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Direito Penal
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Texto de pré-visualização
PAULO QUEIROZ CURSO DE DIREITO PENAL PARTE GERAL 1 11ª edição 2015 revista ampliada e atualizada EDITORA JUS PODIVM wwweditorajuspodivmcombr CURSO DE DIREITO PENAL PARTE GERAL PAULO QUEIROZ Membro do Ministério Público Federal site wwwpauloqueiroznet CURSO DE DIREITO PENAL PARTE GERAL 11ª EDIÇÃO REVISADA AMPLIADA E ATUALIZADA 2015 1 iij EDlTORA 4 JusPODIVM wwweditorajuspodivmcombr lf I EDITORA JmPODIVM wwweditorajuspodivmcombr Rua Mato Grosso 175 Pituba CEP 41830151 Salvador Bahia Tel 71 33638617 Fax 71 33635050 Email faleeditorajuspodivmcombr Copyright Edições JusPODIVM Conselho Editorial Dirley da Cunha Jr Leonardo de Medeiros Garcia Fredie Didier Jr José Henrique Mouta José Marcelo Vigliar Marcos Ehrhardt Júnior Nestor Távora Robério Nunes Filho Roberval Rocha Ferreira Filho Rodolfo Pamplona Filbo Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha Capa Rene Bueno e Daniela Jardim wwwbuenojardimcombr Diagramação Couto Coelho coutovskyahoocombr Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio ou processo sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor sem prejuízo das sanções civis cabíveis Á memória do professor José Cirilo de Vargas ilustre penalista mi neiro que sempre me incentivou Uma coisa em si tão errada quanto um sentido em si uma sig nificação em si Não há nenhum estado de coisas em si contudo um sentido precisa sempre ser primeiro projetado lá dentro para que possa haver um estado de coisas O o que é isso constitui uma postulação de sentido a partir da perspectiva de algo outro A essência a essencialidade é algo perspectivístico e já pres supõe uma multiplicidade Subjacente está sempre o que é isso para mim para nós para tudo o que vive etc Uma coisa estaria designada somente quando todos os entes tivessem perguntado e respondido ao seu o que é isso Digamos que falte um único ente com as suas relações e perspectivas peculiares em relação a todas as coisas e tal coisa não estaria ainda bem definida 2149 Em suma a essência de uma coisa também é apenas uma opinião so bre a coisa Ou melhor o ela vale é o autêntico isso é o único isto é 2 150 Contra o positivismo que fica preso ao fenômeno só há fatos eu diria não justamente fatos é o que não há e sim apenas interpre tações Não podemos constatar nenhum fato em si talvez seja um absurdo querer algo assim Tudo é subjetivo direi vós mas já isso é exegese o sujeito não é nada dado porém algo inventado por acréscimo suposto Será que é necessário em última instância colocar o intérprete ainda por trás da interpretação Já isso é in vencionice hipótese Na medida em que a palavra conhecimento ainda tem qualquer sentido o mundo é cognoscível mas ele é in terpretável de outro modo ele não tem nenhum sentido subjacente porém inúmeros sentidos perspectivismo Nossas necessidades são aquilo que interpreta o mundo os nossos instintos e seus prós e contras Cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de im por como norma a todos os demais instintos 7 60 Niet zsche Friedrich Fragmentos finais Brasília Editora UnB 2007 s NOTA DO AUTOR 23 PAULO QlJEIROZ 31 Princípio da necessidade nullum crimen nulla poena sine necessitate 83 32 Princípio da adequação ou exigibilidade ou idoneidade 84 33 Princípio da proporcionalidade das penas proporcionalidade em sentido estrito 85 34 O princípio ne bis in idem 85 35 Princípio da insignificância 86 4 Princípio da humanidade 90 5 Princípio da responsabilidade pessoal ou de culpabilidade 93 6 Princípio de lesividade ou ofensividade 95 7 Princípio da igualdade ou isonomia 96 8 Direito e Interpretação 99 81 Introdução 99 82 Interpretar é compreender e argumentar 102 83 O chamado círculo hermenêutico 103 84 Limites da interpretação 109 85 Interpretação e garantismo 111 86 Prevalência da Constituição 112 87 Existe a resposta juridicamente correta 113 88 Direito e analogia 118 89 Analogia e interpretação analógica 120 9 Concurso de tipos penais ou conflito aparente de normas 122 91 Introdução 122 92 Princípio da especialidade 124 93 Princípio da subsidiariedade 125 94 Princípio da consunção ou absorção 125 941 Crime complexo ou composto 127 942 Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito 127 95 Primazia do princípio da especialidade 128 1031 A LEI PENAL NO TEMPO 129 1 Princípio da legalidade e consectários lógicos anterioridade e irretroatividade da lei penal mais severa 129 11 Introdução 129 2 Hipóteses de irretroatividade 130 21 Neocriminalização novatio legis incriminadora 130 22 Lei nova mais severa novatio legis in pejus 130 23 Irretroatividade da jurisprudência 131 3 Hipóteses de retroatividade 132 8 31 Descriminalização abolitio criminis 132 311 Abolitio criminis temporalis 133 SUMÁRIO 32 Lei penal mais branda novatio legis in mellius 133 4 Combinação de leis penais ex tertia 134 5 Sucessão de leis penais a lei intermediária 136 6 Lei temporária e excepcional 136 7 Irretroatividade da lei processual 137 8 Irretroatividade da Lei de Execução Penal 139 9 Leis penais em branco 140 10 Aplicação da lei e vacatio legis 141 11 Tempo do crime 141 10 41 A LEI PENAL NO ESPAÇO 145 1 Introdução 145 2 1 Conceito de território 146 3 Lugar do crime 146 4 Extraterritorialidade 147 5 Pena cumprida no estrangeiro 148 6 Eficácia da sentença penal estrangeira 148 7 Imunidade diplomática 149 8 Extradição 150 81 Extradição x entrega 151 1011 PARTE II Teoria do delito INTRODUÇÃO GERAL 155 1 Conceito e instrumentalidade da teoria do delito 155 11 Crítica da razão técnicojurídica 159 2 Funcionalismo sistema racionalfinal teleológico ou funcional 163 3 Evolução da teoria do delito causalismo finalismo e funcionalismo 166 31 Introdução 166 32 A teoria causal da ação causalismo ou naturalismo 166 33 A teoria final da ação finalismo 167 34 Funcionalismo 168 4 Responsabilidade penal da pessoa jurídica 170 102 1 41 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STJ 175 42 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STF 177 CONCEITO DE CRIME 179 1 Introdução 179 9 PAULO Q1J E I ROZ 11 Posse de droga para consumo pessoal descriminalização ou despenalização 180 2 Conceito doutrinário de crime 181 3 Conceito analítico de crime 183 103 1 31 Tipicidade 184 311 Expansão do conceito de tipicidade 184 32 Ilicitude 185 33 Culpabilidade 186 34 Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime 186 35 Elementos não valorativos do tipo 187 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO 189 1 Sistema tripartido o tipo como indício de antijurídicidade 189 2 Sistema bipartido a teoria dos elementos negativos do tipo 190 3 Posição aqui adotada teoria dos elementos negativos do tipo sistema bipartido 191 4 Teoria da tipicidade conglobante 193 5 Para uma configuração monistafuncional da teoria do delito 195 51 Culpabilidade como exigibilidade tendo em vista os fins 10 41 de prevenção geral e especial 195 52 Ainda o conceito analítico o que há em comum e distinto entre as várias excludentes 201 CLASSI FI CAÇÃO DOS CRI MES 207 1 Crimes dolosos culposos e preterdolosos 207 2 Crimes materiais formais e de mera conduta 208 3 Crimes comissivos omissivos próprios e omissivos impróprios 209 4 Crimes comuns e especiais 210 5 Crimes principais e acessórios 210 6 Crimes instantâneos permanentes e de estado 21 1 7 Crimes simples e compostos ou complexos 213 8 Crimes de dano e de perigo 214 81 Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato 216 9 Crimes unissubjetivos e plurissubjetivos 216 10 Crimes de ação única e de ação múltipla 216 1 1 Crimes habituais 217 1os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA 219 1 Introdução 219 10 SUMÁRIO 211 PAULO QjEIROZ 106 Divisibilidade do erro 267 1 1 Erro sobre causas de justificação descriminantes putativas 268 1 11 Conceito 268 1 1 2 Espécies erro inevitável e evitável 269 113 Descriminantes putativas por erro de proibição 269 114 Posição sistemática 269 12 Unificação dos erros 271 13 Erro provocado por terceiro 274 14 Erro sobre a pessoa errar in persona e aberratio ictus 275 141 Erro sobre a pessoa e processo penal 276 142 Crítica da teoria da equivalência 277 15 Resultado diverso do pretendido aberratio delicti 280 101 1 TEORI A DO CRI ME CULPOSO 283 1 Introdução 283 2 Excepcionalidade do crime culposo 284 3 Conceito de culpa requisitos 284 4 Princípio da confiança 287 5 Estrutura do crime culposo 287 51 Estrutura do crime culposo excludentes de ilicitude e culpabilidade 289 6 Espécies culpa consciente e culpa inconsciente 290 7 Imprudência negligência e imperícia 291 8 Autocolocação em perigo 292 108 1 CONSUMAÇÃO E TENTATI VA 295 1 Introdução 295 2 Crime consumado significado 295 21 Consumação nos crimes materiais formais de mera conduta e outros 297 3 Consumação e exaurimento 297 4 Tentativa conceito e requisitos 298 41 Tentativa e dolo eventual incompatibilidade 299 42 Preparação e tentativa distinção 300 43 Crimes que não admitem tentativa 303 44 Punição da tentativa fundamento políticocriminal 303 45 Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade 304 5 Desistência voluntária 306 6 Arrependimento eficaz 307 61 Posição sistemática 308 7 Tentativa inidônea ou crime impossível 308 8 Crime impossível em razão de Provocação de flagrante 1 2 Interpretação da Súmula 145 do STF 309 SUMÁRIO 81 Provocação do flagrante 310 82 Impossibilidade de consumação 311 83 Flagrante retardado 312 9 Arrependimento posterior 312 109 1 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICIPAÇÃO 315 1 Introdução 315 2 Conceito e iler criminis 315 3 Requisito adesão subjetiva ou nexo psicológico 316 31 Desistência voluntária e arrependimento eficaz 318 4 1 Autoria e participação distinção 318 1 41 Teoria unitária ou monista 320 1 42 Teoria objetivoformal 321 43 Teoria subjetiva 321 44 A teoria do domínio do fato 322 45 A teoria do domínio do fato segundo Roxin 323 5 Formas de autoria 325 51 Coautoria 326 511 Coautoria em crimes culposos 326 52 Autoria mediata 328 53 Autoria mediata por domínio de aparato organizado de poder 329 6 1 Participação em sentido estrito acessoriedade 331 61 Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação 332 7 Formas de participação instigação e cumplicidade 333 8 1 Coautoria e participação nos crimes omissivos 334 9 1 Participação de menor importância 335 10 Participação dolosamente diversa ou desvio subjetivo de conduta 335 1 1 Comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal 336 110 1 CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE ILICITUDE 339 1 Introdução 339 2 Requisito subjetivo nas causas de justificação 340 3 Excesso nas causas de justificação 341 4 1 Efeitos 342 5 Erro sobre causas de justificação 343 6 Causas de justificação em espécie 344 61 Legítima defesa 344 611 Requisitos 344 62 Estado de necessidade 350 621 Significado e posição sistemática 350 6211 Estado de necessidade como excludente do crime 351 13 1111 PAULO QlJEIROZ 622Re quisitos 351 63 Estrito cum primento do dever LEGAL 354 64 Exercício regular de direito 355 65 Consentimento válido do ofendido 356 TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE 359 1 Introdução 359 11 Conceito e elementos 361 12 Neurociência e cul pabilidade 362 13 Direito penal indígena 365 131 Jurisdição penal indígena 365 132 Res ponsabilidade penal do índio 368 2 Cul pabilidade segundo a doutrina causalista conce pção psicológica da cul pabilidade 370 3 Conce pção normativa da cul pabilidade 371 4 Cul pabilidade segundo a doutrina finalista conce pção normativa pura 372 5 Cul pabilidade segundo o funcionalismo cul pabilidade como limite à prevenção 372 6 Causas de exclusão de cul pabilidade em es pécie 376 11 21 61 Inimputabilidade decorrente de alienação mental 377 611 Significado e pressu postos 377 612 Efeito 379 613 Redução de pena no caso de imputabilidade diminuída 380 62 Menoridade penal 380 63 Coação moral irresistível CP art 22 381 64 Obediência hierárquica CP art 22 383 65 Embriaguez 384 651 Embriaguez involuntária 384 652 Embriaguez voluntária 385 66 Emoção e paixão 386 CONCURSO DE CRIMES 389 1 Concurso material ou real pluralidade de ações e crimes 389 2 Concurso formal ou ideal unidade de ação e pluralidade de crimes 390 3 Crime continuado pluralidade de ações e unidade de crime 391 14 31 Re quisitos 392 32 Estu pro e atentado violento ao pudor na Lei nº 120152009 393 33 Pena 394 34 Crime continuado es pecífico 395 341 Pena 395 10 1 SUMÁRIO PARTE III Consequência s jurídicopena is CONSEQUÊNCI AS JURÍDI COPENAI S DO CRI ME FUNÇÕES DO DI REI TO PENAL TEORI AS DA PENA 399 1 Introdução 399 10 21 TEORI AS LEGITI MADORAS 403 1 Teorias absolutas 403 11 Crítica 405 2 Teorias relativas prevenção geral e prevenção es pecial ou prevencionistas 405 21 Introdução 405 22 Prevenção geral negativa 406 221 Crítica 406 1 23 Prevenção geral positiva 407 I 231 Crítica 408 1 24 Prevenção es pecial ou individual 410 241 Crítica 41 1 3 Teorias ecléticas ou unitárias ou mistas 412 I 31 Introdução 412 I 32 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin 413 I 33 O garantismo de Luigi Ferrajoli 414 lºil TEORI AS DESLEGI TI MADORAS ABOLICIONI SMO E MI NI MALI SMO RADI CAL 419 1 Introdução 419 11 O crime não existe caráter definitorial do delito 419 12 Inidoneidade preventiva ou motivadora 420 13 Exce pcionalidade da intervenção penal as cifras ocultas da criminalidade 421 14 Igualdade formal versus desigualdade material seletividade arbitrária do sistema penal 421 15 Caráter consequencial sintomatológico e não causal etiológico da intervenção penal 423 16 Caráter criminógeno do sistema penal 423 1 7 Reificação do conflito do delito neutralização da vítima pelo sistema penal 423 18 O sistema penal intervém sobre pessoas e não sobre situações 424 2 Conclusão 425 1 5 PAULO Q1JEIROZ 10 41 DA PENA 429 1 Conceito fins e limites 429 1os 1 PENA DE PRISÃO 431 1 Falência da pena de prisão 431 10 61 INDIVIDUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA 433 1 Significado e im portância 433 11 Individualização da pena e pessoa jurídica 434 2 Individualização e garantismo 435 21 Concurso de agentes e concurso de crimes 437 22 Emendatio e mutatio libelli 438 23 Sistema acusatório e emendatio libelli 438 3 Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal 440 4 Erros fre quentes na aplicação da pena 442 41 Modelo de sentença 444 10 71 MÉTODO DE FIXAÇÃO DA PENA 447 1 Primeira fase fixação da penabase 448 2 Segunda fase fixação da pena provisória 448 21 Concurso de agravantes e atenuantes 448 22 Qualificadoras e agravantes 449 3 Terceira fase fixação da pena definitiva 450 108 1 31 Causas de aumento de pena e qualificadoras distinção 450 32 Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento e diminuição 450 33 Concurso de causas de aumento e diminuição de pena possibilidades 451 DE COMO SE PROCEDE AO CÁLCULO DA PENA 453 109 1 MÉTODO PARA INCIDÊNCIA DAS CAUSAS DE AUMENTO E DIMINUIÇÃO 455 110 1 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS EM ESPÉCIE 457 1 Cul pabilidade 457 2 Antecedentes do réu 459 16 SUMÁRIO 3 1 Conduta social 461 4 1 Personalidade do réu 461 5 Motivos do crime 462 6 Circunstâncias e conse quências do crime 462 7 Com portamento da vítima 463 11 1 1 SEGUNDA FASE FIXAÇÃO DA PENA PROVISÓ RIA 465 11 21 CJJ RCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCIE 467 1 Reincidência 467 2 Motivo fútil ou tor pe 472 3 1 Para facilitar ou assegurar a execução a ocultação a im punidade 1 ou a vantagem de outro crime 472 4 Traição emboscada dissimulação ou qualquer recurso que dificulte ou torne im possível a defesa do ofendido 473 5 Em prego de veneno ex plosivo etc 473 6 Embriaguez preordenada 474 7 Ascendente descendente irmão ou cônjuge 474 8 Contra criança maior de sessenta anos enfermo e mulher grávida 475 9 i Abuso de poder ou violação inerente a cargo ofício ministério ou profissão 476 10 Ofendido sob proteção de autoridade 476 1 1 Ocasião de incêndio naufrágio inundação ou qual quer calamidade pública ou de desgraça particular do ofendido 477 12 Abuso de autoridade ou prevalecimento de relações domésticas de coabitação ou de hos pitalidade ou com violência contra a mulher na forma da lei es pecífica 4 77 13 Agravantes em concurso de pessoas 478 131 Agente que promove organiza a coo peração ou dirige 113 1 a atividade dos demais agentes 478 132 Agente que coage ou induz outrem à execução material do crime 478 133 Agente que instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal 479 134 Paga ou promessa de recompensa 479 CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES EM ESPÉCIE 481 1 Introdução 481 2 Idade do agente 481 3 Desconhecimento da lei 482 4 1 Motivo de relevante valor social ou moral 482 17 PAULO Q1JEIROZ 5 Evitação das conse quências ou re paração do dano 483 6 Coação resistível cumprimento de ordem hierárquica etc 483 7 Confissão es pontânea 483 8 Influência de multidão em tumulto se não o provocou 484 11 41 REGIMES PRISIO NAIS 487 1 Progressão e regressão de regime 487 11 Regime disci plinar diferenciado 490 2 Progressão nos crimes hediondos 491 3 Execução provisória da sentença 492 11 51 DETRAÇÃO 495 1 Conceito e cabimento 495 2 Conexão processual 496 11 61 DIREITO S E DEVERES DO CO NDENADO 499 11 71 REMIÇÃO 503 118 1 LIMITE MÁX IMO DA PENA DE PRISÃO 505 1 Significado e justificação 505 2 Alcance 506 3 Superveniência de nova condenação 507 119 1 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITO S 509 1 Introdução 509 2 Re quisitos para a substituição 510 21 Vedação de pena restritiva de direito na nova Lei de Drogas 513 3 Conversão em pena privativa da liberdade 515 4 Penas restritivas de direito em es pécie 516 41 Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas 516 42 Interdição tem porária de direitos 517 43 Limitação de final de semana 520 44 Perda de bens e valores 520 18 45 Prestação pecuniária 521 451 Substituição por prestação de outra natureza 522 46 Multa substitutiva 522 SUMÁRIO 541 PAULO QlJ E I ROZ 3 Ação penal privada 557 31 Renúncia do ofendido 557 32 Perdão do ofendido 558 4 Ação penal privada subsidiária 558 5 Decadência do direito de queixa e de re presentação 558 1251 CA USA S DE EXTI NÇÃO DE PUNI BI LIDADE 561 1 Introdução 561 2 Causas de extinção em es pécie 563 1261 21 Morte do agente 563 22 Anistia graça e indulto 564 23 Perem pção 565 24 Retratação 565 25 Perdão judicial 566 26 Abolitio criminis e outras 566 27 Prescrição 567 271 Conceito e fundamento 567 272 Es pécies de prescrição 569 273 Prazos 570 2731 Prescrição da Medida de Segurança 571 274 Causas de aumento e de diminuição de pena 572 275 Reincidência 573 276 Concurso de crimes 573 277 Prescrição ordinária da pretensão punitiva 573 278 Prescrição extraordinária retroativa e su perveniente 574 279 Prescrição retroativa anteci pada 575 2710 Termo inicial da prescrição 576 2711 Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva 576 2712 Termo inicial da prescrição da pretensão executória 577 2713 Causas im peditivas ou sus pensivas da prescrição 580 2714 Causas interru ptivas da prescrição 580 DOS EFEI TOS DA CONDENA ÇÃO 587 1 Significado 587 2 Efeitos genéricos 587 21 Dever de indenizar 587 22 Confisco em favor da União dos instrumentos e produtos do crime 588 3 Efeitos es pecíficos 590 20 31 Perda de cargo função pública ou mandato eletivo 590 32 Inca pacidade para o exercício do poder familiar tutela ou curatela 590 1271 SUMÁRIO 33 Inabilitação para dirigir veículo 591 REABI LITAÇÃO 593 REFERÊNCI AS BIBLI OGRÁFI CAS 595 21 O texto que o leitor tem em mãos pretende tratar o direito penal sob uma perspectiva crítica e comprometida com o sistema de valores e princípios da Constituição alfa e ômega do ordenamento jurídico e pois começo e fim da juridicidade De acordo com semelhante perspectiva todos aqueles que lidam com o direito juízes membros do Ministério Público advogados etc há de deixar de ser meros espectadores da lei para exercerem ativamente como seus intérpretes e aplicadores vivos um papel mais dinâmico complexo crítico e criativo do direito tendo como referência a legalidade constitucional E esse novo e desafiador papel mais cresce de importância e mais exige de seus operadores quando se editam e se multiplicam leis penais simbólicas demagógicas e que por conseguinte só descreditam mais ainda o já desacreditado sistema penal pois servem apenas para criar uma só impressão e uma falsa impressão de segurança jurídica Além disso com a constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais do homem CF art 5º a questão dos fins do direito penal deixou de ser uma perspectiva teórica para tornarse uma questão de direito positivo de fundamental importância para juízes e legisladores visto que a Constituição fundamento de validade da ordem jurídica deve orientar tanto a elaboração das leis quanto a sua concretização vale dizer deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada de toda construção doutrinária e jurisprudencial Naturalmente que um direito penal assim concebido um direito penal da Constituição há de ser mínimo garantista instrumental e subsidiário da política social e em particular da política de prevenção e controle da desvio que deve ter como prioridade a integração social do homem e a realização de suas necessidades básicas emprego escola saúde lazer em cujo contexto o direito penal como parte de uma política de proteção integral dos direitos humanos há de ocupar e desempenhar um papel bastante modesto Direito penal mínimo porque a vocação libertária do constituinte de 1988 é manifesta conforme demonstra sua exaustiva declaração de direitos e garantias individuais art 5º de sorte que sendo a liberdade a regra e a não liberdade a exceção medidas constritivas da liberdade em especial as de caráter penal devem constituir a exceção das exceções é dizer devem ser o último recurso de defesa da juridicidada ga Garantista porque por maior que seja o interesse do Estado em castigar o castigo só será legítimo quando respeitadas formal e materialmente as garantias penais e processuais do réu sujeito que é de direito e não simples objeto do direito penal Instrumental porque não constituindo o direito penal um fim em si mesmo mas um meio de proteção de bens jurídicos sua intervenção só se justifica quando e se necessária para a consecução dos fins que lhe são assinalados Por fim subsidiário porque 25 Porque conforme assinala Castanheira Neves o caso não é apenas a condição históricosituacional da compreensão da norma o fator situacionalmente hermenêutico dessa compreensão mas a própria determinante problemática da intenção interpretativa O que significa evidentemente que é o caso e não a norma o prius problemáticointencional e metódico não se intenciona o problema interpretativo nem se parte metodicamente nele da norma para o caso em ordem a uma aplicação da norma que a sua prévia e abstracta interpretação possibilitasse mas do caso para a norma mediantse a interrogação do critério normativo adequado que a norma possa oferecer para o caso Aliás é engano pensar que a técnica jurídica seja bastante para se decidir justamente Sim porque a formação técnicojurídica só pode oferecer na melhor das hipóteses isso uma decisão técnica Mas uma decisão técnica não é uma decisão justa ou não é necessariamente em particular aqueles que acompanham mais de perto as decisões do tribunal do júri sabem que os jurados embora leigos em direito por vezes decidem mais justamente do que os juízes togados É que para o juiz técnico interessa primeiramente a técnica para o juiz leigo importa primordialmente a justeza das decisões por vezes valendose de argumentos insustentáveis de um ponto de vista estritamente dogmático Parece inclusive que no fundo os grandes juízes de direito promotores de justiça e advogados talentosos diferentemente dos meros burocratas à semelhança dos poetas e músicos virtuosos não se tornam nascem e a técnica para tais pessoas constituiu apenas um instrumento de aperfeiçoamento de habilidadesqualidades inatas preexistentes à formação técnica a qual não constitui em si mesma garantia de justeza É que uma boa interpretação na arte como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sensibilidade Ademais semelhante perspectiva práticogarantista infensa a dogmas verdade estimula o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de sua aplicação assim como a consciência do caráter em grande parte ideal e pois irrealizado e carente de realização de seus próprios fundamentos e fontes de legitimação jurídica O leitor logo perceberá que consequentemente com semelhante projeto o autor ousou em mais de um lugar defender posições divergentes da doutrina e do direito codificado por entender que o saber penal não é a mera contemplação do direito como é mas a projeção do direito que deve ser Filangieri Afinal a história do direito penal é a PAULO Q1J E I ROZ sua atuação há de pressu por o fracasso de outras instâncias menos lesivas de controle social com as quais deverá concorrer utilmente A questão fundamental reside assim em dar efetividade ao projeto democráti co maximizando a proteção do cidadão e minimizando a violência projeto para o qual pouco pode contribuir a intervenção penal inevitavelmente traumática cirúr gica e negativa1 Afinal um Estado que se diz Democrático de Direito CF art lº que declara como seus fundamentos a dignidade da pessoa humana a cidadania os valores sociais do trabalho e proclama como seus objetivos fundamentais consti tuir uma sociedade livre justa e solidária que promete erradicar a pobreza e a mar ginalização reduzir as desigualdades sociais e regionais promover o bem de todos sem preconceitos de origem raça sexo cor idade art 3º não deve lançar sobre seus jurisdicionados prematuramente esse sistema de violência seletiva e dis criminatória que é o sistema penal princi palmente quando é esse mesmo Estado por ação eou omissão em parte corres ponsável pela produção e incremento da cri minalidade Antes e para não os iludir com a mera retórica constitucional há de assumir não uma postura passivanegativa garantismo negativo mas uma postura ativa positiva garantismo positivo em face de seus jurisdicionados é dizer há de alimentálos há de darlhes teto há de prestigiarlhes a saúde o trabalho há de realizar a função social da pro priedade há de possibilitarlhes o exercício da cidadania pro porcionandolhes as condições mínimas de desenvolvimento de suas potencialidades e assim reduzir os níveis de desigualdade social realização dos direitos sociais sob pena de esse Estado carecer de legitimidade para exigir dos indivíduos qualquer prestação já que como ressalta Ferrajoli a declaração constitucional dos direitos dos cidadãos e quivale à de claração constitucional dos deveres do Estado2 Cum pre pois trabalhar com um mí nimo de direito penal e com o máximo de políticas sociais mesmo porque problemas estruturais demandam soluções também estruturais e no mais das vezes intervenções individuais v g castigar criminosos embora necessárias servem a penas para a pre texto de mudálas manter as coisas como estão e têm portanto caráter grandemente conservador do status quo Por fim por não ser o direito penal uma ciência de professores mas uma ciência de casos3 toda construção doutrinária e juris prudencial deve ter como prioridade a resolução de conflitos reais evitandose abstrações excessivas e inúteis de interesse puramente acadêmico de modo que o decisivo é a parelhar as agências judiciais dos instrumentos necessários à solução justa ou minimamente injusta dos conflitos ju rídico penais Os conceitos e institutos jurídico penais a teoria do delito etc devem enfim constituir uma ferramenta útil de trabalho 1 A expressão é de Antônio GarcíaPablos 2 Derecho y razón Teoria de Garantismo Penal Madrid Ed Trotta 1995 p 862 3 A expressão é de Santiago Mir Puig 24 PAULO Q1JEIROZ história do Estado um largo caminho de democratização que só estamos iniciando e que por isso re quer uma constante revisão crítica e im plica ao mesmo tempo remover permanentemente mitos ficções e alienações que impeçam essa revisão6 6 Juan Bustos Ramírez Bases Críticas de un nuevo derecho penal Bogotá Temis 1982 p 1 50 26 Sumário 1 Conceito de direito penal 11 Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal 12 Conceito de Direito limites de um conceito 13 Conceito de Direito o Direito não existe 14 Leis são necessárias 15 Direito e arte 151 Direito uma ficção 2 Direito penal criminologia e política criminal 21 Direito penal e política criminal há distinção realmente 3 Direito penal e controle social 4 Direito penal e moral 41 Deus e o Direito 5 Caráter subsidiário do direito penal 6 Caráter fragmentário do direito penal 7 Ilícito penal e ilícito não penal 8 Legislação especial 9 Sobre a legislação em vigor 10 Contagem dos prazos penais e processuais penais 1 CONCEITO DE DIREITO PENAL Simplificadamente1 o direito penal ou direito criminal2 é a parte do ordenamento jurídico que define as infrações penais crimes e contravenções e comina as respectivas sanções penas e medidas de segurança3 Eis algumas das definições mais conhecidas Franz von Liszt o define como o conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime como fato a pena como consequência4 Mezger como o exercício do poder punitivo do Estado que conecta ao delito como pressuposto e a pena como consequência jurídica Welzel como a parte do ordenamento jurídico que determina as características da ação delituosa e lhe impõe penas ou medidas de segurança6 1 Por conceito entendese todo o processo que torne possível a descrição a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis Assim entendido esse termo significa generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou procedimento semântico seja qual for o objeto a que se refere abstrato ou concreto próximo ou distante universal ou individual Nicola Abbagnano Dicionário de Filosofia S Paulo Martins Fontes 2003 p 164 2 Direito penal e direito criminal são as denominações mais comuns Alguns autores referem outras tais como direito protetor dos criminosos Dorado Montero direito repressivo etc mas todas as denominações são mais ou menos corretas mas ou menos críticas A expressão direito repressivo por exemplo constitui a rigor um pleonasmo pois todo o direito e não só o direito penal é repressor visto proibir certas ações e permitir outras Assim o direito civil ao só admitir o casamento monogâmico entre pessoas de sexos opostos reprime e remete para a clandestinidade várias formas de casamento como as relações homoafetivas extraconjugais etc 3 De acordo com Juarez Cirino o direito penal é o setor do ordenamento jurídico que define crimes comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incriminadas Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 3 Um conceito especialmente interessante e diverso aos quais críticos é dado por ZaffaroniBatista ao afirmarem ser o direito penal o ramo do saber jurídico que mediante a interpretação das leis penais propõe aos juízes um sistema orientador das decisões que centrem e reduz o poder punitivo para impulsionar o progresso do estado constitucional do direito Direito Penal Brasileiro 1 Rio de Janeiro Revan 2003 p 40 1 p 1 1 Tratado de direito penal alemão trad José Hygino Duarte Pereira Rio de Janeiro Bgirguet 1899 v 1 p 1 1 Tratado de direito penal 2 ed Madrid 1946 v 1 p 2728 1 Derecho penal alemán trad Bustos e Pérez Santiago Ed Jurídica del Chile 1993 p 1 PAU LO QhEIROZ Wessels dá uma definição mais completa por Direito Penal designase a parte do ordenamento jurídico que determina os pressupostos da punibilidade bem como os caracteres específicos da conduta punível cominando determinadas penas e pre vendo a par de outras consequências jurídicas especialmente medidas de segu ran ça7 Entre nós Frederico Marques assinala que prura se ter uma noção exata é impres cindível que nela se compreendam todas as relações jurídicas que as normas penais disciplinam inclusive as que derivam dessa sistematização ordenadora do delito e da pena apresentando o seguinte conceito o direito penal é o conjunto de normas que ligam ao crime como fato a pena como consequência e disciplina também outras relações jurídicas daí derivadas para estabelecer a aplicabilidade de medidas de segu rança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado8 Mas tais definições não são de todo exatas estando o objeto do direito penal além delas Basta referir algumas normas não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime considerase praticado o crime no momento da ação ou omissão ainda que outro seja o momento do resultado CP arts lº a 4º a pena cum prida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime art 8º o resultado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa art 13 entendese em legítima defesa quem art 25 é isento de pena art 181 considerase funcionário público art 327 Vêse pois que as normas jurídicopenais não se limitam à definição de com portamentos delituosos cominandolhes as respectivas sanções A prevalecer tão restrito conceito só teremos como normas penais aquelas previstas na chamada Par te Especial dos códigos e leis penais extravagantes que preveem as condutas delituo sas A Parte Geral e não raro também a Parte Especial em vez de declarar quais são os comportamentos criminosos ou contravencionais trata de delimitar o âmbito de atuação das normas penais e de estabelecer os critérios de interpretaçãoaplicação do direito penal Mas não apenas isso A Constituição principalmente e o Código Penal definem ainda as bases e os princípios que informam o direito penal traçandolhe o perfil limi tes e contornos Numa palavra dãolhe a conformação políticojurídica Assim por exemplo quando adota o princípio da legalidade o princípio da não perpetuação das penas ou o princípio da individualização judicial da pena Enfim as normas jurídicopenais propriamente ditas previstas ou não num diploma penal ao tempo em que fundam e estruturam o poder punitivo do Estado fixam os princípios e regras fundamentais que vão governar a intervenção jurídicopenal criando um siste ma de garantias em face do exercício deste poder 7 Direito penal trad Juarez Tavares 5 ed Porto Alegre Sergio A Fabris Editor 1976 p 5 8 Tratado de direito penal Campinas Bookseller 1997 p 24 30 PARTE I FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL Ademais tais definições ao ressaltarem a relação Estadoinfrator marginalizam a vítima desconsiderando o papel fundamental que esta vem de assumir no direito penal e no direito processual penal PAULO QlJEIROZ 11 Relação eJtre Direito Penal e Direito Processual Penal O direito penal não se confunde com o direito processual penal Com efeito se o direito penal define os crimes e comina as penas por sua vez o processo penal disci plina o modo como se dará a apuração dos delitos e a aplicação das penas Ou seja o processo penal estabelece as condições princípios etc de legitimação da jurisdição penal dispondo sobre quem pode investigar acusar e julgar as infrações penais como isso ocorrerá ação penal etc e quando se realizará prazos etc O direito processual penal é por conseguinte a parte do ordenamento jurídico que institui e organiza os órgãos públicos que cumprem a função jurisdicional do Estado e disciplina os atos que integram o procedimento necessário para a aplicação de uma pena ou medida de segurança13 Ao processo penal incumbe enfim regular o direito de ação definir competên cias fixar o procedimento e meios de prova bem como estabelecer as providências cautelares pessoais e reais prisões etc e recursos necessárias à aplicação do direito penal razão pela qual o processo penal nada mais é do que um continuum do direito penal ou seja é o direito penal em movimento14 razão pela qual formam uma unidade Afinal e como assinala Aury Lopes Jr não existe crime sem castigo nem castigo sem crime e processo nem processo criminal senão para determinar um crime e impor um castigo15 Ademais se como veremos a interpretação constitui a própria realização do di reito e não a constatação de um direito preexistente razão pela qual o direito não existe a priori mas a posteriori seguese então que essa realização se dá por meio do p 8 1 Também Kelsen observou O Direito e a força não devem ser compreendidos como absoluta mente antagônicos O Direito é uma organização da força Porque o Direito vincula certas condições para o uso da força nas relações entre os homens autorizando o emprego da força apenas por certos indivíduos e sob certas circunstâncias O Direito autoriza certa conduta que sob todas as outras cir cunstâncias deve ser considerada proibida ser considerada proibida significa ser a própria condição para que tal ato coercitivo atue como sanção O indivíduo que autorizado pela ordem jurídica aplica a medida coercitiva a sanção atua como um agente dessa ordem ou o que equivale a dizer o mes mo como um órgão da comunidade constituído por ela Apenas esse indivíduo apenas o órgão da comunidade está autorizado a empregar a força Por conseguinte podese dizer que o Direito faz o uso da força um monopólio da comunidade E precisamente por fazêlo o Direito pacifica a comu nidade Teoria geral do direito e do estado Tradução Luíz Carlos Borges 4ª Ed São Paulo Martins Fotnes 2005 p 30 1 3 Maier Julio B J Derecho Procesal Penal Tomo 1 Fundamentos 3 ed Buenos Aires Editores dei Puerto 2004 p 75 De acordo com José Frederico Marques o direito processual penal é o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do direito penal bem como as atividades persecutórias da polícia judiciária e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares Elementos de direito processual penal v 1 São Paulo Forense 1965 p 20 1 4 Como escreve Fernando da Costa Tourinho Filho é o Direito Processual Penal que dinamiza o Direi to Penal O Direito Penal material é a energia potencial o Direito Processual Penal é o meio pelo qual essa energia pode colocarse concretamente em ação Processo Penal São Paulo Editora Saraiva 201 0 p54 1 5 Direito Processual Penal São Paulo Saraiva 201 3 p76 32 1 0 1 1 I NTRODUÇÃO prncesso penal que cria as condições de legitimaçãodeslegitimação da jurisdição pe nal Como ensinava Calmon de Passos não há um direito independente do processo de sua enunciação o que equivale a dizerse que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um16 O processo penal é em suma o modo constitucionalmente legítimo de realização do direito penal Efetivamente não pode haver direito penal sem processo penal porque é por meio do processo que o Estado detentor do poder de punir17 determinará por exemplo se houve crime quem é seu autor se a prova produzida é lícita se se agiu ou não ampa rado por excludentes de ilicitude ou de culpabilidade etc Por isso é que entre o direito peoal e o processo penal há uma relação de mútua referência e complementaridade18 visto que o direito penal é impensável sem um processo penal e viceversa Daí dizer Calmon de Passos que a relação entre o direito material e o processo não é uma rela ção apenas de meio e fim isto é instrumental mas uma relação integrativa orgânica substancial uma vez que o direito é socialmente construído historicamente formu 1 lado atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço e pois somente o é depois de produzido19 A função essencial do processo é criar portanto as condições de realização de um direito justo ou ao menos conforme as garantias de um direito penal democrá tico 20Como observa Roxin tratase de um processo estruturado dialeticamente que envolve interesses contrapostos da acusação e da defesa e que visa a fins complexos a condenação do culpado a proteção do inocente a legalidade do procedimento e a estabilidade jurídica da decisão21 Justamente por isso os princípios que informam o direito penal irretroatividade inclusive hão de igualmente valer para o processo penal indistintamente Também por isso os constrangimentos previstos na legislação processual jamais poderão exceder àqueles que podem resultar da própria condenação sob pena de violação ao princípio 16 Instrumentalidade do processo e devido processo legal Revista de processo nº 1 02 São Paulo RT 200 1 ano 26 abriljunho de 2001 17 Segundo Aury Lopes Júnior o processo como instituição estatal é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena visto que o direito penal é desprovido de coação direta e diferentemente do direito privado não tem atuação nem realidade concreta fora do processo corres pondente in Introdução Crítica ao Processo Penal 4 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 3 1 8 Figueiredo Dias Jorge Direito Processual Penal ed Coimbra Coimbra Editora 1974 reimpres são 2004 p 28 19 J J Calmon de Passos Direito poder justiça e processo Forense Rio de Janeiro 1999 p 52 e 68 20 De acordo com Pontes de Miranda a finalidade preponderante hoje do processo é realizar o Direito o direito objetivo e não só menos ainda precipuamente os direitos subjetivos O processo não é mais que do que o corretivo da imperfeita realização automática do direito objetivo Daí dizerem alguns autores que é meramente instrumental Tratado das ações tomo I Campinas SP Bookseller 1998 p 245246 21 Derecho Procesal Penal Buenos Aires Editores dei Puerto 2000 p4 33 PAULO QlJEIROZ da proporcionalidade e conversão do processo em pena antecipada Assim não cabe por exemplo a prisão provisória do réu se a infração penal a que responde não comina pena privativa da liberdade ou admite a substituição por pena restritiva de direito CPP art 283 1 º Ademais o princípio in dubio pro reo tradicionalmente associado à valoração da prova no processo penal é também aplicável ao direito penal porque constitui uma di mensão do princípio da presunção de inocência Consequentemente existindo fundada dúvida por exemplo sobre se se trata de crime doloso ou culposo de atos preparató rios ou executórios se existe ou não nexo causal se ocorreu ou não prescrição etc haverá de prevalecer a tese mais favorável ao réu É ônus da acusação e não da defesa fazer prova dos fatos alegados na denúncia queixa ou seja é seu dever demonstrar o cometimento de uma infração penal punível com todos os seus elementos constitutivos Não se prova a inocência mas a culpa E é sempre preferível absolver um suposto culpado a condenar um possível inocente Apesar do que aqui se diz e se propõe direito penal e processo penal não são con fundíveis porque a prisão provisória em flagrante delito etc por exemplo não é a própria pena cominada ao crime nem sua antecipação a qual pressupõe um processo sob pena de se confundir o processo de conhecimento com o processo de execução a própria execução da pena e neste caso o processo que deveria assegurar ao réu as garantias que lhe são inerentes com vistas à realização de um julgamento justo seria um simples pretexto para se infligir um castigo antecipado a alguém e legitimar deci sões arbitrárias como se de fato processo algum existisse Embora o direito penal e o processo formem um todo indissociável não é função do processo penal democrático prevenir em caráter geral ou especial novos delitos porque tal finalidade pressupõe um agente declarado culpado de crime segundo o de vido processo constitucional Enfim não é possível em princípio falar de prevenção positiva ou negativa geral ou individual relativamente a alguém que a lei tem como presumido inocente22 Exceção a isso é a prisão preventiva para evitar a reiteração de crimes garantia da ordem pública dado o perigo concreto de que tal ocorra Com efeito o que de fato em está em causa relativamente à prisão provisória de membros de organizações cri minosas delinquentes habituais multirreincidentes etc é a segurança dos indivíduos e a proteção social típica finalidade políticocriminal que pressupõe sentença penal condenatória23 22 De modo diverso Jürgen Wolter e Georg Freund El sistema integral dei Derecho penal delito determinación de la pena y processo penal Barcelona Marcial Pons 2004 Para uma crítica a esses autores Fernando Díaz Cantón Vicisitudes de la cuestión de la autonomia o dependencia entre el Derecho penal y el Derecho procesal penal ln Estudios sobre Justicia Penal Homenaje ai professor Julio BJMaier Buenos Aires Editores dei Puerto 2005 23 Pa11e da doutrina tem que a prisão preventiva para garantia da ordem pública é inconstitucional por violação ao princípio da presunção de inocência Ferrajoli propõe inclusive a abolição pura e simples 34 1 01 1 1 NTRODUÇÀO O mesmo deve ser dito mutatis mutandis das medidas cautelares pessoais e reais decretadas para proteger a vítima ameaçada fazer cessar a atividade criminosa evitar novos crimes ou exercer algum controle sobre o réu fora da prisão CPP art 319 As sim também ocorre com certas formas de composição previstas em lei a exemplo da transação penal suspensão condicional do processo etc Por fim também a execução penal última etapa de realização do direito penal há de regerse pelos princípios constitucionais do direito e processo penal pois o direito apesar de dividido em ramos pretende ser um só Assim modificações legis lativas criadas em desfavor do condenado não podem atingir as condenações por cri mes cometidos anteriormente à sua entrada em vigor sob pena de violação ao prin cípio da irretroatividade da lei mais severa v g uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência Em conclusão e contrariamente à doutrina e à jurisprudência ainda hoje majoritá rias temos que os princípios que informam o direito penal hão de também valer para o direito processual penal e execução penal de modo a conferirlhes tratamento unitário e conforme a Constituição24 É que apesar da distinção direito penal processo penal e execução penal consti tuem momentos de um mesmo fenômeno que é o exercício do poder punitivo estatal destinados a legitimardeslegitimar uma forma especial real e simbólica de violência a pena 12 Conceito de Direito limites de um conceito Dizer que o direito penal é a parte do ordenamento jurídico que define crimes e comina penas é dizer muito pouco mesmo porque nada foi dito sobre o que vem a ser o direito realmente E o direito penal antes de ser penal é direito e pois sujeito em princípio aos mesmos fins e limites de todo o direito de toda e qualquer prisão provisória Derecho y razón Madrid Editorial Trotta 1 995 p 559561 Não estamos de acordo com isso É que para reconhecer essa ideia extrema teríamos de partir lógica e coerentemente de uma premissa igualmente extrema isto é que o princípio da presunção de ino cência é absoluto e não comporta uma tal exceção Ocorre que se essa tese estiver correta teríamos de concluir logicamente que toda e qualquer medida cautelar pessoal ou real e não só a prisão preven tiva para evitar a reiteração de delitos e semelhantes seria inconstitucional já que sempre implicaria um juízo provisório de culpa e pois uma relativização indevida do princípio da não culpabilidade Ademais se a prisão preventiva nesse caso específico tem ou não natureza cautelar isso depende do conceito de cautelaridade de que se parte Finalmente se entendermos que casos tão extremos não legitimam a prisão provisória é improvável que as demais hipóteses legais conveniência da instrução criminal etc possam fazêlo Não obstante isso é certo que na prática é frequente o abuso da prisão preventiva a pretexto de garantir a ordem pública 24 Também por isso é recomendável que as refonnas penais e processuais sejam feitas simultaneamente e seguindo uma mesma linha políticocriminal 35 PAULO Ül E I ROZ Pois bem em primeiro lugar o direito é um conceito tal qual justiça moral ética ou estética E como conceito remete necessariamente a outros conceitos lei ordem segurança liberdade bem jurídico etc que também reenviam a outros tan tos motivo pelo qual só se pode obter um conceito de direito por meio de remissões associações 25 Em segundo lugar o mais elaborado ou prestigiado conceito de direito é apenas um entre vários conceitos possíveis de sorte que traduz em última análise o ponto de vista de seu autor ou de quem o adota afinal outros tantos conceitos mais ou menos exatos mais ou menos amplos são igualmente possíveis26 Também por isso um con ceito constitui uma apreensão sempre parcial do mundo num universo de possibilida des um conceito é uma simplificação uma redução27 Em terceiro lugar todo conceito como representação formal do pensamento pouco ou nada diz sobre o seu conteúdo isto é pouco ou nada diz sobre as múltiplas formas que ele pode histórica e concretamente assumir até porque embora pretenda valer para o futuro é pensado a partir de uma experiência passada a revelar que defi nir algo é de certo modo legislar sobre o desconhecido28 Também por isso um concei to como expressão da linguagem é estruturalmente aberto e pois pode compreender objetos históricos os mais díspares v g o conceito de legítima defesa depende do que se entenda em dado contexto por injusta agressão uso moderado dos meios neces sários etc Conceitos são cheques em branco 25 Cada conceito remete a outros conceitos não somente em sua história mas em seu devir ou suas conexões presentes Cada conceito tem componentes que podem ser por sua vez tomados como con ceitos Os conceitos vão pois ao infinito e sendo criados não são jamais criados do nada Giles Deleuze e Félix Guattari O que é filosofia S Paulo Editora 34 2005 26 Eis alguns conceitos o direito é pois o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade Kant Metafisica dos costumes parte 1 Lisboa Edições 70 p 36 o domínio do direito é o espírito em geral aí a sua base própria o seu ponto de partida está na vontade livre de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo Hegel Princípios de filosofia do direito trad Orlando Vitorino São Paulo Martins Fontes 1 997 p 1 2 Direito é a ordenação heterônoma coercível e bilateral atributiva das relações de convivência segundo uma integração nor mativa de fatos segundo valores Miguel Reale Lições preliminares de direito São Paulo Saraiva 2005 p 67 27 Na Física a situação não é diversa porque de acordo com FritjofCapra a Física moderna confirmou de forma dramática uma das ideias básicas do misticismo oriental a de que todos os conceitos que utilizamos para descrever a natureza são limitados e não são características da realidade como tende mos a acreditar mas criações da mente partes do mapa e não do território Sempre que expandimos o reino de nossas experiências as limitações da nossa mente racional tornamse evidentes levandonos a modificar ou menos a abandonar alguns de nossos conceitos O Tao da Física S Paulo Cultrix 1 995 p 1 26 28 Talvez por isso tenha dito Nietzsche que conhecimento em si no devir é impossível como é por tanto possível conhecimento Como erro sobre si mesmo como vontade de poder como vontade de ilusão Vontade de poder cit 36 1 01 1 I NTRODUÇÃO Em quarto lugar um conceito que é assim socialmente construído so e com preensível num espaço e tempo determinados motivo pelo qual com ou sem alteração de seus termos está em permanente transformação afinal um conceito encerra uma convenção sempre provisória e está condicionado por préconceitos ou préjuízos Por isso é que o legal e o ilegal o lícito e o ilícito variam no tempo e no espaço inde pendentemente inclusive da alteração dos termos da lei até porque o direito existe com ou sem leis v g comunidades ou países que seguem um direito costumeiro Todo conceito como todo texto pressupõe um dado contexto Exatamente por isso o que é justo hoje ou o foi ontem não será necessariamente amanhã Pode ocorrer inclusive de se ter por justo e legal num dado momento algo que se tornará injusto e ilegal e eventualmente criminoso em momento posterior v g a discriminação de homossexuais ou de filhos havidos fora do casamento danos ao meio ambiente podendose imaginar que no futuro tal como já ocorre nalguns países muito do que atualmente é ilegal se tornará legal e viceversa como a euta násia o casamento entre pessoas do mesmo sexo a adoção por tais casais a mudança de sexo etc Aliás historicamente nem todas as pessoas foram consideradas como sujeitos de direito v g estrangeiros prisioneiros de guerra mulheres escravos29 O ser do direito é um devir30 Não existe portanto direito vagando fora ou além da história nem fora ou além das relações de poder que o constituem Afinal o tempo são palavras de Kant é a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral uma vez que todos os obje tos dos sentidos estão no tempo e necessariamente sujeitos às relações do tempo31 Naturalmente que apesar de inexistir um direito ahistórico atemporal existem pessoas que assim se pretendem isto é que são de tal modo conservadoras que estão em permanente conflito com os valores de seu tempo Em quinto lugar o conceito de direito tal qual o conceito de justiça liberdade igualdade e diferentemente do conceito de cavalo automóvel etc que dizem respeito a algo concreto não remete a uma coisa a um objeto propriamente mas a relações e conflitos que daí resultam v g paisfilhos empresaempregados autoresvítimas Estadocriminosos etc Exatamente por isso o direito não é um conjunto de artigos de lei mas um conjunto de relações humanas32 29 Também por isso não é correto criticar ajustiça ou injustiça de um ato ou instituição v g a escravi dão desconsiderando o contexto em que surgiram Não é de admirar por isso que no futuro tal como já ocorre nalguns países se for abolida a repressão ao tráfico ilícito drogas passem a ser vendidas em drogarias e a história da sua repressão seja vista como selvageria ou algo similar 30 Devir ou vir a ser 1 O mesmo que mudança 2 Uma forma particular de mudança a mudança absolu ta ou substancial que vai do nada ao ser ou do ser ao nada Nico la Abbagnano Dicionário de Filosofia cit p 268 3 1 Crítica da razão pura Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 201 O p 73 32 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 37 PAULO QJEIROZ Espinosa tinha razão portanto quando dizia que o bem leiase o lícito e o mal leiase o ilícito não são coisas reais entia realia mas entes da razão entia rationis logo são apenas relações e que por isso não existem na natureza pois jamais se disse que algo é bom senão em relação a outro que não é tão bom ou não nos é tão útil como o primeiro E assim quando alguém diz que um homem é mau não o diz senão em relação a outro que é melhor ou também que uma maçã é má senão em relação a outra que é boa ou melhor33 Ou ainda como escreve Michel Onfray o bem e o mal o verdadeiro e o falso o justo e o injusto o belo e o feio pertencem a decisões huma nas contratuais relativas e históricas Essas formas não existem a priori mas a poste riori elas devem se inscrever na rede neuronal para ser não há moral sem as conexões neuronais que permitam sua existência34 Finalmente todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e por isso constitui uma universalização do não universal do singular um conceito nasce portanto da postulação de identidade do não idêntico35 O conceito de crime por exem plo referese a um semnúmero de condutas que a rigor nada têm em comum à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas matar alguém subtrair coisa alheia móvel emitir cheque sem provisão de fundos portar droga para consumo pessoal abater espécime de fauna silvestre etc espécime que pode variar de uma minhoca ou uma bor boleta a uma onça pintada conceitos que por sua vez unificam coisas díspares Com efeito não existe um homicídio absolutamente igual a outro homicídio nem um furto absolutamente igual a outro furto nem um crime ambiental absolutamente igual a outro pois as múltiplas variáveis que sempre envolvem tais atos tornam cada ação humana singular única irrepetível Enfim um conceito é formado pela elimi nação do que há de particular em cada ato e quanto mais exato mais abstrato e mais vazio de conteúdo se torna36 Aliás a analogia que tradicionalmente tem merecido um tratamento secundário não constitui conforme veremos um elemento acidental mas essencial ao conheci mentointerpretação pois o belo e o feio o justo e o injusto o legal e o ilegal são cons truídos em verdade a partir de comparações analogias isto é recorrendose cons cientemente ou não a experiências sempre novas de beleza de justiça e de legalidade O direito não é um saber lógico mas analógico Por fim o conceito de direito não é a própria coisa práticas sociais etc que desig namos como direito assim como o conceito de automóvel não é o próprio automóvel37 Um conceito é essencialmente uma imagem ela mesma um conceito 33 Breve Tratado de Deus do homem e de seu bemestar São Paulo Autêntica editora 2012 p8687 34 A potência de existir Michel Onfray São Paulo Martins Fontes 2010 p47 35 Nietzsche Friedrich Sobre verdad y mentira en sentido extramoral Madrid Ternos 1 996 36 Nietzsche Friedrich Sobre verdad y mentira en sentido extramoral Madrid Ternos 1 996 37 De acordo com Flávio Kothe jamais o que se tem na mente pode ser idêntico à coisa como tal já porque são duas existências distintas e irreconciliáveis numa só Já por isso ninguém poderia 38 01 INTRODUÇÃO De tudo isso resulta que o direito não está previamente dado pois é parte da cons trução social da realidade e portanto o direito não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual a interpretação não é um modo de desvelar um suposto direito preexistente mas a forma mesma de realização do direito Enfim não é mais a interpretação que depende do direito ou da lei mas o direito ou a lei que depende da interpretação Que é pois o direito Sob essa perspectiva o direito é um conjunto móvel de me táforas e metonímias38 13 Conceito de Direito o Direito não existe É importante notar ainda que o que a tradição nos legou com o nome de Direito não é uma coisa isto é não tem uma essência uma substância não existe ontologica mente independentemente da representação que fazemos a seu respeito porque cons titui uma criação humana que nasce e morre com o homem ou seja o direito não é sólido nem líquido nem gasoso nem animal nem vegetal39 Com efeito aquilo que uma teoria do direito objetiva como direito são palavras de François Ewald como natureza do direito como essência do direito não tem exis tência real O Direito demoslhe maiúsculas não existe Ou antes não existe a não ser como um nome que não reenvia a um objeto mas serve para designar uma multipli cidade de objetos históricos possíveis que como realidades não têm os mesmos atri butos e que podem mesmo ter atributos irredutíveis40 de sorte que assim como não portanto pretender absoluta adequação já que existe uma inadequação constitutiva Ensaios de semiótica da cultura Brasília Editora UnB 201 1 p 56 38 Eis textualmente o que Nietzsche escreveu a propósito da verdade Qué es entonces la verdad Un hueste em movimiento de metáforas metonimias antropomorfismos en resumidas cuentas una suma de relaciones humanas que han sido realizadas extrapoladas y adornadas poetica y retórica mente y que después de un prolongado uso un pueblo considera firmes canónicas y vinculantes las verdades son ilusiones de las que se ha olvidado que lo son metáforas que se han vuelto gastadas y sin fuerza sensible monedas que han perdido su troquelado y no son ahora ya consideradas como monedas sino como metal cit p 25 39 Calmon de Passos Direito poder justiça e processo Rio de Janeiro Forense 1 999 p 6768 40 Foucault A norma e o direito Lisboa Vega 1 993 p 1 60 De modo similar Calmon de Passos afinna que o direito enquanto apenas formulação teórica enunciado no1mativo proposição ou juízo ainda não é o Direito pois o Direito é o que dele faz o processo de sua produção Isso nos adverte de que nunca é algo dado pronto preestabelecido ou préproduzido cuja aplicação é p ossível mediante simples utilização de determinadas técnicas e instrumentos com segura previsão das consequências razão pela qual O Direito em verdade é produzido a cada ato de sua pro dução concretizase com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado Direito poder justiça e processo Rio de Janeiro Forense 1 999 p 6768 Não por outra razão Oliver Wendell Holmes afirmava que o que o direito realmente faz é criar profecias sobre o que os tribunais farão de fato Textualmente the propheties ofwhat the courts will do in fact and nothing more pretentious are what I mean by the law apud Arthur Kaufmann Filosofia do direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 39 PAULO QlJ E I ROZ existem fenômenos morais mas uma interpretação moral dos fenômenos41 tampouco existem fenômenos jurídicos mas só uma interpretação jurídica dos fenômenos pois nada é onticamente jurídico lícito ou ilícito mas socialmente construído Em direito nada é dado tudo é construído Em conclusão o direito é o que dizemos que ele é porque o direito como de resto quase tudo que diz respeito ao homem não está no fato ou na norma em si mas na cabeça das pessoas de modo que podemos afirmar parafraseando o Evangelho Lu cas 1721 que o reino do direito está dentro de nós e que nós o criamos e recriamos permanentemente dandolhe distintos significados a cada momento de sua produção segundo um dado contexto históricocultural Dito de outra forma o direito e o não di reito tal qual o justo e o injusto o pio e o ímpio o moral e o imoral o ético e o estético é em nós que ele existe42 Daí que o direito como o poder não é uma coisa mas relaçõesinteraçõesinter pretaçõesdecisões que é algo que se exerce que se efetua que funciona como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo mas se dissemina por toda a estrutura social43 Constitui por isso uma grande simplifica ção supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se esgote no direito legislado44 já que cada um carrega dentro de si seus microssistemas jurídi cos e os faz ou tenta fazêlos prevalecer nos seus espaços de interaçãoexercício de poder 4 1 Nietzsche Friederich Para além do bem e do mal trad Alex Marins São Paulo Martin Claret 2002 p 92 aforismo 1 08 42 Só assim se explica por exemplo que interpretando a Constituição americana que vigora há séculos tenha a Suprema Corte entendido inicialmente que o racismo era constitucional mais tarde década de 1 950 passouse a considerálo parcialmente inconstitucional e finalmente a partir da década ele 1 970 prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional O que mudou se o texto da lei é o mesmo desde então A resposta é o homem que o interpreta 43 Roberto Machado Por uma genealogia do poder in Michel Foucault Microfisica do Poder Rio ele Janeiro Graal 1 995 p XIV 44 Não sem razão Boaventura de Souza Santos refere além do direito estatal ou territorial o direito doméstico o direito de proteção o direito da comunidade e o direito sistêmico classificação que não é exaustiva O direito doméstico grandemente informal é o direito do espaço doméstico o conjunto de regras de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da e na sedimentação das relações sociais do agregado doméstico o direito da produção é o di reito da fábrica ou da empresa o conjunto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assalariado códigos de fábrica regulamentos da linha de produção códigos de condutas dos empregados etc o direito da comunidade como sucede com o espaço da comunidade é uma das fontes de direito mais complexas na medida em que cobre si tuações extremamente diversas podendo ser invocado tanto pelos grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos finalmente o direito territorial ou estatal é o direito do espaço da cidadania e nas sociedades modernas é o direito central na maioria das constelações de ordens jurídicas sendo que ao longo dos últimos duzentos anos foi construído pelo liberalismo político e pela ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade in Crítica da razão indolente São Paulo Cortez 2000 p 290 e ss 40 1 01 1 1 NTRODUÇÃO Dizemos por exemplo o direito penal primeiro por meio dos processos de crimi nalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e não é cri me porque assim o exige o princípio da legalidade CF art 5 XXXIX segundo por meio dos processos de criminalização secundária isto é através das ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente envolvidas com o crime Judiciário Ministério Público polícia etc Assim se não há crime nem pena sem lei anterior que o defina seguese que por mais que uma determinada conduta humana seja moral e socialmente reprovável se não houver lei que a declare criminosa criminosa não é sendo jurídicopenalmente irrelevante É a lei portanto que cria o crime é a lei que cria o criminoso Numa pala vra só é crime o que o legislador diz que é45 Mas esse discurso aí não cessa porque prossegue por meio dos processos de defi nição e reação social isto é os processos de criminalização secundária que nada mais são do que um continuum daquele É que de um certo modo a lei nada prescreve proí be ou permite pois a lei prescreve proíbe ou permite o que dizemos que ela prescreve proíbe ou permite de sorte que a lei diz o que dizemos que ela diz46 45 Apesar disso tem razão Niklas Luhmann quando de uma perspectiva distinta assinala que o direi to não se origina da pena do legislador A decisão do legislador e o mesmo é válido como hoje se reconhece para a decisão do juiz se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes entre as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade Se não fosse assim ela não seria uma decisão jurídica Sua função portanto não reside na criação do direito mas na seleção e na dignificação simbólica de nonnas enquanto direito vinculativo Ele envolve um filtro processual pelo qual todas as ideias jurídicas têm que passar para se tomarem socialmente vinculativas enquanto direito Esses processos não geram o direito propriamente dito mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões aí se decide sobre a vigência ou não mas o direito não é criado do nada É importante ter em mente essa diferença pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção totalmente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador É necessário em outras palavras diferenciar entre atribuição e causalidade A proeminência especial do processo decisório por instâncias legislativas ou por juízes e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação como algo criativo ou causal o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento de possibilidades e sua redução a uma decisão consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais decisões Sociologia do direito II Rio de Janeiro Biblioteca Tempo Universitário 80 1985 p 8 46 Por isso afirma Lênio Luiz Streck que não existem julgamentos de acordo com a lei ou em de sacordo com ela porque o texto normativo não contém imediatamente a norma Müller a qual é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito de sorte que quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário Conclui então que é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras é também comportamentos símbolos conhecimentos expressados sempre na e pela linguagem É o que a lei manda mas também o que os juízes interpretam os advogados argumentam as partes declaram os teóricos produzem os legisladores criticam É enfim um discurso constitutivo uma vez que designaatribui significado a fatos e palavras in Hermenêutica jurídica em crise Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 1 999 p 2 1 02 1 1 41 PAULO QjEIROZ Aliás e conforme assinala Umberto Eco um texto uma vez separado do seu emissor bem como da intenção do seu emissor e das circunstâncias concretas da sua emissão e de seu referente implícito flutua no vácuo de um espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis Consequentemente texto algum pode ser interpre tado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo original e definitivo A lingua gem sempre diz algo mais do que o seu inacessível sentido literal o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual47 É que o sentido das coisas fatos provas textos etc não é dado pelas próprias coisas mas por nós ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibi lidades aí incluída a falta de sentido inclusive48 Justamente por isso matar roubar ou estuprar pode ser conforme o direito inclu sive porque o que seja matar roubar ou estuprar e as possíveis formas de legi timação dessas ações legítima defesa etc e de isenção de culpa doença mental etc 47 Os limites da interpretação S Paulo Editora Perspectiva 2000 p XIV Apesar disso e conforme sugere o próprio título do texto os limites da interpretação Umberto Eco entende com razão que há limites à interpretação de sorte que nem toda interpretação é aceitável ou válida Vide capítulo sobre interpre tação Algo similar se lê também em Gadamer A compreensão não é uma transposição psíquica O horizonte de sentido da compreensão não pode ser limitado nem pelo que o autor tinha originalmente em mente nem pelo horizonte do destinatário a que foi escrito o texto na origem Por conseguinte não é a partir daí que podem ser traçados os limites de seu sentido Os textos não querem ser entendi dos como expressão vital da subjetividade de seu autor Conceitos normativos como a opinião do autor ou a compreensão do leitor originário não representam na realidade mais que um lugar vazio que se preenche de compreensão de ocasião em ocasião Gadamer cit p 575576 E Ricoeur graças à escrita o discurso se liberta da tutela de intenção do autor das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável Paul Ricoeur in O justo e a essência da justiça Instituto Piaget Lisboa 1995 48 Arthur Schopenhauer escreveu O mundo é a minha representação Esta proposição é uma verda de para todo ser vivo e pensante embora só no homem chegue a transformarse em conhecimento abstrato e refletido A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado pode dizerse que nasceu nele o espírito filosófico Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra mas apenas olhos que veem este sol mãos que tocam esta terra em uma palavra ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação na sua relação com um ser que percebe que é o próprio homem Se existe uma verdade que se possa afirmar a priori é esta pois ela exprime o modo de toda experiência possível e imaginável conceito muito geral que os de tempo espaço e causalidade que o implicam Com efeito cada um destes conceitos nos quais reconhecemos formas diversas do princípio da razão apenas é aplicável a uma ordem determinada de representações a distinção entre sujeito e objeto é pelo contrário o modo comum a todas o único sob o qual se pode conceber uma representação qualquer abstrata ou intuitiva racional ou empírica Nenhuma verdade é portanto mais certa mais absoluta mais evidente do que esta tudo o que existe existe para o pensamento isto é o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito percepção apenas em relação a um espírito que percebe Em uma palavra é pura representação Esta lei aplicase naturalmente a todo o presente a todo o passado e a todo o futuro àquilo que está longe tal como àquilo que está perto de nós visto que ela é verdadeira para o próprio tempo e o próprio espaço graças aos quais as representações particulares se distinguem umas das outras Tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária perante o sujeito e apenas existe para o sujeito O mundo é portanto represen tação O mundo como vontade e representação S Paulo Contraponto 2004 2ª reimpressão p 9 42 1 01 1 I NT RODUÇÃO não estão previamente dadas apesar de existir grande consenso sobre tais assuntos49 O direito é pois uma construção social relativamente arbitrária que como tal pode em tese compreender qualquer conteúdo motivo pelo qual nada existe a priori que não possa ser direito Também por isso o direito sobretudo o penal pode eventualmente legitimar formas muito cruéis de violência sem que percebamos como tal Mais concretamente a lei prescreve que o crime de estupro consiste em constran ger alguém à prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça CP art 213 parece óbvio saber em que consiste o crime pois No entanto práticas sadomasoquistas podem ser consideradas criminosas Não faz muito tempo autores importantes afirmavam que o marido não podia responder por crime de estupro contra a esposa porque diziam entre os direitos inerentes ao casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente razão pela qual não lhe era dado oferecer resistência lícita 50 Ainda hoje parte da doutrina entende que é possível estu pro nesse caso mas desde que a esposa tenha justa causa para a negativa 51 Não bastasse isso o Código equipara a estupro violento o estupro de vulnerável isto é praticado contra menores de catorze anos CP art 217A52 ou contra pessoa que padeça de deficiência mental etc o que significa dizer que muitos namoros poderão ser interpretados como autênticos estupros ainda quando se passem entre menores ou 49 Um exemplo extremo disso é a figura do agente infiltrado que nalguns países pode dispor de autorização judicial e legal para cometer toda sorte de crimes em nome do Estado de modo que a lei que afaga é a mesma que apedreja Como escreveu Pascal o latrocínio o incesto o assassinato das crianças e dos pais tudo encontrou seu lugar entre as ações virtuosas Pode haver algo de mais absurdo que um homem ter direito de matarse porque mora do outro lado do rio e seu príncipe é contendor com o meu embora eu não tenha nada contra ele Pensamentos sobre política São Paulo Martins Fontes 1994 50 Assim Nélson Hungria questionase sobre se o marido pode ser ou não considerado réu no estupro quando mediante violência constrange a esposa à prestação sexual A solução justa é no sentido negati vo O estupro pressupõe cópula ilícita fora do casamento A cópula intra matrimonium é recíproco de ver dos cônjuges O marido violentador salvo excesso inescusável ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência tisica em si mesma excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito in Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro Forense 1959 p 125126 Assim também Magalhães Noronha as relações sexuais são pertinentes à vida conjugal constituindo direito e dever recíproco dos que casam O marido tem direito à posse sexual da mulher 1 ao qual ela não pode se opor Casandose dormindo sob o mesmo teto aceitando a vida em comum a mulher não se pode furtar ao congresso sexual cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie Avio lência por parte do marido não constituiria em princípio crime de estupro desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo podendo todavia ele responder por excesso cometido Direito penal v 3 São Paulo Saraiva 27 ed 2003 5 1 Damásio de Jesus Direito Penal Parte Especial 3 volume p 96 São Paulo Saraiva 2002 Paulo José da Costa Júnior até recentemente defendia que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo marido Curso de Direito Penal São Paulo Saraiva 2008 52 Diz o referido at1igo que incorre na pena de 8 a 1 5 anos de reclusão aquele que mantiver relações sexuais com menor de 14 anos caput ou praticar as ações descritas no caput com alguém que por enfermidade ou deficiência mental não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que por qualquer outra causa não pode oferecer resistência 1 º 43 PAULO QjEIROZ entre pessoas também portadoras de alguma deficiência mental Finalmente o que sig nifica ou pode significar constranger Consideremos outro exemplo A Constituição veda expressamente as penas de morte e cruéis CF art 5 XLVIl53 Mas o que vem a ser pena de morte ou pena cruel A resposta não é tão óbvia como parece É evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal procla mar a culpa de um réu e condenálo à pena capital seja com um tiro de fuzil seja por enforcamento seja por qualquer outro meio A pena de morte é enfim um homicídio levado a cabo pelo Estado legalmente Mas veja o art 303 2º da Lei nº 7565 de 1 9 de dezembro de 1986 Código Brasileiro de Aeronáutica alterada pela Lei nº 961498 bem assim o Decreto nº 5144 de 16 de julho de 2004 que o regulamentou previu a destruição de aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins Perguntase não seria isso pena de mortecruel por juízo de exceção constitucionalmente vedada Pois bem apreciando petição que arguia a inconstitucionalidade não recepção da aludida legislação o Procuradorgeral da República contrariamente assinalou que a medida de destruição não guarda relação com a pena de morte Aliás sequer pode ser considerada uma penalidade porquanto não se busca com sua aplicação a expiação por crime cometido Em realidade constitui essencialmente medida de segurança ex trema e excepcional que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia das medidas coercitivas precedentes É importante frisar que tal medida tem por objeto a preserva ção da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro54 Esse exemplo também demonstra claramente que o direito é uma dimensão do poder afinal diz o direito quem tem atribuição poder para tanto inclusive porque é o poder que dá nome sentido e limite às coisas motivo pelo qual só é direito o que o poder reconhece como tal 55 E tem razão Pierre Bourdieu quando afirma que o que faz 53 Dispõe o artigo não haverá penas a de morte salvo no caso de guerra declarada nos termos do ai1 84 XIX e cruéis 54 Processo PGR 1 00000000836200571 pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles então ProcuradorGeral da República datado de 1432005 Na representação formulada também por mim subscrita os autores sustentaram a violação dos seguintes princípios a inviolabilidade da vida art 5º caput b proibição da pena de morte em tempo de paz art 5 XLVTI a c presunção de inocência art 5º LVII d proibição de juízo ou tribunal de exceção art 5 XXXVII e devido processo legal art 5º f prevalência dos direitos humanos art 4 II g defesa da paz art 4º VI h solução pacífica dos conflitos art 4º VII i repúdio ao terrorismo art 4º VII j legalidade 1 proporcionalidade e m inviolabilidade da propriedade art 5º caput 55 Nietzsche observou Assim nascem os direitos graus de poder reconhecidos e assegurados Se as relações de poder mudam substancialmente direitos desaparecem e surgem outros é o que mostra o direito dos povos em seu constante desaparecer e surgir Se nosso poder diminui substancialmente modificase o sentimento daqueles que vêm assegurando o nosso direito eles calculam se podem nos restabelecer a antiga posse plena sentindose incapazes disso passam a negar nossos direitos Onde o direito predomina um certo estado e grau de poder é mantido uma diminuição ou um aumento é rechaçado O direito dos outros é a concessão feita por nosso sentimento de poder ao 44 1 01 1 I NTRODUÇÃO o poder das palavras e das palavras de ordem poder de manter a ordem ou de a sub verter é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia crença cuja produção não é da competência das palavras56 Aliás a própria pena privativa da liberdade que em geral consiste no encarcera mento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural artificial em espaço físico minúsculo superlotado sem salubridade privado quase que integralmente de contato com o mundo exterior não seria ela mesma pena cruel Não seriam as medidas de se gurança uma forma disfarçada de sequestro por tempo indeterminado E que dizer de certas formas de sacrifício v g de gêmeos ou deficientes físicos e mentais e rituais de antropofagia ainda praticados por algumas tribos brasileiras Ademais nenhum comportamento é criminoso em si mesmo tudo dependendo das reações que desencadeia ou não desencadeia Assim se um pai sabe que seu filho lhe subtraiu valores provavelmente não tomará isso como um fato criminoso isto é furto por isso não procurará a polícia não fará funcionar a máquina estatal tudo não passará de um problema de família e resolvido em família57 O próprio Código Penal art 181 II prevê isenção de pena sempre que o crime for praticado contra ascendente ou descendente E certamente reações diversas teriam lugar se ao invés de um filho fosse autora do fato a empregada doméstica ou um estranho De modo similar o tráfico pressupõe que a droga seja ilícita as quais são assim definidas pelo Ministério da Saúde um tanto arbitrariamente dentro de um universo vastíssimo de drogas capazes de produzir de pendência física ou psíquica estando excluídos por exemplo álcool tabaco etc Mais o assédio sexual CP art 216A embora praticável em tese por qualquer pessoa é sentimento de poder desses outros Quando o nosso poder mostrase abalado e quebrantado cessam os nossos direitos e quando nos tomamos muito mais poderosos cessam os direitos dos outros sobre nós tal como os havíamos reconhecido a eles até então NIETZSCHE Frederich Aurora Reflexões sobre os preconceitos morais 1 ª reimpressão São Paulo Companhia das Letras 2004 p 83 56 Pierre Bourdieu O poder simbólico Rio Bertrand Brasil 1998 p 1 5 57 Um caso real bem ilustra isso A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha B de dois anos e por isso foi presa processada e condenada a 7 anos e 6 meses de reclusão por crime de atentado violento ao pudor CP art 2 1 4 agora revogado crime hediondo Lei nº 807290 O exame crimino lógico assim a diagnosticou personalidade primitiva com nível mental baixo e consequente imaturi dade intelectual e afetiva que motivam os comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas manifestadas através de descargas emocionais intensas que refletem a dificuldade de controle sobre os impulsos Em consequência o processo de interrelação social tomase dificil sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesma como uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular Ora tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta outro seria o desfecho certamente a família submeteria A a tratamento psicológicopsiquiátrico a sessões de análise ou semelhante e no máximo tiraria dela provisória ou definitivamente a guarda da criança B Assim não haveria polícia nem crime nem pena nem prisão tudo não passaria de um problema de família e resolvido em família 45 PAULO QJEIROZ um típico crime masculino só praticável por homem e não por mulher pois é muito raro um homem interpretar o assédio feminino como algo ofensivo ou criminoso58 Convém repetir portanto o que chamados direito são relações interações inter pretações decisões de poder O direito é um momento da experiência do homem no mundo59 Exatamente por isso não se pode determinar a priori o que é o direito quais são as práticas que assim devem ser qualificadas porque isso depende daquilo que é refle tido como direito no quadro de determinadas experiências jurídicas60 Logo o direito não é só o que o legislador diz que é é também o que os juízes dizem que é a partir e segundo múltiplos discursos de atores sociais múltiplos61 é pois um discurso uma prática social discursiva62 socialmente construída variável no tempo e no espaço mais ou menos previsível e no caso penal mas não só nele ar bitrariamente seletiva porque o sistema penal recruta sua clientela quase sempre entre 58 Becker escreveu os grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulálas como outsiders Desse ponto de vista o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete mas uma consequência da aplicação por outras de regras e sanções a um infrator O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso O comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal Se um ato é ou não desviante depende portanto de como outras pessoas reagem a ele O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que reagem a ele Howard S Becker Outsiders Estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 p 2 1 e ss 59 Gadamer Verdade e Método cit p 3 1 Nietzsche escreveu todo conhecimento humano é ou experiência ou matemática Nietzsche Aforismo 530 Vontade de Poder Rio Contraponto 2008 p 279 60 François Ewald Foucault a norma e o direito cit p 1 6 1 6 1 Por essas e outras razões Rosa Maria Cardoso da Cunha atribui ao princípio da legalidade um ca ráter puramente retórico pois não cumpre as funções que lhe são cometidas pela dogmática antes desempenha uma função retórica que orienta a interpretação a aplicação e a argumentação referida à lei penal Textualmente o princípio da legalidade dos delitos e das penas não constitui uma garantia essencial do cidadão em face do poder punitivo do Estado Não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e diversamente do que afirma a doutrina não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direitos do acusado Tampouco estabelece a lei escrita como única fonte de incrimi nação e penas impede o emprego da analogia em relação às normas incriminadoras ou ainda evita a criação de normas penais postas em linguagem vaga e indeterminada O caráter retórico do princípio da legalidade Porto Alegre Síntese 1 979 p 1 7 e 1 28 62 No sentido do texto Carlos Maria Cárcova escreve que frente aos tradicionais reducionismos da teoria jurídica normativismofacticismo sustentamos a tese de que o direito deveria ser entendido como discurso com o significado que os linguistas atribuem a essa expressão isto é como processo social de criação de sentido como uma prática social discursiva que é mais do que palavras que é também comportamentos símbolos conhecimentos que é ao mesmo tempo o que a lei manda os juízes interpretam os advogados argumentam os litigantes declaram os teóricos produzem os le gisladores sancionam ou os doutrinários criticam e sobretudo o que ao nível dos súditos opera como sistema de representações Direito Política e Magistratura S Paulo LTr 1996 p 1 74 46 1 0 1 1 I NTRODUÇÃO os grupos mais vulneráveis da população notadamente autores de crimes patrimoniais roubo etc típica criminalidade de rua própria de sujeitos socialmente excluídos La ley es como las serpientes solo pica a los descalzos63 Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem mas também e princi palmente o que dizemos que as normas dizem não é só o deverser mas o ser Arthur Kaufmann tem razão portanto quando assinala que só quando a norma e situação de vida dever e ser são postos em relação em correspondência um com o outro surge o direito real o direito é a correspondência entre o dever e o ser O direito é uma corres pondência não tem um caráter substancial mas sim relacional o direito no seu todo não é o complexo de artigos da lei um conjunto de normas mas sim um conjunto de relações 64 Assim supor que a lei é o próprio direito seria confundir o mapa com o território o cardápio com a refeição65 seria confundir enfim discurso e realidade teoria e prá xis dever ser e ser mesmo porque o direito constitui uma ideia um conceito que reen via a outros tantos conceitos que à semelhança de compartimentos vazios tem seus conteúdos preenchidos mais ou menos arbitrariamente pelas pessoas e autoridades que participam da sua construção social66 Por isso disse Nietzsche que se houvesse uma escola para legisladores seria im portante ensinar que palavras como lei direito dever propriedade e crime constituem em si mesmas uma abstração sem valor e à espera de conteúdo cor e significado de acordo com as circunstâncias particulares que as incrementam67 63 A frase procede ao parecer de Oscar Romero 64 Filosofia do direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 p 2 1 9 Dei Vecchio dizia no entanto a partir de postulados kantianos que a noção universal do direito é anterior à experiência jurídica aos fenômenos jurídicos singulares sendo a experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma Assim uma proposição só é jurídica na medida em que participar da forma lógica universal do Direito Fora desta forma indiferente ao conteúdo nenhuma experiência jurídica é possível Sem ela falta a qualidade que permite adscrevêla a esta espécie de experiência A forma lógica do Direito é um dado a priori ou seja não empírico e constitui precisamente a condição da experiência jurídica em geral in Lições de filosofia do direito Coimbra 1 979 p 344345 65 A expressão é de Louk Hulsman 661 Não sem razão Kelsen dizia de uma perspectiva distinta que todo e qualquer conteúdo pode ser Direito Não há qualquer conduta humana que como tal por força do seu conteúdo esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica Teoria Pura do Direito S Paulo Martins Fontes 2003 p 221 67 ln A minha irmã e eu Editora Moraes S Paulo 1992 p 4243 Não surpreende por isso que todos sem exceção e até mesmo organizações criminosas recorram invariavelmente à justiça à liberdade à paz etc e não o contrário a exemplo do assim chamado Primeiro Comando da Capital PCC cujo estatuto adota como princípios 1 Lealdade respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido 2 A luta pela liberdade justiça e paz 3 A união da luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões Diz ainda 9 que o partido não admite mentiras traição inveja cobiça calúnia egoísmo interesse pessoal mas sim a verdade a fidelidade a hombridade a solidariedade e o interesse como o bem de todos porque somos um por todos e todos por um 47 PAULO Q1JEIROZ Naturalmente que mesmo no âmbito jurídicopenal ramo do direito em que a dog mática parece ter atingido maior nível de sofisticação o recurso às categorias da tipicida de ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se vem afirmar É que se sob o aspecto material o delito não existe seguese logicamente que também o seu conceito formalanalítico crime como fato típico ilícito e culpável é socialmente construído de sorte que uma dada conduta será criminosa somente quando dissermos aceitarmos que é uma vez que tais categorias remetem a conceitos os mais variados dolo culpa sig nificânciainsignificância causalidade legítimailegítima defesa estado de necessidade desnecessidade coação físicamoralresistívelirresistível obediência hierárquica erro de proibição vencívelinvencível embriaguez voluntáriainvoluntária etc os quais reen viam por sua vez a uma infinidade de conceitos outros como vida honra patrimônio agressão justainjusta intenção previsão consciênciainconsciência boamáfé prova lícitailícita exigívelinexigível valores princípios etc Não bastasse isso o manuseio de tais conceitos se faz por vezes de modo franca mente arbitrário como acontece por exemplo nos julgamentos pelo tribunal do júri formado que é por leigos Daí dizer Castanheira Neves que o direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem O que quer que seja e como quer que seja o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque o direito éo numa lingua gem e como linguagem propõese sêlo numa linguagem nas significações linguís ticas em que se constitui e exprime e atingenos através dessa linguagem que é68 De modo semelhante Calmon de Passos ensinou Direito é uma palavra que não se refere a nenhum objeto material algo suscetível de sensação ou percepção pelo homem isto é que ele possa ver ouvir aspirar degustar ou tocar Direito portanto é sentido e significação que o homem empresta ao seu agir e interagir por conseguinte enquanto sentido e significação linguagem Linguagem que objetiva definir ou determinar o que é lícito ou ilícito proibido devido ou facultado Direito só se materializa destarte como linguagem69 No particular Gadamer tem razão portanto o ser que pode ser compreendido é linguagem70 Finalmente Nietzsche escreveu minha sentença principal não há nenhum fe nômeno moral mas antes apenas uma interpretação moral desses fenômenos Essa interpretação é ela própria de origem extramoral71 E cabe parafraseálo minha sen tença principal não há nenhum fenômeno jurídico nem jurídicopenal mas antes uma interpretação jurídica e jurídicopenal desses fenômenos Essa interpretação é ela própria de origem extrajurídica 68 Metodologia jurídica Coimbra Coimbra Editora 1 993 p 90 69 Comentários ao Código de Processo Civil vol III Rio de Janeiro 2005 9 ed p 1 70 Verdade e método Petrópolis Vozes 1 999 p 687 7 1 A vontade de poder cit p 1 53 48 Consequentemente não existem fenômenos criminosos nem típicos antijurídicos ou culpáveis mas uma interpretação criminalizante dos fenômenos e portanto uma interpretação tipificante antijurisdicionante e culpabilizante dos fenômenos PAULO QlJEIROZ Mas os exemplos disso inadequação da lei para transformar a realidade são inumeráveis no âmbito jurídicopenal especialmente a edição de uma lei de crimes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade a promulgação de uma lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos leis em fa vor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de crescer leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na infração leis proibitivas de estupros e tráfico de drogas não parecem evitar tais delitos mesmo por que o criminoso antes de decidir praticar uma determinada infração não parece fazer uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse respeito Pergunte sincera mente a si mesmo por que ainda não pratiquei estupro por que ainda não matei alguém por que ainda não assaltei um banco É pouco provável que a resposta seja porque há uma lei que o proíbe e se a lei for revogada eu o farei Pois quem tiver chegado a uma tal resposta jamais seria obstado pela simples existência da lei Ordinariamente inclusive o autor de uma infração seja qual for acredita que não será descoberto e segue adiante se tiver motivaçãodisposição bastante para tanto Notese ainda que a eventual abolição desses crimes não significaria autorizálos uma vez que tais condutas são proibidas desde sempre pela moral pelos costumes pelas convenções sociais e pelo próprio direito Parece certo aliás que de certo modo somos todos criminosos reais ou poten ciais seja por ação seja por omissão porque somos capazes de cometer as maiores violências sob as mais diversas motivações e pretextos as quais variam de pessoa para pessoa e são mais ou menos vis poder dinheiro ciúme ódio inveja etc73 Enfim cometemos crimes pelas mesmas razões que não os cometemos o decisivo são sempre as motivações humanas que mudam permanentemente as quais podem ter inclusive como a história de ontem e de hoje o demonstra fartamente os mais nobres pretextos a pátria o bem o amor a honra a lei a justiça Deus74 etc É de convir assim que as leis são não infrequentemente um instrumento retóri co e demagógico de criar uma impressão uma falsa impressão de segurança criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo resolvidos até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efetivação E as leis parecem assumir nos dias atuais cada vez mais uma função mítica simbólica E o legislador tem sabido tirar proveito disso ao decidir legislar em profusão como se a 73 Como demonstra Philip Zimbardo O efeito lúcifer Rio de Janeiro Record 201 2 pessoas normais e pacíficas podem em circunstâncias especiais ou desconhecidas vg guerra como de normalização da violência e desumanização revelaramse cruéis e sádicas e praticarem os mais diversos crimes vg tortura violência sexual etc 74 Em nome de Deus por exemplo foi e é cometida toda sorte de violência a noite de São Bartolomeu o extermínio dos cátaros ou albigenses as cruzadas a inquisição os massacres patrocinados por Moisés Êxodo 3227 e 28 ou Josué 621 e seus atuais seguidores Bin Laden Bush além de outras formas sutis atuais de violência como a discriminação contra homossexuais etc 50 1 01 1 I NTRODUÇÃO edição de novas leis ao invés de proteção não significasse apenas a multiplicação de novas violações à lei e pois mais arbitrariedade75 Por isso é que se quisermos tomar a sério a legislação cumpre adotar um corpo mínimo de leis claras precisas necessárias e com um mínimo de efetividade social pois como há muito disse Montesquieu as leis desnecessárias enfraquecem e desacre ditam as leis necessárias76 É que problemas estruturais demandam soluções também estruturais no mais das vezes intervenções individuais v g castigar criminosos apenas servem para manter as coisas como estão a pretexto de mudálas e pois têm caráter essencialmente con servador do status quo 1 5 Direito e arte Parece certo que por mais que estudemos literatura teatro ou pintura é pouco provável que um dia escreveremos como um Tolstói faremos filmes como Charles Chaplin ou pintaremos como um Picasso É que a arte movida grandemente pela ins piração requer qualidades que estão além da técnica que pode eventualmente ajudar a aperfeiçoálas mas que dificilmente fará de um desafinado um virtuoso Talvez se possa dizer o mesmo do direito uma excelente formação dogmática não é garantia de decisões justas porque a técnica no direito como na arte só pode oferecer na melhor das hipóteses isso decisões tecnicamente corretas Mas decisões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas assim como decisões tecnicamente incorretas não são necessariamente decisões injustas É que uma boa in terpretação na arte como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sen sibilidade E a técnica jurídica é apenas um meio a serviço de um fim a justiça Existem outras semelhanças entre direito e arte Ainda hoje é muito comum con fundir lei e direito como se fossem a mesma coisa No entanto confundir lei e direito equivale a confundir partitura e música que são obviamente coisas distintas poden do inclusive existir uma sem a outra Com efeito é perfeitamente possível produzir som melodia e música como é comum aliás e principalmente compor sem partitura alguma a revelar que a música independe da partitura Pois bem o mesmo ocorre com o direito é possível decidir casos sem nenhuma lei basta pensar nos conflitos havidos em comunidades mais primitivas v g indígenas ou no common law além dos inú meros casos não disciplinados pela lei lacuna legal O direito como a música existe com ou sem lei com ou sem partitura Mas o mais importante parece residir nisso uma mesma partitura pode ser tocada de mil formas e ritmos como por exemplo na forma de música clássica rock samba 75 Como disse Beccaria criar novas leis não significa impedir mais crimes mas criar outros novos Dos delitos e das penas cit 76 O espírito das leis trad Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Matos Rodrigues Brasília Ed UnB 1995 51 PAULO QEIROZ etc E cada um desses ritmos sons e estilo variará conforme o seu intérprete suas influências experiência talento necessidades etc Também assim é a lei uma lei por mais clara e precisa pode ser interpretada de diversos modos