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Psicologia Social

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13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 1 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Luiz Renato Paquiela Givigi Descrição A construção histórica da loucura enquanto problema social e suas diferentes representações ao longo do tempo Propósito O estudo das diferentes formas de representação da loucura bem como dos modos de se relacionar com ela ao longo da história é de natureza essencial para a formação dos profissionais da área da saúde uma vez que em seu exercício profissional eles serão os principais responsáveis por garantir o direito universal à saúde por meio de uma relação de cuidado não excludente baseada no respeito à diferença e à dignidade humana 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 2 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Objetivos Módulo 1 Emergência da questão social da loucura na história do ocidente Reconhecer as diferentes formas de emergência da questão social da loucura na história do ocidente Módulo 2 Mudança no modelo de atenção psiquiátrica Analisar os principais pressupostos de mudança no modelo de atenção psiquiátrica bem como o contexto de criação dos atuais dispositivos de atenção à saúde mental no Brasil 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 3 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Introdução Embora tenha sido vitoriosa em vários aspectos com diversos avanços no campo cultural jurídico e da assistência a Reforma Psiquiátrica é um processo inacabado Isso quer dizer que há ainda muito a construir tanto no campo das Políticas Públicas e das estratégias de atenção quanto no campo da pesquisa e da formação profissional Mas a importância do estudo da trajetória do louco da loucura e de suas instituições ao longo da história não se justifica apenas pelo aspecto inacabado do processo de Reforma Psiquiátrica pois a questão social da loucura não se restringe a aspectos meramente técnicosassistenciais Por estar diretamente envolvida com questões culturais econômicas e sociais a mudança das formas de lidar com a loucura é algo que se encontra em ameaça constante uma vez que são muitas as forças que dela pretendem se apoderar a fim de explorála economicamente eou relegála novamente a um sistema de isolamento e exclusão É nesse sentido que o estudo da loucura e das formas de lidar com ela é importante pois estudar a loucura numa perspectiva histórica é buscar conhecer a transformação desses olhares ao longo do tempo para entender como chagamos a ver o que vemos hoje e para que não voltemos a reproduzir determinadas práticas do passado 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 4 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml 1 Emergência da questão social da loucura na história do ocidente Ao final deste módulo você será capaz de reconhecer as diferentes formas de emergência da questão social da loucura na história do ocidente A loucura como questão social Estudar o tema da loucura a partir de uma perspectiva histórica requer inicialmente um esforço de distinção entre a loucura e aquilo que hoje conhecemos como doença mental A associação entre loucura e doença nesse caso a doença mental constituise em um dado recente de nossa história 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 5 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de doença mental FOUCAULT 1968 p 75 Mesmo antes de termos acesso aos dados históricos de todo o processo que deu origem à associação entre loucura e doença podemos a partir de um esforço de imaginação pensar que diversas sociedades em diferentes momentos históricos trataram de formas distintas a questão da loucura associandoa a atributos ora positivos ora negativos a depender das questões culturais econômicas e políticas que estruturavam tais sociedades Vamos conhecer um pouco mais A loucura já foi associada a certos dons sobrenaturais à liberdade à criatividade artística à genialidade intelectual à pura diferença à diferença radical à verdade à sabedoria do destino à alegria à adivinhação ao dom de guiar eou liderar determinado grupo entre outros A esse respeito basta pensarmos na ascensão de um indivíduo à posição de xamã em determinadas culturas na qual se requer deste uma série de manifestações alucinatórias convulsivas e delirantes capazes de explicitar e até mesmo comprovar seus dons de liderança Também devese considerar grandes pensadores como Antonin Artaud 1896 1948 e Friedrich Nietzsche 18441900 artistas consagrados como Vincent van Gogh 1853 1890 e Jean Michel Basquiat 19601988 ou mesmo matemáticos como John Forbes Nash 19282015 cuja história deu origem ao premiado filme Uma mente brilhante2001 sucesso de crítica e bilheteria no Brasil e no mundo Positivamente 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 6 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Vincent Van Gogh famoso artista que apresentava sintomas que apontam para transtorno mental A loucura pôde ser associada a possessões demoníacas à bruxaria ao descontrole à irresponsabilidade à agressividade à violência à periculosidade à criminalidade à preguiça à improdutividade à incompetência à desrazão à alienação mental e mais contemporaneamente à doença e aos transtornos mentais Se levarmos ainda mais adiante esse nosso exercício de imaginação podemos pensar que para cada tipo de associação ou consideração social da loucura haverá também maneiras específicas de se relacionar com ela As fogueiras da inquisição os campos de trabalho forçado a tortura a prisão as sangrias e as purgações o manicômio as mutilações cerebrais os castigos de toda sorte bem como as modernas contenções medicamentosas são apenas alguns exemplos de práticas sociais dirigidas à questão da loucura quando associada aos aspectos negativos descritos acima A contenção medicamentosa é uma prática que muitos pacientes ainda sofrem sendo submetidos a fortes medicamentos e altas dosagens que não só controlam seus sintomas mentais como também inibem sua vontade afetividade etc Negativamente 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 7 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Existe uma boa quantidade de filmes e documentários que retratam as formas peculiares ou melhor dizendo preconceituosas de conceber a loucura Relacionados especificamente com o que descrevemos acima seria de fundamental importância que você tivesse acesso a duas obras consideradas obrigatórias a esse respeito São elas o já clássico filme de Laís Bodanzky Bicho de Sete Cabeças 2000 e o documentário de Daniela Arbex e Armando Mendz Holocausto Brasileiro 2016 Bicho de Sete Cabeças possui uma importância especial sobretudo por ter servido como disparador de diversos debates no contexto da aprovação da Lei nº 10216 de 2001 conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira Seu conteúdo versa sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental Capa do livro que baseia o filme Holocausto Brasileiro Já Holocausto Brasileiro demonstra de maneira contundente até que ponto a racionalidade cientificista moderna representada nesse caso pela figura do saberpoder médicopsiquiátrico pode chegar no sentido da exclusão e da destruição do outro 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 8 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Em suma concluímos após nosso exercício de pensamento que a loucura sempre existiu mas não podemos dizer o mesmo da doença mental ou seja da consideração da experiência da loucura como algo relativo a uma patologia a uma anormalidade ou a uma questão médica Assim a consideração da loucura como experiência patológica tal como a conhecemos hoje diz respeito a um processo econômico político e cultural relativamente novo no que concerne ao que denominamos tempo histórico distinto do tempo de nossa própria existência enquanto indivíduo O conceito de dispositivos de Foucault Segundo Foucault 1972 esse processo só foi possível devido a mudanças que ocorreram na sociedade ocidental e à constituição de uma série de dispositivos de captura e de apropriação do fenômeno da loucura que datam do final do século XVII e início do XVIII Mas o que seria um dispositivo Um dispositivo para Foucault 2014 traduzse como um conjunto dominante e estratégico que comporta discursos instituições arranjos arquitetônicos decisões regulamentares leis medidas administrativas enunciados científicos proposições filosóficas morais e filantrópicas que em um dado momento histórico tem por função responder a determinadas questões sociais de seu tempo No que se refere ao momento em que a loucura passa a ser vista como um problema social