era como um cometa no espaço ou como a fogueira do atalaia ardendo sôbre um monte elevado donde todos a pudessem ver E a minha vista passando ao través do castelo fortemente construído viu na sala esplêndidamente iluminada muitos homens que se entretinham como em conselho E êses homens antípodas dos Diógenes e Cincinatos trajavam vestidos magníficos e adereçavamse de brilhantes e de jóias E êles praticavam entre si sôbre os seus interesses e dispunham do povo em quanto que o povo dormia tranqüilo na sua indolência VII E um deles que era môço e ardente e tinha tódas as ilusões da virtude e da mocidade alevantouse e disse 1 Até êste ponto encontrase êste trabalho nas pp 101 125 e 171 do Tomo Primeiro do Guanabara sendo o que se segue inédito bem como alguns trechos dêstes capítulos que foram omitidos na parte publicada nesse jornal A H L Longas horas passaste contemplando a nitidez de uma noite serena e a tua imaginação encandecida te fèz escutar a harmonia desconhecida dos astros como sons de harpa vaporosa esquecida na amplidão das selvas E durante êse longo imaginar não deste um passo no caminho da vida porque então um grito de dor haverteia chamado à realidade E revolverias o pó para encontrares o espinho que te fèz baixar de tão alto ou o verme desprezível que pode quebrar tão funda meditação E assim é com razão porque a vida do homem é na terra e quem como Ícaro se arroja às nuvens como êle arrisca perderse E o que a glória senão orgulho do barro que não quis perecer na terra que êle é filho O que é ela senão a vaidade do homem como a que sôbre os restos polutos de um cadáver construi um monumento suntuoso O que é ela senão o eco de um nome que cada nova geração vai repetindo cada vez mais duvidosamente até sumirse no olvido E quantos mimosos da fortuna não são hoje preconizados que amanhã terão em recompensa dos seus feitos desdouro e labéu E quantos outros estigmatizados pelos nossos avós na sua coluna de maculado renome não se sentarão à direita do Senhor que os terá escolhido partícipes da sua imortalidade Ê por isso que Deus disse sômente aos homens vivei e não lhes deu o renome como fim a que deviam tender em suas ações Porque os juízos da terra são falsos e filhos de paixões e não merecem o sacrifício dos homens nem a aprovação de Deus VIII E o outro velho levantouse e disse Maravilhosamente falou nosso irmão e as suas doutrinas são filhas da razão e da experiência Eu porém falarei em parábolas porque elas são símplices como a verdade e tódas as inteligências podem alimentarse com a sua substância Um dos poderosos da terra lançou os olhos em redor de si e viu que os seus rebanhos não tinham número e que as suas terras não tinham medida e que um exército de escravos se derramava em redor da sua habitação Viu que as suas terras eram férteis os seus rebanhos médios e os seus escravos humildes Despediram pois os operários e a obra ficou apenas começada e ninguém se quis aproveitar dela Sômente um pobre velho cortou algumas palmas e sôbre um dos andaimes cobriu no meio do edifício uma parte da área para que lhe servisse de abrigo E os que passavam maravilhavamse desta monstruosidade e diziam sorrindo Ô que quer dizer um cágado às costas de um elefante Mas os herdeiros conheceram por fim que nessa obra talhada tanto às largas havia proporções para um palácio magnífico E mandaram chamar os operários para o rematar porém o arquiteto tinha morrido e ninguém houve que se atrevesse à correrlhe uma abóbada E o edifício ao mesmo tempo palácio e tugúrio permaneceu incompleto e os homens continuaram a passar por diante dêle E como não tivessem a imaginação da têmpera daquela que o tinha concebido sorriamse do elefante e do cágado tão visivelmente casados Assim falou o velho e a sua parábola tinha um sentido alto e profundo que os homens não compreenderam e em que êles não quiseram refletir IX Então levantouse o terceiro velho e disse Opinaram nossos irmãos que a primeira lei humana era viver sem curar da glória e a segunda ser útil sem curar da grandeza Porém procurarmos a felicidade de um povo como o nosso que ignora os seus verdadeiros interesses seria arriscarnos a sermos apedrejados por êles Porque seria mister torcêlo para tornálo a meter no caminho da civilização e êles clamariam contra o despotismo que tentasse pôr cȏbro às suas licenças Bem seria encanar um rio cujas águas transbordam porém não será crime deixálo entregue às suas próprias forças embora ensope os campos Deixemolo pois correr a seu talante e não curemos dêle para não sermos apupados pelo bem que lhe tencionamos fazer Curemos de nós sômente porque é êste um século interesseiro e egoísta e nós não devemos ser excepcionais nem podemos ser melhores que todos inextinguível entre os homens que são nossos irmãos por interesses e os que o são por nascimento Porque nós seremos necessários e o nosso domínio se conservará ileso com o furor das turbas E o povo nos bendirá quando extinguirmos um dos fachos da revolta que nós mesmos tivermos acendido E o nosso peito cobrirseá de condecorações e de honrarias e por todos seremos aclamados os primeiros da nossa época e os salvadores da Pátria E os homens de boa vontade afastarseão das nossas deliberações e ninguém haverá que marche de par conosco E os velhos ergueramse dos seus assentos de marfim e clamaram Preguemos as revoluções como princípio de progresso e acendamos o facho da discórdia E o incêndio se ateará por todos os ângulos do vasto império e não haverá elemento na natureza que o possa extinguir e o nosso império durará tanto como êle Então um sorriso alto e mofador rebentou por tôda a sala e foi de um ângulo a outro do liso pavimento aos arabescos intrincados da abóbada E os velhos encararamse estupefatos e emudeceram de torpor E um dentre êles levantou a voz no meio deste silêncio e perguntou O Rei que faz E todos repetiram a mesma pergunta com ansiedade visível O Rei que faz E o que tinha falado em último lugar levantou silenciosamente um canto dos rases que cobriam as paredes do aposento E viuse além do aposento o Rei que tranqüilo repousava em um leito magnificamente adornado E o que tinha levantado o canto dos rases disse em voz cavernosa O Rei dorme E os rases desceram lentamente como uma folha de pergaminho que a custo se desdobra e vieram morrer sem eco nos tapêtes felpudos da sala E a mesma risada rebentou com mais força e ainda mais expressiva e perdeuse vagarosamente pelos corredores que em meandros inextricáveis cortavam o aposento PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO III XI Então êles prepararam matérias áridas e combustíveis e as ligaram estreitamente à maneira de fachos E êstes fachos êles os mergulharam em uma espécie de pez grego cuja chama não podia ser apagada nem com água nem com vinagre Então acenderam um dêstes fachos num dos bicos dos candelabros de prata e o arremessaram em cima da cidade E o povo e o Rei dormiam tranqüilos e os atalaias fascinados com a luz das suas fogueiras não viram êsse meteoro aziago que alumiaiva as trevas no meio da noite Porém viramno os homens dos campos e correram tumultuosamente acudindo ao convite de sangue que os Grandes lhes faziam E o incêndio levantou estrepitosamente as suas línguas de fogo e as casas estalavam com fragor e os homens e mulheres corriam delirantes pelo meio das ruas envoltas em fumo e alumiados pelo revérbero das chamas E o canhão ajuntou a sua voz medonha e retumbante ao concerto horroroso dos mártires e dos carrascos E o sangue corria pelas ruas e as espadas estavam tintas em sangue e por tôda a parte havia sangue Era uma cena de pavor de luto e desespero de pranto e de glórias E por tôda a extensão do vasto Império houve um estremecimento pressago de que cedo ou tarde seriam também êles vítimas da mesma crueldade XII Uma mão ainda mais fria do que o meu corpo que transudava de terror calcou o meu ombro e eu senti uma impressão dolorosa como se os meus ossos se partissem E o ancião me disse A vossa política é mesquinha e vergonhosa e milagroso é o homem que sai dela limpo de mãos e de consciência Os Delegados da Nação que não contam com o voto aturado e livre do povo vendemse impudicamente Porque o vosso povo que não tem consciência por lhe faltar a instrução aceitará o candidato que lhe for apresentado por um Mandarim ou por um chefe de partido às tontas improvisado Ao compararmos a parte II do Capítulo Terceiro de Meditação de Gonçalves Dias e o capítulo X Cristão da Quarta Parte de O Guarani de José de Alencar estamos a analisar duas obras que surgiram durante a famigerada escola do romantismo Porém ao passearmos pelas páginas dos livros percebemos o insurgir de enormes contrastes no que diz respeito à abordagem dos autores estando diante daquilo que chamaremos a história da nação brasileiro Como é de conhecimento comum essa história começou muito antes da chegada dos portugueses em 1500 Até então tribos das mais diversas conviviam pacificamente ou não sob seus próprios costumes hábitos crenças e tradições Houve um dia no entanto em que despontaram do mar caravelas tal como monstros a fim de desbravar Mas o quê exatamente É esta a mesma indagação que permeia o texto referido de Gonçalves Dias Havemos de reconhecer que a missão portuguesa tinha dois mastros um apontado rumo a levar o cristianismo àqueles que não o conheciam e outro ao acúmulo de riquezas riquezas estas que cintilavam ao parecerem infinitas despertavam a mais inclemente cobiça humana por restarem como que de ninguém sem títulos de dívidas nem proprietários oficiais Separavaos de tais tesouros contudo um único detalhe ou muitos os guardiões daquela terra que era para eles também do mais alto teor do sagrado Sob este prisma Gonçalves Dias diferese de todos os seus companheiros literatos do período Enquanto as implicações da escravidão parecia ser tratada como um tabu intocável para uma sociedade já estabelecida a mesma questão estava longe de ser resolvida e incomodava ao escritor tal qual ferida aberta ganhando assim traços de expressões através de sua pena Gonçalves Dias atina justamente contra aqueles que caíram de seu ofício missionário a partir do momento em permitiram que os seus corações fossem guiados somente pela materialidade dos tesouros das terras do Brasil Viriam a ser os outros homens não civilizados os obstáculos do progresso que deveriam ser removidos se necessário fosse tudo em nome de um bem maior ou pelo menos de maior abastança por parte dos impositores A crítica severa do poeta levantase ainda expondo a patente contradição da mensagem oficial da Igreja que em seus documentos até podia assegurar a igualdade de condição natural inerente a todos os homens mas na prática sob reger dos colonos era preterida esquecida e ridicularizada pelo avançar das políticas escravocratas Ainda em alusão ao tema Gonçalves Dias estabelece uma metáfora em que compara um espelho o qual mesmo quando posto em mil pedaços ainda consegue refletir em cada um deles praticamente a totalidade do objeto em cuja vista está Por óbvio temse aí uma bela descrição de como se deveria enxergar originalmente a individualidade de cada ser humano enquanto advindos de um lugar comum Por outro lado temos na obra de Alencar uma outra perspectiva que nos leva a novamente refletir acerca da multiplicidade que tomaram vez no processo de ocupação portuguesa Que os combates e excessos existiram disso não há dúvidas No entanto seríamos de igual modo ingênuos se acreditássemos que não houve qualquer aceitabilidade pacífica por parte dos nativos Como citamos no início deste trabalho as tribos muito diferiam entre si e aquilo que poderia configurarse no opróbrio para uma poderia ser vista de com admiração por outra É assim no texto de Alencar quando o índio Peri não somente aceita como também ama a Cecília filha de senhores portugueses Chega o ápice do romance e uma tribo indigena se põe em ataque contra a casa dos senhores Contrariando o roteiro padrão Peri fazse aliado dos brancos e planeja a eles um exímio plano de escape Importa dizer que para que lhe fosse confiado levar Cecília em segurança até o Rio de Janeiro Peri teve que aceitar tornarse cristão em uma resolução de poucas palavras que ele parece ter aceitado somente para cumprir o seu intento de guardar a vida da moça que amava No fim do livro um debate entre os dois jovens volta a ocorrer Tendo Cecília tornadose órfã por ocasião do ataque tudo que eles tinham eram um ao outro uma vez que o índio também havia renunciado a seu lugar de origem pela família portuguesa Cecília o convida para morar junto dela na cidade Peri rejeita volta a afirmarse selvagem e apesar de reconhecer o amor recíproco da moça teme a maneira preconceituosa pela qual será visto pelos demais brancos os quais ainda não haveriam de ter sido conquistados pelas sumptuosas demonstrações de caráter e nobreza de sua parte Assim é a menina quem cede aceitando viver fosse na floresta ou no deserto mas ao lado de Peri Desse modo na comparação entre as duas obras percebemos pontos de vistas diferentes de realidades fragmentadas mas que reconhecidamente mostramse expressões da verdade em seus respectivos cenários De um lado Gonçalves Dias que mesmo embotado no romantismo mostra ferrenhos traços de realismo inclinandose à crítica social Do outro temos José de Alencar descrevendo uma benevolente família de colonos mas que no fim cede a superioridade moral ao herói nacional do escritor
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Texto de pré-visualização
O Guarani de José de Alencar Fonte ALENCAR José de O guarani 20ª ed São Paulo Ática 1996 Bom Livro Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro httpwwwbibvirtfuturouspbr A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Este material pode ser redistribuído livremente desde que não seja alterado e que as informações acima sejam mantidas Para maiores informações escreva para bibvirtfuturouspbr Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto Se você quer ajudar de alguma forma mande um email para bibvirtfuturouspbr e saiba como isso é possível O Guarani José de Alencar PRÓLOGO Minha prima Gostou da minha história e pedeme um romance acha que posso fazer alguma coisa neste ramo de literatura Enganase quando se conta aquilo que nos impressionou profundamente o coração é que fala quando se exprime aquilo que outros sentiram ou podem sentir fala a memória ou a imaginação Esta pode errar pode exagerarse o coração é sempre verdadeiro não diz senão o que sentiu e o sentimento qualquer que ele seja tem a sua beleza Assim não me julgo habilitado a escrever um romance apesar de já ter feito um com a minha vida Entretanto para satisfazêla quero aproveitar as minhas horas de trabalho em copiar e remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário desta casa quando a comprei Estava abandonado e quase todo estragado pela umidade e pelo cupim esse roedor eterno que antes do dilúvio já se havia agarrado à arca de Noé e pôde assim escapar ao cataclisma Previnolhe que encontrará cenas que não são comuns atualmente não as condene à primeira leitura antes de ver as outras que as explicam Enviolhe a primeira parte do meu manuscrito que eu e Carlota temos decifrado nos longos serões das nossas noites de inverno em que escurece aqui às cinco horas Adeus Minas 12 de dezembro AO LEITOR Publicado este livro em 1857 se disse ser aquela primeira edição uma prova tipográfica que algum dia talvez o autor se dispusesse a rever Esta nova edição devia dar satisfação do empenho que a extrema benevolência do público ledor tão minguado ainda mudou em bem para dívida de reconhecimento Mais do que podia fiou de si o autor Relendo a obra depois de anos achou ele tão mau e incorreto quanto escrevera que para bem corrigir fora mister escrever de novo Para tanto lhe carece o tempo e sobra o tédio de um labor ingrato Cingiuse pois às pequenas emendas que toleravam o plano da obra e o desalinho de um estilo não castigado PRIMEIRA PARTE OS AVENTUREIROS I CENÁRIO De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas tornase rio caudal É o Paquequer saltando de cascata em cascata enroscandose como uma serpente vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba que rola majestosamente em seu vasto leito Dirseia que vassalo e tributário desse rei das águas o pequeno rio altivo e sobranceiro contra os rochedos curvase humildemente aos pés do suserano Perde então a beleza selvática suas ondas são calmas e serenas como as de um lago e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas escravo submisso sofre o látego do senhor Não é neste lugar que ele deve ser visto sim três ou quatro léguas acima de sua foz onde é livre ainda como o filho indômito desta pátria da liberdade Aí o Paquequer lançase rápido sobre o seu leito e atravessa as florestas como o tapir espumando deixando o pêlo esparso pelas pontas do rochedo e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira De repente faltalhe o espaço fogelhe a terra o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças e precipitase de um só arremesso como o tigre sobre a presa Depois fatigado do esforço supremo se estende sobre a terra e adormece numa linda bacia que a natureza formou e onde o recebe como em um leito de noiva sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza sublime artista tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos em que o homem e apenas um simples comparsa No ano da graça de 1604 o lagar que acabamos de descrever estava deserto e inculto a cidade do Rio de Janeiro tinhase fundado havia menos de meio século e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior Entretanto viase à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa construída sobre uma eminência e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique A esplanada sobre que estava assentado o edifício formava um semicírculo irregular que teria quando muito cinqüenta braças quadradas do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada encontravase uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha Continuando a descer chegavase à beira do rio que se curvava em seio gracioso sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens Aí ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores que alargando gradualmente iam fechar como dois braços o seio do rio entre o tronco dessas árvores uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira que ainda apresentam as nossas primitivas habitações tinha cinco janelas de frente baixas largas quase quadradas Do lado direito estava a porta principal do edifício que dava sobre um pátio cercado por uma estacada coberta de melões agrestes Do lado esquerdo estendiase até à borda da esplanada uma asa do edifício que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa havia uma coisa que chamaremos jardim e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica vigorosa e esplêndida que a vista abraçava do alto do rochedo Flores agrestes das nossas matas pequenas árvores copadas um estendal de relvas um fio de água fingindo um rio e formando uma pequena cascata tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável À primeira vista olhando esse rochedo da altura de duas braças donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água e o monte de grama que tinha quando muito o tamanho de um divã parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara criar por capricho uma miniatura O fundo da casa inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas que serviam de morada a aventureiros e acostados Finalmente na extrema do pequeno jardim à beira do precipício viase uma cabana de sapé cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras As abas do teto desciam até o chão um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem Agora que temos descrito o aspecto da localidade onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta história podemos abrir a pesada porta de jacarandá que serve de entrada e penetrar no interior do edifício A sala principal o que chamamos ordinariamente sala da frente respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto como era então aquele sitio As paredes e o teto eram calados mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco nos espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa Sobre a porta do centro desenhavase um brasão de armas em campo de cinco vieiras de ouro riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas No escudo formado por uma brica de prata orlada de vermelho viase um elmo também de prata paquife de ouro e de azul e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça Um largo reposteiro de damasco vermelho onde se reproduzia o mesmo brasão ocultava esta porta que raras vezes se abria e dava para um oratório Defronte entre as duas janelas do meio havia um pequeno dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis Cadeiras de couro de alto espaldar uma mesa de jacarandá de pés torneados uma lâmpada de prata suspensa ao teto constituíam a mobília da sala que respirava um ar severo e triste Os aposentos interiores eram do mesmo gosto menos as decorações heráldicas na asa do edifício porém esse aspecto mudava de repente e era substituído por um quer que seja de caprichoso e delicado que revelava a presença de uma mulher Com efeito nada mais loução do que essa alcova em que os brocatéis de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves enlaçadas em grinaldas e festões pela orla do teto e pela cúpula do cortinado de um leito colocado sobre um tapete de peles de animais selvagens A um canto pendia da parede um crucifixo em alabastro aos pés do qual havia um escabelo de madeira dourada Pouco distante sobre uma cômoda viase uma dessas guitarras espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de Portugal e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas Junto à janela havia um traste que à primeira vista não se podia definir era uma espécie de leito ou sofá de palha matizada de várias cores e entremeada de penas negras e escarlates Uma garçareal empalhada prestes a desatar o vôo segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ela abria com a ponta de suas asas brancas e caindo sobre a porta vendava esse ninho da inocência aos olhos profanos Tudo isto respirava um suave aroma de benjoim que se tinha impregnado nos objetos com o seu perfume natural ou como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava II LEALDADE A habitação que descrevemos pertencia a D Antônio de Mariz fidalgo português de cota darmas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro e depois da vitória alcançada pelos portugueses auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr Antônio de Salema contra os franceses que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de paubrasil Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda e depois da alfândega do Rio de Janeiro mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei Homem de valor experimentado na guerra ativo afeito a combater os índios prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo Em recompensa do seu merecimento o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão a qual depois de haver explorado deixou por muito tempo devoluta A derrota de AlcácerQuibir e o domínio espanhol que se lhe seguiu vieram modificar a vida de D Antônio de Mariz Português de antiga têmpera fidalgo leal entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza e que só a ele devia preito e menagem Quando pois em 1582 foi aclamado no Brasil D Felipe 11 como o sucessor da monarquia portuguesa o velho fidalgo embainhou a espada e retirouse do serviço Por algum tempo esperou a projetada expedição de D Pedro da Cunha que pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa colocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro D Antônio prior do Crato Depois vendo que esta expedição não se realizava e que seu braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade até a morte Tomou os seus penates o seu brasão as suas armas a sua família e foi estabelecerse naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá Aí de pé sobre a eminência em que ia assentar o seu novo solar D Antônio de Mariz erguendo o vulto direito e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno exclamou Aqui sou português Aqui pode respirar à vontade um coração leal que nunca desmentiu a fé do juramento Nesta terra que me foi dada pelo meu rei e conquistada pelo meu braço nesta terra livre tu reinarás Portugal como viverás nalma de teus filhos Eu o juro Descobrindose curvou o joelho em terra e estendeu a mão direita sobre o abismo cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza em face do sol que transmontava Isto se passara em abril de 1593 no dia seguinte começaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória até que os artesãos vindos do reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos D Antônio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros anos de sua vida aventureira e não só por capricho de fidalguia mas em atenção à sua família procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão todo o luxo e comodidade possíveis Além das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro para comprar fazendas e gêneros de Portugal que trocava pelos produtos da terra mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica para proverem os seus habitantes de todo o necessário Assim a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português menos as ameias e a barbacã as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável Na posição em que se achava isto era necessário por causa das tribos selvagens que embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos e se entranhassem pelas florestas costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição Em um circulo de uma légua da casa não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros S pobres desejosos de fazer fortuna rápida e que tinhamse animado a se estabelecer neste lugar em parcerias de dez e vinte para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas que iam vender na costa Estes apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios fazendo paliçadas e reunindose uns aos outros para defesa comum em ocasião de perigo vinham sempre abrigarse na casa de D Antônio de Mariz a qual fazia as vezes de um castelo feudal na idade Média O fidalgo os recebia como um ricohomem que devia proteção e asilo aos seus vassalos socorriaos em todas as suas necessidades e era estimado e respeitado por todos que vinham confiados na sua vizinhança estabelecerse por esses lugares Deste modo em caso de ataque dos índios os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão com os seus próprios recursos e por isso D Antônio como homem prático e avisado que era haviase premunido para qualquer ocorrência Ele mantinha como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior eram homens ousados destemidos reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido eram uma espécie de guerrilheiros soldados e selvagens ao mesmo tempo D Antônio de Mariz que os conhecia havia estabelecido entre eles uma disciplina militar rigorosa mas justa a sua lei era a vontade do chefe o seu dever a obediência passiva o seu direito uma parte igual na metade dos lucros Nos casos extremos a decisão era proferida por um conselho de quatro presidido pelo chefe e cumpriase sem apelo como sem demora e hesitação Pela força da necessidade pois o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo de alta e baixa justiça dentro de seus domínios devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem a disciplina e a harmonia Quando chegava a época da venda dos produtos que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro apurava o ganho fazia a troca dos objetos necessários e na volta prestava suas contas Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo como chefe a outra era distribuída igualmente pelos quarenta aventureiros que a recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo Assim vivia quase no meio do sertão desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens governandose com as suas leis os seus usos e costumes unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas Para D Antônio e para seus companheiros a quem ele havia imposto sua fidelidade esse torrão brasileiro esse pedaço de sertão não era senão um fragmento de Portugal livre de sua pátria primitiva ai só se reconhecia como rei ao duque de Bragança legitimo herdeiro da coroa e quando se corriam as cortinas do dossel da sala as armas que se viam eram as cinco quinas portuguesas diante das quais todas as frontes inclinavam D Antônio tinha cumprido o seu juramento de vassalo leal e com a consciência tranqüila por ter feito o seu dever com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto ainda mesmo em um deserto rodeado de seus companheiros que ele considerava amigos vivia feliz no seio de sua pequena família Esta se compunha de quatro pessoas Sua mulher D Lauriana dama paulista imbuída de todos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquele tempo no mais um bom coração um pouco egoísta mas não tanto que não fosse capaz de um ato de dedicação Seu filho D Diogo de Mariz que devia mais tarde prosseguir na carreira de seu pai e lhe sucedeu em todas as honras e forais ainda moço na flor da idade gastava o tempo em correrias e caçadas Sua filha D Cecília que tinha dezoito anos e que era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso e alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa feceirice D Isabel sua sobrinha que os companheiros de D Antônio embora nada dissessem suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações Demoreime em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passaram Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos III A BANDEIRA Era meiodia Um troço de cavaleiros que constaria quando muito de quinze pessoas costeava a margem direita do Paraíba Estavam todos armados da cabeça até aos pés além da grande espada de guerra que batia as ancas do animal cada um deles trazia à cinta dois pistoletes um punhal na ilharga do calção e o arcabuz passado a tiracolo pelo ombro esquerdo Pouco adiante dois homens a pé tocavam alguns animais carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira alcatroada que os abrigava da chuva Quando os cavaleiros que seguiam a trote largo venciam a pequena distancia que os separava da tropa os dois caminheiros para não atrasarem a marcha montavam na garupa dos animais e ganhavam de novo a dianteira Naquele tempo davase o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil à busca de ouro os brilhantes e esmeraldas ou à descoberta de rios e terras ainda desconhecidos A que nesse momento costeava a margem do Paraíba era da mesma natureza voltava do Rio de Janeiro onde fora vender os produtos de sua expedição pelos terrenos auríferos Uma das ocasiões em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos um moço de vinte e oito anos bem parecido e que marchava à frente do troço governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza quebrou o silêncio geral Vamos rapazes disse ele alegremente aos caminheiros um pouco de diligência e chegaremos com cedo Restamnos apenas umas quatro léguas Um dos bandeiristas ao ouvir estas palavras chegou as esporas à cavalgadura e avançando algumas braças colocouse ao lado do moço Ao que parece tendes pressa de chegar Sr Álvaro de Sá disse ele com um ligeiro acento italiano e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita Decerto Sr Loredano nada é mais natural a quem viaja do que o desejo de chegar Não digo o contrário mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja do que poupar os seus animais Que quereis dizer com isto Sr Loredano perguntou Álvaro com um movimento de enfado Quero dizer sr cavalheiro respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol que chegaremos hoje pouco antes das seis horas Álvaro corou Não vejo em que isto vos causa reparo a alguma hora havíamos chegar e melhor é que seja de dia do que de noite Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia replicou o italiano no mesmo tom Um novo rubor assomou às faces de Álvaro que não pôde disfarçar o seu enleio mas recobrando o desembaraço soltou uma risada e respondeu Ora Deus Sr Loredano estais ai a falarme na ponta dos beiços e com meias palavras à fé de cavalheiro que não vos entendo Assim deve ser Diz a Escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir Oh temos anexim Aposto que aprendeste isto agora em São Sebastião foi alguma velha beata ou algum licenciado em cânones que volo ensinou disse o cavalheiro gracejando Nem um nem outro sr cavalheiro foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores que por sinal também me mostrou custosos brocados e lindas arrecadas de pérolas bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à sua dama Álvaro enrubesceu pela terceira vez Decididamente o sarcástico italiano com o seu espírito mordaz achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava e isto no tom o mais natural do mundo Álvaro quis cortar a conversação neste ponto mas o seu companheiro prosseguiu com extrema amabilidade Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de que vos falei sr cavalheiro Não me lembro é de crer que não pois apenas tive tempo de arranjar os nossos negócios e nem um me restou para ver essas galantarias de damas e fidalgas disse o moço com frieza É verdade acudiu Loredano com uma ingenuidade simulada isto me faz lembrar que só nos demoramos no Rio de Janeiro cinco dias quando das outras vezes eram nunca menos de dez e quinze Tive ordem para haverme com toda a rapidez e creio continuou fitando no italiano um olhar severo que não devo contas de minhas ações senão àqueles a quem dei o direito de pedilas Per Bacco cavalheiro Tomais as coisas ao revés Ninguém vos pergunta por que motivo fazeis aquilo que vos praz mas também achareis justo que cada um pense à sua maneira Pensai o que quiserdes disse Álvaro levantando os ombros e avançando o passo da sua cavalgadura A conversa interrompeuse Os dois cavaleiros um pouco adiantados ao resto do troço caminhavam silenciosos um a par do outro Álvaro às vezes enfiava um olhar pelo caminho como para medir a distancia que ainda tinham de percorrer e outras vezes parecia pensativo e preocupado Nestas ocasiões o italiano lançava sobre ele um olhar a furto cheio de malícia e ironia depois continuava a assobiar entredentes uma cançoneta de condottiere de quem ele apresentava o verdadeiro tipo Um rosto moreno coberto por uma longa barba negra entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes olhos vivos a fronte larga descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro alta estatura e uma constituição forte ágil e musculosa eram os principais traços deste aventureiro A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio que não oferecia mais caminho e tomara por uma estreita picada aberta na mata Apesar de ser pouco mais de duas horas o crepúsculo reinava nas profundas e sombrias abóbadas de verdura a luz coando entre a espessa folhagem se decompunha inteiramente nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da criação ao qual serviam de colunas os troncos seculares dos acaris e araribás O silêncio da noite com os seus rumores vagos e indecisos e os seus ecos amortecidos dormia no fundo dessa solidão e era apenas interrompido um momento pelo passo dos animais que faziam estalar as folhas secas Parecia que deviam ser seis horas da tarde e que o dia caindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do ocaso Álvaro de Sá embora habituado a esta ilusão não pôde deixar de sobressaltarse um instante em que saindo da sua meditação viuse de repente no meio do claroescuro da floresta Involuntariamente ergueu a cabeça para ver se através da cúpula de verdura descobria o sol ou pelo menos alguma centelha de luz que lhe indicasse a hora Loredano não pôde reprimir a risada sardônica que lhe veio aos lábios Não vos dê cuidado sr cavalheiro antes de seis horas li estaremos sou eu que volo digo O moço voltouse para o italiano rugando o sobrolho Sr Loredano é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada pareceis querer dar a entender alguma coisa mas faltavos o animo de a proferir Uma vez por todas falai abertamente e Deus vos guarde de tocar em objetos que são sagrados Os olhos do italiano lançaram uma faisca mas o seu rosto conservouse calmo e sereno Bem sabeis que vos devo obediência sr cavalheiro e não faltarei dela Desejais que fale claramente e a mim me parece que nada do que tenho dito pode ser mais claro do que é Para vós não duvido mas isto não é razão de que o seja para outros Ora dizeime sr cavalheiro não vos parece claro à vista do que me ouvistes que adivinhei o vosso desejo de chegar o mais depressa possível Quanto a isto já vos confessei eu não há pois grande mérito em adivinhar Não vos parece claro também que observei haverdes feito esta expedição com a maior rapidez de modo que em menos de vinte dias eisnos ao cabo dela Já vos disse que tive ordem e creio que nada tendes a opor Não decerto uma ordem é um dever e um dever cumprese com satisfação quando o coração nele se interessa Sr Loredano disse o moço levando a mão ao punho da espada e colhendo as rédeas O italiano fez que não tinha visto o gesto de ameaça continuou Assim tudo se explica Recebestes uma ordem foi de D Antônio de Mariz sem dúvida Não sei que nenhum outro tenha direito de darme replicou o moço com arrogância Naturalmente por virtude desta ordem continuou o italiano cortesmente partistes do Paquequer em uma segundafeira quando o dia designado era um domingo Ah também reparastes nisto perguntou o moço mordendo os beiços de despeito Reparo em tudo sr cavalheiro assim não deixei de observar ainda que sempre em virtude da ordem fizestes tudo para chegar justamente antes do domingo E não observastes mais nada perguntou Álvaro com a voz trêmula e fazendo um esforço para conterse Não me escapou também uma pequena circunstância de que já vos falei E qual é ela se vos praz Oh não vale a pena repetir é coisa de somenos Dizei sempre Sr Loredano nada é perdido entre dois homens que se entendem replicou Álvaro com um olhar de ameaça Já que o quereis força é satisfazervos Noto que a ordem de D Antônio e o italiano carregou nessa palavra mandavos estar no Paquequer um pouco antes de seis horas a tempo de ouvir a prece Tendes um dom admirável Sr Loredano o que é de lamentar é que o empregueis em futilidades Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste sertão senão a olhar para seus semelhantes e ver o que eles fazem Com efeito é uma boa distração Excelente Vede vós tenho visto coisas que se passam diante dos outros e que ninguém percebe porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida Containos isto há de ser curioso Ao contrário é o mais natural possível um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite à luz das estrelas Pode haver coisa mais simples Álvaro empalideceu desta vez Sabeis uma coisa Sr Loredano Saberei cavalheiro se me fizerdes a honra de dizer Está me parecendo que a vossa habilidade de observador levouvos muito longe e que fazeis nem mais nem menos do que o oficio de espião O aventureiro ergueu a cabeça com um gesto altivo levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia à ilharga no mesmo instante porém dominou este movimento e voltou à bonomia habitual Quereis gracejar sr cavalheiro Enganaisvos disse o moço picando o seu cavalo e encostandose ao italiano falovos seriamente sois um infame espião Mas juro por Deus que à primeira palavra que proferirdes esmagovos a cabeça como a uma cobra venenosa A fisionomia de Loredano não se alterou conservou a mesma impassibilidade apenas o seu ar de indiferença e sarcasmo desapareceu sob a expressão de energia e maldade que lhe acentuou os traços vigorosos Fitando um olhar duro no cavalheiro respondeu Visto que tomais a coisa neste tom Sr Álvaro de Sá cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar entre nós dois deveis saber qual é o que tem a temer Esqueceis a quem falais disse o moço com altivez Não senhor lembro tudo lembro que sois meu superior e também acrescentou com voz surda que tenho o vosso segredo E parando o animal o aventureiro deixou Álvaro seguir só na frente e misturouse com os seus companheiros A pequena cavalgata continuou a marcha através da picada e aproximouse de uma dessas clareiras das matas virgens que se assemelham a grandes zimbórios de verdura Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a floresta e encheu a solidão com os ecos estridentes Os caminheiros empalideceram e olharam um para o outro os cavaleiros engatilharam os arcabuzes e seguiram lentamente lançando um olhar cauteloso pelos ramos das árvores IV CAÇADA Quando a cavalgata chegou à margem da clareira ai se passava uma cena curiosa Em pé no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores encostado a um velho tronco decepado pelo raio viase um índio na flor da idade Uma simples túnica de algodão a que os indígenas chamavam aimará apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates caíalhe dos ombros até ao meio da perna e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem Sobre a alvura diáfana do algodão a sua pele cor do cobre brilhava com reflexos dourados os cabelos pretos cortados rentes a tez lisa os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte a pupila negra móbil cintilante a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça da força e da inteligência Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro à qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas que descrevendo uma longa espiral vinham rogar com as pontas negras o pescoço flexível Era de alta estatura tinha as mãos delicadas a perna ágil e nervosa ornada com uma axorca de frutos amarelos apoiavase sobre um pé pequeno mas firme no andar e veloz na corrida Segurava o arco e as flechas com a mão direita calda e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo Perto dele estava atirada ao chão uma clavina tauxiada uma pequena bolsa de couro que devia conter munições e uma rica faca flamenga cujo uso foi depois proibido em Portugal e no Brasil Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distancia e se agitava imperceptivelmente Ali por entre a folhagem distinguiamse as ondulações felinas de um dorso negro brilhante marchetado de pardo às vezes viamse brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha ferida pela luz do sol Era uma onça enorme de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore e pés suspensos no galho superior encolhia o corpo preparando o salto gigantesco Batia os flancos com a larga cauda e movia a cabeça monstruosa como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo uma espécie de riso sardônico e feroz contraialhe as negras mandíbulas e mostrava a linha de dentes amarelos as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitarse já com o odor do sangue da vítima O índio sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco não perdia um só desses movimentos e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa Assim durante um curto instante a fera e o selvagem mediramse mutuamente com os olhos nos olhos um do outro depois o tigre agachouse e ia formar o salto quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira Então o animal lançando ao redor um olhar injetado de sangue eriçou o pêlo e ficou imóvel no mesmo lugar hesitando se devia arriscar o ataque O índio que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado endireitouse de novo sem deixar a sua posição nem tirar os olhos do animal viu a banda que parara à sua direita Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei que rei das florestas ele era intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha Como porém o italiano com o arcabuz em face procurasse fazer a pontaria entre as folhas o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência e exclamou apontando para o tigre e levando a mão ao peito É meu meu só Estas palavras foram ditas em português com uma pronúncia doce e sonora mas em tom de energia e resolução O italiano riu Por Deus Eis um direito original Não quereis que se ofenda a vossa amiga Está bem dom cacique continuou lançando o arcabuz a tiracolo ela volo agradecerá Em resposta a esta ameaça o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão como para exprimir que se ele o quisesse já teria abatido o tigre de um tiro Os cavaleiros compreenderam o gesto porque além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto não fizeram a menor demonstração ofensiva Tudo isso se passou rapidamente em um segundo sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo A um sinal de Álvaro de Sá os cavaleiros prosseguiram a sua marcha e entranharamse de novo na floresta O tigre que observava os cavaleiros imóvel com o pêlo eriçado não ousara investir nem retirarse temendo exporse aos tiros dos arcabuzes mas apenas viu a tropa distanciarse e sumirse no fundo da mata soltou um novo rugido de alegria e contentamento Ouviuse um rumor de galhos que se espedaçavam como se uma árvore houvesse tombado na floresta e o vulto negro da fera passou no ar de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário uma distancia de trinta palmos O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto a onça com os seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue tinha visto os cavalos e desdenhava o homem fraca presa para saciála Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço e esticou a corda do grande arco que excedia de um terço à sua altura Ouviuse um forte sibilo que foi acompanhado por um bramido da fera a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha e uma segunda açoitando o ar ia ferirlhe a mandíbula inferior O tigre tinhase voltado ameaçador e terrível aguçando os dentes uns nos outros rugindo de fúria e vingança de dois saltos aproximouse novamente Era uma lata de morte a que ia se travar o índio o sabia e esperou tranqüilamente como da primeira vez a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse desaparecera estava satisfeito Assim estes dois selvagens das matas do Brasil cada um com as suas armas cada um com a consciência de sua força e de sua coragem consideravamse mutuamente como vítimas que iam ser imoladas O tigre desta vez não se demorou apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo retraiuse com uma força de elasticidade extraordinária e atirouse como um estilhaço de rocha cortada pelo raio Foi cair sobre o índio apoiado nas largas patas detrás com o corpo direito as garras estendidas para degolar a sua vítima e os dentes prontos a cortarlhe a jugular A velocidade deste salto monstruoso foi tal que no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada já a fera tocava o chão com as patas Mas tinha em frente um inimigo digno dela pela força e agilidade Como a princípio o índio havia dobrado um pouco os joelhos e segurava na esquerda a longa forquilha sua única defesa os olhos sempre fixos magnetizavam o animal No momento em que o tigre se lançara curvouse ainda mais e fugindo com o corpo apresentou o gancho A fera caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo sentiu o forcado cerrarlhe o colo e vacilou Então o selvagem distendeuse com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote fincando os pés e as costas no tronco arremessouse e foi cair sobre o ventre da onça que subjugada prostrada de costas com a cabeça presa ao chão pelo gancho debatiase contra o seu vencedor procurando debalde alcançálo com as garras Esta luta durou minutos o índio com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça e o corpo inclinado sobre a forquilha mantinha assim imóvel a fera que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem Quando o animal quase asfixiado pela estrangulação já não fazia senão uma fraca resistência o selvagem segurando sempre a forquilha meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligandoas fortemente uma à outra depois fez o mesmo às pernas e acabou por amarrar as duas mandíbulas de modo que a onça não pudesse abrir a boca Feito isto correu a um pequeno arroio que passava perto e enchendo de água uma folha de cajueirobravo que tornou cova veio borrifar a cabeça da fera Pouco a pouco o animal ia tornando a si e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata e adiantando o focinho escondeuse arrepiando o seu pêlo vermelho e afogueado O índio saltou sobre o arco e abateua daí a alguns passos no meio da carreira depois apanhando o corpo do animal que ainda palpitava arrancou a flecha e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca fez uma contorção violenta e quis soltar um urro que apenas exalouse num gemido surdo e abafado O índio sorria vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento a não serem essas retorções do corpo em que debalde se agitava Por cautela tinhalhe ligado até os dedos uns aos outros para privarlhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas que são a sua arma mais terrível Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá e rogando rapidamente um contra o outro tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão Foi ao regato bebeu alguns goles de água lavou as mãos o rosto e os pés e cuidou em pôrse a caminho Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata Momentos depois no lugar desta cena já deserto entreabriuse uma moita espessa e surdir um índio completamente nu ornado apenas com uma trofa de penas amarelas Lançou ao redor um olhar espantado examinou cautelosamente o fogo que ardia ainda e os restos da caça deitouse encostando o ouvido em terra e assim ficou algum tempo Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta na mesma direção que o outro tomara pouco tempo antes V LOURA E MORENA Caía a tarde No pequeno jardim da casa do Paquequer uma linda moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma acácia silvestre que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e perfumadas Os grandes olhos azuis meio cerrados às vezes se abriam languidamente como para se embeberem de luz e abaixavam de novo as pálpebras rosadas Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da gardênia dos nossos campos orvalhada pelo sereno da noite o hálito doce e ligeiro exalavase formando um sorriso Sua tez alva e pura como um froco de algodão tingiase nas faces de uns longes corderosa que iam desmaiando morrer no colo de linhas suaves e delicadas O seu trajo era do gosto o mais mimoso e o mais original que é possível conceber mistura de luxo e de simplicidade Tinha sobre o vestido branco de cassa um ligeiro saiote de riço azul apanhado à cintura por um broche uma espécie de arminho cor de pérola feito com a penugem macia de certas aves orlava o talho e as mangas fazendo realçar a alvura de seus ombros e o harmonioso contorno de seu braço arqueado sobre o seio Os longos cabelos louros enrolados negligentemente em ricas tranças descobriam a fronte alva e caíam em volta do pescoço presos por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro feita com uma arte e perfeição admirável A mãozinha afilada brincava com um ramo de acácia que se curvava carregado de flores e ao qual de vez em quando seguravase para imprimir à rede uma doce oscilação Esta moça era Cecília O que passava nesse momento em seu espírito infantil é impossível descrever o corpo cedendo à languidez que produz uma tarde calmosa deixava que a imaginação corresse livre Os sopros tépidos da brisa que vinham impregnados dos perfumes das madressilvas e das açucenas agrestes ainda excitavam mais esse enlevo e bafejavam talvez nessa alma inocente algum pensamento indefinido algum desses mitos de um coração de moça aos dezoito anos Ela sonhava que uma das nuvens brancas que passavam pelo céu anilado rogando a ponta dos rochedos se abria de repente e um homem vinha cair a seus pés tímido e suplicante Sonhava que corava e um rubor vivo acendia o rosado de suas faces mas a pouco e pouco esse casto enleio ia se desvanecendo e acabava num gracioso sorriso que sua alma vinha pousar nos lábios Com o seio palpitante toda trêmula e ao mesmo tempo contente e feliz abria os olhos mas voltavaos com desgosto porque em vez do lindo cavalheiro que ela sonhara via a seus pés um selvagem Tinha então sempre em sonho um desses assomos de cólera de rainha ofendida que fazia arquear as sobrancelhas louras e bater sobre a relva a ponta de um pezinho de menina Mas o escravo suplicante erguia os olhos tão magoados tão cheios de preces mudas e de resignação que ela sentia um quer que seja de inexprimível e ficava triste triste até que fugia e ia chorar Vinha porém o seu lindo cavalheiro enxugavalhe as lágrimas e ela sentiase consolada e sorria de novo mas conservava sempre uma sombra de melancolia que só a pouco e pouco o seu gênio alegre conseguia desvanecer Neste ponto do seu sonho a portinha interior do jardim abriuse e outra moça roçando apenas a grama com o seu passo ligeiro aproximouse da rede Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura com o encantador contraste de languidez e malícia de indolência e vivacidade Os olhos grandes e negros o rosto moreno e rosado cabelos pretos lábios desdenhosos sorriso provocador davam a este rosto um poder de sedução irresistível Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede e não pôde furtarse à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada de contornos tão suaves e uma sombra imperceptível talvez de um despeito passou pelo seu rosto mas esvaeceuse logo Sentouse numa das bandas da rede reclinando sobre a moça para beijála ou ver se estava dormindo Cecília sentindo um estremecimento abriu os olhos e fitouos em sua prima Preguiçosa disse Isabel sorrindo É verdade respondeu a moça vendo as grandes sombras que projetavam as árvores está quase noite E desde o sol alto que dormes não é assim perguntou a outra gracejando Não não dormi nem um instante mas não sei o que tenho hoje que me sinto triste Triste tu Cecília não creio era mais fácil não cantarem as aves ao nascer do sol Está bem não queres acreditar Mas vem cá Por que razão hás de estar triste tu que durante todo o ano só tens um sorriso tu que és alegre e travessa como um passarinho É para veres Tudo cansa neste mundo Ah compreendo estás enfastiada de viver aqui nestes ermos Já me habituei tanto a ver estas árvores este rio estes montes que querolhes como se me tivessem visto nascer Então o que é que te faz triste Não sei faltame alguma coisa Não vejo o que possa ser Sim já adivinho Adivinhas o quê perguntou Cecília admirada Ora o que te falta Se eu mesma não sei disse a moça sorrindo Olha respondeu Isabel ali está a tua rola esperando que a chames e o teu veadinho que te olha com os seus olhos doces só falta o outro animal selvagem Peri exclamou Cecília rindose da idéia de sua prima Ele mesmo Só tens dois cativos para fazeres as tuas travessuras e como não vês o mais feio e o mais desengraçado estás aborrecida Mas agora me lembro disse Cecília tu já o viste hoje Não nem sei o que é feito dele Saiu antes de ontem à tarde não vá terlhe sucedido alguma desgraça disse a moça estremecendo Que desgraça queres tu que lhe possa suceder Não anda ele todo dia batendo o mato e correndo como uma fera bravia Sim mas nunca lhe sucedeu ficar tanto tempo fora sem voltar à casa O mais que pode acontecer é teremlhe apertado as saudades da sua vida antiga e livre Não exclamou a moça com vivacidade não é possível que nos abandonasse assim Mas então que pensas que andará fazendo por esse sertão E verdade disse a moça preocupada Cecília ficou um momento com a cabeça baixa quase triste nesta posição a vista caiu sobre o veado que fitava nela a sua pupila negra com toda a languidez e suavidade que a natureza pusera em seus olhos A moça estendeu a mão e deu com a ponta dos dedos um estalinho que fez o lindo animal saltar de alegria e vir pousar a cabeça no seu regaço Tu não abandonarás tua senhora não é disse ela passando a mão sobre o seu pêlo acetinado Não faças caso Cecília replicou Isabel reparando na melancolia da moca pedirás a meu tio para caçarte outro que farás domesticar e ficará mais manso do que o teu Peri Prima disse a moça com um ligeiro tom de repreensão tratas muito injustamente esse pobre índio que não te fez mal algum Ora Cecília como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia amarga que a filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente Isabel exclamou ela ressentida Sei que tu não pensas assim Cecília e que o teu bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma Mas os outros Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua todos te querem e te respeitam como devem Isabel abanou tristemente a cabeça Vaite bem o consolarme mas tu mesma tens visto se eu tenho razão Ora um momento de zanga de minha mãe E um momento bem longo Cecília respondeu a moça com um sorriso amargo Mas escuta disse Cecília passando o braço pela cintura de sua prima e chamandoa a si tu bem sabes que minha mãe é uma senhora muito severa mesmo para comigo Não te canses prima isto só serve para provarme ainda mais o que já te confessei nesta casa só tu me amas os mais me desprezam Pois bem replicou Cecília eu te amarei por todos não te pedi já que me tratasses como irmã Sim e isto me causou um prazer que tu não imaginas Se eu fosse tua irmã E por que não hás de sêlo Quero que o sejas Para ti que para ele Este ele foi murmurado dentro dalma Mas olha que exijo uma coisa O que é perguntou Isabel É que eu serei a irmã mais velha Apesar de seres mais moça Não importa Como irmão mais velha tu me deves obedecer Decerto respondeu a prima sem poder deixar de sorrir Pois bem exclamou Cecília beijandoa na face não te quero ver triste ouviste Senão fico zangada E tu não estavas triste há pouco Oh já passou disse a moça saltando ligeiramente da rede Com efeito aquela doce languidez com que se embalançava há pouco cismando em mil coisas tinha desaparecido completamente seu gênio de menina alegre e feiticeira havia cedido um momento ao enlevo mas voltava de novo Era agora como sempre uma moça risonha e faceira respirando toda a graciosa gentileza misturada de inocência e estouvamento que dão o ar livre e a vida passada no campo Erguendose apinhou em botão de rosa os lábios vermelhos e imitou com uma graça encantadora os arrulhos doces da juriti imediatamente a rola saltou dos galhos da acácia e veio aninharse no seu seio estremencendo de prazer ao contato da mãozinha que alisava a sua penugem macia Vamos dormir disse ela à rola com a garridice com que as mães falam aos filhinhos recémnascidos a rolinha está com sono não é E deixando sua prima um momento só no jardim foi agasalhar os seus dois companheiros de solidão com tanto carinho e solicitude que bem revelava a riqueza de sentimento que havia no fundo desse coração envolta pela graça infantil de seu espírito Nesta ocasião ouviuse um tropel de animais perto da casa Isabel lançou os olhos sobre as margens do rio e viu uma banda de cavaleiros que entravam a cerca Soltou um grito de surpresa de alegria e susto ao mesmo tempo Que é perguntou Cecília correndo para sua prima São eles que chegam Eles quem O Sr Álvaro e os outros Ah exclamou a moça corando Não achas que voltaram muito depressa perguntou Isabel sem reparar na perturbação de sua prima Muito quem sabe se houve alguma coisa Dezenove dias apenas disse Isabel maquinalmente Contaste os dias É fácil respondeu a moça corando por sua vez depois de amanhã faz três semanas Vamos a ver que lindas coisas eles nos trazem Nos trazem repetiu Isabel carregando sobre a palavra com um tom de melancolia Nos trazem sim porque eu encomendei um fio de pérolas para ti Devem irte bem as pérolas com tuas faces cor de jambo Sabes que eu tenho inveja do teu moreninho prima E eu daria a minha vida para ter a tua alvura Cecília Ai o sol está quase a se pôr Vamos E as duas moças tomaram pelo interior da casa dirigindose ao lado da entrada VI A VOLTA Ao mesmo tempo que esta cena se passava no jardim dois homens passeavam do outro lado da esplanada na sombra que projetava o edifício Um deles de alto porte conheciase imediatamente que era um fidalgo pela altivez do gesto e pelo trajo de cavalheiro Vestia um gibão de velado preto com alamares de seda cor de café no peito e nas aberturas das mangas os calções do mesmo estofo e também pretos caíam sobre as botas longas de couro branco com esporas de Ouro Uma simples preguilha de linho alvíssimo cercava o talho do seu gibão e deixava a descoberto o pescoço que sustentava com graça uma bela e nobre cabeça de velho De seu chapéu de feltro pardo sem pluma escapavamse os anéis de cabelos brancos que calam sobre os ombros através da longa barba alva como a espuma da cascata brilhavam suas faces rosadas sua boca ainda expressiva e seus olhos pequenos mas vivos Este fidalgo era D Antônio de Mariz que apesar de seus sessenta anos mostrava um vigor devido talvez à vida ativa trazia ainda o porte direito e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade O outro velho que caminhava a seu lado com o chapéu na mão era Aires Gomes seu escudeiro e antigo companheiro de sua vida aventureira o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo A fisionomia deste homem tinha quer pela sagacidade inquieta que era a sua expressão ordinária quer pelos seus traços alongados uma certa semelhança com o focinho da raposa semelhança que era ainda mais aumentada pelo seu trajo bizarro Trazia sobre o gibão de belbutina cor de pinhão uma espécie de véstia do pêlo daquele animal do qual eram também as botas compridas que lhe serviam quase de calções Em que o negues Aires Gomes dizia o fidalgo ao seu escudeiro medindo a passos lentos o terreno estou certo que és do meu parecer Não digo de todo que não sr cavalheiro confesso que D Diogo cometeu uma imprudência matando essa índia Dize uma barbaria uma loucura Não penses que com ser meu filho o desculpo Julgais com demasiada severidade E o devo porque um fidalgo que mata uma criatura fraca e inofensiva comete uma ação baixa e indigna Durante trinta anos que me acompanhas sabes como trato os meus inimigos pois bem a minha espada que tem abatido tantos homens na guerra cairmeia da mão se num momento de desvario a erguesse contra uma mulher Mas é preciso ver que casta de mulher é esta uma selvagem Sei o que queres dizer não partilho essas idéias que vogam entre os meus companheiros para mim os índios quando nos atacam são inimigos que devemos combater quando nos respeitam são vassalos de uma terra que conquistamos mas são homens Vosso filho não pensa assim e bem sabeis que os princípios que lhe deu a Sra D Lauriana Minha mulher replicou o fidalgo com algum azedume Mas não é disto que discorríamos Sim faláveis dos receios que vos inspirava a imprudência de D Diogo E que pensas tu Já vos disse que não vejo as coisas tão negras como vós Sr D Antônio Os índios vos respeitam vos temem e não se animarão a atacarvos Digote que te enganas ou antes que procuras enganarme Não sou capaz de tal sr cavalheiro Conheces tão bem como eu Aires o caráter desses selvagens sabes que a sua paixão dominante é a vingança e que por ela sacrificam tudo a vida e a liberdade Não desconheço isto respondeu o escudeiro Eles me temem dizes tu mas desde o momento em que se julgarem ofendidos por mim sofrerão tudo para vingarse Tendes mais experiência do que eu sr cavalheiro mas queira Deus que vos enganeis Voltandose na beira da esplanada para continuarem o seu passeio D Antônio de Mariz e o seu escudeiro viram um moço cavaleiro que atravessava pela frente da casa Deixame disse o fidalgo a Aires Gomes e pensa no que te disse em todo o caso que estejamos preparados para recebêlos Se vierem retrucou o teimoso escudeiro afastandose D Antônio dirigiuse lentamente para o moço fidalgo que se havia sentado a alguns passos Vendo aproximarse seu pai D Diogo de Mariz ergueuse e descobrindose esperouo numa atitude respeitosa Sr cavalheiro disse o velho com um ar severo infringistes ontem as ordens que vos dei Senhor Apesar das minhas recomendações expressas ofendestes um desses selvagens e excitastes contra nós a sua vingança Pusestes em risco a vida de vosso pai de vossa mãe e de homens dedicados Deveis estar satisfeito de vossa obra Meu pai Cometestes uma ação má assassinando uma mulher uma ação indigna do nome que vos dei isto mostra que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis à cinta Não mereço esta injúria senhor Castigaime mas não rebaixeis vosso filho Não é vosso pai que vos rebaixa sr cavalheiro e sim a ação que praticastes Não vos quero envergonhar tirando essa arma que vos dei para combater pelo vosso rei mas como ainda não vos sabeis servir dela proíbovos que a tireis da bainha ainda que seja para defender a vossa vida D Diogo inclinouse em sinal de obediência Partireis brevemente apenas chegar a expedição do Rio de Janeiro e ireis pedir a Diogo Botelho que vos dê serviço nas descobertas Sois português e deveis guardar fidelidade ao vosso rei legitimo mas combatereis como fidalgo e cristão em prol da religião conquistando ao gentio esta terra que um dia voltará ao domínio de Portugal livre Cumprirei as vossas ordens meu pai Daqui até então continuou o velho fidalgo não arredareis pé desta casa sem minha ordem Ide sr cavalheiro lembraivos que tenho sessenta anos e que vossa mãe e vossa irmã breve carecerão de um braço valente para defendêlas e de um conselho avisado para protegêlas O moço sentiu as lágrimas borbulharem nos olhos mas não balbuciou uma palavra curvouse e beijou respeitosamente a mão de seu pai D Antônio de Mariz depois de olhálo um momento com uma severidade sob a qual transpareciam os assomos do amor de pai voltou pelo mesmo caminho e ia continuar o seu passeio quando sua mulher apareceu na soleira da porta D Lauriana era uma senhora de cinqüenta e cinco anos magra mas forte e conservada como seu marido tinha ainda os cabelos pretos matizados por alguns fios brancos que escondia o seu alto penteado coroado por um desses antigos pentes tão largos que cingiam toda a cabeça e fingiam uma espécie de diadema Seu vestido de lapim cor de fumo de cintura comprida um pouco curto na frente tinha uma cauda respeitável que ela arrastava com um certo donaire de fidalga resto de sua beleza há muito perdida Longas arrecadas de ouro com pingentes de esmeralda que lhe rogavam quase os ombros e um colar com uma cruz de ouro ao pescoço eram todos os seus ornatos Quanto ao moral já dissemos que era uma mistura de fidalguia e devoção o espírito de nobreza que em D Antônio de Mariz era um realce nela tornavase uma ridícula exageração No ermo em que se achava em lugar de procurar desvanecer um pouco a distinção social que podia haver entre ela e os homens no meio dos quais vivia ao contrário aproveitava o fato de ser a única dama fidalga daquele lugar para esmagar os outros com a sua superioridade e reinar do alto de sua cadeira de espaldar que para ela era quase um trono Em religião o mesmo sucedia e um dos maiores desgostos que ela sentia na sua existência era não se ver cercada de todo esse aparato do culto que D Antônio como os homens de uma fé robusta e de um espírito direito tinha sabido substituir perfeitamente Apesar desta diferença de caracteres D Antônio de Mariz ou por concessões ou por serenidade vivia em perfeita harmonia com sua mulher procurava satisfazêla em tudo e quando não era possível exprimia a sua vontade de um certo modo que a dama conhecia imediatamente que era escusado insistir Só em um ponto a sua firmeza tinha sido baldada e fora em vencer a repugnância que D Lauriana tinha por sua sobrinha mas como o velho fidalgo sentia talvez doerlhe a consciência nesse objeto deixou sua mulher livre de proceder como lhe parecesse e respeitou os seus sentimentos Faláveis a D Diogo com um ar tão severo disse D Lauriana descendo os degraus da porta e vindo ao encontro de seu marido Davalhe uma ordem e um castigo que ele mereceu respondeu o fidalgo Tratais esse filho sempre com excessivo rigor Sr D Antônio E vós com extrema benevolência D Lauriana Assim como não quero que o vosso amor o perca vejome obrigado a privarvos da sua companhia Jesus Que dizeis Sr D Antônio D Diogo partirá nestes dias para a cidade do Salvador onde vai viver como fidalgo servindo à causa da religião e não perdendo o tempo em extravagâncias Vós não fareis isto Sr Mariz exclamou sua mulher desterrar vosso filho da casa paterna Quem vos fala em desterro senhora Quereis que D Diogo passe toda a sua vida agarrado ao vosso avental e à vossa roca Mas senhor eu sou mãe e não posso viver assim longe de meu filho cheia de inquietações pela sua sorte Entretanto assim há de ser porque assim o decidi Sois cruel senhor Sou justo apenas Foi nesta ocasião que se ouviu o tropel de animais e que Isabel distinguiu a banda de cavaleiros que se aproximava da casa Oh exclamou D Antônio de Mariz eis Álvaro de Sá O moço que já conhecemos o italiano e seus companheiros apearamse subiram a ladeira que conduzia à esplanada e aproximaramse do cavalheiro e de sua mulher a quem cortejaram respeitosamente O velho fidalgo estendeu a mão a Álvaro de Sá e respondeu à saudação dos outros com uma certa amabilidade Quanto a D Lauriana a inclinação da cabeça foi tão imperceptível que seus olhos nem se abaixaram sobre o rosto dos aventureiros Depois de trocada essa saudação o fidalgo fez um sinal a Álvaro e os dois se separaram e foram conversar a um canto do terreiro sentados sobre dois grossos troncos de árvore lavrados toscamente que serviam de bancos D Antônio desejava saber noticias do Rio de Janeiro e de Portugal onde se haviam perdido todas as esperanças de uma restauração que só teve lugar quarenta anos depois com a aclamação do duque de Bragança O resto dos aventureiros ganhou o outro lado da esplanada e foi misturarse com os seus companheiros que saiam ao seu encontro Aí foram recebidos por um tiroteio de perguntas de risadas e ditos chistosos em que tomaram parte depois uns curiosos de novidades outros ávidos de contar o que viram começaram a falar ao mesmo tempo de modo que ninguém se entendia Nesse instante as duas moças apareceram na porta Isabel parou trêmula e confusa Cecília descendo ligeiramente os degraus correu para sua mãe Enquanto ela atravessava o espaço que a separava de D Lauriana Álvaro tendo obtido a permissão do fidalgo adiantouse e com o chapéu na mão foi inclinarse corando diante da moça Eisvos de volta Sr Álvaro disse Cecília com um certo repente para disfarçar o enleio que também sentia depressa tornastes Menos do que desejava respondeu o moço balbuciando quando o pensamento fica o corpo tem pressa de voltarse Cecília corou e fugiu para junto de sua mãe Durante que esta breve cena se passava no meio da esplanada três olhares bem diferentes a acompanhavam e partindo de pontos diversos cruzavamse sobre essas duas cabeças que brilhavam de beleza e mocidade D Antônio de Mariz sentado a alguma distancia considerava aquele lindo par e um sorriso intimo de felicidade expandia o seu rosto venerável Ao longe Loredano um pouco retirado dos grupos dos seus companheiros cravava nos moços um olhar ardente duro incisivo enquanto as narinas dilatadas aspiravam o ar com a delícia da fera que fareja a vítima Isabel a pobre menina fitava sobre Álvaro os seus grandes olhos negros cheios de amargura e de tristeza sua alma parecia coarse naquele raio luminoso e ir curvarse aos pés do moço Nenhuma das testemunhas mudas desta cena percebeu o que se passava além do ponto para onde convergiam os seus olhares à exceção do italiano que viu o sorriso de D Antônio de Mariz e o compreendeu Enquanto isto sucedia D Diogo que se havia retirado voltou a saudar Álvaro e seus companheiros recémchegados o moço tinha ainda no rosto a expressão de tristeza que lhe haviam deixado as palavras severas de seu pai VII A PRECE A tarde ia morrendo O sol declinava no horizonte e deitavase sobre as grandes florestas que iluminava com os seus últimos raios A luz frouxa e suave do ocaso deslizando pela verde alcatifa enrolavase como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas e o ouricuri abria as suas palmas mais novas para receber no seu cálice o orvalho da noite Os animais retardados procuravam a pousada enquanto a juriti chamando a companheira soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia Um concerto de notas graves saudava o pôrdosol e confundiase com o rumor da cascata que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde Era a AveMaria Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha esses raios perdidos que esvazandose pelo rendado da folhagem vão brincar um momento sobre a areia tudo respira uma poesia imensa que enche a alma O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras que reboando pelas longas crastas de verdura vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do ângelus A brisa rogando as grimpas da floresta traz um débil sussurro que parece o último eco dos rumores do dia ou o derradeiro suspiro da tarde que morre Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene e cediam involuntariamente a esse sentimento vago que não é bem tristeza mas respeito misturado de um certo temor De repente os sons melancólicos de um clarim prolongaramse pelo ar quebrando o concerto da tarde era um dos aventureiros que tocava a AveMaria Todos se descobriram D Antônio de Mariz adiantandose até à beira da esplanada para o lado do ocaso tirou o chapéu e ajoelhou Ao redor dele vieram gruparse sua mulher as duas moças Álvaro e D Diogo os aventureiros formando um grande arco de círculo ajoelharamse a alguns passos de distancia O sol com seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo e realçava a beleza daquele basto de antigo cavalheiro Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã meio selvagem em todos aqueles rostos iluminados pelos raios do ocaso respirava um santo respeito Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplála como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece Durante o momento em que o rei da luz suspenso no horizonte lançava ainda um olhar sobre a terra todos se concentravam em um fundo recolhimento e diziam uma oração muda que apenas agitava imperceptivelmente os lábios Por fim o sol escondeuse Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício e um tiro saudou o ocaso Era noite Todos se ergueram os aventureiros cortejaram e foramse retirando a pouco e pouco Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio e curvouse em face de D Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade Depois a família chegandose para junto da porta dispôsse a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia Álvaro em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família o que havia recebido como um favor imenso O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite era o regime caseiro que D Lauriana havia estabelecido na sua habitação Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família durante o dia corriam os matos e ocupavamse com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada onde quando o tempo estava bom as damas vinham também fazer a sua oração da tarde Quanto à família esta conservavase sempre retirada no interior da casa durante a semana o domingo era consagrado ao repouso à distração e à alegria então devase às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio uma caçada ou uma volta em canoa pelo rio Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos como dizia o italiano de chegar ao Paquequer em um sábado e antes das seis horas o moço sonhava com a aventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra Formado o grupo da família a conversa travouse entre D Antônio de Mariz Álvaro e D Lauriana Diogo ficara um pouco retirado as moças tímidas escutavam e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas o que rara vez sucedia Álvaro desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava procurou um pretexto que a chamasse à conversa Esqueciame contarvos Sr D Antônio disse ele aproveitandose de uma pausa um dos incidentes da nossa viagem Qual Vejamos respondeu o fidalgo A coisa de quatro léguas daqui encontramos Peri Inda bem disse Cecília há dois dias que não sabemos noticias dele Nada mais simples replicou o fidalgo ele corre todo este sertão Sim tornou Álvaro mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples O que fazia então Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho D Cecília Meu Deus exclamou a moça soltando um grito Que tens menina perguntou D Lauriana É que ele deve estar morto a esta hora minha mãe Não se perde grande coisa respondeu a senhora Mas eu serei a causa de sua morte Como assim minha filha disse D Antônio Vede vós meu pai respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos conversava quintafeira com Isabel que tem grande medo de onças e brincando disselhe que desejava ver uma viva E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo replicou o fidalgo rindo Não há que admirar Outras tem ele feito Porém meu pai isto é coisa que se faça A onça deve têlo morto Não vos assusteis D Cecília ele saberá defenderse E vós Sr Álvaro por que não o ajudastes a defenderse disse a moça sentida Oh se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal E o moço contou parte da cena passada na floresta Não há dúvida disse D Antônio de Mariz na sua cega dedicação por Cecília quis fazerlhe a vontade com risco de vida É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra o caráter desse índio Desde o primeiro dia que aqui entrou salvando minha filha a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo Credeme Álvaro é um cavalheiro português no corpo de um selvagem A conversa continuou mas Cecília tinha ficado triste não tomou mais parte nela D Lauriana retirouse para dar as suas ordens o velho fidalgo e o moço conversaram até oito horas em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília Não me perguntais pelo que me ordenastes D Cecília disse ele à meia voz Ah sim trouxestes todas as coisas que vos pedi Todas e mais disse o moço balbuciando E mais o quê perguntou Cecília E mais uma coisa que não pedistes Esta não quero respondeu a moça com um ligeiro enfado Nem por vos pertencer já replicou ele timidamente Não entendo É uma coisa que já me pertence dizeis Sim porque é uma lembrança vossa Nesse caso guardaia Sr Álvaro disse ela sorrindo e guardaia bem E fugindo foi ter com seu pai que chegava à varanda e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre que o moço fez conduzir e que continha as suas encomendas Estas consistiam em jóias sedas espiguilhas de linho fitas glacês holandês e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas Vendo essas armas a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo Meu pobre Peri Talvez já não te sirvam nem para te defenderes A ceia foi longa e pausada como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação seria e a mesa um altar que se respeitava Durante a colação Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança Logo que seu pai ergueuse Cecília recolheu ao seu quarto e ajoelhando diante do crucifixo fez a sua oração Depois erguendose foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo e estava deserta e solitária Sentia apertarse o coração com a idéia de que por um gracejo tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida e arriscava todos os dias a sua somente para fazêla sorrir Tudo nesta recâmara lhe falava dele suas aves seus dois amiguinhos que dormiam um no seu ninho e outro sobre o tapete as penas que serviam de ornato ao aposento as peles dos animais que seus pés rogavam o perfume suave de benjoim que ela respirava tudo tinha vindo do índio que como um poeta ou um artista parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira Ficou assim a olhar pela janela muito tempo nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro o jovem cavalheiro elegante tão delicado tão tímido que corava diante dela como ela diante dele De repente a moça estremeceu Tinha visto a luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão e pelas formas esbeltas e flexíveis quando o vulto entrou na cabana não lhe restou a menor dúvida Era Peri Sentiuse aliviada de um grande peso e pôde então entregarse ao prazer de examinar um por um com toda a atenção os lindos objetos que recebera e que lhe causavam um vivo prazer Nisto gastou seguramente meia hora depois deitouse e como já não tinha inquietação nem tristeza adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe fizera recusando o seu mimo VIII TRÊS LINHAS Tudo estava em sossego apenas quando o vento escasseava ouviase do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas A esta hora havia naquele lagar três homens bem diferentes pelo seu caráter pela sua posição e pela sua origem que entretanto tinham uma mesma idéia Separados pelos costumes e pela distancia os seus espíritos quebravam essa barreira moral e física e se reuniam num só pensamento convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existências que mais cedo ou mais tarde hão de cruzarse no seu vértice Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa no meio da qual trescalavam em escudelas de pau algumas peças de caça já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite dos convivas O catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar mas em compensação viamse aos cantos do alpendre grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás onde os aventureiros podiam beber à larga O vício tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens afora uma pequena diferença de sabor havia no fundo de todas elas o álcool que excita o espírito e produz a embriaguez A colação começara há meia hora nos primeiros momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes os beijos dados aos canjirões e o ranger da faca na escudela Depois um dos aventureiros proferiu uma palavra cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa a conversa tornouse uma espécie de coro confuso e discordante Foi no meio desta algazarra que um dos convivas erguendo a voz lançou estas palavras E vós Loredano nada dizeis Estais ai que não há modo de vos ouvir uma palavra Certo acudiu outro Bento Simões diz verdade se não é a fome que vos traz mudo algo tendes misser italiano Voto a Deus Martim Vaz disse um terceiro que são penares por alguma moçoila que andou reqüestando em São Sebastião Tiraivos lá com os vossos penares Rui Soeiro achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez E por que não Vasco Afonso Todos calçamos pelo mesmo sapato em que o aperte mais a uns do que a outros Não julgueis os mais por vós dom namorado homens há que trazem seu pensamento empregado em coisa de mor valia do que requebros e galanteios O italiano conservavase taciturno e deixava que os outros o trouxessem à baila sem darse por achado era fácil de ver que ele seguia com afinco uma idéia que lhe trabalhava no espírito Mas por Deus continuou Bento Simões falainos do que vistes na vossa viagem Loredano apostaria que alguma vos sucedeu Ide com o que vos digo retrucou Rui Soeiro misser italiano está penado de amores E por quem se vos parece perguntaram alguns Ora não custa sabêlo por aquele canjirão de vinho que ai lhe está fronteiro não vedes que olhos que lhe deita Os aventureiros largaramse a rir aplaudindo a lembrança Aires Comes apareceu à porta do saguão Eia rapazes disse ele com uma voz que se esforçava por tornar severa Leva rumor É um dia de chegada sr escudeiro e deveis leválo em conta acudiu Rui Soeiro Aires sentouse e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente dele Olá vós outros gritou ele com a boca cheia para dois aventureiros que se haviam levantado ide encher vosso quarto que já refizestes e os mais esperam sua vez Os dois aventureiros saíram para ir revezar os outros que era costume ficarem de sentinela à noite medida esta necessária naquele tempo Estais hoje muito severo Sr Aires Gomes disse Martim Vaz Aquele que dá as ordens sabe o que faz a nós cumpre obedecer respondeu o escudeiro Ah por que não dizíeis isto logo Pois ficareis agora entendidos boa guarda que talvez breve tenhamos que ver Venha isso acudiu Bento Simões que já me enfastio de atirar às pacas e porcos do mato E em honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de pólvora perguntou Vasco Afonso Tem que saber isso Quem senão os índios nos dão esta folia Loredano ergueu a cabeça Que histórias contais ai Supondes que os índios nos atacarão perguntou ele Oh eis misser italiano que acorda foi preciso cheirarlhe a chamusco exclamou Martim Vaz A presença de Aires Gomes reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros fez com que fossem uns após outros desamparando a mesa e deixassem o escudeiro na companhia dos canjirões e escudelas Loredano levantandose fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões e os três seguiram juntos até ao meio do terreiro o italiano murmuroulhes ao ouvido uma simples palavra Amanhã Depois como se nada se tivesse passado entre eles os dois aventureiros seguiram cada um de seu lado e deixaram Loredano continuar o seu caminho até à beira do precipício Do lado oposto o italiano viu refletirse sobre as árvores o tênue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecília cujas janelas não podia distinguir por causa do ângulo que formava a esplanada Aí esperou Álvaro deixando Cecília voltara triste e sentido da recusa que sofrera embora o consolasse a sua última palavra e sobretudo o sorriso que a acompanhou Não se podia resignar à perda desse prazer infinito com que havia contado de ver nos ornatos da moça uma prenda sua uma lembrança que lhe dissesse que pensava nele Tinha afagado tanto essa idéia tinha vivido tanto tempo dela que arrancála do seu espírito seria um sofrimento cruel Enquanto atravessava o espaço que o separava do seu aposento formulou um projeto e tomou uma resolução Meteu numa pequena bolsa de seda uma caixinha de jóias e envolvendose no seu manto costeou a casa e aproximouse do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecília Também ele viu a luz das janelas se refletir defronte e esperou que a noite se adiantasse e toda a casa dormisse Ao tempo que isto se passava Peri o índio que já conhecemos tinha chegado com o seu fardo tão precioso que não o trocaria por um tesouro No valado que se estendia à beira do rio deixou o seu prisioneiro depois de o ter metido numa espécie de tronco que arranjou curvando um galho de árvore Subiu então à esplanada e foi nesta ocasião que a moça o viu entrar na sua cabana o que porém não pôde distinguir foi a maneira por que saíra quase logo Havia dois dias que não via sua senhora que não recebia dela uma ordem que não adivinhava um desejo seu para satisfazêlo imediatamente O primeiro pensamento do índio foi pois ver Cecília ou ao menos a sua sombra entrando na cabana percebeu como os outros a réstia de luz que coava entre as cortinas da janela Suspendeuse a uma das palmeiras que servia de esteio à choça e por um desses movimentos ágeis que lhe eram tão naturais de um salto segurouse ao galho de um óleo 19 gigante que elevandose sobre a encosta fronteira deitava alguns ramos do lado da casa Durante um momento o índio pairou sobre o abismo balançandose no galho fraco que o sustinha depois equilibrouse e continuou essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gáveas e sobre as enxárcias Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da árvore e escondido pela folhagem aproximouse até um galho que ficava fronteiro das janelas de Cecília cerca de uma braça Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e Álvaro de outro e se colocavam igualmente a alguns passos A princípio Peri só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento Cecília examinava ainda por uma última vez as encomendas que lhe haviam chegado do Rio de Janeiro Nessa muda contemplação o índio esqueceu tudo Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragálo ao menor movimento e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante Era feliz tinha visto sua senhora ela estava alegre contente e satisfeita podia ir dormir e repousar Uma lembrança triste porem o assaltou vendo os lindos objetos que a moça recebera pensou que podia darlhe a sua vida mas que não tinha primores como aqueles para ofertarlhe O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero como para ver se colocado duzentos palmos acima da terra sobre as grimpas da árvore poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília Assim era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes De maneira por que estavam colocados formavam um verdadeiro triângulo cujo centro era a janela frouxamente iluminada Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer É que as paixões no deserto e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa são verdadeiras epopéias do coração IX AMOR As cortinas da janela cerraramse Cecília tinhase deitado Junto da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura de virgem velavam três sentimentos profundos palpitavam três corações bem diferentes Em Loredano o aventureiro de baixa extração esse sentimento era um desejo ardente uma sede de gozo uma febre que lhe requeimava o sangue o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava pela barreira que se elevava entre ele pobre colono e a filha de D Antônio de Mariz rico fidalgo de solar e brasão Para destruir esta barreira e igualar as posições seria necessário um acontecimento extraordinário um fato que alterasse completamente as leis da sociedade naquele tempo mais rigorosas do que hoje era preciso uma dessas situações em face das quais os indivíduos qualquer que seja a sua hierarquia nobres e párias nivelamse e descem ou sobem à condição de homens O aventureiro compreendia isto talvez que o seu espírito italiano já tivesse sondado o alcance dessa idéia em todo o caso o que afirmamos é que ele esperava e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo e uma constância a toda a prova os vinte dias que passara no Rio de Janeiro tinham sido verdadeiro suplício Em Álvaro cavalheiro delicado e cortês o sentimento era uma afeição nobre e pura cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade Sentirse perto de Cecília vêla e trocar alguma palavra a custo balbuciada corarem ambos sem saberem por quê e fugirem desejando encontrarse era toda a história desse afeto inocente que se entregava descuidosamente ao futuro librandose nas asas da esperança Nesta noite Álvaro ia dar um passo que na sua habitual timidez ele comparava quase com um pedido formal de casamento tinha resolvido fazer a moça aceitar malgrado seu o mimo que recusara deitandoo na sua janela esperava que encontrandoo no dia seguinte Cecília lhe perdoaria o seu ardimento e conservaria a sua prenda Em Peri o sentimento era um culto espécie de idolatria fanática na qual não entrava um só pensamento de egoísmo amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação mas para dedicarse inteiramente a ela para cumprir o menor dos seus desejos para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade Ao contrário dos outros ele não estava ali nem por um ciúme inquieto nem por uma esperança risonha arrostava a morte unicamente para ver se Cecília estava contente feliz e alegre se não desejava alguma coisa que ele adivinharia no seu rosto e iria buscar nessa mesma noite nesse mesmo instante Assim o amor se transformava tão completamente nessas organizações que apresentava três sentimentos bem distintos um era uma loucura o outro uma paixão o último uma religião Loredano desejava Álvaro amava Peri adorava O aventureiro daria a vida para gozar o cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar o selvagem se mataria se preciso fosse só para fazer Cecília sorrir Entretanto nenhum desses três homens podia tocar a janela da moça sem correr um risco iminente e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecília Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça de distancia da ribanceira D Antônio de Mariz para defender esta parte do edifício tinha feito construir um respaldo que se abaixava da precinta das janelas até à beira da esplanada era impossível pois caminhar sobre este plano inclinado cuja face lisa e polida não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais firme e o mais seguro Abaixo da janela abriase a rocha cortada a pique e formava um valado profundo coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a todos esses répteis de mil formas que pululam na sombra e na umidade Assim o homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda se por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha seria devorado em um momento pelas cobras e insetos venenosos que enchiam essas grotas e alcantis Havia alguns instantes que a cortina da janela se tinha cerrado apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verdenegro do óleo o quadro da janela O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho onde revia todas as imagens de sua louca paixão estremeceu de repente Na claridade debuxavase uma sombra móbil um homem se aproximava da janela Pálido com os olhos ardentes e os dentes cerrados pendido sobre o precipício seguia as menores evoluções da sombra Viu um braço que se estendia para a janela e a mão que deixava no parapeito um objeto qualquer mas tão pequeno que não se percebia a forma Pela manga larga do gibão ou antes pelo instinto o italiano adivinhou que este braço pertencia a Álvaro e compreendeu o que esta mão havia deitado na janela E não se enganava Álvaro segurandose a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo coseu o corpo à parede inclinando conseguiu realizar o seu intento Depois voltou partilhado entre o temor da ação que praticara e a esperança de que Cecília lhe perdoaria Loredano apenas viu desaparecer a sombra e ouviu os ecos dos passos do moço que se repercutiam surdamente no fundo do precipício sorriu Sua pupila fulva brilhou na treva como os olhos da irara Tirou a sua adaga e cravoua na parede tão longe quanto lhe permitiu a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o ângulo Suspendendose então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximarse da janela à menor indecisão ao menor movimento bastava que o pé lhe faltasse ou que o punhal vacilasse no cimento para precipitarse com a cabeça sobre as pedras Enquanto isto se passava Peri sentado tranqüilamente no galho do óleo e escondido pela folhagem assistia imóvel a toda esta cena Logo que Cecília cerrou as cortinas da janela o índio vira os dois homens que colocados à direita e a esquerda pareciam esperar Esperou também curioso de saber o que se ia passar mas resolvido se fosse preciso a lançarse de um pulo sobre aquele que ousasse fazer a menor violência e a caírem ambos do alto da esplanada Tinha reconhecido Álvaro e Loredano desde muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecília mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita O que podiam querer estes dois homens Que vinham eles fazer ali àquela hora silenciosa da noite O movimento de Álvaro explicoulhe parte do enigma o de Loredano ia fazerlhe compreender o resto Com efeito o italiano que se aproximara da janela conseguiu com um esforço fazer cair o objeto que Álvaro ai tinha deixado no fundo do precipício isto voltou do mesmo modo e retirouse retirouse o prazer dessa vingança simples mas cujo alcance ele previa Peri não se moveu Tinha compreendido com a sua sagacidade natural o amor de um e o ciúme do outro e formulou na sua inteligência selvagem e na sua adoração fanática um pensamento que para ele era muito simples Se Cecília julgasse que isto devia ser assim pouco lhe importava o mais porém se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de tristeza e empanasse um momento o brilho de seus olhos azuis então era diferente O índio sacrificaria tudo antes do que consentir que um pesar anuviasse o rostinho faceiro de sua bela senhora Assim tranqüilizado por esta idéia ganhou a cabana e dormiu sonhando que a lua lhe mandava um raio de sua luz branca e acetinada para dizerlhe que protegesse sua filha na terra E com efeito a lua se elevava sobre a cúpula das árvores e iluminava a fachada do edifício Então quem se aproximasse de uma das janelas que ficavam na extrema do jardim veria na penumbra do portal um vulto imóvel Era Isabel que velava pensativa enxugando de vez em quando uma lágrima que desfiavalhe pela face Pensava no seu amor infeliz na solidão de sua alma tão erma de recordações doces de esperanças queridas Toda essa tarde fora um martírio para ela vira Álvaro falar a Cecília adivinhara quase as suas palavras Há poucos momentos tinha percebido a sombra do moço que atravessara a esplanada e sabia que não era por sua causa que ele passava De vez em quando seus lábios tremiam e deixavam escaparemse algumas palavras imperceptíveis Se eu quisesse Tirava do seio uma redoma de ouro sob cuja tampa de cristal se via um anel de cabelos que se enroscava no estreito aro de metal O que havia dentro desta redoma de tão poderoso de tão forte que justificasse aquela exclamação e o olhar brilhante que iluminava a pupila negra de Isabel Seria um segredo um desses segredos terríveis que mudam de repente a face das coisas e fazem surgir o passado para esmagar o presente Seria algum tesouro inestimável e fabuloso a cuja sedução a natureza humana não devia resistir Seria uma arma poderosa e invencível contra a qual não houvesse defesa possível senão em um milagre da Providência Era o pó sutil do curare o veneno terrível dos selvagens Isabel colou os lábios no cristal com uma espécie de delírio Minha mãe minha mãe Um soluço rompeulhe o seio X AO ALVORECER No dia seguinte ao raiar da manhã Cecília abriu a portinha do jardim e aproximouse da cerca Peri disse ela O índio apareceu à entrada da cabana correu alegre mas tímido e submisso Cecília sentouse num banco de relva e a muito custo conseguiu tomar um arzinho de severidade que de vez em quando quase traiase por um sorriso teimoso que lhe queria fugir dos lábios Fitou um momento no índio os seus grandes olhos azuis com uma expressão de doce repreensão depois disselhe em um tom mais de queixa do que de rigor Estou muito zangada com Peri O semblante do selvagem anuviouse Tu senhora zangada com Peri Por quê Porque Peri é mau e ingrato em vez de ficar perto de sua senhora vai caçar em risco de morrer disse a moça ressentida Ceci desejou ver uma onça viva Então não posso gracejar Basta que eu deseje uma coisa para que tu corras atrás dela como um louco Quando Ceci acha bonita uma flor Peri não vai buscar perguntou o índio Vai sim Quando Ceci ouve cantar o sofrer Peri não o vai procurar Que tem isso Pois Ceci desejou ver uma onça Peri a foi buscar Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse silogismo rude a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade Mas estava resolvida a conservar a sua severidade e ralhar com Peri por causa do susto que lhe havia feito na véspera Isto não é razão continuou ela porventura um animal feroz é a mesma coisa que um pássaro e apanhase como uma flor Tudo é o mesmo desde que te causa prazer senhora Mas então exclamou a menina com um assomo de impaciência se eu te pedisse aquela nuvem E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite Peri ia buscar A nuvem perguntou a moça admirada Sim a nuvem Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça ele continuou Somente como a nuvem não é da terra e o homem não pode tocála Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci Estas palavras foram ditas com a simplicidade com que fala o coração A menina que um momento duvidara da razão de Peri compreendeu toda a sublime abnegação toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta A sua fingida severidade não pôde mais resistir deixou pairar nos seus lábios um sorriso divino Obrigada meu bom Peri Tu és um amigo dedicado mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez Senhora não está mais zangada com Peri Não apesar de que devia estar porque Peri ontem fez sua senhora afligirse cuidando que ele ia morrer E Ceci ficou triste exclamou o índio Ceci chorou respondeu a menina com uma graciosa ingenuidade Perdoa senhora Não só te perdôo mas quero também fazerte o meu presente Cecília correu ao seu quarto e trouxe o rico par de pistolas que havia encomendado a Álvaro Olha Peri não desejava ter umas Muito Pois aqui tens Tu não as deixarás nunca porque são uma lembrança de Cecília não é verdade Oh o sol deixará primeiro a Peri do que Peri a elas Quando correres algum perigo lembrate que Cecília as deu para defenderem e salvarem a tua vida Por que é tua não é senhora Sim porque é minha e quero que a conserves para mim O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um gozo imenso de uma felicidade infinita meteu as pistolas na cinta de penas e ergueu a cabeça orgulhoso como um rei que acabasse de receber a unção de Deus Para ele essa menina esse anjo louro de olhos azuis representava a divindade na terra admirála fazêla sorrir vêla feliz era o seu culto culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem Isabel entrou no jardim a pobre menina tinha velado toda a noite e o seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas dessas lágrimas ardentes que escaldam o seio e requeimam as faces A moça e o índio nem se olharam odiavamse mutuamente era uma antipatia que começara desde o momento em que se viram e que cada dia aumentava Agora Peri Isabel e eu vamos ao banho Peri te acompanha senhora Sim mas com a condição de que Peri há de estar muito quieto e sossegado A razão por que Cecília impunha esta condição só podia bem compreender quem tivesse assistido a uma das cenas que se passavam quando as duas moças iam banharse o que sucedia quase sempre ao domingo Peri com o seu arco companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra sentavase longe à beira do rio numa das pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma árvore e não deixava ninguém aproximarse num raio de vinte passos do lagar onde as moças se banhavam Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse círculo que o índio traçava com o olhar em redor de si Peri na posição sobranceira em que se colocara o percebia imediatamente Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéu ornarse de repente com uma pena vermelha que voava pelos ares sibilando se via uma seta arrebatarlhe o fruto que ele estendia a mão para colher se parava assustado diante de uma longa flecha emplumada que despedida por elevação vinha cairlhe a dois passos da frente como para embargarlhe o caminho e servir de baliza não se admirava Compreendia imediatamente o que isto queria dizer e pelo respeito que todos votavam a D Antônio de Mariz e à sua família arrepiava caminho e voltava lançando uma jura contra Peri que lhe crivara o chapéu e o obrigara a encolher a mão de susto E fazia bem em voltar porque o índio com o seu zelo ardente não duvidaria vazarlhe os olhos para evitar que chegandose à beira do rio visse a moça a banharse nas águas Entretanto Cecília e sua prima tinham o costume de banharse vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que ocultava inteiramente sob a cor escura as formas do corpo deixandolhes os movimentos livres para nadarem Mas Peri entendia que apesar disto seria uma profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu trajo de banho nem mesmo o dele que era seu escravo e por conseguinte não podia ofendêla a ela que era o seu único deus Enquanto porém o índio mantinha assim pela certeza de sua vista rápida e pela projeção das suas flechas esse círculo impenetrável para quem quer que fosse não deixava de olhar com uma atenção escrupulosa a corrente e as margens do rio O peixe que beijava a flor da água e que podia ir ofender a moca uma cobra verde inocente que se enroscava pelas folhas dos aguapés um camaleão que se aquecia ao sol fazendo cintilar o seu prisma de cores brilhantes um sagüi branco e felpudo que se divertia a fazer caretas maliciosas suspendendose pela cauda ao galho de uma árvore tudo quanto podia ir causar um susto à moça o índio fazia fugir se estava longe e se estava perto pregava o animal imóvel sobre o tronco ou sobre o chão Se um ramo arrastado pela corrente passava se um pouco do limo das águas despegavase da margem pedregosa do rio se o fruto de uma sapucaia pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cair o índio veloz como o tiro do seu arco lançavase e retinha o coco no meio da sua queda ou precipitavase na água e apanhava os objetos que boiavam Cecília podia ser ofendida pelo tronco que a correnteza carregava pela fruta que caía podia assustarse com o contato do limo julgando ser uma cobra e Peri não perdoaria a si mesmo a mais leve mágoa que a moça sofresse por falta de cuidado seu Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilância tão constante e infatigável uma proteção tão inteligente e delicada que a moça podia descansar certa de que se sofresse alguma coisa seria porque todo o poder do homem fora impotente para evitar Eis pois a razão por que Cecília recomendava a Peri que estivesse quieto e sossegado é verdade que ela sabia que essa recomendação era sempre inútil e que o índio faria tudo para que uma abelha sequer não viesse beijar os seus lábios vermelhos confundindoos com uma flor de pequiá Quando as duas mocas atravessaram a esplanada Álvaro passeava junto da escada Cecília saudou de passagem com um sorriso ao jovem cavalheiro e desceu ligeiramente seguida por sua prima Álvaro que tinha procurado lerlhe nos olhos e no rosto o perdão de sua loucura da véspera e nada havia percebido que acabasse com o seu receio quis seguir a moça e falarlhe Voltouse para ver se alguém estava ali que reparasse no que ia fazer e deu com o italiano que a dois passos dele o olhava com um dos seus sorrisos sarcásticos Bom dia sr cavalheiro Os dois inimigos trocaram um olhar que se cruzara como laminas de aço que rogassem uma na outra Nesse momento Peri se aproximava lentamente deles carregando uma das pistolas que Cecília lhe havia dado há alguns minutos O índio parou e com um ligeiro sorriso de uma expressão indefinível tomou as pistolas pelo cano e apresentouas uma a Álvaro e outra a Loredano Ambos compreenderam o gesto e o sorriso ambos sentiram que tinham cometido uma imprudência e que o espírito perspicaz do selvagem havia lido nos seus olhos um ódio profundo e talvez a causa desse ódio Voltaramse fingindo não ter visto o movimento Peri levantou os ombros e metendo as pistolas na cinta passou entre eles com a cabeça alta o olhar sobranceiro e acompanhou sua senhora XI NO BANHO Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília perguntava à sua prima Dizeme uma coisa Isabel por que é que tu não falas ao Sr Álvaro Isabel estremeceu Tenho reparado continuou a menina que nem mesmo respondes à cortesia que ele nos faz Que ele te faz Cecília replicou a moça docemente Confessa que não gostas dele Tenslhe antipatia A moça calouse Não falas olha que então vou pensar outra coisa continuou Cecília galanteando Isabel empalideceu e levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que pareciam queimarlhe os lábios Bem sabes que o aborreço Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua prima porque tendo chegado à baixa nesse momento esquecera a conversa e começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva Mas ainda que visse a perturbação da moça e o choque que ela tinha sentido decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo menos ao verdadeiro A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão inocente tão natural que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo que era isto é de um prazer que fazia sorrir e de um enleio que fazia corar Esse amor pois se era amor não podia conhecer o que se passava na alma de Isabel não podia compreender a sublime mentira que os lábios da moça acabavam de proferir Quanto a Isabel temendo trair o seu segredo tinha arrancado do seu coração cheio de amor essa palavra de ódio que para ela era quase uma blasfêmia Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma esse mistério essa ignorância que envolvia o seu amor e o escondia a todos os olhos tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível Podia assim fitar horas e horas o moço sem que ele o percebesse sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante podia reverse em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a fizesse sofrer O sol vinha nascendo O seu primeiro raio espreguiçavase ainda pelo céu anilado e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a terra e surpreendia as sombras indolentes que dormiam sob as copas das árvores Era a hora em que o cacto a flor da noite fechava o seu cálice cheio das gotas de orvalho com que destila o seu perfume temendo que o sol crestasse a alvura diáfana de suas pétalas Cecília com a sua graça de menina travessa corria sobre a relva ainda úmida colhendo uma gracíola azul que se embalançava sobre a haste ou um malvaísco que abria os lindos botões escarlates Tudo para ela tinha um encanto inexprimível as lágrimas da noite que tremiam como brilhantes das folhas das palmeiras a borboleta que ainda com as asas entorpecidas esperava o calor do sol para reanimarse a viuvinha que escondida na ramagem avisava o companheiro que o dia vinha raiando tudo lhe fazia soltar um grito de surpresa e de prazer Enquanto a menina brincava assim pela várzea Peri que a seguia de longe parou de repente tomado por uma idéia que lhe fez correr pelo corpo um calafrio lembrarase do tigre De um pulo sumiuse numa grande moita de arvoredo que se elevava a alguns passos ouviuse um rugido abafado um grande farfalhar de folhas que se espedaçavam e o índio apareceu Cecília tinhase voltado um pouco trêmula Que é isto Peri Nada senhora E assim que prometeste estar quieto Ceci não se há de zangar mais Que queres tu dizer Peri sabe respondeu o índio sorrindo Na véspera tinha provocado uma luta espantosa para domar e vencer um animal feroz e deitálo submisso e inofensivo aos pés da moça julgando que isso lhe causava um prazer Agora estremecendo com o susto que sua senhora podia sofrer destruíra em um instante essa ação de heroísmo sem proferir uma palavra que a revelasse Bastava que ele soubesse o que tinha feito e o que todos deviam ignorar bastava que sua alma sentisse o orgulho da nobre dedicação que se expandia no sorriso de seus lábios As moças que estavam bem longe de saber até que ponto tinha chegado a loucura de Peri e que não julgavam possível que um homem pudesse fazer o que ele tinha feito não compreenderam nem a frase nem o sorriso Cecília tinha chegado a uma latada de jasmineiros que havia à borda dágua e que lhe servia de casa de banho era um dos trabalhos do índio que o havia arranjado com aquele cuidado e esmero que punha em satisfazer as vontades da menina Peri já tinha ganho a margem do rio e estava longe Isabel sentouse na relva Então afastando as ramas dos jasmineiros que ocultavam inteiramente a entrada Cecília penetrou naquele pequeno pavilhão de verdura e examinou se as folhas estavam bem embastidas se não havia alguma fresta por onde o olhar do dia penetrasse A inocente menina tinha vergonha até do raio de luz que podia vir espiar o tesouros de beleza que ocultava a cambraia de suas roupagens Assim foi depois desse exame escrupuloso e ainda corando de si mesma que começou o seu vestuário de banho Mas quando o corpinho da anágua caindo descobriu suas alvas espáduas e seu colo paro e suave a menina quase morreu de pejo e de susto Um passarinho escondido entre as folhas um gárrulo travesso e malicioso gritara distintamente Bemtevi Cecília riuse do susto que tivera e acabou o seu vestuário de banho que a cobria toda deixando apenas nus os braços e o pezinho de menina Atirouse à água como um passarinho Isabel que a acompanhara por comprazer ficou sentada à beira do rio Como Cecília estava bela nadando sobre as águas límpidas da corrente com seus cabelos louros soltos e os braços alvos que se curvavam graciosamente para imprimir ao corpo um doce movimento Parecia uma dessas garças brancas ou colhereiras de rósea cor que deslizam mansamente à flor do lago nas tardes serenas espelhandose no cristal das águas Às vezes a linda menina se deitava de braços e sorrindo ao céu azul ia levada pela corrente ou perseguia as jaçanãs e marrecas que fugiam diante dela Outras vezes Peri que estava distante do lado superior do rio colhia alguma flor parasita que deitava sobre um barquinho feito de uma casca de pau e que vinha trazido pela correnteza A menina perseguia o barquinho a nado apanhava a flor e ia oferecêla na pontinha dos dedos a Isabel que desfolhandoa tristemente murmurava as palavras cabalísticas com que o coração procura iludirse Em vez porém de consultar o presente perguntava o futuro porque sabia que o presente não tinha esperanças para ela e se a flor dissesse o contrário mentia Havia meia hora que Cecília estava no banho quando Peri que colocado sobre uma árvore não deixava de lançar o olhar ao redor de si viu na margem oposta as guaximas se agitarem A ondulação produzida nos arbustos foise estendendo como um caracol e aproximandose do lagar onde a moça se banhava até que parou detrás de umas grandes pedras que havia à beira do rio Do primeiro lanço de olhos o índio conheceu que o largo sulco traçado entre as hastes verdes do arvoredo não podia deixar de ser produzido por um animal de grande corpulência Seguiu rapidamente pelos ramos das árvores atravessou o rio sobre essa ponte aérea e conseguiu escondido pelas folhas colocarse perpendicularmente ao lagar onde ainda se fazia sentir a oscilação dos arbustos Viu então sentados entre as guaximas dois selvagens mal cobertos por uma tanga de penas amarelas que com o arco esticado e a flecha a partir esperavam que Cecília passasse diante da fresta que formavam as pedras para despedirem o tiro E a menina descuidada e tranqüila já tinha estendido o braço e ferindo a água passava sorrindo por diante da morte que a ameaçava Se se tratasse de sua vida Peri teria sanguefrio mas Cecília corria um perigo e portanto não refletiu não calculou Deixouse cair como uma pedra do alto da árvore as duas flechas que partiam uma cravouselhe no ombro a outra rogandolhe pelos cabelos mudou de direção Ergueuse então e sem mesmo darse ao trabalho de arrancar a seta de um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora e despedaçou a cabeça dos selvagens Ouviramse dois gritos de susto que partiam da margem oposta e quase logo a voz trêmula e colérica de Cecília que chamava Peri Ele beijou as pistolas ainda fumegantes e ia responder quando a dois passos surgiu de entre a touça o vulto de uma índia que sumiuse ligeiramente no mato Enfiou um olhar pela fresta e julgando Cecília já fora do banho e em lugar seguro lançouse atrás da índia a que já lhe levava um grande avanço Uma larga fita vermelha que escapava da ferida tingia a sua alva túnica de algodão Peri sentiuse vacilar de repente e apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava Foi um momento de luta terrível entre o espírito e a matéria entre a força da vontade e o poder da natureza O corpo desfalecia os joelhos se dobravam e Peri erguendo os braços como para agarrarse à cúpula das árvores estorcendo os músculos para manterse em pó lutava debalde com a fraqueza que se apoderava dele Debateuse um momento contra a poderosa gravitação que o vergava para a terra mas era homem e tinha de ceder à lei da criação Entretanto sucumbindo o valente índio resistia sempre e vencido parecia querer lutar ainda Não caiu não quando a força lhe faltou de todo foise lentamente retraindo e tocou a terra com os joelhos Mas então lembrouse de Cecília de sua senhora a quem tinha de vingar e para quem devia viver a fim de salvála e de velar sobre ela Fez um esforço supremo contraindose conseguiu reerguerse deu dois passos vacilantes girou no ar e foi bater de encontro a uma árvore com a qual se abraçou convulsivamente Era uma cabuíba de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta e de cujo tronco cinzento borbulhava um óleo cor de opala que desfiava em lágrimas O suave aroma que recendia dessas gotas fez o índio abrir os olhos amortecidos que se iluminaram de uma brilhante irradiação de felicidade Colou ardentemente os lábios no tronco e sorveu o óleo que entrou no seu seio como um bálsamo poderoso Sentiuse renascer Estendeu o óleo sobre a ferida estancou o sangue e respirou Estava salvo XII A ONÇA Voltemos a casa Loredano depois do movimento de Peri tinha acompanhado com os olhos a Álvaro o qual seguia pela borda da esplanada para ver Cecília que dirigiase ao rio Apenas o moço dobrou o ângulo que formava o rochedo o italiano desceu a ladeira rapidamente e meteuse pelo mato Poucos instantes se tinham passado quando Rui Soeiro apareceu na esplanada ganhou a baixa e entranhouse por sua vez na floresta Bento Simões imitouo com pequeno intervalo e guiandose por alguns talhos frescos que viu nas árvores tomou a mesma direção O pátio ficou deserto Decorreu cerca de meia hora a casa tinha aberto todas as suas janelas para receber o ar paro da manhã e as emanações saudáveis dos campos um ligeiro penacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé anunciando que os trabalhos caseiros haviam começado De repente ouviuse um grito no interior da habitação todas as portas e janelas do edifício fecharamse com um estrépito e uma rapidez como se um inimigo caísse de assalto Pela fresta de uma janela entreaberta apareceu o rosto de D Lauriana pálida e com os cabelos sem estarem riçados o que era uma coisa extraordinária Aires Gomes O escudeiro Chamem Aires Gomes Que venha já gritou a dama A janela fechouse de novo com o ferrolho A personagem que já conhecemos pouco tardou e atravessando a esplanada dirigiuse à casa sem compreender a razão por que àquela hora com o sol alto ainda toda a habitação parecia dormir Fizestesme chamar disse ele chegandose à janela Sim estais armado perguntou D Lauriana por detrás da porta Tenho a minha espada mas que novidade há A fisionomia decomposta de D Lauriana apareceu de novo na fresta da janela A onça Aires Gomes A onça O escudeiro deu um salto prodigioso julgando que o animal de que se falava ia saltarlhe ao cangote e sacou da espada pondose em guarda A dama vendo o movimento do escudeiro supôs que a onça atiravase à janela e caiu de joelhos murmurando uma oração ao santo advogado contra as feras Alguns minutos se passaram assim D Lauriana rezando e Aires Gomes rodando no pátio como um corrupio com receio de que a onça não o atacasse pelas costas o que além de ser uma vergonha para um homem de armas da sua têmpera seria um pouco desagradável para sua saúde Por fim de pulo em pulo o escudeiro conseguiu ganhar de novo a parede do edifício e encostarse nela o que o tranqüilizou completamente pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar Então batendo com a folha da espada na ombreira da janela disse em voz alta Explicarmeeis que onça é essa de que falais Sra D Lauriana ou estou cego ou não vejo aqui sombra de semelhante animal Estais bem certo disso Aires Gomes disse a dama reerguendose Se estou certo Asseguraivos com os vossos próprios olhos E verdade Mas em alguma parte há de estar E por que quereis vós à fina força que aqui esteja uma onça Sra D Lauriana disse o escudeiro um tanto impacientado Pois não sabeis exclamou a dama O quê senhora Aquele bugre endemoninhado não se lembrou de trazer ontem uma onça viva para a casa Quem o perro do cacique E quem mais senão aquele cão tinhoso É das que ele costuma fazer Viuse já uma coisa semelhante Aires Gomes Mas a culpa não tem ele Quero ver se o Sr Mariz ainda teima em guardar essa boa jóia E que é feito da fera Sra D Lauriana Algures deve estar Procuraia Aires corram tudo matemna e tragamme aqui É dito e feito respondeu o escudeiro correndo tanto quanto lhe permitiam as suas botas de couro de raposa Com pouca demora cerca de vinte aventureiros armados desceram da esplanada Aires Gomes marchava na frente com um enorme chuço na mão direita a espada na mão esquerda e uma faca atravessada nos dentes Depois de percorrerem quase todo o vale e baterem o arvoredo voltavam quando o escudeiro estacou de repente e gritou Eila rapazes Fogo antes que faça o pulo Com efeito por entre a ramagem das árvores viase a pele negra e marchetada do tigre e os olhos felinos que brilhavam com o seu reflexo pálido Os aventureiros levaram o mosquete à face mas no momento de puxarem o gatilho largaram todos uma risada homérica e abaixaram as armas Que é lá isso Têm medo E o destemido escudeiro sem se importar com os outros mergulhou por sob as árvores e apresentouse arrogante em face do tigre Aí porém caiulhe o queixo de pasmo e de surpresa A onça embalavase a um galho suspensa pelo pescoço e enforcada pelo laço que apertandose com o seu próprio peso a estrangulara Enquanto viva um só homem bastara para trazêla desde o Paraíba até à floresta onde tinha sido caçada e da floresta até àquele lugar onde havia expirado Era depois de morta que fazia todo aquele espalhafato que punha em armas vinte homens valentes e corajosos e produzia uma revolução na casa de D Lauriana Passado o primeiro momento de admiração Aires Gomes cortou a corda e arrastando o animal foi apresentálo à dama Depois que de fora lhe asseguraram que o tigre estava bem morto entreabriuse a porta e D Lauriana ainda toda arrepiada olhou estremecendo o corpo da fera Deixeo ai mesmo O Sr D Antônio há de vêlo com seus olhos Era o corpo de delito sobre o qual pretendia basear o libelo acusatório que ia fulminar contra Peri Por diferentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a expulsar o índio que ela não podia sofrer e cuja presença bastava para causarlhe um faniquito Mas todos os seus esforços tinham sido baldados o fidalgo com a sua lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri e via nele embora selvagem um homem de sentimentos nobres e de alma grande Como pai de família estimava o índio pela circunstância a que já aludimos de ter salvado sua filha circunstância que mais tarde se explicará Desta vez porém D Lauriana esperava vencer e julgava impossível que seu marido não punisse severamente esse crime abominável de um homem que ia ao mato amarrar uma onça e trazêla viva para casa Que importava que ele tivesse salvado a vida de uma pessoa se punha em risco a existência de toda a família e sobretudo a dela Terminava esta reflexão justamente no momento em que D Antônio de Mariz assomava à porta Dirmeeis senhora que rumor é este e qual a causa Aí a tendes exclamou D Lauriana apontando para a onça com um gesto soberbo Lindo animal disse o fidalgo adiantandose e tocando com o pé as presas do tigre Ah achais lindo Inda mais achareis quando souberdes quem o trouxe Deve ter sido um hábil caçador disse D Antônio contemplando a fera com esse prazer de montearia que era um dom dos fidalgos daquele tempo não tem o sinal de uma só ferida E obra daquele excomungado caboclo Sr Mariz respondeu D Lauriana preparandose para o ataque Ah exclamou o fidalgo rindo é a caça que Peri ontem perseguia e de que nos falou Álvaro Sim e que trouxe viva como se fosse alguma paca Ah trouxe viva Mas não vedes que é impossível Como impossível se Aires Gomes vem de acabála agora mesmo Aires Gomes quis retrucar mas a dama impôslhe silêncio com um gesto O fidalgo curvouse e segurando o animal pelas orelhas ergueuo ao passo que examinava o corpo para ver se lhe descobria alguma bala notou que tinha as patas e as mandíbulas ligadas É verdade murmurou ele devia estar viva há coisa de uma hora ainda conserva o calor D Lauriana deixou que seu marido se fartasse de contemplar o animal certa de que as reflexões que esta vista produziria não podiam deixar de ser favorável ao seu plano Quando julgou que tinha chegado o momento deu dois passos arranjou a cauda do seu vestido e dando um certo descaído ao corpo dirigiuse a D Antônio Bom é que vejais Sr Mariz que nunca me iludo Que de vezes vos hei dito que fazíeis mal em conservar esse bugre Não queríeis acreditar tínheis um fraco inexplicável pelo pagão Pois bem A dama tomou um tom oratório e acentuou a palavra com um gesto enérgico apontando para o animal morto Aí tendes o pago Toda a vossa família ameaçada Vós mesmo que podíeis sair desapercebido vossa filha que ignorando o perigo que corria foi banharse e podia a esta hora estar pasto de feras O fidalgo estremeceu à idéia do perigo que correra sua filha e ia precipitarse mas ouviu um doce murmúrio de vozes que parecia um chilrear de sais eram as duas moças que subiam a ladeira D Lauriana sorriase do seu triunfo E se fosse só isto continuou ela Porém não pára aqui amanhã vereis que nos traz algum jacaré depois uma cascavel ou uma jibóia enchernosá a casa de cobras e lacraus Seremos aqui devorados vivos porque a um bugre arrenegado deulhe na cabeça fazer as suas bruxarias Exagerais muito também D Lauriana É certo que Peri fez uma selvajaria mas não há razão para que receemos tanto Merece uma reprimenda lha darei e forte Não continuará Se o conhecêsseis como eu Sr Mariz É bugre e basta Podeis ralharlhe quanto quiserdes ele o fará mesmo por pirraça Prevenções vossas que não partilho A dama conheceu que ia perdendo terreno e resolveu dar o golpe decisivo amaciou a voz e tomou um tom choroso Fazei o que vos aprouver Sois homem e não tendes medo de nada Mas eu continuou arrepiandose não poderei mais dormir só com a idéia de que uma jararaca sobeme à cama de dia a todo momento julgarei que algum gato montês vai saltarme pela janela que a minha roupa está cheia de lagartas de fogo Não há forças que resistam a semelhante martírio D Antônio começou a refletir seriamente sobre o que dizia sua mulher e a pensar no semnúmero de faniquitos desmaios e arrufos que ia produzir o terror pânico justificado pelo fato do índio contudo conservava ainda a esperança de conseguir acalmála e dissuadila D Lauriana espiava o efeito do seu último ataque Contava vencer XIII REVELAÇÃO Isabel e Cecília que voltavam do banho conversando aproximaramse da porta não sem algum susto do animal susto que se desfez com o sorriso do velho fidalgo revendose na beleza de sua filha Com efeito Cecília estava nesse momento de uma formosura que fascinava Tinha os cabelos ainda úmidos dos quais se escapava de vez em quando um aljôfar que ia perderse na covinha dos seios cobertos pelo linho do roupão a pele fresca como se ondas de leite corressem pelos seus ombros as faces brilhantes como dois cardos rosas que se abrem ao pôrdosol As duas meninas falavam com alguma vivacidade mas ao aproximaremse da porta Cecília que ia um pouco adiante voltouse para sua prima na pontinha dos pés e com um arzinho petulante levou o dedo aos lábios recomendando silêncio Sabes Cecília que tua mãe está muito zangada com Peri disse D Antônio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijandoa na fronte Por quê meu pai Fez ele alguma coisa Uma das suas e de que já sabes parte E eu vou contarte o resto atalhou D Lauriana tocando com a mão o braço de sua filha E de fato apresentou com as cores mais negras e com a ênfase mais dramática não só o risco iminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira mas os perigos que ameaçavam ainda a paz e sossego da família Referiu que se por um milagre a sua caseira não tivesse há coisa de uma hora chegado a esplanada e visto o índio fazendo partes diabólicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa todos àquela hora estariam defuntos Cecília empalideceu lembrandose do descuido e alegria com que atravessara o vale e se banhara Isabel conservouse calma mas seus olhos brilhavam Assim concluiu peremptoriamente D Lauriana não é concebível que continuemos com semelhante praga em casa Que dizeis minha mãe exclamou Cecília assustada pretendeis mandálo embora Sem dúvida essa casta de gente que nem gente é só pode viver bem nos matos Mas ele nos ama tanto Tem feito tanto por nós não é verdade meu pai disse a menina voltandose para o fidalgo D Antônio respondeu à sua filha por um sorriso que a sossegou Vós ralhareis com ele meu pai eu ficarei agastada continuou Cecília e ele se emendará e não fará mais outra E a de há pouco replicou Isabel dirigindose a Cecília D Lauriana que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças apesar da repugnância que sentia por Isabel conheceu que tinha nela um aliado e dirigiulhe a palavra o que sucedia uma vez por semana Chegate menina o que é que dizes ter acontecido há pouco É também um perigo que correu Cecília Qual minha mãe foi mais susto de Isabel do que outra coisa Susto sim mas pelo que vi Contame isso e tu Cecília fica ai sossegada A menina pelo respeito que tinha a sua mãe não se animou a dizer mais uma palavra porém aproveitandose do movimento que fez D Lauriana ao voltarse para ouvir a Isabel abanou a cabeça à sua prima pedindolhe que nada dissesse A moça fez que não viu o gesto e respondeu à sua tia Cecília estava se banhando e eu tinha ficado à beira do rio daí a algum tempo vejo Peri que passava ao longe pelo galho de uma árvore Ele sumiuse e de repente uma seta partida daquele lugar veio cair a dois passos de minha prima Ouça cá Sr Mariz exclamou D Lauriana ouça as estripulias do capeta No mesmo instante continuou Isabel ouvimos dois tiros de pistola que ainda mais nos assustaram porque decerto foram apontados também para nosso lado Senhor Deus É pior do que uma judiaria Mas quem deu pistolas a esse bugio Fui eu minha mãe respondeu timidamente Cecília Melhor seria que rezasses as tuas contas Era bemfeito que com elas mesmo Senhor Deus perdoaime D Antônio tinha ouvido as palavras de Isabel apesar de conservarse a alguma distancia o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave Fez um ligeiro aceno a Cecília e afastouse com ela em ar de quem passeava pela esplanada O que diz tua prima é verdade É meu pai mas estou certa que Peri não o fez por maldade Contudo replicou o fidalgo isto pode renovarse por outro lado tua mãe está atemorizada assim o melhor é afastálo Ele vai sentir muito E eu e tu também porque o estimamos mas não seremos ingratos eu pagarei a tua e a minha divida de gratidão deixa isto ao meu cuidado Sim meu pai exclamou a menina com um olhar úmido de reconhecimento e de admiração Sim Vós que sabeis compreender tudo que é nobre Como tu minha Cecília respondeu o fidalgo acariciandoa Oh eu aprendi no vosso coração e nas vossas menores ações D Antônio abraçoua Ah tenho uma coisa a pedirvos Dize há muito que não me pedes nada e eu já tenho queixa disso Mandareis conservar este animal Sim Desde que o desejas Será uma lembrança que teremos de Peri Para ti que para mim a melhor lembrança és tu Se não fosse ele podia eu agora apertarte nos meus braços Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar que ele se vai É natural minha filha as lágrimas são um bálsamo que Deus deu à fraqueza da mulher e que negou à força do homem O fidalgo separouse de sua filha e chegouse à porta onde se achavam ainda sua mulher Isabel e Aires Gomes Que decidistes Sr D Antônio perguntou a dama Decidi fazervos a vontade para sossego vosso e descanso meu Hoje mesmo ou amanhã Peri deixará esta casa mas enquanto ele aqui estiver eu não quero disse carregando ligeiramente sobre aquele monossílabo que se lhe diga uma palavra sequer de desagrado Peri sai desta casa porque lho peço e não porque isto sejalhe ordenado por alguém Entendeis minha mulher D Lauriana que compreendia o que havia de energia e resolução naquela imperceptível entonação dada pelo fidalgo a uma simples frase inclinou a cabeça Incumbome de falar eu mesmo a Peri Dirlheás de minha parte Aires Gomes que venha ter comigo O escudeiro inclinouse o fidalgo que se ia retirando voltouse Ah esqueciame Mandarás encher este lindo animal que desejo conservar será uma curiosidade para o meu gabinete de armas D Lauriana fez à sorrelfa uma careta de nojo E servirá para que minha mulher se habitue com sua vista e tenha menos medo de onças D Antônio afastouse A dama pôde então ir riçar os seus cabelos e preparar o seu toucado domingueiro tinha alcançado uma importante vitoria Peri ia finalmente ser expulso dessa casa onde na sua opinião nunca devera ter entrado Enquanto isto passava Cecília ao separarse de seu pai voltara o canto da casa para entrar no jardim e encontrara Álvaro que passeava inquieto e pensativo D Cecília disse o moço Oh deixaime Sr Álvaro respondeu Cecília sem parar Em que vos ofendi eu para que me trateis assim Desculpaime estou triste em nada me ofendestes É que quando se cometeu uma falta Uma falta perguntou a menina admirada Sim respondeu o moço abaixando os olhos E que falta cometestes vós Sr Álvaro Desobedecivos Ah é grave disse a moça com um meio sorriso Não zombeis D Cecília Se soubésseis que inquietações isto me tem feito passar Arrependome mil vezes do que pratiquei e contudo pareceme que era capaz de praticálo de novo Mas Sr Álvaro esqueceis que falais de uma coisa que ignoro sei apenas que se trata de uma desobediência Lembraivos que ontem me mandastes guardar um objeto que Sim atalhou a moça corando um objeto que Que vos pertencia e que eu contra vontade vossa restitui Como que dizeis Oh perdoai foi uma ousadia mas Mas enfim eu não entendo nem uma palavra de tudo isto exclamou a moça com um movimento de impaciência Álvaro vencendo enfim o seu acanhamento contou rapidamente o que tinha feito na véspera à noite Cecília ouvindoo iase tornando séria Sr Álvaro disse ela num tom de exprobação fizestes mal em praticar semelhante ação muito mal Que ninguém o saiba ao menos Eu juro pela minha honra Não basta vis mesmo desfareis o que fizestes Não abrirei aquela janela enquanto houver ali um objeto que não me veio de meu pai e em que não posso tocar Senhora balbuciou o moço pálido e abatido Cecília levantou os olhos e viu no rosto de Álvaro tanta amargura e desespero que sentiuse comovida Não me acuseis do que sucede disse ela com a voz meiga a culpa é vossa Eu o sinto e não me queixo Bem vistes que não podendo aceitar pedi que a conservásseis como uma lembrança Oh eu a conservarei ainda ela me ensinará a expiar a minha falta e ma recordará sempre Será agora uma triste recordação E possoas eu ter alegres Quem sabe disse Cecília desentrançando dos seus cabelos louros um jasmim é tão doce esperar Voltandose para esconder o rubor de suas faces Cecília viu perto a Isabel que devorava esta cena com um olhar ardente A menina soltou um grito de susto e entrou rapidamente no jardim Álvaro apanhou no ar a pequena flor que se escapara dos dedos de Cecília e beijoua julgando que ninguém ali estava Quando o cavalheiro deu com os olhos na moça ficou tão perturbado que deixou cair o jasmim sem sentir Isabel apanhouo e apresentandoo a Álvaro disse com um acento de voz inimitável É também uma restituição Álvaro empalideceu A moça trêmula passou diante dele e entrou no quarto de sua prima Cecília vendo chegar Isabel corou e não se animou a levantar os olhos lembrandose do que ela tinha visto e ouvido pela primeira vez a inocente menina conhecia que havia na sua pura afeição alguma coisa que se escondia aos olhos dos outros Isabel entrando no aposento da prima ao qual fora arrastada por um sentimento irresistível arrependerase imediatamente a perturbação que sentia era tão grande que temeu trairse encostouse no leito defronte de Cecília muda e com os olhos cravados no chão Assim passouse um longo intervalo depois as duas moças quase ao mesmo tempo ergueram a cabeça e lançaram um olhar para a janela seus olhos se encontraram e ambas coraram ainda mais Cecília revoltouse a menina alegre e travessa que conservava num cantinho do coração sob os risos e as graças o germe da firmeza de caráter que distinguia seu pai sentiuse ofendida por se ver obrigada a corar de vergonha diante de outrem como se tivesse cometido uma falta Revestiuse de coragem e tomou uma resolução cuja energia se desenhava em um movimento imperceptível das sobrancelhas Isabel abre esta janela A moça estremeceu como se uma faisca elétrica tivesse abalado o seu corpo hesitou mas por fim atravessou o aposento Dois olhares ávidos ardentes caíram sobre a janela no momento em que se abriu Nada havia ali A emoção que teve Isabel foi tão forte que involuntariamente voltouse para sua prima soltando uma exclamação de prazer sua fisionomia iluminouse com um desses reflexos divinos que parecem descer do céu sobre a cabeça da mulher que ama Cecília olhava sua prima sem compreendêla mas a pouco e pouco a admiração e o espanto desenharamse no semblante da menina Isabel A moça caiu de joelhos aos pés de Cecília Tinhase traído XIV A ÍNDIA Peri apenas sentiu voltaremlhe as forças continuou a sua marcha através da floresta Por muito tempo seguiu as pegadas da índia pelo meio do mato com uma rapidez e uma certeza incríveis para quem não conhecer a facilidade com que os selvagens percebem os mais fracos vestígios que deixam as pisadas de um animal qualquer Um ramo quebrado o capim abatido as folhas secas espalhadas e partidas um galho que ainda se agita as pérolas do orvalho desfeitas são aos seus olhos exercitados o mesmo que uma linha traçada na floresta e que eles seguem sem hesitação Uma razão havia para que Peri se encarniçasse assim em perseguir aquela índia inofensiva e a fazer esforços inauditos a fim de agarrála Para bem compreender esta razão é necessário conhecer alguns acontecimentos que se haviam passado nos últimos dias pelas vizinhaças do Paquequer No fim da lua das águas uma tribo de Aimorés descera das eminências da Serra dos Órgãos para fazer a colheita dos frutos e preparar os vinhos bebidas e diversos alimentos de que costumava fazer provisão Uma família dessa tribo trazida pela caça aparecera há dias nas margens do Paraíba compunhase de um selvagem sua mulher um filho e uma filha Esta última era uma bela índia cuja posse se disputavam todos os guerreiros Aimorés seu pai o chefe da tribo sentia o orgulho de ter uma filha tão formosa como a mais linda seta do seu arco ou a mais vistosa pena do seu cocar Estamos no domingo Na sextafeira eram dez horas da manhã Peri atravessava a mata imitando alegremente o canto do saixê cujas notas sibiladas ele traduzia pelo doce nome de Ceci Ia então em procura desse animal que tão importante papel representa nesta história especialmente depois de morto como não o satisfazia qualquer pequeno jaguar assentara buscar nos seus próprios domínios um dos reis das grandes florestas que corriam ao longo do Paraíba Cecília havia dito uma palavra e ele que não discutia os desejos de sua senhora tomara o seu arco e seu clavinote e se tinha posto a caminho Chegava a um pequeno regato quando um cãozinho felpudo saiu do mato e logo depois uma índia que deu dois passos e caiu ferida por uma bala Peri voltouse para ver donde partia o tiro e reconheceu D Diogo de Mariz que se aproximava lentamente acompanhado por dois aventureiros O moço ia atirar a um pássaro e a índia que passava nesse momento recebera a carga da espingarda e caíra morta O cãozinho lançouse para sua senhora Uivando lambendolhe as mãos frias e rogando a cabeça pelo corpo ensangüentado como procurando reanimála D Diogo apoiado sobre o arcabuz volvia um olhar de piedade sobre essa moça vitima de um capricho de caçador que não desejava perder a sua pontaria Quanto a seus companheiros riamse do acontecimento e divertiamse a fazer comentários sobre a qualidade de caça que o cavalheiro tinha escolhido De repente o cãozinho que acariciava sua senhora morta ergueu a cabeça farejou o ar e partiu como uma flecha Peri que tinha sido testemunha muda desta cena aconselhou a D Diogo que se recolhesse à casa por prudência e continuou a sua caminhada O espetáculo que acabava de presenciar o entristecera lembrouse de sua tribo de seus irmãos que ele havia abandonado há tanto tempo e que talvez àquela hora eram também vitimas dos conquistadores de sua terra onde outrora viviam livres e felizes Tendo andado cerca de meia légua avistou ao longe um fogo na mata ao redor estavam sentados dois selvagens e uma índia O mais velho de estatura gigantesca engastava as presas longas e aguçadas da capivara nas pontas de canas silvestres e afiava numa pedra essa arma terrível O mais moço enchia de pequenas sementes pretas e vermelhas um fruto oco ornado de penas e preso a um cabo de dois palmos de comprimento A mulher que ainda era moça cardava uma porção de algodão cujos flocos alvos e puros caiam sobre uma grande folha que tinha no regaço Junto do fogo havia um pequeno vaso vidrado com brasas no qual a índia de vez em quando deitava umas grandes folhas secas que levantavam grossos novelos de fumo Então os dois índios por meio de uma taboca aspiravam as baforadas deste fumo até que os olhos lhes choravam depois continuavam o seu trabalho No momento em que Peri examinava de longe esta cena o cãozinho saltava no meio do grupo o animal apenas respirou da corrida em que vinha puxou com os dentes a trota de penas do índio mais moço que o atirou a quatro passos com um empurrão Aproximouse então da índia repetiu o mesmo movimento e como fosse mal acolhido ainda saltou sobre o algodão e mordeuo a mulher tomouo pela coleira de frutos que trazia ao pescoço sacudiuo pelas costas e arranjou as suas pastas mas estavam tintas de sangue Examinou com inquietação o animal e não o vendo ferido lançou os olhos ao redor de si e soltou um grito rouco e gutural os dois índios ergueram a cabeça interrogando com os olhos a causa dessa exclamação Por toda resposta a índia mostrou o sangue que cobria o animal e pronunciou com a voz cheia de aflição uma palavra de uma língua desconhecida e que Peri não entendeu O índio mais moço saltou pela floresta como um campeiro atrás do cãozinho que lhe servia de guia o velho e a mulher o seguiram de perto Peri compreendeu perfeitamente o que se passava e seguiu seu caminho pensando que os colonos já deviam àquela hora estar fora do alcance dos selvagens Era isto o que o índio tinha visto o que ele ignorava o acontecimento do banho lhe revelara claramente Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua filha e reconhecido o sinal da bala por muito tempo procuraram debalde as pisadas dos caçadores até que no dia seguinte a cavalgata que passava serviulhes de guia Toda a noite rondaram em torno da habitação e nessa manhã vendo sair as duas moças resolveram vingarse com a aplicação dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que reconheciam Tinham morto sua filha era justo que matassem também a filha do seu inimigo vida por vida lágrima por lágrima desgraça por desgraça Como pretenderam realizar a sua vingança e o fim que tiveram já sabemos os dois selvagens dormiam para sempre nas margens do Paquequer sem que uma mão amiga lhes viesse dar sepultura Agora é fácil conhecer a razão por que Peri perseguia a índia resto da infeliz família sabia que ela ia direito ter com seus irmãos e que à primeira palavra que proferisse toda a tribo se levantaria como um só homem para vingar a morte do seu cacique e a perda da mais bela filha dos Aimorés Ora o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião que se alimentava de carne humana e vivia como feras no chão e pelas grutas e cavernas estremecia só com a idéia de que pudesse vir assaltar a casa de D Antônio de Mariz Era preciso pois exterminar toda a família e não deixar nem um vestígio de sua passagem Fazendo estas reflexões Peri tinha gasto perto de uma hora a percorrer a floresta inutilmente a índia ganhara um grande avanço durante o tempo em que ele lutava contra o desfalecimento produzido pela ferida Por fim julgou que o mais prudente era avisar a D Antônio imediatamente a fim de que tomasse todas as medidas de prevenção que exigia a iminência do perigo Tinha chegado a um campo coberto por algumas moitas de carrascos que se destacavam aqui e ali sobre um capim áspero e queimado pelo sol Apenas o índio deu alguns passos para atravessar o campo parou fazendo um gesto de surpresa diante dele arquejava um cãozinho que reconheceu pela coleira de frutos escarlates que tinha ao pescoço Era o mesmo que há dois dias encontrara na floresta e que naturalmente seguia a índia no momento em que ela fugia o índio não o tinha visto por causa das guaximas O animal mostrava ter sido estrangulado por uma torção tão violenta que lhe partira a coluna vertebral entretanto ainda agonizava Do primeiro lanço de olhos Peri tinha visto tudo isto e calculado o que se havia passado Aquela morte pensava ele não podia ter sido feita senão por uma criatura humana qualquer outro animal usaria dos dentes ou das garras e deixaria traços de ferimento O cão pertencia à índia fora ela pois quem o havia estrangulado há bem poucos momentos porque a fratura do pescoço era de natureza a produzir a morte quase imediatamente Mas por que motivo tinha feito essa barbaridade Porque respondia o espírito do índio ela sabia que era perseguida e o cão que a não podia acompanhar serviria para denunciála Apenas formulou este pensamento Peri deitouse e auscultou o seio da terra por muito tempo duas vezes ergueu a cabeça julgando iludirse e encostou de novo o ouvido ao chão Quando levantouse o seu rosto exprimia grande surpresa e admiração tinha ouvido alguma coisa de que parecia duvidar ainda como se os seus sentidos o iludissem Caminhou para o lado do nascente auscultando a terra a cada momento e assim chegou a alguns passos de uma grande touça de cardos que se elevava numa baixa do terreno Então colocandose de encontro ao vento aproximouse com toda cautela e ouviu um murmúrio de vozes confusas e o som de um instrumento que cavava a terra Peri aplicou o ouvido e procurou ver o que se passava além mas era impossível nem uma aberta nem uma fresta davam passagem ao som ou ao olhar Só quem tem viajado nos sertões e visto esses cardos gigantes cujas largas palmas crivadas de espinhos se entrelaçam estreitamente formando uma alta muralha de alguns pés de grossura poderá fazer idéia da barreira impenetrável que cercava por todos os lados as pessoas cuja voz Peri ouvia sem distinguir as palavras Entretanto esses homens deviam ter ai entrado por alguma parte e não podia ser senão pelo galho de uma árvore seca que se estendia sobre os cardos e ao qual se enroscava um cipó nodoso e forte como uma vide Peri estudava a posição e tratava de descobrir o meio de saber o que se passava atrás daquelas árvores quando uma voz que julgou reconhecer exclamou Per Dio eila O índio estremeceu ouvindo esta voz e resolveu a todo o custo conhecer o que faziam aqueles homens pressentiu que havia ali um perigo a conjurar e um inimigo a combater Inimigo talvez mais terrível do que os Aimorés porque se estes eram feras aquele podia ser a serpente escondida entre as folhas e a relva Assim esqueceu tudo e o seu pensamento concentrouse numa única idéia ouvir o que aqueles homens diziam Mas por que meio Era o que Peri procurava tinha rodeado a touça aplicando o ouvido e pareceulhe que em um lugar o ruído das vozes e do ferro que continuava a cavar lhe chegava mais distinto O índio abaixou os olhos que brilhavam de contentamento O que produzira essa agradável impressão fora um simples montículo de barro gretado que se elevava como um pão de açúcar dois palmos acima da terra e que estava encoberto por folhas de tanchagem Era a entrada de um formigueiro de uma dessas casas subterrâneas construídas pelos pequenos arquitetos que à força de paciência e trabalho minam um campo inteiro e formam verdadeiras abóbadas debaixo da terra Aquele que Peri descobrira tinha sido abandonado pelos seus habitantes em virtude da enxurrada que penetrara no pequeno subterrâneo O índio tirou a sua faca e cerceando a cúpula dessa torre em miniatura deixou a descoberto um buraco que penetrava pelo interior da terra e decerto ia ter à baixa onde estavam reunidas as pessoas que conversavam Este buraco tornouse para ele uma espécie de tubo acústico que lhe trazia as palavras claras e distintas Sentouse e ouviu XV OS TRÊS Loredano que nessa mesma manhã saíra de casa tão cedo apenas se entranhou na mata esperou Um quarto de hora depois vieram ter com ele Bento Simões e Rui Soeiro Os três seguiram juntos sem dar uma palavra o italiano caminhava adiante e os dois aventureiros o acompanhavam trocando de vez em quando um olhar significativo Por fim Rui Soeiro rompeu o silêncio Não foi decerto para espairecer pelos matos ao romper da alva que nos fizestes vir aqui misser Loredano Não respondeu o italiano laconicamente Mas então desembuchai de uma vez e não percamos tempo Esperai Que espereis vos digo eu atalhou Bento Simões ides numa batida Onde nos pretendeis levar nesta marcha Vereis Já que não há meio de vos sacar mais palavra segui com Deus misser Loredano Sim acudiu Rui Soeiro segui que nós tornamos por onde viemos Quando estiverdes de vez para falar nos avisareis E os dois aventureiros pararam dispostos a retroceder o italiano voltouse com um gesto de desprezo Parvos que sois disse ele Se vos parece revoltaivos agora que estais em meu poder e que não tendes outro remédio senão seguir a minha fortuna Voltai Também eu voltarei mas para denunciarvos a todos Os dois aventureiros empalideceram Não me façais lembrar Loredano disse Rui Soeiro abaixando um olhar rápido para o punhal que há um meio de fechar para sempre as bocas que se obstinam a falar Isto quer dizer replicou o italiano desdenhosamente que me mataríeis no caso de que eu vos quisesse denunciar À fé que sim respondeu Rui Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução E eu pela minha parte faria o mesmo Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas misser italiano E que ganharíeis vós em matarme perguntou Loredano sorrindo Essa é melhor que ganharíamos Achais que é coisa de pequena valia assegurar a sua existência e o seu descanso Néscios disse o italiano cobrindoos com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia ele deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes Bem vejo que estais armado e mais vale assim respondeu Rui Soeiro será morte antes que homizio Direis melhor execução Rui Soeiro retrucou Bento Simões O italiano continuou Não são essas armas que me servirão contra vós outras tenho eu que mais podem sabei unicamente que vivo ou morto a minha voz virá de longe ate mesmo da campa denunciarvos e vingarme Quereis gracejar misser italiano A ocasião não é azada A seu tempo vereis se gracejo Tenho na mão de D Antônio de Mariz o meu testamento que ele deve abrir quando me saiba ou me julgue morto Nesse testamento conto as relações que existem entre nós e o fim para que trabalhamos Os dois aventureiros tornaramse lívidos como espetros Compreendeis agora disse Loredano sorrindo que se me assassinardes se um acidente qualquer me privar da vida se me der na cabeça mesmo fugir e fazer supor que morri estais perdidos irremediavelmente Bento Simões ficou paralisado como se uma catalepsia o tivesse fulminado Rui Soeiro apesar do violento abalo que sentia conseguiu com um esforço recobrar a palavra É impossível gritou ele isso que dizeis é falso Não há homem que o fizesse Ponde à prova respondeu o italiano calmo e impassível Ele o fez estou certo balbuciou Bento Simões em voz sumida Não retrucou Rui Soeiro Satanás não o faria Vamos Loredano confessai que nos enganastes que quisestes atemorizarnos Disse a verdade Mentes gritou o aventureiro desesperado O italiano sorriu tirando a sua espada estendeu a mão sobre a cruz do punho e disse lentamente deixando cair as palavras uma a uma Por esta cruz e pelo Cristo que nela sofreu por minha honra neste mundo e minha alma no outro juro Bento Simões caiu de joelhos esmagado por este juramento que não deixava de ter alguma solenidade no meio da floresta sombria e silenciosa Rui Soeiro pálido com os olhos a saltaremlhe das órbitas os lábios trêmulos os cabelos eriçados e os dedos hirtos parecia a múmia do desespero Estendeu os braços para Loredano e exclamou com a voz trêmula e sufocada Pois vós Loredano confiastes a D Antônio de Mariz um papel onde existe a maquinação infernal que tramastes contra sua família Confieio E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a ele e a sua mulher e lançar fogo à casa se preciso for para a realização de vossos intentos Escrevi tudo Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer dela nobre moça a barregã de um aventureiro e réprobo como vós Sim E dissestes também continuou Rui no auge da desesperação que a outra sua filha nos pertencerá a nós que jogaremos a sorte para decidir a qual deverá tocar Não me esqueci de nada e menos desse ponto importante respondeu o italiano com um sorriso tudo isso está escrito em um pergaminho nas mãos de D Antônio de Mariz Para sabêlo basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira tabelião do Rio de Janeiro o cerrou na minha penúltima viagem Loredano pronunciou estas palavras com a maior calma contemplando os dois aventureiros pálidos e humilhados diante dele Passouse algum tempo em silêncio Já vedes disse o italiano que estais na minha mão sirvavos isto de exemplo Quando uma vez se pôs o pé sobre o precipício amigos é preciso caminhar por cima dele para não rolar e ir ao fundo Caminhemos pois Só de uma coisa vos advirto de hoje em diante obediência cega e passiva Os dois aventureiros não disseram palavra porém a sua atitude respondia melhor do que mil protestos Agora deixai essa cara triste e consternada Estou vivo e D Antônio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento Criai esperança confiai em mim que breve alcançaremos a meta A fisionomia de Bento Simões reanimouse Falai claro uma vez ao menos retrucou Rui Soeiro Não aqui seguime que vos levarei a um lugar onde conversaremos à vontade Esperai acudiu Bento Simões antes de tudo reparação vos é devida Há pouco vos ameaçamos aqui tendes as nossas armas Sim depois do que se passou é justo que desconfieis de nós tomai Os dois tiraram os punhais e as espadas Guardai as vossas armas disse Loredano escarnecendo servirão para me defenderdes Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existência Ambos os aventureiros empalideceram e seguiram o italiano que depois de uma meia hora de caminho chegou à touça de cardos que já descrevemos A um sinal de Loredano os seus companheiros subiram à árvore e desceram pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos que tinha quando muito três braças de comprimento sobre duas de largura De um lado na quebrada que fazia o terreno viase uma espécie de grata ou abóbada restos desses grandes formigueiros que se encontram pelos nossos campos já meio aluídos pela chuva Neste lagar à sombra de um pequeno arbusto que nascera entre os cardos sentaramse os três aventureiros Oh disse o italiano imediatamente há algum tempo já que não venho dessas bandas mas pareceme que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no goto Reclinouse e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que ali estava deitada e que colocou no meio do grupo É de Caparica mas do bom Deste cá não vem Diabo tendes uma adega exclamou Bento Simões a quem a vista da botija tinha restituído todo o bom humor A falar a verdade disse Rui esperaria tudo menos ver sair deste buraco uma botija de vinho É para verdes Como costumo vir a este lugar onde às vezes passo bem boas soalheiras precisava ter um companheiro com quem espairecesse E não podíeis achar melhor disse Bento Simões dando uma empinadela à botija e estalando a língua Já lhe tinha saudades Cada um dos três tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar Bom disse o italiano agora tratemos do que serve Prometi quando vos convidei a seguirme que vos faria ricos muito ricos Os dois inclinaram a cabeça A promessa que vos fiz vaise realizar a riqueza está aqui perto de nós podemos tocála Onde perguntaram os aventureiros lançando um olhar ávido em roda Não vai assim também falase figuradamente Digo que a riqueza está diante de nós mas para nos apoderarmos dela é preciso O quê Dizei A seu tempo agora quero contarvos uma história Uma história replicou Rui Soeiro Da carocha perguntou Bento Simões Não uma história verídica como uma bula do nosso santo padre Ouvistes falar algum dia em um certo Robério Dias Robério Dias Ah sei um tal do São Salvador disse Rui Soeiro O mesmo sem tirar nem pôr Vio há coisa de oito anos em São Sebastião donde se passou às Espanhas E sabeis o que ia fazer às Espanhas esse digno descendente de Caramuru amigo Bento Simões perguntou o italiano Ouvi rosnar que se tratava de um tesouro fabuloso que contava oferecer a Filipe 11 o qual em volta o faria marquês e grande fidalgo de sua casa E o resto não vos chegou à noticia Não nunca mais ouvi falar do tal Robério Dias Pois ouvi lá chegando a Madri o homem fez a sua oferta mui lampeiro e foi recebido na palma das mãos por elrei Filipe 1I que como sabeis tinha as unhas demasiado longas E cinzouo como uma raposa que era acudiu Rui Soeiro Enganaivos dessa vez a raposa tornarase macaco quis ver o coco antes de pagálo E então Então disse o italiano sorrindo maliciosamente o coco estava oco Como oco Sim amigo Rui tinhamlhe deixado apenas as cascas felizmente para nós que vamos lograr o miolo Sois um homem de caixas encouradas Loredano Dáse a gente a tratos e não é possível entendervos Tenho culpa eu que não sejais lido na história das coisas de vossa terra Nem todos são mitrados como vós dom italiano Bom acabemos de uma vez o que Robério Dias julgava oferecer em Madri a Filipe 11 amigos está aqui E Loredano dizendo estas palavras assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado Os dois aventureiros olharamse sem compreender e duvidando da razão de seu companheiro Quanto a este sem se importar com o que eles pensavam tirou a espada e depois de desenterrar a pedra começou a cavar Enquanto prosseguia neste trabalho os dois observandoo passavam alternadamente a botija de vinho e faziam conjeturas e suposições O italiano já cavava há tempo quando o ferro tocou num objeto duro que o fez tinir Per Dio exclamou eila Daí a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado a que os índios chamavam camuci este era pequeno e fechado por todos os lados Loredano tomandoo pelas duas mãos abalouo e sentiu o imperceptível vascolejar que fazia dentro um objeto qualquer Aqui tendes disse ele lentamente o tesouro de Robério Dias pertencenos Um pouco detento e seremos mais ricos que o sultão de Bagdá e mais poderosos que o doge de Veneza O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partiu em pedaços Os aventureiros com os olhares incendidos de cobiça esperando ver correr ondas de ouro de diamantes e esmeraldas ficaram estupefatos Do bojo do vaso saltara apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado e atado em cruz por um fio pardo Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço e abrindo rapidamente o pergaminho mostrou aos aventureiros um rótulo escrito em grandes letras vermelhas Rui Soeiro soltou um grito Bento Simões começou a tremer de prazer de pasmo e admiração Passado um momento o italiano estendeu a mão para o papel colocado no meio do grupo seus olhos tomaram uma expressão dura Agora disse ele com a sua voz vibrante agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a ocasião que obedecereis ao meu gesto à minha palavra como à lei do destino Juramos Estou cansado de esperar e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo A mim como chefe disse o italiano com um sorriso diabólico devia pertencer D Antônio de Mariz eu volo cedo Rui Soeiro Bento Simões terá o escudeiro Eu reclamo para mim Álvaro de Sá o nobre cavalheiro Aires Gomes vaise ver numa dança disse Bento Simões com um aspecto marcial Os mais se nos incomodarem irão depois se nos acompanharem serão bemvindos Unicamente vos aviso que aquele que tocar a soleira da porta da filha de D Antônio de Mariz é um homem morto essa é a minha parte na presa E a parte do leão Nesse momento ouviuse um rumor como se as folhas se tivessem agitado Os aventureiros não fizeram reparo e atribuíram naturalmente ao vento Mais alguns dias amigos continuou Loredano e seremos ricos nobres poderosos como um rei Tu Bento Simões serás marquês de Paquequer tu Rui Soeiro duque das Minas eu Que serei eu disse Loredano com um sorriso que iluminou a sua fisionomia inteligente Eu serei Uma palavra partiu do seio da terra surda e cavernosa como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado Traidores Os três aventureiros ergueramse de um só movimento hirtos e lívidos pareciam cadáveres surgindo da campa Os dois persignaramse O italiano suspendeuse ao ramo da árvore e lançou um olhar rápido Tudo estava em sossego O sol a pino derramava um oceano de luz nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa nenhum inseto saltitava sobre a relva O dia no seu esplendor dominava a natureza SEGUNDA PARTE PERI I O CARMELITA Corria o mês de março de 1603 Era portanto um ano antes do dia em que se abriu esta história Havia à beira do caminho que então servia às expedições entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo um vasto pouso onde habitavam alguns colonos e índios catequizados Estava quase a anoitecer Uma tempestade seca terrível e medonha como as há freqüentemente nas faldas das serranias desabava sobre a terra O vento mugindo açoitava as grossas árvores que vergavam os troncos seculares o trovão ribombava no bojo das grossas nuvens desgarradas pelo céu o relâmpago amiudava com tanta velocidade que as florestas os montes toda a natureza nadava num oceano de fogo No vasto copiar do pouso havia três pessoas contemplando com um certo prazer a luta espantosa dos elementos que para homens habituados como eles não deixava de ter alguma beleza Um desses homens gordo e baixo deitado em uma rede no meio do alpendre com as pernas cruzadas e os braços sobre o peito soltava uma exclamação a cada novo estrago produzido pela tempestade O segundo encostado num dos esteios de jacarandá que sustentava o teto da alpendrada era homem trigueiro de perto de quarenta anos a sua fisionomia apresentava uns longes do tipo da raça judaica tinha os olhos fitos em uma vereda que serpejava pela frente da casa até perderse no mato Defronte dele também apoiado sobre a outra coluna estava um frade carmelita que acompanhava com um sorriso de satisfação intima o progresso da borrasca animavalhe o rosto belo e de traços acentuados um raio de inteligência e uma expressão de energia que revelava o seu caráter Ao ver esse homem sorrindo à tempestade e afrontando com o olhar a luz do relâmpago conheciase que sua alma tinha a força de resolução e a vontade indomável capaz de querer o impossível e de lutar contra o céu e a terra para obtêlo Fr Ângelo di Luca achavase então no pouso como missionário incumbido da catequese e cura das almas entre o gentio daquele lugar em seis meses que apostolava conseguira aldear algumas famílias que esperava breve trazer ao grêmio da igreja Um ano havia que obtivera do priorgeral da ordem do Carmo a graça de passar do seu convento de Santa Maria Transpontina em Roma para a casa que a sua ordem tinha fundado em 1590 no Rio de Janeiro a fim de empregarse no trabalho das missões Tanto o geral