variando conforme os préconceitos influências experiências motivações e sensibilidade de seu intérprete A lei é uma partitura que pode ser interpretada de mil formas embora nem todas se jam plausíveis Não se deve pois confundir lei e direito assim como não se deve confundir par titura e música a música é o que decorre da execução do músico o direito é o que resulta da interpretação do juiz ou tribunal O direito como a música não é a lei nem a partitura o direito é interpretação Algumas interpretações julgamos boas e aplaudi mos outras julgamos ruins e condenamos 151 Direito umaficção Direito e arte são formas distintas de retratar o ser humano e suas circunstâncias sobretudo porque enquanto o direito se ocupa de situações reais visando a decidir e resolver conflitos também reais a arte especialmente o teatro o cinema e a literatura trata em geral da ficção com motivação e fins diversos Mas não é de todo correto dizerse que a literatura ou o cinema tratam da ficção enquanto o direito cuidaria de casos reais exclusivamente É que existem obras lite rárias que relatam situações reais a exemplo de A sangue frio de Truman Capote De fato nesse famoso livro Capote narra a história da família Clutter cujos quatro mem bros foram brutalmente assassinados por Perry Smith e Richard Hickock na fazenda River Valley na cidade de Holcomb no Estado do Kansas Estados Unidos em novem bro de 1959 Os criminosos foram condenados à pena de morte e executados Para escrever o livro e retratar essa tragédia com o máximo de precisão Capote residiu por mais de um ano na região e entrevistou os moradores e principais perso nagens dessa história macabra realizando uma investigação paralela De acordo com Capote todo o material contido neste livro que não provém de minha própria ob servação ou foi retirado dos registros oficiais ou resulta de conversas com as pessoas diretamente envolvidas entrevistas em geral realizadas ao longo de um extenso perío do77Não é por acaso que o subtítulo de A sangue frio é um relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências O que distingue então a narrativa de Truman Capote da narrativa dos réus das testemunhas do promotor do advogado do juiz etc Ademais o direito em vários momentos recorre à ficção Assim por exemplo quando adota a teoria da equivalência quanto ao erro sobre a pessoa e à aberratio ictus quando dá vida às pessoas jurídicas quando adota a continuidade delitiva quando presume verdadeiros os fatos não contestados pelo réu etc Também concei tos como liberdade igualdade presunção de inocência de vulnerabilidade etc são 77 A sangue frio São Paulo Companhia das letras 201 1 p 1 7 agradecimentos 52 1 01 1 I NTRODUÇÃO ficções jurídicas quer porque ninguém é absolutamente livre ou igual a outrem mas apenas relativamente quer porque o presumido inocente pode ser inclusive um cri minoso confesso Vêse pois que não é de todo exato afirmar que o direito trata da realidade e a literatura da ficção visto que independentemente de cuidarem de fatos reais ou ima ginários direito e literatura constituem em última análise formas de ficção embora com fins limites e consequências distintas Sim porque se pensarmos bem nos daremos conta de que os juristas profissio nais do direito pertencem a uma classe particular de contadores de histórias afinal juízes promotores e advogados não fazem outra coisa senão contar suas próprias his tórias a partir de outras tantas Uns contam tragédias outros comédias uns preferem o conto outros a novela ou o romance e o fazem com maior ou menor imaginação com maior ou menor talento com maior ou menor honestidade Mas todos contam histórias e pois dão sua própria versão dos fatos Sim porque o que pretendem como simples sentença denúncia testemunho fatos não é uma pura narração mas uma construção isto é uma interpretação a partir do que a mente percebe e a memória retém No direito como na arte nada é dado tudo é cons truído Que são afinal os grandes advogados senão exímios contadores de histórias e que como bons contadores contamnas conforme o seu respectivo auditório juiz tribunal etc com ele interagindo e persuadindoo Enfim que fazem os juristas senão contar histórias mais ou menos verossímeis mais ou menos exatas no seu próprio interesse e no interesse de seus clientes Estado réu vítima Ademais no direito e na arte o modo como se conta uma história é mais impor tante do que a história mesma Tratase enfim de uma história recontada conforme os nossos sentidos as nos sas necessidades os nossos interesses as nossas crenças as nossas limitações Não existem fatos só existem interpretações Nietzsche mesmo porque o direito escreve roteiros que permitem aos atores grande margem de improvisação78 Daí dizer François Ost que entre direito e literatura solidários por seu enraiza mento no imaginário coletivo os jogos de espelho se multiplicam sem que se saiba em última instância qual dos dois discursos é ficção do outro Diz ainda que ao invés de se afirmar que o direito se origina dos fatos ex facto ius oritur seria mais exato dizer ex abula ius oritur é da narrativa que sai o direito79 78 François Ost Contar o Direito as fontes do imaginário jurídico Porto Alegre Editora Unisinos 2005 p 44 79 Idem p 24 53 PAULO ÜlJEIROZ De certo modo portanto o direito é uma espécie sutilíssima de ficção mas que não percebemos como ficção80 Também por isso não surpreende quão arbitrários podem ser nossos juízos de valor afinal em última análise interpretamos o mundo e tudo lhe diz respeito conforme o nosso grau de envolvimento e identificação com os personagens dramas e temas em questão Não é por acaso que tendemos a compreender e perdoar as pessoas de que gostamos e pelos mesmos atos abominamos aqueles que nunca vimos ou conhece mos uns cometem erros outros crimes Não por outra razão é que a lei declara impedido ou suspeito o juiz segundo o grau de parentesco ou amizade com as partes do processo Parece mesmo que condenamos nos outros o que conscientemente ou não con denamos em nós mesmos e absolvemos nos outros o que absolvemos ou toleramos em nós mesmos Compreendese assim que no passado os jurados absolvessem o marido que surpreendia a esposa em adultério e a matava acolhendo a tese que hoje rejeitam solenemente de legítima defesa da honra Consequentemente tão ou mais importante que a verdade processual e o conheci mento da legislação é o tipo de relaçãointeração que se passa nem sempre conscien temente entre quem julga e o que julga e quem é julgado e o que é Naturalmente que entre direito e arte há muitas diferenças Faltam em geral ao direito e aos juristas por exemplo a criatividade e a subversão que caracterizam a grande arte Como escreve Flávio Kothe arte é transcendência não no sentido re ligioso de advento de uma instância metafísica e sim no duplo sentido de arrancar o sujeito de sua circunstância e permitir o acesso a algo além do aqui e agora A arte é sempre subversiva no sentido de arrancar o sujeito da tirania de sua circunstância e de seu conformismo Somente pode ser gerada a partir de uma experiência de choque e de uma vivência de exclusão Ela é a elaboração de um abismo o qual separa o sujeito de sua circunstância e o leva ao espaço privilegiado de alguma espécie de moldura dentro da qual ele opera o seu milagre criativo81 Também por isso o artista dispõe de uma liberdade de criação muito superior àquela dos juízes e tribunais Por tudo isso talvez tenhamos mais a aprender com a literatura o teatro o cine ma a música a arte do que com os livros técnicos sobretudo nos dias atuais em que a doutrina tende a não doutrinar mas a repetir precedentes judiciais acriticamente 80 Nietzsche observou Parmênides disse não se pensa o que não é estamos na outra extremidade e dizemos o que pode ser pensado há de ser seguramente uma ficção Aforismo 539 Vontade de Poder Rio Contraponto 2008 p 282 Eis a propósito um dos sentidos possíveis de ficção relato ou narrativa com intenção objetiva mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento fenômeno fato etc Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa Ed Objetiva Rio de Janeiro 2001 1 ed p 1 336 8 1 O Cânone Republicano II Brasília Editora Universidade de Brasília 2004 p 473 54 Distinguese direito penal criminologia e política criminal PAU LO Q1EIROZ opções e estratégias concretas de controle da criminalidade por último o direito penal deve encarregarse de converter em proposições jurídicas gerais e obrigatórias o saber criminológico esgrimido pela política criminal86 devendo o direito penal ser crimino logicamente fundado e políticocriminalmente orientado E finalmente parece ter razão Alessandro Baratta quando assinala que entre todos os instrumentos de política criminal o direito penal é o mais inadequado 87 sobretudo em razão da violência estrutural inerente ao seu funcionamento de sorte que não se deve confundir controle da criminalidade com controle penal em face das múltiplas possibilidades de política social utilizáveis pelo Estado para a prevenção e controle da desviação 21 Direito penal e política criminal há distinção realmente Como se vê a doutrina distingue direito penal política criminal e criminologia recorrendo ainda que não explicitamente à estrutura tridimensional do direito a cri minologia se ocupa do crime enquanto fato a política criminal enquanto valor o di reito penal enquanto norma88 Mas não é tão fácil estabelecer uma distinção entre política criminal e direito pe nal Primeiro porque o direito penal é um fenômeno político por excelência89 Afinal sua existência mesma não decorre de uma necessidade moral religiosa ou ética mas política essencialmente se num determinado momento o Estado entendeu e ainda entende de se valer de leis e instituições penais para responder a determinados confli tos assim q fez por julgálo necessário à sua própria afirmação enquanto poder Além disso e conforme assinala Foucault a lei nasce das batalhas reais das vitórias dos massacres das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror a lei nasce das ci dades incendiadas das terras devastadas ela nasce com os famosos inocentes que ago nizam no dia que está amanhecendo Mas isso não quer dizer que a sociedade a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras ou a sanção definitiva das vitórias 86 GarcíaPablos Criminología cit p 9798 87 Criminología crítica y crítica dei derecho penal introducción a la sociología jurídicopenal trad Álvaro Búnster 4 ed Bogotá Siglo Veintiuno Ed 1 993 p 2 14 88 Mir Puig Derecho penal parte general Barcelona 1 998 p 1 6 89 O direito é uma espécie de armadura que veste e protege o corpo político isto é as estruturas de poder existentes numa dada sociedade que são as forças políticas em combate permanente E se é de combate que estamos falando é de prever que os grupos mais vulneráveis social econômica e politicamente sejam suas principais vítimas e é sob este aspecto que se deve entender a arbitrária e discriminatória seletividade do sistema penal Consequentemente o direito como realização da política será menos injusto à medida que houver menos injustiças sociais e maior equilíbrio entre as forças políticas Ihering tinha razão portanto quando dizia que o fim do direito é a paz o meio de que se serve para conseguilo é a luta Enquanto odireito estiver sujeito às ameaças da injustiça e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta pois a vida do direito é a luta luta dos povos dos governos das classes sociais dos indivíduos cf A luta pelo direito São Paulo Ed Martin Claret 2004 p 27 56 A lei não é pacificação pois sob a lei a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder mesmo os mais regulares A guerra é que é o motor das instituições e da ordem a paz na menor de suas engrenagens faz suddenamente a guerra Em outras palavras cumpre decifrar a guerra sob a paz a guerra é a cifra mesma da paz Portanto estamos em guerra uns contra os outros uma frente de batalha perspassa a sociedade inteira contínua e permanentemente e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro Não há sujeito neutro Somos forçosamente adversários de alguém PAULO QEIROZ Finalmente sabese hoje que o delito que não tem consistência material ou onto lógica é socialmente construído teoria do etiquetamento tendo o direito penal um papel importante nessa definição rotulação do que seja crime e criminoso já que é ele que fornece a principal ferramenta a dogmática com a qual o sistema penal traba lha Nesse contexto a lei penal configura como diz Vera Andrade apenas um marco abstrato de decisão no qual os agentes do controle social formal desfrutam de ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter definitorial da criminalidade pois entre a seleção abstrata e provisória da lei e a seleção definitiva operada pelos agentes de criminali zação secundária polícia Ministério Público Judiciário etc medeia um complexo e dinâmico processo de refração94 E se a Constituição alfa e ômega do ordenamento jurídico e pois começo e fim da atividade judicial e doutrinária não estabelece fórmulas matemáticas para solução dos casos penais declarando principalmente em termos gerais e abstratos o que os seus intérpretes não podem fazer mas não o que podem limites essencialmente nega tivos de atuação força é convir que o juiz e o doutrinador dispõem por conseguinte de ampla liberdade de argumentar jurídica e validamente Assim o juiz não pode condenar alguém à pena de morte à prisão perpétua ou à mutilação de membros Mas nada impediria se tais penas fossem admitidas de deixar de aplicálas em nome de determinados valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana Também por isso nada o obsta de a despeito de não existir previsão legal para tanto adotar o princípio da insignificância nalguns casos etc Nesse sentido as normas penais expressam sem dúvida um dado modelo polí ticocriminal ou mais exatamente vários modelos políticos liberais conservadores etc Falar de direito penal é falar assim de um modelo político normatizado que em razão das múltiplas possibilidades de interpretação e mudança do contexto sociocultu ral jamais será um modelo estático mas sempre dinâmico em permanente transfor mação Por isso é que por exemplo quase nenhum autor defende nos dias atuais como no passado que o marido em razão dos deveres do casamento não pode ser sujeito ativo do crime de estupro95 Disso também resulta que a atividade judicial constitui uma atividade política por excelência96 mesmo porque conscientemente ou não o juiz sempre adere ou 94 A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal Po110 Alegre Livraria do Advogado Ed 1 997 p 260 95 Exceção a isso era Paulo José da Costa Júnior que escrevia textualmente discutese se o marido pode ser sujeito ativo de estupro Quernos parecer que não pois o estupro pressupõe a cópula ilícita e a prestação sexual é dever recíproco dos cônjuges Estará pois o marido exercitando um seu direito se o fizer regularmente Isso significa que poderá responder pela violência tisica excessiva que venha a empregar para compelir a esposa à cópula Curso de Direito Penal S Paulo Saraiva 2008 p 607 608 96 Não necessariamente políticopartidária exceto naqueles países em que os juízes são eleitos pelo voto e são filiados a um partido político 58 f 01 f INTRODUÇÃO se vincula a uma dada concepção políticocriminal entre as várias possíveis ain da quando supõe de forma acrítica estar julgando rigorosamente conforme a lei leâ que já é em si uma expressão política97 de sorte que decisões jurídicas são deci sões políticas Por exemplo em face de uma denúncia por tráfico de pequena quanti dade de droga o juiz pode em tese adotar as seguintes decisões 1 absolver o réu por entender inconstitucional toda norma penal em branco heterogênea por remeter a sua complementação a uma norma de grau inferior no caso uma portaria da AN VISA 2 absolver o réu por julgar que embora constitucional o artigo em questão é insignificante a quantia apreendida 3 condenar o réu a uma pena de prisão 4 condenar o réu a uma pena de prisão mas admitir a substituição por pena restritiva de direito 5 entender que o caso não é de tráfico mas de porte para consumo 6 etc Ao decidir a lide por conseguinte o juiz a pretexto de aplicar a lei faz necessa riamente dentro da lei e segundo a sua formação liberal conservadora etc política criminal no caso concreto A realização do direito é portanto como observa Roxin consideravelmente mais do que a aplicação de uma lei já determinada em todos os seus detalhes por meio de um processo lógico de dedução Ela é muito mais a con cretização de uma moldura contida na regra legal e ao desenvolver criativamente as finalidades do legislador faz verdadeira política criminal sob o manto da dogmá tica98 Daí se afirmar que a tarefa do juiz é construtiva e performativa porque decide à semelhança de um diretor de cinema que grava por horas para editar um filme de poucos minutos cuja síntese final é o resultado de uma operação de montagem isto é de um semnúmero de seleções e abduções de continuidades e descontinuidades de repetições e silêncios constitutivos de sentido99 Ao sentenciar portanto o magistrado monta a partir de pretensões de validade enunciadas pelas partes o que se chama ver dade processual lançando mão das provas dos significantes produzidos validamente manejando a técnica de bricolagem jurídica ou seja construindo com o que tem à mão sem o pretendido controle racional total existindo uma compulsão de dizer o in dizível onde a palavra falha o espelho da realidade na escrita que insiste em nomear em reduzir em racionalizar100 97 Como observa Hassemer carece de sentido afirmar que o juiz tem de se ater estritamente ao sentido literal da lei desconhecendo a vagueza e porosidade dos conceitos legais e as diferentes formas que têm os juízes de compreendêlos pois se é verdade que a atuação judicial tão só estabelece o marco do significado das palavras da lei mediante a interpretação desta em relação ao caso então a con cepção rigorosa da vinculação do juiz não mudará este fato senão que o ocultará simplesmente El pensamiento filosófico contemporáneo Madrid Debate 1 992 p 2 1 O 98 Funcionalismo cit p 245 99 Carlos Maria Cárcova Ficción y verdad en la escena dei Derecho in Direito e Psicanálise interse ções a partir de O Processo de Kafka Coordenador Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 100 Alexandre Morais da Rosa Decisão penal a bricolagem de significantes Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 365366 59 PAULO Ü1JEIROZ Daí dizer Maiwald que não existe um limite rígido entre política criminal Di reito Constitucional e dogmática jurídicopenalIO mesmo porque o dogmático deve tanto quanto o legislador argumentar políticocriminalmente tendo de terminar de pintar em todos os seus detalhes o quadro do direito vigente que o legislador só pode desenhar em suas linhas mestrasw2 E mais discutível ainda é esta delimitação quando se entende a ciência penal não como a mera descrição do direito como é mas como a projeção do direito que deve ser Filangieri É bem verdade como observa Roxin que política criminal e dogmática não têm as mesmas competências pois do contrário se estaria igualando o juiz ao legislador violando o princípio da divisão de poderes e que a dogmática deve muito mais rea lizar política criminal dentro da moldura da lei isto é dentro dos limites da interpre tação103 Mas isso só confirma que dogmática e política criminal são modos de tratar um mesmo problema o problema da criminalidade os quais não se opõem nem se repelem mas antes se atraem e se completam mutuamente mesmo porque o direito não é senão um momento da política razão pela qual não pode nem deve a ciência penal simplesmente pretender descrever o direito mas sobretudo criticálo perma nentemente com vistas a implementar não apenas um direito penal melhor mas algo melhor do que o próprio direito penal Radbruch Em suma o direito é um fenômeno político com fins e limites também políticos E como fenômeno político é explicável legitimável e também deslegitimável politica mente 3 DIREITO PENAL E CONTROLE SOCIAL O direito não é a única nem a mais importante expressão do controle social for mal Com efeito conscientes ou não estamos permanentemente sujeitos a um universo infindável de regras de comportamento as quais surgem das mais diversas formas de interação e controle social E todas as regras por mais informais preveem sanções como meio de afirmação e validação Realmente já no período de gestação estamos de algum modo sendo socializa dos dãonos nome direitos família religião língua nacionalidade orientação sexual etc e passamos a fazer parte de um projeto de vida que não escolhemos de modo que somos alguém antes mesmo de nascermos Mais tarde seremos socializados pela família escola trabalho religião moral etc quando então aprenderemos os mandamentos de não matar não furtar não pres tar falso testemunho etc razão pela qual o processo de socialização está presente nas nossas vidas a todo tempo e em toda parte de modo que nunca estamos realmente sós 1 0 1 Apud Roxin Funcionalismo cit p 245 1 02 Roxin Funcionalismo cit p 245 1 03 Roxin Funcionalismo cit p 245 60 J 01 J INTRODUÇÃO Em semelhante contexto a ordem jurídica estatal não é portanto mais do que o reflexo ou a superestrutura de uma determinada ordem social incapaz por si mesma de regular a convivência de modo organizado e pacífico104 Por sua vez a ordem jurídicopenal não é outra coisa senão um dos instrumentos destinados à socialização do homem ou ainda o direito penal é um sistema de contro le social puramente confirmador de outras instâncias mais sutis e eficazes105 O ordenamento penal não é pois o começo da socialização mas a sua culmina ção não é todo o controle social nem sequer é sua parte mais importante é mais exa tamente a parte visível de um iceberg em que o que não se vê seja talvez o que mais importa mesmo porque a norma penal não cria valores nem constitui um sistema au tônomo de motivação do comportamento humano106 Em consequência o sistema penal há de desempenhar relativamente ao sistema social como um todo um papel subsidiário Sim porque o direito penal parte da ma quinaria pesada do Estado107 só tem sentido se considerado como continuação de um conjunto de instituições públicas ou privadas cuja finalidade consiste em socializar e educar os indivíduos por meio da aprendizagem e da internalização de certas pautas de comportamento108 O direito penal é por conseguinte a ultima ratio do controle social formal ou ainda o direito penal é a fortaleza e os canhões dos demais direitos109 Se pensarmos por exemplo naquele que emite dolosamente cheque sem provisão de fundos CP art 171 veremos que atuam concorrentemente com a intervenção jurídicopenal censura social perda do crédito pagamento de juros encerramento da conta bancária inscri ção do nome em serviços de proteção ao crédito protesto eou execução forçada do tí tulo e por fim já agora intervindo o direito penal indiciamento em inquérito policial 4 DIREITO PENAL E MORAL De certo modo o direito é uma continuação da moral por outros meios espe cialmente porque as proibições e permissões jurídicas são no essencial proibições e permissões morais não matar não furtar etc Justamente por isso a distinção entre moral e direito são palavras de Kelsen não pode ser encontrada naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana11ºA distinção entre ordem jurídica e moral tem a ver portanto não propriamente com o conteúdo mas com a forma essencialmente 1 04 Muiioz Conde Derecho penal y control social Jerez Fundación Universitaria de Jerez 1 985 p 24 1 05 Muiioz Conde Derecho penal y control social cit p 1 7 106 Muiioz Conde Derecho penal y control social cit p 1 7 107 A expressão é de GarcíaPablos 108 Muiioz Conde Derecho penal y control social cit p 37 109 A expressão é de Alfonso de Castro citado por Berdugo Gomes Derecho Penal cit 1 1 O Kelsen Hans Teoria Pura do Direito Tradução João Baptista Machado Martins Fontes São Paulo 2003 p 7 1 61 PAULO QlJEIROZ Naturalmente que na vigência de um modelo de Estado formalmente secular como pretende ser o Estado Democrático de Direito não é possível nem desejável uma concordância absoluta entre preceitos morais e jurídicos nem jurídicopenais Primeiro porque a rigor não existem fenômenos morais mas uma interpreta ção moral dos fenômenos Nietzsche e pois múltiplas formas de expressão da mo ral111 segundo porque o direito é no fundo uma dimensão do poder razão pela qual pode ser eventualmente imoral inclusive relativamente a uma determinada perspec tiva ou sistema moral112 tal como ocorre com o instituto da colaboração premiada e a figura do agente infiltrado terceiro porque a moral pressupõe em princípio espon taneidade diversamente do direito que não pode existir senão por meio da violência isto é por meio da possibilidade de recurso à força coercibilidade E mais em razão de seu caráter subsidiário a intervenção do direito penal só se justifica quando fra cassam outras formas de prevenção e controle social aí incluída a intervenção moral inclusive No particular a máxima atribuída ao jurisconsulto romano Paulo permanece atua líssima non omne quod licet honestum est D 50 141 1 isto é nem tudo que é lícito é honestomoral Finalmente se a moral persegue o aperfeiçoamento ético do homem o direito como instrumento de controle social formal objetiva tornar possível a convivência so cial independentemente da adesão moral de seus destinatários Porque como escreve Mourullo ao direito interessa os comportamentos humanos somente quando transcen dam à ordem social exterior e não pelo que representam em si mesmos do ponto de vista moral113 Não pode haver por isso uma concordância absoluta entre moral e direito mesmo porque do contrário violarseia o pluralismo inerente ao Estado Democrático de Di reito convertendoo em Estado policial puramente Exatamente por isso é que por mais imorais que possam ser determinadas condu tas o direito penal não pode intervir sobre elas exceto quando implicarem lesão grave de bem jurídico alheio conforme o princípio da lesividade114 Existe portanto um 1 1 1 A propósito Kelsen escreveu se pressupusermos somente valores morais relativos então a exigência de que o Direito deve ser moral isto é justo apenas pode significar que o Direito positivo deve corres ponder a um determinado sistema de Moral entre os vários sistemas morais possíveis cit p 75 1 1 2 Como assinala Kelsen devemos ter presente porém quando apreciamos moralmente uma ordem jurídica positiva quando a valoramos como boa ou má justa ou injusta que o critério é um critério relativo que não fica excluída uma diferente valoração com base num outro sistema de moral que quando uma ordem jurídica é considerada injusta se apreciada com base no critério fornecido por um sistema moral ela pode ser havida como justa se julgada pela medida ou critério fornecido por um outro sistema moral cit p 76 1 1 3 Derecho penal parte general Madrid Ed Civitas 1978 p 20 1 1 4 Como diz Femández Carrasquilla o direito penal não é um instrumento de moralização ou de aper feiçoamento espiritual do homem senão um instrumento para a preservação da paz social pois supor que ele se presta à persecução do primeiro fim significaria contrariar a liberdade de consciência e 62 1 01 1 l NTRODUÇÃO âmbito da vida pessoal intocável pelo poder do Estado e ao resguardo do controle pú blico e da vigilância policial não só as interações e os projetos mas também os erros de pensamento e de opinião115 41 Deus e o Direito Diz Michel Onfray que apesar do triunfo aparente dos ideais do Iluminismo que sonhara com um direito laico e que portanto distinguisse e separasse muito claramente direito e moral direito e religião crime e pecado ainda hoje a episte me do direito permanece judaicocristã pois no essencial se mantém fiel aos seus valores fundamentais116 Afirma que embora os tribunais de justiça da França não possam ostentar símbolos religiosos nem proferir decisões com apoio na Bíblia no Alcorão ou na Torá nada existe no direito francês que contravenha essencialmente as prescrições da igreja católica apostólica e romana117 Diz mais o saber e a meta física do direito provêm diretamente da fábula do paraíso original versão monoteísta do mito grego de Pandora o homem é livre e pois responsável e culpável logo por ser dotado de liberdade pode decidir e preferir uma coisa a outra num universo de possibilidades118 Assim o direito não seria outra coisa senão uma continuação da tradição moral cristã por outros meios já que todos aqueles que dele se utilizam legisladores juízes promotores advogados etc seriam meros portadores conscientes ou não dos valores cristãos por sua vez a moral seria a continuação da religião o conhecimento um continuum da moral e da religião embora por meios diversos119 Por conseguinte a tão propalada separação entre direito e moral entre direito e religião entre crime e pecado seria mais aparente do que real afinal os dois mil anos de história e dominação ideológica do cristianismo continuariam a forjar os sujeitos ditandolhes o modo cor reto de nascer viver e morrer120 portanto o pluralismo ideológico e a tolerância moral e ideológica que aquela implica Concepto y límites dei derecho penal Bogotá Ed Temis 1 992 p 2324 1 1 5 Ferrajoli Derecho y razón cit p 482 1 1 6 De acordo com Ernst Cassirer a consciência teórica prática e estética o mundo da linguagem e do conhecimento da arte do direito e da moral as formas fundamentais da comunidade e do Estado todas elas se encontram originariamente ligadas à consciência míticoreligiosa Linguagem e mito S Paulo 2006 p 64 1 1 7 Tratado de ateología fisica de la metafisica Buenos Aires Ediciones de la Flor 2005 p 73 1 1 8 Idem p 73 No particular ele escreve o seguinte a máquina da colônia penitenciária de Kafka repercute diariamente nos palácios chamados de Justiça europeus e em suas prisões contíguas O choque entre o livrearbítrio e a eleição voluntária do Mal que legitima a responsabilidade portanto a culpabilidade portanto o castigo pressupõe o funcionamento de um pensamento mágico que ignora o que a obra póscristã de Freud ilustra através da psicoanálise e a de outros filósofos que demonstram o poder dos determinismos inconscientes psicológicos culturais sociais familiares etológicos etc cit p 75 1 1 9 Giles Deleuze Nietzsche e a filosofia Lisboa RésEditora 200 1 p 148 120 Naturalmente que isso não constitui uma exclusividade do direito atingindo todo o conhecimento humano ético bioético pedagógico político filosófico etc Quanto à psiquiatria por exemplo 63 PAULO QlJEIROZ Será isso exato relativamente ao direito brasileiro Bem se tomássemos como referência o Livro V das Ordenações Filipinas que vi gorou entre nós de 1603 a 1830 típica legislação medieval contra a qual se insurgiria a filosofia das luzes não se teria nenhuma dúvida a esse respeito uma vez que ali a confusão entre Estado e Igreja era manifesta conforme se lê de alguns títulos como por exemplo dos hereges e apóstatas dos que arrenegão ou blasfemão de Deos ou dos Santos dos feiticeiros dos que benzem cães ou bichos sem autoridade dEl Rey ou dos Prelados Títulos 1 II III e IV etc Mas poderseá dizer o mesmo do Brasil de hoje que é formalmente uma Repú blica Federativa que se constitui em Estado Democrático de Direito Estado secu lar portanto e que tem como objetivos declarados entre outros promover o bem de todos sem preconceitos de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação121 CF arts 1º e 3º IV Parecenos que sim Desde logo porque foi o próprio Constituinte que Jª no preâmbulo da Constituição fez consignar que a promulgava sob a proteção de Deus estabeleceu a monogamia conferiu ainda efeitos civis ao casamento religioso reco nheceu a união estável entre o homem e a mulher e não simplesmente entre pessoas independentemente da orientação sexual restrição que terá importantes e discrimi natórias implicações no direito civil como por exemplo sobre a adoção a sucessão direitos previdenciários etc decretando assim a clandestinidade das relações entre pessoas do mesmo sexo bem como entre parentes tal como a lei mosaica que dispõe sobre os casamentos ilícitos e as uniões abomináveis Entre nós sequer existe a proibi ção explícita de os juízos e tribunais ostentarem símbolos religiosos razão pela qual não é incomum encontrar algum crucifixo exposto em salas de audiência Semelhantemente o Código Penal pune entre outras coisas o aborto a bigamia a mediação para servir à lascívia de outrem o favorecimento à prostituição a casa de Thomas Szasz assinala que o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com relação às superstições e práticas das caças às bruxas segundo a interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contemporânea nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do Iluminismo tal como pensam os romãnticos tradicionalistas Na realidade a Psiquiatria Institucional é uma continuação da Inquisição O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social O vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época é um jargão pseudocientífico que parodia os conceitos da ciência O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época é um movimento social pseudoliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade A fabricação da loucura Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de Saúde Mental Rio de Janeiro Zahar Editores 1976 p 56 1 2 1 De acordo com Scarlett Marton para Nietzsche que critica os valores do cristianismo como falsos valores e sua moral como moral dos fracos a Revolução Francesa e seus ideais de igualdade e fra ternidade é filha e continuadora do cristianismo tendo cabido ao primeiro a inversão de valores ao segundo a sua preservação Scarlet Marton Nietzsche e a Revolução Francesa in Extravagâncias ensaios sobre a filosofia de Nietzsche S Paulo Discurso Editorial 200 1 64 prostituição o rufianismo etc o mesmo ocorrendo quando a legislação especial proíbe a produção o comércio e o porte de droga ilícita a revelar quão presente está no direito o ideal ascético próprio do cristianismo É que no particular o legislador tal como Moisés está a nos dizer o que é lícito fazer e não fazer com o corpo assim como o que é permitido e não permitido consumirfumar Também é certo que muitos temas e discussões não avançam ou sequer são colocados em pauta a exemplo do aborto e da eutanásia justamente em razão de trazerem os interesses da Igreja para a qual a vida é um dom de Deus logo um bem jurídico de que não se pode dispor Mas isso não é o mais importante o mais relevante consiste no seguinte editar uma legislação democrática e laica não significa necessariamente adotar um direito democrático ou laico sob pena de se confundir discurso e realidade teoria e práxis É o direito uma prática social discursiva não é só o que as leis dizem mas sobretudo o que dizemos que as leis dizem ou seja o direito não é feito um objeto físico mas interpretação de sorte que em última análise o direito não reside propriamente nos fatos ou nas normas mas na cabeça das pessoas Numa palavra e conforme já o assinalamos o direito tal qual o justo e o injusto ético e o estético é em nós que ele existe motivo pelo qual com ou sem alteração da redação dos textos legais está em permanente transformação decisivo portanto não é a lei mas o homem E se de fato somos forjados segundo a tradição judaicocristã seguese que o direito expressará necessariamente esses valores Dito de outro modo a pretexto de atuarem em nome da lei juízes e tribunais atuariam em verdade em nome de Deus o Deus do cristianismo Afinal embora façamos como se a religião já não houvesse impregnado e penetrado nas nossas consciências corpos e almas certo é que falamos vivemos amamos sonhamos imaginamos sofrermos pensamos e julgamos segundo o ensinamento judaicocristão moldado por mais de dois mil anos de monoteísmo bíblico PAULO ÜJEIROZ 5 CARÁTER SUBSIDIÁRIO DO DIREITO PENAL Discutese se o direito penal tem caráter constitutivo originário ou primário ou subsidiário sancionador ou acessório discussão que envolve dois aspectos distintos político ou social e lógico ou sistemático Quanto ao aspecto político a doutrina é pacífica em reconhecer que o direito pe nal por ser a forma mais violenta de intervenção do Estado somente deve ser chamado a intervir quando fracassem outros modos de prevenção e controle social Mas quanto ao aspecto lógicosistemático os autores divergem uns consideram que o direito penal tem natureza subsidiária outros constitutiva Assim Jescheck para quem o direito penal cria o ilícito afirma que historicamen te o direito penal constitui a forma mais antiga de manifestação do direito e regula de maneira autônoma e sem precisar recorrer a conceitos e funções de outros ramos do direito áreas extensas como o direito à vida à liberdade ou à honra124 De modo semelhante Cezar Bitencourt diz que é preciso reconhecer a natureza primária e cons titutiva do direito penal e não simplesmente acessória uma vez que protege bens e interesses não protegidos por outros ramos do direito e mesmo quando tutela bens já cobertos pela proteção de outras áreas do ordenamento jurídico ainda assim o faz de forma particular dandolhes nova feição e com distinta valoração125 Em verdade o significado do que seja caráter primário ou acessório do direito penal já é em si algo problemático De todo modo pensamos que em ambos o casos se está a discutir em última análise uma mesma coisa a conveniência política de se recorrer ou não ao direito penal para solução de determinados conflitos Não se discu te portanto como supõe Jescheck questão cronológica mas lógica saber se o ilícito penal pressupõe um ilícito não penal E em qualquer sentido o direito penal é sempre subsidiário e não primário Com efeito a natureza subsidiária e não principal do direito penal diante de outras formas de controle social decorre em primeiro lugar da circunstância de o direito penal constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dcs cidadãos Consequentemente somente quando não forem suficientes outros modos de intervenção é legítimo recorrer ao direito penal para proteção de bens jurídicos Assim por exemplo já não mais se justifica nos dias atuais a criminalização da bi gamia porque a intervenção do direito civil é suficiente para proteção do casamento 1 24 Tratado de derecho penal trad José Luis Manzanares Samaniego 4 ed Granada Ed Comares 1993 p 46 Não é exato dizer porém que a lei criminal tenha precedido à lei civil ou que as comuni dades primitivas só tenham conhecido o direito criminal seja porque é um tanto arbitrário estabelecer em relação às comunidades selvagens uma clara delimitação entre normas civis e penais seja porque o acasalamento o parentesco as permutas etc seguiam regras próprias e não necessariamente crimi nais Nesse sentido Bronislaw Malinowski Crime e costume na sociedade selvagem Brasília Ed UnB 2003 1 25 Manual de direito penal São Paulo Revista dos Tribunais 1 999 p 36 66 1 01 1 I NT RODUÇÃO O caráter subsidiário do direito penal decorre portanto de um imperativo políti cocriminal proibitivo do excesso não se justifica o emprego de um instrumento espe cialmente lesivo à liberdade se se dispõe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade A natureza secundária das normas penais é por conseguinte como diz Maurach uma exigência políticojurídica dirigida ao legislador126 Mas além dessa subsidiariedade social existe como vimos uma subsidiariedade lógicosistemática do direito penal em relação aos demais ramos do direito que de corre da unidade lógica do direito já que apesar de dividido em disciplinas o direito é um só não devendo haver contradições dentro do sistema O ilícito latente ou ma nifesto preexiste portanto à sistematização do direito penal visto que tal já é antes objeto do direito civil administrativo etc e sobretudo objeto do direito constitucional porque toda ilicitude nasce originariamente na Constituição e só derivadamente na or dem infraconstitucional Assim compete ao legislador ordinário ao dispor sobre os limites dessa ilici tude eleger os instrumentos de defesa civil etc desse interesse protegido consti tucionalmente Disso cuida o direito civil quando dispondo sobre a propriedade e a posse assegura o direito à ação reivindicatória e aos interditos possessórios etc Também disso trata o legislador penal quando define como crime o furto ou o roubo que não são senão modos qualificados de esbulho O direito penal é o braço armado da Constituição127 Mas essa subsidiariedade se estende também às demais formas de intervenção jurídica porque o legislador penal ao tipificar determinados comportamentos pres supõe nem sempre acertadamente o fracasso das instâncias de controle social que lhe precedem De modo que o direito penal não constitui o ilícito pois se limita a reforçar a proteção de interesses já protegidos ao castigar mais gravemente condutas que já são sancionadas pelo direito como um todo O direito penal é um direito resi dual Consequentemente o direito penal não cria um sistema exclusivoautônomo de ilicitudes fora ou além da ordem jurídica vigente mesmo porque como disse Hungria a ilicitude jurídica é uma só do mesmo modo que um só é o dever jurídico128 ou seja todos os preceitos primários penais pressupõem outro preceito não penal do qual são o complemento e reforço129 Mas isso não significa que o direito penal não tenha auto nomia relativamente aos outros ramos do direito razão pela qual pode criar conceitos e institutos próprios que nem sempre coincidem com o direito civil etc 126 Derecho penal pai1e general Buenos Aires Astrea 1994 p 34 1 27 Luiz Carlos Perez Tratado de derecho penal Bogotá Ed Tem is 1 967 p 4243 128 Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro Forense 1 978 v 1 t 2 p 30 129 Grispigni Diritto penale italiano Milano 1 947 v 1 p 235 67 PAULO QEIROZ Naturalmente que não se deve tomar em termos absolutos a afirmação de que o direito penal é a forma mais grave de intervenção do Estado na vida dos cidadãos pois pode ocorrer nalguns casos de a intervenção não penal ser até mais grave tal como ocorre nos crimes de trânsito em que as sanções administrativas por vezes são mais pesadas do que as penais 6 CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL Também por isso caráter subsidiário o direito penal não constitui um sistema exaustivo de ilicitudes ou de proteção de bens jurídicos mas descontínuofragmentá rio já que sua intervenção pressupõe o fracasso de outras formas de controle É que o direito penal seleciona e tipifica condutas atendendo à relevância do bem jurídico e segundo a intensidade da lesão de que se trate outorgandolhes uma proteção relativa Não se protegem portanto todos os bens jurídicos mas só os mais importantes nem sequer os protege em face de qualquer classe de atentados mas tão só em face dos ata ques mais intoleráveisYº Assim nem mesmo o direito à vida recebe proteção penal absoluta pois por exemplo atos simplesmente preparatórios que visem à sua eliminação são como regra jurídicopenalmente irrelevantes e ordinariamente a lei penal só reprime ações dolo sas aliás o próprio Código tolera a morte quando autoriza o aborto necessário ou sen timental CP art 228 de modo que o bem jurídico vida recebe uma proteção apenas fragmentária Subsidiariedade e fragmentariedade são assim verso e reverso de uma mesma moeda a relatividade dessa proteção extrema 7 ILÍCITO PENAL E ILÍCITO NÃO PENAL Em razão do que vem sendo dito não cabe falar por força da unidade do direito inclusive duma distinção qualitativa mas quantitativa entre o ilícito penal e o ilícito não penal Com efeito definir ou não determinados comportamentos como delituosos ou contravencionais para os submeter a seguir a uma disciplina especialmente dura o direito penal é uma questão de conveniência política A distinção entre por exemplo as sanções penais e as administrativas é puramente quanto ao maior rigor entre elas diferença de grau Assim enquanto o direito administrativotributário pune o autor do descaminho com a perda das mercadorias apreendidas e multa o Código Penal art 334 castiga essa mesma conduta com pena de prisão de um a quatro anos enquanto o direito civil reprime o homicídio culposo com a reparação do dano o direito penal o pune com pena de prisão CP art 121 3º E se julgar bastante a repressão administrativa ou civil o Estado pode renunciar à intervenção penal descriminalizando o comportamento em questão Porque na di versidade de tratamento dos fatos antijurídicos a lei não obedece a um critério de rigor 130 Rodriguez Mourullo Derecho penal cit p 19 68 1 01 1 I NTRODUÇÃO científico ou fundado numa distinção ontológica entre tais fatos mas a um ponto de vista de conveniência política variável no tempo e no espaço131 8 LEGISLAÇÃO ESPECIAL O Código Penal constitui em nível infraconstitucional a legislação penal funda mental Mas fora do Código existe uma legislação especial cada vez mais abundante definindo novos crimes e por vezes estabelecendo novos critérios de imputação ju rídicopenal a exemplo da Lei nº 960598 Lei de Crimes Ambientais que adotou a responsabilidade penal da pessoa jurídica Exatamente por isso o art 12 dispõe que as regras gerais do Código aplicamse aos fatos incriminados por lei especial se esta não dispuser de modo diverso Vigora no particular o princípio da especialidade portanto a lei especial prevalece sobre a lei geral sempre que dispuser diversa ou contrariamente ex especialis derogat legi generali E não poderia ser diferente já que a lei especial é editada justamente para dar tratamento melhor e mais sistematizado a determinados temas seja criminalizando novos comportamentos seja penalizando mais duramente seja descriminalizando seja despenalizando etc Por vezes a mesma conduta acaba por ser criminalizada múltiplas vezes inclusive numa clara ofensa ao princípio ne bis in idem Pois bem apesar de a lei especial prevalecer em princípio sobre a lei geral o Có digo Penal por ser a legislação penal fundamental é aplicável relativamente às regras gerais desde que a lei não disponha de forma diversa Assim por exemplo são aplicá veis ordinariamente à legislação penal especial os conceitos básicos dolo culpa erro de tipo etc as excludentes de ilicitude legítima defesa estado de necessidade etc as excludentes de culpabilidade erro de proibição inevitável coação moral irresistível os critérios de individualização judicial da pena art 59 e as causas de extinção de punibilidade morte do agente prescrição entre outros É certo ainda que as regras gerais do Código a que a alude o art 12 não se con fundem com a Parte Geral que vai do art lº ao art 120 porque também na parte especial há regras gerais aplicáveis à legislação especial a exemplo do conceito legal de funcionário público CP art 327 9 SOBRE A LEGISLAÇÃO EM VIGOR A Constituição 1988 apesar de seu caráter generalíssimo constitui a legislação jurídicopenal fundamental porque define princípios e garantias penais e processuais penais estabelece limites à intervenção penal e prevê mandados de criminalização e não criminalização de penalização e não penalização art 5 No âmbito infraconstitucional o texto fundamental é o Código Penal 1940 que é composto de duas partes a Parte Geral que vai do art 1 º ao art 120 e foi inteiramente 1 3 1 Hungria Comentários cit v 1 t 2 p 29 69 PAULO ÜlJ E I ROZ revista em 1984 e a Parte Especial que vai do art 121 ao art 361 A Parte Geral prevê os princípios e conceitos jurídicopenais essenciais a teoria do delito dolo culpa erro de tipo erro de proibição legítima defesa estado de necessidade etc define enfim os critérios de imputação e não imputação penal A Parte Geral prevê também a indi vidualização judicial da pena e seus conceitoschave espécies de pena e regimes de cumprimento medidas de segurança causas de extinção de punibilidade etc Já a Parte Especial cuida no essencial de definir os tipos legais de crime e cominar penas começando pelos crimes contra a vida Apesar de ser de 1940 a Parte Especial sofreu um semnúmero de alterações ora incorporando novos tipos ora abolindo ou tros Além do Código existe uma extensa legislação especial antiga e recente definin do novos crimes e estabelecendo novos critérios de imputação penal a exemplo da Lei de Contravenções da Lei de Execução Penal da Lei de Crimes Ambientais etc No Brasil Colônia vigoraram as Ordenações Portuguesas especialmente as Orde nações Filipinas 16031830 que foram sucedidas pelo Código Criminal do Império 1830 e Código Penal Republicano 1890 10 CONTAGEM DOS PRAZOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS De acordo com o Código Penal art 10 na contagem dos prazos penais v g o tempo exato de pena a ser cumprido é incluído o dia do começo não havendo prorro gação com a superveniência de férias sábados domingos ou feriados Assim o cum primento de uma pena de um ano de prisão que se iniciar por exemplo a qualquer hora do dia 20 de maio de 2008 terminará às 24 horas do dia 19 de maio do ano seguinte 2009 Apesar disso o prazo penal será interrompido ou suspenso sempre que houver previsão legal expressa nesse sentido tal como ocorre com os prazos de prescrição CP arts 116 e 1 17 Diversa é a contagem dos prazos processuais penais v g prazo para apresen tar defesa prévia alegações finais recorrer Com efeito já agora é excluído o dia do começo e o cômputo do prazo tem assim início a partir do primeiro dia útil seguinte incluindose o dia do vencimento CPP art 798 1 º Além disso quando a intimação tiver lugar na sextafeira ou a publicação com efeito de intimação for feita nesse dia o prazo terá início na segundafeira imediata salvo se não houver expediente caso em que começará no primeiro dia útil que se se guir conforme dispõe a Súmula 310 do STF132 Assim se o prazo para a interposição do recurso de apelação se iniciou por exemplo no dia 5 segundafeira a contagem começará no dia 6 terçafeira sendo tempestivo o recurso que for interposto até o dia 1 32 A Súmula 3 1 O do STF dispõe textualmente quando a intimação tiver lugar na sextafeira ou a publicação com efeito de intimação for feita nesse dia o prazo j udicial terá início na segundafeira imediata salvo se nào houver expediente caso em que começará no primeiro dia útil que se seguir 70 1 01 1 1 NTRODUÇÃO 12 segundafeira pois o termo final que se deu no dia 10 sábado prorrogase para o próximo dia útil Se o prazo estiver previsto em ambos os Códigos Penal e Processual Penal pre valecerá o mais favorável ao acusado isto é o prazo do art 10 do CP e não art 798 1 º do CP É o que se dará por exemplo na contagem dos prazos decadenciais e pres cnc10nais Portanto na hipótese dos arts 103 do CP e 38 do CPP que tratam da decadência para o oferecimento de queixa pelo ofendido ou seu representante legal no prazo de seis meses farseá a contagem do prazo decadencial na forma do Código Penal Por isso o que poderia parecer regra de direito processual com previsão no Código de Processo inclusive prazo para oferecimento da queixa é em verdade regra de direito material que se não observada implicará a extinção da punibilidade CP art 107 IV Quanto à contagem do prazo de prisão provisória flagrante temporária preven tiva etc prisão temporária em especial que pode ser decretada pelo prazo de cinco dias prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade nos termos do art 2º da Lei nº 796089 devese observar a regra do art 10 do CPP analogicamente incluindose portanto o dia em que se executar a ordem de pri sào133 Não é preciso dizer que o calendário comum a que o Código art 10 se refere é o oficial gregoriano sendo que os prazos em meses são contados não pelo número real de dias meses com 28 29 30 ou 31 dias mas de determinado dia à véspera do mesmo dia do mês subsequente O mesmo ocorre quanto à contagem de prazos em anos134 Na contagem da pena privativa de liberdade CP art 11 desprezamse as frações de dia logo não há como a pena ser fixada em 15 dias e 8 horas por exemplo Mas as frações de meses dias ou ano meses devem incidir na pena Também na pena de multa devem ser desprezadas as frações de real ou seja os centavos Apesar de o Código art 1 1 se referir às frações de cruzeiro em razão das sucessivas alterações na nossa moeda é de concluir que ele faça referência hoje às fra ções de real135 Finalmente já se decidiu apesar de opinião em sentido contrário136 que não se computam nas penas de multa as frações de diasmulta aplicandose por analogia o art 1 1 do CP 1 33 Nesse sentido Paulo Rangel Direito Processual Penal 12 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 p 648 1 34 MIRABETE Julio Fabbrini Código Penal Interpretado 5 ed São Paulo Atlas 2005 p 1 39 1 35 O Decretolei nº 228486 criou o cruzado a Lei nº 802490 voltou a instituir o cruzeiro a Lei nº 869793 criou o cruzeiro real sendo que por fim a Lei nº 8880 atualmente vigente criou o real 1 36 MIRABETE Julio Fabbrini Código Penal Interpretado 5 ed São Paulo Atlas 2005 p 1 39 71 Sumário 1 Introdução 11 Bem jurídico 2 Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa Nullum crimen nulla poena sine praevi lege 21 Princípio da taxatividade certeza ou determinação 22 Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal 23 Leis penais em branco e princípio da reserva legal 3 Princípio da proporcionalidade em sentido amplo 32 Princípio da adequação ou exigibilidade ou idoneidade 33 Princípio da proporcionalidade das penas proporcionalidade em sentido estrito 34 O princípio ne bis in idem 35 Princípio da insignificância 4 Princípio da humanidade 5 Princípio da responsabilidade pessoal ou culpabilidade 6 Princípio de lesividade ou ofensividade 7 Princípio da igualdade ou isonomia 8 Direito e interpretação 81 Introdução 82 Interpretar é compreender e argumentar 83 O chamado círculo hermenêutico 84 Limites da interpretação 85 Interpretação e garantismo 86 Prevalência da Constituição 87 Existe a resposta juridicamente correta 88 Direito e analogia 89 Analogia e interpretação analógica 9 Concurso de TIPOS penais ou conflito aparente de normas 91 Introdução 92 Princípio da especialidade 93 Princípio da subsidiariedade 94 Princípio da consumação ou absorção 941 Crime complexo ou composto 942 Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito 95 Primazia do princípio da especialidade PAULO ÜlJEIROZ resultam da interpretação dos valores que a própria Constituição consagra como é o caso dos princípios de proporcionalidade e lesividade E os princípios penais representam limitações importantes ao poder de punir razão pela qual constituem autênticas garantias políticas individuais oponíveis ao próprio exercício do poder punitivo estatal A Constituição pretende portanto pro teger o indivíduo duplamente isto é por meio do direito penal e contra o direito penal3 E porque nasceram historicamente e permanecem constitucionalmente art 5º como autênticas garantias individuais não se pode perder de vista que estão destina dos em princípio à proteção do cidadão contra possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias e não para pretextar atuações abusivas em nome da segurança pública ou semelhante Exatamente por isso é que a lei não pode retroagir para prejudicar o réu embora possa retroagir para favorecêlo Mas se por um lado os princípios constituem limites à intervenção do Estado função de garantia por outro funcionam como critério de justificação da intervenção penal função legitimadora razão pela qual tanto servem à legitimação quanto à des legitimação do sistema penal Não surpreende assim que acusação e defesa não raro argumentem a partir de um mesmo princípio e formulem pretensões antitéticas inclu sive a demonstrar que o conteúdo essencial de um princípio não é dado pelo próprio princípio mas pelos sujeitos que interpretam caráter retórico Notese mais que a Constituição além de consagrar extensa lista de direitos e ga rantias individuais prevê também mandados de criminalização eou penalização art 5º XLI XLII XLIII XLIV 7 X 29A 2º e 3º 225 4º e impede a punição de certas condutas art 53 isto é estabelece mandados de não criminalização ou não penalização etc4 11 Bem jurídico Bem jurídico penal é todo valor ou interesse individual ou coletivo legitima mente protegível penalmente5 Assim a vida a liberdade o meio ambiente a probida de administrativa etc 3 Roxin Claus Problemas fundamentais de direito penal Lisboa Ed Vega 1993 p 28 4 Vide Luciano Feldens A Constituição Penal Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 do mesmo autor Direitos fundamentais e direito penal Porto Alegre Livraria do Advogado editora 2008 E Luiz Carlos dos Santos Gonçalves Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1 988 Belo Horizonte Editora Fórum 2007 5 De acordo com Jescheck Tratado de Derecho Penal cit p 23 1 bens jurídicos são interesses vitais da comunidade aos quais o direito penal outorga proteção Para Roxin Derecho Penal cit p 56 bens jurídicos são circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio sistema 74 1 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS Naturalmente que o catálogo dos bens jurídicos passíveis de legítima proteção ju rídicopenal não pode ser objeto de uma sistematização exaustiva já que sua definição depende dos fins e limites constitucionalmente assinalados ao Estado permanente mente em mutação6 Também por isso se é certo que uma teoria do bem jurídico limitadora do poder punitivo estatal faz todo sentido para o mundo ocidental herdeiro de uma tradição secularliberal o mesmo já não ocorre com os países com um legado político diverso especialmente os de perfil teocrático nos quais pode ser legítimo castigar simples he resias ou blasfêmias por exemplo Não surpreende assim que um recente projeto de código penal iraniano tipificas se a apostasia abandono da religião islâmica e lhe cominasse pena de morte Nem é de admirar que alguns países ainda criminalizem a prática de relações homossexuais ou o incesto A teoria do bem jurídico é por conseguinte a própria teoria dos fins da pena em bora com outro nome a qual depende da conformação política de cada Estado7 Além disso ela se presta essencialmente a fixar as condições de deslegitimação isto é demonstrativas de quando não é legítima a intervenção penal visto exigir lesão ou perigo de lesão de bem jurídico de terceiro8 sos Consequentemente não cabe intervir penalmente entre outros nos seguintes ca a situações de má disposição de direito próprio isto é condutas que só lesionam o próprio titular do direito autolesão a exemplo de suicídio tentado uso de droga etc b repressão de questões puramente morais vg prostituição adulta lenocínio etc c inexistência de lesão ou perigo de lesão juridicamente relevante d condutas sem dignidade penal quer por serem insignificantes quer por serem passíveis de repressão suficiente fora do âmbito penal caráter subsidiário da intervenção penal9 6 Daí porque toda pretensão no sentido de criar um catálogo exaustivo de bens jurídicos é vã e inútil 7 No mesmo sentido Ferrajoli Derecho y razón cit p 467 8 Ferrajoli Derecho y razón cit p 47 1 9 De acordo com Roxin não se prestam a proteger bem jurídico aas normas penais arbitrárias bas que têm finalidade puramente ideológica e cas que proíbem simples imoralidades Derecho Penal cit p 56 75 PAULO ÜJEIROZ 2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E IRRETROATIVIDADE DA NORMA PENAL MAIS SEVERA NULLUM CRIMEN NULLA POENA SINE PRAEVIA LEGE A atribuição exclusiva do legislador para definir crimes e cominar penas constitui desde a Revolução Francesa a pedra angular do direito penal moderno10 sendo a ideia de submeter a intervenção do Estado ao império da lei inerente ao conceito mesmo de Estado de Direito Que a atuação do Estado seja orientada por regras jurídicas que ex pressem a vontade popular é condição de legitimação democrática por meio do poder competente o Poder Legislativo E particularmente no âmbito jurídicopenal em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade com maior razão impõese o respeito ao princípio da legalidade Semelhante princípio atende pois a uma necessidade de segurança jurídica e de controle do exercício do poder punitivo de modo a coibir possíveis abusos à liberdade individual por parte do titular desse poder o Estado Consiste portanto constitucio nalmente numa poderosa garantia política para o cidadão expressiva do império da lei da supremacia do Poder Legislativo e da soberania popular sobre os outros po deres do Estado de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais11 Do aludido princípio cuida o art 5 XXXIX da Constituição ao dispor que não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal Tal princípio representa a um tempo uma limitação formal e material como dito antes12 Formalmente significa que só por lei em sentido estrito emanada do Poder Le gislativo o Estado poderá legislar sobre matéria penal definindo as infrações penais e cominando as respectivas sanções são inconstitucionais portanto atos legislativos que sem revestirem o status de lei pretendam definir crimes ou cominar penas As sim por exemplo medida provisória CF art 62 1 1 b mesmo porque em virtude de seu caráter provisório e a possibilidade de não conversão em lei inclusive por rejei ção pelo Congresso Nacional é incompatível com o postulado de segurança jurídica que o princípio encerra E dificilmente se poderia compatibilizar os pressupostos de relevância e urgência da medida com pretensões criminalizantes sobretudo à vista dos constrangimentos que podem ocorrer no curto espaço de sua vigência Mas convém ressalvar que outros atos legislativos podem eventualmente dispor sobre matéria penal sempre que a hipótese não seja a de definir crimes nem a de co minar penas ou aumentar o rigor punitivo e sim a de conceder benefícios ou similar como ocorre com o indulto ou a comutação de penas que competem ao Presidente da 1 O Gómez de la Torre e outros Lecciones cit p 36 1 1 GarcíaPablos Derecho penal cit p 234 1 2 De acordo com Jescheck a lei penal em sua aplicação não só tem de satisfazer os princípios jurídicos formais senão também em seu conteúdo há de responder às exigências da justiça encarnadas no princípio material do Estado de Direito Tratado cit p 1 12 76 lü2 1 PRI NCiPIOS PENAIS República CF art 84 XII que se utiliza de simples decreto para tanto Também por isso nada impede que outra norma v g medida provisória possa dispor sobre maté ria penal desde que favoravelmente ao réu13 Apesar de a Constituição se referir ao crime e à pena tal é também aplicável às contravenções penais tanto quanto às medidas de segurança Enfim o princípio é apli cável a toda e qualquer intervenção penal que implique privação ou restrição a direito ou liberdade do agente medidas de segurança inclusive que são um misto de prisão e hospital tão ou mais lesiva à liberdade quanto a própria prisão Compete privativamente à União legislar sobre direito penal CF art 22 1 mas excepcionalmente os Estadosmembros podem também fazêlo quanto a questões es pecíficas v g trânsito local desde que haja autorização por lei complementar para tanto CF art 22 parágrafo único No que tange ao direito internacional quando se tratar das relações do indivíduo com organismos internacionais v g Tribunal Penal Internacional TPI os tratados e convenções internacionais constituem as fontes di retas do respectivo direito penal tal como ocorreu com o Tratado de Roma que definiu os crimes de guerra contra a humanidade etc sujeitos à competência do TPI criado por aquele tratado Mas essas normas de direito penal internacional não são aplicáveis às relações entre os indivíduos e o Estado brasileiro que ficam sujeitos à justiça brasi leira14 Por fim temos que o princípio da legalidade compreende 1 o princípio da reserva legal só a lei pode em princípio dispor sobre matéria penal 2 taxatividade a lei deve descrever com o máximo de precisão possível os tipos penais incriminadores 3 irretroatividade da lei mais severa lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu E há quem a exemplo de Ferrajoli considere que o princípio em sentido estrito compreende todas as demais garantias penais e processuais como condições neces sárias à legalidade penal proporcionalidade devido processo legal etc15 E países há como a Espanha que exigem lei complementar para definir crimes e cominar penas 21 Princípio da taxatividade certeza ou determinação Não basta que a lei defina o crime e comine a respectiva pena porque o Estado sempre poderá iludir semelhante garantia de legalidade de seus atos por meio da edi ção de leis penais de conteúdo excessivamente impreciso ou vago como ocorreu na 1 3 No sentido do texto Luiz Flávio Gomes Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica S Paulo Premier 2008 p 42 14 Luiz Flávio Gomes idem p 3839 1 5 Derecho y razón cit p 95 77 PAULO QEIROZ Alemanha nazista em que determinada lei previa a punição de quem atente contra a ordem jurídica ou atue contra o interesse das Forças Aliadas 16 bem assim diversas disposições da Lei de Crimes Ambientais nº 96059817 por exemplo Por isso o princípio implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais impon dose ao Poder Legislativo na elaboração das leis que formule tipos penais com a máxima precisão de seus elementos e ao Judiciário que os interprete adequadamente Porque a máxima taxatividade possível e de real vinculação do juiz à lei é como diz Sílva Sánchez um objetivo irrenunciável para o direito penal de um Estado De mocrático de Direito que implica a máxima precisão das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens quando das suas decisões motivo pelo qual se trata de um princípio de legitimação democrática das intervenções pe nais como garantia da liberdade dos cidadãos derivada do princípio da divisão de poderes18 22 Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal Antes da lei não existe violação à lei De acordo com o princípio da anterioridade a lei penal deve necessariamente pre ceder às infrações penais nela previstas como condição de validade pois do contrário a norma acabaria por incidir sobre condutas que até então não constituíam ilícito penal ou que eram punidas menos gravemente Justamente por isso a nova lei só poderá ser aplicada a fatos futuros e não pretéritos exceto se favorecer o réu Em consequência como regra geral vigora a irretroatividade da lei penal não po dendo a nova lei alcançar fatos anteriores à sua vigência Mas excepcionalmente a norma atuará retroativamente alcançando por conseguinte situações anteriores à sua entrada em vigor sempre que for mais benéfica para o infrator ou porque lhe é mais branda ex mitior ou porque descriminaliza a conduta abolitio criminis Justificase a exceção em favor da liberdade por não implicar ofensa à pretensão garantidora que o princípio encerra Daí dispor a Constituição art 5º XL que a lei penal não retroagi rá salvo para beneficiar o réu 1 6 RoxinArztTiedmann lntroducción ai derecho penal y ai proceso penal trad Arroyo Zapatero e Gomez Colomer Barcelona Ed Ariel 1989 1 7 Escreve Juarez Tavares que algumas fórmulas sintéticas correntes nas leis penais aceitas acriticamente pela doutrina importam em violação ao princípio da legalidade a exemplo do crime de aborto cuja conduta é descrita como provocar aborto arts 124 125 e 126 sem nada dizer sobre a interrupção da gravidez ou da morte do feto a injúria que se resume em injuriar alguém ofendendolhe a digni dade ou decoro art 140 sem referência ao que constitua afinal essa atividade de injuriar o mesmo ocorrendo frequentemente nos crimes culposos cujo tipo salvo raras exceções p ex na receptação culposa art 1 80 1 º não vem descrito expressamente na lei penal Teoria do injusto penal Belo Horizonte Dei Rey 2000 p 1 87 18 Aproximación al derecho penal contemporáneo Barcelona Bosch 1992 p 256257 78 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS 23 Leis penais em branco e princípio da reserva legal As assim chamadas leis penais em branco expressão que procede de Karl Bin ding são tipos penais que embora cominem a sanção penal respectiva seu preceito por ser incompleto remete expressa ou tacitamente a sua complementação a uma ou tra norma ora de mesmo grau hierárquico lei etc ora de grau hierárquico inferior portaria etc de modo a precisarlhe o significado e conteúdo exatos os tipos penais em branco são estruturalmente incompletos portanto19 Em suma são tipos penais que remetem parcialmente a complementação do pre ceito primário definição da conduta incriminada para uma norma de igual ou diverso nível hierárquico Exemplo disso é o tráfico de droga e a omissão de notificação de doença CP art 269 que são complementados por outra norma que especificará res pectivamente quais são as drogas ilícitas e quais são as doenças de notificação com pulsória Mas não se deve confundir tipos penais em branco com os abertos ou vagos uma vez que são conceitos distintos embora não sejam incompatíveis entre si20 A lei que criminaliza o tráfico de droga por exemplo não só é completa quanto à des crição do tipo por descrever seus elementos essenciais como é exaustiva ao fazêlo referindo uma dezena de verbos que o constituem E a distinção é relevante pois do contrário praticamente quase nenhum tipo ficaria imune à crítica que se fará a seguir Convém notar aliás que em virtude da estrutura aberta da linguagem jurídica inclusive todos os tipos são mais ou menos abertos mais ou menos incompletos tam bém por isso a tradicional classificação entre elementos objetivos subjetivos e norma tivos do tipo carece de fundamento conforme será visto oportunamente De todo modo só há autêntico tipo penal em branco quando a norma apesar de descrever a ação típica com seus elementos essenciais e cominar a respectiva pena remeter explícita ou implicitamente a complementação do preceito primário incrimi nador a uma outra de mesmo grau hierárquico homogênea ou de grau inferior he terogênea Autores há que restringem ainda mais esse conceito entendendo que não se pode considerar como tal aqueles tipos penais cuja integração é feita por norma de mesmo nível hierárquico21 1 9 Utilizo aqui a expressão em sentido estrito Binding e não em sentido amplo Mezger pois do contrário confundirseão leis penais em branco com leis penais incompletas Conceito ainda mais restrito dános Rodriguez Mourullo para quem as leis penais em branco são sempre leis que reme tem expressa ou tacitamente a determinação concreta do preceito a uma autoridade distinta de nível inferior Derecho penal cit p 8789 20 Parece fazer essa confusão Sídio Rosa de Mesquita Júnior que se posiciona no sentido da constitu cionalidade das leis penais em branco argumentando dentre outras coisas que o reconhecimento da inconstitucionalidade acabaria por inviabilizar praticamente toda a legislação penal Comentários á lei antidrogas São Paulo Atlas 2007 2 1 Nesse sentido Rodrigues Mourullo Derecho Penal Parte general Madrid Civitas 1978 79 PAU LO QlEIROZ Exatamente por isso não o são os tipos penais abertos em virtude da vagueza da descrição de seus termos v g culposos tampouco os que simplesmente recorrem a elementos ditos normativos como por exemplo o sem licença ou autorização da autoridade competente ou o em desacordo com a lei etc presentes em muitos tipos penais inclusive em tipos penais em branco como a lei de droga a demonstrar que apesar da distinção que se deve fazer tais classificações não são incompatíveis entre si podendo o tipo penal ser simultaneamente em branco e aberto Pois bem questão das mais relevantes diz respeito à constitucionalidade das leis penais em branco A doutrina em geral as tem como constitucionais e compatíveis com o princípio da reserva legal embora exija o atendimento de certos requisitos Assim por exemplo Luzón Pefia para quem o recurso à técnica de remissão há de ser absolutamente excep cional por resultar estritamente necessário e imprescindível para completar a descrição típica da conduta22 De modo semelhante Cerezo Mir diz que essa técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de técnica legislativa e pelo caráter sempre mutável da matéria objeto da regulação que exigiria uma revisão muito frequente das ações proibidas ou ordenadas motivo pelo qual na lei penal em branco já deve estar contida a descrição do núcleo essencial da ação proibida ou ordenada23 E Jescheck considera que quando a norma que há de completar o tipo penal em branco tiver cará ter delegado o legislador deve prever a cominação legal bem como descrever com pre cisão o conteúdo a finalidade e o alcance da autorização que o cidadão possa extrair já na lei mesma os pressupostos da punibilidade e a classe de pena pois do contrário não se respeitaria o princípio da determinação legal do delito e da pena24 Entre nós são pela constitucionalidade Luiz Régis Prado25 Guilherme de Souza Nucci26 e Pablo Al fen 27 entre outros Defendem a inconstitucionalidade Rogério Greco André Copetti ZaffaroniBatista28 e Andrei Schmidt29 Sobre o assunto o Tribunal Constitucional espanhol Sentença 1271990 de 5 de julho já teve ocasião de se pronunciar pela constitucionalidade exigindo porém que o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado em razão do bem jurídico pro tegido pela norma penal que a lei além de prever a pena contenha o núcleo essencial da proibição e seja satisfeita a exigência de certeza ou se dê a suficiente concreção 22 Curso de derecho penal Madrid Ed Universitas 1996 p 146 e ss 23 Curso de derecho penal espafiol introducción Madrid Tecnos 1997 p 1 56 24 Tratado cit p 98 25 Curso de direito penal brasileiro São Paulo Revista dos Tribunais 2002 26 Código Penal comentado São Paulo Revista dos Tribunais 2002 27 Leis Penais em branco e o direito penal do risco Rio de Janeiro Lumen Juris 2004 28 Direito penal brasileiro I p 205206 para os quais a lei penal em branco sempre foi lesiva ao prin cípio da legalidade formal e além disso abriu as portas para a analogia e para a aplicação retroativa motivos suficientes para considerála inconstitucional 29 Princípio da legalidade penal Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2001 p 1 501 56 80 I 02 1 P RI NCÍPIOS PENAIS para que a conduta considerada criminosa fique suficientemente precisa com o com plemento indispensável da norma a que a lei penal faz remissão e resulte desta for ma salvaguardada a função de garantia do tipo com possibilidade de conhecimento da atuação penalmente cominada De acordo com esse entendimento portanto são necessários os seguintes requisitos a necessidade estrita da remissão b que a norma embora incompleta já preveja a sanção específica c que o preceito contenha o nú cleo essencial da proibição Temos que os tipos penais em branco que remetem o complemento à norma infe rior tipos penais em branco heterogêneos são inconstitucionais por implicarem viola ção aos princípios da reserva legal e divisão de poderes Com efeito tomando como exemplo o tráfico ilícito de drogas temse que a lei brasileira atende aos requisitos exigidos pelo tribunal espanhol uma vez que ao des crever o núcleo essencial da conduta típica criminaliza mais de uma dezena de verbos e comina a pena cabível Além disso podese dizer que o bem jurídico supostamente protegido a saúde pública30 justifica plenamente a remissão Estariam assim satis feitas as exigências daquela Corte constitucional No entanto quando a lei permite que o núcleo essencial da proibição seja com pletado por simples ato administrativo é o Poder Executivo quem dirá em última aná lise o que constitui ou não tráfico ilícito de drogas afinal é ele que um tanto arbi trariamente discriminará as drogas que devem constar do rol do núcleo essencial da proibição Convirá saber então quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilícito de en torpecentes Parece claro que não é o Poder Legislativo mas o Poder Executivo mais exatamente o Ministério da Saúde ANVISA que se utiliza de simples portaria para tanto decretando dentro do vastíssimo universo das drogas as que devem ser consi deradas ilícitas Enfim quanto ao assunto drogas ilícitas quem legisla sobre matéria penal é em última instância o próprio Ministério da Saúde Poder Executivo mesmo porque a lei penal em branco era até então uma alma errante em busca de um corpo Binding e portanto carente de autoaplicação ante a manifesta imprecisão de seus termos e consequente necessidade de complementação Até aí a lei penal era uma espé cie de cheque em branco emitido em favor do Executivo Por conseguinte semelhante ato viola a um tempo o princípio da reserva legal por tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal criminalizando uma dada conduta e o princípio da divisão de poderes já que é aquele poder e não o Legislativo que acaba legislando em tal caso Mas isso não quer dizer que os tipos penais em branco sejam sempre inconstitu cionais inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o status 30 Vide Paulo Queiroz Alexandre Bizzoto e Andréia Rodrigues Comentários Críticos à Lei de Drogas Rio Lumen Juris 2010 81 PAULO QEIROZ de lei em sentido formal bem assim o preceito de norma que não contenha o núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena O primeiro obstáculo pode rá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declaratória das drogas ilícitas ainda que meramente homologatória de proposta portaria do Ministério da Saúde de sorte a converter uma norma penal em branco heterogênea em homogênea o segundo com a redação de tipos penais com precisão de seus elementos constitutivos conforme o princípio da taxatividade Em isso não ocorrendo tolerarseá mais uma violação ao princípio da reserva legal entre tantas violações que o silêncio ou conve niência vai perpetuando Por fim quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser ordinaria mente instável o que a justificaria temos que a instabilidade e a incerteza recomen dam justamente o contrário que não deveria ser objeto de criminalização ou que somente o fosse depois de exaustiva discussão sobre o assunto motivo pelo qual também por essa razão o Poder Legislativo deveria se manifestar previamente sobre o assunto 3 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO AMPLO O princípio da proporcionalidade31 entendido como mandado de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental Alexy compreende os princípios ou subprincípios de necessidade adequação e proporcionalidade em sentido estrito já que a intervenção do poder público sobre a liberdade dos cidadãos só pode ser legítima na medida em que seja necessária adequada e proporcional afinal como disse Bec caria na conclusão de seu famoso opúsculo a pena para não ser um ato de violência contra o cidadão deve ser essencialmente pública pronta necessária a menor das pe nas aplicáveis nas circunstâncias dadas proporcionada ao delito e determinada pela lei 32 Além da proibição de excesso o princípio da proporcionalidade compreende a proibição de insuficiência da intervenção jurídicopenal Significa dizer que se por um lado deve ser combatida a sanção penal desproporcional porque excessiva por outro cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento dado o grau de ofensividade e significação políticocriminal afinal a desproporção tanto pode darse para mais quanto para menos Exemplo disso de in suficiência da resposta penal são os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei 3 1 O princípio da proporcionalidade é atualmente um dos mais importantes de todo o direito e em parti cular do direito penal Porque praticamente toda discussão penal envolve de algum modo o princípio da proporcionalidade desde a sua existência mesma passando pelos conceitos de eno de tipo e de proibição de legítima defesa de coação inesistível incluindo toda a controvérsia em denedor da responsabilidade penal da pessoa jurídica até chegar às causas de extinção de punibilidade v g prescrição afinal o que está em causa é em última análise em todos esses casos a necessidade adequação proporcionalidade enfim da intervenção jurídicopenal 32 Dos delitos e das penas trad Paulo Oliveira Rio de Janeiro Tecnoprint 1980 XLII 82 1 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS nº 489865 que comina para as graves infrações que define prisão de dez dias a seis meses art 6 3º b33 31 Princípio da necessidade nullum crimen nulla poena sine necessitate Se o direito penal constitui ordinariamente a forma mais enérgica de coerção na liberdade dos cidadãos seguese que sua intervenção só deve ocorrer em casos de efe tiva necessidade para a segurança desses cidadãos Já Montesquieu assinalara que toda pena que não deriva da necessidade é tirânica34 enquanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 art 8º proclamaria que a lei devia estabelecer unica mente penas estrita e manifestamente necessárias35 Consequentemente a intervenção penal como ultima ratio da política social deve ter caráter subsidiário e fragmentário conforme o princípio de mínima intervenção devendo ser utilizada apenas quando fracassem outras instâncias de prevenção e con trole social menos onerosas e mais eficazes 36 33 Sobre o assunto Ingo Wolfgang Sarlet Constituição e proporcionalidade o direito penal e os di reitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência in Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Revista dos Tribunais ano 1 2 n 47 marabr 2004 Com base no princípio da proibição de proteção deficiente Maria Luiza Schiifer Streck considera inconstitucional ou incom patível com o aludido princípio 1 a possibilidade de redução de pena prevista no 4º do art 33 da Lei nº 1 1 3432006 para os traficantes de droga que sejam primários sem antecedentes criminais e sem envolvimento com organização criminosa 2 a previsão do pagamento do tributo como causa de extinção de punibilidade Lei nº 924995 art 34 para os crimes contra a ordem tributária 3 a con tinuidade delitiva para os crimes hediondos 4 a admissão do indulto para crimes hediondos Direito Penal e Constituição A face oculta da proteção dos direitos fundamentais Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2009 34 O espírito das leis trad Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Matos Rodrigues Brasília Ed UnB 1995 Livro XIX Cap XIV p 232 35 Por meio de Aviso de 28 de agosto de 1 822 o príncipe D Pedro determinara que os juízes do crime deviam guiarse pelas bases da Constituição monárquica portuguesa de 1 O de março de 1 82 1 desta cadamente o art 1 2 que dispunha Nenhuma lei e muito menos a lei penal será estabelecida sem absoluta necessidade Toda pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma pena deve passar da pessoa do delinquente 36 Por meio do princípio da proporcionalidade se condiciona portanto como afirma Canotilho o exercício da função legislativa de modo a coibir abusos à Constituição por meio da lei apud Suzana Toledo O princípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fim damentais Brasília Brasília Jurídica 2000 p 74 Segundo Suzana Toledo sob a perspectiva da adequação fica excluída qualquer consideração atinente ao grau de eficácia dos meios tidos como aptos a alcançar o fim desejado visto que a questão sobre a escolha do meio melhor menos gravoso ao cidadão já entra na órbita do princípio da necessidade p 76 O princípio de subsidiariedade expressa como assinala GarcíaPablos uma exigência elementar a necessidade de hierarquizar e racionalizar os meios disponíveis para responder ao problema criminal adequada e eficazmente El principio de la intervención mínima como límite de poder penal dei Estado disponível no site wwwdireitocriminalcombr 1º62001 83 PAULO QJEIROZ 32 Princípio da adequação ou exigibilidade ou idoneidade Se a finalidade declarada do direito penal é a prevenção geral e especial confor me doutrina hoje majoritária de comportamentos socialmente lesivos como forma de proteção de bens jurídicos então a sua intervenção há de pressupor uma relação lógica de adequação utilidade entre meio direito penal e fim prevenção de delitos Assim uma vez verificada a inutilidade ou inadequação da norma penal devese proceder à descriminalização pura e simples ou a só despenalização37 caso se trate respectiva mente de inadequação da própria proibição que o tipo penal encerra ou somente da espécie de pena cominada De acordo com o princípio da adequação o Estado só pode se valer portanto de meios idôneos para a realização de seus fins constitucionais Já dizia a propósito Ro magnosi que uma pena só será justa unicamente quando seja necessária para afastar os delitos da sociedade e só na medida em que seja necessária para este fim e mais que uma pena que resulte ineficaz para conseguir seu fim que consiste em refrear o delito no coração dos malvados longe de ser necessária não seria em relação com seu fim senão um puro nada38 Justamente por isso não parece fazer sentido algum reprimir penalmente os assim chamados crimes sem vítima39 como é o caso da contravenção do jogo do bicho e especialmente o porte e tráfico de droga entre pessoas adultas Parece inclusive que quão mais repressora é a política antidroga mais forte e violento se torna o tráfico mesmo porque enquanto houver procura de droga lícita ou ilícita haverá oferta ine vitavelmente Porque no fundo o problema fundamental não reside propriamente na produção e consumo de drogas legais ou ilegais presentes na história da humanidade desde sem pre mas na irracionalidade do discurso de guerra às drogas e na violência arbitrária que resulta da atual política proibicionista um autêntico genocídio em marcha40 37 Descriminalizar abolir o crime significa deixar de considerar como criminosa por lei ou interpretação determinada conduta já despenalizar significa basicamente utilizar alternativas à pena privativa da liberdade 38 Génesis dei derecho penal trad C Gonzáles Cortina e Jorge Guerrero Bogotá Ed Temis 1 956 Libro I Caps I e II p 1581 64 39 A expressão procede de E Schur 40 Thomas Szasz comparando política de drogas e discurso religioso afirma que como un judío pro fanando la Torah o un cristiano la hostia un americano que usa droga ilícita es culpable dei crimen místico de profanación transgrede el más estricto y más remido tabú Quien abusa de las drogas se contamina a sí mesmo y contamina a su comunidad poniendo em peligro a ambos De ahí que para el libertario laico quen abusa de las drogas comete un crimen sin víctima esto es ningún crimen em absoluto mientras para el hombre normalmente socializado es un peligroso profanador de lo sagrado Por eso su eliminación está ampliamente justificada SZASZ Thomas Nuestro derecho a las drogas Tradución de Antonio Escohotado Barcelona Compactos Anagrama 2001 p 1 1 2 Comparação seme lhante faz Antonio Escohotado que em análise longa e exaustiva fala de cruzada contra as drogas 84 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS 33 Princípio da proporcionalidade das penas proporcionalidade em sen tido estrito De acordo com o princípio da proporcionalidade o castigo deve variar conforme a gravidade do crime cometido isto é o princípio requer um juízo de ponderação entre a carga de privação ou restrição de direito que a pena comporta e o fim perseguido com a incriminação e com as penas em questão41 O princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem uma tríplice dimensão a proporcionalidade abstrata ou legislativa a ser observada no momento da vota ção e edição da lei penal e cominação das sanções com seus limites legais b proporcionalidade concreta ou individualização judicial da pena a ser conside rada pela autoridade judiciária quando da determinação da pena e c proporcionalidade executória que corresponde à individualização da pena du rante o processo de execução penal segundo o mérito do condenado progres são de regime etc O princípio tem por conseguinte tríplice destinatário o legislador o juiz e os órgãos da execução penal Em nome do princípio da proporcionalidade42 cumpre que a pena cominada e aplicada guarde justa proporção com o grau de ofensividade da conduta delituosa ob jetivando orientar a criminalização de comportamentos pelo legislador e a respectiva individualização judicial da pena devendo a sanção penal retratar o merecimento do autor da infração de acordo com as circunstâncias jurídicopenalmente relevantes CP arts 59 e 68 Portanto o mencionado princípio rechaça o estabelecimento de comina ções penais proporcionalidade abstrata e a imposição de penas proporcionalidade concreta que careçam de toda relação valorativa com o fato contemplado na globali dade de seus aspectos43 34 O princípio ne bis in idem Tampouco é possível punirse mais de uma vez uma mesma conduta por um mes mo fundamento jurídico sob pena de violação ao princípio ne bis in idem Tratase de proibição que resulta diretamente dos princípios da proporcionalidade e legalidade a impedir a dupla valoração e punição do mesmo fato com idêntico fun damento jurídico Consequentemente é vedada a multiplicidade de penas para o mes m0 sujeito por uma mesma ação se tiverem um mesmo fundamento44 4 1 Gómez de l a Torre e outros Lecciones cit p 47 42 Ferrajoli entende quanto às penas privativas da liberdade que não se justifica o estabelecimento de um mínimo legal acreditando que seria melhor confiar ao poder equitativo do juiz a eleição da pena abaixo do máximo estabelecido pela lei sem vinculálo a um limite mínimo ou vinculálo a um míni mo bastante baixo Derecho y razón cit p 400 No mesmo sentido Édson ODwyer Se eu fosse juiz criminal Boletim do IBCCrim São Paulo n 86 jan 2000 43 Sílva Sánchez Aproximación cit p 260 44 Berduzo Gómez de la Torre e outros Lecciones cit p 45 85 PAULO Q1JEIROZ Não há bis in idem porém em princípio quando o fato é punível simultânea ou sucessivamente em âmbitos jurídicos distintos visto que diversa é a fundamentação jurí dica Assim por exemplo o peculato CP art 312 é legitimamente punível civil admi nistrativa e penalmente respectivamente reparação do dano perda do cargo e prisão Nem importam em dupla valoração e punição do fato as hipóteses legais de con curso de crimes formal material e continuado CP arts 69 a 71 Discutese se a circunstância agravante da reincidência ofende o princípio em questão Parecenos que sim uma vez que ao se punir mais gravemente um crime tomandose por fundamento um delito anterior estáse em verdade a valorar e casti gar por mais uma vez a infração anteriormente praticada em relação à qual o autor já foi sentenciado chegandose por vezes a absurdos como por exemplo estabelecer o juiz depois de fixar a penabase em vinte anos de prisão por latrocínio aumentála de metade em razão da reincidência mais dez anos Nota o crime anterior um furto fora apenado em dois anos de prisão A rigor portanto o condenado estará a cumprir a mesma pena por mais cmco vezes Apesar disso o Supremo Tribunal Federal decidiu que a agravante da reincidência é constitucional legítima portanto De todo modo temos que o acréscimo de pena que resulta da reincidência não po derá acarretar aumento igual ou superior mas sempre inferior proporcionalmente à pena ou penas aplicada na sentença anterior que a gerou sob pena de o acréscimo ex ceder à própria pena antes imposta desproporcionalmente Por conseguinte no exem plo antes mencionado o aumento de pena deveria ser inferior a dois anos de prisão Zaffaroni e Nilo Batista propõem para fins de individualização da pena especial mente que o juiz considere eventuais lesões doenças ou prejuízos patrimoniais por ação ou omissão dos agentes do Estado durante a investigação ou repressão do delito cometido Tratase dizem de uma efetiva dor punitiva que deve ser considerada para afastar ou atenuar dupla punição45 Propõem ainda que nos casos de comunidades indígenas e semelhantes que dis põem de um sistema próprio de decisão e punição de conflitos que as sanções aplica das por esses povos sejam tomadas em consideração quer para fins de isenção de pena quer para atenuála 35 Princípio da insignificância46 Apesar de pretender se ocupar exclusivamente de condutas especialmente graves a lei penal em virtude de seu caráter abstrato e generalíssimo pode alcançar condutas 45 Direito Penal brasileiro I Rio Revan 2003 p234236 46 Deixo de referir o princípio da adequação social formulado por Welzel entendido como princípio geral de interpretação Derecho penal alemán cit p 69 por cujo meio se afastaria a tipicidade ou antijuridicidade de condutas socialmente adequadas ou irrelevantes por julgálo com Jes check Tratado cit p 228 e Roxin Derecho penal cit p 296297 desnecessário a par de vago 86 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS praticamente insignificantes a deslegitimar a intervenção penal motivo pelo qual a dirntrina sistematizou o que hoje conhecemos por princípio da insignificância a fim de que o direito penal incida apenas sobre ações e omissões concretamente graves A incidência do princípio aplicável em tese aos crimes dolosos e culposos con sumados e tentados materiais e formais comissivos e omissivos de dano e de peri go pressupõe a absoluta insignificância do desvalor da ação e do resultado e deve por isso levar em conta entre outros elementos objetivos aa magnitude concreta da conduta açãoomissãoresultado ba eventual reparação do dano ou a restituição da coisa ca possível perda da coisa em favor da União da aplicação de sanções extra penais E para aqueles que consideram relevantes aspectos subjetivos a existência ou não de maus antecedentes a reincidência etc O princípio da insignificância constitui portanto um instrumento por cujo meio o juiz em razão da manifesta desproporção entre crime e castigo reconhece o caráter não criminoso de um fato que embora formalmente típico não constitui uma lesão digna de proteção penal por não traduzir uma violação realmente importante ao bem jurídico tutelado Tratase por conseguinte como diz Vico Mafias de um critério de interpretação restritiva fundada na concepção material do tipo penal por cujo meio é possível alcan çar pela via judicial e sem fazer periclitar a segurança jurídica do pensamento sistemá tico a proposição políticocriminal da necessidade de descriminalização de condutas que apesar de formalmente típicas não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal47 Discutese se o princípio da insignificância é aplicável aos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa Parecenos que sim se não para isentar o réu de pena ao menos para eventualmente desclassificar a infração penal a exemplo da im putação de roubo CP art 157 Com efeito não se justifica que o agente que subtraia quantia absolutamente insignificante v g R 100 tenha de responder por um delito tão gravemente punível 4 a 10 anos de prisão Mais razoável é que afastada a acusa ção de roubo o autor responda por constrangimento ilegal48 CP art 146 e impreciso podendose chegar ao mesmo resultado pela simples interpretação teleológica e restri tiva da norma penal incriminadora De mais a mais seu alcance é em todo o caso reduzidíssimo pois mesmo na hipótese da contravenção do jogo do bicho que admitiria sua invocação em favor do apontador Cezar Bitencourt Manual cit p 49 é perfeitamente cabível a adoção do princípio da insignificância 47 O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal São Paulo Saraiva 1 993 p 58 48 No sentido do texto Rogério Greco Direito Penal Parte Geral Rio Impetus 2003 p 7 1 e Antônio de Padova Marchi Júnior citado por este autor Idem precedente do TJMG Penal Roubo Princípio da insignificância É possível a incidência do princípio da insignificância mesmo nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa porque o juízo de tipicidade material não passa pela análise do comportamento da vítima ou seja seu dissenso ou contrariedade à ação do agente e sim em um juízo de lesividade da conduta nullum crimem sine iniuria Sendo o delito de roubo espécie de crime 87 PAULO QlJEJROZ No caso de descaminho e outros tipos penais análogos o Supremo Tribunal Fe deral vem admitindo o princípio com base na Lei nº 105222002 art 2049 a qual previu o arquivamento das execuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R 1000000 dez mil reais Atualmente o valor é R 2000000 por força da portaria nº 75 de 22032012 DOU Seção 1 de 26032012 p 2223 do Ministério da Fazenda Efetivamente tendo a União renunciado à execução forçada do crédito por en tender possivelmente que os custos e benefícios não justificariam a judicialização da demanda não faria sentido algum promover a ação penal em tais casos em razão do caráter subsidiário do direito penal que é um plus relativamente à intervenção civil Mas não é o caso de insignificância porque é sim significativa a quantia de R 1000000 ou R 2000000 conforme portaria tanto que a Fazenda Nacional renun cia só à execução judicial do crédito mas não à cobrança administrativa nem aos di versos constrangimentos legais cabíveis inscrição do nome do devedor no CADIN etc A hipótese é mais precisamente de incidência do princípio da proporcionalidade visto que se não é necessáriaadequada a intervenção menos grave civil tampouco será a mais grave penal Tratase por conseguinte de uma providência de caráter políticoadministrativo fiscal que embora não afete a estrutura do crime repercute diretamente sobre a puni bilidade do delito por constituir uma causa especial de isenção de pena Não vemos ademais problema algum em admitir que essa despenalização se dê por meio de simples portaria já que o princípio da legalidade como vimos constitui histórica e constitucionalmente uma garantia individual instituída em favor do jurisdi cionado visando a evitar excessos no exercício do poder punitivo estatal Quanto aos crimes contra a fé pública embora juízes e tribunais ainda relutem em admitir a adoção do princípio alegando que nesses casos não cabe falar de insignifi cância por ofensa a bem jurídico difuso já há decisão do STF 50 inclusive reconhecen do essa possibilidade E não poderia ser diferente pois não parece razoável condenar alguém por exemplo a uma pena de três anos de prisão pena mínima por crime de moeda falsa por ter colocado em circulação quantia absolutamente irrisória v g R 100 complexo a lesividade da conduta para se adequar a este tipo penal deve abranger necessariamente os dois valores protegidos pela norma sendo imprescindível significativa lesão ao patrimônio e à pessoa cumulativamente Não havendo lesividade relevante ao patrimônio da ofendida ocorre