a ser tratado um dos principais elementos deste dispositivo será a constituição e o desenvolvimento da medicina mental como campo de saber teórico e prático Esse campo responsável pela construção de toda uma maneira de ver e falar sobre a loucura transformaa nesse caso em doença mental isto é em uma patologia 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 9 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Arranjo arquitetônico seria aquilo que Foucault chamou de instituições disciplinares neste caso representado pelo manicômio baseadas num sistema jurídico calcado na segurança social e na reclusão Seriam também inspiradas por enunciados científicos e medidas administrativas que propõem uma espécie de limpeza e higiene social excludente com prerrogativas morais cujo horizonte é a produtividade e por um sistema filantrópico que justificaria esse processo como um bem que visa à salvação do outro São esses elementos imbricados uns nos outros fortalecendose mutuamente que vão produzir a grande teia que constitui aquilo que Foucault chama de dispositivo de captura da loucura transformada em doença mental E isso de tal modo que como veremos adiante nem mesmo as manifestações dos sintomas poderão ser atribuídas ao que seria a experiência da loucura propriamente dita em estado puro mas sim àquilo que dela foi feito por esses dispositivos processo esse que nos anos 1960 ficou conhecidonomeado como institucionalização da loucura É nesse sentido que Erving Goffman em sua obra intitulada Manicômios Prisões e Conventos vai afirmar que o que a psiquiatria denomina curso natural da doença é na realidade a carreira moral do doente mental AMARANTE 2007 p 54 Da mesma maneira Foucault 1968 p 87 afirma que o que se chama doença mental é apenas loucura alienada Ou seja as ideias as percepções e os sentimentos que temos sobre a loucura e sua própria forma de apresentação se constituem já como um efeito de práticas e discursos que a capturaram historicamente Em outros termos o que conhecemos como loucura hoje diz respeito às forças que se apoderaram dessa experiência ao longo da história como é o caso da constituição do saberpoder médico que a partir do final do século XVII e início do XVIII dela se apropria transformandoa em doença 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 10 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml O saberpoder médicopsiquiátrico como já dissemos está necessariamente relacionado às concepções políticas sociais e econômicas de seu tempo Analogia com a captura histórica do conceito Infância Para que isso possa ficar mais compreensível podemos tomar como exemplo uma outra experiência como é o caso da infância Como demonstrou o historiador Philippe Ariès 1981 a noção de infância bem como a criação de instituições específicas para o cuidado infantil é um empreendimento que tem início apenas no fim do século XVII e início do XVIII Essa criação é efeito dos grandes investimentos políticos e econômicos implicados com a máxima eficiência produtiva de seus corpos momento em que o corpo da criança se torna espaço de disputa do poder Pintura de 1638 de menino com 18 meses O sentimento de infância como denomina o autor diz respeito a um processo histórico político e econômico que tem como consequência uma grande preocupação relativa à formação dos pequenos que doravante saem de seu anonimato para se constituírem como centro de organização econômica das famílias e da vida social burguesa Ainda segundo Ariès 1981 é também nesse período que a criança é destacada do meio adulto e enviada às instituições destinadas à sua educação onde as relações de aprendizado mútuo entre jovens e destes com os adultos dá lugar ao enclausuramento dos primeiros É instituída uma espécie de quarentena engendrando os processos de escolarização e ao mesmo tempo oferecendo visibilidade e sentido ao que denominamos contemporaneamente de infância 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 11 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml É assim que hoje quando queremos saber como vai a vida de uma criança logo perguntamos se ela está indo à escola se tira boas notas se tem planos para ser algo quando crescer que profissão quer seguir etc Isso quer dizer que a forma dominante de experimentar a infância tornouse o modo de vida aluno eterno candidato ao sucesso ou ao fracasso no mercado de trabalho Assim quando pensamos em criança pensamos imediatamente em escolarização num modo de ser aluno A mesma coisa se passa com a experiência da loucura que a partir da construção de processos análogos e contemporâneos um do outro passa a ser atribuída a aspectos negativos como o descontrole a agressividade a violência a periculosidade a improdutividade a patologia entre outros Em suma o fato é que para Michel Foucault 19261984 uma de nossas principais referências na discussão que fazemos aqui a loucura deve ser entendida como uma construção histórica um objeto de percepção produzido por práticas sociais Portanto para esse filósofo ela não pode ser procurada em si mesma pois não existe fora dos discursos que a descrevem e dominam bem como dos mecanismos que a capturam isolam e excluem Breve histórico da questão social da loucura A visão de Foucault O estudo desses modelos de compreensão da loucura é abordado em diversas obras Dentre essas grande destaque é dado à História da Loucura na Idade Clássica 1961 do pensador francês Michael Foucault 19261984 que se constitui no grande marco desses estudos influenciando definitivamente a historiografia contemporânea sobre o tema Antes de mais nada é importante perceber que Foucault estuda a história para pensar o presente Nesse sentido ele quer saber quando a loucura passou a ser pensada como doença entendendo que isso nem sempre foi assim Portanto estudar a loucura numa perspectiva histórica é buscar conhecer a transformação desses olhares ao longo do tempo para entender como chegamos a ver o que vemos hoje 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 12 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Ademais quando nos damos conta de que as coisas não são naturais mas sim produções históricas compreendemos também que podem ser modificadas potencializando assim nossa capacidade de agir no mundo no presente Segundo Foucault antes de ter sido dominada por volta do final do século XVII a loucura estava ligada obstinadamente a todas as experiências maiores da Renascença 1972 p 8 Naquele momento a loucura circulava livremente pelos espaços públicos e era tema recorrente de diversas expressões artísticas como peças de teatro romances entre outros Os loucos conhecidos eram tolerados e os loucos estranhos com comportamentos desviantes e bizarros incluindo os bêbados e os devassos eram confinados em navios numa espécie de exílio ritualístico Essa representação nômade da loucura na Idade Clássica é apresentada por Foucault na Nau dos Loucos ou dos Insanos simbolizando a busca da razão por meio da purificação pela água ou também a entrega do louco a seu próprio destino ou a sua própria sorte A percepção social da loucura era então de uma alteridade pura ou seja a loucura era vista como uma diferença radical genuína experiência originária Os loucos poderiam até mesmo ser pensados como aqueles que diziam a verdade quando todos a escondiam A loucura era também trágica uma vez que se encontrava fora do alcance de interpretações que visavam ao seu controle e submetimento a uma razão universal e abstrata ou a um sentido interpretativo dominante Em outras palavras poderia ser pensada como uma simples desrazão sem conotação médica No que diz respeito aos hospitais nessa época não tinham o propósito de cura ou tratamento mas exerciam a simples função de hospedaria depósito de gente para onde se encaminhava todo tipo de excluídos da ordem social econômica e política Instituições de caridade abrigavam pobres mendigos desabrigados e doentes porém sem nenhuma conotação terapêutica Como relata Foucault 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 13 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml O pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente mas a conseguir sua própria salvação Era um pessoal caritativo religioso ou leigo que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna Asseguravase portanto a salvação da alma do pobre no momento da morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos pobres FOUCAULT 1979 p 102 Hoje quando pensamos em hospital é natural que nos venha à mente a figura do médico com seu jaleco branco uma vez que além de ser o hospital um lugar privilegiado de exercício da Medicina a própria formação do médico não pode ser pensada sem que este passe um bom tempo na