como o provincial de Lisboa tocados por esse ardente entusiasmo apostólico o haviam recomendado expressamente a Fr Diogo do Rosário então prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro pedindolhe que empregasse no serviço do Senhor e na glória da ordem da Beatíssima Virgem do Monte Carmelo o zelo e o santo fervor do irmão Fr Ângelo di Luca Eis a razão por que o filho de um pescador saído das lagunas de Veneza achavase no sertão do Rio de Janeiro encostado ao esteio de um pouso contemplando a tempestade que redobrava de furor Sempre partireis esta noite Fernão Aines disse o homem que estava deitado na rede Ao quarto dalva respondeu o outro sem voltarse E o tempo que vais fazer Não é isso que me estorva bem o sabeis mestre Nunes Esta maldita caçada Receais que vossos homens não tornem dela a tempo Receio que não os leve a todos a breca por esses matos com semelhante borrasca O frade voltouse Aqueles que seguem a lei de Deus estão bem em toda a parte irmão em andurriais como neste pouso os maus é que devem temer o fogo do céu e a esses não há abrigo que os salve Fernão Aines sorriu ironicamente Credes isso Fr Ângelo Creio em Deus irmão Pois embora prefiro estar onde estou do que por ai metido nalgum despenhadeiro Contudo acudiu Nunes o que diz o nosso reverendo missionário Ora deixa falar Fr Ângelo Aqui sou eu que zombo da tempestade lá seria a tempestade que zombaria de mim Fernão Aines exclamou Nunes Maldita lembrança de caçada murmurou o outro sem atendêlo O silêncio se restabeleceu De repente uma nuvem abriuse a corrente elétrica enroscandose pelo ar como uma serpente de fogo abateuse sobre um tronco de cedro que havia defronte do pouso A árvore fendeuse desde o olho até à raiz em duas metades uma permaneceu em pé esguia e mutilada a outra tombando sobre o terreiro bateu nos peitos de Fernão Aines e o atirou esmagado no fundo do alpendre Seu companheiro ficou imóvel por muito tempo depois começou a tremer como se tiritasse com o frio de terças o polegar estendido para fazer o sinaldacruz os dentes chocando uns contra os outros o rosto contraído davamlhe aspecto terrível e ao mesmo tempo grotesco O frade se tinha voltado lívido como se ele fosse a vitima da catástrofe o terror decompôs um momento a sua fisionomia porém logo um sorriso sardônico fugiulhe dos lábios ainda descorados pelo choque violento que sofrera Passado o primeiro momento de susto os dois chegaramse para o ferido e quiseram prestarlhe socorro este fez um grande esforço e erguendose sobre um dos braços soltou numa golfada de sangue estas palavras Castigo do céu Reconhecendo que não havia mais cura para o corpo o moribundo exigiu o remédio espiritual com a voz fraca pediu a Fr Ângelo que o ouvisse de confissão Nunes fez recolher o seu companheiro a um aposento cuja porta dava para o alpendre e deitouo sobre uma cama de couro Já havia anoitecido o aposento estava na maior escuridão apenas por instantes o relâmpago brilhava lançando o clarão azulado sobre o confessor meio reclinado para o moribundo a fim de escutarlhe a voz que ia gradualmente enfraquecendo Ouvime sem me interromper meu padre sinto que poucos momentos me restam e embora não haja perdão para mim quero ao menos reparar o meu crime Falai irmão eu vos escuto Em novembro passado cheguei ao Rio de Janeiro fui hospedado por um parente meu tanto ele como sua mulher me fizeram o melhor acolhimento Ele que havia muito viajado pelo sertão e se dera à vida de aventureiro faloume um dia de tentarmos uma expedição cujo resultado seria grande riqueza para nós ambos Por diversas vezes nos entretivemos sobre esse objeto até que abriuse inteiramente comigo O pai de um Robério Dias colono da Bahia guiado por um índio havia descoberto nos sertões daquela província minas de prata tão abundantes que se poderiam calçar desse metal as ruas de Lisboa Como atravessasse sertões ínvios e inóspitos Dias escrevera um roteiro com as indicações necessárias para em qualquer tempo poderse achar o lugar onde estão situadas as ditas minas Este roteiro fora subtraído a seu dono sem que ele o percebesse e por uma longa sucessão de fatos que faltamme as forças para contarvos viera cair nas mãos do meu parente De quantos crimes já não tinha sido causa esse papel e de quantos não seria ainda meu padre se Deus não houvesse finalmente punido em mim o último herdeiro desse legado de sangue O moribundo parou um momento extenuado depois continuou com a voz débil Já então com a chegada do governador D Francisco de Sousa se sabia que Robério oferecera em Madri a Filipe 11 a descoberta das minas e que não o tendo elrei premiado como esperou obstinavase em guardar silêncio A razão desse silêncio que se atribuía geralmente ao despeito só a sabia meu parente em cujas mãos parava o roteiro Robério chegado às Espanhas se apercebera do roubo que lhe haviam feito e quisera aos menos lograr o prêmio O segredo das minas a chave dessa riqueza imensa que excedia todos os tesouros do Miramolim estavam nas mãos do meu parente que necessitando de um homem dedicado que o auxiliasse na empresa julgou que a ninguém melhor do que a mim podia escolher para partilhar os seus riscos e esperanças Aceitei essa meação do crime esse pacto de roubo meu padre Foi o meu primeiro erro A voz do aventureiro tornouse ainda mais sumida O frade inclinado sobre ele parecia devorar com os lábios entreabertos as palavras balbuciadas pelo moribundo Coragem filho Sim Devo dizer tudo Fascinado pela descrição desse tesouro fabuloso tive uma lembrança iníqua essa lembrança tornouse desejo depois idéia e projeto por fim realizouse foi um crime Assassinei meu parente e sua mulher E exclamou o frade com a voz surda E roubei o segredo O frade sorriu nas trevas Agora só me resta a misericórdia de Deus e a reparação do mal que fiz Robério é morto sua mulher vive desgraçada na Bahia Quero que este papel lhe seja entregue Prometeis Fr Ângelo Prometo O papel Está oculto Aonde Nes ta O moribundo agonizava Fr Ângelo debruçado inteiramente sobre ele com o ouvido colado à sua boca onde borbulhava uma espuma vermelha com a mão sobre o coração para ver se ainda palpitava parecia querer reter o último sopro da vida a fim de tirar dele uma palavra ainda Aonde murmurava de vez em quando o frade com a voz cava O enfermo agonizava sempre os soluços extremos da vida que se apaga como a lâmpada que bruxuleia agitavam apenas o corpo enregelado Por fim o frade viuo levantar o braço hirto apontando para a parede e sentiu os seus lábios gelados e convulsos que tremeram lançando no seu ouvido uma palavra que o fez saltar sobre o leito Cruz Fr Ângelo ergueuse circulando o aposento com a vista alucinada na cabeceira da cama havia um Cristo de ferro sobre uma grande cruz de pau tosca e mal lavrada Com um movimento de raiva o frade apoderouse da cruz e quebroua de encontro ao joelho a imagem rolou pelo chão entre os estilhaços de madeira apareceu um rolo de pergaminho achatado pela pressão em que estivera Quebrou com os dentes o selo do papel chegando à janela leu à claridade vacilante do relâmpago as primeiras palavras de um rotulo de letras vermelhas que rezava nestes termos Roteiro verídico e exato em que se trata da rota que fez Robério Dias o pai em o ano da graça de 1587 às paragens de Jacobina onde descobriu com o favor de Deus as mais ricas minas de prataria que existam no mundo com a suma de todas as indicações de marcos balizas e linha equinocial onde demoram aquelas ditas minas começado em 20 de janeiro dia do mártir São Sebastião e terminado na primeira dominga de Páscoa em que chegamos com a mercê da Providência nesta cidade do Salvador Enquanto o frade se esforçava para ler o moribundo agonizava na última aflição esperando talvez a absolvição final e a extremaunção do penitente Mas o religioso não via nesse momento senão o papel que tinha nas mãos deixouse cair em um banco e com a cabeça pendida sobre o braço entregouse a funda meditação Que pensava ele Não pensava delirava Diante de seus olhos a imaginação exaltada lhe apresentava um mar argênteo um oceano de metal fundido alvo e resplandecente que ia se perder no infinito As vagas desse mar de prata ora achamalotavamse ora rolavam formando frocos de espumas que pareciam flores de diamantes de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol Às vezes também nessa face lisa e polida desenhavamse como em um espelho palácios encantados mulheres belas como as huris do profeta virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo Assim decorreu meia hora em que o silêncio era apenas interrompido pelo estertor do moribundo e pelo trovão que rugia depois houve uma calma sinistra o pecador expirava impenitente Fr Ângelo levantouse arrancou o hábito com um gesto desesperado e pisouo aos pés sobre o recosto do leito havia uma muda de roupa com que trajouse tirou as armas do cadáver apanhou o chapéu de feltro e apertando ao peito o manuscrito dirigiuse à porta Ouviamse os passos de Nunes que passeava fora no alpendre O frade estacou a presença inesperada desse homem diante da porta deulhe uma inspiração Tomou o hábito vestiuo sobre o seu novo trajo e escondendo na manga o chapéu do aventureiro cobriuse com o largo capelo então abriu a porta e dirigiuse a Nunes Consummatum est irmão disse ele com um tom compungido Deus tenha sua alma Assim o espero se não me faltarem as forças para cumprir o seu último voto que é uma reparação De um grave pecado De um crime irmão Daime luz vou escrever a Fr Diogo do Rosário nosso prior porque de onde vou talvez não volte nem tenhais mais novas de mim O frade escreveu à claridade de uma acha de paucandeia algumas linhas ao prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro e despedindose de Nunes partiu Quando dobrava o canto do pouso o céu abriuse e a terra incendiouse com a luz de um relâmpago tão forte que o deslumbrou Dois raios descrevendo listras de fogo tinham caído sobre a floresta e espalhado em torno um cheiro de súlfur que asfixiava O carmelita teve uma vertigem lembrouse da cena da tarde do tremendo castigo que ele próprio havia evocado na sua hipocrisia e se realizara tão prontamente Mas o deslumbramento passou estremecendo ainda e pálido de terror o réprobo levantou o braço como desafiando a cólera do céu e soltou uma blasfêmia horrível Podeis matarme mas se me deixardes a vida hei de ser rico e poderoso contra a vontade do mundo inteiro Havia nestas palavras um quer que seja da sanha e raiva impotente de Satanás precipitado no abismo pela sentença irrevogável do Criador Continuando o seu caminho pelas trevas costeou a cerca e chegou a uma grande choça que havia no fundo do pouso e onde o missionário conseguira aldear algumas famílias de índios entrou e acordou um dos selvagens a quem ordenou se preparasse para acompanhálo apenas rompesse o dia A chuva caia em torrentes o vento açoitava as paredes de sapé esfuziando por entre a palha O frade passou a noite em claro refletindo e traçando no seu espírito um plano infernal para cuja realização não trepidaria diante de nenhum obstáculo de vez em quando levantavase para ver se o horizonte já se iluminava Finalmente veio o dia a tempestade se tinha desfeito durante a noite o tempo estava sereno O carmelita acompanhado pelo selvagem partiu vagou pela floresta e pelo campo em todas as direções alguma coisa procurava Ele avistou depois de duas horas a touça de cardos junto da qual se passou a última cena que narramos examinoua por todos os lados e sorriu de satisfeito Trepando à árvore e escorregando pelo cipó entraram ele e o selvagem na área que já conhecemos o sol tinha nascido há pouco No dia seguinte por volta de duas horas da tarde saiu deste lagar um só homem não era ele o frade nem o selvagem Era um aventureiro destemido e audaz em cuja fisionomia se reconheciam ainda os traços do carmelita Fr Ângelo di Luca Este aventureiro chamouse Loredano Deixava naquele lugar e sepultado no seio da terra um terrível segredo isto é um rolo de pergaminho um burel de frade e um cadáver Cinco meses passados o vigário da ordem participava ao geral em Roma que o irmão Fr Ângelo di Luca morrera como santo e mártir no zelo de sua fé apostólica II IARA Dois dias depois da cena do pouso por uma bela tarde de verão a família de D Antônio de Mariz estava reunida na margem do Paquequer O lugar em que se achava era uma pequena baixa cavada entre dois outeiros pedregosos que se elevavam naquelas paragens A relva que tapeçava essas fráguas as árvores que haviam nascido nas fendas das pedras e reclinando sobre o vale teciam um lindo dossel de verdura tornavam aquele retiro pitoresco Não podia haver sitio mais agradável para se passar uma sesta de estio do que esse caramanchão cheio de sombra e de frescura onde o canto das aves concertava com o trépido murmúrio das águas Por isso apesar de ficar ele a alguma distancia da casa a família vinha às vezes quando o tempo estava sereno gozar algumas horas da frescura deliciosa que ali se respirava D Antônio de Mariz sentado junto de sua mulher contemplava por entre uma abertura das folhas o céu azul e aveludado de nossa terra que os filhos da Europa não se cansam de admirar Isabel encostada a uma palmeira nova olhava a correnteza do rio murmurando baixinho uma trova de Bernardim Ribeiro Cecília corria pelo vale perseguindo um lindo colibri que no vôo rápido iriavase de mil cores cintilando como o prisma de um raio solar A linda menina com o rosto animado rindose dos volteios que a avezinha lhe fazia dar como se brincasse com ela achava nesse folguedo um vivo prazer Mas afinal sentindose fatigada foi recostarse em um cômoro de relva que elevandose no sopé do rochedo formava uma espécie de divã natural Descansou a cabeça no declive e assim ficou com os pezinhos estendidos sobre a grama que os escondia como a lã de um rico tapete e o seio mimoso a arfar com o anélito da respiração Algum tempo se passou sem que o menor incidente perturbasse o suave painel que formava esse grupo de família De repente entre o dossel de verdura que cobria esta cena ouviuse um grito vibrante e uma palavra de língua estranha Iara É um vocábulo guarani significa a senhora D Antônio levantouse volvendo olhos rápidos viu sobre a eminência que ficava sobranceira ao lagar em que estava Cecília um quadro original De pé fortemente apoiado sobre a base estreita que formava a rocha um selvagem coberto com um ligeiro saio de algodão metia o ombro a uma lasca de pedra que se desencravara do seu alvéolo e ia rolar pela encosta O índio fazia um esforço supremo para suster o peso da laje prestes a esmagálo e com o braço estendido de encontro a um galho de árvore mantinha por uma tensão violenta dos músculos o equilíbrio do corpo A árvore tremia por momentos parecia que pedra e homem se enrolavam numa mesma volta e precipitavam sobre a menina sentada na aba da colina Cecília ouvindo o grito erguera a cabeça e olhava seu pai com alguma surpresa sem adivinhar o perigo que a ameaçava Ver lançarse para sua filha tomála nos braços arrancála à morte foi para D Antônio de Mariz uma só idéia e um só movimento que realizou com a força e a impetuosidade do sublime amor de pai que era toda a sua vida No momento em que o fidalgo deitava Cecília quase desmaiada sobre o regaço materno o índio saltava no meio do vale a pedra girando sobre si precipitada do alto da colina enterravase profundamente no chão Foi então que os outros espectadores desta cena paralisados pelo choque que haviam sofrido lançaram um grito de terror pensando no perigo que já estava passado Uma larga esteira que descia da eminência até o lugar onde Cecília estivera recostada mostrava a linha que descrevera a pedra na passagem arrancando a relva e ferindo o chão D Antônio ainda pálido e trêmulo do perigo que correra Cecília volvia os olhos daquela terra que se lhe afigurava uma campa para o selvagem que surgira como um gênio benfazejo das florestas do Brasil O fidalgo não sabia o que mais admirar se a força e heroísmo com que ele salvara sua filha se o milagre de agilidade com que se livrara a si próprio da morte Quanto ao sentimento que ditara esse proceder D Antônio não se admirava conhecia o caráter dos nossos selvagens tão injustamente caluniados pelos historiadores sabia que fora da guerra e da vingança eram generosos capazes de uma ação grande e de um estimulo nobre Por muito tempo reinou silêncio expressivo nesse grupo que se acabava de transformar de modo tão imprevisto D Lauriana e Isabel de joelhos oravam a Deus rendendolhe graças Cecília ainda assustada apoiavase ao peito de seu pai e beijavalhe a mão com ternura o índio humilde e submisso fitava um olhar profundo de admiração sobre a moça que tinha salvado Por fim D Antônio passando o braço esquerdo pela cintura de sua filha caminhou para o selvagem e estendeulhe a mão com gesto nobre e afável o índio curvouse e beijou a mão do fidalgo De que nação és perguntoulhe o cavalheiro em guarani Goitacá respondeu o selvagem erguendo a cabeça com altivez Como te chamas Peri filho de Ararê primeiro de sua tribo Eu sou um fidalgo português um branco inimigo de tua raça conquistador de tua terra mas tu salvaste minha filha ofereçote a minha amizade Peri aceita tu já eras amigo Como assim perguntou D Antônio admirado Ouve O índio começou na sua linguagem tão rica e poética com a doce pronúncia que parecia ter aprendido das auras da sua terra ou das aves das florestas virgens esta simples narração Era o tempo das árvores de ouro A terra cobriu o corpo de Ararê e as suas armas menos o seu arco de guerra Peri chamou os guerreiros de sua nação e disse Pai morreu aquele que for o mais forte entre todos terá o arco de Ararê Guerra Assim falou Peri os guerreiros responderam Guerra Enquanto o sol alumiou a terra caminhamos quando a lua subiu ao céu chegamos Combatemos como Goitacás Toda a noite foi uma guerra Houve sangue houve fogo Quando Peri abaixou o arco de Ararê não havia na taba dos brancos uma cabana em pé um homem vivo tudo era cinza Veio o dia e alumiou o campo veio o vento e levou a cinza Peri tinha vencido era o primeiro de sua tribo e o mais forte de todos os guerreiros Sua mãe chegou e disse Peri chefe dos Goitacás filho de Ararê tu és grande tu és forte como teu pai tua mãe te ama Os guerreiros chegaram e disseram Peri chefe dos Goitacás filho de Ararê tu és o mais valente da tribo e o mais temido do inimigo os guerreiros te obedecem As mulheres chegaram e disseram Peri primeiro de todos tu és belo como o sol e flexível como a cana selvagem que te deu o nome as mulheres são tuas escravas Peri ouviu e não respondeu nem a voz de sua mãe nem o canto dos guerreiros nem o amor das mulheres o fez sorrir Na casa da cruz no meio do fogo Peri tinha visto a senhora dos brancos era alva como a filha da lua era bela como a garça do rio Tinha a cor do céu nos olhos a cor do sol nos cabelos estava vestida de nuvens com um cinto de estrelas e uma pluma de luz O fogo passou a casa da cruz caiu De noite Peri teve um sonho a senhora apareceu estava triste e falou assim Peri guerreiro livre tu és meu escravo tu me seguirás por toda a parte como a estrela grande acompanha o dia A lua tinha voltado o seu arco vermelho quando tornamos da guerra todas as noites Peri via a senhora na sua nuvem ela não tocava a terra e Peri não podia subir ao céu O cajueiro quando perde a sua folha parece morto não tem flor nem sombra chora umas lágrimas doces como o mel dos seus frutos Assim Peri ficou triste A senhora não apareceu mais e Peri via sempre a senhora nos seus olhos As árvores ficaram verdes os passarinhos fizeram seus ninhos o sabiá cantou tudo ria o filho de Ararê lembrouse de seu pai Veio o tempo da guerra Partimos andamos chegamos ao grande rio Os guerreiros armaram as redes as mulheres fizeram fogo Peri olhou o sol Viu passar o gavião Se Peri fosse o gavião ia ver a senhora no céu Viu passar o vento Se Peri fosse o vento carregava a senhora no ar Viu passar a sombra Se Peri fosse a sombra acompanhava a senhora de noite Os passarinhos dormiram três vezes Sua mãe veio e disse Peri filho de Ararê guerreiro branco salvou tua mãe virgem branca também Peri tomou suas armas e partiu ia ver o guerreiro branco para ser amigo e a filha da senhora para ser escravo O sol chegava ao meio do céu e Peri chegava também ao rio avistou longe a tua casa grande A virgem branca apareceu Era a senhora que Peri tinha visto não estava triste como da primeira vez estava alegre tinha deixado lá a nuvem e as estrelas Peri disse A senhora desceu do céu porque a lua sua mãe deixou Peri filho do sol acompanhará a senhora na terra Os olhos estavam na senhora e o ouvido no coração de Peri A pedra estalou e quis fazer mal à senhora A senhora tinha salvado a mãe de Peri Peri não quis que a senhora ficasse triste e voltasse ao céu Guerreiro branco Peri primeiro de sua tribo filho de Ararê da nação Goitacá forte na guerra te oferece o seu arco tu és amigo O índio terminou aqui a sua narração Enquanto falava um assomo de orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros e dava certa nobreza ao seu gesto Embora ignorante filho das florestas era um rei tinha a realeza da força Apenas concluiu a altivez do guerreiro desapareceu ficou tímido e modesto já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas civilizadas cuja superioridade de educação o seu instinto reconhecia D Antônio o ouvia sorrindose do seu estilo ora figurado ora tão singelo como as primeiras frases que balbucia a criança no seio materno O fidalgo traduzia da melhor maneira que podia essa linguagem poética a Cecília a qual já livre do susto queria por força apesar do medo que lhe causava o selvagem saber o que ele dizia Compreenderam da história de Peri que uma índia salva havia dois dias por D Antônio das mãos dos aventureiros e a quem Cecília enchera de presentes de velórios azuis e escarlates era a mãe do selvagem Peri disse o fidalgo quando dois homens se encontram e ficam amigos o que está na casa do outro recebe a hospitalidade É o costume que os velhos transmitiram aos moços da tribo e os pais aos filhos Tu cearás conosco Peri te obedece A tarde declinava as primeiras estrelas luziam A família acompanhada por Peri dirigiuse a casa e subiu a esplanada D Antônio entrou um momento e voltou trazendo uma linda clavina tauxiada com o brasão de armas do fidalgo a mesma que já vimos nas mãos do índio É a minha companheira fiel a minha arma de guerra nunca mentiu fogo nunca errou o alvo a sua bala é como a seta do teu arco Peri tu me deste minha filha minha filha te dá a arma de guerra de seu pai O índio recebeu o presente com uma efusão de profundo reconhecimento Esta arma que vem da senhora e Peri farão um só corpo A campa do terreiro tocou anunciando a ceia O índio vexado no meio dos usos estranhos tomado de um santo respeito não sabia como se ater Apesar de todos os esforços do fidalgo que sentia um prazer indizível em mostrarlhe quanto apreciava a sua ação e remoçara com a alegria de ver sua filha viva o selvagem não tocou em um só manjar Por fim D Antônio de Mariz conhecendo que toda a insistência era inútil encheu duas taças de vinho das Canárias Peri disse o fidalgo há um costume entre os brancos de um homem beber por aquele que é amigo O vinho é o licor que dá a força a coragem a alegria Beber por um amigo é uma maneira de dizer que o amigo é e será forte corajoso e feliz Eu bebo pelo filho de Ararê E Peri bebe por ti porque és pai da senhora bebe por ti porque salvaste sua mãe bebe por ti porque és guerreiro A cada palavra o índio tocou a taça e bebeu um trago de vinho sem fazer o menor gesto de desgosto ele beberia veneno à saúde do pai de Cecília III GÊNIO DO MAL Peri voltou por diferentes vezes à casa de D Antônio de Mariz O velho fidalgo o recebia cordialmente e o tratava como amigo seu caráter nobre simpatizava com aquela natureza inculta Cecília porém apesar do reconhecimento que lhe inspirava a sua dedicação por ela não podia vencer o receio que sentia vendo um desses selvagens de quem sua mãe lhe fazia tão feia descrição e de cujo nome se servia para meterlhe medo quando criança Em Isabel o índio fizera a mesma impressão que lhe causava sempre a presença de um homem daquela cor lembrarase de sua mãe infeliz da raça de que provinha e da causa do desdém com que era geralmente tratada Quanto a D Lauriana via em Peri um cão fiel que tinha um momento prestado um serviço à família e a quem se pagava com um naco de pão Devemos porém dizer que não era por mau coração que ela pensava assim mas por prejuízos de educação Quinze dias depois que Cecília fora salva por Peri uma manhã Aires Gomes atravessou a esplanada e foi ter com D Antônio que estava no seu gabinete Sr D Antônio esse estrangeiro a quem destes hospedagem há duas semanas pedevos audiência Mandao vir Aires Gomes introduziu o estrangeiro Era esse mesmo Loredano que em se havia transformado o carmelita Fr Ângelo di Luca Que desejais amigo faltaramvos em alguma coisa Ao contrário sr cavalheiro achome tão bem que o meu desejo seria ficar E quem vos impede A nossa hospitalidade assim como não pergunta o nome do que chega também não lhe inquire o tempo de partida A vossa hospitalidade é de um verdadeiro fidalgo sr cavalheiro mas não é dela que desejo falar Explicaivos então Um homem da vossa banda vai ao Rio de Janeiro onde tem mulher e filhos que lhe chegaram do Reino Sim já ontem me falou disso Faltavos pois um homem eu posso ser este homem se não achais nisso inconveniente Nenhum absolutamente Nesse caso posso considerarme como admitido Atendei Aires Gomes vai dizervos as condições a que vos sujeitais se estiverdes por elas é negócio decidido Creio que já conheço essas condições disse o italiano sorrindo Ide sempre O fidalgo chamou o seu escudeiro e incumbiuo de pôr o italiano ao fato das condições do bando de aventureiros que tinha ao seu serviço Era este um dos privilégios de Aires Gomes que o desempenhava com toda a gravidade de que era suscetível a sua personagem um pouco grotesca Chegados à esplanada o escudeiro perfilouse e proferiu o seguinte intróito Lei estatuto regimento disciplina ou como melhor nome haja a que se sujeita todo aquele que entrar à soldada na banda do Sr cavalheiro D Antônio de Mariz fidalgo cota darmas do tronco dos Marizes em linha reta Aqui o escudeiro molhou a palavra e prosseguiu Primo Obedecer sem replicar Quem o contrário fizer pereça morte natural O italiano fez um gesto de aprovação Isto quer dizer misser italiano que se um dia o Sr D Antônio vos mandar saltar deste rochedo embaixo fazei a vossa oração e saltai porque de uma ou outra maneira pelos pés ou pela cabeça fé de Aires Gomes lá ireis Loredano sorriu Secundo Contentarse com o que há Quem o contrário Com o vosso respeito Sr Aires Gomes não vos deis a um trabalho inútil sei tudo o que ides rezarme e por isso dispensovos de continuar Que quereis dizer Quero dizer que todos os camaradas cada um por sua vez já me descreveram a cerimônia que ora pondes em prática Não obstante Escusado é Sei tudo aceito tudo juro tudo que quiserdes E dizendo isto o italiano fez uma viravolta e dirigiuse para o gabinete de D Antônio enquanto o escudeiro zangado por não ter levado ao fim a cena de iniciação a que dava tão grande valor resmungava Não pode ser boa casta de gente Loredano apresentouse a D Antônio Então disse o fidalgo Aceito Bem agora só falta uma coisa que Aires Gomes não vos disse naturalmente Qual sr cavalheiro É que D Antônio de Mariz disse o fidalgo pousando a mão sobre o ombro do italiano é um chefe rigoroso para seus homens porém um amigo leal para seus companheiros Sou aqui o senhor da casa e o pai de toda a família a que atualmente pertenceis O italiano curvouse para agradecer mas sobretudo para esconder a alteração da fisionomia Ouvindo as palavras nobres do fidalgo sentiuse perturbado porque já então lhe fermentava no cérebro o plano da trama que ia urdir e que vimos revelarse um ano depois Saindo do lugar em que deixara oculto o seu tesouro o aventureiro caminhou direito à casa de D Antônio de Mariz e pediu a hospitalidade que a ninguém se recusava sua intenção era passarse ao Rio de Janeiro onde concertaria os meios de aproveitar a fortuna Duas idéias se tinham apresentado ao seu espírito no momento em que se vira possuidor do roteiro de Robério Dias Iria à Europa vender o segredo a Filipe 11 ou a qualquer outro soberano de uma nação poderosa e inimiga da Espanha Exploraria por sua conta com alguns aventureiros que tomasse ao seu serviço esse tesouro fabuloso que devia eleválo ao fastígio da grandeza Esta última idéia lhe sorria mais entretanto não tomou nenhuma resolução definitiva posto o seu segredo em lugar seguro aliviado desse peso que o fazia estremecer a cada momento o italiano resolveu como dissemos ir pedir hospitalidade a D Antônio de Mariz Aí formularia o seu plano traçaria o caminho que devia seguir e então voltaria a procurar o papel que dormia no seio da terra e com ele marcharia à riqueza à fortuna ao poder Chegado à casa do fidalgo o excarmelita com o seu espírito de observação estudou o terreno e achouo favorável à realização de uma idéia que começou logo a germinar no seu espírito até que tomou as proporções de um projeto Homens mercenários que vendem a sua liberdade consciência e vida por um salário não têm dedicação verdadeira senão a um objeto o dinheiro seu senhor seu chefe e seu amigo é o que mais lhes paga Fr Ângelo conhecia o coração humano e por isso apenas iniciado no regimento da banda avaliou do caráter dos aventureiros Esses homens me serviriam perfeitamente disse ele consigo No meio dessas reflexões um fato veio produzir completa revolução nas suas idéias Viu Cecília A imagem dessa bela menina casta e inocente produziu naquela organização ardente e por muito tempo comprimida o mesmo efeito da faisca sobre a pólvora Toda a continência de sua vida monástica todos os desejos violentos que o hábito tinha selado como uma crosta de gelo todo esse sangue vigoroso e forte da mocidade passada em vigílias e abstinências refluíram ao coração e o sufocaram um momento Depois um êxtase de voluptuosidade imensa embebeu essa alma velha pela corrupção e pelo crime mas virgem para o amor O seu coração revelavase com toda a veemência da vontade audaz que era o móvel de sua vida Sentiu que essa mulher era tão necessária à sua existência como o tesouro que sonhava ser rico para ela possuíla para gozar a riqueza foi desde então o seu único pensamento a sua idéia dominante Um dos aventureiros deixava a casa Loredano solicitou o seu lagar e obteveo como acabamos de ver o seu plano estava traçado Qual era já o sabemos pelas cenas passadas o italiano contava tornarse senhor da banda apoderarse de Cecília ir às minas encantadas carregar tanta prata quanta pudesse levar dirigirse à Bahia assaltar uma nau espanhola tomála de abordagem e fazerse de vela para a Europa Aí armava navios de corso voltava ao Brasil explorava o seu tesouro tirava dele riquezas imensas e E o mundo abriase diante de seus olhos cheio de esperança de futuro e felicidade Durante um ano trabalhou nessa empresa com uma sagacidade e inteligência superior ganhara os dois homens influentes da banda Rui Soeiro e Bento Simões por meio deles preparava o desenlace final Ignorado pelos outros ele dirigia essa conspiração que lavrava surdamente só havia em toda a banda duas pessoas que o podiam perder Ora Loredano não era homem que deixasse de prever a eventualidade de uma traição e que entregasse aos seus dois cúmplices uma arma com que pudessem ferilo daí a lembrança desse testamento que entregara a D Antônio de Mariz Somente nesse papel em vez de ter revelado o seu plano como o italiano dissera a Rui Soeiro ele havia apenas indicado a traição dos dois aventureiros declarandose seduzido por eles o frade mentia pois até na hora extrema em que o papel devia falar A confiança que tinha e com razão no caráter de D Antônio tranqüilizavao completamente sabia que em caso algum o fidalgo abriria um testamento que lhe fora dado em depósito Eis como Fr Ângelo di Luca achavase sob o seu novo nome de Loredano pertencendo à casa de D Antônio de Mariz e preparandose para realizar afinal o seu pensamento de todos os instantes Um ano havia que esperava e como ele dizia estava cansado resolvera dar enfim o golpe e para isso depois de haver esmagado os dois cúmplices com a sua ameaça depois de os haver reduzido a autômatos obedecendo ao seu gesto entendeu que seria conveniente ao mesmo tempo animar esses manequins com algum sentimento que lhes desse o atrevimento a audácia e a força necessária para se lançarem na voragem e não trepidarem diante de nenhum obstáculo Este sentimento foi a ambição À vista do roteiro era impossível que não sentissem a febre da riqueza a auri sacra fames que se havia apoderado dele próprio no momento em que vira abrirse diante de seus olhos um mar de prata fundida em que os seus lábios podiam matar a sede ardente que o devorava O efeito não desmentiu a sua previsão lendo o rótulo cada um dos aventureiros ficara eletrizado para tocar aquele abismo insondável de riquezas nem um deles hesitaria em passar sobre o corpo de seu amigo ou mesmo sobre as cinzas de uma casa ou a ruína de uma família Infelizmente aquela voz inesperada saída do seio da terra viera modificar a situação Mas não antecipemos por ora ainda estamos em 1603 um ano antes daquela cena e ainda nos falta contar certas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história IV CECI Poucas horas depois que Loredano fora admitido na casa de D Antônio de Mariz Cecília chegando à janela do seu quarto viu do lado oposto do rochedo Peri que a olhava com uma admiração ardente O pobre índio tímido e esquivo não se animava a chegarse à casa senão quando via de longe a D Antônio de Mariz passeando sobre a esplanada adivinhava que naquela habitação só o coração nobre do velho fidalgo sentia por ele alguma estima Havia quatro dias que o selvagem não aparecia D Antônio supunha já que ele tivesse voltado com sua tribo para os lugares onde vivia e que só deixara para fazer a guerra aos índios e portugueses A nação Goitacá dominava todo o território entre o Cabo de São Tomé e o Cabo Frio era um povo guerreiro valente e destemido que por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas Tinha arrasado completamente a colônia da Paraíba fundada por Pero de Góis e depois de um assédio de seis meses conseguira destruir igualmente a colônia de Vitória fundada no espírito Santo por Vasco Fernandes Coutinho Voltemos dessa pequena digressão histórica ao nosso herói O primeiro movimento de Cecília vendo o índio fora de susto fugira insensivelmente da janela Mas o seu bom coração irritouse contra esse receio e disselhe que ela não tinha que temer do homem que lhe salvara a vida Lembrouse que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o índio lhe mostrava deixandolhe ver a repugnância que lhe inspirava Venceu pois a timidez e assentou de fazer um sacrifício ao reconhecimento e gratidão que devia ao selvagem Chegou à janela fez com a mão alva e graciosa um gesto dizendo a Peri que se aproximasse O índio não se contendo de alegria correu para a casa enquanto Cecília ia ter com seu pai e dizialhe Vinde ver Peri que chega meu pai Ah inda bem respondeu o fidalgo E acompanhando sua filha D Antônio foi ao encontro do índio que já subia a esplanada Peri trazia um pequeno cofo tecido com extraordinária delicadeza feito de palha muito alva todo rendado por entre o crivo que formavam os fios ouviamse uns chilidos fracos e um rumor ligeiro que faziam os pequenos habitantes desse ninho gracioso O índio ajoelhou aos pés de Cecília sem animarse a levantar os olhos para ela apresentoulhe o cabaz de palha abrindo a tampa a menina assustouse mas sorriu um enxame de beijaflores esvoaçava dentro alguns conseguiram escaparse Destes um veio aninharse no seu seio o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura como se tomasse a sua boquinha rosada por um fruto A menina admirava essas avezinhas brilhantes umas escarlates outras azuis e verdes mas todas de reflexos dourados e formas mimosas e delicadas Vendose esses íris animados acreditase que a natureza os criou com um sorriso para viverem de pólen e de mel e para brilharem no ar como as flores na terra e as estrelas no céu Quando Cecília se cansou de admirálos tomouos um por um beijouos aqueceuos no seio e sentiu não ser uma flor bela e perfumada para que eles a beijassem também e esvoaçassem constantemente em torno dela Peri olhava e era feliz pela primeira vez depois que a salvara tinha sabido fazer uma coisa que trouxera um sorriso de prazer aos lábios da senhora Entretanto apesar dessa felicidade que sentia interiormente era fácil de ver que o índio estava triste ele chegouse para D Antônio de Mariz e disselhe Peri vai partir Ah disse o fidalgo voltas aos teus campos Sim Peri volta à terra que cobre os ossos de Ararê D Antônio encheu o índio de presentes dados em seu nome e em nome de sua filha Perguntai a ele por que razão parte e nos deixa meu pai disse Cecília O fidaldo traduziu a pergunta Porque a senhora não precisa de Peri e Peri deve acompanhar sua mãe e seus irmãos E se a pedra quiser fazer mal à senhora quem a defenderá perguntou a menina sorrindo e fazendo alusão à narração do índio Ouvindo dos lábios de D Antônio a pergunta o selvagem não soube o que responder porque lhe lembrava um pensamento que já tinha passado por seu espírito temia que na sua ausência a menina corresse um perigo e ele não estivesse junto dela para salvála Se a senhora manda disse enfim Peri fica Cecília apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio riuse daquela cega obediência mas era mulher um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça Ver aquela alma selvagem livre como as aves que planavam no ar ou como os rios que corriam na várzea aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra prostrarse a seus pés submissa vencida escrava Era preciso que não fosse mulher para não sentir o orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigandoa a curvarse diante do seu olhar As mulheres têm isso de particular reconhecendose fracas a sua maior ambição é reinar pelo imã dessa mesma fraqueza sobre tudo o que é forte grande e superior a elas não amam a inteligência a coragem o gênio o poder senão para vencêlos e subjugálos Entretanto a mulher deixase bastantes vezes dominar mas e sempre pelo homem que não lhe excitando a admiração não irrita a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a força Cecília era uma menina ingênua e inocente que nem sequer tinha consciência do seu poder e do encanto de sua casta beleza mas era filha de Eva e não podia se eximir de um quase nada de vaidade A senhora não quer que Peri parta disse ela com um arzinho de rainha e fazendo um gesto com a cabeça O índio compreendeu perfeitamente o gesto Peri fica Vede Cecília replicou D Antônio rindo ele te obedece Cecília sorriu Minha filha te agradece o sacrifício Peri continuou o fidalgo mas nem ela nem eu queremos que abandones a tua tribo A senhora mandou respondeu o índio Ela queria ver se tu lhe obedecias conheceu a tua dedicação está satisfeita consente que partas Não Mas os teus irmãos tua mãe tua vida livre Peri é escravo da senhora Mas Peri é um guerreiro e um chefe A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri mil arcos ligeiros como o vôo do gavião Assim decididamente queres ficar Sim e como tu não queres dar a Peri a tua hospitalidade uma árvore da floresta lhe servirá de abrigo Tu me ofendes Peri exclamou o fidalgo a minha casa está aberta para todos e sobretudo para ti que és amigo e salvaste minha filha Não Peri não te ofende mas sabe que tem a pele cor de terra E o coração de ouro Enquanto D Antônio continuava a insistir com o índio para que partisse ouviuse um canto monótono que saia da floresta Peri aplicou o ouvido descendo à esplanada correu na direção donde partia a voz que cantava com a cadência triste e melancólica particular aos índios a seguinte endecha na língua dos Guaranis A estrela brilhou partimos com a tarde A brisa soprou nos leva nas asas A guerra nos trouxe vencemos A guerra acabou voltamos Na guerra os guerreiros combatem há sangue Na paz as mulheres trabalham há vinho A estrela brilhou é hora de partir A brisa soprou é tempo de andar A pessoa que modulava esta canção selvagem era uma índia já idosa encostada a uma árvore da floresta ela vira por entre a folhagem a cena que passava na esplanada Chegandose a ela Peri ficou triste e vexado Mãe exclamou ele Vem disse a índia seguindo pela mata Não Nós partimos Peri fica A índia fitou em seu filho um olhar de profunda admiração Teus irmãos partem O selvagem não respondeu Tua mãe parte O mesmo silêncio Teu campo te espera Peri fica mãe disse ele com a voz comovida Por quê A senhora mandou A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília Sentiu que ia perder o filho orgulho de sua velhice como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade Uma lágrima deslizou pela sua face cor de cobre Mãe toma o arco de Peri enterra junto dos ossos de seu pai e queima a cabana de Ararê Não se algum dia Peri voltar achará a cabana de seu pai e sua mãe para amálo tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu Peri abanou a cabeça com tristeza Peri não voltará Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero O fruto que cai da árvore não torna mais a ela a folha que se despega do ramo murcha seca e morre o vento a leva Peri é a folha tu és a árvore mãe Peri não voltará ao teu seio A virgem branca salvou tua mãe devia deixála morrer para não lhe roubar seu filho Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água queima e mata tudo que se chega a ela Estas palavras foram acompanhadas de um olhar de ameaça em que se revelava a ferocidade do tigre que defende os seus cachorrinhos Mãe não ofende a senhora Peri morreria e na última hora não se lembraria de ti Os dois ficaram algum tempo em silêncio Tua mãe fica disse a índia com um acento de resolução E quem será a mãe da tribo Quem guardará a cabana de Peri Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê forte entre os mais fortes Quem dirá quantas vezes a nação Goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros e ensinar aos filhos os costumes dos velhos Peri preferiu estas palavras com a exaltação que despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem a índia ficou pensativa e respondeu Tua mãe volta vai te esperar na porta da cabana à sombra do jambeiro se a flor do jambo vier sem Peri tua mãe não verá os frutos da árvore A índia pousou as mãos sobre os ombros de seu filho e encostou a fronte na fronte dele durante um momento as lágrimas que saltavam dos olhos de ambos se confundiram Depois ela afastouse lentamente Peri seguiua com os olhos ate que desapareceu na floresta esteve a correr chamála e partir com ela Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu pai ficou Nessa mesma noite construirá aquela pequena cabana que se via na ponta do rochedo e que ia ser o seu mundo Passaram três meses Cecília que um momento conseguira vencer a repugnância que sentia pelo selvagem quando lhe ordenara que ficasse não se lembrou da ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia Quando o índio chegavase a ela soltava um grito de susto ou fugia ou ordenavalhe que se retirasse Peri que já falava e entendia o português afastavase triste e humilde Entretanto a sua dedicação não se desmentia ele acompanhava a D Antônio de Mariz nas suas excursões ajudavao com a sua experiência guiavao aos lugares onde havia terrenos auríferos ou pedras preciosas De volta destas expedições corria todo o dia os campos para procurar um perfume uma flor um pássaro que entregava ao fidalgo e pedialhe desse a Ceci pois já não se animava a chegarse para ela com receio de desgostála Ceci era o nome que o índio dava à sua senhora depois que lhe tinham ensinado que ela se chamava Cecília Um dia a menina ouvindo chamarse assim por ele e achando um pretexto para zangarse contra o escravo humilde que obedecia ao seu menor gesto repreendeuo com aspereza Por que me chamas tu Ceci O índio sorriu tristemente Não sabes dizer Cecília Peri pronunciou claramente o nome da moça com todas as sílabas isto era tanto mais admirável quanto a sua língua não conhecia quatro letras das quais uma era o L Mas então disse a menina com alguma curiosidade se tu sabes o meu nome por que não o dizes sempre Porque Ceci é o nome que Peri tem dentro da alma Ah é um nome de tua língua Sim O que quer dizer O que Peri sente Mas em português Senhora não deve saber A menina bateu com a ponta do pé no chão e fez um gesto de impaciência D Antônio passava Cecília correu ao seu encontro Meu pai dizeime o que significa Ceci nessa língua selvagem que falais Ceci disse o fidalgo procurando lembrarse Sim É um verbo que significa doer magoar A menina sentiu um remorso reconheceu a sua ingratidão e lembrandose do que devia ao selvagem e da maneira por que o tratava achouse má egoísta e cruel Que doce palavra disse ela a seu pai parece um canto de pássaro Desde este dia foi boa para Peri pouco a pouco perdeu o susto começou a compreender essa alma inculta viu nele um escravo depois um amigo fiel e dedicado Chamame Ceci dizia às vezes ao índio sorrindose este doce nome me lembrará que fui má para ti e me ensinará a ser boa V VILANIA E tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns fatos anteriores Voltemos pois ao lagar em que se achavam Loredano e seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soara no meio deles Os dois cúmplices supersticiosos como eram as pessoas de baixa classe naquele tempo atribuíam o fato a uma causa sobrenatural e viam nele um aviso do céu Loredano porém não era homem que cedesse a semelhante fraqueza tinha ouvido uma voz e essa voz embora surda e cava devia ser de um homem Quem ele era Seria D Antônio de Mariz Seria algum dos aventureiros Não podia saber o seu espírito perdiase num caos de dúvidas e incertezas Fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões para que o seguissem e apertando ao seio o fatal pergaminho causa de tantos crimes lançouse pelo campo Teriam feito umas cinqüenta braças do caminho quando viram cortar pela vereda que eles seguiam um cavalheiro que o italiano reconheceu imediatamente era Álvaro O moço procurava a solidão para pensar em Cecília mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não podia compreender Vira de longe a janela de Cecília abrirse as duas moças aparecerem trocarem um olhar depois Isabel cair de joelhos aos pés de sua prima Se ele tivesse ouvido o que já sabemos teria perfeitamente compreendido mas longe como estava apenas podia ver sem ser visto das duas moças Loredano vendo o cavalheiro passar voltouse para os seus companheiros Eilo disse com um olhar que brilhou de alegria Imbecis que atribuís ao céu aquilo que não sabeis explicar E acompanhou estas palavras com um sorriso de profundo desprezo Esperaime aqui O que ides fazer perguntou Rui Soeiro O italiano se voltou surpreso depois levantou os ombros como se a pergunta do seu companheiro não merecesse resposta Rui Soeiro que conhecia o caráter desse homem entendeu o gesto um resquício de generosidade que ainda havia no seu coração corrompido o fez segurar o braço do seu companheiro para retêlo Quereis que fale disse Loredano E mais um crime inútil acudiu Bento Simões O italiano fitou nele os olhos frios como o contato do aço polido Há um mais útil amigo Simões cuidaremos dele a seu tempo E sem esperar a réplica meteuse pelas moitas que cobriam o campo nesse lugar e seguiu Álvaro que continuava lentamente o seu caminho O moço apesar de preocupado tinha o hábito da vida arriscada dos nossos caçadores do interior obrigados a romper as matas virgens Aí o homem vêse cercado de perigos por todos os lados da frente das costas à esquerda à direita do ar da terra pode surgir de repente um inimigo oculto pela folhagem que se aproxima sem ser visto A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe distinguir entre os rumores vagos da floresta aquele que é produzido por uma ação mais forte do que a do vento assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores Álvaro tinha esse dom dos caçadores hábeis apenas o vento lhe trouxe um estalido de folhas secas pisadas levantou a cabeça e circulou o campo com os olhos depois por prudência encostouse ao grosso tronco de uma árvore isolada e cruzando os braços sobre a clavina esperou Nessa posição o inimigo qualquer que ele fosse fera réptil ou homem não o podia atacar senão de face ele o veria aproximarse e o receberia Loredano agachado entre as folhas tinha notado este movimento e hesitara mas o seu segredo estava comprometido a suspeita que concebera de que Álvaro fora quem há pouco o ameaçara com a palavra traidores acabava de confirmarse no seu espírito vendo a prudência com que o moço evitava uma surpresa O cavalheiro era um inimigo terrível e jogava todas as armas com uma destreza admirável A lâmina de sua espada como uma cobra elástica flexível rápida volteava sibilando e atirava o bote com a velocidade e a certeza da cascavel O arremesso do seu punhal vibrado pelo braço ligeiro e auxiliado pela agilidade do corpo era como raio listrava no ar uma cruz de fogo e caia sobre o peito do inimigo e o fulminava A bala de sua clavina era uma mensageira fiel que ia buscar a ave que pairava no ar ou a folha que o vento agitava Muitas vezes na esplanada da casa o italiano vira Álvaro depois de ter feito milagres de pontaria quebrar no ar as setas que Peri atirava de propósito para lhe servirem de alvo Cecília aplaudia batendo as mãos Peri ficava contente por ver a senhora alegre e embora para ele que fazia muito mais aquilo fosse uma coisa vulgar deixava que o moço conservasse a superioridade e fosse por todos admirado Mas Álvaro sabia que só um homem podia lutar com ele e levarlhe vantagem em qualquer arma e esse era Peri porque juntava à arte a superioridade do selvagem habituado desde o berço à guerra constante que é a sua vida Loredano tinha pois razão de hesitar em atacar de frente um inimigo desta força mas a necessidade urgia e o italiano era corajoso e ágil também Endireitou para o cavalheiro resolvido a morrer ou a salvar a sua vida e a sua fortuna Álvaro vendoo aproximarse rugou o sobrolho depois do que se tinha passado na véspera e nessa manhã odiava aquele homem ou antes desprezavao Aposto que tivestes o mesmo pensamento que eu sr cavalheiro disse o aventureiro quando chegou a três passos de distancia Não sei o que pretendeis dizer replicou o moço secamente Pretendo sr cavalheiro que dois homens que se odeiam achamse melhor num lagar solitário do que no meio dos companheiros Não é ódio que me inspirais é deprezo é mais do que desprezo é asco O réptil que se roja pelo chão causame menos repugnância do que o vosso aspecto Não disputemos sobre palavras sr cavalheiro tudo vem dar no mesmo eu vos odeio vós me desprezais podia dizervos outro tanto Miserável exclamou o cavalheiro levando a mão à guarda da espada O movimento foi tão rápido que a palavra soou ao mesmo tempo que a ponta da lamina de aço batendo na face do italiano Loredano quis evitar o insulto mas não era tempo seus olhos injetaramse de sangue Sr cavalheiro deveisme satisfação do insulto que me acabais de fazer É justo respondeu Álvaro com dignidade mas não à espada que é a arma do cavalheiro tirai o vosso punhal de bandido e defendeivos Proferindo estas palavras o moço embainhou a espada com toda a calma seguroua à cinta para não embaraçarlhe os movimentos e sacou o seu punhal excelente folha de Damasco Os dois inimigos marcharam um para o outro e lançaramse o italiano era ágil e forte e defendiase com suma destreza por duas vezes já o punhal de Álvaro roçandolhe o pescoço tinha cortado o talho de seu gibão de belbute De repente Loredano fincando os pés deu um pulo para trás e ergueu a mão esquerda em sinal de trégua Estais satisfeito perguntou Álvaro Não sr cavalheiro mas penso que em vez de nos estarmos aqui a fatigar inutilmente melhor seria tomarmos um meio mais expedito Escolhei o que quiserdes menos a espada o mais me é indiferente Outra coisa ainda se nos batermos aqui podemos incomodarnos reciprocamente porque pretendo matarvos e creio que o mesmo desejo tendes a meu respeito Ora é preciso que desapareça o que ficar e o outro não leve um vestígio que o possa denunciar Que quereis fazer neste caso O rio está aqui perto tendes a vossa clavina colocarnosemos cada um sobre uma ponta do rochedo aquele que cair morto ou simplesmente ferido pertencerá ao rio e à cachoeira não incomodará o outro Tendes razão é melhor assim eu me envergonharia se D Antônio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade Sigamos sr cavalheiro nós nos odiamos bastante para não gastarmos tempo em palavras Ambos tomaram na direção do rio cujo estrépito ouviase distintamente Álvaro valente e corajoso desprezava muito o seu inimigo para ter o menor receio dele demais a sua alma nobre e leal incapaz da mais pequena vilania não pensava na traição Nunca podia lembrarlhe que um homem que o viera provocar e ia medirse com ele num combate franco levasse a infâmia a ponto de querer ferilo pelas costas Assim continuou a caminhar quando o italiano deixando cair de propósito a cinta da espada parou um instante para apanhála e prendêla de novo O que passava então no seu espírito não estava de acordo com as idéias nobres do cavalheiro vendo o moço adiantarse disse consigo Preciso da vida desse homem eu a tenho Seria uma loucura deixála escapar e pôr a minha em risco Um duelo neste deserto sem testemunhas é um combate em que a vitória pertence ao mais esperto Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina com toda a cautela e seguia de longe a Álvaro a fim de que o ranger do ferro ou o silêncio de suas pisadas não excitassem a atenção do moço Álvaro caminhava tranqüilamente seu pensamento estava bem longe dele e esvoaçava em torno da imagem de Cecília junto da qual via os grandes olhos negros e aveludados de Isabel embebidos numa languidez melancólica era a primeira vez que aquele rosto moreno e aquela beleza ardente e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro dos seus amores Donde provinha isto O moço não sabia explicar mas um quer que seja como um pressentimento lhe dizia que naquela cena da janela havia entre as duas moças um segredo uma confidência uma revelação e que esse segredo era ele Assim quando a morte se aproximava quando já o bafejava e ia tocálo ele descuidoso e pensativo repassava no pensamento idéias de amor e alimentavase de esperanças Não se lembrava de morrer tinha consciência de si e fé em Deus mas se por acaso uma fatalidade caísse sobre ele consolavao a idéia de que Cecília ofendida lhe perdoaria um resto de ressentimento que talvez conservasse Nisto meteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim que a moça lhe dera e que já tinha murchado ao contato dos seus lábios ardentes ia beijálo ainda uma vez quando lembrouse que o italiano podia vêlo Mas não ouviu os passos do aventureiro a primeira idéia que lhe veio foi que ele tinha fugido e como a cobardia para as almas grandes se associa à baixeza lembrouse de uma traição Quis voltarse e entretanto não o fez Mostrar que tinha medo daquele miserável revoltava os seus brios de cavalheiro ergueu a cabeça com altivez e seguiu Mal sabia ele que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro caia e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano VI NOBREZA Álvaro ouviu um sibilo agudo A bala rogando pela aba rebatida de seu chapéu de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro O moço voltouse calmo sereno impassível nem um músculo de seu rosto agitouse apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o lábio superior sombreado pelo bigode negro O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos causoulhe uma surpresa extraordinária não esperava decerto ver o que se passava a dez passos dele Peri mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organização de aço com a mão esquerda segura à nuca de Loredano curvavao sob a pressão violenta e obrigavao a ajoelhar O italiano lívido com o rosto contraído e os olhos imensamente dilatados tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante O índio arrancoua e sacando a longa faca levantou o braço para cravála no alto da cabeça do italiano Mas Álvaro tinhase adiantado e aparou o golpe depois estendeu a mão ao índio Solta este miserável Peri Não A vida deste homem me pertence atirou sobre mim é a minha vez de atirar sobre ele Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras armava a clavina e apoiava a boca na fronte do italiano Ides morrer Fazei a vossa oração Peri abaixou a faca recuou um passo e esperou O italiano não respondeu a sua oração foi uma blasfêmia horrível e satânica as palpitações violentas do coração batiam de encontro ao pergaminho que tinha no seio e lembravamlhe o seu tesouro que ia talvez cair nas mãos de Álvaro e darlhe a riqueza de que não pudera gozar Entretanto na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez o orgulho do crime não suplicou não disse uma palavra sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte fechou os olhos e julgouse morto Álvaro olhouo um instante e abaixou a clavina Tu és indigno de morrer à mão de um homem e por uma arma de guerra pertences ao pelourinho e ao carrasco Seria um roubo feito à justiça de Deus Loredano abriu os olhos seu rosto iluminouse com um raio de esperança Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D Antônio de Mariz e nunca mais porás o pé neste sertão por tal preço tens a vida salva Juro exclamou o italiano O moço tirou o colar que deva três voltas sobre os ombros e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Cristo que lhe pendia do peito o aventureiro estendeu a mão e repetiu o juramento Erguete e tirate dos meus olhos E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza o cavalheiro desarmou a sua clavina voltouse para continuar o seu caminho fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse O índio enquanto se passava a rápida cena que descrevemos refletia profundamente Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus dois companheiros quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de fazer mal à sua senhora e a D Antônio de Mariz a sua primeira idéia tinha sido lançarse aos três inimigos e matálos Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava a sua indignação mas imediatamente lembrouse que ele podia morrer e que nesse caso Cecília não teria quem a defendesse Pela primeira vez na sua vida teve medo teve medo por sua senhora e sentiu não possuir mil vidas para sacrificálas todas à sua salvação Fugiu então com bastante rapidez para não ser visto pelo italiano que subia à árvore afastouse deles chegando à beira do rio lavou a sua túnica de algodão que ficara manchada de sangue não queria que soubessem que estava ferido Enquanto se entregava a este trabalho combinava um plano de ação Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse nem mesmo a D Antônio de Mariz duas razões o levavam a proceder assim a primeira era o receio de não ser acreditado pois não tinha provas com que pudesse justificar a acusação que ele índio ia fazer contra homens brancos a segunda era a confiança que tinha de que ele só bastava para desfazer todas as tramas dos aventureiros e lutar contra o italiano Assentado este primeiro ponto passou à execução do plano esta reduziase para ele em uma punição aqueles três homens queriam matar portanto deviam morrer mas deviam morrer ao mesmo tempo do mesmo golpe Peri receava que combinados como estavam se um escapasse vendo sucumbir seus companheiros se deixaria levar pelo desespero e anteciparia a realização do crime antes que ele o pudesse prevenir A sua inteligência sem cultura mas brilhante como o sol de nossa terra vigorosa como a vegetação deste solo guiavao nesse raciocínio com uma lógica e uma prudência dignas do homem civilizado previa todas as hipóteses combinava todas as probabilidades e preparavase para realizar o seu plano com a certeza e a energia de ação que ninguém possuía em grau tão elevado Assim dirigindose para a casa onde o chamava um outro dever o de avisar a D Antônio da eventualidade de um ataque dos Aimorés ele tinha passado junto de Bento Simões e Rui Soeiro e guiado pelos olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o cavalheiro Correr cair sobre o italiano desviar a pontaria e dobrálo sobre os joelhos foi um movimento tão rápido que os dois aventureiros apenas o viram passar viram ao mesmo tempo o seu companheiro subjugado A realização do projeto de Peri apresentavase naturalmente sem ser procurada Tinha o italiano na sua mão depois dele caminhava aos dois aventureiros para os quais bastava a sua faca e quando tudo estivesse consumado iria ter com D Antônio de Mariz e lhe diria Esses três homens vos traiam mateios se fiz mal punime A intervenção de Álvaro cuja generosidade salvou a vida de Loredano transtornou completamente esse plano ignorando o motivo por que Peri ameaçava o aventureiro julgando que era unicamente para punilo da tentativa que acabava de cometer perfidamente contra ele o cavalheiro a quem repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade satisfezse com o juramento e a certeza de que deixaria a casa Enquanto isto se dava Peri refletia na possibilidade de fazer as coisas voltarem à mesma posição mas conheceu que não o conseguiria Álvaro tinha recebido de D Antônio de Mariz todos os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós o moço moldava todas as suas ações todas as suas idéias por aquele tipo de barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis o rei cavalheiro Peri conhecia o caráter do moço e sabia que depois de ter dado a vida a Loredano embora o desprezasse não consentiria que em presença dele lhe tocasse num cabelo e se preciso fosse tiraria a sua espada para defender este homem que acabava de tentar contra sua existência E o índio respeitava a Álvaro não por sua causa mas por Cecília a quem ele amava qualquer desgraça que sucedesse ao cavalheiro tornaria a senhora triste e isto bastava para que a pessoa do moço fosse sagrada como tudo o que pertencia à menina ou que era necessário ao seu descanso ao seu sossego e felicidade O resultado dessa reflexão foi Peri meter a sua faca à cinta e sem importarse mais com o italiano acompanhar o cavalheiro Ambos seguiram em direção da casa caminhando ao longo da margem do rio Obrigado ainda uma vez Peri não pela vida que me salvaste mas pela estima que me tens E o moço apertou a mão do selvagem Não agradece Peri nada te fez quem te salvou foi a senhora Álvaro sorriuse da franqueza do índio e corou da alusão que havia em suas palavras Se tu morresses a senhora havia de chorar e Peri quer ver a senhora contente Tu te enganas Cecília é boa e sentiria da mesma maneira o mal que sucedesse a mim como a ti ou a qualquer dos que está acostumada a ver Peri sabe por que fala assim tem olhos que vêem e ouvidos que ouvem tu és para a senhora o sol que faz o jambo corado e o sereno que abre a flor da noite Peri exclamou Álvaro Não te zanga disse o índio com doçura Peri te ama porque tu fazes a senhora sorrir A cana quando está à beira dágua fica verde e alegre quando o vento passa as folhas dizem Ceci Tu és o rio Peri é o vento que passa docemente para não abafar o murmúrio da corrente é o vento que curva as folhas até tocarem na água Álvaro fitou no índio um olhar admirado Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples mas graciosa onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade A cena que se desenrolava a seus olhos respondeulhe a natureza brasileira tão rica e brilhante era a imagem que produzia aquele espírito virgem como o espelho das águas reflete o azul do céu Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o cedro gigante quem no reino animal desce do tigre e do tapir símbolos da ferocidade e da força até o lindo beijaflor e o inseto dourado quem olha este céu que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados que anunciam as grandes borrascas quem viu sob a verde pelúcia da relva esmaltada de flores que cobre as nossas várzeas deslizar mil répteis que levam a morte num átomo de veneno compreende o que Álvaro sentiu Com efeito o que exprime essa cadeia que liga os dois extremos de tudo o que constitui a vida Que quer dizer a força no ápice do poder aliada à fraqueza em todo o seu mimo a beleza e a graça sucedendo aos dramas terríveis e aos monstros repulsivos a morte horrível a par da vida brilhante Não é isso a poesia O homem que nasceu embalouse e cresceu nesse berço perfumado no meio de cenas tão diversas entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima da flor e do espinho do mel e do veneno não é um poeta Poeta primitivo canta a natureza na mesma linguagem da natureza ignorante do que se passa nele vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação é a flor o céu a luz a cor o ar o sol sublimes coisas que a natureza fez sorrindo A sua frase corre como o regato que serpeja ou salta como o rio que se despenha da cascata às vezes se eleva ao cimo da montanha outras desce e rasteja como o inseto sutil delicada e mimosa Eis o que a decoração da cena majestosa no meio da qual se achava à beira do Paquequer disse a Álvaro mas rapidamente por uma dessas impressões que se projetam no espírito como a luz no espaço O moço recebeu a confissão ingênua do índio sem o mínimo sentimento hostil ao contrário apreciava a dedicação que o selvagem tinha por Cecília e ia ao ponto de amar a tudo quanto sua senhora estimava Assim disse Álvaro sorrindo tu só me amas por que pensas que Cecília me quer disse o moço Peri só ama o que a senhora ama porque só ama a senhora neste mundo por ela deixou sua mãe seus irmãos e a terra onde nasceu Mas se Cecília não me quisesse como julgas Peri faria o mesmo que o dia com a noite passaria sem te ver E se eu não amasse a Cecília Impossível Quem sabe disse o moço sorrindo Se a senhora ficasse triste por ti exclamou o índio cuja pupila irradiou Sim o que farias Peri te mataria A firmeza com que eram ditas estas palavras não deixava a menor duvida sobre a sua realidade entretanto Álvaro apertou a mão do índio com efusão Peri temeu ofender o moço para desculpar a sua franqueza disselhe com um tom comovido Escuta Peri é filho do sol e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci Peri ama o vento e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci Peri gosta de ver o céu e não levantava a vista se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci Compreendote amigo votaste a tua vida inteira à felicidade dessa menina Não receies que te ofenda nunca na pessoa dela Sabes se eu a amo e não te zangues Peri se disser que a tua dedicação não é maior do que a minha Antes que me matasses creio que me mataria a mim mesmo se tivera a desgraça de fazer Cecília infeliz Tu és bom Peri quer que a senhora te ame O índio contou então a Álvaro o que se tinha passado na noite antecedente o moço empalideceu de cólera e quis voltar em busca do italiano desta vez não lhe perdoara Deixa disse o índio Ceci teria medo Peri vai endireitar isto Os dois tinham chegado perto da casa e iam entrar a cerca do vale quando Peri segurou o braço de Álvaro O inimigo da casa quer fazer mal defende a senhora se Peri morrer manda dizer à sua mãe e veras todos os guerreiros da tribo chegarem para combaterem contigo e salvarem Ceci Mas quem é o inimigo da casa Queres saber Decerto como hei de combatêlo Tu saberás Álvaro quis insistir mas o índio não lhe deu tempo meteuse de novo pelo mato enquanto o moço subia a escada ele fazia uma volta ao redor da casa e ganhava o lado para onde dava o quarto de Cecília Já tinha avistado ao longe a janela quando debaixo de uma ramagem surdiu a figura magra e esguia de Aires Gomes coberta de urtigas e ervasdepassarinho e deitando os bofes pela boca O digno escudeiro tendo encontrado em cima de sua cabeça um maldito galho desajeitado foi de narizes ao chão e estendeuse maciamente sobre a relva Apesar disto ergueuse um pouco sobre os cotovelos e gritou com toda a força dos pulmões Olá mestre bugre D Cacique Caçador de onça viva Ouve cá Peri não se voltou VII NO PRECIPÍCIO Peri tinha parado para ver Cecília de longe Aires Gomes ergueuse correu para o índio e deitoulhe a mão ao braço Afinal pilheio dom caboclo Safa Deume água pela barba disse o escudeiro resfolgando Deixa respondeu o índio sem se mover Deixarte Uma figa Depois de ter batido esta mataria toda à tua procura Tinha que ver Com efeito D Lauriana desejando ver o índio fora de casa quanto antes havia expedido o escudeiro em busca de Peri para trazêlo à presença de D Antônio de Matiz Aires Gomes fiel executor das ordens de seus amos corria o mato havia boas duas horas todos os incidentes cômicos possíveis ou imagináveis tinhamse como que de propósito colocado em seu caminho Aqui era uma casa de marimbondos que ele assanhava com o chapéu e o faziam bater em retirada honrosa correndo a todo o estirão das pernas ali era um desses lagartos de longa cauda que pilhado de improviso se enrolara pelas pernas do escudeiro com uma formidável chicotada Isto sem falar das urtigas e das unhasdegato cabeçadas e quedas que faziam o digno escudeiro arrenegarse e maldizer da selvajaria de semelhante terra Ah quem o dera nos tojos e charnecas de sua pátria Tinha pois Aires Gomes razão de sobra para não querer largar o índio causa de todas as tribulações por que passara infelizmente Peri não estava de acordo Larga já te disse exclamou o índio começando a irritarse Tem santa paciência caboclinho de minha alma Fé de Aires Gomes não é possível e tu sabes Quando eu digo que não é possível é como se a nossa madre igreja Que diabo ia rezarlhe Ai que chamei sem querer a madre igreja de diabo Forte heresia Quem se mete a tagarelar dos santos com esta casta de pagão Tagarelar dos santos Virgem Santíssima Estou incapaz Calate boca não me pies mais Enquanto o escudeiro desfiava esse discurso meio solilóquio no qual havia ao menos o mérito da franqueza Peri não o ouvia embebido como estava em olhar para a janela depois desprendendose da mão que seguravalhe o braço continuou o seu caminho Aires acompanhouo pisada sobre pisada com a impassibilidade de um autômato Que vens fazer perguntoulhe o índio E esta Seguirte e levarte à casa é a ordem Peri vai longe Ainda que vás ao fim do mundo é o mesmo filho O índio voltouse para ele com um gesto decidido Peri não quer que tu o sigas Lá quanto a isto mestre bugre perdes o teu tempo por força ainda ninguém levou o filho de meu pai que bom é que saibas foi homem de faca e calhau Peri não manda duas vezes Nem Aires Gomes olha atrás quando executa uma ordem Peri o homem da cega dedicação reconheceu no escudeiro o homem da obediência passiva sentiu que não havia meio de convencer este executor fiel assim resolveu livrarse dele por meio decisivo Quem te deu a ordem D Lauriana Para quê Para te levar à casa Peri vai só Veremos O índio tirou a sua faca Hein gritou o escudeiro A conversa vai agora nesse tom Se o Sr D Antônio não me tivesse proibido expressamente eu te mostraria Mas Podes matarme que eu não arredo pé Peri só mata o seu inimigo e tu não és tu teimas Peri te amarra Como Como é lá isso O índio começou a cortar com a maior calma um longo cipó que se engranzava pelos galhos das árvores o escudeiro meio espantado sentia a mostarda subirlhe ao nariz esteve quase não quase atirandose ao selvagem Mas a ordem de D Antônio era formal viase pois obrigado a respeitar o índio o mais que o digno escudeiro podia fazer era defenderse valentemente Quando Peri cortou umas dez braças do cipó que ia enrolando ao pescoço embainhou a faca e voltouse para o escudeiro sorrindo Aires Gomes sem trepidar puxou a espada e pôsse em guarda segundo as regras da nobre e liberal arte do jogo de espadão que professava desde a mais tenra idade Era um duelo original e curioso como talvez não tenha havido segundo combate em que as armas lutavam contra a agilidade e o ferro contra um vime delgado Mestre Cacique disse o escudeiro rugando o sobrolho deixate de partes porque palavra de Aires Gomes se te encostas espetote na durindana Peri estendeu o lábio inferior em sinal de pouco caso e começou a voltear rapidamente em torno do escudeiro num círculo de seis passos de diâmetro que o punha fora do alcance da espada a sua tenção era assaltar o adversário pelas costas Aires Gomes apoiado a um tronco e obrigado a girar sobre si mesmo para defender as costas sentiu a cabeça tontear e vacilou O índio aproveitou o momento atirouse a ele pilhouo de costas agarrouo pelos dois braços e passou a amarrálo ao mesmo tronco da árvore em que estava encostado Quando o escudeiro voltou a si da vertigem uma rodilha de cipós ligavao ao tronco desde o joelho até os ombros o índio seguira seu caminho placidamente Bugre de um demo Perro infernal gritava o digno escudeiro tu me pagarás com língua de palmo Sem prestar a menor atenção à ladainha de nomes injuriosos com que o mimoseava Aires Gomes Peri aproximouse da casa Via Cecília com a face apoiada na mão a olhar tristemente o fosso profundo que passava embaixo de sua janela A menina depois do primeiro momento de surpresa em que adivinhou o ciúme de Isabel e o seu amor por Álvaro conseguiu dominarse Tinha a nobre altivez da castidade não quis deixar ver à sua prima o que sentia nesse momento era boa também amava Isabel e não desejava magoála Não lhe disse pois uma só palavra de exprobração nem de queixa ao contrário ergueua beijoua com carinho e pediulhe que a deixasse só Pobre Isabel murmurou ela como deve ter sofrido Esqueciase de si para pensar em sua prima mas as lágrimas que saltaram de seus olhos e o soluço que fez arfar os seios mimosos a chamaram ao seu próprio sofrimento Ela a menina alegre e feiticeira que só aprendera a sorrir ela o anjinho do prazer que bafejava tudo quanto a rodeava achou um gozo inefável em chorar Quando enxugou as lágrimas sofria menos sentiuse aliviada pôde então refletir sobre o que havia passado O amor revelavase para ela sob uma nova forma até aquele dia a afeição que sentia por Álvaro era apenas um enleio que a fazia corar e um prazer que a fazia sorrir Nunca se lembrara que esta afeição pudesse passar daquilo que era e produzir outras emoções que não fossem o rubor e o sorriso o exclusivismo do amor a ambição de tornar seu e unicamente seu o objeto da paixão acabava de serlhe revelado por sua prima Ficou por muito tempo pensativa consultou o seu coração e conheceu que não amava assim nunca a afeição que tinha a Álvaro podia obrigála a odiar sua prima a quem queria como irmã Cecília não compreendia essa lata do amor com os outros sentimentos do coração luta terrível em que quase sempre a paixão vitoriosa subjuga o dever e a razão Na sua ingênua simplicidade acreditava que podia ligar perfeitamente a veneração que tinha por seu pai o respeito que votava à sua mãe o afeto que sentia por Álvaro o amor fraternal que consagrava a seu irmão e a Isabel e a amizade que tinha a Peri Estes sentimentos eram toda a sua vida no meio deles sentiase feliz nada lhe faltava também nada mais ambicionava Enquanto pudesse beijar a mão de seu pai e de sua mãe receber uma carícia de seu irmão e de sua prima sorrir a seu cavalheiro e brincar com o seu escravo a existência para ela seria de flores Assustouse pois com a necessidade de quebrar um dos fios de ouro que teciam os seus dias inocentes e felizes sofreu com a idéia de ver em luta duas das afeições calmas e serenas de sua vida Teria menos um encanto na sua vida menos uma imagem nos seus sonhos menos uma flor na sua alma porém não faria a ninguém desgraçado e sobretudo à sua prima Isabel que às vezes se mostrava tão melancólica Restavamlhe suas outras afeições com elas pensava Cecília que a existência ainda podia sorrirlhe não devia tornarse egoísta Para assim pensar era preciso ser uma menina pura e isenta como ela era preciso ter o coração como recente botão que ainda não começou a desatarse com o primeiro raio do sol Estes pensamentos adejavam ainda na mente de Cecília enquanto ela olhava pensativa o fosso onde tinha caldo o objeto que viera modificar a sua existência Se eu pudesse obter essa prenda dizia consigo Mostraria a Isabel como eu a amo e quanto a desejo feliz Vendo sua senhora olhar tristemente o fundo do precipício Peri compreendeu parte do que passava no seu espírito sem poder adivinhar como Cecília soubera que o objeto tinha caldo ali percebeu que a moça sentia por isso um pesar Nem tanto bastava para que o índio fizesse tudo a fim de trazer a alegria ao rostinho de Cecília além de que já tinha prometido a Álvaro endireitar isto como ele dizia na sua linguagem simples Chegouse ao fosso Uma cortina de musgos e trepadeiras lastrando pelas bordas do profundo precipício cobria as fendas da pedra por cima era um tapete de verde risonho sobre o qual adejavam as borboletas de cores vivas embaixo uma cava cheia de limo onde a luz não penetrava Às vezes ouviamse partir do fundo do balseiro os silvos das serpentes os pios tristes de algum pássaro que magnetizado ia entregarse à morte ou o tanger de um pequeno chocalho sobre a pedra Quando o sol estava a pino como então viase entre a relva sobre o cálice das campânulas roxas os olhos verdes de alguma serpente ou uma linda fita de escamas pretas e vermelhas enlaçando a haste de um arbusto Peri pouco se importava com estes habitantes do fosso e com o acolhimento que lhe fariam na sua morada o que o inquietava era o receio de que não tivesse luz bastante no fundo para descobrir o objeto que ia procurar Cortou o galho de uma árvore que pela sua propriedade os colonizadores chamaram candeia tirou o fogo e começou a descer com o facho aceso Foi só nessa ocasião que Cecília embebida nos seus pensamentos viu defronte de sua janela o índio a descer pela encosta A menina assustouse porque a presença de Peri lembroulhe de repente o que se passara pela manhã era mais uma afeição perdida Dois laços quebrados ao mesmo tempo dois hábitos rompidos um sobre o outro era muito duas lágrimas correram pelas suas faces como se cada uma fosse vertida pelas cordas do coração que acabavam de ser vibradas Peri O índio levantou os olhos para ela Tu choras senhora disse ele estremecendo A menina sorriulhe mas com um sorriso tão triste que partia a alma Não chora senhora disse o índio suplicante Peri vai te dar o que desejas O que eu desejo Sim Peri sabe A moça abanou a cabeça Está ali e apontou para o fundo do precipício Quem te disse perguntou a menina admirada Os olhos de Peri Tu viste Sim O índio continuou a descer Que vais fazer exclamou Cecília assustada Buscar o que é teu Meu murmurou melancolicamente Ele te deu Ele quem Álvaro A moça corou mas o susto reprimiu o pejo abaixando os olhos sobre o precipício tinha visto um réptil deslizando pela folhagem e ouvido o murmúrio confuso e sinistro que vinha do fundo do abismo Peri disse empalidecendo não desças volta Não Peri não volta sem trazer o que te fez chorar Mas tu vais morrer Não tem medo Peri disse Cecília com severidade tua senhora manda que não desças O índio parou indeciso uma ordem de sua senhora era uma fatalidade para ele cumpriase irremissivelmente Fitou na moça um olhar tímido nesse momento Cecília vendo Álvaro na ponta da esplanada junto da cabana do selvagem retiravase para dentro da janela corando O índio sorriu Peri desobedecer à tua voz senhora para obedecer ao teu coração E o índio desapareceu sob as trepadeiras que cobriam o precipício Cecília soltou um grito e debruçouse no parapeito à janela VIII O BRACELETE O que Cecília viu debruçandose à janela geloua de espanto e horror De todos os lados surgiam répteis enormes que fugindo pelos alcantis lançavamse na floresta as víboras escapavam das fendas dos rochedos e aranhas venenosas suspendiamse aos ramos das árvores pelos fios da teia No meio do concerto horrível que formava o sibilar das cobras e o estrídulo dos grilos ouviase o canto monótono e tristonho da cauã no fundo do abismo O índio tinha desaparecido apenas se via o reflexo da luz do facho Cecília pálida e trêmula julgava impossível que Peri não estivesse morto e já quase devorado por esses monstros de mil formas chorava o seu amigo perdido e balbuciava preces pedindo a Deus um milagre para salválo Às vezes fechava os olhos para não ver o quadro terrível que se desenrolava diante dela e abriaos logo para perscrutar o abismo e descobrir o índio Em um desses momentos um dos insetos que pululavam no meio da folhagem agitada esvoaçou e veio pousar no seu ombro era uma esperança um desses lindos coleópteros verdes que a poesia popular chama lavandeiradedeus A alma nos momentos supremos de aflição suspendese ao fio o mais tênue da esperança Cecília sorriuse entre as lágrimas tomou a lavandeira entre os seus dedos rosados e acaricioua Precisava esperar esperou reanimouse e pôde preferir uma palavra ainda com a voz trêmula e fraca Peri No curto instante que sucedeu a este chamado sofreu uma ansiedade cruel se o índio não respondesse estava morto mas Peri falou Espera senhora Entretanto apesar da alegria que lhe causaram estas palavras pareceu à menina que eram pronunciadas por um homem que sofria a voz chegoulhe ao ouvido surda e rouca Estás ferido perguntou inquieta Não houve resposta um grito agudo partiu do fundo do abismo e ecoou pelas fráguas depois a cauã cantou de novo e uma cascavel silvando bravia passou seguida por uma ninhada de filhos Cecília vacilou soltando um gemido plangente caiu desmaiada de encontro à almofada