a descaracteri zação do crime complexo de roubo TJMG 5 C Crim Apel 1 0024990876823001 Rei para acórdão Alexandre Victor de Carvalho j 13022007 DOE 1 0032007 ementa oficial 49 Dispõe o art 20 textualmente Serão arquivados sem baixa na distribuição mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados de valor consoli dado igual ou inferior a R 1 000000 dez mil reais Redação dada pela Lei nº 1 1 033 de 2004 50 HC 83526CE Rei Min Joaquim Barbosa DJ 752004 88 lü21 PRI NCÍPIOS PENAIS Já se admite o princípio também em crimes militares e contra o meio ambiente inclusive 51 Discutese também se é possível a adoção do princípio da insignificância quando não obstante a irrelevância jurídicopenal da ação ficar demonstrado que o agente tem maus antecedentes é reincidente ou há continuidade delitiva O STF ora decide num sentido ora noutro Parecenos que se o princípio da insignificância constitui conforme a doutrina e a própria jurisprudência reconhecem uma excludente de tipicidade visto que embora formalmente criminalizada a conduta não traduz em concreto uma lesão digna de proteção penal tal deve ser admitido independentemente da existência de maus ante cedentes ou reincidência Com efeito subtrair R 100 um real por exemplo não deixa de ser insignifican te pelo só fato de o agente já ter sido anteriormente condenado ou responder a inquérito ou ação penal pelo mesmo crime E mesmo a continuidade no cometimento de ações insignificantes não torna a ação significativa inclusive porque o crime continuado é a rigor uma forma de concurso material tratado como crime único e como tal pressupõe que cada ação seja autono mamente criminosa a fim de que os atos subsequentes sejam havidos como continua ção do primeiro CP art 71 Enfim por traduzir um problema de tipicidade e não de individualização judicial da pena o princípio da insignificância deve ser reconhecido independentemente da existência de maus antecedentes reincidência ou continuidade delitiva Além do mais recentemente o STJ editou a Súmula 444 que tem o seguinte teor é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a penabase vedação perfeitamente aplicável à discussão sobre a insignificância em virtude de sua fundamentação constitucional violação ao princípio da presunção de inocência Finalmente convém notar que há diversos precedentes do Supremo Tribunal Fe deral condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos a mínima ofensividade da conduta b nenhuma periculosidade social da ação c reduzidíssimo grau de reprovabilidade d inexpressividade da lesão jurídica Mas tais requisitos são claramente tautológicos Sim porque se mínima é a ofensa então a ação não é socialmente perigosa se a ofensa é mínima e a ação não 5 1 Admitindo o princípio da insignificância em crimes ambientais Ivan Luiz da Silva Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 89 PAULO QJ E I ROZ perigosa em consequência mínima ou nenhuma é a reprovação e pois inexpressiva a lesão jurídica Enfim os supostos requisitos apenas repetem a mesma ideia por meio de palavras diferentes argumentando em círculo 4 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE Por mais grave que seja o crime cometido o seu autor não perde a condição jurídi ca de sujeito de direito razão pela qual a pena que lhe for eventualmente imposta não poderá acarretarlhe a destruição ou inutilização Com efeito uma outra importante limitação ao poder punitivo decorre do art 1 º III da Constituição ao elevar a dignidade da pessoa humana à condição de fundamen to do Estado Democrático e assim proibir dentre outras coisas a adoção de penas que por sua natureza ou modo de execução importem na destruição ou inutilização do autor de crime quer por lhe inviabilizar a reinserção social quer por submetêlo a sofrimento excessivo52 desumano ou degradante E assim deve ser porque o Estado Democrático não persegue a realização de valo res absolutos de justiça nem fins teocráticos ou metafísicos nem o só retribuir por re tribuir O princípio da dignidade da pessoa humana representa assim como diz Daniel Sarmento o epicentro da ordem jurídica conferindo unidade teleológica e axiológica a todas as normas constitucionais pois o Estado e o Direito não são fins mas apenas meios para a realização da dignidade do homem53 É que o Estado que mata que tor tura que humilha o cidadão não só perde qualquer legitimidade como contradiz a sua própria razão de ser que é servir à tutela dos direitos fundamentais do homem colo candose no mesmo nível dos delinquentes54 Justamente por isso a Constituição veda de forma expressa a adoção da pena de morte salvo no caso de guerra declarada de caráter perpétuo de trabalhos forçados de banimento e cruéis ou degradantes CF art 5 XLVII mesmo porque incompa tíveis com uma sociedade que se pretende civilizada São assim inadmissíveis por atentarem contra a dignidade humana a castração a mutilação de membros a esteri lização de órgãos e toda sorte de pena que converta o infrator num inválido total ou parcialmente ou que o impossibilite de cumprida a pena reintegrarse à vida social Disso também resulta que as penas constitucionalmente admitidas em especial as pri vativas da liberdade hão de ser executadas condignamente em condições mínimas de higiene salubridade etc assegurandose o livre exercício dos direitos não atingidos 52 Como observa GarcíaPablos o princípio de humanidade ratifica e conige os resultados de uma arit mética penal talonária baseada na aplicação mecânica do princípio da proporcionalidade Entretanto supera e hanscende a própria ideia de proporcionalidade porque não só supõe o rechaço de certas pe nas e consequências jurídicas inumanas como também determinada compreensão do processo penal da execução de penas e inclusive da política criminal Derecho penal cit p 292293 53 A ponderação de interesses na Constituição Federal Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 p 195 1 96 54 Fenajoli Derecho y razón cit p 396 90 I 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS pela privação da liberdade sob pena de se tornarem inconstitucionais na sua execução por degradarem a condição humana inviabilizando a reintegração social do condena do Lei nº 721084 art 41 Significa dizer noutros termos que a execução da pena privativa da liberdade há de ser programada de tal modo que se evitem o quanto possí vel os efeitos negativos dessocializadores próprios da pena de prisão55 Por isso que a execução de penas ou medidas de segurança ou mesmo o cumpri mento de prisão provisória em condições degradantes em presídios que não ofereçam as condições mínimas de higiene salubridade etc são francamente ofensivas ao prin cípio de que estamos tratando podendo dar ensejo à concessão de habeas corpus ou para que se cumpra a lei em prazo razoável v g transferência de presídio ou para progredir de regime ou para o paciente ser posto em liberdade ante a omissão da autoridade responsável que não pode contar com a eventual indiferença conivência ou omissão do Ministério Público do Judiciário ou dos Conselhos Penitenciários Esta duais aos quais incumbe a defesa e o cumprimento da lei e da Constituição56 Exemplo de pena crueldegradante e pois inconstitucional é o regime disciplinar diferenciado57 Lei nº 107922003 uma vez que ao se admitir a possibilidade de iso lamento do preso numa cela individual durante 360 dias até o limite de um sexto da pena aplicada vedando em caráter quase absoluto qualquer possibilidade de contato com o mundo exterior subtraindolhe assim direitos básicos como o direito ao traba lho ao exercício de atividades profissionais desportivas etc Lei nº 721084 art 41 o Estado acaba por tratálo como não pessoa sujeito de direito ou como um animal qualquer submetendoo a um sofrimento absolutamente desnecessário e desumano Aliás fosse outro o animal enjaulado e talvez se tornasse mais fácil perceber nesse 5 5 GarcíaPablos Derecho penal cit p 296 Entendendo que o princípio d e humanidade das penas também importa o acolhimento do sistema progressivo de penas Silva Franco para quem um texto legal que proscreva toda e qualquer possibilidade de um sistema progressivo de pena privativa da liberdade deixando o recluso subordinado unicamente ao regime fechado num estabelecimento prisional de segurança máxima tem assim um significado c laro e preciso transfonnar a finalidade da pena numa resposta estatal que paga o mal causado com outro mal de igual ou superior intensi dade dela eliminando não apenas qualquer intento ressocializador mas também o mínimo ético que é exigível na execução penal Código Penal e sua interpretação j urisprudencial cit p 3 5 56 Com acerto portanto a 5ª Tunna do STJ sendo Relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca apre ciando habeas corpus decidiu Pena a ser cumprida em semiaberto Condenado recolhido em presi dio de segurança máxima incompatível com o regime fixado na sentença à alegação de inexistência de vagas no estabelecimento adequado Constrangimento ilegal configurado Assentada jurisprudên cia desta Cor1e no sentido de que a falta de vagas em estabelecimento adequado para o cumprimento de pena imposta para o regime semiaber1o não j ustifica a permanência do condenado em condições prisionais mais severas Ordem concedida em par1e para determinar a transferência do paciente para o estabelecimento adequado ao regime semiaberto ou persistindo a falta de vagas assegurarlhe em caráter excepcional o cumprimento da pena em regime aberto sob as cautelas do Juízo das Execu ções até que surjam vagas no estabelecimento prisional adequado 5 T HC 1 3 897 Rel Min José Arnaldo da Fonseca j 7 1 1 2000 v u DJU 1 1 dez 2000 p 223 57 Nesse sentido inclusive manifestouse o Tribunal de Justiça de São Paulo HC nº 9783053000 91 PAULO QlJEIROZ autêntico zoológico humano quão evidentes são os maustratos a que essas pessoas animais são submetidas por seus donos Parece óbvio também que essa nova modalida de de tortura física e psicológica sem finalidade educativa alguma frustra claramente os fins a que se propõe a Lei de Execução Penal que já em seu art l º proclama que a execução penal tem por objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado Já a pena de morte cuja execução se dará por fuzilamento e somente após sete dias de comunicada a sentença condenatória ao Presidente da República CPM arts 56 e 57 poderá ocorrer exclusivamente nos crimes militares em tempo de guerra como traição covardia qualificada espionagem abandono de posto deserção em presença do inimigo homicídio qualificado genocídio roubo ou extorsão etc CPM arts 355 a 408 Mas o rol das infrações penais que a cominam há de ser repensado à luz da Cons tituição de 1988 de modo a afastar a pena capital dos crimes menos graves como dano especial e saque limitandoa aos casos absolutamente necessários se é que nalgum caso ela o é realmente Se nem mesmo por emenda constitucional é possível admitir penas cruéis e degradantes seguese que tampouco a subscrição pelo Brasil de tratados interna cionais poderá implicar qualquer concessão no particular tal como se pretende por meio do Tratado de Roma art 77 1 b que prevê a pena de prisão perpétua sem pre que o crime for extremamente grave e considerando as circunstâncias pessoais do condenado Mas o tema é controvertido tanto na doutrina quanto na jurisprudên cia 58 É de convir ainda com Zugaldía Espinar que em nome da dignidade ficam tam bém proscritas as penas exemplificadoras porque se prescindirmos das concretas exi gências preventivas especiais e passamos a operar com critérios de prevenção geral puramente o delinquente deixa de ser um fim em si mesmo para se converter num 58 Admitindo a pena perpétua e inclusive a entrega de nacionais para o TPI Valério Mazzuoli Curso de direito internacional público S Paulo RT 2007 Apesar da distinção técnicaformal entre os institutos da entrega e extradição é evidente que materialmente ambos implicam o mesmo tipo e grau de constrangimento à liberdade individual tal qual a própria abdução que consiste num sequestro criminoso Na verdade se a extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para aí ser julgado força é convir que ela a entrega é uma espécie do gênero extradição compreendida que está no seu conceito ou se preferir a entrega é uma forma de extradição com nome diverso Exatamente por isso a entrega e a extradição devem estar subordinadas aos mesmos princípios e regras em virtude de encerrarem a mesma sorte de constrangimento à liberdade e pois aos direitos e garantias individuais Com efeito a só alteração do nomenjuris não pode ter o condão de legitimar certas práticas de violência institucional ainda que admitidas a pretexto de castigarem violências maiores Mutatis mutandis o mesmo deve ser dito quanto à possibilidade de aplicação de penas perpétuas pelo TPI mesmo porque do contrário estarseia ainda que indiretamente a atribuir status supraconstitucional a tratado internacional e a negar o caráter residual dessa jurisdi ção Evidentemente que a ser admitida a prisão perpétua obstáculo algum haveria à pena de morte e semelhantes se assim dispuser o tratado 92 I021 PRINCiPIOS PENAIS meio para se obter efeitos sobre outros convertendo a pena individualizada em inuma na e degradante 59 Resta saber se semelhante limitação também valeria para as medidas de seguran ça em especial em face da indeterminação do tempo máximo de sua duração prevista em lei CP art 97 1º já que de acordo com o Código a internação perdurará en quanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação da periculosidade Pensamos que a partir do momento em que o legislador adotou o sistema de de terminação de pena motivo pelo qual uma vez cumprida o condenado será necessa riamente posto em liberdade ainda que perigoso a exigência para os inimputáveis de que a liberação dependa da cessação da periculosidade é de todo inconstitucional por violação aos princípios de isonomia proporcionalidade e proibição de penas perpétuas A propósito a Constituição portuguesa art 30 dispõe expressamente que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida De modo semelhante dispõe o Código Penal espanhol Nem se poderia justificar o tratamento diferenciado alegando que medidas de se gurança não são penas Sim porque se formalmente penas não são materialmente são com frequência muito mais lesivas para a liberdade de quem as suporta até porque diferentemente do imputável que tem direito a indulto progressão de regime livra mento condicional comutação remição etc os inimputáveis não fazem jus a nada disso motivo pelo qual de tudo ou quase tudo são privados já não bastassem a miséria e o abandono do Estado da sociedade e da própria família a que são frequentemente condenados nos hospitais de custódia e tratamento autênticos hospitaisprisões ou pri sõeshospitais 60 Por isso autores há que propõem que as medidas de segurança tenham como limite máximo a pena máxima cominada Aliás já há decisões mais ousadas procedendo à individualização judicial da pena e a seguir substituindoa por medida de segurança pelo prazo da pena aplicada conforme se verá mais tarde Mas semelhante discussão restou grandemente superada com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica de 2001 Lei nº 10216 que revogou boa parte das disposições penais a respeito das medidas de segurança conforme se verá no capítulo próprio 5 PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL OU DE CULPABI LIDADE De acordo com o princípio da pessoalidade da pena impeditivo da responsabi lidade penal objetiva ou sem culpa presumida ou sucessiva nenhuma pessoa pode 59 Fundamentos dei derecho penal parte general 2 ed Granada Universidad de Granada 199 1 p 1 74 1 75 60 A expressão é de Ferrajoli 93 PAU LO Ül E I ROZ ser responsabilizada por fato de terceiro ou objetivamente devendo apurarse sempre se o autor agiu com dolo ou culpa ao menos Nesse exato sentido dispõe a Consti tuição art 5 XLV nenhuma pena passará da pessoa do condenado podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens nos termos da lei ser estendidas aos sucessores e contra eles executadas até o limite do patrimônio transferido E não poderia ser diferente pois se a função declarada do direito penal conforme a doutrina majoritária é a proteção subsidiária de bens jurídicos seguese que se melhante intervenção há ter lugar somente quando os seus destinatários se achem em condições de agirem conforme a norma porque fora daí quando falte o domínio da vontade humana v g caso fortuito ou força maior a norma penal é todo ineficaz por não poder mudar o curso dos eventos naturais61 Por conseguinte só pode haver responsabilidade penal a título de dolo ou cul pa CP art 18 vale dizer quando as condutas sejam previsíveis e evitáveis isto é passíveis de motivação normativa Como assinala GarcíaPablos um direito penal que pretendesse exigir responsabilidade por fatos que não dependam em absoluto da von tade do indivíduo deve ser qualificado de arbitrário e disfuncional haja vista que a norma penal carece de todo poder motivador e o castigo perderia toda sua justifica ção62 Diferentemente do que ocorre no direito civil por exemplo em que se admite eventualmente a responsabilidade objetiva a responsabilidade penal é sempre pessoal não cabendo a responsabilidade coletiva subsidiária solidária ou sucessiva63 por isso que os pais não respondem pelos filhos nem os tutores pelos pupilos nem os curadores pelos curatelados exceto se houverem concorrido dolosamente para tanto ou tiverem agido com culpa64 Quanto à ressalva constitucional de que a obrigação de reparar o dano e a decre tação de perdimento de bens poderá se estender aos sucessores do condenado até o limite do valor do patrimônio transferido não há aí como supunha Mirabete65 afronta ao princípio uma vez que o que se estende aos sucessores do condenado não é a pena mas só os efeitos civis da sentença exclusivamente em relação aos bens adquiridos com o produto do crime e até o limite do patrimônio transferido possibilidade há muito permitida 6 1 Como assinala Silva Franco na compreensão do caráter pessoal da responsabilidade penal está in serida a ideia de que essa responsabilidade é subjetiva isto é pertence a seu autor é própria dele na medida em que é responsável pelo fato praticado porque quis ou porque tal fato é devido à falta de um dever de cuidado Código Penal e sua interpretação jurisprudencial cit p 36 62 Derecho penal cit p 287 63 Nilo Batista Introdução crítica cit p 104 64 Dispõe a esse respeito o art 29 do Código Penal Quem de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este cominadas na medida de sua culpabilidade 65 Manual de direito penal São Paulo Atlas 2000 p 244 94 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS 6 PRINCÍPIO DE LESIVIDADE OU OFENSIVIDADE Segundo o princípio de lesividade nullum crimen sine iniuria66 só podem ser consideradas criminosas condutas lesivas de bem jurídico alheio por isso também conhecido como princípio de proteção de bens jurídicos público ou particular en tendendose como tal os pressupostos existenciais e instrumentais de que a pessoa ne cessita para a sua autorrealização na vida social Mufíoz Conde não podendo haver a criminalização de atos que não ofendam seriamente bem jurídico ou que representem apenas má disposição de interesse próprio como automutilação suicídio tentado dano à coisa própria etc Numa palavra de acordo com o princípio da lesividade o direito penal não pode se ocupar de comportamentos que impliquem apenas autolesão isto é que não trans cendam a pessoa do próprio lesionado por mais que lamentemos tais decisões autole sivas Não por acaso a Constituição argentina art 19 dispunha expressamente que as ações privadas de homens que de nenhum modo ofendam à ordem e à moral pública nem prejudiquem a um terceiro estão reservadas a Deus e isentas da autoridade dos magistrados67 E embora não tenhamos um dispositivo constitucional tão claro cabe dizer com Karam que o direito à intimidade e à vida privada garantido no art 5 da nossa Constituição permite depreender como se deve depreender de qualquer or denamento jurídico que se pretenda democrático que o direito só pode intervir em condutas que tenham potencialidade lesiva68 Com efeito se é objetivo fundamental da República como declarado no art 3º constituir uma sociedade livre se são invioláveis a liberdade a intimidade art 5º e a vida privada e se é explícita a sua vocação libertária seguese que nenhum ato de constrição à liberdade pode ser tolerado salvo quando em virtude do abuso no seu exercício resultar danolesão à liberdade de outrem Em consequência condutas me ramente imorais por mais escandalosas não autorizam a intervenção penal tampouco 66 Conforme Nilo Batista o princípio da lesividade tem quatro funções proibir a incriminação de uma atitude interna proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do autor proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais e proibir a incriminação de condutas des viadas que não afetam qualquer bem jurídico Introdução crítica cit p 9197 Penso porém que em realidade a última função apontada que em rigor é a função de proteção de bens jurídicos compreende todas as demais 67 Com base nesse dispositivo a Corte Suprema de Justiça argentina em decisão de 29 de agosto de 1986 concluiu pela inconstitucionalidade do art 6º da Lei nº 20 77 1 que tem similar na nossa Lei de Drogas ao punir o porte de droga para consumo Em sentido análogo dispunha o art 4º da Declaração de Direitos de 1 789 ao estabelecer que a liberdade consistia em poder fazer tudo que não prejudica aos demais desse modo a existência dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que aqueles que asseguram aos demais membros da sociedade o desfrute desses direitos Esses limites não podem ser determinados senão pela lei 68 De crimes penas e fantasias cit p 130 95 PAULO Q1JEI ROZ presunções legais de violência ou de perigo podem vingar em caráter absoluto como ainda prevê o Código Penal sob pena de absolutizar o que é relativo A propósito John Stuart Mill assinalava que o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém a não ser ele próprio Conselho ensino persuasão esquivança da parte de outras pessoas se para o bem próprio a julgam necessária são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da conduta do indivíduo69 Portanto o autor há de responder exclusivamente pelo que faz direito penal do fato e não pelo que é direito penal do autor de modo que não é o crime que é identificado a partir do criminoso mas o criminoso a partir do crime E no sistema garantista só é lícito criminalizar tipos de ação e não tipos de autor castigase pelo que se faz não pelo que se é interessase por comportamentos danosos não por seus autores cuja identidade diversa tutela ainda que sejam desviados dirige ao processo a prova dos fatos não a inquisição sobre pessoas70 Naturalmente que o princípio se dirige tanto ao legislador quanto aos juízes aos quais compete verificar a existência e a intensidade da lesão seja para considerar os comportamentos atípicos se não existir ou for ínfima a lesão seja para considerálos típicos se existente e relevante o dano seja para proceder à individualização da pena 7 PRINCÍPIO DA IGUALDADE OU ISONOMIA De acordo com a Constituição todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza CF art 5º O princípio da igualdade pretende impedir por isso o estabelecimento de distinções arbitrárias entre os indivíduos com base em preconceito de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação CF art 3º IV Mas igualdade não significa adotar normas idênticas e invariáveis para todos com pretensão de validade para além do tempo e do espaço e das pessoas histórica e con cretamente consideradas pois não existem princípios absolutos mesmo porque absolu tizálos implicaria a negação mesma do direito Aliás sequer o direito à vida o é tanto que a lei admite a pena de morte nalguns casos excepcionais é assegurada a legítima defesa e o aborto está autorizado para certos casos E tão importante quanto o direito à liberdade de expressão por exemplo é o direito à honra igualmente protegido cons titucionalmente razão pela qual a pretexto de absolutizar o primeiro extinguirseia o segundo e viceversa O princípio tem um caráter essencialmente formaltautológico manda tratar igual mente os iguais e desigualmente os desiguais mas nada diz sobre quem é igual e quem 69 Sobre a liberdade trad Alberto da Rocha Barros Petrópolis Vozes 1 99 1 p 1 37 70 Ferrajoli Derecho y razón cit p 704 96 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS não o é tampouco fornece critérios objetivos para igualar e desigualar de modo que o conteúdo essencial do princípio não é dado pelo próprio princípio Ademais em virtude do caráter analógico do direito a igualdade é sempre uma equiparação que não se funda apenas num juízo racional mas numa decisão de poder motivo pelo qual igualdade é sempre igualdade de relações e pois uma correspondên cia uma analogia71 Afinal rigorosamente falando nada ou ninguém é absolutamente igual a outro nem absolutamente desigual mas mais ou menos semelhante72 Um cri me por exemplo pode ser doloso culposo ou preterdoloso simples qualificado ou privilegiado hediondo ou não justificável ou não punível ou não etc e seu autor pri mário ou reincidente imputável ou inimputável sendo que cada uma dessas variáveis faz de cada delito uma ação humana singular distinta Daí dizer Arthur Kaufmann que igualdade é abstração da diferença e diferença é abstração da igualdade73 E ainda se tudo fosse idêntico se não houvesse quaisquer diferenças então seria despropositado senão impossível formar diferentes palavras e diferentes normas e se não houvesse conexão entre as coisas teríamos de ter um nome específico para cada coisa e a uma norma específica para cada ação74 Exatamente por isso a lei nem sempre acertadamente distingue por meio de cri térios nunca inquestionáveis entre crianças adolescentes adultos e idosos entre ho mens e mulheres entre nacionais e estrangeiros entre brancos e negros entre índios e não índios entre civis e militares entre capazes e incapazes entre deficientes e não deficientes entre cidadãos urbanos e rurais etc E por vezes o legislador simplesmente ignora certas formas de expressão por meio de preconceitos que pretende legítimos como a homossexualidade ou a prostituição recusandolhes certos direitos v g casamento adoção direitos trabalhistas a de monstrar que o direito é social e historicamente construído o direito é um conjunto móvel de metáforas e metonímias produzidas pelas relações de poder já o dissemos Também por isso o significado formal e material do princípio da igualdade como de todo princípio não está previamente dado porque não é a interpretação que depen de do direito mas é o direito que depende da interpretação Por isso ora se entende por exemplo que o sistema de cotas é legítimo ora que não o é ora que alguém é ne gro1 ora que não o é ora se decide que um dado tratamento ofende o princípio ora que lhe é conforme 71 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito cit p 23023 1 72 Daí dizer Ferrajoli que em sentido cognitivo ou seja entendida como fato a igualdade é falsa e em sentido prescritivo isto é como valor expressa um ideal limite jamais plenamente realizado mas progressivamente realizável Principia iuris cit p 755 73 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito cit p 230 74 Arthur Kaufmann ibidem 97 No direito penal a desigualdade existe em muitos casos já na própria tipificação de certas infrações criminalização primária como a definição como contravenção penal da vadiagem na maior criminalizaçãopenalização dos crimes contra o patrimônio etc No processo penal a desigualdade de tratamento reside entre outros casos na adoção do foro por prerrogativa de função para alguns ocupantes ou exocupantes de cargos públicos na previsão de prisão especial para determinados agentes CPP art 295 etc Por isso afirma Alessandro Baratta quanto mais uma sociedade é desigual tanto mais ela tem necessidade de um sistema de controle social do desvio de tipo repressivo como o que é realizado através do aparato penal do direito burguês Se o direito penal é um instrumento precípuo de produção e de reprodução de relações de desigualdade de conservação da escala social vertical e das relações de subordinação e de exploração do homem pelo homem então não devemos hesitar em declarar o modelo da sociedade socialista como o modelo de uma sociedade que pode prescindir cada vez mais do direito penal e do cárcere 102 1 PRINCÍPIOS PENAIS de detenção mais grave para o homicídio culposo na direção de veículo automotor do que a prevista no Código Penal art 121 3º78 8 DIREITO E INTERPRETAÇÃO 81 Introdução Num livro que se tornou clássico hermenêutica e aplicação do direito de 1924 Carlos Maximiliano dizia que interpretar é explicar esclarecer dar o sentido de vo cábulo atitude ou gesto reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão extrair de frase sentença ou norma tudo o que na mesma se contém79 Em síntese interpretar era descobrir e fixar o senti do verdadeiro da regra positiva80 No mesmo sentido Aníbal Bruno afirmava que interpretar a lei isto é pene trarlhe o verdadeiro exclusivo sentido é o primeiro problema do jurista em face do Direito positivo Por sua vez Nélson Hungria assinalava que a fonte única do di reito penal é a norma legal Não há direito penal vagando fora da lei escrita Não há distinguir em matéria penal entre lei e direito A lei penal é assim um sistema fechado ainda que se apresente omissa ou lacunosa não pode ser suprida pelo arbí trio judicial ou pela analogia ou pelos princípios gerais de direito ou pelo costume Do ponto de vista de sua aplicação pelo juiz pode mesmo dizerse que a lei penal não tem lacunas81 Em termos semelhantes Beccaria já havia escrito em 1764 que o juiz deve fazer um silogismo perfeito A maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme a lei a consequência a liberdade ou a pena Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais ou se o fizer por conta própria tudo se torna incerto e obscuro Nada mais pe rigoso do que o axioma de que é preciso consultar o espírito da lei Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões82 Enfim o juiz era a boca que pronunciava as palavras da lei conforme proclamara Montesquieu em 174883 78 RE 428864SP Rei Minª Ellen Gracie 14102008 79 Hermenêutica e aplicação do direito Rio de Janeiro Forense 2003 p 7 80 Carlos Maximiliano idem 8 1 Comentários ao Código Penal cit Apesar disso Hungria afirma mais adiante que no estado atual da civilização juridica ninguém pode negar ao juiz a faculdade de afeiçoar a rigidez da lei ao progressivo espírito da sociedade ou de imprimir ao texto legal a possível elasticidade a fim de atenuar os con trastes que acaso surjam entre ele e a cambiante realidade Já passou o tempo do rigoroso tecnicismo lógico que abstraía a lei do seu contato com o mundo real e a consciência social Comentários p 7980 82 Dos delitos e das penas cit IV p 35 83 O espírito das leis cit Livro XI VI p 1 23 99 PAULO QJEIROZ Pois bem desde então pouco mudou a esse respeito uma vez que a doutrina ma joritária ainda parte ordinariamente dos seguintes pressupostos ao tratar da relação entre direito e interpretação a a lei já contém o direito que está assim previamente dado b a finalidade da interpretação é encontrar o sentido exatocorreto contido na lei isto é a vontade da lei ou a vontade do legislador etc c a esse sentido correto da lei se chega por meio dos métodos de interpretação lógico teleológico histórico etc de modo que uma interpretação correta é uma interpretação conforme o método d o juiz quando julga um caso faz ou deve fazer um juízo lógico de subsunção do fato à lei e prioridade da lei sobre o caso f direito e interpretação são coisas distintas e autônomas g uma coisa é interpretar e outra é aplicar o direito h interpretação e integração do direito são coisas distintas i analogia integração e interpretação analógica são inconfundíveis Temos porém que tudo isso está ou deveria estar completamente superado Afinal são palavras de Foucault não há nada absolutamente primeiro a interpretar porque no fundo já tudo é interpretação cada símbolo é em si mesmo não a coisa que se oferece à interpretação mas a interpretação de outro símbolo84 Com efeito a interpretação e a aplicação do direito formam um processo único85 e complexo que compreendem a análise e a apreciação de fatos provas e textos de sorte que constituem momento dos mais importantes da reconstrução social da realidade jurídica e jurídicopenal Além disso a aplicação da lei em cada caso particular requer necessariamente como todo e qualquer texto interpretação do seu significado com vistas a decidir casos concretos realizando o direito daí que o aforisma in claris non fit interpretatio não é mais que uma falácia confunde a ausência de dificuldades in terpretativas com a ausência de interpretação86 mesmo porque afirmar que um texto é claro ou que dispensa interpretação já é um modo de interpretálo 84 Nietzsche Freud Marx São Paulo Princípio Editora 1 997 p 22 85 Como diz Eros Grau interpretação e aplicação não se realizam autonomamente O intérprete dis cerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso Gadamer 1 99 1 397 A in terpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso isto é na sua aplicação Gadamer 1 99 1 301 Assim existe uma equação entre interpretação e aplicação não estamos aqui diante de dois momentos distintos porém frente a uma só operação Marí 1 991 236 Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário Gadamer 1991381 se superpõem Ensaio e discurso sobre interpretaçãoaplicação do direito São Paulo Malheiros 2002 p 84 86 Cobo dei Rosal e Vives Antón Derecho penal p 1 03 100 1 02 1 P RINCÍPIOS PENAIS Além disso e conforme dissemos ao tratar do seu conceito o direito não existe fi sicamente pois é socialmente construído razão pela qual os pressupostos listados ini cialmente não resistem a uma análise minimamente crítica É que não é possível pen sar que haja um mundo préfabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua representação em nossa consciência afinal nos processos de interpretação não se trata de descobrirdesvelar uma vontade preexistente e pronta pois não é a interpretação que depende do direito ou da lei mas o direito ou a lei que depende da interpretação 87 Dito de outro modo os juristas em geral pensam fundamentar a priori dedutivamente o que em verdade é fundamentado a posteriori empiricamente 88 Em síntese o direito não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual constitui a forma mesma de realização do direito afinal não existem fenô menos jurídicos nem jurídicopenais mas apenas uma interpretação jurídica e jurídico penal dos fenômenos Nietzsche89 E apesar da condição privilegiada do juiz no processo penal não é ele o único a interpretarjulgar pois tal tarefa é comum aos diversos personagens que tomam parte nessa construção social da realidade pois são especialmente importantes nesse proces so de produção de sentido membros do Ministério Público advogados testemunhas peritos réus vítimas etc cada um a seu modo dando sua própria versão e interpreta ção dos fatos submetidos a julgamento de sorte que em última análise a interpretação judicial sintetiza múltiplas interpretações é a interpretação das interpretações Exatamente por isso não se pode dizer a priori se um determinado comportamen to é doloso ou culposo lícito ou não culpável ou inculpável razão pela qual uma mes ma conduta v g ferir o cônjuge por flagrálo em adultério ora poderá ser considerada lícita ora ilícita ora culpável ora inculpável ora punível ora impunível a depender da interpretação inclusive porque todo texto pressupõe um dado contexto Uamais re petível Finalmente conforme ressalta Castanheira Neves o problema jurídiconormativo da interpretação não é apenas o de determinar a significação jurídica que exprimem as leis ou quaisquer normas jurídicas mas o de obter dessas leis ou normas um critério prátco normativo adequado de decisão dos casos concretos motivo pelo qual uma boa interpretação não é aquela que numa perspectiva hermenêuticoexegética deter mina corretamente o sentido textual da norma é antes aquela que numa perspectiva 87 Günter Abel Verdade e interpretação in Nietzsche na Alemanha org por Scarlett Merton S Paulo Discurso Editorial 2005 88 Pierre Bourdieu Los juristas guardianes de la hipocresía colectiva in Jueces para la democracía 200347 julio 89 Mesmo na Física não é diversa a situação porque como assinala FritjofCapra na Física moderna o universo é pois experimentado como um todo dinâmico e inseparável que sempre inclui o observa dor num sentido essencial Nessa experiência os conceitos tradicionais de espaço e tempo de objetos isolados de causa e efeito perdem seu significado O Tão da Física S Paulo Cultrix 1 995 p 68 101 PAULO ÜlJEIROZ práticonormativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto90 Também por isso o caso não é apenas a condição históricosituacional da com preensão da norma o factor situacionalmente hermenêutico dessa compreensão mas a própria determinante problemática da intenção interpretativa O que significa evi dentemente que é o caso e não a norma o prius problemáticointencional e metódico não se intenciona o problema interpretativo nem se parte metodicamente nele da norma para o caso em ordem a uma aplicação da norma que a sua prévia e abstracta interpretação possibilitasse mas do caso para a norma mediante a interrogação do critério normativo adequado que a norma possa oferecer para o caso91 82 Interpretar é compreender e argumentar De todo modo ainda hoje é lugar comum afirmar que interpretar é extrair do texto legal o seu correto significado ideia que pressupõe a existência de um sentido prévio à interpretação mesma sentido a ser descoberto por meio dos métodos interpretativos como se o direito já estivesse previamente dado como se existisse ontologicamente e subjacente a isso está uma confusão mais ou menos consciente entre lei e direito No entanto se conforme dissemos o direito não existe seguese que interpretar é compreender e argumentar corretamente num sistema aberto92 argumentação de que participam sobretudo advogados promotores e juízes mas não só eles E se múltiplas são as possibilidades de argumentação múltiplas também hão de ser as possibilidades de interpretação correta do texto e da realidade a que se refere e se reconstrói a par tir dele Por isso a interpretação do caso não deve necessariamente conduzir a uma solução como sendo a única correta mas a diversas soluções que na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar têm igual valor93 Ou seja interpretar é decidir entre várias possibilidades igualmente válidas pois como disse Kelsen o direito a aplicar forma em todas as hipóteses uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação razão pela qual é conforme o direito todo ato que se mantenha dentro desse quadro ou moldura que preencha essa moldura em qualquer sentido possível94 Mas o certo é que a pretexto de preservar o princípio da segurança jurídica a doutrina costuma defender a necessidade de se adotar critériosmétodos no sentido de 90 Metodologia jurídica Coimbra Coimbra Editora 1993 p 84 91 A Castanheira Neves O actual problema metodológico da interpretação jurídica Coimbra Editora 2003 p 8081 O autor cita ainda M Kriele no princípio está o caso real ou imaginário e não o texto Fikentscher o ponto de partida é o caso concreto decidendo e R Grõschner não o texto legal mas o caso é o A e o O dos juristas 92 Arthur Kaufmann Panorámica histórica de los problemas de la filosofia dei derecho in El pensamien to jurídico contemporáneo Ed Debate 1992 p 1 3 1 93 Kelsen Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 2003 p 390 94 Teoria pura do direito cit p 390 102 I 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS encontrar a única ou melhor resposta correta invocando para tanto metáforas como o espírito da lei e semelhantes já em si uma tática argumentativa Isso além de ilu sório não seria nem justo nem conveniente visto que uma tal ideia incompatível com uma sociedade multicultural e multifacetada é própria de uma ideologia antiliberal em última análise que não acolhe antes rechaça as diferenças de sexo de raça de cultura etc Ademais pretender unir ciência à ideia de unidade de pureza de perfei ção quer se refira à política quer se refira à religião quer se refira ao direito é sem pre perigoso e tendencialmente tirânico e que há de ser por isso permanentemente combatido No particular nada há a lamentar portanto muito ao contrário com abolir semelhante preconceito surgem novas possibilidades de um direito penal democrá tico plural porque reconhecer a incerteza e a diversidade no direito é reconhecer a incerteza e a diversidade mesma do homem A não ser assim poderseá substituir no futuro os atuais juízes promotores e advogados por sofisticados programas de com putador Portanto afirmar que só uma resposta é correta é assumir uma postura arrogante diante de outras respostas igualmente possíveis e válidas Como bem observa Marga rida Camargo ao contrário dessas posições monolíticas o que se aponta agora sob o viés da pósmodernidade é que no lugar do universal encontrase o histórico no lugar do simples o complexo no lugar do único o plural no lugar do abstrato o concreto e no lugar do formal o retórico pois o direito consiste na realização de uma prática que envolve o método hermenêutico e a técnica argumentativa95 83 O chamado círculo hermenêutico Assim interpretar um texto legal isto é compreender e fazer compreender o seu significado não é uma questão de mera aplicação de métodos96 porque entender e in terpretar textos não é somente um empenho da ciência já que pertence ao todo da ex periência do homem no mundo97 e isso se dá de tal modo que aquele que compreende já está incluído num acontecimento em razão do qual se faz valer o que tem sentido de sorte que não existe compreensão que seja livre de todo preconceito por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos98 Dito de outro modo a compreensão do sentido 95 Hermenêutica e argumentação Rio de JaneiroSão Paulo Renovar 2003 p 250 96 Como assinala Hassemer não há uma metarregra das regras interpretativas isto é não há uma pauta que prescreve ao juiz a aplicação de um determinado método em cada caso pois metodicamente o juiz é livre na eleição das regras interpretativas e como as diferentes regras conduzem a resultados diferentes quanto à compreensão correta da norma não podem elas por consequência garantir a vinculação estrita do juiz à lei E pensamiento jurídico contemporáneo cit p 2 1 2 No mesmo sen tido Kelsen Teoria pura do direito cit 97 Gadamer Verdade e método Petrópolis Vozes 1 999 p 3 1 98 Gadamer Verdade e método cit p 708709 Escreve o citado autor textualmente Aquele que compreende já está sempre incluído num acontecimento em virtude do qual se faz valer o que tem sentido Está justificado que para o fenômeno hermenêutico se empregue o mesmo conceito 103 PAULO QjEIROZ linguístico não constitui um fenômeno puramente receptivo pois implica inevitavel mente a autocompreensão do próprio sujeito que realiza a compreensão fazendo surgir o direito histórico concreto99 Portanto a interpretação do direito realizase por meio de um processo circular de compreensão em que entre o texto e o intérprete se estabelece uma mútua referência pois como diz Saavedra o leitor entende o texto a partir da posição de parcialidade que decorre de sua relação com o objeto mencionado no texto se o texto escreve Saavedra fala de poder de justiça de arte ou da vida o leitor compreenderá o texto em função de suas próprias experiências sobre o poder a justiça a arte ou a vida Es sas experiências podem mudar evidentemente e pode mudar também a consequência do contato que o leitor mantém com o texto mas o que parece evidente é que não há nenhuma leitura ingênua porque o intérprete sempre leva consigo uma compreensão prévia daquilo que quer compreender quando empreende a leitura do texto100 Dito de outro modo à semelhança do pintor que não pinta sobre uma tela virgem e do escri tor que não escreve sobre uma página em branco pois a tela ou a página já estão co bertas de clichês preexistentesº também o juiz não julga a partir apenas dos dizeres da lei isto é a partir do nada w2 do jogo que para a experiência do belo Quando compreendemos um texto nos vemos tão atraídos por sua plenitude de sentido como pelo belo Na medida em que compreendemos estamos incluídos num acontecer da verdade e quando queremos saber o que temos que crer parecenos que chegamos demasiado tarde Assim é certo que não existe compreensão que seja livre de todo preconceito por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar sempre dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos No conjunto da nossa investigação evidenciase que para garantir a verdade não basta o gênero de certeza que o uso dos métodos científicos proporciona Isso vale especialmente para as ciências do espírito mas não significa de modo algum uma diminuição de sua cientificidade mas antes a legitimação da pretensão de um significado humano especial que elas vêm reivindicando desde antigamente O fato de que em seu conhecimento opere também o ser próprio daquele que conhece designa certamente o limite do método mas não o da ciência O que a ferramenta do método não alcança tem de ser conse guido e pode realmente sêlo através de uma disciplina do perguntar e do investigar que garante a verdade 99 Arthur Kaufmann Panorámica in El pensamiento cit p 1 29 Já Heidegger escrevera que a interpretação de algo como algo fundase essencialmente numa posição prévia visão prévia e con cepção prévia A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições Se a concreção da interpretação no sentido da interpretação textual exata se compraz em se basear nisso que está no texto aquilo que de imediato apresenta como estando no texto nada mais do que opinião prévia indiscutida e supostamente evidente do intérprete Em todo princípio de interpreta ção ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já põe ou seja que é preliminarmente dado na posição prévia visão prévia e concepção prévia Ser e tempo Petrópolis Vozes 2002 p 207 1 00 Citado por Amilton Bueno de Carvalho Papel dos juízes na democracia Doutrina Rio de Janeiro nº 1 2002 1 0 1 Deleuze Giles e Guattari Félix O que é filosofia S Paulo Editora 34 2005 1 02 Lembra Hassemer que expectativas de sentido e précompreensões não são em última análise po tencialidades de apenas alguns indivíduos determinados Elas são antes de tudo características de 104 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS Em consequência não é possível como assinala Arthur Kaufmann interpretar corretamente segundo métodos ou segundo a hierarquia de argumentos pois em últi ma análise sobre o valor e a hierarquia de um meio interpretativo ou de um argumento decide o próprio intérprete103 mesmo porque não há um método para a escolha do mé todo104 E o juiz que supõe tomar seus critérios de decisão unicamente da lei é vítima de fatal engano pois inconscientemente permanece dependente dele mesmo quando em realidade só o juiz que tenha plena consciência de que sua pessoa se coimplica no processo interpretativo pode ser verdadeiramente independente105 Por isso que o ato de interpretar não é algo meramente contemplativo da norma não é uma revelação não é um ato declarativo mas constitutivo 106 por cujo meio se investiga e se desco bre a prévia vontade da lei ou a vontade do legislador como ainda entende gran de parte da doutrina mas um ato de criação do direito a partir de argumentação que empresta certo e determinado significado àquilo que se interpreta107 Numa palavra com a interpretação não se extraem sentidos da lei mas sentidos lhe são atribuídos por meio da interpretação Nietzsche tinha razão portanto quando dizia que nós introduzimos nossos valo res nas coisas por meio da interpretação108 Parece haver aliás algo de mágico nessa crença de que o juiz julga segundo uma suposta vontade da lei ou do legislador pois seria como acreditar por exemplo que a partir do sopro de um sax ou do dedilhar de uma guitarra se pudessem produzir todos os sons e melodias já que de acordo uma tal concepção importa mais o objeto uma sociedade e cultura resultados do contexto histórico no qual se encontram não apenas as pessoas mas também seu Direito cit p 96 103 Arthur Kaufmann Panorámica in El pensamiento cit p 1 29 l 04 Lédio Rosa de Andrade O que é direito alternativo Florianópolis Habitus 200 1 p 54 105 Arthur Kaufmann Panorámica in El pensamiento cit p 1 30 l 06 Como ensina Kelsen uma decisão judicial não tem como por vezes se supõe um simples caráter declaratório O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado cuja produção já foi concluída A função do tribunal não é simples descoberta do Direito ou jurisdição declaração do Direito neste sentido declaratório A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso concreto E mesmo esta determinação não tem um caráter simplesmente declarativo mas constitutivo Teoria pura do direito cit p 264 1 07 1 De acordo com Lênio Streck não existem em verdade julgamentos de acordo com a lei ou em desa cordo com ela porque o texto normativo não contém imediatamente a norma Müller a qual é cons truída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito de sorte que quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário Conclui então que é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras é também comportamentos símbolos conhecimentos expressados sempre na e pela linguagem É o que a lei manda mas também o que os juízes interpretam os ad vogados argumentam as partes declaram os teóricos produzem os legisladores criticam É enfim um discurso constitutivo uma vez que designaatribui significado a fatos e palavras Hermenêutica jurídica em crise Porto Alegre Livraria do Advogado Ed 1 999 p 2 1 02 1 1 1 08 A vontade de poder cit p 31 O aforismo 590 105 PAULO QJEIROZ do que o sujeito mais o instrumento do que o instrumentista No entanto uma boa interpretação na música como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sensibilidade E se os textos não fossem compreendidos a partir da experiência do homem no mundo da précompreensão que o próprio intérprete tem do texto interpretado não se entenderia como o mesmo enunciado legal pudesse comportar ao mesmo tempo múltiplas interpretações pelo mesmo intérprete até ou que ao longo do tempo pu desse sofrer tantas mudanças de interpretação sem alteração da redação do texto legal inclusive a exemplo da Parte Especial do Código Penal de 1940 especialmente no que se refere ao capítulo dedicado aos crimes sexuais O direito é assim algo que com ou sem mudança dos textos está em permanente evolução e transformação não sendo em conclusão um objeto que possa ser conhecido independentemente do sujeito109 Aliás o espectador minimamente crítico sabe que expressões como o juiz é um escravo da lei ou o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei110 etc são meros chavões principalmente se já houver tido a oportunidade de assistir ao que se passa durante uma sessão do em que se pede aos jurados que julguem conforme a cons ciência e os ditames da justiça CPP art 472 e não conforme a lei algo um tan to distinto onde o resultado do veredicto depende grandemente da performance dos oradores promotores e advogados e ali o júri mais do que fatos julga as pessoas envolvidas no conflito acusado e vítima seu modo de ser seu histórico de vida sua família status etc não raro absolvendo o réu e condenando a vítima Parece inclusive que quando os juízes e nós de algum modo se identificam com o autor do crime tendem naturalmente a absolvêlo ou a atenuar o castigo v g solida rizarse com o cônjuge traído que reage a isso com violência contrariamente quando a identificação é com a vítima do crime v g criança indefesa o desfecho provável é a condenação Parece também que nossas escolhas podem ser racionalmente justifica das mas não o porquê dessas escolhas e não outras que em grande parte remetem ao inconsciente de modo que o essencial sobre o homem ele ignora111 1 09 Na verdade no âmbito do direito penal não se pode falar rigorosamente de uma relação sujeito objeto simplesmente porque o seu objeto é o próprio sujeito isto é o homem autor de uma conduta pretendidamente típica antijurídica culpável e punível de modo que aqui o que se estabelece é mais exatamente uma relação sujeitosujeito o homem que compreende que interpreta que julga o seu semelhante e que portanto compreende e julga a si mesmo Daí dizer Boaventura de Souza Santos que todo conhecimento é uma forma de autoconhecimento e todo desconhecimento é autodesconhe cimento Um discurso sobre as ciências São Paulo Cortez 2003 p 92 1 1 O A expressão é de Montesquieu 1 1 1 De acordo com Freud o inconsciente é a esfera mais ampla que inclui em si a esfera menor do cons ciente Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e não obstante reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica em sua natureza mais íntima ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo e é tão incompletamen te apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos 106 1 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS Daí dizer Arthur Kaufmann que a hermenêutica jurídica não diz nada diferente do que tem sido válido e sempre tem sido praticado porque o único que realmente faz é mostrálo à luz destruindo assim algumas ilusões sobretudo a ilusão de que a investigação do direito seja mera subsunção lógicoformal do fato à lei112 Enfim o raciocínio dos magistrados não é como assinala Lédio Rosa de Andrade silogístico mas redutivo e classificatório porquanto ao atribuir uma interpretação ao signo lei o magistrado usa ideologia e ressignifica seu conteúdo de modo que não só acrescenta algo ao direito como o modifica constantemente113 Por conseguinte a interpretação à semelhança da fotografia varia conforme não apenas as imagens que se veem e se contemplam mas também segundo a ciência ou a insciência a maturidade ou a imaturidade a arrogância ou a humildade de quem inter preta ou fotografa pois o homemjuiz ao pretender julgar o processo segundo a lei julga conforme os seus medos as suas pretensões e os seus sentimentos a sua vocação ou o seu alheamento a sua grandeza ou a sua pequenez julga enfim segundo a sua sensibilidade A interpretação é uma fotografia da alma do intérprete114 órgãos sensoriais Ainda as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistên cia da consciência A interpretação dos sonhos segunda parte capítulo VII a psicologia dos proces sos oníricos Em Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Vol XV Rio de Janeiro Imago l ª edição Mais o inconsciente designa não apenas as ideias latentes em geral mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico ideias que se mantêm à parte da consciência apesar de sua intensidade e atividade a inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica todo ato psíquico começa com um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência segundo encontra resistência ou não Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise Em Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XII Rio de Janeiro Imago 1 ª edição 1 12 Panorámica in El pensamiento cit p 1 3 1 1 1 3 Direito ao direito Curitiba JM Ed 200 1 p 1 17 1 14 Como observa AlfRoss o juiz é um ser humano Por trás da decisão tomada encontrase toda a sua personalidade Mesmo quando a obediência ao direito a consciência jurídica formal esteja profunda mente enraizada na mente do juiz como postura moral e profissional ver nesta o único fator ou móvel é aceitar uma ficção O juiz não é um autômato que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões É um ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social tomando decisões que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural Seu respeito pela lei não é absoluto A obediência a esta não constitui o único motivo Aos seus olhos a lei não é uma fórmula mágica mas uma manifestação dos ideais posturas padrões ou valorações que denominamos tradi ção cultural Se na maioria dos casos o juiz decide dentro do campo de interpretação cognosciti va é indício de que sua consciência jurídica julgou possível aprovar a decisão ou em todo caso não a considerou incompatível com o justo ou com o socialmente desejável num tal grau que tomasse a recorrer a algum expediente para livrarse das amarras da lei Se os postulados políticojurídicomo rais de sua consciência jurídica tivessem levado o juiz a considerar que a decisão é inaceitável esse teria podido também mediante uma adequação descobrir a via para a melhor solução Podemos de maneira definitiva dizer que a administração do direito não se reduz a uma mera atividade intelec tual Está enraizada na personalidade total do juiz tanto em sua consciência jurídica formal e material quanto em suas opiniões e pontos de vista racionais Tratase de uma interpretação construtiva a qual é simultaneamente conhecimento e valoração passividade e atividade Direito e justiça São Paulo Edipro 2003 p 1 68169 107 aa PAULO QEI ROZ Talvez se possa dizer aqui mutatis mutandis o que escreveu Oscar Wilde todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista não do modelo O modelo é apenas acidental o pretexto Não é ele que o pintor revela é na verdade o artista que na tela colorida se revela115 No fundo as coisas parecem enfim relativamente simples juízes corajosos e im parciais interpretam e decidem corajosa e imparcialmente promotores implacáveis in terpretam e acusam implacavelmente e advogados apaixonados compreendem e advo gam apaixonadamente A interpretação é o próprio homem Ademais o ato de interpretar é algo singular e único mesmo porque o contexto em que são praticados e julgados os fatos é irrepetível e como disse Heráclito não se pode entrar duas vezes no mesmo rio pois novas águas estão sempre fluindo116 Mais graças à escrita o discurso se liberta da tutela de intenção do autor das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável117 Convém notar ainda com Foucault que por meio do direito penal julgamse também as paixões os instintos as anomalias as enfermidades as inadaptações os efeitos do meio ambiente ou de hereditariedade punemse as agressões mas por meio delas as agressividades e ao mesmo tempo as perversões impulsos e desejos huma nos julgase enfim a alma do criminoso de sorte que a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa pois implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível118 Por tudo isso parecenos inútil estudar interpretação a partir de métodos porque a não existe um método para a eleição do método cabendo ao intérprete decidir sobre o método e o argumento a seguir e sua respectiva hierarquia b toda compreensão é precedida de uma précompreensão a qual é determinante para a decisão c é possível partir do mesmo método e não obstante chegar a decisões distintas pois a pessoa do intérprete está coimplicada no processo de interpretação d a eventual adoção de um método se tiver alguma relevância servirá apenas para justificarlegitimar decisões já tomadas previamente à eleição do método e o direito não é um saber lógico mas ana lógico f em direito nada é dado tudo é construído g todo texto pressupõe um dado contexto que é sempre novo h por meio da interpretação não se extraem significados da lei mas significados lhe são atribuídos pois o sentido das coisas textos fatos pro vas etc não é dado pelas próprias coisas mas por nós ao atribuirmos um determinado 1 1 5 Oscar Wilde O retrato de Dorian Gray São Paulo Companhia das Letras 2012 p12 1 16 Cf Bertrand Russell História do pensamento ocidental as aventuras das ideias dos présocráticos a Wittgenstein Rio de Janeiro Ediouro 200 1 p 3 1 1 17 Paul Ricoeur in O justo e a essência da justiça Lisboa Instituto Piaget 1995 1 1 8 Vigiar e punir história da violência nas prisões trad Raquel Ramalhete 1 2 ed Petrópolis Vozes 1 995 p 2 1 e ss 108 1 02 1 P RI NCÍPIOS PENAIS sentido num universo de possibilidades aí incluída a falta de sentido inclusive i pre valência do caso sobre o texto A eventual invocação de métodos interpretativos constitui por isso apenas uma forma retórica de justificar decisões tomadas independentemente de qualquer método Em conclusão não é a interpretação que depende do direito mas é o direito que depende da interpretação porque a interpretação constitui a própria realização do di reito A rigor não existem portanto fenômenos jurídicos nem jurídicopenais mas apenas uma interpretação jurídica e jurídicopenal dos fenômenos Também por isso não existem fenômenos típicos antijurídicos e culpáveis mas apenas uma inter pretação tipificante antijuridicizante e culpabilizante dos fenômenos A interpretação é pois o ser do direito e o ser do direito é um devir 84 Limites da interpretação Atualmente parece não haver dúvida de que por maior que seja a clareza e a exati dão de um texto legal é sempre possível interpretálo de várias formas em virtude do caráter estruturalmente aberto da linguagem e pois dos conceitos jurídicos Há quem afirme inclusive que as possibilidades de interpretação são infinitas Nietzsche Der rida Umberto Eco Mas isso significa que qualquer interpretação é válida Existem limites à interpretação Parecenos que tais limites existem ou devem existir realmente119 Em primeiro lugar é preciso reconhecer que há interpretações erradas isto é tec nicamente incorretas Exemplo disso são as que se fundam em leis já revogadas como se ainda estivessem em vigor as que desconhecem a legislação específica as que con validam cálculos matemáticos incorretos relativamente à prescrição decadência pra zos etc as que se baseiam numa leitura equivocada do texto as tomadas por juízes manifestamente incompetentes as que contrariam princípios e regras por desconheci mento as que encerram contradição insuperável entre outras Mas que dizer da interpretação tomada conscientemente e sem erros técnicos Poqe um juiz deixar de condenar alguém por crime contra a liberdade sexual por julgar que a vítima por ser prostituta ou similar não é digna ou passível de proteção jurídica É sustentável ainda como no passado que mulher casada não pode ser vítima de estu pro praticado pelo marido em razão dos deveres do casamento Policiais podem matar fora dos casos legalmente admitidos l 19 Nesse sentido Umberto Eco dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz Até mesmo o desconstrucionismo mais radical aceita a ideia de que existem interpretações clamorosamente inaceitáveis Isso significa que o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto o que não quer dizer que coincidem com os direitos do seu autor Os limites da interpretação S Paulo Editora Perspectiva 2000 p XXII E Nietzsche Infinita possibilidade de interpretação do mundo cada inter pretação é um sintoma de crescimento ou de declínio in Vontade de Poder cit 109 PAULO QlJEIROZ Temos que seja qual for o rótulo que se associe a cada comportamento prostituta etc toda pessoa humana independentemente de qualquer outra condição tem direito de ser respeitada enquanto tal fazendo por isso jus à proteção da vida da honra e da liberdade em toda e qualquer circunstância motivo pelo qual o juiz não pode negar proteção à prostituta ou à mulher casada sob nenhum pretexto Além do mais se é certo que temos o direito de ser preconceituosos não temos porém o direito de fazer dos nossos preconceitos um direito especialmente quando isso signifique excluir ou violentar outrem Pela mesma razão não se pode considerar legítima a ação de policiais que torturam e matam supostos criminosos fora dos casos legalmente autorizados legítima defesa em nome da segurança pública ou semelhante porque do contrário não existirá diferença alguma entre policiais e criminosos entre lícito e ilícito entre o direito e o torto Não obstante isso por mais que consideremos determinadas decisões como incor retas absurdas ou inaceitáveis uma coisa é certa os limites de uma interpretação são dados por uma outra interpretação afinal a afirmação de que uma determinada senten ça é incorreta absurda ou inaceitável encerra igualmente uma interpretação12º Naturalmente que a interpretação predominante majoritária não é necessaria mente a melhor porque tal encerra uma decisão de poder motivo pelo qual prevalecerá a de quem pessoa órgão ou instituição tiver atribuição legal poder para a impor ou institucionalizar podendo inclusive ser a mais arbitrária dentre as possíveis afinal só é direito o que o poder reconhece como tal121 Dito sem rodeios quem tem poder cria o direito quem não o tem o sofre Porque é o poder um conjunto de relações histórica e permanentemente em cons trução que em última análise cria e extingue estados promulga leis e revoga cons tituições institui exércitos e parlamentos declara a guerra e a paz forja deuses e de mônios distingue mito e realidade saber e ignorância bem e mal verdade e mentira direito e torto Não surpreende assim que a lei tenha historicamente protegido e preferido os homens às mulheres os héteros aos homossexuais os senhores aos escravos os pa trões aos empregados os incluídos aos excluídos socialmente e todos eles aos animais preferido enfim os mais fortes aos mais vulneráveis 120 Como assinala Hassemer apenas uma compreensão jurídica obtusa mas não aquela orientada pela teoria linguística poderia supor que existem fronteiras abstratas entre linguagem e compreensão fora da linguagem e da compreensão A interpretação judicial das leis é um ato de compreensão de texto e por isso provida de todas as limitações préconceitos subjetivismos rotinas e caráter espontâneo das demais formas de compreensão Cit p 66 121 De acordo com François Ewald não há saber neutro purificado desafectado como foi dito a res peito da ciência Todo o saber é político não porque dele se possam deduzir consequências em polí tica nem porque a política se possa servir dele ou utilizálo mas muito mais profundamente porque não há saber que não seja fundado ou não encontre as suas condições de possibilidade em relações de poder Foucault e o direito cit p 55 110 l ü2 1 P RI NCÍPIOS PENAIS Naturalmente que essa relação não é estática mas dinâmica e pois muda segun do a conformação política e econômica das sociedades 85 Interpretação e garantismo O garantismo122 conforme definição de Ferrajoli constitui um esquema epistemo lógico de identificação da desviação penal destinada a assegurar em relação a outros modelos de direito historicamente concebidos e realizados o máximo grau de raciona lidade e pois o máximo grau de limitação da potestade punitiva e de tutela da pessoa humana contra a arbitrariedade123 ou seja constitui uma técnica de tutela capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade124 como instrumento de defesa dos direitos fundamentais Dirseá garantista assim todo modelo de direito penal que res peitar minimamente as seguintes garantias os dez axiomas do garantismo penal 1 o princípio de retributividade ou de sucessividade da pena em relação ao delito nula poena sine crimine 2 o princípio da legalidade nullum crimen sine lege 3 o princípio da necessidade ou da economia do direito penal nulla ex sine ne cessitate 4 o princípio da lesividade ou da ofensividade do fato nulla necessitas sine iniuria 5 o princípio de materialidade ou de exterioridade da ação nulla iniuria sine ac tione 6 o princípio da culpabilidade ou de responsabilidade pessoal nulla actio sine culpa 7 o princípio da jurisdicionalidade nulla culpa sine iudicio 8 o princípio acusatório ou de separação entre juiz e acusação nullum iudicium sine accusatione 9 o princípio do ônus da prova ou de verificação nulla accusatio sine probatio ne lOo princípio do contraditório nulla probatio sine defensione125 Contrariamente dirseá antigarantista todo modelo de direito que não respeitar total ou parcialmente tais princípios 1 122 Convém esclarecer que o garantismo é um modelo de justificação do direito e não só do direito penal mas aqui nos interessa de modo particular o direito penal A expressão também pode ser adjetivada de garantismo negativo e garantismo positivo A primeira tem a ver com o respeito às garantias de legalidade proporcionalidade etc A segunda diz respeito à realização dos direitos sociais 1 23 1 Derecho y razón cit p 34 1 24 Ferrajoli Derecho y razón cit p 851 125 Ferrajoli Derecho y razón cit p 93 1 1 1 PAULO QEIROZ Dito de outro modo o garantismo penal é um modelo de legitimação e também de deslegitimação do sistema penal que parte da premissa de que o direito penal surgiu e se justifica histórica e politicamente como um instrumento de prevenção subsidiária de reações públicas ou privadas arbitrárias contra os cidadãos de tal modo que os prin cípios liberais de legalidade proporcionalidade pessoalidade da pena etc constituem autênticas garantias individuais Ou ainda o direito penal por meio de seu sistema de garantias constitui a lei do mais fraco diante do mais forte no momento do cometi mento do crime pretende proteger a vítima o mais fraco contra o criminoso o mais forte no momento do processo o réu o mais fraco contra o Estado o mais forte Constitui também um sistema que busca aproximar maximamente normatividade e efetividade diminuindo tanto quanto possível o abismo existente entre o discurso ju rídicopenal e sua realidade operativa 86 Prevalência da Constituição Se a Constituição é o alfa e o ômega e pois começo e fim do ordenamento jurí dico seguese que os princípios e valores constitucionais fundamentais devem ser em consequência o ponto de partida e o ponto de chegada de toda e qualquer interpre tação independentemente da natureza civil penal das normas em questão mesmo porque em razão da pretendida unidade lógica do direito não se pode falar de uma hermenêutica civil penal ou processual mas de hermenêutica jurídica simplesmente Assim a Constituição passa a ser em toda a sua substancialidade o topos hermenêu tico que conformará a interpretação judicial do restante do sistema jurídico126 Afinal se interpretar é argumentar corretamente isso significa antes de tudo argumentar a partir de princípios e não só a partir de regras buscando sempre a interpretação mais condizente com os valores de liberdade igualdade e fraternidade especialmente Isso vale especialmente para o direito penal por traduzir a forma mais incisiva de intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos em cujo favor da liberdade a Cons tituição visando a assegurarlhe a efetividade consagra num exaustivo artigo o 5º uma série de garantias legalidade humanidade das penas estado de inocência etc E essa incorporação em nível constitucional dos direitos fundamentais altera como res salta Ferrajoli a relação entre o juiz e a lei e atribui à jurisdição um papel de garantia do cidadão contra as violações da legalidade em qualquer nível por parte dos poderes públicos127 significando dizer que o direito de exigir a observância das garantias cons titucionais constitui uma garantia do cidadão em face do poder punitivo do Estado128 Justamente por isso não basta à aplicabilidade da lei penal sua vigência entendi da como respeito à competência e procedimento para a sua elaboração é preciso mais 126 Lênio Streck Hermenêutica cit p 2 1 5 1 27 Derechos y garantías la ley dei más débil Madrid Ed Trotta 1 999 p 26 128 Para Lênio Streck a interpretação conforme a Constituição é mais do que princípio é um princípio imanente da Constituição até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obriga ção de que todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela Hermenêu tica cit p 221 1 1 2 a sua validade é dizer conformação da norma às garantias fundamentais da pessoa humana Aliás exatamente nessa sujeição do juiz à Constituição e portanto no seu papel de garante dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos reside o principal fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do Poder Judiciário perante os demais Poderes Legislativo e Executivo Afinal conforme assinala Ferrajoli a sujeição do juiz não é mais como no velho paradigma positivista sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado senão sujeição à lei enquanto válida é dizer coerente com a Constituição E no modelo constitucionalgarantista a validade já não é um dogma associado à mera existência formal da lei razão pela qual a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos ou seja compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos Isso significa portanto a não sujeição à lei de forma acrítica e incondicionada senão sujeição sobredotada à Constituição que impõe a crítica das leis inválidas através da sua reinterpretacão em sentido constitucional e a denúncia de sua inconstitucionalidade PAULO Q1EIROZ heideggeriana no imaginário dos juristas e que tem se mostrado de maneira emblemá tica no vetusto jargão sentença vem de sentire para citar apenas um entre tantos chavões que como já demonstrei transformaramse em enunciados performáticos A primeira questão reside em saber se existiria de fato um tal juizsujeito Afinal de acordo com o autor não é mais possível pensar que a realidade passa a ser uma construção de representações de um sujeito isolado solipsista O giro ontológicolin guístico já nos mostrou que somos desde sempre seresnomundo o que implica dizer que originariamente já estamos fora de nós mesmos nos relacionando com as coisas e com o mundo Esse mundo é um ambiente de significância um espaço no interior do qual o sentido definitivamente não está à nossa disposição133 Se isto é correto parece então que um juiz solipsista jamais existiu realmente ainda que ele o juiz pensasse decidir isoladamente com base exclusivamente em sua consciência E mesmo um Robinson Crusoé cuja consciência era o resultado de toda a tradição moral religiosa jurídica etc que lhe fora ensinada antes do naufrágio que o vitimara tinha na ilha a companhia de um SextaFeira Tinha pois além de seus pró prios limites os limites de um semelhante e da ilhanatureza em que passou a habitar Enfim nem mesmo para Robinson Crusoé é possível falar de um grau zero de sentido E como assinala Gadamer não é a história que pertence a nós mas nós que pertencemos à história Muito mais do que nós compreendemos a nós mesmos na re flexão já estamos compreendendo de uma maneira autoevidente na família na socie dade e no Estado em que vivemos A lente da subjetividade é um espelho deformante A autoreflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica Por isso os préconceitos de um indivíduo são muito mais que seus juízos a realidade histórica de seu ser134 Justamente por isso carece de sentido a pergunta onde ficam a tradição a coe rência e integridade do direito Cada decisão parte ou estabelece um grau zero de sentido135 Aliás é o próprio autor quem conclui que é exatamente por isso que podemos dizer sem medo de errar que o sujeito solipsista foi destruído embora sobreviva em grande parte do ambiente jusfilosófico Afinal como diz Gadamer quem pensa a lin guagem já se movimenta para além da subjetividade136 Mas não é só Para Lênio Streck que cita voto proferido por um certo ministro que afirma não importar o que os doutrinadores pensam já como preliminar é neces sário lembrar antes mesmo de iniciar nossas reflexões no sentido mais crítico que o direito não é e não pode ser aquilo que o intérprete quer que ele seja Portanto o direito não é aquilo que o Tribunal no seu conjunto ou na individualidade de seus 133 Idem p 57 134 Verdade e Método Petrópolis Editora Vozes 1999 3 ed 135 Ibidem p 27 136 fbidem p 58 1 14 l ü2 1 PRINCÍPIOS P ENAIS componentes dizem que é137 Uma das conclusões a que chega é exatamente nesse sentido o direito não é aquilo que o judiciário diz que é E tampouco éserá aquilo que em segundo momento a doutrina compilando a jurisprudência diz que ele é a partir do repertório de ementários ou enunciados com pretensões objetivadoras138 A pergunta que sempre fica é se o que os tribunais e juízes dizem que é o direito direito não é o que seria isso então O não direito o torto o arbítrio E o que seria o direito Segundo Lênio Streck a decisão judicial não é um ato de vontade O que seria então Um ato de verdade entendida como a resposta constitucionalmente adequada ou similar139 Mas a verdade escreveu Nietzsche não é algo que existisse e que se houvesse de encontrar de descobrir mas algo que se há de criar e que dá o nome a um processo mais ainda uma vontade de dominação que não tem nenhum fim em si estabelecer a verdade como um processus in infinitum um determinar ativo não um tornarse consciente de algo que fosse em si firme e determinado Tratase de uma pala vra para a vontade de poder14º 13 7 Ibidem p 25 1 38 Ibidem p 1 07 139 Em Verdade e consenso Rio Lumen Juris 2007 p 309 Lênio Streck diz que a resposta correta aqui trabalhada é a resposta hermeneuticamente correta que limitada àquilo que se entende por feno menologia hermenêutica poderá ser denominada de verdadeira se por verdadeiro entendermos a pos sibilidade de nos apropriarmos de préjuízos autênticos e dessa maneira podermos distinguilos dos préjuízos inautênticos Tem ainda que na medida em que o caso concreto é irrepetível a resposta é simplesmente uma correta ou não para aquele caso A única resposta acarretaria uma totalidade em que aquilo que sempre fica de fora de nossa compreensão seria eliminado O que sobra o nãodito o ainda nãocompreendido é o que pode gerar na próxima resposta a um caso idêntico uma resposta diferente da anterior Portanto não será a única resposta será sim a resposta idem p 3 1 7 E mais a única reposta correta é pois um paradoxo tratase de uma impossibilidade hermenêutica e ao mesmo tempo uma redundância pois a única resposta acarretaria o seqüestro da diferença e do tempo não esqueçamos que o tempo é a força do ser na hermenêutica E é assim porque conteduís tica exsurgindo do mundo práticoIbidem p 3 1 7 Conclui que em síntese a afirmação de que sempre existirá uma resposta constitucionalmente adequada que em face de um caso concreto será a resposta correta nem a melhor nem a única decorre do fato de que uma regra somente se mantém se estiver em confo1midade com a Constituição idem p 364 Em o que é isto Decido conforme a minha consciência Lênio Streck volta a afirmar que a resposta que propõe não é nem a única nem a melhor mas simplesmente se trata da resposta adequada à Constituição isto é uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição na Constituição mesma no sentido hermenêutico do que significa a Constituição mesma cit p 97 Idem p 84 nota de rodapé 96 Lênio Streck escreve de se ressaltar que por certo não estou afirmando que diante de um caso concreto dois juízes não possam chegar a respostas diferentes Volto a ressaltar que não estou afirmando com a tese da resposta correta adequada constitucionalmente que existam respostas prontas a priori como a repristinar as velhas teorias sintáticassemânticas do tempo posterior à revolução francesa Ao contrá rio é possível que dois juízes cheguem a respostas diferentes e isso o semanticismo do positivismo normativista já havia defendido desde a primeira metade do século passado Todavia meu argumento 1 vem para afirmar que como a verdade é que possibilita o consenso e não contrário no caso das res postas divergentes ou um ou ambos os juízes estarão equivocados 140 Nietzsche Vontade de Poder Rio de Janeiro Contraponto 2008 p 288 1 1 5 PAULO Q1EIROZ Precisamente por isso é que Günter Abel diz que não é mais a interpretação que depende da verdade mas justamente o contrário que é a verdade que depende da inter pretação pois nos processos de interpretação não se trata primariamente de descobrir uma verdade preexistente e pronta uma vez que não é possível pensar que haja um mundo préfabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua representação e espelhamento em nossa consciência141 E se existem apenas perspectivas sobre a verdade não existe por conseguinte a verdade consequentemente não existe a resposta constitucionalmente adequada ou correta etc mas apenas perspectivas sobre a resposta constitucionalmente adequa da142A resposta constitucionalmente adequadacorreta é uma ficção inútil portanto Por que o que quer que possa ser pensado como quer que seja pensado por quem quer que seja pensado sempre poderá ser pensado de diversas outras formas e por isso con duzir a resultados também diversos Quem à maneira de Narciso propõe semelhante ficção oculta o essencial eu sou a resposta correta E mais como não há conhecimento humano desinteressado visto que a vontade de conhecer já constitui ela mesma um impulso e um interesse de saber pensamos interpretamos e argumentamos estratégica e interessadamente Ademais o legal e o ilegal o justo e o injusto o correto e o incorreto não são qualidades daquilo que designamos como tal mas uma relação interação entre o sujeito e a coisa assim designada Consequentemente nada existe de legal justo ou correto em si mesmo mas apenas perspectivas sobre a legalidade a justiça e a cor reção143 141 Verdade e interpretação in Nietzsche na Alemanha org Scarlett Merton discurso editorial S Paulo 2005 p 1 791 99 142 Nietzsche escreveu há muitos olhos Também a esfinge tem olhos consequentemente há muitas verdades e consequentemente não há nenhuma verdade Vontade de poder cit p 282 143 Nietzsche escreveu até onde vai o caráter perspectivista da existência ou mesmo se ela tem algum outro caráter se urna existência sem interpretação sem sentido Sinn não vem a ser justamente absurda Unsinn se por outro lado toda a existência não é essencialmente interpretativa isso não pode como é razoável ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e autoexa me do intelecto pois nessa análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas Não podemos enxergar além de nossa esquina é uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haver por exemplo se quaisquer outros seres podem sentir o tempo retroativamente ou alternando progressiva e regressi vamente com o que se teria uma outra orientação da vida e uma outra noção de causa e efeito Mas penso que hoje pelo menos estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar a partir de nosso ângulo que somente dele podese ter perspectivas O mundo tomouse novamente infinito para nós na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações Mais urna vez nos acomete o grande tremor mas quem teria vontade de imediatamente divinizar de novo à maneira antiga esse monstruoso mundo desconhecido E passar a adorar o desconhecido como o ser desconhecido Ah estão incluídas demasiadas possibilidades não divinas de interpre tação nesse desconhecido demasiada diabrura estupidez tolice de interpretação a nossa própria humana demasiado humana que bem conhecemos Nietzsche Friederich A gaia ciência SPaulo Companhia das Letras 2009 aforismo 374 p 278 1 16 I021 PRI NCÍPIOS PENAIS Queiramos ou não e ainda que em caráter de exceção quase tudo é em tese legi timável logo também deslegitimável por meio do direito O que é verdadeiramente trágico é saber quando como e sob que condições isso é possível Como assinala Wolfgang MüllerLauter todas as interpretações são apenas pers pectivas razão pela qual não há qualquer parâmetro que permita provar qual é a mais correta e a menos correta o único critério para a verdade de uma exposição da efe tividade consiste se e em que medida ela está em condições de se impor contra outras exposições Cada exposição tem tanto direito quanto tem poder144 E o que é e quem diz qual é essa resposta constitucionalmente adequada E o que a torna a resposta adequada relativamente às demais não adequadas É certo que Lênio Streck entende existir a resposta correta não a única isto é ade quada à Constituição e não à consciência do intérprete145 chegando a defender inclu sive um direito fundamental a isso146 Mas o que seria de fato a resposta constitucional mente adequada senão aquela que o próprio intérprete juiz tribunal etc pretende como tal segundo a sua perspectiva consciência etc Como toda pretensão ao universal e portanto ao impessoal a tese da resposta correta oculta a singularidade que a produz147 Kelsen tinha razão portanto quando assinalava que todos os métodos de inter pretação até o presente elaboradas conduzem sempre a um resultado apenas possível nunca a um resultado que seja o único correto Na aplicação do Direito por um órgão jurídico a interpretação cognoscitiva obtida por uma operação de conhecimen to do Direito a aplicar combinase com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva148 Parecenos por conseguinte que podemos criticar um certo tipo de vontade v g de condenar sem prova de absolver um culpado etc mas não a vontade mesma que está na raiz de toda decisão judicial ou não inevitavelmente E por mais que consideremos uma determinada decisão interpretação arbitrária incorreta ou in justa uma coisa é certa os limites de uma interpretação são dados por uma outra interpretação Finalmente a possibilidade de decisões absurdas ou teratológicas contra le gem é em princípio necessária à democracia O que diria com efeito a doutrina da época sobre a primeira decisão solipsista que no auge do regime declarava a nu lidade do contrato de compra e venda de escravos que admitia a adoção por casais 1 44 Wolfgang MüllerLauter a doutrina da vontade de poder em Nietzsche São Paulo ANNABLUME editora 1997 p 1 3 1 1 45 O que é isto9 p 1 0 1 146 O que é isto p 84 1 47 Leon Kossovitch Signos e poderes em Nietzsche Rio de Janeiro Azougue editorial 2004 p96 148 KELSEN Hans Teoria pura do Direito 6ª ed Trad João Baptista Machado São Paulo Martins Fontes 2003 p 394395 1 17 PAULO QjEIROZ homossexuais que recusava a distinção legal entre filhos legítimos e ilegítimos que permitia a mudança de sexo etc E mais a questão fundamental não reside mais em saber se a sentença encerra ou não um ato de vontade se há ou não uma resposta constitucionalmente adequada mas na legalidade e legitimidade do controle dos atos do poder público aí incluídas as decisões judiciais O direito como as línguas nasce mais ou menos inconscientemente e se realiza e se desenvolve mais ou menos arbitrariamente por mais que os ordenamentos jurídicos tentem moldálo e sistematizálo 88 Direito e analogia É comum darse à analogia149 no direito e fora dele tratamento secundário150 por se pressupor em geral que o meio mais apropriado para a interpretaçãoaplicação do direito é a subsunção em nome da segurança jurídica principalmente Afirmase assim que a analogia só é admitida no direito penal quando for para beneficiar o réu in ba nam partem não para prejudicálo in malam partem distinguese ainda analogia de interpretação analógica que seriam institutos distintos Mas conforme vimos se um conceito surge da postulação de identidade de coisas não idênticas v g a única coisa em comum entre matar alguém e soltar balões é sua tipificação jurídicopenal seguese que a analogia não constitui um elemento aciden tal mas essencial ao conhecimento porque os juízos sobre o belo o justo ou o legal são construídos em verdade a partir de comparações de analogias isto é recorrendo se conscientemente ou não a experiências sempre novas de beleza de justiça e de legalidade uma vez que algo é belo justo ou legal em relação comparação a alguma outra coisa Nossos juízos de valor são juízos analógicos Significa dizer que a analogia está assim subjacente a nossos juízos éticos esté ticos jurídicos etc ainda quando dela não nos apercebemos de modo que quando afirmamos por exemplo que algo ou alguém é bom ou ruim partimos sempre de nos sas referênciasexperiências permanentemente em mutação sobre tais assuntos e se eventualmente somos questionados ou contestados sobre o juízo que expressamos a esse respeito não raro dizemos que não tem comparação é incomparável não há nada igual etc explicitando assim o que está subjacente aos nossos julgamentos Exatamente por isso isto é por formarmos nossos juízos a partir de experiên cias analógicas é que com frequência o que antes julgávamos belo ou justo julgamos 149 De acordo com Bobbio a analogia é um procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulamen tado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante Teoria do ordenamento jurídico Brasília UnB 1 999 p 1 5 1 1 50 Apesar de alguns autores como Bobbio reconhecerem que a analogia é certamente o mais típico e o mais importante dos procedimentos interpretativos de um sistema normativo é o procedimento mediante o qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandirse além dos casos expressamente regulamentados Teoria do ordenamento jurídico p 1 5 1 1 18 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS agora feio ou ultrapassado ou injusto e viceversa É que mudam nossos objetos de comparação mudam as nossas experiências mudam os nossos juízos sobre as coisas mudamos enfim nós mesmos Naturalmente que isso não significa que coisas antigas se tornem necessariamente piores ou desinteressantes com o passar do tempo embora possam se tornar ultrapassadas v g arquitetura automóveis etc e ainda quando as coisas não mudam muda nossa percepção sobre elas Mas a analogia é essencial à realização do direito por um outro motivo ao recorre rem na fundamentação de suas decisões a leis precedentes judiciais ou doutrina juí zes e tribunais a pretexto de fazerem subsunção em realidade fazem analogia pois as situações em comparação nunca são idênticas mas mais ou menos semelhantes Dito de outro modo as leis doutrina ou precedentes e situações a que se referem nunca são absolutamente iguais nem absolutamente desiguais e sim mais ou menos análogos e quando as semelhanças prevalecem sobre as dessemelhanças e isso requer um juízo de valor sempre questionável damos tratamento unitário caso contrário damos so lução diversa Com efeito não existe v g um furto nem um homicídio absolutamente idêntico a outro porque as múltiplas variáveis de tempo e espaço inclusive que sem pre envolvem tais atos tornam cada ação singular única Por isso que os casos habituais de subsunção são em verdade casos de analogia pois conforme observa Arthur Kaufmann só se poderia separar logicamente subsun ção e analogia se existisse uma fronteira lógica entre igualdade e semelhança mas tal fronteira não existe porque a igualdade material é sempre mera semelhança e a igualdade formal não ocorre na realidade existindo apenas no domínio dos números e sinais matemáticos lógicoformais151 Daí dizer Castanheira Neves que a analogia é metodologicamente um elemento da interpretação e a interpretação é normativamente um resultado da analogia152 E não é outra a conclusão de Hassemer para quem toda interpretação é analo gia pois toda interpretação toda compreensão de uma lei pressupõe a comparação do caso a ser resolvido com outros casos que imaginados ou judicialmente decididos são casos desta lei isentos de dúvida Não há interpretação sem um tertitum com parationis por mais que este seja pobre de conteúdo e que a decisão seja ainda assim inevitável Interpretação e analogia são estruturalmente idênticos153 1 5 1 Filosofia do Direito cit p 1 86 1 52 O Princípio da Legalidade Criminal Coimbra 1988 p 142143 Como escreve Stratenwerth interpre tação é um caso de pensamento analógico e a analogia é por sua vez um meio para a interpretação razão pela qual a interpretação da lei não é possível sem analogia Com efeito dado que os fatos juridi camente relevantes jamais são completamente iguais é tarefa própria do jurista descobrir suas coinci dências e suas diferenças analogia Apesar disso se demonstrada a analogia como tal não significa ainda que os casos comparáveis mereçam ser equiparados em seus efeitos jurídicos O decisivo é pois determinar se do ponto de vista em que se verifica a coincidência é legítima ou não a equiparação jutidicopenal Stratenwerth Gunter Derecho penal parte general Madrid Edersa 1982 p 38 1 53 Direito Penal Fundamentos Estrutura Política Organização e revisão por Carlos Eduardo de Olivei ra Vasconcelos Porto Alegre Sergio Fabris 2008 p 6465 1 19 PAULO ÜlJEIROZ 89 Analogia e interpretação analógica Mas o certo é que ainda hoje a doutrina distingue analogia e interpretação ana lógica afirmando como faz Damásio de Jesus que a diferença entre interpretação analógica e analogia reside na voluntas legis na primeira a vontade da norma pretende abranger os casos semelhantes por ela regulados na segunda ocorre o inverso não é pretensão da lei aplicar o seu conteúdo aos casos análogos tanto que silencia a respei to mas o intérprete assim o faz suprindo a lacuna154 De acordo com esse entendi mento haveria interpretação analógica por exemplo no art 28 II do CP quando se utiliza da expressão substância de efeitos análogos no art 71 caput quando refere e outras semelhantes etc Diferentemente haverá analogia quando não existindo previsão legal expressa o intérprete puder suprir essa lacuna recorrendo a uma lei ou precedente que trate de caso semelhante Enfim haveria analogia sempre que a lei nada dissesse expressamente sobre um dado assunto lacuna legal155 omitindose e haveria interpretação analógica quando a própria lei depois de uma sequência casuística recorresse a uma fórmula genérica interpretável de acordo com os casos anteriormente citados Mas a distinção entre analogia e interpretação analógica é ilusória porque preten de distinguir onde há identidade Sim porque tanto num como noutro caso tratase de fazer um juízo analógico simplesmente A diferença consiste unicamente nisto se a lei expressamente permitir o uso da analogia haveria interpretação analógica se não o fizer o caso seria de analogia O que ocorre portanto é sempre analogia ora expressa ora tácita mas sempre analogia isto é um juízo comparativo entre duas ou mais si tuações semelhantes para se tirar uma determinada conclusão razão pela qual a assim chamada interpretação analógica é apenas um sinônimo para analogia tácita É que interpretar analogicamente e fazer analogia são uma só e mesma coisa uma vez que se está em ambos os casos a interpretar por meio de comparações Ademais se mesmo a lei mais perfeitamente redigida demanda interpretação ain da mais evidente será a atividade interpretativa quando se tratar de omissão normativa já que maior será o esforço do intérprete para construir um resposta justa e adequada para o caso Enfim não faz sentido algum falar de interpretação na presença da lei e de integração na sua ausência O que os autores pretendem como interpretação analógica é portanto analogia com outro nome 1 54 Direito Penal Parte Geral S Paulo Saraiva 2003 p 46 1 55 De acordo com Carlos Maximiliano a analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante Hermenêutica e Aplicação do Direito Rio de Janeiro Forense 2003 p 169 120 1021 PRI NCÍPIOS PENAIS Além do mais semelhante distinção parte do pressuposto de que a interpretação jurídica é como regra um ato lógicosubsuntivo e não analógico Ocorre que a analo gia comparação um modo de inferência misto dedutivoindutivo constitui o próprio critério de determinação do direito conforme vimos Sim porque o fato e a norma o ser e o dever ser que têm de ser postos em relação recíproca no processo de determi nação do direito nunca são iguais mas apenas mais ou menos semelhantes uma vez que nunca existe uma absoluta igualdade ou uma absoluta desigualdade porque qual quer ente é igual a todos os outros pelo menos no fato de ser e distinguese ao menos pelo fato de estar numa diferente posição espacial156 Assim a pretexto de fazer subsunção lógica do fato ao tipo legal de crime o juiz em realidade faz analogia pois entre as previsões legais normas jurídicas e as ações humanas fatos sempre novas há relação de aproximação de semelhança de corres pondência Finalmente a pretendida distinção entre analogia e interpretação analógica parte da premissa equívoca de que quando da interpretaçãoaplicação o direito já está previamente dado cabendo ao intérprete a cômoda tarefa de descobrir uma suposta vontade da lei ou do legislador ignorando que em verdade o crime e o próprio di reito não existe materialmente que é socialmente construído conforme os processos de criminalização primária e secundária motivo pelo qual o juiz não descobre um sentido prévio à interpretação mas o constrói por meio dela É impossível assim estabelecer uma diferenciação entre analogia e interpretação analógica porque é impossível pensar que uma palavra descreva uma gama limitada de fatos ficando outras embora semelhantes fora dela157 Também por isso não cabe distinguir como a doutrina e a legislação ainda fazem CPP art 3º158 entre interpretação aplicação e integração do direito e entre interpre tação extensiva e analogia etc as quais devem ser superadas159 1 56 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 p 1 1 9 1 20 De modo similar Rosa Maria Cardoso da Cunha assinala que relativamente à proibição da analogia in malam partem há de se considerar que esta constitui um procedimento lógico e semiótico indeclinável no processo de interpretação da lei É que o direito e particularmente o di reito penal não se comunica de uma forma digital como a linguagem algébrica por exemplo O estabelecimento da significação jurídica reclama em todos os níveis raciocínios por imagens de tipo ou caráter analógico Assim quando surge um caso que os critérios estabelecidos ainda não assimilaram aos casos paradigmáticos relacionados com o tipo é necessário ampliarlhe a significação para fazer caber o novo caso O caráter retórico do princípio da legalidade Porto Alegre 1 979 p 1 04 157 Andrei Schmidt O Princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 200 1 p 1 89 1 58 Diz o art 3º do CPP que a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógi ca bem como o suplemento dos princípios gerais de direito 159 Criticamente A Castanheira Neves Metodologia jurídica cit Idem Alf Ross cit 121 PAULO Q1JEIROZ 9 CONCURSO DE TIPOS PENAIS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS 91 Introdução Dáse o assim chamado conflito aparente de normas ou mais precisamente con curso de tipos penais sempre que sobre um dado comportamento incide ou parece