instituição hospitalar daí a conhecida figura moderna do médico residente No entanto antes do fim do século XVII e início do XVIII a Medicina era uma prática não hospitalar e o hospital por sua vez ainda não era medicalizado Influências da organização social do trabalho Mudanças de ordem social como o declínio do feudalismo o início da industrialização o crescimento populacional nas cidades o aumento da expectativa de vida e sobretudo as mudanças na organização social do trabalho tornaram menores os limites de tolerância à loucura O trabalho agrícola de subsistência e o artesanato para trocas imediatas tinham como característica a pouca discriminação entre indivíduos considerados aptos ou não aptos para o exercício dessas atividades Esses respeitavam de certa forma o tempo ou o ritmo de cada um Diferente da massificante atividade industrial que requer o controle e a igualização do tempo o trabalho artesanal não apenas requer a expressão singular de cada um como muitas vezes é um fator que valoriza ainda mais o produto final 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 14 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml O trabalho no campo por sua vez respeita o tempo e as leis da natureza cujas regularidade e alternância podem se adequar com certa facilidade às diferentes formas de ser e estar no mundo Porém com o declínio do campesinato e o fim dos ofícios artesanais o modo de produção deixa de respeitar o tempo de cada um e passa a ser submetido aos batimentos do relógio e ao compasso das máquinas tornandose mais discriminatório em ternos de diferenças individuais São os tempos modernos como satirizado e imortalizado por Charlie Chaplin em seu filme homônimo de 1936 É nesse período que o trabalho se torna um valor quase que sagrado Na verdade o que se passa é que esse tipo de produção controlada e disciplinada tão estranha ao tempo da natureza e ao próprio homem como parte desta terá de ser imposta a duras penas Não se trata mais do trabalho como realização ou expressão de um indivíduo ou de um trabalhar para viver mas sim de um viver para trabalhar da busca por uma máxima exploração das energias dos sujeitos pensados agora como força de trabalho ou mão de obra correias de transmissão de uma grande máquina da qual não possui o menor controle 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 15 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Esse tipo de trabalho conhecido apenas nos presídios e nas casas de correção era percebido como algo incompatível pela população e não é por acaso que nessa época ao mesmo tempo em que a Europa enfrentava grande escassez de mão de obra desocupados mendigos e vagabundos passavam a circular em número cada vez maior nas cidades Ou seja esse modo de exploração dos indivíduos da mão de obra era visto ainda como uma forma de escravidão algo bem diferente dos tempos atuais quando a exploração do trabalho passou a ser até mesmo desejada Além dos discursos que visavam glorificar o trabalho duro exploratório bem como a exortação moral e religiosa que buscava definir o trabalho como a essência do homem esse processo exigirá também o uso da força a fim de reprimir a chamada vagabundagem a mendicância e a ociosidade Chibatadas no tronco marcação a ferro em brasa multas prisão e até mesmo pena de morte são algumas das penalidades aplicadas àqueles que se recusavam a se submeter ao novo mundo do trabalho à nova ordem social Como descreve Resende 1990 p 24 As medidas legislativas de repressão se complementaram pela criação de instituições as casas de correção e de trabalho e os chamados hospitais gerais que apesar do nome não tinha qualquer função curativa Destinavamse a limpar as cidades dos mendigos e antissociais em geral a prover trabalho para os desocupados punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução religiosa e moral Os hospitais gerais como estruturas de exclusão É nesse contexto que os limites de tolerância à loucura se estreitam fazendo com que essa emerja na cena social como um problema a ser solucionado 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 16 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml O louco que durante longo tempo pôde usufruir de relativa tolerância e liberdade será incluído no grupo que por não conseguir se adaptar à nova ordem social constituise como ameaça a esta mesma ordem Como vimos entre as instituições encarregadas de recolher esses indivíduos está o Hospital Geral que nesse momento passa a assumir um novo papel No fim do século XVII o hospital outrora predominantemente caritativo passa a cumprir uma função social e política mais explícita inserida naquilo que Foucault chamou de estrutura da exclusão Hospital PitiéSalpêtrière em Paris França Para Foucault 1972 a origem da medicina mental ou da Psiquiatria encontra seu ápice nesse momento com a criação em 1656 do Hospital Geral de Paris por decreto do rei da França É também a partir daí que surge um novo lugar social para a loucura o da segregação e isolamento como já indicamos acima Com a desorganização social e econômica da Europa a loucura passa a ser vista como algo a ser excluído Os diferentes em relação à moral à razão e à ordem social passam a ser encaminhados para o isolamento O objetivo era limpar a cidade ocupar quem não trabalhava punir o ócio reeducar os desviados Como relata Foucault a respeito dessas instituições 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 17 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Tratase de recolher alojar alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária É preciso também zelar pela subsistência pela boa conduta e pela ordem geral daqueles que não puderam encontrar seu lugar ali mas que poderiam ou mereciam estar Essa tarefa é confiada a diretores nomeados por toda a vida e que exercem seus poderes não apenas nos prédios do Hospital como também em toda a cidade de Paris sobre todos aqueles que dependem de sua jurisdição FOUCAULT 1972 p 56 O hospital que antes exercia a função de caridade vai ganhando cada vez mais a função de controle social cujo objetivo é o de dar uma resposta ao problema da escassez de mão de obra da vagabundagem e da mendicância Nesse período na Europa empreendeuse uma grande repressão à mendicância à vagabundagem e à ociosidade Isso se deve à resistência das pessoas à mudança dos modos de produção em que se tratava de inverter a equação trabalhar para viver para viver para trabalhar do campesinato e dos ofícios artesanais para o advento da manufatura Os hospitais destinavamse a limpar as cidades dos mendigos e antissociais em geral a prover trabalho para desocupados punir a ociosidade e reeducar para a moralidade mediante instrução religiosa e moral RESENDE 1990 É nesse período que a loucura durante tanto tempo manifesta será varrida do cenário social e confinada junto aos demais desordenados para sofrer toda sorte de punições e torturas Em suma a instituição hospitalar vai se configurando em uma espécie de instituição semijurídica que visa ao estabelecimento da lei da ordem e da moralidade burguesa 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 18 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Ainda durante muito tempo a casa de correção ou os locais do Hospital Geral servirão para a colocação dos desempregados dos sem trabalho e vagabundos Toda vez que se produz uma crise e que o número de pobres sobe verticalmente as casas de internamento retomam pelo menos por algum tempo sua original significação econômica FOUCAULT 1972 p 76 A medicalização dos hospitais No final do século XVIII com o fortalecimento dos ideais iluministas e o advento da Revolução Francesa 1789 que tinha como princípio os ideais de Igualdade Liberdade e Fraternidade esses espaços passam a receber uma série de denúncias uma vez que o que acontece em seu interior em nada se assemelha àqueles ideais A afirmação desses ideais tem então como consequência a exigência de democratização de todos os espaços sociais dentre eles a instituição hospitalar É nesse contexto específico que os médicos adentram o hospital com o objetivo de adequálo ao novo espírito da época Tem início aqui o que foi chamado de humanização do hospital com a introdução de uma série de tecnologias disciplinares de controle e organização do espaço e do tempo Uma das primeiras medidas de reorganização desses espaços será a libertação daqueles indivíduos que haviam sido internados em função das medidas autoritárias do Antigo Regime caso ainda fossem aptos para o trabalho devido à escassez de mão de obra Com a criação de outras instituições como as casas de correção os reformatórios os centros de reabilitação e os orfanatos os demais indivíduos jovens demais para o