da janela Quando passado um quarto de hora a menina abriu os olhos viu diante dela Peri que chegava naquele momento e lhe apresentava sorrindo uma bolsa de malha de retrós dentro da qual havia uma caixinha de velado escarlate Sem se importar com a jóia Cecília ainda impressionada pelo quadro horrível que presenciara tomou as mãos do índio e perguntoulhe com sofreguidão Não estás mordido Peri Não sofres Dize O índio olhoua admirado do susto que via no seu semblante Tiveste medo senhora Muito exclamou a menina O índio sorriu Peri é um selvagem filho das florestas nasceu no deserto no meio das cobras elas conhecem Peri e o respeitam O índio dizia a verdade o que acabava de fazer era a sua vida de todos os dias no meio dos campos não havia nisto o menor perigo Tinhalhe bastado a luz do seu facho e o canto da cauã que ele imitava perfeitamente para evitar os répteis venenosos que são devorados por essa ave Com este simples expediente de que os selvagens ordinariamente se serviam quando atravessavam as matas de noite Peri descera e tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos de uma trepadeira a bolsa de seda que adivinhou ser o objeto dado por Álvaro Soltou então um grito de prazer que Cecília tomou por grito de dor assim como antes tinha tomado o eco do precipício por uma voz cava e surda Entretanto Cecília que não podia compreender como um homem passava assim no meio de tantos animais venenosos sem ser ofendido por eles atribuía a salvação do índio a um milagre e considerava a ação simples e natural que acabava de praticar como um heroísmo admirável A sua alegria por ver Peri livre de perigo e por ter nas suas mãos a prenda de Álvaro foi tal que esqueceu tudo o que se tinha passado A caixinha continha um simples bracelete de pérolas mas estas eram do mais paro esmalte e lindas como pérolas que eram bem mostravam que tinham sido escolhidas pelos olhos de Álvaro e destinadas ao braço de Cecília A menina admirouas um momento com o sentimento de faceirice que é inato na mulher e lhe serve de sétimo sentido pensou que devia irlhe bem esse bracelete levada por esta idéia cingiuo ao braço e mostrou a Peri que a contemplava satisfeito de si mesmo Peri sente uma coisa O quê Não ter contas mais bonitas do que estas para darte E por que sentes isso Porque te acompanhariam sempre Cecília sorriu ia fazer uma travessura Assim tu ficarias contente se tua senhora em vez de trazer este bracelete trouxesse um presente dado por ti Muito E o que me dás tu para que eu me faça bonita perguntou a menina gracejando O índio correu os olhos ao redor de si e ficou triste podia dar a sua vida que de nada valia mas onde iria ele pobre selvagem buscar um adorno digno de sua senhora Cecília teve pena do seu embaraço Vai buscar uma flor que tua senhora deitará nos seus cabelos em vez deste bracelete que ela nunca deitará no seu braço Estas últimas palavras foram ditas com um tom de energia que revelava a firmeza do caráter desta menina ela fechou outra vez o bracelete na caixa e ficou um momento melancólica e pensativa Peri voltou trazendo uma linda flor silvestre que encontrara no jardim era uma parasita aveludada de lindo escarlate A menina prendeu a flor nos cabelos satisfeita por ter cumprido um inocente desejo de Peri que só vivia para cumprir os seus e dirigiuse ao quarto de sua prima ocultando no seio a caixinha de veludo Isabel pretextara uma indisposição não saíra do seu quarto depois que voltara do aposento de Cecília tendo traído o segredo de seu amor As lágrimas que derramou não foram como as de sua prima de alivio e consolo foram lágrimas ardentes que em vez de refrescarem o coração o queimam como o rescaldo da paixão Às vezes ainda umedecidos de pranto seus olhos negros brilhavam com um fulgor extraordinário parecia que um pensamento delirante passava rapidamente no seu espírito desvairado Então ajoelhavase e fazia uma oração no meio da qual suas lágrimas vinham de novo orvalharlhe as faces Quando Cecília entrou ela estava sentada à beira do leito com os olhos fitos na janela por entre a qual se via uma nesga do céu Estava bela da melancolia e languidez que prostrava o seu corpo num enlevo sedutor fazendo realçar as linhas harmoniosas de seu talhe gracioso Cecília aproximouse sem ser vista e estalou um beijo na face morena de sua prima Já te disse que não te quero ver triste Cecília exclamou Isabel sobressaltandose Que é isto Façote medo Não mas Mas o quê Nada Sei o que queres dizer Isabel julgaste que conservava uma queixa de ti Confessa Julguei disse a moca balbuciando que me tinha tornado indigna de tua amizade E por quê Fizesteme tu algum mal Não somos nós duas irmãs que nos devemos amar sempre Cecília o que tu dizes não é o que tu sentes exclamou Isabel admirada Algum dia te enganei replicou Cecília magoada Não perdoa porém é que A moça não continuou o olhar terminou o seu pensamento e exprimiu o espanto que lhe causava o procedimento de Cecília Mas de repente uma idéia assaltoulhe o espírito Cuidou que Cecília não tinha ciúmes dela porque a julgava indigna de merecer um só olhar de Álvaro esta lembrança a fez sorrir amargamente Assim está entendido disse Cecília com volubilidade nada se passou entre nós não é verdade Tu o queres Quero sim nada se passou somos as mesmas com uma diferença acrescentou Cecília corando que de hoje em diante tu não deves ter segredos para comigo Segredos Tinha um que já te pertence murmurou Isabel Porque o adivinhei Não é assim que desejo prefiro ouvir de tua boca quero consolarte quando estiveres toda tristezinha como agora e rirme contigo quando ficares contente Sim Ah nunca Não me peças uma coisa impossível Cecília Já sabes demais não me obrigues a morrer a teus pés de vergonha E por que te causaria isto vergonha Assim como tu me amas não podes amar uma outra pessoa Isabel escondeu o rosto nas mãos para disfarçar o rubor que subialhe às faces Cecília um pouco comovida olhava sua prima e compreendia nesse momento a causa por que ela própria corava quando sentia os olhos de Álvaro fitos nos seus Cecília disse Isabel fazendo um esforço supremo não me iludas minha prima tu és boa tu me amas e não queres magoarme mas não zombes da minha fraqueza Se soubesses como sofro Não te iludo já te disse não desejo que sofras e menos que sofras por minha causa entendes Entendo e jurote que saberei fazer calar meu coração se for preciso ele morrerá antes do que darte uma sombra de tristeza Não exclamou Cecília tu não me compreendes não é isto que eu te peço bem ao contrário quero que sejas feliz Que eu seja feliz perguntou Isabel arrebatadamente Sim respondeu a menina abraçandoa e falandolhe baixinho ao ouvido que o ames a ele e a mim também Isabel ergueuse pálida e duvidando do que ouvia Cecília teve bastante força para sorrirlhe com um dos seus divinos sorrisos Não é impossível Tu me queres tornar louca Cecília Quero tornarte alegre respondeu a menina acariciandoa quero que deixes esse rostinho melancólico e me abraces como tua irmã Não o mereço Oh sim minha irmã tu és um anjo de bondade mas o teu sacrifício é perdido eu não posso ser feliz Cecília Por quê Porque ele te ama murmurou Isabel A menina corou Não digas isto é falso E bem verdade Ele te disse Não mas adivinheio antes de ti mesma Pois te enganaste e sabes que mais não me fales nisto Que me importa o que ele sente a meu respeito E a menina conhecendo que a emoção se apoderava dela fugiu mas voltou da porta Ah esquecime de darte uma coisa que trouxe para ti Tirou a caixinha de veludo e abrindoa atou o bracelete de pérolas ao braço de Isabel Como te vão bem Como assentam no teu moreno tão lindo Ele te achará bonita Este bracelete Isabel teve de repente uma suspeita A menina percebeu ia mentir pela primeira vez na sua vida Foi meu pai que mo deu ontem mandou vir dois irmãos um para mim e outro que eu lhe pedi para ti Assim não tens que recusar senão agastome contigo Isabel abaixou a cabeça Não o tires eu vou deitar o meu e ficaremos irmãs Adeus até logo E apinhando os dedos atirou um beijo à prima e saiu correndo A travessura e jovialidade do seu gênio já tinham dissipado as impressões tristes da manhã IX TESTAMENTO No momento em que Cecília deixou Isabel D Antônio de Mariz subia a esplanada preocupado por algum objeto importante que dava à sua fisionomia expressão ainda mais grave que a habitual O velho fidalgo avistou de longe seu filho D Diogo e Álvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa fezlhes sinal de que se aproximassem Os moços obedeceram prontamente e acompanharam D Antônio de Mariz até o seu gabinete darmas pequena saleta que ficava ao lado do oratório e que nada tinha de notável a não ser a portinha de uma escada que descia para uma espécie de cava ou adega servindo de paiol Na ocasião em que se abriram os alicerces da casa os obreiros descobriram um socavão profundo talhado na pedra D Antônio como homem previdente lembrandose da necessidade que teria para o futuro de não contar senão com os seus próprios recursos mandou aproveitar essa abóbada natural e fazer dela um depósito que pudesse conter algumas arrobas de pólvora O fidalgo achara ainda uma outra grande vantagem na sua lembrança era a tranqüilidade de sua família cuja vida não estaria sujeita a um descuido de qualquer doméstico ou aventureiro porque no seu gabinete darmas ninguém entrava senão estando ele presente D Antônio sentouse junto da mesa coberta com um couro de moscóvia e fez sinal aos dois moços para que se sentassem a seu lado Tenho que falarvos de objeto muito sério de objeto de família disse o fidalgo Chameivos para me ouvirdes como em uma coisa que vos interessa e a mim antes do que a todos D Diogo inclinouse diante de seu pai Álvaro imitouo sentindo um sobressalto ao ouvir aquelas palavras graves e pausadas do velho fidalgo Tenho sessenta anos continuou D Antônio estou velho O contato deste solo virgem do Brasil o ar paro destes desertos remoçoume durante os últimos anos mas a natureza reassume os seus direitos e sinto que o antigo vigor cede a lei da criação que manda voltar à terra aquilo que veio da terra Os dois moços iam dizer alguma doce palavra como quando procuramos iludir a verdade àqueles a quem prezamos esforçando por nos iludirmos a nós próprios D Antônio conteveos com um gesto nobre Não me interrompais Não é uma queixa que vos faço é sim uma declaração que deveis receber pois é necessária para que possais compreender o que tenho de dizervos ainda Quando durante quarenta anos jogamos nossa vida quase todos os dias quando vimos a morte cem vezes sobre nossa cabeça ou debaixo de nossos pés podemos olhar tranqüilos o termo da viagem que fazemos neste vale de lágrimas Oh nunca duvidamos de vós meu pai exclamou D Diogo mas é a segunda vez em dois dias que me falais da possibilidade de uma tal desgraça e esta só idéia me assusta Estais forte e vigoroso ainda Decerto retrucou Álvaro dizíeis há pouco que o Brasil vos tinha remoçado e eu afirmovos que ainda estais na juventude da segunda vida que vos deu o novo mundo Obrigado Álvaro obrigado meu filho disse D Antônio sorrindo quero acreditar nas vossas palavras Contudo julgareis que é prudente da parte de um homem que chega ao último quartel da vida dispor a sua última vontade e fazer o seu testamento O vosso testamento meu pai disse D Diogo pálido Sim a vida pertence a Deus e o homem que pensa no futuro deve prevenilo E costume encarregarse isto a um escriba nem o tenho aqui nem o julgo necessário Um fidalgo não pode confiar melhor a sua última vontade do que a duas almas nobres e leais como as vossas Perdese um papel rompese queimase o coração de um cavalheiro que tem sua espada para defendêlo e seu dever para guiálo é um documento vivo e um executor fiel Este será pois o meu testamento Ouvime Os dois cavalheiros conheceram pela firmeza com que falava D Antônio que sua resolução era inabalável se dispuseram a ouvilo com uma emoção de tristeza e respeito Não trato de vós D Diogo a minha fortuna pertencevos como chefe da família que sereis não trato de vossa mãe porque perdendo um esposo restarlheá um filho devotado amovos a ambos e vos bendirei na última hora Há porém duas coisas que mais prezo neste mundo duas coisas sagradas que devo zelar como um tesouro ainda mesmo depois que me partir desta vida É a felicidade de minha filha e a nobreza do meu nome uma foi presente que recebi do céu o outro legado que me deixou meu pai O fidalgo fez pausa e volveu um olhar do rosto triste de D Diogo para G semblante de Álvaro que estava em extraordinária agitação A vós D Diogo transmito o legado de meu pai estou convencido que conservareis o seu nome tão puro como a vossa alma e os esforçareis por eleválo servindo uma causa santa e justa A vós Álvaro confio a felicidade de minha Cecília e creio que Deus enviandovos a mim fazem já dez anos não quis senão completar o dom que me havia concedido Os dois moços tinham deitado um joelho em terra e beijavam cada uma das mãos do velho fidalgo que colocado no meio deles envolviaos num mesmo olhar de amor paternal Ergueivos meus filhos abraçaivos como irmãos e ouvideme ainda D Diogo abriu os braços e apertou Álvaro ao peito um instante os dois corações nobres bateram um de encontro ao outro O que me resta a dizervos é difícil custa sempre confessar uma falta ainda mesmo quando se fala a almas generosas Tenho uma filha natural a estima que voto a minha mulher e o receio de fazer essa pobre menina corar de seu nascimento obrigaramme a darlhe em vida o titulo de sobrinha Isabel exclamou D Diogo Sim Isabel é minha filha Peçovos a ambos que a trateis sempre como tal que a ameis como irmã e a rodeeis de tanto afeto e carinho que ela possa ser feliz e perdoarme a indiferença que lhe mostrei e a infelicidade involuntária que causei à sua mãe A voz do velho fidalgo tornouse um tanto trêmula e comovida sentiase que uma recordação dolorosa adormecida no fundo do coração havia despertado Pobre mulher murmurou ele Levantouse passeou pelo aposento e conseguindo dominar a sua emoção voltou ao dois moços Eis a minha última disposição sei que a cumprireis não vos peço um juramento bastame a vossa palavra D Diogo estendeu a mão Álvaro levou a sua ao coração D Antônio que compreendeu tudo quanto dizia essa muda promessa abraçouos Agora deixai a tristeza querovos risonhos eu o estou vede A tranqüilidade sobre o futuro vai remoçarme de novo e esperareis muito tempo talvez antes que tenhais de executar a minha vontade que até lá fica sepultada no vosso coração como testamento que é Assim o tinha entendido disse Álvaro Pois então replicou o fidalgo sorrindo deveis ficar entendendo também um ponto é que talvez me incumba eu mesmo de realizar uma das partes do meu testamento Sabeis qual A da minha felicidade respondeu o moço corando D Antônio apertoulhe a mão Estou contente e satisfeito disse o fidalgo pena é que tenha um triste dever a cumprir Sabeis de Peri Álvaro Vio há pouco Ide e mandaio a mim O moço retirouse Fazei chamar vossa mãe e vossa irmã meu filho D Diogo obedeceu O fidalgo sentouse à mesa e escreveu numa tira de pergaminho que fechou com um retrós e selou com as suas armas D Lauriana e Cecília entraram acompanhadas por D Diogo Sentaivos minha mulher D Antônio reunia sua família para dar uma certa solenidade ao ato que ia praticar Quando Cecília entrou ele perguntoulhe ao ouvido Que queres tu darlhe A menina compreendeu imediatamente a afeição pouco comum que tinham a Peri a gratidão que lhe votavam era uma espécie de segredo entre esses dois corações era uma planta delicada que não queriam expor ao reparo que causaria aos outros amizade tão sincera por um selvagem Ouvindo a pergunta de seu pai Cecília que neste dia tinha sofrido tantas emoções diversas lembrouse do que se tratava Como sempre pretendeis mandálo embora exclamou ela É necessário eu te disse Sim mas pensei que depois houvésseis resolvido o contrário Impossível Que mal faz ele aqui Sabes quanto eu o estimo quando digo que é impossível deves crerme Não vos agasteis Assim não te opões Cecília calouse Se não queres absolutamente não se fará mas tua mãe sofrerá e eu porque lhe prometi Não a vossa palavra antes de tudo meu pai Peri apareceu na porta da sala uma vaga inquietação ressumbrava no seu rosto quando viuse no meio da família reunida A atitude era respeitosa mas o seu porte tinha a altivez inata das organizações superiores seus olhos grandes negros e límpidos percorreram o aposento e fixaramse na fisionomia venerável do cavalheiro Cecília prevendo o que se ia passar tinhase escondido por detrás de seu irmão D Diogo Peri acreditas que D Antônio de Mariz é teu amigo perguntou o fidalgo Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra cor Acreditas que D Antônio de Mariz te estima Sim porque o disse e mostrou Acreditas que D Antônio de Mariz deseja poder pagarte o que fizeste por ele salvando sua filha Se fosse preciso sim Pois bem Peri D Antônio de Mariz teu amigo te pede que voltes à tua tribo O índio estremeceu Por que pedes isto Porque assim é preciso amigo Peri entende estás cansado de darlhe hospitalidade Não Quando Peri te disse que ficava não te pediu nada sua casa é feita de palha em cima de uma pedra as árvores do mato lhe dão o sustento sua roupa foi tecida por sua mãe que veio trazêla na outra lua Peri não te custa nada Cecília chorava D Antônio e seu filho estavam comovidos D Lauriana mesma parecia enternecida Não digas isto Peri Nunca na minha casa te faltaria a menor coisa se tu não recusasses tudo e não quisesses viver isolado na tua cabana Mesmo agora dize o que desejas o que te agrada e é teu Por que então mandas Peri embora D Antônio não sabia o que responder e foi obrigado a procurar um pretexto para explicar ao índio o seu procedimento a idéia da religião que todos os povos compreendem pareceulhe a mais própria Tu sabes que nós os brancos temos um Deus que mora lá em cima a quem amamos respeitamos e obedecemos Sim Esse Deus não quer que viva no meio de nós um homem que não o adora e não o conhece até hoje lhe desobedecemos agora ele manda O Deus de Peri também mandava que ele ficasse com sua mãe na sua tribo junto dos ossos de seu pai e Peri abandonou tudo para seguirte Houve um momento de silêncio D Antônio não sabia o que replicar Peri não te quer aborrecer só espera a ordem da senhora Tu mandas que Peri vá senhora D Lauriana que apenas se tinha falado em religião voltara às suas prevenções contra o índio fez um gesto imperioso à sua filha Sim balbuciou Cecília O índio abaixou a cabeça uma lágrima deslizoulhe pela face O que ele sofria é impossível dizer a palavra não sabe o segredo das tormentas profundas de uma alma forte e vigorosa que pela primeira vez sentese vencida pela dor X DESPEDIDA D Antônio aproximouse de Peri e apertoulhe a mão O que eu te devo Peri não se paga mas sei o que devo a mim mesmo Tu voltas à tua tribo apesar da tua coragem e esforço pode a sorte da guerra não te ser favorável e caíres em poder de algum dos nossos Este papel te salvará a vida e a liberdade aceitao em nome de tua senhora e no meu O fidalgo entregou ao índio o pergaminho que há pouco tinha escrito e voltouse para seu filho Este papel D Diogo assegura a qualquer português de quem Peri possa ser prisioneiro que D Antônio de Mariz e seus herdeiros respondem por ele e pelo seu resgate qualquer que for É mais um legado que vos deixo a cumprir meu filho Ficai certo meu pai replicou o moço que saberei responder a essa divida de honra não só em respeito à vossa memória como em satisfação dos meus próprios sentimentos Toda a minha família aqui presente disse o fidalgo dirigindose ao índio te agradece ainda uma vez o que fizestes por ela reunimonos todos para te desejarmos a boa volta ao seio dos teus irmãos e ao campo onde nasceste Peri fitou o olhar brilhante no rosto de cada uma das pessoas presentes como para dizerlhes o adeus que seus lábios naquela ocasião não podiam exprimir Apenas seus olhos se fitaram em Cecília impelido por uma força invencível atravessou o aposento e foi ajoelharse aos pés de sua senhora A menina tirou do peito uma pequena cruz de ouro presa a uma fita preta e deitoua no pescoço do índio Quando tu souberes o que diz esta cruz volta Peri Não senhora de onde Peri vai ninguém voltou Cecília estremeceu O selvagem ergueuse e caminhou para D Antônio de Mariz que não podia dominar a sua emoção Peri vai partir tu mandas ele obedece antes que o sol deixe a terra Peri deixará tua casa o sol voltará amanhã Peri não voltará nunca Leva a morte no seio porque parte hoje levaria a alegria se partisse no fim da lua Por que razão perguntou D Antônio desde que é necessário que nos separemos tanto deves sentir hoje como daqui a três dias Não replicou o índio tu vais ser atacado amanhã talvez e Peri estaria contigo para defenderte Vou ser atacado exclamou D Antônio pensativo Sim podes contar E por quem Pelo Aimoré E como sabes isto perguntou D Antônio fitando nele um olhar desconfiado O índio hesitou durante um momento estudava a resposta Peri sabe porque viu o pai e o irmão da índia que teu filho matou sem querer olharem tua casa de longe soltarem o grito da vingança e caminharem para sua tribo E tu o que fizeste Peri viuos passar e vem te avisar para que te prepares O fidalgo fez com a cabeça um movimento de incredulidade É preciso não te conhecer Peri para acreditar no que dizes tu não podias olhar com indiferença para os inimigos de tua senhora e meus O índio sorriu tristemente Eram mais fortes Peri deixou que passassem D Antônio começou a refletir parecia evocar as suas reminiscências e combinar certas circunstâncias que tinha impressas na memória Seu olhar abaixandose do rosto de Peri caíra sobre os ombros a princípio vago e distraído como o de um homem que medita começou a fixarse e a distinguir um ponto vermelho quase imperceptível que aparecia no saio de algodão do índio À proporção que a vista se firmava e que o objeto se desenhava mais distinto o semblante do fidalgo se esclarecia como se tivesse achado a solução de um difícil problema Estás ferido exclamou o fidalgo de repente Peri recuou um passo mas D Antônio lançandose para ele entreabriu o talho de sua camisa e tiroulhe as duas pistolas da cinta examinouas e viu que estavam descarregadas O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços e contemplou o índio com admiração profunda Peri disse ele o que fizeste é digno de ti o que fazes agora é de um fidalgo Teu nobre coração pode bater sem envergonharse sobre o coração de um cavalheiro português Tomovos a todos por testemunhas que vistes um dia D Antônio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua raça e de sua religião como a seu igual em nobreza e sentimentos O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço fraternal consagrado pelos estilos da antiga cavalaria da qual já naquele tempo apenas restavam vagas tradições O índio de olhos baixos comovido e confuso parecia um criminoso em face do juiz Vamos Peri disse D Antônio um homem não deve mentir nem mesmo para esconder as suas boas ações Respondeme a verdade Fala Quem disparou dois tiros junto ao rio quando tua senhora estava no banho Foi Peri Quem atirou uma flecha que caiu junto de Cecília Um Aimoré respondeu o índio estremecendo Por que a outra flecha ficou sobre o lugar onde estão os corpos dos selvagens Peri não respondeu É escusado negares tua ferida o diz Para salvar tua senhora te ofereceste aos tiros dos inimigos depois os mataste Tu sabes tudo Peri não é mais preciso volta à sua tribo O índio lançou um último olhar à sua senhora e caminhou para a porta Peri exclamou Cecília fica tua senhora manda Depois correndo para seu pai e sorrindolhe entre as lágrimas disse com um tom suplicante Não é verdade Ele não deve partir mais Vós não podeis mandálo embora depois do que fez por mim Sim A casa onde habita um amigo dedicado como este tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos Ele ficará conosco e para sempre Peri trêmulo e palpitando de alegria e esperança estava suspenso dos lábios de D Antônio Minha mulher disse o fidalgo dirigindose a D Lauriana com uma expressão solene julgais que um homem que acaba de salvar pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida que despedido por nós apesar da nossa ingratidão a sua última palavra é uma dedicação por aqueles que o desconhecem julgais que este homem deva sair da casa onde tantas vezes a desgraça teria entrado se ele ai não estivera D Lauriana tirados os seus prejuízos era uma boa senhora e quando o seu coração se comovia sabia compreender os sentimentos generosos As palavras de seu marido acharam eco em sua alma Não disse ela levantandose e dando alguns passos Peri deve ficar sou eu que vos peço agora esta graça Sr D Antônio de Mariz tenho também a minha dívida a pagar O índio beijou com respeito a mão que a mulher do fidalgo lhe estendera Cecília batia as mãos de contente os dois cavalheiros sorriam um para o outro e compreendiamse O filho sentia um certo orgulho vendo seu pai nobre grande e generoso O pai conhecia que seu filho o aprovava e seguiria o exemplo que lhe dava Neste momento Aires Gomes apareceu no vão da porta e ficou estupefato O que passava era para ele uma coisa incompreensível um enigma indecifrável para quem ignorava o que sucedera anteriormente Pela manhã depois do almoço D Antônio de Mariz chegando a uma janela da sala vira uma grande nuvem negra abaterse sobre a margem do Paquequer A quantidade dos abutres que formavam essa nuvem indicava que o pasto era abundante devia ser um ou muitos animais de grande corpulência Levado pela curiosidade natural em uma existência sempre igual e monótona o fidalgo desceu ao rio encontrou junto da latada de jasmineiros que servia de casa de banho a Cecília uma pequena canoa em que atravessou para a margem oposta Aí descobriu os corpos dos dois selvagens que imediatamente reconheceu pertencerem à raça dos Aimorés viu que tinham sido mortos com arma de fogo Nesse momento não se lembrou de coisa alguma senão de que os selvagens iam talvez atacar a sua casa e um terrível pressentimento cerroulhe o coração D Antônio não era supersticioso mas não pudera eximirse de um receio vago quando soube da morte que D Diogo tinha feito involuntariamente e por falta de prudência fora este o motivo por que se tinha mostrado tão severo com seu filho Vendo agora o começo da realização de suas sinistras previsões aquele receio vago que a princípio sentira redobrou auxiliado pela disposição de espírito em que se achava tornouse em forte pressentimento Uma voz interior parecia dizerlhe que uma grande desgraça pesava sobre sua casa e a existência tranqüila e feliz que até então vivera naquele ermo ia transformarse numa aflição que ele não sabia definir Sob a influência desse movimento involuntário da alma que às vezes sem motivo nos mostra a esperança ou a dor o fidalgo voltou à casa Perto viu dois aventureiros a quem ordenou que fossem imediatamente enterrar os selvagens e guardassem o maior silêncio sobre isto não queria assustar sua mulher O mais já sabemos Pensou que podia a desgraça que ele temia recair sobre sua pessoa e quis dispor a sua última vontade assegurando o sossego de sua família Depois o aviso de Peri lembroulhe de repente o que tinha visto recordouse das menores circunstâncias combinouas com o que Isabel havia contado a sua tia e conheceu o que se tinha passado como se o houvesse presenciado A ferida do índio que se abrira com as emoções por que passou durante o momento cruel em que sua senhora o mandava partir tinha manchado o saio de algodão com um ponto quase imperceptível este ponto foi um raio de luz para D Antônio O escudeiro o digno Aires Comes que depois de esforços inauditos conseguira arrastar com o pé a sua espada levantála e com ela cortar os laços que o prendiam tinha pois razão de ficar pasmado diante do que se passava Peri beijando a mão de D Lauriana Cecília contente e risonha D Antônio de Mariz e D Diogo contemplando o índio com um olhar de gratidão tudo isto ao mesmo tempo era para fazer enlouquecer ao escudeiro Sobretudo para quem souber que apenas livre correra à casa unicamente com o fim de contar o ocorrido e pedir a D Antônio de Mariz licença para esquartejar o índio resolvido se o fidalgo lha negasse a despedirse do seu serviço no qual se conservava havia trinta anos mas tinha uma injúria a vingar e bem que lhe custasse deixar a casa Aires Gomes não hesitava D Antônio vendo a figura espantada do escudeiro riuse sabia que ele não gostava do índio e quis neste dia reconciliar todos com Peri Vem cá meu velho Aires meu companheiro de trinta anos Estou certo que tu a fidelidade em pessoa estimarás apertar a mão de um amigo dedicado de toda a minha família Aires Gomes não ficou pasmado só ficou uma estátua Como desobedecer a D Antônio que lhe falava com tanta amizade Mas como apertar a mão que o havia injuriado Se já se tivesse despedido do serviço seria livre mas a ordem o pilhara de surpresa não podia sofismála Vamos Aires O escudeiro estendeu o braço hirto o índio apertoulhe a mão sorrindo Tu és amigo Peri não te amarrará outra vez Por estas palavras todos adivinharam confusamente o que se tinha passado e ninguém pôde deixar de rirse Maldito bugre murmurava o escudeiro entredentes hás de sempre mostrar o que és Era hora do jantar o toque soou XI TRAVESSURA Na tarde desse mesmo domingo em que tantos acontecimentos se tinham passado Cecília e Isabel saiam do jardim com o braço na cintura uma da outra Estavam vestidas branco lindas ambas mas tinha cada uma diversa beleza Cecília era a graça Isabel era a paixão os olhos azuis de uma brincavam os olhos negros da outra brilhavam O sorriso de Cecília parecia uma gota de mel e perfume que destilavam os seus lábios mimosos o sorriso de Isabel era como um beijo ideal que fugialhe da boca e ia rogar com as suas asas a alma daqueles que a contemplavam Vendo aquela menina loura tão graciosa e gentil o pensamento elevavase naturalmente ao céu despiase do invólucro material e lembravase dos anjinhos de Deus Admirando aquela moça morena lânguida e voluptuosa o espírito apegavase à terra esquecia o anjo pela mulher em vez do paraíso lembravalhe algum retiro encantador onde a vida fosse um breve sonho No momento em que saiam do jardim Cecília olhava sua prima com um certo arzinho malicioso que fazia prever alguma travessura das que costumava praticar Isabel ainda impressionada pela cena da manhã tinha os olhos baixos parecialhe depois do que se havia passado que todos e principalmente Álvaro iam ler o seu segredo guardado por tanto tempo no fundo de sua alma Entretanto sentiase feliz uma esperança vaga e indefinida dilatavalhe o coração e dava à sua fisionomia a expressão de júbilo expansão da criatura quando acredita ser amada auréola brilhante que bem se podia chamar a alma do amor O que esperava ela Não sabia mas o ar lhe parecia mais perfumado a luz mais brilhante o olhar via os objetos corderosa e o leve roçar da espiguilha do vestido no seu colo aveludado causavalhe sensações voluptuosas Cecília com o misterioso instinto da mulher adivinhava sem compreender que alguma coisa de extraordinário se passava em sua prima e admirava a irradiação de beleza que brilhava no seu moreno semblante Como estás bonita disse a menina de repente E conchegando a face de Isabel aos lábios imprimiu nela um beijo suave a moça respondeu afetuosamente à carícia de sua prima Não trouxeste o teu bracelete exclamou ela reparando no braço de Cecília É verdade replicou a menina com um gesto de enfado Isabel julgou que este gesto era produzido pelo esquecimento mas a verdadeira causa foi o receio que teve Cecília de se trair Vamos buscálo Oh não ficaria tarde e perderíamos o nosso passeio Então devo tirar o meu já não estamos irmãs Não importa quando voltarmos prometote que ficaremos bem irmãs Dizendo isto Cecília sorria maliciosamente Tinham chegado à frente da casa D Lauriana conversava com seu filho D Diogo enquanto D Antônio de Mariz e Álvaro passeavam pela esplanada conversando Cecília se dirigiu ao pai levando Isabel que ao aproximarse do jovem cavalheiro sentiu fugirlhe a vida Meu pai disse a menina nós queremos dar um passeio A tarde está tão linda Se eu vos pedisse e ao Sr Álvaro para que nos acompanhassem Nós faríamos como sempre que tu pedes respondeu o fidalgo galanteando cumpriríamos a tua ordem Oh ordem não meu pai Desejo apenas E o que são os desejos de um lindo anjinho como tu Assim nos acompanhais Decerto E vós Sr Álvaro Eu obedeço Cecília falando ao moço não pôde deixar de corar mas venceu a perturbação e seguiu com sua prima para a escada que descia ao vale Álvaro estava triste depois da conversa que tivera com Cecília viraa durante o jantar a menina evitava os seus olhares e nem uma só vez lhe dirigira a palavra O moço supunha que tudo isto era resultado de sua imprudência da véspera mas Cecília mostravase tão alegre e satisfeita que parecia impossível ter conservado a lembrança da ofensa de que ele se acusava A maneira por que a menina o tratava tinha mais de indiferença do que de ressentimento dirseia que esquecera tudo que havia passado nem guardava já a mínima lembrança da manhã Era isto o que tornara Álvaro triste apesar da felicidade que sentira quando D Antônio o chamara seu filho felicidade que às vezes parecialhe um sonho encantador que ia esvaecerse As duas moças haviam chegado ao vale e seguiam por entre as moitas de arvoredo que bordavam o campo formando um gracioso labirinto Às vezes Cecília desprendiase do braço de sua prima e correndo pela vereda sinuosa que recortava as moitas de arbustos escondiase por detrás da folhagem e fazia com que Isabel a procurasse debalde por algum tempo Quando sua prima por fim conseguia descobrila riamse ambas abraçavamse e continuavam o inocente folguedo Uma ocasião porém Cecília deixou que D Antônio e Álvaro se aproximassem a menina tinha um olhar tão travesso e um sorriso tão brejeiro que Isabel ficou inquieta Esquecime dizervos uma coisa meu pai Sim E o que é Um segredo Pois vem contarmo Cecília separouse de Isabel chegandose para o fidalgo tomoulhe o braço Tende paciência por um instante Sr Álvaro disse ela voltandose conversai com Isabel dizeilhe vossa opinião sobre aquele lindo bracelete Ainda não o vistes E sorrindo afastouse ligeiramente com seu pai o segredo que ela tinha era a travessura que acabava de praticar deixando Álvaro e Isabel sós depois de lhes ter lançado uma palavra que devia produzir o seu efeito A emoção que sentiram os dois moços ouvindo o que dissera Cecília é impossível de descrever Isabel suspeitou o que se tinha passado conheceu que Cecília a enganara para obrigála a aceitar o presente de Álvaro o olhar que sua prima lhe lançara afastandose com seu pai lho tinha revelado Quanto a Álvaro não compreendia coisa alguma senão que Cecília tinhalhe dado a maior prova de seu desprezo e indiferença mas não podia adivinhar a razão por que ela associara Isabel a esse ato que devia ser um segredo entre ambos Ficando sós em face um do outro não ousavam levantar os olhos a vista de Álvaro estava cravada no bracelete Isabel trêmula sentia o olhar do moço e sofria como se um anel de ferro cingisse o seu braço mimoso Assim estiveram tempo esquecido por fim Álvaro desejoso de ter uma explicação animouse a romper o silêncio Que significa tudo isto D Isabel perguntou ele suplicante Não sei Fui escarnecida respondeu Isabel balbuciando Como Cecília fezme acreditar que este bracelete vinha de seu pai para me fazer aceitálo pois se eu soubesse Que vinha de minha mão Não aceitaríeis Nunca exclamou a moça com fogo Álvaro admirouse do tom com que Isabel proferiu aquela palavra parecia dar um juramento Qual o motivo perguntou depois de um momento A moça fitou nele os seus grandes olhos negros havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo que se Álvaro o compreendesse teria a resposta à sua pergunta Mas o cavalheiro não compreendeu nem o olhar nem o silêncio de Isabel adivinhava que havia nisto um mistério e desejava esclarecêlo Aproximouse da moça e disselhe com a vez doce e triste Perdoaime D Isabel sei que vou cometer uma indiscrição mas o que se passa exige uma explicação entre nós Dizeis que fostes escarnecida também eu o fui Não achais que o melhor meio de acabar com isso seja o falarmos francamente um ao outro Isabel estremeceu Falai eu vos escuto Sr Álvaro Escuso confessarvos o que já adivinhastes sabeis a historia deste bracelete não é verdade Sim balbuciou a moça Dizeime pois como ele passou do lugar onde estava ao vosso braço Não penseis que vos censuro por isso não desejo apenas conhecer até que ponto zombam de mim Já vos confessei o que sabia Cecília enganoume E a razão que teve ela para enganarvos não atinais Oh se atino exclamou Isabel reprimindo as palpitações do coração Dizeima então Eu volo peço e suplico Álvaro tinha deitado um joelho em terra e tomando a mão da moça implorava dela a palavra que devia explicarlhe o ato de Cecília e revelarlhe a razão que tivera a menina para rejeitar a prenda que ele havia dado Conhecendo esta razão talvez pudesse desculparse talvez pudesse merecer o perdão da menina e por isso pedia com instância a Isabel que lhe declarasse o motivo por que Cecília a havia enganado A moça vendo Álvaro a seus pés suplicante tinhase tornado lívida seu coração batia com tanta violência que viase o peito de seu vestido elevarse com as palpitações fortes e apressadas o seu olhar ardente caia sobre o moço e o fascinava Falai dizia Álvaro falai Sois boa e não me deixeis sofrer assim quando uma palavra vossa pode darme a calma e o sossego E se essa palavra vos fizesse odiarme balbuciou a moça Não tenhais esse receio qualquer que seja a desgraça que me anunciardes será bemvinda pelos vossos lábios é sempre um consolo receberse a má nova da voz amiga Isabel ia falar mas parou estremecendo Ah não posso seria preciso confessarvos tudo E por que não confessais Não vos mereço confiança Tendes em mim um amigo Se fôsseis E os olhos de Isabel cintilaram Acabai Se me fôsseis amigo me havíeis de perdoar Perdoarvos D Isabel Que me fizeste vós para que vos eu perdoe disse Álvaro admirado A moca teve medo do que havia dito cobriu o rosto com as mãos Todo este diálogo vivo animado cheio de reticências e hesitações da parte de Isabel tinha excitado a curiosidade do cavalheiro seu espírito perdiase num dédalo de dúvidas e incertezas Cada vez o mistério se obscurecia mais a princípio Isabel dizia que tinham escarnecido dela agora dava a entender que era culpada o cavalheiro resolveu a todo transe penetrar o que para ele era um enigma D Isabel A moça tirou as mãos do rosto tinha as faces inundadas de lágrimas Por que chorais perguntou Álvaro surpreso Não mo pergunteis Escondeisme tudo Deixaisme na mesma dúvida O que me fizestes vós Dizei Quereis saber perguntou a moça com exaltação Tanto tempo há que suplicovos Álvaro tomara as duas mãos da moça e com os olhos fitos nos dela esperava enfim uma resposta Isabel estava branca como a cambraia do seu vestido sentia a pressão das mãos do moço nas suas e o seu hálito que vinha bafejarlhe as faces Me perdoareis Sim Mas por quê Porque Isabel pronunciou esta palavra numa espécie de delírio uma revolução súbita se tinha operado em toda a sua organização O amor profundo veemente que dormia no intimo de sua alma a paixão abafada e reprimida por tanto tempo acordara e quebrando as cadeias que a retinham erguiase impetuosa e indomável O simples contato das mãos do moço tinha causado essa revolução a menina tímida ia transformarse na mulher apaixonada o amor ia transbordar do coração como a torrente caudalosa do leito profundo As faces se abrasaram o seio dilatouse o olhar envolveu o moço ajoelhado a seus pés em fluidos luminosos a boca entreaberta parecia esperar para pronunciála a palavra que sua alma devia trazer aos lábios Álvaro fascinado a admirava nunca a vira tão bela o moreno suave do rosto e do colo da moça iluminavase de reflexos doces e tinha ondulações tão suaves que o pensamento ia sem querer enlearse nas curvas graciosas como para sentirlhe o contato espreguiçarse pelas formas palpitantes Tudo isto passara rapidamente enquanto Isabel hesitava ao preferir a primeira palavra Por fim vacilou reclinando sobre o ombro de Álvaro como uma flor desfalecida sobre a haste murmurou Porque vos amo XII PELO AR Álvaro ergueuse como se os lábios da moça tivessem lançado nas suas veias uma gota do veneno sutil dos selvagens que matava com um átomo Pálido atônito fitava na menina um olhar frio e severo seu coração leal exagerava a afeição pura que votava a Cecília a tal ponto que o amor de Isabel lhe parecia quase uma injúria era ao menos uma profanação A moça com as lágrimas nos olhos sorria amargamente o movimento rápido de Álvaro tinha trocado as posições agora era ela que estava ajoelhada aos pés do cavalheiro Sofria horrivelmente mas a paixão a dominava o silêncio de tanto tempo queimavalhe os lábios seu amor precisava respirar expandirse embora depois o desprezo e mesmo o ódio o viessem recalcar no coração Prometestes perdoarme disse ela suplicante Não tenho que perdoarvos D Isabel respondeu o moço erguendoa peçovos unicamente que não falemos mais de semelhante coisa Pois bem Escutaime um momento um instante só e jurovos por minha mãe que não ouvireis nunca mais uma palavra minha Se quereis nem mesmo vos olharei Não preciso olhar para vervos E acompanhou estas palavras com um gesto sublime de resignação Que desejais de mim perguntou o moço Desejo que sejais meu juiz Condenaime depois a pena vindo de vos será para mim um consolo Mo negareis Álvaro sentiuse comovido por essas palavras soltas com o grito de um desespero surdo e concentrado Não cometestes um crime nem precisais de juiz mas se quereis um irmão para consolarvos tendes em mim um dedicado e sincero Um irmão exclamou a moça Seria ao menos uma afeição E uma afeição calma e serena que vale bem outras D Isabel A moca não respondeu sentiu a doce exprobração que havia naquelas palavras mas sentia também o amor ardente que enchia sua alma e a sufocava Álvaro tinhase lembrado da recomendação de D Antônio de Mariz o que a princípio fora uma simples compaixão tornouse simpatia Isabel era desgraçada desde a infância devia pois consolála e desde já cumprir a última vontade do velho fidalgo a quem amava e respeitava como pai Não recuseis o que vos peço disse ele afetuosamente aceitaime por vosso irmão Assim deve ser respondeu Isabel tristemente Cecília me chama sua irmã vós deveis ser meu irmão Aceito Sereis bom para mim Sim D Isabel Um irmão não deve tratar sua irmã pelo seu nome simplesmente perguntou ela com timidez Álvaro hesitou Sim Isabel A moça recebeu essa palavra como um gozo supremo parecialhe que os lábios do cavalheiro pronunciando assim familiarmente o seu nome a acariciavam Obrigada Não sabeis que bem me faz ouvirvos chamarme assim É preciso ter sofrido muito para que a felicidade esteja em tão pouco Contaime as vossas mágoas Não deixaias comigo talvez depois as conte agora só quero mostrarvos que não sou tão culpada como pensais Culpada Em quê Em querervos disse Isabel corando Álvaro tornouse frio e reservado Sei que vos incomodo mas é a primeira e a última vez ouvime depois ralhareis comigo como um irmão com sua irmã A voz de Isabel era tão doce seu olhar tão suplicante que Álvaro não pôde resistir Falai minha irmã Sabeis o que eu sou uma pobre órfã que perdeu sua mãe muito cedo e não conheceu seu pai Tenho vivido da compaixão alheia não me queixo mas sofro Filha de duas raças inimigas devia amar a ambas entretanto minha mãe desgraçada fezme odiar a uma o desdém com que me tratam fezme desprezar a outra Pobre moça murmurou Álvaro lembrandose segunda vez das palavras de D Antônio de Mariz Assim isolada no meio de todos alimentando apenas o sentimento amargo que minha mãe deixara no meu coração sentia a necessidade de amar alguma coisa Não se pode viver somente de ódio e desprezo Tendes razão Isabel Inda bem que me aprovais Precisava amar precisava de uma afeição que me prendesse à vida Não sei como não sei quando comecei a amarvos mas em silêncio no fundo de minha alma A moça embebeu um olhar nos olhos de Álvaro Isto me bastava Quando vos tinha olhado horas e horas sem que o percebêsseis julgavame feliz recolhiame com a minha doce imagem e conversava com ela ou adormecia sonhando bem lindos sonhos O cavalheiro sentiase perturbado mas não ousava interromper a Isabel Não sabeis que segredos tem esse amor que vive só de suas ilusões sem que um olhar uma palavra o alimente A mais pequenina coisa é um prazer uma ventura suprema Quantas vezes não acompanhava o raio de lua que entrava pela minha janela e que vinha a pouco e pouco se aproximando de mim julgava ver naquela doce claridade o vosso semblante e esperava trêmula de prazer como se vos esperasse Quando o raio se chegava quando a sua luz acetinada cala sobre mim sentia um gozo imenso acreditava que me sorríeis que vossas mãos apertavam as minhas que vosso rosto se reclinava para mim e vossos lábios me falavam Isabel pendeu a cabeça lânguida sobre o ombro de Álvaro o cavalheiro palpitando de emoção passou o braço pela cintura da moça e apertoua ao coração mas de repente afastouse com um movimento brusco Não vos arreceeis de mim disse ela com melancolia sei que não me deveis amar Sois nobre e generoso o vosso primeiro amor será o último Podeisme ouvir sem temor Que vos resta dizerme ainda perguntou Álvaro Resta a explicação que há pouco me pedíeis Ah enfim Isabel contou então como apesar de toda a força de vontade com que guardava o seu segredo se havia traído contou a conversa de Cecília e o modo por que a menina lhe fizera aceitar o bracelete Agora sabeis tudo o meu afeto vai de novo entrar no meu coração donde nunca sairia se não fosse a fatalidade que fez com que vos aproximásseis de mim e me dirigisse algumas palavras doces A esperança para as almas que não a conheceram ainda ilude tanto e fascina que devo merecervos desculpa Esqueceime meu irmão antes que lembrarvos de mim para odiarme Fazeime uma injustiça Isabel não posso é verdade ser para vós senão um irmão mas esse titulo sinto que o mereço pela estima e pela afeição que me inspirais Adeus minha boa irmã O moço pronunciou estas últimas palavras com uma terna efusão e apertando a mão de Isabel desapareceu precisava estar só para refletir sobre o que lhe acontecia Estava agora convencido que Cecília não o amava e nunca o havia amado e esta descoberta tinha lugar no mesmo dia em que D Antônio de Mariz lhe dava a mão de sua filha Sob o peso da mágoa dolorosa como é sempre a primeira mágoa do coração o cavalheiro afastouse distraído com a cabeça baixa caminhou sem direção seguindo a linha que lhe traçavam os grupos de árvores destacados aqui e ali sobre a campina Estava quase a anoitecer a sombra pálida e descorada do crepúsculo estendiase como um manto de gaza sobre a natureza os objetos iam perdendo a forma a cor e ondulavam no espaço vagos e indecisos A primeira estrela engolfada no azul do céu luzia a furto como os olhos de uma menina que se abrem ao acordar e cerramse outra vez temendo a claridade do dia um grilo escondido no toco de uma árvore começava a sua canção era o trovador inseto saudando a aproximação da noite Álvaro continuava o seu passeio sempre pensativo quando de repente sentiu um sopro vivo bafejarlhe o rosto erguendo os olhos viu diante de si uma longa flecha fincada no chão e que ainda oscilava com o movimento que lhe tinha imprimido o arco O moço recuou um passo e levou a mão à cinta logo refletindo aproximouse da seta e examinou a plumagem de que estava ornada eram de um lado penas de azulão e do outro penas de garça Azul e branco eram as cores de Peri eram as cores dos olhos e do rosto de Cecília Um dia a menina semelhante a uma gentil castelã da idade Média tinha se divertido em explicar ao índio como os guerreiros que serviam uma dama costumavam usar nas armas de suas cores Tu dás a Peri as tuas cores senhora disse o índio Não tenho respondeu a menina mas vou tomar umas para te dar queres Peri te pede Quais achas mais bonitas A de teu rosto e a de teus olhos Cecília sorriu Tomaas eu tas dou Desde este dia Peri enramou todas as suas setas de penas azuis e brancas seus ornatos além de uma faixa de plumas escarlates que fora tecida por sua mãe eram ordinariamente das mesmas cores Foi por esta razão que Álvaro vendo a plumagem da seta tranqüilizouse conheceu que era de Peri e compreendeu o sentido da frase simbólica que o índio lhe mandava pelos ares Com efeito aquela flecha na linguagem de Peri não era mais do que um aviso dado em silêncio e de uma grande distancia uma carta ou mensageira muda uma simples interjeição Alto O moço esqueceu os seus pensamentos e lembrouse do que Peri lhe havia dito pela manhã naturalmente o que acabava de fazer tinha relação com esse mistério que apenas deixara entrever Correu os olhos pelo espaço que se estendia diante dele e sondou com o olhar as moitas que o cercavam não viu nada que merecesse atenção não percebeu um sinal que lhe indicasse a presença do índio Álvaro resolveu pois esperar e parando junto da flecha cruzou os braços e com os olhos fitos na linha escura da mata que se recortava no fundo azul do horizonte esperou Um instante depois uma pequena seta açoitando o ar veio cravarse no tope da primeira e abaloua com tal força que a haste inclinouse Álvaro compreendeu que o índio queria arrancar a flecha e obedeceu à ordem Imediatamente terceira seta caiu dois passos à direita do cavalheiro e outras foramse sucedendo na mesma direção de duas em duas braças até que uma mergulhouse num arvoredo basto que ficava a trinta passos do lugar onde parara a princípio Não era difícil desta vez compreender a vontade de Peri Álvaro que acompanhava as setas a proporção que caiam e que sabia indicarem elas o lugar onde devia parar apenas viu a última sumirse no arvoredo escondeuse por entre a folhagem Daí com pequeno intervalo viu três vultos que passavam pouco mais ou menos pelo lagar que há pouco havia deixado Álvaro não os pôde conhecer por causa da ramagem das árvores mas viu que caminhavam cautelosamente e pareceulhe que tinham as pistolas em punho Os vultos afastaramse dirigindose à casa o cavalheiro ia seguilos quando as folhas se abriram e Peri resvalando como uma sombra sem fazer o menor rumor aproximouse dele e disselhe ao ouvido uma palavra São eles Eles quem Os inimigos brancos Não te entendo Espera Peri volta E o índio despareceu de novo nas sombras da noite que avançava rapidamente XIII TRAMA Tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companheiros O italiano depois que Álvaro e Peri se afastaram levantouse passada a primeira emoção sentira um acesso de raiva e desespero por lhe escaparem os seus inimigos Um instante lembrouse de chamar os cúmplices para atacar o cavalheiro e o índio mas essa idéia desvaneceuse logo o aventureiro conhecia os homens que o seguiam sabia que podia fazer deles assassinos mas nunca homens de energia e resolução Ora os dois inimigos que tinha a combater eram respeitáveis e Loredano temeu comprometer ainda mais a sua causa já muito mal parada Devorou pois em silêncio a sua raiva e começou a refletir nos meios de sair da posição difícil em que se achava Neste meio tempo Rui Soeiro e Bento Simões vinhamse aproximando receosos do que tinham visto e temendo o menor incidente que complicasse a situação Loredano e seus companheiros olharamse em silêncio um momento havia nos olhos destes últimos uma interrogação muda e inquieta a que respondia perfeitamente o rosto pálido e contraído do italiano Não era ele murmurou o aventureiro com a voz surda Como sabeis Se fosse acreditais que me deixasse a vida É verdade mas quem foi então Não sei porém agora pouco importa Quem quer que fosse é um homem que sabe o nosso segredo e pode denunciálo se já não o fez Um homem murmurou Bento Simões que até então se conservava silencioso Sim um homem Quereis que fosse uma sombra Uma sombra não mas um espírito acudiu o aventureiro O italiano sorriu de escárnio Os espíritos têm mais que fazer para se ocuparem com o que vai por este mundo guardai as vossas abusões e pensemos seriamente no partido que devemos tomar Lá quanto a isso Loredano é escusado ninguém me tira que anda em tudo isto uma coisa sobrenatural Quereis calarvos estúpido carola replicou o italiano com impaciência Estúpido Estúpido sois vós que não vistes que não há ouvido de criatura que pudesse ouvir as nossas palavras nem voz humana que saia da terra Vinde E vou mostrarvos se o que digo é ou não é verdade Os dois acompanharam Bento Simões e voltaram à touça de cardos onde tivera lugar a sua entrevista Ide Rui e falai à goela despregada para ver se Loredano ouve uma palavra sequer Com efeito a experiência mostroulhes o que Peri tinha conhecido que o som da voz entaipado dentro daquela espécie de tubo se elevava e perdia no ar sem que dos lados se pudesse perceber a menor frase Se porém o italiano se tivesse colocado sobre o formigueiro que penetrava até ao chão onde há pouco estavam sentados teria tido a explicação da cena anterior Agora disse Bento Simões entrai eu gritarei e vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sairá da terra Quanto a isso pouco se me dá respondeu o italiano A outra observação sim tranqüilizame O homem que nos ameaçou não ouviu desconfia apenas Ainda insistis em que fosse um homem Escutai amigo Bento Simões há uma coisa de que tenho mais medo do que de uma cobra é de um homem visionário Visionário dizei crente Um vale outro Visionário ou crente se me falais outra vez em espíritos e milagres prometovos que ficareis neste lugar onde servireis de carniça aos urubus O aventureiro tornouse esverdinhado não era a idéia da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa sofrem as almas cujos corpos ficam insepultos o que mais o horrorizava Pensastes Sim Admitis que fosse um homem Admito tudo Jurais Juro Sobre Sobre a minha salvação O italiano soltou o braço do miserável que caiu de joelhos pedindo ao Deus que ofendia perdão para o perjúrio que acabava de cometer Rui Soeiro voltou os três seguiram calados o caminho que tinham feito Loredano pensativo seus companheiros cabisbaixos Sentaramse à sombra de uma árvore ai permaneceram quase uma hora sem saber o que deviam fazer nem o que podiam esperar A posição era critica reconheciam que se achavam num desses lances da vida em que um passo um movimento precipita o homem no fundo do abismo ou o salva da morte que vai cair sobre ele Loredano media a situação com a audácia e energia que nunca o abandonava nas ocasiões extremas uma lata violenta se travara neste homem só tinha agora um sentimento uma fibra era a sede ardente do gozo sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do deserto Comprimida desde a infância a sua organização se expandira com veemência no meio deste pais vigoroso aos raios do sol ardente que fazia borbulhar o sangue Então no delírio dos instintos materiais surgiram duas paixões violentas Uma era a paixão do ouro a esperança de poder um dia deleitarse na contemplação do tesouro fabuloso que como Tântalo ele ia tocar e fugialhe A outra era paixão do amor a febre que lhe requeimava o sangue quando via aquela menina inocente e cândida que parecia não dever inspirar senão afeições castas A lata que naquele momento o agitava davase entre essas duas paixões Devia fugir e salvar o seu tesouro perdendo Cecília Devia ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene As vezes dizia consigo que bastavalhe a riqueza para poder escolher no mundo uma mulher que amasse outras parecialhe que o universo inteiro sem Cecília ficaria deserto e inútil lhe seria todo o ouro que ia conquistar Por fim ergueu a cabeça Seus companheiros esperavam uma palavra sua como o oráculo do seu destino prepararamse para ouvilo Só há duas coisas a fazer ou entrarmos na casa ou fugirmos daqui mesmo é preciso resolver Que pensais vós Eu penso disse Bento Simões trêmulo ainda que devemos fugir quanto antes e andar dia e noite sem parar E vós Rui sois do mesmo aviso Não fugir é nos denunciar e perder Três homens sós neste sertão obrigados a evitar o povoado não podem viver temos inimigos por toda a parte Que propondes então Que entremos em casa como se nada tivesse passado ou estamos descobertos e neste caso ainda faltam as provas para nos condenarem ou ignoram tudo e não corremos o menor risco Tendes razão disse o italiano devemos voltar nessa casa está a nossa fortuna ou a nossa ruína Achamonos numa posição em que devemos ganhar tudo ou perder tudo Houve longa pausa durante que o italiano refletia Com quantos homens contais Rui perguntou ele Com oito E vós Bento Sete Decididos Prontos ao menor sinal Bem disse o italiano com o desempeno de um chefe dispondo o plano da batalha trazei cada um os vossos homens amanhã a esta hora é preciso que à noite tudo esteja concluído E agora o que vamos fazer perguntou Bento Simões Vamos esperar que escureça à boca da noite nos achegaremos da casa Um de nós à sorte entrará primeiro se nada houver dará sinal aos outros Assim quando um se perca dois ao menos terão ainda esperança de salvarse Os aventureiros resolveram passar o dia no mato uma caça algumas frutas silvestres deramlhes simples mas abundante refeição Por volta de cinco horas da tarde se encaminharam à casa a fim de sondarem o que passava e realizarem o seu projeto Antes de partirem Loredano carregou a clavina mandou seus companheiros carregar as suas e disselhes Assentai bem nisto Na posição difícil em que estamos quem não é nosso amigo é nosso inimigo Pode ser um espião um denunciante em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós Os dois compreenderam a justeza dessa observação e seguiram com as armas engatilhadas olho vivo e ouvido alerta Apesar porém da sua atenção não viram agitarse as folhas a dois passos deles e estenderse pelos arbustos uma ondulação que parecia produzida pela correnteza do vento Era Peri havia um quarto de hora que ele acompanhava os aventureiros como a sua sombra o índio deixando D Antônio dera pela sua ausência e conjeturando que eles tramavam alguma coisa lançouse em sua procura O italiano e seus companheiros caminhavam já havia pedaço quando Bento Simões parou Quem entrará primeiro A sorte decidirá respondeu Rui Como Desta maneira disse o italiano Vedes aquela árvore O que primeiro chegar a ela será o último a entrar o último será o primeiro Está dito Os três meteram as armas à cinta e prepararamse para a corrida Peri ouvindoos teve uma inspiração os aventureiros iam separarse como Loredano ele também disse consigo O último será o primeiro E tomando três flechas esticou a corda do arco mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros Os três partiram mas não tinham feito uma braça de caminho quando Bento Simões tropeçando foi de encontro a Loredano e estendeuse no chão ao fio comprido do lombo Loredano soltou uma blasfêmia Bento gritou misericórdia Rui que já ia adiante voltou julgando que alguma coisa sucedia O plano de Peri tinha gorado Sabeis disse Loredano que no páreo perde aquele que se deixou cair Sereis o primeiro amigo Bento O aventureiro não tugiu Peri não perdera a esperança de lhe deparar a fortuna outra ocasião favorável para realizar o seu projeto seguiuos Foi então que de longe por baixo das árvores avistou Álvaro na mesma direção em que iam os aventureiros despedindo uma seta por elevação dera ao cavalheiro o primeiro sinal e os outros que o fizeram afastarse Deixando Álvaro a intenção do índio era atalhar os aventureiros esperálos junto à cerca e quando eles se separassem para entrar um a um matálos Mas uma fatalidade parecia perseguir o índio e proteger seus inimigos Quando Bento Simões destacandose dos companheiros entrou a cerca Peri ouviu naquela direção a voz de Cecília que voltava do passeio com seu pai e sua prima A mão do índio que nunca tremera no meio do combate caiu inerte escapoulhe o arco só com a idéia de que a seta que ia atirar pudesse assustar a menina quanto mais ofendêla Bento Simões passou incólume XIV A XÁCARA Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade O índio refletiu alguns momentos e tomou uma resolução definitiva modificou inteiramente o seu plano A princípio decidira não atacar os três inimigos de frente não porque os temesse mas sim porque receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto cujo segredo só ele sabia Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer a este expediente o tempo corria de um momento para outro podia o italiano executar a sua trama O que precisava era achar um meio para no caso de sucumbir prevenir a D Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava este meio havia já acudido ao pensamento do índio Foi ter com Álvaro que o esperava O moço já o tinha esquecido pensava em Cecília na sua afeição quebrada na sua mais doce esperança marcha e talvez perdida para sempre Às vezes também apresentavase ao seu espírito a imagem melancólica de Isabel lembravase que ela também amava e não era amada Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca ambos sofriam pela mesma causa ambos sentiam o mesmo pesar e curtiam igual desengano Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel amava sem querer repassava na memória as ternas palavras revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor Parecialhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça a pressão da cabeça desfalecida em seu ombro o contato das mãos trêmulas e o eco das queixas murmuradas pela voz maviosa O coração lhe palpitava com violência esqueciase revendo a bela imagem de um moreno suave a que o amor dava reflexos e uma auréola esplêndida Mas de repente estremecia como se a moça ainda estivesse perto dele passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências que o incomodavam e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas esperanças Quando Peri se aproximou Álvaro estava num dos momentos de tédio e desapego da vida que sucedem às dores profundas Dizeme Peri Falaste de inimigos Sim respondeu o índio Quero conhecêlos Para quê Para atacálos Mas são três Melhor O índio hesitou Não Peri quer combater só os inimigos de sua senhora se ele morrer tu saberás tudo acaba então o que Peri tiver começado Para que este mistério Não podes dizer já quem são esses inimigos Peri pode mas não quer dizer Por quê Porque tu és bom e pensas que os outros também são tu defenderás os maus Oh que não Fala Ouve Se Peri não aparecer amanhã tu não tornarás a vêlo mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles Como Tu verás São três querem ofender a senhora matar seu pai a ti a todos da casa Têm outros que os seguem Uma revolta exclamou Álvaro O primeiro deles quer fugir e levar Ceci que tu amas mas Peri não deixará É impossível disse o moço surpreendido Peri te diz a verdade Não creio Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D Antônio não podia acreditar no horrível atentado sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros nunca durante dez anos que o moço o acompanhava se tinha dado na banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe havia faltas de disciplina rixas entres os companheiros tentativas de deserção mas não passava disto O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se passava e por isso se obstinava em guardar parte do segredo receando que o moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros Tu duvidas de Peri Quem faz uma acusação tal precisa provála Tu és um amigo Peri mas os outros também o são e têm o direito de se defenderem Quando um homem vai morrer tu julgas que ele mente perguntou o índio com firmeza Que queres dizer com isso Peri vai vingar sua senhora vai se separar de tudo quanto ama se ele perder a vida dirás ainda que se engana Álvaro foi abalado pelas palavras do índio Melhor é que fales a D Antônio de Mariz Não ele e tu servem para combater homens que atacam pela frente Peri sabe caçar o tigre na floresta e esmagar a cobra que vai lançar o bote Mas então o que queres de mim Que se Peri morrer acredites no que ele te diz e faças o que ele fez que salves a senhora Assassinar Nunca Peri nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas Tu não amas Ceci Álvaro estremeceu Se tu a amasses matarias teu irmão para livrála de um perigo Peri talvez não compreendas o que vou dizerte Daria a minha vida sem hesitar por Cecília mas a minha honra pertence a Deus e à memória de meu pai Os dois homens olharamse um momento em silêncio ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste Em Álvaro a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável que ele havia traçado e era a linha do dever Em Peri a dedicação sobrepujava tudo viver para sua senhora criar em torno dela uma espécie de providência humana era a sua vida sacrificaria o mundo se possível fosse contanto que pudesse como o Noé dos índios salvar uma palmeira onde abrigar Cecília Entretanto essas duas naturezas uma filha da civilização a outra filha da liberdade selvagem embora separadas por distancia imensa compreendiamse a sorte lhes traçara um caminho diferente mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes sentimentos Peri conheceu que Álvaro não cederia Álvaro sabia que Peri apesar de sua recusa cumpriria exatamente o que tinha resolvido O índio a princípio parecia impressionado pela obstinação do cavalheiro porém ergueu a cabeça com um gesto altivo e batendo com a mão no peito largo e vitorioso disse em tom de energia Peri só defenderá sua senhora não precisa de ninguém É forte tem como a andorinha as asas de suas flechas como a cascavel o veneno das setas como o tigre a força do seu braço como a ema a velocidade de sua carreira Só pode morrer uma vez mas uma vida lhe basta Pois bem amigo respondeu o cavalheiro com nobreza vais realizar o teu sacrifício eu cumprirei o meu dever Tenho uma vida também e a minha espada Farei de uma a sombra de Cecília com a outra traçarei em torno dela um circulo de ferro Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo acharão o meu antes de chegarem à tua senhora Tu és grande podias ter nascido no deserto e ser o rei das florestas Peri te chamaria irmão Apertaram as mãos e dirigiramse a casa em caminho Álvaro lembrouse que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de defender Cecília perguntou seus nomes Peri recusou formalmente e prometeu que o cavalheiro saberia quando fosse tempo O índio tinha a sua idéia Chegando à casa os dois separaramse Álvaro ganhou o aposento que ocupava Peri encaminhouse para o jardim de Cecília Eram então oito horas da noite toda a família se achava reunida na ceia o quarto da menina estava às escuras Peri examinou os arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego e sentouse num banco do jardim Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto e a porta abrindose deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido A menina avistando o índio correu para ele Meu pobre Peri disse ela tu sofreste hoje muito não é verdade E achaste tua senhora bem má e bem ingrata porque te mandou partir Mas agora meu pai disse Ficarás conosco para sempre Tu és boa senhora tu choravas quando Peri ia partir pediste para ele ficar Então não tens queixa de Ceci disse a menina sorrindo O escravo pode ter queixa de sua senhora tornou o índio simplesmente Mas tu não és escravo respondeu Cecília com um gesto de contrariedade tu és um amigo sincero e dedicado Duas vezes me salvaste a vida fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita todos os dias te arriscas a morrer por minha causa O índio sorriu Que queres que Peri faça de sua vida senhora Quero que estime sua senhora e lhe obedeça e aprenda o que ela lhe ensinar para ser um cavalheiro como meu irmão D Diogo e o Sr Álvaro Peri abanou a cabeça Olha continuou a menina Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu e a rezar também e ler bonitas historias Quando souberes tudo isto ela bordará um manto de seda para ti terá uma espada e uma cruz no peito Sim A planta precisa de sol para crescer a flor precisa de água para abrir Peri precisa de liberdade para viver Mas tu serás livres e nobre como meu pai Não O pássaro que voa nos ares cai se lhe quebram as asas o peixe que nada no rio morre se o deitam em terra Peri será como o pássaro e como o peixe se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência Não te zanga senhora Não fazes o que Ceci pede Pois Ceci não te quer mais bem nem te chamará mais seu amigo Vê já não guardo a flor que me deste E a linda menina machucando a flor que arrancou dos cabelos correu para o seu quarto e bateu a porta com violência O índio voltou pesaroso à sua cabana De repente cortou o silêncio da noite voz argentina que cantava uma antiga xácara portuguesa com sentimento e expressão arrebatadora Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música A xácara dizia assim Foi um dia Infanção mouro Deixou Alcáçar de prata e ouro Montado no seu corcel Partiu Sem pajem sem anadel Do castelo à barbacã Chegou Viu formosa castelã Aos pés daquela a quem ama Jurou Ser fiel à sua dama A gentil dona e senhora Sorriu Ai que isenta ela não fora Tu és mouro eu sou cristã Falou A formosa castelã Mouro tens o meu amor Cristão Serás meu nobre senhor Sua voz era um encanto O olhar Quebrado pedia tanto Antes de verte senhora Fui rei Serei teu escravo agora Por ti deixo meu alcáçar Fiel Meus paços douro e de nácar Por ti deixo o paraíso Meu céu É teu mimoso sorriso A dona em um doce enleio Tirou Seu lindo colar do seio As duas almas cristãs Na cruz Um beijo tornou irmãs A voz suave e meiga perdeuse no silêncio do ermo o eco repetiu um momento as suas doces modulações TERCEIRA PARTE OS AIMORÉS I PARTIDA Na segundafeira eram seis horas da manhã quando D Antônio de Mariz chamou seu filho O velho fidalgo velara uma boa parte da noite ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família Peri lhe havia contado todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés e o cavalheiro que conhecia a ferocidade e o espírito vingativo dessa raça selvagem esperava a cada momento ser atacado Por isso de acordo com Álvaro D Diogo e seu escudeiro Aires Gomes tinha tomado todas as medidas de precaução que as circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam Quando seu filho entrou o velho fidalgo acabava de selar duas cartas que escrevera na véspera Meu filho disse ele com uma ligeira emoção refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer e assentei que deveis partir hoje mesmo para São Sebastião Não é possível senhor Afastaisme de vós justamente quando correis um perigo Sim É justamente quando um grande perigo nos ameaça que eu chefe da casa entendo ser do meu dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo o protetor de minha família órfã Confio em Deus meu pai que vossos receios serão infundados mas se ele nos quiser submeter a tal provança o único lagar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada ao vosso lado para defendervos e partilhar a vossa sorte qualquer que ela seja D Antônio apertou seu filho ao peito Eu te reconheço tu és meu filho é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias e o meu coração de moço que fala pelos teus lábios Deixa porém que os cinqüenta anos de experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à velhice o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família Eu vos escuto senhor mas pelo amor que vos consagro poupaime a dor e a vergonha de deixarvos no momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado O fidalgo prosseguiu já calmo Não é uma espada D Diogo que nos dará a vitória fosse ela valente e forte como a vossa entre quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos um de mais ou de menos não importa ao resultado Que assim seja respondeu o cavalheiro com energia reclamo o meu posto de honra e a minha parte do perigo não vos ajudarei a vencer porém morrerei junto dos meus E é por esse nobre mas estéril orgulho que quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos reste se como temo as minhas previsões se realizarem Que dizeis senhor Qualquer que seja a força e o número dos inimigos conto que o valor português e a posição desta casa me ajudarão a resistirlhe por algum tempo por vinte dias mesmo por um mês mas por fim teremos de sucumbir Então exclamou D Diogo pálido Então se meu filho D Diogo em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente tiver ido ao Rio de Janeiro e pedido o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão decerto poderá voar em socorro de seu pai e chegar com tempo para defender sua família Então verá que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo inútil D Diogo deitou o joelho em terra e beijou com ternura a mão do fidalgo Perdão meu pai por não vos ter compreendido Eu devia adivinhar que D Antônio de Mariz não pode querer para o filho senão o que é digno do pai Vamos D Diogo não há tempo a perder Lembraivos que uma hora um minuto de tardança talvez tenha de ser contado ansiosamente por aqueles que vão esperarvos Parto neste instante disse o cavalheiro dirigindose à porta Tomai esta carta é para Martim de Sá governador desta capitania esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa família Ide despedirvos de vossa mãe e vossas irmãs eu farei tudo preparar para a partida O fidalgo reprimindo a sua emoção saiu do gabinete onde se passava esta cena e foi ter com Álvaro que o procurava Álvaro escolhei quatro homens que acompanhem D Diogo ao Rio de Janeiro D Diogo parte perguntou o moço admirado Sim depois vos direi as razões Por agora daivos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma hora Álvaro dirigiuse imediatamente ao fundo da casa onde habitavam os aventureiros Havia ai grande agitação uns falavam em tom de queixa outros murmuravam apenas palavras entrecortadas e alguns finalmente riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros Aires Gomes com todo o seu arreganho militar passeava no meio do terreiro a mão no punho da espada a cabeça alta e o bigode retorcido Quando o escudeiro passava a voz dos aventureiros descia dois tons mas à medida que ele se afastava cada um dava livre desabafo ao seu mau humor Entre os mais inquietos e turbulentos distinguiamse três grupos presididos por personagens de nosso conhecimento Loredano Rui Soeiro e Bento Simões A causa desse descontentamento quase geral era a seguinte Por volta de seis horas da manhã Rui em virtude do emprazamento da véspera dirigiuse o primeiro à escada para ganhar o mato Chegando ao fim da esplanada admirouse de ver aí Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia o que era extraordinário pois só à noite se usava de uma tal precaução e esta cessava apenas amanhecia Ainda mais admirado porém ficou quando os dois aventureiros cruzando as espadas proferiram quase ao mesmo tempo estas palavras Não se passa E por que razão É a ordem respondeu Martim Vaz Rui empalideceu e voltou apressadamente a primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado e cuidou em prevenir a Loredano Aires Gomes porém embargoulhe o passo e dirigiuse com ele para o terreiro ai o digno escudeiro desempenando o corpo e levando a mão à boca em forma de buzina gritou Olá À frente toda a banda Os aventureiros chegaramse formando um círculo ao redor de Aires Gomes Rui já tinha tido ocasião de lançar uma palavra ao ouvido do italiano e ambos um pouco pálidos mas resolutos esperavam o desfecho daquela cena O Sr D Antônio de Mariz disse o escudeiro por meu intermédio vos faz saber a sua vontade e manda que ninguém se afaste um passo da casa sem sua ordem Quem o contrário fizer pereça morte natural Um silêncio morno acolheu a enunciação desta ordem Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois cúmplices Estais entendidos disse Aires Gomes O que nem eu nem meus companheiros entendemos e a razão disto retrucou o italiano avançando um passo Sim a razão exclamou em coro a maioria dos aventureiros As ordens cumpremse e não se discutem respondeu o escudeiro com uma certa solenidade Contudo nós ia dizendo Loredano Toca a debandar gritou Aires Gomes Aquele que não estiver contente que o diga ao Sr D Antônio de Mariz E o escudeiro com uma fleuma imperturbável rompeu o circulo e começou a passear pelo terreiro olhando de traves os aventureiros e rindo à sorrelfa do seu desapontamento Quase todos estavam contrariados sem falar dos conspiradores que se haviam emprazado para concertarem seu plano de campanha os outros cujo divertimento era caçar e bater os matos não recebiam a ordem com prazer Apenas alguns de gênio mais bonachão e jovial tinham tomado a coisa à boa parte e zombavam da contrariedade que sofriam seus companheiros Quando Álvaro se aproximou todos os olhos se voltaram para ele esperando a explicação do que se passava Sr cavalheiro disse Aires Gomes acabo de transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa Bem respondeu o moço e continuou dirigindose aos aventureiros assim é preciso meus amigos estamos ameaçados de um ataque dos selvagens e toda a prudência é pouca nestas ocasiões Não é só a nossa vida que temos a defender e essa pouco vale para cada um de nós é sim a pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem e mais ainda o sossego de uma família honrada que todos prezamos As nobres palavras do cavalheiro e a afabilidade do gesto que suavizava a firmeza de sua voz serenaram completamente os ânimos todos os descontentes mostraramse satisfeitos Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano pois era arriscado tentálo em casa onde o menor gesto o podia trair Álvaro trocou poucas palavras com Aires Gomes e voltouse para os aventureiros D Antônio de Mariz precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D Diogo à cidade de São Sebastião É uma missão perigosa quatro homens nestes desertos marcham de perigo em perigo Quem de vós se oferece para desempenhála Vinte homens se adiantaram o cavalheiro escolheu três entre eles Vós sereis o quarto Loredano O italiano que se tinha escondido entre os seus companheiros ficou como fulminado por estas palavras sair naquela ocasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança durante a ausência tudo podia se descobrir Pesame ser obrigado a negarme ao serviço que exigis de mim mas sintome doente e sem forças para uma viagem O cavalheiro sorriu Não há enfermidade que prive um homem de cumprir o seu dever sobretudo quando é um homem valente e leal como vós Loredano Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos outros aventureiros Se não partis sereis arcabuzado em uma hora Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos faço esmola mandandovos sair desta casa O italiano compreendeu que não tinha remédio senão partir bastava que o moço o acusasse de ter atirado sobre ele bastava a palavra de Álvaro para fazêlo condenar pelo chefe e pelos seus próprios companheiros Aviaivos disse o cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por ele partis em meia hora Álvaro retirouse Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade que pesava sobre ele mas a pouco e pouco foi recobrando a calma animandose por fim sorriu Para que sorrisse era necessário que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a essa inteligência votada ao crime Fez um aceno a Rui Soeiro e os dois encaminharamse para um cubículo que o italiano ocupava no fim da esplanada Aí conversaram algum tempo rapidamente e em voz baixa Foram interrompidos por Aires Gomes que bateu com a espada na porta Eh lá Loredano A cavalo homem e boa viagem O italiano abriu a porta e ia sair mas voltouse para dizer a Rui Soeiro Olhai os homens da guarda é o principal Ide tranqüilo Alguns minutos depois D Diogo com o coração cerrado e as lágrimas nos olhos apertava nos braços sua mãe querida Cecília que ele adorava e Isabel que já amava também como irmã Depois desprendendose com um esforço encaminhouse apressadamente para a escada e desceu ao vale ai recebeu a bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo que Aires Gomes tinha pela rédea A pequena cavalgata partiu com pouco sumiase na volta do caminho II PREPARATIVOS Ao tempo que D Antônio de Mariz e seu filho conversaram no gabinete Peri examinava as suas armas carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado na véspera e saia da cabana A fisionomia do selvagem tinha uma expressão de energia e ardimento que revelava resolução violenta talvez desesperada O que ia fazer nem ele mesmo sabia Certo de que o italiano e seus companheiros se reuniriam naquela manhã contava antes que a reunião se efetuasse ter mudado inteiramente a face das coisas Só tinha uma vida como dissera mas essa com a sua agilidade e a sua força e coragem valia por muitas tranqüilo sobre o futuro pela promessa de Álvaro não lhe importava o número dos inimigos podia morrer mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer ao cavalheiro Saindo de sua cabana Peri entrou no jardim Cecília estava sentada num tapete de peles sobre a relva e amimava ao seio a sua rolinha predileta oferecendo os lábios de carmim às carícias que a ave lhe fazia com o bico delicado A menina estava pensativa doce melancolia desvanecia a vivacidade natural de seu semblante Tu estás agastada com Peri senhora Não respondeu a menina fitando nele os grandes olhos azuis Não quiseste fazer o que eu pedi tua senhora ficou triste Ela dizia a verdade com a ingênua franqueza da inocência Na véspera quando se tinha recolhido enfadada pela recusa de Peri ficara contrariada Educada no fervor religioso de sua mãe embora sem os prejuízos que a razão de D Antônio corrigira no espírito de sua filha Cecília tinha a fé cristã em toda a pureza e santidade Por isso se afligia com