in cidir simultaneamente mais de um tipo legal de crime embora só um possa em prin cípio prevalecer Assim por exemplo sobre a conduta de eliminar a vida de alguém incidem em tese os arts 121 homicídio doloso culposo etc 123 infanticídio 124 aborto 129 3º lesão corporal seguida de morte 157 3º latrocínio 158 3º extorsão seguida de morte 213 2º estupro com resultado morte todos do Código Penal visto produzirem o mesmo resultado final a morte de alguém Em semelhante contexto não raro de difícil solução o juiz considerando as parti cularidades do caso e as circunstâncias e elementos que dizem com os tipos penais em concurso deverá decidir sobre o tipo legal que incidirá na hipótese visto que a aplica ção simultânea de mais de um violaria os princípios de legalidade e proporcionalidade ne bis in idem A ideia básica que preside o concurso é que o conteúdo do injusto e da culpabilidade de uma ação punível pode ser determinado já exaustivamente conforme uma das normas tomadas em consideração razão pela qual desaparece a necessidade ulterior de pena160 Com efeito a ser admitida a aplicação simultânea de normas penais sobre um só e mesmo fato violarseia o princípio proibitivo de dupla valoração do mesmo com portamento ne bis in idem pois do contrário haveria uma imputação multiplicada e a imposição de um castigo repetido do mesmo fato161 Mas como vimos nada impede que o agente seja concomitantemente punido em âmbitos jurídicos distintos relativamente à mesma conduta porque em tal hi pótese os fundamentos da apenação são diversos Assim por exemplo o servidor público corrupto pode ser condenado à pena de prisão à demissão e a reparar o dano respectivamente no âmbito penal administrativo e civil A análise do conflito aparente de normas visa assim a impedir bis in idem preservandose os princípios de legalidade e proporcionalidade De proporcionalidade porque se todas as nor mas em conflito fossem aplicadas simultaneamente punirseia a conduta com penas desproporcionais E de legalidade porque o agente acabaria respondendo por tipos penais em que a rigor não incorreu Naturalmente que para resolver os vários conflitos não basta a só aplicação dos princípios que serão vistos a seguir pois para a seleção do tipo exato a ser aplicada ao caso o essencial é identificar o elemento subjetivo do agente dolo ou culpa Se por 160 Jescheck Tratado cit p 670 161 Jakobs Derecho penal parte general Trad Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de Murillo Madrid Marcial Pons 1995 p 1 049 122 1 021 PRI NCÍPIOS PENAIS exemplo o autor quis matar mediante tortura responderá por homicídio qualificado pela tortura CP art 121 2º se ao contrário pretendeu torturar simplesmente ad vindo daí a morte da vítima incidirá nas penas do crime de tortura qualificado pelo resultado morte Lei nº 945597 art lº Se quis num primeiro momento torturar e de pois disso decidiu por qualquer motivo matar a vítima já torturada haverá concurso material de crimes tortura e homicídio Ademais se não agiu com dolo ou o agente responderá por crime culposo ou não responderá penalmente CP art 18 Também é importante verificar se as normas em questão protegem ou não o mes mo bem jurídico porque em caso afirmativo haverá em princípio unidade de crimes em caso negativo ocorrerá concurso de crimes normalmente Mas semelhante cri tério embora importante e indiciário da ocorrência ou não de conflito aparente não pode ser levado a extremos sob pena de inviabilizar o próprio reconhecimento da uni dade de crime Com efeito se a diversidade de bens jurídicos for conduzida às últimas consequências então não se poderia por exemplo admitir absorção do sequestro pela extorsão mediante sequestro da violação de domicílio pelo furto porque na extorsão e no furto se protege o patrimônio enquanto no sequestro e na violação de domicílio o bem jurídico protegido é a liberdade individual Finalmente não se deve confundir o concurso de normas com o concurso de cri mes CP arts 69 70 e 71 formal material ou continuado pois no conflito aparente há um único crime enquanto no concurso de crimes existem vários ainda quando o Código lhes dá tratamento unitário crime continuado ou manda aplicar uma única pena com aumento concurso formal Apesar disso o concurso de tipos e o concurso de crimes são perfeitamente compatíveis porque pode ocorrer por exemplo de reco nhecida a continuidade delitiva discutirse sobre a incidência do Código Penal ou de determinada lei especial Notese ainda que a distinção entre unidade e pluralidade de crime concurso não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual não é raro juízes e tribunais divergirem sobre o assunto ora afirmando ora negando o concurso de cnmes O concurso de tipos não se confunde tampouco com o concurso de leis no tempo visto que no primeiro dáse o concurso entre leis ainda em vigor enquanto no segundo há sucessão de leis no tempo e portanto consequente revogação total ou parcial da lei anterior pela posterior Naturalmente que não existe incompatibilidade entre o con curso de tipos e a sucessão de leis penais no tempo que podem coexistir Basicamente três princípios são admitidos pela doutrina para solucionar o conflito de tipos 1 princípio da especialidade 2 princípio da subsidiariedade e 3 princípio da consunção Alguns códigos penais a exemplo do espanhol referem tais princípios expressamente art 8º declarando que o preceito especial prevalecerá sobre o geral que o subsidiário só se aplicará quando não couber o principal e que o preceito amplo ou complexo absorverá aquele menos amplo que já fizer parte de sua descrição típica 123 PAULO ÜlJEIROZ Afirma ainda que se tais critérios forem insuficientes prevalecerá a norma que comi nar pena mais grave No entanto a grande maioria dos possíveis conflitos é perfeita mente solucionável por meio do princípio da especialidade devendose recorrer aos demais subsidiariamente Alguns autores citam ainda o princípio da alternatividade que teria aplicação quando a norma penal previsse vários fatos alternativamente como modalidade de um mesmo crime No entanto tais hipóteses constitutivas de crimes de múltipla ação não configuram concurso de normas pois em verdade há uma única norma a ser aplicada que é precisamente a que descreve a ação múltipla ou de conteúdo variado a exemplo do art 33 da Lei nº 1 134306 que prevê mais de uma dezena de formas pelas quais é possível praticar o crime de tráfico de droga sendo que o cometimento de uma ou mais ações constitui crime único v g exportar importar vender fornecer etc E a prevalência de um determinado princípio não afasta necessariamente a inci dência de outros que podem ser igualmente importantes para a solução do conflito de normas Aliás se é certo conforme se verá que aquele que realiza o tipo especial tam bém realiza o tipo geral embora a recíproca não seja verdadeira razão pela qual existe uma relação lógica entre continente e conteúdo uma vez que o tipo especial contém o tipo geral é de concluirse que o princípio da especialidade implica sempre uma rela ção de consunção Enfim toda norma especial é uma norma consuntiva mas nem toda norma consuntiva é uma norma especial Por fim há quem entenda que não obstante o reconhecimento da unidade de cri me por força da consunção o delito consumido pode ser considerado para fins de fi xação e agravamento da pena162 Temos porém que o princípio que veda a dupla sub sunção do fato impede igualmente como regra geral que o tipo absorvido possa ser tomado em conta para fins de aplicação da pena do delito que prevalecer Afinal o que não é admitido pela via direta não pode sêlo indiretamente bis in idem 92 Princípio da especialidade Dizse que uma norma é especial em relação à outra dita geral quando além dos requisitos que esta prevê contém ela outros elementos chamados especializantes ausentes na descrição do tipo penal genérico de tal modo que aquele que realiza o tipo especial realiza necessariamente o tipo geral embora a recíproca não seja verdadei ra163 Havendo pois essa relação de generalidade e especialidade a norma especial prevalecerá sobre a geral ex specialis derogat legi generali Existe portanto uma relação lógica entre continente e conteúdo uma vez que o tipo especial contêm o tipo geral164 É o que ocorre entre os crimes de homicídio norma 162 Nesse sentido Pedro Jorge Costa A consunção no direito penal brasileiro Porto Alegre Sérgio Antônio Fabris Editor 2012 163 Mir Puig Derecho penal cit p 678 164 Santos Juarez Cirino dos Direito Penal parte geral Curitiba ICPC Lumen Juris 2006 p 4 1 8 124 1 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS geral e infanticídio norma especial em que este além de conter o matar alguém referido no art 121 do CP alude ainda às circunstâncias especiais especializantes o próprio filho sob a influência do estado puerperal e durante o parto ou logo após CP art 123 inexistentes no art 121 Igualmente há especialidade entre tipos penais qualificados e privilegiados norma especial em relação ao tipo básico norma geral de que derivam v g entre o furto simples e o qualificado por emprego de chave falsa Em geral também as leis penais especiais descrevem tipos especiais em face do pró prio Código Penal por isso que prevalecem sobre este último ordinariamente 93 Princípio da subsidiariedade Existe relação de subsidiariedade entre tipos penais quando visando a proteger o mesmo bem jurídico a lei descreve graus diversos de violação havendo assim um tipo principal e outro subsidiário O princípio da subsidiariedade pressupõe portanto a existência de um tipo principal que criminaliza a ofensa mais grave e um acessório que tipifica a ofensa menos grave relativamente ao mesmo bem jurídico Há assim uma espécie de hierarquização valorativa de bens jurídicos ou como diz Honig há diferentes proposições penais protegendo o mesmo bem jurídico em di ferentes fases de ataque165 razão pela qual a norma subsidiária soldado de reserva conforme a expressão de Hungria 166 só será aplicada quando não couber a aplicação da principal de sorte que o tipo fundamental prevalecerá sobre o secundário ex pri maria derogat legi subsidiariae Nesse sentido há relação de subsidiariedade entre os crimes dolosos e culposos entre os consumados e tentados entre os de dano e de peri go e entre os qualificados e simples hipóteses em que os tipos subsidiários culposos tentados de perigo e simples só são aplicáveis quando a conduta não puder configurar o delito principal e mais grave dolosos consumados de dano e qualificados Essa relação de subsidiariedade tanto pode ser expressa quando a lei explicita mente condiciona a aplicabilidade da norma subsidiária à inaplicabilidade da norma principal v g o art 132 do CP depois de descrever o fato comina pena de prisão de três meses a um ano se o fato não constitui crime mais grave quanto tácita quando não existindo previsão legal expressa tal decorrer de interpretação dos res pectivos tipos 94 Princípio da consunção ou absorção Existe relação de consunção ou absorção entre os tipos penais sempre que o con teúdo de um já se achar necessariamente inserido noutro razão pela qual o crime me nos amplo constitui em verdade parte da realização do tipo mais amplo Nesse caso como escreve Hungria os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie mas de minus e plus de conteúdo e continente de parte e todo de meio e fim de fração e 165 Citado por Jescheck Tratado cit p 672 166 Hungria Nelson Comentários ao Código Penal Vol I Tomo 1 Rio de Janeiro Forense 1 958 p 139 125 PAULO Ql E I ROZ inteiro167 É o que ocorre por exemplo entre o crime de dano CP art 163 e o crime de furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo art 155 4º I en tre o crime tentado e o consumado entre a violação de domicílio art 1 50 e o furto entre a lesão corporal art 129 e o homicídio art 121 entre o sequestro art 148 e a extorsão mediante sequestro art 159 hipóteses em que o crime de furto absorve o dano e a violação de domicílio o consumado o tentado o homicídio a lesão a extor são o sequestro Lex consumens derogat legi consumptae Logicamente a absorção de um crime por outro só poderia ocorrer quando o cri me mais amplo cominasse pena mais grave do que o menos amplo até porque a maior gravidade deveria ser avaliada em princípio segundo um critério objetivo a pena co minada No entanto pode ocorrer de um crime menos grave absorver um mais grave Nesse exato sentido dispõe a Súmula 17 do STJ que quando o falso se exaure no estelionato sem mais potencialidade lesiva é por este absorvido hipótese em que um crime teoricamente menos grave estelionato previsto no art 171 do CP cuja pena va ria de 1 a 5 anos de reclusão pode absorver o mais grave v g falsidade de documento público previsto no art 297 do CP apenado com reclusão de 2 a 6 anos 168 Obviamente que apesar disso um crime não pode ser absorvido por simples con travenção E para configurarse a consunção é necessário que um dos tipos legais em concur so contemple totalmente o desvalor e a reprovação que o ordenamento jurídico atribua à conduta de que se trata porque se a considera apenas em sua maior parte sendo necessária ainda a combinação de outra lei para apreciar sua totalidade não haverá em princípio concurso de tipos consunção impura169 Normalmente há relação de consunção entre um crimemeio e um crimefim mo tivo pelo qual o ante fac tum é impunível sempre que constituir uma etapa necessária da realização do tipo principal a exemplo da violação de domicílio relativamente ao furto e do porte ilegal de arma quanto ao roubo circunstanciado O mesmo ocorre em geral no caso de post factuni impunível visto implicar ordinariamente o exaurimento de um crime já consumado Assim por exemplo a condução ou a ocultação do veículo furtado ou roubado pelo próprio ladrão que não responde por receptação na modali dade conduzir ou ocultar ou o uso de documento falso pelo próprio falsário que não responde por uso de documento falso mas apenas por falsificação de documento É certo que o fato posterior post factum deixará de ser punido quando se inserir no curso normal de desenvolvimento da intenção do agente ou quando já não repre sentar maior dano para o bem jurídico anteriormente violado Assim a punição do 167 Comentários cit p 140 168 No sentido do texto Jakobs cit 169 Rosal M Cobo Dei Anton T Vives Derecho Penal parte general Valencia Tirant lo Blanc 1 996 p 162 1 26 1021 P RI NCÍPIOS PENAIS primeiro crime absorve a dos últimos170 Na verdade os atos posteriores impunes cons tituem uma forma de assegurar ou realizar um benefício obtido ou perseguido por um fato anterior sem lesionar nenhum bem jurídico distinto daquele antes atingido sem também aumentar o dano já produzido Ademais os diversos fatos devem estar numa mesma linha de progressão no ataque a um mesmo bem jurídico protegido pois do contrário já não se poderá falar de conflito de normas consunção senão de concurso de crimes v g furto e receptação por indução falsificação e posterior uso de docu mento falso falsificação de moeda com posterior introdução em circulação furto e estelionato em razão da venda pelo agente da coisa furtada etc Como se vê os fatos posteriores geralmente são mero exaurimento ou aproveitamento do crime razão pela qual não são puníveis autonomamente Finalmente há consunção nos fatos típicos acompanhantes171 que se verificam quando um resultado eventual previsto para um determinado tipo penal inclui já em si o desvalor delitivo de outro de modo que o legislador fixou a pena do delito que normalmente supõe o fato acompanhante em tese mais gravemente v g lesões leves resultantes da violência exercida no roubo e no estupro 941 Crime complexo ou composto Existe também consunção nos casos de crimes complexos ou compostos que ocorrem quando o tipo alude a mais de uma lesão são crimes que resultam enfim da fusão de mais de um tipo penal exemplo roubo art 157 que deriva da fusão de furto art 155 constrangimento ilegal art 146 latrocínio que decorre da fusão de roubo homicídio Em tais casos haverá uma única infração penal qual seja aquela resultante da união dos tipos autônomos mais ampla a qual absorverá as demais por já compreendêlas na sua descrição típica172 942 Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito Semelhantemente haverá absorção nos assim chamados crimes progressivos nos quais o agente pretendendo cometer crime mais grave passa num mesmo contexto da ação de um crime menos grave para outro mais grave violando o mesmo bem jurídico 1 70 Francisco de Assis Toledo Ob cit p 54 1 7 1 Zaffaroni Eugenio Raúl Pierangeli José Henrique Manual de Direito Penal brasileiro parte geral 4 ed São Paulo RT 2002 p 735 Fragoso Heleno Cláudio Lições de Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro Forense 1994 p 359 172 A exata situação sistemática de tais crimes é controvertida Para Jakobs tratase de uma manifestação do princípio da especialidade na modalidade especialidade em virtude da intensidade do fato típico Jakobs ob cit p 1 053 No mesmo sentido Welzel Hans Derecho Penal Aleman 4 edición Chi le Editorial Juridica de Chile 1993 p 276 Porém Regis Prado Curso de Direito Penal Brasileiro Vol I 5 ed São Paulo RT 2004 p 232233 e Fragoso Lições de Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 1 994 p 358 entendem que a questão deve ser resolvida pela subsidiariedade implícita Já Asúa cuja classificação é adotada por Damásio de Jesus ob cit p 1 16 defende que o princípio da consunção é que é aplicável ao crime complexo 1 27 PAULO QJEIROZ v g agride a vítima objetivando matála o que de fato acontece caso em que haverá o crime mais grave homicídio e não lesão corporal existindo relação de meio lesões e fim homicídio O mesmo ocorre absorção do crime menos grave pelo mais grave na chamada progressão criminosa em sentido estrito em que o autor visa inicialmente a praticar um crime de menor gravidade e depois de conseguilo resolve continuar a agressão para consecução de um resultado mais gravoso v g quer só lesionar a vítima mas decide matála a seguir Assim a diferença básica entre crime progressivo e progressão criminosa é que nesta há uma mutação no elemento subjetivo do tipo dolo ocasionada por uma su cessão de impulsos volitivos diversos Já no crime progressivo existe unidade de de sígnios tendo em vista que a intenção do autor é única desde o início do iter criminis qual seja praticar o fato mais grave ainda que para isso tenha que cometer delitos de menor gravidade 95 Primazia do princípio da especialidade Finalmente há quem entenda como Jakobs que todos os possíveis conflitos de normas podem ser resolvidos pelo princípio da especialidade unicamente uma vez que a especialidade é uma forma de manifestação da primazia de uma lei sobre ou tra 173 a qual compreende assim quatro subdivisões 1 ª especialidade em virtude da intensidade do fato típico que abrange as formas qualificadas privilegiadas e o crime complexo 2ª especialidade em virtude de concreção da consumação ou de intensidade do resultado hipóteses de subsidiariedade 3ª especialidade relativa ao fato concomitante hipóteses de consunção e 4ª especialidade em virtude de intervenção prévia É que segundo Jakobs o mé todo para evitar dupla punição consiste em aplicar somente aquela figura do delito que regula o caso concreto no contexto mais completo método que se baseia no princípio hermenêutico de que ceteris paribus uma expressão con creta de conteúdo mais amplo abrange o menos amplo174 1 73 Jakobs Derecho penal cit p 1 053 1 74 Jakobs Derecho penal cit p 1 050 1 28 1 03 j A LEI PENAL NO TEMPO Sumário 1 Princípio da legalidade e consectários lógicos anterioridade e irretroati vidade da lei penal mais severa 1 1 Introdução 2 Hipóteses de irretroatividade 2 1 Neocriminalização novatio legis incriminadora 22 Lei nova mais severa novatio egis in pejus 23 Irretroatividade da jurisprudência 3 Hipóteses de retroatividade 3 1 Descriminalização abolitio criminis 3 1 1 Abolitio criminis temporalis 32 Lei penal mais branda novatio legis in mellius 4 Combinação de leis penais ex tertia 5 Sucessão de leis penais a lei intermediária 6 Lei temporária e excepcional 7 Irretroa tividade da lei processual 8 Irretroatividade da Lei de Execução Penal 9 Leis penais em branco 1 O Aplicação da lei e vacatio legis 1 1 Tempo do crime 1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E CONSECT ÁRIOS LÓGICOS ANTE RIORIDADE E IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS SEVERA 11 Introdução De acordo com o princípio da legalidade compreensivo da reserva legal taxati vidade e irretroatividade da lei mais severa não há crime sem lei que o defina nem pena sem cominação legal CF art XXXIX CP art 1 Mas o princípio seria gran demente inútil se a nova lei pudesse retroagir e incidir sobre fatos consumados antes da sua entrada em vigor A anterioridade e a irretroatividade da lei penal são por isso consequência lógica do princípio já que como disse Hobbes se a pena supõe um fato considerado como transgressão à lei o dano praticado antes de existir a lei que não o proibia não é uma pena mas um ato de hostilidade pois antes da lei não existe transgressão à lei1 Por isso que a Constituição e o Código Penal dispõe que não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia com inação legal de sorte que a formulação completa do princípio da legalidade compreende necessariamente a anterioridade da lei nullum crimen nulla poena sine praevia lege e a sua irretroati vidade Em consequência a nova lei só alcançará como regra fatos posteriores à sua entrada em vigor Exatamente por isso a Constituição art 5º XL e CP art 2º diz que a lei não re troagirá salvo para beneficiar o réu de modo que sempre que a lei penal dispuser des favoravelmente ao réu seja criminalizando novos comportamentos seja tratandoos mais severamente terá efeito irretroativo Contrariamente a lei retroagirá sempre que dispuser favoravelmente ao acusado seja descriminalizando o fato abolitio criminis seja tratandoo mais suavemente A razão a autorizar a exceção é já conhecida sendo o princípio da legalidade uma garantia do indivíduo acusado ou não seu fundamento político e histórico inclusive é prevenir excessos por parte do Estado no exercício do 1 Leviatã São Paulo Abril Cultural 1992 XXVIII 129 PAULO QlEIROZ poder punitivo de sorte que nas hipóteses de admissão de retroatividade não existe ofensa à pretensão garantidora que o princípio encerra Ao adotar os princípios da anterioridade e da irretroatividade das leis penais objetivase ademais evitar que os seus destinatários sejam surpreendidos por tipos penais que incriminem fatos novos ou que os agravem de modo que tais garantias constituem também uma exigência infranqueável de segurança jurídica Por fim se a finalidade principal do direito penal é a prevenção subsidiária de delitos seguese que tais infrações devem ser conhecidas por seus destinatários já ao tempo do seu cometimento e não depois haja vista que só assim podem as normas jurídicopenais advertir e prevenir 2 2 HIPÓTESES DE IRRETROATIVIDADE 21 Neocriminalização novatio legis incriminadora Antes da lei não existe violação à lei Justamente por isso sempre que a lei criar novas infrações penais novatio legis incriminadora passando a criminalizar compor tamentos que até então não o eram isto é eram jurídicopenalmente irrelevantes sua aplicação se limitará às situações consumadas a partir de sua entrada em vigor Nesses casos os novos tipos neocriminalizadores não poderão alcançar as pessoas que ante riormente à sua vigência tenham incorrido na prática de tais infrações Sua aplicação darseá em consequência exclusivamente em relação aos fatos ocorridos a partir da sua entrada em vigor Desnecessário dizer que o princípio também é aplicável à lei que crie nova contra venção a impedir a incidência retroativa 22 Lei nova mais severa novatio legis in pejus Não poderá retroagir tampouco a norma penal que de qualquer modo der trata mento mais severo a condutas já punidas pelo direito penal seja criminalizando o que antes constituía simples contravenção seja impondo disciplina mais gravosa hipótese em que se limitará a reger as infrações consumadas a partir de sua efetiva vigência Exemplo disso é a Lei de Crimes Hediondos Lei nº 807290 que elevando determi nados crimes à categoria de hediondos latrocínio extorsão mediante sequestro etc conferiulhes tratamento mais severo como por exemplo aumentando as penas co minadas dificultando a progressão de regime negando a possibilidade da concessão de graça anistia e indulto etc No mesmo sentido é em princípio a Lei 113432006 relativamente à pena cominada ao tráfico de droga de 3 a 12 anos de reclusão para 5 a 15 anos de reclusão não podendo retroagir portanto 2 Como escreve GarcíaPablos seja ou não seja inerente à própria estrutura da lei o certo é que a proibi ção de retroatividade de algum modo vem reclamada pelos conceitos de delito culpabilidade e pena e por poderosas exigências políticocriminais Derecho penal cit p 247 130 1031 A LEI P ENAL NO TEMPO 23 Irretroatividade da jurisprudência Discutese se o princípio da irretroatividade seria também aplicável à nova orien tação da jurisprudência que dá às normas penais interpretação desfavorável ao réu ou se é exclusividade da lei Imaginese por exemplo que o Supremo Tribunal Federal revendo posicionamento adotado por longos anos no sentido da falta de tipicidade de uma determinada conduta passe a considerála criminosa Perguntase então quem praticou semelhante comportamento antes da mudança de orientação jurisprudencial responderia por crime isto é a nova orientação retroagiria em prejuízo do réu De acordo com Roxin para quem a proibição de irretroatividade se refere à lei exclusivamente se o Tribunal interpreta uma norma de modo mais desfavorável para o acusado que o havia feito a jurisprudência anterior este tem de suportálo pois con forme o seu sentido a nova interpretação não é uma punição ou agravação retroativa mas a realização de uma vontade da lei que já existia desde sempre e que somente agora foi corretamente reconhecida 3 Já Odone Sanguiné sustenta com razão que a posição mais correta consiste em solucionar essa questão da perspectiva constitucional estendendo a proibição de re troatividade às alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu postura que se am para por um lado na ideia de segurança jurídica como fundamento do princípio da irretroatividade e ademais na proposta de revisão do vetusto significado da separação dos poderes por outro na harmonização dessa doutrina com o princípio de determi nação a fim de substituir a posição tradicional por uma visão superadora da pretendida distinção absoluta entre a função da lei e a função da jurisprudência penal4 É que a lei e sua interpretação escreve Sanguiné se encontram em um vínculo necessário de complementação de modo que a realidade jurídica do princípio da lega lidade só será atendida quando para determinado tipo penal vigore a mesma interpre tação que lhe era dada à época do cometimento do fato e que corresponda à verdadeira pretensão normativa5 Ademais se conforme temos sustentado o direito não preexiste à interpretação mas é dela resultado motivo pelo qual a interpretação constitui o ser do direito segue se logicamente que a lei e sua interpretação são inseparáveis logo o discurso sobre a retroatividade ou não da lei deve ser exatamente o mesmo também aqui de sorte a não ser admitida a retroatividade da nova jurisprudência contrária ao réu Afinal em úl tima análise o direito é o que os juízes e tribunais mas não só eles dizem que é visto que só é direito o que o poder reconhece como tal especialmente o Poder Judiciário Pela mesma razão alterações da jurisprudência que favoreçam o réu devem re troagir de sorte a admitir a revisão criminal inclusive Assim por exemplo a decisão 3 Derecho penal cit p 1 65 4 lITetroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal Revista Brasileira de Ciências Criminais ano 8 n 3 1 p 1 54 julset 2000 5 rretroatividade Revista cit p 162 131 PAULO ÜlJEIROZ do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 807290 quanto à vedação de progressão de regime para os crimes hediondos e afins 3 HIPÓTESES DE RETROATIVIDADE 31 Descriminalização abolitio criminis Se a intervenção jurídicopenal só se justifica quando necessária para a segurança dos cidadãos seguese que seus efeitos não podem prevalecer sempre que o Estado renunciar ao poder de punir por meio da abolição do crime abolitio criminis Assim com a descriminalização do fato todos os efeitos jurídicopenais principais e acessó rios cessam com a cessação da sua causa a norma penal incriminadora revogada Em consequência o inquérito ou o processo será arquivado sendo posto em liberdade quem se achar preso de modo que a partir da abolição do crime todos os efeitos pe nais desaparecem como se o crime jamais tivesse existido O Código Penal art 2º é claríssimo em afirmar ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória transitada em julgado Exemplo disso foi a descriminalização do adulté rio e da sedução Convém notar que a descriminalização embora resulte ordinariamente de lei nova que revoga total ou parcialmente lei anterior pode também resultar de decisão judicial sempre que o juiz ou tribunal considerar que um determinado fato não con figura crime ou contravenção a exemplo do que ocorre com a sentença que declara a inconstitucionalidade de tipos penais bem como a que adota o princípio da insignifi cância e assim decreta a atipicidade do fato Não se deve confundir a abolição do crime com a simples revogação do tipo penal incriminador É que por vezes o legislador promove a revogação de um tipo legal de crime mas preserva seu caráter criminoso noutro Exemplo disso é a recente Lei nº 120152009 que embora tenha revogado o art 214 do Código Penal atentado violento ao pudor deu nova e mais ampla redação ao artigo 213 estupro que passou a com preender o antigo atentado violento ao pudor Enfim houve simples fusão dos antigos crimes de estupro e atentado num só tipo o novo art 213 de sorte que a incriminação antes contida no revogado art 214 migrou para o atual art 213 A expressão descriminalizar abolir o crime tal como o étimo da palavra indica significa retirar de certa conduta o caráter de criminosa mas não o caráter de ilicitu de já que o direito penal não constitui o ilícito caráter subsidiário logo não pode desconstituílo consequentemente Por isso que embora não subsistam quaisquer dos efeitos penais v g reincidência permanecem todas as consequências não penais ci vil administrativa do fato como a obrigação civil de reparar o dano que independe do direito penal 132 I031 A LEI PENAL NO TEMPO 311 Abolitio criminis temporalis Alguns autores chamam abolitio criminis temporalis6 os casos em que a lei pos sibilita ao agente regularizar num prazo determinado a sua situação jurídicopenal isentandoo de responsabilidade Exemplo disso é o art 30 da Lei nº 108262003 que permüiu aos possuidores de arma de fogo não registrada regularizar no prazo de 180 dias o respectivo registro junto ao órgão competente De modo semelhante dispôs a Lei nº 1 17062008 O Superior Tribunal de Justiça STJ editou inclusive a Súmula 5 13 que dis põe a abolitio criminis temporária prevista na Lei n 108262003 aplicase ao cri me de posse de arma de fogo de uso permitido com numeração marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado suprimido ou adulterado praticado somente até 23102005 Mas não é exato falar em princípio de abolitio criminis porque a rigor não existe infração penal a punir pois o fato praticado é formalmente atípico É que o crime do art 12 da referida lei posse irregular de arma por exemplo só se realiza se o agente possuir ou mantiver sob sua guarda arma de fogo em desacordo com determinação legal ou regulamentar Exatamente por isso se de conformidade com a própria lei o sujeito vem a regu larizar no prazo legal o porte de arma o tipo não chegará a se realizar plenamente por falta de um seu elemento normativo essencial Afinal nos casos de lei penal em branco como aqui não há infração penal sempre que o agente atender à norma a que o tipo remete lei regulamento portaria etc Tratarseá portanto mais exatamente de um comportamento atípico logo não cabe falar de abolitio criminis visto que não existe crime punível A abolição de crime pressupõe logicamente o cometimento de um crime isto é fato típico ilícito e culpá vel Só haverá abolitio criminis relativamente ao agente que tendo cometido crime na vigência de uma determinada lei for beneficiado por lei posterior a exemplo da Lei nº 1 17062008 Evidentemente que a abolição do delito produz efeitos independentemente de ser definitiva ou temporária mesmo porque nem a Constituição nem o Código Penal fa zem distinção no particular nem se compreenderia que o fizessem 32 Lei penal mais branda novatio legis in mellius A norma penal retroagirá sempre que dispuser mais favoravelmente ao infrator É o que dispõe o Código Penal art 2º parágrafo único a lei posterior que de qual quer modo favorecer o agente aplicase aos fatos anteriores ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado A lei mais benigna é em princípio a 6 Rogério Greco Curso de Direito Penal Parte Geral Niterói 2009 1 1 ed p 1 13 1 33 PAULO QlJEIROZ que menos severamente incide sobre a liberdade e o patrimônio do réu7 Assim por exemplo se atenua a pena cominada ou passa a admitir determinados benefícios le gais em seu favor não permitidos anteriormente como admissão de penas alternativas progressão de regime ou que de qualquer outro modo o favoreça Naturalmente que para decidir sobre qual é a lei mais favorável poderá não ser suficiente a consideração da lei em abstrato razão pela qual o juiz terá de tomar em conta as múltiplas variáveis do caso e os resultados concretos para o autor procedendo quando necessário e cabível à individualização judicial da pena inclusive Assim por exemplo a nova Lei de Drogas embora tenha aumentado a pena cominada para o trá fico que era de 3 a 12 anos de reclusão para de 5 a 15 anos de reclusão previu que o réu primário sem antecedentes e sem envolvimento com organização criminosa fará jus à redução da pena em 16 a 23 benefício que não existia na lei anterior Logo para tais réus e somente para eles a nova lei é mais branda devendo prevalecer sobre a lei anterior Mas frisese só é mais favorável se não for admitida a combinação de leis conforme veremos mais à frente Se houver dúvida sobre qual é a lei mais favorável para o infrator quer se consi derando a norma abstrata quer concretamente nada impede apesar das opiniões em sentido contrário que se consulte o próprio acusado em cujo favor milita a garantia constitucional Aliás o Código Penal espanhol 1996 assim dispõe no caso de dúvida sobre a determinação da lei mais favorável será ouvido o réu art 2º 2 Também o nosso Código Penal Militar art 2º prevê que para se reconhecer qual a mais favo rável a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato Finalmente a definição da autoridade judiciária competente para decidir sobre a lei mais favorável dependerá do andamento do processo se estiver na fase de conheci mento competente será o juiz de primeiro grau se em grau de recurso será competen te o respectivo tribunal se o processo já se encontrar em fase de execução será com petente o juiz da execução penal conforme dispõe a Súmula 611 do STF transitada em julgado a sentença condenatória compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna Mas nem sempre a definição da autoridade judiciária competente será tão simples podendo haver necessidade de submeter a questão à apreciação do tribunal se a matéria transcender a competência dos juízes de primeiro grau inclusive do juiz da execução 4 COMBINAÇÃO DE LEIS PENAIS LEX TERTIA No caso de sucessão de leis pode ocorrer de a nova lei ser em parte favorável e em parte desfavorável ao réu hipótese que tem como exemplo recente a revogação da Lei nº 636876 pela Lei nº 1 13432006 relativamente ao tráfico ilícito de droga Com efeito apesar de a nova lei ter aumentado a pena cominada ao crime de 3 a 12 anos de 7 Antônio José da Costa e Silva Comentários cit 1 34 I031 A LEI PENAL NO TEMPO reclusão para 5 a 15 anos de reclusão passou a admitir uma causa de redução de pena que não existia na lei revogada de 16 a 23 para o réu primário sem antecedentes criminais e sem envolvimento com organização criminosa Discutese então se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da Lei 636876 revogada poderia ficar sujeito àquela pena inicial 3 a 12 anos com a redução de pena da nova lei por lhe ser mais favorável havendo posicionamento da doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos isto é contrário e a favor da combina ção 8 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam que a combinação implicaria criação de uma terceira lei ex tertia e o juiz estaria assim usurpando função própria do legislador em afronta aos princípios de legalidade e divisão de poderes Pensamos que a assim chamada combinação é em verdade um caso de retroati vidade parcial da lei já que a nova lei sempre pode ser total ou parcialmente favorável ao réu podendo inclusive ser benéfica na parte penal e prejudicial na parte processual ou viceversa Pois bem se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu é evidente que re troagirá de forma integral mas se o for em parte então o caso é de retroatividade parcial da nova lei Parece claro que se deve retroagir quando for integralmente favo rável tal deverá ocorrer com maior razão quando o for apenas em parte em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior pouco importando o quanto de benefício encerre afinal se a lei deve retroagir no seu todo quando mais branda o mesmo há de ocorrer quando somente o for em parte Ademais o Código art 2º pa rágrafo único prevê a retroatividade quando a lei posterior favorecer o agente de qual quer modo isto é incondicionalmente sempre que a nova lei acarretar alguma espécie de atenuação do castigo E se não for admitida a retroatividade parcial da lei nova negarseá vigência ao princípio constitucional da retroatividade da lei mais favorável9 Ademais aqueles que se opõem a assim chamada combinação de leis partem de uma perspectiva hermenêutica superada pois pressupõem que a interpretação depende do direito e não o contrário que é o direito que depende da interpretação afinal a 8 Admitindo a combinação Frederico Marques Francisco de Assis Toledo Damásio de Jesus Cezar Roberto Bitencourt Juarez Cirino dos Santos Andrei Schmidt entre outros Contrariamente Nélson Hungria Aníbal Bruno Heleno Cláudio Fragoso etc 9 No sentido do texto Ney Moura Teles assinala que se a Constituição Federal manda a lei penal mais benéfica retroagir sempre o que se pode afamar é que apenas o dispositivo benéfico retroage irre troativo o mais severo uma vez que a pretensão da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica e não o texto legal integral a não ser que fosse ele integralmente mais favorável Se num texto há vários dispositivos uns benéficos outros prejudiciais é claro que só aqueles retroagem Ao combinarem os dispositivos de duas leis o juiz não cria uma terceira lei mas apenas obedece ao preceito consti tucional maior que não manda a lei retroagir por inteiro mas dete1mina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier favorecer o réu Direito Penal Pai1e Geral S Paulo Atlas 2006 1 35 PAULO QEI ROZ interpretação é a forma mesma de realização do direito vide capítulo sobre o conceito de direito e sobre direito e interpretação Não existe portanto direito fora ou além da interpretação Porque a interpretação é o alfa e o ômega o começo e o fim a vida e a morte do direito Apesar disso o STJ aprovou a Súmula 501 contrária à mencionada combinação É cabível a aplicação retroativa da Lei 1 13432006 desde que o resultado da incidên cia das suas disposições na íntegra seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n 63681976 sendo vedada a combinação de leis Também assim decidiu o plenário do STF por maioria sessão de 0711112013 5 SUCESSÃO DE LEIS PENAIS A LEI INTERMEDIÁRIA Em havendo sucessão de leis penais questionase a possibilidade de aplicação de uma lei intermediária mais favorável ao réu ainda que não seja nem a lei da época do cometimento do crime nem a do seu julgamento Assim por exemplo se ao tempo da prática do delito vigorava a lei A sucedida pela lei B estando em vigor finalmente quando do julgamento a lei C sendo a lei B lei intermediária a mais favorável Em tal hipótese não há dúvida aplicase a lei mais benéfica vale dizer a lei B lei inter mediária ainda que não seja nem a lei do tempo do fato nem a do seu julgamento Enfim prevalecerá sempre a norma mais favorável independentemente de ser a lei vigente à época do crime à época do seu julgamento ou intermediária lei que vigo rou entre uma data e outra 6 LEI TEMPORÁRIA E EXCEPCIONAL O Código art 3º dispõe que a lei excepcional ou temporária embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que as determinaram aplicase ao fato praticado durante sua vigência A lei temporária é aquela cujo prazo de vigên cia vem nela prefixado e excepcional é a lei editada para atender a situações anormais ou emergenciais guerra calamidade pública etc enquanto persistirem as razões que a determinaram Diversamente das demais a lei excepcional ou temporária produz efeitos mesmo após o advento da cessação de sua vigência relativamente às infrações cometidas duran te a sua existência e não antes ou depois dela visto que antes da lei ou depois da lei ex tinção da lei não existe violação à lei Assim por exemplo se o agente praticou delito previsto numa lei temporária ou excepcional continuará respondendo mesmo depois de cessada a sua vigência ao respectivo inquérito ou processo mantida eventual prisão e quando houver todos os efeitos da sentença penal condenatória persistirão As leis temporárias e excepcionais são pois ultrativas visto que valem para além do tempo legal de sua existência A razão prática a legitimar a ultraatividade desse tipo de lei é a seguinte se tais normas ao final de sua duração perdessem sem mais o seu poder coercitivo é pouco provável que os seus destinatários as tomassem a sério e pois seriam incapazes de motiválos função motivadora da norma Justificarseia a ultraatividade em nome da 1 36 I OJ I A LEI PENAL NO TEMPO autoridade da lei razão pela qual subsistem todos os seus efeitos mesmo após a cessa ção de sua vigência relativamente àqueles crimes praticados durante a sua existência No entanto discutese atualmente a constitucionalidade não recepção do art 3º do Código que prevê a ultraatividade das leis excepcionais e temporárias10 Temos que há realmente violação ao princípio da retroatividade apesar de não ser o caso propriamente de sucessão de leis penais no tempo mas de decurso puro e simples do prazo legal de sua vigência É que o advento do termo final da lei excepcional ou temporária implica automa ticamente a descriminalização da conduta abolitio criminis e pois nenhum efeito pode produzir desde então mesmo em relação àqueles que cometeram crime durante a sua vigência tal como ocorre com as leis normalmente editadas Ademais quando o prazo legal de duração da lei sobrevém o Estado renuncia ainda que implicitamente ao poder de punir não se justificando também por isso a penalização dos infratores sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade inclusive afinal a pena já não é necessária para prevenção geral e especial de novos delitos E o só argumento prá ticoutilitário de lhes assegurar a função motivadora não é suficiente para legitimar a pretendida ultraatividade Finalmente é certo que a Constituição não previu nenhuma exceção no particular isto é nada dispôs sobre a ultratividade da lei temporária ou excepcional Notese que a discussão tem a ver não com a constitucionalidade da lei mesma excepcional ou temporária mas com a eficácia ultrativa que lhe é tradicionalmente atribuída 7 IRRETROATIVIDADE DA LEI PROCESSUAL O Código de Processo Penal art 2º dispõe que a lei processual penal aplicar seá desde logo sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei an terior Justamente por isso a doutrina considera em geral que a nova lei processual penal deve ser aplicada ao processo imediatamente podendo incidir sobre crime come tido anteriormente à vigência ainda que em prejuízo do réu Assim por exemplo se uma determinada lei passasse a considerar como hediondo crime que não o era até en tão aumentandolhe a pena cominada e além disso proibisse a liberdade provisória deveria ser aplicada imediatamente quanto à parte processual proibição de liberdade provisória embora o mesmo não pudesse ocorrer quanto à parte penal equiparação a crime hediondo com aumento de pena Também por isso a recente extinção do recurso de protesto por novo júri atingiria todos os processos em curso independentemente da data em que o delito foi praticado Parecenos porém que a irretroatividade da lei penal deve também compreender pelas mesmas razões a lei processual penal apesar do que dispõe o art 2º do Código de Processo Penal que determina a aplicação imediata da norma uma vez que deve 10 No sentido da não recepção Andrei Schmidt ZaffaroniBatista Juarez Cirino dos Santos e Gamil Fõppel 137 PAULO O EIROZ ser reinterpretado à luz da Constituição Com efeito sempre que a nova lei processual for prejudicial ao réu porque suprime ou relativiza garantias v g adota critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares veda a liberdade provisória res tringe a participação do advogado etc limitarseá a reger as infrações penais consu madas após a sua entrada em vigor afinal também aqui a lei deve cumprir sua função de garantia de modo que por norma processual menos benéfica se há de entender toda disposição normativa que importe em diminuição de garantias e por mais benéfica a que implique o contrário aumento de garantias processuais11 Contrariamente sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu v g passa a admitir a fiança amplia a participação do advogado aumenta os prazos de defesa prevê novos recursos etc terá aplicação retroativa Tratandose de normas meramente procedimentais que não impliquem aumento ou diminuição de garantias como ocorre com regras que modificam a competência ou alteram a forma de intimação terão igualmente aplicação imediata CPP art 2º alcançando o processo no estado em que se encontra e respeitados os atos validamente praticados Exatamente por isso se por exemplo for abolida a prerrogativa de foro para determinada autoridade o inquérito ou ação penal serão imediatamente remeti dos para o novo juízo ou tribunal competente respeitados os atos já praticados Se a sentença já houver transitada em julgado procederseá à sua execução pura e simples Em conclusão parecenos irrelevante a mui recorrente distinção entre lei pe nal e lei processual penal12para fins de retroatividade da lei uma vez que ambas cumprem a mesma função políticocriminal de proteção do mais débil o acusado em face do mais forte o Estado além de que o Direito é uno não podendo por isso ser garantista num momento penal e antigarantista noutro processual Dito de outro modo no que toca ao tema da retroatividade da lei o que importa numa perspectiva garantista não é a natureza jurídica da norma se penal se processual 1 1 No sentido do texto Aury Lopes Júnior Introdução crítica ao Processo Penal 4 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 Também assim Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya Introdução ao Direito Penal Fundamentos para um Sistema Penal Democrático Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 1 2 Não é exato dizer portanto com Frederico Marques Nada mais condenável que esse alargamento da lei penal mais branda porquanto invade os domínios do direito processual em que vigoram diretrizes diversas no tocante às normas intertemporais Direito Penal é Direito Penal e processo é processo Um disciplina a relação material consubstanciada no jus puniendi e outro a relação instrumental que se configura no actum trium personarum do juízo seja civil ou penal É inaceitável assim como lembra Antón Oneca a aplicação das regras do Direito Penal intertemporal ao processo penal Se a lei penal não é lei processual e a lei processual não é lei penal as regras sobre a ação penal e as condições de procedibilidade queixa representação e requisição ministerial não se incluem no cânon constitucional do art 5º XL que manda retroagir em beneficio do réu tãosó a lei penal Tratado v 1 p 258 Na linha adotada por Frederico Marques pensam ainda Edilson Bonfim e Fernando Capez Direito penal parte geral São Paulo Saraiva 2004 p 1 86 para os quais a lei processual não se submete ao princípio da retroatividade em beneficio do agente tendo aplicação imediata nos termos do art 2º do CPP ainda que o crime lhe seja anterior e a situação do acusado agravada E Tourinho Filho que conclui entrando em vigor nova lei processual penal hoje ela terá aplicação mesmo aos processos que estejam em curso pouco importando sua severidade ou brandura Processo penal São Paulo Saraiva 1998 v 1 p 1 14 138 I031 A LEI PENAL NO TEMPO penal distinção nem sempre fácil mas o grau de garantismo que encerra Afinal e como assinala Binder tanto a infração penal quanto o modo de comprovação de sua existência e aplicação da pena têm de vir previstos antes do fato que motivou a intervenção jurídicopenal a fim de que o cidadão saiba claramente o que deve e o que não deve fazer como também o que será sancionado quais são as limitações do juiz e quais são suas garantias no processo penal13 Ou seja as regras do jogo hão de ser conhecidas antes mesmo de seu início as quais não poderão por isso ser modifi cadas depois de iniciado salvo para favorecer o réu Finalmente cuidandose de normas de conteúdo misto em parte favorável ao réu e em parte não vale o que já se disse sobre a irretroatividade da lei penal sendo tam bém admitida a combinação entre as normas anterior e posterior Mas não sendo isso possível em razão do caráter unitário da alteração levada a efeito a eleição da norma aplicável ao caso deverá ter em conta o significado políticocriminal prevalecente da reforma para os interesses concretos do acusado Exemplo disso foi dado pela Lei nº 9271196 que modificando a redação do art 366 do Código de Processo Penal deter minou que quando o réu citado por edital não comparecer em juízo nem constituir advogado ficarão suspensos o processo e o prazo prescricional Assim enquanto a parte relativa à suspensão do processo é favorável ao réu por implicar aumento de ga rantia pois a redação original do art 366 previa o prosseguimento do feito no caso de citação por edital e revelia a parte alusiva à suspensão do prazo de prescrição lhe era prejudicial pois antes a prescrição corria normalmente Num tal caso a combinação de normas é impossível uma vez que a suspensão do prazo prescricional pressupõe logicamente a suspensão do processo Daí ter decidido o STF corretamente que a reforma introduzida pela Lei nº 9271196 era irretroativa pois no todo era nociva aos interesses do acusado 8 IRRETROATIVIDADE DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL O mesmo deve ser dito quanto à Lei de Execução Penal porque também aqui se trata de preservar o caráter garantidor do princípio da legalidade em seus vários mo mentos de concretização cominação investigaçãoaplicação e execução da pena de modo que sempre que as modificações forem prejudiciais ao sentenciado não poderão retroagir só incidindo em consequência sobre os crimes consumados após a sua en trada em vigor Exemplo disso foi dado pela Lei nº 107922003 que alterando a Lei de Execução Penal Lei nº 721084 introduziu art 52 o regime disciplinar diferencia do14 que consiste no cumprimento da pena em condições extremamente penosas para 13 Introdução ao direito processual penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2003 p 99 14 Dispõe o referido art 52 que a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas sujeita o preso provisório ou condenado ao regime diferenciado Nesse caso o preso será recolhido em cela individual inciso II com direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol inciso TV de modo que só poderá ficar isolado por vinte e duas horas diárias 1 39 PAULO QjEIROZ o preso regime a ser imposto exclusivamente àqueles que cometeram delito após a süa vigência e não antes sob pena de violação ao princípio da legalidade da pena Aliás aqui mais do que no processo de conhecimento importa respeitar o aludido princípio pois é na execução penal que se verifica ordinariamente o maior déficit de proteção jurídica menor grau de garantismo tal é a relativização ou inexistência mes ma das garantias contraditório defesa técnica por advogado etc que o informam E onde há maior vulnerabilidade maiores devem ser os níveis de tutela legal maior grau de garantismo conforme o princípio da proporcionalidade E os princípios devem repercutir unitariamente porque apesar da distinção direi to penal processo penal e execução penal constituem fases de um mesmo fenômeno que é o exercício do poder punitivo estatal destinados a legitimar uma forma especial de violência a pena 9 LEIS PENAIS EM BRANCO As leis penais em branco expressão que procede de Karl Binding são os tipos cujo conteúdo por ser incompleto é integrado por outra regra jurídica lei decreto portaria ou como diz Assis Toledo são as que estabelecem a cominação penal mas remetem à complementação da descrição da conduta proibida para outras normas le gais regulamentares ou administrativas15 Exemplo disso são a norma do art 269 do CP omissão de notificação de doença e as normas que tipificam o tráfico de dro gas Ambas com efeito não dizem respectivamente quais são as tais doenças de no tificação compulsória nem quais são as drogas proibidas Silenciando a esse respeito sua eficácia fica condicionada às normas emanadas do Ministério da Saúde que lhes complementam o significado e conteúdo exatos esclarecendo quais são as doenças de notificação obrigatória e quais são as drogas que determinam dependência física ou psíquica A questão que as leis penais em branco suscitam no particular é saber na hipótese de revogação das normas que as complementam lei decreto regulamento se teriam ou não efeito retroativo Em verdade semelhante questionamento não oferece maiores dificuldades Com efeito salvo a hipótese de a norma complementadora ter conteúdo temporário ou ex cepcional tal como nas situações já estudadas e pelas mesmas razões já estudadas caso em que terá efeito ultrativo a consequência da revogação será como regra o re troativo Assim se essas normas não tiverem tal caráter temporário ou excepcional terão efeito retroativo sempre que beneficiem o réu v g caso a maconha cannabis sativa deixasse de figurar no elenco das drogas ou se determinada doença deixasse de integrar o rol das enfermidades cuja notificação fosse compulsória Contrariamen te tabelas de preço em relação aos crimes contra a economia popular mesmo após a 1 5 Princípios básicos cit p 1 42 140 1031 A LEI PENAL NO TEMPO cessação de sua vigência continuarão regendo as situações consumadas durante a sua existência em face do seu caráter temporário Por fim e conforme vimos temos por inconstitucionais as chamadas leis penais em branco heterogêneas por violarem os princípios de divisão de poderes e reserva legal 10 APLICAÇÃO DA LEI E VACATIO LEGIS Discutese se seria possível a aplicação da lei mais benéfica já durante o período de vacatio isto é durante o prazo que precede à sua entrada em vigor 45 dias etc A doutrina majoritária entende que tal não é possível simplesmente porque a lei ainda não vige logo não é passível de aplicação mesmo que favorável ao réu Parecenos que a razão está com a doutrina minoritária visto que o período de vacatio legis objetiva evitar surpresas para aqueles a que se destinam as leis muito es pecialmente os infratores que vão sofrer os seus efeitos16 Portanto não há motivo para que os juízes não possam aplicála desde logo já que instituída essencialmente para proteção do indivíduo sempre que dispuser em seu favor Finalmente também se discute a retroatividade das leis inconstitucionais haven do quem defenda como Gamil Fõppel que deve ser reconhecida a retroatividade da norma penal benéfica inconstitucional já que participou da formação da consciência quanto à ilicitude do fato17 11 TEMPO DO CRIME Quando a ação e o resultado se separam cronologicamente discutese se o tempo do crime é o da ação ou o do resultado Sobre o assunto existem três teorias a teoria da ação que considera praticado o crime no momento da ação ou omissão b teoria do resultado que considera como tempo do crime o momento do resultado e c teoria mista ou da ubiquidade que considera como tempo do crime tanto o momento da ação quanto o do resultado indiferentemente O Código Penal adotou como regra a teoria da ação Com efeito o seu art 4º dis põer considerase praticado o crime no momento da ação ou omissão ainda que outro seja o momento do resultado Assim no homicídio CP art 121 tempo do crime é o mofllento em que o agente lesiona a vítima momento da ação ainda que o resultado a morte só venha a consumarse meses após Semelhantemente se o agente quando da kção era menor de dezoito anos será considerado penalmente inimputável ainda que ao tempo da morte da vítima resultado tenha atingido a maioridade penal Imagi nese ainda que o agente lesione uma vítima de treze anos que morre após completar 1 6 No sentido do texto Gamil Fõppel O princípio da legalidade com um ideal radicalmente garantista in Novos desafios do direito penal no terceiro milênio Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 E Alberto Silva Franco Código Penal e sua interpretação judicial S Paulo RT 200 1 1 7 Gamil Fõppel cit 141 PAULO QJEIROZ catorze anos de idade Nesse caso incidirá o aumento de pena de 13 aplicável ao autor de homicídio doloso contra menor de catorze anos CP art 121 4 final visto que ao tempo da ação a vítima era menor de catorze O Código porém ao tratar da prescrição CP art 11 1 transigiu com a teoria do resultado dispondo que o termo inicial da prescrição é em princípio a data da consumação do crime Justamente por isso o prazo prescricional no exemplo dado começará a partir do dia que a vítima veio a óbito e não a partir da data em que so freu a lesão Tratandose de crimes permanentes cuja consumação se estende no tempo en quanto persiste a ofensa ao bem jurídico por decisão do agente v g extorsão mediante sequestro o tempo do crime se renovará pelo período de permanência Assim se o autor menor durante a fase de execução do crime vier a atingir a maioridade respon derá segundo o Código Penal e não segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA Lei nº 806990 Quanto aos crimes continuados que em verdade são vários crimes concurso ma terial de crimes mas tratados como constitutivos de crime único atendendo à conve niência políticocriminal CP art 71 o Supremo Tribunal Federal acompanhando a doutrina majoritária editou a súmula 711 com o seguinte teor a lei penal mais grave aplicase ao crime continuado ou ao permanente se a sua vigência é anterior à cessa ção da continuidade ou da permanência razão pela qual passaram a ter tratamento si milar ao dos crimes permanentes Assim se o agente comete crime continuado duran te meses seguidos a continuação delitiva será regida no caso de sucessão de normas não pela lei que vigorava à época do primeiro crime mas do último isto é da cessação da continuidade ainda que seja a mais gravosa Com efeito e conforme Hungria se os atos sucessivos já eram incriminados pela lei antiga não há duas séries uma anterior outra posterior à nova lei mas uma única dada a unidade jurídica do crime continuado que incidirá sob a nova lei ainda que esta seja menos favorável que a antiga pois o agente já estava advertido da maior se veridade da sanção caso persistisse na continuação Se entretanto a incriminação so breveio com a lei nova segundo esta responderá o agente a título de crime continuado somente se os atos posteriores subsequentes à entrada em vigor da lei nova apresen tarem a homogeneidade característica da continuação ficando abstraídos os atos ante riores18 Esse entendimento conduz às seguintes consequências 1 se o agente praticou uma série de crimes na vigência de leis diversas todas as infrações serão regidas pela última lei ainda que seja a mais gravosa admitese a novatio legis in pejus 2 se hou ver novatio legis incriminadora a nova lei criminaliza conduta até então atípica a lei nova regerá exclusivamente os delitos cometidos na sua vigência já que até então não havia crime algum a punir 3 se houver abolitio criminis ou novatio legis in mellius a nova lei retroagirá para favorecer o réu 1 8 Comentários cit p 1 28 No mesmo sentido Frederico Marques e Damásio de Jesus entre outros 142 l ü3 I A LEI PENAL NO TEMPO Não estamos de acordo com semelhante orientação item 1 relativamente à in cidência da lei nova mais gravosa para os atos cometidos em continuidade delitiva pois ela implica uma inversão lógica e cronológica do conceito legal de continuação ofendendo o princípio da legalidade É que de acordo com o Código art 71 no de lito continuado os crimes subsequentes são havidos como continuação do primeiro e não o contrário de modo que o agente ao invés de responder por vários crimes em concurso material deve responder por um único delito o mais grave se diversos com aumento de um sexto a dois terços Portanto os crimes subsequentes só têm relevância jurídicopenal para efeito de individualização judicial da pena escolha da pena mais grave quando diversas as infrações e fixação do respectivo aumento pois o primeiro crime prevalece sobre todos os demais como se estes simplesmente não existissem exceto para efeito de aplicação da pena Por conseguinte se o autor só responde pelo primeiro crime e não pelos subsequen tes parece evidente que a lei posterior mais severa não poderá alcançálo porque se assim for inverterseá o conceito legal de crime continuado lógica e cronologicamente os últimos crimes serão os primeiros considerandose a continuação do final para o início ou seja os subsequentes prevalecerão sobre o primeiro e não o contrário o pri meiro prevalecer sobre os subsequentes como prevê a lei Exemplo se o autor pratica quatro infrações na vigência da lei revogada cuja pena cominada era de 4 a 8 anos de reclusão e uma única infração na vigência da nova lei cuja pena passou a ser de 8 a 16 anos de reclusão e tratou o delito inclusive como hediondo o autor responderá nos termos da Súmula 7 1 1 segundo a nova lei razão pela qual serlheá aplicada a pena de um crime equiparado a hediondo É que de acordo com a aludida súmula a lei penal mais grave no caso a lei nova aplicase ao crime continuado ou ao permanente se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência A súmula portanto contraria claramente o princípio da legalidade em prejuízo do réu conferindo à continuação tratamento jurídicopenal diverso mais gravoso além de lógica e cronologicamente insustentável Não bastasse isso a súmula de certo modo acaba por emprestar ao crime conti nuado tratamento legal mais severo do que aquele conferido ao concurso material de crimes Sim porque no caso de concurso material cada delito é regido pela lei vigente à época de sua consumação não podendo ser alcançado por novatio legis in pejus ao passo que agora na continuação crimes anteriores à nova lei seriam por ela atingidos Também por isso a súmula viola o princípio da irretroatividade da lei pois por meio da redefinição da continuidade delitiva permite a incidência da nova lei sobre fatos ocorridos antes da sua vigência como reconhece aliás Cezar Bitencourt19 Quanto à prescrição o problema é diverso porque no caso de concurso de crimes continuação delitiva inclusive cada crime prescreverá isoladamente como se concurso não existisse conforme dispõem o art 1 19 do Código e a Súmula 497 do STF 1 9 Tratado de direito penal Parte geral S Paulo Saraiva 2007 1 1 ed p 1 73 1 74 143 04 A LEI PENAL NO ESPAÇO Sumário 1 Introdução 2 Conceito de território 3 Lugar do crime 4 Extraterritorialidade 5 Pena cumprida no estrangeiro 6 Eficácia da sentença penal estrangeira 7 Imunidade diplomática 8 Extradição 81 Extradição x entrega 1 INTRODUÇÃO A aplicação da lei penal no espaço questão diretamente ligada ao princípio da soberania dáse naturalmente dentro dos limites do território em que o Estado é soberano e pois exerce o jus imperium Além disso sendo a lei penal um produto históricocultural não poderia tampouco pretender ter validade universal ficando sua aplicação submetida em consequência a determinadas limitações espaciais por exemplo g que aqui vivessem as leis penais chinesas ou que lá vigorassem as leis penais brasileiras Por isso o Código Penal em conformidade com a Constituição arts 1º I e 4º I consagra art 5º caput o princípio da territorialidade segundo o qual o Estado brasileiro compete apurar processar e julgar todas as infrações penais ocorridas em território nacional independentemente da nacionalidade dos envolvidos autores e vítimas Mas a adoção de semelhante princípio não se deu de forma absoluta uma vez que excepcionalmente o Código previa a não incidência da lei penal brasileira mesmo em relação à infração penal ocorrida em território nacional sempre que assim dispuser convenção tratado ou regra de direito internacional O art 5º caput é claro no particular ao estabelecer Aplicase a lei brasileira sem prejuízo de convenções tratados e regras de direito internacional ao crime cometido no território nacional Dai se dizer que o Código adotou como regra geral o princípio da territorialidade temperada Foram também adotados em caráter excepcional e complementar ou que toca à extraterritorialidade da lei vale dizer incidência da lei brasileira sobre crime praticado fora do território nacional os princípios da nacionalidade art 7º II b da proteção art 7º I a b e c universal art 7º II a e da representação art 7º II c De acordo com o princípio da nacionalidade ou personalidade o Estado sanciona segundo seu direito todos os fatos cometidos por nacionalidade ativa ou contra nacionalidade nacionalidade passiva seus nacionais sendo indiferente o lugar do cometimento Segundo o princípio da proteção ou defesa ou real o Estado castiga todos as ações que se dirijam contra seus interesses sem importar onde e por quem tenham sido cometidos O princípio universal ou cosmopolita confere ao Estado o poder de castigar todos os fatos que sejam puníveis conforme seu direito sem importar onde por PAULO Q1JEIROZ quem e contra quem tenham sido cometidos2 Finalmente pelo princípio da represen tação ou da bandeira a lei penal brasileira é aplicável aos crimes cometidos a bordo de aeronaves e embarcações privadas que se achem em território estrangeiro e aí não sejam julgados 2 CONCEITO DE TERRITÓRIO A expressão território cujo conceito jurídico não coincide precisamente com o conceito geográfico compreende todo o espaço terrestre fluvial marítimo e aéreo onde o Estado exerce a sua soberaniajurisdição De acordo com Valério Mazzuoli o território pode ser conceituado como a su perfície terrestre terra firme incluídas as águas doces que nela se encontram e as zonas marítimas sobre a qual se assenta uma dada população que exerce por meio de um governo independente a sua soberania assim como o espaço aéreo que se levanta sobre tal superfície onde têm lugar a aviação civil e militar e em relação ao qual a utilização depende de autorização estatal e o subsolo incluindose a plataforma con tinental que se estende para além das margens das águas superficiais estatais A regra universalmente aceita em relação ao subsolo é a de que ele pertence ao Estado que detém soberania sobre a superfície Esses três elementos superfície terrestre espa ço aéreo e subsolo fazem do moderno conceito de território uma realidade bastante complexa razão pela qual os internacionalistas preferem aludir ao domínio terrestre aquático e aéreo áreas em relação as quais costumase normalmente falar que o Esta do exerce a suajurisdição3 São também território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras públicas ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem bem como as aeronaves e embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada desde que se achem respectivamente no espaço aéreo correspondente ou em altomar art 5º 1 O mes mo ocorre inversamente com as aeronaves e embarcações estrangeiras se públicas são no Brasil território estrangeiro se privadas são território nacional art 5º 2º por força do princípio da reciprocidade 3 LUGAR DO CRIME Para a definição do lugar do crime o Código art 6º diversamente do que ocor reu quanto ao tempo do crime art 4º adotou o princípio da ubiquidade de sorte que é lugar do crime tanto o local da ação ou omissão quanto o do resultado indiferente mente Assim pouco importa que o crime tenha se iniciado em território brasileiro e se consumado no exterior ou viceversa pois em ambos os casos a justiça brasileira é competente para decidir sobre o assunto 2 Maurach Derecho penal cit p 1 74 3 Curso de Direito Internacional Público São Paulo RT 2008 p 400 146 lü41 A LEI PENAL NO ESPAÇO Tratandose de crime tentado cujos atos de execução tenham se iniciado em ter ritório estrangeiro o Brasil será competente sempre que aqui deveria produzirse o resultado art 6 in fine O Código Penal Militar art 6 mais completo dispõe que considerase pratica do o fato no lugar em que se desenvolveu a atividade criminosa no todo ou em parte e ainda que sob forma de participação bem como onde se produziu ou deveria produ zirse o resultado Nos crimes omissivos o fato considerase praticado no lugar em que deveria realizarse a ação omitida 4 EXTRATERRITORIALIDADE A lei penal brasileira pode também incidir excepcionalmente sobre crimes ocorridos em território estrangeiro Dessas hipóteses de extraterritorialidade da lei brasileira que pode ser incondicionada e condicionada cuida o art 7º do CP No primeiro caso a fixação da competência independe do implemento de qualquer con dição no segundo a extraterritorialidade da lei depende do atendimento de deter minados requisitos São hipóteses de extraterritorialidade incondicionada aquelas previstas no inciso 1 regidas pelos princípios da proteção letras a b e e e da justi ça universal letra d puníveis independentemente de condenação ou absolvição no exterior Eilas 1 crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da República homicídio sequestro etc ficando pois excluídos os demais crimes v g patrimo niais 2 crimes contra o patrimônio ou a fé pública da União do Distrito Federal de Estado de Território de Município de empresa pública sociedade de economia mista autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público 3 crimes contra a Ad ministração Pública por quem está a seu serviço 4 crimes de genocídio quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil São hipóteses de extraterritorialidade condicionada aquelas previstas no inciso II a b e e do 3º do art 7º cuja fixação da competência depende do implemento das condições estabelecidas nos 2º e 3 Os casos de extraterritorialidade condi cionada regemse pelos princípios da justiça universal II a da nacionalidade II b da representação II e e da proteção 3º a saber 1 crimes que por tratado ou convenção o Brasil se obrigou a reprimir 2 praticados por brasileiro 3 pratica dos em aeronaves ou embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados Nesses casos a aplicação da lei brasileira depende do implemento das seguintes condições a entrar o agente em território nacional b ser o fato punível também no país em que foi praticado c estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição d não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena e ser o fato ainda punível isto é não ter sido atingido por causa de extinção de punibi lidade prescrição decadência perdão etc Finalmente a lei brasileira aplicase ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil se além de atendidas tais condições não foi pedida ou negada a extradição e houve requisição do Ministro da Justiça 3 147 PAULO ÜlJEIROZ Tratandose de contravenção o princípio da extraterritorialidade não incide uma vez que a lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada em território nacional Decretolei nº 368841 art 2º 5 PENA CUMPRIDA NO ESTRANGEIRO Por força do princípio ne bis in idem a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime quando diversas ou nela é computada quando idênticas CP art 8º Significa dizer que o autor não cumprirá pena no Bra sil se o fizer no estrangeiro relativamente ao mesmo crime Na hipótese de a pena lá cumprida ser inferior àquela a ser cumprida aqui deverá submeterse ao tempo restante de pena Cuidandose não propriamente de execução de pena no estrangeiro que pressu põe sentença penal condenatória transitada em julgado mas de cumprimento de pri são provisória prisão preventiva etc que precede à sentença e tem natureza cautelar dáse mutatis mutandis o mesmo aplicandose o instituto da detração CP art 42 abatendose o período em que lá esteve provisoriamente preso ou internado conforme o caso 6 EFICÁCIA DA SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA Em razão do princípio da soberania a sentença penal estrangeira não tem como regra eficácia no Brasil Mas em caráter excepcional o Código admite tal possibilida de emprestandolhe eficácia de título executivo para obrigar o condenado à reparação do dano a restituições e a outros efeitos civis art 9 1 Também é possível para sub meter o sentenciado à medida de segurança nos termos do art 9º II Semelhante pos sibilidade parece ferir no entanto o princípio da isonomia pois tanto quanto a pena a medida de segurança constitui sanção penal restritiva da liberdade do sentenciado devendo em consequência submeterse às mesmas limitações e princípios A eficácia da sentença estrangeira sujeita à homologação pelo Superior Tribunal de Justiça CF art 105 I i depende a para os efeitos de reparação de pedido do in teressado b para sujeição à medida de segurança da existência de tratado de extradi ção com o país de cuja autoridade judiciária emanou a sentença ou na falta de tratado de requisição do Ministro da Justiça art 9º parágrafo único a e b E casos há em que a sentença estrangeira produz efeitos no Brasil independente mente de homologação judicial como ocorre v g com a reincidência CP art 63 e a detração art 42 É de convir por fim com Luiz Fernando Lessa que o Código Penal está grande mente defasado quanto à aplicação da lei penal no espaço pois embora o ordenamento jurídico permita atualmente a prisão e a extradição do indivíduo por vezes sem que haja condenação definitiva o Código impede que uma sentença condenatória estran geira seja homologada e executada em sua inteireza no Brasil Notese mais que o Brasil participa de diversos tratados de transferência de apenados por meio dos quais a 148 j 04j A LEI PENAL NO ESPAÇO sentença estrangeria é executada da forma em que foi prolatada no exterior isto é sem que se faça sequer um juízo de valor sobre a sua adequação ao direito brasileiro4 7 IMUNIDADE DIPLOMÁTICA Por força da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de abril de 1961 aprovada pelo Decreto nº 56435 de 8 de junho de 1965 é inviolável a pessoa do agen te diplomático isto é o chefe da Missão ou membro do pessoal diplomático da Missão e membros da família arts 29 a 37 não podendo sofrer nenhuma forma de detenção ou prisão O agente diplomático goza ainda de imunidade de jurisdição penal civil e administrativa do Estado acreditado Brasil Não é também obrigado a prestar depoi mento como testemunha É irrelevante que se trate de infração penal praticada dentro ou fora dos locais da Missão e que haja ou não relação com as funções diplomáticas Embora o próprio agente diplomático não possa renunciar à imunidade de juris dição porque não atua em nome próprio mas em nome do país acreditante o Esta do estrangeiro por ele representado pode de forma expressa renunciar à imunidade de jurisdição de seus agentes diplomáticos submetendoos à jurisdição penal do país acreditado Dizer que o agente diplomático é imune à jurisdição penal do país acreditado sig nifica mais exatamente o seguinte aque ele não responde por nenhum crime que cometa em território nacional a ação penal não pode ser intentada bque não pode sofrer nenhum constrangimento pessoal ou real resultante de infração penal crime ou contravenção que venha a cometer prisões busca e apreensão etc cque não poderá ser obrigado a depor sobre infração penal quer como autor quer como testemunha Apesar disso a infração penal pode e deve ser apurada pela autoridade brasileira competente mediante inquérito policial ou similar seja para fins de investigação e punição pelo país acreditante seja para fins de adoção das medidas cabíveis no âmbito políticodiplomático pelo país acreditado 5 A imunidade penal do agente diplomático não vale por óbvio para o próprio país acreditante estrangeiro a quem compete investigar e punir o delito praticado por um seu representante em país estrangeiro Diversa é a condição legal dos cônsules visto que a imunidade só alcança os atos de ofício razão pela qual respondem pelos crimes comuns que hajam praticado em território nacional Por gozarem de imunidade apenas quanto aos crimes praticados no 4 Persecução penal e cooperação internacional direta pelo Ministério Público Rio de Janeiro Lumen Juris 2013 p 1 4 1 5 No mesmo sentido Francisco Rezek a imunidade diplomática não impede a polícia local de in vestigar o crime preparado a infmmação sobre a qual se presume que a Justiça do Estado de origem processará o agente beneficiado pelo privilégio diplomático Direito Internacional Público São Paulo Saraiva 2008 p 1 72 149 exercício da função consular ou ao pretexto de exercerla ficam impunes por exemplo a concessão fraudulenta de passaportes a falsidade de guias de exportação entre outros Todo o resto é apurado e punível segundo a jurisdição do país acreditado 8 EXTRADIÇÃO A extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para que aí seja julgado ou cumpra pena pela prática de crime Não existe por conseguinte extradição por ilícito civil nãopenal nem extradição espontânea ou de ofício mas sempre a pedido Como regra só estrangeiros são passíveis de extradição uma vez que a Constituição art 5º LI veda em caráter absoluto a extradição de brasileiro nato embora admitida a de brasileiro naturalizado que responda por crime comum praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento com tráfico de droga e afins É terminantemente proibida a extradição de estrangeiro e por óbvio de brasileiro naturalizado por crime político ou de opinião CF art 5º LII A apreciação do pedido de extradição que se fundará em tratado do acordo de reciprocidade entre os países interessados compete ao Supremo Tribunal Federal CF art 102 I g que apreciará a legalidade formal e material do ato De acordo com o art 77 da Lei nº 681580 a extradição não será concedida quando I se tratar de brasileiro salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificarse após o fato que motivar o pedido II o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente III o Brasil for competente segundo suas leis para julgar o crime imputado ao extraditando IV a lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 um ano V o extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido VI estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente VII o fato constituir crime político VIII o extraditando houver de responder no Estado requerente perante Tribunal ou Juízo de exceção Além disso são condições para a concessão da extradição I ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao extradições expressas das leis penais desse Estado II existir sentença final de privação de liberdade ou estar a prisão autorizada por juiz tribunal ou autoridade competente do Estado requerente A extradição não se confunde com a deportação e a expulsão Com efeito a deportação é a retirada compulsória de estrangeiro do território nacional nos casos de entrada ou estadia irregular se este não se retirar voluntariamente no prazo legalmente fixado E a expulsão é a exclusão de estrangeiro que de qualquer forma atente contra 104 1 A LEI PENAL NO ESPAÇO a segurança nacional a ordem política ou social a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos inte resses nacionais Segundo o art 65 parágrafo único da Lei nº681580 a expulsão é ainda possível quando o estrangeiro a praticar fraude a fim de obter a sua entrada ou permanência no Brasil b havendo entrado no território nacional com infração à lei dele não se retirar no prazo que lhe for determinado para fazêlo não sendo aconselhável a deporta ção c entregarse à vadiagem ou à mendicância d desrespeitar proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro 81 Extradição x entrega A doutrina costuma distinguir extradição e entrega a partir dos seguintes critérios a a extradição é uma cooperação entre dois Estados soberanos enquanto a entrega é uma cooperação entre um Estado e um tribunal penal internacional a cuja jurisdição se submete mediante subscrição de tratado b qualquer pessoa nacional ou estrangeiro é passível de entrega ao TPI Tribunal Penal Internacional diversamente da extradição que só é aplicável como regra a estrangeiro c a entrega não está sujeita às restrições constitucionais e legais da extradição Na verdade a entrega é uma extradição com outro nome Tratase portanto de um instituto criado com o claro propósito de superar os obstáculos constitucionais dos países que subscreveram a criação do TPI e assim submeter também seus nacionais à sua jurisdição 151 Teoria do delito 1 01 1 INTRODUÇÃO GERAL Sumário 1 Conceito e instrumentalidade da teoria do delito 1 1 Crítica da razão téc nicojurídica 2 Funcionalismo sistema racionalfinal teleológico ou funcional 3 Evolução da teoria do delito causalismo finalismo e funcionalismo 3 1 Introdução 32 A teoria causal da ação causalismo ou naturalismo 33 A teoria final da ação finalismo 34 Funcionalismo 4 Responsabilidade penal da pessoa jurídica 4 1 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STJ 42 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STF 1 CONCEITO E INSTRUMENTALIDADE DA TEORIA DO DELITO A teoria do delito ou teoria do crime ou teoria do fato punível ocupase dos pres supostos gerais formais e materiais que devem concorrer para que um determi nado comportamento humano possa ensejar a aplicação de uma sanção penal pena ou medida de segurança Estudála é estudar as categorias sistemáticas de tipicidade ilicitude e culpabilidade bem assim os conceitos e institutos que lhes são inerentes A teoria do delito cuida portanto dos pressupostos jurídicopenais da punibilidade de uma conduta ocupase assim da interpretação sistematização e crítica dos institutos jurídicopenais A dogmática trata pois de subministrar critérios racionais e legítimos pretensa mente de imputação objetiva e subjetiva e responsabilização penal A teoria do delito é portanto uma teoria da responsabilidade penal1 Diversa é a teoria da pena que além do sentido e fins da pena trata no essencial dos critérios de individualização da sanção penal penas e medidas de segurança e sua respectiva execução A dogmática é assim uma espécie de gramática do direito penal que cuida do sig nificado dos institutos e conceitos jurídicopenais bem como das funções conexões e articulações entre esses conceitos E se presta a explicar o que é o crime e quando ele é justificável escusável e punível 1 Como escreve José Miguel Zugaldía Espinar e outros a teoria jurídica do delito é uma teoria da imputa ção isto é um instrumento conceituai que nos permite determinar juridicamente se um detenninado fato tem a consideração de delito e merece em consequência a imposição de uma sanção penal Fundamen tos de derecho penal parte especial Valencia Tirant lo blanch 2010 p 201 O que Francisco Muõoz Conde escreve a propósito da culpabilidade é válido para a teoria geral do delito a culpabilidade não é uma qualidade da ação mas uma característica que se lhe atríbui para poder imputála a alguém como seu autor e fazêlo responder por ela É pois a sociedade ou melhor o Estado representante produto da correção de forças sociais existentes num momento históríco quem define os limites do culpável e do inculpável da liberdade e não nãoliberdade Daí decorre que o conceito de culpabilidade tem um fundamento social antes que psicológico ela não é uma categoria abstrata ou ahistórica à margem ou inclusive como uns acreditam contrária às finalidades preventivas do direito penal mas a culminação de todo um processo de elaboração conceituai destinado a explicar por que e para que em um determi nado momento histórico se recorre a um meio defensivo da sociedade tão grave como a pena e em que medida se deve fazer uso desse meio Teoria Geral do Delito cit p 128 155 PAULO QJEIROZ Mas é importante perceber que ao recorrer à teoria do delito e seus conceitos o juiz não se limita a constatar um crime e aplicarlhe uma pena mas a construílo so cialmente afinal o direito e pois o crime não preexiste à interpretação mas é dela re sultado razão pela qual a interpretação da teoria do crime não é um modo de constatar ou desvelar um direito ou um crime preexistente mas a forma mesma de produção do direito e do crime2 Afinal o sentido das coisas fatos provas textos etc não é dado pelas próprias coisas mas por nós ao atribuirmos um determinado sentido num uni verso de possibilidades aí incluída a falta de sentido inclusive3 Não existem portanto fenômenos jurídicos nem jurídicopenais mas uma inter pretação jurídica e jurídicopenal desses fenômenos Consequentemente não existem fenômenos criminosos nem típicos ilícitos ou culpáveis e sim uma interpretação cri minalizante dos fenômenos e pois uma interpretação tipificante culpabilizante etc Naturalmente que dizer que em direito e em direito penal nada é dado que tudo é construído logo que o crime é um constructo significa que todo conceito a que a teoria do delito se refere também o é tais como dolo culpa nexo causal erro de tipo de proibição autoria participação etc Convém notar ainda que a teoria do delito como toda pretensão de sistematiza ção implica invariavelmente uma esquematização uma classificação de pessoas e coisas e constitui por isso um meio necessário mas insuficiente a serviço de um fim que nem sempre é alcançável ou mesmo desejável tal é o número imprevisível de variáveis que sempre a surpreendem4 Como mostra a leitura dos diversos tratados manuais e cursos de direito penal tratase de sua parte mais exaustivamente estudada e por consequência elaborada Mas esse estudo pelo seu caráter geral foi tradicionalmente marcado por excessiva abstração a ponto de se desvencilhar quase por completo da realidade social a que deveria se destinar e regular como se a dogmática penal constituísse um fim em si mesmo5 Tal excesso teria ainda como efeito colateral o franco desprestígio de tema 2 É o que a criminologia crítica chama de criminalização secundária 3 Como observa Roberto Machado o conhecimento é antropomórfico não provém da essência das coi sas não se pode dizer que corresponda à essência das coisas a verdade é antropomórfica não contém nenhum ponto que seja verdadeiro em si real e válido universalmente independentemente do homem Nietzsche e a verdade S Paulo Graal 2002 p 1 02 De modo semelhante Flávio Kothe todo conhe cimento é subjetivo por mais que se procure tomálo objetivo Ele é tanto mais arbitrário quanto mais ele crê ser o puro fato Interpretações montam os fatos constituem a natureza do fato O modo de enquadrar o fato depende da leitura que se faz do problema Como que se constitui o texto do problema mediante a leitura que dele se faz e essa leitura não é técnica embora o modo de resolver a questão utilize elementos técnicos mas não apenas técnicos As leituras montam o texto que está sendo lido Técnicas são meios não fins e nem começo Ensaios de semiótica da cultura cit 4 Talvez por isso ou também por isso Nietzsche escreveu desconfio de todos os sistematizadores e os evito A vontade de sistema é uma falta de retidão Crepúsculo dos ídolos S Paulo Companhia das Letras 2006 p 13 5 Como assinala Roxin fruto de um ponto de partida positivista chegounos um sistema classificató rio na forma de uma pirâmide conceituai de modo bastante análogo ao sistema de plantas de Lineu a 156 I O J I 1 NTRODUÇÃO GE RAL sumamente importante a teoria da pena Ainda hoje a doutrina lhe dá tratamento cla ramente marginal No entanto é preciso não perder de vista que a teoria do delito tem um papel ins trumental e auxiliar porque existe e se destina a resolver conflitos de interesses tendo declarada vocação pragmática Por conseguinte deve estar sempre orientada para a solução de problemas sociais reais pois o direito penal não é uma ciência de professo res mas uma ciência de casos Mir Puig Além disso o sistema como assinala García Pablos não é um estado final de elaboração dogmática mas um momento desta não um fim mas um meio flexível provisório aberto ao problema que não se justifica por si mesmo nem por sua coerência ou rigor lógico mas por seus resultados e funções6 Determinante portanto há de ser sempre a solução da questão de fato7 O papel fundamental da dogmática não é enfim tornar possível a mais sofisticada resposta jurídicopenal mas sim criar as condições de produção de decisões justas adequadas e constitucionalmente fundadas E é importante notálo porque a doutrina penal brasileira é fortemente influenciada pela sofisticada doutrina penal alemã não raro excessivamente abstrata sutil e pouco pragmática Não por outra razão Kai Am bos assinala enfaticamente que até agora a dogmática e a ciência jurídicopenal de língua alemã não tiveram nenhuma influência prática na configuração de uma Parte Geral de direito penal internacional e em absoluto do direito penal internacional Mais como acertadamente critica Lenckner se ela está caracterizada por uma ex traordinária e em parte interminável diferenciação e refinação do instrumento dog mático então é evidente que o estado da discussão resultará para o observador estran geiro pouco compreensível sobretudo se provém do common law sistema jurídico que forjou tenazmente o direito penal internacional8 Em suma a melhor teoria não é ou não é necessariamente a que oferece a melhor sistematização mas a que conduz a uma solução justa do caso concreto razão pela qual uma boa teoria é aquela capaz de reduzir e solucionar problemas adequadamente e não a que se perde em sutilezas e os multiplica A teoria do delito apesar de ser um exercício lógico de casos hipotéticos9 há de ser julgada segundo os seus resultados e não de acordo com a sua coerência ou rigor sistemático Um sistema que conduz ao absurdo deve ser revisto substituído ou simplesmente abandonado Também por isso não raro o direito tem de recorrer a soluções ad hoc construção erguese da massa dos elementos do crime através de sucessivas abstrações feitas extrato por extrato até chegar ao conceito superior e genérico da ação A causa pela qual um sistema fechado surgido de tal maneira nos afasta da solução de nosso problema ele isola a dogmática por um lado das decisões valorativas políticocriminais e por outro da realidade social ao invés de abrirlhe os caminhos até elas Política criminal e sistema jurídicopenal trad Luis Greco Rio de Janeiro Reno var 2000 p 2223 6 Derecho penal cit p 413 7 Jescheck Tratado cit p 1 76 8 A parte geral do direito penal internacional São Paulo RT 2008 p5960 9 A síntese é de Juarez Tavares 157 PAULO QlJEIROZ Consequentemente a interpretaçãoaplicação dos institutos jurídicopenais isto é interpretação das categorias dogmáticas tipicidade ilicitude e culpabilidade há de ser feita criticamente com vistas à justa solução do caso concreto à luz dos fundamentos objetivos e princípios próprios do modelo constitucional de direito Aliás seria ingê nuo supor que a técnica jurídica fosse bastante para se decidir justamente sim porque a formação técnicojurídica só pode oferecer na melhor das hipóteses isso uma de cisão técnica Mas uma decisão técnica não é uma decisão justa ou ao menos não o é necessariamente em particular aqueles que acompanham mais de perto as decisões do tribunal do júri sabem que os jurados embora leigos em direito não raro decidem com mais justiça do que os juízes togados É que se para o juiz técnico importa pri meiramente a técnica para o juiz leigo interessa primordialmente a justeza das deci sões por vezes valendose inclusive de argumentos insustentáveis do ponto de vista estritamente dogmático Dito de outro modo decisões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas assim como decisões tecnicamente incorretas não são decisões necessariamente injustas Parece inclusive que no fundo os grandes juízes de direito e promotores de justi ça tanto quanto os advogados talentosos diferentemente dos meros burocratas à se melhança dos poetas e músicos virtuosos não se tornam nascem e a técnica para tais pessoas parece constituir apenas um instrumento de aperfeiçoamento de habilidades qualidades inatas preexistentes à formação técnica a qual não é em si mesma garantia de justiça É que uma boa interpretação na arte como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sensibilidade Em conclusão a dogmática penal deve ser não um sistema pretensamente neu tro10 e tecnocrata mas pragmática e políticocriminalmente orientado um sistema portanto aberto à realidade social e suas necessidades e não cerrado em si mesmo não podendo a justiça e a eficácia das soluções dos problemas concretos fundamenta remse exclusivamente em deduções lógicas ou silogismos11 de modo que o método da simples subsunção deve ceder lugar ao da ponderação de interesses Semelhante perspectiva está a exigir em consequência uma prudente revalorização do pensamen to aporético ou problemático12 bem como a adoção de um modelo integrado de cri minologia política criminal e direito penal pois representam três momentos incin 1 O Como assinala Mir Puig um dos aspectos mais criticáveis da fundamentação tradicional da te01ia do delito fortemente positivista é a pretensão de apresentar todos os conceitos como não disponíveis va lorativamente mas como exigências sistemáticas puramente Por isso entende que é preciso rechaçar tal perspectiva que encobre autênticas decisões valorativas através de um aparato conceituai aparen temente asséptico e neutro pois a grande maioria dos conceitos que intervêm na teoria do delito são intensamente valorativos O neokantismo chamou a atenção para a dimensão valorativa das ca tegorias da teoria do delito mas não o seu significado político Desde os anos 70 reconhecese que a construção teórica do delito deve partir da função políticocriminal do Direito Penal funcionalismo Porém a Política Criminal depende de cada modelo de Estado Derecho penal cit p 108109 1 1 GarcíaPablos Derecho penal cit 1 2 GarcíaPablos Derecho penal cit p 391 e 414 1 58 IOI I I NTRODUÇÃO G E RAL díveis da resposta social ao problema do crime um momento explicativoempírico a criminologia um decisório a política criminal e um instrumental direito penal13 Mas politizar a dogmática não significa que o juiz não deva obediência à lei e sim que tem de ser interpretada e que toda interpretação é um complexo labor valora tivo dentro do marco dos direitos fundamentais positivos constitucionais e internacio nais14 De todo modo a forma como é estruturada a teoria do delito pressupõe uma de terminada orientação políticocriminal razão pela qual os conceitos e institutos ju rídicopenais v g dolo e culpa autoria e participação etc são em última análise configurações de uma certa perspectiva política inevitavelmente Finalmente ao assinalar à dogmática jurídicopenal um papel instrumental e au xiliar não se pretende ignorar ou rechaçar sem mais a sua importância pois como afirma Gimbernat Ordeig quanto menos desenvolvida é a dogmática penal mais im previsíveis serão as decisões dos tribunais dependendo a absolvição ou a condenação dos réus do azar e de fatores incontroláveis subtraindo o direito penal à irracionalida de à arbitrariedade e à improvisação15 11 Crítica da razão técnicojurídica A tecnicização do direito e por consequência a tecnicização daqueles que operam com o direito visou a atender a uma demanda de segurança jurídica por se pressupor que as questões complexas e difíceis de que cuida a dogmática jurídica contemporânea deveriam competir a especialistas advogados promotores juízes enfim pessoas com formação especializada A técnica do direito e dos seus operadores respondeu assim a uma mesma pretensão de segurança e correção das decisões a evitar a improvisação e o domínio das paixões na administração da justiça16 A tecnicização representou o triunfo da razão no direito De acordo com Welzel a ciência sistemática dá base para uma administração da justiça uniforme e justa pois só o conhecimento das relações internas do direito im pede o acaso e a arbitrariedade É que a renúncia a uma teoria do delito tanto gene ralizadora como diferenciadora em favor de uma valoração individual qualquer são palavras de Claus Roxin faria retroceder a ciência penal a vários séculos ou seja 1 3 GarcíaPablos Derecho penal cit p 406 14 Femández Carrasquilla Concepto Proemio cit 1 5 Tiene futuro la dogmática jurídicopenal Bogotá Ed Temis 1 983 p 2 7 e 1 58 1 6 Segundo Saio de Carvalho o homem teórico forjado na cultura helênica ocidental por Sócrates narcotizado pela busca da verdade atribuiu ao saber científico a capacidade de distinguir o erro de se parar essência e aparência No entanto este otimismo na razão sistematizadora ofuscou a pluralidade dos fenômenos existentes na realidade e as infinitas formas de interpretálo ou seja impediu perceber inúmeras formas de manifestação das verdades de verdades marginais que transpõem os horizontes da moral Antimanual de Criminologia Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 p 1 791 80 1 59 PAU LO QlJEJROZ àquela situação de acaso e arbitrariedade O sistema portanto implica segurança pre visibilidade e