trabalho ou considerados perigosos demais para a vida em sociedade também puderam encontrar seus destinos 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 19 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Para os loucos restou o hospital como herança Separados de seus companheiros de isolamento pela primeira vez esses indivíduos receberam ou melhor sofreram algum tratamento psiquiátrico Isso porque tais tratamentos não se diferenciavam muito das torturas anteriores Inspirados na medicina galênica cuja causa da doença era pensada como desequilíbrio dos quatro humores do corpo essas práticas tinham como finalidade livrar os sujeitos de seus maus humores a partir de procedimentos de sangria purgação afogamento dentre outros A despeito desses métodos condenáveis o fato é que o hospital começa a se medicalizar ao mesmo tempo em que a Medicina vai se tornando um saber hospitalar extraindo dessa prática um conhecimento cada vez maior sobre o hospital as doenças suas diferentes categorizações sua forma de evolução e sua clínica de maneira geral O hospital lugar de mortificação tornase agora lugar de saber e verdade em estreita consonância com os ideais iluministas O poder sobre o hospital antes nas mãos da filantropia e do clero passa agora inteiramente para as mãos do médico É nesse momento que surge a figura de Fhilippe Pinel considerado o fundador da Psiquiatria que em 1793 assume a direção do Hospital de Bicêtre uma das unidades do Hospital Geral Quadro representando o gesto de Pinel Encontramonos agora numa nova fase da história da loucura inaugurada por aquilo que ficou conhecido como o gesto de Pinel que seria o de ter libertado os loucos das correntes humanizando o hospital Mas Pinel não é famoso apenas por ter liberado a loucura das correntes mas também porque ele em um mesmo gesto teria aprisionado a loucura a outras amarras em uma prisão mais sutil como se costuma dizer 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 20 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Inserido em uma certa corrente de pensamento de seu tempo Pinel e seus contemporâneos passam a conceber a loucura como alienação mental alienação essa cujas causas estariam presentes no meio social Ora se as causas da loucura agora compreendida como alienação mental estavam presentes no meio social seu tratamento deveria se basear no afastamento do louco do mundo exterior Ou seja o tratamento deveria começar com o isolamento Ao publicar sua obra denominada Tratamento MédicoFilosófico sobre a Alienação Mental Pinel consolidou o conceito de alienação mental e estabeleceu uma nova profissão a de alienista Em suma Pinel fundou os primeiros hospitais propriamente psiquiátricos e instaurou o primeiro modelo de tratamento ao estabelecer o chamado tratamento moral baseado no isolamento na ordem e na disciplina dos internos No filme Ilha do Medo 2010 de Martin Scorsese encontramos bons fragmentos desse tipo de tratamento Como o conceito de alienação mental segundo Pinel está relacionado à perda da racionalidade ao distúrbio das paixões à dificuldade em perceber a realidade objetiva e à incapacidade em discernir entre certo e errado ela nasce também associada à periculosidade As pessoas consideradas alienadas eram então compreendidas como representando um risco para a sociedade e para si mesmas Isolar passa então a ser considerado um método para proteger o louco da alienação externa para estabelecer os princípios da ordem e da disciplina pressupostos do tratamento moral e para se conhecer a doença em estado puro como em um laboratório 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 21 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml É assim que enquanto instituição disciplinar o hospital de alienados passa a ser pensado como instituição terapêutica destinado a educar a mente afastar os delírios e chamar a consciência à realidade Como advertiu Foucault 1979 p 107 é a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua medicalização Os loucos não são mais enclausurados por caridade ou repressão mas por um imperativo terapêutico que nesse contexto significava garantir a segurança do louco e de sua família liberálo das influências externas vencer suas resistências pessoais submetêlo a um regime médico imporlhe novos hábitos entre outros AMARANTE 2007 Todo o espírito do tratamento moral foi brilhantemente retratado em um dos mais famosos contos de Machado de Assis O Alienista referência básica para se pensar a questão da loucura em nossa sociedade O fato é que o alienismo pineliano que levou a loucura de acorrentada à institucionalizada obteve grande fama pelo mundo e em diversos países hospitais de alienados foram criados inspirados em sua obra muitos levando até mesmo o seu nome Agora vamos ver um vídeo em que o especialista aborda as influências de Pinel e o conceito de alienação mental no imperativo terapêutico de isolamento dos loucos Reflexões sobre o gesto de Pinel e suas implicações Falta pouco para atingir seus objetivos Vamos praticar alguns conceitos 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 22 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Questão 1 Segundo Foucault 1972 a associação entre loucura e doença mental é um fenômeno que Parabéns A alternativa C está correta Essa associação é relativamente recente nascida a partir do desenvolvimento das sociedades modernas no final do século XVII e início do XVIII contemporânea das ideias iluministas de sua crença na razão na verdade e no progresso científico Questão 2 Em História da Loucura na Idade Clássica Foucault afirma que antes de ser dominada pelo discurso científico da modernidade no fim do século XVII e início do XVIII a loucura podia ser vista dentre outras coisas como A Sempre existiu porém de diferentes formas B Resiste aos discursos da modernidade C Surge no final do século XVII e início do XVIII D Surge com a Igreja na Idade Média E Possui realidade empírica 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 23 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Parabéns A alternativa D está correta Antes desse período a loucura não estava associada a uma condição médica Sendo assim não podia receber esses diagnósticos que são na verdade bem posteriores a esse momento 2 Mudança no modelo de atenção psiquiátrica A Uma psicopatologia B Uma doença genética C Uma manifestação do inconsciente D Uma alteridade pura E Uma esquizofrenia paranoide 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 24 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Ao final deste módulo você será capaz de analisar os principais pressupostos de mudança no modelo de atenção psiquiátrica bem como o contexto de criação dos atuais dispositivos de atenção à saúde mental no Brasil Pressupostos da crítica ao modelo psiquiátrico tradicional Vimos anteriormente que no final do século XVIII na esteira dos ideais cientificistas da Idade das Luzes estabeleceuse aquilo que viria a ser a ciência psiquiátrica Isso significa dizer que esse campo de saber definiu a loucura como seu objeto de práticas e estudos sistemáticos buscando descrever suas causas formas de apresentação seu desenvolvimento seu tratamento e sua cura A essa forma de apropriação da loucura ou de captura da loucura como alguns chamavam convencionouse denominar de institucionalização da loucura Será como questionamento dessa forma de aprisionamento daqueles que escapam à ordem social dominante que irão surgir as chamadas psiquiatrias reformadas ou aquilo que recebe o nome de Reforma Psiquiátrica movimentos que dentro da própria Psiquiatria ou não têm como horizonte a crítica a esse estado de coisas A Psiquiatria é um saber que já nasceu criticado principalmente por suas contradições relacionadas àqueles ideais da Revolução Francesa sobretudo os ideais de liberdade e cidadania uma vez que a formação do cidadão pressupõe a convivência e o compartilhamento de uma vida comunitária em liberdade na pólis e não no confinamento e na exclusão Ora que tratamento libertador é esse cujo princípio básico permanece sendo o aprisionamento do louco e seu afastamento da pólis Esse questionamento engrossado progressivamente por diversos outros como a crítica ao modelo positivista de ciência que chancelava essas práticas asilares ou seja que as legitimava em seu saberpoder é o que vai constituir todo o movimento da Reforma Psiquiátrica 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 25 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Se por um lado a Psiquiatria possuía ainda um saber demasiadamente precário sobre a loucura por outro a elevação de sua condição ao status de saber científico a concedia grandes poderes sobre a população Um exemplo é o próprio