a idéia de que Peri a quem votava uma amizade profunda não salvasse a sua alma e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia suas preces Conhecia que a razão por que sua mãe e os outros desprezavam o índio era o seu gentilismo e a menina no seu reconhecimento queria elevar o amigo e tornálo digno da estima de todos Eis a razão por que ficara triste era a gratidão por Peri que defendera sua vida de tantos perigos e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma Nesta disposição de espírito seus olhos caíram sobre a guitarra espanhola que estava em cima da cômoda e veiolhe vontade de cantar É coisa singular como a melancolia inspira Seja por uma necessidade de expansão seja porque a música e a poesia suavizem a dor toda a criatura triste acha no canto um supremo consolo A menina tirou ligeiros prelúdios do instrumento enquanto repassava na memória as letras de alguns solaus e cantigas que sua mãe lhe havia ensinado A que lhe acudiu mais naturalmente foi a xácara que ouvimos havia nessa composição uns longes um quer que seja que ela não sabia explicar mas ia com seus pensamentos Quando acabou de cantar levantouse apanhou a flor de Peri que tinha atirado ao chão deitoua nos cabelos e fazendo a sua oração da noite adormeceu tranqüilamente O último pensamento que rogou a sua fronte alva foi um voto de gratidão pelo amigo que lhe salvara a vida naquela manhã Depois um sorriso adejou sobre seu rosto gracioso como se a alma durante o sono dos olhos viesse brincar nos lábios entreabertos O índio ouvindo as palavras que acabava de proferir Cecília sentiu que pela primeira vez tinha causado uma mágoa real a sua senhora Tu não entendeste Peri senhora Peri te pediu que o deixasses na vida em que nasceu porque precisa desta vida para servirte Como Não te entendo Peri selvagem é o primeiro dos seus só tem uma lei uma religião é sua senhora Peri cristão será o último dos teus será um escravo e não poderá defenderte Um escravo Não Serás um amigo Eu te juro exclamou a menina com vivacidade O índio sorriu Se Peri fosse cristão e um homem quisesse te ofender ele não poderia matálo porque o teu Deus manda que um homem não mate outro Peri selvagem não respeita ninguém quem ofende sua senhora é seu inimigo e morre Cecília pálida de emoção olhou o índio admirada não tanto da sublime dedicação como do raciocínio ela ignorava a conversa que o índio tivera na véspera com o cavalheiro Peri te desobedeceu por ti somente quando já não correres perigo ele virá ajoelhar a teus pés e beijar a cruz que tu lhe deste Não fica zangada Meu Deus murmurou Cecília pondo os olhos no céu É possível que uma dedicação tamanha não seja inspirada por vossa santa religião A alegria serena e doce de sua alma irradiava na fisionomia encantadora Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi assim não exijo mais espero Lembrate somente que no dia em que tu fores cristão tua senhora te estimará ainda mais Não ficas triste Não agora estou satisfeita contente muito contente Peri quer pedirte uma coisa Dize o que é Peri quer que tu risques um papel para ele Riscar um papel Como este que teu pai deu hoje a Peri Ah queres que eu escreva Sim O quê Peri vai dizer Espera Ligeira e graciosa a menina correu à banquinha e tomando uma folha de papel e uma pena fez sinal a Peri que se aproximasse Não devia ela satisfazer os desejos do índio como este satisfazia às suas menores fantasias Vamos fala que eu escrevo Peri a Álvaro disse o índio É uma carta ao Sr Álvaro perguntou a menina corando Sim é para ele Que vais tu dizerlhe Escreve A menina traçou a primeira linha e depois por pedido de Peri o nome de Loredano e dos seus dois cúmplices Agora disse o índio fecha Cecília selou a carta Entrega à tarde antes não Mas que quer isto dizer perguntou Cecília sem compreender Ele te dirá Não que eu A menina balbuciou corando estas palavras ia dizer que não falaria ao cavalheiro e arrependeuse não queria revelar a Peri o que se tinha passado Sabia que se o índio suspeitasse a cena da véspera odiaria Isabel e Álvaro só por lhe terem causado um pesar involuntário Enquanto Cecília confusa procurava disfarçar o enleio Peri fitava nela o seu olhar brilhante mal pensava a menina que aquele olhar era o adeus extremo que o índio lhe dizia Mas para isto fora preciso que adivinhasse o plano desesperado que ele havia concebido de exterminar naquele dia todos os inimigos da casa D Diogo entrou nesse momento no quarto de sua irmã vinha despedirse dela Quanto a Peri deixando Cecília dirigiuse à escada e achou os mesmos vigias que depois embargaram a passagem de Rui Soeiro Não se passa disseram os aventureiros cruzando as espadas O índio levantou os ombros desdenhosamente e antes que as sentinelas voltassem a si da surpresa tinha mergulhado sob as espadas e descido a escada Então ganhou a mata examinou de novo as suas armas e esperou já estava cansado quando viu passar a pequena cavalgata Peri não compreendeu o que sucedia mas conheceu que o seu plano tinha abortado Foi ter com Álvaro O cavalheiro explicoulhe como se aproveitara da ida de D Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o italiano sem rumor e sem escândalo Então o índio por sua vez contou ao moço o que tinha ouvido na touça de cardos o projeto que formara de matar os três aventureiros naquela manhã e finalmente a carta que lhe escrevera por intermédio de Cecília para no caso de sucumbir ele saber o cavalheiro quem eram os inimigos Álvaro duvidava ainda acreditar em tanta perfídia do italiano Agora concluiu Peri é preciso que os dois também saiam se ficarem o outro pode voltar Não se animará disse o cavalheiro Peri não se engana Manda sair os dois Fica descansado Falarei com D Antônio de Mariz O resto do dia passou tranqüilamente mas a tristeza tinha entrado nessa casa ainda na véspera tão alegre e feliz a partida de D Diogo o temor vago que produz o perigo quando se aproxima e o receio de um ataque dos selvagens preocupavam os moradores do Paquequer Os aventureiros dirigidos por D Antônio executavam trabalhos de defesa tornando ainda mais inacessível o rochedo em que estava situada a casa Uns construíam paliçadas em roda da esplanada outros arrastavam para a frente da casa uma colubrina que o fidalgo por excesso de cautela mandara vir de São Sebastião havia dois anos Toda a casa enfim apresentava um aspecto marcial que indicava as vésperas de um combate D Antônio preparavase para receber dignamente o inimigo Apenas em toda esta casa uma pessoa se conservava alheia ao que passava era Isabel que só pensava no seu amor Depois de sua confissão arrancada violentamente ao seu coração por uma força irresistível por um impulso que ela não sabia explicar a pobre menina quando se vira só no seu quarto à noite quase morreu de vergonha Lembravase de suas palavras e perguntava a si mesma como tivera a coragem de dizer aquilo que antes nem mesmo os seus olhos se animavam a exprimir silenciosamente Parecialhe que era impossível tornar a ver Álvaro sem que cada um dos olhares do moço queimasse as suas faces e a obrigasse a esconder o rosto de pejo Entretanto nem por isso seu amor era menos ardente ao contrário agora é que a paixão por muito tempo reprimida se exacerbava com as lutas e contrariedades As poucas palavras doces que o moço lhe dirigia a pressão das mãos e o aperto rápido sobre o coração de Álvaro num momento de alucinação passavam e repassavam na sua memória a todo o momento Seu espírito como uma borboleta em torno da flor esvoaçava constantemente em torno das reminiscências ainda vivas como para libar todo o mel que encerravam aquelas sensações as primeiras de seu infeliz amor Nesse mesmo dia de segundafeira à tarde Álvaro encontrouse um momento com Isabel na esplanada Ambos ficaram mudos e coraram Álvaro ia retirarse Sr Álvaro balbuciou a moça trêmula Que quereis de mim D Isabel perguntou o moço perturbado Esquecime o restituirvos ontem o que não me pertence E ainda esse malfadado bracelete Sim respondeu a moça docemente é este malfadado bracelete Cecília teima que é ele vosso Se meu é vos peço que o aceiteis Não Sr Álvaro não tenho direito Uma irmã não tem direito de aceitar a prenda que lhe oferece seu irmão Tendes razão respondeu a moça suspirando eu o guardarei como lembrança vossa não será adorno para mim senão relíquia O moço não respondeu retirouse para cortar a conversa Desde a véspera Álvaro não podia eximirse à impressão poderosa que causara nele a paixão de Isabel era preciso que não fosse homem para não se sentir profundamente comovido pelo amor ardente de uma mulher bela e pelas palavras de fogo que corriam dos lábios de Isabel impregnadas de perfume e sentimento Mas a razão direita do cavalheiro recalcava essa impressão no fundo do coração ele não se pertencia tinha aceitado o legado de D Antônio de Mariz e jurado dar a sua mão a Cecília Embora não esperasse mais realizar o seu sonho dourado entendia que estava vigorosamente obrigado a sujeitarse a vontade do fidalgo a proteger sua filha a dedicarlhe sua existência Quando Cecília o repelisse abertamente e D Antônio o desobrigasse de sua promessa então seu coração seria livre se não estivesse morto pelo desengano O único fato notável que se deu nesse dia foi a chegada de seis aventureiros das vizinhanças que prevenidos por D Diogo vinham oferecer seus serviços a D Antônio Chegaram ao luscofusco à frente deles vinha o nosso conhecido mestre Nunes que um ano antes dera hospitalidade no seu pouso a Frei Ângelo di Luca III VERME E FLOR Eram onze horas da noite O silêncio reinava na habitação e seus arredores tudo estava tranqüilo e sereno Algumas estrelas brilhavam no céu os sopros escassos da viração sussurravam na folhagem Os dois homens de vigia apoiados ao arcabuz e reclinados sobre o alcantil sondavam a sombra espessa que se estendia pela aba do rochedo O vulto majestoso de D Antônio de Mariz passou lentamente pela esplanada e desapareceu no canto da casa O fidalgo fazia sua ronda noturna como um general na véspera de uma batalha Passados alguns momentos ouviuse cantar uma coruja no vale junto da escada de pedra um dos vigias abaixouse e tomando dois pequenos seixos deixouos cair um depois do outro O som fraco que produziu a queda das pedras sobre o arvoredo da várzea foi quase imperceptível seria difícil distinguilo do rumor do vento nas folhas Um instante depois um vulto subiu ligeiramente a escada e reuniuse aos dois homens que faziam a guarda noturna Tudo está pronto Só esperamos por vós Vamos Não há tempo a perder Trocadas estas palavras rapidamente entre o que chegava e um dos vigias os três encaminharamse com todas as precauções para a alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros Aí como no resto da casa tudo estava calmo e tranqüilo apenas viase luzir na soleira da porta do aposento de Aires Gomes a claridade de uma luz Um dos três chegouse à entrada do alpendre e esgueirandose pela parede perdeuse na escuridão que havia no interior Os outros dois se dirigiam ao fim da casa e ai ocultos pela sombra e pelo ângulo que formava um largo pilar do edifício começaram um diálogo breve e rápido Quantos são perguntou o homem que chegara Vinte ao todo Restamnos Dezenove Bem A senha Prata E o fogo Pronto Aonde Nos quatro cantos Quantos sobram Dois apenas Seremos nós Precisais de mim Sim Houve uma pequena pausa em que um dos aventureiros parecia refletir profundamente enquanto o outro esperava por fim o primeiro ergueu a cabeça Rui vós me sois dedicado Deivos a prova Preciso de um amigo fiel Contai comigo Obrigado O desconhecido apertou a mão de seu companheiro Sabeis que amo uma mulher Vós mo dissestes Sabeis que é mais por essa mulher do que por este tesouro fabuloso que concebi esse plano horrível Não não o sabia Pois é a verdade pouco me importa a riqueza sede meu amigo servime lealmente e tereis a maior parte do meu tesouro Falei que quereis que eu faça Um juramento mas um juramento sagrado terrível Qual Dizei Hoje essa mulher me pertencerá entretanto se por qualquer acaso eu vier a morrer quero que O desconhecido hesitou Quero que nenhum homem possa amála que nenhum homem possa gozar a felicidade suprema que ela pode dar Mas como Matandoa Rui sentiu um calafrio Matandoa para que a mesma cova receba nossos dois corpos não sei por quê mas pareceme que ainda cadáver o contato dessa mulher deve ser para mim um gozo imenso Loredano exclamou seu companheiro horrorizado Sois meu amigo e sereis meu herdeiro disse o italiano agarrandolhe convulsivamente no braço É a minha condição se recusais outro aceitará o tesouro que rejeitais O aventureiro estava em lata com dois sentimentos opostos mas a ambição violenta cega esvairada abafou o grito fraco da consciência Jurais perguntou Loredano Juro respondeu Rui com a voz estrangulada Avante então Loredano abriu a porta do seu cubículo e voltou algum tempo depois trazendo uma tábua longa e estreita que colocou sobre o despenhadeiro como uma espécie de ponte suspensa Ides segurar esta tábua Rui Entrego em vossas mãos a minha vida e nisto douvos a maior prova de confiança Basta que deixeis esta prancha moverse para que eu me precipite sobre os rochedos O italiano achavase então no mesmo lugar que na noite da chegada algumas braças distante da janela de Cecília onde não podia chegar por causa do ângulo que formavam o rochedo e o edifício A tábua foi colocada na direção da janela a primeira vez tinhalhe bastado o seu punhal agora também necessitava de um apoio seguro e do livre movimento de seus braços Rui colocouse sobre a ponta da tábua e segurandose a um frechal do alpendre manteve imóvel sobre o precipício essa ponte pênsil em que o italiano ia arriscarse Quanto a este sem hesitar tirou as suas armas para ficar mais leve descalçouse segurou a longa faca entre os dentes e pôs o pé sobre a prancha Esperarmeeis do outro lado disse o italiano Sim respondeu Rui com voz trêmula A razão por que a voz de Rui tremia era um pensamento diabólico que começava a fermentar no seu espírito Lembroulhe que tinha na mão Loredano e o seu segredo que para verse livre de um e senhor do outro bastava afastar o pé e deixar a tábua inclinar sobre o abismo Entretanto hesitava não que o remorso antecipado lhe exprobrasse o crime que ia cometer já tinhase afundado muito no vício e na depravação para recuar Mas o italiano exercia sobre os seus cúmplices tal prestigio e influência tão poderosa que Rui não podia mesmo nesse momento esquivarse a ela Loredano estava suspenso sobre o abismo pela sua mão podia salválo ou precipitálo no despenhadeiro e contudo dessa posição ainda ele impunha respeito ao aventureiro Rui tinha medo não compreendia o motivo desse terror irresistível mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo No entanto a imagem da riqueza esplêndida brilhante radiando galas e luzimentos passava diante de seus olhos e o deslumbrada um pouco de coragem e seria o único senhor do tesouro fabuloso cujo era o italiano depositário do segredo Mas coragem é o que lhe faltava por duas ou três vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspenderse ao frechal e deixar a tábua rolar no abismo não passou de um desejo Venceu afinal a tentação Teve um momento de desvario os joelhos acurvaramse a tábua sofreu uma oscilação tão forte que Rui admirouse de como o italiano se tinha podia suster Então o medo desapareceu foi substituído por uma espécie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro o primeiro esforço lhe dera a ousadia como a vista do sangue excita a fera Um segundo abalo mais forte agitou a tábua que oscilou à borda do rochedo porém não se ouviu o baque de um corpo não se ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra Rui desesperado ia soltar a prancha quando chegoulhe ao ouvido abafada e sumida a voz do italiano que apenas se percebia no silêncio profundo da noite Estais cansado Rui Podeis tirar a tábua não preciso mais dela O aventureiro ficou espavorido decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo e escarnecia do perigo um ente superior a quem a morte não podia tocar Ele ignorava que Loredano com a sua previdência ordinária quando entrara no seu cubículo para tirar a prancha tivera o cuidado de passar por um caibro do alpendre que era de telhavã a ponta de uma longa corda que caiu sobre a parte de fora da parede uma braça distante da janela de Cecília Assim apenas deu o primeiro passo sobre a ponte improvisada o italiano não se descuidou de estender o braço e agarrar a ponta da corda que logo atou à cintura então se o apoio lhe faltasse ficaria suspenso no ar e embora com mais dificuldade realizaria o seu intento Foi por isso que os dois abalos produzidos pelo seu cúmplice não tiveram o resultado que ele esperava logo do primeiro Loredano adivinhou o que se passava na alma de Rui mas não querendo darlhe a perceber que conhecia a sua traição serviuse de um meio indireto para dizerlhe que estava em segurança e que era inútil a tentativa de precipitálo A tábua não fez mais um só movimento conservouse imóvel como se estivera solidamente pregada ao rochedo Loredano adiantouse tocou a janela da moça e com a ponta da faca conseguiu levantar a aldraba as gelosias abrindose afastaram as cortinas de cassa que vendavam o asilo do pudor e da inocência Cecília dormia envolta nas alvas roupas do seu leito sua cabecinha loura aparecia entre as rendas finíssimas sobre as quais se desenrolavam os lindos anéis dourados de seus cabelos O doce amortecimento de um sono calmo e sereno vendava seu rosto gracioso como a sombra esvaecida que desmaia o semblante das virgens de Murilo seu sorriso era apenas enlevo O talho de sua anágua abrindose deixava entrever um colo de linhas puras mais alvo do que a cambraia e com a ondulação que a respiração branda imprimia ao seu peito desenhavamse sob a lençaria diáfana os seios mimosos Tudo isto ressaltava como um quadro dentre as ondas de uma colcha de damasco azul que nas suas largas dobras moldava sobre a alvura transparente do linho os contornos harmoniosos e puros Havia porém nessa beleza adormecida uma expressão indefinível um quer que seja de tão casto e inocente que envolvia essa menina no seu sono tranqüilo e parecia afugentar dela um pensamento profano Chegandose à beira daquele leito um homem ajoelharia antes como ao pé de uma santa do que se animaria a tocar na ponta dessas roupagens brancas que protegiam a inocência Loredano aproximouse tremendo pálido e ofegante toda a força de sua vigorosa organização toda a sua vontade poderosa e irresistível estava ai vencida subjugada diante de uma menina adormecida O que sentiu quando seu olhar ardente caiu sobre o leito é difícil dizer é talvez mesmo difícil de compreender Foi a um tempo suprema ventura e horrível suplício A paixão brutal o devorava escaldandolhe o sangue nas veias e fazendo saltarlhe o coração entretanto o aspecto dessa menina que não tinha para sua defesa senão a sua castidade o encadeava Sentia que o fogo queimavalhe o seio sentia que seus lábios tinham sede de prazer e a mão gelada e inerte não se podia erguer e o corpo estava paralisado apenas o olhar cintilava e as narinas dilatadas aspiravam as emanações voluptuosas de que estava impregnada a sua atmosfera E a menina sorria no seu plácido sono enleandose talvez nalgum sonho gracioso nalgum dos sonhos azuis que Deus esparge como folhas de rosas sobre o leito das virgens Era o anjo em face do demônio era a mulher em face da serpente a virtude em face do vício O italiano fez um esforço supremo e passando a mão pelos olhos como para arrancar uma visão importuna encaminhouse a um bufete e acendeu uma vela de cera corderosa O aposento até então esclarecido apenas por uma lamparina colocada sobre uma cantoneira iluminouse e a imagem graciosa de Cecília apareceu cercada de uma auréola Sentindo a impressão da luz sobre os olhos a menina fez um movimento e voltando um pouco o rosto para o lado oposto continuou o sono que nem fora interrompido Loredano passou entre o leito e a parede e pôde então admirála em toda a sua beleza não se lembrava de nada mais esquecera o mundo e seu tesouro nem pensava no rapto que ia praticar A rolinha que dormia sobre a cômoda no seu ninho de algodão ergueuse e agitou as asas o italiano despertado por este rumor conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a perder IV NA TREVA Alguns esclarecimentos são necessários aos acontecimentos que acabavam de passar Quando Loredano viuse obrigado pela ameaça de Álvaro a partir para o Rio de Janeiro ficou sucumbido mas depois de alguns momentos um sorriso diabólico tinha enrugado os seus lábios Este sorriso era uma idéia infame que luzira no seu espírito como a flama desses fogos perdidos que brilham no seio das trevas em noites de grande calma O italiano lembrouse que no momento em que todos o supunham em viagem podia preparar a execução do seu plano que ele realizaria naquela mesma noite Na conversa que tivera com Rui Soeiro transmitiulhe as suas instruções breves simples e concisas consistiam em livraremse dos homens que podiam pôr embaraços à sua empresa Para isso os seus cúmplices receberam ordem de quando se recolhessem para dormir colocaremse ao lado de cada um dos homens da banda fiéis a D Antônio de Mariz Naquele tempo e naqueles lugares não era possível que os aventureiros tivessem cada um o seu cubículo poucos gozavam desse privilégio e assim mesmo eram obrigados a partilhar o seu aposento com um companheiro os outros dormiam na vasta alpendrada que ocupava quase toda essa parte do edifício Rui Soeiro tinha conforme as instruções de Loredano arranjado as coisas de tal modo que naquele momento cada um dos aventureiros dedicados a D Antônio de Mariz tinha a seu lado um homem que parecia adormecido e que só esperava ouvir pronunciar a senha convencionada para enterrar o seu punhal na garganta do seu companheiro Ao mesmo tempo havia pelos cantos da casa grandes molhos de palha seca colocados junto das portas ou metidos pela beirada do telhado e que só esperavam uma faisca para atear o incêndio em todo o edifício Rui Soeiro com uma sagacidade e uma prudência dignas de seu chefe dispusera tudo isto parte durante o dia e parte nas horas mortas da noite em que tudo estava recolhido Não se esqueceu da recomendação especial de Loredano e ofereceuse voluntariamente a Aires Gomes para fazer a guarda noturna com um dos seus companheiros visto recearse ataque do inimigo o digno escudeiro que o conhecia como um dos mais valentes da banda caiu no laço e aceitou o oferecimento Senhor do campo o aventureiro pôde então acabar livremente seus preparativos e para mais segurança arranjou traça de verse livre do escudeiro que podia de um momento para outro vir incomodálo Aires Gomes em companhia de seu velho amigo mestre Nunes esvaziava uma botelha de vinho de Valverde que eles bebiam lentamente trago a trago para assim disfarçarem a módica porção do liquido destinado a umedecer as goelas de dois formidáveis bebedores Mestre Nunes aplicou voluptuosamente os lábios à borda do canjirão tomou uma vez de vinho e dando um ligeiro estalinho com a língua no céu da boca repimpouse na tripeça em que estava sentado cruzando as mãos sobre o seu ventre proeminente com uma beatitude celeste Ora estou desde que cheguei para perguntarvos uma coisa amigo Aires e sempre a passar Não a deixeis passar agora Nunes Aqui me tendes para respondervos Dizeime cá quem é um tal que acompanhava D Diogo e a quem dais um diabo de nome que não é português Ah quereis falar de Loredano Um tunante Conheceis esse homem Aires Por Deus se ele é dos nossos Quando pergunto se o conheceis quero dizer se sabeis donde veio quem era e o que fazia À fé que não Apareceunos aqui um dia a pedir hospitalidade e depois como saísse um homem ficou em lagar dele E quando isso se vos lembra Esperai Estou com os meus cinqüenta e nove O escudeiro contou pelos dedos consultando o seu calendário que era a sua idade Foi por este tempo há um ano princípios de março Estais bem certo exclamou mestre Nunes Certíssimo é conta que não engana Mas que tendes Com efeito mestre Nunes se erguera espantado Nada Não é possível Não acreditais É outra coisa Aires É um sacrilégio uma obra de Satã uma simonia horrenda Que dizeis homem explicaivos lá de uma vez Mestre Nunes conseguiu restabelecerse da sua perturbação e contou ao escudeiro as suas desconfianças a respeito de Frei Ângelo di Luca e da sua morte que nunca fora possível explicar notoulhe a coincidência do desaparecimento do carmelita com o aparecimento do aventureiro e o fato de serem da mesma nação Depois concluiu Nunes aquela voz aquele olhar quando o vi hoje estremeci e recuei espavorido julgando que o frade tinha saído de baixo da terra Aires Gomes levantouse furioso e saltando sobre o seu catre agarrou o espadão que tinha à cabeceira Que ides fazer gritou mestre Nunes Matálo e desta vez às direitas que não torne Esqueceis que vai longe É verdade murmurou o escudeiro rangendo os dentes de raiva Ouviuse um ligeiro rumor na porta os dois amigos o atribuíram ao vento e não se voltaram sentados em face um do outro continuaram em voz baixa a sua conversa interrompida pela brusca revelação de Nunes Entretanto fora passavamse coisas que deviam excitar a atenção do digno escudeiro O rumor que ouvira fora produzido pela volta que Rui dera à chave fechando a porta O aventureiro tinha ouvido toda a conversa a princípio aterrado cobrou animo e lembrouse que em todo o caso era bom estar senhor do segredo do italiano para qualquer emergência futura Confiado nessa excelente idéia Rui meteu a chave no peito do gibão e foi reunirse a seu companheiro que estava de vigia junto da escada Esperava por Loredano que devia entrar na casa alta noite para dirigir toda essa trama que havia urdido com uma inteligência superior O italiano tinha facilmente iludido a D Diogo de Mariz sabia que o ardente cavalheiro ia de rota batida e que não se demoraria em caminho por motivo algum As três léguas do Paquequer inventou um pretexto de terse quebrado a cilha de sua cavalgadura e parou para arranjála enquanto D Diogo e seus companheiros pensavam que os seguia de perto ele tinha voltado sobre os passos e escondido nas vizinhanças esperava que a noite se adiantasse Quando percebeu que tudo estava em silêncio aproximouse trocou o sinal convencionado que era o canto de coruja e introduziuse furtivamente na habitação O mais já vimos Sabendo que tudo estava preparado e pronto ao primeiro sinal Loredano deu começo à execução de seu projeto e conseguiu penetrar no quarto de Cecília Tomar a menina nos braços raptála atravessar a esplanada chegar à porta da alpendrada e pronunciar a senha convencionada era coisa que ele contava realizar num momento Quando Cecília arrancada do seu leito lançasse um grito que ele não pudesse abafar isto pouco lhe importava antes que alguém despertasse teria chegado ao outro lado e então a uma palavra sua o fogo e o ferro viriam em seu socorro Rui lançaria a chama à palha preparada para esse fim e a faca de cada um dos seus cúmplices se enterraria na gorja dos homens adormecidos Depois no meio desse horror e confusão os vinte demônios acabariam a sua obra e fugiriam como os maus espíritos das lendas antigas quando a primeira luz da alvorada terminava o sabbat infernal Iam ao Rio de Janeiro ai ligados todos por um mesmo laço do crime por um mesmo perigo e uma só ambição Loredano contava ter neles agentes fiéis e dedicados para levar a cabo a sua empresa Enquanto a traição solapava assim o sossego a felicidade a vida e a honra dessa família todos dormiam tranqüilos e descuidados nem um pressentimento os vinha advertir da desgraça que os ameaçava Loredano graças à sua agilidade e à sua força tinha conseguido chegar até ao leito da menina sem que o menor rumor traísse a sua presença sem que na habitação alguém tivesse podido perceber o que se passava Certo pois do resultado o italiano advertido pela inocente avezinha que não sabia o mal que fazia cuidou em consumar a sua obra Abriu a cômoda de Cecília tirou roupas de seda e linho e fez de tudo isso um embrulho tão pequeno quanto era possível depois envolveuo em uma das peles que serviam de tapete e colocou numa cadeira a jeito de o poder apanhar com facilidade Era coisa original o pensamento deste homem Ao passo que cometia um crime tinha a lembrança delicada de querer suavizar a desgraça da menina fazendo que nada lhe faltasse na viagem incômoda que tinha de fazer Quando tudo estava preparado abriu a portinha que dava para o jardim e estudou o caminho que tinha de seguir Era preciso porque apenas tomasse Cecília nos braços devia partir e chegar de uma só corrida direita rápida e cega A porta ficava num canto do aposento defronte do vão que havia entre o leito e a parede colocado nesse lagar não tinha senão um movimento a fazer agarrar a menina e lançarse fora do aposento Na ocasião em que ele se aproximava ouviuse um gemido quase um suspiro abafado e cheio de angústia Os cabelos eriçaramse sobre a fronte do italiano gotas de suor frio e gelado sulcaram as suas faces pálidas e contraídas A pouco e pouco foi saindo do estupor que o paralisara e volvendo lentamente ao redor de si uns esgares de olhos alucinados Nada Nem um inseto parecia acordado na solidão profunda da noite em que tudo dormia exceto o crime o verdadeiro duende da terra o mau gênio das crenças de nossos pais Tudo estava em sossego até o vento parecia se ter abrigado no cálice das flores e adormecido nesse berço perfumado como num regaço de amante O italiano restabeleceuse do violento abalo que sofrera deu um passo e inclinouse sobre o leito Cecília sonhava nesse momento Seu rosto esclareceuse com uma expressão de alegria angélica sua mãozinha que repousava aninhada entre os seios moveuse com a indolência e a moleza do sono e recaiu sobre a face A pequena cruz de esmalte que tinha ao colo e que estava agora presa entre os dedos da mão roçoulhe os lábios e uma música celeste escapouse como se Deus tivesse vibrado uma das cordas de sua harpa eólia Foi a princípio um sorriso que adejoulhe nos lábios depois o sorriso colheu as asas e formou um beijo por fim o beijo entreabriuse como uma flor e exalou um suspiro perfumado Peri O colo arfou docemente e a mão descaindo foi de novo aninharse entre o talho da sua anágua de cambraia O italiano ergueuse pálido Não se animava a tocar naquele corpo tão casto tão puro não podia fitar aquela fisionomia radiante de inocência e de candura Mas o tempo urgia Fez um esforço supremo sobre si mesmo firmou o joelho à borda do leito fechou os olhos e estendeu as mãos V DEUS DISPÕE O braço de Loredano estendeuse sobre o leito porém a mão que se adiantava e ia tocar o corpo de Cecília estacou no meio do movimento e subitamente impelida foi bater de encontro à parede Uma seta que não se podia saber de onde vinha atravessara o espaço com a rapidez de um raio e antes que se ouvisse o sibilo forte e agudo pregara a mão do italiano ao muro do aposento O aventureiro vacilou e abateuse por detrás da cama era tempo porque uma segunda seta despedida com a mesma força e a mesma rapidez cravavase no lugar onde há pouco se projetava a sombra de sua cabeça Passou se então ao redor da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura uma cena horrível porem silenciosa Loredano nos transes da dor por que passava compreendera o que sucedia tinha adivinhado naquela seta que o ferira a mão de Peri e sem ver sentia o índio aproximar se terrível de ódio de vingança de cólera e desespero pela ofensa que acabava de sofrer sua senhora Então o réprobo teve medo erguendose sobre os joelhos arrancou convulsivamente com os dentes a seta que pregava sua mão à parede e precipitouse para o jardim cego louco e delirante Nesse mesmo instante dois segundos talvez depois que a última flecha caíra no aposento a folhagem do óleo que ficava fronteiro à janela de Cecília agitouse e um vulto embalançandose sobre o abismo suspenso por um frágil galho da árvore veio cair sobre o peitoril Aí agarrandose à ombreira saltou dentro do aposento com uma agilidade extraordinária a luz dando em cheio sobre ele desenhou o seu corpo flexível e as suas formas esbeltas Era Peri O índio avançouse para o leito e vendo sua senhora salva respirou com efeito a menina a meio despertada pelo rumor da fugida de Loredano voltarase do outro lado e continuara o sono forte e reparador como é sempre o sono da juventude e da inocência Peri quis seguir o italiano e matálo como já tinha feito aos seus dois cúmplices mas resolveu não deixar a menina exposta a um novo insulto como o que acabava de sofrer e tratou antes de velar sobre sua segurança e sossego O primeiro cuidado do índio foi apagar a vela depois fechando os olhos aproximouse do leito e com uma delicadeza extrema puxou a colcha de damasco azul até ao colo da menina Parecialhe uma profanação que seus olhos admirassem as graças e os encantos que o pudor de Cecília trazia sempre vendados pensava que o homem que uma vez tivesse visto tanta beleza nunca mais devia ver a luz do dia Depois desse primeiro desvelo o índio restabeleceu a ordem no aposento deitou a roupa na cômoda fechou a gelosia e as abas da janela lavou as nódoas de sangue que ficaram impressas na parede e no soalho e tudo isto com tanta solicitude tão sutilmente que não perturbou o sono da menina Quando acabou o seu trabalho aproximouse de novo do leito e à luz frouxa da lamparina contemplou as feições mimosas e encantadoras de Cecília Estava tão alegre tão satisfeito de ter chegado a tempo de salvála de uma ofensa e talvez de um crime era tão feliz de vêla tranqüila e risonha sem ter sofrido o menor susto o mais leve abalo que sentiu a necessidade de exprimirlhe por algum modo a sua ventura Nisto seus olhos abaixandose descobriram sobre o tapete da cama dois pantufos mimosos forrados de cetim e tão pequeninos que pareciam feitos para os pés de uma criança ajoelhou e beijouos com respeito como se foram relíquia sagrada Eram então perto de quatro horas pouco tardava para amanhecer as estrelas já iam se apagando a uma e uma e a noite começava a perder o silêncio profundo da natureza quando dorme O índio fechou por fora a porta do quarto que dava para o jardim e metendo a chave na cintura sentouse na soleira como cão fiel que guarda a casa de seu senhor resolvido a não deixar ninguém aproximarse Aí refletiu sobre o que acabava de passar e acusavase a si mesmo de ter deixado o italiano penetrar no aposento de sua senhora Peri porem caluniavase porque só a Providência podia ter feito nessa noite mais do que ele porque tudo quanto era possível à inteligência à coragem à sagacidade e à força do homem o índio havia realizado Depois da partida de Loredano e da conversa que teve com Álvaro certo de que sua senhora já não corria perigo e de que os dois cúmplices do italiano iam ser expulsos como ele o índio não pensando mais senão no ataque dos Aimorés partiu imediatamente O seu pensamento era ver se descobria pelas vizinhanças do Paquequer indícios da passagem de alguma tribo da grande raça Guarani a que ele pertencia seria um amigo e um aliado para D Antônio de Mariz O ódio inveterado que havia entre as tribos da grande raça e a nação degenerada dos Aimorés justificava a esperança de Peri mas infelizmente tendo percorrido todo o dia a floresta não encontrou o menor vestígio do que procurava O fidalgo estava pois reduzido às suas próprias forças mas embora fossem estas pequenas o índio não desanimou tinha consciência de si e sabia que na última extremidade a sua dedicação por Cecília lhe inspiraria meios de salvar a ela e a tudo que ela amava Voltou à casa já noite fechada foi ter com Álvaro perguntoulhe o que era feito dos dois aventureiros o cavalheiro disselhe que D Antônio de Mariz recusara crer na acusação De fato o fidalgo leal habituado ao respeito e à fidelidade de seus homens não admitia que se concebesse uma suspeita sem provas entretanto como a palavra de Peri tinha para ele toda a valia ficara de ouvir de sua boca a narração do que presenciara para conhecer o peso que devia dar a semelhante acusação Peri retirouse inquieto e arrependido de não ter persistido no seu primeiro projeto enquanto esses dois homens que ele supunha já expulsos estivessem ali sabia que um perigo pairava sobre a casa Assim resolveu não dormir tomou o seu arco e sentouse na porta de sua cabana apesar de possuir a clavina que lhe dera D Antônio o arco era a arma favorita de Peri não demandava tempo para carregar não fazia o menor estrépito lançava quase instantaneamente dois três tiros e a sua flecha era tão terrível e tão certeira como a bala Passado muito tempo o índio ouviu cantar uma coruja do lado da escada esse canto causoulhe estranheza por duas razões a primeira porque era mais sonoro do que é o cacarejar daquela ave agoureira a segunda porque em vez de partir do cimo de uma árvore saia do chão Esta reflexão o fez levantar desconfiou da coruja que tinha hábitos diferentes de suas companheiras quis conhecer a razão desta singularidade Viu do outro lado da esplanada três vultos que atravessavam ligeiramente isto aumentou a sua desconfiança os homens de vigia eram ordinariamente dois e não três Seguiuos de longe mas quando chegou ao pátio não viu senão um dos homens que entrava na alpendrada os outros tinham desaparecido Peri procurouos por toda a parte e não os viu estavam ocultos pelo pilar que se elevava na ponta do rochedo e não lhe era possível descobrilos Supondo que tivessem também entrado no alpendre o índio agachouse e penetrou no interior de repente a sua mão tocou uma lamina fria que conheceu imediatamente ser a folha de um punhal És tu Rui perguntou uma voz sumida Peri emudeceu mas de chofre aquele nome de Rui lembroulhe Loredano e o seu projeto percebeu que se tramava alguma coisa e tomou um partido Sim respondeu com a voz quase imperceptível Já é hora Não Todos dormem Enquanto trocavam estas duas perguntas a mão de Peri correndo pela lâmina de aço tinha conhecido que outra mão segurava o cabo do punhal O índio saiu do alpendre e dirigiuse ao quarto de Aires Gomes a porta estava fechada e junto dela tinham colocado um grande montão de palha Tudo isto denunciava um plano prestes a realizarse Peri compreendia e tinha medo de já não ser tempo para destruir a obra dos inimigos Que fazia aquele homem deitado que fingia dormir e que tinha o punhal desembainhado na mão como se estivesse pronto a ferir Que significava aquela pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam Que queria dizer a palha encostada à porta do escudeiro Não restava dúvida havia ali homens que esperavam um sinal para matarem seus companheiros adormecidos e deitarem fogo à casa tudo estava perdido se o plano não fosse imediatamente destruído Cumpria acordar os que dormiam prevenilos do perigo que corriam ou ao menos preparálos para se defenderem e escaparem de uma morte certa e inevitável O índio agarrou convulsivamente a cabeça com as duas mãos como se quisesse arrancar à força de seu espírito agitado e em desordem um pensamento salvador Seu largo peito dilatouse uma idéia feliz luzira de repente na confusão de tantos pensamentos desencontrados que fermentavam no cérebro e reanimara sua coragem e força Era uma idéia original Peri lembrarase que o alpendre estava cheio de grandes talhas e vasos enormes contendo água potável vinhos fermentados licores selvagens de que os aventureiros faziam sempre uma ampla provisão Correu de novo ao saguão e encontrando a primeira talha tirou a torneira o liquido começou a derramarse pelo chão ia passar à segunda quando a voz que já lhe tinha falado soou de novo baixa mas ameaçadora Quem vai lá Peri compreendeu que a sua idéia ia ficar sem efeito e talvez não servisse senão de apressar o que ele queria evitar Não hesitou pois e quando o aventureiro que falava erguiase sentiu duas tenazes vivas que caiam sobre o seu pescoço e o estrangulavam como uma golilha de ferro antes que pudesse soltar um grito O índio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer o menor rumor e consumou a sua obra todas as talhas do alpendre esvaziaram se a pouco e pouco e inundavam o chão Dentro de um segundo a frialdade acordaria todos os homens adormecidos e os obrigaria a sair do alpendre era o que Peri esperava Livre do maior perigo o índio rodeou a casa para ver se tudo estava em sossego e teve então ocasião de notar que por todo o edifício tinham disposto feixes de palha para atear um incêndio Peri inutilizando estes preparativos chegou ao canto da casa que ficava defronte de sua cabana parecia procurar alguém Aí ouviu a respiração ofegante de um homem cosido com a parede junto do jardim de Cecília O índio tirou a sua faca a noite estava tão escura que era impossível descobrir a menor sombra o menor vulto entre as trevas Mas ele conheceu Rui Soeiro Peri tinha o ouvido sutil e delicado e o faro do selvagem que dispensa a vista o som da respiração servialhe de alvo escutou um momento ergueu o braço e a faca enterrandose na boca da vitima cortoulhe a garganta Nem um gemido escapou da massa inerte que se estorceu um momento e quedou de encontro ao muro Peri apanhou o arco que encostara à parede e voltandose para lançar um olhar sobre o quarto de Cecília estremeceu Acabava de ver pela soleira da porta o reflexo vivo de uma luz e logo depois sobre a folhagem do óleo um clarão que indicava estar a janela aberta Ergueu os braços com um desespero e uma angústia inexprimível estava a dois passos de sua senhora e entretanto um muro e uma porta o separavam dela que talvez àquela hora corria um perigo iminente Que ia fazer Precipitarse de encontro a essa porta quebrála espedaçála Mas podia aquela luz não significar coisa alguma e a janela ter sido aberta por Cecília Este último pensamento tranqüilizouo tanto mais quando nada revelava a existência de um perigo quando tudo estava em sossego no jardim e no quarto da menina Lançouse para a cabana e segurandose às folhas da palmeira galgou o ramo do óleo e aproximouse para ver por que sua senhora estava acordada àquela hora O espetáculo que se apresentou diante de seus olhos fez correrlhe um calafrio pelo corpo a gelosia aberta deixoulhe ver a menina adormecida e o italiano que tendo aberto a porta do jardim dirigiase ao leito Um grito de desespero e de agonia ia romperlhe do seio mas o índio mordendo os lábios com força reprimiu a voz que se escapou apenas num som rouco e plangente Então prendendose à árvore com as pernas o índio estendeuse ao longo do galho e esticou a corda do arco O coração batialhe violentamente e por um momento o seu braço tremeu só com a idéia de que a sua flecha tinha de passar perto de Cecília Quando porém a mão do italiano se adiantou e ia tocar o corpo da menina não pensou não viu mais nada senão esses dedos prestes a mancharem com o seu contato o corpo de sua senhora não se lembrou senão dessa horrível profanação A flecha partiu rápida pronta e veloz como o seu pensamento a mão do italiano estava pregada ao muro Foi só então que Peri refletiu que teria sido mais acertado ferir essa mão na fonte da vida que a animava fulminar o corpo a que pertencia esse braço a segunda seta partiu sobre a primeira e o italiano teria deixado de existir se a dor não o obrigara a curvarse VI REVOLTA Quando Peri acabou de refletir sobre o que passara ergueuse abriu de novo a porta fechoua por dentro e seguiu pelo corredor que ia do quarto de Cecília ao interior da casa Estava tranqüilo sobre o futuro sabia que Bento Simões e Rui Soeiro não o incomodariam mais que o italiano não lhe podia escapar e que àquela hora todos os aventureiros deviam estar acordados mas julgou prudente prevenir D Antônio de Mariz do que ocorria A esse tempo Loredano já tinha chegado à alpendrada onde o esperava uma nova e terrível surpresa uma última decepção Lançandose do quarto de Cecília sua intenção era ganhar o fundo da casa pronunciar a senha convencionada e senhor do campo voltar com seus cúmplices raptar a menina e vingarse de Peri Mal sabia porém que o índio tinha destruído toda a sua maquinação chegando ao pátio viu o alpendre iluminado por fachos e todos os aventureiros de pé cercando um objeto que não pôde distinguir Aproximouse e descobriu o corpo de seu cúmplice Bento Simões que jazia no chão alagado do pavimento o aventureiro tinha os olhos saltados das órbitas a língua saída da boca o pescoço cheio de contusões todos os sinais enfim de uma estrangulação violenta De lívido que estava o italiano tornouse verde procurou com os olhos a Rui Soeiro e não o viu decididamente o castigo da Providência caia sobre as suas cabeças conheceu que estava irremediavelmente perdido e que só a audácia e o desespero o podiam salvar A extremidade em que se achava inspiroulhe uma idéia digna dele ia tirar partido para seus fins daquele mesmo fato que parecia destruílos ia fazer do castigo uma arma de vingança Os aventureiros espantados sem compreenderem o que viam olhavamse e murmuravam em voz baixa fazendo suposições sobre a morte do seu companheiro Uns despertados de sobressalto pela água que corria das talhas outros que não dormiam apenas admirados se haviam erguido e no meio de um coro de imprecações e blasfêmias acenderam fachos para ver a causa daquela inundação Foi então que descobriram o corpo de Bento Simões e ficaram ainda mais surpreendidos os cúmplices temendo que aquilo não fosse um começo de punição os outros indignados pelo assassinato de seu companheiro Loredano percebeu o que passava no espírito dos aventureiros Não sabeis o que significa isto disse ele Oh não explicainos exclamaram os aventureiros Isto significa continuou o italiano que há nesta casa uma víbora uma serpente que nós alimentamos no nosso seio e que nos morderá a todos com o seu dente envenenado Como Que quereis dizer Falai Olhai disse o frade apontando para o cadáver e mostrando a sua mão ferida eis a primeira vítima e a segunda que escapou por um milagre a terceira Quem sabe o que é feito de Rui Soeiro É verdade onde está Rui disse Martim Vaz Talvez morto também Depois dele virá outro e outro até que sejamos exterminados um por um até que todos os cristãos tenham sido sacrificados Mas por quem Dizei o nome do vil assassino É preciso um exemplo O nome E não adivinhais respondeu o italiano Não adivinhais quem nesta casa pode desejar a morte dos brancos e a destruição da nossa religião Quem senão o herege o gentio o selvagem traidor e infame Peri exclamaram os aventureiros Sim esse índio que conta assassinarnos a todos para saciar a sua vingança Não há de ser assim como dizeis eu vos juro Loredano exclamou Vasco Afonso Bofé gritou outro deixai isto por minha conta Não vos dê cuidado E não passa desta noite O corpo de Bento Simões pede justiça E justiça será feita Neste mesmo instante Sim agora mesmo Eia Seguime Loredano ouvia estas exclamações rápidas que denunciavam como a exacerbação ia lavrando com intensidade quando porém os aventureiros quiseram lançarse em procura do índio ele os conteve com um gesto Não lhe convinha isto a morte de Peri era coisa acidental para ele o seu fim principal era outro e esperava conseguilo facilmente O que ides fazer perguntou imperativamente aos seus companheiros Os aventureiros ficaram pasmados com semelhante pergunta Ides matálo Mas decerto E não sabeis que não podereis fazêlo Que ele é protegido amado estimado por aqueles que pouco se importam se morremos ou vivemos Seja embora protegido quando é criminoso Como vos iludis Quem o julgará criminoso Vós Pois bem outros julgarão inocente e o defenderão e não tereis remédio senão curvar a cabeça e calarvos Oh isso é demais Julgais que somos alimárias que se podem matar impunemente retrucou Martim Vaz Sois piores que alimárias sois escravos Por São Brás tendes razão Loredano Vereis morrer vossos companheiros assassinados infamemente e não podereis vingálos e sereis obrigado a tragar até as vossas queixas porque o assassino é sagrado Sim não o podereis tocar repito Pois bem eu volo mostrarei E eu gritou toda a banda Qual é vossa tenção perguntou o italiano A nossa tenção é pedirmos a D Antônio de Mariz que nos entregue o assassino de Bento Justo E se ele recusar estamos desligados do nosso juramento e faremos justiça pelas nossas mãos Procedeis como homens de brio e pundonor liguemonos todos e vereis que obteremos reparação mas para isto é preciso firmeza e vontade Não percamos tempo Quem de vós se incumbe de ir como parlamentário a D Antônio Um aventureiro dos mais audazes e turbulentos da banda ofereceuse chamavase João Feio Serei eu Sabeis o que lhe deveis dizer Oh ficai descansado Ouvirá boas Ides já Neste instante Uma voz calma sonora e de grave entonação uma voz que fez estremecer todos os aventureiros soou na entrada do alpendre Não é preciso irdes pois que vim Aqui me tendes D Antônio de Mariz calmo e impassível adiantouse até o meio do grupo e cruzando os braços sobre o peito volveu lentamente pelos aventureiros o seu olhar severo O fidalgo não tinha uma só arma e entretanto o aspecto de sua fisionomia venerável a firmeza de sua voz e altivez de seu gesto nobre bastaram para fazer curvar a cabeça de todos esses homens que ameaçavam Advertido por Peri dos acontecimentos que tinham tido lagar naquela noite D Antônio de Mariz ia sair quando apareceram Álvaro e Aires Gomes O escudeiro que depois de sua conversa com mestre Nunes tinha adormecido fora despertado de repente pelas imprecações e gritos que soltavam os aventureiros quando a água começou a invadir as esteiras em que estavam deitados Admirado desse rumor extraordinário Aires bateu o fuzil acendeu a vela e dirigiuse para a porta para conhecer o que perturbava o seu sono a porta como sabemos estava fechada e sem chave O escudeiro esfregou os olhos para certificarse do que via e acordando Nunes perguntoulhe quem tomara aquela medida de precaução seu amigo ignorava como ele Nesse momento ouviase a voz do italiano que excitava os aventureiros à revolta Aires Gomes percebeu então do que se tratava Agarrou mestre Nunes encostouo à parede como se fosse uma escada e sem dizer palavra trepou do catre sobre seus ombros e levantando as telhas com a cabeça enfiou por entre as ripas dos caibros Apenas ganhou o telhado o escudeiro pensou no que devia fazer e assentou que o verdadeiro era dar parte a Álvaro e ao fidalgo a quem cabia tomar as providências que o acaso pedia D Antônio de Mariz sem se perturbar ouviu a narração do escudeiro como tinha ouvido a do índio Bem meus amigos sei o que me cumpre fazer Nada de rumor não perturbemos o sossego da casa estou certo que isto passará Esperaime aqui Não posso deixar que vos arrisqueis só disse Álvaro dando um passo para seguilo Ficai vós e estes dois amigos dedicados velareis sobre minha mulher Cecília e Isabel Nas circunstâncias em que nos achamos assim é preciso Consenti ao menos que um de nós vos acompanhe Não basta a minha presença enquanto que aqui todo o vosso valor e fidelidade não bastam para o tesouro que confio à vossa guarda O fidalgo tomou o seu chapéu e poucos momentos depois aparecia imprevistamente no meio dos aventureiros que trêmulos cabisbaixos corridos de vergonha não ousavam proferir uma palavra Aqui me tendes repetiu o cavalheiro Dizei o que quereis de D Antônio de Mariz e dizeio claro e breve Se for de justiça sereis satisfeitos se for uma falta tereis a punição que merecerdes Nem um dos aventureiros ousou levantar os olhos todos emudeceram Calaivos Passase então aqui alguma coisa que não vos atreveis a revelar Acaso vermeei obrigado a castigar severamente um primeiro exemplo de revolta e desobediência Falai Quero saber o nome dos culpados O mesmo silêncio respondeu às palavras firmes e graves do velho fidalgo Loredano hesitava desde o princípio desta cena não tinha a coragem necessária para apresentarse em face de D Antônio mas também sentia que se ele deixasse as coisas marcharem pela maneira por que iam estava infalivelmente perdido Adiantouse Não há aqui culpados Sr D Antônio de Mariz disse o italiano animandose progressivamente há homens que são tratados como cães que são sacrificados a um capricho vosso e que estão resolvidos a reivindicarem os seus foros de homens e de cristãos Sim gritaram os aventureiros reanimandose Queremos que se respeite a nossa vida Não somos escravos Obedecemos mas não nos cativamos Valemos mais que um herege Temos arriscado a nossa existência para defendervos D Antônio ouviu impassível todas estas exclamações que iam subindo gradualmente ao tom da ameaça Silêncio vilões Esqueceis que D Antônio de Mariz ainda tem bastante força para arrancar a língua que o pretendesse insultar Miseráveis que lembrais o dever como um beneficio Arriscastes a vossa vida para defenderme E qual era a vossa obrigação homens que vendeis o vosso braço e sangue ao que melhor paga Sim Sois menos que escravos menos que cães menos que feras Sois traidores infames e refeces Mereceis mais do que a morte mereceis o desprezo Os aventureiros cuja raiva fermentava surdamente não se contiveram mais das palavras de ameaça passaram ao gesto Amigos gritou Loredano aproveitando habilmente o ensejo Deixareis que vos insultem atrozmente que vos cuspam o desprezo na cara E por que motivo Não Nunca vociferaram os aventureiros furiosos Desembainhando as adagas estreitaram o círculo ao redor de D Antônio de Mariz era uma confusão de gritos injúrias ameaças que corriam por todas as bocas enquanto os braços suspensos hesitavam ainda em lançar o golpe D Antônio de Mariz sereno majestoso calmo olhava todas essas fisionomias decompostas com um sorriso de escárnio e sempre altivo e sobranceiro parecia sob os punhais que o ameaçavam não a vítima que ia ser imolada mas o senhor que mandava VII OS SELVAGENS Os aventureiros com o punhal erguido ameaçavam mas não se animavam a romper o estreito círculo que os separava de D Antônio de Mariz O respeito essa força moral tão poderosa dominava ainda a alma daqueles homens cegos pela cólera e pela exaltação todos esperavam que o primeiro ferisse e nenhum tinha a coragem de ser o primeiro Loredano conheceu que era necessário um exemplo o desespero de sua posição as paixões ardentes que tumultuavam em seu coração deramlhe o delírio que supre o valor nas circunstâncias extremas O aventureiro apertou convulsivamente o cabo de sua faca e fechando os olhos e dando um passo às cegas ergueu a mão para desfechar o golpe O fidalgo com um gesto nobre afastou o seio do gibão e descobriu o peito nem um tremor imperceptível agitou os músculos de seu rosto sua fronte alta conservou a mesma serenidade o seu olhar límpido e brilhante não se turvou Tal era a influência magnética que exercia essa coragem nobre e altiva que o braço do italiano tremeu e a ponta do ferro tocando a véstia do fidalgo paralisou os dedos hirtos do assassino D Antônio sorriu com desdém e abaixando a sua mão fechada sobre o alto da cabeça de Loredano abateuo a suas plantas como uma massa bruta e inerte então erguendo a ponta do pé à fronte do italiano o estendeu de costas sobre o pavimento O baque do corpo no chão ecoou no meio de um silêncio profundo todos os aventureiros mudos e estáticos pareciam querer sumirse pelo seio da terra Abaixai as armas miseráveis O ferro que há de ferir o peito de D Antônio de Mariz não será manchado pela mão cobarde e traiçoeira de vis assassinos Deus reserva uma morte justa e gloriosa àqueles que viveram uma vida honrada Os aventureiros artudidos embainharam maquinalmente os punhais aquela palavra sonora calma e firme tinha um acento tão imperativo uma tal força de vontade que era impossível resistir O castigo que vos espera há de ser rigoroso não deveis contar com a clemência nem com o perdão quatro dentre vós à sorte sofrerão a pena de homizio os outros farão o oficio dos executores da alta justiça Bem vedes que tanto a pena como o ofício são dignos de vós O fidalgo pronunciou estas palavras com um soberano desprezo e encarou os aventureiros como para ver se dentre eles partia alguma reclamação algum murmúrio de desobediência mas todos esses homens há pouco furiosos estavam agora humildes e cabisbaixos Dentro de uma hora continuou o cavalheiro apontando para o corpo de Loredano este homem será justiçado à frente da banda para ele não há julgamento eu o condeno como pai como chefe como um homem que mata o cão ingrato que o morde É ignóbil demais para que o toque com as minhas armas entregoo ao baraço e ao cutelo Com a mesma impassibilidade e o mesmo sossego que conservava desde o momento em que aparecera imprevistamente o velho fidalgo atravessou por entre os aventureiros imóveis e respeitosos e caminhou para a saída Aí voltouse e levando a mão ao chapéu descobriu a sua bela cabeça encanecida que destacava sobre o fundo negro da noite e no meio do clarão avermelhado das tochas com um vigor de colorido admirável Se algum de vós der o menor sinal de desobediência se uma das minhas ordens não for cumprida pronta e fielmente eu D Antônio de Mariz vos juro por Deus e pela minha honra que desta casa não sairá um homem vivo Sois trinta mas a vossa vida de todos vós tenhoa na minha mão bastame um movimento para exterminarvos e livrar a terra de trinta assassinos No momento em que o fidalgo ia retirarse apareceu Álvaro pálido de emoção mas brilhante de coragem e indignação Quem se animou aqui a erguer a voz para D Antônio de Mariz exclamou o moço O velho fidalgo sorrindo com orgulho pôs a mão no braço do cavalheiro Não vos ocupeis disto Álvaro sois bastante nobre para vingar uma afronta desta natureza e eu bastante superior para não ser ofendido por ela Mas senhor cumpre que se dê um exemplo O exemplo vai ser dado e como cumpre Aqui não há senão culpados e executores da pena O lugar não vos compete Vinde O moço não resistiu e acompanhou D Antônio de Mariz que se dirigiu lentamente a sala onde achou Aires Comes Quanto a Peri voltara ao jardim de Cecília decidido a defender sua senhora contra o mundo inteiro O dia vinha rompendo O fidalgo chamou Aires Gomes e entrou com ele no seu gabinete de armas onde tiveram uma longa conferência de meia hora O que aí se passou ficou em segredo entre Deus e estes dois homens apenas Álvaro notou quando a porta do gabinete se abriu que D Antônio estava pensativo e o escudeiro lívido como um morto Neste momento ouviuse um pequeno rumor na entrada da sala quatro aventureiros parados imóveis esperavam uma ordem do fidalgo para se aproximarem D Antônio fezlhes um sinal e eles vieram ajoelharse a seus pés as lágrimas rolavam por essas faces queimadas pelo sol e a palavra tremia balbuciante nesses lábios pálidos que há instantes vomitavam ameaças Que significa isto perguntou o cavalheiro com severidade Um dos aventureiros respondeu Viemonos entregar em vossas mãos preferimos apelar para o vosso coração do que recorrer às armas para escaparmos à punição de nossa falta E vossos companheiros replicou o fidalgo Deus lhes perdoe senhor a enormidade do crime que vão cometer Depois que vos retirastes tudo mudou preparamse para atacarvos Que venham disse D Antônio eu os receberei Mas vós por que não os acompanhais Não sabeis que D Antônio de Mariz perdoa uma falta mas nunca uma desobediência Embora disse o aventureiro que falava em nome de seus camaradas aceitaremos de bom grado o castigo que nos impuserdes Mandai que obedeceremos Somos quatro contra vinte e tantos dainos essa punição de morrer defendendovos de reparar pela nossa morte um momento de alucinação É a graça que vos pedimos D Antônio olhou admirado os homens que estavam ajoelhados a seus pés e reconheceu neles os restos dos seus antigos companheiros de armas do tempo em que o velho fidalgo combatia os inimigos de Portugal Sentiuse comovido sua alma grande e inabalável no meio do perigo orgulhosa em face da ameaça deixavase facilmente dominar pelos sentimentos nobres e generosos Essa prova de fidelidade que davam aqueles quatro homens na ocasião da revolta geral dos seus companheiros a ação que acabavam de praticar e o sacrifício com que desejavam expiar a sua falta elevouos no espírito do fidalgo Ergueivos Reconheçovos Já não sois os traidores que há pouco repreendi sois os bravos companheiros que pelejastes a meu lado o que fazeis agora esquece o que fizestes há uma hora Sim Mereceis que morramos juntos combatendo ainda uma vez na mesma fileira D Antônio de Mariz vos perdoa Podeis levantar a cabeça e trazêla alta Os aventureiros ergueramse radiantes do perdão que o nobre fidalgo tinha lançado sobre suas cabeças todos eles estavam prontos a dar sua vida para salvarem o seu chefe O que tinha ocorrido depois da saída de D Antônio do alpendre seria longo de escrever Loredano tornando a si da vertigem que lhe causara o atordoamento e a violência da queda soube da ordem que havia a seu respeito Não era preciso tanto para que o audaz aventureiro recorresse à sua eloqüência a fim de excitar de novo à revolta Pintou a posição de todos como desesperada atribuiu o seu castigo e as desgraças que iam suceder ao fanatismo que havia por Peri esgotou enfim os recursos da sua inteligência D Antônio não estava mais ai para conter com a sua presença a cólera que ia fermentando a excitação que começava a lavrar a princípio surdamente as queixas e os murmúrios que afinal fizeram coro Um incidente veio atear a chama que lastrava Peri apenas começou a romper o dia viu a alguma distancia do jardim o cadáver de Rui Soeiro e temendo que sua senhora acordando presenciasse esse triste espetáculo tomou o corpo e atravessando a esplanada veio atirálo no meio do pátio Os aventureiros empalideceram e ficaram estupefatos depois rompeu a indignação feroz raivosa delirante estavam como possessos de furor e vingança Não houve mais hesitação a revolta pronunciouse apenas o pequeno grupo de quatro homens que desde a saída de D Antônio se conservava em distancia não tomou parte na insubordinação Ao contrário quando viram que seus companheiros com Loredano à frente se preparavam para atacar o fidalgo foram como vimos oferecerse voluntariamente ao castigo e reunirse ao seu chefe para partilharem a sua sorte Pouco tardou para que João Feio não se apresentasse como parlamentário da parte dos revoltosos o fidalgo não o deixou falar Dize a teus companheiros rebelde que D Antônio de Mariz manda e não discute condições que eles estão condenados e verão se sei ou não cumprir o meu juramento O fidalgo tratou então de dispor os seus meios de defesa apenas podia contar com quatorze combatentes ele Álvaro Peri Aires Comes mestre Nunes com os seus companheiros e os quatro homens que se haviam conservado fiéis os inimigos eram em número de vinte e tantos Toda a sua família já então despertada recebeu a triste noticia de tantos acontecimentos passados durante aquela noite fatal D Lauriana Cecília e Isabel recolheramse ao oratório e rezavam enquanto se preparava tudo para uma resistência desesperada Os aventureiros comandados por Loredano arregimentaramse e marcharam para a casa dispostos a dar um assalto terrível o seu furor redobrava tanto mais quanto o remorso no fundo da consciência começava a mostrarlhes toda a hediondez de sua ação No momento em que dobravam o canto ouviuse um som rouco que se prolongou pelo espaço como o eco surdo de um trovão em distancia Peri estremeceu e lançandose para a beira da esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta Quase ao mesmo tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano caiu traspassado por uma flecha Os Aimorés Apenas soltou Peri esta exclamação uma linha movediça longo arco de cores vivas e brilhantes agitouse ao longe da planície irradiando à luz do sol nascente Homens quase nus de estatura gigantesca e aspecto feroz cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates armados de grossas clavas e arcos enormes avançavam soltando gritos medonhos A inúbia retroava o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras Os Aimorés repetiram os aventureiros empalidecendo VIII DESÂNIMO Dois dias passaram depois da chegada dos Aimorés a posição de D Antônio de Mariz e de sua família era desesperada Os selvagens tinham atacado a casa com uma força extraordinária diante deles a índia terrível de ódio os excitava à vingança As setas escurecendo o ar abatiamse como uma nuvem sobre a esplanada e crivavam as portas e as paredes do edifício À vista do perigo iminente que corriam todos os aventureiros revoltados retiraramse e trataram de defenderse do ataque dos selvagens Houve como que um armistício entre os rebeldes e o fidalgo sem se reunirem os aventureiros conheceram que deviam combater o inimigo comum embora depois levassem ao cabo a sua revolta D Antônio de Mariz encastelado na parte da casa que habitavam rodeado de sua família e de seus amigos fiéis resolvera defender até à última extremidade esses penhores confiados ao seu amor de esposo e de pai Se a Providência não permitisse que um milagre os viesse salvar morreriam todos mas ele contava ser o último a fim de velar que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto Era o seu dever de pai e o seu dever de chefe como o capitão que é o último a abandonar o seu navio ele seria o último a abandonar a vida depois de ter assegurado às cinzas dos seus o respeito que se deve aos mortos Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e tão animada Parte do edifício que tocava com o fundo onde habitavam os aventureiros tinha sido abandonada por prudência D Antônio concentrara sua família no interior da habitação para evitar algum acidente Cecília deixara o seu quartinho tão lindo e tão mimoso e nele estabelecera Peri o seu quartelgeneral e o seu centro de operações porque é preciso dizer o índio não partilhava o desanimo geral e tinha uma confiança inabalável nos seus recursos Seriam dez horas da noite a lâmpada de prata suspensa no teto da grande sala iluminava uma cena triste e silenciosa Todas as janelas e portas estavam fechadas de vez em quando ouviase o estrépito que fazia uma seta cravandose na madeira ou enfiandose por entre as telhas Nas duas extremidades da sala e na frente tinhamse praticado no alto da parede algumas seteiras junto das quais os aventureiros faziam à noite uma sentinela constante a fim de prevenir uma surpresa D Antônio de Mariz sentado numa cadeira de espaldar sob o dossel repousava um instante o dia fora rude os índios tinham investido por diferentes vezes a escada de pedra da esplanada e o fidalgo com o pequeno número de combatentes de que dispunha e com o auxilio da colubrina conseguira repelilos A sua clavina carregada descansava de encontro ao espaldar da cadeira e as suas pistolas estavam colocadas em cima de um bufete ao alcance do braço Sua bela cabeça encanecida pendida ao seio ressaltava sobre o veludo preto de seu gibão coberto por uma rede finíssima de malhas de aço que lhe guarnecia o peito Parecia adormecido mas de vez em quando erguia os olhos e corria o vasto aposento contemplando com uma melancolia extrema a cena que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala Depois voltava à mesma posição e continuava suas dolorosas reflexões o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem mas interiormente tinha perdido a esperança Do lado oposto Cecília recostada em um sofá parecia desfalecida seu rosto perdera a habitual vivacidade seu corpo ligeiro e gracioso alquebrado por tantas emoções prostravase com indolência sobre uma colcha de damasco A mãozinha caia imóvel como uma flor a que tivessem quebrado a haste delicada e os lábios descorados agitavamse às vezes murmurando uma prece De joelhos à beira do sofá Peri não tirava os olhos de sua senhora dirseia que aquela respiração branda que fazia ondular os seios da menina e que se exalava de sua boca entreaberta era o sopro que alimentava a vida do índio Desde o momento da revolta não deixou mais Cecília seguiaa como uma sombra sua dedicação já tão admirável tinha tocado o sublime com a iminência do perigo Durante estes dois dias ele havia feito coisas incríveis verdadeiras loucuras do heroísmo e abnegação Sucedia que um selvagem aproximandose da casa soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto à menina Peri lançavase como um raio e antes que tivesse tempo de contêlo passava entre uma nuvem de flechas chegava à beira da esplanada e com um tiro de sua clavina abatia o Aimoré que assustara sua senhora antes que ele tivesse tempo de soltar um segundo grito Cecília aflita e doente recusava tomar o alimento que sua mãe ou sua prima lhe traziam Peri correndo mil perigos arriscandose a despedaçarse nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagens ganhava a floresta e daí a uma hora voltava trazendo um fruto delicado um favo de mel envolto de flores uma caça esquisita que sua senhora tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação As loucuras do índio chegaram a ponto que Cecília foi obrigada a proibirlhe que saísse de junto dela e a guardálo à vista com receio de que não se fizesse matar a todo o momento Além da amizade que lhe tinha um quer que seja uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavam se alguma salvação podia haver para sua família seria à coragem à inteligência e à sublime abnegação de Peri que a deveriam Se ele morresse quem velaria sobre ela com a solicitude e o ardente zelo que tinha ao mesmo tempo o carinho de uma mãe a proteção de um pai a meiguice de um irmão Quem seria seu anjo da guarda para livrála de um pesar e ao mesmo tempo seu escravo para satisfazer o seu menor desejo Não Cecília não podia de modo algum admitir nem a possibilidade de que seu amigo viesse a morrer por isso mandou pediu e até suplicoulhe que não saísse de junto dela queria por sua vez ser para Peri o bom anjo de Deus o seu gênio protetor Do mesmo lado em que estava Cecília mas num outro canto da sala viase Isabel sentada de encontro à ombreira da janela enfiava um olhar ardente cheio de ansiedade e de susto por uma pequena fresta que ela entreabrira a furto O raio de luz que filtrava por esta aberta da janela servia de mira aos índios que faziam chover setas sobre setas naquela direção mas Isabel alheia de si nem se importava com o perigo que corria Ela olhava Álvaro que no alto da escada com a maior parte dos aventureiros fiéis fazia a guarda noturna o moço passeava pela esplanada ao abrigo de uma ligeira paliçada Cada seta que passava por sua cabeça cada movimento que fazia causava em Isabel uma aflição imensa sentia não poder estar junto dele para amparálo e receber a morte que lhe fosse destinada D Lauriana sentada em um dos degraus do oratório rezava a boa senhora era uma das pessoas que mais coragem e mais calma mostravam no transe horrível em que se achava a família animada pela sua fé religiosa e pelo sangue nobre que girava nas suas veias ela se tinha conservado digna de seu marido Fazia tudo quanto era possível pensava os feridos encorajava as meninas auxiliava os preparativos de defesa e ainda em cima dirigia sua casa como se nada se passasse Aires Gomes encostado à porta do gabinete com os braços cruzados e imóvel dormia o escudeiro guardava o posto que lhe fora confiado pelo fidalgo Desde a conferência que os dois tinham tido Aires se postara naquele lagar donde não saia senão quando D Antônio vinha sentarse na cadeira que havia junto da porta Dormia de pé porém mal um passo por mais sutil que fosse soava no pavimento acordava sobressaltado com a pistola em punho e a mão sobre o fecho da porta D Antônio de Mariz levantouse e passando à cinta as suas pistolas e tomando a sua clavina dirigiuse ao sofá onde repousava sua filha e beijoua na fronte fez o mesmo a Isabel abraçou sua mulher e saiu O fidalgo ia render a Álvaro que fazia o seu quarto desde o anoitecer poucos momentos depois de sua saída a porta abriuse de novo e o cavalheiro entrou Álvaro trajava um gibão de lã forrado de escarlate quando ele apareceu no vão da porta Isabel soltou um grito fraco e correu para ele Estais ferido perguntou a moça com ansiedade e tomandolhe as mãos Não respondeu o moço admirado Ah exclamou Isabel respirando Tinhase iludido o rasgão que uma flecha fizera sobre o ombro mostrando o forro escarlate do gibão tinha de repente lhe parecido uma ferida Álvaro procurou desprender suas mãos das mãos de Isabel mas a moca suplicandoo com o olhar e arrastandoo docemente levouo até o lugar onde estava há pouco e obrigou o cavalheiro a sentarse junto dela Muitos acontecimentos se tinham passado entre eles nestes dois dias há circunstâncias em que os sentimentos marcham com uma rapidez extraordinária e devoram meses e anos num só minuto Reunidos nesta sala pela necessidade extrema do perigo vendose a cada momento trocando ora uma palavra ora um olhar sentindose enfim perto um do outro esses dois corações se não se amavam compreendiamse ao menos Álvaro fugia e evitava Isabel tinha medo desse amor ardente que o envolvia num olhar dessa paixão profunda e resignada que se curvava a seus pés sorrindo melancolicamente Sentiase fraco para resistir e entretanto o seu dever mandava que resistisse Ele amava ou cuidava amar ainda Cecília prometera a seu pai ser seu marido e na situação em que se achavam aquela promessa era mais do que um juramento era uma necessidade imperiosa uma fatalidade que se devia cumprir Como podia ele pois alimentar uma esperança de Isabel Não seria infame indigno aceitar o amor que ela lhe oferecera suplicando Não era seu dever destruir naquele coração esse sentimento impossível Álvaro pensava assim e evitava todas as ocasiões de estar só com a moça porque conhecia a impressão veemente a atração poderosa que exercia essa beleza fascinadora quando a paixão animandoa cercavaa de um brilho deslumbrante Dizia a si mesmo que não amava que nunca amaria Isabel Entretanto sabia que se ele a visse outra vez como no momento em que lhe confessara seu amor cairia de joelhos a seus pés e esqueceria o dever a honra tudo por ela A luta era terrível mas a alma nobre do cavalheiro não cedia e combatia heroicamente podia ser vencida mas depois de ter feito o que fosse possível ao homem para conservarse fiel à sua promessa O que tornava a lata ainda mais violenta era que Isabel não o perseguia com o seu amor depois daquela primeira alucinação concentravase e resignada amava sem esperança de nunca ser amada IX ESPERANÇA Sentandose junto da moça Álvaro sentiu a sua coragem vacilar Que me quereis Isabel perguntou ele com a voz um pouco trêmula A menina não respondeu estava embebida a contemplar o moço saciavase de olhálo de sentilo junto de si depois de ter sofrido a angústia de ver a morte rogando a sua cabeça e ameaçando a sua vida É preciso amar para compreender essa voluptuosidade do olhar que se repousa sobre o objeto amado que não se cansa de ver aquilo que está impresso na imaginação mas que tem sempre um novo encanto Deixaime olharvos respondeu Isabel suplicando Quem sabe Talvez seja pela última vez Por que essas idéias tristes disse Álvaro com brandura A esperança ainda não está de todo perdida Que importa exclamou a moça Ainda há pouco vos vi de longe que passeáveis sobre a esplanada e a cada momento me parecia que uma seta vos tocava vos feria e Como Tivestes a imprudência de abrir a janela O moço voltouse e estremeceu vendo a janela entreaberta crivada da parte exterior pelas setas dos selvagens Meu Deus exclamou ele por que expondes assim a vossa vida Isabel Que vale a minha vida para que a conserve disse a moça animandose Tem ela algum prazer alguma ventura que me prenda De que serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso de nossa alma A minha felicidade é acompanharvos com os olhos e com o pensamento Se esta felicidade me deve custar a vida embora Não faleis assim Isabel que me partis a alma E como quereis que fale Mentirvos é impossível depois daquele dia em que trai o meu segredo de escravo que ele era tornouse senhor senhor despótico e absoluto Sei que vos faço sofrer Nunca disse semelhante coisa Sois bastante generoso para dizêlo mas sentis Eu conheço eu leio nos vossos menores movimentos Vós me estimais talvez como irmão mas fugis de mim e tendes receio que Cecília pense que me amais não é verdade Não exclamou Álvaro insensivelmente tenho receio tenho medo mas é de amarvos Isabel sentiu uma comoção tão violenta ouvindo as palavras rápidas do moço que ficou como estática sem fazer um movimento as palpitações fortes do seu coração a sufocavam Álvaro não estava menos comovido subjugado por aquele amor ardente impressionado pela abnegação da menina que expunha sua vida só para acompanhálo de longe com um olhar e protegêlo com a sua solicitude tinha deixado escapar o segredo da luta que se passava em sua alma Mas apenas pronunciara aquelas palavras imprudentes conseguiu dominarse e tornandose frio e reservado falou a Isabel em um tom grave Sabeis que amo Cecília mas ignorais que prometi a seu pai ser seu marido Enquanto ele por sua livre vontade não me desligar de minha promessa estou obrigado a cumprila Quanto ao meu amor este me pertence e só a morte me pode desligar dele No dia em que eu amasse outra mulher que não ela me condenaria a mim mesmo como um homem desleal O moço voltouse para Isabel com um triste sorriso E compreendeis o que faz um homem desleal que tem ainda a consciência precisa para se julgar a si Os olhos da moça brilharam com um fogo sinistro Oh compreendo É o mesmo que faz a mulher que ama sem esperança e cujo amor é um insulto ou um sofrimento para aquele a quem ama Isabel exclamou Álvaro estremecendo Tendes razão Só a morte pode desligar de um primeiro e santo amor aos corações como os nossos Deixaivos dessas idéias Isabel Credeme uma única razão pode justificar semelhante loucura Qual perguntou Isabel A desonra Há ainda outra respondeu a moça com exaltação outra menos egoísta mas tão nobre como esta a felicidade daqueles que se amam Não vos compreendo Quando se sabe que se pode ser uma causa de desgraça para aqueles que se estima melhor é desatar o único laço que nos prende à vida do que vêlo despedaçarse Não dizíeis que tendes medo de amarme Pois bem agora sou eu que tenho medo de ser amada Álvaro não soube o que responder estava numa terrível agitação conhecia Isabel e sabia que força tinham aquelas palavras ardentes que soltavam os lábios da moça Isabel disse ele tomandolhe as mãos Se me tendes alguma afeição não me recuseis a graça que vou pedirvos Repeli esses pensamentos Eu vos suplico A moça sorriuse melancolicamente Vós me suplicais Me pedis que conserve esta vida que recusastes Não é ela vossa Aceitaia e já não tereis que suplicar O olhar ardente de Isabel fascinava Álvaro não se pôde mais conter ergueuse e reclinandose ao ouvido da moça balbuciou Aceito Enquanto Isabel pálida de emoção e felicidade duvidava ainda da voz que ressoava no seu ouvido o moço tinha saído da sala Durante que Álvaro e Isabel conversavam a meia voz Peri continuava a contemplar a sua senhora O índio estava pensativo e viase que uma idéia o preocupava e absorvia toda a sua atenção Por fim levantouse e lançando um último olhar repassado de tristeza a Cecília encaminhouse lentamente para a porta da sala A menina fez um ligeiro movimento e levantou a cabeça Peri Ele estremeceu e voltando foi de novo ajoelharse junto do sofá Tu me prometeste não deixar tua senhora disse Cecília com uma doce exprobração Peri quer te salvar Como Tu saberás Deixa Peri fazer o que tem no pensamento Mas não correrás nem um perigo Por que perguntas isso senhora disse o índio timidamente Por quê exclamou Cecília levantandose com vivacidade Porque se para nos salvar é preciso que tu morras eu rejeito o teu sacrifício rejeitoo em meu nome e no de meu pai Sossega senhora Peri não teme o inimigo sabe o modo de vencêlo A menina abanou a cabeça com ar incrédulo Eles são tantos O índio sorriu com orgulho Sejam mil Peri vencerá a todos aos índios e aos brancos Ele pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do poder Contudo Cecília não podia acreditar o que ouvia parecialhe inconcebível que um homem só embora tivesse a dedicação e o heroísmo do índio pudesse vencer não só os aventureiros revoltados como os duzentos guerreiros Aimorés que assaltavam a casa Mas ela não contava com os recursos imensos de que dispunha essa inteligência vigorosa que tinha ao seu serviço um braço forte um corpo ágil e uma destreza admirável não sabia que o pensamento é a arma mais poderosa que Deus deu ao homem e que com ela se abatem os inimigos se quebra o ferro se doma o fogo e se vence por essa força irresistível e providencial que manda ao espírito dominar a matéria Não te iludas vais fazer um sacrifício inútil Não é possível que um homem só vença tantos inimigos ainda mesmo que esse homem seja Peri Tu verás respondeu o índio com segurança E quem te dará força para lutar contra um poder tão grande Quem Tu senhora tu só respondeu o índio fitando nela o seu olhar brilhante Cecília sorriu como devem sorrir os anjos Vai disse ela vai salvarnos Mas lembrate que se tu morreres Cecília não aceitará a vida que lhe deres Peri ergueuse O sol que se levantar amanhã será o último para todos os teus inimigos Ceci poderá sorrir como dantes e ficar alegre e contente A voz do índio tornouse trêmula sentindo que não podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e saiu Chegando à esplanada Peri olhou as estrelas que começavam a apagarse e viu que o dia pouco tardaria a raiar não tinha tempo a perder Qual era o projeto que havia concebido e que lhe dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado Que meio ousado tinha ele para contar com a destruição dos inimigos e a salvação de sua senhora Fora difícil adivinhar Peri guardava no fundo do coração esse segredo impenetrável e nem a si mesmo o dizia com receio de trairse e de anular efeito que esperava com uma confiança inabalável Tinha todos os inimigos na sua