certeza conclui GarcíaPablos17 Apesar disso a tecnicização não se deu de forma absoluta porque ainda existem aqui e ali instituições jurídicas cuja composição toca a leigos em direito a exemplo do tribunal do júri a quem compete decidir alguns dos crimes mais importantes os cri mes dolosos contra a vida homicídio doloso etc Mas a tecnicização e profissionalização no direito têm uma série de limitações e pois acarretam vantagens e desvantagens 1 Uma primeira questão diz respeito à própria especialização isto é os juristas são realmente especialistas isto é peritos nos assuntos de que tratam18 Parecenos que em grande parte a especialização dos juristas é um mito Sim porque são chamados a se manifestar sobre praticamente tudo e portanto sobre temas os mais diversos e nos quais é ou pode ser ignorante imprudência técnica de médicos engenheiros etc sistema financeiro etc por vezes assumindo o papel de economistas de administradores ou de todos conjuntamente Não raro a maior especialização do jurista é assim um simples preconceito por que apesar de sua formação técnica numa área específica a lei e o direito tem em tese competência para todo e qualquer assunto dada a onipresença do fenômeno jurí dico medicina psiquiatria finanças etc são paradoxalmente especialistas sem espe cialidade Exatamente por isso certas interpretações jurídicas podem eventualmente parecer ridículas aos olhos de um autêntico especialistaperito Além disso tem razão Feyerabend quando afirma que não especialistas frequente mente sabem mais do que os especialistas e deveriam portanto ser consultados19 2 Outra questão é que decisões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas assim como decisões tecnicamente incorretas não são necessa riamente decisões injustas Imaginese que a esposa queira matar seu marido em virtude dos maustratos que sofre sistematicamente para tanto adiciona veneno na sua refeição a qual por desgraça vem a ser provada pelos filhos que morrem Pois bem de acordo com a técnica fria do Código Penal houve um homicídio doloso consumado contra o marido que está vivo e que voltaria a viver com ela tempos depois Enfim tratase de uma tragédia real lida como ficção São também exemplos de decisão tecnicamente correta mas nem por isso justa a sentença que absolve o réu confesso por questões formais a que decreta a extinção da punibilidade prescrição decadência anistia etc a que impede a rescisão da coisa julgada contra o réu confesso etc 1 7 Derecho Penal Parte general Madrid Universidad Complutense 1995 p 386 As citações anteriores constam do mesmo livro e página 1 8 Uso a expressão jurista no sentido de pessoa versada na lei 19 Contra o Método S Paulo Editora UNESP 2007 p 17 160 IOi l I NTRODUÇÃO GERAL Convém notar ainda que o sistema penal está assentado sobre uma estrutura eco nômica e social profundamente desigual e por isso é arbitrariamente seletivo e assim recruta a sua clientela entre os grupos mais vulneráveis a revelar que a pretensão de justiça está grandemente comprometida desde a sua concepção Em sua majestática igualdade dizia Anatole France a lei proíbe tanto ao rico quanto ao pobre dormir em baixo das pontes esmolar nas ruas e furtar pão 20 E isso sem falar na descontextualiza ção e despolitização dos conflitos que resultam da tecnicização Assim pode ocorrer inclusive de ser aconselhável não apenas ignorar determina da regra por mais racional mas adotar a regra oposta21 É que a questão fundamental não reside em produzir decisões tecnicamente perfeitas mas decisões minimamente justas e razoáveis22 Afinal e conforme assinala Castanheira Neves uma boa inter pretação não é aquela que numa perspectiva hermenêuticoexegética determina cor retamente o sentido textual da norma é antes aquela que numa perspectiva prático normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto23 Quanto às decisões tecnicamente incorretas mas nem por isso injustas bastaria lembrar certas decisões do Júri formado que é por leigos e cujos jurados são chama dos a decidir não segundo a lei mas conforme a consciência e os ditames da justiça CPP art 472 algo um tanto distinto 3 Também por isso distinção entre técnica e justiça seguese que uma boa for mação técnicojurídica não constitui garantia de profissionais Uuízes promoto res advogados etc justos mesmo porque podem ser não obstante a excelência técnica corruptos preguiçosos insensíveis covardes desonestos etc E uma boa interpretação na arte como no direito além de técnica e razão requer talen to e sensibilidade É que tais atividades demandam habilidades que estão mui to além da simples técnica maturidade experiência coragem capacidade de trabalho24 E decidir não é exclusividade dos juízes afinal todos nós decidimos 20 Citado por Gustav Radbruch Introdução à ciência do direito S Paulo Martins Fontes 1 999 p 1 07 2 1 Paul Feyerabend Contra o Método S Paulo Editora UNESP 2007 p 3738 22 Como ensina Castanheira Neves a linha de orientação exata só pode ser pois aquela em que as exigências de sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fecham numa autossuficiên cia a implicar também a autossubsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante e antes se abrem a uma intencionalidade materialmente normativa que na sua concreta e judicativadecisória realização se oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas mas que ao mesmo tempo as pro blematize e as reconstitua pela sua experimentação concretizadora Não é outro o sentido da inter pretação enquanto problema normativo em que portanto também estarão presentes as duas grandes coordenadas da racionalidade jurídica o sistema e o problema Metodologia Jurídica cit p 1 23 23 Metodologia jurídica Coimbra Coimbra editora 1 993 p 84 24 Já Radbruch afirmava que o novo direito penal não poderá vingar sem um juiz totalmente novo Exi ge portanto uma inversão da formação criminalista O que vale para o juiz em geral vale particular mente para o juiz penal para meio centavo de doutrina deveria corresponder um real de conhecimento da natureza humana e da vida Por isso a formação do futuro juiz penal não poderá ser uma formação meramente jurídica deverá estenderse a técnica criminal psicologia criminal teoria carcerária antes de tudo também experiência prática em instituições de todos os tipos Tudo isso é necessário para o 161 PAULO QJEIROZ permanentemente como filhos irmãos pais profissionais membros de órgão de classe etc 4 É certo ainda que as decisões estão de um modo geral predeterminadas ou precondicionadas por nossos preconceitos e portanto na sua origem prescin dem da formação técnicojurídica de sorte que um conhecimento formal do direito parece servir apenas para justificar decisões tomadas a partir de certas experiências e prejuízos que independem da técnica e que lhe precedem neces sariamente Enfim a interpretação é o resultado do seu resultado o meio inter pretativo e pois a forma técnicojurídica só são escolhidos depois do resultado já estabelecido25 decidimos primeiro classificamos depois 5 Não infrequentemente os técnicos do direito a doutrina em especial se põem a criar e sofisticar conceitos e institutos com absoluta independência da realida de sem nenhuma relevância prática ou mesmo teórica ou acadêmica A técnica que deveria ser assim um meio a serviço da justiça convertese em um fim em si mesmo por meio de um diálogo às vezes um monólogo entre diletantes do direito que se ocupam de certas extravagâncias e elegem os temas considerados importantes e lançam por assim dizer a moda no direito 6 Outro problema grave reside no ensino jurídico que ligado a um modelo pe dagógico autoritário no mais das vezes privilegia a memória a repetição e a uniformidade de pensamento em prejuízo da inteligência da imaginação e da diversidade e assim desencoraja a formação crítica e aniquila a individualida de 26 Falta com frequência o essencial a formação de espíritos capazes de pen sar por conta própria mesmo porque ensinar não é só transmitir informação mas criar as condições para produção do conhecimento 27 Não surpreende assim que ensinaraprender direito significa hoje basicamente preparar alguém para ser aprovado em concurso público e pois obter um emprego estável e bem remunerado de modo que o bom aluno o bom profissional é aquele que obtém aprovação em concurso público concurso que em geral se limita a cobrar informação de leis e códigos28 e indiretamente estimula a subserviência e o conser juiz penal mas de modo algum suficiente pois afinal o bom juiz penal o é de nascença O coração bondosamente compreensivo e a mão que conduz com firmeza que não lhe podem faltar não lhe poderão ser dados por nenhuma fonnação Introdução à ciência do direito S Paulo Martins Fontes 1 999 p 123 25 Radbruch Gustav citado por A1ihur Kaufmann Filosofia do Direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 p 1 2 1 26 E a ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas não rígidos imitadores de padrões compo1iamentais estabelecidos Feyerabend cit 27 Paulo Freire Pedagogia da Autonomia Paz e Terra S Paulo 2004 Freire chama isso de concepção bancária da educação que consiste em transmitir info1mação sem nenhum senso crítico Pedagogia do oprimido S Paulo Paz e Terra 2004 28 Saio de Carvalho chama a atenção inclusive para o fato de que os cu1Tículos e livros didáticos de di reito penal são pensados e estruturados a partir da disposição dos temas e dos institutos apresentados 162 IO I INTRODUÇÃO G E RAL vadorismo Por consequência o bom juiz o bom promotor é também aquele que se conforma com a orientação dominante ditada pelo tribunal ou instituição a que per tence E o êxito na carreira jurídica é um continuum desse processo de domesticação que precede à formação jurídica inclusive Não é preciso dizer o quanto essa cultura da lei e da ordem favorece a legitimação de estruturas elitizadas de poder instituições tribunais conselhos facilmente criticá veis e eventualmente extinguíveis fosse outro o ambiente 7 Numa confusão mais ou menos consciente entre lei e direito ignorase que o direito assim como justiça ética estética etc seja em última análise um conjunto móvel de metáforas e metonímias associadas ao que julgamos bom e razoável e que por isso tem conteúdo grandemente indeterminado afinal o direito e o torto não preexistem à interpretação mas são dela resultado Pressu põese enfim que a interpretação depende da lei e do direito e não o contrário que é a lei e o direito que dependem da interpretação Exatamente por isso a lei por mais clara pode ser interpretada de formas diversas e portanto conduzir a resultados também diversos 2 FUNCIONALISMO SISTEMA RACIONALFINAL TELEOLÓGICO OU FUNCIONAL Um sistema assim formulado e orientado é claramente teleológico ou funcional visto perseguir por meio da dogmática meio a realização da justiça criminal no caso concreto fim segundo uma dada concepção políticocriminal relativamente aos fins da Iena29 Pois bem semelhante perspectiva de orientar a dogmática políticocriminalmen te devese a Claus Roxin que a propôs pela primeira vez em sua obra Kriminalpolitik und Strafrechtssystem30 Política criminal e sistema de direito penal de 1970 E os defensores dessa orientação estão de acordo são palavras de Roxin em rechaçar o ponto de partida do sistema finalista e consideram que a formulação pelo Código Penal sendo certo que a codificação determina o conteúdo programático dos cursos Antimanual cit p 24 29 Para uma crítica ao funcionalismo Juarez Tavares Teoria do crime culposo Rio Lumen Juris 2009 30 Nela defende Roxin que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas políticocrimi nais introduziremse no sistema do direito penal de tal forma que a fundamentação legal a clareza e previsibilidade as interações harmônicas e as consequências detalhadas desse sistema não fiquem a dever nada à versão formalpositivista de proveniência lisztiana Submissão ao direito e adequação a fins políticocriminais não podem contradizerse mas devem ser unidas numa síntese da mesma for ma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis mas compõem uma unidade dialética uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material e tampouco pode utilizarse da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito afirmando mais adiante que a unidade sistemática en tre política criminal e direito penal também deve ser realizada na construção da teoria do delito é somente o cumprimento de uma tarefa que é colocado a todas as esferas da ordem jurídica Política criminal cit p 20 e 22 163 PAULO QJEIROZ do sistema jurídicopenal não pode vincularse a realidades ontológicas prévias ação causalidade estruturas lógicoreais senão que única e exclusivamente deve guiarse pelas finalidades do direito penal 31 Mas o próprio Roxin reconhece que tal ponto de vista não introduz algo de absolutamente inovador pois parte de postulados neokantianos mas avança no sentido de substituir a algo vaga orientação neokan tiana aos valores culturais por um critério de sistematização especificamente jurí dicopenal as bases políticocriminais da moderna teoria dos fins da pena 32 Em consequência cada categoria do delito tipicidade ilicitude e culpabilidade deve ser observada desenvolvida e sistematizada sob o ângulo de sua função políticocri minal 33 O funcionalismo pretende unir assim a teoria do delito à teoria da pena ou inte grar política criminal e dogmática penal temas tradicionalmente tratados de forma separada como se nenhuma relação mantivessem entre si ao menos para a doutri na 34 De acordo com esse ponto de vista o sistema de direito penal há de estar estru turado teleologicamente atendendo a finalidades valorativas35 é dizer as finalidades que constituem o sistema de direito penal só podem ser de tipo políticocriminal já que os pressupostos de punibilidade devem ser orientados segundo os fins do direito penal motivo pelo qual as categorias básicas do sistema tradicional tipici dade ilicitude e culpabilidade se apresentam como instrumentos de valoração polí tica 36 Mas se é certo que por um lado a perspectiva funcional constitui um avanço em face do pensamento tradicional causalista neokantista finalista ou misto uma vez que junta a teoria do delito à teoria da pena37 por outro incerta é a sua exata reper cussão na estrutura da teoria do delito tantas são as concepções políticocriminais 3 1 Derecho penal cit p 203 32 Roxin Derecho penal cit p 203 33 Política criminal cit p 29 34 Digo ao menos para a doutrina por considerar que o legislador e os juízes em geral notadamente o tribunal do júri diferentemente da doutrina sempre se guiou por motivos pragmáticos buscando sem pre resolver prioritariamente situações concretas e nesse sentido sempre foi funcional sobretudo se se tiverem em conta no que se refere ao legislador as múltiplas causas de extinção de punibilidade CP art 107 35 Roxin Derecho penal cit p 2 1 7 36 Roxin Derecho penal cit p 2 1 721 8 37 Dilo claramente Roxin o direito penal é muito mais a forma através da qual as finalidades político criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica Se a teoria do delito for construída neste sentido teleologicamente cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmáti ca abstrataconceituai herdada dos tempos positivistas Um divórcio entre construção dogmática e acertos políticocriminais é de plano impossível e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmáticopenal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências políticocriminais estas em regras jurídicas da lex lata ou ferenda é um processo em cada uma de suas etapas necessário e importante para a obtenção do socialmente correto Política criminal cit p 82 164 I O J l I NTRODUÇÃO GERAL sobre o papel do direito penal ou tantos são os funcionalismos inclusive porque como observa Mir Puig o problema da função do direito penal constitui um tema inevitavel mente valorativo e opinável38 No particular Roxin entende em conformidade com a sua teoria dialética unificadora da pena que os direitos humanos e os princípios do Es tado Social integram as valorações políticocriminais que devem constituir a espinha dorsal do sistema 39 Em consequência teremos perspectivas funcionais liberais ou conservadoras conforme sejam as funções liberais ou conservadoras cometidas ao direito penal Daí se falar atualmente de um funcionalismo moderado Roxin e seguidores que parte da teoria dialética unificadora e de um funcionalismo radical ou sistêmico adotado por Jakobs e outros que partem da teoria da prevenção geral positiva ou integradora de inspiração sistêmica aquele de corte liberal esta conservador40 Por último a configuração e o papel a ser desempenhado pela dogmática e cada uma de slJrns categorias sistemáticas dependerão por igual do ponto de partida que se adote41 Devese ressaltar finalmente com Sílva Sánchez que a corrente dogmática que hoje é denominada funcionalista ou teleológica não é mais que o produto da acen tuação dos aspectos teleológicos valorativos já presentes na concepção dominante não constituindo algo absolutamente novo e que ameace destruir toda a dogmática tradicional42 O próprio Roxin reconhece que não se deve superdimensionar a diver gência pois apesar das mudanças dialéticas de direção tais sistemas se encontram numa linha de desenvolvimento contínuo as categorias fundamentais se mantiveram desde o naturalismo até hoje apesar de todas as modificações de conteúdo a que fo ram submetidas43 38 Función de la pena y teoria dei delito en e Estado Social y Democrático de Derecho Barcelona Bosch 1 982 p 1 5 39 Roxin Funcionalismo cit p 232 No mesmo sentido Greco em sua Introdução a esta obra p 64 sustenta que a política criminal legítima não pode ser do tipo lei e ordem ou abolicionista mas a po lítica social do Estado Democrático de Direito que adscreve ao Direito Penal uma função de tutela subsidiária de bens jurídicos através da prevenção geral e especial sempre com respeito absoluto aos direitos e garantias constitucionalmente asseguradas 40 Como o reconhece o próprio Jakobs ao se referir a Baratta que tem sua formulação como conserva dora e Smaus que a tem como própria de uma justiça classista Derecho penal cit p 2 122 nota de rodapé 4 1 Sobre a distinção entre o seu sistema e o de Jakobs Roxin assinala que a diferença essencial entre os meus esforços no plano dogmático e sistemático e os objetivos de Jakobs é que eu pretendo converter em categorias dogmáticas e soluções de problemas jurídicos os ideais orientadores de um Estado de Direito liberal e social enquanto que devido ao ponto de partida sistêmicoteorético de Jakobs não constituem dados prévios nenhum conteúdo nenhuma finalidade de política criminal Sobre a evolução da ciência juspenalista alemã no período posterior à guerra Universidade Lusíada 2 1 de março de 2000 42 Aproximación cit p 67 43 Funcionalismo cit p 2 1 1 165 PAU LO QJEIROZ 3 EVOLUÇÃO DA TEORIA DO DELITO CAUSALISMO FINALISMO E FUNCIONALISMO 31 Introdução A forma como se encontra hoje sistematizada a teoria do delito devese funda mentalmente a dois grandes sistemas o causalista ou naturalista e o finalista os quais travaram exaustivo debate sobre o conceito de ação humana considerada por ambos como questão fundamental para a correta sistematização da teoria do delito A partir de 1970 surgiu conforme vimos um novo sistema chamado funcional ou teleo lógico que parece assumir aos poucos status de dominante 32 A teoria causal da ação causalismo ou naturalismo Para a teoria natural da ação ou causalista que como sugere o nome pretendia submeter o direito penal ao método próprio das ciências naturais regidas pela lei da causalidade desenvolvida por Von Liszt44 Beling e também Radbruch a vontade hu mana compreendia duas partes distintas uma parte externa objetiva que corresponde ao processo causal movimento corporal natural mecânico da ação e outra interna subjetiva que corresponde ao conteúdo final da ação A ação parte externa é portanto segundo essa teoria o resultado de um pro cesso puramente causal Nesse sentido Radbruch escreve que há de adotar aquele conceito amplo de ação que exige unicamente a causalidade da vontade e que remete completamente à culpabilidade o problema de qual era o conteúdo do querer45 Mas não quer isso dizer que os causalistas fossem a favor da responsabilidade penal objeti va porque em verdade simplesmente remetem a verificação do conteúdo da ação para outro momento o da culpabilidade a parte interna ou subjetiva Em consequência tipicidade e ilicitude expressariam juízos puramente objetivos causais ao passo que a culpabilidade ao contrário encerraria um juízo subjetivo quando então se examinaria o conteúdo final da ação Também por isso dolo e culpa elementos subjetivos integra riam a culpabilidade que corresponde assim à relação psicológica entre o autor e seu fato concepção psicológica da culpabilidade A base desse sistema é portanto o conceito de ação entendida de maneira total mente naturalística como movimento corporal ação em sentido estrito e modificadora do mundo exterior resultado unidos pelo nexo causal e uma vez verificada a presen ça de uma ação cumpriria examinar a seguir se concorriam os predicados de tipicida de ilicitude e culpabilidade questão que distinguia necessariamente entre elementos objetivos e subjetivos46 44 Para Liszt a ação é mudança do mundo exterior referível à vontade humana isto é causação do re sultado por um ato de vontade entendido como movimento corpóreo voluntá1io isto é com tensão contração dos músculos determinada não por coação mecânica mas por ideias ou representações e efetuada pela intervenção dos nervos Tratado cit p 193 e 1 98 45 Citado por Welzel Derecho penal alemán cit p 46 46 Jescheck Tratado cit p 1 82 166 I O I I I NTRODUÇÃO GERAL O sistema acaba então com a seguinte feição conforme síntese de Luís Greco o tipo compreende os elementos objetivos e descritivos a antijuridicidade o que houver de objetivo e normativo e a culpabilidade o subjetivo e descritivo O tipo é a descrição objetiva de uma modificação no mundo exterior A antijurídicidade é definida formal mente como contrariedade da ação típica a uma norma do direito que se fundamenta simplesmente na ausência de causas de justificação E a culpabilidade é psicologica mente conceituada como a relação psíquica entre o agente e o fato47 Com semelhante formulação chegase então como se vê a um quadro extre mamente formal das características do comportamento humano que devem integrar a estrutura do conceito de crime entendendose a ação naturalisticamente o tipo obje tiva e descritivamente a antijurídicidade objetiva e normativamente e a culpabilidade subjetiva e descritivamente48 33 A teoria final da ação finalismo Já para a teoria final da ação criação de Welzel a ação humana é o exercício de uma atividade final a ação é por isso uma conduta final e não apenas causal49 A finalidade escreveu Welzel ou o caráter final da ação se deve ao fato de que o homem graças ao seu saber causal pode prever dentro de certos limites as conse quências possíveis de sua atividade eleger em consequência fins diversos e dirigir sua ação conforme seu plano Por isso a finalidade é vidente a causalidade cega50 sendo isso que distingue uma ação humana de um evento natural Por conseguinte o conceito de causalidade não foi abandonado com o finalismo mas simplesmente lhe foi acrescentado o elemento finalidade ou seja substituiua como diz Assis Toledo por uma causalidade dirigida51 Assim por exemplo quem se dispõe a matar elege os meios adquire a arma a ser utilizada adota a melhor forma de levar a cabo a empreitada criminosa toma os cuidados para realizála com sucesso etc sendo que a causalidade é apenas uma parte desse complexo processo Em consequência com o finalismo dolo e culpa são deslocados da culpabilidade para a tipicidade já que é a finalidade da ação que dirá por exemplo se estamos diante de um tipo legal de delito ou outro v g se a intenção é matar existe homicídio se é apenas ferir haverá lesão ou ainda se estamos perante um fato típico ou não como regra só são puníveis as ações dolosas uma vez que do ponto de vista puramente causal tais condutas em nada se distinguem A doutrina finalista implica assim con trariamente ao sistema causalista uma nova subjetivação do injusto e uma crescente dessubjetivação e normativização da culpabilidade52 47 Luís Greco Introdução à dogmática funcionalista do delito Revista Jurídica Porto Alegre ano 48 p 36 jul 2000 48 Jescheck Tratado cit p 1 83 49 Welzel Derecho penal alemán cit p 39 50 Derecho penal alemán cit p 3940 5 1 Princípios básicos cit p 95 52 Roxin Funcionalismo cit p 200 167 PAULO QJEIROZ Mas se ação é o exercício da atividade final como explicar a estrutura dos crimes culposos Cláudio Brandão responde a isso dizendo que existe sim nesses crimes uma vontade dirigida a um fim só que o fim será conforme o direito de modo que a reprovação nos crimes culposos não recai na finalidade do agente mas nos meios que o agente elegeu para a consecução de um fim53 No entanto parece que o próprio Welzel não estava suficientemente convencido de semelhante explicação visto que como ob serva Luzón Pefía em sua última etapa Welzel propôs inclusive ainda que de modo fugaz substituir o conceito de ação final por ação cibernética na qual o que conta é o controle da vontade presente tanto nos fatos dolosos quanto nos culposos54 O sistema finalista não pode explicar tampouco a estrutura dos crimes omissivos visto que o omitente não detém o controle causal da ação sendolhe reprovado ao con trário precisamente a não realização de uma conduta no sentido de evitálo De todo modo apesar das diferenças causalistas e finalistas concordam num pon to fundamental partem de um conceito ontológico de ação isto é préjurídico que pertence ao mundo do ser da realidade55 Há quem considere inclusive que no fundo não há diferença alguma entre o conceito causalista e finalista de ação56 34 Funcionalismo Em 1970 surge como assinalado com a obra de Claus Roxin Kriminalpolitik und Strafrechtssystem política criminal e sistema de direito penal o funcionalismo que com uma marcada preocupação pragmática e como reação à excessiva abstração do fi nal ismo em especial ao seu ontologismo estruturas lógicoreais ou materiais da ação isto é prévias ao direito pretende orientar a dogmática penal segundo as funções polí ticocriminais cometidas ao direito penal prevenção geral e especial 53 Teoria jurídica do crime Rio de Janeiro Forense 2000 p 26 54 Curso cit p 253 Este autor afinna ainda que o conceito final de ação responde a um modelo de masiado racionalista da conduta humana limitandose às ações mais perfeitamente elaboradas as planificadas consciente e controladamente para um objetivo sendo pois excessivamente restrito já que deixa fora muitas formas de ação p 254 55 Como observa Greco o sistema finalista tenta superar o dualismo metodológico do neokantismo negando o axioma sobre o qual ele assenta o de que entre ser e dever ser existe um abismo impos sível de ultrapassar A realidade para o finalista já traz em si uma ordem interna possui uma lógica intrínseca a lógica da coisa sachlogik O direito não pode flutuar nas nuvens do dever ser uma vez que o que vai regular é a realidade Deve portanto descer ao chão estudar essa realidade submetêla a uma análise fenomenológica e só após haver descoberto suas estruturas internas passar para a etapa da valoração jurídica Os conceitos científicos não são variadas composições de um material idêntico e avalorado mas reproduções de pedaços de um complexo ser ôntico ao qual são imanen tes estruturas gerais e diferenças valorativas que não foram fruto da criação do cientista Welzel Introdução Revista cit p 39 56 Assim Gimbernat Ordeig ou seja para Welzel existe ação sempre que se persiga um fim sendo indiferente qual o fim que se persegue Apesar de meus esforços não consigo ver diferença alguma entre este conceito de ação e o mantido desde sempre pela doutrina causalista para a qual há ação quando se quer algo sendo indiferente o que seja este algo Estudios de derecho penal Madrid Tecnos 1990 p 1691 70 168 lül I INTRODUÇÃO GERAL De acordo com Roxin sob a bandeira do conceito de ação a dogmática penal penetrou em domínios jurídicos que lhe são estranhos e o conceito de ação tal como formulado por causalistas e finalistas não serve para absolutamente nada fora do direi to penal e mesmo em relação ao direito penal tem importância teórica secundária e carece de qualquer importância prática 57 No sistema funcionalista roxiniano a teoria do delito está assim estruturada o tipo formulado conforme o princípio da legalidade e tendo por função básica a pre venção geral de delitos motivo pelo qual uma ação é considerada punível indepen dentemente da situação concreta e do seu autor salvo situações excepcionais passa a desempenhar o seguinte papel a cada tipo deve ser interpretado segundo o fim da lei teleologicamente isto é de maneira que os comportamentos legalmente proibi dos sejam completamente compreendidos e que o efeito motivador preventivogeral se mostre livre de lacunas b uma prevenção geral eficaz pressupõe a determinação taxatividade da lei com a maior exatidão e fidelidade ao sentido literal possíveis c no âmbito da tipicidade será também analisada a presença dos requisitos que autori zam a imputação objetiva do resultado Em consequência a necessidade abstrata da pena sob o aspecto da prevenção geral e o princípio da culpabilidade são os pontos de vista políticocriminais que regem o tipo excluída nesse contexto a prevenção especial que é estranha ao tipo uma vez que pressupõe um autor concreto que aqui não desempenha papel algum58 De notar ainda que no sistema teleológicofuncional a categoria da tipicidade enriquece cada vez mais com a adoção e agora vasta lite ratura da moderna teoria da imputação objetiva que tem em Roxin e Jakobs seus principais expoentes Já na categoria do injusto fato típico e ilícito a ação típica concreta é analisada segundo o aspecto da autorização ou da proibição levandose em conta todos os ele mentos reais da situação particular que passa a ser moldado políticocriminalmente por três funções a solucionar colisão de interesses de forma relevante para a punição de um ou mais envolvidos no fato b servir como ponto de apoio para as medidas de segurança e outras consequências jurídicas c ligar o direito penal à totalidade do or denamento jurídico integrando as valorações decisivas deste uma vez que não é uma categoria específica do direito penal mas do direito como um todo59 Finalmente na categoria da responsabilidade expressão compreensiva da culpabi lidade e necessidade preventiva interessa saber se o autor individual merece concreta mente punição pelo injusto realizado de sorte que no campo dos pressupostos da pu nição a responsabilidade se apresenta como a realização dogmática da teoria dos fins da pena dirigindose não ao fato mas ao seu autor uma vez que se pergunta a respeito de sua necessidade individual de pena60 57 Problemas fundamentais cit p 9192 58 Roxin Derecho penal cit p 235 59 Roxin Derecho penal cit p 235236 60 Roxin Derecho penal cit p 241242 169 PAU LO QlJEIROZ 4 RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA Reinava absoluto até recentemente o princípio societas deinquere non potest as sociedades não podem delinquir contrário à possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica Diversas legislações porém à vista do aumento da chamada crimi nalidade empresarial e com o propósito de prevenila e reprimila mais eficazmente têmna admitido a exemplo da Inglaterra Estados Unidos Holanda França e Dina marca61 Afirmase assim com Franz von Liszt que quem pode firmar contratos pode também firmálos fraudulentamente62 Entre nós a Constituição à semelhança dessas legislações estabeleceu que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores pessoas físicas ou jurídicas a sanções penais e administrativas independentemen te da obrigação de reparar os danos causados art 225 3º No mesmo sentido dispôs o art 3º caput da Lei nº 960598 Lei Ambiental que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa civil e penalmente conforme o disposto nes ta Lei nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado no interior ou benefício da sua enti dade A adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica é fora de dúvida portanto Apesar disso alguns autores entendem que a Constituição não chegou a admitila63 Mas nada há na Constituição especialmente no dispositivo citado que ampare tal posicionamento Na verdade tudo sugere justamente o contrário da tese sustentada por tais autores pois o que se quis realmente foi submeter todos pessoas físicas e jurídi cas à lei penal e não só à lei administrativa ou civil indistintamente A Lei nº 960598 se limitou pois a regulamentar a Constituição Além do mais o problema da responsabilidade penal da pessoa jurídica é em princípio um problema de direito infraconstitucional seja porque a Constituição não a proibiu nem expressa nem tacitamente seja porque a explícita referência ao crime ambiental não exclui in clusive a possibilidade de ampliação dessa responsabilidade 6 1 Cf Shecaira Responsabilidade penal da pessoa jurídica São Paulo Revista dos Tribunais 1998 62 Tratado cit t l p 1 9 1 63 Nesse sentido René Ariel Dotti Miguel Reale Júnior Sheila Jorge Selim de Sales e Luiz Regis Prado que escreve textualmente embora ambíguo o texto não há falar aqui porém em previsão de responsabilidade criminal das pessoas coletivas Aliás o dispositivo em tela referese claramente a condutaatividade e em sequência a pessoas físicas ou jurídicas Dessa forma vislumbrase que o próprio legislador procurou fazer a devida distinção através da correção significativa mencionada Curso de Direito Penal S Paulo RT 2005 p 302 Também assim Cezar Bitencomi para quem apesar dessa previsão constitucional não houve em verdade pretensão de consagrar a responsabi lidade penal da pessoa jurídica pois a obscura previsão do art 225 3º da Constituição Federal relativamente ao meio ambiente tem levado alguns penalistas a sustentar equivocadamente que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica No entanto a responsabilida de penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual Manual cit v 2 p 21 170 l ü l l I NTRODUÇÃO GERAL E tampouco há aí violação ao princípio da responsabilidade penal subjetiva CF art 5 quer porque não existem normas constitucionais inconstitucionais Bachof64 quer porque a responsabilidade penal da pessoa jurídica é uma exceção à regra quer porque semelhante previsão constitucional não importa inevitavelmente em responsa bilidade objetiva ou sem culpa quer porque como exceção que é constitui um modo à parte especial de imputação e pois sujeita a critérios distintos de responsabilização Além disso a Lei Ambiental condicionou a responsabilidade penal da pessoa ju rídica ao cometimento de uma infração penal por decisão do seu representante e em benefício da empresa afastando em princípio a alegação de responsabilidade penal objetiva ou sem culpa Ainda assim duas objeções poderiam ser feitas contra tal inovação conforme po sição adotada nas edições anteriores e agora revista A primeira de caráter político criminal a segunda de cunho dogmático Políticocriminalmente semelhante dispositivo violaria o princípio da proporcio nalidade pois tendo em vista os fins preventivos gerais e especiais da pena tal res ponsabilidade seria desnecessária e inadequada sobretudo porque as sanções admi nistrativas já existentes seriam bastantes para combater os atos abusivos praticados por empresas se compararmos aliás as sanções previstas nos artigos que tratam das sanções penais e administrativas verificaremos que são essencialmente as mesmas implicando aparentemente bis in idem65 Apesar da coincidência em parte das sanções penais e administrativas não há porém bis in idem em virtude da diversidade de fundamentos da punição no direito administrativo a infração administrativa no direito penal a infração penal crime as quais estão sujeitas a pressupostos e requisitos distintos de apuração E a semelhança de sanções que parece ser cada vez mais frequente no direito contemporâneo não implica por si só dupla apenação pelo mesmo fato Aliás no essencial não é diversa a situação das infrações administrativas penais etc praticadas por funcionários públi cos passíveis igualmente de pena administrativa penal etc de suspensão ou perda do cargo entre outras Poderseia objetar ainda que se com as medidas administrativas já previstas não são atingidos os fins preventivos desejados apesar da menor formalidade e maior 64 Bachof Otto Normas Constitucionais Inconstitucionais Trad José Manuel Cardoso da Costa Reimpressão da Ed de 200 1 Coimbra Livraria Almedina 2008 65 As penas aplicáveis às pessoas juridicas são multa suspensão parcial ou total de atividades interdi ção temporária de estabelecimento obra ou atividade proibição de contratar com o Poder Público bem como dele obter subsídios subvenções e doações além de prestação de serviço à comunidade arts 21 a 23 Já as sanções administrativas art 72 cujo rol é mais extenso são multa simples e diária apreensão de animais destruição ou inutilização do produto suspensão de venda e fabricação do produto embargo de obra ou atividade demolição de obra suspensão parcial ou total de ativida des além de restritivas de direito suspensão eou cancelamento de registro licença ou autorização perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais proibição de contratar com a Administração etc 171 PAULO QlEIROZ presteza que as presidem é improvável que tais finalidades sejam atingidas por meio do processo penal que é em geral mais demorado mais burocrático e cercado de ga rantias mais rigorosas Quanto a isso cabe redarguir que não é rara a omissão ou ineficiência corrup ção inclusive dos órgãos administrativos incumbidos da repressão das infrações ad ministrativas a justificar também por isso a pronta intervenção Uurídicopenal do Ministério Público e do Judiciário no particular ainda que subsidiariamente Enfim a intervenção penal está justificada em virtude do fracasso ou insuficiência dos instru mentos civis e administrativos de prevenção e controle existentes a legitimar essa sua intervenção subsidiária É certo ainda que com alguma frequência crimes ambientais e outros são prati cados por empresas que em virtude de sua complexa estrutura tornam difícil senão impossível a identificação das pessoas físicas responsáveis pela infração Não é pois o caso de violação ao princípio da proporcionalidade em razão da necessidade teórica e prática principalmente do direito penal no particular Já do ponto de vista dogmático poderseia afirmar que estando estruturado e destinado a reger a vontade humana a pessoa física e suas motivações exclusivamen te o direito penal ao menos como ainda hoje o conhecemos seria incompatível com essa responsabilidade de sorte que penalmente a pessoa jurídica não poderia ser sujei to ativo de uma ação que seja típica ilícita e culpável66 Faltarlheia enfim capacidade de ação De acordo com Gracia Martín por carecer de capacidade de ação e portanto de realizar ações típicas o critério de imputação do fato à pessoa jurídica não pode ter caráter jurídicopenal tendo natureza bem diversa como risco objetivo benefício en riquecimento sem causa reafirmação do direito de terceiros de boafé afirmação da validez da aparência jurídica etc critérios que são em todo caso estranhos ao direito penal67 E mais não seria propriamente a pessoa jurídica que celebraria contratos uma vez que simplesmente a eles se vincularia os quais em verdade seriam celebrados pe las pessoas individuais que atuam como seus agentes68 Nesse sentido Gracia Martín distinguindo entre sujeito da ação e sujeito da imputação sustenta que no caso das pessoas jurídicas sujeito da ação e sujeito da imputação são sempre e inevitavelmente 66 De acordo com Gracia Martín rebatendo Tiedemann Brender e Hirsch que defendem a responsabi lidade penal da pessoa jurídica todos os argumentos desenvolvidos em seu favor remetem constan temente à pessoa física e com isso demonstram que só esta a pessoa humana pode ser realmente destinatária da norma penal por ser sujeito de uma infração e de uma sanção La cuestión de la res ponsabilidad penal de las personas jurídicas in Responsabilidade penal da pessoa jurídica em defesa da imputação subjetiva São Paulo Revista dos Tribunais 200 1 p 66 67 La cuestión in Responsabilidade cit p 45 68 Rodriguez Mourullo apud Gracia Martín La cuestión in Responsabilidade cit p 43 172 1 0 1 1 I NTRODUÇÃO G ERAL distintos pois estas só podem atuar por meio de órgãos e representantes é dizer as pessoas físicas sujeitos da ação69 Em consequência não podendo praticar uma ação não podem realizar um fato típico ilícito e culpável Por isso é que todo o aparato de conceitos e institutos jurídi copenais hoje existente seria incompatível com a responsabilidade penal da pessoa jurídica Assim por exemplo a ideia de dolo de descriminantes putativas de legítima defesa de erro de proibição de coação moral etc Finalmente se é função do direito penal motivar seus destinatários a atuarem con forme o direito quer em caráter geral prevenção geral quer em caráter individual prevenção especial seguirseia que só a pessoa humana dotada de capacidade de discernimento e autodeterminação poderia ser sujeito ativo de crime visto que só os seres humanos podem ouvir e entender as normas só eles seriam passíveis de motiva ção e portanto de cometer crimes70 Temos porém que todos os argumentos de caráter dogmático são perfeitamente superáveis Inicialmente porque se a pessoa jurídica é sujeito de direito pouco importando se se trata de ficção ou realidade pode ser ipso facto sujeito de direito penal visto que o direito penal antes de ser penal adjetivo é direito substantivo tendo assim uma estrutura comum Exatamente por isso a distinção entre os modos de responsabilização jurídica pe nal e nãopenal não é qualitativa mas quantitativa Também por isso a diferenciação entre o ilícito civil e o penal entre a sanção civil e penal não preexiste à interpretação mas é dela resultado Por isso que os critérios de imputação penal e nãopenal não são essencialmente mas acidentalmente diversos conforme razões de conveniência políti cocriminal Quanto à objeção relativa aos fins da pena cabe falar de prevenção especial no sentido de evitar a reiteração reincidência de novas infrações pela empresa condena da e de prevenção geral negativa no sentido de a cominaçãoexecução da pena servir de advertência para outros possíveis infratores empresas E mais a função do direito 69 Escreve textualmente Gracia Martín No caso das pessoas jurídicas ao contrário sujeito da impu tação e sujeito da ação têm que ser sempre e irremediavelmente diferentes pois aquelas só podem atuar através de seus órgãos e representantes é dizer as pessoas físicas sujeitos da ação Pois bem a meu juízo aquilo que é imputado imediatamente à pessoa jurídica são em primeiro lugar os efeitos jurídicos produzidos pela ação do órgão ou do representante por exemplo dos efeitos jurídicocivis do contrato celebrado imediatamente pela pessoa física que representa a jurídica o que talvez possa coincidir em seus elementos naturalísticos com a descrição do tipo objetivo do fato punível Porém o elemento portador da possibilidade de imputação jurídicopenal é em qualquer caso só o exercício da vontade em sentido psicológico e no processo de sua formação Se a ação é concebida como eu entendo como exercício da atividade finalista e a omissão como não realização de uma ação finalista então é evidente que a pessoa jurídica carece de capacidade de ação no sentido do Direito Penal La cuestión in Responsabilidade cit p 4 1 42 70 Assis Toledo Princípios básicos cit p 9 1 173 PAULO QLlEIROZ penal é a função de todo o direito que é a proteção subsidiária de bens jurídicos sem pre que as outras formas de prevenção e controle social se revelarem insuficientes E do ponto de vista da prevenção é muito mais razoável e eficaz intervir sobre a empresa fazendo cessar a atividade lesiva do que intervir sobre o indivíduo que eventualmente a representa cuja punição poderá resultar absolutamente inútil prin cipalmente se lhe tocar um papel secundário na empresa ou já houver dela se desliga do Além disso as pessoas físicas são facilmente substituíveis mantendose incólume a empresa criminosa E também não é justo punir penalmente o mais fraco indivíduo isentando de responsabilidade penal o mais forte a empresa legitimando assim a arbitrária seletividade do sistema penal Finalmente não procede a distinção entre sujeito da ação e da imputação porque quem fala pela pessoa jurídica pessoa jurídica é isto é quem a representa pessoa físi ca não atua em nome próprio mas em nome da empresa representada v g quem age em nome do Estado é o próprio Estado Franz von Liszt tinha razão portanto quem pode firmar contratos pode firmálos fraudulentamente e pois firmálos criminosa mente E por ser um modo distinto e autônomo de imputação a responsabilidade penal da pessoa jurídica pode inclusive existir isoladamente independente da responsabili dade da pessoa física eventualmente corresponsável ao contrário do que tem decidido o STJ Ademais a Lei Ambiental não condicionou a responsabilidade penal da pessoa jurídica à da pessoa física apenas ressalvando que as duas formas de imputação não se excluem Com efeito o art 3º parágrafo único da Lei nº 960598 dispõe que a res ponsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas autoras coautoras ou partícipes do mesmo fato Não se trata portanto de concurso necessário mas de concurso eventual de pessoas Em verdade a responsabilidade penal da pessoa jurídica constitui uma forma especial de imputação diversa das pessoas físicas a exigir por isso um tratamento penal próprio eventualmente também uma legislação própria com critérios próprios penais e processuais penais de responsabilização aí incluídos os crimes praticáveis pela pessoa jurídica os critérios especiais de individualização judicial da pena além do rol das pessoas jurídicas possivelmente excluídas desse tratamento penal especial v g determinadas pessoas jurídicas de direito público Precisamente por isso não é suficiente que a lei preveja sem mais a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica É necessário ainda estabelecer os crité rios objetivos e subjetivos de imputação e individualização judicial da pena conforme as peculiaridades da pessoa jurídica inclusive para darlhe conformação constitucional e afastar as críticas políticocriminais e dogmáticas que lhe são ordinariamente feitas Enfim a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica politicamente recomendável e dogmaticamente possível quebrou uma tradição e ao fazêlo o legis lador deixou de estabelecer os conceitos e critérios básicos penal e processual penal de apuração dessa nova forma de responsabilização como se fosse possível aplicar à 174 I O I I NT RODUÇÃO G ERAL empresa conceitos como dolo legítima defesa personalidade do réu etc próprios da pessoa física No essencial a dogmática relativa aos crimes praticáveis pela pessoa ju rídica está ainda por ser construída 41 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STJ No Superior Tribunal de Justiça a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica está praticamente consolidada relativamente aos crimes previstos na Lei nº 960598 crimes ambientais Mas o STJ só a tem reconhecido quando há dupla imputação à pessoa jurídica e à física simultaneamente não podendo haver imputação isolada isto é somente à em presa Com efeito de acordo com o Ministro Félix Ficher no julgamento do Resp nº 889528SC DJU de 18062007 admitese a responsabilidade penal da pessoa ju rídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício uma vez que não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física que age com elemento subjetivo próprio O precedente abaixo resume bem o estado atual da questão Criminal REsp Crime Ambiental praticado por pessoa jurídica Responsabilização penal do ente coletivo Possibilidade Previsão constitucional regulamentada por lei federal Opção política do legislador Forma de prevenção de danos ao meioam biente Capacidade de ação Existência jurídica Atuação dos administradores em nome e proveito da pessoa jurídica Culpabilidade como responsabilidade social Corresponsabilidade Penas adaptadas à natureza jurídica do ente coletivo Acu sação isolada do ente coletivo Impossibilidade Atuação dos administradores em nome e proveito da pessoa jurídica Demonstração necessária Denúncia Inepta Recurso Desprovido 1 A Lei ambiental regulamentando preceito constitucional passou a prever de forma inequívoca a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meioambiente III A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambien tais advém de uma escolha política como forma não apenas de punição das con dutas lesivas ao meioambiente mas como forma mesmo de prevenção geral e especial IV A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta inca pacidade de praticarem uma ação de relevância penal de serem culpáveis e de sofrerem penalidades V Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores poderá vir a pra ticar condutas típicas e portanto ser passível de responsabilização penal VI A culpabilidade no conceito moderno é a responsabilidade social e a culpa bilidade da pessoa jurídica neste contexto limitase à vontade do seu adminis trador ao agir em seu nome e proveito VII A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física que atua em nome e em benefício do ente moral 175 176 PAU LO QJEIROZ VIII De qualquer modo a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indire tamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contra tual ou de seu órgão colegiado IX A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas de prestação de serviços à comunidade restritivas de direitos liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica todas adaptadas à sua natureza jurídica X Não há ofensa ao princípio constitucional de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado pois é incontroversa a existência de duas pessoas distin tas uma física que de qualquer forma contribui para a prática do delito e uma jurídica cada qual recebendo a punição de forma individualizada decorrente de sua atividade lesiva XI Há legitimidade da pessoa jurídica para figurar no polo passivo da relação processualpenal XII Hipótese em que pessoa jurídica de direito privado foi denunciada isolada mente por crime ambiental porque em decorrência de lançamento de elementos residuais nos mananciais dos Rios do Carmo e Mossoró foram constatadas em extensão aproximada de 5 quilômetros a salinização de suas águas bem como a degradação das respectivas faunas e floras aquáticas e silvestres XIII A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física que atua em nome e em benefício do ente moral XIV A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa XV A ausência de identificação das pessoas físicas que atuando em nome e pro veito da pessoa jurídica participaram do evento delituoso inviabiliza o recebi mento da exordial acusatória XVI Recurso desprovido REsp nº 6 1 0 1 1 4RN Relator o Ministro Gilson Dipp DJU de 1 91122005 Mas a exigência de dupla imputação é infundada porque 1 a lei não a requer expressa ou tacitamente 2 a responsabilidade penal da pessoa jurídica é distinta e autônoma da responsa bilidade de seus agentes 3 quem age em favor da empresa não atua em nome próprio 4 isentar a empresa de responsabilidade penal por crime praticado em seu benefí cio seria exculpar o principal responsável e mais condicionar sua punibilidade à ação acessória pessoa física 5 isentar a empresa de culpa implica legitimar direta ou indiretamente a arbitrá ria seletividade do sistema penal de modo a recrutar sua clientela sempre entre os mais fracos pessoa física com violação ao princípio da isonomiaigualda de 6 quer do ponto de vista da prevenção geral quer do ponto de vista da prevenção especial é mais justo e eficaz intervir sobre a empresa inclusive porque seus membros pessoa física são facilmente substituíveis sem que a situação da empresa sofra alteração relevante l ül I I NTRODUÇÃO G E RAL 42 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STF Já o Supremo Tribunal Federal STF tem que a responsabilidade penal da pessoa jurídica independe da pessoa física que a representa Nesse sentido RE 548181PR rel Min Rosa Weber de 692013 No mesmo sentido decidiu o Tribunal Regional Federal da Primeira Região71 PENAL PROCESSUAL PENAL MANDADO DE SEGURANÇA CRIME AM BIENTAL RESPONSABILIDADE PENAL PESSOA JURÍDICA ISOLADA MENTE POSSIBILIDADE ART 225 3º DA CF ART 3º DA LEI 960598 MANDADO DE SEGURANÇA DENEGADO 1 O legislador constituinte admitiu a responsabilização penal das pessoas jurídicas objetivando proteger o meio ambiente da degradação posto que considerado essen cial à sadia qualidade de vida e merece ser preservado para as presentes e futuras gerações 2 A dicção do art 225 3º da CF88 permite concluir que a responsabilização penal da pessoa jurídica independe da responsabilização da pessoa natural Pode assim a denúncia ser dirigida apenas contra o ente coletivo caso não se descubra autoria ou participação de pessoas físicas ou se dirigida contra ambas física e jurí dica ser recebida apenas quanto a esta uma vez configuradas hipóteses de rejeição contra aquela 3 A lei ambiental não condicionou a responsabilidade penal da pessoa jurídica à da pessoa física apenas ressalvou que as duas formas de imputação não se excluem como se extrai do disposto no art 3º parágrafo único da Lei 960598 4 Recente decisão do STF no julgamento do AgR no RE n 628582RS consignou ser possível a condenação da pessoa jurídica pela prática de crime ambiental ainda que absolvida a física 5 Ofertada denúncia contra pessoa física e jurídica mesmo que absolvida sumaria mente CPP art 397 III aquela há a possibilidade de aditamento para se incluir responsável pessoa fisica pelo delito ambiental imputado fato revelador no míni mo de ser precipitado o trancamento da ação penal contra a pessoa jurídica na via do mandado de segurança 6 Mandado de Segurança denegado 7 1 MANDADO DE SEGURANÇA CRIMINAL N 002 1 154602010401 0000BA Relator Desem bargador Carlos Olavo em 2 1 de março de 201 2 177 Sumário 1 Introdução 11 Posse de droga para consumo pessoal descriminalização ou despenalização 2 Conceito doutrinário de crime 3 Conceito analítico de crime 31 Tipicidade 32 Ilicitude 33 Culpabilidade 34 Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime 1 INTRODUÇÃO O conceito de infração penal varia conforme a perspectiva adotada legal ou doutrinária Do ponto de vista legal a infração penal pode ser um crime um delito ou uma contravenção adotandose uma classificação tri ou bipartida O conceito legal de infração é dado pela Lei de Introdução ao Código Penal Dec lei n 391441 cujo art 1 dispõe considerase crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção quer isoladamente quer alternativa ou cumulativamente com pena de multa contravenção a infração a que a lei comina isoladamente pena de prisão simples ou de multa ou ambas alternativa ou cumulativamente Vêse pois que entre nós foi acolhida uma classificação bipartida a infração penal gênero compreende duas espécies crime e contravenção diversamente de outros países que adotam uma classificação tripartite crime delito e contravenção No Brasil crime e delito são uma só e mesma coisa Mas essa definição legal de infração está grandemente superada primeiro porque a Constituição art 5 XLVI prevê um elenco de pena mais amplo segundo porque há na legislação especial crimes punidos exclusivamente com pena de multa ou pena restritiva de direito terceiro porque é perfeitamente possível admitir novas formas de pena desde que não atentem contra os princípios penais especialmente o princípio da humanidade das penas Naturalmente que a distinção entre crime e contravenção é puramente de grau quantitativa crime é uma infração penal mais grave por isso que punível com reclusão ou detenção etc e a contravenção é uma infração de menor potencial ofensivo logo sancionada com prisão simples ou multa Não é raro aliás transformarse uma contravenção em crime embora o inverso transformarse um crime em contravenção seja de difícil ocorrência visto que como regra o legislador procede à descriminalização pura e simples tornando a ação penalmente irrelevante atípica Já do ponto de vista doutrinário a infração penal pode ser definida sob cinco aspectos ao menos formal material formalmaterial analítico e definitorial conforme se verá mais tarde De todo modo o conceito legal é um desdobramento do conceito formal visto que do ponto de vista formal crime é o que a lei declara como tal sob a ameaça de pena E quando a lei o faz o legislador também pode ou não dar um conceito legal PAULO QJEIROZ 11 Posse de droga para consumo pessoal descriminalização ou despenali zação Discutese se o art 28 da Lei nº 1 13432006 que pune quem adquire guarda etc droga para consumo pessoal operou relativamente à legislação revogada uma descri minalização ou despenalização já que a lei só previu penas restritivas de direito ad vertência prestação de serviço à comunidade e medida educativa sem a possibilidade de aplicação de pena privativa da liberdade Descriminalizar é abolir a criminalização tipificação tornando a ação jurídi copenalmente irrelevante já a despenalização expressão um tanto imprópria é a substituição legislativa ou judicial da pena de prisão por penas de outra natureza restritiva de direito etc Portanto se com a descriminalização o fato deixa de ser infração penal crime ou contravenção com a despenalização a conduta permanece cnmmosa Pois bem para Luiz Flávio Gomes a Lei nº 1 13432006 art 28 de acordo com a nossa opinião aboliu o caráter criminoso da posse de drogas para consumo pessoal Esse fato deixou de ser legalmente considerado crime embora continue sendo um ilíci to sui generis um ato contrário ao direito Houve portanto descriminalização formal mas não legalização da droga ou descriminalização substancial1 Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que o que houve foi uma despenaliza ção cujo traço marcante foi o rompimento antes existente apenas com relação às pes soas jurídicas e ainda assim por uma impossibilidade material de execução CF88 art 225 3º Lei 960598 arts 3º 2124 da tradição da imposição de penas privati vas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal2 Realmente houve simples despenalização Inicialmente percebese que o conceito de infração penal é essencialmente for mal crime é o que o legislador declara como tal independentemente da espécie de pena que lhe é cominada E que o legislador tratou formalmente o uso de droga como crime é fora de dúvida Primeiro porque o art 28 faz parte do Capítulo III que tem como título Dos crimes e das penas segundo porque o conceito legal de crime dado pela Lei de Introdução ao Código Penal art lº está há muito superado seja porque a lei especial pode criar con ceito diverso de infração penal como agora o fez seja porque a Constituição que lhe é posterior previu novas espécies de pena CF art 5 XLVI Notese a propósito que a aludida Lei de Introdução de 1941 foi editada na vigência da Constituição de 1937 1 Lei de Drogas Comentada S Paulo RT 2008 p 1 2 1 2 RE 4301 05 QO Relator a Min SEPÚLVEDAPERTENCE Primeira Turmajulgado em 1 3022007 DJe004 DIVULG 26042007 PUBLIC 27042007 DJ 27042007 PP00069 EMENT VOL0227304 PP00729 RB v 1 9 n 523 2007 p 1 721 RT v 96 n 863 2007 p 5 1 6523 180 1 021 CONCEITO DE CRIME Ademais em tempos em que se prega a falência da pena privativa da liberdade3 e sua gradual abolição v g Ferrajoli4 não faria muito sentido condicionar a definição de crime à previsão inexorável de tal modalidade de pena E mais o que realmente interessa para a definição legal de crime não é propriamente a espécie de pena comi nada mas os seus pressupostos legais formais Exatamente por isso se a uma determinada infração fosse cominada pena de mor te exclusivamente nem por isso deixaria de ser crime o mesmo ocorreria se no futu ro forem cominadas às infrações penais somente penas restritivas de direito ou medi das de segurança com a eventual abolição da pena de prisão Além do mais o rol das penas constitucionais não é taxativo mas meramente exemplificativo motivo pelo qual o legislador poderá inclusive criar outras tantas desde que compatíveis com a dignidade da pessoa humana e o princípio da huma nidade das penas proibitivo de penas cruéis e degradantes entre outras CF art 5º XLVII Por conseguinte ao não cominar pena privativa da liberdade o art 28 não impli coll abolitio criminis mas simples despenalização isto é manteve a criminalização mas optou por vedar a pena privativa da liberdade 2 CONCEITO DOUTRINÁRIO DE CRIME Conforme vimos do ponto de vista doutrinário a infração penal pode ser definida sob cinco aspectos ao menos formal material formalmaterial analítico e definitorial Formalmente infração penal é somente o que a lei disser que é já que não há crime nem pena sem lei que o defina ex vi do princípio da legalidade Justamente por isso é que o homicídio o roubo e o estupro constituem crime a lei assim os define Do ponto de vista formal crime é portanto todo fato que a lei proíbe sob a ameaça de uma pena5 Do ponto de vista material crime é uma conduta individual e socialmente danosa ou gravemente lesiva de bem jurídico visto que por implicar as maiores violências 3 Contrariamente Michel Foucault tem uma explicação originalíssima para a longevidade da prisãope na Para ele a função real oculta da pena ao contrário do que pregam os juristas não é propriamente combater a criminalidade mas produzila Por isso que ao aparentemente fracassar escreve Foucault a prisão não erra seu objetivo ao contrário ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade que ela permite separar pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável porque ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível marcada irredutível a um certo nível e secretamente útil rebelde e dócil ao mesmo tempo ela desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar Por conseguinte se do ponto de vista das suas funções declaradas oficiais a pena é um fracasso manifesto do ponto de vista das funções ocultas a prisão é um grande sucesso daí a sua longevidade Foucault Vigiar e punir História da violência nas prisões Trad Raquel Ramalhete 12 ed Petrópolis Vozes 1 995 4 Derecho y razón Teoria dei garantismo penal Trotta Madrid 1 995 5 Aníbal Bruno Direito Penal Parte Geral Tomo 1 Rio de Janeiro Editora Forense 2003 p 1 73 181 PAULO ÜlJEIRüZ em tese sobre a liberdade do cidadão seguese que só faz sentido definir como delito condutas que não possam ser objeto exclusivamente de outras formas menos lesivas de prevenção e controle social aí incluída inclusive a intervenção do direito público e privado Mas a postulação de um conceito material não significa que é possível pensar um conceito ontológico préjurídico de crime como pretendeu o positivismo criminoló gico especialmente Garofalo que concebeu a ideia de um delito natural que seria a lesão daquela parte do sentido moral que consiste nos sentimentos altruístas funda mentais piedade e probidade segundo a medida média em que se encontram as raças humanas superiores cuja medida é necessária para a adaptação do indivíduo à socie dade6 como se fosse possível pensar o crime para além do tempo do espaça7 Já o conceito formalmaterial que reconhece a insuficiência dos critérios formal e material quando considerados isoladamente fundeos num só para declarar como fez Francesco Carrara que o crime é a infração da lei do Estado promulgada para prote ger a segurança dos cidadãos e que resulta de um ato externo do homem positivo ou negativo moralmente imputável e socialmente danoso8 O aspecto formal está prin cipalmente na expressão infração da lei do Estado e o material no ato socialmente danoso Formalmaterialmente portanto crime é uma infração especialmente lesiva ao or denamento jurídicopenal E do ponto de vista analítico tema que será tratado a seguir mais demoradamen te que é um desdobramento do conceito formal crime é um fato típico ilícito e cul pável Finalmente convém referir o conceito definitorial dado pela teoria do etiqueta mento labeling approach Para essa teoria o delito que não tem consistência material é o resultado não tanto da lei mas dos processos de reação social que constroem a conduta desviada de modo que a conduta não é desviada em si mesma e sim em razão de um controle social de reação e seleção O crime é portanto uma construção social arbitrária resultante dos processos de criminalização primária a lei etc e secundária a cargo do sistema de justiça criminal Polícia etc Com efeito de acordo com Howard Becker os grupos sociais criam os desvios ao fazerem as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicarem essas regras a pessoas particulares e rotulálas como marginais e desviantes Desse ponto de vista o desvio 6 Criminología citado por GarcíaPablos Criminologia cit p 1 24 7 Como assinala GarcíaPablos não existe uma conduta desviada in se ou per se nem se pode elaborar a priori um seu catálogo pois um comportamento é definido como desviado na medida em que se aparta das expectativas sociais cambiantes da maioria social ou seja a desviação não reside na conduta mesma senão nas demais Derecho penal cit p 1 5 8 Programa de derecho criminal Parte general Bogotá Editorial Temis 1 978 2 1 182 1 02 1 CONCEITO DE CRIME não é uma qualidade do ato que a pessoa comete mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um transgressor O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso comportamento desviante é o comporta mento que as pessoas rotulam como tal9 Apesar de reconhecer a importância da teoria do etiquetamento e adotála Gar cíaPablos tem que ela faz depender exclusivamente da seletividade do controle social a noção de delito eficácia construtiva do controle social vício metodológico que im pede qualquer análise teórica sobre a essência do comportamento criminal e fatores etiológicos relevantes deste10 3 CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME A teoria do delito conceito analítico de crime trabalha com três conceitos funda mentais tipicidade ilicitude e culpabilidade a punibilidade não constitui segundo a doutrina majoritária elemento do crime mas sua consequência Analiticamente por tanto o crime é um fato típico ilícito e culpável11 havendo entre tais categorias uma relação lógica de sucessão e prejudicialidade uma vez que a culpabilidade pressupõe a ilicitude e esta a tipicidade Tipicidade ilicitude e culpabilidade são assim predica dos de um substantivo que é a conduta humana definida como crime12 de sorte que a análise do caráter criminoso de um ato demanda a verificação sucessiva do seu caráter típico ilícito e culpável13 O conceito analítico é pois um desdobramento do conceito formal de crime isto é crime como infração à lei penal 9 Outsiders studies in the sociology of deviance cap 1 in Uma teoria da ação coletiva trad Márcia Bandeira de M L Nunes Rio de Janeiro Zahar 1 957 p 53 e s 1 0 Derecho penal cit 1 1 Na doutrina brasileira os autores divergem sobre se a culpabilidade integra ou não a estrutura do delito Damásio de Jesus Direito penal cit v 1 p 451 e s defende a tese de que o crime se compõe de fato típico e antijurídico somente figurando a culpabilidade como mero pressuposto da pena Pensamos em primeiro lugar que semelhante discussão não tem importância teórica e muito menos prática Mas ao se considerar como quer Damásio que a culpabilidade é pressuposto da pena simplesmente esquece se porém que como regra a ausência de culpabilidade dá lugar não à medida de segurança exclusiva de inimputáveis e semiimputáveis mas à absolvição pura e simples assim erro de proibição inven cível coação moral irresistível etc não se aplicando a seus autores imputáveis qualquer medida de segurança ou similar Ora em tais hipóteses se há absolvição sem mais é porque se reconhece que não se está diante de uma conduta criminosa embora tenha o seu autor agido típica e ilicitamente realizado um injusto Portanto a culpabilidade integra sim o conceito de crime já que sem ela não há em princípio qualquer consequência penal Mas ainda que assim não fosse teríamos de convir que não só a culpabilidade como também a tipicidade e a ilicitude são pressupostos da punibilidade pois toda e qualquer consequência jurídicopenal pressupõe tipicidade e antijurídicidade e a seguir culpa bilidade Finalmente ao contrário do que parece supor Damásio Welzel nem Maurach nem qualquer outro finalista jamais defendeu a ideia de que o crime se compõe só de fato típico e antijurídico Para uma crítica à posição de Damásio Cezar Bitencourt Manual cit p 3 1 3 e s 12 Cezar Bitencourt Manual cit p 3 1 7 13 A sistematização da categoria tipicidade devese a Emest v Beling 1 906 a antijurídicidade a Ru dolf v Hiering 1867 Franz v Liszt e Beling a culpabilidade teve em AdolfMerkel o início de um 183 PAU LO QJEIROZ Mas a mencionada relação de sucessão e prejudicialidade nem sempre ocorre por que existe excludente de culpabilidade que inverte essa ordem lógica Assim a me noridade penal que submete o autor do fato à legislação especial ECA afastando a incidência do direito penal propriamente dito Apesar de a doutrina majoritária defender um conceito tripartido de crime há quem adote uma concepção quadripartida crime como fato típico ilícito culpável e punível a exemplo de Francisco Mufioz Conde e Mercedes García Arán14 31 Tipicidade De acordo com a doutrina dizse simplificando um pouco que uma conduta é típica sempre que se ajuste à descrição prevista numa norma penal incriminadora v g matar roubar de modo que tratandose de fato que não encontre ajustamento típico v g aborto culposo a conduta será atípica ficando prejudicada em consequência a análise de tudo mais ilicitude e culpabilidade Declarar pois típica uma ação é declarála jurídicopenalmente relevante ao invés afirmála atípica é afirmála penal mente irrelevante Enfim um comportamento típico é um comportamento proibido pe nalmente É que em razão do princípio da legalidade só pode constituir infração penal cri me ou contravenção o que a lei assim declara A essa descrição legal dos elementos do crime dáse o nome de tipo Típica é pois toda conduta humana ação ou omissão que corresponda ao modelo legal logo tipicidade significa a coincidência entre um dado comportamento humano e a norma penal incriminadora v g homicídio estupro Não é típica mas atípica diversamente a simples violação de contrato que é em princí pio um problema de direito civil O legislador portanto trabalha com tipos e pensa com tipos15 E ao se fazer refe rência à lei penal e sua função de garantia sempre se quer aludir ao tipo penal16 Atualmente cabe falar também de tipicidade e ilicitude em relação à pessoa jurí dica que comete crime ambiental se bem que nem todos os seus conceitos lhe sejam aplicáveis dolo legítima defesa etc A culpabilidade parece em princípio incompatí vel com a natureza jurídica da empresa 311Expansão do conceito de tipicidade É importante notar que o conceito e o conteúdo de tipo e tipicidade penal vêm se expandindo de tal forma que não surpreenderá se no futuro passarem a compreen der os demais elementos do crime ilicitude e culpabilidade que seguem no sentido oposto de gradativa contração Mas se chegarmos a tanto possivelmente o próprio conceito específico cf Jescheck Tratado cit p 1 8 1 14 Deacho Penal Parte General Valencia 2000 4 ed p 223226 1 5 Sauer Derecho penal trad Juan dei Rosal e José Cerezo Barcelona Bosch 1956 p 1 14 1 6 Maurach Derecho penal cit p 348 184 1 021 CONCEITO DE CRIME conceito de tipo se tornará desnecessário pois bastará falar de crime simplesmente sem mais e de seus requisitoselementos e de excludentes de criminalidade Com efeito já não é exato afirmar conforme ensina a doutrina que o tipo é o mo delo legal que descreve a conduta proibida penalmente e que a tipicidade é a relação de subsunção lógica entre um fato da vida e este tipo legal de crime seja porque a rigor não se trata de simples subsunção mas de valoração de interpretação seja porque não se cuida de uma constatação mas de uma atribuição complexa que envolve diversos aspectos problemáticos políticocriminais e dogmáticos Sim porque o juízo sobre a tipicidade de um comportamento encerra em verdade uma valoração que visa entre outras coisas a determinar lo tipo ou tipos penais que incidem no caso isto é dar a exata definição jurídicopenal do fato 2se o tipo penal de que se trata é conforme a Constituição e em que termos o é 3o âmbito de proteção ou de incidência do tipo isto é determinar o que ele de fato proíbe e não proíbe 4se a conduta criou um risco proibido juridicamente relevante e se houve realização desse risco no resultado causalidade e imputação objetiva 5se a conduta é significante ou nãd princípio da insignificância 6a que título o fato é punível se doloso ou culposo imputação subjetiva 7havendo consentimento do ofendido determinar se é válido e quais são suas consequências 8se incidem excludentes de tipicidade erro de tipo etc 9a condição legal do agente autor coautor ou partícipe lüse há um fatotipo consu mado ou tentado 1 1 se é também aplicável à pessoa jurídica 32 Ilicitude Cuidandose de uma ação típica passase a seguir à análise da ilicitude isto é cumpre verificar agora se além de típica tal conduta é também contrária ao ordena mento jurídico como um todo e não apenas em relação ao direito penal Se embora típica não for ilícita isto é for lícita caso fique provado por exemplo que o autor agiu em legítima defesa ficará prejudicada a análise da culpabilidade Dizse assim ilícita ou antijurídica a ação sempre que for praticada contraria mente ao direito isto é sem o amparo de uma causa de exclusão da ilicitude como a legítima defesa o estado de necessidade o estrito cumprimento do dever legal ou o exercício regular de direito CP art 23 Assim não há crime de homicídio mas homi cídio simplesmente quando por exemplo o agente mata outrem em legítima defesa Significa dizer que embora típica a ação visto coincidir com a descrição do art 121 do Código Penal ela não é considerada ilícita uma vez que está autorizada pelo direito 1 de sorte que quem mata em legítima defesa atua legitimamente age pois nos limites da legalidade Mas a conduta típica será também ilícita sempre que não concorra como é co mum uma causa de justificação de exclusão de ilicitude motivo pelo qual o autor de um fato típico atua ordinariamente fora da legalidade portanto ilicitamente Com portamentos típicos são também como regra comportamentos ilícitos Em suma a ilicitudeantijuridicidade é a ausência de justificação legal para a rea lização de uma ação típica 185 PAULO QJEIROZ 33 Culpabilidade Tratandose de uma ação típica e ilícita cumprirá apurar finalmente a culpabi lidade do autor isto é apurar se nas condições dadas ele poderia agir conforme o direito porque se tal não for possível v g agiu sob coação moral irresistível será de clarado inculpável e pois não punível Ao contrário se lhe era perfeitamente possível e exigível uma atuação conforme o direito ficará caracterizada a sua culpabilidade e punibilidade provavelmente A culpabilidade constitui portanto as condições subjetivas que devem concorrer para que seu autor seja merecedor de pena pois do contrário isto é se inculpável não sofrerá pena alguma devendo ser absolvido Excepcionalmente apesar da ausência de culpabilidade o agente sofrerá medida de segurança caso seja inimputável CP art 26 em razão de doença mental ou perturbação da saúde mental A culpabilidade é por conseguinte um juízo de reprovação que incide sobre o au tor de um fato típico e ilícito por lhe ser possível e exigível concreta e razoavelmente um comportamento diverso isto é conforme o direito Culpabilidade é exigibilidade inculpabilidade é inexigibilidade Do ponto de vista analítico um crime é portanto um fato típico ilícito e culpável Já a punibilidade constitui a própria consequência do crime mas não um seu requisito 34 Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime Conforme vimos ao tratar do conceito do direito penal o crime não existe fisica mente uma vez que ele é o resultado das múltiplas interaçõesreaçõesinterpretações relativas ao comportamento definido como infração penal razão pela qual é parte da construção social da realidade ou seja o crime é o que dizemos que ele é dizemos primeiro por meio da lei criminalização primária depois por meio dos processos de reação social criminalização secundária Não existem enfim fenômenos criminosos mas apenas uma interpretação criminalizante dos fenômenos e pois tipificante cul pabilizante etc Assim se sob o aspecto ontológico o delito não existe seguese logicamente que também o seu conceito analítico como fato típico ilícito e culpável não está previa mente dado pois é construído socialmente de sorte que uma determinada conduta será ou não típica ilícita e culpável quando dissermos aceitamos que ela o é mesmo por que tais conceitos remetem necessariamente a diversos outros conceitos dolo culpa significânciainsignificância causalidade legítimailegítima defesa estado de necessi dadedesnecessidade coação físicamoral resistívelirresistível obediência hierárquica erro de proibição vencívelinvencível embriaguez voluntáriainvoluntária etc os quais reenviam por sua vez a outros tantos como vida honra propriedade agressão justa injusta intenção previsão consciênciainconsciência boamáfé confissão prova líci tailícita exigívelinexigível valores princípios etc Enfim a distinção entre tipicidade ilicitude e culpabilidade e pois a distin ção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à 186 1 02 1 CONCEITO DE CRIME interpretação mas é dela resultado Em consequência um mesmo fato ora poderá ser interpretado como excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabilidade e vi ceversa Também por isso o legislador poderá tratar tais situações como julgar mais conveniente do ponto de vista políticocriminal 35Elementos não valorativos do tipo A doutrina distingue elementos normativos e não normativos do tipo isto é va lorativos e não valorativos De acordo com Cézar Bitencourt os elementos objetivos ou descritivos são os identificáveis pela simples constatação sensorial isto é podem facilmente ser compreendidos somente com a percepção dos sentidos17 a exemplo de alguém pessoa coisa etc Já os normativos são os que exigiriam uma apreciação va lorativa vg alheia funcionário público E os subjetivos diriam respeito ao conteúdo da vontade do agente Segundo José Cirilo de Vargas os elementos normativos requerem para sua exa ta compreensão uma atitude especial do intérprete que pode ser de índole estimativa perigo de vida social honestidade probidade ou jurídica sem permissão legal nos limites da lei etc18 Essa tradicional distinção é importante para a compreensão de vários institutos dolo erro de tipo erro de proibição etc Mas é inconsistente Primeiro porque tais elementos são conceitos e conforme vimos o conceito de um conceito é dado por um outro conceito numa relação circular Enfim nenhum con ceito existe ou é compreensível isoladamente quer dizer sem remissão expressa ou tácita a outros tantos vg o conceito de tipicidade remete aos de tipo conduta ação omissão etc Segundo porque o sentido e limites de um conceito não são dados pelo próprio conceito mas por nós ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possi bilidades razão pela qual o seu conteúdo concreto depende do sujeito que o compreen de Logo compreendêlos é interpretálos e valorálos inevitavelmente Por fim já a escolha pelo legislador da forma linguística a ser usada na redação dos tipos constitui em si mesma uma valoração que há de ser a mais criteriosa e técnica possível O mesmo ocorre com o nomen juris dado aos tipos furto estupro calúnia etc Consequentemente se todos os conceitos são valorativos os chamados elementos objetivos e descritivos também o são Afinal mesmo conceitos como homem e mulher são valorativos embora mais facilmente determináveis em tese do que outros como drogafalsamente etc 1 7 Tratado de direito penal São Paulo Saraiva 201 3 p 349350 1 8 Os elementos negativos do tipo penal Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 6 1 pp 287 304 juldez2012 187 PAULO QEIROZ Por exemplo é consenso entre os autores que o pronome indefinido alguém constitui elemento descritivo ou objetivo e não normativo Precisamente por isso o tipo de homicídio matar alguém só pode ser praticado contra pessoa humana e não contra coisas ou animais tampouco contra pessoas jurídicas O mesmo consenso já não existe porém quanto ao alguém que aparece em diversos outros delitos como nos crimes contra a honra calúnia difamação e injúria Com efeito se para uns al guém aí é somente a pessoa física para outros compreende também a pessoa jurídi ca Discutese ainda se crianças e mortos seriam caluniáveis difamáveis e injuriáveis Em suma o suposto caráter objetivo descritivo ou normativo dos elementos do tipo são apenas perspectivas do sujeito relativamente às coisas que conhece e nesse sentido todos são subjetivos e pois valorativos normativos Cumpre superar a distinção portanto 188 103 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Sumário 1 Sistema tripartido o tipo como indício de antijuridicidade 2 Sistema bi partido a teoria dos elementos negativos do tipo 3 Posição aqui adotada teoria dos elementos negativos do tipo sistema bipartido 4 Teoria da tipicidade conglobante 5 Para uma configuração monistafuncional da teoria do delito 5 1 Culpabilidade como exigibilidade tendo em vista os fins de prevenção geral e especial 1 SISTEMA TRIPARTIDO O TIPO COMO INDÍCIO DE ANTIJURIDI CIDADE O que hoje chamamos teoria do tipo nasceu com Ernest von Beling que a difundiu por meio da obra Die Lehre vom Verbrechen A teoria do delito de 1906 e por cujo meio o tipo passaria a constituir uma das notas essenciais do conceito de crime soman dose à antijurídicidade e à culpabilidade como exigência infranqueável do princípio da legalidade De acordo com a formulação inicial de Beling1 o tipo penal é a descrição abstrata dos elementos do fato ou suposto de fato Tatbestand previsto na norma pe nal incriminadora descrição que não supõe qualquer valoração razão pela qual o tipo penal constitui assim uma categoria dogmática valorativamente neutra pertencendo a valoração da conduta à antijurídicidade Por conseguinte tipo e ilicitude constituem segundo Beling categorias sistemáticas autônomas mesmo porque o fato embora típi co pode não ser antijurídico sempre e quando praticado sob o amparo de uma causa de justificação Assim por exemplo quem fere alguém em legítima defesa ou em estado de necessidade realiza um fato típico mas não antijurídico porque autorizado pelo direito O tipo portanto é apenas um indício ratio cognoscendi da ilicitude Com o neokantismo que introduz a ideia de valor na teoria do delito semelhante formulação vem a ser criticada M E Mayer Mezger Sauer por seu excessivo forma lismo Primeiro porque não se pode falar de um tipo puramente objetivo pois frequen temente o legislador ao descrever ações típicas recorre a elementos subjetivos v g para si ou para outrem referido no art 155 do CP de sorte que o tipo não está imune a juízos de valor Além disso a redação dos tipos não raro contém elementos normativos assim o conceito de fraude de funcionário público e de coisa alheia supondo quase sempre uma valoração ética jurídica social cultural etc não podendo prevalecer a tese de um tipo penal neutro ou puramente objetivo Nesse sentido Sauer para quem a tipicidade era a antijurídicidade tipificada afirmaria que o tipo é já um sintoma da criminalidade objetiva da lanosidade social e da perigosidade social de um atuar2 1 Digo inicial porque mais tarde Lehre von Tatbestand 1 930 Beling desenvolveria u m conceito ainda mais abstrato de tipo como Leitbild conceito não acolhido pela doutrina que continuaria utilizando o conceito inicial por ele formulado 2 Derecho penal cit p 1 1 1 189 PAULO QJEIROZ Com o advento da doutrina finalista que coerente com o seu conceito final de ação desloca o dolo e a culpa para o tipo penal como elementos subjetivos que antes com o causalismo pertenciam à culpabilidade o tipo seguiria apesar disso como um tipo meramente indiciário da ilicitude3 de modo que o crime sob o aspecto analítico permanece sendo um fato típico ilícito e culpável sistema tripartido 2 SISTEMA BIPARTIDO A TEORIA DOS ELEMENTOS NEGATIVOS DO TIPO Já para a teoria dos elementos negativos do tipo4 cuja formulação inicial devese a Merkel 1889 desenvolvida por Frank e Radbruch e que teve em Baumbarten a sua mais acabada elaboração5 diferentemente todo fato típico é sempre um fato ilícito De acordo com essa teoria com efeito o tipo penal contém já toda matéria proibida e an tijurídica compondose por isso de duas partes a uma parte positiva tipo positivo que corresponde à completa realização dos elementos do tipo tipo no sentido tradi cional b uma parte negativa tipo negativo que corresponde à ausência das causas de justificação Ou seja na formulação do tipo penal estaria implícita a ausência de causas de justificação de modo que por exemplo na norma do art 121 do CP matar alguém estaria subentendido que matar é crime salvo em legítima defesa em es tado de necessidade etc ressalva que não consta do artigo de lei por razões de estilo exclusivamente Daí o nome teoria dos elementos negativos do tipo visto que a presença de tais elementos legítima defesa etc nega o próprio tipo sua ausência ao contrário confir mao totalmente ou seja as causas de justificação constituem elementos que negam o tipo penal Logo todo fato típico é para essa perspectiva totalizadora simultaneamen te um fato ilícito embora nem todo fato ilícito seja típico v g simples violação de contrato em razão de a ilicitude ser um conceito jurídico e não apenas um conceito jurídicopenal 3 Como observa Mir Puig o finalismo adotou um conceito próximo do ideado por Beling o tipo como mero indício ratio cognoscendi da antijuridicidade que não só pode desvirtuarse pelo concurso de causas de justificação nem toda ação típica ê antijurídica senão que tem um significado indepen dente da antijurídicidade Derecho penal cit p 129 4 Entre nós adota posição similar Assis Toledo a tipicidade e a ilicitude implicamse numa relação indissolúvel no interior do injusto mas conceitualmente não se confundem O tipo para não reduzir se a um abstrato Leitbild ou a um princípio formal só pode ser a descrição de condutas proibidas portanto um tipo de injusto Unrechtstypus A expressão do injusto pela incidência de uma norma permissiva causa de justificação ou de exclusão de ilicitude operase no momento mesmo da reali zação do fato justificado não depois quando do desenvolvimento do raciocínio do julgador este sim condicionado a um processo cognoscitivo bifásico O tipo de injusto assim entendido está infiltrado pela ilicitude que lhe dá o verdadeiro conteúdo material Princípios básicos cit p 124 Semelhan temente Reale Júnior Teoria do delito São Paulo Saraiva 1 998 Tambêm Juarez Tavares embora critique a teoria dos elementos negativos chega a uma formulação muito próxima teoria do injusto penal 5 Cf Rodriguez Mourullo Derecho penal cit p 249 190 I 03 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Por vezes as causas de justificação aparecem de forma clara no tipo quando por exemplo a lei se vale de expressões como indevidamente sem justa causa sem auto rização legal etc Afinal sempre que o agente estiver em situação de exercício regular de direito ou de estrito cumprimento do dever legal etc atuar devidamente com justa causa com autorização legal6 Como assinala José Cirilo de Vargas em numerosas situações típicas os cha mados elementos normativos funcionam como negativos do tipo No revogado artigo 219 do CP rapto violento ou mediante fraude a honestidade era elemento do tipo Se a mulher não fosse honesta segundo os padrões então vigentes não haveria tipi cidade nos moldes daquele dispositivo Outros exemplos de elementos negativos do tipo podem ser mencionados sem o consentimento no art 125 sem a observância de disposição legal no art 151 sem licença da autoridade competente no art 166 sem suficiente provisão de fundos no art 171 2 VI etc7 Nesse sentido o tipo é portanto a descrição legal expressa ou tácita de todos os elementos objetivos e subjetivos positivos e negativos que fundamentam a proibição penal de uma conduta e a distingue de outras figuras típicas o que se denomina a ma téria de proibição8 3 POSIÇÃO AQUI ADOTADA TEORIA DOS ELEMENTOS NEGATI VOS DO TIPO SISTEMA BIPARTIDO Com o advento do funcionalismo a orientar politicamente a dogmática jurídicope nal a teoria dos elementos negativos do tipo9 reforçase e parece que acabará por se im por Desse entendimento não diverge Schünemann afirmando que a sistemática fun cional do direito penal unicamente pode conciliarse com a concepção do tipo total do injusto que a dota de uma base mais sólida e suprapositiva A adequada configuração dogmática deste conceito sistemático é desenvolvida pela teoria dos elementos negativos do tipo que experimenta assim de novo um aprofundamento e consolidação1º Roxin por sua vez embora entenda que se deva preservar a autonomia entre tipicidade e ilici tude tem que a estrutura bipartida não só é logicamente praticável como também tem sob o aspecto teleológico muitas vantagens em seu favor visto que da perspectiva do tipo como ratio essendi do injusto não há razão alguma para lhe subtrair uma parte 6 Como escreve Miguel Reale Júnior os verdadeiros elementos normativos são portanto aqueles que revelam a antijuridicidade pelo desvalor jurídico que refletem São os elementos que se referem espe cificamente à antijuridicidade como por exemplo as expressões sem justa causa indevidamente sem autorização Instituições de Direito Penal Rio de Janeiro Editora Forense 2009 p 1 42 7 Os elementos negativos do tipo penal cit 8 Luzón Pefia DiegoManuel Lecciones de Derecho Penal Parte General Valencia Tirant lo Blanch 20 12 p 1 60 9 Sobre a teoria dos elementos negativos do tipo por todos José Cirilo de Vargas Introdução ao estudo dos crimes em espécie Belo Horizonte texto inédito 1 O La función de la delimitación de injusto y culpabilidad in Fundamentos de un sistema europeo dei derecho penal Barcelona Bosch 1 995 p 226 191 PAULO QlJEIROZ dos elementos essenciais para o injusto ademais frequentemente é só uma questão de redação estilística casual da lei o fato de uma circunstância ser prevista já no tipo como fundamentadora do injusto ou só na ilicitude como excludente do injusto11 E de fato os conceitos de tipicidade e ilicitude estão funcionalmente vinculados Com efeito se o fim do direito penal é a prevenção subsidiária de comportamentos le sivos de bens jurídicos seguese que a definição legal de crimes por meio do processo legislativo pressupõe que tais condutas sejam contrárias à ordem jurídica e não por ela autorizadas pela lógica razão de que não se pode prevenir proibindo aquilo que se permite Como afirma Graf zu Dohna uma ação juridicamente permitida não pode ser ao mesmo tempo proibida pelo direito isto é o exercício de um direito nunca é anti jurídico12 Com efeito relativamente às condutas autorizadas pelo direito não pode ter lugar a função motivadora da norma penal precisamente porque a ação de matar em legítima defesa por exemplo prestase à realização dos próprios fins do direito penal que é a proteção de bens jurídicos por meio do rechaço autorizado de ataques a inte resse juridicamente protegido Mais claramente se o Estado por meio do direito penal pretende prevenir crimes tal há de pressupor necessariamente condutas contrárias ao direito e não conforme o direito Gimbernat Ordeig tem razão portanto quando afirma que a problemática quanto ao conteúdo do tipo é a problemática mesma quanto à con duta que o legislador quer motivar ou prevenir13 Afinal o legislador ao permitir por exemplo a legítima defesa para proteção indi vidual persegue simultaneamente um fim de prevenção geral pois considera desejável que o ordenamento jurídico se afirme diante de agressões a bens jurídicos individuais14 Além disso quando se recorre a uma lei penal e se define um dado comporta mento como criminoso pressupõese forçosamente sua contrariedade ao ordenamento jurídico mesmo porque fora daí faltariam os pressupostos materiais da intervenção penal lesividade social etc nem faria sentido intervir penalmente Função primária do tipo é pois declarar dentro de uma multitude de ações antijurídicas aquelas que merecem significação penal Daí dizer Mezger que o ato de criação legislativa do tipo contém já a declaração de antijurídicidade a fundamentação do injusto como injusto especialmente tipificado15 É que as normas proibitivas de um lado e as proposições permissivas de outro formam uma unidade apesar de sua formulação em separado16 1 1 Derecho penal cit p 284285 Em texto anterior Roxin já havia notado que o tipo total é essen cialmente correto visto que todas as ações que se ajustam a este tipo expressam um elemento fundamental comum mereceram a reprovação do legislador e são portanto socialmente danosas e materialmente contrárias ao direito Teoría del tipo penal trad Enrique Bacigalupo Buenos Aires Depalma 1 979 p 274277 12 Citado por Assis Toledo Princípios básicos cit p 1 8 1 13 Estudios cit p 1 72 14 Roxin Derecho penal cit p 608 1 5 Citado por Roxin Derecho penal cit p 282 16 Stratenwerth Derecho penal parte general trad Gladys Romero Madrid Edersa 1982 p 6465 192 1031 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Em resumo um fato típico é um fato proibido jurídicopenalmente logo não é típi co um fato autorizado pelo direito em virtude da presença de uma causa de justificação Parecenos incorreta em consequência a doutrina ainda dominante quando opta por um conceito puramente formal do tipo tipo indiciário afirmando que um fato embora típico não é necessariamente ilícito porque pode estar autorizado pelo direito até porque fato típico é por definição comportamento proibido penalmente sendo um manifesto contrassenso falar que uma conduta apesar de penalmente típica proibida penalmente não é antijurídica autorizada pelo direito É como afirmar que o proi bido está ou pode estar permitido é típico mas não antijurídico Em conclusão e conforme assinala Luzón Pefía a finalidade do tipo não é des crever condutas neutras nem meramente indiciárias de uma proibição mas descrever para conhecimento geral e para cumprir sua missão de norma de determinação das condutas dos cidadãos todos os elementos positivos e negativos que fundamentam a valoração negativa e portanto a proibição geral em face de todos de uma con duta17 tarefa prevenção geral que só pode ser levada a cabo quando não concorram causas de justificação evidentemente Naturalmente que apesar de coimplicados os conceitos de tipicidade e ilicitude não se confundem e devem em princípio ser preservados 4 TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE Para a teoria da tipicidade conglobante o juízo de tipicidade exige além da tipi cidade legal a tipicidade conglobante de conglobar isto é dar a forma de globo acu mular reunir etc consistente na averiguação do alcance proibitivo da norma que não pode ser considerada isoladamente mas conglobada na ordem jurídica Por isso dizem Zaffaroni e Pierangeli que a tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal visto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas como acontece no caso exposto do oficial de justiça que se adequa ao subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel art 155 caput do CP mas que não é alcançada pela proibição do não furtarás18 Essa teoria que se inspira na teoria das normas de Binding e no conceito de anti normatividade de Welzel considera que todo tipo penal pressupõe uma norma que lhe é subjacente anteposta a ele como por exemplo no homicídio a norma não mata rás no furto a norma não furtarás etc Resulta assim que a conduta pelo fato de ser penalmente típica necessariamente deve ser também antinormativa Não obstante não se deve pensar que quando uma conduta se adapta formalmente a uma descrição típica só por essa circunstância seja penalmente típica Que uma conduta seja típi ca não significa necessariamente que seja antinormativa isto é que esteja proibida pela norma pelo não matarás não furtarás etc Sintetizando tipicidade legal e 17 Curso cit p 299 1 8 Manual de direito penal São Paulo RT 2004 p 436 193 PAULO QlEIROZ tipicidade penal não são a mesma coisa a tipicidade penal pressupõe a legal mas não a esgota a tipicidade penal requer além da tipicidade legal a antinormatividade19 A teoria da tipicidade conglobante distingue portanto três níveis sucessivos e complementares de tipicidade tipicidade legal adequação do fato à formulação legal do tipo tipicidade conglobante antinormatividade ou seja violação da norma subjacente ao tipo e tipicidade penal tipicidade legal antinormatividade que é o resultado da conjunção das duas anteriores sendo que a antinormatividade que não se confunde com antijuridicidade20 não é comprovada somente com a adequação da conduta ao tipo legal porque requer uma investigação sobre a afetação do bem jurídico21 Apesar da autoridade daqueles que a defendem temos que tal teoria um tanto confusa e desnecessária não procede Desde logo não é exato dizer que a conduta do oficial de justiça que busca e apreende objetos no exercício regular de suas funções seja típica formalmente à luz do art 155 do Código Penal Com efeito ao assim proceder ele não subtrai coisa alheia móvel nem tampouco subtrai para si ou para outrem nem age dolosamente isto é não tem a intenção de furtar quem quer que seja muito ao contrário se deixar de assim proceder poderá responder em tese por ilícito admi nistrativo ou penal v g desobediência prevaricação Além disso a ação do oficial zeloso de suas funções embora realmente seja atípica à luz do art 155 assim o é por uma outra razão uma razão tautológica