mandato social de privação de liberdade porém agora com justificativas médicocientíficas para um suposto bem do louco e do meio social Como tão pouco saber pode gerar tanto poder questionava Foucault 2006 p 70 a esse respeito No Brasil O Alienista de Machado de Assis é uma das críticas mais contundentes a esse paradigma pois coloca em xeque os principais pontos problemáticos desse modelo que são a discussão sobre o que é ser normal ou anormal questionando a pretensa neutralidade dos saberes científicos produtores de verdade sobre a loucura Contase que Machado de Assis teria se inspirado no Hospício de Pedro II Construído no ano de 1852 na cidade do Rio de Janeiro esse hospital foi o primeiro a ser completamente inspirado nos modelos franceses os pinelianos Publicado em 1882 o livro conta a história do doutor Simão Bacamarte um alienista que ao se aprofundar em seus estudos de psiquiatria constrói um manicômio chamado Casa Verde para abrigar os loucos de sua região A partir de seus próprios critérios de classificação e seleção da loucura baseados todavia em estudos e hipóteses pretensamente científicas o doutor Simão Bacamarte acaba internando quase toda a população da cidade fictícia de Itaguaí uma vez que quase ninguém se enquadrava em seus critérios de normalidade sendo todos anormais portanto 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 26 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Porém quando se apercebe que todos são anormais e somente ele mesmo é normal o Dr Bacamarte conclui que talvez o único anormal seja ele mesmo internando a si próprio por consequência até a morte Obviamente a obra é muito mais rica e interessante do que esse pequeno resumo e por isso mesmo deve ser lida em sua integralidade tanto por gosto literário quanto como objeto de reflexão social e filosófica A opção pelo pequeno relato é a de exemplificar o porquê de essa obra abrir todo um campo de debate em torno do normal e do anormal bem como da pretensa neutralidade dos saberes científicos que de neutros não têm nada O fato é que assim como no conto machadiano esses asilos tanto no Brasil quanto no mundo logo ficaram lotados de internos A enorme dificuldade em estabelecer os limites entre a loucura e a sanidade as evidentes funções sociais ainda cumpridas pelos hospícios na segregação de segmentos marginalizados da população as constantes denúncias de violência contra os pacientes internados fizeram com que a credibilidade do hospital psiquiátrico e em última instância da própria psiquiatria logo chegasse aos mais baixos níveis AMARANTE 2007 p 38 Devido a esse estado de coisas variadas foram as propostas e tentativas de superação desse modelo asilar que no entanto insiste em permanecer até os dias atuais presentificandose em diversas práticas e diferentes instituições de cuidado mesmo aquelas com um modelo de tratamento não asilar em espaço aberto Como diz uma expressão que ficou famosa no campo da Reforma Psiquiátrica não adianta acabar com os manicômios se esses locais permanecerem dentro de nós Ou seja mesmo que não seja realizada no espaço de um manicômio como descrevemos acima ainda assim uma prática pode guardar características manicomiais 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 27 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Reforma Psiquiátrica ao redor do mundo Dentre essas tentativas de superação do modelo asilar existem aquelas consideradas reformadoras que buscam recuperar certa essência terapêutica que o hospital possuiria mas que teria perdido em algum momento Há também aquelas que buscam romper com o paradigma psiquiátrico tradicional de modo geral visando à superação do manicômio As primeiras tentativas de resgatar a pretensa essência terapêutica da instituição psiquiátrica foram as colônias de alienados aldeias localizadas no interior das cidades para onde familiares enviavam seus loucos a fim de serem tratados pelo trabalho no campo e pela própria formação de comunidade de trabalhadores onde ocorria uma suposta cura pelo trabalho No início do século XX o Brasil foi um grande signatário dessas colônias criando dezenas delas Os exemplos mais famosos são a Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro e a Colônia de Juquery em São Paulo Essa última chegou a acumular 16 mil internos e logo se assemelharam aos mesmos asilos que visavam superar sobretudo por suas práticas asilares de recuperação pelo trabalho Colônia de Juquery Imagem representativa do uso de camisas de força em manicômios Novas tentativas de Reforma Psiquiátrica nasceram no período pós Segunda Guerra Mundial quando essa condição histórica revelou aspectos terríveis da natureza humana demonstrando que o tratamento dispensado aos loucos não diferia muito daqueles destinados aos prisioneiros dos campos de concentração e de trabalho forçado violando diversas dimensões da dignidade humana 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 28 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml As Comunidades Terapêuticas e a Psicoterapia Institucional A partir desse acontecimento histórico surgem variadas experiências de reforma da instituição psiquiátrica consideradas póspinelianas Algumas dessas reformas foram mais marcantes influenciando as práticas no campo da Psiquiatria até os dias de hoje É o caso das experiências da Comunidade Terapêutica na Inglaterra e da Psicoterapia Institucional na França que acreditavam que o problema da instituição psiquiátrica estava em sua forma de organização na maneira de gerir as instituições Sendo assim essas experiências propunham que modificando as relações no interior do hospital seria possível resgatar seu caráter terapêutico Vamos conhecer melhor cada uma delas 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 29 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml As experiências das Comunidades Terapêuticas tiveram início na Inglaterra com Maxwell Jones em meados dos anos 1950 Foi um processo de reforma institucional baseado na utilização do potencial dos próprios pacientes no processo terapêutico muitos deles excombatentes de guerra Baseavase na instauração de grupos operativos grupos de discussão comunicação livre entre equipe e paciente participação ativa dos pacientes nas atividades propostas e assembleias diárias Tudo na instituição poderia ser objeto de debate visando destituir a hierarquização e a verticalização dos papéis sociais com o objetivo de democratizar as relações e viabilizar a expressão livre dos sentimentos Já a Psicoterapia Institucional francesa teve como principal personagem François Tosquelles um oficial espanhol refugiado da ditadura do general Franco na Espanha Assim como a Comunidade Terapêutica tinha como objetivo recuperar o potencial terapêutico do hospital No Hospital de Saint Alban Tosquelles realizou uma das mais bemsucedidas experiências de Reforma Psiquiátrica propondo um movimento de gestão autônoma entre pacientes e técnicos com passeios festas feiras de produtos dos próprios internos construção de ateliês de arte oficinas de trabalho entre outras atividades Esse movimento de gestão autônoma ficou conhecido como Clube Terapêutico Tosquelles propunha ainda que no hospital todos faziam parte de uma mesma comunidade e que sendo assim todos os seus agentes teriam uma função terapêutica Sua principal diferença com relação às experiências inglesas era a utilização do conceito de transversalidade que propunha o confronto de papéis ou seja uma mistura dos papéis profissionais e institucionais com o objetivo de questionar a produção de hierarquias no interior do hospital Comunidades Terapêuticas Psicoterapia Institucional 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 30 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml A Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva No fim dos anos 1950 e início dos 1960 surgem outras duas importantes experiências reformadoras a Psiquiatria de Setor e a Psiquiatria Preventiva A Psiquiatria de Setor tem como personagem principal Lucian Bonnafé e aponta a necessidade de se realizar um trabalho externo ao manicômio dando continuidade ao tratamento fora do hospital após a alta evitando novos casos Para isso serão criados os Centros de Saúde Mental CSM distribuídos em diferentes regiões administrativas francesas de acordo com o índice populacional Essa experiência teve como característica a inauguração da discussão sobre aquilo que ficou conhecido como regionalização da assistência psiquiátrica em que a própria divisão do espaço interno do hospital deveria corresponder à região de origem dos pacientes Atenção Interessa ressaltar que as equipes também eram divididas possibilitando o acompanhamento do paciente tanto no hospital