mão e bastavalhe um pouco de prudência para fulminálos a todos como a cólera celeste como o fogo de raio Peri dirigiuse ao jardim e entrou no quarto de Cecília então abandonado por sua senhora por causa da proximidade em que ficava do fundo da casa ocupada pelos aventureiros revoltados O quarto estava às escuras mas a tênue claridade que entrava pela janela bastava ao índio para distinguir os objetos perfeitamente a perfeição dos sentidos era um dom que os selvagens possuíam no mais alto grau Ele tomou suas armas uma a uma beijou as pistolas que Cecília lhe havia dado e deitouas no chão no meio do aposento tirou os seus ornatos de penas sua faixa de guerreiro a pluma brilhante do seu cocar e lançouos como um troféu sobre as suas armas Depois agarrou o seu grande arco de guerra apertouo ao seio e curvandoo de encontro ao joelho quebrouo em duas metades que foram juntarse às armas e aos ornatos Por algum tempo Peri contemplou com um sentimento de dor profunda esses despojos de sua vida selvagem esses emblemas de sua dedicação sublime por Cecília e de seu heroísmo admirável Em luta com essa emoção poderosa insensivelmente murmurou na sua língua algumas dessas palavras que a alma manda aos lábios nos momentos supremos Arma de Peri companheira e amiga adeus Teu senhor te abandona e te deixa contigo ele venceria contigo ninguém poderia vencêlo E ele quer ser vencido O índio levou a mão ao coração Sim Peri filho de Ararê primeiro de sua tribo forte entre os fortes guerreiro goitacá nunca vencido vai sucumbir na guerra A arma de Peri não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo o arco de Ararê já quebrado não salvará o filho Sua cabeça altiva e sobranceira enquanto pronunciava estas palavras caiulhe sobre o seio por fim venceu a sua emoção e cingindo nos seus braços esses troféus de suas armas e de suas insígnias de guerra estreitouas ao peito em um último abraço de despedida Um aroma agreste das plantas que começavam a se abrir com a aproximação do dia avisoulhe que a noite estava a acabar Quebrou a axorca de frutos que trazia na perna sobre o artelho como todos os selvagens este ornato era feito de pequenos cocos ligados por um fio e tingidos de amarelo Peri tomou dois destes frutos e partiuos com a faca sem contudo separar as cascas fechandoos então na sua mão levantou o braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrível e lançouse fora do aposento X NA BRECHA Quando Peri entrou no quarto de Cecília Loredano passeava do outro lado da esplanada em frente do alpendre O italiano refletia sobre os acontecimentos que haviam passado nos últimos dias sobre as vicissitudes que correra a sua vida e a sua fortuna Por diferentes vezes tinha posto o pé sobre o túmulo tinha tocado a sua última hora e a morte fugira dele e o respeitara Também por diferentes vezes havia encarado a felicidade o poder a fortuna e tudo se esvaecera como um sonho Quando à frente dos aventureiros revoltados ia atacar a D Antônio de Mariz que não lhe podia resistir os Aimorés tinham aparecido de repente e mudado a face das coisas A necessidade da defesa contra o inimigo comum trouxe uma suspensão de hostilidades acima da ambição estava o instinto da vida e da conservação A luta de interesses e de ódios cedeu à grande luta das raças inimigas Por isso no primeiro ataque dos selvagens todos por um movimento espontâneo trataram de repelir o inimigo e de salvar a casa da ruína que a ameaçava Depois separaramse de novo e sempre observandose sempre prontos a defenderemse um do outro os dois grupos continuaram a repelir os índios com a maior coragem No meio disto porém Loredano que se constituíra o chefe da revolta não abandonava o seu projeto de apoderarse de Cecília e vingarse de D Antônio de Mariz e de Álvaro Seu espírito tenaz trabalhava incessantemente procurando o meio de chegar àquele resultado atacar abertamente o fidalgo era uma loucura que não podia cometer A menor luta que houvesse entre eles entregavaos todos aos selvagens que excitados pela vingança e pelos seus instintos sanguinários e ferozes atacavam o edifício sem repouso e sem descanso A única barreira que continha os Aimorés era a posição inexpugnável da casa assentada sobre um rochedo apenas acessível por um ponto pela escada de pedra que descrevemos no primeiro capitulo desta história Esta escada era defendida por D Antônio de Mariz e pelos seus homens a ponte de madeira tinha sido destruída mas apesar disso os selvagens a substituiriam facilmente se não fosse a resistência desesperada que o fidalgo opunha aos seus ataques Desde o momento pois que impelido pelo seu amor D Antônio corresse em defesa de sua família e abandonasse a escada os duzentos guerreiros Aimorés se precipitariam sobre a casa e não havia coragem que lhes pudesse resistir O italiano que compreendia isto estava bem longe de tentar o menor ataque a peito descoberto a prudência o aconselhava então como o tinha aconselhado no dia do primeiro assalto O que ele procurava era um meio de sem estrépito sem luta imprevistamente fazer morrer D Antônio de Mariz Peri Álvaro e Aires Gomes feito isto os outros se reuniriam a ele pela necessidade da defesa e pelo instinto da conservação Tornarseia então senhor da casa ou repelia os índios salvava Cecília e realizava todos os seus sonhos de amor e de felicidade ou morria tendo ao menos esgotado até ao meio a taça do prazer que seus lábios nem sequer haviam tocado Era impossível que esse espírito satânico fixandose em uma idéia durante três dias não tivesse conseguido achar um meio para a consumação desse novo crime que planejara Não só o tinha achado mas já havia começado a pôlo em prática tudo o protegia até mesmo o inimigo que o deixava em repouso atacando unicamente o lado da casa protegido por D Antônio de Mariz Passeava pois embalandose de novo nas suas esperanças quando Martim Vaz saindo do alpendre chegouse a ele Uma com que não contávamos disse o aventureiro O quê perguntou o italiano com vivacidade Uma porta fechada Abrese Não com essa facilidade Veremos Está pregada por dentro Terão pressentido Foi a idéia que já tive Loredano fez um gesto de desespero Vem Os dois encaminharamse para o alpendre onde dormiam os aventureiros armados prontos ao menor sinal de ataque O italiano acordou João Feio e por precaução mandouo fazer a guarda na esplanada apesar de não haver receio que os selvagens atacassem do seu lado O aventureiro ainda tonto de sono ergueuse e saiu Loredano e seu companheiro caminharam para uma sala interior que servia de cozinha e despensa a esta parte da casa Quando iam entrar a luz que o aventureiro levava na mão para esclarecer o caminho apagouse de repente Sois um desazado disse Loredano contrariado E tenho eu culpa Queixaivos do vento Bom não gasteis o tempo em palavras Tirai fogo O aventureiro voltou a procurar o seu fuzil Loredano ficou em pé na porta à espera que o seu companheiro voltasse e pareceulhe ouvir perto dele a respiração de um homem Aplicou o ouvido para certificarse e por segurança tirou o seu punhal e colocouse no centro da porta para impedir a saída de quem quer que fosse Não ouviu mais nada porém sentiu de repente um corpo frio e gelado que tocoulhe a fronte o italiano recuou e brandindo a sua faca deu um golpe às escuras Pareceulhe que tinha tocado alguma coisa entretanto tudo conservouse no mais profundo silêncio O aventureiro voltou trazendo a luz É singular disse ele o vento pode apagar uma candeia mas não lhe tira o pavio O vento dizeis Acaso o vento tem sangue Que quereis dizer Que o vento que apagou a vela é o mesmo que deixou o seu sinal neste ferro E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca cuja ponta estava tinta de sangue ainda liquido Há aqui então um inimigo Decerto os amigos não precisam ocultarse Nisto ouviram um rumor no telhado e um morcego passou agitando lentamente as grandes asas estava ferido Eis o inimigo exclamou Martim rindose É verdade respondeu Loredano no mesmo tom confesso que já tive medo de um morcego Tranqüilos a respeito do incidente que os havia demorado os dois entraram na cozinha e daí por uma brecha estreita praticada na parede penetraram no interior da casa há pouco habitada por D Antônio de Mariz e sua família Atravessaram parte do edifício e chegaram a uma varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecília e do outro com o oratório e o gabinete de armas do fidalgo Aí o aventureiro parou e mostrando a Loredano a porta adufada de jacarandá que dava entrada para o gabinete disselhe Não é com duas razões que a deitaremos dentro Loredano aproximouse e reconheceu que a solidez e fortaleza da porta não lhe permitia a menor violência todo o seu plano estava destruído Contava durante a noite se introduzir furtivamente na sala e assassinar a D Antônio de Mariz Aires Gomes e Álvaro antes que eles pudessem ser socorridos por seus companheiros consumado o crime estava senhor da casa Como remover o obstáculo que lhe aparecia A menor violência contra a porta despertaria a atenção de D Antônio de Mariz e inutilizaria todo o seu projeto Enquanto refletia nisso os seus olhos caíram sobre uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratório e que servia mais para dar ar do que luz Por esta abertura o italiano conheceu que aquela parte da parede era singela e feita de um só tijolo com efeito o oratório tinha sido outrora um corredor largo que ia da varanda à sala e que fora separado por uma ligeira divisão Loredano mediu a parede de alto a baixo e acenou ao seu companheiro É por aqui que havemos de entrar disse ele apontando para a parede Como A menos de não ser um mosquito para passar por aquela fresta Esta parede assenta sobre uma viga tirada ela está aberto o caminho Entendo Antes que possam tomar a si do susto teremos acabado O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco da parede e descobriu a viga que lhe servia de alicerce Então Não há dúvida Daqui a duas horas douvos isto pronto Martim Vaz depois da morte de Rui Soeiro e Bento Simões tinhase tornado o braço direito de Loredano era o único a quem o italiano confiara o seu segredo oculto para os outros em quem receava ainda a influência de D Antônio de Mariz O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho e voltou pelo mesmo caminho chegando à cozinha sentiuse sufocado por uma fumaça espessa que enchia todo o alpendre Os aventureiros acordados de repente blasfemavam conta o autor de semelhante lembrança Quando Loredano no meio deles procurava indagar a causa do que sucedia João Feio apareceu na entrada do alpendre Havia na sua fisionomia uma expressão terrível de cólera e ao mesmo tempo de espanto de um salto aproximouse do italiano e chegandolhe a boca ao ouvido disse Renegado e sacrílego doute uma hora para ires entregarte a D Antônio de Mariz e obter dele o nosso perdão e o teu castigo Se o não fizeres dentro desse tempo é comigo que te hás de avir O italiano fez um movimento de raiva mas contevese Amigo o sereno transtornouvos o juízo ide deitarvos Boa noite ou antes bom dia A alvorada despontava no horizonte XI O FRADE Saindo do quarto de Cecília Peri tomara pelo corredor que comunicava com o interior do edifício O índio a cuja perspicácia nada escapava do que se passava no interior da casa por mais insignificante que fosse havia percebido o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha Na véspera o som do ferro na parede tinha ido despertar a sua atenção na sala onde ele repousava um momento deitado aos pés do leito de sua senhora seu ouvido fino e delicado auscultara o seio da terra Levantouse de salto e atravessando todo o edifício chegou guiado pelas pancadas ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavam a abrir uma fenda no muro Em vez de atemorizarse com esta nova audácia do italiano o índio sorriuse a brecha que praticava seria a sua perdição por que ia dar fácil passagem a ele Peri Contentouse pois em examinar todas as portas que comunicavam com a sala e pregálas por dentro seria um novo obstáculo que demoraria os aventureiros e lhe daria tempo de sobra para exterminálos Foi por isso que do quarto de Cecília cuja porta fechou sobre caminhou direito à brecha e por ela penetrou na despensa dos aventureiros Era uma sala bastante espaçosa onde havia uma mesa algumas talhas e uma grande quartola de vinho o índio mesmo às escuras chegouse a cada um desses vasos e por alguns instantes ouviuse o fraco vascolejar do liquido que eles continham Então Peri viu uma luz que se aproximava era Loredano e o seu companheiro A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração Tal ódio votava a esse homem abjeto e vil que teve medo de si medo de o matar Isso fora agora uma imprudência pois inutilizaria todo o seu plano Muita vez depois da noite em que Loredano penetrara na alcova de Cecília Peri tivera ímpetos de ir vingar a injúria feita a sua senhora no sangue do italiano para quem pensava que uma morte não era bastante punição Mas lembravase que não se pertencia que precisava da vida para consumar sua obra salvando Cecília de tantos inimigos que a cercavam E recalcava a vingança no fundo do coração Fez o mesmo então cosido com a parede conseguiu apagar a vela Ia sair quando sentiu que o italiano tomava a porta Hesitou Podia lançarse sobre Loredano e subjugálo mas isso produziria uma luta e denunciaria a sua presença era preciso que fugisse sem que restasse um só vestígio de sua passagem a mais leve suspeita faria abortar o seu plano Teve uma idéia feliz ergueu a mão molhada e tocou o rosto do italiano enquanto este recuava para atirar a punhalada às escuras o índio resvalou entre ele e a porta A faca de Loredano tinhalhe ferido o braço esquerdo não soltou porém nem um gemido não fez um movimento que o traísse ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz Mas Peri não estava contente o seu sangue ia denunciálo não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que ele ali tinha estado Os morcegos que esvoaçavam espantados pelo teto do alpendre lembraramlhe um excelente expediente agarrou o primeiro que lhe passou ao alcance do braço e abrindolhe uma cesura com a faca soltouo Ele sabia que o vampiro procuraria a luz e iria esvoaçar em torno dos dois aventureiros contava que as gotas de sangue que caiam de sua asa ferida os enganaria a realidade correspondeu às suas previsões Apenas Loredano desapareceu Peri continuou a execução do seu plano chegouse a um canto do alpendre onde havia um resto de fogo encoberto pela cinza e atirou sobre ele alguma roupa dos aventureiros que ai estava a enxugar Este incidente por insignificante que pareça entrava nos planos de Peri a roupa queimandose devia encher a casa de fumaça acordar os aventureiros e excitarlhes a sede Era justamente o que desejava o índio Satisfeito do resultado que obtivera Peri atravessou a esplanada ai porém foi obrigado a recuar surpreendido do que via Um homem do lado de D Antônio de Mariz e um aventureiro revoltado conversavam através da estacada que dividia esses dois campos inimigos havia realmente motivo para que o índio se admirasse Não só isso era contra a ordem expressa de D Antônio de Mariz que proibira qualquer relação entre os seus homens e os revoltados como contrariava o plano de Loredano que temia ainda o respeito e o hábito de obediência que os aventureiros tinham para com o fidalgo O que se tinha passado antes explicava esse acontecimento extraordinário O aventureiro a quem Loredano mandara rondar a esplanada enquanto ele entrava tinha começado o seu giro de uma ponta à outra do pátio Sempre que chegava junto da estacada notava que do outro lado um homem se aproximava como ele voltava e se alongava pela beira da esplanada adivinhou facilmente que era também uma sentinela João Feio era um franco e jovial companheiro e não podia suportar o tédio de um passeio alta noite no meio de um sono interrompido sem uma pinga para beber sem um camarada para conversar sem uma distração enfim Para maior desprazer uma das vezes que se aproximava da estacada sentiu uma baforada de tabaco e viu que o seu companheiro de guarda fumava Levou a mão ao bolso das bragas e achou algumas folhas de fumo mas não trazia o seu cachimbo ficou desesperado e decidiu dirigirse ao outro Olá amigo também fazeis a vossa guarda O homem voltouse e continuou o seu caminho sem dar resposta No segundo giro o aventureiro atirou segunda isca Felizmente o dia não tarda a raiar não vos parece O mesmo silêncio que a primeira vez o aventureiro contudo não desanimou e na terceira volta retrucou Somos inimigos camarada mas isso não impede a um homem cortês de responder quando outro lhe fala Desta vez o silencioso sentinela voltouse de todo Antes da cortesia está a nossa santa religião que manda a todo cristão não falar a um herege a um réprobo a um fariseu Que é lá isso Falais sério ou quereis fazerme enraivar por nonadas Falovos sério como se estivesse diante do nosso Santo Redentor confessando as minhas culpas Pois então digovos que mentis Porque tão bom podeis ser porém melhor crente que eu não o é outrem Tendes a língua um pouco longa amigo Mas Belzebu vos fará as contas que não eu perderia a minha alma se tocasse o corpo de endemoninhados Por São João Batista meu patrão não me façais saltar esta estacada para perguntarvos a razão por que tratais em ar de mofa a devoção dos mais Chamainos rebeldes mas hereges não E como quereis então que chame os companheiros de um frade sacrílego maldito que abjurou dos seus votos e atirou o seu hábito as urtigas Um frade Dissestes vós Sim um frade Não o sabíeis O quê De que frade falais vós Do italiano bofé Ele O homem que não era outro senão o nosso antigo conhecido mestre Nunes contou então exagerando com o fervor de seus sentimentos religiosos aquilo que sabia da história de Loredano O aventureiro horrorizado tremendo de raiva não deixou mestre Nunes acabar a sua história e lançouse para o alpendre onde viuse a ameaça que fez ao italiano Quando eles se separaram Peri saltou por cima da estacada e dirigiuse para o quarto que há pouco tinha deixado O dia vinha então rompendo os primeiros raios do sol iluminavam já o campo dos Aimorés assentado sobre a várzea à margem do rio Os selvagens irritados olhavam de longe a casa fazendo gestos de raiva por não poderem vencer a barreira de pedra que defendia o inimigo Peri olhou um momento aqueles homens de estatura gigantesca de aspecto horrível aqueles duzentos guerreiros de força prodigiosa ferozes como tigres O índio murmurou Hoje cairão todos como a árvore da floresta para não se erguerem mais Sentouse no vão da janela e encostando a cabeça sobre a curva do braço começou a refletir A obra gigantesca que empreendera obra que parecia exceder todo o poder do homem estava prestes a realizarse já tinha levado ao cabo metade dela faltava a conclusão a parte a mais difícil e a mais delicada Antes de lançarse Peri queria prever tudo fixar bem no seu espírito as menores circunstâncias traçar a sua linha invariável a fim de marchar firme direito infalível ao alvo a que visava a fim de que a menor hesitação não pusesse em risco o efeito do seu plano Seu espírito percorreu em alguns segundos um mundo de pensamentos guiado pelo seu instinto maravilhoso e pelo seu nobre coração formulou num rápido instante um grande e terrível drama do qual devia ser o herói drama sublime de heroísmo e dedicação que para ele era apenas o cumprimento de um dever e a satisfação de um desejo As almas grandes têm esse privilégio suas ações que nos outros inspiram a admiração se aniquilam em face dessa nobreza inata do coração superior para o qual tudo é natural e possível Quando Peri ergueu a cabeça estava radiante de felicidade e orgulho felicidade por salvar sua senhora orgulho pela consciência de que ele só bastava para fazer o que cinqüenta homens não fariam o que o próprio pai o amante não conseguiriam nunca Não duvidava mais do resultado via nos acontecimentos futuros como no espaço que se estendia diante dele e no qual nem um objeto escapava ao seu olhar límpido tanto quanto é possível ao homem ele tinha a certeza e a convicção de que Cecília estava salva Cobriu o peito e as costas com uma pele de cobra que ligou estreitamente ao corpo vestiu por cima o seu saiote de algodão experimentou os músculos dos braços e das pernas e sentindose forte ágil e flexível saiu inerme XII DESOBEDIÊNCIA Álvaro recostado da parte de fora a uma das janelas da casa pensava em Isabel Sua alma lutava ainda mas já sem força contra o amor ardente e profundo que o dominava procurava iludirse mas a sua razão não o permitia Conhecia que amava Isabel e que a amava como nunca tinha amado Cecília a afeição calma e serena de outrora fora substituída pela paixão abrasadora Seu nobre coração revoltavase contra essa verdade mas a vontade era impotente contra o amor não podia mais arrancálo do seu seio não o desejava mesmo Álvaro sofria o que dissera na véspera a Isabel era realmente o que sentia não se exagerara no dia em que deixasse de amar Cecília e fosse infiel à promessa feita a D Antônio se condenaria como um homem sem honra e sem lealdade Consolavao a idéia de que a situação em que se achavam não podia durar muito pouco tardava que exaustos enfraquecidos sucumbissem à força dos inimigos que os atacavam Então nos momentos extremos à borda do túmulo quando a morte o tivesse já desligado da terra poderia com o último suspiro balbuciar a primeira palavra do seu amor poderia confessar a Isabel que a amava Até então lutaria Nisto Peri chegouse e tocoulhe no ombro Peri parte Para onde Para longe Que vais fazer O índio hesitou Procurar socorro Álvaro sorriuse com incredulidade Tu duvidas De ti não mas do socorro Escuta se Peri não voltar tu farás enterrar as suas armas Podes ir tranqüilo eu te prometo Outra coisa O que é O índio hesitou de novo Se tu vires a cabeça de Peri desligada do corpo enterraa com as suas armas Por que este pedido A que vem semelhante lembrança Peri vai passar pelo meio dos selvagens e pode morrer Tu és guerreiro e sabes que a vida é como a palmeira murcha quando tudo reverdece Tens razão Farei tudo quanto pedes mas espero verte ainda O índio sorriu Ama a senhora disse ele estendendo a mão ao moço O seu adeus era uma última prece pela felicidade de Cecília Peri entrou na sala onde se achava reunida a família Todos dormiam só D Antônio de Mariz velava sempre apesar da velhice sua vontade poderosa cobrava novas forças e reanimava o corpo gasto pelos anos Não lhe restava senão uma esperança a de morrer rodeado dos entes que amava cercado de sua família como um fidalgo português devia morrer com honra e coragem O índio atravessou a sala e colocandose junto do sofá em que Cecília adormecida repousava contemploua um instante com um sentimento de profunda melancolia Dirseia que nesse olhar ardente fazia uma última e solene despedida que partindose o escravo fiel e dedicado queria deixar a sua alma enleada naquela imagem que representava a sua divindade na terra Que sublime linguagem não falavam aqueles olhos inteligentes animados por um brilhante reflexo de amor e de fidelidade Que epopéia de sentimento e de abnegação não havia naquela muda e respeitosa contemplação Por fim Peri fez um esforço supremo e a custo conseguiu quebrar o encanto que o prendia e o conservava imóvel como uma estátua diante da linda menina adormecida Reclinou sobre o sofá e beijou respeitosamente a fimbria do vestido de Cecília quando ergueuse uma lágrima triste e silenciosa que deslizava pela sua face caiu sobre a mão da menina Cecília sentindo aquela gota ardente entreabriu os olhos mas Peri não viu esse movimento porque já se tinha voltado e aproximavase de D Antônio de Mariz O fidalgo sentado na sua poltrona recebeuo com um sorriso pungente Tu sofres perguntou o índio Por eles por ela especialmente por minha Cecília Por ti não disse Peri com intenção Por mim Daria a minha vida para salvála e morreria feliz Ainda que ela te pedisse que vivesses Embora me suplicasse de joelhos O índio sentiuse aliviado como de um remorso Peri te pede uma coisa Fala Peri quer beijar a tua mão D Antônio de Mariz tirou o seu guante e sem compreender a razão do pedido do índio estendeulhe a mão Tu dirás a Cecília que Peri partiu que foi longe não deves contarlhe a verdade ela sofrerá Adeus Peri sente te deixar mas é preciso Enquanto o índio proferia estas palavras em voz baixa e inclinado ao ouvido do fidalgo este surpreendido procurava ligarlhes um sentido que lhe parecia vago e confuso Que pretendes tu fazer Peri perguntou D Antônio O mesmo que tu querias fazer para salvar a senhora Morrer exclamou o fidalgo Peri levou o dedo aos lábios recomendando silêncio mas era tarde um grito partido do canto da sala fêlo estremecer Voltandose viu Cecília que ao ouvir a última palavra de seu pai quisera correr para ele e caíra de joelhos sem força para dar um passo A menina com as mãos estendidas e suplicantes parecia pedir a seu pai que evitasse aquele sacrifício heróico e salvasse a Peri de uma morte voluntária O fidalgo a compreendeu Não Peri eu D Antônio de Mariz não consentirei nunca em semelhante coisa Se a morte de alguém pudesse trazer a salvação de minha Cecília e de minha família era a mim que competia o sacrifício E por Deus e pela minha honra o juro que a ninguém o cederia quem quisesse roubarme esse direito me faria um insulto cruel Peri volvia os olhos de sua senhora aflita e suplicante para o fidalgo severo e rígido no cumprimento de seu dever temia aquelas duas oposições diferentes mas que tinham ambas um grande poder sobre a sua alma Podia o escravo resistir a uma súplica de sua senhora e causarlhe uma mágoa quando toda a sua vida fora destinada a fazêla alegre e feliz Podia o amigo ofender a D Antônio de Mariz a quem respeitava praticando uma ação que o fidalgo considerava como uma injúria feita à sua honra Peri teve um momento de alucinação em que pareceulhe que o coração lhe estacava no peito e a vida lhe fugia e a cabeça se despedaçava com a pressão violenta das idéias que tumultuavam no cérebro No rápido instante que durou a vertigem ele viu girarem rapidamente em torno de si as figuras sinistras dos Aimorés que ameaçavam a vida preciosa daqueles a quem mais amava no mundo Viu Cecília suplicando não a ele mas ao inimigo feroz e sanguinário prestes a manchála com as mãos impuras viu a bela e nobre cabeça do velho fidalgo rojar mutilada com os alvos cabelos tintos de sangue O índio horrorizado com estas imagens lúgubres que lhe desenhava a sua imaginação em delírio apertou a cabeça entre as mãos como para arrancála daquela febre Peri balbuciava Cecília tua senhora te pede Morreremos todos juntos amigo quando chegar o momento dizia D Antônio de Mariz Peri levantou a cabeça e lançou sobre a menina e o fidalgo um olhar alucinado Não exclamou ele Cecília ergueuse com um movimento instantâneo de pé e pálida soberba de cólera e indignação a gentil e graciosa menina de outrora se tinha de repente transformado numa rainha imperiosa Sua bela fronte alva resplandecia com um assomo de orgulho seus olhos azuis tinham desses reflexos fulvos que iluminam as nuvens no meio da tormenta seus lábios trêmulos e ligeiramente arqueados pareciam reter a palavra para deixála cair com toda a sua força Atirando a cabecinha loura sobre o ombro esquerdo com um gesto de energia ela estendeu a mão para Peri Proíbote que saias desta casa O índio julgou que ia enlouquecer quis lançarse aos pés de sua senhora mas recuou anelante opresso e sufocado Um canto ou antes uma celeuma dos selvagens soava ao longe Peri deu um passo para a porta D Antônio o reteve Tua senhora disse o fidalgo friamente acaba de te dar uma ordem tu a cumprirás Tranqüilizate minha filha Peri é meu prisioneiro Ouvindo esta palavra que destruía todas as suas esperanças que o impossibilitava de salvar sua senhora o índio retraindose deu um salto e caiu no meio da sala Peri é livre gritou ele fora de si Peri não obedece a ninguém mais fará o que lhe manda o coração Enquanto D Antônio de Mariz e Cecília admirados desse primeiro ato de desobediência olhavam espantados o índio de pé no meio do vasto aposento ele lançouse a um cabide de armas e empunhando um pesado montante como se fora uma ligeira espada correu à janela e saltou Perdoa a Peri senhora Cecília soltou um grito e precipitouse para a janela Não viu mais Peri Álvaro e os aventureiros de pé sobre a esplanada tinham os olhos fitos sobre a árvore que se elevava a um lado da casa na encosta oposta e cuja folhagem ainda se agitava Longe descortinavase o campo dos Aimorés a brisa que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos selvagens XIII COMBATE Eram seis horas da manhã O sol elevandose no horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas O tempo estava soberbo o céu azul esmaltado de pequenas nuvens brancas que se achamalotavam como as dobras de uma lençaria Os Aimorés grupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza faziam preparativos para dar um ataque decisivo O instinto selvagem supria a indústria do homem civilizado a primeira das artes foi incontestavelmente a arte da guerra a arte da defesa e da vingança os dois mais fortes estímulos do coração humano Nesse momento os Aimorés preparavam setas inflamáveis para incendiar a casa de D Antônio de Mariz não podendo vencer o inimigo pelas armas contavam destruílo pelo fogo A maneira por que arranjavam esses terríveis projéteis que lembravam os pelouros e bombardas dos povos civilizados era muito simples envolviam a ponta da flecha com flocos de algodão embebidos na resina da almécega Essas setas assim inflamadas despedidas dos seus arcos voavam pelos ares e iam cravarse nas vigas e portas das casas o fogo que o vento incitava lambia a madeira estendia a sua língua vermelha e lastrava pelo edifício Enquanto se ocupavam com esse trabalho um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras nas quais a braveza a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana Os cabelos arruivados caiamlhe sobre a fronte e ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto criada por Deus para a sede da inteligência e para o trono donde o pensamento deve reinar sobre a matéria Os lábios decompostos arregaçados por uma contração dos músculos faciais tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra de lábios de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido Os dentes agudos como a presa do jaguar já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos a pele áspera e calosa faziam de suas mãos antes garras temíveis do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo Alguns se ornavam de penas e colares de ossos outros completamente nus tinham o corpo untado de óleo por causa dos insetos Entre todos distinguiase um velho que parecia ser o chefe da tribo Sua alta estatura direita apesar da idade avançada dominava a cabeça dos seus companheiros sentados ou agrupados em torno do fogo Não trabalhava presidia apenas aos trabalhos dos selvagens e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a casa que se elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnável Ao lado dele uma bela índia na flor da idade queimava sobre uma pedra cova algumas folhas de tabaco cuja fumaça se elevava em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma espécie de brama ou névoa Ele aspirava esse aroma embriagador que fazia dilatar o seu vasto peito e dava a sua fisionomia terrível um quer que seja de sensual que se poderia chamar a voluptuosidade dos seus instintos de canibal Envolta pelo fumo espesso que se enovelava em torno dela aquela figura fantástica parecia algum ídolo selvagem divindade criada pelo fanatismo desses povos ignorantes e bárbaros De repente a pequena índia que soprava o brasido queimando as folhas de pitima estremeceu levantou a cabeça e fitou os olhos no velho como para interrogar a sua fisionomia Vendoo calmo e impassível a menina debruçouse sobre o ombro do selvagem e tocandolhe de leve na cabeça disselhe uma palavra ao ouvido Ele voltouse tranqüilamente um riso sardônico mostrou os seus dentes sem responder obrigou a índia a sentarse de novo e a voltar à sua ocupação Pouco tempo havia passado depois deste pequeno incidente quando a menina tornou a estremecer tinha ouvido perto o mesmo rumor que já ouvira ao longe Ao passo que ela espantada procurava confirmarse um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar fez o mesmo movimento que a índia e levantou a cabeça Como se um fio elétrico se comunicasse entre esses homens e imprimisse a todos sucessivamente o mesmo movimento um após outro interrompeu o seu trabalho de chofre e inclinando o ouvido pôsse à escuta A menina não escutava só colocandose longe do fumo e de encontro à brisa que soprava de vez em quando aspirava o ar com a finura de olfato com que os cães farejam a caça Tudo isto passou rapidamente sem que os atores desta cena tivessem nem sequer o tempo de trocar uma observação e dizer o seu pensamento De repente a índia soltou um grito todos voltaramse para ela e a viram trêmula ofegante apoiandose com uma mão sobre o ombro do velho cacique e a outra estendida na direção da floresta que passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro O velho ergueuse então sempre com a mesma calma feroz e sinistra e empunhando a sua pesada tangapema que parecia uma clava de ciclope fêla girar sobre a sua cabeça como um junco depois fincandoa no chão e apoiandose sobre ela esperou Os outros selvagens armados de arcos e tacapes espécie de longas espadas de pau que cortavam como ferro colocaramse a par do velho e prontos para o ataque esperavam como ele As mulheres misturaramse com os guerreiros as crianças e meninos defendidos pela barreira que opunham os combatentes conservaramse no centro do campo Todos com os olhos fitos os sentidos aplicados contavam ver o inimigo aparecer a cada momento e se preparavam para cair sobre ele com a audácia e ímpeto de ataque que distinguia a raça dos Aimorés Um segundo se passou nesta expectativa inquieta O estalido que a princípio tinham ouvido cessou completamente e os selvagens cobrandose do susto voltaram aos seus trabalhos convencidos de que tinham sido iludidos por algum vago rumor na floresta Mas o inimigo caiu no meio deles subitamente sem que pudessem saber se tinha surgido do seio da terra ou se tinha descido das nuvens Era Peri Altivo nobre radiante da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos o índio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança Caindo do alto de uma árvore sobre eles tinha abatido dois e volvendo o seu montante como um raio em torno de sua cabeça abriu um círculo no meio dos selvagens Então encostouse a uma lasca de pedra que descansava sobre uma ondulação do terreno e preparouse para o combate monstruoso de um só homem contra duzentos A posição em que se achava o favorecia se isso é possível à vista de uma tal disparidade de número apenas dois inimigos podiam atacálo de frente Passado o primeiro espanto os selvagens bramindo atiraramse todos como uma só mole como uma tromba do oceano contra o índio que ousava atacálos a peito descoberto Houve uma confusão um turbilhão horrível de homens que se repeliam tombavam e se estorciam de cabeças que se levantavam e outras que desapareciam de braços e dorsos que se agitavam e se contraiam como se tudo isto fosse partes de um só corpo membros de algum monstro desconhecido debatendose em convulsões No meio desse caos viase brilhar aos raios do sol com reflexos rápidos e luzentes a lamina do montante de Peri que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e atravessa o espaço Um coro de gritos imprecações e gemidos roucos e abafados confundindose com o choque das armas se elevava desse pandemônio e ia perderse ao longe nos rumores da cascata Houve uma calma aterradora os selvagens imóveis de espanto e de raiva suspenderam o ataque os corpos dos mortos faziam uma barreira entre eles e o inimigo Peri abaixou o seu montante e esperou seu braço direito fatigado desse enorme esforço não podia mais servirlhe e caía inerte passou a arma para a mão esquerda Era tempo O velho cacique dos Aimorés se avançava para ele sopesando a sua imensa clava crivada de escamas de peixe e dentes de fera alavanca terrível que o seu braço possante fazia jogar com a ligeireza da flecha Os olhos de Peri brilharam endireitando o seu talhe fitou no selvagem esse olhar seguro e certeiro que não o enganava nunca O velho aproximandose levantou a sua clava e imprimindolhe o movimento de rotação ia descarregála sobre Peri e abatêlo não havia espada nem montante que pudesse resistir àquele choque O que passouse então foi tão rápido que não é possível descrevêlo quando o braço do velho volvendo a clava ia atirála o montante de Peri lampejou no ar e decepou o punho do selvagem mão e clava foram rojar pelo chão O velho selvagem soltou um bramido que repercutiu ao longe pelos ecos da floresta e levantando ao céu o seu punho decepado atirou as gotas de sangue que vertiam sobre os Aimorés como conjurandoos à vingança Os guerreiros lançaramse para vingar o seu chefe mas um novo espetáculo se apresentava aos seus olhos Peri vencedor do cacique volveu um olhar em torno dele e vendo O estrago que tinha feito os cadáveres dos Aimóres amontoados uns sobre os outros fincou a ponta do montante no chão e quebrou a lamina Tomou depois os dois fragmentos e atirouos ao rio Então passouse nele uma luta silenciosa mas terrível para quem pudesse compreendêla Tinha quebrado a sua espada porque não queria mais combater e decidira que era tempo de suplicar a vida ao inimigo Mas quando chegou o momento de realizar essa súplica conheceu que exigia de si mesmo uma coisa sobrehumana uma coisa superior às suas forças Ele Peri o guerreiro invencível ele o selvagem livre o senhor das florestas o rei dessa terra virgem o chefe da mais valente nação dos Guaranis suplicar a vida ao inimigo Era impossível Três vezes quis ajoelhar e três vezes as curvas de suas pernas distendendose como duas molas de aço o obrigaram a erguerse Finalmente a lembrança de Cecília foi mais forte do que a sua vontade Ajoelhou XIV O PRISIONEIRO Quando os selvagens se precipitavam sobre o inimigo que já não se defendia e se confessava vencido o velho cacique adiantouse e deixando cair a mão sobre o ombro de Peri fez um movimento enérgico com o braço direito decepado Esse movimento exprimia que Peri era seu prisioneiro que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto a mão sobre ele como seu vencedor e que todos deviam respeitar o seu direito de propriedade o seu direito de guerra Os selvagens abaixaram as armas e não deram um passo esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de guerra essa conquista do fraco pelo forte Tinham em tanta conta a glória de trazerem um cativo do combate e sacrificálo no meio das festas e cerimônias que costumavam celebrar que nenhum selvagem matava o inimigo que se rendia faziao prisioneiro Quanto a Peri vendo o gesto do cacique e o efeito que produzia a sua fisionomia expandiuse a humildade fingida a posição suplicante que por um esforço supremo conseguira tomar desapareceu imediatamente Ergueuse e com um soberbo desdém estendeu os punhos aos selvagens que por mandado do velho se dispunham a ligarlhe os braços parecia antes um rei que dava uma ordem aos seus vassalos do que um cativo que se sujeitava aos vencedores tal era a altivez do seu porte e o desprezo com que encarava o inimigo Os Aimorés depois de ligarem os punhos do prisioneiro o conduziram a alguma distancia à sombra de uma árvore e ai o prenderam com uma corda de algodão matizada de várias cores a que os Guaranis chamavam muçurana Depois ao passo que as mulheres enterravam os mortos reuniramse em conselho presididos pelo velho cacique a quem todos ouviam com respeito e respondiam cada um por sua vez Durante o tempo que os guerreiros falavam a pequena índia escolhia os melhores frutos as bebidas mais bem preparadas e oferecia ao prisioneiro a quem estava encarregada de servir Peri sentado sobre a raiz da árvore e apoiado contra o tronco não percebia o que se passava em torno dele tinha os olhos fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma distancia Via o vulto de D Antônio de Mariz que assomava por cima da paliçada e suspensa ao seu braço reclinada sobre o abismo Cecília sua linda senhora que lhe fazia de longe um gesto de desespero ao lado Álvaro e a família Tudo o que ele havia amado neste mundo ali estava diante de seus olhos sentia um prazer intenso por ver ainda uma vez esses objetos de sua dedicação extrema de seu amor profundo Adivinhava e compreendia o que sentia então o coração de seus bons amigos sabia que sofriam vendoo prisioneiro próximo a morrer sem terem o poder e a força para salválo das mãos do inimigo Consolavao porém essa esperança que estava prestes a realizarse esse gozo inefável de salvar sua senhora e de deixála feliz no seio de sua família protegida pelo amor de Álvaro Enquanto Peri preocupado por essas idéias enlevavase ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a figura de Cecília a índia de pé defronte dele olhavao com um sentimento de prazer misturado de surpresa e curiosidade Comparava suas formas esbeltas e delicadas com o corpo selvagem de seus companheiros a expressão inteligente de sua fisionomia com o aspecto embrutecido dos Aimorés para ela Peri era um homem superior e excitavalhe profunda admiração Foi só quando Cecília e D Antônio de Mariz desapareceram da esplanada que Peri lançando ao redor um olhar para ver se a sua morte ainda se demoraria muito descobriu a índia perto dele Voltou o rosto e continuou a pensar em sua senhora e a rever a sua imagem debalde a menina selvagem lhe apresentava um lindo fruto um alimento um vinho saboroso ele não lhe dava atenção A índia tornouse triste por causa dessa obstinação com que o prisioneiro recusava o que lhe oferecia e achegandose levantou a cabeça pensativa de Peri Havia nos olhos da menina tanto fogo tanta lubricidade no seu sorriso as ondulações mórbidas do seu corpo traiam tantos desejos e tanta voluptuosidade que o prisioneiro compreendeu imediatamente qual era a missão dessa enviada da morte dessa esposa do túmulo destinada a embelezar os últimos momentos da vida O índio voltou o rosto com desdém recusava as flores como tinha recusado os frutos repelia a embriaguez do prazer como havia repelido a embriaguez do vinho A menina enlaçouo com os braços murmurando palavras entrecortadas de uma língua desconhecida da língua dos Aimorés que Peri não entendia era talvez uma súplica ou um consolo com que procurava mitigar a dor do vencido Mal sabia que o índio ia morrer feliz e esperava o suplício como a realização de um sonho doce como a satisfação de um desejo querido e por muito tempo afagado com amor Mas podia ela pobre selvagem pressentir e mesmo compreender semelhante coisa O que sabia era que Peri ia ser morto que ela devia suavizarlhe a última hora e cumpria esse dever com um certo contentamento Peri sentindo os braços da menina cingirem seu colo repeliua vivamente para longe de si e voltando procurou ver por entre as folhas se descobria os preparativos que os Aimorés faziam para o sacrifício Tardavalhe o momento supremo em que devia ser imolado à cólera e à vingança dos inimigos sua altivez revoltavase contra essa humilhação do cativeiro A índia continuava a olhálo tristemente e sem compreender por que a repelia ela era linda e desejada por todos os jovens guerreiros de sua tribo seu pai o velho cacique tinhaa destinado para o mais valente prisioneiro ou para o mais forte dos vencedores Depois de conservarse muito tempo nesta posição a menina adiantouse de novo tomou um vaso cheio de cauim e apresentouo a Peri sorrindo e quase suplicante Ao gesto de recusa que fez o índio ela deitou o vaso no rio e escolhendo sobre as folhas um cardo vermelho e doce como um favo de mel estendeu a mão e tocou com o fruto a boca do prisioneiro Peri enjeitou o fruto como tinha enjeitado o vinho e a virgem selvagem atirandoo por sua vez ao rio aproximouse e ofereceu ao prisioneiro seus lábios encarnados ligeiramente distendidos como para receberem o beijo que pediam O índio fechou os olhos e pensou em sua senhora Elevandose até Cecília seu pensamento desprendiase do invólucro terrestre e adejava numa atmosfera pura e isenta da fascinação dos sentidos que escraviza o homem Contudo Peri sentia o hálito ardente da menina que lhe requeimava as faces entreabriu os olhos e viua na mesma posição esperando uma carícia um afago daquele a quem a sua tribo mandara que amasse e a quem ela já amava espontaneamente Na vida selvagem tão próxima da natureza onde a conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do coração o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol Nos tempos de civilização ao contrário o sentimento tornase planta exótica que só vinga e floresce nas estufas isto é nos corações onde o sangue é vigoroso e o fogo da paixão ardente e intenso Vendo Peri no meio do combate só contra toda a sua tribo a índia o admirara contemplandoo depois quando prisioneiro o achara mais belo do que todos os guerreiros Seu pai a destinara para esposa do inimigo que ia ser sacrificado e portanto ela que começara por admirálo acabava por desejálo por amálo algumas horas apenas depois que o tinha visto Mas Peri frio e indiferente não se comovia nem aceitava essa afeição passageira e efêmera que tinha começado com o dia e devia acabar com ele sua idéia fixa a lembrança de seus amigos o protegia contra a tentação Voltando as costas levantou os olhos ao céu para evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua vista como certas flores acompanham a rotação aparente do sol Entre a folhagem das árvores passavase uma das cenas graciosas e singelas que a cada momento no campo se oferecem à atenção daqueles que estudam a natureza nas suas pequenas criaturas Um casal de corrixos que tinha feito o seu ninho num ramo sentindo a habitação do homem e o fogo embaixo da árvore mudava a sua pequena casa de palha e algodão Um desfazia com o bico o ninho e o outro conduzia a palha para longe para o lugar onde iam novamente fabricálo quando acabaram este trabalho acariciaramse e batendo as asas foram esconder o seu amor nalgum lindo retiro Peri se divertia em ver esse inocente idílio quando a índia levantandose de repente soltou um pequeno grito de alegria e de prazer e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dois passarinhos que voavam um a par do outro sobre a cúpula da floresta Enquanto ele procurava compreender o que queria dizer este aceno a virgem desapareceu e voltou quase imediatamente trazendo um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco de guerra Aproximouse do índio soltoulhe os laços que lhe ligavam os punhos e partiu a muçurana que o prendia à árvore Executou isto com uma extrema rapidez e entregando a Peri o arco e as flechas estendeu a mão na direção da floresta mostrandolhe o espaço que se abria diante deles Seus olhos e seu gesto falavam melhor do que a sua linguagem inculta e exprimiam claramente o seu pensamento Tu és livre Partamos QUARTA PARTE A CATÁSTROFE I ARREPENDIMENTO Quando Loredano afastouse de João Feio que o acabava de ameaçar chamou quatro companheiros em que mais confiava e retirouse com eles para a despensa Fechou a porta a fim de interceptar a comunicação com os aventureiros e poder tranqüilamente tratar o negocio que tinha em mente Nesse curto instante havia feito uma modificação no seu plano da véspera as palavras de ameaça há pouco proferidas lhe revelaram que o descontentamento começava a lavrar Ora o italiano não era homem que recuasse diante de um obstáculo e deixasse roubaremlhe a esperança que nutria desde tanto tempo Resolveu fazer as coisas rapidamente e executar naquele mesmo dia o seu intento seis homens fortes e destemidos bastavam para levar ao cabo a empresa que projetara Tendo fechado a porta guiou os quatro aventureiros à sala que tocava com o oratório e onde Martim Vaz continuava a sua obra de demolição minando a parede que os separava da família Amigos disse o italiano estamos numa posição desesperada não temos força para resistir aos selvagens e mais dia menos dia havemos de sucumbir Os aventureiros abaixaram a cabeça e não responderam sabiam que aquela era a triste verdade A morte que nos espera é horrível serviremos de pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana nossos corpos sem sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais A expressão do horror se pintou na fisionomia daqueles homens que sentiram um calafrio percorrerlhes os membros e penetrar até à medula dos ossos Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz sobre esses rostos decompostos Tenho porém um meio de salvarvos Qual perguntaram todos a uma voz Esperai Posso salvarvos mas isto não quer dizer que esteja disposto a fazêlo Por que razão Por quê Porque todo o serviço tem o seu preço Que exigis então disse Martim Vaz Exijo que me acompanheis que me obedeçais cegamente suceda o que suceder Podeis ficar descansado disse um dos aventureiros eu respondo pelos meus companheiros Sim exclamaram os outros Bem Sabeis o que vamos fazer já neste momento Não mas vós nos direis Escutai Vamos acabar de demolir esta parede e atirála dentro entrar nesta sala e matar tudo quanto encontrarmos menos uma pessoa E essa pessoa É a filha de D Antônio de Mariz Cecília Se algum de vós deseja a outra pode tomála eu vola dou E depois disso feito Tomamos conta da casa reunimos os nossos companheiros e atacamos os Aimorés Mas isto não nos salvará retrucou um dos aventureiros há pouco dissestes que não temos força para resistirlhes Decerto acudiu Loredano não lhes resistiremos mas nos salvaremos Como disseram os aventureiros desconfiados O italiano sorriu Quando disse que atacaremos o inimigo não falei claro queria dizer que os outros o atacarão Não vos entendo ainda falai mais claro Ai vai pois Dividiremos os nossos homens em duas bandas nós e mais alguns pertenceremos a uma que ficará sob a minha obediência Até aqui vamos bem Isto feito uma das bandas sairá da casa para fazer uma sortida enquanto os outros atacarão os selvagens do alto do rochedo é um estratagema já velho e que deveis conhecer meter o inimigo entre dois fogos Adiante continuai Como a expedição de sair é a mais perigosa e arriscada tomoa sobre mim vós me acompanhais e marchamos Somente em lugar de marchar sobre o inimigo marchamos sobre o mais próximo povoado Oh exclamaram os aventureiros Sob pretexto de que os selvagens podem cortarnos a entrada da casa por alguns dias levamos provisão de viveres Caminhamos sem parar sem olhar atrás e prometovos que nos salvaremos Uma traição gritou um dos aventureiros Entregarmos nossos companheiros nas mãos dos inimigos Que quereis A morte de uns é necessária para a vida dos outros este mundo é assim e não seremos nós que o havemos de emendar andemos com ele Nunca Não faremos isso É uma vilania Bom respondeu Loredano friamente fazei o o que vos aprouver Ficai quando vos arrependerdes será tarde Mas ouvi Não não conteis já comigo Julguei que falava a homens a quem valesse salvar a vida vejo que me enganei Adeus Se não fora uma traição Que falais em traição replicou o italiano com arrogância Dizeime credes vós que algum escapará daqui na posição em que nos achamos Morreremos todos Pois se assim é mais vale que se salvem alguns Os aventureiros pareceram abalados por este argumento Eles mesmos continuou Loredano a menos de serem egoístas não terão o direito de se queixarem e morrerão com a satisfação de que sua morte foi útil aos seus companheiros e não estéril como deve ser se ficarmos todos de braços cruzados Vá feito tendes razões a que não se resiste Contai conosco acudiu um aventureiro Contudo levarei sempre um remorso disse outro Faremos dizer uma missa por sua alma Bem lembrado respondeu o italiano Os aventureiros foram ajudar o seu companheiro na demolição surda da parede e Loredano ficou só retirado a um canto Por algum tempo acompanhou com a vista o trabalho dos cincos homens depois tirou um largo cinto de escamas de aço que apertava o seu gibão Na parte interior desse cinto havia uma estreita abertura pela qual ele sacou um pergaminho dobrado ao comprido era o famoso roteiro das minas de prata Revendo esse papel todo o seu passado debuxouse na sua memória não para deixarlhe o remorso mas para excitálo a prosseguir em busca desse tesouro que lhe pertencia e do qual não podia gozar Foi tirado da sua distração por um dos aventureiros que se achegara para ele despercebido e depois de olhar por muito tempo o papel dirigiulhe a palavra Não podemos derrubar a parede Por quê perguntou Loredano erguendose Está segura Não é isso basta um empurrão mas o oratório Que tem o oratório Que tem Os santos as sagradas imagens bentas não são coisas que se atire ao chão Se tão danada tentação nos tomasse pediríamos a Deus que nos livrasse dela Loredano desesperado dessa nova resistência cuja força ele conhecia passeava pela sala de uma ponta à outra Estúpidos murmurava ele Basta um fragmento de madeira um pouco de argila para fazêlos recuar E dizem que são homens Animais sem inteligência que nem sequer têm o instinto da conservação Alguns momentos decorreram os aventureiros parados esperavam a resolução do seu chefe Tendes medo de tocar nos santos disse Loredano avançando para eles pois bem serei eu que deitarei a parede abaixo Continuai e avisaime quando for tempo Enquanto isto se passava o resto dos aventureiros que ficara no alpendre ouvia a narração de João Feio que lhes comunicava as revelações de mestre Nunes Quando eles souberam que Loredano era um frade que abjurara dos seus votos ergueramse furiosos e quiseram procurálo e espedaçálo Que ides fazer gritou o aventureiro Não é assim que ele deve acabar a sua morte há de ser uma punição uma terrível punição Deixaime arranjar isto Para que mais demora respondeu Vasco Afonso Prometovos que não haverá demora hoje mesmo será condenado amanhã receberá o castigo de seus crimes E por que não hoje Deixemoslhe o tempo de arrependerse é preciso que antes de morrer sinta o remorso do que praticou Os aventureiros decidiram por fim seguir este conselho e esperaram que Loredano aparecesse para se apoderarem dele e o condenarem sumariamente Passouse um bom espaço de tempo e nada do italiano sair era quase meiodia Os aventureiros estavam desesperados de sede a sua provisão de água e de vinho já bastante diminuída depois do sitio dos selvagens achavase na despensa cuja porta Loredano fechara por dentro Felizmente descobriram no quarto do italiano algumas garrafas de vinho que beberam no meio de risadas e chacotas fazendo brindes ao frade que iam dentro em pouco condenar à pena de morte No meio da hilaridade algumas palavras revelavam o arrependimento que começava a se apoderar deles falavam de ir pedir perdão ao fidalgo de se reunir de novo a ele e ajudálo a bater o inimigo Se não fosse a vergonha da má ação que tinham praticado correriam a lançarse aos joelhos de D Antônio de Mariz imediatamente mas resolveram fazêlo quando o principal autor da revolta tivesse recebido o castigo do seu crime Seria esse o seu primeiro titulo ao perdão que iam suplicar seria mais a prova da sinceridade do seu arrependimento II O SACRIFÍCIO Peri compreendera o gesto da índia não fez porém o menor movimento para seguila Fitou nela o seu olhar brilhante e sorriu Por sua vez a menina também compreendeu a expressão daquele sorriso e a resolução firme e inabalável que se lia na fronte serena do prisioneiro Insistiu por algum tempo mas debalde Peri tinha atirado para longe o arco e as flechas e recostandose ao tronco da árvore conservavase calmo e impassível De repente o índio estremeceu Cecília aparecera no alto da esplanada e lhe acenara sua mãozinha alva e delicada agitandose no ar parecia dizerlhe que esperasse Peri julgou mesmo ver no rostinho gentil de sua senhora apesar da distancia brilhar um raio de felicidade Quando com os olhos fitos naquela graciosa visão ele esforçavase por adivinhar a causa de tão súbita alegria a índia soltou um segundo grito selvagem um grito terrível Tinha pela direção do olhar do prisioneiro visto Cecília sobre a esplanada tinha percebido o gesto da menina e compreendera vagamente a razão por que Peri recusara a liberdade e o seu amor Precipitouse sobre o arco que estava atirado ao chão mas apesar da rapidez desse movimento quando ela estendia a mão já Peri tinha posto o pé sobre a arma A selvagem com os olhos ardentes os lábios entreabertos trêmula de ciúme e de vingança leventou sobre o peito do índio a faca de pedra com que lhe cortara os laços há pouco mas a arma caiulhe da mão e vacilando apoiouse no seio que ameaçara Peri tomoua nos braços deitoua sobre a relva e sentouse de novo junto ao tronco da árvore tranqüilo a respeito de Cecília que desapareceu da esplanada e estava fora de perigo Era a hora em que a sombra das montanhas sobe às encostas e o jacaré deitado sobre a areia se aquece aos raios do sol O ar estrugiu com os sons roucos da inúbia e do maracá ao mesmo tempo um canto selvagem o canto guerreiro dos Aimorés misturouse com a harmonia sinistra daqueles instrumentos ásperos e retumbantes A índia deitada junto da árvore sobressaltouse e erguendose rapidamente acenou ao prisioneiro mostrandolhe a floresta e suplicandolhe que fugisse Peri sorriu como da primeira vez tomando a mão da menina a fez sentar perto dele e tirou do pescoço a cruz de ouro que Cecília lhe havia dado Então começou entre ele e a selvagem uma conversa por acenos de que seria difícil dar uma idéia Peri dizia à menina que lhe dava aquela cruz como lembrança mas que só depois que ele morresse é que devia tirála do pescoço A selvagem entendeu ou julgou entender o que Peri procurava exprimir simbolicamente e beijoulhe as mãos em sinal de reconhecimento O prisioneiro obrigoua a atar de novo os laços que o ligavam e que ela no seu generoso impulso de darlhe a liberdade havia desfeito Nesse momento quatro guerreiros Aimorés dirigiamse à árvore em que se achava Peri e segurando as pontas da corda o conduziram ao campo onde tudo estava já preparado para o sacrifício O índio ergueuse e caminhou com o passo firme e a fronte alta diante dos quatro inimigos que não perceberam o olhar rápido que nessa ocasião ele lançou às pontas de sua túnica de algodão torcidas em dois nós pequenos O campo cortado em elipse no meio das árvores estava cercado por cento e tantos guerreiros armados em guerra e cobertos de ornatos de penas No fundo as velhas pintadas de listras negras e amarelas de aspecto hórrido preparavam um grande brasido lavavam a laje que devia servir de mesa e afiavam as suas facas de ossos e lascas de pedra As moças grupadas de um lado guardavam os vasos cheios de vinho e bebidas fermentadas que ofereciam aos guerreiros quando estes passavam diante delas entoando o canto de guerra dos Aimorés A menina que fora incumbida de servir ao prisioneiro e o acompanhara ao lugar do sacrifício conservavase a alguma distancia e olhava tristemente todos esses preparativos pela primeira vez seu instinto natural parecia revelarlhe a atrocidade desse costume tradicional de seus pais a que ela tantas vezes assistira com prazer Agora que ia representar como heroína no drama terrível e como esposa do prisioneiro devia acompanhálo até o momento supremo insultandolhe a dor e a desgraça o seu coração confrangiase porque realmente amava Peri tanto quanto era possível a uma natureza como a sua amar Chegados ao campo os selvagens que conduziam o prisioneiro passaram as pontas da corda ao tronco de duas árvores e esticando o laço o obrigaram a ficar imóvel no meio do terreiro Os guerreiros desfilaram em roda entoando o canto da vingança as inúbias retroaram de novo os gritos confundiramse com o som dos maracás e tudo isso formou um concerto horrível À medida que se animavam a cadência apressavase de modo que a marcha triunfal dos guerreiros se tornava uma dança macabra uma corrida veloz uma valsa fantástica em que todos esses vultos horrendos cobertos de penas que brilhavam à luz do sol passavam como espíritos satânicos envoltos na chama eterna A cada volta que fazia esse sabbat um dos guerreiros destacavase do circulo e adiantandose para o prisioneiro o desafiava ao combate e conjuravao a que desse provas de sua coragem de sua força e de seu valor Peri sereno e altivo recebia com um soberbo desdém a ameaça e o insulto e sentia um certo orgulho pensando que no meio de todos aqueles guerreiros fortes e armados ele o prisioneiro o inimigo que ia ser sacrificado era o verdadeiro o único vencedor Talvez pareça isso incompreensível mas o fato é que Peri o pensava e que só o segredo que ele guardava no fundo de sua alma podia explicar a razão desse pensamento e a tranqüilidade com que esperava o suplício A dança continuava no meio dos cantos dos alaridos e das constantes libações quando de repente tudo emudeceu e o mais profundo silêncio reinou no campo dos Aimorés Todos os olhos se voltaram para uma cortina de folhas que ocultava uma espécie de cabana selvagem construída a um lado do campo em face do prisioneiro Os guerreiros se afastaram as folhas se abriram e entre aquelas franjas de verdura assomou o vulto gigantesco do velho cacique Duas peles de tapir ligadas sobre os ombros cobriam seu corpo como uma túnica um grande cocar de penas escarlates ondeava sobre a sua cabeça e realçavalhe a grande estatura Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e oleosa e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes do tucano no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavam como dois fogos vulcânicos no seio das trevas Trazia na mão esquerda a tangapema coberta de plumas resplandecentes e amarrada ao punho direito uma espécie de buzina formada de um osso enorme da canela de algum inimigo morto em combate Chegando à entrada do campo o velho selvagem levou à boca o seu instrumento bárbaro e tirou dele um som estrondoso os Aimorés saudaram com gritos de alegria e de entusiasmo o aparecimento do vencedor Ao cacique cabia a honra de ser o algoz da vitima o matador do prisioneiro seu braço devia consumar a grande obra da vingança esse sentimento que constituía para aqueles povos fanáticos a verdadeira glória Apenas cessaram as aclamações com que foi acolhida a entrada do vencedor um dos guerreiros que o acompanhavam adiantouse e fincou na extrema do campo uma estaca destinada a receber a cabeça do inimigo logo que ela fosse decepada do corpo Ao mesmo tempo a jovem índia que servia de esposa ao prisioneiro tirou o tacape que pendia do ombro de seu pai e caminhando para Peri desligoulhe os braços e ofereceulhe a arma fitando nele um olhar triste ardente e cheio de amarga exprobração Nesse olhar dizialhe que se tivesse aceitado o amor que lhe oferecera e com o amor a vida e a liberdade ela não seria obrigada pelo costume tradicional de sua nação a escarnecer assim da sua morte Com efeito esse oferecimento que os selvagens faziam ao prisioneiro de uma arma para se defender era uma ironia cruel ligado pelo laço que o prendia imóvel pela tensão da corda de que lhe servia vibrar o tacape no ar se não podia atingir os inimigos Peri aceitou a arma que a menina lhe trazia calcandoa aos pés cruzou os braços e esperou o cacique que avançava lentamente terrível e ameaçador Chegando em face do prisioneiro a fisionomia do velho esclareceuse com um sorriso feroz reflexo dessa embriaguez do sangue que dilata as narinas do jaguar prestes a saltar sobre a presa Sou teu matador disse em guarani Peri não se admirou ouvindo a sua bela língua adulterada pelos sons roucos e guturais que saiam dos lábios do selvagem Peri não te teme És goitacá Sou teu inimigo Defendete O índio sorriu Tu não mereces Os olhos do velho fuzilaram de raiva a mão cerrou o punho da tangapema mas ele reprimiu logo o assomo da cólera A esposa do prisioneiro atravessou o campo e ofereceu ao vencedor um grande vaso de barro vidrado cheio de vinho de ananás ainda espumante O selvagem virou de um trago a bebida aromática e endireitando o seu alto talhe lançou ao prisioneiro um olhar soberbo Guerreiro goitacá tu és forte e valente tua nação é temida na guerra A nação Aimoré é forte entre as mais fortes valente entre as mais valentes Tu vais morrer O coro dos selvagens respondeu a esta espécie de canto guerreiro que preludiava o tremendo sacrifício O velho continuou Guerreiro goitacá tu és prisioneiro tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré teu corpo aos filhos de sua tribo tuas entranhas servirão ao banquete da vingança Tu vais morrer Os gritos dos selvagens responderam de novo e o canto se prolongou por muito tempo lembrando os feitos gloriosos da nação Aimoré e as ações de valor de seu chefe Enquanto o velho falava Peri o escutava com a mesma calma e impassibilidade nem um dos músculos do seu rosto traia a menor emoção seu olhar límpido e sereno ora fitavase no rosto do cacique ora volviase pelo campo examinando os preparativos do sacrifício Apenas quem o observasse veria que de braços cruzados como estava uma das mãos desfazia imperceptivelmente um dos nós que havia na ponta de seu saio de algodão Quando o velho acabou de falar encarou o prisioneiro e recuando dois passos elevou lentamente a pesada clava que empunhava na mão esquerda Os Aimorés ansiosos esperavam as velhas com as suas navalhas de pedra estremeciam de impaciência as jovens índias sorriam enquanto a noiva do prisioneiro voltava o rosto para não ver o espetáculo horrível que ia apresentarse Nesse momento Peri levando as duas mãos aos olhos cobriu o rosto e curvando a cabeça ficou algum tempo nessa posição sem fazer um movimento que revelasse a menor perturbação O velho sorriu Tens medo Ouvindo estas palavras Peri ergueu a cabeça com ar senhoril Uma expressão de júbilo e serenidade irradiava no seu rosto dirseia o êxtase dos mártires da religião que na última hora através do túmulo entrevêem a felicidade suprema A alma nobre do índio prestes a deixar a terra parecia exalar já do seu invólucro e pousando nos seus lábios nos seus olhos na sua fronte esperava o momento de lançarse no espaço para ir se abrigar no seio do Criador Erguendo a cabeça fitou os olhos no céu como se a morte que ia cair sobre ele fosse uma visão encantadora que descesse das nuvens sorrindolhe Era que nesse último sonho da existência via a linda imagem de Cecília feliz alegre e contente via sua senhora salva Fere disse Peri ao velho cacique Os instrumentos retumbaram de novo os gritos e os cantos se confundiram com aqueles sons roucos e reboaram pela floresta como o trovão rolando pelas nuvens A tangapema coberta de plumas girou no ar cintilando aos raios do sol que feriam as cores brilhantes No meio desse turbilhão ouviuse um estrondo uma ânsia de agonizante e o baque de um corpo tudo isto confusamente sem que no primeiro instante se pudesse perceber o que havia passado III SORTIDA O estrondo que se ouviu fora causado por um tiro que partiu dentre as árvores O velho Aimoré vacilou seu braço que vibrava o tacape com uma força hercúlea caiu inerte o corpo abateuse como o ipê da floresta cortada pelo raio A morte tinha sido quase instantânea apenas um estertor de agonia ressoou no seu peito largo e ainda há pouco vigoroso caíra já cadáver Enquanto os selvagens permaneciam estáticos diante do que se passava Álvaro com a espada na mão e a clavina ainda fumegante precipitavase no meio do campo De dois talhos rápidos cortou os laços de Peri e com as evoluções de sua espada conteve os selvagens que voltando a si calam sobre ele bramindo de furor Imediatamente ouviuse uma descarga de arcabuzes dez homens destemidos tendo à sua frente Aires Gomes saltaram por sua vez com a arma em punho e começaram a talhar de alto a baixo a grandes golpes de espada Não pareciam homens e sim dez demônios dez máquinas de guerra vomitando a morte de todos os lados enquanto a sua mão direita imprimia à lamina da espada mil voltas que eram outros tantos golpes terríveis a esquerda jogava a adaga com destreza e segurança admiráveis O escudeiro e seus homens tinham feito um semicírculo em roda de Álvaro e de Peri e apresentavam uma barreira de ferro e fogo às ondas de inimigos que bramiam recuavam e lançavamse de novo quebrandose de encontro a esse dique No curto instante que mediou entre a morte do cacique e o ataque dos aventureiros Peri de braços cruzados olhava impassível para tudo o que se passava em torno dele Compreendia então o gesto que sua senhora há pouco lhe fizera do alto da esplanada e o raio de esperança e de alegria que ele julgara ver brilhar no seu semblante Com efeito no primeiro momento de aflição Cecília se lançara para ver o índio chamálo ainda e suplicarlhe mesmo que não expusesse a sua vida inutilmente Não tendo mais visto Peri a menina sentiu um desespero cruel voltouse para seu pai e com as faces orvalhadas de lágrimas com o seio anelante com a voz cheia de angústia pediulhe que salvasse Peri D Antônio de Mariz antes que sua filha lhe fizesse esse pedido já tinha se lembrado de chamar os seus companheiros fiéis e seguido por eles correr contra o inimigo e livrar o índio da morte certa e inevitável que procurava Mas o fidalgo era um homem de uma lealdade e de uma generosidade a toda a prova sabia que aquela empresa era de um risco imenso e não queria obrigar os seus companheiros a partilhar um sacrifício que ele só faria de bom grado à amizade que votava a Peri Os aventureiros que se haviam dedicado com tanta constância à salvação de sua família não tinham as mesmas razões para se arriscarem por causa de um homem que não pertencia à sua religião e que não tinha com eles o menor laço de comunidade D Antônio de Mariz perplexo irresoluto entre a amizade e o seu escrúpulo generoso não soube o que responder a sua filha procurou consolála aflito por não poder satisfazer imediatamente a sua vontade Álvaro que contemplava esta cena pungente a alguma distancia no meio dos aventureiros fiéis e dedicados que tinha sob suas ordens tomou repentinamente uma resolução Seu coração partiase vendo Cecília sofrer e embora amasse Isabel a sua alma nobre sentia ainda pela mulher a quem votara os seus primeiros sonhos uma afeição pura respeitosa uma espécie de culto Era uma coisa singular na vida dessa menina todas as paixões todos os sentimentos que a envolviam sofriam a influência de sua inocência e iam a pouco e pouco depurandose e tomando um quer que seja de ideal um cunho de adoração O mesmo amor ardente e sensual de Loredano quando se tinha visto em face dela adormecida na sua casta isenção emudecera e hesitara um momento se devia manchar a santidade do seu pudor Álvaro trocou com os aventureiros algumas palavras e dirigiuse para o grupo que formavam D Antônio de Mariz e sua filha Consolaivos D Cecília disse o moço e esperai A menina fitou nele os olhos azuis cheios de reconhecimento aquela palavra era ao menos uma esperança Que contais fazer perguntou D Antônio ao cavalheiro Tirar Peri das mãos do inimigo Vós exclamou Cecília Sim D Cecília disse o moço aqueles homens dedicados vendo a vossa aflição sentiramse comovidos e desejam pouparvos uma justa mágoa Álvaro atribuía a generosa iniciativa aos seus companheiros quando eles não tinham feito senão aceitála com entusiasmo Quanto a D Antônio de Mariz sentira uma intima satisfação ouvindo as palavras do moço seus escrúpulos cessavam desde que seus homens espontaneamente se ofereciam para realizar aquela difícil empresa Me cedereis uma parte dos nossos homens quatro ou cinco me bastam continuou o moço dirigindose ao fidalgo ficareis com o resto para defendervos no caso de algum ataque imprevisto Não respondeu D Antônio levaios todos já que se prestam a essa tão nobre ação que não me animava a exigir de sua coragem Para defender a minha família basto eu apesar de velho Desculpaime Sr D Antônio replicou Álvaro mas é uma imprudência a que me oponho pensai que a dois passos de vós existem homens perdidos que nada respeitam e que espiam o momento de fazervos mal Sabeis se prezo e estimo este tesouro cuja guarda me foi confiada por Deus Julgais que haja neste mundo alguma coisa que me faça expôlo a um novo perigo Acreditaime D Antônio de Mariz só defenderá sua família enquanto vós salvareis um bom e nobre amigo Confiais demasiado em vossas forças Confio em Deus e no poder que ele colocou em minha mão poder terrível que quando chegar o momento fulminará todos os nossos inimigos com a rapidez do raio A voz do velho fidalgo pronunciando estas palavras tinhase revestido de uma solenidade imponente o seu rosto iluminouse com uma expressão de heroísmo e de majestade que realçou a beleza severa do seu busto venerável Álvaro olhou com uma admiração respeitosa o velho cavalheiro enquanto Cecília pálida e palpitante das emoções que sentira esperava com ansiedade a decisão que iam tomar O moço não insistiu e sujeitouse à vontade de D Antônio de Mariz Obedeçovos iremos todos e voltaremos mais pronto O fidalgo apertoulhe a mão Salvaio Oh sim exclamou Cecília salvaio Sr Álvaro Jurovos D Cecília que só a vontade do céu fará que eu não cumpra a vossa ordem A menina não achou uma palavra para agradecer essa generosa promessa toda a sua alma partiuse num sorriso divino Álvaro inclinouse diante dela foi juntarse aos aventureiros e deulhes ordem de se prepararem para partir Quando o moço entrou na sala então deserta para tomar as suas armas Isabel que já sabia do seu projeto correu a ele pálida e assustada Ides batervos disse ela com a voz trêmula Em que isso vos admira Não nos batemos todos os dias com o inimigo De longe Defendidos pela posição Mas agora é diferente Não vos assusteis Isabel Daqui a uma hora estarei de volta O moço passou a clavina a tiracolo e quis sair Isabel tomoulhe as mãos com um movimento arrebatado seus olhos cintilavam com um fogo estranho suas faces estavam incendiadas de vivo rubor O moço procurou tirar as mãos daquela pressão ardente e apaixonada Isabel disse ele com uma doce exprobração quereis que falte à minha palavra que recue diante de um perigo Não Nunca eu vos pediria semelhante coisa Era preciso que não vos conhecesse e que não vos amasse Mas então deixaime partir Tenho uma graça a suplicarvos De mim Neste momento Sim Neste momento Apesar do que me dizíeis há pouco apesar do vosso heroísmo sei que caminhais a uma morte certa inevitável A voz de Isabel tornouse balbuciante Quem sabe se nos veremos mais neste mundo Isabel disse o moço querendo fugir para evitar a comoção que se apoderava dele Prometestes fazerme a graça que vos pedi Qual Antes de partir antes de me dizer adeus para sempre A moça fitou no cavalheiro um olhar que fascinava Falai Falai Antes de nos separarmos eu vos suplico deixaime uma lembrança vossa Mas uma lembrança que fique dentro de minha alma E a menina caiu de joelhos aos pés de Álvaro ocultando seu rosto que o pudor revoltado em luta com a paixão cobria de um brilhante carmim Álvaro ergueua confusa e vergonhosa do que tinha feito e chegando seus lábios ao ouvido proferiu ou antes murmurou uma frase O semblante de Isabel expandiuse uma auréola de ventura cingiu a sua fronte seu seio dilatouse e respirou com a embriaguez do coração feliz Eu te amo Era a frase que Álvaro deixara cair na sua alma e que a enchia toda como um eflúvio celeste como um canto divino que ressoava nos seus ouvidos e fazia palpitar todas as suas fibras Quando ela saiu deste êxtase o moço tinha saído da sala e uniase aos seus companheiros prontos a marchar Foi nessa ocasião que Cecília chegando imprudentemente à paliçada fez a Peri um aceno que lhe dizia esperasse A pequena coluna partiu comandada por Álvaro e por Aires Gomes que depois de três dias não deixava o seu posto dentro do gabinete do fidalgo Quando os bravos combatentes desapareceram na floresta D Antônio de Mariz recolheuse com sua família para a sala e sentandose na sua poltrona esperou tranqüilamente Não mostrava o menor temor de ser atacado pelos aventureiros revoltados que estavam a alguns passos de distancia apenas e que não deixariam de aproveitar um ensejo tão favorável D Antônio tinha a este respeito uma completa segurança tendo fechado as portas e examinado a escorva de suas pistolas recomendou silêncio a fim de que nenhum rumor lhe escapasse Vigilante e atento o fidalgo refletia ao mesmo tempo sobre o fato que se acabava de passar e que o tinha profundamente impressionado Conhecia Peri e não podia compreender como o índio sempre tão inteligente e tão perspicaz se deixara levar por uma louca esperança a ponto de ir ele só atacar os selvagens A extrema dedicação do índio por sua senhora o desespero da posição em que se achavam podia explicar essa alucinação se o fidalgo não soubesse quanto Peri tinha a calma a força e o sanguefrio que tornam o homem superior a todos os perigos O resultado de suas reflexões foi que havia no procedimento de Peri alguma coisa que não estava clara e que devia explicarse mais tarde Ao passo que ele se entregava a esses pensamentos Álvaro tinha feito uma volta e favorecido pela festa dos selvagens se aproximara sem ser percebido Quando avistou Peri a algumas braças de distancia o velho cacique levantava a tangapema sobre a sua cabeça O moço levou a clavina ao rosto e a bala sibilando foi atravessar o crânio do selvagem IV REVELAÇÃO Apenas Álvaro com a chegada dos seus companheiros viuse livre dos inimigos que o atacavam voltou a Peri que assistia imóvel a toda esta cena Vinde disse o moço com autoridade Não respondeu o índio friamente Tua senhora te chama Peri abaixou a cabeça com uma profunda tristeza Dize à senhora que Peri deve morrer que vai morrer por ela E tu parte porque senão seria tarde Álvaro olhou a fisionomia inteligente do índio para ver se descobria nela algum sinal de perturbação de espírito porque o moço não compreendia nem podia compreender a causa dessa obstinação insensata O rosto de Peri calmo e sereno não lhe deixou ver senão uma resolução firme inabalável tanto mais profunda quanto se mostrava sob uma aparência de sossego e tranqüilidade Assim tu não obedeces à tua senhora Peri custou a arrancar a palavra dos lábios A ninguém Quando pronunciava esta palavra um grito fraco soou ao lado dele voltandose viu a índia que lhe haviam destinado por esposa caindo atravessada por uma flecha O tiro fora destinado a Peri por um dos selvagens e a menina lançandose para cobrir o corpo daquele que amara uma hora recebera a seta no peito Seus olhos negros desmaiados pelas sombras da morte volveram a Peri um último olhar e cerrando tornaram a abrirse já sem vida e sem brilho Peri sentiu um movimento de piedade e simpatia vendo essa vitima de sua dedicação que como ele sacrificava sem hesitar a sua existência para salvar aquele a quem amava Álvaro nem se apercebeu do que acabava de passar lançando um olhar para seus homens que batiamse valentemente com os Aimorés fez um aceno a Aires Gomes Escuta Peri tu sabes se costumo cumprir a minha palavra jurei a Cecília levarte e ou tu me acompanhas ou morreremos todos neste lagar Faze o que quiseres Peri não sairá daqui Vês estes homens são os únicos defensores que restam à tua senhora se todos eles morrem bem sabes que é impossível que ela se salve Peri estremeceu Ficou um momento pensativo depois sem dar tempo a que o seguissem lançouse entre as árvores D Antônio de Mariz e sua família tendo ouvido os tiros de arcabuzes esperavam com ansiedade o resultado da expedição Dez minutos haviam decorrido na maior impaciência quando sentiram tocar na porta e ouviram a voz de Peri Cecília correu e o índio ajoelhouse a seus pés pedindolhe perdão O fidalgo livre do pesar de perder um amigo assumira a sua costumada severidade como sempre que se tratava de uma falta grave Cometeste uma grande imprudência disse ele ao índio fizeste sofrer teus amigos expuseste a vida daqueles que te amam não precisas de outra punição além desta Peri ia salvarte Entregandote nas mãos do inimigo Sim Fazendote matar por eles Matar e Mas qual era o resultado dessa loucura O índio calouse É preciso explicareste para que não julguemos que o amigo inteligente e dedicado de outrora tornouse um louco e um rebelde A palavra era dura e o tom em que foi dita ainda agravava mais a repreensão severa que ela encerrava Peri sentiu uma lágrima umedecerlhe as pálpebras Obrigas Peri a dizer tudo Deves fazêlo se desejas reabilitarte na estima que te votava e que sinto perder Peri vai falar Álvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto da esplanada os seus companheiros já livres de perigo e quites por algumas feridas que não eram felizmente muito graves Cecília apertou as mãos do moço com reconhecimento Isabel envioulhe num olhar toda a sua alma As pessoas presentes se gruparam ao redor da poltrona de D Antônio em face do qual Peri de pé com a cabeça baixa confuso e envergonhado como um criminoso ia justificarse Dirseia que confessava uma ação indigna e vil ninguém adivinhava que sublime heroísmo que concepção gigantesca havia neste ato que todos condenavam como uma loucura Ele começou Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para não tornar a erguêlo chamou Peri e disse Filho de Ararê teu pai vai morrer lembrate que tua carne é a minha carne e o teu sangue e o meu sangue Teu corpo não deve servir ao banquete do inimigo Ararê disse e tirou suas contas de frutos que deu a seu filho estavam cheias de veneno tinham nelas a morte Quando Peri fosse prisioneiro bastava quebrar um fruto e ria do vencedor que não se animaria a tocar no seu corpo Peri viu que a senhora sofria e olhou as suas contas teve uma idéia a herança de Ararê podia salvar a todos Se tu deixasses fazer o que queria quando a noite viesse não acharia