quem está no estrito cumprimento do dever legal não atua tipicamente pois é óbvio que ninguém pode a um tempo estar em acor do e em desacordo com o tipo Ademais aquilo que se vem de chamar de tipicidade conglobante é apenas um modo de interpretar o texto a partir do contexto dandolhe interpretação sistematiza da também é evidente que tal ação não implica ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma o patrimônio mesmo porque ao criminalizálo não era evidentemente esse tipo de comportamento autorizado e fomentado pelo direito que o legislador quis pre venir e castigar finalmente ao atuar no estrito cumprimento do dever legal o agente não cria risco proibido mas juridicamente permitido e estimulado Por último a ideia de uma tipicidade formal legal que consistiria num juízo de mera subsunção ló gica do fato ao tipo já deveria estar superada pois o direito não é um saber lógico mas analógico 22 conforme se demonstra desde o seu conceito razão pela qual ou o 1 9 Idem p 433434 20 Com efeito dizem os autores que é precisamente esta a mais importante diferença entre a tipicidade conglobante e a justificação a atipicidade conglobante não surge em função de pe1missões que a ordem jurídica resignadamente concede e sim em razão de mandatos ou fomentos no1mativos ou de indiferença por insignificância da lei penal A ordem jurídica resignase a que um sujeito se apodere de uma joia valiosa pe11encente a seu vizinho e que a venda para custear o tratamento de um filho gravemente enfermo que não tem condições de pagar licitamente mas ordena ao oficial de justiça que apreenda o quadro e lhe impõe uma pena se não o faz fomenta as artes plásticas enquanto se mantém indiferente à subtração de uma folha de papel rabiscada Idem p 438 2 1 Ibidem p 434 22 Como assinala A11hur Kaufmann a analogia comparação que consiste num modo de inferência misto de dedução e indução constitui o próprio critério de detenninação do direito uma vez que 194 l ü3 I EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO fato é típico ou não o é decisão que reclama um juízo inevitavelmente valorativo de ponderação de interesses complexo Não bastasse isso de acordo com o próprio Welzel toda realização do tipo de uma norma proibitiva é certamente antinormativa embora nem sempre seja antijurídi ca 23 de modo que resta por se explicar o porquê de a violação ao tipo legal de crime tipicidade não implicar necessariamente ofensa à alegada norma que lhe é subjacen te antinormatividade 5 PARA UMA CONFIGURAÇÃO MONISTAFUNCIONAL DA TEORIA DO DELITO Apesar de tudo que foi dito até aqui é certo que ainda hoje o sistema tripartido é amplamente majoritário segundo o qual o crime analiticamente compõese de fato típico ilícito e culpável que seriam categorias autônomas De acordo com semelhante formulação dizse típica a conduta que se ajusta ao modelo legal ilícita se contrária ao ordenamento jurídico como um todo e finalmente analisarseá a culpabilidade que é um juízo de reprovação que incide sobre o autor do fato típico e ilícito por lhe ser pos sível e exigível concretamente um comportamento diverso isto é conforme o direito Pois bem com o advento do funcionalismo temse levantado uma discussão nova saber se é possível estabelecer uma delimitação clara entre injusto e culpabilidade sa ber se é possível enfim autonomizar a culpabilidade em face das demais categorias sistemáticas tipicidade e ilicitude Schünemann24 tem que sim Pensamos que não por considerarmos que uma perspectiva funcional conduz a uma configuração monista da teoria do delito conforme se desenvolverá a seguir 51 Culpabilidade como exigibilidade tendo em vista os fins de prevenção geral e especial A culpabilidade constitui essencialmente segundo a doutrina majoritária25 um juízo de reprovação sobre o autor do fato típico e ilícito em face da possibilidade de se nunca existe uma absoluta igualdade ou desigualdade mas semelhanças razão pela qual juízes e legisladores se utilizam invariavelmente da analogia Filosofia do direito p 1 19120 23 Derecho penal cit p 60 24 Segundo Schünemann a norma proibitiva como base do injusto jurídicopenal deve abarcar todos os pressupostos da lesividade social salvo a capacidade do autor de comportarse conforme a norma cuja exclusão do mandato normativo se deve a razões lógicas já que a capacidade de cumprimento só pode formularse e examinarse tomando como referência uma norma que está desvinculada daquele já que se ao contrário a capacidade de cumprimento se formula como pressuposto da norma proi bitiva a negação desta norma faria desaparecer aquela porque acerca duma norma inexistente não cabe imaginar nem constatar capacidade de cumprimento algum Portanto a diferenciação sistemática entre poder atuar de outra maneira e a lesividade social resulta necessária e ostenta pleno sentido La función in Fundamentos cit p 225 25 Comparemse a propósito alguns conceitos de culpabilidade reprochabilidade de um fazer ou de um omitir antijuridicamente desaprovado ou mais brevemente é um reproche fundado sobre o au tor Maurach Derecho penal cit p 582 possibilidade de conhecer a exigência do dever e de 195 PAULO QlJEIROZ lhe exigir concreta e razoavelmente uma atuação conforme o direito de sorte que se o indivíduo por falta de maturidade por defeito psíquico por desconhecer o conteúdo da proibição normativa ou por se encontrar numa situação na qual não lhe era exigível um comportamento diverso não pode ser motivado pela norma ou se a motivação se altera gravemente faltará a culpabilidade e ao autor do fato típico e antijurídico não se poderá atribuíla logo não poderá ser sancionado com uma pena26 Culpabilidade portanto é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade27 Por isso é que são elementos da culpabilidade a imputabilidade ou capacidade de culpabilidade o conhecimento potencial da ilicitude do fato e a exigibilidade de con duta diversa logo excluemna a inimputabilidade em razão de alienação mental ou menoridade o erro de proibição inevitável a coação moral irresistível a obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal etc Claro é o fundamento dessa exclu são de culpabilidade em todas essas hipóteses não se pode exigir do autor do ilícito um comportamento conforme a lei dada a sua impossibilidade ou falta de razoabilida de de semelhante exigência já que nem o legislador nem o juiz podem exigir atos de heroísmo por parte de seus destinatários pois a lei não se dirige a heróis ou santos28 E mais se o fim da norma penal é dissuadir comportamentos lesivos de bens jurídicos seguese que em tais casos a pena carece de capacidade preventiva carecendo portan to de eficácia Pois bem a tese aqui defendida é a seguinte a exigibilidade de uma conduta di versa conforme o direito não é uma análise posterior nem estranha à verificação do comportarse de acordo com ele vale dizer é a possibilidade de uma decisão responsável Straten werth Derecho penal cit p 7 1 culpabilidade é reprochabilidade da formação de vontade Jes check Tratado cit p 364 é uma responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante num comportamento antijurídico Jakobs Derecho penal cit p 566 atua culpavelmente quem pratica um ato antijurídico podendo atuar de modo diverso quer dizer confom1e o direito Muíioz Conde Teoria geral do delito trad Juarez Tavares e Régis Prado Porto Alegre Sérgio A Fabris Editor 1 988 p 1 25 culpabilidade é exigibilidade Silva Sánchez Aproximación cit p 413 26 Mufioz Conde Teoria cit p 1 62 27 A ideia de exigibilidade provém de Henkel que demonstrou que a inexigibilidade é critério regulativo jurídico geral dividindoa em inexigibilidade geral e individual a primeira excluiria a antijuridi cidade a segunda a culpabilidade cf Luzón Pena Curso cit p 649 14 Hungria escreve que Ererhard Schmidt que atualizou o Tratado de VON LISZT ao entrosar o critério da inexigibilidade Unzumutbarkeit no conceito do estado de necessidade como faz o nosso Código volta a insistir em que este não exclui a ilicitude objetiva mas a culpabilidade Ora a inexigibilidade é precisamen te o fundamento central da licitude que na espécie se reconhece e declara Não é preciso referila á culpabilidade cuja existência ficaria tolhida Como acentua Helmut Mayer o que não pode ser razoa velmente exigido a um homem não lhe pode ser imposto pelo direito positivo A inexigibilidade só se apresenta em particulares circunstâncias de fato e portanto entende também com o lado objetivo da conduta O que se dá em tal caso é simplesmente uma ação lícita ou não proibida juridicamente Não se apresenta um crime nem mesmo do ponto de vista abstrato Comentários v l tomo 2 cit p 271272 28 Como afirma Mufioz Conde o direito não pode contudo exigir comportamentos heroicos toda norma jurídica tem um âmbito de exigência fora do qual não pode exigir responsabilidade alguma Curso cit p 1 32 196 I D3 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO injusto penal nem é exclusividade da culpabilidade visto que é contemporânea da pró pria intervenção jurídicopenal por ser uma consequência lógica da natureza instru mental ou funcional ou preventiva do direito penal Mais ainda é a exigibilidade em face da normal motivabilidade que determina em última análise a atipicidade do fato mas não só ela pois contam também critérios de conveniência políticocriminal e a justificação de certos comportamentos causas de exclusão de ilicitude Em síntese a culpabilidade entendida como possibilidade de exigirse a realiza ção ou a abstenção de um dado comportamento é em realidade o pressuposto lógico da existência do direito mesmo e pois pressuposto de aplicabilidade das normas jurí dicopenais as quais se destinam à prevenção geral e especial de condutas social mente lesivas não constituindo por isso uma categoria autônoma da teoria do delito Enfim a ideia de exigibilidade atravessa todo o ordenamento jurídico e não apenas o ordenamento jurídicopenal constituindo um princípio regulador e informador de todo o direito29 Com efeito se função do direito penal é motivar comportamentos função moti vadora no sentido do comando normativo isto é se é finalidade da norma que seus destinatários ajam de forma a não as violar matando alguém estuprando furtando etc prevenção geral negativasubsidiária30 seguese que semelhante tarefa somente pode ser dirigida àquele que se ache em condições físicas psíquicas culturais etc de entender tais normas e de poder agir segundo a pretensão do legislador que as editou Significa dizer portanto que as normas penais não estão dirigidas a quem não esteja em condições de respeitálas seja porque carecem de discernimento assim os incapa zes seja porque atuam sob erro de proibição inevitável seja porque estão sob coação moral irresistível seja enfim porque atuam sob o amparo de quaisquer das causas de exclusão de culpabilidade visto que como assinala Mufioz Conde a comunicação entre o indivíduo e os mandamentos da norma só pode ocorrer se o indivíduo tem capacidade para se sentir motivado pela norma conhece seu conteúdo ou se encontra numa situação na qual não pode ser regido sem grandes esforços por ela31 Em conclusão as normas penais só podem ter logicamente como destinatário quem se encontre em condições de decidir entre acatálas ou violálas já que como afirma Jescheck a culpabilidade tem como pressuposto lógico a liberdade de decisão do homem32 Mas é justamente por essa mesmíssima razão que atos praticados sob por exem plo coação física irresistível ausência de conduta ou sem dolo ou culpa conduta atípica em legítima defesa ação conforme o direito ou sob coação moral irresistí vel conduta inculpável conduzem ao mesmo resultado prático uma sentença penal 29 Mufioz Conde Teoria cit p l 62 30 Apesar de adotar semelhante perspectiva essencialmente nada muda para esse efeito se se entender prevenção como prevenção positiva 3 1 Mufioz Conde Teoria cit p 1 3 1 32 Tratado cit p 367 197 PAULO QEIROZ absolutória33 Logo embora possam ter tratamento legal distinto implicam o mesmo resultado prático isenção de pena É que em todos esses casos a norma penal carece do poder de motivar não sendo exigível de parte do autor de um fato assim praticado uma atitude diversa ou conforme o direito dada a impossibilidade física ou psíquica do seu destinatário Ou porque ainda quando exigível a pena careceria de todo sentido tendo em vista os fins preventivos do direito penal não sendo o agente merecedor de pena Dito mais claramente se é atípica segundo a doutrina hoje dominante a ação pra ticada sem dolo ou sem culpa é porque em tal hipótese a norma carece de eficácia mo tivadora não sendo por isso exigível uma ação diversa já que estamos perante uma situação de caso fortuito ou força maior vale dizer estranha à intervenção da vontade do agente por igual se alguém para não morrer precisa matar e o faz legitimamen te legítima defesa não responde penalmente porque o Estado não pode exigir uma ação distinta digamos no caso de legítima defesa que tolere sem mais a agressão ou que podendo fugir assuma assim uma postura de covarde etc uma vez que não é razoável o sacrifício do bem jurídico lesionado ou ameaçado de lesão relativamente ao ofendido Parece que idêntica é a situação nas hipóteses de exclusão de culpabilidade Com efeito nos casos de coação moral irresistível de obediência hierárquica tampouco é exigível uma atitude diversa do destinatário da norma pelas mesmíssimas razões já assinaladas Conclusão a exigibilidade de conduta diversa está presente não apenas na culpabilidade mas também na tipicidade e na antijuridicidade Em suma o que chamamos culpabilidade é apenas mais um nome para designar os casos em que o legislador considera a partir de premissas políticocriminais desnecessária a pena Por isso é que razão assiste a Mir Puig quando observa a propósito do erro de proibição inevitável que se o Direito Penal se justifica pela função de proteção de bens jurídicos através da motivação da norma o que estimo necessário num Estado social e democrático de Direito só se pode proibir aqueles comportamentos que po dem ser evitados pela motivação Pois bem para que o sujeito possa ser motivado pela norma penal que protege um bem jurídicopenal determinado é preciso que dito sujei to possa saber que se encontra frente a um tal bem protegido pelo Direito Se o sujeito não pode saber que sua ação irá lesionar um bem amparado pelo Direito como poderá sentirse motivado a evitar dita ação pela norma penal se não pode ser motivado por ela E se a norma não pode motiválo não faz sentido que o pretenda proibindo o fato razão pela qual concluirá que o erro de proibição excluirá o terceiro e último nível necessário para que o dolo seja o dolus malus34 Mas semelhante argumentação é pie 33 No júri atual inclusive ao formular os quesitos o juizpresidente indagará aos jurados apenas se o acusado deve ser absolvido incluindose aí toda e qualquer excludente seja de tipicidade seja de ilicitude seja de culpabilidade CPP art 483 III 34 Derecho penal cit p 568569 198 IOJI EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO namente válida para toda e qualquer causa de exclusão de culpabilidade e não apenas para o erro de proibição inevitável35 Não por outra razão é que uma causa de exclusão de culpabilidade pode vir a ser considerada eventualmente como excludente da tipicidade sem produzir outra conse quência senão de ordem sistemática v g dolo e culpa que com o advento da doutrina finalista passaram a fazer parte da tipicidade saindo da culpabilidade o mesmo po dendo ocorrer com as causas de justificação como por exemplo com o consentimento do ofendido que segundo Roxin36 constitui causa de exclusão de tipicidade e não de ilicitude conforme a doutrina tradicional Além disso nada impede ainda que o legis lador transforme uma causa de exclusão de culpabilidade ou de tipicidade em causa de justificação e viceversa já que semelhante distinção atende em última instância a razões políticocriminais E mais a distinção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação mas é dela resultado motivo pelo qual o mesmo com portamento ora pode ser considerado excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabilidade e viceversa Não por acaso juízes e tribunais não raro divergem a esse respeito Não existem portanto fenômenos típicos nem culpáveis mas apenas uma interpretação tipificante e culpabilizante dos fenômenos Ora se assim é resulta que a culpabilidade é como assinalado o pressuposto lógico de efetividade aplicabilidade das normas jurídicopenais que se prestam à pre venção geral e especial de comportamentos socialmente lesivos e que como tal está presente na análise das várias categorias dogmáticas tipicidade ilicitude e culpabili dade não constituindo por isso uma categoria autônoma dentro da teoria do delito Afinal como observa GarcíaPablos um direito penal que pretenda exigir responsabi lidades por fatos que não dependam em absoluto da vontade do indivíduo merece ser qualificado de arbitrário e disfuncional porque precisamente a pena carece de poder motivador e o castigo perderia toda sua justificação37 Apesar disso é certo que a lei faz distinção entre as diversas excludentes de ti picidade de ilicitude e de culpabilidade relativamente aos seus efeitos Com efeito a sentença que declara a presença de uma causa de justificação legítima defesa etc como regra faz coisa julgada no cível38visto implicar o reconhecimento de conforma ção da conduta com o ordenamento jurídico como um todo e não só com o penal Já as demais causas de exclusão de tipicidade e culpabilidade têm em princípio um alcan ce muito menor valendo como regra apenas para o ordenamento jurídicopenal não fazendo coisa julgada no cível 35 Nesse sentido Schünemann La función in Fundamentos cit p 224225 36 Derecho penal cit p 509 e s 37 Derecho penal cit p 287 38 Código de Processo Penal art 65 faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em legítima defesa em estado de necessidade no estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular de direito 199 PAULO QJEIROZ Em resumo as excludentes de ilicitude são causas jurídicas de justificação e as excludentes de tipicidade e culpabilidade são causas jurídicopenais de justificação39 as primeiras valem como regra para todo o ordenamento jurídico as segundas valem em princípio apenas para o ordenamento jurídicopenal De todo o exposto cabe concluir nos seguintes termos o ato de tipificar uma con duta como criminosa isto é a opção política por criminalizar já parte do pressuposto da exigibilidade da conduta conforme a norma razão pela qual em todos os momentos de verificação do injusto penal impõese indagar sobre tal circunstância Logo forçoso é reconhecer que as várias categorias dogmáticas carecem de autonomia pois não pas sam de momentos ou níveis ou graus de apuração do caráter criminoso do fato E se assim é a teoria dos elementos negativos do tipo poderia ser reformulada para compreender a a realização de todos os elementos do tipo b a ausência de cau sas de justificação e c a ausência de causas de exclusão de culpabilidade Mas como justificar num sistema funcional que o direito penal tenha inimputá veis como destinatários se não podem compreender a mensagem normativa e atuar segundo seu comando não matar não roubar etc Basicamente duas são as razões políticocriminais que justificariam semelhante intervenção prevenção geral de pos síveis reações informais arbitrárias contra o inimputável e prevenção especial é dizer impedir que volte a delinquir Só assim se pode compreender a resposta penal no par ticular Naturalmente que à semelhança do que se passa com os menores de dezoito anos tais pessoas poderiam igualmente ficar sujeitas a uma legislação especial Aliás foi exatamente isso que se pretendeu com a edição da Lei nº 102162001 lei de refor ma psiquiátrica Mas não é exato afirmar que a culpabilidade não desempenhe qualquer papel re lativamente aos inimputáveis ao argumento de que a pena pressupõe culpabilidade e a medida de segurança periculosidade É que a medida de segurança como sanção penal que é não pode ser imposta se concorrerem causas excludentes de culpabili dade como erro de proibição inevitável coação moral irresistível etc de sorte que numa perspectiva garantista não há distinção substancial quanto aos pressupostos en tre pena e medida de segurança uma vez que todos os princípios e garantias penais devem ser aplicados ao inimputável que só ficará sujeito a essa sanção penal específica quando for autor de um fato comprovadamente típico ilícito culpável e punível Se ele fica sujeito à medida de segurança e não à pena é porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade pois sentido algum faria castigálo ou enclausurálos numa pe nitenciária40 39 Confo1me Sílva Sánchez que chama as causas de exclusão de culpabilidade de situação de justifi cação incompleta a diferença entre a justificação e a exculpação é de grau e que em teoria o legislador poderia converter uma causa de exculpação em causa de justificação Aproximación cit p 4 1 4 40 Uma formulação semelhante encontrase em Georg Freund Strafrecht Allgemeiner Teil Heidel berg 1 998 p 1 1 21 1 7 Visto desse modo não há necessidade de um princípio geral e autônomo de 200 I 03 1 EVOLUÇÃO DO CONCE ITO DE TIPO Apesar de recusar autonomia às categorias dogmáticas convém tratálas autono mamente seja por razões didáticas seja porque a lei e a doutrina pressupõem a aludida distinção ainda que um tanto ilusória 52Ainda o conceito analítico o que há em comum e distinto entre as várias excludentes De acordo com Welzel a tipicidade a antijurídicidade e a culpabilidade são os três elementos que convertem uma ação em um delito as quais estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior pressupõe o anterior41 Para Roxin típica é a ação que coincide com uma das descrições de delito anti jurídica é a conduta típica não amparada por causa de justificação e culpável é a ação típica e antijurídica praticada de modo reprovável por um sujeito imputável42 Ainda segundo Roxin a diferença entre excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade entre justificação e exculpação consiste em que uma conduta justificada é reconhecida como legal pelo legislador está permitida e há ser suportada por todos enquanto uma conduta exculpada não é aprovada e por isso continua como não permitida e proibida Assim embora não seja punida em geral não tem porque ser tolerada por quem é víti ma de uma conduta antijurídica43 exclusão de culpabilidade Os casos concretos devem ser afastados já no campo da tipicidade ou en tão ser solucionados pelo princípio geral da justificação se considerada a proteção in concreto de interesses maiores próprios ou de terceiros não for possível proferir um juízo de reprovação de determinada conduta não estará configurada a infração à norma de conduta como requisito essen cial da incidência de pena a ideia da inexigibilidade de conduta diversa lícita frequentemente discutida apenas sob o aspecto da culpabilidade já adquire importância também para a questão da tipicidade ou ainda para a questão da justificação uma norma jurídica que exige o inexigível não possui legitimação jurídica Caso se tome aquela ideia como princípio regulativo como por exemplo para a delimitação adequada do alcance dos deveres de cuidado e ação nos delitos culposos e omissivos resta visível que aqui não se trata de mero problema de culpa em relação a uma conduta ilícita típica mas de um problema de delimitação adequada da tipicidade Se uma pessoa é inimputável por exemplo a criança na forma do art 1 9 do Código Penal ou em consequência de doença conforme o art 20 ou se por outra razão está afastada a responsabilidade do indivíduo pelos próprios atos exemplo erro inevitável de proibição art 1 7 lª frase não ocorre a infração da norma de conduta que por motivos axiológicos e de conveniência é o requisito para a punição como consequência jurídica A conduta do inimputável nem sequer representa perigo de dano para a validade da norma Em momento algum o indivíduo fica aquém do que se pode exi gir dele de direito Ele não pratica qualquer injusto pessoal seu comportamento não viola as normas de conduta e nesse sentido não é ilícito Por isso é irrelevante para a punição como consequência jurídica se alguém age com justificação ou meramente sem culpa a exclusão de tipicidade a incidência de justificação a exclusão da culpabilidade e a escusa têm uma consequência comum excluir a punição de tal sorte que a classificação frequentemente controvertida não tem rele vância 4 1 Derecho Penal Aleman parte general Traducción dei alemán por los profesores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáfiez Perez Santiago Editora Juridica de Chile 1 993 p 57 42 Claus Roxin Derecho Penal Parte General Madrid Civitas 1 997 p 1 95 43 Roxin idem 201 PAULO QJEIROZ Tratase do conceito analítico de crime que apesar de todas as transformações pelas quais a dogmática penal passou e tem passado permanece firme É bem verdade que essa dimensão tripartida do delito não é aceita em princípio pela teoria dos elementos negativos do tipo que trabalha com um conceito bipartido de crime tipicidade e culpabilidade segundo o qual a tipicidade compreende como parte negativa implícita a ausência de excludentes de ilicitude legítima defesa etc O tipo total pressupõe portanto a realização dos elementos explícitos do tipo e a ausên cia de causas de justificação As excludentes de ilicitude são os elementos que negam o tipo visto que a antijuridicidade precede à tipificação Apesar disso a estrutura do delito é substancialmente mantida uma vez que per manece como uma conduta ação ou omissão típica ilícita e culpável O que ocorre é que a antijuridicidade perde autonomia relativamente à tipicidade que passa a com preendêla com um de seus elementos Que importância tem esse conceito analítico hoje É curioso que embora o direito seja um só conforme a doutrina o conceito ana lítico de delito parece constituir uma peculiaridade da dogmática jurídicopenal já que não existe uma abordagem similar no direito civil por exemplo quando é discutido o problema da responsabilidade civil subjetiva tampouco no direito tributário ou admi nistrativo entre outros Notese ainda que o conceito analítico é um desdobramento do conceito legal só é crime o que a lei define como tal sob ameaça de uma pena que por sua vez é um conceito político visto que requer uma decisão de poder que decrete o que é e não é infração penal Consequentemente também o são os seus elementos integrantes tipici dade antijuridicidade e culpabilidade Além disso parece que esse conceito não tem importância fora do direito penal Dirseia talvez que as excludentes de ilicitude diversamente das demais fazem coisa julgada no cível extrapenal impedindo a reparação do dano etc Mas isso não é de todo exato Primeiro porque a responsabilidade civil é apura da segundo critérios próprios sendo inclusive admitida a responsabilidade objetiva e sem culpa ou mesmo por ato lícito vg desapropriação Segundo porque casos há em que apesar da sentença penal absolutória por legítima defesa etc é perfeitamente possível a responsabilidade civil vg erro excesso aberratio ictus Enfim tal como prevê o Código Civil de 2002 art 935 a responsabilidade civil é independente da criminal Exatamente por isso o Código de Processo Penal de 1941 cujo artigo 65 dispõe que faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade em legítima defesa em estrito cum primento de dever legal ou no exercício regular de direito precisa ser interpretado segundo as atuais regras de responsabilidade civil É importante notar que quanto ao estado de necessidade o Código Civil art 929 assegura inclusive o direito à indenização sempre que a pessoa lesada ou o dono da coisa não forem culpados do perigo 202 l ü3 I EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Finalmente a eventual repercussão civil não justificaria o conceito penal analí tico de crime Resta verificar qual a importância do aludido conceito no próprio direito penal Convém lembrar que a distinção entre as excludentes não preexiste à interpretação mas é dela resultado Justamente por isso juízes e tribunais e a própria doutrina ora classificam uma conduta de uma forma ora de outra Já vimos que a interpretação não é um modo de constatar um direito preexistente mas a própria realização do direito Não é por outra razão aliás que com o advento da teoria final da ação o dolo e a culpa que antes integravam a culpabilidade passaram a fazer parte da tipicidade como seus elementos constitutivos Ademais a exata classificação de cada uma das excludentes depende primeiro de como o legislador tratará o assunto segundo da doutrina e da jurisprudência Assim por exemplo se para alguns autores o consentimento válido do ofendido exclui a tipi cidade para outros afasta a ilicitude A mesma divergência é encontrada na legislação dos países e na respectiva jurisprudência Não bastasse isso a consequência prática de uma excludente de tipicidade de ili citude ou de culpabilidade é em princípio a mesma uma sentença penal absolutória E mais com o nome de excludentes de tipicidade figuram circunstâncias que pou co ou nada têm em comum De fato o que há em comum entre a ausência de tipifica ção de uma conduta e a não atuação dolosa ou culposa do agente O que faz com que a insignificância da ação tenha o mesmo tratamento sistemático da inexistência de nexo causal ou do erro de tipo inevitável Não obstante isso todas essas circunstância são consideradas excludentes de tipicidade O mesmo raciocínio pode ser feito quanto às excludentes de ilicitude De fato que existe em comum entre a legítima defesa o estado de necessidade e o consentimento válido do ofendido se seus requisitos são tão diversos Releva notar inclusive que diversamente do que ocorre com a legítima defesa real é possível estado de necessi dade contra estado de necessidade No que tange às excludentes de culpabilidade cabe perguntar o que faz com que a inimputabilidade decorrente de doença mental o erro de proibição inevitável e a coa ção moral irresistível tenham o mesmo tratamento sistemático E o que justifica que a coação física irresistível seja tratada como excludente de tipicidade e a coação moral irresistível como excludente de culpabilidade Vêse assim quão indeterminados podem ser os conceitos de tipicidade ilicitude e culpabilidade relativamente ao seu possível conteúdo e limites dada a disparidade dos conceitos subjacentes a cada um desses elementos do delito Não é por outra razão aliás que o conceito analítico tripartido de crime tem resistido incólume à evolução da teoria do delito por mais significativa Em verdade a única coisa realmente comum a todas essas circunstâncias é o seu resultado prático todas conduzem a uma sentença penal absolutória a qual resulta 203 PAULO QjEIROZ em última análise de uma decisão política que tem por desnecessária ou inadequada a imposição da pena pública Por tudo isso não é de todo exata a afirmação de Roxin no sentido de que a di ferença entre excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade entre justificação e exculpação consiste em que uma conduta justificada é reconhecida como legal pelo legislador está permitida e há ser suportada por todos enquanto uma conduta exculpa da não é aprovada e por isso continua como não permitida e proibida Assim embora não seja punida em geral não tem porque ser tolerada por quem é vítima de uma con duta antijurídica44 Afinal não existe diferença ontológica entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade seja porque conduzem ao mesmo resultado prático absolvição seja porque poderiam em tese ter o mesmo tratamento sistemático seja porque a exa ta classificação depende de critérios políticos seja porque a mesma circunstância ora poderá ser considerada como excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabi lidade a depender da interpretação judicial e doutrinária Basta relembrar como se deu a sistematização do dolo e da culpa JesúsMaria Silva Sánchez tem razão portanto quando assinala que a diferença entre justificação e exculpação é apenas de grau e que em tese o legislador poderia transformar uma causa de exculpação em causa de justificação e viceversa 45 Finalmente os atuais conceitos de tipicidade como juízo de subsunção do fato ao tipo de antijuridicidade como uma relação de contrariedade entre o fato típico e o direito como um todo e de culpabilidade como juízo de reprovação que incide sobre o autor de um fato típico e ilícito por lhe ser exigível uma conduta diversa encerram uma grande simplificação que está longe traduzir o que de fato acontece quando dize mos que uma conduta é típica ilícita e culpável Aliás a própria relação de sucessão lógica entre tais categorias é questionável46 Com efeito quanto à tipicidade não se trata a rigor de um juízo lógico de sub sunção senão de um juízo analógico visto que conforme vimos os casos penais nun ca são absolutamente iguais nem desiguais mas mais ou menos semelhantes O direito penal não é um saber lógico mas analógico47 E mais o juízo sobre a tipicidade de um comportamento encerra uma valoração complexa e problemática que envolve considerações de caráter políticocriminal e dogmático que visa entre outras coisas a determinar lo tipo ou tipos penais que incidem no caso isto é dar a exata definição jurídicopenal do fato aí incluída a 44 Roxin idem 45 Aproximación ai derecho penal contemporâneo Barcelona Bosch 1992 p 4 1 4 46 Basta lembrar com efeito que não discutimos em princípio a tipicidade e ilicitude quanto aos inimputáveis em razão da idade visto que o Código Penal não lhes é aplicável de modo que a inimputabilidade constitui questão prejudicial e anterior à análise das demais categorias do delito 47 Arthur Kaufmann cit 204 103 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO análise sobre se há unidade ou concurso de crimes material formal ou continui dade delitiva 2se o tipo penal de que se trata é conforme a Constituição e em que termos o é 3o âmbito de proteção ou de incidência do tipo isto é determinar o que ele de fato proíbe e não proíbe 4se a conduta criou um risco proibido juridicamente relevante e se houve realização desse risco no resultado causalidade e imputação objetiva 5se a conduta é significativa ou não princípio da insignificância 6a que título o fato é punível se doloso ou culposo imputação subjetiva 7havendo con sentimento do ofendido determinar se é válido e quais são suas consequências 8 se incidem excludentes de tipicidade erro de tipo etc 9a condição legal do agente autor coautor ou partícipe lüse há um fatotipo consumado ou tentado l lse é também aplicável à pessoa jurídica De acordo com a teoria dos elementos negativos a tipicidade exigiria ainda a apreciação da incidência de causas de justificação legítima defesa etc Ademais as excludentes de tipicidade acabam por também excluir a própria cul pabilidade quer por lhe preceder logicamente quer porque também nelas está fre quentemente pressuposto um juízo de exculpação Assim por exemplo tanto no erro de tipo inevitável quanto na coação física irresistível excludentes de tipicidade não é exigível do agente conduta diversa isto é conforme o direito O mesmo deve ser dito mutatis mutandis da complexa valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade conforme vimos Enfim o juízo sobre a tipicidade a ilicitude e a culpabilidade encerra em última instância uma imputação de culpa penal Tratase evidentemente de um juízo com plexo que envolve a ponderação de interesses os limites de incidência da proibição legal a significância da ação a atuação dolosa ou culposa a legitimidade da ação o conhecimento da proibição a exigibilidade de conduta diversa etc Realmente se atendendo a critérios políticocriminais o legislador penal houve por bem isentar o réu de pena nos casos de erro de tipo e de proibição inevitável de legítima defesa de estado de necessidade e de embriaguez involuntária completa é porque entendeu que em todos esses casos a imposição de sanção penal implicaria uma violência inútil e desnecessária quer para fins de prevenção geral quer para fins de prevenção especial Propomos por isso unificar ou substituir a terminologia atual excludentes de ti picidade de ilicitude e de culpabilidade por excludentes de criminalidade48 uma vez que todas implicam a exclusão do crime e a consequente isenção de pena Por conse guinte matar alguém simplesmente tal como consta do art 121 do Código constitui um homicídio mas não um crime de homicídio pois a conduta só configurará um cri me em sentido técnico se não concorrerem excludentes de criminalidade 48 Tratase de expressão um tanto em desuso e que em geral era utilizada para designar as excludentes de ilicitude 205 PAULO QlEI ROZ Quanto às medidas de segurança temos que a sua imposição só será legítima quando não estiver presente alguma excludente de criminalidade exceto a inimputabi lidade mesma Significa dizer que é lícito ao inimputável autor de crime alegar toda e qualquer excludente de tipicidade de ilicitude ou de culpabilidade segundo a termi nologia atual sob pena de violação aos princípios de isonomia e proporcionalidade Afinal a medida de segurança sanção penal que é constitui em última análise uma pena embora com outro nome Consequentemente há de exigir os mesmos pressupos tos de punibilidade válidos para todos Também aqui cabe dizer à maneira de Nietzsche que não existem fenômenos psiquiátricos mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos Tratase pois de uma imputação Em síntese 1 a distinção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação mas é dela resultado 2 essa classificação é determinada por critérios políticocriminais de sistematiza ção 3 o legislador pode em tese darlhes tratamento unitário ou transformar exclu dentes de tipicidade em excludentes de culpabilidade ou em causas de justifica ção e viceversa 4 as excludentes legais conduzem ao mesmo resultado prático uma sentença pe nal absolutória 5 nem sempre as chamadas causas de justificação fazem coisa julgada extrapenal pois os demais ramos do direito trabalham com critérios próprios de imputação e responsabilização 6 não há muito em comum sob o nome de excludente de tipicidade de ilicitude ou de culpabilidade 7 a distinção é perfeitamente superável 8 propomos substituir tais expressões por excludentes de criminalidade 9 os pressupostos das medidas de segurança são em princípio os mesmos da pena à exceção da inimputabilidade mesma lüao inimputável devem ser asseguradas todas as garantias penais e processuais penais aplicáveis ao imputável Consequentemente não é legítima a sua imposi ção sempre que o agente puder alegar com sucesso excludentes de culpabilida de inclusive a exemplo da coação moral irresistível a embriaguez involuntária completa etc 206 Sumário 1 Crimes dolosos culposos e preterdolosos 2 Crimes materiais formais e de mera conduta 3 Crimes comissivos omissivos próprios e omissivos impróprios 4 Crimes comuns e especiais 5 Crimes principais e acessórios 6 Crimes instantâneos permanentes e de estado 7 Crimes simples e compostos ou complexos 8 Crimes de dano e de perigo 81 Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato 9 Crimes unisubjetivos e plurisubjetivos 10 Crimes de ação única e de ação múltipla 11 Crimes habituais 1 CRIMES DOLOSOS CULPOSOS E PRETERDOLOSOS De acordo com o Código art 18 há crime doloso quando o agente quer o resultado dolo direto ou assume o risco de produzilo dolo eventual culposo quando Der causa ao resultado por imprudência negligência ou imperícia e preterintentional é o crime cujo resultado vai além da intenção do agente havendo dolo quanto à ação e culpa quanto ao resultado v g fere a vítima levemente sem pretender causarlhe maior dano mas ela vem a óbito por ser fisicamente muito frágil Já o Código Penal português art 14 mais completo dispõe que 1 age com dolo quem representando um fato que preenche um tipo de crime atua com intenção de o realizar 2 age ainda com dolo quem representar a realização de um fato que preenche um tipo de crime com consequência necessária da sua conduta 3 quando a realização de um fato que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta há dolo se o agente atuar conformandose com aquela realização No item 1 há dolo direto de primeiro grau no item 2 dolo direto de segundo grau e no item 3 dolo eventual E age com negligência art 15 quem por não proceder com o cuidado que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz 1 representar como possível a realização de um fato que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização ou 2 não chega sequer a representar a possibilidade de realização do PAULO QlJEIROZ fato No item 1 há culpa consciente ou com previsão no segundo culpa inconsciente ou sem previsão Também o nosso Código Penal Militar art 33 II prevê expressamente as duas formas de crime culposo culposo quando o agente deixando de empregar a caute la atenção ou diligência ordinária ou especial a que estava obrigado em face das circunstâncias não prevê o resultado que podia prever ou prevendoo supõe leviana mente que não se realizaria ou que poderia evitálo 2 CRIMES MATERIAIS FORMAIS E DE MERA CONDUTA São crimes materiais ou de resultado aqueles em que o tipo penal descreve um comportamento cuja consumação entendida como completa realização dos elemen tos do tipo somente ocorre com a produção do resultado nele previsto Assim por exemplo o homicídio CP art 121 e o aborto art 124 em que a consumação se dá com a morte da pessoa ou do feto não bastando a prática de atos de execução de sorte que não ocorrendo o resultado o crime será simplesmente tentado Crimes formais de consumação antecipada são aqueles cuja consumação ocorre com a realização da ação descrita no tipo pouco importando o resultado que consti tui em consequência mero exaurimento de um crime já perfeitamente consumado Assim por exemplo a concussão CP art 316 ou a extorsão mediante sequestro CP art 159 cuja consumação se dá respectivamente com o fato de o funcionário público exigir ação vantagem indevida e de sequestrar pessoa com o fim de obter qualquer vantagem independentemente da efetiva obtenção da vantagem referida no tipo resul tado Por conseguinte a eventual obtenção da vantagem constituirá mero exaurimento de um crime já plenamente consumado isto é consumado com o só exigir vantagem indevida ou sequestrar pessoa com o fim de obter qualquer vantagem A propósito a Súmula 96 do STJ dispõe que o crime de extorsão consumase independentemente da obtenção da vantagem indevida Por fim nos chamados crimes de mera conduta2 crimes sem resultado o tipo re fere apenas uma ação positiva ou negativa sem aludir a qualquer resultado de modo que a consumação se dá com a prática da ação ou omissão nele previstos Assim o entrar ou permanecer clandestina ou astuciosamente em casa alheia CP art 150 o devassar correspondência alheia CP art 151 etc em que só a realização de tais ações basta para consumar o crime Notese que semelhante classificação decorre de conveniência políticocriminal de modo que se o legislador quisesse transformar um crime material em formal ou um de mera conduta em formal ou material bastaria alterar a redação do tipo As sim por exemplo a extorsão mediante sequestro tornarseia um crime material se em vez de se declarar que constitui crime sequestrar pessoa com o fim de obter 2 Nem todos admitem crimes sem resultado No sentido de que não existe crime sem resultado Hun gria Comentários v II p 1 3 e ss 208 1041 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES qualquer vantagem se dissesse obter mediante sequestro de pessoa qualquer vantagem Por conseguinte é a redação de cada tipo penal especialmente o verbo usado na oração que permitirá inferir se estamos diante de um crime material formal ou de mera conduta Em geral quando o legislador considera que a ação ou omissão já é em si mesma grave antecipa desde logo a consumação da infração caso contrário condi ciona a consumação à produção de um dado resultado razão pela qual se este não se realizar haverá em princípio crime tentado O mesmo deve ser dito quanto às demais classificações referidas a seguir pois o critério determinante é sempre a redação de cada tipo penal Naturalmente que tais classificações não são excludentes razão pela qual um mesmo delito poderá ser simultaneamente classificado de diversas formas Assim por exemplo o homicídio é classificável como doloso ou culposo comissivo ou omissivo de dano unissubjetivo material instantâneo de única ação comum principal sim ples etc 3 CRIMES COMISSIVOS OMISSIVOS PRÓPRIOS E OMISSIVOS IM PRÓPRIOS Comissivos são os crimes é a regra cujos tipos descrevem um comportamento positivo razão pela qual o crime consiste em fazer o que a lei proíbe matar furtar etc Nos omissivos próprios contrariamente o tipo criminaliza a abstenção da condu ta nele prevista isto é tipificase um não fazer algo que a lei impõe motivo pelo qual haverá crime se o agente se abstiver de agir como a lei manda v g omissão de socorro CP art 135 e omissão de notificação de doença CP art 269 Já nos crimes omis sivos impróprios ou comissivos por omissão a lei equipara a omissão à ação razão pela qual quando o agente não fizer o que a lei obriga responderá como se o fizesse ativamente comissivamente a título de dolo ou culpa v g mãe que deixa o filho morrer por inanição Na omissão imprópria portanto a omissão equivale jurídicope nalJ11ente à ação desde que o agentegarante não aja de modo a evitar um resultado concretamente evitável Notese que para a caracterização de um crime omissivo impróprio é necessário que além de um dever legal de agir o agente tenha o dever de evitar o resultado nos temos do art 13 2º do Código por se encontrar na condição legal de garante ou garantidor Assim por exemplo se A salvavidas deixa de socorrer uma criança que se afoga responderá por homicídio e não simples omissão de socorro por ter o dever legal de agir e evitar o resultado morte se porém A não é salvavidas não é garante na forma do art 13 2 do CP responderá apenas por omissão de socorro e não por homicídio por não ter o dever legal de evitar o resultado morte mas um simples dever legal de agir A distinção entre omissão própria e omissão imprópria reside nisso portanto nos crimes omissivos próprios o agente responde pela só pela omissão nos omissivos 209 rAULO QIJEIROZ impróprios o agentegarante responde pelo resultado tratandose de uma omissão qua lificada e por isso mais gravemente punida Na omissão própria há imputação da sim ples omissão já na omissão imprópria existe imputação do próprio resultado visto que a omissão é equiparada jurídicopenalmente à ação Enfim a omissão própria que pressupõe um dever geral de assistência é um cri me comum praticável por qualquer pessoa e a omissão imprópria é um delito especial que só pode ser praticado por quem se encontra na condição legal de garante médico salvavida pais etc Finalmente tipos penais há que admitem as duas formas comissiva e omissiva a exemplo do abandono de incapaz CP art 133 que pode se realizar tanto por ação vg conduzir o incapaz para um determinador lugar e lá deixálo como por omissão vg abandonálo no lugar onde já se encontra O mesmo ocorre com a prevaricação CP art 319 que consiste em retardar ou deixar de praticar omissão indevidamen te ato de ofício omissão bem como praticálo contra a lei ação 4 CRIMES COMUNS E ESPECIAIS Crime comum é a regra é aquele em que o tipo não exige condição especial algu ma do sujeito ativo motivo pelo qual pode ser praticado por qualquer pessoa a exem plo do homicídio do furto etc Já no crime especial ou próprio é a exceção contra riamente o tipo exige uma qualidade especial do agente razão pela qual só pode ser praticado por algumas pessoas em particular a exemplo do peculato CP art 312 e do patrocínio infiel CP art 355 que só podem ser praticados respectivamente por fun cionário público e advogadoprocurador Apesar disso no caso de concurso de agentes coautoria e participação é possível imputar crime especial a quem não tem a qualidade exigida pelo tipo desde que o au tor a detenha hipótese em que haverá comunicação das circunstâncias de caráter pes soal vg responde por peculato quem embora não sendo funcionário público auxilia o servidor público a praticálo A doutrina refere ainda os crimes de mão própria que são aqueles que exigem de parte do autor a realização pessoal do tipo não se admitindo por isso a realização por interposta pessoa autoria mediata como bigamia e falso testemunho Ao contrá rio do que comumente se afirma temos que a participação nos delitos por mão própria é possível visto que o partícipe coopera na ação de outro e em consequência não pre cisa ter a qualidade de autor 5 CRIMES PRINCIPAIS E ACESSÓRIOS Principais é a regra são os crimes cuja configuração não depende da ocorrên cia de qualquer outra infração penal homicídio furto etc uma vez que são criados autonomamente sem remissão expressa ou tácita a nenhum outro delito Acessórios é a exceção ou dependentes são os que pressupõem necessariamente a ocorrência prévia de outro crime de cuja existência dependem Assim a receptação CP art 180 210 que somente se caracteriza a coisa receptada por produto de crime vale dizer por produto de furto roubo etc de modo que se o delito principal pressuposto não restar configurado não cabe cogitar do crime acessório E o acessório segue em princípio a sorte do principal Dizer que um delito é acessório relativamente a outro de cuja existência depende não significa todavia que havendo concurso o tipo principal prevalecerá necessariamente sobre o subsidiário pois pode ocorrer de a lei autonomizar este último e inclusive castigálo mais gravemente Exemplo disso é o crime de financiamento para o tráfico Lei n 113432006 art 36 que embora presuponha a existência do tráfico propriamente dito art 33 predomina sobre ele na hipótese de concurso de tipos 6 CRIMES INSTANTÂNEOS PERMANENTES E DE ESTADO Dizse instantâneo é a regra o crime cuja realização se dá com o cometimento da ação prevista no tipo isto é que se perfaça com a prática da conduta típica matar etc a título consumado ou tentado Nele a lei criminaliza uma açãoomissão que uma vez praticada não admite permanência Como esclarece Ney Fayet Júnior instantâneos são aqueles delitos nos quais a ofensa é imediata consumandose ou tentandose em um determinado momento sem projeção do estado ilícito no tempo Já o permanente é a exceção é o delito cuja consumação por ser passível de diferimento se estende no tempo enquanto persiste a vontade do agente de realizar a conduta típica renovando a violação ao bem jurídico respectivo a exemplo de sequestrar pessoa guardar droga ilícita etc Assim enquanto nos delitos instantâneos a ofensa ao bem jurídico cessa com a produção do resultado ou com a cessação da atividade criminosa os permanentes a ofensa se renova no tempo enquanto não cessa a atividade típica pois persiste a violação ao bem jurídico por decisão do autor do fato Por sua vez os crimes de estado são os que embora criem uma situação ilícita mais ou menos duradoura a consumação ou tentativa ocorre com a realização da ação ou omissão prevista no tipo visto que a lei criminaliza a produção de um estado antijurídico mas não a sua manutenção Exemplo disso é a bigamia CP art 235 uma vez que a lei tipifica unicamente a ação de contrair casamento sendo casado novo casamento mas não a manutenção dessa situação illegal Consequentemente o crime se consumará quando o autor contrai PAULO QEI ROZ um novo casamento Todavia a persistência dessa situação ilegal não implica perma nência mas exaurimento porque a vida conjugal que se segue ao matrimônio não im porta em contrair novo casamento O mesmo ocorre com o furto e a falsificação de documentos visto que a fruição da coisa subtraída e a guarda do documento falsificado não configuram permanência dos mencionados tipos penais Diverso é o sequestro CP art 148 em que se tipifica a conduta de privar alguém de sua liberdade mediante sequestro ou cárcere privado logo enquanto o agente mantiver a situação de sequestro ou cárcere privado o crime estará permanentemente se renovando e se consumando A distinção entre crime permanente e de estado consiste no seguinte nos perma nentes a lei tipifica tanto a realização da ação quanto a eventual manutenção dessa ação a qual importará em dilatação da consumação Diversamente nos delitos de esta do a lei tipifica exclusivamente a realização da açãoomissão mas não a manutenção da ação já realizada No crime de estado por conseguinte a lei pune a realização da ação típica mas não o estado antijurídico que se segue à sua consumação Apesar da duração da situa ção antijurídica os crimes de estado são instantâneos portanto 5 Falase ainda de crimes instantâneos de efeitos permanentes quando embora consumado o delito de forma instantânea seus efeitos permanecem homicídio estu pro etc Mas esse classificação é inútil6 Não se deve confundir porém crime permanente com crime continuado pois na continuação delitiva CP art 71 há em verdade vários crimes praticados em concurso material v g vários furtos mas a lei por motivo de política criminal trataos como se constituíssem um único crime Naturalmente que embora distintos crimes permanentes e continuados não são incompatíveis razão pela qual é perfeitamente possível que um delito permanente seja praticado em situação de continuidade delitiva v g sequestro de membros de uma família em dias seguidos Advirtase que apesar da distinção a Súmula 711 do STF equiparou os crimes continuados aos permanentes para efeito de aplicação da lei penal no tempo ao dispor que a lei penal mais grave aplicase ao crime continuado ou ao crime permanente se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência vide capítulo específico 5 Como escreve Ney Fayet Júnior não se pode confundir o estado consumativo que se estende no tempo elemento configurador dos delitos permanentes com os efeitos naturais de alguns crimes que muitas vezes podem perpetuarse temporária ou permanentemente apesar de os crimes serem instantâneos Do crime continuado Porto Alegre livraria do advogado editora 2012 p 1 1 1 6 Também reconhecendo a inutilidade da mencionada classificação José Frederico Marques Tratado de Direito Penal v II p 366 Campinas Bookseller 1997 Frederico Marques cita ainda Antolisei e Petrocelli 212 Discutese se o estelionato contra a previdência social é um crime permanente ou instantâneo visto que deferido o benefício indivíduo é comum o agente continuar a percebêlo por meses ou anos a fio questionase então se tais benefícios pagos seguidamente constituem exaurimento permanência ou continuidade delitiva Os tribunais ora decidem num sentido ora noutro Parecenos que o caso é de permanência relativamente ao autor que se apropria das contribuições previdenciárias Com efeito e conforme vimos dizse permanente o crime sempre que a consumação se dilata no tempo enquanto se mantêm por decisão do agente a situação ilícita de violação ao bem jurídico como se dá por exemplo com o sequestro pois enquanto se mantiver a vítima em cativeiro privado de liberdade o ato de sequestrar se renova no tempo e portanto a consumação do crime hipótese diversa do furto vg em que a consumação se perfaz com a subtração da coisa e o eventual uso gozo e fruição da res furtiva não constituem permanência mas mero exaurimento de infração penal já consumada Pois bem análogo ao sequestro é o estelionato previdenciário uma vez que ao persistir em receber obter os benefícios subsequentes o agente está a cada percepção a induzir ou a manter em erro a previdência renovando a ofensa ao bem jurídico tutelado jurídicopenalmente Ademais se se entender que o caso não é de permanência mas de simples exaurimento de um crime consumado com o deferimento e percepção do primeiro benefício estarseia a reconhecer indiretamente como atípica ou lícita a conduta do agente de manter o INSS em erro como se lhe assistisse um legítimo direito à percepção dos benefícios Finalmente alicerçado na tese de crime instantâneo a percepção contínua dos benefícios indevidamente pagos a cada mês poderá configurar continuidade delitiva nos termos do art 71 do Código sempre que o agente os obtiver ilicitamente para si ou para outrem mantendo o INSS em erro mediante ardil etc CP art 171 7 CRIMES SIMPLES E COMPOSTOS OU COMPLEXOS Crime simples é aquele em que o tipo penal descreve uma única lesão jurídica homicídio matar alguém furto subtrair coisa alheia móvel Dizemse compostos ou complexos os crimes em que o tipo alude a mais de uma lesão são crimes que resultam enfim da fusão de mais de um tipo penal Exemplo roubo art 157 que deriva da fusão de furto art 155 constrangimento ilegal art 146 e latrocínio que decorre da fusão de roubo homicídio PAULO QJEIROZ A importância dessa classificação decorre sobretudo do disposto no art 101 do CP que dispõe que quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes cabe ação pública em relação àquele desde que em relação a qualquer destes se deva proceder por iniciativa do Ministério Público Exatamente por isso o estupro CP art 213 qualificado por lesão grave ou morte da vítima 1 º e 2º é um crime de ação penal pública in condicionada e não um delito de ação penal pública condicionada à representação como poderia parecer à primeira vista art 225 É que tanto a lesão grave quanto o homicídio são delitos de ação penal pública incondicionada autonomamente consi derados 8 CRIMES DE DANO E DE PERIGO Crimes de dano são os que se consumam com a produção de um dano ao bem jurídico tutelado pelo respectivo tipo e os de perigo são os que se consumam com a simples produção de um perigo juridicamente relevante Crimes de dano são enfim aqueles em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de um bem jurídico de modo que a conduta somente assume relevância jurídicopenal quando se verificar um dano lesão real ou potencial consumação ou tentativa ao in teresse tutelado v g homicídio roubo Nos crimes de dano portanto a consumação pressupõe a produção de uma lesão9 Já nos crimes de perigo o legislador ao descrever o tipo contentase com o perigo que a ação representa relativamente ao bem jurídico O perigo será concreto quando a descrição do tipo aludir a um perigo ocorrido real de lesão devendo ser comprova do E o perigo será abstrato ou presumido quando o legislador tipificar a conduta por julgála perigosa em si mesma independentemente da demonstração de qualquer dano sentido Roxin Os delitos simples protegem só um bem jurídico e os compostos vários Delitos compostos são entre outros o furto 242 que se dirige contra a propriedade e a custódia Derecho Penal Parte Gereral Madrid Editorial Civitas 1 997 p 337 e Jescheck de acordo com o número de bens jurídicos protegidos no preceito penal há delitos simples e compostos Tratado de Derecho Penal Parte General Granada Comares 1 993 p 239 Já na doutrina espanhola Muiíoz Conde e Mercedes Arán definem crimes complexos como aqueles que se caracterizam pela concor rência de duas ou mais ações cada uma constitutiva de um delito autônomo mas de cuja união nasce um complexo delitivo autônomo distinto Derecho Penal Parte General 4 ed Valencia Tirant lo Blanch 2000 p 296 E para Rodriguez Mourullo os tipos complexos se caracterizam porque estão integrados por duas ou mais ações que são em si mesmas delitivas Derecho Penal Parte General Madrid Civitas 1 978 p 274 9 De acordo com Cezar Bitencourt crime de dano é aquele para cuja consumação é necessária a super veniência da lesão efetiva do bem jurídico E crime de perigo é aquele que se consuma com a simples criação de um perigo para o bem jurídico protegido sem produzir dano efetivo cit p 213 Para Hungria perigo abstrato é o que a lei presume juris et de jure inserto em determinado fato pouco importando que não se realize no caso concreto por alguma circunstância excepcional um perigo efetivo já o perigo concreto é o que se verifica realmente dependendo de tal verificação ocorrência a existência do crime Comentários cit 214 1041 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES ou perigo concreto de dano de sorte que a lei presume o perigo juris et de jure Nos crimes de perigo portanto a consumação pressupõe a simples realização de um peri go real ou potencial Exemplo disso é dirigir embriagado e portar arma de fogo sem autorização legal Naturalmente que o dano e o perigo não se excluem mesmo porque o perigo en cerra uma possibilidade ou probabilidade de dano e o dano é por sua vez a consuma ção de um perigo açãoomissão perigosa Mas que diferença há entre crimes de dano e de perigo se ambos admitem o dano e o perigo como possíveis formas de realização do tipo Nisso nos primeiros crimes de dano o dano constitui a principal forma de realização do tipo consumação e o perigo um modo acessório tentativa Nos crimes de dano a lesão é pois essencial à realização do tipo e o perigo é acidental Já nos segundos crimes de perigo o essencial reside na mera exposição do bem jurídico a um perigo de lesão e o eventual dano irrelevante que é para efeito de consu mação configura em princípio exaurimento de um crime já consumado Justamente por isso irrelevância da lesão o crime se consuma independentemente de dano ao bem jurídico E a eventual lesão constituirá ou exaurimento de um crime de perigo ou caracterizará algum delito de dano consumado ou tentado É que como regra os cri mes de perigo são acessórios relativamente aos de dano Dizer que o crime de perigo abstrato se consuma independentemente de um peri go real não significa porém que possam existir tipos penais que criminalizem o não perigo isto é que resultem de um simples capricho do legislador de proibir pelo prazer de proibir mesmo porque a intervenção penal implica inevitavelmente limitação de direitos individuais E mais a pretexto de proteger bens jurídicos a intervenção penal pode eventualmente significar a violação sistemática desses bens Consequentemente se o perigo concreto ou abstrato pressupõe a possibilidade de dano não há crime algum se se verificar a inocuidade de um determinado produto ou substância Justamente por isso é que não há crime de tráfico de droga se a subs tância apreendida já não dispunha de seu princípio ativo visto que a rigor droga não é mais nem há crime de moeda falsa se se tratar de falso grosseiro por carecer de potencialidade lesiva É que embora o tráfico e a moeda falsa sejam classificáveis como crime de perigo eou formal os quais por conseguinte consumamse inde pendentemente de a droga ou a moeda ter sido efetivamente usada ou posta em cir culação prejudicando indivíduos concretos tais infrações não se perfazem sempre que se constatar a ineficácia absoluta do meio ou a absoluta impropriedade do objeto crime impossível CP art 17 Não se deve pois confundir a presunção legal de perigo concreto ou abstrato com a ausência mesma de perigo visto que o não perigo não é passível de criminaliza çãopenalização legítima 215 PAULO Q1lElROZ 81 Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato Discutese a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato visto que a lei aca ba por criminalizar a simples desobediência à norma independentemente da realiza ção de um perigo concreto10 Parecenos porém que há casos em que o perigo de lesão é de tal modo impor tante que a sua tipificação é plenamente justificável razão pela qual não cabe afir mar aprioristicamente a inconstitucionalidade de todo e qualquer delito de perigo abstrato11 O problema fundamental reside portanto no tipo de perigo que se pretende evitar e na forma como se realiza essa proteção E apesar de frequente os crimes de perigo não podem em princípio ser punidos com penas superiores aos correlatos crimes de dano sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade mesmo porque a criminalização do perigo visa a evitar os deli tos de dano razão pela qual constitui uma forma de antecipação da tutela penal 9 CRIMES UNISSUBJETIVOS E PLURISSUBJETIVOS Unissubjetivos é a regra são os crimes que podem ser praticados por uma única pessoa podendo haver concurso eventual de agentes a exemplo do homicídio e do roubo Já os plurissubjetivos ou de concurso necessário exigem necessariamente para a sua caracterização a intervenção de mais de uma pessoa no crime como a associa ção criminosa CP art 288 pode o concurso segundo os interesses dos concorrentes ser paralelo associação criminosa convergente bigamia ou divergente rixa Em suma nos crimes plurissubjetivos é a exceção a participação de várias pes soas no evento imputáveis ou não é essencial ao tipo legal de delito já nos delitos unissubjetivos a participação de vários sujeitos é acidental os quais podem ser pratica dos por única pessoa motivo pelo qual se mais de uma pessoa tomar parte no delito haverá concurso eventual de agentes coautoria ou participação 10 CRIMES DE AÇÃO ÚNICA E DE AÇÃO MÚLTIPLA De única ação é a regra é o crime cujo tipo recorre a um único verbo matar se questrar de múltipla ação ou de conteúdo variado quando apela a vários verbos in criminadores como na receptação adquirir receber transportar ou no tráfico de dro gas importar exportar remeter etc hipótese em que se houver a realização de mais de uma ação v g adquirir a droga transportála e vendêla num mesmo contexto de 1 O No sentido da constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato HC nº 1 06 1 63RJ do STF Ministro Gilmar Mendes Informativo nº 679 2012 1 1 Vide Luís GRECO Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Brasil v 12 n 49 julhoagosto de 2004 216 1041 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES ação configurarseá um só e único delito E se se entendesse que existem vários cri mes violarseiam os princípios de legalidade e ne bis in idem A tentativa nos crimes de múltipla ação é perfeitamente possível mas dificilmente ocorre porque embora em relação a alguns dos verbos a ação possa ser considerada apenas tentada dáse em geral a consumação pura e simples em virtude da realiza ção plena de outros verbos típicos Assim por exemplo o autor que é preso no aeropor to com droga na mala para exportála responde por crime consumado visto que ape sar de a ação de exportar não ter se consumado ele já havia incorrido noutros verbos típicos adquirir guardar transportar etc E o crime é traficar droga formado de múltiplas ações e não exportar simplesmente 11 CRIMES HABITUAIS Dizemse habituais os crimes cuja realização pressupõe forçosamente a prática de um conjunto de atos sucessivos de modo que cada ato isoladamente considerado constitui um indiferente penal ou seja são delitos que reclamam habitualidade por traduzirem em geral um modo de vida do autor Assim por exemplo a casa de prosti tuição art 229 o exercício ilegal da medicina art 282 o curandeirismo art 284 a associação criminosa art 288 etc Em geral a doutrina entende que tais crimes por exigirem habitualidade não ad mitem a forma tentada mas consumada apenas Os crimes habituais não se confundem com os permanentes porque se nos habi tuais a reiteração de atos é um requisito essencial sem o qual o tipo não se perfaz nos permanentes ao contrário a reiteração é acidental motivo pelo qual o crime se realiza independentemente disso a título consumado ou tentado Justamente por isso o ato de sequestrar alguém crime permanente por exemplo já constitui crime consumado ou tentado independentemente de o sequestro se estender no tempo No entanto a asso ciação de três ou mais pessoas para cometer um único crime não configura associação criminosa CP art 288 delito habitual que é Não cabe tampouco confundir crime habitual com crime continuado visto que na continuidade delitiva CP art 71 cada ato isolado constitui crime autônomo diver samente dos habituais em que isso não ocorre Enfim a continuidade delitiva é um concurso material de crimes tratado como constitutivo de crime único Enfim ao contrário do crime continuado as ações repetidas que constituem o cri me habitual quando isoladamente consideradas não configuram infração penal habi tual porque somente a reiteração é que faz surgir um tal delito12 12 Hungria comentários v II p 45 217 1 os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA Sumário 1 Introdução 2 Teoria da equivalência dos antecedentes causais ou da conditio si11e qua 11011 2 1 Alcance 22 Interrupção do processo causal 22 1 Causas absoluta e relativamente independentes 222 Causas absoluta e relativamente inde pendentes irrelevância da distinção 223 Causa superveniente relativamente indepen dente 3 Crítica à teoria da equivalência dos antecedentes causais 4 Relação causal nos crimes omissivos 4 1 Crimes omissivos próprios e omissivos impróprios distinção 42 Causalidade nos crimes omissivos impróprios requisitos 43 Dolo e culpa nos crimes omissivos 44 Inconstitucionalidade dos crimes omissivos impróprios 5 A moderna teoria da imputação objetiva 5 1 Significado e posição sistemática 52 Conceito de risco permitido 53 Crítica á teoria da imputação objetiva 54 Con clusão INTRODUÇÃO Para se fazer uma imputação de crime a alguém é preciso apurar previamente se existe relação de causalidade entre a ação e o resultado porque se não houver ficará prejudicada a análise de tudo o mais A causalidade constitui assim um elemento objetivo prévio dos tipos delitos de resultado Portanto uma questão de imputação objetiva do resultado E fixar critérios precisos de delimitação da causalidade é fundamental para evi tar que o agente responda por resultados de exclusiva responsabilidade de terceiro ou puramente causais estranhos em todo caso à sua vontade Assim por exemplo se A atira contra B com intenção de matar atingindoo em região não letal o qual no en tanto vem a falecer em virtude de erro médico A não pode responder por homicídio consumado mas tentado apenas porque do contrário seria responsabilizado por ato de terceiro imprudência médica violandose os princípios de proporcionalidade pes soalidade da pena e legalidade visto que não se pode dizer a rigor que A matou B nos exatos termos do art 121 do Código Penal E mais o autor acabaria por responder por crime consumado em caso de simples tentativa Convém notar que o nexo causal é um constructo e não simplesmente uma constatação físiconatural porque para afirmarmos ou negarmos uma dada relação causal é preciso considerar sopesar excluir etc diversas possibilidades Assim há em princípio nexo causal entre a ação de um pastor americano que ateia fogo em exemplares do Corão e as mortes de cidadãos americanos em países muçulmanos que se lhe seguem em represália Existe também relação causal entre a ação de um estudante que divulga na internet imagens íntimas de um seu colega de quarto com o amante e o suicídio que sobrevém à indevida violação da privacidade do estudante vitimado 219 PAULO QJ E I ROZ Apesar disso em nenhum desses casos é possível imputar crime de homicídio quer por parte do pastor quer por parte do aluno que violou a privacidade do colega No primeiro caso porque o nexo causal embora necessário não é suficiente à caracte rização da responsabilidade penal E no segundo caso porque não se trata de omissão penalmente relevante visto que o estudante que viola a privacidade alheia não é garan te nos termos da lei A moderna teoria da imputação objetiva tem razão portanto quando prestigia uma construção e compreensão do tipo a partir de elementos essencialmente norma tivos Aliás com alguma frequência também a vítima tem uma papel fundamental no desencadeamento da causalidade e nem por isso negamos o nexo causal exceto em casos extremos vg autocolocação em risco De todo modo o nexo causal embora necessário não é suficiente para a configu raçãoimputação de crime de resultado visto que são indispensáveis outros elementos para tanto dolo culpa etc Finalmente para a verificação do nexo causal importam em princípio as causas imediatas e não as mediatas ou remotas 2 TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES CAUSAIS OU DA CONDITIO SINE QUA NON Da relação causal cuida o art 13 caput do Código Penal dispondo que o resul tado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa Considerase causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido O Código adotou portanto a teoria da conditio sine qua non condição sem a qual não ou teoria da equivalência dos antecedentes causais 1 embora de forma mitigada uma vez que o 1 º do referido artigo a relativiza consideravelmente teoria cuja formulação se deve a Julius Glaser 1858 e em especial a Maximilian von Buri 1873 magistra do do Supremo Tribunal do Reich e segundo o qual causa é toda e qualquer condição que concorra para a produção do resultado não se distinguindo entre causa e concausa ou entre causa e condição já que os antecedentes causais se equivalem daí o nome teoria da equivalência dos antecedentes causais De acordo com essa teoria a questão de quando uma conduta pode ser considera da como causa de um evento há de ser resolvida por meio de uma fórmula heurística de conteúdo hipotético a fórmula da conditio sine qua non 2 é dizer para saber se determinada condição pode ser considerada causa do resultado deverseá utilizar o 1 Apesar disso de acordo com Juarez Tavares o Código Penal tendo em vista a questão das concausas supervenientes e com o propósito de limitar o regresso infinito do processo causal procurou dispor acerca da interrupção da causalidade por meio de uma fórmula que praticamente desnatura a teoria da condição por ela adotada a superveniência de causa relativamente independente exclui a impu tação quando por si só produziu o resultado os fatos anteriores entretanto imputamse a quem os praticou art 1 3 1 º Teoria do injusto penal cit p 2 1 62 1 7 2 Mir Puig Derecho penal cit p 2 1 9 220 1 os 1 CAUSALIDADE E I M PUTAÇÃO OBJ ETIVA chamado método ou procedimento hipotético de eliminação segundo o qual quando eliminada mentalmente a causa eliminarse o efeito haverá nexo causal caso contrá rio isto é se cessada a causa não cessar o efeito a relação causal não estará configu rada e em consequência o resultado não poderá ser imputado ao agente porque tal conduta não constituirá condição sem a qual o resultado não teria ocorrido conditio sine qua non Assim por exemplo se A atira contra B que morre em razão dos ferimentos sofri dos o nexo causal é indiscutível pois suprimindose hipoteticamente os tiros con cluiremos que o resultado não teria ocorrido B estaria vivo No entanto se se provar v g que B já estava morto horas antes em razão de um ataque cardíaco é evidente que o liame causal não se configuraria e a hipótese seria a de crime impossível CP art 17 visto que não existiria nexo causal entre os disparos e a morte eliminada a suposta causa ainda assim o efeito subsistiria Enfim A não causou a morte de B Para bem compreender a teoria em questão devese considerar que o resultado não teria ocorrido como ocorreu isto é do modo e no tempo em que ocorreu Por isso é que o médico responderá por homicídio consumado se desligar os aparelhos e assim antecipar a morte do paciente ainda que se prove que este morreria inevitavelmente 21 Alcance Semelhante questionamento sobre a existência ou não de nexo causal tem impor tância apenas para os crimes materiais de ação e resultado visto que em se tratan do de crimes formais de consumação antecipada de mera conduta sem resultado e omissivos próprios que não dependem de resultado o resultado naturalístico é irrelevante pois a consumação dáse com o só cometimento da ação incriminada an tecipadamente A eventual produção do resultado será exaurimento de um crime já previamente consumado sempre que se tratar de um crime sem resultado ou de consu mação antecipada 22 Interrupção do processo causal 221 Causas absoluta e relativamente independentes O Código art 13 lº dispõe que a superveniência de causa relativamente inde pendente exclui a imputação quando por si só produziu o resultado os fatos anterio res entretanto imputamse a quem os praticou O nexo causal pode ser interrompido pela superveniência de causa absolutamente independente ou pela superveniência de causa relativamente independente hipóteses em que o resultado não será em princípio imputado ao agente haja vista que num e noutro caso estabelecese a partir da causa superveniente um novo curso causal des de que tenha produzido o resultado por si só Assim por exemplo exemplo de causa absolutamente independente se A fere B que morre a seguir não em virtude da ação de A mas em razão de um atropelamento por C que invade a sua casa em razão dessa 221 PAULO QJEIROZ segunda causa exclusivamente não se poderá imputar a A o resultado morte de B devendo A em consequência responder tão só por tentativa de homicídio em razão do quanto dispõe o caput do art 13 É que a causa superveniente se incumbiu sozinha do resultado e não tendo ligação alguma com a ação ou omissão esta passa a ser no tocante ao resultado uma não causa3 Além disso em tal hipótese o resultado teria ocorrido inevitavelmente apesar da atuação criminosa do agente O mesmo ocorreria se B exemplo de causa relativamente independente depois de sofrer um golpe de faca não letal viesse a morrer no caminho para o hospital em ra zão unicamente de uma colisão da ambulância com outro veículo E tal resultado não pode ser imputado ao agente pela simples razão de que não foi A quem causou a morte de B isto é seu comportamento não foi a causa determinante da morte Mas isso não quer dizer que a conduta de A seja impunível e sim que o resultado final morte não lhe é atribuível devendo responder por crime na forma tentada De todo modo o mais importante consiste sempre em apurar se a nova causa in terrompeu ou não o curso causal vale dizer se ela por si só exclusivamente produziu o resultado porque se realmente houve interrupção do nexo causal o resultado não poderá ser imputado ao agente visto que com o advento da causa superveniente são instaurados dois cursos causais distintos e autônomos Caso contrário se as causas anterior e posterior concorrem causam para o resultado este será imputado a quem o causou mesmo porque o Código não faz distinção entre causa e concausa equivalên cia dos antecedentes causais 222 Causas absoluta e relativamente independentes irrelevância da distin ção Como se vê o Código distingue causas absoluta e relativamente independentes Causas absolutamente independentes são aquelas que sob qualquer consideração si tuamse fora do processo causal em que se insere a ação do agente de modo que se pode dizer que mesmo que o agente se esforçasse não poderia intervir nos seus efei tos já as relativamente independentes são as que embora se insiram no processo cau sal posto em marcha pelo agente produzem o resultado sem contar com a interferên cia de sua ação no momento em que esse resultado se verifica4 Dito mais claramente causas absolutamente independentes são as que não mantêm entre si nenhuma relação de interdependência e relativamente independentes são as que dependem umas das outras de sorte que uma é inimaginável sem a outra Pois bem a doutrina tem afirmado com base na forma como se acha disciplinada a matéria que as causas absolutamente independentes estariam afastadas pela cabe ça do artigo enquanto as relativamente independentes são objeto do seu 1º quan do então importará saber se a ação produziu o resultado por si só Por isso dizse a 3 Hungria Comentários cit v 1 t 2 p 67 4 Juarez Tavares Teoria do injusto penal cit p 2 1 7 222 1 os 1 CAUSA LIDADE E I M PUTAÇÃO OBJETIVA superveniência de causa absolutamente independente sempre interrompe o nexo cau sal devendo o autor responder tão só pelos atos anteriores com base no caput do art 13 não se aplicando o seu lº o qual teria a ver exclusivamente com a superveniên cia de causa relativamente independente Mas a questão não é tão simples assim E em verdade é irrelevante saber se a cau sa superveniente é absoluta ou relativamente independente pois em ambos os casos pode não haver interrupção do curso causal cabendo portanto em tese a imputação do resultado ao agente Imaginese por exemplo exemplo de causas absolutamente in dependentes que embora a vítima tenha sido atingida por um raio fique provado que a morte aconteceu em razão do concurso de um anterior esfaqueamento e do próprio raio Em tal caso não se poderia imputar o resultado ao agente Parecenos que apesar de o segundo evento constituir uma causa absolutamente independente já que nenhuma relação tem com o anterior há sim nexo causal relati vamente à morte E por que isso Porque eliminandose o golpe de faca a morte não teria ocorrido isto é as lesões produzidas pela descarga elétrica não constituíram uma causa sem a qual o resultado não teria ocorrido não é conditio sine qua non pois nem a facada nem o raio isoladamente seriam suficientes para matar Apesar disso isto é configuração do nexo causal conforme a teoria adotada pelo Código não parece justo que no exemplo dado o autor respondesse por crime consu mado sob pena de violação aos princípios de pessoalidade da pena e proporcionalida de Além do mais se houver fundada dúvida a esse respeito é cabível a aplicação do princípio in dubio pro reo de modo a prevalecer a imputação por delito tentado De todo modo a questão decisiva em qualquer caso é saber se a nova causa pouco importa se absoluta ou relativamente independente produziu por si só o resul tado pois só assim é que se dará uma autêntica conditio sine qua non 223 Causa superveniente relativamente independente Conforme vimos causa relativamente independente é a que funcionando em face da conduta anterior conduz como se por si só tivesse produzido o resultado5 Assim no exemplo da vítima que morre ao ser conduzida para o hospital onde seria tratada de uma lesão anterior a segunda causa é só relativamente independente já que não fosse o golpe de faca ela não seria levada para o hospital sofrendo a co lisão que a mataria Esclarecido que se trata de causa relativamente independente hipótese em que se imputará em princípio o resultado ao seu autor restará saber finalmente se essa nova causa superveniente produziu por si só o resultado Se produziu o resultado exclusivamente o agente não responderá por ele porque não deu causa àquele resultado caso contrário o seu autor responderá pelo resultado final concausa 5 Damásio de Jesus Direito penal cit p 257 223 PAULO Qv E I ROZ Apesar de o Código se referir unicamente à causa superveniente a interrupção também poderá ocorrer pelas mesmas razões sempre que se tratar de causa preexis tente ou concomitante6 uma vez que como já assinalado é irrelevante saber o momen to da causa ou se é relativa ou absolutamente independente mas se produziu por si só o resultado Exemplo de causa preexistente se A atira contra B que morre não em razão dos disparos mas em virtude de haver ingerido veneno horas antes A responde rá apenas por homicídio tentado já que não deu causa à morte Daí por que não é exato dizer como faz Damásio de Jesus vêse que as causas preexistentes e concomitantes quando relativamente independentes não excluem o re sultado7 Com efeito ainda que se trate de causa preexistente ou concomitante se ela produziu exclusivamente o resultado ao contrário do que afirma Damásio de Jesus não se poderá imputála ao agente simplesmente porque a sua conduta não foi condi ção sem a qual não se produziria o resultado já que este teria ocorrido ainda que ele nada fizesse Por conseguinte é também irrelevante para efeito de estabelecer o nexo causal se a hipótese é de causa preexistente ou concomitante ou mesmo superveniente O importante não é o tempo da causa mas a sua eficiência no caso concreto Finalmente a questão fundamental reside em dar ao caso concreto uma solução justa e conforme os princípios penais a evitar que o agente responda por resultados estranhos à sua intervenção no fato 3 CRÍTICA À TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES CAUSAIS Apesar de adotada pelo Código e de ter sido considerada um meio infalível de descoberta do nexo causal Mezger há muito a teoria da equivalência tem sido justa mente criticada Inicialmente constitui uma tautologia afirmar que causa é toda ação sem a qual o resultado não teria ocorrido Porque se por exemplo A dispara contra B causandolhe a morte vindo a perícia a constatar que B morreu em virtude dos disparos de arma de fogo será desnecessário recorrer à teoria em questão visto que o nexo causal é dado pelo respectivo laudo E se eventualmente a perícia não puder precisar a causa da mor te o método de eliminação não poderá acrescentar absolutamente nada a esse respeito pois a fórmula da exclusão mental pressupõe aquilo que ela deveria descobrir8 6 De modo semelhante Paulo José da Costa Júnior Parecenos entretanto mais coerente a conclusão seguinte embora o 1 º do art 1 3 se refira somente às causas supervenientes acreditamos que tam bém as antecedentes ou intercorrentes que tenham sido por si sós suficientes em sentido relativo para produzir o evento prestamse à exclusão do vínculo causal penalmente relevante Conse qüentemente teria sido preferível que a nova lei penal houvesse contemplado no 1 º do art 1 3 a par da superveniência a preexistência ou a intercorrência de causa relativamente independente Ou então que se abstivesse de vez de regular a relação de causalidade Nexo causal São Paulo Malhei ros 1996 p 1 08109 7 Direito penal cit p 257 8 Roxin Funcionalismo cit p 278 224 05 CAUSA LIDADE E I M PUTAÇÃO OBJ ETIVA A teoria portanto ao dizer que constitui causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido já pressupõe resolvido o nexo causal Exatamente por isso é que Roxin afirma que ela não só é uma teoria inútil como também capaz de conduzir a erros graves9 No mesmo sentido Jakobs considera que a fórmula é supérflua porque o resultado da supressão mental só pode ser determina do se se conhece de antemão se a condição é causal constituindo um círculo vicioso porque o conceito que se pretende definir aparece oculto no material com o qual se define10 Enfim a teoria da conditio sine qua non não capta diretamente o nexo causal antes o pressupõe pois só quando se souber que entre a causa e o resultado existe relação causal será possível dizer que sem essa causa não se produziria o resultado11 Mas além de já pressupor logicamente a resposta a que se pretende chegar com a sua utilização a teoria da equivalência pode conduzir em muitos casos a uma solução equivocada Assim por exemplo nos casos de causalidade hipotética ou alternativa Na causalidade hipotética em que alguém realiza um fuzilamento ilícito numa guerra sendo que no caso de recusa outra pessoa o teria cometido de maneira exatamente idêntica a ação poderia ser excluída mentalmente sem que o resultado desaparecesse A causalidade de seu comportamento por óbvio não deixa de existir se se quisesse questionála então uma vez que tampouco o comportamento hipotético do segundo é causa chegarseia à absurda conclusão de que a morte da vítima não teve causa algu ma O mesmo vale para o exemplo da causalidade alternativa em que A e B de modo independente adicionam veneno ao café mas a quantidade tanto de A como de B já for por si só suficiente para causar a morte exatamente da mesma maneira então se poderia eliminar a ação de qualquer dos dois sem que o resultado desaparecesse Não existiria também aqui qualquer causalidade para a morte ocorrida de modo que A e B só poderiam ser punidos pelo homicídio tentado quando o correto seria se as duas doses tiveram eficácia real considerar que A e B tenham causado a morte devendo ambos responder por crime consumado12 Por fim em muitas situações de concurso de agentes notadamente na participa ção de menor importância CP art 29 lº poderseia objetar que não existe nexo causal pois suprimida essa participação o resultado teria ocorrido como ocorreu a ensejar a absolvição pura e simples do partícipe Apesar disso vários autores ainda a prestigiam como Luzón Pena para quem a fórmula hipotética da conditio sine qua non continua sendo um instrumento auxiliar muito útil para determinar se em concreto há ou não relação causal nos casos duvi dosos13 9 Roxin Funcionalismo cit p 278 10 Derecho penal cit p 227 1 1 Jescheck Tratado cit p 253254 12 Roxin Funcionalismo cit p 278279 1 3 Curso cit p 372 225 PAULO ÜlJ E I ROZ 4 RELAÇÃO CAUSAL NOS CRIMES OMISSIVOS Como regra geral o Código penal criminaliza e penaliza apenas ações de sorte que o crime consiste em fazer algo que a lei proíbe matar roubar etc mas excepcio nalmente criminaliza e penaliza também omissões isto é o não fazer algo que a lei determina razão pela qual o delito consistirá em deixar de praticar a ação que a norma impõe visto que tanto quanto as ações as omissões podem ser socialmente reprová veis e lesivas de bem jurídico Os crimes omissivos podem ser omissivos próprios ou puros e omissivos impró prios ou comissivos por omissão nos primeiros a lei reprime a omissão em si mesma v g omissão de socorro nos segundos nos quais o agente se encontra na condição legal de garante conferindolhe uma especial relação de cuidado proteção ou vigilân cia punese o agente por não evitar um resultado evitável razão pela qual a omissão imprópria equivale à realização ativa de um crime de resultado14 Na omissão própria há pois uma simples omissão na omissão imprópria uma omissão qualificada pois só quem se encontre na condição legal de garante ou garantidor pode responder nes ses termos tratandose de um crime especial porque requer uma qualificação especial do autor Por isso Jescheck prefere a denominação omissão simples e omissão qua lificada a omissão própria e imprópria respectivamente15 Simplificando na omissão o omitente responde por simples omissão na omissão imprópria responde pelo resultado visto que a omissão equivale jurídicopenalmente à ação Nos crimes omissivos impróprios o agentegarante responde portanto por não evitar um resultado evitável concretamente 41 Crimes omissivos próprios e omissivos impróprios distinção Tanto nos crimes omissivos próprios quanto nos omissivos impróprios o legis lador pune a abstenção do comportamento do agente que deixa de praticar uma ação que lhe é determinada por lei Portanto a omissão não significa não fazer nada mas não fazer algo determinado Blei já que todos os crimes omissivos têm em comum a omissão do dever jurídico constituindo infrações de normas preceptivas16 ou corno diz Welzel omissão não significa um mero não fazer mas não fazer uma ação possível subordinada ao poder final de uma pessoa concreta17 No entanto enquanto os omissivos próprios supõem a violação de um dever de agir simplesmente nos comissivos por omissão o agente tem além desse dever legal de agir um dever legal de evitar o resultado motivo pelo qual o omitente respon de como se o tivesse produzido em razão de o legislador considerar nos omissivos 14 José Ramón SerranoPiedecasas El delito de omisión en el Código Penal espafiol Alé Kumá n 2324 eneroagosto de 2005 1 5 Tratado cit p 5 5 1 16 Jescheck Tratado cit p 54 7 1 7 Derecho penal cit p 238 226 1 os 1 CAUSALIDADE E I MPUTAÇÃO OBJ ETIVA impróprios mais grave a inação dado o tipo especial de relação que se estabelece entre o agente e o bem jurídico tutelado Dito mais claramente nos crimes omissivos impróprios o legislador equipara a omissão à ação de sorte que por exemplo respon de por homicídio quem embora não tendo matado a vítima devia agir no sentido de evitarlhe a morte assim policiais bombeiros salvavidas mas não o fez podendo fazêlo Naturalmente que com a ação requerida nos crimes omissivos próprios pretende se também evitar um resultado valorado negativamente pelo ordenamento jurídico no exemplo seguinte morte da criança mas o legislador não obriga o omitente a impedir o resultado18 diferentemente do que ocorre nos crimes omissivos impróprios em que há a obrigação de evitálo Assim por exemplo se A ao passear pela praia percebe que uma criança se afoga e deixa de prestarlhe socorro embora pudesse fazêlo sem risco pessoal responderá por crime de omissão de socorro CP art 135 No entanto se A for o salvavidas que ali atue a ele será atribuído o resultado a morte da criança como se ele mesmo o ti vesse causado Ou seja se na primeira hipótese imputaselhe a só omissão pelo não cumprimento do dever na segunda se lhe atribui o próprio resultado da omissão a morte O Projeto Alcântara Machado 1969 dispunha inclusive que não impedir um evento que se tem o dever jurídico de evitálo equivale a causálo Assim enquanto os omissivos próprios são delitos de mera conduta os omissivos impróprios são crimes materiais ordinariamente À semelhança dos crimes comissivos nos crimes omissivos o agente responderá a título de dolo ou culpa se tiver se omitido dolosamente responderá por crime doloso devendo o dolo compreender todos os elementos do respectivo tipo e se fora do caso anterior tiver se omitido imprudentemente responderá por crime culposo desde que o crime em questão admita a forma culposa 42 Causalidade nos crimes omissivos impróprios requisitos A relação causal nos crimes omissivos impróprios é normativa por excelência uma vez que no exemplo citado a criança afogada não morreu por ação de A mas tragada pelo mar ação da natureza de modo que A responderia pela só omissão de socorro e não por homicídio se não fosse a previsão do 2º do art 13 que equipara a omissão à ação19 Dizemos que o nexo causal é essencialmente normativo porque uma não ação não pode produzir logicamente uma ação ex nihilo nihilfit 1 8 Jescheck Tratado cit p 5 5 1 19 Como diz Tavares a relevância da omissão como violação do dever de agir é que assinala sua própria existência pois ela pertence àquela categoria dos objetos dependentes de que falava Husserl de modo que não possui existência real por si mesma senão quando associada a outro elemento representado pelo dever As conhovérsias em torno dos crimes omissivos Rio de Janeiro Instituto LatinoAmeri cano de Cooperação Penal 1996 p 29 227 PAULO QJ E I ROZ Naturalmente que uma omissão pressupõe logicamente uma ação porque não existe uma omissão em si mas apenas uma omissão de uma ação determinada 20 Consequentemente a imputação do resultado por causa de uma omissão supõe sem pre que o agente se ache em condições concretas de realizar a ação que se lhe exige O primeiro requisito pois da imputação nos crimes omissivos requisito comum aos crimes omissivos próprios e impróprios é a possibilidade efetiva de realização da ação evitando o resultado lesivo de que se trata já que a lei não se destinando a heróis ou santos não pode pretender exigir o inexigível Daí dispor o Código que a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado art 13 2º A possibilidade de agir é a capacidade de o agente atuar no caso concreto e evitar o resultado que lhe é imputado Precisamente por isso não cabe por exemplo imputar a omissão a alguém que por não saber nadar se recusa a prestar socorro a um banhista que se afoga Mas não basta a possibilidade de ação para evitar o resultado é preciso mais que essa ação que é omitida e é exigida legalmente seja realmente capaz de evitar o resul tado pois do contrário isto é ficando demonstrada a inutilidade da possível atuação do sujeito não caberá a imputação do resultado porque em tal caso não existe relação causal entre a omissão que se requer e o resultado que se realiza princípio de propor cionalidadeadequação Finalmente a imputação do resultado nos crimes omissivos impróprios pres supõe que o omitente tenha o dever legal de agir dever que segundo os termos do Código incumbe às pessoas taxativamente indicadas no 2º do art 13 a saber a quem tenha por lei obrigação de cuidado proteção ou vigilância b quem de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado c quem com seu com portamento anterior criou o risco da ocorrência do resultado Tratandose de pessoa que aí não se inclua o agente não responderá pelo resultado sob pena de violação ao princípio de legalidade podendose no máximo imputarlhe crime omissivo próprio v g omissão de socorro Como se trata de um tipo penal em branco que remete parcialmente a sua com plementação a um dever extrapenal de proteção cuidado etc os pressupostos e limites de incidência da omissão imprópria serão dados em última análise pela norma a que o tipo remete expressa ou tacitamente Assim por exemplo o dever de proteção cuida do e vigilância dos pais limitarseá aos filhos menores ou incapazes que se achem sob sua guarda e enquanto essa situação persiste CC arts 1630 e seguintes O mesmo ocorrerá quanto aos demais garantidores previstos em lei A primeira hipótese a justificar a equiparação da omissão à ação devendo o agen te responder como se tivesse ele mesmo produzido o resultado diz respeito àqueles 20 Welzel Derecho penal cit p 238 228 1os1 CAUSALIDADE E I MPUTAÇÃO O BJ ETIVA que tenham o dever legal de proteger cuidar ou vigiar v g policiais bombeiros mé dicos pais tutores Por dever legal devese entender em princípio dever especial decorrente de lei em sentido formal Exemplo disso está no art 229 da Constituição ao dispor que os pais têm o dever de assistir e educar os filhos menores e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice carência ou enfermidade O mesmo ocorre com os agentes responsáveis pela segurança pública CF art 144 desde que no efetivo exercício de suas atribuições legais Também assim são os casos legais de assistência mútua entre os cônjuges decorrente do casamento ou similar A segunda hipótese de equiparação legal da omissão à ação ocorre quando o agen te assume por qualquer outro modo contratual ou não a responsabilidade de impedir o resultado isto é assume o dever de cuidado proteção ou vigilância v g guarda de segurança particular guia de turismo babá Naturalmente que o dever se limita aos termos do respectivo ato em que se funda a condição legal de garante De acordo com Juarez Tavares devese distinguir todavia a violação de dever de garantidor da violação de cláusulas contratuais Assim por exemplo se o médico se obriga a realizar determinado tratamento em um paciente mas resolve viajar e deixa seu encargo nas mãos de um outro médico que assume esse tratamento não pode res ponder penalmente pelas lesões que resultem de erros no diagnóstico de seu colega embora responda civilmente O mesmo deve ser dito do guia de excursão e outros tan tos que não comparece no dia