quanto no local de residência A própria ideia de equipe terapêutica assume aqui uma importância especial uma vez que retirava do médico a exclusividade do cuidado O paciente passava a ser cuidado por uma equipe multidisciplinar o que contribuiu para um olhar mais integral de sua condição Em suma o principal legado dessa iniciativa ou aquilo que a singulariza foram as noções de regionalização e de equipe multiprofissional 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 31 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml A Psiquiatria Preventiva foi desenvolvida nos EUA por Gerald Caplan considerado precursor dessa corrente Sua principal ideia era tornar o hospital obsoleto a partir de medidas preventivas ou seja prevenir para não ter que remediar como se costuma dizer Naquele período os hospitais norteamericanos ganharam visibilidade pelas péssimas condições em que se encontravam os internos vítimas de violência e maustratos das mais diversas matizes Por incentivo do próprio presidente dos EUA a ordem então era a de reduzir as doenças mentais das e nas comunidades promovendo a saúde mental Caplan acreditava que todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocemente o que daria início a uma caça aos suspeitos que possuíssem alguma O que aconteceu foi que novamente todos aqueles indivíduos que apresentavam algum tipo de desadaptação social passaram a ser recolhidos pela ordem psiquiátrica com a justificativa médica de buscar promover a sua saúde mental uma vez que apresentavam comportamentos considerados prépatológicos No fim ocorreu um aumento da demanda psiquiátrica nos EUA já que esses serviços de atenção comunitária acabaram servindo como centros de captação de uma nova clientela promovendo o que posteriormente foi chamado de medicalização do campo social Todavia apesar dos pesares a Psiquiatria Preventiva deixou como legado conceitos importantes como a noção de cuidado comunitário e de saúde mental em detrimento da associação da Psiquiatria apenas com a noção de doença e o conceito de desinstitucionalização Esta naquele momento estava muito ligada à noção de desospitalização apenas significando sobretudo a tentativa de reduzir o tempo médio de internação dos pacientes antes internados indefinidamente A noção de trabalho comunitário das equipes de saúde mental apesar de não ser uma novidade desta corrente também foi bastante desenvolvida aqui As experiências da Comunidade Terapêutica e da Psicoterapia Institucional visavam a uma intervenção no interior do próprio hospital numa espécie de reorganização ou democratização de suas relações Já as experiências da Psiquiatria de Setor e da Psiquiatria Preventiva tinham como expectativa uma reforma por fora em meio externo comunitário ou comendo pelas beiradas Porém existe ainda um outro conjunto de experiências mais radicais que visavam não apenas à reforma ou à melhoria dos hospitais mas também ao rompimento com o paradigma psiquiátrico como um todo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 32 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml A Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática A Antipsiquiatria foi um movimento que ganhou expressão em meio aos movimentos de contestação social dos anos 1960 Encabeçadas por Ronald Laing e David Cooper essas experiências partiam do pressuposto de que a mera reforma ou melhoria da instituição psiquiátrica não era suficiente já que os loucos eram vítimas de violências não apenas desses locais mas também de suas famílias e da sociedade como um todo Sua crítica ao modelo psiquiátrico não se restringia aos modelos de tratamento mas sobretudo aos paradigmas teóricos adotados pela Psiquiatria que no seu entender adotava referenciais metodológicos equivocados herdados das ciências naturais Segundo eles o conhecimento em ciências humanas seria de uma natureza inteiramente distinta cujas consequências éticopolíticas deveriam ser avaliadas Como afirmava o próprio Laing o que é cientificamente correto pode ser eticamente errado LANG 1988 apud AMARANTE 2007 p 53 Em suma com a Antipsiquiatria veremos surgir a primeira crítica ao saber médico psiquiátrico no sentido de desautorizálo a considerar a esquizofrenia como uma doença ou como um objeto que poderia ser fixado dentro dos parâmetros científicos então adotados A doença mental deveria ser pensada como uma certa experiência do sujeito articulada ao meio social e não como uma entidade em estado puro Segundo Amarante 2007 p 54 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 33 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Na medida em que o conceito de doença mental era então rejeitado não existiria exatamente uma proposta de tratamento da doença mental no sentido clássico que damos à ideia de terapêutica O princípio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiência esta seria por si só terapêutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de reorganização interior Ao terapeuta competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a superar este processo acompanhandoa protegendoa inclusive da violência da própria psiquiatria Para a Antipsiquiatria o que o hospital fazia era reproduzir as mesmas estruturas opressoras da sociedade produzindo patologias ao invés de tratálas Foi nesse sentido que criaram diversos espaços de contracultura lugares de vida espaços anti pois a loucura poderia ser vista ainda como um movimento de reação a uma cultura alienante e nesse sentido uma experiência de libertação que guardava dentro de si ainda uma saúde A Psiquiatria Democrática tem como principal protagonista o psiquiatra italiano Franco Basaglia que nos anos 1960 dirigiu o Hospital Psiquiátrico de Gorizia numa pequena cidade italiana Ao propor a reforma do hospital psiquiátrico da cidade promoveu uma série de mudanças práticas e teóricas relatadas no livro A Instituição Negada de 1968 Contase que ao adentrar neste hospital pela primeira vez Basaglia não pôde deixar de comparálo aos campos de concentração 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 34 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml No início de seu trabalho Basaglia se inspirou na Comunidade Terapêutica e na Psicoterapia Institucional a fim de recuperar o potencial terapêutico do hospital Porém com o passar do tempo percebeu que esse tipo de mudança não era suficiente posto que não seria possível combater processos mortificadores com meras medidas administrativas ou mesmo humanizadoras Franco Basaglia Após entrar em contato com as obras de Michel Foucault e Erving Goffman Basaglia formulou a hipótese de que o manicômio não deveria ser combatido apenas em seu sentido físico mas que deveria ser pensado como um aparato que inclui saberes práticas sociais enunciados científicos medidas administrativas legais entre outras Basaglia observava que era importante questionar não somente o manicômio e a psiquiatria como ciência mas tudo o que partindo do território repelia a doença e a confiava à psiquiatria e ao manicômio BASAGLIA 2005 apud AMARANTE 2007 Esse conceito de aparato manicomial se assemelha muito ao conceito de dispositivo proposto por Foucault tal como vimos em nosso primeiro módulo ao tratar do dispositivo de exclusão da loucura Para Basaglia é esse dispositivo ou esse aparato manicomial que legitima um lugar de isolamento segregação e patologização das experiências humanas e apenas com sua desconstrução seria possível construir um novo lugar social para a loucura 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 35 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Além da experiência de Gorízia Basaglia também realizou um trabalho no Hospital Psiquiátrico de Trieste no Norte da Itália Foi nesse hospital na década de 1970 que se deu aquela que é considerada até hoje a mais bemsucedida experiência de transformação da Psiquiatria constituindose como principal referência para o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira nas décadas de 1980 e 1990 iniciado na cidade de Santos no estado de São Paulo A experiência de Trieste demonstrou que era possível substituir o modelo manicomial e não apenas reformálo Paralelo ao fechamento do hospital surgem então os serviços substitutivos representados por um conjunto de estratégias alternativas ao hospital tendo como finalidade o desmonte daquele enquanto dispositivo de clausura Diferentemente das demais experiências esses serviços como os clubes ou os Centros de Saúde Mental CSM por exemplo não visavam dar continuidade ao tratamento manicomial após a alta ou servir de estabelecimento intermediário mas sim tomar o lugar da instituição psiquiátrica substituíla Uma das grandes diferenças com relação às experiências