um inimigo vivo os brancos e os índios não te ofenderiam mais Toda a família ouvia esta narração com uma surpresa extraordinária compreendiam dela que havia em tudo isto uma arma terrível o veneno mas não podiam saber os meios de que o índio se servira ou pretendia servirse para usar desse agente de destruição Acaba disse D Antônio por que modo contavas então destruir o inimigo Peri envenenou a água que os brancos bebem e o seu corpo que devia servir ao banquete dos Aimorés Um grito de horror acolheu essas palavras ditas pelo índio em um tom simples e natural O plano que Peri combinara para salvar seus amigos acabava de revelarse em toda a sua abnegação sublime e com o cortejo de cenas terríveis e monstruosas que deviam acompanhar a sua realização Confiado nesse veneno que os índios conheciam com o nome de curare e cuja fabricação era um segredo de algumas tribos Peri com a sua inteligência e dedicação descobrira um meio de vencer ele só aos inimigos apesar do seu número e da sua força Sabia a violência e o efeito pronto daquela arma que seu pai lhe confiara na hora da morte sabia que bastava uma pequena parcela desse pó sutil para destruir em algumas horas a organização a mais forte e a mais robusta O índio resolveu pois usar deste poder que na sua mão heróica ia tornarse um instrumento de salvação e o agente de um sacrifício tremendo feito à amizade Dois frutos bastaram um serviu para envenenar a água e as bebidas dos aventureiros revoltados e o outro acompanhouo até o momento do suplício em que passou de suas mãos aos seus lábios Quando o cacique vendoo cobrir o rosto perguntoulhe se tinha medo Peri acabava de envenenar o seu corpo que devia daí a algumas horas ser um germe de morte para todos esses guerreiros bravos e fortes O que porém dava a esse plano um cunho de grandeza e de admiração não era somente o heroísmo do sacrifício era a beleza horrível da concepção era o pensamento superior que ligara tantos acontecimentos que os submetera à sua vontade fazendoos sucederse naturalmente e caminhar para um desfecho necessário e infalível Porque é preciso notar a menos de um fato extraordinário desses que a previdência humana não pode prevenir Peri quando saiu da casa tinha a certeza de que as coisas se passariam como de fato se passaram Atacando os Aimorés a sua intenção era excitálos à vingança precisava mostrarse forte valente destemido para merecer que os selvagens o tratassem como um inimigo digno de seu ódio Com a sua destreza e com a precaução que tomara tornando o seu corpo impenetrável contava evitar a morte antes de poder realizar o seu projeto quando mesmo caísse ferido tinha tempo de passar o veneno aos lábios A sua previsão porém não o iludiu tendo conseguido o que desejava tendo excitado a raiva dos Aimorés quebrou a sua arma e suplicou a vida ao inimigo foi de todo o sacrifício o que mais lhe custou Mas assim era preciso a vida de Cecília o exigia a morte que o havia respeitado até então podia surpreendêlo e Peri queria ser feito prisioneiro como foi e contava ser O costume dos selvagens de não matar na guerra o inimigo e de cativálo para servir ao festim da vingança era para Peri uma garantia e uma condição favorável à execução do seu projeto Quanto à peripécia final que a intervenção de Álvaro obstara não fora esse incidente imprevisto que seria igualmente infalível Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro toda a tribo devia tomar parte no festim as mulheres moças tocavam apenas na carne do prisioneiro mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado adubado pelo prazer da vingança e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevam no sangue de suas vítimas Peri contava pois com toda a segurança que dentro de algumas horas o corpo envenenado da vitima levaria a morte às entranhas de seus algozes e que ele só destruiria toda uma tribo grande forte poderosa apenas com o auxilio dessa arma silenciosa Podese agora compreender qual tinha sido o seu desespero vendo esse plano inutilizado depois de ter desobedecido à sua senhora depois de haver tudo realizado quando só faltava o desfecho quando o golpe que ia salvar a todos caia mudarse de repente a face das coisas e ver destruída a sua obra filha de tanta meditação Ainda assim quis resistir quis ficar esperando que os Aimorés continuariam o sacrifício mas conheceu que a resolução de Álvaro era inabalável como a sua que ia ser a causa da morte de todos os defensores fiéis de D Antônio sem ter já a certeza de sua salvação No primeiro momento que sucedeu à confissão de Peri todos os atores desta cena pálidos tomados de espanto e de terror com os olhos cravados no índio duvidavam ainda do que tinham ouvido o espírito horrorizado não formulava uma idéia os lábios trêmulos não achavam uma palavra D Antônio foi o primeiro que recobrou a calma no meio da admiração que lhe causava aquela ação heróica e das emoções produzidas por essa idéia ao mesmo tempo sublime e horrível uma circunstância o tinha sobretudo impressionado Os aventureiros iam ser vitimas de envenenamento e por maior que fosse o grau de baixeza e aviltamento a que tinham descido esses homens pela sua traição a nobreza do fidalgo não podia sofrer semelhante homicídio Ele os puniria a todos com a morte ou com o desprezo essa outra morte moral mas o castigo na sua opinião elevava a morte à altura de um exemplo enquanto que a vingança a fazia descer ao nível do assassinato Vai Aires Gomes gritou D Antônio ao seu escudeiro corre e previne a esses desgraçados se ainda é tempo V O PAIOL Cecília ouvindo a voz de seu pai estremeceu como se acordasse de um sonho Atravessou o aposento com passo vacilante e chegandose a Peri fitou nele os seus lindos olhos azuis com uma expressão indefinível Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração imensa que lhe causava a ação heróica do índio a dor profunda que sentia pela sua perda e uma exprobração doce por não ter ele ouvido as suas súplicas O índio nem se animava a levantar os olhos para sua senhora não tendo realizado o seu desejo considerava agora tudo quanto fizera como uma loucura Sentiase criminoso e de toda a sua ação heróica e sublime para os outros só lhe restava o pesar de ter ofendido Cecília e de lhe haver causado inutilmente um desgosto Peri disse a menina com desespero por que não fizeste o que tua senhora te pedia O índio não sabia o que responder temia ter perdido a afeição de Cecília e essa idéia martirizava os últimos momentos que lhe restavam a viver Cecília não te disse continuou a menina soluçando que ela não aceitaria a salvação com o sacrifício de tua vida Peri já te pediu que perdoasses murmurou o índio Oh Se tu soubesses o que fizeste hoje sofrer a tua senhora Mas ela te perdoa Ah exclamou Peri cuja fisionomia iluminouse Sim Cecília te perdoa tudo que sofreu e tudo que vai sofrer Mas será por pouco tempo A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação conhecia que não havia mais esperança de salvação e esta idéia quase a consolava Não pôde acabar porém a palavra ficoulhe presa aos lábios trêmula convulsa seus olhos se fixavam em Peri com um sentimento de terror e de espanto A fisionomia do índio se tinha decomposto seus traços nobres alterados por contrações violentas o rosto encovado os lábios roxos os dentes que se entrechocavam os cabelos eriçados davamlhe um aspecto medonho O veneno gritaram os espectadores dessa cena horrorizados Cecília fez um esforço extraordinário e lançandose para o índio procurou reanimálo Peri Peri balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo Peri vai te deixar para sempre senhora Não Não exclamou a menina fora de si Não quero que tu nos deixes Oh tu és mau muito mau Se estimasses tua senhora não a abandonarias assim As lágrimas orvalhavam as faces da menina que no seu desespero não sabia o que dizia Eram palavras entrecortadas sem sentido mas que revelavam a sua angústia Tu queres que Peri viva senhora disse o índio com a voz comovida Sim respondeu a menina suplicante Quero que tu vivas Peri viverá O índio fez um esforço supremo e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos dirigiuse à porta e desapareceu Todas as pessoas presentes o acompanharam com os olhos e o viram descer à várzea e ganhar a floresta correndo A última palavra que ele proferira tinha um momento restituído a esperança a D Antônio de Mariz mas quase logo a dúvida apoderouse do seu espírito julgou que o índio se iludia Cecília porém tinha mais do que uma esperança tinha quase uma certeza de que Peri não se enganara a promessa de seu amigo lhe inspirava uma confiança profunda Nunca Peri lhe havia dito uma coisa que se não realizasse o que parecia impossível aos outros tornavase fácil para sua vontade firme e inabalável para o poder sobrehumano de que a força e a inteligência o revestia Quando D Antônio de Mariz e sua família se recolheram tristemente impressionados Álvaro de pé na porta do gabinete fez um gesto de espanto ao fidalgo e apontoulhe para o oratório A parede do fundo prestes a tombar oscilava sobre a sua base como uma árvore balançada pelo vento D Antônio sorriu e ordenando à sua família que entrasse no gabinete tirou a pistola da cinta armoua e esperou na porta ao lado de Álvaro No mesmo instante ouviuse um grande estrondo e no meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruínas seis homens precipitaramse na sala Loredano foi o primeiro apenas tocou o chão ergueuse com extraordinária rapidez e seguido pelos seus companheiros caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a família Recuaram porém lívidos e trêmulos horrorizados diante da cena muda e terrível que se apresentava aos seus olhos espantados No meio do aposento viase um desses grandes vasos de barro vidrado feitos pelos índios e que continha pelo menos uma arroba de pólvora De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia perderse no fundo do paiol onde se achavam enterradas todas as munições de guerra do fidalgo Duas pistolas a de D Antônio de Mariz e a de Álvaro esperavam um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca ao vulcão D Lauriana Cecília e Isabel de joelhos oravam julgando a cada momento ver confundiremse no turbilhão todos os espectadores dessa cena Era esta a arma terrível de que falara há pouco D Antônio quando dizia à Álvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar todos os seus inimigos O moço compreendeu então a razão por que o fidalgo o tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Peri julgandose bastante forte para defender ele só a sua família Quanto aos aventureiros lembraramse do juramento solene de D Antônio de Mariz o fidalgo os tinha a todos fechados na sua mão e bastava apertar essa mão para esmagálos como um torrão de argila Lançando um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quiseram fugir mas não tiveram animo de dar um passo e ficaram como pregados ao solo Ouviuse então um rumor de vozes da parte de fora e Aires Gomes seguido pelos aventureiros apresentouse à porta da sala Loredano conheceu que desta vez estava irremediavelmente perdido e assentou de vender caro a sua vida mas a desgraça pesava sobre ele Dois dos seus companheiros caíram a seus pés estorcendose em convulsões horríveis e soltando gritos que metiam dó e compaixão A princípio ninguém compreendeu a causa dessa morte súbita e violenta mas a lembraça do veneno de Peri acudiu logo à memória de alguns e explicou tudo Os aventureiros que chegavam guiados por Aires Gomes apoderaramse de Loredano e foram ajoelharse confusos e envergonhados aos pés de D Antônio de Mariz pedindolhe o perdão de sua falta O fidalgo tinha assistido a todos esses acontecimentos que se sucediam tão rapidamente sem deixar a sua primeira posição dirseia que sobre essas paixões humanas que se debatiam a seus pés ele plainava como um gênio prestes a vibrar o raio celeste A vossa falta é daquelas que não se perdoam disse D Antônio mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer todas as ofensas Levantaivos e preparemonos todos para morrer como cristãos Os aventureiros ergueramse e arrastando Loredano para fora da sala retiraramse para o alpendre com a consciência aliviada de um grande peso A família pôde então depois de tantas emoções gozar um pouco de sossego e repouso apesar da posição desesperada em que se achavam a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre de esperança Só D Antônio de Mariz não se iludia e desde aquela manhã tinha conhecido que quando os Aimorés não o vencessem pelas armas o venceriam pela fome Todos os viveres estavam consumidos e só uma sortida vigorosa podia salvar a família desse martírio que a ameaçava martírio muito mais cruel do que uma morte violenta O fidalgo resolveu esgotar os últimos recursos antes de confessarse vencido queria morrer com a consciência tranqüila de haver cumprido o seu dever e de haver feito o que fosse humanamente possível Chamou Álvaro e entretevese com o moço durante algum tempo em voz baixa concertavam um meio de realizar essa idéia de que dependia toda a esperança de salvação Ao mesmo tempo que isto se passava os aventureiros reunidos em conselho julgavam a Frei Ângelo di Luca e o condenavam por um voto unânime Proferida a sentença apresentaramse diversas opiniões sobre o suplício que devia ser infligido ao culpado cada um lembrava o gênero de morte o mais cruel porém a opinião geral adotou a fogueira como o castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges Fincaram no meio do terreiro um alto poste e o cercaram com uma grande pilha de madeira e outros combustíveis depois sobre essa pira ligaram o frade que sofria todos os insultos e todas as injúrias sem proferir uma palavra Uma espécie de atonia se apoderara do italiano desde o momento em que os aventureiros o haviam arrastado da sala de D Antônio de Mariz ele tinha a consciência do seu crime e a certeza de sua condenação Entretanto na ocasião em que o atavam à fogueira um incidente despertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela idéia da morte e pela convicção de que não podia escapar a ela Um dos aventureiros um dos cinco cúmplices da última conspiração chegouse a Loredano e tirandolhe a cinta que prendia o seu gibão mostroua aos seus companheiros O italiano vendose separado do seu tesouro sentiu uma dor muito mais forte do que a que ia sofrer na fogueira para ele não havia suplício não havia martírio que igualasse a este O que o consolava na sua última hora era a idéia de que esse segredo que possuía e do qual não pudera utilizarse ia morrer com ele e ficaria perdido para todos que ninguém gozaria do tesouro que lhe escapava Por isso apenas o aventureiro tiroulhe a cinta onde guardava o roteiro soltou um rugido de cólera e de raiva impotente seus olhos injetaramse de sangue e seus membros crispandose feriramse contra as cordas que os ligavam ao poste Era horrível de ver nesse momento seu aspecto tinha a expressão brutal e feroz de um hidrófobo seus lábios espumavam silvando como a serpente e seus dentes ameaçavam de longe os seus algozes como as presas do jaguar Os aventureiros riramse do desespero do frade por ver roubaremlhe o seu precioso tesouro e divertiramse em aumentarlhe o suplício prometendo que apenas livres dos Aimorés fariam uma expedição às minas de prata A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou a cinta ao corpo e disselhe sorrindo Bem sabeis o provérbio O bocado não é para quem o faz VI TRÉGUA Eram oito horas da noite Os aventureiros sentados no terreiro em roda de um pequeno fogo esperavam tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados à magra ceia A penaria tinha sucedido à abundância de outrora privados da caça sua alimentação ordinária estavam reduzidos a simples vegetais Os seus vinhos e as bebidas fermentadas de que faziam largas libações tinham sido envenenados por Peri e foram pois obrigados a deitálos fora muito felizes ainda por não terem sido vitimas deles Loredano fechando a porta da despensa é que os tinha salvado apenas dois dos aventureiros que o haviam acompanhado tinham tocado nessas bebidas e por isso poucas horas depois caíram mortos como vimos na ocasião em que iam atacar D Antônio de Mariz Não eram porém essas cenas de lato e a situação critica em que se achavam que infundiam nesses homens sempre alegres e tão galhofeiros aquela tristeza que não lhes era habitual Morrer com as armas na mão batendose contra o inimigo era para eles uma coisa natural uma idéia a que a sua vida de aventuras e de perigos os tinha afeito O que realmente os entristecia era não terem uma boa ceia e um canjirão de vinho diante de si era o seu estômago que se contraia por falta de alimento e que tiravalhes toda a disposição de rir e de folgar A chama avermelhada da fogueira às vezes oscilava ao sopro do vento e estendendose pelo terreiro ia iluminar a alguma distância com o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pira de lenha Os aventureiros tinham resolvido demorar o suplício e dar tempo a que o frade se arrepende se dos seus crimes e se decidisse a morrer como cristão humilde e penitente por isso deixaramlhe a noite para refletir Talvez entrasse também nessa resolução um requinte de maldade e de vingança julgando o italiano a verdadeira causa da posição em que estavam colocados os seus companheiros o odiavam e queriam prolongar o seu sofrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito Assim de vez em quando algum deles se erguia e chegandose ao frade exprobravalhe a sua perversidade e cobriao de impropérios e de injúrias Loredano estorciase de raiva mas não proferia uma palavra porque os seus algozes o tinham ameaçado de cortarlhe a língua Aires Gomes veio chamar os aventureiros da parte de D Antônio de Mariz todos se apressaram em obedecer e pouco depois entraram na sala onde estava toda a família Tratavase de uma sortida com o fim de procurar víveres que pudessem alimentar os habitantes da casa até que D Diogo tivesse tempo de chegar com o socorro que tinha ido procurar D Antônio de Mariz reservava dez homens para defenderse os outros partiriam com Álvaro se fossem felizes havia ainda uma esperança de salvação de fossem malsucedidos uns e outros os que fossem e os que ficassem morreriam como cristãos e portugueses Imediatamente a expedição preparouse a favorecida pelo silêncio da noite partiu e internose pela floresta devia afastarse sem ser percebida pelos Aimorés e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla provisão de alimentos Durante a primeira hora que sucedeu à partida todos os que ficaram com o ouvido atento escutaram temendo ouvir a cada momento o estrondo de tiros que anunciasse um combate entre os aventureiros e os índios Tudo conservouse em silêncio e uma esperança bem que vaga e tênue veio pousar nesses corações quebrados por tantos sofrimentos e tantas angústias A noite passouse tranqüilamente nada indicava que a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrível como os Aimorés D Antônio admiravase que os selvagens depois do ataque da manhã se conservassem tranqüilos no seu campo e não tivessem investido a habitação uma só vez Passoulhe pelo espírito a idéia de que se tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principais guerreiros mas ele conhecia de há muito o espírito vingativo e a tenacidade dessa raça para admitir semelhante suposição Cecília recostouse num sofá e alquebrada de fadiga conseguiu adormecer apesar das idéias tristes e das inquietações que a agitavam Isabel com o coração cerrado por um terrível pressentimento lembravase de Álvaro e acompanhavao de longe na sua perigosa expedição misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor Assim passouse esta noite a primeira depois de três dias em que a família de D Antônio de Mariz pôde gozar alguns momentos de sossego De vez em quando o fidalgo chegando à janela via ao longe perto do rio brilharem os fogos do campo dos Aimorés mas uma calma profunda reinava em toda aquela planície Nem mesmo se ouvia o eco enfraquecido de uma dessas cantigas monótonas com que os selvagens costumam à noite acompanhar o embalançar de sua rede de palha apenas o sussurrar do vento nas folhas a queda da água sobre as pedras e o grito do oitibó Contemplando a solidão o fidalgo insensivelmente voltava a essa esperança que há pouco sorrira e que o seu espírito tinha repelido como uma simples ilusão Tudo com efeito parecia indicar que os selvagens haviam abandonado o seu campo deixando nele apenas os fogos que haviam servido para esclarecer os seus preparativos de partida Para quem conhecia como D Antônio os costumes desses povos bárbaros para quem sabia quanto era ativa agitada ruidosa esta existência nômada o silêncio em que estava sepultada a margem do rio era um sinal certo de que os Aimorés já ali não estavam Contudo o fidalgo demasiadamente prudente para se fiar em aparências recomendara aos seus homens que redobrassem de vigilância para evitar alguma surpresa Talvez que aquele sossego e aquela serenidade fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludiam as grandes tempestades e durante as quais os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem nessa luta espantosa que tem por campo de batalha o espaço e o infinito As horas correram silenciosamente a viuvinha cantou pela primeira vez e a luz branca da alvorada veio empalidecer as sombras da noite Pouco e pouco o dia foi rompendo o arrebol da manhã desenhouse no horizonte tingindo as nuvens com todas as cores do prisma O primeiro raio do sol desprendendose daqueles vapores tênues e diáfanos deslizou pelo azul do céu e foi brincar no cabeço dos montes O astro assomou e torrentes de luz inundaram toda a floresta que nadava num mar de ouro marchetado de brilhantes que cintilavam em cada uma das gotas do orvalho suspensas às folhas das árvores Os habitantes da casa despertando admiravam esse espetáculo magnífico do nascer do dia que depois de tantas tribulações e de tantas angústias lhes parecia completamente novo Uma noite de quietação e sossego os tinha como que restituído à vida nunca esses campos verdes esse rio puro e límpido essas árvores florescentes esses horizontes descortinados se haviam mostrado a seus olhos tão belos tão risonhos como agora É que o prazer e o sofrimento não passam de um contraste em lata perpétua e continua eles se acrisolam um no outro e se deparam não há homem verdadeiramente feliz senão aquele que já conheceu a desgraça Cecília com a frescura da manhã tinhase expandido como uma flor do campo suas faces coloriramse de novo como se um raio do sol beijandoas lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado os olhos brilharam e os lábios entreabrindose para aspirarem o ar puro e embalsamado da manhã arquearamse graciosamente quase sorrindo A esperança esse anjo invisível essa doce amiga dos que sofrem tinha vindo pousar no seu coração e murmuravalhe ao ouvido palavras confusas cantos misteriosos que ela não compreendia mas que a consolavam e vertiam em sua alma um bálsamo suave Sentiase em todas as pessoas de casa um quer que seja uma animação um começo de bemestar que revelava uma grande transformação operada na situação da véspera era mais do que a esperança menos do que a seguridade Só Isabel não partilhava essa impressão geral como sua prima ela também viera contemplar o raiar do dia mas fora para interrogar a natureza e perguntar ao sol à luz ao céu se as lúgubres imagens que tinham passado e repassado na sua longa vigília eram uma realidade ou uma visão E uma coisa singular Esse sol tão brilhante essa luz esplêndida esse céu azul que aos outros reanimara e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento pareceulhe ao contrário uma amarga ironia Comparou a cena radiante que se apresentava aos seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma enquanto a natureza sorria o seu coração chorava No meio dessa festa esplêndida do nascer do dia a sua dor só isolada não achava uma simpatia e repelida pela criação voltava a recalcarse em seu seio A moça recostou a cabeça sobre o ombro de sua prima e escondeu ai o rosto para não perturbar a doce serenidade que se expandia no semblante de Cecília Entretanto D Antônio tinha tratado de averiguar se as suas suspeitas da véspera eram reais certificouse de que os selvagens haviam abandonado o campo Aires Gomes acompanhado de mestre Nunes chegou mesmo a sair da casa e aproximarse com todas as cautelas do lugar onde na véspera os Aimorés festejavam o sacrifício de Peri Tudo estava deserto não se viam mais no campo os vasos de barro as peças de caça suspensas aos galhos da árvore e as redes grosseiras que indicavam a alta de uma horda selvagem Não havia já dúvidas os Aimorés tinham partido desde a véspera à noite depois de enterrarem os seus mortos O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo que recebeua menos favoravelmente do que se devia supor ignorava a causa e o fim dessa partida repentina e desconfiava dela Não há que admirar nisto D Antônio era um homem prudente e avisado a sua experiência de quarenta anos o tinha tornado suspeitoso por coisa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrarse VII PELEJA Quando a família de D Antônio de Mariz gozava dos primeiros momentos de tranqüilidade que sucediam a tantas aflições soou um grito na escada de pedra Cecília levantouse estremecendo de alegria e felicidade tinha reconhecido a voz de Peri No momento em que ia correr ao encontro do seu amigo mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça e Peri chegava à porta da sala D Antônio de Mariz sua mulher e sua filha ficaram mudos de espanto e terror Isabel caiu fulminada como se a vida lhe faltasse de repente Peri trazia nos seus ombros o corpo inanimado de Álvaro e no rosto uma expressão de tristeza profunda Atravessando a sala depôs sobre o sofá o seu fardo precioso e olhando o rosto lívido daquele que fora seu amigo enxugou uma lágrima que lhe corria pela face Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silêncio solene que envolvia aquela cena lúgubre os aventureiros que haviam acompanhado Peri quando passara no meio deles correndo pararam na porta tomados de compaixão e respeito por aquela desgraça Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri salvo seus olhos apesar dos sofrimentos passados ainda tinham lágrimas para chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar Quanto a D Antônio de Mariz sua dor era de um pai que havia perdido um filho era a dor muda e concentrada que abala as organizações fortes sem contudo abatêlas Depois dessa primeira comoção produzida pela chegada de Peri o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a narração breve dos acontecimentos cuja peripécia tinha diante dos olhos Eis o que havia passado Partindo na véspera no momento em que começava a sentir os primeiros efeitos do veneno terrível que tomara Peri ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecília Ia procurar a vida em um contraveneno infalível cuja existência só era conhecida pelos velhos pajés da tribo e pelas mulheres que os auxiliavam nas suas preparações medicinais Sua mãe quando ele partira para a primeira guerra lhe tinha revelado esse segredo que devia salválo de uma morte certa no caso de ser ferido por alguma seta ervada Vendo o desespero de sua senhora o índio sentiuse com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a ganharlhe o corpo e ir ao fundo da floresta e procurar essa erva poderosa que devia restituirlhe a saúde o vigor e a existência Contudo quando atravessava a mata parecialhe às vezes que já era tarde que não chegaria a tempo então tinha medo de morrer longe de sua senhora sem poder volver para ela o seu último olhar Arrependiase quase de ter partido de casa e não deixarse ficar aos pés de Cecília até exalar o seu último suspiro mas lembravase que a menina o esperava lembravase que ela ainda precisava de sua vida e criava novas forças Peri entranhouse no mais basto e sombrio da floresta e aí na sombra e no silêncio passouse entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem dessa vida primitiva cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada O dia declinou veio a tarde depois a noite e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário nem um rumor revelara o que ai se passou Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte as folhas se abriram e Peri exausto de forças vacilante emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade saiu do seu retiro Mal se podia suster e para caminhar era obrigado a sustentarse aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem assim adiantouse pela floresta e colheu alguns frutos que lhe restabeleceram um tanto as forças Chegando à beira do rio Peri já sentiu o vigor que voltava e o calor que começava a animarlhe o corpo entorpecido atirouse à água e mergulhou Quando voltou à margem era outro homem uma reação se havia operado seus membros tinham adquirido a elasticidade natural o sangue girava livremente nas veias Então tratou de recuperar as forças que havia perdido e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno O sol tinha raiado havia horas Peri acabada a sua refeição caminhava pensativo quando ouviu uma descarga de armas de fogo cujo estrondo reboou pelo âmbito da floresta Lançouse na direção dos tiros e a pouca distancia num claro da mata decobriu um espetáculo grandioso Álvaro e os seus nove companheiros divididos em duas colunas de cinco homens com as costas apoiadas às costas uns dos outros estavam cercados por mais de cem Aimorés que se precipitavam sobre eles com um furor selvagem Mas as ondas dessa torrente de bárbaros que soltavam bramidos espantosos iam quebrarse contra essa pequena coluna que não parecia de homens mas de aço as espadas jogavam com tanta velocidade que a tornavam impenetrável no raio de uma braça o inimigo que se adiantava caia morto Havia uma hora que durava esse combate começado com armas de fogo mas os Aimorés atacavam com tanta fúria que breve tinham chegado a luta corpo a corpo e à arma branca No momento em que Peri assomava à margem da clareira um incidente veio modificar a face do combate O aventureiro que dava as costas a Álvaro levado pelo ardor da peleja adiantouse alguns passos para ferir um inimigo os selvagens o envolveram deixando a coluna interrompida e Álvaro sem defesa Entretanto o valente cavalheiro continuava a fazer prodígios de valor e de coragem cada volta que descrevia sua espada era um inimigo de menos uma vida que se extinguia a seus pés num rio de sangue Os selvagens redobravam de furor contra ele e cada vez o seu braço ágil moviase com mais segurança e mais certeza fazendo jogar como um raio a lamina de aço que mal se via brilhar nas suas rápidas evoluções Desde porém que os Aimorés viram o moço sem defesa pelas costas e exposto aos seus golpes concentraramse nesse ponto um deles adiantandose ergueu com as duas mãos a pesada tangapema e atiroua ao alto da cabeça de Álvaro O moço caiu mas na sua queda a espada descreveu ainda um semicírculo e abateu o inimigo que o tinha ferido à traição a dor violenta dera a esse último golpe uma força sobrenatural Quando os índios iam precipitarse sobre o cavalheiro Peri saltou no meio deles e agarrando a espingarda que estava a seus pés fez dela uma arma terrível uma clava formidável cujo poder em breve sentiram os Aimorés Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos o índio tomou Álvaro nos seus ombros e abrindo caminho com a sua arma temível lançouse pela floresta e desapareceu Alguns o seguiram mas Peri voltouse e fêlos arrependerse de sua ousadia livrandose do peso que levava carregou a espingarda com as munições que Álvaro trazia e mandou uma bala àquele que o perseguia mais de perto os outros que já o conheciam pelo combate da véspera retrocederam A idéia de Peri era salvar Álvaro não só pela amizade que lhe tinha como por causa de Cecília que ele supunha amar o cavalheiro vendo porém que o corpo continuava inanimado acreditou que Álvaro estava morto Apesar disto não desistiu do seu propósito morto ou vivo devia leválo àqueles que o amavam ou para o restituírem à vida ou para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida Quando Peri acabou a sua narração o fidalgo comovido chegouse à beira do sofá e apertando a mão gelada e fria do cavalheiro disse Até logo bravo e valente amigo até logo A nossa separação é de poucos instantes breve nos reuniremos na mansão dos justos onde deveis estar e onde espero que Deus me concederá a graça de entrar Cecília deu à memória do moço as ultimas lágrimas e ajoelhando aos pés do moribundo com sua mãe dirigiu ao céu uma prece ardente D Lauriana tinha esgotado todos os recursos dessa medicina doméstica que no interior das casas substituía a falta dos homens profissionais muito raros naquela época e sobretudo longe das cidades o moço não deu porém o menor sinal de vida D Antônio de Mariz que compreendera perfeitamente o que devia esperar da pretendida retirada dos Aimorés mandou que os seus homens se preparassem para a defesa não que tivesse a menor esperança mas porque desejava resistir ate o último momento Peri depois de ter respondido a todas as perguntas de Cecília a respeito do modo por que se havia salvado do veneno saiu da sala e percorreu a esplanada observando os arredores O índio infatigável sempre que se tratava de sua senhora apenas acabava de uma empresa gigantesca como a que o tinha levado ao campo dos Aimorés cuidava já em combinar outro projeto para salvar Cecília Depois do seu exame estratégico entrou no quarto que havia abandonado na antevéspera e no qual encontrou ainda as suas armas do mesmo modo que as tinha deixado Lembrouse do pedido que fizera a Álvaro da contradição do destino que lhe restituía a vida a ele um homem três vezes morto e roubavaa ao cavalheiro a quem ele havia deixado são e salvo VIII NOIVA Uma hora depois dos acontecimentos que acabamos de narrar Peri recostado à janela do quarto que tinha pertencido a sua senhora olhava com uma grande atenção para uma árvore que se elevava a algumas braças de distancia Seu olhar parecia estudar as curvas dos galhos retorcidos medindolhes a distancia a altura e o tamanho como se disso dependesse a solução de uma grande dificuldade com que lutava o seu espírito No momento em que estava todo entregue a esse exame minucioso o índio sentiu uma mão tímida e delicada tocarlhe de leve no ombro Voltouse era Isabel que estava junto dele e que se havia aproximado como uma sombra sem fazer o menor rumor Uma palidez mortal cobria as feições da moça que apenas sala do seu desmaio mas o rosto tinha uma calma ou antes uma imobilidade que assustava Voltando a si Isabel correu um olhar pelo aposento como para certificarse de que não era um sonho o que havia passado A sala estava deserta D Antônio de Mariz tinha saído para dar as suas ordens sua mulher ajoelhada no oratório sobre um montão de ruínas rezava ao pé de uma cruz que ficara junto ao altar No fundo do aposento sobre o sofá destacavase o vulto imóvel do cavalheiro aos pés do qual ardia uma vela de cera lançando pálidos clarões Cecília é que estava perto dele e apertava no seio a sua cabeça desfalecida procurando reanimálo Quando o olhar de Isabel caiu sobre o corpo de seu amante ela ergueuse como impelida por uma força sobrenatural atravessou rapidamente a sala e foi por sua vez ajoelharse em face desse leito mortuário Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava era para embeberse na contemplação desse rosto lívido e gelado desses lábios frios desses olhos extintos que ela amava apesar da morte Cecília respeitou a dor de sua prima e por um instinto de delicadeza que só possuem as mulheres compreendeu que o amor mesmo em face de um cadáver tem o seu pudor e a sua castidade saiu para deixar que Isabel chorasse livremente Passado algum tempo depois da saída de Cecília a moça ergueuse percorreu automaticamente a casa e vendo Peri de longe aproximouse dele e tocoulhe no ombro O índio e a moça se odiavam desde o primeiro dia em que se tinham visto em Isabel era o ódio de uma raça que a rebaixava a seus próprios olhos em Peri era essa repugnância natural que sente o homem por aqueles em quem reconhece um inimigo Por isso Peri vendo Isabel junto dele ficou extremamente admirado sobretudo quando reparou no gesto suplicante que a moça lhe dirigia como se esperasse dele uma graça Peri O índio sentiuse comovido ao aspecto daquele sofrimento e pela primeira vez na sua vida dirigiu a palavra a Isabel Precisas de Peri disse ele Vinha pedirte um serviço Não mo negarás sim balbuciou a moça Fala se for coisa que Peri possa fazer ele não te negará Prometes então exclamou Isabel cujos olhos brilharam com uma expressão de alegria Sim Peri te promete Vem Dizendo essa palavra a mova fez um gesto ao índio e dirigiuse acompanhada por ele à sala que ainda estava deserta como tinha deixado Parou junto do sofá e apontando para o corpo inanimado de seu amante acenou a Peri que o tomasse nos seus braços O índio obedeceu e acompanhou Isabel até um gabinete retirado a um lado da casa ai deitou o seu fardo sobre um leito cujas cortinas a moça entreabriu corando como uma noiva Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o quarto em que habitara e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu amor porque o leito que recebia seu amante era o seu leito de virgem casta e pura porque ela era realmente uma noiva do túmulo Peri tendo satisfeito o desejo da moça retirouse e voltou ao seu trabalho que ele prosseguia com uma constância infatigável Apenas ficou só Isabel sorriu mas o seu sorriso tinha um quer que seja do êxtase da dor da voluptuosidade do sofrimento que faz sorrir na sua última hora os mártires e os desgraçados Tirou do seio a redoma de vidro onde guardava os cabelos de sua mãe e fitou nela um olhar ardente mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinível Tinha mudado de resolução o segredo que encerrava essa jóia o pó sutil que empenava a face interior do cristal a morte que sua mãe lhe confiara não a satisfazia era muito rápida quase instantânea Saiu então furtivamente e acendeu uma vela de cera que havia sobre a cômoda ao lado de um crucifixo de marfim depois fechou a porta cerrou as janelas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia penetrar O gabinete ficou às escuras apenas em torno do círio que ardia uma auréola pálida se destacava no meio das trevas e iluminava a imagem do Cristo A moça ajoelhou e fez uma oração breve pedia a Deus uma última graça pedia a eternidade e a ventura do seu amor que tinha passado tão rápido pela terra Acabando a prece tomou a luz deitoua na cabeceira do leito afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com enlevo Álvaro parecia adormecido apenas sua bela fisionomia não tinha a menor alteração a morte imprimindo nos seus traços a descor da cera e do mármore havia unicamente imobilizado a expressão e feito do gentil cavalheiro uma bela estátua Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação para chegarse de novo à cômoda onde se viam algumas conchas de mariscos tintas de nácar que se apanham nas nossas praias e uma cesta de palha matizada Esta cesta continha todas as resinas aromáticas todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra o anime da aroeira as pérolas do benjoim as lágrimas cristalizadas da embaíba e gotas do bálsamo esse sândalo do Brasil A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes e acendeu algumas bagas de benjoim o óleo de que estavam impregnadas alimentando a chama comunicoua às outras resinas Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes embriagadores se elevaram da caçoula em grossas espirais e encheram o gabinete de nuvens transparentes que oscilavam à luz pálida do círio Isabel sentada à beira do leito com as mãos do seu amante nas suas e com os olhos embebidos naquela imagem querida balbuciava frases entrecortadas confidências intimas sons inarticulados que são a linguagem verdadeira do coração Às vezes sonhava que Álvaro ainda vivia que lhe murmurava ao ouvido a confissão do seu amor e ela falavalhe como se seu amante a ouvisse contavalhe os segredos de sua paixão vertia toda a sua alma nas palavras que caiam dos lábios Sua mão delicada afastava os cabelos do moço descobria sua fronte animava a sua face gelada e rogava aqueles lábios frios e mudos como pedindolhe um sorriso Por que não me falas murmurava ela docemente não conheces tua Isabel Dize outra vez que me amas Dize sempre essa palavra para que minha alma não duvide da felicidade Eu te suplico E com o ouvido atento com os lábios entreabertos o seio palpitante ela esperava o som dessa voz querida e o eco dessa primeira e última palavra de seu triste amor Mas o silêncio só lhe respondia seu peito aspirava apenas as ondas dos perfumes inebriantes que faziam circular nas suas veias uma chama ardente O aposento apresentava então um aspecto fantástico no fundo escuro desenhavase um circulo esclarecido envolto por uma névoa espessa Nessa esfera luminosa como no meio de uma visão surgiam Álvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante a quem continuava a falar como se ele a escutasse A menina começava a sentir a respiração faltarlhe seu seio opresso sufocavaa e entretanto uma voluptuosidade inexprimível a embriagava um gozo imensa havia nessa asfixia de perfumes que se condensavam e rarefaziam no ar Louca perdida alucinada ela ergueuse seu seio dilatouse e sua boca entreabrindose colouse aos lábios frios e gelados de seu amante era o seu primeiro e último beijo o seu beijo de noiva Foi uma agonia lenta um pesadelo horrível em que a dor lutava com o gozo em que as sensações tinham um requinte de prazer e de sofrimento ao mesmo tempo em que a morte torturando o corpo vertia na alma eflúvios celestes De repente pareceu a Isabel que os lábios de Álvaro se agitavam que um tênue suspiro se exalava de seu peito ainda há pouco insensível como o mármore Julgou que se iludia mas não Álvaro estava vivo realmente vivo suas mãos apertavam as dela convulsamente seus olhos brilhando com um fogo estranho se tinham fitado no rosto da moça um sopro reanimou seus lábios que exalaram uma palavra quase imperceptível Isabel A moça soltou um grito débil de alegria de espanto de medo entre as idéias confusas que se agitavam na sua cabeça desvairada lembrouse com horror que era ela quem matava seu amante quem o ia sacrificar por causa de um engano fatal Fazendo um esforço extraordinário conseguiu erguer a cabeça e ia precipitarse para a janela abrila e dar entrada ao ar livre sabia que a sua morte era inevitável mas salvaria Álvaro No momento porém em que se levantava sentiu as mãos do moço que apertavam as suas e a obrigavam a reclinarse sobre o leito seus olhos encontraram de novo os olhos de seu amante Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heróico sacrifício deixou cair a cabeça desfalecida e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo em que essas duas almas irmãs confundindose numa só voaram ao céu e foram abrigarse no seio do Criador As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original impossível de descrever Por volta de duas horas da tarde a porta do gabinete impelida por um choque violento abriuse e um turbilhão de fumo lançouse por essa aberta e quase sufocou as pessoas que ai estavam Eram Cecília e Peri A menina inquieta pela longa ausência de sua prima soube de Peri que ela estava no seu quarto mas o índio ocultou parte da verdade e não disse onde deitara o corpo de Álvaro Duas vezes Cecília viera até à porta escutara e nada ouvira por fim resolveuse a bater a falar a Isabel e não teve a menor resposta Chamou Peri e contoulhe o que se passava o índio tomado de um pressentimento meteu o ombro à porta e abriua Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do aposento Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos A menina recuou e respeitando esse mistério de um amor profundo fez um gesto a Peri e retirouse O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua senhora Ela morreu feliz disse Peri Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis e corou IX O CASTIGO O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estenderse sobre o verdenegro da floresta D Antônio de Mariz apoiado ao umbral da porta junto de sua mulher passava o braço pela cintura de Cecília O sol a esconderse iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro majestoso que lhe servia de baixorelevo O fidalgo Cecília e sua mãe com os olhos no horizonte recebiam esse último raio de despedida e mandavam o adeus extremo à luz do dia as montanhas que os cercavam as árvores aos campos ao rio a toda a natureza Para eles esse sol era a imagem de sua vida o ocaso era a sua hora derradeira e as sombras da eternidade se estendiam já como as sombras da noite Os Aimorés tinham voltado depois do combate em que os aventureiros venderam caro a sua vida e cada vez mais sequiosos de vingança esperavam que anoitecesse para assaltar a casa Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento tinham tratado de destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos Isto era fácil além da escada de pedra o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados e só a árvore que lançava os galhos sobre a cabana de Peri oferecia um ponto de comunicação praticável para quem tivesse a agilidade e a força do índio Os selvagens que não queriam que lhes escapasse um só inimigo e ainda menos que esse fosse Peri abateram a árvore e cortaram assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo no momento do ataque Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do óleo Peri estremeceu e saltando sobre a sua clavina ia despedaçar a cabeça do selvagem mas sorriuse e encostou tranqüilamente a arma à parede Sem inquietarse com a destruição que faziam os Aimorés continuou no seu trabalho interrompido e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana Ele tinha o seu plano e para realizálo começara por cortar as duas palmeiras e trazêlas para o quarto de Cecília depois rachou uma das árvores e durante toda a manhã ocupouse em torcer essa longa corda a que dava uma extraordinária importância Quando Peri terminava a sua obra ouviu o baque da árvore que tombava sobre o rochedo chegouse de novo à janela e seu rosto exprimiu uma satisfação imensa O óleo cortado pela raiz deitarase sobre o precipício elevando a uma grande altura os seus galhos seculares mais frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta Os Aimorés tranqüilos por esse lado continuaram nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas da noite Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra Peri dirigiuse à sala Aires Gomes sempre infatigável guardava a porta do gabinete D Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar e Cecília sentada sobre seus joelhos recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava Bebe minha Cecília dizia o fidalgo é um cordial que te fará muito bem De que serve meu pai Por uma hora se tanto nos resta viver não vale a pena respondia a menina sorrindo tristemente Tu te enganas Ainda não estamos de todo perdidos Tendes alguma esperança perguntou ela incrédula Sim tenho uma esperança e esta não me iludirá respondeu D Antônio com um acento profundo Qual Dizeime És curiosa replicou o fidalgo sorrindo Pois só te direi se fizeres o que te peço Quereis que beta essa taça Sim Cecília tomou a taça das mãos de seu pai e depois de beber volveu para ele o seu olhar interrogador A esperança que eu tenho minha filha é que nenhum inimigo passara nunca do limiar daquela porta podes crer na palavra de teu pai e dormir tranqüila Deus vela sobre nos Beijando a fronte pura da menina ele ergueuse tomoua nos seus braços e recostandoa sobre a poltrona em que estivera sentado saiu do gabinete e foi examinar o que se passava fora da casa Peri que tinha assistido a esse diálogo entre o pai e a filha estava ocupado em procurar no gabinete vários objetos de que tinha necessidade aparentemente Logo que achou quanto desejava o índio encaminhouse para a porta Onde vais disse Cecília que tinha acompanhado todos os seus movimentos Peri volta senhora E por que nos deixa Porque é preciso Ao menos volta logo Não devemos morrer todos juntos da mesma morte O índio estremeceu Não Peri morrerá mas tu hás de viver senhora Para que viver depois de ter perdido todos os seus amigos Cecília que há alguns momentos sentia a cabeça vacilar os olhos cerraremse e um sono invencível apoderarse dela deixouse cair sobre o espaldar da cadeira Não Antes morrer como Isabel murmurou a menina já entorpecida pelo sono Um meigo sorriso veio adejar nos seus lábios entreabertos por onde se escapava a respiração doce branda e igual Peri a princípio assustou se com esse sono repentino que não lhe parecia natural e com a palidez súbita de que se cobriram as feições de Cecília Seus olhos caíram sobre a taça que estava em cima da mesa deitou nos lábios algumas gotas do liquido que tinham ficado no fundo e tomoulhes o sabor não podia conhecer o que continha mas satisfezse em não achar o que receara Repeliu a idéia que lhe assaltara o espírito e lembrouse que D Antônio sorria no momento em que pedia à sua filha para beber e que a sua mão não tremera apresentandolhe a taça Tranqüilo a este respeito o índio que não tinha tempo a perder ganhou a esplanada correu para o quarto que ocupava e desapareceu A noite já estava fechada e uma escuridão profunda envolvia a casa e os arredores Durante esse tempo nenhum acontecimento extraordinário viera modificar a posição desesperada em que se achava a família a calma sinistra que precede a grandes tempestades plainava sobre a cabeça dessas vitimas que contavam não as horas mas os instantes de vida que lhes restavam D Antônio passeava ao longo da sala com a mesma serenidade de seus dias tranqüilos e plácidos de outrora de vez em quando o fidalgo parava na porta do gabinete lançava um olhar sobre sua mulher que orava e sua filha adormecida depois continuava o passeio interrompido Os aventureiros grupados junto à porta seguiam com os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala ou se destacava cheio de vigor e de colorido na esfera luminosa que cingia a lâmpada de prata suspensa ao teto Mudos resignados nenhum desses homens deixava escapar uma queixa um suspiro que fosse o exemplo de seu chefe reanimava neles essa coragem heróica do soldado que morre por uma causa santa Antes de obedecerem à ordem de D Antônio de Mariz eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste em que estava atado o frade uma língua vermelha que lambia a fogueira enroscandose pelos toros de lenha O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça que enovelandose envolviao numa névoa espessa é impossível descrever a raiva a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os principais personagens desta história e onde se vão passar as cenas talvez mais importantes do drama A calma profunda que reinava nessa solidão não tinha sido perturbada tudo estava em silêncio e as trevas espessas da noite não deixavam perceber os objetos a alguns passos de distancia De repente listras de fogo atravessaram o ar e se abateram sobre o edifício eram as setas inflamadas dos selvagens que anunciavam o começo do ataque durante alguns minutos foi como uma chuva de fogo uma cascata de chamas que caiu sobre a casa Os aventureiros estremeceram D Antônio sorriu É chegado o momento meus amigos Temos uma hora de vida preparaivos para morrer como cristãos e portugueses Abri as portas para que possamos ver o céu O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida porque tendo destruído o resto da escada de pedra os selvagens não podiam subir ao rochedo senão escalandoo e por maior que fosse a sua habilidade não era possível que consumissem nisso menos tempo Quando os aventureiros abriram as portas um vulto resvalou na sombra e entrou na sala Era Peri X CRISTÃO O índio dirigiuse rapidamente a D Antônio de Mariz Peri quer salvar a senhora O fidalgo abanou a cabeça em sinal de dúvida Escuta replicou o índio Aproximando os lábios do ouvido de D Antônio faloulhe por algum tempo em voz baixa e num tom rápido e decisivo Tudo está preparado parte desce o rio quando a lua estender o seu arco chegarás à tribo dos Goitacás A mãe de Peri te conhece cem guerreiros te acompanharão à grande taba dos brancos D Antônio de Mariz ouviu em profundo silêncio as palavras do índio e quando ele terminou apertoulhe a mão com reconhecimento Não Peri o que me propões é impossível D Antônio de Mariz não pode abandonar a sua casa a sua família e os seus amigos no momento do perigo ainda mesmo para salvar aquilo que ele mais ama neste mundo Um fidalgo português não pode fugir diante do inimigo qualquer que ele seja morre vingando a sua morte Peri fez um gesto de desespero Assim tu não queres salvar a senhora Não posso respondeu o cavalheiro o meu dever manda que fique e partilhe a sorte de meus companheiros O índio no seu fanatismo não compreendia que houvesse uma razão capaz de sacrificar a vida de Cecília que para ele era sagrada Peri pensou que tu amasses a senhora disse ele fora de si D Antônio olhouo com uma expressão de dignidade e nobreza Perdôote a ofensa que me fizeste amigo porque é ainda uma prova de tua grande dedicação Mas acreditame se fosse preciso que eu me votasse só ao sacrifício bárbaro dos selvagens para salvar minha filha eu o faria sorrindo E por que recusas o que Peri te pede Por quê Porque o que tu pedes não é um sacrifício é uma vergonha é uma traição Tu abandonarias tua mulher teus companheiros para salvarte do inimigo Peri O índio abaixou a cabeça com abatimento Demais essa empresa demanda forças com que um velho como eu já não pode contar Havia duas pessoas que a poderiam realizar Quem perguntou Peri com um raio de esperança Uma era meu filho que a esta hora está bem longe daqui a outra deixounos esta manhã e nos espera era Álvaro Peri fez pela senhora o que podia tu não queres salvála Peri vai morrer a seus pés Morrer disse o fidalgo Quando tens a liberdade e a vida à tua disposição E julgas que consentirei nisto Nunca Vai Peri conserva a lembrança de teus amigos a nossa alma te acompanhará na terra Adeus Parte o tempo urge O índio ergueu a cabeça com um gesto soberbo de indignação Peri arriscou bastantes vezes a sua vida por ti para ter o direito de morrer contigo tu não podes abandonar teus companheiros o escravo não pode abandonar sua senhora És injusto amigo exprimi um desejo não quis irrogarte uma injúria Se exiges uma parte do sacrifício esta te pertence e tu és digno dela fica Um grito dos selvagens retroou nos ares D Antônio fazendo um gesto aos aventureiros encaminhouse para o gabinete Cecília adormecida sobre a cadeira de espaldar sorria como se algum sonho alegre a embalasse no seu sono tranqüilo o rosto um pouco pálido moldurado pelas tranças louras de seus cabelos tinha a expressão suave da inocência feliz O fidalgo contemplando sua filha sentiu uma dor pungente e quase arrependeuse de não ter aceitado o oferecimento de Peri e de não tentar ao menos esse último esforço para defender aquela vida que apenas começava a expandirse Mas podia ele mentir ao seu passado e faltar ao dever imperioso que o obrigava a morrer no seu posto Podia trair na sua última hora àqueles que haviam partilhado a sua sorte Tal era o sentimento de honra naqueles antigos cavalheiros que D Antônio nem um momento admitiu a idéia de fugir para salvar sua filha se houvesse outro meio decerto o receberia como um favor do céu mas aquele era impossível Enquanto o espírito do fidalgo se debatia nessa luta cruel Peri de pé junto de Cecília parecia querer ainda protegêla contra a morte inevitável que a ameaçava Dirseia que o índio esperava algum socorro imprevisto algum milagre que salvasse sua senhora e que aguardava o momento de fazer por ela tudo quanto fosse possível ao homem D Antônio vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem tornouse ainda mais pensativo quando passado esse momento de reflexão ergueu a cabeça seus olhos brilhavam com um raio de esperança Atravessou o espaço que o separava de sua filha e tomando a mão de Peri disselhe com uma voz profunda e solene Se tu fosses cristão Peri O índio voltouse extremamente admirado daquelas palavras Por quê perguntou ele Por quê disse lentamente o fidalgo Porque se tu fosses cristão eu te confiaria a salvação de minha Cecília e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro à minha irmã O rosto do selvagem iluminouse seu peito arquejou de felicidade seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do intimo da alma Peri quer ser cristão exclamou ele D Antônio lançoulhe um olhar úmido de reconhecimento A nossa religião permite disse o fidalgo que na hora extrema todo o homem possa dar o batismo Nós estamos com o pé sobre o túmulo Ajoelha Peri O índio caiu aos pés do velho cavalheiro que impôslhe as mãos sobre a cabeça Sê cristão Doute o meu nome Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou e ergueuse altivo e sobranceiro pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e defenderes minha filha Conheço a tua alma nobre conheço o teu heroísmo e a tua sublime dedicação por Cecília Mas quero que me faças um outro juramento Qual Peri está pronto para tudo Juras que se não puderes salvar minha filha ela não cairá nas mãos do inimigo Peri te jura que ele levará a senhora à tua irmã e que se o Senhor do céu não deixar que Peri cumpra a sua promessa nenhum inimigo tocará em tua filha ainda que para isso seja preciso queimar uma floresta inteira Bem estou tranqüilo Ponho minha Cecília sob tua guarda e morro satisfeito Podes partir Manda fechar todas as portas Os aventureiros obedeceram a ordem do fidalgo todas as portas se fecharam o índio empregava este meio para ganhar tempo Os gritos e bramidos dos selvagens que continuavam com algumas interrupções foram se aproximando da casa conheciase que escalavam o rochedo nesse momento Alguns minutos se passaram numa ansiedade cruel D Antônio de Mariz depositou um último beijo na fronte de sua filha D Lauriana apertou ao seio a cabeça adormecida da menina e envolveua numa manta de seda Peri com o ouvido atento o olhar fito na porta esperava Ligeiramente apoiado sobre o espaldar da cadeira as vezes estremecia de impaciência e batia com o pé sobre o pavimento da sala De repente um grande clamor soou em torno da casa as chamas lamberam com as suas línguas de fogo as frestas das portas e janelas o edifício tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se lançava furiosa no meio do incêndio Peri apenas ouviu o primeiro grito reclinou sobre a cadeira e tomou Cecília nos braços quando o estrondo soou na porta larga do salão o índio já tinha desaparecido Apesar da escuridão profunda que reinava em todo o interior da casa Peri não hesitou um momento caminhou direito ao quarto onde habitara sua senhora e subiu à janela Uma das palmeiras da cabana estendiase por cima do precipício e apoiavase a trinta palmos de distancia sobre um dos galhos da árvore que os Aimorés tinham abatido durante o dia para tirarem aos habitantes da casa a menor esperança de fuga Peri apertando Cecília nos braços firmou o pé sobre essa ponte frágil cuja face convexa tinha quando muito algumas polegadas de largura Quem lançasse os olhos nesse momento para aquela banda da esplanada veria ao pálido clarão do incêndio deslizarse lentamente por cima do precipício um vulto hirto como um dos fantasmas que segundo a crença popular atravessavam à meianoite as velhas ameias de algum castelo em ruínas A palmeira oscilava e Peri embalando se sobre o abismo adiantavase vagarosamente para a encosta oposta Os gritos dos selvagens repercutiam nos ares de envolta com o estrépito dos tacapes que abalavam as portas da sala e as paredes do edifício Sem se inquietar com a cena tumultuosa que deixava após si o índio ganhou a encosta oposta e segurando com uma mão nos galhos da árvore conseguiu tocar a terra sem o menor acidente Então fazendo uma volta para não aproximarse do campo dos Aimorés dirigiuse à margem do rio ai estava escondida entre as folhas a pequena canoa que servia outrora para os habitantes da casa atravessarem o Paquequer Durante a ausência de uma hora que Peri tinha feito quando deixara Cecília adormecida ele havia tudo preparado para essa empresa arriscada que devia salvar sua senhora Graças à sua atividade espantosa armou com o auxilio da corda a ponte pênsil sobre o precipício correu ao rio amarrou a canoa no lugar que lhe pareceu mais propicio e em duas viagens levou a esse barquinho que ia servir de morada a Cecília durante alguns dias tudo quanto a menina podia carecer Eram roupas uma colcha de damasco com que se poderia arranjar um leito alguns alimentos que restavam na casa lembrouse até que D Antônio devia ter necessidade de dinheiro logo que chegasse ao Rio de Janeiro porque Peri contava que o fidalgo não duvidaria salvar sua filha Chegando à beira do rio o índio deitou sua senhora no fundo da canoa como uma menina no seu berço envolveua na manta de seda para abrigála do orvalho da noite e tomando o remo fez a canoa saltar como um peixe sobre as águas A algumas braças de distancia por entre uma aberta da floresta Peri viu sobre o rochedo a casa iluminada pelas chamas do incêndio que começava a lavrar com alguma intensidade De repente uma cena fantástica terrível passou diante de seus olhos como uma dessas visões rápidas que brilham e se apagam de repente no delírio da imaginação A frente da casa estava às escuras o fogo ganhara as outras faces do edifício e o vento o lançava para o fundo Peri do primeiro olhar tinha visto os vultos dos Aimorés a se moverem nas sombras e a figura horrível e medonha de Loredano erguendose como um espectro no meio das chamas que o devoravam De repente a fachada do edifício tombou sobre a esplanada esmagando na sua queda um grande número de selvagens Foi então que o quadro fantástico se desenhou aos olhos de Peri A sala era um mar de fogo os vultos que se moviam nessa esfera luminosa pareciam nadar em vagas de chamas No fundo destacava o vulto majestoso de D Antônio de Mariz de pé no meio do gabinete elevando com a mão esquerda uma imagem do Cristo e com a direita abaixando a pistola para a cava escura onde dormia o vulcão Sua mulher abraçava os seus joelhos calma e resignada Aires Gomes e os poucos aventureiros que restavam imóveis e ajoelhados a seus pés formavam o baixorelevo dessa estátua digna de um grande cinzel Sobre o montão de ruínas formado pela parede que desmoronara desenhavamse as figuras sinistras dos selvagens semelhantes a espíritos diabólicos dançando nas chamas infernais Tudo isso Peri viu de um só relance de olhos como um painel vivo iluminado um momento pelo clarão instantâneo do relâmpago Um estampido horrível reboou por toda aquela solidão a terra tremeu e as águas do rio se encapelaram como batidas pelo tufão As trevas envolveram o rochedo há pouco esclarecido pelas chamas e tudo entrou de novo no silêncio profundo da noite Um soluço partiu o peito de Peri talvez a única testemunha dessa grande catástrofe Dominando a sua dor o índio vergou sobre o remo e a canoa voou pela face lisa e polida do Paquequer XI EPÍLOGO Quando o sol erguendose no horizonte iluminou os campos um montão de ruínas cobria as margens do Paquequer Grandes lascas de rochedos talhadas de um golpe e semeadas pelo campo pareciam ter saltado do malho gigantesco de Novos Ciclopes A eminência sobre a qual estava situada a casa tinha desaparecido e no seu lugar viase apenas uma larga fenda semelhante à cratera de algum vulcão subterrâneo As árvores arrancadas dos seus alvéolos a terra revolta a cinza enegrecida que cobria a floresta anunciavam que por ai tinham passado algum desses cataclismas que deixam após si a morte e a destruição Aqui e ali entre os cômoros das ruínas aparecia alguma índia resto da tribo dos Aimorés que tinha ficado para chorar a morte dos seus e levar às outras tribos a noticia dessa tremenda vingança Quem plainasse nesse momento sobre aquela solidão e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abriam em torno se a vista pudesse devassar a distancia de muitas léguas veria ao longe na larga esteira do Paraíba passar rapidamente uma forma vaga e indecisa Era a canoa de Peri que impelida pelo remo e pela viração da manhã corria com uma velocidade espantosa semelhando uma sombra a fugir das primeiras claridades do dia Toda a noite o índio tinha remado sem descansar um momento não ignorava que D Antônio de Mariz na sua terrível vingança havia exterminado a tribo dos Aimorés mas desejava apartarse do teatro da catástrofe e aproximarse dos seus campos nativos Não era o sentimento da pátria sempre tão poderoso no coração do homem não era o desejo de ver sua cabana reclinada à beira do rio e abraçar sua mãe e seus irmãos que dominava sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo era o sentimento de orgulho que se apoderava dele pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os obstáculos e realizar a missão de que se havia encarregado Quando o sol no meio de sua carreira lançava torrentes de luz sobre esse vasto deserto Peri sentiu que era tempo de abrigar Cecília dos raios abrasadores e fez a canoa abicar à beira do rio na sombra de uma ramagem de árvores A menina envolta na sua manta de seda com a cabeça apoiada sobre a proa do barquinho dormia ainda o mesmo sono tranqüilo da véspera as cores tinham voltado e sob a alvura transparente de sua pele brilhavam esses tons corderosa esse colorido suave que só a natureza artista sublime sabe criar Peri tomou a canoa nos seus braços como se fora um berço mimoso e deitoua sobre a relva que cobria a margem do rio depois sentouse ao lado e com os olhos fitos em Cecília esperou que ela saísse desse sono prolongado que começava a inquietálo Tremia lembrandose da dor que sua senhora ia sentir quando soubesse a desgraça de que ele fora testemunha na véspera e não se achava com forças de responder ao primeiro olhar de surpresa que a menina lançaria em torno de si logo que despertasse no meio do deserto Enquanto durou o sono Peri com o braço apoiado à borda da canoa e o corpo reclinado sobre o rosto da menina esperando com ansiedade o momento que ele desejava e temia ao mesmo tempo velava sobre Cecília com um cuidado e uma solicitude admirável A mãe a mais extremosa não se desvelaria tanto por seu filho como esse amigo dedicado por sua senhora uma réstia de sol que enfiandose pelas folhas vinha brincar no rosto da menina um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto um inseto que saltava na relva tudo ele afastava para não perturbar o seu repouso Cada minuto que passava era uma nova inquietação para ele porém era também um instante mais de sossego e de tranqüilidade que a menina gozava antes de saber a desgraça que pesava sobre ela e que a privara de sua família Um longo suspiro elevou o seio de Cecília seus lindos olhos azuis se abriram e cerraram deslumbrados pela claridade do dia ela passou a mão delicada pelas pálpebras rosadas como para afugentar o sono e seu olhar límpido e suave foi pousar no rosto de Peri Soltou um gritozinho de prazer e sentandose com vivacidade lançou um olhar de surpresa e admiração em torno da espécie de pavilhão de folhagem que a cercava parecia interrogar as árvores o rio o céu mas tudo emudecia Peri não se animava a pronunciar uma palavra via o que se passava na alma de sua senhora e não tinha a coragem de dizer a primeira letra do enigma que ela não tardaria a compreender Por fim a menina baixando a vista para ver onde estava descobriu a canoa e lançando um volver rápido para o vasto leito do Paraíba que se espreguiçava indolentemente pela floresta ficou branca como a cambraia do seu roupão Voltouse para o índio com os olhos extremamente dilatados os lábios trêmulos a respiração presa o seio ofegante e suplicando com as mãozinhas juntas Meu pai meu pai exclamou soluçando O selvagem deixou cair a cabeça sobre o peito e escondeu o rosto nas mãos Morto Minha mãe também morta Todos mortos Vencida pela dor a menina apertou convulsamente o seio que lhe estalava com os soluços e reclinandose como o cálice delicado de uma flor que a noite enchera de orvalho desfezse em lágrimas Peri só podia salvar a ti senhora murmurou o índio tristemente Cecília ergueu a cabeça altiva Por que não me deixaste morrer com os meus exclamou ela numa exaltação febril Pedite eu que me salvasses Precisava de teus serviços Seu rosto tomou uma expressão de energia extraordinária Tu vais me levar ao lugar onde descansa o corpo de meu pai É ai que deve estar sua filha Depois partirás Não careço de ti Peri estremeceu Escuta senhora balbuciou ele em tom submisso A menina lançoulhe um olhar tão imperioso tão soberano que o índio emudeceu e voltando o rosto escondeu as lágrimas que lhe molhavam as faces Cecília caminhou até a beira do rio e com os olhos estendidos pelo horizonte que ela supunha ocultar o lugar em que habitara ajoelhou e fez uma oração longa e ardente Quando ergueuse estava mais calma a dor tinhase repassado do consolo sublime da religião dessa doçura e suavidade que infiltra no coração a esperança de uma vida celeste que reuna aqueles que se amaram na terra Ela pôde então refletir sobre o que se tinha passado na véspera e procurou lembrarse das circunstâncias que haviam precedido à morte de sua família Todas as suas recordações porém chegavam unicamente até o momento em que já meio adormecida falava a Peri e dizia essa palavra ingênua e inocente que lhe escapara do intimo da alma Antes morrer como Isabel Lembrandose dessa palavra corou e vendose só no deserto com Peri sentiu uma inquietação vaga e indefinida um sentimento de temor e de receio cuja causa não sabia explicar Seria essa desconfiança súbita proveniente da cólera que ela sentira porque o índio salvara a sua vida e a arrancara da desgraça que tinha destruído toda a sua família Não não era essa a causa ao contrário Cecília conhecia que fora injusta para com seu amigo que tinha talvez feito impossíveis por ela e a não ser o receio instintivo que se aponderara involuntariamente de sua alma já o teria chamado para pedirlhe perdão daquelas palavras duras e cruéis A menina ergueu os olhos tímidos e encontrou o olhar triste e súplice de Peri não pôde resistir esqueceu os seus receios e um tênue sorriso fugiulhe pelos lábios Peri O índio estremeceu mas desta vez de alegria e de contentamento veio cair aos pés de sua senhora que ele encontrava de novo boa como sempre tinha sido Perdoa a Peri senhora És tu que me deves perdoar porque te fiz sofrer não é verdade Mas bem sabes Não podia abandonar meu pobre pai Foi ele que mandou a Peri que te salvasse disse o índio Como exclamou a menina Contame meu amigo O índio fez a narração da cena da noite antecedente desde que Cecília tinha adormecido até o momento em que a casa saltara com a explosão restando dela apenas um montão de ruínas Contou que ele tinha preparado tudo para que D Antônio de Mariz fugisse salvando Cecília mas que o fidalgo recusara dizendo que a sua lealdade e a sua honra mandavam que morresse no seu posto Meu nobre pai murmurou a menina enxugando as lágrimas Houve um instante de silêncio depois do qual Peri concluiu a sua narração e referiu como D Antônio de Mariz o tinha batizado e lhe havia confiado a salvação de sua filha Tu és cristão Peri exclamou a menina cujos olhos brilharam com uma alegria inefável Sim teu pai disse Peri tu és cristão doute o meu nome Obrigado meu Deus disse a menina juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu Depois envergonhada desse movimento espontâneo escondeu o rosto o rubor que cobriu as suas faces tingiu de uns longes corderosa as linhas puras do colo acetinado Peri ergueuse e foi colher alguns frutos delicados que serviram de refeição à sua senhora O sol tinha quebrado a sua força era tempo de continuar a viagem e aproveitar a frescura da tarde para vencer a distancia que os separava do campo dos goitacás O índio chegouse trêmulo para a menina Que queres tu que Peri faça senhora Não sei respondeu Cecília indecisa Não queres que Peri te leve à taba dos brancos É a vontade de meu pai deves cumprila Peri prometeu a D Antônio levarte à sua irmã O índio fez a canoa boiar sobre as águas do rio e quando tomou a menina nos seus braços para deitála no barquinho ela sentiu pela primeira vez na sua vida que o coração de Peri palpitava sobre o seu seio A tarde estava soberba os raios do sol no ocaso filtrando por entre as folhas das árvores douravam as flores alvas que cresciam pela beira do rio As rolas começavam a soltar os seus arrulhos no fundo da floresta e a brisa que passava ainda tépida das exalações da terra vinha impregnada de aromas silvestres A canoa resvalou pela flor da água como uma garça ligeira levada pela correnteza do rio Peri remava sentado na proa Cecília deitada no fundo meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado engolfavase nos seus pensamentos e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas e a frescura do ar e das águas Quando os seus olhos encontravam os de Peri os longos cílios desciam ocultando um momento o seu olhar doce e triste A noite estava serena A canoa vogando sobre as águas do rio abria essas flores de espuma que brilham um momento à luz das estrelas e se desfazem como o sorriso da mulher A brisa tinha escasseado e a natureza adormecida respirava a calma tépida e perfumada das noites americanas tão cheias de enlevo e encanto A viagem fora silenciosa essas duas criaturas abandonadas no meio do deserto sós em face da natureza emudeciam como se temessem despertar o eco profundo da solidão Cecília repassava na memória toda a sua vida inocente e tranqüila cujo fio dourado tinhase rompido de uma maneira tão cruel mas era sobretudo o último ano dessa existência desde o dia do aparecimento imprevisto de Peri que se desenhava na sua imaginação Por que interrogava ela assim os dias que tinha vivido no remanso da felicidade Por que o seu espírito voltava ao passado e procurava ligar todos esses fatos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros anos dera tão pouco apreço Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia sua alma inocente e ignorante tinhase iluminado com uma súbita revelação novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento Volvendo ao passado admiravase de sua existência como os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo não se reconhecia na imagem do que fora outrora na menina isenta e travessa Toda a sua vida estava mudada a desgraça tinha operado essa revolução repentina e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança as cores tinham tons harmoniosos o ar perfumes inebriantes a luz reflexos aveludados que seus sentidos não conheciam Uma flor que antes era para ela apenas uma bela forma parecialhe agora uma criatura que sentia e palpitava a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis notas místicas que ressoavam no seu coração Peri julgando sua senhora adormecida remava docemente para não perturbar o seu repouso a fadiga começava a vencêlo apesar de sua coragem indomável e de sua vontade poderosa as forças estavam exaustas Apenas vencedor da luta terrível que travara com o veneno tinha começado a empresa quase impossível da salvação de sua senhora havia três dias que seus olhos não se cerravam que seu espírito não repousava um instante Tudo quanto a natureza permitia à inteligência e ao poder do homem ele tinha feito e contudo não era a fadiga do corpo que o vencia eram sim as emoções violentas por que passara durante esse tempo O que ele tinha sentido quando plainava sobre o abismo e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso de uma oscilação da haste frágil que lhe servia de ponte pênsil ninguém compreenderia O que sofreu quando Cecília no seu desespero pela morte de seu pai o acusava por têla salvado e lhe dava ordem de levála ao lugar onde repousavam as cinzas do velho fidalgo é impossível de descrever Foram horas de martírio de sofrimento horrível em que sua alma sucumbiria se não achasse na sua vontade inflexível e na sua dedicação sublime um conforto para a dor e um estimulo para triunfar de todos os obstáculos Eram essas emoções que o venciam e ainda depois de vencidas ele conheceu que seus músculos de aço escravos submissos que obedeciam ao seu menor desejo se distendiam como a corda do arco depois do combate Lembrouse que sua senhora precisava dele e que devia aproveitar esses momentos em que ela repousava para pedir ao sono novo vigor e novas forças Ganhou o meio do rio e escolhendo um lugar onde não chegava nem um galho das árvores que cresciam nas ribanceiras amarrou a canoa nos nenúfares que boiavam à tona da água Tudo estava quieto a terra ficava a uma distancia de muitas braças portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão prateado debaixo da abobada azul do céu as ondinhas a embalariam no seu berço as estrelas vigiariam o seu sono Livre de inquietação Peri encostou a cabeça na borda da canoa um momento depois suas pálpebras entorpecidas cerraramse a pouco e pouco seu último olhar esse olhar vago e incerto que adeja na pupila já meio adormecida viu desenharse na sombra uma forma alva e graciosa que se reclinava docemente para ele Não era um sonho essa linda visão Cecília sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações sentouse e debruçandose um pouco viu que seu amigo dormia e acusouse por não ter há mais tempo exigido dele esse instante de repouso O primeiro sentimento que se apoderou da menina vendose só foi o terror solene e respeitoso que infunde a solidão no meio do deserto nas horas monas da noite O silêncio parece falar as sombras se povoam de seres invisíveis os objetos na sua imobilidade como que oscilam pelo espaço É ao mesmo tempo o nada com o seu vácuo profundo imenso infinito e o caos com a sua confusão as suas trevas as suas formas incriadas a alma sente que faltalhe a vida ou a luz em torno Cecília recebeu essa impressão com um temor religioso mas não se deixou dominar pelo susto a desgraça a habituara ao perigo e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta que mesmo dormindo parecialhe que Peri velava sobre ela Contemplando essa cabeça adormecida a menina admirouse da beleza inculta dos traços da correção das linhas do perfil altivo da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito dantes via com os olhos do corpo agora via com os olhos da alma Peri que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado aparecialhe de repente como um herói no seio de sua família estimavao no meio dessa solidão admiravao Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz de um fundo brilhante e de uma moldura simples para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas o selvagem precisava do deserto para revelarse em todo o esplendor de sua beleza primitiva No meio de homens civilizados era um índio ignorante nascido de uma raça bárbara a quem a civilização repelia e marcava o lagar de cativo Embora para Cecília e D Antônio fosse um amigo era apenas um amigo escravo Aqui porém todas as distinções desapareciam o filho das matas voltando ao seio de sua mãe recobrava a liberdade era o rei do deserto o senhor das florestas dominando pelo direito da força e da coragem As altas montanhas as nuvens as catadupas os grandes rios as árvores seculares serviam de trono de dossel de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza Que efusão de reconhecimento e de admiração não havia no olhar de Cecília Era nesse momento que ela compreendia toda a abnegação do culto santo e respeitoso que o índio lhe votava As horas correram silenciosamente nessa muda contemplação a aragem fresca que anuncia o despontar do dia bafejou o rosto da menina e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do horizonte Sobre o relevo que formava o perfil escuro da floresta nas sombras da noite luziu límpida e brilhante a estreladalva as águas do rio arfaram docemente e os leques das palmeiras se agitaram rumorejando A menina lembrouse do seu despertar tão plácido de outrora de suas manhãs tão descuidosas de sua prece alegre e risonha em que agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ela e sua família Uma lágrima pendeu nos cílios dourados e caiu sobre a face de Peri abrindo os olhos e vendo ainda a mesma doce visão que o adormecera o índio julgou que o sonho continuava Cecília sorriulhe e passou a mãozinha pelas pálpebras ainda meio cerradas de seu amigo Dorme disse ela dorme Ceci vela A música dessas palavras despertou completamente o selvagem Não balbuciou ele envergonhado de ter cedido à fadiga Peri sentese forte Mas tu deves ter necessidade de repouso Há tão pouco tempo que adormeceste O dia vai raiar Peri deve velar sobre sua senhora E por que tua senhora não velará também sobre ti Queres tomar tudo e não me deixas nem mesmo a gratidão O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina Peri não entende o que tu dizes A rolinha quando atravessa o campo e sentese fatigada descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme que vai buscar o alimento que a defende e que a protege Tu és como a rolinha senhora Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo E tu perguntou ela confusa e trêmula de emoção Peri é teu escravo respondeu o índio naturalmente A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa A rolinha não tem escravo Os olhos de Peri brilharam uma exclamação partiu de seus lábios Teu Cecília com o seio palpitante as faces vermelhas os olhos úmidos levou a mãozinha aos lábios de Peri e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado Tu és meu irmão disse ela