combinado e não impede a morte do excursionista que resolve fazer sozinho a excursão21 Por último a lei refere a hipótese de o agente que com o seu comportamento ante rior criou o risco de ocorrência do resultado v g um exímio nadador que instiga al guém inexperiente a acompanhálo numa perigosa travessia Embora a lei não o diga é de concluir que a condição legal de garante pressupõe que o comportamento anterior seja ilícito pois não seria razoável que condutas legítimas pudessem gerar semelhante dever criando um ônus tão grave para o omitente Sempre e quando configurada a relevância jurídicopenal da omissão nos termos do art 13 2º do CP o agentegarante responderá a título de dolo ou culpa conforme tenha se omitido intencional ou imprudentemente também em respeito ao princípio da legalidade22 A estrutura aliás do dolo e da culpa no crime omissivo impróprio é 2 1 Teoria dos crimes omissivos Madrid 201 2 p 326 22 Por isso não me parece correto dizer como faz Cláudio Brandão que se um sujeito atropela um pedestre em local ermo e deixa de socorrêlo ao notar que a vítima é um seu desafeto abandonan doa a qual vem a morrer teria de responder nesse caso por homicídio doloso e não por omissão de socorro porque com o atropelamento causou um perigo para a vida da vítima Teoria cit p 36 Nesse caso em verdade o agente deverá responder unicamente pelo que fez isto é matar culposamente incorrendo ipso facto nas penas do crime de homicídio culposo qualificado pela não prestação de socorro CP art 1 2 1 3º e 4º É que o só fato de não prestar socorro à vítima 229 PAU LO QljEIROZ basicamente a mesma do delito comissivo23 admitindose a punição a título de culpa tão só quando houver previsão legal expressa 43 Dolo e culpa nos crimes omissivos Uma vez configurada a relevância jurídicopenal da omissão nos termos do art 13 2º do CP o agentegarante responderá a título de dolo ou culpa conforme tenha se omitido intencional ou imprudentemente A estrutura do dolo e da culpa na omissão é basicamente a mesma do delito comissivo24 admitindose a punição a título de culpa tão só quando houver previsão legal expressa Consequentemente haverá omissão dolosa imprópria sempre que o agente poden do atuar concretamente omite voluntária e conscientemente a ação que lhe é possível e exigível permitindo a realização do resultado típico consumado ou tentado O dolo compreende por conseguinte a consciência e vontade de não realização de uma ação que se sabe típica possível e exigível Por isso o dolo é composto pela cons ciência quanto à possibilidade de agir à necessidade da ação e à projeção de que caso não atue o resultado ocorrerá provavelmente25 No que toca à representação sobre os pressupostos da posição de garantidor es creve Juarez Tavares há de fixarse o seguinte anão é necessário que o omitente conheça a norma legal ou contratual que lhe imponha o dever especial de proteção bastando que conheça a relação fática que lhe dá substrato relação de parentesco pro fissional etc bcaso tenha se comprometido faticamente a exercer a a proteção deve ter conhecimento de que a assumiu cse produziu com sua ação anterior o risco de ocorrência do resultado deve igualmente saber que sua atuação era contrário ao dever e portanto arriscada26 Finalmente haverá omissão imprópria culposa quando fora do caso anterior o agente deixar de prestar a assistência que lhe é imposta por imprudência negligência ou imperícia A omissão culposa pressupõe assim a criação de um risco proibido e realização desse risco no resultado precisamente em razão da omissão de um dever legal de agir não pode converter uma ação culposa em dolosa sob pena de violação aos princípios da legalidade e proporcionalidade 23 Nesse sentido Sheilla Bierrenbach para quem o dolo exige consciência e vontade de preencher o tipo normativo sendo compreensivo portanto da situação típica do poder de agir e da posição de garante Crimes omissivos impróprios Belo Horizonte Dei Rey 2002 p 95 24 Nesse sentido Sheilla Bierrenbach para quem o dolo exige consciência e vontade de preencher o tipo normativo sendo compreensivo portanto da situação típica do poder de agir e da posição de garante Crimes omissivos impróprios Belo Horizonte Dei Rey 2002 p 95 25 Juarez Tavares Teoria dos crimes omissivos Madrid 2012 p 394 26 Idem p 397 230 1 os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA 44 Inconstitucionalidade dos crimes omissivos impróprios Distinguese assim distinção que remonta a Luden27 1840 entre crimes omis sivos próprios e impróprios Nos primeiros o legislador tipifica a simples omissão isto é a mera abstenção de fazer algo legalmente determinado a exemplo da omissão de socorro CP art 135 e da omissão de notificação de doença CP art 269 Nos segundos em razão de um dever legal especial de evitar o resultado imposto a certa e determinada pessoa chamada garante imputaselhe o próprio resultado como se ela mesma o tivesse causado É o que se dá com os pais em relação aos filhos os médicos em relação aos pacientes os salvavidas em relação aos banhistas etc Essa equipara ção legal da omissão à ação CP art 13 2º como assinalado pressupõe a posição de garante e pois dever de agir e de evitar o resultado b possibilidade concreta de agir c causação de um resultado imputável ao omitente A omissão imprópria consis te portanto na não evitação do resultado típico por parte de quem tem o dever legal de agir em defesa do bem jurídico em perigo tentando ao menos impedir sua conversão em dano28 Nesse dispositivo o legislador consagra uma cláusula geral aplicável em tese a todos os crimes que põe omissão e ação em pé de igualdade de modo que por exem plo matar por omissão v g deixando de alimentar o filho é tão grave e reprovável jurídicopenalmente quanto matar por ação v g empurrando o filho da escada Por meio do 2º do art 13 o Código eleva enfim à categoria de criminosos comporta mentos que em princípio ou seriam atípicos ou só configuradores de omissão própria Afinal os omitentes respondem pelo resultado não porque tenham causado a conduta típica mas por não terem agido em defesa do bem jurídico a fim de tentar impedir o evento29 Mas semelhante equiparação é criticável em face de três princípios constitucio nais legalidade pessoalidade da pena e proporcionalidade30 27 Cf Jescheck Tratado cit p 550 28 Sheila Bienenbach Crimes omissivos cit p 60 29 Sheila BieITenbach Crimes omissivos cit p 74 30 No sentido do texto Zaffaroni para quem semelhante equiparação é inconstitucional por violação ao princípio da legalidade implicando analogia in malam partem ao emprestar ao ilícito civil caráter penal pois é inadmissível que se pretenda preservar a legalidade penal com o dever que emerge de outras leis como pode ser a lei civil o descumprimento de um contrato não é matéria do Código Penal senão que constitui um injusto civil e nada autoriza a convertelo em penal na ausência de um tipo escrito igualmente a violação de um dever imposto pelo direito de família tem suas sanções reguladas neste mesmo direito e na falta do tipo legal não é admissível a constrnção judicial de um tipo para impor uma pena quando o legal seja um divórcio por injúria com o seu conseqüente efeito patrimonial En tomo de la cuestión penal p 2 1 5228 Posição conciliadora defende Juarez Cirino dos Santos para quem se os tipos de resultado são lidos como descrição simultànea de ações e de omissões de ações produtoras de resultado p ex matar alguém por ação proibida ou por omissão de ação mandada na posição de garantidor do bem jurídico então a produção do resultado por ação e não evitação do resultado por omissão de ação constituem equivalentes lesões de bens jurídicos igualmente compatíveis com o princípio da legalidade a posição de garantidor seria característica 231 PAULO QjEIROZ Com efeito se o princípio da legalidade implica a máxima taxatividade e preci são das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens31 é evidente que o Código ao se utilizar de uma cláusula geral e grandemente vaga que equipara ação a omissão não atende a tal exigência políticocriminal e se revela clara mente antigarantista Porque afinal o legislador limitase a estabelecer os pressupos tos gerais do dever de agir e de impedir o resultado mas nada esclarece quanto ao seu conteúdo remetendo a complementação do seu significado lei penal em branco a uma outra lei a um contrato ou uma situação concreta de criação de risco em geral ainda mais imprecisos e indeterminados de sorte que fixar os limites da posição de garante é especialmente problemático32 Por isso diz Jakobs que a determinação do garante é uma das tarefas mais difíceis da Parte Geral 33 Em consequência os crimes omissivos impróprios à semelhança dos crimes cul posos para bem atenderem ao princípio da legalidade deveriam ter previsão expressa em cada tipo penal com clara e precisa delimitação de seus limites Disso aliás não diverge Juarez Tavares quando afirma que a solução mais coerente com a exigência do princípio da legalidade embora não exaustiva nem perfeita seria a previsão na Parte Especial do Código Penal dos delitos que comportassem a punição por omissão 34 Em não existindo semelhante previsão entende porém segundo o critério da identidade adotado a seu ver pelo nosso Código diferentemente do alemão que adotou o critério da equivalência que a omissão imprópria deve ficar restrita aos crimes contra a vida a integridade corporal e a liberdade cujos objetos jurídicos pela sua natureza e pelas consequências necessitam de uma imediata e oportuna intervenção protetiva que não pode ser postergada para não se tornar inócua 35 Também e aqui reside uma objeção mais radical a omissão imprópria implica ordinariamente violação ao princípio da pessoalidade da pena sobretudo naquelas hipóteses em que se pretende imputar ao omitente uma ação de outrem ou um evento puramente natural a justificar ou a sua abolição pura e simples ou a sua completa reformulação Assim por exemplo quando se pretende que o salvavidas responda pela morte do banhista que se afoga que o médico responda pela morte do paciente típica geral de autoria dos tipos de resultado art 1 3 2º do CP que não depende de repetição nas definições legais respectivas A moderna teoria 4 ed rev e atual Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 p 1 29 3 1 Sílva Sánchez Aproximación cit p 256 32 Mesmo um exemplo tido como inquestionável a mãe que deixa de amamentar o filho causandolhe a morte é questionado por Tavares para quem esta conclusão sempre foi tomada arbitrariamente pela doutrina com base no costume fazendo deste uma fonte de incriminação o que violava o princí pio da legalidade e toda a tradição liberal pois o art 384 do Código Civil ao tratar do pátrio poder não contemplava expressamente essa responsabilidade apenas obrigando à criação e à educação dos filhos sendo que tal previsão somente veio a ocorrer de fato com a Constituição Federal de 1 988 art 229 As controvérsias cit p 6667 33 Derecho penal cit p 968 34 As controvérsias cit p 70 35 Juarez Tavares As controvérsias cit p 8 182 232 1 os 1 CAUSALIDADE E I MPUTAÇÃO OBJ ETIVA que lhe implorava socorro que a mãe responda por maustratos do companheiro con tra filho menor etc estáse em realidade em todos esses casos a imputar ao garante salvavidas médico mãe fato de responsabilidade de terceiro ou puramente causal sendo pois ilegítima a imputação do resultado a pessoa que não o próprio autor da ação Assim a pena com a qual se pretende castigar o omitente é desproporcional e tam bém ofensiva ao princípio da igualdade visto equipararse a simples omissão à ação comportamentos cuja significação social e jurídica é muito distinta em franca contra dição aliás com o caráter subsidiário do direito penal pois mais razoável seria que o garante respondesse por omissão própria qualificada sem prejuízo das consequências extrapenais de seu ato demissão do salvavidas suspensão ou cassação da licença para o exercício da medicina perda do poder familiar por parte da mãe etc conforme o caso Finalmente a eventual irresponsabilidade do legislador que não cuidou de crimi nalizar determinadas condutas de modo específico não pode justificar a irresponsabi lidade dos juízes os quais ao apelarem àquela cláusula geral de equiparação acabam por assumir por meio da analogia in malam partem o papel do legislador conferindo ao ilícito civil caráter penal 5 A MODERNA TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA 51 Significado e posição sistemática 1 A moderna teoria da imputação objetiva36 que procede de Larenz e Honig 1927 1930 tem atualmente em Roxin e Jakobs seus mais destacados representantes teoria cuja pretensão não é propriamente em que pese o nome imputar resultado mas em especial delimitar o alcance do tipo objetivo37 de sorte que a rigor é mais uma teoria da não imputação do que uma teoria da imputação Tratase além disso não só dti um corretivo à relação causal mas de uma exigência geral da realização típica 38 a partir da adoção de critérios essencialmente normativos de modo que sua verificação constitui uma questão de tipicidade e não de ilicitude39 prévia e prejudicial à imputa ção do tipo subjetivo dolo e culpa 36 Entende porém Sancinetti que a teoria da imputação não é propriamente uma teoria no sentido de um corpo hannônico de proposições teóricas mas sim o nome sob o qual aglutinouse um conjunto cile princípios delimitadores e corretivos da tipicidade apud Fábio Roberto D Avila Crime culposo e a teoria da imputação objetiva São Paulo Revista dos Tribunais 200 1 p 1 36 37 Tavares Teoria do injusto penal cit p 222 38 Mir Puig Derecho penal cit p 23 1 39 Em sentido contrário Bustos Ramírez para quem a imputação objetiva constitui uma questão afeta à ilicitude a imputação do resultado não pode ser um aspecto de tipicidade nem conceituai nem sis tematicamente mas só de antijuridicidade enquanto aqui entram em jogo todas as outras valorações que recorrem ao bem jurídico desde o ordenamento em seu conjunto Manual de derecho penal Barcelona Ed Ariel 1 996 p 200 233 PAULO QlJEIROZ Para essa teoria o resultado de uma ação humana só pode ser objetivamente impu tado a seu autor quando sua atuação tenha criado em relação ao bem jurídico protegi do uma situação de risco juridicamente proibido e que tal risco tenha se materializado num resultado típico40 ou seja a imputação do tipo pressupõe que o resultado tenha sido causado pelo risco não permitido criado pelo autor41 Significa dizer enfim que estando o risco produzido dentro do que normalmente é admitido e tolerado social mente não caberá a imputação objetiva do tipo ainda quando se trate de uma ação dolosa e que cause lesão ao bem jurídico em questão Em suma a imputação do tipo objetivo pressupõe um perigo criado pelo autor e não coberto por um risco permitido dentro do alcance do tipo42 É dizer que determina do resultado lesivo só pode ser juridicamente teleológicovalorativamente atribuído a uma ação como obra sua e não como obra do azar43 52 Conceito de risco permitido A teoria da imputação objetiva trabalha assim com um conceitochave o conceito de risco permitido Se permitido o risco socialmente tolerado não caberá a imputa ção se não permitido como regra terá lugar a imputação objetiva do tipo A expressão risco permitido no entanto é utilizada em múltiplos contextos e sobre sua significação e posição sistemática reina como reconhece o próprio Roxin a mais absoluta falta de clareza44 Para Roxin risco permitido deve ser entendido como uma conduta que cria um risco juridicamente relevante mas que de modo geral in dependentemente do caso concreto está permitida e por isso à diferença das causas de justificação exclui a imputação do tipo objetivo45 Assim por exemplo se A apesar de conduzir veículo automotor observando as regras de trânsito vem a atropelar B não haverá malgrado a relação causal a imputação objetiva do tipo de homicídio culposo uma vez que A atuou dentro do risco permitido inerente ao tráfego viário46 O mesmo deve ser dito dos riscos ordinários inerentes riscos permitidos ao tráfego aéreo ferro viário marítimo ao funcionamento das instalações industriais à prática de esportes às intervenções cirúrgicas etc Convém notar que apesar de a ideia de risco permitido ter especialmente a ver com a noção de crimes culposos e materiais a teoria da imputação objetiva também é aplicável aos crimes dolosos e de consumação antecipada formais e de mera con duta 40 Jescheck Tratado cit p 258 4 1 Roxin Derecho penal cit p 373 42 Roxin Derecho penal cit p 364 43 Luzón Pefia Curso cit p 377 44 Roxin Derecho penal cit p 3 7 1 45 Roxin Derecho penal cit p 3 7 1 46 Cf Roxin Derecho penal cit p 371 234 Considerese o seguinte exemplo dois ciclistas trafegam com bicicletas sem iluminação durante a noite por uma rodovia um seguindo o outro O ciclista da frente chocase com um terceiro ciclista que transitava no sentido contrário e não o viu em face da falta de iluminação Certamente se o ciclista que vinha atrás estivesse iluminando o seu caminho o terceiro ciclista teria evitado a colisão Em tal hipótese Roxin afirma que a impossibilidade de imputação se dá em virtude da inexistência da obrigação de iluminar bicicletas alheias e que a norma que impõe o dever de trafegar com faróis acesos tem a finalidade de evitar sinistros com a pessoa do próprio condutor e não de terceiros A não imputação do tipo de lesões ou homicídio decorreria enfim do fato de não se achar o resultado coberto pelo fim de proteção da norma PAULO QjEJ ROZ Já no que diz com a imputação nos crimes dolosos como por exemplo se A que rendo matar ou lesionar B convenceo a praticar esportes violentos ou similar conse guindo seu propósito lesivo tampouco é necessário recorrer a critérios de imputação objetiva É que segundo Gimbernat Ordeig em tais casos a se imputar o resultado lesivo ao autor violarseia a máxima cogitationis poenam nemo patitur proibitiva da punição de simples intenções Com efeito o legislador não pode proibir meros pen samentos nem intenções se estes não se exteriorizam num comportamento com míni ma aparência delitiva porque se tal resultasse proibido tipificado então não se estariam castigando fatos que são absolutamente corretos senão unicamente pen samentos que não se traduziram numa manifestação exterior que ofereça aparência alguma de desvalor O tráfego aéreo a exploração de minas de carvão ou as corridas de Fórmula 1 quando realizadas observando a diligência devida são atividades ex pressamente aprovadas porque nelas não existe um mínimo desvalor objetivo pelo ordenamento jurídico e se o fato realizado constitui uma conduta correta por mais que se realize com más intenções então para um Direito penal regido pelo princípio do fato não existe tampouco uma manifestação externa à qual se possa vincular uma proibição tipificação penal49 O mesmo deve ser dito dos exemplos de que se socorre Damásio de Jesus do fugu assassino peixe que contém veneno mortal e do carrasco frustrado no pri meiro caso a esposa desejando que o marido morra incentivao a consumir o fugu prato que aprecia na esperança de que um descuido do cozinheiro não eliminar o veneno do fugu ao preparálo proporcione a morte do indesejado companheiro no segundo condenado à guilhotina o autor de estupro frações de segundo antes de o carrasco puxar a alavanca o pai da vítima que assistia à execução utilizandose de um revólver dispara um tiro contra a cabeça do condenado matandoo e frus trando a execução Com efeito na primeira hipótese do fugu contrariamente ao que afirma Damásio de Jesus para quem há uma ação dolosa e nexo de causalidade em verdade não existe uma ação nem sequer logo não há tipicidade no sentido jurídicopenal pois a atuação do agente é objetivamente correta e como tal des provida de desvalor social Há isso sim um simples desejo de que tal ato consumir determinado prato ou se fosse o caso praticar esportes violentos ou viajar de avião cause a morte da vítima não sendo a atuação da mulher que matou o marido mas o consumo espontâneo e normal do fugu Por consequência tem toda pertinência no particular a máxima invocada por Gimbernat Ordeig atribuída a Ulpianus cogita tionis poenam nemo patitur Não é preciso maior esforço para chegar a tal conclusão muito menos apelar à teoria da imputação objetiva Já quanto ao segundo caso do carrasco frustrado diferentemente do que preten de Damásio de Jesus existe sim nexo causal entre a ação do autor do disparo pouco importando de quem parta e a morte do condenado sob execução pois embora o re sultado viesse a ocorrer inevitavelmente tal não ocorreria na forma e no tempo em que 49 Gimbemat Estudios cit p 2 1 52 16 236 1 os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJ ETIVA ocorreu tendo uma causa modal e temporalmente diversa Aliás é o próprio Damá sio de Jesus quem afirma ou afirmava textualmente que o procedimento hipotético de eliminação precisa ser bemcompreendido O importante é fixar que excluindose determinado acontecimento o resultado não teria ocorrido como ocorreu a conduta é causa quando suprimida mentalmente o evento in concreto não teria ocorrido no momento em que ocorreu Suponhase que o agente encontre a vítima mortalmente es faqµeada em local absolutamente solitário e lhe desfira outros golpes de punhal pro duzindose a morte Provase que os últimos ferimentos concorreram para o êxito letal Suprimindose mentalmente os golpes desferidos pelo agente ainda assim a morte teria acontecido em virtude dos acontecimentos anteriores Assim à primeira vista parece que a conduta do sujeito não deve ser considerada causa do resultado Todavia sem ela o evento não teria ocorrido como ocorreu5º Se assim é não é exata a afirmação de Damásio de Jesus de que a conduta do pai não poderia ser considerada causa da morte uma vez que sem ela o evento teria acontecido da mesma maneira51 pois o evento teria acontecido sim mas de maneira diversa isto é na forma e em tempo distintos Por isso é que Gimbernat Ordeig conclui que a teoria da imputação objetiva é uma teoria que não se sabe exatamente o que é nem qual é o seu fundamento52 54 Conclusão Em realidade a teoria da imputação objetiva constitui essencialmente uma pro posta de nova linguagem jurídicopenal para solução de velhos problemas uma vez que do ponto de vista da práxis as coisas continuam tal e qual pois por meio dela chegase na quase totalidade dos casos à mesma decisão judicial a que se chegava antes Portanto tem razão Luís Greco quando reconhece que na verdade e isto a doutrina alemã majoritária ainda custa em reconhecer a imputação objetiva e seus conceitos básicos nada mais são do que a teoria do crime culposo só que com diverso nome e alcance53 Porque de fato aquilo que anteriormente se chamava violação do cuidado objetivo no âmbito da imputação objetiva recebe o nome de criação de um risco desaprovado o nexo de antijuridicidade passa a chamarse realização do risco mas substancialmente tratase da mesma problemática com idênticos fundamentos e idêntica solução54 Apesar disso força é convir com Wolfgang Frisch que as objeções feitas contra a teoria são em boa parte de cunho terminológico como terminológica é a sua própria 50 Direito penal cit p 248249 5 1 Imputação objetiva o fugu assassino e o carrasco frustrado Boletim do IBCCrim São Paulo p 1 3 jan 2000 52 Estudios cit p 2 1 3 53 Introdução à obra Funcionalismo cit p 44 54 Greco Funcionalismo cit p 44 237 PAULO QlEIROZ contribuição e mais os fundamentos da teoria em questão ao menos no que se refere ao crime culposo estão amplamente admitidos 55 Mas o mais importante é que a moderna teoria da imputação objetiva apesar de suas imperfeições pretende responder políticocriminalmente a uma pretensão ga rantista e pois conforme a Constituição em especial conforme os princípios da lega lidade proporcionalidade e pessoalidade da pena uma vez que como assinala Juarez Tavares ela não é uma teoria para atribuir senão para restringir a incidência da proibi ção sobre determinado sujeito56 de sorte que à medida que puder cumprir semelhante função sua adoção é válida e louvável Por último o instrumental teórico hoje existente especialmente no que toca aos crimes culposos não parece melhor nem mais preciso do que o que propõe a teoria em causa 55 La imputación objetiva estado de la questión in Sobre el estado de la teoría do delito Cuademos Civitas Madrid 2000 56 Teoria do injusto penal cit p 222 238 Sumário 1 Introdução 2 Dolo conceito e elementos 3 Espécies 4 Dolo eventual e culpa consciente 41 Dolo eventual e culpa consciente teorias 5 Dolo e consciência da ilicitude dolo normativo versus dolo natural 51 Conceito que adotamos dolo e dolus malus 6 Atualidade do dolo 7 Elementos subjetivos do tipo 8 Crime qualificado pelo resultado preterdoloso ou preterintencionalidade 81 Inconstitucionalidade dos crimes qualificados pelo resultado 9 Ausência de dolo erro de tipo 91 Espécies de erro de tipo erro inevitável e evitável 10 Ausência do conhecimento da ilicitude do fato erro de proibição 101 Conceito 102 Espécies de erro inevitável e evitável 103 Posição sistemática 104 Desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude do fato distinção 105 Objeto da consciência da ilicitude 106 Divisibilidade do erro 11 Erro sobre causas de justificação descriminantes putativas 111 Conceito 112 Espécies erro inevitável e evitável 113 Descriminantes putativas por erro de proibição 114 Posição sistemática 12 Erro de tipo erro de proibição e erro sobre causas de justificação uma distinção a ser superada 13 Erro provocado por terceiro 14 Erro sobre a pessoa error in persona e aberratio ictus 141 Erro sobre a pessoa e processo penal 142 Crítica da teoria da equivalência 15 Resultado diverso do pretendido aberratio delicti PAULO QJEIROZ E só as ações humanas exteriorizadas e lesivas de bem jurídico princípio da le sividade podem ser objeto de repressão penal razão pela qual não são puníveis ações puramente imorais nem a simples cogitação para delinquir cogitationis poenam nemo patitur conforme um direito penal do fato laico e democrático portanto Pois bem apesar de adotarem conceitos distintos de ação causalistas e finalistas e também assim a doutrina atual funcional ou mista estão de acordo quanto às situações consideradas de ausência de conduta a saber coação física irresistível esta dos de inconsciência hipnotismo sonambulismo embriaguez letárgica caso fortuito e força maior movimentos reflexos etc É que não obstante as divergências causalis mo finalismo e funcionalismo concordam em exigir para a existência de uma ação humana uma vontade independentemente do seu conteúdo2 Exatamente por isso dolo e culpa são dois conceitos fundamentais do direito pe nal Primeiro porque as infrações penais só são puníveis a esse título segundo porque todos os crimes são puníveis na forma dolosa e só alguns poucos na forma culposa de modo que o dolo é a regra e a culpa é a exceção terceiro porque a pena varia radi calmente segundo se trate de crime doloso ou culposo quarto porque os critérios de apuração da responsabilidade penal variam muito no particular razão pela qual não seria exagero afirmar que a teoria do crime culposo constitui um sistema à parte quin to porque a maior parte dos delitos é incompatível com a ideia de simples imprudência v g crimes patrimoniais crimes contra liberdade sexual O dolo é ainda importante para diversos efeitos penais como a definição e de limitação do concurso de pessoas conflito aparente de normas concurso de crimes individualização da pena etc Tem igualmente relevância no direito processual penal para fins de fixação de competência decretação e revogação de prisões provisórias entre outros É bem verdade que em tese poderseia tratar e castigar dolo e culpa igualmente visto produzirem em geral os mesmos resultados lesivos v g o homicídio doloso ou culposo implica a morte de alguém Mas o fato é que a sociedade e o legislador consequentemente valora diferentemente as ações dolosas e culposas motivo pelo qual a distinção dogmática responde a uma exigência irrenunciável de política social Ou seja embora o resultado seja o mesmo o desvalor da ação é diverso Parece certo também que dolo e culpa não são a rigor estados mentais do sujeito mas uma imputação a esse título a título de dolo ou culpa a partir da valoração dos elementos de prova aí incluída a própria versão do imputado Dizer que o dolo não é um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título significa mais concretamente o seguinte a que compete a um terceiro nota damente o juiz e não ao imputado decidir se este agiu ou não dolosamente razão pela qual a imputação a esse título não fica na dependência da interpretação que o 2 Mir Puig Derecho penal cit p 1 83 240 1 INTRODUÇÃO Se a finalidade declarada do direito penal é a prevenção geral e especial de comportamentos socialmente lesivos conforme a teoria hoje dominante sua atuação há de pressupor lógica e necessariamente ações e omissões voluntárias e não involuntárias ou naturais simplesmente é dizer a intervenção jurídicopenal começa e termina com o início e fim da vontade humana pois fora daí teria lugar a responsabilização penal objetiva sem culpa isto é responsabilização por fatos estranhos à vontade humana puramente causais ainda que proviessem eventualmente de pessoa humana Stratenwerth tem razão portanto quando assinala que as proibições e mandamentos jurídicos não podem ir além da capacidade do homem de intervir com sua ação no curso dos acontecimentos visto que o imprevisível ou inevitável não pode ser proibido nem exigido de sorte que para o direito penal importam exclusivamente aqueles momentos estruturais do comportamento humano que aparecem como objeto possível de normatização jurídica isto é como um fato que pode ser dominado pelo homem PAULO QlJElROZ No entanto para fins de responsabilidade civil CC art 186 o conceito civil e penal de dolo é em princípio exatamente o mesmo6 apesar de os civilistas mais prag máticos dispensarem em geral e com razão as sutilezas dos penalistas 2 DOLO CONCEITO E ELEMENTOS Há dolo sempre que o agente realiza os elementos do tipo com consciência e von tade ou ainda atua com dolo o agente que dirige sua ação quer direta quer indireta mente no sentido da realização do tipo consciente e voluntariamente Não existe dolo em si mas dolo de realizar um tipo legal determinado dolo de portar arma de lesionar de matar etc Age pois com dolo de porte ilegal de arma quem a tem sem autorização legal de lesões quem fere a vítima com esse fim de ho micídio quem atira contra a vítima com intenção de matála A finalidade dirigida à realização de um tipo legal específico é essencial à afirmação do dolo portanto7 A consciência necessária à configuração do dolo é o conhecimento da lesividade ou potencialidade lesiva de uma ação concreta como por exemplo fazer disparos de arma de fogo e assim produzir a morte de alguém relativamente ao homicídio E fal tará esse conhecimento se o agente ignora que se trata de uma arma de fogo ou que ela não é capaz de disparar e causar dano a outrem v g supõe ser arma de brinquedo ou descarregada O dolo pressupõe por isso o conhecimento do caráter típico de uma ação ou ainda o conhecimento atual das circunstâncias do fato típico8 No homicídio o co nhecimento significa que o agente sabe que causará a morte de alguém com sua ação no furto que subtrai coisa alheia no estupro que constrange alguém à prática de ato libidinoso Assim não há dolo de homicídio se o agente tiver razões para supor que a arma é de brinquedo não há dolo de estupro se acredita fundadamente que a vítima apenas finge resistir ao ato nem dolo de furto se supõe própria a coisa alheia Mas o conhecimento embora necessário não é suficiente para caracterização do dolo9 Exigese mais vontade de realizar a ação que se sabe típica 6 No mesmo sentido Sérgio Cavalieri Filho convém ainda ressaltar que não vemos nenhum fim damento para se dizer como querem alguns que o dolo e a culpa civil são diferentes do dolo e da culpa penal A rigor são substancialmente iguais têm os mesmos elementos se diferença houver será apenas de grau Programa de Responsabilidade Civil São Paulo Atlas 201 0 p3 1 7 Por isso que não faz sentido falar de dolo genérico e dolo específico O conceito de dolo genérico é inútil e de dolo específico tautológico Também por essa razão não há porque restringir o conceito de dolo como ainda faz a doutrina à realização apenas do tipo objetivo 8 Welzel Derecho Penal Aleman cit p 78 9 Naturalmente que nem todos pensam assim Jakobs por exemplo tem que dolo é conhecimento da ação junto com suas conseqüências Tratado cit p 3 1 6 De modo similar Puppe A distinção entre dolo e culpa Tradução e notas de Luís Greco S Paulo Manole 2004 Sílva Sánchez que comparte no essencial da concepção de Frisch acerca do dolo entende que a voluntariedade não é elemento do dolo mas um elemento da ação comum portanto aos delitos dolosos e culposos O específico do dolo em face da culpa é pois que o sujeito que atua dolosamente conhece o significado típico da 242 I 06 1 TEORIA DO DOLO Haverá dolo então se o autor agindo com consciência da tipicidade dirigir sua ação no sentido de realizar os elementos do tipo logo existirá dolo de homicídio se sabendo que dispõe de uma arma de fogo e de seu potencial ofensivo guiar sua ação no sentido de consumar a morte da vítima dolo de furto se sabendo alheia a coisa a sub trair com a finalidade de se apropriar e dolo de estupro se percebendo a resistência da vítima a constranger com violência a fim de consumar o ato libidinoso A vontade de realizar os elementos do tipo que pressupõe o conhecimento é por conseguinte essencial à afirmação do dolo Assim não há dolo de homicídio mas imprudência se embora tendo ciência dos riscos que isso implica o agente dirigir sua ação no sentido de evitar o resultado típico por mais que sua conduta seja perigosa v g atira contra a parede para intimidar a vítima mas acaba por atingila acidentalmen te Nem há dolo de furto se o agente pretende devolver a coisa logo a seguir vontade de uso apenas Consciência e vontade são pois essenciais à configuração do dolo se faltar um desses elementos o caso será em princípio de simples culpa Assim o conceito Wel zelniano de dolo permanece no essencial atualíssimo dolo é o saber e querer a rea lização do tipoº Justamente por isso médicos mágicos e dublês quando praticam ações perigosas e arriscadas causando dano a terceiro atuam em geral impruden temente mas não dolosamente visto que apesar da consciência do perigo que isso implica dirigem suas ações no sentido da realização de um fim lícito e agem de modo a evitar resultados típicos Nos crimes omissivos haverá omissão dolosa sempre que o agente podendo atuar concretamente omite de forma voluntária e consciente a ação que lhe é possível e exigível permitindo a realização do resultado típico consumado ou tentado E existi rá omissão culposa quando fora do caso anterior a omissão resultar de imprudência negligência ou imperícia conduta que realiza voluntariamente e o sujeito imprudente desconhece em toda a sua dimensão esse significado de sorte que o decisivo são os aspectos cognoscitivos e não os volitivos Aproximación cit p 401402 No entanto como assinala Luzón Pena quando se refere à vontade no crime doloso não se quer aludir à vontade genérica da ação comum aos crimes dolosos e culposos mas precisa mente à vontade de realizar a conduta típica isto é o querer realizar todos os elementos do tipo de que se tem conhecimento Curso cit p 4 1 1 Entre nós Luís Greco é também de opinião que psico logicamente dolo é conhecimento e não conhecimento e vontade Se todo dolo é conhecimento e a vontade não tem relevância alguma não há mais qualquer razão para diferenciar dolo direto em suas duas formas de primeiro ou de segundo grau e dolo eventual Há apenas uma forma de dolo Dolo é conhecimento de que a oconência do resultado é algo provável Dolo sem vontade in Silva Dias et ali coords Liber Amicorum de José de Sousa e Brito Coimbra Almedina 2009 p 885905 No mesmo sentido José Carlos Neto citando Silva Sánchez afirma que dolo é conhecimento por parte do autor do significado típico de sua ação Não é necessário que perguntemos adicionalmente por um querer porque quando alguém realiza uma ação com consciência de seu significado típico podemos dizer que esta pessoa quer com sua ação expressar este significado típico La exteriori zación de lo interno tesis doctoral Barcelona 2012 p 423 1 0 Welzel Hans Derecho Penal Aleman cit p 77 243 PAULO QlEIROZ Voltaremos a esses assuntos 3 ESPÉCIES De acordo com o Código Penal brasileiro CP art 18 1 há dolo quando o agente quer o resultado ou assume o risco de produzilo No primeiro caso há dolo direto no segundo dolo eventual11 Dolo direto simplificando um pouco é pois a realização in tencional de um delito é a prática proposital de um crime E há dolo eventual quando fora do caso anterior o agente conta seriamente com a possibilidade de realização do tipo e apesar disso segue atuando para alcançar o fim perseguido resignandose com o eventual cometimento de um crime12 Já o Código Penal português art 14 mais completo dispõe que lage com dolo quem representando um fato que preenche um tipo de crime atuar com intenção de o realizar 2 age ainda com dolo quem representar a realização de um fato que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta 3quando a realização de um fato que preenche um tipo de crime for representada como consequência possí vel da conduta há dolo se o agente atuar conformandose com aquela realização No item 1 há dolo direto de primeiro grau no item 2 dolo direto de segundo grau e no item 3 dolo eventual O dolo direto de primeiro grau ou intenção ou propósito compreende o resultado típico que o agente persegue diretamente com a sua ação v g matar um desafeto e o dolo direto de segundo grau compreende todos os prováveis e inevitáveis resultados da ação criminosa v g a morte de nacionais decorrente da explosão de uma bomba co locada numa embaixada para atingir apenas autoridades diplomáticas estrangeiras13 1 1 Estão superadas outras classificações tais como dolo genérico dolo específico etc Nesse sentido Juarez Tavares para quem não há mesmo razão científica alguma na apreciação da terminologia de dolo de ímpeto dolo alternativo dolo determinado dolo indireto dolo específico ou genérico que pode trazer confusão à matéria e que se enquadra ou entre os elementos subjetivos do tipo ou nas duas espécies mencionadas Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo Revista de Direito Penal Rio de Janeiro Borsoi n 6 p 22 1972 12 Roxin Claus Derecho Penal cit p 437 De modo similar Jescheck Tratado cit p 269 dolo eventual significa que o autor considera como seriamente possível a realização do tipo legal e se conforma com isso E Muiioz Conde no dolo eventual o sujeito representa o resultado como de produção provável e embora não queira produzilo continua agindo e admitindo a sua eventual pro dução O sujeito não quer o resultado mas conta com ele admite sua produção assume o risco etc Com todas essas expressões pretendese descrever um complexo processo psicológico no qual se mesclam elementos intelectivos e volitivos conscientes ou inconscientes de difícil redução a um conceito unitário de dolo ou culpaTeoria Geral do Delito cit p 60 1 3 De acordo com Roxin cit p 4 1 5 o dolo direto de primeiro grau diz respeito ao resultado que o agen te persegue e o dolo direto de segundo grau compreende todas as consequências que ainda que não perseguidas o agente prevê sua produção com segurança De modo similar Mir Puig Derecho Penal cit p 244 para quem no dolo direto de primeiro grau o autor persegue a realização do delito e no dolo direto de segundo grau o autor não persegue a realização do tipo mas sabe e tem como seguro que sua atuação dará lugar ao delito E Francisco Muiioz Conde e Mercedez Arán no chamado dolo de primeiro grau o autor quer precisamente o resultado nos delitos de resultado ou a ação típica nos 244 lü6I TEORIA DO DOLO Dolo direto e dolo eventual têm em geral o mesmo tratamento jurídicopenal e sujeitam o infrator à mesma pena mas casos há em que o tipo penal exige dolo direto forçosamente Além disso algumas formas qualificadas ou majoradas de crime são em princí pio incompatíveis com o dolo eventual como por exemplo o homicídio qualificado por motivo torpe ou fútil por emboscada emprego de veneno etc que pressupõem dolo direto 4 DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE De acordo com o Código há dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado CP art 18 1 segunda parte Não há referência à culpa conscien te que é uma criação doutrinária Existe culpa consciente sempre que o autor prevê a realização do resultado típico e dirige sua ação no sentido de evitálo mas lhe dá causa por imprudência negligência ou imperícia Ou como diz o Código Penal português art 15 a há culpa consciente se o agente representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização A distinção entre dolo eventual e culpa consciente é conforme reconheceu Wel zel um dos problemas mais difíceis e discutidos do direito penal14 É importante notar inicialmente que dolo eventual e culpa consciente têm em co mum o fato de o autor praticar uma ação que sabe capaz de produzir resultados típicos embora não queridos diretamente razão pela qual a diferença deve ser feita a partir de critérios volitivos15 Mas a expressão legal assumir o risco de produzir o resultado não resolve o pro blema porque também na culpa consciente o agente em geral assume o risco de pro duzir um resultado típico Assim por exemplo o cirurgião que sabe que intervenções delitos de simples atividade o autor queria matar e mata queria causar dano e destrói a coisa etc Dentro do dolo direto são incluídos também os casos em que o autor não quer diretamente uma das consequências que vão ser produzidas mas admite como necessariamente unidas ao resultado princi pal que persegue Não basta que seja prevista a consequência acessória é preciso que prevista como necessária ou certa a sua produção esteja incluída na vontade do autor Derecho Penal cit p 307 14 Derecho Penal p 83 15 Como observa Mir Puig Derecho Penal cit p 245 dolo eventual e culpa consciente têm uma es trutura comum que toma muito difícil uma diferenciação visto que em ambos os casos o agente tem conhecimento da possibilidade da produção de um resultado típico e não o quer De modo similar Hungria afirmava que existe entre dolo eventual e culpa consciente um traço comum a previsão do resultado antijurídico mas enquanto no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado preferindo arriscarse a produzilo em vez de renunciar à ação na culpa consciente ao contrário o agente repele embora inconsideradamente a hipótese de superveniência do resultado e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá pois assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco é consentir previamente no resultado caso venha este a ocorrer realmente Comentários cit p 1 161 1 7 e 122 245 PAU LO QlJEI ROZ cirúrgicas implicam grandes riscos cirurgia de alto risco ao realizálas assume e não raro também o paciente e sua família o risco de causar a morte do paciente O mesmo ocorre com mágicos dublês militares em treinamento etc sempre que reali zam manobras e truques especialmente perigosos E nem por isso agem forçosamente com dolo Assumir o risco de produzir o resultado não é suficiente portanto Afinal assumir o risco de produzir um resultado típico não significa atuar no sentido de realizálo tampouco querer inevitavelmente esse resultado direta ou indiretamente No particular parecenos que o mais importante consiste no seguinte na culpa consciente o autor normalmente dirige sua ação no sentido da realização de um fim lícito e age de modo a evitar um resultado típico 16Já no dolo eventual o autor dirige sua ação no sentido da realização de um fim ilícito e geralmente não age de modo a evitar um resultado típico Exatamente por isso o cirurgião que mata o paciente responde em princípio por culpa consciente ou não responde penalmente se não houver culpa alguma e não dolo eventual porque dirige a sua ação desde sempre no sentido da realização de um fim lícito salvar a vida do paciente etc e age de modo a evitar um resultado típico morte O mesmo ocorre ordinariamente com mágicos dublês motoristas etc Haverá ainda culpa consciente culpa especialmente grave em regra quando o autor agir no sentido da realização de um fim lícito mas não atuar de modo a evitar o resultado típico Assim por exemplo o motorista embriagado que confiando em sua experiência e perícia dirige perigosamente O mesmo ocorre com a esteticista que aplica hidrogel na paciente e informada de seu malestar recomenda repouso apenas ao invés de levála ao hospital Contrariamente haverá dolo eventual e não simples imprudência sempre que o autor dirigir sua ação no sentido da realização de um fim ilícito e não agir de modo a evitar um resultado típico Assim responde por dolo eventual relativamente ao homi cídio o agente que depois de consumado o estupro dolo direto abandona a vítima viva em lugar deserto presa no portamalas do carro causandolhe a morte ainda que não quisesse o evento letal ou até o lamentasse O mesmo ocorre com o ladrão de ban co quanto ao homicídio que usa explosivos para explodir caixas eletrônicos mesmo sabendo que tal poderá eventualmente causar a morte de algum cliente funcionário ou passante 16 A posição aqui defendida coincide em parte com a de Armín Kaufmann para quem se a vontade de realização se dirige precisamente à evitação do resultado delitivo falta o dolo e o tipo proibitivo não se cumpre El dolo eventual en la estructura dei delito Anuario de derecho penal y ciencias penales Tomo 1 3 Fase 2 1 960 p 1 85206 De modo similar escrevia Finger citado por Armín Kaufmann cit p 1 95 se o autor considera como possível ou provável juízo problemático a produção de seu resultado então se considera doloso o resultado se o autor atua precisamente por amor a esse resulta do ou se realiza sua ação em atenção a outro resultado porém não faz nada para evitar esse resultado previsto ao mesmo tempo como possível dolo eventual 246 I 061 TEORIA DO DOLO Também no rumoroso caso do índio Galdino morto em Brasília em 1997 por cin co rapazes que de posse de lum litro de álcool atearamlhe fogo houve realmente dolo eventual apesar de os acusados alegarem que não pretendiam matálo mas ape nas fazer uma brincadeira ou assustálo O caso seria porém de culpa conscien te e não de dolo eventual se num eventual filme sobre esse crime o atordublê que representasse o índio fosse ferido ou morresse durante a produção dessa cena fatídica por imprudênciaimperícia de seus produtores Nos casos agora citados à exceção do filme que visava a uma finalidade lícita produzir arte há dolo eventual porque os autores dirigiram suas ações desde sempre no sentido da realização de um fim ilícito ferir ou matar e não agiram de modo a evi tar um resultado típico homicídio18 Se no obstante a ilicitude do fim o autor agir de modo a evitar o resultado típico a conduta permanecer dolosa consumada ou tentada Em havendo desistência volun taria ou arrependimento eficaz incidir o art 15 do CP O que aqui se propõe não afeta a distinção entre dolo eventual e preterdolo fusão de dolo e culpa Com efeito a diferença entre um e outro reside no seguinte no preter dolo o agente quer um dado evento doloso mas sua ação acaba por produzir resultado diverso mais grave e não querido direta ou eventualmente vg dá um empurrão na vítima que escorrega bate a cabeça contra uma pedra e vai a óbito Haveria aí dolo eventual se o autor admitisse a morte como possível ou provável e apesar disso reali zasse a ação Quanto à hipótese de racha o Supremo Tribunal Federal reconheceu recente mente a ocorrência de dolo eventual relativamente à morte que resultara da disputa havida entre os envolvidos fato constitutivo de crime autônomo inclusive Código de Trânsito art 30819 A decisão está correta porque o autor dirige sua ação no sentido da realização de um fim ilícito competir ilegalmente ainda que eventualmente agisse de modo a evitar um resultado típico morte etc O mesmo não ocorreria não seria dolo 17 Na madrugada de 20 de abril de 1997 cinco rapazes de classe médiaalta de Brasília de posse de 1 um litro de álcool atearam fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos 45 anos que dormia sob um cobertor numa parada de ônibus confundindoo com um mendigo Galdino donnia num ponto da Quadra 703 Sul após ter participado de uma manifestação por ocasião do Dia do Índio e morreu horas depois O crime causou protestos em todo o país inclusive dos próprios índios Em sua defesa os acusados disseram que o objetivo era dar um susto em Galdino e fazer uma brincadeira para que ele levantasse e corresse atrás deles e que chegaram a jogar fora na grama parte do álcool adquirido no posto de gasolina por não ser necessária toda a quantidade comprada para dar o alegado susto Em 2001 os quatro acusados maiores de idade foram condenados a 14 anos de reclusão por homicídio qualificado A juíza entendeu que o caso era de crime preterdoloso dolo de ferir e não matar com resultado culposo 18 Age ainda com dolo eventual quem aceita participar de roleta russa quanto à possível imputação de homicídio ou auxílio ao suicídio vez que o agente atua no sentido da realização de um fato típico e age no sentido não de evitálo mas de realizálo apostando na sorte ainda que o resultado não seja querido diretamente 19 HC nº 1 0 1698RJ relator Ministro Luiz Fux 1 810201 1 247 PAU LO QJ E I ROZ mas culpa se se tratasse de uma competição legal que atendesse às regras mínimas de segurança e prevenção de acidentes etc Ademais é justo tratar tais casos como dolosos Como se vê a diferença entre as diversas formas de imputação subjetiva não diz respeito tanto aos meios utilizados que são os mesmos arma veículo etc mas aos fins lícitos ou não e ao modo como o sujeito se comporta relativamente a esses fins No fundo portanto os critérios de distinção entre culpa consciente e dolo eventual são exatamente os mesmos que fundamentam a distinção entre dolo e não dolo culpa Com efeito se no dolo o autor dirige sua conduta no sentido da realização de um fim ilícito matar roubar etc na culpa ao contrário o agente guia sua ação no sentido da realização de um fim lícito dirigir veículo fazer uma cirurgia etc dando causa a um resultado típico por imprudência negligência ou imperícia E um maior grau de imprudência não converte uma ação culposa em dolosa embora justifique uma maior apenação e eventualmente um tratamento penal diferenciado Naturalmente que nada disso exclui a possibilidade de se recorrer a outros tantos critérios legais ou doutrinários necessários à diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente tais como a indiferença em relação ao resultado probabilidade de produção de um resultado típico consentir no resultado aprovar o resultado etc E nenhum critério é infalível o aqui propomos inclusive e todos têm caráter essen cialmente indiciário Afinal e conforme vimos conceitos são metáforas20 nascem da postulação de identidade de coisas não idênticas logo todo conceito é uma simplificação uma redu ção e mais pretendem valer para o futuro mas são pensados e construídos a partir de experiências passadas por isso que de algum modo implicam legislar sobre o desco nhecido 41 Dolo eventual e culpa consciente teorias O conceito de dolo e pois a distinção entre dolo eventual e culpa consciente de pende da teoria que se adote volitivas ou cognitivas As primeiras consideram que a vontade é essencial ao dolo e as segundas têm que o dolo é só conhecimento motivo pelo qual a vontade é prescindível A seguir farseá breve resumo das teorias cogniti vas da representação ou da possibilidade da probabilidade da evitabilidade e do risco Finalmente faremos referência às teorias volitivas do consentimento e da indiferença Para a teoria da representação Schrõder e Schimdhãuser que só admite a culpa inconsciente negando a existência da culpa consciente haverá dolo eventual sempre que o agente admitir conscientemente a possibilidade da ocorrência do resultado razão 20 Dolo é um conceito que remete a tipos que pouco ou nada têm em comum Assim o dolo que se exige para o homicídio não é o mesmo que se requer para a lesão seguida de morte nem é o mesmo do furto da calúnia etc razão pela qual sua apuração constitui também por isso essencialmente um problema de especialistas e não de quem sofre a imputação 248 I061 TEORIA DO DOLO pela qual a distinção entre dolo e culpa reside no conhecimento ou desconhecimento do autor quanto aos elementos do tipo objetivo de modo que se houver conhecimento haverá dolo se não haverá culpa 21 Já para a teoria da probabilidade que é uma variante da anterior haverá dolo eventual sempre que o autor tiver considerado como provável a lesão ao bem jurídico Adepto dessa corrente Jakobs considera que há dolo eventual quando no momento da ação o autor julgar que a realização do tipo não é improvável como consequência de sua ação mas não basta o simples pensar na possibilidade do resultado pois é ne cessário ainda um conhecimento que se apresente ao autor como capaz de produzir o resultado segundo a experiência não se tratando de mera especulação de sorte que para configuração do dolo eventual exigese um juízo reflexivo válido sobre o poder concreto de lesão de sua ação22 Assim por exemplo quem para ganhar uma aposta atira na direção de uma bola de cristal que uma pessoa sustenta na mão atua com dolo eventual de lesões não o descaracterizando o seu esforço para só acertar o alvo e não a pessoa23 De modo similar Puppe entende que um perigo será um perigo doloso que fun damenta o dolo quando ele representar em si um meio idôneo para a provocação do resultado sendo que os critérios com base nos quais se deve valorar se um perigo é ou não idôneo não são entregues à disposição do autor mas determinados normativamen te como critérios objetivos24 Assim de acordo com Puppe que trabalha com o critério do conhecimento sobre um perigo qualificado haverá dolo eventual quando o peri go produzido conscientemente pelo agente for de tal quantidade e qualidade que uma pessoa sensata ou cuidadosa só o aceitaria sob a condição de que o resultado deveria ocorrer25 De acordo com a teoria da evitabilidade Armín Kaufmann sempre que o agente representar como possível o resultado haverá dolo eventual exceto se agir concreta mente de modo a evitálo caso em que haverá culpa consciente Já segundo a teoria do risco formulada por Frisch para a configuração do dolus eventualis é suficiente o conhecimento do risco não permitido não sendo necessária a presença de elementos volitivos de nenhuma espécie motivo pelo qual haverá dolo eventual sempre que o autor tiver conhecimento desse risco que não é qualquer risco mas o risco tipificado como ação proibida26 Já para as teorias da vontade o conhecimento embora necessário não é suficiente para a caracterização do dolo visto que a vontade dirigida à realização do tipo é abso lutamente imprescindível Assim para a teoria do consentimento é necessário que o 2 1 Juarez Tavares Teoria do injusto penal p 335 22 Derecho penal p 327 23 Derecho penal p 327 24 A distinção entre dolo e culpa cit p 79 e s 25 Juarez Tavares cit p 336 26 Cf Roxin Derecho penal p 439440 249 PAULO Ql E I ROZ autor se ponha de acordo com o resultado lesivo que previu concretamente existindo dolo sempre que ele aceitar o evento aproválo ou consentilo Essa é a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro relativamente ao dolo eventual ao referir a expressão assumir o risco de produzir o resultado27 Finalmente para a teoria da indiferença Exner Engisch a distinção entre dolo e culpa reside no alto grau de indiferença do autor para com o bem jurídico Haverá então dolo eventual sempre que o agente representar como possível a produção do re sultado típico e for indiferente a isso Partidário de uma perspectiva volitiva Juarez Tavares assinala com razão que em virtude da equiparação legal dolo direto e dolo eventual devem ter uma base nor mativa comum que justifique sua inclusão no âmbito volitivo do sujeito28 motivo pelo qual é indispensável conhecer o conteúdo da vontade do agente concretamente mani festada 5 DOLO E CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE DOLO NORMATIVO VER SUS DOLO NATURAL Discutese se o dolo compreende a consciência da ilicitude isto é se atua dolo samente o agente que ao praticar uma determinada ação supõe que age conforme o direito Mais concretamente atua com dolo o inexperiente estudante que à semelhan ça de seus colegas de escola extrai cópia de livro ignorando que constitui violação de direito autoral CP art 184 Atualmente o entendimento amplamente majoritário adotado inclusive pelo Código Penal é no sentido de que o dolo não exige conhecimento da ilicitude do fato dolo natural razão pela qual no exemplo citado o agente atuaria dolosamente Para a corrente minoritária ao contrário se faltar a consciência da ilicitude faltará o dolo dolus malus ou normativo logo o estudante não agiria com dolo Com efeito para a doutrina causalista naturalista o dolo principal forma de expressão da culpabilidade significava consciência e vontade de realizar uma con duta antijurídica dolus malus ou normativo de modo que compreenderia necessaria mente a consciência da ilicitude Nesse sentido Binding entendia dolo como vontade conscientemente contrária ao direito 29 à semelhança de Carrara para quem dolo era a 27 Nesse sentido Hungria vêse que o legislador de 40 ao fixar a noção de dolo não se ateve à cha mada teoria da representação para a existência do dolo basta a representação subjetiva ou previsão do resultado como certo ou provàvel que aliás na sua pureza está inteiramente desacreditada e com acerto preferiu a teoria da vontade dolo é vontade dirigida ao resultado completada pela teo ria do consentimento é também dolo a vontade que embora não dirigida diretamente ao resultado previsto como provável consente no advento deste ou o que vem a ser o mesmo assume o risco de produzilo Comentários cit p 1 14 Notese que a redação original do CP não mudou com a reforma de 84 que dispunha art 1 5 1 que havia crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzilo Comentários cit 28 Teoria do injusto p 346 29 Binding Die Nonnen citado por Von Liszt Tratado cit p 285 No sentido de que o dolo com preendia a consciência da ilicih1de escrevia Hungria que o dolo não é só representação e vontade do 250 1061 TEORIA DO DOLO intenção mais ou menos perfeita de praticar um ato que se sabe contrário à lei30 Entre nós Magalhães Noronha afirmava que age dolosamente quem atua com conhecimen to ou ciência de agir no sentido do ilícito ou antijurídico ou numa palavra com conhe cimento da antijuridicidade do fato31 por isso que se a consciência da ilicitude falta não há dolo e sem dolo não há crime32 Com o advento da teoria final da ação passouse a adotar um conceito mais restri to de dolo porque embora o deslocasse da culpabilidade para a tipicidade o destacaria da consciência da ilicitude adotando em consequência um conceito natural neutro de dolo razão pela qual o conhecimento do caráter ilícito do comportamento perma nece pertencendo com o finalismo à culpabilidade Por isso o dolo dolo de tipo escreveu Welzel é só a vontade de ação orientada à realização do tipo de delito motivo pelo qual a consciência da antijuridicidade da ação não pertence ao dolo de tipo senão que é um momento da culpabilidade33 De acordo com esse entendimento age com dolo por exemplo o estrangeiro v g um holandês que traga de seu país de origem pequena quantidade de droga adqui rida licitamente em seu país para uso pessoal ainda quando convencido de boafé de que tal seja permitido entre nós à semelhança de seu país de origem Sim porque segundo o finalismo o dolo compreende apenas o conhecimento do tipo objetivo mas não o conhecimento da sua proibição que pertence à culpabilidade Esse é ainda hoje o conceito majoritário na doutrina seguido mesmo por autores que adotam a teoria dos elementos negativos do tipo34 Também é o conceito adotado pelo Código Penal brasi leiro CP arts 18 e 21 resultado antijurídico é também consciência de que se age contrariamente ao direito ou mais con cisamente consciência da injuridicidade Comentários cit p 143 Nem todos os causalistas assim pensavam porém Von Liszt por exemplo era de opinião de que o dolo não compreendia a consciên cia da ilegalidade pois a se exigir tal coisa paralisarseia a administração da justiça impondolhe o encargo de provar em cada caso oconente que o agente conhecia o preceito violado 30 Programa do Curso de Direito Criminal Parte Geral v LZN editora Campinas 2002 69 p 88 3 1 Direito penal São Paulo Saraiva 1 984 v 1 p 145 No mesmo sentido Hungria dolo não é só re presentação e vontade do resultado antijurídico é também consciência de que se age contrariamente ao direito ou mais concisamente consciência da injuridicidade Sem o entendimento de oposição ao dever jurídico ou de que se incide no juízo de reprovação que infotma o preceito incriminador não há falar de dolo Comentários cit p 1 43 Também Frederico Marques a concepção do dolo sem essa consciência da ilicitude além de estreita e limitada é contrária aos fundamentos éticos do direito penal Quem atua de boafé crendo não estar em oposição à ordem jurídica nada apresenta de repro vável em sua conduta diz Beling só se lhe pode censurar a inadvertência o que não conesponde ao comportamento doloso expressão máxima da culpabilidade E acrescenta o mestre germânico a intenção só tem sentido dirigindose ao tipo de ilicitude e não apenas ao extemamento típico pres cindindo do conteúdo ilícito Tratado cit p 258 32 Magalhães Noronha Direito Penal cit p 1 60 33 Welzel Derecho penal alemán cit p 92 34 Assim por exemplo Luzón Pena o conceito de dolo que aqui se mantém é conhecimento e von tade de realizar todos os elementos objetivos do tipo total de injusto tanto os de sua parte positiva ou tipo indiciário como os de sua parte negativa do tipo é dizer a ausência dos elementos de causas de 251 PAULO QJ E I ROZ Assim o dolo é só a realização do tipo objetivo que por isso não compreen deria o conhecimento da ilicitude entendida como valoração paralela na esfera do profano Mezger já que não se exige para tanto conhecimento de especialista Mir Puig Em síntese de acordo com essa perspectiva finalista no exemplo inicialmente ci tado o aluno agiu com dolo pois realizou os elementos do tipo objetivo mesmo tendo atuado de boafé Mas isso não quer dizer que fosse necessariamente punível porque caso fosse reconhecido o erro de proibição inevitável que é uma excludente de culpa bilidade seria absolvido E se se entendesse evitável o erro de proibição a hipótese seria de punição a título de dolo mas com pena reduzida É que o erro de proibição quando inevitável exclui a culpabilidade não o dolo quando evitável nada exclui apenas atenua a culpabilidade e a pena consequentemente CP art 21 51 Conceito que adotamos dolo é dolus malus Pois bem apesar de o conceito finalista ser absolutamente dominante na atualida de parecenos que dolo sem conhecimento da ilicitude do fato é uma pura ficção Com efeito não é possível um conhecimento profano do fato se não tomarmos em consideração o grau de socialização do sujeito ativo do crime sob pena de não existir conhecimento algum de sorte que o agente necessariamente haverá de ter uma ideia mais ou menos clara do significado social do que seja matar do que seja fur tar ou do que seja estuprar até porque se tal conhecimento é relativamente fácil quanto aos crimes clássicos homicídio furto estupro não o é porém para as novas formas não raro artificiais de criminalidade Por isso que atualmente Roxin afirma que o dolo supõe o conhecimento do sen tido social mas não o da proibição jurídica35 Também Sílva Sánchez considera que não basta para a configuração do dolo um conhecimento naturalístico senão que deve darse um conhecimento do conteúdo do sentido social do fato36 Mir Puig vai além para entender o dolo como dolus malus37 é dizer compreensivo da consciência atipicidade e causas de justificação uns e outros são os pressupostos da antijuridicidade ou proibição penal Em contrapartida o dolo não requer conhecimento ou consciência da própria antijuridicidade ou proibição nem geral nem penal da conduta Curso cit p 405 Apesar disso Luzón Peiia de fende cit p 4 1 0 um dolo objetivamente mau 35 Derecho penal cit p 463 36 Aproximación cit p 402 37 Derecho penal cit p 240 Escreve o citado autor textualmente a nosso juízo o dolo completo exige a consciência da antijuridicidade porém é conveniente distinguir três graus ou níveis de dolo o dolo típico que só exige o conhecimento e vontade do fato típico o dolo referido ao fato típico sem os pressupostos típicos de uma causa de justificação e o dolo completo que ademais supõe o conhecimento da antijuridicidade dolus malus Ao estudar o tipo doloso importa unicamente o pri meiro nível de dolo típico que corresponde ao conceito de dolo natural usado pelo finalismo Nesse contexto e por motivos de brevidade em princípio utilizaremos o termo dolo no sentido de dolo típico Quando nos ocuparmos das causas de justificação veremos que então o dolo exige o segundo 252 I 06I TEORIA DO DOLO da ilicitude E também Jakobs afirma atualmente que dolo de tipo e consciência do injusto são uma só e mesma coisa38 Com efeito sabemos por exemplo que nalgumas comunidades indígenas brasi leiras é comum o acasalamento antes de 14 anos Ora dizer para um índio de seme lhante tribo que ele comete um crime de estupro de vulnerável parecerlheá absoluta mente incompreensível pois tal prática faz parte de suas tradições e costumes Dizer enfim com o finalismo que ele age com dolo embora não atue culpavelmente é algo um tanto artificial visto constituir um juízo ahistórico e arbitrário Dito de outra forma nem sequer tem o índio o conhecimento profano pois só poderia ser diferente se tivesse um conhecimento de especialista em costumes e tradições brancas e mais tivesse compromisso com outra tradição cultural que não a sua Em relação à imputa ção do tipo do art 217A todos os implicados poderiam justificadamente questionar estupro de quem Já não bastasse isso o índio atuando dentro do que lhe é constitucionalmente as segurado CF art 231 atua legitimamente não praticando sequer um fato típico Ver capítulo sobre direito penal indígena Ademais se o dolo é saber e querer a realização do tipo objetivo como afirmar nessas circunstâncias que tais pessoas queiram e saibam que realizam o tipo de estu pro se carecem do conhecimento mínimo do significado negativodesvalor social da conduta Definitivamente afirmar a presença de dolo neste e noutros tantos casos só é possível se descontextualizarmos e abstrairmos o sujeito do seu contextoambiente so ciocultural ou seja a ideia de um dolo natural universal só é possível à margem da realiidade é pois uma pura ficção Por isso é que semelhante conceito valeria indistin tamente para a criança e o adulto nacionais e estrangeiros apesar das diferenças que os separam E não existe um conceito de dolo nenhum conceito aliás válido para além do tempo e do espaço Consideremos um outro exemplo suponha que uma pessoa habitante da zona rural dos confins do Brasil que tenha por hábito caçarpescar nos finais de semana como faz a maioria das pessoas que habita aquele lugar coisa que lhe parece absolu tamente normal e legítima venha a ser presa em flagrante delito contra o meio am biente e porte ilegal de arma Ora como sustentar que em tal caso o agente atua com nível de dolo correspondente Finalmente o dolo completo será necessário para a imputação pessoal da antijurídicidade penal 38 Dolus malus Barcelona octubre de 2009 Disponível no InDret wwwindretcom Jakobs escreve ainda que todos os tipos penais do StGB compreendem uma hipótese de injusto uma perturbação social e por isso em nenhum caso resulta decisiva unicamente uma modificação dos fatos naturais do mesmo modo que uma modificação de fatos sociais só resulta decisiva naquelas hipóteses em que a mesma em lugar contra a estrutura normativa da sociedade Um conhecimento dos elementos de conduta típicos sem o conhecimento de que estes formam parte da estrutura normativa da sociedade se encontra per se tão vazio de sentido como o conhecimento de que ocorre algo em algum momento com uma coisa qualquer tratase efetivamente de um conhecimento mas este não contribui à orien tação jurídica 253 PAULO QJEIROZ conhecimento e vontade de realizar o tipo de caçapesca proibida ou de porte ilegal de arma se ele não tem a menor ideia do que isso signifique ou seja não tem a menor noção do desvalor social e portanto jurídicopenal da ação Dizer enfim que age dolosamente ainda que eventualmente sem culpabilidade não faz sentido algum exceto do ponto de vista da coerência que se pretende emprestar ao sistema adotado sistema finalista clássico Notese por fim que em nenhum desses casos se está a exigir conhecimento de especialista vale dizer conhecimento da existência da norma penal proibitiva mas tão só consciência do caráter socialmente reprovável do comportamento isto é conheci mento profano Parece certo ainda que semelhante conceito dolo natural parte de uma rigorosa e ilusória separação entre fato e valoração do fato contrariamente à perspectiva aqui adotada qual seja a de que não existem fenômenos jurídicos nem jurídicopenais mas apenas uma interpretação jurídica e jurídicopenal desses fenômenos Também por isso o dolo não é a rigor um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título Cobo dei Rosal e Vives Antón têm razão portanto quando dizem que o conheci mento do significado antijurídico da conduta é elemento imprescindível do dolo visto que os tipos não descrevem meros acontecimentos físicos mas sociais inevitavelmen te valorativos39 Em síntese o conceito causalista de dolo dolus malus entendido como consciên cia e vontade de praticar um fato que se sabe juridicamente proibido readquire plena atualidade não bastando por conseguinte um conhecimento naturalneutro apenas teorizado e construído à margem da realidade Além disso um conceito de dolo como aqui proposto dolo mau é o que parece mais condizente com uma perspectiva funcional da teoria do delito já que se a função declarada da norma penal é motivar pessoas a agirem segundo o seu comando impõe se que os seus destinatários tenham consciência da proibição que recai sobre a conduta em face de seu desvalor social e pois jurídico podendo compreender a mensagem normativa e agir segundo o seu comando E mais um dolus malus está mais conforme o caráter garantista que deve informar os conceitos e institutos jurídicopenais Além disso a adequação dos resultados do sistema importa muito mais do que o próprio sis tema e sua pretendida coerência Em suma se dolo é consciência e vontade dirigidas à realização de um tipo legal de crime seguese inevitavelmente que dolo é a realização de um fato que se sabe proibido pelo direito inclusive porque o tipo de acordo com a teoria dos elementos negativos do tipo já contém toda a proibição fato típico é um fato proibido jurídico penalmente 39 Derecho penal cit p 558 254 I 061 TEORIA DO DOLO Que fique claro não é esse dolus malus o conceito adotado pelo Código Penal que se filiou à teoria finalista no particular 6 ATUALIDADE DO DOLO A consciência e a vontade exigidas para a configuração do dolo devem coexistir no momento da açãoomissão típica nem antes nem depois O dolo portanto é neces sariamente contemporâneo da prática da conduta típica de modo que se lhe for poste rior ou anterior dolo rigorosamente não há Assim por exemplo se após comprar um veículo em condições normais e de boafé o agente vier a saber que se trata de coisa roubada não existe em princípio dolo de receptação CP art 180 porque quando da ação supunha realizar um negócio legal Assim se restituir o veículo ao legítimo pro prietário não sofrerá nenhuma consequência de ordem jurídicopenal Também por isso quem mata alguém culposamente e logo a seguir oculta o corpo dolosamente responde por homicídio culposo e ocultação dolosa de cadáver Por conseguinte o dolo deve existir ao tempo da execução do crime e não antes ou depois de consumado mas isso não quer dizer que o dolo deva necessariamente persistir durante toda a fase de execução Sim porque mesmo que o agente desista ou se arrependa inutilmente do delito cuja execução iniciara responderá por crime doloso consumado ou tentado conforme o caso Assim se o autor de um atentado depois de colocar a bomba arrependese e tenta por rádio conseguir uma aterrissagem prematura do avião e assim salvar os passageiros responderá a título de dolo se não tiver êxito40 Também não basta a existência de dolo antecedente à execução só na fase de co gitação ou preparação motivo pelo qual quem persegue a vítima apontalhe a arma e desiste de fazêlo mas ainda assim dispara acidentalmente não responde a título de dolo mas de culpa O dolo é pois consciência e vontade de realizar o tipo no momento da sua reali zação mesma Não é exceção a isso a hipótese de embriaguez preordenada que ocorre quando o agente se embriaga com o fim de praticar crime uma vez que embora a decisão de cometer delito preceda à realização da ação típica o dolo de delinquir persiste quando da respectiva execução 7 ELEMENTOS SUBJETIVOS DO TIPO A doutrina distinguia distinção atualmente superada entre dolo genérico e dolo específico O dolo genérico escrevia Magalhães Noronha reside na vontade de realizar o tipo descrito na lei enquanto o dolo específico é considerado como um fim especial e próprio do delito41 De acordo com tal formulação o dolo compreendia 40 Roxin Derecho Penal cit p 454 41 Direito Penal v 1 cit 255 PAULO QlEIROZ todos os elementos do tipo mas haveria um dolo genérico compreensivo do tipo ob jetivo e eventualmente um dolo específico compreensivo dos elementos subjetivos especiais referidos no tipo Uma vez superada tal distinção por se entender que o dolo é um só permaneceu se adotando porém um conceito restritivo de dolo isto é dolo como realização do tipo objetivo unicamente razão pela qual a doutrina atual fala de elementos subjetivos do tipo ou elementos subjetivos do injusto para assim designar todos aqueles requisitos de caráter subjetivo distintos do dolo que o tipo exige para sua realização Numa palavra o que antes se chamava dolo específico chamase atualmente elementos subjetivos do tipo ou elementos subjetivos do injusto Assim por exemplo o para si ou para ou trem no furto CP art 155 e o intuito de obter vantagem econômica na extorsão CP art 158 não fariam parte do conceito de dolo Os elementos subjetivos do injusto seriam enfim conforme definição de Danie la Marques elementos do campo psíquicoespiritual do agente traduzidos em espe ciais tendências intenções ou propósitos fim especial de agir que condicionam ou que fundamentam o juízo de ilicitude do comportamento42 Deuse portanto uma nova denominação ao antigo dolo específico E de acordo com Mufíoz Conde esses elemen tos subjetivos específicos não coincidem com o dolo pois são tendências especiais ou motivos que o legislador exige nalguns casos além do dolo para constituir o tipo de algum delito como por exemplo o ânimo de injuriar no crime de injúria43 Não estamos de acordo com isso porém Sim porque se dolo é a realização do tipo penal consciente e voluntariamente e se não existe dolo em si mas dolo de reali zar um tipo legal determinado o dolo há de compreender forçosamente todos os ele mentos referidos tipo não fazendo sentido algum excluir os assim chamados elementos subjetivos do injusto Além do mais quer porque a linguagem é estruturalmente aberta quer porque não existe conhecimento sem mediação do sujeito quer porque a interpretação consti tui o ser do direito a pretendida distinção entre elementos objetivos subjetivos e nor mativos do tipo não é mais sustentável Como assinala Rosa Maria Cardoso da Cunha é arbitrária a distinção feita pelo pensamento dogmático entre elementos descritivos e normativos com o fim de situar apenas estes últimos como objeto valorativo do juí zo porque tal distinção desconsidera a circunstância de que nenhum elemento do tipo pode ser conhecido pela simples verificação sensorial Com efeito mesmo expressões como homem casa membro etc apontam para objetos que reclamam um juízo histó rico e valorativo44 42 Elementos subjetivos do injusto cit p 1 1 9 43 Teoria Geral do Delito cit p 65 No mesmo sentido Cezar Bitencourt o especial fim de agir ou motivo de agir embora amplie o aspecto subjetivo do tipo não integra o dolo nem com ele se confun de uma vez que o dolo esgotase com a consciência e a vontade de realizar a ação com finalidade de obter o resultado delituoso Manual cit p 2 1 6 44 O caráter retórico do princípio da legalidade Porto Alegre 1 979 p 64 256 06 TEORIA DO DOLO O dolo portanto entendido como realização dos elementos do tipo deve com preender tudo que o tipo legal de crime contiver expressa ou tacitamente inclusive porque o dolo não é um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título a título de dolo Conforme vimos dizer que o dolo não é um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título significa basicamente o seguinte a que compete a um tercei ro notadamente o juiz e não ao imputado decidir se este agiu ou não dolosamente razão pela qual a imputação a esse título não fica na dependência da interpretação que o próprio sujeito faz de seu ato bque se trata essencialmente de uma valoração a partir da prova produzida nos respectivos autos cque esse juízo de valor poderá eventualmente contrariar a própria versão do imputado por mais verossímil sobretudo nos crimes contra a honra calúnia etc dque para a apuração do dolo é essencial a consideração do contexto em que os fatos se passaram e que o dolo não preexiste à interpretação mas é dela resultado o dolo não é previamente dado mas construído motivo pelo qual juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto ora afirmando ora negando a existência de dolo fque o dolo é um conceito logo uma metáfora razão pela qual pode designar e compreender casos bastante díspares vide capítulo 12 sobre os limites de um conceito gpor encerrar uma imputação é possível falar em tese de dolo mesmo em relação a adolescentes ébrios e portadores de deficiência mental 8 CRIME QUALIFICADO PELO RESULTADO PRETERDOLO OU PRETERINTENCIONALIDADE Dizse preterdoloso de praeter dolus isto é além do dolo ou preterintencional um crime quando num mesmo tipo penal conjugamse dolo e culpa de modo que o delito consiste na fusão de ambos havendo dolo no ato antecedente e culpa no con sequente Tratase portanto de um comportamento doloso cujo resultado é punido a título de culpa Assim por exemplo o crime do art 129 3º do CP em que se pune a lesão corporal a título de dolo e a morte a título de culpa desde que as circunstâncias evidenciem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzilo ou seja o agente quis simplesmente causar lesão v g por meio de um soco vindo porém a matar a vítima tal foi a violência do impacto No preterdolo o resultado vai além da intenção do agente portanto O crime preterdoloso pressupõe por conseguinte que o autor não tenha agido relativamente ao resultado de sua ação com dolo nem mesmo eventual mas com culpa porque do contrário ou responderá por crime doloso homicídio no exemplo dado ou somente por crime de lesão corporal também dolosa caso fique provado neste último caso que a morte era imprevisível e inevitável logo não imputável nem mesmo a título de culpa sob pena de violação ao princípio de pessoalidade da pena O Código é claro no particular ao dispor que pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposa mente art 19 257 258 PAULO QlJEI ROZ O precedente abaixo do STJ ilustra bem essa questão LESÃO COPORAL MORTE NEXO CAUSALIDADE Segundo consta dos autos o recorrente foi denunciado pela prática do cri me de lesão corporal qualificada pelo resultado morte art 1 29 3º do CP porque durante um baile de carnaval sob efeito de álcool e por mo tivo de ciúmes de sua namorada agrediu a vítima com chutes e joelhadas na região abdominal ocasionando sua queda contra o meiofio da calçada onde bateu a cabeça vindo à óbito Ocorre que segundo o laudo pericial a causa da morte foi hemorragia encefálica decorrente da ruptura de um aneurisma cerebral congênito situação clínica desconhecida pela vítima e seus familiares O juízo singular reconheceu que houve crime de lesão corporal simples visto que restou dúvida sobre a existência do nexo de causalidade entre a lesão corporal e o falecimento da vítima O tribunal a quo por sua vez entendeu ter ocorrido lesão corporal seguida de morte art 129 3 ele o art 61 II a e e do CP sob o argumento de que a agressão perpetrada pelo recorrente contra a vítima deu causa ao óbito Assim a questão diz respeito a aferir a existência de nexo de causalidade entre a conduta do recorrente e o resultado morte art 13 do CP Nesse contexto a Turma prosseguindo o julgamento por maioria deu provi mento ao agravo regimental e ao recurso especial determinando o res tabelecimento da sentença Conforme observou a Min Maria Thereza de Assis Moura em seu votovista estáse a tratar dos crimes preterdolosos nos quais como cediço há dolo no comportamento do agente que vem a ser notabilizado por resultado punível a título de culpa Ademais salien tou que nesse tipo penal a conduta precedente que constitui o delitobase e o resultado mais grave devem estar em uma relação de causalidade de modo que o resultado mais grave decorra sempre da ação precedente e não de outras circunstâncias Entretanto asseverou que o tratamento da causalidade estabelecido no art 1 3 do CP deve ser emoldurado pelas dis posições do art 18 do mesmo codex a determinar que a responsabilidade somente se cristalize quando o resultado puder ser atribuível ao menos culposamente Ressaltou que embora alguém que desfira golpes contra uma vítima bêbada que venha a cair e bater a cabeça no meiofio pudesse ter a previsibilidade objetiva do advento da morte na hipótese o próprio laudo afasta a vinculação da causa mortis do choque craniano porquanto não aponta haver liame entre o choque da cabeça contra o meiofio e o evento letal ln casu a causa da morte foi hemorragia encefálica decor rente da ruptura de um aneurisma cerebral congênito situação clínica de que sequer a vítima tinha conhecimento Ademais não houve golpes per petrados pelo recorrente na região do crânio da vítima Portanto não se mostra razoável reconhecer como típico o resultado morte imantandoo de caráter culposo Dessa forma restabeleceuse a sentença de primeiro grau que desvinculou o resultado do comportamento do agente que não tinha ciência da particular e determinante condição fisiológica da vítima AgRg no REsp 1 094758RS Rei originário Min Sebastião Reis Júnior Rei para acórdão Min Vasco Della Giustina Desembargador convocado do TJRS julgado em lº32012 l ü6I TEORIA DO DOLO Não se deve confundir finalmente crime preterdoloso com crime qualificado pelo resultado pois o primeiro é espécie do segundo seu gênero ou seja todo crime pre terdoloso é um crime qualificado pelo resultado mas nem todo crime qualificado pelo resultado é um crime preterdoloso É que há crimes qualificados pelo resultado cuja circunstância qualificadora resulta não de culpa como ocorre no crime preterdoloso mas de dolo tratandose em consequência de um crime doloso apenado mais grave mente em razão do resultado Assim por exemplo as lesões corporais graves previs tas no art 129 lº e 2 Existem ainda além dessa combinação de dolo e dolo delitos qualificados que resultam da fusão de culpa e culpa a exemplo do desastre ferroviário culposo com resultado lesão ou morte culposa CP arts 260 2º e 263 81 Inconstitucionalidade dos crimes qualificados pelo resultado Há quem afirme que os crimes qualificados pelo resultado são inconstitucionais uma vez que atentam contra os princípios de proporcionalidade e isonomia Nesse sentido Juarez Cirino assinala que os crimes qualificados pelo resultado especialmente os tipos com lesão corporal ou roubo com resultado morte imprudente por exemplo A golpeia o rosto de B com um revólver carregado que dispara e aci dentalmente mata B são incompatíveis com o princípio da culpabilidade porque a gravidade da pena é desproporcional em relação às punições independentes do tipo fundamental e do homicídio imprudente o que transforma a responsabilidade penal por tais crimes numa versão moderna do velho versari in re illicita do direito canônico originando propostas desde a redução corretiva da pena como quer Jakobs até a abo lição de lege ferenda dos crimes qualificados pelo resultado como sugere Jescheck45 Posição semelhante adota Juarez Tavares para quem os delitos qualificados pelo resultado só poderiam ser admitidos se constituídos com o mesmo conteúdo de injusto dos delitos que resultassem de uma relação de concurso formal pois do contrário vio lam o sistema de fundamentação do injusto penal porque não representam maior gra vidade na lesão ou perigo de lesão ou no perigo de lesão de bem jurídico46 Considera ainda que no que toca à pena cominada por exemplo aos crimes de lesão seguida de morte e latrocínio pela disparidade das sanções possíveis acrescidas no máximo de agravação do concurso formal podese afirmar que se viola o princípio da proporcio nalidade segundo o qual para resultados danosos idênticos devese seguir a mesma consequência penal47 Já Roxin entende que as objeções embora procedentes em parte não justificam a abolição dos crimes qualificados pelo resultado mas sugerem uma ampla restrição dos mesmos à provocação temerária do resultado mais grave48 45 A moderna teoria cit p 127 46 Teoria do injusto penal cit p 1 99 47 Teoria do injusto penal cit p 198 48 Derecho penal cit p 3 3 1 259 PAULO QvEIROZ De todo modo enquanto existirem tipos qualificados pelo resultado convém evi tar a aplicação de penas desproporcionais isto é penas que excedam àquelas que se riam cabíveis para o concurso de crimes especialmente o concurso material de crimes 9 AUSÊNCIA DE DOLO ERRO DE TIPO Se como vimos o dolo é a realização dos elementos do tipo consciente e vo luntariamente seguese que o autor não poderá responder a esse título quando lhe faltar o conhecimento essencial à sua configuração Haverá portanto erro de tipo sempre que o agente carecer do conhecimento dos elementos do tipo ou tiver um co nhecimento falso ou inexato desses elementos Assim se o autor contrair casamento ignorando a condição de casado do cônjuge não responde como partícipe do crime de bigamia e não responde tampouco por furto se supuser abandona sem dono coi sa alheia 49 A rigor era pois desnecessária previsão legal expressa sobre o erro de tipo visto que a teoria do erro de tipo não é outra coisa senão a própria teoria do dolo embora com outro nome sim porque o erro de tipo é a negação mesma da representação exi gida para o dolo motivo pelo qual haverá tal erro sempre que o autor desconhecer os elementos do dolo segundo o tipo correspondente 50 Justamente por isso quanto ao conteúdo o dolo pode consistir tanto em uma representação falsa da realidade como na sua falta de representação já que o erro é a discrepância entre consciência e reali dade51 E como veremos a seguir pouco importa se o erro incide sobre elementos descri tivos ou normativos do tipo porque o dolo compreende segundo pensamos tudo que nele se contém E mais em razão do caráter estruturalmente aberto da linguagem é infundada a distinção entre elementos valorativos e não valorativos do tipo visto que não existe conhecimento sem mediação do sujeito não existe conhecimento sem valo ração portanto Com efeito matar alguém subtrair coisa alheia móvel constran ger alguém etc pressupõem juízos de valor inevitavelmente O erro de tipo poderá incidir portanto sobre os assim chamados elementos des critivos ou normativos Assim por exemplo em relação ao tipo de homicídio haverá erro quando numa caatinga fechada o agente atirar contra o que supõe ser um ani mal vindo a matar uma pessoa caso em que erra sobre o alguém a que se refere o art 121 do Código o mesmo ocorrerá se quanto ao furto o agente supuser própria coisa alheia hipótese em que erra sobre o alheia previsto no art 155 ou ainda quando no estupro contra vulnerável acreditar que a vítima é maior de catorze anos ou desco nhecer sua condição de deficiente mental 49 Exemplos de Antônio José da Costa e Silva Código Penal dos Estados Unidos do Brasil Commenta do Brasília Senado Federal 2004 50 Jescheck Tratado cit p 275 5 1 Jescheck Tratado cit p 275 260 I061 TEORIA DO DOLO Em todos esses exemplos faltará ao autor o conhecimento essencial à configuração do dolo a impedir a imputação de crime a esse título O erro de tipo consiste portanto na ausência de conhecimento ou no falso conhe cimento dos seus elementos constitutivos motivo pelo qual uma vez provado o enga no excluirseá o dolo devendo o agente responder a título de culpa exclusivamente se houver imprudência e se o crime for punível a esse título Do erro de tipo cuida o art 20 caput do Código Penal que dispõe o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo mas permite a punição por crime culposo se previsto em lei A consequência invariável do erro de tipo é pois a exclusão do dolo afastando em princípio a própria tipicidade penal exceto se o autor tiver agido com imprudência e o tipo legal de crime admitir a punição na forma culposa Eventualmente o erro de tipo poderá resultar de erro sobre a pessoa Assim por exemplo se num baile de máscaras o agente pratica atos libidinosos com vítima vul nerável supondo tratarse de sua companheira não vulnerável incidirá em erro de tipo afastando a imputação de estupro de vulnerável CP art 217A A hipótese não se confunde porém com o erro sobre a pessoa de que ainda vamos tratar item 14 pois aqui o autor não quer cometer delito algum contra a vítima visada ou real O erro de tipo pode ainda acarretar outros efeitos que não a exclusão do dolo ou da cui1pa como a desclassificação do delito Assim por exemplo se o autor desacatar funcionário público desconhecendo essa sua qualidade poderá responder não por de sacato CP art 331 mas por crime contra a honra v g injúria 24 e quem mantiver relações sexuais violentas com vulnerável ignorando essa circunstância responderá por estupro violento e não por estupro de vulnerável O erro pode também incidir sobre circunstâncias agravantes ou qualificadoras Exemplo quem induz a própria filha a satisfazer a lascívia de outrem ignorando a relação de parentesco não responde pela qualificadora prevista no art 227 1 º do Código52 embora responda pelo crime na forma simples Finalmente além do erro de tipo de que estamos tratando erro de tipo essencial haverá erro de tipo acidental nos seguintes casos erro sobre a pessoa errar in per sona erro na execução aberratio ictus resultado diverso do pretendido aberratio criminis etc dos quais se tratará mais adiante 91Erro de tipo ou erro de proibição Nem sempre é fácil ou possível distinguir erro de tipo de erro de proibição espe cialmente em se tratando de tipos penais que referem expressamente os assim chama dos elementos normativos do tipo tais como sem justa causa indevidamente etc 52 Damásio de Jesus Direito penal cit p 30 1 261 PAULO QEIROZ Para uns tratase de erro de tipo para outros erro de proibição E há ainda quem entenda que ora é um ora é outro Parecenos que esses tipos penais demonstram em verdade a inconsistência da mencionada distinção Porque no fundo erro de tipo e erro de proibição são uma só e mesma coisa variações de um erro de interpretação Afinal errar sobre o tipo é errar sobre a proibição que o tipo encerra e viceversa De todo modo temos que haverá erro de tipo sempre que faltar ao agente a repre sentação exata do fato relativamente a um tipo penal determinado E para esse fim é irrelevante se se trata de elementos valorativos ou não valorativos do tipo Já vimos ademais que é infundada a pretendida distinção entre elementos des critivos objetivos e normativos visto que todos são inevitavelmente valorativos uns mais outros menos E mais com a normativização levada a efeito pela moderna teoria da imputação objetiva no âmbito da própria tipicidade já não faz muito sentido falar de elementos não normativos do tipo Em suma se o erro recai sobre os elementos do tipo explícitos ou implícitos pouco importando o quão precisos ou imprecisos sejam cuidarseá de erro de tipo Assim por exemplo quanto ao art 154 do Código violação de segredo profissional que define como crime o ato de revelar alguém sem justa causa segredo de que tem ciência em razão de função ministério ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem faltará o dolo quer o agente acredite que é devida a revelação quer ignore o caráter de segredo quer faça a revelação com o fim de bene ficiar o ofendido 53 E haverá erro de proibição quando fora do caso anterior o autor acreditar que pratica uma conduta conforme o direito mas que em verdade constitui infração pe nal O erro de proibição tem pois natureza residual relativamente ao erro de tipo O mesmo raciocínio vale mutatis mutandis para os tipos penais em branco que são aqueles que por serem incompletos remetem parcialmente a complementação do preceito principal para uma outra norma ora de mesmo grau hierárquico tipos homo gêneos 9ra de grau hierárquico inferior tipos heterogêneos 53 De modo diverso Cézar Bitencourt escreve textualmente se o profissional médico por exemplo revela segredo do paciente mas sinceramente acreditando que não lhe causará nenhum dano pelo contrário até lhe trará algum benefício numa reunião científica em um congresso de medicina revela a doença de que o paciente é portador esperando obter benefício dessa revelação nem imaginando que isso possa de algum modo por alguma circunstância que ele desconhece trazer prejuízo para o paciente nesse caso esse erro se refere a uma condição do tipo Se ao contrário imaginar que a divulgação que faz realiza com justa causa então o erro será sobre a ilicitude desca racterizandoa da culpabilidade Por exemplo o médico está pleiteando o pagamento de honorários que o paciente está lhe recusando e imagina que para fundamentar o pagamento de honorários tem de explicitar o tipo de tratamento que realizou e o tipo de enfe1midade do paciente Por isso nem pensa que está quebrando o sigilo com justa causa Aqui não seria na realidade um erro sobre a constituição do tipo sem justa causa mas sobre a ilicitude da conduta Tratado de direito penal São Paulo Saraiva 2 1 03 p 5 1 6 262 1061 TEORIA DO DOLO 92 Espécies de erro de tipo erro inevitável e evitável O erro de tipo pode ser portanto inevitável invencível logo escusável ou evitável vencível inescusável pois Quando inevitável há exclusão do dolo e da cul pa exclusão da própria tipicidade se evitável excluise somente o dolo subsistindo a culpa se o crime for punível a título de imprudência negligência ou imperícia Dirseá inevitável sempre que o agente for levado a erro de forma absolutamente insuperável segundo as circunstâncias do caso e será evitável quando tiver incorrido em erro por imprudência negligência ou imperícia Assim conforme exemplo antes referido se se verificar que o caçador podia darse conta de que mirava uma pessoa e não um animal caso agisse com prudência ordiná ria e adotasse as cautelas mínimas como aproximarse mais da vítima etc a hipótese será a de erro de tipo evitável caso contrário se foram comprovadamente adotados os cuidados indispensáveis e ainda assim o resultado lesivo veio a consumarse a situa ção será a de erro de tipo inevitável Naturalmente que a imputação a título de imprudência para a hipótese de erro evitável somente ocorrerá se o respectivo crime admitir a forma culposa porque do contrário não haverá punição alguma ou seja mesmo em se tratando de erro evitável poderá ocorrer a exclusão da tipicidade Assim por exemplo na hipótese de mulher grávida que aborta culposamente v g tomando um remédio para úlcera mas que sem que o saiba cause o aborto já que semelhante crime só é punido na forma dolosa não existindo crime de aborto culposo 1 E que de acordo com o art 18 parágrafo único do Código salvo os casos ex pressos em lei ninguém pode ser punido por fato previsto como crime senão quando o praticar dolosamente de sorte que a punição a título de culpa só é cabível quando o respectivo tipo penal previr a forma culposa expressamente Aliás o próprio art 20 refere que o erro de tipo exclui o dolo mas permite a punição por crime culposo se previsto em lei 10 AUSÊNCIADO CONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO ERRO DE PROIBIÇÃO 101 Conceito Dáse o erro sobre a ilicitude do fato ou erro de proibição direto sempre que o agente supõe praticar uma conduta legal ou legítima mas que em verdade configura ilícito penal Enfim há erro de proibição sempre que o autor carecer da consciência da ilicitude do fato Ou como diz Francisco de Assis Toledo há erro de proibição quando o agente realiza uma conduta proibida seja por desconhecer a norma proibitiva seja por conhecêla mal seja por não compreender o seu verdadeiro âmbito de incidência54 54 Princípios básicos de direito penal cit 270 263 PAULO QJEIROZ No erro de proibição portanto o agente erra quanto ao caráter proibido de sua conduta ao supor lícita uma ação ilícita Assim um estrangeiro v g cidadão holan dês que desembarcasse na Bahia com pequena quantidade de droga licitamente ad quirida para consumo pessoal acreditando que tal fosse permitido entre nós tal como no seu país de origem O erro de proibição não se confunde pois com o erro de tipo porque se no erro de tipo o agente não sabe o que faz no erro de proibição ao contrário ele sabe exa tamente o que faz mas acredita que age licitamente tal como o matuto que tendo por hábito comum na sua região caçar aos domingos vem a ser preso por crime contra o meio ambiente e porte ilegal de arma ao trazer no alforje algumas perdizes que abate ra naquele dia festivo E mais de acordo com o Código o errn de tipo inevitável exclui a tipicidade dolo e culpa e o erro de tipo evitável exclui o dolo apenas