anteriores residia na noção de desinstitucionalização que como vimos anteriormente se restringia à desospitalização e não à desmontagem do aparato asilar como um todo Para a Psiquiatria Democrática é a desmontagem desse aparato que por sua vez envolve uma gama muito grande de atores sociais que pode propiciar uma nova relação com os sujeitos em sofrimento mental Reforma Psiquiátrica brasileira 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 36 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil tem seu início em meados da década de 1970 Contemporâneo ao processo de redemocratização da sociedade brasileira constituiuse como mais um dos movimentos que expressavam o desejo de cidadania e justiça social naquele momento Nesse contexto de abertura política e luta por direitos humanos o tratamento dispensado aos psiquiatrizados ganhará visibilidade na forma de uma grande contradição posto que representava justamente a imagem do autoritarismo e da negação dos direitos humanos mais básicos Mais especificamente esse movimento se insere no denominado movimento sanitário da década de 1970 que defendia a mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde a saúde coletiva a equidade na oferta dos serviços e o protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e atenção à saúde Em suma todo um combate contra as práticas verticalizadas isto é autoritárias próprias de um Estado tomado por um golpe militar Se dissemos que ela se insere neste movimento é porque como vimos anteriormente a Reforma Psiquiátrica tem também uma história singular herdeira daquelas experiências que visavam a superação do modelo asilar no pósguerra Mesmo hoje em cada serviço de saúde mental no Brasil existe um pouquinho de Comunidade Terapêutica de Psicoterapia Institucional de Antipsiquiatria de Psiquiatria de Setor de Psiquiatria Preventiva e sobretudo de Psiquiatria Democrática uma vez que a experiência de Trieste na Itália demonstrou ser possível o rompimento com os paradigmas tradicionais da Psiquiatria A rigor podemos dizer que a Reforma Psiquiátrica brasileira é uma grande mistura de tudo isso somada à peculiaridade de nosso contexto e à produção de nossos próprios saberes e experiências Efetivamente o início desse percurso se deu em 1978 com os movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental MTSM formado por trabalhadores do movimento sanitário associações de familiares sindicalistas membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátrica A formação desse movimento teve como estopim uma crise na Divisão Nacional de Saúde Mental DINSAM órgão do Ministério da Saúde então responsável pelas políticas de saúde mental AMARANTE 1995 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 37 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Foi pelo protagonismo desse movimento que se passou a denunciar a violência dos manicômios e a mercantilização da loucura pelo setor privado que recebia dinheiro público para manter pacientes internados sob condições desumanas e quanto mais tempo internados e mais desumanas as condições maiores eram os lucros O MTSM passa a protagonizar e publicar essas denúncias ressaltando a violência promovida nos manicômios Por meio desse movimento foi possível também construir e fortalecer uma crítica mais coletiva ao saber psiquiátrico e seu modelo hospitalocêntrico Em 1987 no 2 Congresso Nacional do MTSM Bauru SP foi adotado aquele que viria a ser o principal lema da reforma Por uma sociedade sem manicômios No mesmo ano foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro Outros acontecimentos de fundamental importância foram o surgimento do primeiro Centro de Atenção Psicossocial CAPS do Brasil em Santos SP em 1987 e a emblemática intervenção da Secretaria Municipal de Saúde de Santos SP em 1989 na Casa de Saúde Anchieta um hospital psiquiátrico famoso por maustratos e morte de pacientes Na época essa intervenção teve repercussão nacional e provou que era possível construir uma rede de atenção territorial capaz de substituir o hospital psiquiátrico Foi o que aconteceu no município de Santos com a criação dos primeiros Núcleos de Atenção Psicossocial NAPS serviços abertos que funcionavam 24 horas Imagem CAPS em JaguaribeCE Paralelamente são criados também cooperativas residências terapêuticas para os egressos do hospital clubes centros de convivência e associações Essa experiência teve o mérito de demonstrar para todo o Brasil que a superação do manicômio era possível 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 38 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Em 1989 iniciase a luta do movimento da Reforma Psiquiátrica no campo legislativo com a entrada do Projeto de Lei no Congresso Nacional que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no País de autoria do deputado Paulo Delgado PT MG Esse projeto só seria aprovado em 2001 recebendo o apelido de Lei da Reforma Psiquiátrica Em 1986 houve a 8ª Conferência Nacional de Saúde marco na história da saúde pública brasileira ao propor um novo modelo para a saúde pública com diretrizes que posteriormente seriam incorporadas ao SUS Dentre elas podemos citar os princípios básicos da universalidade a saúde deve ser acessível a todos da integralidade todos têm direito à assistência em saúde em todos os níveis da atenção da equidade todos devem ser tratados de maneira igual pelo SUS e do controle social a população acompanha as discussões sobre as políticas de saúde por meio das Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 39 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Em 1988 temos a Constituição Federal e a criação do Sistema Único de Saúde SUS que incorpora diversas demandas do movimento sanitário sobretudo aquelas diretrizes estabelecidas pela 8ª Conferência Nacional de Saúde descritas acima De 1992 até o ano 2000 inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado os movimentos sociais conseguem aprovar as primeiras leis estaduais e municipais em direção à implementação de uma rede extrahospitalar de cuidados buscando a substituição progressiva de leitos hospitalares por uma rede integrada de atenção à saúde mental Essa tendência ganha força sobretudo a partir do compromisso assumido pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas 1990 e pela realização da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental Nesse momento entra em vigor uma série de normativas federais que regulamentam a criação de serviços de atenção diária inspirados nos CAPS NAPS e Hospitaldia Porém essa implementação é ainda bastante precária e descontínua Ao final deste período o país tem em funcionamento 208 CAPS mas cerca de 93 dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda são destinados aos hospitais psiquiátricos BRASIL 2005 p 08 A partir de 2001 com o sancionamento da Lei Federal nº 10216 Lei Paulo Delgado que em seu texto redireciona a assistência em Saúde Mental privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária um novo ritmo é dado ao movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira Nesse momento a política de saúde mental do governo federal passa a estar mais alinhada com as diretrizes propostas pela Reforma Psiquiátrica dando mais sustentação e visibilidade a ela É realizada ainda a 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental consolidando ainda mais esses novos rumos Movimentos sociais da luta antimanicomial no Brasil 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 40 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Outro fato importante nesse período é o programa De volta pra casa Lei nº 10708 destinado a oferecer ajuda financeira para que egressos de longa data do sistema manicomial possam viver em comunidade A Portaria nº MS 10600 que cria os Serviços Residenciais Terapêuticos SRTs no âmbito do SUS é publicada impulsionando as ações de desinstitucionalização da loucura É realizado ainda em 2004 o 1 Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial em São Paulo reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS A partir daí a rede de atenção extrahospitalar diária e comunitária se expande chegando a regiões onde sequer existiam marcando a transição de um modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico para um modelo de atenção comunitária cuja referência do cuidado passa a ser os Centros de Atenção Psicossocial CAPS e não mais o manicômio Os CAPS por sua vez têm como objetivo realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo fortalecimento dos laços familiares e comunitários Sendo assim suas práticas se caracterizam por ocorrerem em ambiente aberto acolhedor e inserido no território dos usuários O cuidado é realizado prioritariamente em espaços