com um sorriso divino Peri olhou o céu como para fazêlo confidente de sua felicidade A claridade da alvorada estendiase sobre a floresta e os campos como um véu finíssimo a estrela da manhã cintilava em todo o seu fulgor Cecília ajoelhouse Salve rainha O índio contemplavaa com uma expressão de ventura inefável Tu és cristão Peri disse ela lançandolhe um olhar suplicante Seu amigo compreendeua e ajoelhando juntou as mãos como ela Tu repetirás todas as minhas palavras e faze por não esquecêlas Sim Elas vêm de teus lábios senhora Senhora não irmã Daí a pouco os murmúrios das águas confundiamse com os acenos maviosos da voz de Cecília que recitava o hino cristão repassado de tanta unção e poesia A palavra de Peri repetia como um eco a frase sagrada Terminada a prece cristã talvez a primeira que tinha ouvido aquelas árvores seculares a viagem continuou Logo que o sol chegou ao zênite Peri procurou como na véspera um abrigo para passar as horas de calma A canoa pojou num pequeno seio do rio Cecília saltou em terra e seu companheiro escolheu uma sombra onde ela repousasse Espere aqui Peri já volta Onde vais perguntou a menina inquieta Ver frutos para ti Não tenho fome Tu os guardarás Pois bem eu te acompanho Não Peri não consente E por quê Não me queres junto de ti Olha tuas roupas olha teu pé senhora os espinhos do cardo te ofenderiam Com efeito Cecília estava vestida com um ligeiro roupão de cambraia e seu pezinho que descansava sobre a relva calçava um borzeguim de seda Então me deixas só disse a menina entristecendo O índio ficou um momento indeciso mas de repente sua fisionomia expandiuse Cortou a haste de um íris que se balançava ao sopro da aragem e apresentou a flor à menina Escuta disse ele Os velhos da tribo ouviram de seus pais que a alma do homem quando sai do corpo se esconde numa flor e fica ali até que a are do céu vem buscála e a leva li bem longe É por isso que tu vês o guanumbi saltando de flor em flor beijando uma beijando outra e depois batendo as asas e fugindo Cecília habituada à linguagem poética do selvagem esperava a última palavra que devia fazêla compreender o seu pensamento O índio continuou Peri não leva a sua alma no corpo deixaa nesta flor Tu não ficas só A menina sorriu e tomando a flor escondeua no seio Ela me acompanhará Vai meu irmão e volta logo Peri não se afastará se tu o chamares ele ouvirá E me responderás sim para que eu te sinta perto de mim O índio antes de partir circulou a alguma distancia o lugar onde se achava Cecília de uma corda de pequenas fogueiras feitas de louro de canela urataí e outras árvores aromáticas Desta maneira tornava aquele retiro impenetrável o rio de um lado e do outro as chamas que afugentariam os animais daninhos e sobretudo os répteis o fumo odorífero que se escapava das fogueiras afastaria até mesmo os insetos Peri não sofreria que uma vespa e uma mosca sequer ofendesse a cútis de sua senhora e sugasse uma gota desse sangue precioso por isso tomara todas essas precauções Cecília devia pois ficar tranqüila como se estivesse em um palácio e de fato era um palácio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa as folhas de dossel as grinaldas em flores de cortinas os sabiás de orquestra as águas de espelho e os raios do sol de arabescos dourados A menina viu de longe o desvelo com que seu amigo tratava de sua segurança e acompanhouo com o olhar até o momento em que ele desapareceu no mais espesso da mata Foi então que ela sentiu a soledade estenderse em torno e envolvêla insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flor que Peri lhe tinha dado Apesar de sua fé cristã não pôde vencer essa inocente superstição do coração pareceulhe olhando o íris que já não estava só e que a alma de Peri a acompanhava Qual é o seio de dezesseis anos que não abriga uma dessas ilusões encantadoras nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer e não vê numa borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança Como a humanidade na infância o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia mitologia mais graciosa e mais poética do que as criações da Grécia o amor é o seu Olimpo povoado de deusas ou deuses de uma beleza celeste e imortal Cecília amava a gentil e inocente menina procurava iludirse a si mesma atribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma afeição fraternal e ocultando sob o doce nome de irmão um outro mais doce que titilava nos seus lábios mas que seus lábios não ousavam pronunciar Mesmo só de vez em quando um pensamento que passava no seu espírito incendialhe as faces de rubor fazia palpitarlhe o seio e pender molemente a cabeça como a haste da planta delicada quando o calor do sol fecunda a florescência Em que pensava ela com os olhos fitos no íris que o seu hálito bafejava com as pálpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre os joelhos Pensava no passado que não voltaria no presente que devia escoarse rapidamente e no futuro que lhe aparecia vago incerto e confuso Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão de sangue cujo destino ignorava e um irmão de alma em que tinha concentrado todas as afeições que perdera Um sentimento de tristeza profunda anuviava o seu semblante lembrandose de seu pai de sua mãe de Isabel de Álvaro de todos que amava e que formavam o universo para ela então o que a consolava era a esperança de que os dois únicos corações que lhe restavam não a abandonariam nunca E isto a fazia feliz não desejava mais nada não pedia a Deus mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e enchendo o futuro com as recordações do passado A sombra das árvores já beijava as águas do rio e Peri ainda não tinha voltado Cecília assustouse e temendo que lhe tivesse sucedido alguma coisa chamou por ele O índio respondeu longe e pouco depois apareceu entre as árvores o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado a julgar pelos objetos que trazia Como tardaste disselhe Cecília erguendose e indo ao seu encontro Tu estavas sossegada Peri aproveitou para não te deixar amanhã Amanhã só Sim porque depois chegaremos Aonde perguntou a menina com vivacidade Aos campos dos goitacás à cabana de Peri onde tu mandarás a todos os guerreiros da tribo E depois como iremos ao Rio de Janeiro Não te inquietes os goitacás têm igaras grandes como aquela árvore que toca às nuvens quando eles atiram o remo elas voam sobre as águas como a atiati de asas brancas Antes que a lua que vai nascer tenha desaparecido Peri te deixará com a irmã de teu pai Deixará exclamou a menina empalidecendo Tu queres me abandonar Peri é um selvagem disse o índio tristemente não pode viver na taba dos brancos Por quê perguntou a menina com ansiedade Não és tu cristão como Ceci Sim porque era preciso ser cristão para te salvar mas Peri morrerá selvagem como Ararê Oh não disse a menina eu te ensinarei a conhecer Deus Nossa Senhora as suas virgens e os seus anjinhos Tu viverás comigo e não me deixarás nunca Vê senhora a flor que Peri te deu já marchou porque saiu de sua planta e a flor estava no teu seio Peri na taba dos brancos ainda mesmo junto de ti será como esta flor tu terás vergonha de olhar para ele Peri exclamou a menina ofendida Tu és boa mas todas as que têm a tua cor não têm o teu coração Li o selvagem seria um escravo dos escravos e quem nasceu o primeiro pode ser teu escravo mas é senhor dos campos e manda aos mais fortes Cecília admirando o reflexo de nobre orgulho que brilhava na fronte do índio sentiu que não podia combater a sua resolução ditada por um sentimento elevado Reconheceu que havia no fundo de suas palavras uma grande verdade que o seu instinto adivinhava ela tinha a prova na revolução que se operara no seu espírito vendo Peri no meio do deserto livre grande majestoso como um rei Qual não seria pois a conseqüência dessa outra transição muito mais brusca Numa cidade no meio da civilização o que seria um selvagem senão um cativo tratado por todos com desprezo No íntimo de sua alma quase que aprovava a resolução de Peri mas não podia afazerse à idéia de perder seu amigo seu companheiro a única afeição que talvez ainda lhe restava no mundo Durante esse tempo o índio preparava a simples refeição que lhes oferecia a natureza Deitou sobre uma folha larga os frutos que tinha colhido eram os araçás os jambos corados os ingás de polpa macia os cocos de várias espécies A outra folha continha favos de uma pequena abelha que fabricara a sua colmeia no tronco de uma catuíba de sorte que o mel puro e claro tinha perfumes deliciosos dirseia mel de flores O índio tornou côncava uma palma larga e encheua com o suco do ananás cuja fragrância é como a essência do sabor era o vinho que devia servir ao banquete frugal Numa segunda palma também côncava apanhou a água cristalina da corrente que murmurava a alguns passos devia servir para Cecília lavar as mãos depois da refeição Quando acabou esses preparativos que ele fazia com uma satisfação inexprimível Peri sentouse junto da menina e começou a trabalhar num arco de que precisava O arco era a sua arma favorita e sem ele embora possuísse a clavina e as munições que por precaução deitara na canoa para servirem a D Antônio de Mariz não tinha tranqüilidade de espírito e confiança plena na sua agilidade Reparando porém que sua senhora não tocava nos alimentos ergueu a cabeça e viu o rosto da menina banhado de lágrimas que calam em pérolas sobre os frutos e os rociavam como gotas de orvalho Não era preciso adivinhar para conhecer a causa dessas lágrimas Não chora senhora disse o índio aflito Peri te falou o que sentia manda e Peri fará a tua vontade Cecília olhouo com uma expressão de melancolia que partia a alma Queres que Peri fique contigo Ele ficará todos serão seus inimigos todos o tratarão mal desejara defenderte e não poderá quererá servirte e não o deixarão mas Peri ficará Não respondeu Cecília não exijo de ti esse último sacrifício Deves viver onde nasceste Peri Mas tu vais ainda chorar Vê disse a menina enxugando as lágrimas estou contente Agora toma uma fruta Sim juntaremos juntos como jantavas outrora no meio das matas com tua irmã Peri nunca teve irmã Mas tens agora respondeu ela sorrindo E como uma filha das florestas uma verdadeira americana a gentil menina fez a sua refeição partilhandoa com seu companheiro e acompanhandoa dos gestos inocentes e faceiros que só ela sabia ter Peri admiravase da mudança brusca que se tinha operado em sua senhora e no fundo do seu coração sentia um aperto pensando que ela se consolara bem depressa com a lembrança da separação Mas ele não era egoísta e preferia a alegria de sua senhora a seu prazer porque vivia antes da vida dela do que da sua própria Depois da refeição Peri voltou ao seu trabalho Cecília que desde o primeiro dia sentiase abatida e lânguida tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons dias O rosto mimoso conservava ainda a sombra melancólica que lhe deixaram impressas as cenas tristes de que fora testemunha e sobretudo a última desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãe Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma expressão angélica e tal mansuetude e suavidade que dava novo encanto à sua beleza ideal Deixando seu companheiro distraído com a sua obra chegou à beira do rio e sentouse junto de uma moita de uvaias à qual estava amarrada a canoa Peri viua afastarse e sempre seguindoa com os olhos continuou a preparar a vergôntea que devia servirlhe de arco e as canas selvagens as quais o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira A menina com a face apoiada na mão e os olhos postos na correnteza do rio cismava às vezes as pálpebras cerravamse os lábios se agitavam imperceptivelmente nesses momentos parecia que conversava com algum espírito invisível Outras vezes um doce sorriso despontava nos seus lábios e desfaziase logo como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a esconderse no fundo do coração donde se tinha escapado Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha que às vezes tomava a sua cabecinha loura à qual só faltava o diadema a fisionomia mostrou uma expressão de energia que lembrava o caráter de D Antônio de Mariz Tinha tomado uma resolução uma resolução firme inabalável que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdara de seu pai e dormia no fundo de sua alma para só revelarse nas ocasiões extremas Levantou os olhos ao céu e pediu a Deus um perdão para uma falta e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa ação que ia praticar sua oração foi breve mas ardente e cheia de fervor Enquanto isso se passava Peri vendo que as sombras da terra já se deitavam sobre o leito do Paraíba conheceu que era tempo de partir e preparouse para continuar a viagem No momento em que levantavase Cecília correu para ele e colocouse em face de modo a lhe ocultar a vista do rio Tu sabes disse ela sorrindo tenho uma coisa a pedirte Esta só palavra bastava para que Peri não visse mais nada senão os olhos e os lábios de sua senhora que iam dizerlhe o que ela desejava Quero que apanhes muito algodão para mim e me tragas uma pele bonita Sim Para quê perguntou o índio admirado Do algodão fiarei um vestido da pele tu cobrirás os meus pés Peri cada vez mais admirado ouvia sua senhora sem compreendêla Assim disse a menina sorrindo tu me deixarás acompanharte os espinhos não me farão mal O espanto do índio tinhao tornado imóvel mas de repente soltou um grito e quis precipitarse para o rio A mãozinha de Cecília apoiandose no seu peito reteveo Espera Olha respondeu o índio inquieto apontando para o rio A canoa desprendida do tronco a que estava amarrada resvalava à discrição das águas e girando sobre si desaparecia levada pela correnteza Cecília depois de olhar se voltou sorrindo Fui eu que soltei Tu senhora Por quê Porque não precisamos mais dela Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos sua irmã fica com ele no deserto no meio das florestas Era essa idéia que ela há pouco acariciava no seu espírito e para a qual tinha invocado a graça divina Não foi sem algum esforço que ela conseguiu dominar os primeiros temores que a assaltaram quando encarou em face essa existência longe da sociedade na solidão no isolamento Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado Não era ela quase uma filha desses campos criada com o seu ar puro e livre com as suas águas cristalinas A cidade lhe aparecia apenas como um recordação da primeira infância como um sonho do berço deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos e nunca mais ali voltara O campo esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas auras o botão desatara aos raios desse sol esplêndido Toda a sua vida todos os seus belos dias todos os seus prazeres infantis viviam ali falavam naqueles ecos da solidão naqueles murmúrios confusos naquele silêncio mesmo Ela pertencia pois mais ao deserto do que à cidade era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã seus hábitos e seus gostos prendiamse mais as pompas singelas da natureza do que às festas e às galas da arte e da civilização Decidiu ficar A única felicidade que ainda podia gozar neste mundo depois da perda de sua família era viver com os dois entes que a amavam essa felicidade não era possível devia escolher entre um deles Ai o seu coração foi impelido pela força invencível que o arrastava mas depois envergonhandose de ter cedido tão depressa procurou desculparse a si mesma Disse então que entre seus dois irmãos era justo que acompanhasse antes aquele que só vivia para ela que não tinha um pensamento um cuidado um desejo que não fosse inspirado por ela D Diogo era um fidalgo herdeiro do nome de seu pai tinha um futuro diante de si tinha uma missão a cumprir no mundo ele escolheria uma companheira para suavizarlhe a existência Peri tinha abandonado tudo por ela seu passado seu presente seu futuro sua ambição sua vida sua religião mesmo tudo era ela e unicamente ela não havia pois que hesitar Depois Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã queria darlhe um lugar perto dela na mansão dos justos aos pés do trono celeste do Criador É impossível descrever o que se passou no espírito do selvagem ouvindo as palavras de Cecília sua inteligência inculta mas brilhante capaz de elevarse aos mais altos pensamentos não podia compreender aquela idéia duvidou do que escutava Cecília fica no deserto balbuciou ele Sim respondeu a menina tomandolhe as mãos Cecília fica contigo e não te deixará Tu és rei destas florestas destes campos destas montanhas tua irmã te acompanhará Sempre Sempre Viveremos juntos como ontem como hoje como amanhã Tu cuidas Eu também sou filha desta terra também me criei no seio desta natureza Amo este belo pais Mas senhora tu não vês que tuas mãos foram feitas para as flores e não para os espinhos teus pés para brincar e não para andar teu corpo para a sombra e não para o sol e a chuva Oh Eu sou forte exclamou a menina erguendo a cabeça com altivez Junto de ti não tenho medo Quando eu estiver cansada tu me levarás nos teus braços A rolinha não se apóia sobre a asa de seu companheiro Era preciso ver a gentileza e a garridice com que ela dizia todas essas frases graciosas que borbulhavam dos seus lábios A irradiação do seu olhar a animação do seu rosto e a travessura de seu gesto fascinavam Peri ficou extático diante da perspectiva dessa felicidade imensa com a qual nunca sonhara mas jurou de novo em sua alma que cumpriria a promessa feita a D Antônio A tarde descaia e era preciso tratar de prover aos meios de passar a noite em terra o que seria muito mais perigoso não para ele a quem bastava o galho de uma árvore mas para Cecília Seguindo pela margem para escolher o lugar mais favorável Peri soltou uma palavra de surpresa vendo a canoa que se tinha embaraçado numa dessas ilhas flutuantes feitas pelas parasitas do rio que bóiam sobre as águas Era o melhor leito que podia ter a menina no meio do deserto puxou a canoa alcatifou o fundo com as folhas macias das palmeiras e tomando Cecília nos braços deitoua no seu berço A menina não consentiu que Peri remasse a canoa deslizou docemente pelo leito do rio apenas impelida pela correnteza Cecília brincava debruçavase sobre as águas para colher uma flor de passagem para perseguir um peixe que beijava a face lisa das ondas para ter o prazer de molhar as mãos nessa água cristalina para rever a sua imagem nesse espelho vacilante Quando tinha brincado bastante voltavase para seu amigo e falavalhe com o gazeio argentino mimoso chilrear dos lábios travessos de uma linda menina onde as coisas mais ligeiras e mais frívolas revestem encantos e graça suprema Peri estava distraído seu olhar fitavase no horizonte com uma atenção extraordinária a inquietação que se desenhava no seu semblante era o indício de algum perigo embora ainda remoto Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos que se destacava num fundo de púrpura e rosicler amontoavamse grossas nuvens escuras e pesadas que feridas pelos raios do ocaso lançavam reflexos acobreados Daí a pouco a serrania desapareceu envolta nesse manto cor de bronze que se elevava como as colunas e abóbadas de estalactites que se encontram nas grutas das nossas montanhas O azul puro e risonho que cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura que ia enegrecendo gradualmente à medida que a noite caia Peri voltouse Tu queres ir para terra senhora Não estou tão bem aqui Não foste tu que me trouxeste Sim mas O quê Nada podes dormir sem receio Ele tinha se lembrado que entre dois perigos o melhor era preferir o mais remoto aquele que ainda estava longe e talvez não viesse Por isso resolveu não dizer nada a Cecília e conservarse atento e vigilante para salvála se o que ele temia se realizasse Peri havia lutado com o tigre com os homens com uma tribo de selvagens com o veneno e tinha vencido Era chegada a ocasião de lutar com os elementos com a mesma confiança calma e impassível esperou pronto a aceitar o combate Anoiteceu O horizonte sempre negro e fechado se iluminava às vezes com um lampejo fosforescente um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas como o seio de uma vela enfunada pelo vento Entretanto ao redor tudo estava quieto as estrelas recamavam o azul do céu a viração aninhavase nas folhas das árvores os murmúrios doces da solidão cantavam o hino da noite Cecília adormeceu no seu berço murmurando uma prece Era alta noite sombras espessas cobriam as margens do Paraíba De repente um rumor surdo e abafado como de um tremor subterrâneo propagandose por aquela solidão quebrou o silêncio profundo do ermo Peri estremeceu ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio que enroscandose como uma serpente monstruosa de escamas prateadas ia perderse no fundo negro da floresta O espelho das águas liso e polido como um cristal refletia a claridade das estrelas que já desmaiavam com a aproximação do dia tudo estava imóvel e quedo O índio curvouse sobre a borda da canoa e de novo aplicou o ouvido pela superfície do rio rolava um som estrepitoso semelhante ao quebrarse da catadupa precipitandose do alto dos rochedos Cecília dormia tranqüilamente sua respiração ligeira ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao sopro tênue da aragem Peri lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio Quebrou o laço que prendia a canoa e impeliua para a terra com toda a força do remo que fendeu a água rapidamente À beira do rio elevavase uma bela palmeira cujo alto tronco era coroado pela grande cúpula verde formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas Os cipós e as parasitas engrazandose pelos ramos das árvores vizinhas desciam até o chão formando grinaldas e cortinas de folhagem que se prendiam às hastes da palmeira Tocando a margem Peri saltou em terra tomou Cecília meio adormecida nos seus braços e ia entranharse pela mata virgem que se elevava diante dele Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendose em convulsões e deitouse de novo no seu leito soltando um gemido profundo e cavernoso Ao longe o cristal da corrente achamalotouse as águas frisaramse e um lençol de espuma estendeuse sobre essa face lisa e polida semelhante a uma vaga do mar desenrolandose pela areia da praia Logo todo o leito do rio cobriuse com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa rumorejando como um manto de seda Então no fundo da floresta troou um estampido horrível que veio reboando pelo espaço dirseia o trovão correndo nas quebradas da serrania Era tarde Não havia tempo para fugir a água tinha soltado o seu primeiro bramido e erguendo o colo precipitavase furiosa invencível devorando o espaço como algum monstro do deserto Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo em vez de ganhar a mata suspendeuse a um dos cipós e galgando o cimo da palmeira ai abrigouse com Cecília A menina despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava interrogou seu amigo A água respondeu ele apontando para o horizonte Com efeito uma montanha branca fosforescente assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta e atirouse sobre o leito do rio mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas A torrente passou rápida veloz vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores que estremeciam com o embate hercúleo Depois outra montanha e outra e outra se elevaram no fundo da floresta arremessandose no turbilhão lutaram corpo a corpo esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem Dirseia que algum monstro enorme dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água mordendo a raiz de uma rocha fazia girar a cauda imensa apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens Ou que o Paraíba levantandose qual novo Briareu no meio do deserto estendia os cem braços titânicos e apertava ao peito estrangulandoa em uma convulsão horrível toda essa floresta secular que nascera com o mundo As árvores estalavam arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco prostravamse vencidas sobre o gigante que carregandoas ao ombro precipitava para o oceano O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam o estampido da torrente os trôos do embate desses rochedos movediços que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa formavam um concerto horrível digno do drama majestoso que se representava no grande cenário As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto onde um dos elementos reinava como soberano Cecília apoiada ao ombro de seu amigo assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso Peri sentia o seu corpinho estremecer mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa um só grito de susto Em face desses transes solenes desses grandes cataclismas da natureza a alma humana sentese tão pequena aniquilase tanto que se esquece da existência o receio é substituído pelo pavor pelo respeito pela emoção que emudece e paralisa O sol dissipando as trevas da noite assomou no oriente seu aspecto majestoso iluminou o deserto as ondas de sua luz brilhante derramaramse em cascatas sobre um lago imenso sem horizontes Tudo era água e céu A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar as grandes massas de água que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba desceram das serranias e de torrente em torrente haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira que aparecia coberta por um nevoeiro escuro mas o céu azul e límpido sorria mirandose no espelho das águas A inundação crescia sempre o leito do rio elevavase gradualmente as árvores pequenas desapareciam e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos A cúpula da palmeira em que se achavam Peri e Cecília parecia uma ilha de verdura banhandose nas águas da corrente as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso onde os dois amigos estreitandose pediam ao céu para ambos uma só morte pois uma só era a sua vida Cecília esperava o seu último momento com a sublime resignação evangélica que só dá a religião do Cristo morria feliz Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios Podemos morrer meu amigo disse ela com uma expressão sublime Peri estremeceu ainda nessa hora suprema seu espírito revoltavase contra aquela idéia e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal Não exclamou ele Tu não podes morrer A menina sorriu docemente Olha disse ela com a sua voz maviosa a água sobe sobe Que importa Peri vencerá a água como venceu a todos os teus inimigos Se fosse um inimigo tu o vencerias Peri Mas é Deus É o seu poder infinito Tu não sabes disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento Falou com um tom solene Foi longe bem longe dos tempos de agora As águas caíram e começaram a cobrir toda a terra Os homens subiram ao alto dos montes um só ficou na várzea com sua esposa Era Tamandaré forte entre os fortes sabia mais que todos O Senhor falavalhe de noite e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu Quando todos subiram aos montes ele disse Ficai comigo fazei como eu e deixai que venha a água Os outros não o escutaram e foram para o alto e deixaram ele só na várzea com sua companheira que não o abandonou Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira ai esperou que a água viesse e passasse a palmeira dava frutos que o alimentavam A água veio subiu e cresceu o sol mergulhou e surgiu uma duas e três vezes A terra desapareceu a árvore desapareceu a montanha desapareceu A água tocou o céu e o Senhor mandou então que parasse O sol olhando só viu céu e água e entre a água e o céu a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira A corrente cavou a terra cavando a terra arrancou a palmeira arrancando a palmeira subiu com ela subiu acima do vale acima da árvore acima da montanha Todos morreram A água tocou o céu três sóis com três noites depois baixou baixou até que descobriu a terra Quando veio o dia Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea e ouviu a avezinha do céu o guanumbi que batia as asas Desceu com a sua companheira e povoou a terra Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento Cecília o ouvia sorrindo e bebia uma a uma as suas palavras como se fossem as partículas do ar que respirava parecialhe que a alma de seu amigo essa alma nobre e bela se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes e vinha embeberse no seu coração que se abria para recebêla A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira e uma gota resvalando pelo leque foi embeberse na alva cambraia das roupas de Cecília A menina por um movimento instintivo de terror conchegouse ao seu amigo e nesse momento supremo em que a inundação abria a fauce enorme para tragálos murmurou docemente Meu Deus Peri Então passouse sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda heróica sobrehumana um espetáculo grandioso uma sublime loucura Peri alucinado suspendeuse aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos abalouo até as raízes Três vezes os seus músculos de aço estorcendose inclinaram a haste robusta e três vezes o seu corpo vergou cedendo a retração violenta da árvore que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado Luta terrível espantosa louca esvairada luta da vida contra a matéria lata do homem contra a terra lata da força contra a imobilidade Houve um momento de respouso em que o homem concentrando todo o seu poder estorceuse de novo contra a árvore o ímpeto foi terrível e pareceu que o corpo ia despedaçarse nessa distensão horrível Ambos árvore e homem embalançaramse no seio das águas a haste oscilou as raízes desprenderamse da terra já minada profundamente pela torrente A cúpula da palmeira embalançandose graciosamente resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante formada pelas vegetações aquáticas Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada e tomandoa nos braços disselhe com um acento de ventura suprema Tu viverás Cecília abriu os olhos e vendo seu amigo junto dela ouvindo ainda suas palavras sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna Sim murmurou ela viveremos lá no céu no seio de Deus junto daqueles que amamos O anjo espanejavase para remontar ao berço Sobre aquele azul que tu vês continuou ela Deus mora no seu trono rodeado dos que o adoram Nós iremos lá Peri Tu viverás com tua irmã sempre Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo e lânguida reclinou a loura fronte O hálito ardente de Peri bafejoulhe a face Fezse no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia E sumiuse no horizonte GONÇALVES DIAS POESIA COMPLETA E PROSA ESCOLHIDA MANUEL BANDEIRA A Vida e a Obra do Poeta A Poética de Gonçalves Dias ANTÔNIO HOUAISS O Texto dos Poemas ALEXANDRE HERCULANO Futuro Literário de Portugal e do Brasil Prólogo aos Cantos RIO DE JANEIRO EDITÔRA JOSÉ AGUILAR LTDA 1959 MEDITAÇÃO FRAGMENTO 1846 CAPÍTULO PRIMEIRO I II Então o velho estendendo a mão descarnada e macilenta tocou as minhas pálpebras E as minhas pálpebras cintilaram como sentindo o contacto de um corpo eletrizado E diante dos meus olhos se estendeu uma corrente de luz suave e colorida como a luz de uma aurora boreal E o ancião me disse Olha do norte ao sul do ocaso ao nascer do sol té onde alcançar a luz dos teus olhos e dizeme o que vês E o seu gesto era soberano e tremendo como o gesto de um monarca irritado E a sua voz solene e grave como a voz do sacerdote que salmeia uma oração fúnebre em noite de enterramento E eu levei os meus olhos do norte ao sul do ocaso ao nascer do sol té onde eles alcançavam e respondi Meu pai vejo diante de meus olhos uma prodigiosa extensão de terreno é por ventura algum grande império tão grande espaço me parece que encerra E as árvores que o sombreiam são robustas e frondosas como se desde a criação presenciassem o incessante volver dos séculos E a relva que o tapisa é densa e aveludada e as suas flôres melin drosas e perfumadas e às suas aves canoras e brilhantes como as suas flores E o céu que cobre essa terra bendita é sereno e estrelado e parece refletir nas suas cores fulgentes o sorriso benévolo e carinhoso de quando o Criador o suspendia nos ares como um rico diamante pendente do seu trono E sobre essa terra mimosa por baixo dessas árvores colossais vejo milhares de homens de fisionomias discordes de côr vária e de caracteres diferentes E esses homens formam círculos concêntricos como os que a pedra produz caindo no meio das águas plácidas de um lago E os que formam os círculos externos têm maneiras submissas e respeitosas são de côr preta e os outros que são como um punhado de homens formando o centro de todos os círculos têm maneiras senhoris e arrogantes são de côr branca E os homens de côr preta têm as mãos presas em longas correntes de ferro cujos anéis vão de uns a outros eternos como a maldição que passa de pais a filhos III E eu falava ainda quando um mancebo imberbe saindo dentre os homens de côr branca acoitou as faces de outro de côr preta com o reverso de sua mão esquerda E o ofendido velho e curvado sob o peso dos anos cruzou os braços musculosos apesar da velhice e deixou pender a cabeça sobre o peito E após um instante de silêncio profundo arrojouse aos pés de um ancião de côr branca clamando justiça com voz abafada E um dentre estes na flor da idade ergueuse iroso entre o homem de cabelos brancos e o preto injuriado que pedia justiça e o lançou por terra E o ancião de côr branca que longe do bulício do mundo havia meditado longos anos soltou um suspiro das profundezas do peito E os elos da corrente que manietava os homens de côr preta soltaram um som áspero e discorde como o rugido de uma pantera E eu vi que esses homens tentavam desligarse das suas cadeias e que dos pulsos roxeados lhes corria o sangue sobre as suas algemas E vi que o ferro resistia às suas tentativas mas também vi que a sua raiva era frenética e que o sangue que lhes manava das feridas cerceava o ferro como o enxôfre incendio PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO I 743 IV E o ancião me disse Afasta os olhos dos homens que sofrem e dos que fazem sofrer como de um objeto impuro e volveos em redor de ti E eu afastei os olhos desse espetáculo lutuoso e volvios em redor de mim E vi algumas cidades vilas e aldeias disseminadas pela vasta extensão daquele império como árvores raquíticas plantadas em desertos infrutíferos E nessas cidades vilas e aldeias havia um fervilhar de homens velhos e crianças correndo todos em direções diversas e com rapidez diferente como homens carentes de juízo E as suas ruas eram tortuosas estreitas e mal calçadas como obra da incúria e as suas casas baixas feias e sem elegância não rivalizavam com a habitação dos castores E os seus palácios eram sem pompa e sem grandeza e os seus templos sem dignidade e sem religião E os seus rios obstruídos por alguns troncos desenraizados eram cortados por jangadas mal tecidas ou por miseráveis canoas de um só toro de madeira E nessas cidades vilas e aldeias nos seus cais praças e chafarizes vi somente escravos E à porta ou no interior dessas casas mal construídas e nesses palácios sem elegância escravos E no adro ou debaixo das naves dos templos de costas para as imagens sagradas sem temor como sem respeito escravos E nas jangadas mal tecidas e nas canoas de um só toro de madeira escravos e por toda a parte escravos Por isto o estrangeiro que chega a algum porto do vasto império consulta de novo a sua derrota e observa atentamente os astros porque julga que um vento inimigo o levou às costas dÁfrica E conhece por fim que está no Brasil na terra da liberdade na terra ataviada de primores e esclarecida por um céu estrelado e magnífico Mas grande parte da sua população é escrava mas a sua riqueza consiste nos escravos mas o sorriso o deleite do seu comerciante do seu agrícola e o alimento de todos os seus habitantes é comprado à custa do sangue do escravo 256 GONÇALVES DIAS POESIA COMPLETA E PROSA 744 E nos lábios do estrangeiro que aporta ao Brasil desponta um sorriso irônico e despetioso e ele diz consigo que a terra da escravidão não pode durar muito porque ele é crente e sabe que os homens são feitos do mesmo barro sujeitos às mesmas dores e às mesmas necessidades V E sabes tu perguntoume o ancião por que as vossas ruas são estreitas tortuosas e mal calçadas e por que as vossas casas são baixas feias e sem elegância Sabes por que são vossos palácios sem pompa e sem grandeza e os vossos templos sem dignidade e sem religião Sabes por que é miserável a vossa marinha e por que se ri o estrangeiro que aporta ao Brasil E porque o belo e o grande é filho do pensamento e o pensamento do belo e do grande é incompatível com o sentir do escravo E o escravo é o pão de que vos alimentais as telas que vestis o vosso pensamento cotidiano e o vosso braço incansável Vê as pirâmides do Egito sarcófagos gigantescos que lá se vão perder nas entranhas das nuvens tão elevadas como o mais elevado pensamento Vê os templos gregos cuja elegante arquitetura buscava assento em meio de vales deleitosos harmonizandose com o céu da Grécia e com a fertilidade e vida da sua gleba Vê nas cúpulas árabes essa floresta de colunas de mil côres rodando em um peristilo circular semelhante às tendas das tribos nômades e patriarcais Vê os templos da Idade Média essas epopéias do Cristianismo com os seus zimbórios volumosos com os seus campanários terminados em agulhas sutis e afiadas que elevam o pensamento além das nuvens Esses túmulos bem como as ruínas dos palácios e dos templos de Mênfis revelam uma idéia porque os egípcios a gravaram nas suas obras debaixo dos hieroglíficos que os sacerdotes multiplicaram na fachada dos seus templos e nas paredes dos seus edifícios Os gregos realizaram o beloideal e os árabes tentando realizálo transformaram a sua tenda de um dia em habitações duradouras porque eles eram livres nos atos e nos pensamentos livres como o simum dos areais PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO I 745 E os bizarros brutescos da arquitetura gótica representam a vida porém a vida multiplice e variada e a agulha dos seus templos figuravam o infinito e o seu cimento indestrutível traz à lembrança as idéias mais puras da moral Deus e a imortalidade E os pagodes da China ou a pedra druídica no meio das florestas gaulesas ou mesmo as inscrições e imperfeitos desenhos dos vossos índios na superfície lisa dos rochedos do Iapurá dizem mais e são mais belos que os vossos edifícios sem expressão nem sentimento E o escravo não pode ser arquiteto porque a escravidão é mesquinha e porque a arquitetura filha do pensamento é livre como o vento que varre a terra E o escravo será negligente e inerte porque não lhe aproveitará o suor do seu rosto porque a sua obra não será a recompensa do seu trabalho porque a sua inteligência é limitada e porque ele não tem o amor da glória E o homem livre dará de mão às boasartes porque não quer ombrear com o escravo que é infame e desonroso E não se dará às artes mecânicas que são o emprego do liberto e daqueles que não são homens E não se dará à marinha esse potente veículo do comércio e da civilização porque a marinha está inçada de escravos E se os seus vestidos roçarem a opa do escravo ou a escrava do liberto ele os sacudirá com asco e se a sua mão tocar amigavelmente a mão do escravo ele a cerceará do pulso como pois o chamará colega VI Um dia aparecestes sobre a terra com todos os vicios de uma nação decadente como se houvesseis vivido longos anos E nem sequer provastes aquelas amargas lições da experiência que as nações colhem durante a sua existência política bem como os homens durante a sua vida E como a juventude orgulhosos e fatuos julgais que todos vos obedecem quando a todos vos sujeitais julgais que existis quando sois meramente prelúdio de vida um feto gigante que começa a desenvolverse debaixo da influência poderosa do sol dos trópicos E se possível fosse que um dos grandes homens do velho mundo hoje se erguesse em meio de vós outros do seu sepulcro onde ele dorme o sono eterno embalado pelos encomios das gerações que passam 746 GONÇALVES DIAS POESIA COMPLETA E PROSA ele pediria os vossos anais para que soubesse que passo andastes no caminho do progresso e que bem fizestes à humanidade Porque eles sabem que as nações formamse pogridem e decaem com o mesmo movimento que talvez se podesse marcar por uma como dinâmica e terapêutica social E ele vos diria que antes que os helenos curvassem a cabeça ao jugo otomano foram guerreiros da Iliada os de Maratônia e Salamina e os sábios do tempo de Péricles E antes que os romanos passassem meia vida nas suas termas perfumadas e antes que fôssem os autores de moles serenatas e de cançonetas de amor foram os conquistadores da Gália da Ibéria e da Escandinávia e os senhores do mundo conhecido e os artistas de Leão X E antes que os bretões se dessem à orgia e à intemperança depois das sessões dos seus parlamentos antes que dessem ao mundo estupefato o espetáculo das suas fantásticas extravagâncias foram os companheiros dos reis Artur Henrique e Ricardo e os filósofos e literatos do século XVI e do século XVII E os gauleses também foram os guerreiros de Breno os companheiros de Luís o Santo de Baiardo o último cavaleiro e de Francisco o rei cavalheiro e os homens de Luís XIV Passaram todos da idade da força à idade da razão do reinado das armas ao reinado da inteligência para depois adormecerem sobre o fruto dos seus trabalhos como o vindimador junto aos cestos que ele mesmo encherá de apetitosos cachos Não assim vós que sois uma anomalia na ordem social como o que nasce adulto com os vícios e as fraquezas da idade provecta e com e ceticismo do homem pervertido E não tereis vós de retroceder pelo mesmo caminho por onde agora divagais ou vos lançou Deus sobre a terra por que servisseis de lição ao porvir e de escarmiento às gerações futuras VII E o ancião falava ainda porém o meu pensamento não o escutava que os meus olhos seguiam um objeto horrível como o talvez de um grande infortúnio Como Laocoomte sofrendo terríveis agonias concentrava todas as suas forças para livrarse dos anéis vigorosos da serpente que o enlacava Como no meio de uma habitação que arde o homem louco e delirante agarrase às traves em brasa meio comidas pelo incêndio e não sente a dor do fogo que lhe rói a carne dos membros PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO II 747 Os homens que sofriam reuniramse como um só homem e soltaram um grito horríssono como seria o desabar dos mundos E pareceume que eles se transformavam em unidade como um colosso enorme e válido cuja fronte se perdia nas nuvens e cujos pés se enterravam em uma sepultura imensa e profunda como um abismo E o colosso tinha as feições horrivelmente contraídas pela raiva e com os braços erguidos tentava descarregar às mãos ambas um golpe que seria de extermínio E a vítima era um povo inteiro eram os filhos de uma numerosa família levados ao sacrifício por seus pais como Abraão levou a Isaque seu filho E como Isaque as vítimas deste sacrifício cruento tinham cortado a lenha para a sua fogueira e adormeceram sobre ela sonhando um festim suntuoso E como Isaque também eles acordaram com as espadas sobre as suas cabeças e o seu despertar foi terrível porque sómente Deus os poderia salvar E um calafrio de terror percorreu a medula dos meus ossos e o meu sangue parou nas minhas veias e o meu coração cessou de bater E o ancião que tudo sabia compreendeu o meu sofrimento e tirou a mão de sobre as minhas pálpebras e os meus olhos se abriram de novo E um manto de trevas impenetráveis se desenrolou súbitamente diante dos meus olhos como diante dos olhos de Tobias quando o Senhor quis provar a sua virtude E eu percebi que a vida fugia dos meus sentidos e caí de face contra a terra com a inércia de um corpo sem vida Caxias 23 de junho de 1845 CAPÍTULO II Vir vanus in superbiam erigitur et tanquam pullus onagri se liberum natum putat JOB I II E eu continuei dizendo Ancião eu falarei na tua presença e derramarei minha alma a teus pés para que escutes as palavras do meu pensamento Porque tu esclareceste a minha alma como a luz às trevas e porque de te ouvir o pensamento me estua nos lábios Porque um poder superior quebra a mudez dentro do meu peito e eu mesmo me desconheço no arrojo das minhas palavras E se elas te parecerem mal pensadas perdoa ao sentir da juventude em favor da minha sinceridade Porque eu falo de coração singelo e na verdade da minha consciência Assim eu falarei na tua presença e derramarei minha alma a teus pés E ele disse Os velhos vêem tudo ao través de um manto de gelo e o seu pensamente gravita incessante em redor do passado essa quadra feliz em que seus olhos gostavam de rosicler da aurora E nas suas palavras traveja o severo da verdade e de involta com o azedume do homem que viveu inutilmente longos anos Porque no fim da sua carreira ele derramou os olhos sobre o caminh0 por onde viajara interpelando a si mesmo na sua consciência e disse o que fiz eu Sublime por certo é a missão do homem sobre a terra sofrer e ajudar a sofrer E eu que fiz Vegetei como a palmeira do deserto cuja copa não abriga o viajol fatigado cujo tronco não ampara a vergonha dos arbusto semimorto que lambe a terra com as folhas amarelas Meus dias tão breves como fogo de palha declinaram como a sombra vivi como o regato sem nome e caio sobre o meu sepulcro como a árvore mesquinha cujo baquear não desperta o eco velador das montanhas Não assim o mancebo Seus olhos são como um prisma seu coração como uma fogueira e o seu génio impetuoso como a torrente Enlevado contempla a natureza e não compreende como tanto frescor ameigasse os olhos das gerações que passaram olhos que pularam em órbitas hoje escavadas pelos vermes dos sepulcros Rei do Universo ele o observa ressumbrando ardimento e majestade fogo da vida lhe anima a cór das faces e do sangue que lhe arde nas veias é de que se nutrem o heroísmo e a magnanimidade Mas entre a severidade do velho e o devaneio do mancebo está a verdade Porque o céu não tem só luzeiros nem a terra só produz flores mas entre as flores está a serpente e com os luzeiros do céu as asas negras da noite e a cauda oblonga do cometa Assim a vida também é uma alternativa de dor e de prazer de luz e de trevas de esperança e desesperação Porque ela é semelhante a tela urdida de cânhamo e de seda onde igualmente se encontra aspereza e brandura Assim pois eu falarei na tua presença e tu pesarás as minhas palavras e a força do meu discurso III Como falas tão seguro de ti mesmo quando só Deus é infalível Ou por ventura asilas no peito a verdade sómente como na alêmpada do Tabernáculo óleo puríssimo e sem mistura Falas do futuro como se houvesses lido a palavra do livro eterno onde a Providência lavra os seus decretos Falas do presente com a presciência do futuro e as tuas palavras são como o vinagre que se misturou com o fel A um povo recente e cheio de vida chamaste caduco e breve Aos vícios da juventude mas de nobre e de arrojada juventude apelidaste princípios de decadência Aos seus erros aos preconceitos que lhe são inerentes filhos da ignorância ou da inexperiência julgas filhos de más entranhas e de intenções danadas Observaste atentamente a multidão dos seus vícios e não atentaste na força da sua vitalidade Viste que a aurora se ressentia de noite trovejada e não julgas que o sol ao meiodia possa esplender magnífico e fulgurante Ancião mentido será o teu vaticínio como carnes de um falso profeta Porque uma infinidade de mancebos se ergueu diante dos teus olhos como um bando de voláteis de sob os pés do viandante que vai distraído por meio da floresta sem caminho E eles se ergueram bons de vontade simples de coração e ardidos de inteligância e vão caminho do progresso a passos de gigante Eles marcham rápidos como a corrente da catadupa como a bala inverossímil e ai do que ousar interporselhes Eles galgam montes e precipícios como os pombos do Levante como os corcéis da Ucrânia como a zebra indomável Que mole pois poderá interceptarlhes o caminho ou que braço válido e musculoso poderá retêlos na carreira desassombrada Ancião folgo de crer que será mentido o teu vaticínio como fantasmas criados por um espírito exaltado no ardor da febre que o devora IV E o velho me tornou com um sorriso cheio de inefável doçura Meu filho a verdadeira ciência não se colhe dos livros ela vem com a meditação A meditação essa filha do céu que desce sobre o coração do solitário tão silenciosa e docemente como orvalho noturno sobre o cálex de uma flor Rainha grave e madura que não traja o ouro pel da imaginação que não se adorna com pedrarias porque ela é sublime na sua simplicidade majestosa no recolhimento do seu porte Esse livro dalma que vós outros mancebos não consultais porque é austero e cheio de rigidez nos seus ditames e porque não vos fala a linguagem acalorada e veemente das paixões Perguntas que braço os poderá reter ou que mole interceptarlhes o passo Quem mancebo Será o tempo que passa veloz e fugaz como a sombra será a folha escorregadia em que pode resvalar o pé do gigante Será a vontade daquele que marcou os caminhos da aurora e que por um invento maravilhoso suspendeu o mundo nos ares Daquele que derrama a luz sobre a terra que dirige a harmônia dos astros que ao sol disse vai incessante e ao mar acabarás aqui Que ao homem disse caminha mas não lhe fêz saber os limites da sua viagem porque a sua Providência está com eles e os leva como o guia conduz ao cego como os olhos guiam a criatura V E não sois vós como o cego de nascimento que não compreende o que é a vista nem outra existência além da sua Sabeis por ventura que outros melindrosos sentidos terieis se Deus os entornasse sôbre vós com mão dadivosa de padrinho sobre o regaço de noiva recémcasada Não e todavia vós dizeis na vossa consciência a razão é a só motora do homem e eu andarei confiado nela pelo caminho da vida E andais andais semelhantes ao coveiro que se alumia com uma luz vacilante tropeçando a cada momento nas pedras dos sepulcros Insensatos pois a luz que vacila não é a primeira que diz aos olhos dos que a vêem que ela está prestes a falecer Insensatos pois a mesma razão não vos diz que ela é insuficiente para guiarvos no caminho da vida Certo porém vós cerrastes os vossos olhos para não verdes e os vossos ouvidos para não ouvires semelhantes ao avarento que não escuta o gemido da miséria nem as preces do infortúnio sentado no mantalote do arcaz abaulado de preciosidades VI E eles vão caminho do progresso a passos de gigante Quem volo disse Por ventura basta sobrepormos um dia a outro dia um ano a outro ano e um século a outro século para avançarmos em civilização Se não chamais Progressista ao homem que vai servilmente colocando os pés sóbre as pegadas de outrem como chamais grande ou progressista ao povo que só imita Ao povo que a êsm0 adota dos estranhos usos leis e costumes às vezes do pior que há entre eles e que deles passa e vós perpetuais A nacionalidade que é dela O característico de um povo que é dele Não sabeis vós que a planta exótica perde o mais excelente de seu aroma e que a roseira dos Alpes produz espinhos plantada em vales Dirvosei que as nações se melham os indivíduos E se milhões de indivíduos morreram sem nome também foram povos cujos nomes se deliram dos anais da humanidade E como existiram homens sem génio povos também existirão sem ele Porque eles dirão em sua indolência Porque plantarei um pomar se não hei de provar dos seus frutos E o mesmo dirão vossos filhos e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos e não plantarão o pomar E dirão mais no seu egoísmo Se eu incendiar esta deveza ainda me fica sombra para me asilar na calma do verão E o mesmo dirão vossos filhos e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos e incendiaráo as suas devezas E direi mais Não construirei uma ponte sobre este rio porque uma árvore colossal caiu sóbre elé a flor da água e que me importa que o seu leito se encha de areias e que não haja comunicação entre os homens que habitam a sua nascença e os da sua embocadura E o mesmo dirão vossos filhos e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos e o tronco permanecerá à flor dágua e o seu leito se encherá de areias e não haverá comunicação entre os homens que habitam a sua nascença e os que moram na sua embocadura VII Se quiserdes atravessar o oceano construireis primeiro um navio e a sua construção esgotará a vossa paciência Cercareis árvores gigantescas alisareis seus troncos e depois ficarão expostas ao sol e isto leva tempo Dareis uma têmpera vigorosa aos vossos alviões e às vossas alavancas preparareis os instrumentos e as máquinas de escavação e isto leva tempo Cavareis a terra e dela estraireis metais para a vossa obra e os moldareis aos usos para que os heis mister Plantareis linha e virá o tempo da colheita tendes depois de o secar ao sol de o maçar cansando os músculos dos vossos braços de o cardar em dentes de ferro de fiar longos fios de tecer longas teias de preparar cabos e amarras e isto leva tempo Tereis de aplainar a madeira de juntar suas tábuas fortemente preparareis tudo apprendreis Matemática Mecânica Geografia e Astronomia e o largareis do estaleiro E por fim o poreis em lastro para que ele não mostre a quilha e obedeça ao leme e então vos aventureis sobre o oceano PROSA MEDITAÇÃO CAPITULO II Fazeis assim também com o povo preparai tudo de antemão porque ele carece de mais cuidados do que no navio e o seu caminho é mais vago e mais perigoso que o oceano Se quereis plantar utilmente adubai vossos campos se quereis colhêr muito esperai a estação da messe Se quereis fundar um edifício cavailhe os alicerces na razão da sua altura Porque não haveis de plantar em solo indomado nem haveis de colhêr frutos temporãos nem edificar sôbre a areia Fazei assim com o povo dailhe idéias do útil e do justo e ele irá caminho do progresso Mas isto leva tempo e vós o não quereis perder para o haverdes em tresdôbro Não o deixeis ir à mercê do destino como um navio sem lastro Instruio primeiro e elé será livre Instruio para que se não diga que edificastes em terra sáfara que quereis colhêr frutos temporãos ou que edificastes sôbre a areia Dailhe Deus por base da sua instrução porque Deus é o princípio da moral e da justiça e sem moral e sem justiça que será do povo Dailhe Deus por base da sua instrução porque Deus é o caminho a luz e a verdade e fora dele não há progresso VIII Mas vós dissestes no vosso orgulho O povo manda o povo é soberano e eu governo o povo Porque eu lhe infundo respeito e ele aninha minhas palavras no fundo do seu coração como em vaso cerrado um licor precioso Porque eu o intimido com a minha presença e ele se curva diante de mim como um tigre diante do homem que o soube domar Porque eu não censuro os seus vícios nem repreendo as suas maldades mas protejo vícios e maldades que me não prejudicam e domino por via da lisoja E o povo disse Se eles nos lisonjeiam é porque somos os mais fortes e se sofremos por que também não faremos sofrer Não nos disseram eles O homem é livre E o que é ser o homem livre se não pode fazer aquilo que lhe aprouver semelhante à cria do onagro Não nos disseram êles Todos somos iguais somos todos irmãos E o que é sermos iguais se não formos todos aferidos pela mesma medida O que é sermos todos irmãos se não é que devemos ter todos uma igual porção de bens como se partilha a herança de um pai pelos filhos que lhe sobrevivem Eles o dirão e no aferimento lançarão na balança todos os seus vícios e turpitudes para contrastar à ciência e virtudes daqueles de quem se dizem iguais E para que o fiel da balança os não atraçãoe no dia em que reinar a soberania do povo êles interporão a lâmina da sua espada e ai do que ousar ir contra à força porque ela é soberana E os que julgavam dominálo por todo o tempo da sua vida serão os primeiros ludibriados escarnecidos e martirizados porque êle se lembrará que obedeceu passivamente e serlheá grato saborear a vingança do escravo feito senhor Serlheá doce a vingança e a crueldade porque ambas são instintos da fera e tal como a fera é o povo que despedaça a obediência qual o tigre aos varões da sua jaula IX Vós introduzistes um cisma entre o povo iludindoo com palavras dobradas entusiasmandoo com lábios dolosos Desteslhes esperanças de uma néscia utopia assegurastelhes direitos impossíveis de se realizarem Nas trevas e em silêncio preparastes um veneno subtilíssimo com uma máscara de vidro no rosto Nas trevas e em silêncio aguçastes o punhal da discórdia e dissestes nós o embotaremos quando nos aprouver E quando nos fór mister rejeitar a sua força nós lhe poremos um dique como à fúria do oceano e êle se conterá nos seus limites Mas porventura pode contar com a vida aquêle que prepara venenos em tamanho segrêdo como o que fabrica moeda falsa Não será tão forte o veneno que despedaçe a máscara de vidro do seu rosto ou será ela tão hermeticamente fechada que o alquimista não deve ter receio de aspirar sequer um átomo desse licor pernicioso E o alfageme ou cutileiro que burne uma espada ou adereça um punhal pode acaso dizer de convicção esta espada não se empregará no meu corpo nem êste punhal se há de tingir do meu sangue Pois em verdade vos digo que será o primeiro escarnecido ludi briado e martirizado aquêle que se julgar dominador por todo o tempo da sua vida Porque o Senhor disse E se algum de vós quiser dominar sôbre os seus irmãos tornarseá o último dentre êles E assim será por todo o sempre porque a palavra do Senhor é eterna X E a voz do ancião morreu nos seus lábios como o apenas perceptível murmúrio da água quando o clepsidra marcou a sua hora derradeira E eu escutei as suas palavras ainda muito tempo depois que êle cessara de falar triaga amarga que em minha alma despertou mil pensamentos dolorosos Mas a esperança me não abandonou neste momentâneo abatimento do meu espírito e eu alevantei a minha voz no ardor da minha esperança e do meu entusiasmo Será como dizeis que me parece que em silêncio e longos anos haveis meditado com espírito sossegado e consciência tranqüila Mas eu alevantarei a minha voz na tua presença porque me quero enriquecer com a tua sabedoria E quem sabe Acaso não resulta o clarão do relâmpago do choque de duas nuvens carregadas de eletricidade opostas Pois talvez que a verdade resulte da imaginação e da experiência a imaginação que é fogo e crê e a experiência que é gēlo e duvida Direi pois A vista humana em que penetraste pode acaso espreitar o segrêdo da abelha ou seguir a germinação da semente no seio da terra Como pois poderá ela aventar o futuro que é mais imperscrutável que o seio da terra e mais opaco que o cortiço da abelha Tu disseste Vós vos lançastes no caminho da vida tão loucos como o corcel generoso em cujos ouvidos mãos de gēnio maléfico houvessem derramado o azougue inquieto E na vossa carreira pasmosa arrastais convosco o povo porque êle vos é mister para as vossas maquinações E para que o povo não sentisse os espinhos de que está irritada a senda por onde o tencionáveis levar mandastes soalhála com tapêtes de recamos triplicados E mandastes pavesar as suas alamêdas com flôres recḗmcolhidas e com arbustos verdejantes trazidos de longas terras para que ao traves delas não visse o povo a terra inculta e a fome de dentes pontiagudos batendo com força uma contra a outra as maxilas emagrecidas E dissesteslhe O vosso caminho é êste e êle seguiu servilmente o caminho que lhe indigitastes porque vós o dominais por via da lisonja pactuando cobardemente com a sua imoralidade E no vosso correr desvanecido não perfazeis um momento qualquer rematado com algum pensamento útil ou grande E embalde vós mesmos procurareis para o futuro alguma obra vossa em que possais descansar os olhos enfraquecidos pela velhice dizendo convosco na vossa consciência Minha vida não foi inteiramente inútil E debalde procurarão vossos filhos pela extensão do vasto Império uma pedra que indique o que seus pais fizeram e à vista da qual pudessem êles clamar gloriosos Nossos pais foram grandes Ancião tu enumeraste escrupulosamente os seus erros e concluíste contigo o povo vaanglorioso e impávido não pode durar muito Eu porém levantarei a minha voz na tua presença e derramarei meu pensamento na tua alma para que escutes a minha voz e para que respondas ao meu pensamento Porque tu esclareceste a minha alma e eu me quero enriquecer com a tua sabedoria XI Escutame pois O homem que pela primeira vez entra em Pisa e vê o pendor da sua tôrre sôbre que ainda não ouviu dissertar dirá com a sua orgulhosa ignorância a tôrre cairá E o mesmo dirá aquêle que de sôbre a tôrre de Asinelli vir a Gravisenda curvarse para o seu lado como um gigante em postura humilhada aos pés do que o domina E pasmará se lhe disserdes que muito tempo se consumiu com a Gravisenda e mais de dois séculos com a tôrre de Pisa E subirá de ponto o seu pasmo se acrescentardes que a obliquidade dessa tôrre causada por terremotos resiste há muitos séculos à foice do tempo à intempérie das estações e às violentas comoções do terreno Porém o arquiteto reconhece que ela é tão estável quanto o podem ser obras de homens e que a sua força aí está inteira no equilíbrio do seu centro de gravidade E as suas mãos delicadas adornavam a frecha com penas de mil cores e embutiam a maçã com relevos trabalhados E os seus lábios entoavam canções de guerra tão enérgicas que exal tavam o espírito dos homens como se foram taças de cauim fortíssimo E ai do cobarde porque nunca a flor da acácia desceria sôbre a sua fronte orgulhosa deitada pela mão da donzela no ardor dos seus amôres E ai dêle porque nunca a môça enamorada viria debruçarse sôbre o seu leito para arrancarlhe com mão trêmula a frecha que teste munha a sua valentia E ai dêle porque a terra é dos valentes e o cobarde não tem ingresso no banquete dos céus onde os velhos contam as suas proezas e folgam de avistar densas florestas onde pula a onça mosqueada e o tigre reluzente II E a visão levoume insensivelmente dos homens da natureza aos que chamamos civilizados Uma infinidade de navios aportavam a todos os pontos do vasto Império como se dos fundos mares surgissem os gigantes monstros que ai dormem séculos sem fim nas grutas imensas de coral tapetadas de sargaço E êsses navios tinham o pez do casco todo cortado e amarelecido com o salitre das ondas e o velame roto pela fúria da tormenta e os cabos puídos com o forcejar contínuo dos marujos E nesses barcos vinham quase tantos homens de tripulação como nos navios monstros da antigüidade suntuosamente construídos por Ptolomeu e Philopator E quem visse tantos homens apinhados sôbre o convés emaranha dos pelos cabos guindandose pelos mastros ruidosos confundidos baralhados julgaria ver êsses navios portugueses da carreira da Índia que o viajante encontra na solidão dos mares Não eram homens crentes que por amor da religião viessem pro pôla aos idólatras nem argonautas sedentos de glória em busca de renome Eram homens sôrdidamente cubiçosos que procuravam um pouco de ouro pregando à religião de Cristo com armas ensangüentadas Eram homens que se cobriam com o verniz da glória destroçando uma multidão inerme e bárbara opondo a bala à frecha e a espada ao tacape sem gume História cioso da liberdade em que nascera morreu nobremente de morte ignominiosa por ordem de um Albuquerque E a Europa inteligente aplaudiu a nação marítima e guerreira que ao através do oceano fundava um novo Império em mundo novo vician dolhe o princípio com o cancro da escravatura e transmitindolhe o amor do ouro sem amor do trabalho E os valentes soltaram o grito da vitória e em lembrança dela quise ram assentar uma cruz no solo por êles conquistado E no chão que êles cavavam para o assento da cruz encontraram uma veia de ouro que os distraiu do seu trabalho E a cruz ficou por terra em quanto êles espalhavam pródigamente o azougue fugitivo para descobrir o depósito do metal precioso E viu Deus que a nação conquistadora se tinha pervertido e mar coulhe o último período da sua grandeza E deulhe uma longa série de anos para que ela lastimasse a sua decadência e conhecesse a justiça inexorável do TodoPoderoso Ela tornarseia fraca porque tinha escravizado o fraco incrédula porque tinha abusado da religião pobre porque sobremaneira tinha amado as riquezas e curvada sob um jugo de ferro porque tinha sido tirana E tôdas as nações do mundo passariam diante dela comparando a sua grandeza doutros tempos com a sua miséria de então E ela tornarseia o opróbrio das gentes de maravilha que tinha sido desouça difendido cio social III E os vencedores exultavam com a sua glória Tranquilos êles haviam adormecido no regaço da vitória prodigali zando desprezo à nação conquistada E a nação conquistada sentiu enraizarse cada vez mais profunda mente em seu coração a malquerença de rivais e o sentimento do ódio que alguns míopes chamaram inveja E entre a suposta inveja de uns e o despeito mal disfarçado de outros crescìa o desejo da vingança como a planta de fácil crescimento no chão em que ela sói nascer E ela apareceria com o andar dos tempos tão horrorosa como o rebate noturno em cidade sitiada ou como os sons freqüentes do bronze que apregoa o incêndio pelo meio da noite E ai do que se julgasse invencível ou que houvesse usado do des preço como de uma arma defensiva adormecendo desdenhosamente na víspera da batalha E ai do valente e corajoso que despreza a força do homem ou da natu reza por insensível que seja esta por desprezível que pareça aquela Porque éle será como o navio imprudente que despreza o grão de areia onde se irá encalhar ou como a baleia orgulhosa que zomba da atração poderosíssima do Maelstron IV E os vencedores conheceram que para subjugar as opiniões de um povo é preciso gênio além de incomparável força bruta E conheceram também que desprezar o vencido é excitar um esforço magnânimo no gladiador que arqueja sobre a arena do anfiteatro E él que poderia morrer vencido exalará o derradeiro alento sol tando o grito de triunfo E assim aconteceu de feito Uma voz sonora e retumbante partiu do Ipiranga e foi do mar aos Andes e do Prata às margens do Amazonas E todos se ergueram violenta e instantâneamente como um cadáver por virtude do galvanismo E soltaram o mesmo brado com voz entusiasta e forte e travaram das armas com a impavidez do guerreiro e com a esperança do homem que pugna em favor da justiça E a corrente que prendia um Império a outro Império fraca com o seu comprimento estalou violentamente em mil pedaços E os dois Impérios soltaram dois gritos simultâneos era de um lado o despeito do caçador que vê fugirlhe a presa e do outro o con tentamento da águia quando pela primeira vez ousa fitar a luz do sol e a balançarse nos campos incomensuráveis do espaço E os homens que eram livres regozijavamse com a vitória do povo emancípado e os que eram tiranizados afiavam com mais ardor a espada da liberdade nas escadas dos potentes E a Europa da outra extremidade do Atlântico aplaudiu o arrojô do povo nascente semelhante ao militar encanecido nas fadigas da guerra que sorrise de prazer aos altos feitos do novel lidador que tão grande se revela em seu começo A extremidade da corrente que era soldada ao Império conquistador era um espigão adentado que ao destacarse lhe arrancou as entranhas das províncias é sobretudo necessário que o homem se convença da sua própria dignidade e tenha conhecimento da moral e da religião 1 VI E a minha visão quebrouse repentinamente e os meus olhos divagaram por toda a extensão do vasto Império E como insetos embelezados em redor do clarão vivíssimo de alâmpada noturna ênes fixaramse fascinados sôbre uma cidade populosa que lá se erguia em uma das suas extremidades E a cidade era soturna e silenciosa e erguiase tão soberba como a palmeira da várzea entre arbustos mal nascidos Nessa mudez apenas se ouvia o passo compassado das suas vigias e o grito das sentinelas bradando alerta de espaço a espaço E em uma das suas extremidades erguiase um castelo como que isolado das outras habitações por um sentimento de respeito E ao través das janelas amplamente rasgadas désse castelo viase a luz dos candelabros de prata e de ouro e de lustres de mil faces que refrangiam a luz com côres vivas e brilhantes É êsse luzeiro repercutindo nas vidraças coloridas das janelas amplamente rasgadas derramava sôbre os tetos distantes e sôbre a praça deserta uma luz amortecida e avermelhada E assim no meio de trevas tão espessas era como um cometa no espaço ou como a fogueira do atalaia ardendo sôbre um monte elevado donde todos a pudessem ver E a minha vista passando ao través do castelo fortemente construído viu na sala esplêndidamente iluminada muitos homens que se entretinham como em conselho E êses homens antípodas dos Diógenes e Cincinatos trajavam vestidos magníficos e adereçavamse de brilhantes e de jóias E êles praticavam entre si sôbre os seus interesses e dispunham do povo em quanto que o povo dormia tranqüilo na sua indolência VII E um deles que era môço e ardente e tinha tódas as ilusões da virtude e da mocidade alevantouse e disse 1 Até êste ponto encontrase êste trabalho nas pp 101 125 e 171 do Tomo Primeiro do Guanabara sendo o que se segue inédito bem como alguns trechos dêstes capítulos que foram omitidos na parte publicada nesse jornal A H L Longas horas passaste contemplando a nitidez de uma noite serena e a tua imaginação encandecida te fèz escutar a harmonia desconhecida dos astros como sons de harpa vaporosa esquecida na amplidão das selvas E durante êse longo imaginar não deste um passo no caminho da vida porque então um grito de dor haverteia chamado à realidade E revolverias o pó para encontrares o espinho que te fèz baixar de tão alto ou o verme desprezível que pode quebrar tão funda meditação E assim é com razão porque a vida do homem é na terra e quem como Ícaro se arroja às nuvens como êle arrisca perderse E o que a glória senão orgulho do barro que não quis perecer na terra que êle é filho O que é ela senão a vaidade do homem como a que sôbre os restos polutos de um cadáver construi um monumento suntuoso O que é ela senão o eco de um nome que cada nova geração vai repetindo cada vez mais duvidosamente até sumirse no olvido E quantos mimosos da fortuna não são hoje preconizados que amanhã terão em recompensa dos seus feitos desdouro e labéu E quantos outros estigmatizados pelos nossos avós na sua coluna de maculado renome não se sentarão à direita do Senhor que os terá escolhido partícipes da sua imortalidade Ê por isso que Deus disse sômente aos homens vivei e não lhes deu o renome como fim a que deviam tender em suas ações Porque os juízos da terra são falsos e filhos de paixões e não merecem o sacrifício dos homens nem a aprovação de Deus VIII E o outro velho levantouse e disse Maravilhosamente falou nosso irmão e as suas doutrinas são filhas da razão e da experiência Eu porém falarei em parábolas porque elas são símplices como a verdade e tódas as inteligências podem alimentarse com a sua substância Um dos poderosos da terra lançou os olhos em redor de si e viu que os seus rebanhos não tinham número e que as suas terras não tinham medida e que um exército de escravos se derramava em redor da sua habitação Viu que as suas terras eram férteis os seus rebanhos médios e os seus escravos humildes Despediram pois os operários e a obra ficou apenas começada e ninguém se quis aproveitar dela Sômente um pobre velho cortou algumas palmas e sôbre um dos andaimes cobriu no meio do edifício uma parte da área para que lhe servisse de abrigo E os que passavam maravilhavamse desta monstruosidade e diziam sorrindo Ô que quer dizer um cágado às costas de um elefante Mas os herdeiros conheceram por fim que nessa obra talhada tanto às largas havia proporções para um palácio magnífico E mandaram chamar os operários para o rematar porém o arquiteto tinha morrido e ninguém houve que se atrevesse à correrlhe uma abóbada E o edifício ao mesmo tempo palácio e tugúrio permaneceu incompleto e os homens continuaram a passar por diante dêle E como não tivessem a imaginação da têmpera daquela que o tinha concebido sorriamse do elefante e do cágado tão visivelmente casados Assim falou o velho e a sua parábola tinha um sentido alto e profundo que os homens não compreenderam e em que êles não quiseram refletir IX Então levantouse o terceiro velho e disse Opinaram nossos irmãos que a primeira lei humana era viver sem curar da glória e a segunda ser útil sem curar da grandeza Porém procurarmos a felicidade de um povo como o nosso que ignora os seus verdadeiros interesses seria arriscarnos a sermos apedrejados por êles Porque seria mister torcêlo para tornálo a meter no caminho da civilização e êles clamariam contra o despotismo que tentasse pôr cȏbro às suas licenças Bem seria encanar um rio cujas águas transbordam porém não será crime deixálo entregue às suas próprias forças embora ensope os campos Deixemolo pois correr a seu talante e não curemos dêle para não sermos apupados pelo bem que lhe tencionamos fazer Curemos de nós sômente porque é êste um século interesseiro e egoísta e nós não devemos ser excepcionais nem podemos ser melhores que todos inextinguível entre os homens que são nossos irmãos por interesses e os que o são por nascimento Porque nós seremos necessários e o nosso domínio se conservará ileso com o furor das turbas E o povo nos bendirá quando extinguirmos um dos fachos da revolta que nós mesmos tivermos acendido E o nosso peito cobrirseá de condecorações e de honrarias e por todos seremos aclamados os primeiros da nossa época e os salvadores da Pátria E os homens de boa vontade afastarseão das nossas deliberações e ninguém haverá que marche de par conosco E os velhos ergueramse dos seus assentos de marfim e clamaram Preguemos as revoluções como princípio de progresso e acendamos o facho da discórdia E o incêndio se ateará por todos os ângulos do vasto império e não haverá elemento na natureza que o possa extinguir e o nosso império durará tanto como êle Então um sorriso alto e mofador rebentou por tôda a sala e foi de um ângulo a outro do liso pavimento aos arabescos intrincados da abóbada E os velhos encararamse estupefatos e emudeceram de torpor E um dentre êles levantou a voz no meio deste silêncio e perguntou O Rei que faz E todos repetiram a mesma pergunta com ansiedade visível O Rei que faz E o que tinha falado em último lugar levantou silenciosamente um canto dos rases que cobriam as paredes do aposento E viuse além do aposento o Rei que tranqüilo repousava em um leito magnificamente adornado E o que tinha levantado o canto dos rases disse em voz cavernosa O Rei dorme E os rases desceram lentamente como uma folha de pergaminho que a custo se desdobra e vieram morrer sem eco nos tapêtes felpudos da sala E a mesma risada rebentou com mais força e ainda mais expressiva e perdeuse vagarosamente pelos corredores que em meandros inextricáveis cortavam o aposento PROSA MEDITAÇÃO CAPÍTULO III XI Então êles prepararam matérias áridas e combustíveis e as ligaram estreitamente à maneira de fachos E êstes fachos êles os mergulharam em uma espécie de pez grego cuja chama não podia ser apagada nem com água nem com vinagre Então acenderam um dêstes fachos num dos bicos dos candelabros de prata e o arremessaram em cima da cidade E o povo e o Rei dormiam tranqüilos e os atalaias fascinados com a luz das suas fogueiras não viram êsse meteoro aziago que alumiaiva as trevas no meio da noite Porém viramno os homens dos campos e correram tumultuosamente acudindo ao convite de sangue que os Grandes lhes faziam E o incêndio levantou estrepitosamente as suas línguas de fogo e as casas estalavam com fragor e os homens e mulheres corriam delirantes pelo meio das ruas envoltas em fumo e alumiados pelo revérbero das chamas E o canhão ajuntou a sua voz medonha e retumbante ao concerto horroroso dos mártires e dos carrascos E o sangue corria pelas ruas e as espadas estavam tintas em sangue e por tôda a parte havia sangue Era uma cena de pavor de luto e desespero de pranto e de glórias E por tôda a extensão do vasto Império houve um estremecimento pressago de que cedo ou tarde seriam também êles vítimas da mesma crueldade XII Uma mão ainda mais fria do que o meu corpo que transudava de terror calcou o meu ombro e eu senti uma impressão dolorosa como se os meus ossos se partissem E o ancião me disse A vossa política é mesquinha e vergonhosa e milagroso é o homem que sai dela limpo de mãos e de consciência Os Delegados da Nação que não contam com o voto aturado e livre do povo vendemse impudicamente Porque o vosso povo que não tem consciência por lhe faltar a instrução aceitará o candidato que lhe for apresentado por um Mandarim ou por um chefe de partido às tontas improvisado Ao compararmos a parte II do Capítulo Terceiro de Meditação de Gonçalves Dias e o capítulo X Cristão da Quarta Parte de O Guarani de José de Alencar estamos a analisar duas obras que surgiram durante a famigerada escola do romantismo Porém ao passearmos pelas páginas dos livros percebemos o insurgir de enormes contrastes no que diz respeito à abordagem dos autores estando diante daquilo que chamaremos a história da nação brasileiro Como é de conhecimento comum essa história começou muito antes da chegada dos portugueses em 1500 Até então tribos das mais diversas conviviam pacificamente ou não sob seus próprios costumes hábitos crenças e tradições Houve um dia no entanto em que despontaram do mar caravelas tal como monstros a fim de desbravar Mas o quê exatamente É esta a mesma indagação que permeia o texto referido de Gonçalves Dias Havemos de reconhecer que a missão portuguesa tinha dois mastros um apontado rumo a levar o cristianismo àqueles que não o conheciam e outro ao acúmulo de riquezas riquezas estas que cintilavam ao parecerem infinitas despertavam a mais inclemente cobiça humana por restarem como que de ninguém sem títulos de dívidas nem proprietários oficiais Separavaos de tais tesouros contudo um único detalhe ou muitos os guardiões daquela terra que era para eles também do mais alto teor do sagrado Sob este prisma Gonçalves Dias diferese de todos os seus companheiros literatos do período Enquanto as implicações da escravidão parecia ser tratada como um tabu intocável para uma sociedade já estabelecida a mesma questão estava longe de ser resolvida e incomodava ao escritor tal qual ferida aberta ganhando assim traços de expressões através de sua pena Gonçalves Dias atina justamente contra aqueles que caíram de seu ofício missionário a partir do momento em permitiram que os seus corações fossem guiados somente pela materialidade dos tesouros das terras do Brasil Viriam a ser os outros homens não civilizados os obstáculos do progresso que deveriam ser removidos se necessário fosse tudo em nome de um bem maior ou pelo menos de maior abastança por parte dos impositores A crítica severa do poeta levantase ainda expondo a patente contradição da mensagem oficial da Igreja que em seus documentos até podia assegurar a igualdade de condição natural inerente a todos os homens mas na prática sob reger dos colonos era preterida esquecida e ridicularizada pelo avançar das políticas escravocratas Ainda em alusão ao tema Gonçalves Dias estabelece uma metáfora em que compara um espelho o qual mesmo quando posto em mil pedaços ainda consegue refletir em cada um deles praticamente a totalidade do objeto em cuja vista está Por óbvio temse aí uma bela descrição de como se deveria enxergar originalmente a individualidade de cada ser humano enquanto advindos de um lugar comum Por outro lado temos na obra de Alencar uma outra perspectiva que nos leva a novamente refletir acerca da multiplicidade que tomaram vez no processo de ocupação portuguesa Que os combates e excessos existiram disso não há dúvidas No entanto seríamos de igual modo ingênuos se acreditássemos que não houve qualquer aceitabilidade pacífica por parte dos nativos Como citamos no início deste trabalho as tribos muito diferiam entre si e aquilo que poderia configurarse no opróbrio para uma poderia ser vista de com admiração por outra É assim no texto de Alencar quando o índio Peri não somente aceita como também ama a Cecília filha de senhores portugueses Chega o ápice do romance e uma tribo indigena se põe em ataque contra a casa dos senhores Contrariando o roteiro padrão Peri fazse aliado dos brancos e planeja a eles um exímio plano de escape Importa dizer que para que lhe fosse confiado levar Cecília em segurança até o Rio de Janeiro Peri teve que aceitar tornarse cristão em uma resolução de poucas palavras que ele parece ter aceitado somente para cumprir o seu intento de guardar a vida da moça que amava No fim do livro um debate entre os dois jovens volta a ocorrer Tendo Cecília tornadose órfã por ocasião do ataque tudo que eles tinham eram um ao outro uma vez que o índio também havia renunciado a seu lugar de origem pela família portuguesa Cecília o convida para morar junto dela na cidade Peri rejeita volta a afirmarse selvagem e apesar de reconhecer o amor recíproco da moça teme a maneira preconceituosa pela qual será visto pelos demais brancos os quais ainda não haveriam de ter sido conquistados pelas sumptuosas demonstrações de caráter e nobreza de sua parte Assim é a menina quem cede aceitando viver fosse na floresta ou no deserto mas ao lado de Peri Desse modo na comparação entre as duas obras percebemos pontos de vistas diferentes de realidades fragmentadas mas que reconhecidamente mostramse expressões da verdade em seus respectivos cenários De um lado Gonçalves Dias que mesmo embotado no romantismo mostra ferrenhos traços de realismo inclinandose à crítica social Do outro temos José de Alencar descrevendo uma benevolente família de colonos mas que no fim cede a superioridade moral ao herói nacional do escritor