coletivos como grupos assembleias oficinas e reuniões diárias Segundo o Ministério da Saúde 2004 os projetos desses serviços devem ultrapassar sua própria estrutura física em busca de uma rede de suporte social que potencialize suas ações olhando os sujeitos em sua singularidade sua história sua cultura e sua vida cotidiana Se como dizia Basaglia o modelo psiquiátrico havia colocado a pessoa entre parênteses para se relacionar com a doença os dispositivos extrahospitalares de base comunitária buscam colocar a doença entre parênteses para lidar com pessoas sendo que pessoas têm trabalho vizinhos amores família desejos problemas concretos e não apenas mentais Por isso os serviços de atenção à saúde mental precisam ser um lugar de produção de sociabilidade e de vida É o que propõe a Reforma Psiquiátrica tanto no Brasil quanto em outros países 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 41 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Hoje quando utilizamos o termo saúde mental e não mais doença mental estamos falando de todo esse processo de transformação da Psiquiatria que visou livrála de uma prática reduzida meramente ao estudo e tratamento de doenças A expressão dessa mudança que não é só conceitual se expressa na forma como os serviços de atenção à saúde mental se organizam nos dias de hoje em que o hospital não possui ou não deve possuir o lugar de centralidade ou referência na atenção aos sujeitos em sofrimento psíquico mas sim os serviços de atenção comunitária como é o caso dos CAPS Ademais contemporaneamente até mesmo o termo saúde mental recebeu um complemento passando a ser referido como saúde mental e atenção psicossocial AMARANTE 2007 Isso porque a atenção à saúde mental é uma tarefa complexa realizada no território existencial de sujeitos em liberdade algo que vai exigir a articulação de diversos dispositivos Dentre esses dispositivos podemos citar Centros de Atenção Psicossocial CAPS Residências Terapêuticas SRTs Centros de Convivência e Cultura Unidades de Acolhimento UAs leitos de atenção integral em Hospitais Gerais ambulatórios de saúde e de saúde mental atenção Hospitalar de Urgência e Emergência Também poderíamos incluir diversas outras instituições como serviços de assistência social jurídicos associação de moradores clubes escolas instituições religiosas etc Enfim tudo aquilo que um sujeito em liberdade pode ter acesso Agora vamos ver um vídeo em que o especialista reflete sobre as diversas influências etapas e os dispositivos da Reforma Psiquiátrica no Brasil até a atualidade O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 42 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Falta pouco para atingir seus objetivos Vamos praticar alguns conceitos Questão 1 Quando falamos em Reforma Psiquiátrica estamos nos referindo a iniciativas que visam interferir no paradigma tradicional de atenção à saúde mental De acordo com o que vimos em nosso conteúdo uma das primeiras tentativas de superar o modelo manicomial foram as Parabéns A alternativa B está correta No final do século XIX e início do XX surgiram muitas iniciativas com propostas A Comunidades alternativas B Colônias de alienados C Casas de correção D Colônias de caridade E Comissões de humanização 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 43 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml de enviar os loucos para regiões afastadas das cidades a fim de que eles pudessem viver em pequenas comunidades de trabalho rural acreditando que este poderia ser um fator de cura das moléstias mentais Esses lugares eram denominados colônia de alienados Questão 2 O movimento da luta antimanicomial inserido no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira e sua Rede de Atenção Psicossocial tem como principal utopia Parabéns A alternativa D está correta Inspirado sobretudo na Reforma Psiquiátrica italiana o movimento da luta antimanicomial visa à completa substituição do manicômio em benefício de uma rede substitutiva aberta e de base comunitária A A humanização do hospital psiquiátrico B A reforma do manicômio C A democratização dos hospitais psiquiátricos D A substituição do tratamento manicomial E A descentralização da gestão hospitalar 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 44 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Considerações finais Pensar a saúde mental e não apenas a doença mental significa habitar um processo social complexo cuja utopia remete para a construção de um novo lugar social para os sujeitos em sofrimento mental Mais do que uma mudança assistencial ou médicopsicológica significa mudar as relações da sociedade com a loucura Como afirmamos no início deste percurso a história da loucura era a história dos momentos em que a loucura se tornou um problema para os modos de vida de uma sociedade ou seja um problema a ser tratado Por outro lado os movimentos de Reforma Psiquiátrica questionam esse estado de coisas e colocam as características excludentes de determinada sociedade como problema Para você que chegou até aqui isso pode parecer óbvio mas talvez não fosse antes de ter percorrido todo esse processo e certamente não é para a maioria da população Ou seja o problema não está na experiência da loucura que já foi recebida de muitas maneiras por diferentes sociedades e em diferentes tempos históricos mas sim na maneira de viver de uma sociedade que se constitui de tal modo que a diferença não tem mais lugar a não ser o silenciamento a exclusão e a morte seja essa biológica seja existencial O problema da Reforma Psiquiátrica não é tanto destituir as formas de tratamento da loucura que no entanto enquanto reprodutoras de opressão devem ser denunciadas e sim intervir nas causas sociais que condenam o louco ao isolamento o que já seria uma prática de produção de saúde e talvez uma das mais urgentes 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 45 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Podcast Agora o especialista Luiz Renato Paquiela Givigi irá desenvolver os antecedentes históricos panorama geral e perspectivas da Reforma Psiquiátrica no Brasil apresentando os diversos impasses e desafios Referências 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 46 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml AMARANTE P Loucos pela vida a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil Coordenado por Paulo Amarante Rio de Janeiro Fiocruz 1995 AMARANTE P Saúde mental e atenção psicossocial Rio de Janeiro Fiocruz 2007 ARIÈS P História Social da Criança e da Família 2 ed Rio de Janeiro LTC 1981 BRASIL Ministério da Saúde Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental 15 anos depois de Caracas OPAS Brasília novembro de 2005 BRASIL Ministério da Saúde Saúde Mental no SUS os Centros de Atenção Psicossocial Brasília 2004 FOUCAULT M Eu sou um pirotécnico In PolDroit R org Michel Foucault entrevistas São Paulo Graal 2006 FOUCAULT M Microfísica do poder Organização e tradução de Roberto Machado Rio de Janeiro Graal 1979 FOUCAULT M Doença Mental e Psicologia Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1968 FOUCAULT M O jogo de Michel Foucault 1977 In Ditos Escritos IX genealogia da ética subjetividade e sexualidade Rio de Janeiro Forense Universitária 2014 FOUCAULT M A história da loucura na Idade Clássica São Paulo Perspectiva 1972 RESENDE H Política de Saúde Mental no Brasil uma visão histórica In TUNDIS S A COSTA N R Orgs Cidadania e Loucura Políticas de Saúde Mental no Brasil Rio de Janeiro Vozes 1990 Explore 13032023 0600 Loucura sociedade e reforma psiquiátrica Página 47 de 47 httpsstecineazureedgenetrepositorio00212sa02584indexhtml Não deixe de assistir ao clássico filme de Laís Bodanzky Bicho de Sete Cabeças 2000 que apresenta a história de um jovem que por apresentar problemas e conflitos com o pai acaba sendo internado em um manicômio sofrendo todos os abusos e maus tratos típicos desse lugar É muito importante assistir no YouTube ao documentário de Daniela Arbex e Armando Mendz intitulado Holocausto Brasileiro 2016 que apresenta com depoimentos e documentos a triste história do hospital Colônia em Barbacena MG onde milhares de pessoas passaram fome frio e sofreram tortura ao serem internados e excluídos da sociedade Há ainda o livro homônimo de Daniela Arbex O documentário Estamira é também um excelente exemplo que ilustra a vida de uma mulher que apresentava sintomas de transtorno mental e trabalhava catando lixo no aterro sanitário de Jardim Gramacho na cidade do Rio de Janeiro Também disponível no YouTube Outra excelente opção é o livro O Alienista de Machado de Assis fundamental para todo futuro profissional em saúde mental Disponível no site Domínio Público