subsistindo a culpa Já o erro de proibição inevitável exclui a culpabilidade não o dolo nem a culpa e o erro de proi bição evitável nada exclui apenas atenua a pena É que o erro de tipo tem a ver com a tipicidade e o erro de proibição tem a ver com a culpabilidade sistema finalista Distinguindo por meio de mais um exemplo se o autor tem em casa cocaína su pondo ser outra substância inócua tratase de erro de tipo mas se a tem pensando que o depósito não é proibido o tema é de erro de proibição55 São também possíveis exemplos de erro de proibição tirar cópia de livro baixar músicas via internet etc caso se entenda que algumas dessas práticas configuram violação de direitos autorais CP art 184 bem como adquirir produtos estrangeiros introduzidos no país clandes tinamente receptação Do erro sobre a ilicitude do fato cuida o art 21 caput segunda parte do Código o erro sobre a ilicitude do fato se inevitável isenta de pena se evitável poderá dimi nuíla de um sexto a um terço A distinção entre erro de tipo e erro de proibição pressupõe uma outra distinção entre fato e valoração do fato E conforme vimos se o Código adotasse uma concep ção de dolo como dolus malus o erro de proibição o excluiria visto que a consciência da ilicitude faria parte do conceito de dolo Enfim consideramos que o erro de tipo e o erro de proibição deveriam ser tratados exatamente da mesma forma Dizse por fim que há erro de proibição indireto quando o agente erra sobre a existência ou sobre os limites de uma causa de justificação isto é sabe que pratica um fato em princípio proibido mas supõe que nas circunstâncias milita a seu favor urna norma permissiva56 55 Exemplo de Finger citado por Sebastian Soler Derecho Penal Argentino II Buenos Aires TEA 1 992 p 102 56 Francisco de Assis Toledo princípios básicos cit p 271 264 1061 TEORIA DO DOLO 102 Espécies de erro inevitável e evitável Também o erro de proibição pode ser inevitável invencível ou evitável vencível Se inevitável haverá isenção de pena se evitável a pena será diminuída de um sexto a um terço Dirseá evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato quando lhe era possível nas circunstâncias ter ou atingir essa consciência CP art 21 parágrafo único Vale dizer somente terá lugar a isenção de pena por erro inevitável quando o agente não puder com um esforço mínimo obter concretamente o conhecimento do caráter ilícito do fato Portanto o conhecimento que se exige não é atual mas potencial possibilidade de atingir a consciência da ilicitude Do contrário não poderá sem mais valerse da isenção de pena beneficiandose ape nas da redução da pena por erro evitável 103 Posição sistemática O tratamento legal dado ao erro de tipo e ao erro de proibição é diverso portanto Com efeito se o erro de tipo inevitável exclui o dolo o erro de proibição inevi tável isenta o réu de pena Significa dizer que o erro de tipo inevitável ao excluir o dolo exclui a própria tipicidade e o erro de proibição inevitável ao isentar o réu de pena mantém incólume a tipicidade do fato o dolo e a culpa embora exclua a culpa bilidade Se se tratar de erro evitável dáse o seguinte o erro de tipo exclui o dolo mas per siste a possibilidade legal de punição da conduta a título de culpa já no erro de proibi ção evitável o agente responde por crime doloso ou culposo conforme o caso embora com pena diminuída de um sexto a um terço Enfim o erro de tipo tem a ver com a tipicidade e o erro de proibição com a cul pabilidade visto que o Código aderiu ao finalismo entendendo dolo como dolo natural neutro dissociado da consciência da ilicitude por considerar que o potencial conhe cimento da ilicitude é uma questão de culpabilidade e não de tipicidade Convém repetir que segundo o conceito de dolo aqui proposto dolus malus a distinção entre erro de tipo e erro de proibição carece de sentido porque a falta de consciência da ilicitude implicaria a exclusão do dolo motivo pelo qual o erro de tipo e o erro de proibição deveriam ter o mesmo tratamento jurídicopenal 104 Desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude do fato distin 1 ção A doutrina distingue conhecimentodesconhecimento da lei de conhecimentodes conhecimento da proibição do fato O desconhecimento da lei é em princípio inescu sável já o desconhecimento da proibição do fato importa em erro de proibição inevitá vel ou evitável logo é escusável total ou parcialmente Noutras palavras o conhecimentodesconhecimento da lei é em princípio penal mente irrelevante e o conhecimentodesconhecimento da proibição que a lei encerra é 265 PAULO QJ E I ROZ penalmente relevante tendo implicações quanto à culpabilidade seja para isentar o réu de pena seja para atenuála O conhecimento da lei é obtido por meio de informações meios de comunicação família escola etc sobre a existência formal e principais proibições que a lei encerra Já o conhecimento da proibição do fato é adquirido por meio dos processos de socia lização e inserção do indivíduo numa determinada tradição moral religiosa jurídica etc quando são internalizados certos mandamentos como os de não matar não roubar etc Justamente por isso o indivíduo pode errar sobre a ilicitude do fato independen temente do conhecimento formal da lei57visto que a consciência da ilicitude é ou não adquirida com os processos de socialização Também por isso é que sabemos o que é um automóvel sem conhecermos mecânica ou o que é pneumonia sem conhecer medi cina e o que é ilícito sem conhecer a lei formalmente Asúa Em síntese é possível conhecer a proibição sem conhecer a lei como ordinaria mente ocorre aliás assim como é possível conhecer a lei e desconhecer a proibição havendo erro de proibição sempre que o agente conhecendo ou não a lei desconhecer a proibição do fato Normalmente quem conhece a lei conhece a proibição e em geral quem desconhece a proibição desconhece também a própria lei Naturalmente que nem sempre é possível distinguir o conhecimentodesconheci mento da lei e o conhecimentodesconhecimento da proibição do fato podendo even tualmente significar a mesma coisa Como assinala Juarez Cirino separar como faz a lei conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir relevância ao primeiro e irrelevância ao segundo é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei 58 E se no direito penal comum é relativamente fácil ter ou atingir o conhecimento do injusto o mesmo não se pode dizer quanto ao direito penal especial em que frequentemente tal pressupõe o conhecimento do próprio texto legal e seus artigos Consequentemente hoje não se pode mais pretender emprestar caráter absoluto à ideia de que o desco nhecimento da lei é inescusável de sorte que o brocardo ignorantia legis non nemi nem excusar perdeu boa parte de seu prestígio em face do princípio da culpabilidade 57 Como diz Paulo José da Costa Júnior é possível ignorar a lei e conhecer a proibição ou conhecer a lei e ignorar a proibição da conduta Curso cit p 89 58 A moderna teoria cit p 245 Escreve o citado autor textualmente separar conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir relevância ao desconhecimento do injusto e irrelevância ao desco nhecimento da lei penal é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei hoje generalizado sob o conceito de tipo de injusto que por força do princípio da legalidade aparece na lei penal sob a forma de tipo legal ou tipo penal como descrição do comportamento proibido precisamente porque injusto penal e lei penal representam respectivamente as dimensões concreta e abstrata das proibições ou comandos do direito penal é possível no direito penal comum ter ou atingir o conhecimento da lei através do conhecimento do injusto mas no direito penal especial é frequen temente impossível ter ou atingir o conhecimento do injusto exceto através do conhecimento da lei penal p 245 266 I061 TEORIA DO DOLO Afinal quem poderá saber por exemplo que é crime ter em depósito ou guardar ma deira lenha carvão e outros produtos de origem vegetal sem licença da autoridade competente Lei nº 960598 art 46 parágrafo único59 O desconhecimento da lei por conseguinte poderá e deverá conduzir eventual mente à absolvição mesma pela ausência de culpabilidade por encerrar um autêntico erro de proibição inevitável ou apenas atenuar a pena se evitável o erro60 105 Objeto da consciência da ilicitude Para a configuração do erro de proibição não basta a consciência da lesividade so cial ou a só consciência da imoralidade da conduta uma vez que as valorações sociais e morais são tão variáveis em uma sociedade pluralista que o direito não poderia exigir a orientação incondicional a tais valores de modo que o sujeito somente pode ser con siderado culpável quando desatenda conscientemente a proibições e mandamentos ju rídicos61 Numa palavra tem consciência do injusto quem sabe que seu comportamento é proibido pelo direito Logo incorre em erro de proibição quem fundada e concreta mente julga atuar conforme o direito supondo juridicamente permitida sua atuação Para o conhecimento do injusto é pois suficiente a consciência de infringir uma norma jurídica formalmente válida porque em tal caso o sujeito sabe que atua con trariamente ao direito mas não se exige conhecimento do preceito jurídico lesionado ou da punibilidade62 Em conclusão atuará culpavelmente quem pratica determinado comportamento sabendoo contrário ao direito 106 Divisibilidade do erro A consciência da ilicitude é divisível não só em relação aos distintos tipos mas também quanto ao mesmo tipo quando este protege bens jurídicos distintos63 Assim por exemplo no roubo art 1 57 se o autor subtrai com violência coisa do devedor em mora com conhecimento do injusto quanto à violência mas podendo errar quanto à subtração que julgava lícita diante da ilegal resistência ao seu direito Pela mesma ra zão o erro pode também recair sobre circunstâncias qualificadoras do tipo 59 Juarez Cirino A moderna teoria cit p 244245 60 No mesmo sentido Mestieri Assim de nenhum modo o sistema jurídico admite a alegação do des conhecimento da lei todavia essa posição está em franca oposição ao moderno princípio da culpabi llidade o que exige obviamente a capacidade concreta de agir poder na qual se insere induvidosa mente não apenas o conhecimento da regra como a estruturação da vontade de maneira reprovável Manual de derecho penal Rio de Janeiro Forense 1 999 p 1 82 6 1 Roxin Derecho penal cit p 866 62 Jescheck Tratado cit p 41 O De modo diferente Juarez Cirino que seguindo Otto entende que conhecimento do injusto significa conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma forma legal penal positiva ou seja consciência do injusto significa conhecimento de infringir uma prescrição penal embora não se exija conhecimento preciso dos parágrafos da lei infringidos A mo derna teoria cit p 232233 63 Roxin Derecho penal cit p 870 267 PAULO QEIROZ É ainda possível que o agente incida em duplo erro de proibição desconhece a proibição específica do tipo mas o considera proibido por outra razão quando v g um tio seduz uma sobrinha menor de catorze anos sem saber que tal constitua estupro de vulnerável mas imaginando que seja punido como incesto Nesse caso tem uma falsa consciência da ilicitude pois supõe uma proibição que não existe bem como ignora a que realmente existe incorrendo em erro de proibição porque lhe falta a cons ciência do injusto específico do tipo64 11 ERRO SOBRE CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO DESCRIMINANTES PUTATIVAS 111 Conceito Dáse o erro sobre causa de justificação descriminante putativa por erro de tipo ou erro de tipo permissivo sempre que o autor imaginarse amparado por uma exclu dente de ilicitude que de fato não existe legítima defesa estado de necessidade estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito putativos Tratase enfim de um erro que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação Exemplo jurado de morte por um inimigo o agente o encontra em lugar ermo à noite e vendoo retirar um volume do bolso que supõe ser um revólver é em realidade um aparelho celular dispara contra ele e o fere gravemente Há ainda descriminante putativa quando o policial confundindo um fugitivo com um perigoso terrorista que supostamente implodira uma estação de metrô fereo mortalmente ca sos em que o agente poderá valerse da legítima defesa putativa Com efeito o art 20 1 º do CP dispõe que é isento de pena quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que se existisse tornaria a ação legítima Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punido como crime culposo Assim as excludentes de ilicitude tanto podem dizer respeito a situações reais como podem referirse a situações putativas Naturalmente que o agente só pode se valer da descriminante putativa quando além do próprio erro estiverem presentes todos os requisitos legais relativos à causa de justificação de que se trata No caso de legítima defesa putativa por exemplo tal só é cabível se houver repulsa necessária e moderada a uma agressão injusta atual ou iminente a direito próprio ou alheio CP art 25 Justamente por isso o autor de roubo que mata a sua vítima por supor que ela estava armada e que reagiria ao assalto não pode invocála porque a sua agressão é criminosa injusta portanto Há quem entenda65 inclusive que o erro pode também recair sobre excludentes de culpabilidade sempre que o autor imaginarse numa situação de isenção de culpa v g coação moral irresistível que de fato não existe se estiverem presentes seus requisitos 64 Roxin Derecho penal p 870 65 Damásio de Jesus cit p 3 1 7 268 I 06 1 TEORIA DO DOLO legais Assim por exemplo o policial que acredita cumprir uma ordem hierárquica superior não manifestamente ilegal que não existe ou se existiu deixou de existir 112 Espécies erro inevitável e evitável O erro de que estamos tratando pode ser inevitável e evitável se inevitável o autor ficará isento de pena sendo absolvido se evitável responderá por crime culposo se o delito for punível a título de culpa visto que de acordo com o Código não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punido como crime culposo 113 Descriminantes putativas por erro de proibição Além do erro que acabamos de ver descriminante putativa por erro de tipo isto é erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação a doutrina costuma referir o erro sobre os limites ou a própria existência de uma causa de justificação o qual constituíra em verdade uma modalidade de erro de proibição indireto66 Como o próprio nome está a sugerir tratase de um espécie de erro de proibição importando portanto em exclusão da culpabilidade quando inevitável e em redução da pena se evitável Pois bem haveria erro sobre a existência de causa de justificação sempre que o agente se supusesse amparado por uma excludente de ilicitude não admitida pelo or denamento jurídico v g supor que é lícito ferir a esposa flagrada em adultério em razão de legítima defesa da honra E ocorreria erro sobre os limites de uma causa de justificação quando o agente inicialmente amparado por uma excludente de ilicitude fosse além do necessário por julgar lícito fazêlo v g depois de ferir e algemar o seu agressor em legítima defesa a vítima resolve torturálo supondo legítimo fazêlo Vêse pois que a diferença entre essas duas possibilidades de erro e aquele ante riormente tratado reside no fato de que aqui o agente não erra sobre a situação de fato que tornaria sua ação legítima mas sim sobre os limites de uma causa de justificação ou sobre a sua existência mesma O erro inicialmente referido descriminante putativa por erro de tipo teria a ver com a tipicidade e esses dois últimos descriminantes pu tativas por erro de proibição indireto diriam respeito à culpabilidade isto é constitui riam modalidades de erro de proibição indireto 114 Posição sistemática Discutese a natureza jurídica das descriminantes putativas se constituem um problema de tipicidade ou de culpabilidade já que não são autênticas causas de justifi cação logo não excluem a ilicitude 1 66 1 Nesse sentido Francisco de Assis Toledo Considerese que o erro sobre uma causa de justificação pode recair sobre os pressupostos fáticos dessa mesma causa supor situação de fato mas pode também isso é inegável e aceito em doutrina recair não sobre tais pressupostos fálicos mas sobre os limites ou a própria existência da causa de justificação supor estar autorizado Princípios Bási cos cit p 273 269 PAULO QJEIROZ Inicialmente é de ver que o seu tratamento legal é muito semelhante ao do erro de tipo visto que em ambos quando evitável o erro terá lugar a punição a título de culpa e quando inevitável o agente será absolvido Mas há uma diferença sutil enquanto no erro de tipo o Código diz claramente que exclui o dolo mas permite a punição por crime culposo no erro sobre descrimi nante dizse que o agente é isento de pena e que não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa ou seja não se afirma ao menos expressamente que o dolo é excluído com a descriminante putativa Justamente por isso a doutrina diverge quanto à exata posição sistemática do erro de que estamos tratando Com efeito Assis Toledo considerao um erro de tipo67 Al cides Munhoz Neto68 um erro de proibição Luiz Flávio Gomes um erro de proibição sui generis 69 É bem verdade que as expressões isentar de pena e excluir o dolo não se equi valem Mas se isso é certo não é menos verdadeiro que ocorrendo erro evitável não haverá isenção de pena exatamente porque o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo art 20 1 º Se assim é força é convir que apesar da expressão isenção de pena o erro vencí vel ao ensejar a punição só a título de culpa implica tacitamente a exclusão do dolo 67 Escreve Assis Toledo textualmente embora a sede das descriminantes putativas seja o l º do art 20 quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que se exis tisse tornaria a sua ação legítima pensamos que tal preceito não é exaustivo não esgota as hipóteses das descriminantes imaginárias Percebese com efeito claramente que esse preceito completado pela parte final do parágrafo não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo aplicase apenas ao erro de tipo permissivo excludente do dolo não ao eno excludente da censura de culpabilidade tanto que se permite a punição a título de culpa stricto sensu esta é aliás a posição da teoria limitada da culpabilidade que adotamos Princípios básicos cit p 272273 No mesmo sentido Damásio de Jesus Direito penal cit p 309 68 Afirma esse autor literalmente no direito brasileiro cabe afirmar que o erro nas descriminan tes putativas é erro de proibição Como o conhecimento da antijuridicidade não integra o dolo mas pertence à culpabilidade seguese que se age na errônea crença de ser legítimo o seu comportamento procede dolosamente A ignorância da antijuridicidade em matéria penal Rio de Janeiro Forense 1 978 p 1 12 69 Eno de tipo e erro de proibição São Paulo Revista dos Tribunais 1992 p 1 44 No mesmo sentido 270 Cezar Bitencourt Manual cit p 392393 o art 20 caput do Código Penal determina expres samente que o erro sobre o tipo exclui o dolo enquanto o seu 1 º que trata do erro que incide sobre os pressupostos fálicos das descriminantes putativas isenta de pena Como se percebe o nosso Código Penal ao regular o erro de tipo permissivo art 20 1 º não estabelece que a sua conseqüência é a exclusão do dolo como faz em relação ao erro do tipo incriminador prevendo simplesmente a isenção de pena E como é sabido de todos no Direito brasileiro excluir o dolo e isentar de pena não significam a mesma coisa Na realidade não seria exagero afirmar que o erro de tipo permissivo constitui uma terceira espécie de eno Seria um misto de erro de tipo e de etTO de proibição indireto Em síntese tratase de um erro sui generis que estruturalmente se parece mais com o erro de tipo do que com o erro de proibição mas que também se assemelha com o erro de proibição porque a causa de justificação exclui a antijurídicidade sua conseqüência e não a tipicidade do fato l ü6 I TEORIA DO DOLO pois do contrário o legislador teria de dispor semelhantemente ao erro de proibição quando consignou que se evitável o erro poderá diminuíla a pena de um sexto a um terço Parece enfim que segundo o Código se o erro evitável permite a punição por crime culposo está implícito que as descriminantes putativas excluem o dolo subsis tindo a culpa quando se tratar de erro evitável se inevitável excluemse o dolo e a culpa Por conseguinte em face da disciplina do Código o erro inevitável sobre causas de justificação importa na exclusão da tipicidade à semelhança do que se passa com o erro de tipo inevitável e não exclusão da ilicitude ou culpabilidade Semelhante interpretação está aliás conforme a teoria dos elementos negativos do tipo pois como diz Luzón Pefia se as causas de justificação são elementos negati vos do tipo porque tal como os elementos positivos são pressupostos negativos da proibição a crença errônea de que concorrem em dada situação os pressupostos de uma causa de justificação constitui um erro de tipo com todas as suas consequências70 12 UNIFICAÇÃO DOS ERROS Como vimos a doutrina distingue com base no Código arts 20 e 21 erro de tipo de erro de proibição pressupondo uma outra distinção entre representação do fato e representação da ilicitude do fato No primeiro caso há erro de tipo v g portar droga ilícita supondo substância inócua no segundo existe erro de proibição v g portar droga ilícita supondo droga lícita No erro de tipo diz a doutrina o autor não sabe o que faz e se soubesse não o faria Já no erro de proibição o agente sabe o que faz mas acredita que aquilo que faz é lícito Tratase de distinção que remonta ao direito romano que diferenciava erro de fato e erro de direito o que não quer dizer porém que o atual erro de tipo coincida preci samente com o errar facti e que o erro de proibição corresponda ao errar iuris Temos que tais erros deveriam ter o mesmo tratamento jurídicopenal por diver sas razões Em primeiro lugar porque todo erro de tipo implica um erro de proibição pois quem não tem a exata representação do fato tampouco terá ideia da dimensão jurídico penal que recai sobre esse fato No exemplo citado o agente ao supor que trazia subs tância inócua julgava exercer um direito inerente à propriedade ou à posse legitimas O inverso é igualmente verdadeiro todo erro de proibição é um erro de tipo visto que errar sobre a ilicitude do fato é enganarse sobre a proibição contida no tipo legal de crime já que este encerra logicamente proibições de não matar de não furtar etc Assim realizar os elementos do tipo significa saber e querer praticar um fato proibido pelo direito uma vez que do contrário não haveria dolo dalus malus Sim porque 70 Curso cit p 473 271 PAULO ÜJEIROZ conhecer e realizar o tipo é conhecer e realizar consciente e voluntariamente a proibi ção que ele contém É que os tipos penais não descrevem acontecimentos físicos mas proibições de condutas humanas que remetem a elementos inevitavelmente valorativos afinal não existem fatos puros nem fatos simples só existem interpretações e isso não é mera interpretação que possa ser apagada como retorno científico aos fatos um exame de sangue não é o sangue Flávio Kothe Notese que o conhecimento ou desconhecimento do fato só assume relevância jurídicopenal quando associado a um determinado tipo legal de crime Justamente por isso não existe um dolo simplesmente mas dolo de cometer um crime específico Consequentemente quer se trate de erro de tipo quer de erro de proibição inven cíveis o autor não sabe o que faz porque desconhece o significado jurídicopenal do seu ato Em segundo lugar porque segundo vimos há tipos em que esta pressuposta dis tinção entre representação do fato e representação da ilicitude do fato é impossível em virtude de a norma penal incriminadora remeter explicitamente aos chamados elementos normativos Soler tinha razão portanto quando argumentava que diferença essencial existe entre um sujeito que entra ilicitamente em um escritório porque crê que é um lugar público pretendido erro de fato e aquele que o faz porque acredita que os escritórios não são domicílio no sentido da lei pretendido erro de direito Em realidade as duas possibilidades são erros de direito e isso não devemos estranhar porque efetivamente como o disse Finger o direito ao se referir aos fatos transformaos em conceitos ju rídicos Eu posso ter cocaína sem autorização seja porque ignoro que seja necessária seja porque desconheça que a substância é cocaína Em ambos os casos ignoro que a substância que tenho está juridicamente considerada e submetida a determinada regu lamentação71 Enfim todo erro de tipo é um erro de proibição e viceversa porque o tipo con tém expressa ou tacitamente a matéria objeto da proibição jurídicopenal E também porque de acordo com a mencionada teoria dos elementos negativos do tipo todo fato típico é necessariamente um fato ilícito embora nem todo fato ilícito seja típico Aliás a polêmica a respeito da natureza jurídica das descriminantes putativas é consequência direta da imprecisão dos conceitos hoje utilizados pela doutrina sobre erro de tipo e erro de proibição pois em verdade o erro sobre causas de justificação pode ser considerado em face dessa inexatidão tanto um quanto outro Erro de proi bição porque quando o sujeito atua v g em legítima defesa putativa toma segundo sua representação como lícita uma ação ilícita é dizer supõe agir legitimamente E 7 1 Sebastián Soler Derecho Penal Argentino v 2 Tipografia Editora Argentina Buenos Aires 1 989 p 1 02 272 I 061 TEORIA DO DOLO também um erro de tipo porque dentre outras razões assim o Código tratou o assun to segundo pensamos Além disso é comum a todas essas possibilidades de erro a suposição pelo agen te de atuar conforme o direito Nos exemplos inicialmente citados tanto o agente que não sabe que traz droga quanto o que supõe que se trata de droga legal acreditam agir segundo a lei legitimamente Exatamente por isso se entendermos o dolo como com preensivo da consciência da ilicitude isto é compreensivo do conhecimento de agir contrariamente ao direito dolus malus conforme entendia a doutrina causalista não existirá dolo em nenhum dos casos Releva notar ainda que o erro de tipo e o erro de proibição inevitáveis produzem a mesma consequência prática uma sentença penal absolutória E mais do ponto de vista sistemático implicam igualmente a exclusão da criminalidade do comportamen to apesar de segundo a doutrina adotada pelo Código o erro de tipo excluir o dolo e pois a tipicidade e o erro de proibição isentar o réu de pena e portanto afastar a culpabilidade E como dizia M E Mayer o que de fato importa não é o conteúdo do erro mas a sua consequência a impossibilidade da consciência de violação de um dever72 Quanto ao erro de tipo e de proibição evitáveis cumpre também equiparálos a fim de que o agente responda em ambos os casos por crime culposo quando punível a esse título inclusive porque o grau de reprovabilidade da conduta é o mesmo Com efeito a censurabilidade por exemplo do agente que mantém relações sexuais com uma menor de 14 anos ignorando essa circunstância erro de tipo não é essencial mente diversa daquele que embora sabendo que se trata de vulnerável acredita que sua conduta é legítima em razão do consentimento espontâneo da vítima erro de proibição Em suma erro de tipo erro de tipo permissivo e erro sobre a ilicitude do fato como possíveis erros penalmente relevantes de interpretação são em última análise variações do erro sobre o próprio tipo e a proibição que ele encerra razão pela qual cumpre superar a distinção legal e tratálos unitariamente Afinal não existe razão política ou dogmática relevantes a justificar tamanha dis paridade de tratamento Cabe frisar por fim que a proposta de unificação dos erros não é nova visto que parte importante da doutrina clássica já o postulava relativamente ao erro de fato e o erro de direito Nesse sentido K Binding M E Mayer Finger Asúa73 Soler etc De 72 Apud Sebastián Soler cit p 1 O 1 73 Luis Jiménez de Asúa que refere vários autores no mesmo sentido escreveu que se trata de uma distinção carente de todo valor científico para nós que postulamos a equivalência entre o error facti e o error iurisReflexiones sobre el error de derecho en materia penal Buenos Aires Libreria EI Ateneo Editorial 1 942 p2 1 273 PAULO QJ E I ROZ modo semelhante Shünemann informa que a ideia de equiparar tais erros quanto aos seus efeitos é amplamente difundida na Alemanha74 No Brasil José Cirilo de Vargas foi um dos primeiros a defender a unificação dos erros por considerar com razão que do ponto de vista científico nenhuma diferença existe entre o erro de tipo e o de proibição75 Também Paulo Busato tem que padece de artificialismo a diferenciação entre erro de tipo e erro de proibição razão pela qual propõe unificálos76 13 ERRO PROVOCADO POR TERCEIRO Dispõe o art 20 2º do Código que responde pelo crime o terceiro que deter mina o erro Ao adotar tal dispositivo o legislador pretende responder a situações em que o agente é induzido por outrem a praticar um crime dolosa ou culposamente Exemplo A entrega um revólver a B que supondoo descarregado aponta em direção a C acionando o gatilho e causandolhe a morte Distinguese provocação dolosa e culposa Se A tinha a intenção de matar C indu zindo B a erro responderá por homicídio doloso autoria mediata Caso contrário isto é se agiu com imprudência apenas A responderá por homicídio culposo ou não res ponderá por crime algum se a conduta não lhe for imputável sequer a título de culpa Por sua vez B responderá em ambos os casos por crime culposo se ficar provado que atuou com imprudência Naturalmente que se na mesma hipótese B tiver percebido que se tratava de arma de fogo carregada disparando ainda assim já não incidirá a norma em questão simplesmente porque erro provocado não houve E não existindo erro provocado B responderá por crime doloso ou culposo conforme o caso Finalmente se A e B agirem com dolo o caso será de coautoria em crime doloso não havendo cogitar de erro algum 74 Afirma o citado autor E finalmente considero recomendável sem que aqui possa estenderme mais a respeito de acordo com uma concepção hoje como ontem amplamente difundida na Alemanha que o legislador equipare erro de proibição e elTo de tipo e trate ambos os enos de acordo com o disposto na p 1 6 no âmbito do Direito penal especial La función in Fundamentos cit p 238 Sobre o assunto já se pronunciara Everardo Luna Uma vez que os fatos e valores são incindíveis porque gravitam dentro da realidade jurídica que é a um tempo direito e realidade concluise que a distinção entre elTo de fato e eno de direito não era uma distinção substancial existindo apenas para o atendimento de certas finalidades práticas E afirmouse que assim como em todos os enos de fato está ínsito um elTo de direito assim também em todos os enos de direito inserese inapelavel mente um elTo de fato Desse modo o clássico exemplo de Finger que via elTo de direito tanto no fato de conduzir cocaína sem autorização quanto no fato de conduzila sem conhecêla Sucede porém que mesmo considerandose que a distinção entre elTo de fato e eno de direito não ataca subs tancialmente a realidade mesmo assim é inegável a dificuldade para unificar o eno e tratálo com a obediência que a justiça material exige Direito penal São Paulo Saraiva 1985 p 245256 75 Instituições de direito penal Parte geral Tomo I Belo Horizonte Livraria Dei Rey editora 1997 76 Direito penal São Paulo Atlas 20 13 p635 e ss 274 I 061 TEORIA DO DOLO 14 ERRO SOBRE A PESSOA ERROR IN PERSONA E ABERRATIO ICTUS Dáse o erro sobre a pessoa errar in persona em sentido estrito sempre que o agente se equivoca quanto à identidade de sua vítima e por isso ofende pessoa diversa v g gêmeo e há aberratio ictus quando fora do caso anterior o agente erra na exe cução do delito e acaba por atingir pessoa diversa alguém que está próximo da vítima Apesar de distintos não são incompatíveis razão pela qual nada impede que as duas formas de erro possam acontecer simultânea ou sucessivamente O Código dálhes em princípio idêntico tratamento legal Com efeito o agente pode pretender praticar um crime contra alguém e atingir ou trem por erro caso em que segundo o Código responderá como se tivesse atingido a vítima virtual e não a real Assim se querendo matar o próprio pai mata um estranho responde como se matasse o pai razão pela qual incidirá a agravante do art 61 II e do CP crime contra ascendente se ao contrário querendo ofender um estranho fere o próprio pai responde como se ferisse aquele não se aplicando a citada agravante É que de acordo com a teoria da equivalência adotada pelo Código não se con sideram as condições ou qualidades da vítima senão as da pessoa contra quem o agen te queria praticar o crime CP art 20 3º A solução seria diferente se o Código tivesse adotado a teoria da concretização hipótese em que o agente responderia pelo que de fato aconteceu se querendo matar o pai matou um estranho responderia por matar um estranho O erro sobre a pessoa tanto pode resultar de erro de representação ou errar in persona v g matar gêmeo como de erro na execução do crime ou aberratio ictus v g A atira contra B vindo porém a matar C que estava próximo A distinção entre o erro sobre a pessoa e a aberratio reside em que no primeiro o agente erra subjetiva mente tomando uma pessoa por outra no segundo tal não ocorre mas o agente erra na execução do delito atingindo pessoa diversa errase objetivamente portanto A aberratio ictus é pois uma espécie do gênero erro sobre a pessoa em sentido amplo Exatamente por isso o tratamento jurídicopenal para ambas as formas de erro é essencialmente o mesmo o autor responde como se tivesse cometido o crime con tra a vítima visada e não a real Consequentemente além de eventuais excludentes de criminalidade e motivações do crime relativamente à vítima visada ao autor do delito serão imputadas todas as qualificadoras causas de aumento de pena ou ate nuantes relativas à vítima que quis atingir virtual770 Código Penal Militar art 37 dispõe inclusive mais claramente que quando o agente por erro de percepção ou no uso dos meios de execução ou outro acidente atinge uma pessoa em vez de outra 77 Cristiano Rodrigues Teorias da culpabilidade e teoria do erro Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p 164 275 PAULO QEIROZ responde como se tivesse praticado o crime contra aquela que realmente pretendia atingir Devem terse em conta não as condições e qualidades da vítima mas as da outra pessoa para configuração qualificação ou exclusão do crime e agravação ou atenuação da pena E mais o tratamento penal dos erros em questão tem também implicações de or dem processual penal a exemplo de firmar a competência da justiça federal se preten dendo atingir funcionário público federal no exercício de suas funções o agente vier a lesionar pessoa comum conforme veremos a seguir Quando houver mais de um resultado lesivo se no exemplo citado A atingisse B e C ainda assim o agente responderá mas já agora em concurso formal por um crime único o crime mais grave mas com pena aumentada de um sexto até a me tade CP art 73 Se no exemplo dado o disparo de A atingisse B e C matando um e ferindo o outro aplicarseia a pena do crime de homicídio o crime mais grave com o referido aumento Mas em caso algum a pena poderá exceder àquela que se ria cabível para o concurso material de crimes quando então as penas são aplicadas cumulativamente78 Se o autor agir com desígnios autônomos isto é se sua intenção for atingir as várias vítimas não haverá erro algum mas concurso formal impróprio motivo pelo qual as penas serão aplicadas cumulativamente CP art 70 aplicandose a regra do concurso material CP art 6979 Não há aberratio ictus tampouco quando o au tor querendo atingir determinada pessoa admite como possível ou provável ofen der pessoa diversa e não obstante segue adiante Neste caso haverá dolo eventual relativamente à pessoa que não se quis atingir diretamente mas que acabou por ser também alvejada Desnecessário dizer que o erro de que estamos tratando é uma espécie de erro contra pessoa humana e não contra coisas ou animais motivo pelo qual se o agente por exemplo pretendendo se defender de ataque de animal fere por erro pessoa hu mana a hipótese será a de aberratio delicti CP art 74 141 Erro sobre a pessoa e processo penal O tratamento penal do erro sobre a pessoa tem também implicações de ordem pro cessual penal a exemplo de firmar a competência da justiça federal CF art 109 IV se por exemplo o agente pretendendo atingir funcionário público federal no exercício de suas funções atinge pessoa diversacomum Ademais há evidente ofensa a interesse da União a atrair a competência federal Existe porém decisão do STJ proferida em conflito de competência em sentido contrário nº 27368SP 78 Fernando Galvão Imputação objetiva Belo Horizonte Ed Mandamentos 2000 p 1 22 79 Fernando Galvão Imputação objetiva cit p 123 276 I 061 TEORIA DO DOLO Também José Osterno de Campos Araújo considera que o tratamento penal confe rido ao erro sobre a pessoa e à aberratio ictus não tem qualquer repercussão no âmbito do processo penal por traduzir um problema específico de aplicação da pena 80 Não estamos de acordo com isso É que o tratamento legal resultante da adoção da teoria da equivalência relativa mente ao erro sobre a pessoa e a aberratio ictus importa em verdade em mudança da própria imputação jurídicopenal repercutindo sobre a estrutura do crime e pois produzindo efeitos para além da individualização da pena Com efeito havendo erro sobre a pessoa em sentido amplo o agente responde penalmente não por ofender quem de fato quis mas por ferir quem pretendeu ferir embora sem sucesso razão pela qual não são consideradas as condições pessoais da vítima real mas da vítima potencial Exatamente por isso o autor poderá nesse contexto alegar eventualmente ex cludentes legais de tipicidade de ilicitude ou de culpabilidade relativamente à vítima potencial O mesmo ocorrerá com a acusação que poderá a partir dessas mesmas cir cunstâncias rechaçar as alegações do réu Assim se A atira contra B mas atinge C por erro na execução poderá suscitar apesar disso legítima defesa contra B vítima potencial e não contra c estranho ao conflito Não se trata portanto de um simples problema de individualização da pena mas de uma típica questão de teoria do delito ligada à estrutura do crime e ao processo de imputação que dela resulta com consequências obviamente também sobre a teoria da pena Além disso não faria sentido algum que o direito penal e o processo penal tratas sem diversamente esse assunto ora afirmando uma coisa ora outra mesmo porque um e outro formam um continuum conforme vimos 142 Crítica da teoria da equivalência CASO A residente no interior da Bahia decidiu em razão dos maustratos so fridos e constantes ameaças de morte matar seu companheiro B Para tanto deulhe uma refeição acondicionada em vasilha plástica composta de farinha e carne sendo que ao preparála adicionou uma colher de chá do veneno conhecido por chumbi nho Posteriormente B encontrou os seus filhos C 7 anos e D 12 anos aos quais entregou a marmita a fim de que a levassem para casa em razão de não haver servi ço naquele dia Ocorreu que os menores antes de chegarem à residência comeram a refeição e em consequência agonizaram até a morte Presa A foi denunciada pelo Ministério Público Estadual pelo crime do art 121 2 III cc os arts 61 IIf e 73 80 Direito penal na literatura Porto Alegre Nuria Fabris editora 201 2 277 PAU LO QJEIROZ todos do Código Penal homicídio doloso consumado qualificado e agravado contra o marido81 Conforme vimos o Código Penal de 1940 consagrou no particular a teoria da equivalência82 segundo a qual é irrelevante que o dolo se concretize em pessoa di versa da pretendida uma vez que sendo tipicamente equivalentes os resultados ma tar o companheiro ou matar os filhos o autor deve responder por crime contra a vítima virtual e não a real83 Com efeito quando por acidente ou erro no uso dos meios de execução o agente em vez de atingir a pessoa que pretendia ofender atin ge pessoa diversa responde como se tivesse praticado o crime contra aquela CP art 73 motivo pelo qual não se consideram nesse caso as condições ou qualida des da vítima senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime art 20 3 De acordo com o Código Penal portanto que se utiliza claramente de uma ficção A responderá por crime de homicídio consumado contra B qualificado e hediondo em razão do emprego de veneno dolosamente ainda que de fato tivesse matado seus pró prios filhos culposamente Mas semelhante tratamento é claramente injusto 8 1 Propondo uma solução idêntica à aqui proposta Eugênio Pacelli de Oliveira Direito Penal Contem porâneo São Paulo Saraiva 20 1 1 82 Essa teoria considera que o dolo só deve abranger o resultado típico quanto aos elementos determi nantes de sua espécie A quis matar uma pessoa B e realmente matou uma pessoa C de sorte que o desvio do curso causal não tem influência no dolo devido à equivalência típica dos objetos havendo assim homicídio consumado Já para a teoria da concreção ou concretização o dolo pressupõe sua concretização num determinado objeto motivo pelo qual se o agente atinge pessoa diversa da preten dida não age com dolo quanto à pessoa realmente atingida Logo se pretendia matar B vem a atingir C responde segundo essa teoria por homicídio tentado contra B e homicídio culposo contra C cf Roxin Derecho penal cit p 492 83 A Exposição de Motivos do Código de 1 940 dispunha que no art 53 é disciplinada a abenatio ictus seu actus que eventualmente pode redundar em concurso de crimes O projeto vê na abenatio uma unidade substancial de crimes ou seja um só crime doloso absorvida por este a tentativa contra a pessoa visada pelo agente ou no caso de ser também atingida a pessoa visada um con curso formal de crimes Na primeira hipótese o eno sobre o objeto material e não sobre o objeto jurídico é acidental e portanto inelevante Na segunda hipótese a solução dada se justifica pela unidade da atividade criminosa Vêse desta maneira que o Código abraçou a orientação dos que entendem que deve ser dado idêntico tratamento penal quer ao enor in persona quer à abenatio ictus A Nova Parte Geral manteve no essencial a disciplina do Código de 40 prevendo apenas que a pena nunca poderá exceder àquela que seria cabível no caso de concurso material Declara expressamente item 57 que a inovação contida no parágrafo único do art 70 visa a tomar ex plícito que a regra do concurso formal não poderá acarretar punição superior à que nas mesmas circunstâncias seria cabível pela aplicação do cúmulo material Impedese assim que na hipótese de abenatio ictus homicídio doloso mais lesões culposas se aplique ao agente pena mais severa em razão do concurso material Quem comete mais de um crime mediante uma única ação não pode sofrer pena mais grave do que a imposta ao agente que reiteradamente com mais de uma ação comete os mesmos crimes 278 1061 TEORIA DO DOLO Em primeiro lugar a teoria da equivalência consagra resquício próprio de um di reito penal do autor84 devendo ser repudiada Sim porque para ela não importa ou só importa secundariamente o fato efetivamente praticado pelo autor mas aquele que pensou em ou pretendeu praticar Não interessa por conseguinte que A tenha matado os próprios filhos que presumese amava mas o companheiro que por certo odiava Numa palavra para a lei não importa que tenha matado os filhos culposamente mas que tenha pretendido matar seu companheiro dolosamente Privilegiase pois uma fic ção em prejuízo da trágica realidade Em segundo lugar tal solução é claramente desproporcional Sim porque não é razoável que alguém que tenha se envolvido em semelhante tragédia que possivelmen te mais necessita do perdão do que do castigo responda por um crime de homicídio doloso consumado e qualificado CP art 121 2º III logo hediondo sujeito a uma pena de doze a trinta anos de reclusão Notese que a solução adotada é bastante gravosa para o agente uma vez que a pena do homicídio consumado é superior inclu sive à pena que resultaria do concurso material da tentativa de homicídio contra B e do homicídio culposo contra os filhos E claro é também pior do que a pena que resultaria do concurso formal de crimes hipótese em que o agente responderia por um só crime o mais grave com pena aumentada É bem verdade que na hipótese de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender o agente responde em concurso formal CP art 73 final com o respectivo aumento de um sexto até metade art 70 e que a pena não poderá exceder à que seria cabível pela regra do concurso material art 70 parágrafo único mas des graçadamente nada disso tem o poder de corrigir a injustiça do tratamento legal dado à aberratio Mais razoável portanto seria que adotada a teoria da concretização ou concre ção A respondesse unicamente pelo que de fato fez e não pelo que pretendeu fazer matar culposamente seus próprios filhos com a possibilidade de concessão do perdão judicial CP art 121 5º inclusive e homicídio tentado contra seu companheiro E aplicada a regra do concurso formal de crimes já que mediante uma única ação foi praticado mais de um delito CP art 70 a autora responderia pelo crime mais grave homicídio doloso tentado contra o marido sendo que a pena aplicável não poderia exceder àquela cabível para o concurso material Finalmente outra deveria ser a disciplina legal a respeito também porque a aber ratio ictus não é uma figura jurídica autônoma mas um caso especial de desvio do curso causal e que por isso há de ser tratada conforme as regras deste 85 Parecenos ainda que apesar da solução consagrada pelo legislador o juiz pode ria adotar o entendimento aqui proposto no sentido de que o agente responda ou por 84 No sentido de que se trata de previsão legal de responsabilidade objetiva Guilherme de Souza Nucci Código Penal comentado cit p 274275 85 Roxin Derecho penal cit p 495 279 PAU LO Qlj E I ROZ um único crime em concurso formal ou até mesmo dois crimes em concurso material homicídio culposo contra os filhos e homicídio doloso tentado contra o companheiro porque ao legislador não é dado transformar em prejuízo do réu em doloso um crime culposo nem em consumado um crime tentado Aliás o próprio Código Penal art 70 parágrafo único ao determinar que a pena do concurso formal não poderá exceder a que seria cabível pela regra do art 69 exige essa leiturainterpretação pois não seria justo nem razoável num tal caso que a autora sofresse castigo superior àquele previsto para o concurso material Com efeito se fosse aplicada a regra do concurso material e fixadas as penas no mínimo legal a autora poderia ser punida em tese por duplo homicídio culposo a pena de 02 dois anos de detenção CP art 121 3º passível de perdão judicial 5º e homicídio doloso tentado contra o marido com a pena de 4 quatro anos de reclusão CP art 121 2º III cc o art 14 parágrafo único com redução de 23 sobre a pena mínima E se aplicada a regra do concurso formal de crimes a autora responderia por um só crime de homicídio doloso tentado contra o marido CP art 70 segundo a teoria da concretização Uma última observação a adoção da teoria da equivalência pode também con duzir a perplexidades Porque se para o direito penal a vítima a ser considerada é a virtual e não a real caberá questionar vindo esta vítima potencial a ser posteriormente morta pelo mesmo agente se haveria ou não crime a punir Pois bem a ser coerente com a referida teoria a rigor não haveria crime punível mesmo porque do contrário ocorreria bis in idem isto é dupla punição do autor pelo mesmo fato razão pela qual para resolver esse dilema teríamos de abandonar a teoria da equivalência e adotar a teoria da concretização já agora em prejuízo do réu Outro problema diz respeito à possibilidade de a vítima virtual já se encontrar morta quando do crime Imaginese que A que acabara de ter um filho que morre logo a seguir sob influência do estado puerperal vai ao berçário e mata criança diversa por erro Neste caso em tese seria possível invocar até o instituto do crime impossível de infanticídio 86 15 RESULTADO DIVERSO DO PRETENDIDO ABERRATIO DELICT O Código prevê que quando por acidente ou erro na execução do crime sobre vém resultado diverso do pretendido o agente responde por culpa art 74 Exemplo quis quebrar a vitrine da loja vindo a produzir porém exclusivamente lesões no bal conista Nesse caso o autor responde por culpa se punível a título de culpa isto é por lesões contra o balconista Na hipótese de além de lesionar o balconista quebrar 86 Vide Cristiano Rodrigues Teorias da culpabilidade e teoria do erro Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 280 I 061 TEORIA DO DOLO também a vitrine haverá concurso formal de crimes art 70 impondose em conse quência a pena do crime mais grave com o aumento decorrente do concurso A redação defeituosa do dispositivo pode conduzir todavia a soluções absurdas porque conforme o exemplo dado inicialmente se ocorresse o contrário o agente ati rasse contra o balconista com a intenção de matar e acertasse a vitrine ficaria em tese isento de pena visto que lhe seria imputado resultado diverso do pretendido a título culposo isto é dano que sequer constitui crime o dano só é punível a título do loso Para evitálo é preciso interpretar o dispositivo de forma sistemática Efetivamente como lembra Fernando Galvão muito mais precisa era a redação do art 22 lº do Código Penal de 1969 ao dispor que se por erro ou outro acidente na execução é atingido bem jurídico diverso do visado pelo agente responde este por dolo se assumiu o risco de causar este resultado ou por culpa se o previu ou podia prever e o fato é punível como crime culposo87 Parecenos porém que semelhante previsão legal era absolutamente desnecessá ria em virtude do tratamento legal relativo ao dolo e à culpa 87 Teoria da imputação cit p 1 30 281 1 071 TEORIA DO CRIME CULPOSO Sumário 1 Introdução 2 Excepcionalidade do crime culposo 3 Conceito de culpa requisitos 4 Princípio da confiança 5 Estrutura do crime culposo 5 1 Estrntura do crime culposo excludentes de ilicitude e culpabilidade 6 Espécies culpa consciente e culpa inconsciente 7 Imprudência negligência e imperícia 8 Auto e heterocolocação em pengo 1 INTRODUÇÃ01 À semelhança dos dolosos também os tipos culposos podem lesionar bens jurídi cos a justificar a intervenção penal justificação que cresce de importância à medida que o avanço tecnológico parece aumentar2os riscos a que nos sujeitamos diariamen te sociedade de risco conforme a expressão de Ulrich Beck3 Do ponto de vista do resultado tais delitos não diferem inclusive dos dolosos porque v g tanto quanto o doloso o homicídio culposo produz a morte de alguém A distinção reside pois no desvalor da ação que é maior nos crimes dolosos Apesar disso nem todos os tipos penais admitem a punição a título de culpa pois só em caráter de exceção condutas culposas são penalmente relevantes E isso por duas razões básicas ou porque a natureza do crime é incompatível com a culpa pare cem inimagináveis roubo ou extorsão mediante sequestro culposos ou porque sendo compatível v g o aborto ou o dano culposos tal comportamento carece de dignidade penal em razão do caráter subsidiário do direito penal devendo por isso ser objeto de outras instâncias de controle social Ademais já vimos que a valoração social de uma 1 Para uma análise exaustiva do tema Juarez Tavares Teoria do crime culposo Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 2 Nem todos estão de acordo com a ideia de uma sociedade de risco seja porque riscos sempre existi ram seja porque o avanço tecnológico implicou a redução de riscos nas mais diversas áreas No entan to Beck pretende ressaltar que embora os riscos não sejam uma invenção moderna tínhamos antes riscos pessoais e não situações de ameaça global como as que surgem para toda a humanidade com a fissão nuclear ou com o acúmulo de lixo nuclear A palavra risco escreve Beck tinha no contexto da época um tom de ousadia e aventura e não o da possível autodestruição da vida na Tena Os riscos e ameaças atuais diferenciamse portanto de seus equivalentes medievais com frequência semelhantes por fora fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance ser humano fauna flora Sociedade de Risco p 25 e 26 3 Sociedade de Risco Rumo a uma outra modernidade São Paulo Editora 34 2010 Como escreve Juarez Cirino do ponto de vista de sua frequência real crimes de homicídio e de lesões corporais imprudentes representam a maioria absoluta dos fatos puníveis e do ponto de vista dos bens lesio nados integram a criminalidade mais relevante de modo que se pode dizer que a antiga exceção é atualmente a regra da criminalidade razão pela qual a teoria dos crimes imprudentes se transformou de enteada em filha predileta do trabalho científico do direito penal A moderna teoria cit p 9798 283 PAULO QJEIROZ e outra é diversa razão pela qual os crimes culposos menos reprováveis são punidos mais suavemente4 Os acidentes de trânsito configuram em geral crimes culposos porque no mais das vezes o autor age imprudentemente por mais que sua ação seja temerária e pe rigosa Mas diante da grande ocorrência de mortes no trânsito os tribunais tendem atualmente a tratálos como dolosos dolo eventual sobretudo quando o condutor está embriagado De todo modo cumpre apreciar cada caso judiciosamente sob pena de se criar presunções infundadas de atuação dolosa em ação culposa com violação aos princípios de legalidade e proporcionalidade Afinal e como vimos diferentemente do dolo na culpa consciente o autor nor malmente dirige sua ação no sentido da realização de um fim lícito e age de modo a evitar resultados típicos 2 EXCEPCIONALIDADE DO CRIME CULPOSO Diversamente dos dolosos os delitos culposos só são puníveis quando há previsão legal expressa nesse sentido pois do contrário a imputação somente poderá ocorrer na forma dolosa necessariamente Neste exato sentido dispõe o Código art 18 parágrafo único salvo os casos expressos em lei ninguém pode ser punido por fato previsto como crime senão quando o pratica dolosamente O crime culposo constitui por conseguinte uma forma excepcional de crime por que a punição de alguém a esse título só é admissível quando o tipo penal previr ex plicitamente essa possibilidade vg homicídio motivo pelo qual não existe à falta de previsão legal expressa o crime de infanticídio ou aborto culposos O dolo é pois a regra e a culpa é a exceção Tratandose de tipos preterdolosos que resultam da fusão de dolo e culpa a sua imputação só se dará quando o resultado não querido pelo agente decorrer de impru dência negligência ou imperícia Dizse que os tipos culposos são abertos porque a lei não descreve exatamente em que consiste a ação delituosa recorrendose em geral a fórmulas um tanto vagas como imprudência violação de dever de cuidado etc 3 CONCEITO DE CULPA REQUISITOS O Código art 18 11 define em termos simples o que vem a ser crime culposo ao prescrever que há culpa quando o agente dá causa ao resultado por imprudência negli gência ou imperícia ver item 7 4 Convém notar com Cobo dei Rosal e Vives Antón que toda definição de culpa há de conter uma re ferência ao dolo Certo é que a culpa não representa em face do dolo simplesmente um minus senão um aliud A culpa é distinta do dolo porém a presença do dolo exclui a culpa Derecho penal cit p 570 284 I 071 TEORIA DO CRIME CU LPOSO Parece no entanto que a tendência atual é definilo nos termos da moderna teoria da imputação objetiva para dizerse que o crime culposo requer a realização de um perigo criado pelo autor não coberto pelo risco permitido dentro do alcance do tipo5 Pressuposto da imputação objetiva do tipo culposo é portanto a criação de um risco proibido lesivo de bem jurídico e a realização desse risco no resultado6 Como regra só haverá assim imputação de crime culposo quando o autor violan do um dever de cuidado criar um risco juridicamente proibido7 Assim por exemplo o Código de Trânsito Lei nº 950397 depois de instituir um dever geral de atenção na direção de veículo art 28 em nome da segurança do tráfego e da proteção da integridade física das pessoas estabelece as normas de cuidado a que os condutores de veículos automotores estão submetidos arts 29 a 55 sob pena de com a violação criaremse riscos proibidos e pois passíveis de imputação de crimes culposos tais como circulação pelo lado direito manter determinada distância de segurança lateral e frontal entre veículos prioridade e preferência de passagem ultrapassagem pela es querda respeito à sinalização etc Assim se o condutor do veículo desatender a tais comandos e nessa condição causar lesões responderá como regra por crime culposo uma vez que criou e reali zou risco proibido não permitido A imputação de crime culposo está por conseguin te diretamente ligada à inobservância de norma de cuidado não necessariamente es crita disciplinadora de arte ofício ou profissão Significa dizer que em geral quem respeitando as regras de trânsito vier a causar lesões não responderá penalmente v g atropelar pedestre embora respeitando o limite de velocidade e a sinalização por que estará atuando dentro do risco inerente à circulação de veículos e pois socialmen te tolerado Ao invés responderá por crime culposo quando violando as normas de trânsito produzir danos a terceiro v g ultrapassando o limite de velocidade vier a atropelar pedestre Mas semelhante critério não tem caráter absoluto pois o que é proibido por tais normas constitui apenas indício da natureza não permitida de um risco8 Não fosse assim aliás confundirseiam as instâncias administrativa e penal igualando modos 5 Roxin Funcionalismo cit p 3 1 O 6 Cumpre precisar com Jakobs porém que o risco permitido não limita o conceito de imprudência senão só a relevância jurídica da imprudência Derecho penal cit p 385 7 Para Roxin em realidade por trás da infração do dever de cuidado ocultamse distintos elementos de imputação que caracterizam os pressupostos da imprudência sendo em consequência um conceito vago e prescindível Funcionalismo cit p 1 000 Também Jakobs considera que sobretudo no crime comissivo dizer que o autor deixou de observar o cuidado prescrito é falso do ponto de vista da lógica das normas pois em tais crimes o autor não deve atuar cuidadosamente mas omitir o com portamento descuidado Derecho penal cit p 384 8 Jakobs Derecho penal cit p 249 No mesmo sentido Fábio D Ávila assinala que as regras regu lamentadoras de atividades perigosas propiciam um padrão de análise para circunstâncias ideais não podendo ser admitidas como limites absolutos para toda e qualquer conduta A imensa variedade de circunstâncias concomitantes que podem concorrer para a criação do perigo de lesão ou da própria lesão acarretam necessariamente a admissão de um risco não permitido variável flutuante a ser 285 PAULO QJEIROZ distintos de apuração da responsabilidade penal e não penal Daí dizer Roxin que embora a infração da norma de cuidado seja efetivamente um indício para a consta tação da imprudência tal não impede um exame judicial autônomo do risco criado9 Assim como o só fato de ter habilitação para dirigir veículo não significa necessaria mente que o condutor seja realmente hábil tampouco a circunstância de não dispor dela significa que seja sempre inábil ou inexperiente Assim excepcionalmente o resultado poderá ser imputado ao autor a título de cul pa não obstante observe as normas de trânsito uma vez que a culpa ou mesmo o dolo eventual deve ser apurada em concreto v g condutor que embora dentro do limite de velocidade podendo diminuíla ou mesmo parar o veículo atropela uma criança que avança o sinal vermelho não bastando critérios exclusivamente abstratos para a verificação da imprudência A recíproca é também verdadeira o resultado poderá não ser imputável embora haja violação de norma de cuidado v g se se provar que mesmo que respeitasse o limite de velocidade o agente teria atropelado a vítima que avançou contra o veículo pois não se pode pretender absolutizar o que é relativo por natureza isto é as regras de cuidado as quais têm caráter instrumental uma vez que visam a preservar a segurança do tráfego e a integridade física das pessoas em condi ções normais E tanto a observância quanto a inobservância das regras técnicas podem ser in concreto comprovadamente irrelevantes para a realização do evento10 O deci sivo é apurar concretamente se houve criação de risco não permitido e se o resultado decorreu desse risco proibido Pode acontecer por conseguinte de apesar da criação de risco proibido não ocor rer a realização desse risco no resultado É que a imputação do crime culposo pres supõe que o resultado se apresente como realização justamente do risco que o autor criou razão pela qual haverá exclusão da imputação quando mesmo tendo o autor avaliado em face das peculiaridades do caso concreto Crime culposo e a teoria da imputação obje tiva São Paulo Revista dos Tribunais 2001 p 5 1 9 Derecho penal cit p 1 003 1 0 O mesmo exclusão da imputação pela não realização do risco proibido ocorre no exemplo citado por Roxin do gerente da fábrica de pincéis que entrega aos trabalhadores pelos de cabras chinesas sem tomar as devidas medidas de desinfecção Quatro trabalhadores são infectados pelo bacilo an trácico e falecem Uma investigação posterior conclui que os meios de desinfecção prescritos seriam ineficazes contra o bacilo até então desconhecido na Europa Entende então Roxin que o autor ao deixar de proceder à desinfecção criou um grande perigo segundo um juízo ex ante perigo esse que como pôde verificarse posteriormente não se realizou Se lhe imputássemos ainda assim o re sultado ele estaria sendo punido pela violação de um dever cujo cumprimento seria inútil Isso viola o princípio da igualdade pois o curso causal corresponde exatamente àquilo que ocorreria se o autor se mantivesse dentro dos limites do risco permitido não se justificando um tratamento diverso Se o fabricante tivesse dolo de homicídio ele poderia ser punido unicamente por tentativa Na hipótese mais frequente de simples culpa ele estaria isento de pena Funcionalismo cit p 332 Referin dose a esse exemplo Fernando Galvão escreve que nos termos da legislação brasileira a omissão não é considerada causa do resultado pois este não seria evitado com a desinfecção Contudo o fornecimento do pelo de cabra caracteriza crime comissivo o que significaria homicídio consumado Imputação objetiva cit p 65 286 I071 TEORIA DO CRIME CULPOSO criado um risco para o bem jurídico protegido o resultado não for consequência desse perigo mas fruto do acaso11 4 PRINCÍPIO DA CONFIANÇA Como o dever de cuidado e pois de não criar riscos proibidos é comum a todos indistintamente seguese que para a apuração da culpa é preciso considerar sobretu do no trânsito o comportamento dos demais sujeitos a vítima especialmente porque também lhes compete agir prudentemente O princípio da confiança constitui assim um elemento de apuração da respon sabilidade penal por crime culposo Em sua forma mais geral afirmase que quem se comporta devidamente pode confiar em que outros também o façam sempre e quando não existam indícios concretos para supor o contrário12 ou seja não se poderá dizer imprudente o autor de uma lesão quando tal resultar de uma quebra da relação de con fiança por parte da vítima Assim por exemplo se o condutor de veículo respeitando o limite de velocidade permitida vier a atropelar pedestre que ignorando o sinal vermelho surpreendente mente avança no sentido de atravessar a rua não responde em princípio por lesão culposa uma vez que tinha razões para confiar que a vítima atendesse à sinalização Naturalmente que sempre que houver motivo não para confiar mas para desconfiar v g crianças idosos etc o princípio não incide Em suma do ponto de vista penal relevante é só a previsibilidade e pois a evi tabilidade daquele risco que ultrapassa o risco permitido e que é assim objetivamente imputável13 5 ESTRUTURA DO CRIME CULPOSO A doutrina majoritária considera que o crime culposo constitui infração de um de ver objetivo de cuidado de sorte que para a verificação da tipicidade penal basta que se constate a violação de um cuidado genérico exigível de qualquer pessoa homo medius em dada situação como no caso de crime de trânsito ter habilitação para dirigir atender às regras de trânsito etc não importando para tanto as condições in dividuais concretas do autor do fato v g idade experiência aptidão que constituem uma questão de culpabilidade Nesse sentido Cezar Bitencourt afirma que culpa é a inobservância do dever ob jetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido objetivamente previsível motivo pelo qual no plano da tipicidade tratase apenas de analisar se o agente agiu com o cuidado necessário e normalmente exigível de 1 1 Roxin Funcionalismo cit p 327 12 Roxin Derecho penal cit p 1 004 1 3 Jakobs Derecho penal cit p 385 287 PAULO QiEIROZ modo que a indagação sobre se o agente tinha as condições isto é se podia no caso concreto ter adotado as cautelas devidas somente deverá ser analisada no plano da culpabilidade14 De acordo com esse ponto de vista sempre que o autor tiver atuado dentro do que se pode normalmente exigir de alguém em tais condições ficará excluída a tipicidade da conduta uma vez que não violou o dever objetivo de cuidado ainda que pudesse segundo as suas condições pessoais especiais acima do padrão médio evitar o re sultado v g piloto de Fórmula 1 Se ao contrário tiver violado o dever objetivo de cuidado abaixo do padrão médio motorista de idade avançada p ex poderá no máximo ser exculpado se provar que em razão de suas condições pessoais idade experiência aptidão etc não lhe era possível atuação diversa Não estamos de acordo com isso15 Em primeiro lugar porque como assinala Jakobs a ideia mesma de previsibili dade objetiva ou dever objetivo de cuidado além de ser incompatível com o con ceito individual de ação não desempenha nenhuma função que já não desempenhe a de risco permitido sendo por isso tão supérflua quanto seria a ideia de um dolo objetivo16 de modo que a tipicidade nos crimes culposos deve ser analisada sim subjetiva e concretamente não tendo qualquer importância a vaga ideia de um homo medius17 Aliás seguindo o que dispõe o nosso Código Penal outra não pode ser a posição a adotar pois só em face das condições pessoais concretas do agente é que se poderá dizer que se está diante de alguém imprudente negligente ou imperito não sendo possível tal julgamento senão em face de alguém concretamente considerado Dito mais claramente se A atropela alguém matandoo só será possível concluir pela existência de um crime culposo sopesando dentre outras variáveis as circunstâncias em que A dirigia a velocidade que imprimia as condições da estrada a experiência e a aptidão do condutor o comportamento da vítima etc Não havendo assim um dever puramente objetivo de cuidado a apuração da culpa deverá ser feita conforme a capacidade do autor in concreto Daí não se compreender por exemplo por que razão um cirurgião com especiais capacidades estaria obrigado a 14 Manual cit p 259260 15 Defendendo uma posição conciliadora Roxin entende que se deve levar em conta a capacidade indi vidual do agente apenas na hipótese de ser superior ao padrão objetivo sendo inferior mantémse o padrão objetivo ficando a análise no âmbito da culpabilidade Aduz textualmente o citado autor que a impossibilidade individual de atuar de outro modo é ao menos nos crimes comissivos sempre um problema de culpabilidade enquanto a imputação do tipo objetivo se vincula a baremos da cria ção do perigo e ao fim de proteção que são independentes da individualidade do sujeito Se se fizer depender a realização do tipo de baremos individualizadores então se anulará em parte a separação entre injusto e culpabilidade Derecho penal cit p 1 0 1 5 16 Derecho penal cit p 386388 17 Criticamente Fábio D Ávila Crime culposo p 92 e s 288 utilizar em uma operação arriscada unicamente aquelas técnicas que constituem um standard mínimo de todos que exercem a cirurgia Em segundo lugar como assinala Stratenwerth ao se considerar que a evitabilidade individual do agente é um problema de culpabilidade e não de tipicidade resulta necessário contemplar os pressupostos da culpabilidade com as exigências subjetivas da lesão do dever de cuidado apesar de não afetarem diretamente a liberdade de determinarse segundo o dever jurídico o que ocasiona clara ruptura da unidade sistemática dos requisitos da culpabilidade No entanto se a possibilidade individual de ação ao contrário é analisada já na tipicidade não haverá em relação à culpabilidade diferença estrutural alguma entre os crimes culposos e dolosos já que em ambos se requererá imputabilidade conhecimento potencial da proibição e exigibilidade 51 Estrutura do crime culposo excluentes de ilicitude e culpabilidade O essencial dos crimes culposos resolvese portanto no plano da tipicidade quanto então serão analisados os critérios de imputação da ação típica culposa Se o agente tiver criado concretamente um risco proibido e realizado esse risco no resultado dirseá típica a ação imprudente Já no plano da ilicitude cumpre analisar a possível ocorrência de causas de justificação que em princípio são as mesmas dos crimes dolosos Haverá legítima defesa em delito culposo portanto sempre que o agente repelir injusta agressão atual ou iminente a direito seu ou de outrem por meio de uma ação culposa Assim por exemplo age em legítima defesa quem dispara um tiro de advertência contra o seu agressor atingindoo porém por falta de atenção se dada a situação fática o disparo com esse fim esteja também justificado igualmente atua em estado de necessidade o médico que para prestar socorro a um paciente imprime velocidade excessiva ao veículo vindo a atropelar alguém causandolhe lesões O mesmo vale para a culpabilidade quando deverão concorrer a imputabilidade a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa Quanto ao erro de proibição Fábio DÁvila entende com razão que só é possível na hipótese de culpa consciente ou seja quando o autor acreditar ser lícita a sua ação descuidada em virtude de circunstâncias especiais não cabendo portanto sua arguição no caso de culpa inconsciente uma vez que se o agente não tem consciência do caráter ilícito da ação tampouco terá consciência da ilicitude de seu ato de modo que sempre que houver culpa inconsciente haverá também ignorância quanto a ilicitude ou ilicitude PAULO QV E I ROZ da conduta 22 Se por exemplo o condutor de veículo em razão da precariedade da sinalização supõe fundadamente dirigir pela preferencial estando em realidade a trafegar pela contramão causando lesões a terceiros não será o caso de invocar erro de proibição mas erro de tipo Afinal no erro de proibição o agente sabe exatamente o que faz mas supõe lícito um comportamento ilícito ao passo que no erro de tipo temse uma falsa representação da realidade isto é o autor não sabe o que faz como no exemplo citado Em suma haverá uma conduta ilícita e culpável sempre que não concorrerem cau sas de justificação ou de exculpação em favor do autor imprudente 6 ESPÉCIES CULPA CONSCIENTE E CULPA INCONSCIENTE A doutrina distingue culpa consciente culpa com previsão de culpa inconscien te culpa sem previsão Na primeira o autor cria conscientemente risco juridica mente desaprovado acreditando porém que tal não causará lesão a bem jurídico ou seja o agente prevê a realização de um tipo mas confia em sua não realização 23 Na segunda ao contrário o agente não prevê embora lhe fosse concretamente pre visível a realização do tipo24 A distinção reside então nisto na culpa consciente há previsão do resultado na inconsciente imprevisão do resultado Mas em ambos os casos o autor não quer direta ou eventualmente o resultado pois do contrário haveria dolo direto ou eventual Se por exemplo durante uma caçada o agente em bora percebendo que atirando na caça poderá também acertar o companheiro mas 22 Crime culposo cit p 1 3 1 23 Como assinala Jescheck na culpa inconsciente o autor embora infrinja dever de cuidado não pensa na possibilidade da realização do tipo legal por sua parte enquanto na culpa consciente percebe a pre sença do perigo concreto para o objeto protegido da ação porém por infravaloração do grau daquele pela sobrevaloração de suas forças ou por simples confiança na sua sorte confia indevidamente em que não se realizará o tipo legal Tratado cit p 5 1 6 Para Juarez Tavares há culpa consciente não apenas quando o agente prevê o resultado e espera que ele não ocorra mas sobretudo e basicamente quando o agente está ciente de que com sua atividade lesa um dever de cuidado E há culpa incons ciente quando o agente não pensa poder realizar o tipo mediante a lesão ao dever de cuidado pois isto lhe é desconhecido concretamente apesar de conhecível A característica básica dessa forma de culpa reside exatamente no fato de que o agente atua sem saber que sua atividade desatente ao cuidado obje tivamente necessário a evitar o perigo ou a lesão de perigo ao bem jurídico Teoria do Crime Culposo Lumen Juris Rio 2009 p 4 1 641 7 24 Para Tavares no entanto há culpa consciente negligência consciente não só quando o agente prevê o resultado e espera que não ocorra mas sobretudo quando o agente está ciente isto é sabe que com sua atividade lesa ou está lesando um dever de cuidado de modo que a previsão do resul tado por si só não basta para dizerse consciente a culpa motivo pelo qual a denominação culpa com previsão é imprópria Já na culpa inconsciente negligência inconsciente o agente não pensa poder realizar o tipo mediante a lesão ao dever de cuidado pois isso lhe é desconhecido concre tamente apesar de conhecível de modo que a característica básica dessa forma de culpa reside exatamente no fato de que atua o agente sem saber que sua atividade desatende ao cuidado objeti vamente necessário a evitar o perigo ou lesão ao bem jurídico Direito penal da negligência cit p 1 72 290 J ü7 1 TEORIA DO CRIME CULPOSO acreditando em sua pontaria atira contra o animal atingindo seu parceiro haverá culpa consciente25 Normalmente há culpa consciente por parte de profissionais artistas etc que pra ticam no exercício de suas atividades ações especialmente perigosas advertidos dos resultados lesivos que podem causar médicos dublês mágicos etc O tratamento legal nos dois casos é o mesmo o autor responderá por crime cul poso O Código Penal português art 15 prevê ambas as formas de culpa expressamen te ao dispor que age com negligência quem por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz arepresentar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização ou b Não chegar sequer a representar a possibilidade de realiza ção do facto No item a há culpa consciente no item b culpa inconsciente Finalmente a doutrina fala de culpa imprópria que é aquela resultante do erro evitável sobre causa de justificação quando afastado do dolo o agente responde por crime culposo se previsto em lei CP art 20 1 º Quanto à distinção entre culpa consciente e dolo eventual vide capítulo sobre dolo 7 IMPRUDÊNCIA NEGLIGÊNCIA E IMPERÍCIA Como vimos segundo o Código art 18 II há crime culposo quando o agente dá causa ao resultado mediante imprudência negligência ou imperícia Imprudência negligência e imperícia são por conseguinte modalidades de culpa em sentido estrito Em verdade o substantivo imprudência é de tal modo amplo que abrange tanto a negligência quanto a imperícia26 Não por acaso a doutrina estrangeira em especial a espanhola27 prefere chamar o crime culposo de crime imprudente e a culpa de imprudência Imprudência porém tomada em sentido estrito significa a prática de uma ação arriscada ou perigosa tendo caráter eminentemente comissivo ativo como por exemplo dirigir em alta velocidade embriagado trafegar na contra mão etc 25 Exemplo de Damásio de Jesus Direito penal cit p 295 26 Pensa o mesmo Basileu Garcia quanto ao termo negligência a rigor a palavra negligência seria suficiente para ministrar todo o substrato da culpa Mas costumase aludir também à imprudência e à imperícia Essas duas ideias poderiam caber dentro da negligência O médico que se revela imperito em uma intervenção cirúrgica e mata o seu cliente não deixa de ser negligente no sentido de que ou não tomou as cautelas necessárias ou sabendose inábil se abalançou a uma tarefa superior à sua aptidão Instituições cit v 1 p 287 27 Mir Puig por exemplo afirma que o termo imprudência equivale ao de culpa e o imprudente ao de culposo Embora todos eles sejam amplamente utilizados na doutrina a palavra imprudência tem vantagens como a de resultar mais facilmente compreensível ao profano e a de facilitar a distinção quanto ao termo culpabilidade de uso muito distinto Por isso propus substituir o adjetivo culpo sas que utilizava o Projeto de CP de 1 980 e que introduz a reforma de 1983 no art 1 º do anterior CP pelo atual imprudentes Derecho penal cit p 269 291 PAULO QJEIROZ Já a negligência supõe uma atuação passiva isto é desleixo falta de precaução como trafegar com veículo com pneus excessivamente desgastados etc Finalmente a imperícia que é em última análise uma forma especial de impru dência ou negligência é a inobservância por despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos técnicos das cautelas específicas no exercício de uma arte ofício ou profissão 28 8 AUTOCOLOCAÇÃO EM PERIGO Em princípio não há crime culposo se o indivíduo conscientemente se puser em situação de perigo autocolocação em perigo vindo a sofrer lesões pois do contrário o autor responderia em última análise por ato de exclusiva responsabilidade da própria vítima sobretudo naqueles casos em que sequer se deu conta do perigo criado Assim por exemplo não responderá penalmente o maquinistamotorista tremônibus quanto às lesões sofridas por pessoa que embora advertida insiste em viajar por sobre o teto do veículo fazendo surf ferroviáriorodoviário Naturalmente que se nesses mesmos casos o agora irritado maquinistamotoris ta querendo se vingar freia bruscamente o veículo ou o acelera consideravelmente deverá responder penalmente a título de dolo inclusive ainda que eventual Outro exemplo dessa autocolocação em perigo apta a afastar a culpa é o caso de ciclistas que tomam carona no fundo da carroceria de caminhões enquanto estes estão impri mindo normalmente em subidas baixa velocidade Mas também aqui o caminhoneiro responderá penalmente a título de dolo ou de culpa conforme o caso sempre que querendo dar uma lição frear bruscamente ou praticar ação capaz de desequilibrar o ciclista e lesionálo Nesse sentido a jurisprudência alemã apreciando caso em que o autor fez a en trega de heroína à vítima para consumo a qual veio a falecer após injetar a droga decidiu que autocolocações em perigo realizadas e queridas de modo responsável não se enquadram no tipo do delito de lesões corporais ou homicídio ainda que o risco que conscientemente se corre realizese em um resultado Aquele que provoca possibilita ou facilita uma tal autocolocação em perigo não é punível pelo delito de lesões corpo rais ou homicídio29 Descaberá também a imputação do resultado sempre que a vítima de uma lesão recusar a ajuda ainda possível na plena consciência do risco Assim por exemplo se A fere B em acidente de trânsito e B falece por se opor à transfusão de sangue por motivos religiosos não se deve punir A por homicídio culposo mas unicamente por lesões corporais já que B se expôs por decisão própria à certeza ou ao grande perigo de morte30 28 Hungria Comentários cit p 203204 29 Apud Roxin Funcionalismo cit p 3578 30 Roxin idem p 365 292 IOI TEORIA DO CRIME CULPOSO Por último há heterocolocação em risco quando é a vítima que move o autor a praticar uma ação perigosa assumindo conscientemente os riscos da ação provocada v g o empregador determina a seu motorista que siga viagem apesar da resistência deste em virtude das condições da estrada e do tempo dando ensejo a um acidente que fere ou mata o primeiro Ou seja a heterocolocação em perigo consentida compreende um grupo de casos em que não é a própria pessoa quem se coloca dolosamente em pe rigo mas se deixa colocar em perigo por outrem tendo consciência do risco31 A solução para tais casos é em princípio semelhante à autocolocação 31 Roxin Funcionalismo cit p 367 293 1 08 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Sumário 1 Introdução 2 Crime consumado significado 2 1 Consumação nos cri mes materiais fonnais de mera conduta e outros 3 Consumação e exaurimento 4 Tentativa conceito e requisitos 4 1 Tentativa e dolo eventual incompatibilidade 42 Preparação e tentativa distinção 43 Crimes que não admitem tentativa 44 Punição da tentativa fundamento políticocriminal 45 Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade 5 Desistência voluntária 6 AJTependimento eficaz 6 1 Posição sistemática 7 Tentativa inidônea ou crime impossível 8 Crime impossível em razão de Provocação de flagrante Interpretação da Súmula 145 do STF 8 1 Provocação do flagrante 82 Impossibilidade de consumação 83 Flagrante retardado 9 AJTependi mento posterior 1 INTRODUÇÃO Se o direito penal traduz a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dos indivíduos tal intervenção há de ter lugar diante de ações especialmente lesivas de bens jurídicos isto é ações particularmente graves Assim como regra só assumem relevância jurídicopenal os crimes consumados ou tentados visto que a só vontade de delinquir ou a mera preparação de um crime não justificam em princípio semelhante intervenção razão pela qual seus autores não são puníveis Exatamente por isso são penalmente irrelevantes a contrafação da chave ou a aquisição da arma quanto aos crimes de furto e homicídio respectivamente sempre que o agente se limitar a isso E assim deve ser porque na vigência de um modelo de Estado que confere à liber dade uma proteção formal amplíssima CF art 5º não faria sentido definir como cri me a só vontade de realização típica nem atos meramente preparatórios de um delito Excepcionalmente a lei criminaliza atos meramente preparatórios como é o caso do art 288 do Código Penal que trata da quadrilha ou bando e do art 291 do CP que tipifica a posse de petrechos para falsificação de moeda entre outros É que o legisla dor considera de tal modo graves tais ações que as criminaliza desde logo Em conclusão dos atos que integram o processo executivo da infração penal do losa iter criminis quais sejam cogitação preparação execução e consumação or dinariamente só assumem relevância penal os atos tentados e consumados em virtude da especial lesividade que encerram1 2 CRIME CONSUMADO SIGNIFICADO A consumação é a completa realização do tipo penal ou ainda dáse a consuma ção sempre que o agente realiza o tipo legal de crime integralmente isto é realizao 1 No sentido de que também o exaurimento faz parte do iter criminis Rogério Greco cit 295 PAULO QlJEIROZ objetiva e subjetivamente A noção de consumação expressa portanto como diz Da másio de Jesus a total conformidade do fato praticado pelo agente com a hipótese abs trata descrita pela norma penal incriminadora2 Fora daí em princípio a hipótese será a de crime tentado ou de ato simplesmente preparatório Com efeito o Código art 14 1 considera consumado o crime quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal significando dizer que só é possível saber se um crime está consumado tipo consumado apurando se o comportamento de que se trate perfaz todos os requisitos que compõem o tipo penal ou seja somen te é possível saber se há ou não consumação confrontandose o fato praticado com a redação especialmente o verbo empregado do delito em questão Daí se dizer que a tentativa é um tipo dependente pois não existe uma tentativa em si mesma mas ten tativa de um determinado crime isto é tentativa de homicídio de furto etc3 Assim a consumação do aborto dáse com a morte do feto art 124 provocar aborto a do sequestro com a privação da liberdade de alguém art 148 privar alguém de sua liber dade mediante sequestro ou cárcere privado a do furto com a efetiva subtração da coisa alheia móvel art 155 subtrair coisa alheia móvel etc Por essa razão é incorreta a Súmula 610 do Supremo Tribunal Federal4 que consi dera consumado o crime de roubo seguido de morte ou latrocínio CP art 157 3º se gunda parte quando o agente mata a vítima mas não consegue subtrair a coisa É que em tal caso não se reúnem tod9s os elementos de sua definição legal CP art 14 11 mas apenas uma parte importante desses elementos já que o tipo se compõe de morte e subtração Além disso tratandose de crime contra o patrimônio não se pode consi derálo consumado quando embora realizado o crimemeio homicídio não se realize o crimefim roubo razão pela qual só se pode falar de latrocínio consumado quando a morte e a subtração se consumarem pois fora daí morte tentada ou subtração tentada indiferentemente a hipótese será a de crime tentado apenas Também não cabe falar de concurso de crimes v g homicídio em concurso com roubo visto que tal implica ria quebra da unidade concebida pelo Código dando margem a um casuísmo ofensivo ao princípio da legalidade 5 2 Direito penal cit v 1 p 321 3 No mesmo sentido Fragoso de notar que a determinação do início da execução só é possível fazer em face de cada tipo de crime tomandose em conta a ação que o configura expressa por um verbo Tratase de saber quando se inicia a execução do homicídio do furto do estelionato da sedução etc Lições de direito penal Rio de Janeiro Forense 1 994 p 241 4 Dispõe a referida súmula há crime de latrocínio quando o homicídio se consuma ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima 5 Nesse sentido Hungria Comentários cit v VII se se admitisse tentativa de latrocínio quando se consuma o homicídio crimemeio e é apenas tentada a subtração patrimonial crimefim ou ao contrário quando é tentado o homicídio consumandose a subtração o agente inco1Teria no primeiro caso em pena inferior à do homicídio simples e no segundo em pena superior à da tentativa de homicídio qualificado pela conexão de meio a fim com outro crime ainda que este outro crime seja de muito maior gravidade que o roubo A solução que sugiro nas hipóteses formuladas como menos subversivas dos princípios é a seguinte ou o agente responderá e tão somente por consumado ou 296 1081 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA 21 Consumação nos crimes materiais formais de mera conduta e outros Nos crimes materiais a consumação ocorre com a realização do resultado típico Assim o homicídio consumase com a morte da vítima o furto com a efetiva subtra ção da coisa Já nos formais de consumação antecipada a consumação dáse com a realização da ação típica pouco importando o resultado Assim a concussão CP art 316 cuja consumação ocorre com o só fato de o funcionário público exigir vantagem indevida independentemente da efetiva obtenção dessa vantagem Nos crimes de mera conduta ou de simples atividade em que o tipo penal não alude a nenhum resultado crimes sem resultado a consumação se dá com a realização da conduta incriminada tal como ocorre com a violação de domicílio CP art 150 Nos crimes culposos a con sumação dáse com o resultado naturalístico nos omissivos próprios com a respectiva omissão do dever legal nos omissivos impróprios crime material com a produção do resultado lesivo nos permanentes a consumação se estende no tempo enquanto se mantém a violação ao bem jurídico por decisão do agente e nos habituais quando houver reiteração de atos capazes de configurar a habitualidade já que atos isolados ou eventuais não são suficientes à consumação e por fim nos continuados em princípio cada crime se consuma autonomamente mesmo porque constitui um concurso mate rial de crimes tratado como se constituísse crime único CP art 71 3 CONSUMAÇÃO E EXAURIMENTO A doutrina distingue consumação de exaurimento isto é consumação formal de consumação material A consumação é um conceito formal pois é a completa reali zação do tipo Mas nem sempre essa consumação formal do tipo coincide exatamente com o plano último do autor E o exaurimento que pressupõe a consumação do tipo penal é a total realização do projeto do autor e que por isso está normalmente além dos limites do dolo do respectivo tipo Há exaurimento de um crime portanto sempre que consumado formalmente o tipo o agente conseguir realizar o projeto de crime que o movia suceder à vítima que matou ascender na carreira eliminar a concorrência obter determinada vantagem ilí cita lucrar com a coisa subtraída etc 6 Assim por exemplo a concussão e a corrupção passiva CP arts 316 e 317 consu mamse com o só ato de exigir ou solicitar vantagem indevida razão pela qual a even tual obtenção dessa vantagem constituirá mero exaurimento de crimes já consumados Normalmente o exaurimento constitui um fato penalmente irrelevante mas casos há em que ora configura delito autônomo ora circunstância qualificadora ou similar a exemplo da corrupção passiva CP art 317 lº hipótese em que se o funcionário tentado o homicídio qualificado dada a relação de meio a fim entre o homicídio consumado e a ten tativa de crime patrimonial ou entre homicídio tentado e a consumada lesão patrimonial 6 Mufíoz Conde Francisco Teoria Geral do Delito cit p 1 79 De modo similar Berdugo Gomes cit e Sheila Bierrenbach Teoria do crime cit 297 PAULO QJdEIROZ público retarda ou deixa de praticar ato de ofício a pena é aumentada e da resistência CP art 329 1 º quando a inexecução do ato legal torna o crime qualificado Eventualmente o exaurimento pode ser também importante para efeito de indivi dualização da pena prescrição participação etc7 4 TENTATIVA CONCEITO E REQUISITOS Existe tentativa sempre que o agente tendo iniciado a execução do crime não lograr consumálo por circunstâncias alheias à sua vontade A tentativa é portanto a realização incompleta da infração penal porque embora haja a realização completa da parte subjetiva do tipo dolo a parte objetiva não se perfaz plenamente em virtude ela interrupção não voluntária do iter criminis Do ponto de vista subjetivo portanto não há distinguir entre tentativa e consumação visto ser o dolo dolo de consumar rigoro samente o mesmo num e noutro caso Se a consumação é pois a completa realização dos elementos do tipo penal obje tiva e subjetivamente a tentativa constitui a sua realização incompleta vale dizer é a não consumação do delito por circunstância alheia à vontade do agente Nesse exato sentido dispõe o Código art 14 II que há tentativa quando inicia da a execução o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agen te razão pela qual é só em referência à descrição específica de um tipo legal de crime que se poderá distinguir a consumação da tentativa e também assim entre esta e os atos preparatórios São por conseguinte requisitos da tentativa a início de atos de execu ção de um crime b não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente Poderseia também incluir o dolo de consumar entre os requisitos mas tal já está im plícito no item b além de dizer respeito também à consumação E mais a tentativa só é possível nos crimes dolosos Não existe tentativa de crime culposo Inicialmente só cabe falar de tentativa quando o autor tiver dado início à execução do crime com dolo de consumálo Assim o processo de execução do homicídio tem início com os disparos de arma de fogo ainda que erre o alvo o roubo com a violên cia ou ameaça exercida contra a vítima e o estupro com o emprego de violência ou ameaça destinada à consumação da conjunção carnal ou outro ato libidinoso É que em todas essas situações há início do matar alguém art 121 do subtrair coisa alheia móvel art 157 e do constranger alguém mediante violência ou grave ameaça à con junção carnal ou a praticar outro ato libidinoso art 213 Mas não basta que se dê início à execução do crime é necessário ainda que haja interrupção do iter criminis por fato independente da vontade do autor exigese con sumação completa do tipo subjetivo ou seja é preciso que a consumação não ocorra por circunstâncias alheias estranhas à sua vontade tais como reaçãoresistência da vítima intervenção de terceiro etc pois do contrário isto é se a consumação não 7 Muíioz Conde idem 298 1 o s 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA ocorrer em razão de desistência voluntária do próprio agente ou de arrependimento eficaz seu circunstâncias dependentes não alheias da sua própria vontade já não se poderá falar de crime tentado por ausência de requisito essencial não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente Não há tentativa portanto embora iniciada a execução do crime quando o agente depois de dar o primeiro disparo desiste de prosseguir ou mesmo após realizar todos os disparos arrependese e presta socorro à vítima evitandolhe a morte ausência do dolo de consumar É que a tentativa à semelhança da consumação exige o tipo subje tivo dolo completo8 Finalmente só se pode falar de tentativa considerandose para tanto o conteúdo da vontade do agente isto é o dolo Assim se A agride B ferindoo gravemente tal situação tanto poderá configurar crime consumado quanto tentado a depender da sua intenção se a vontade de A era matar B a hipótese é de homicídio tentado se era sua intenção causarlhe lesão corporal simplesmente responderá por lesão corporal consu mada Daí aludir o Código alemão9 ao definir a tentativa à representação do autor pois o critério para verificação da tentativa ou consumação não é puramente objetivo é também subjetivo 41 Tentativa e dolo eventual incompatibilidade Há quem afirme que a tentativa de crime é incompatível com o dolo eventual sob a alegação de que este tem estrutura de uma imprudência sendo tratado como tipo do loso por razões de política criminal1º O equívoco é manifesto11 É que tanto na consumação quanto na tentativa existe dolo de consumar o delito de que se trata razão pela qual existe distinção apenas no que concerne ao resultado típico Assim o fato de o crime não se consumar por circunstância alheia à vontade do agente v g intervenção de terceiro não modifica em absolutamente nada o dolo do autor que permanece inalterado e que necessariamente precede ao resultado pouco im portando o efetivo sucesso da conduta dolosamente concretizada Consequentemente 8 Welzel Derecho penal alemán cit p 224 9 Dispõe o Código alemão 2 1 que há tentativa quando o autor dá início diretamente à realização do tipo segundo a sua representação do fato 1 O Nesse sentido Rogério Greco e Mirabete entre outros 1 1 No sentido do texto Zaffaroni e Pierangelli a tentativa requer sempre o dolo isto é o querer do resultado Não há razão alguma para excluir o dolo eventual da tentativa há tentativa de homicídio quando se joga uma granada de mão sobre alguém e não se consegue matálo mas também quando se lança uma granada de mão contra um prédio sem preocupação com a possível morte do morador que dorme próximo à janela Há tentativa de fraude quando se usa um ardil mas ela também ocone quando se usa uma publicidade que pode ter esta mesma eficácia em relação a um certo número de pessoas não importando que elas efetivamente se deixem enganar Manual de Direito Penal Brasi leiro V 1 Parte Geral São Paulo RT 2008 7 ed p 600 Idem Hungria cit 299 PAULO QlEIROZ a tentativa de crime com dolo eventual é possível pela mesma razão que o é no dolo direto Assim se o agente atira contra a vítima com dolo eventual atingindoa mortal mente responderá por homicídio doloso consumado e se o ofendido sobreviver ao disparo haverá homicídio doloso tentado Se existindo mais de uma vítima o agente agir com dolo direto quanto a uma e dolo eventual quanto a outra a resposta é exata mente a mesma que se daria para a consumação se ambas sobreviverem haverá duplo homicídio doloso tentado Finalmente a alegada incompatibilidade entre tentativa de crime e dolo eventual acabaria por eliminar a distinção entre dolo eventual e culpa conferindolhes trata mento unitário próprio dos crimes culposos numa clara ofensa aos princípios de lega lidade e proporcionalidade 42 Preparação e tentativa distinção Para distinguir consumação e tentativa a doutrina costuma mencionar três teo rias a saber a teoria objetiva b teoria subjetiva c teoria mista objetivasubjetiva Para a teoria objetiva por ser o dolo absolutamente o mesmo nas várias fases do iter criminis cogitação preparação execução o critério para distinguir a tentativa de crime da simples preparação deve ser necessariamente objetivo Exatamente por isso para distinguir atos preparatórios e tentativa é preciso ter em conta o grau de perigo representado concretamente pela conduta do agente motivo pelo qual é o quanto de lesividade da ação que determinará a diferenciação entre uma coisa e outra Enfim a tentativa é punível em razão da elevada probabilidade de reali zação do resultado típico12 Visto que a relevância jurídicopenal da ação começa com a prática de atos de execução a teoria objetiva tem então as seguintes implicações13 a necessidade de tratar políticocriminalmente preparação e tentativa de forma distinta segundo crité rios objetivos b impossibilidade de punição da tentativa absolutamente inidônea c necessidade de atenuação obrigatória da pena em virtude da não produção do resulta do típico É comum classificar a teoria objetiva em objetivoformal e objetivomaterial De acordo com a primeira há tentativa de crime sempre que o agente der início à execu ção de atos típicos como atirar contra a vítima no homicídio constranger a vítima no estupro apoderarse da coisa no furto etc Segundo a teoria objetivomaterial existe tentativa sempre que o agente praticar a ação imediatamente anterior à realização do tipo legal não necessariamente típica como o apontar a arma contra a vítima em vir tude do perigo concreto de lesão que encerra 12 Jescheck cit p 464 1 3 C f Jescheck cit p 464 300 1os1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Já para a teoria subjetiva o decisivo não seria propriamente o perigo de lesão relativamente ao resultado típico mas a manifestação de uma vontade contrária ao direito dolo ou seja o mais importante é o desvalor da ação e não o desvalor do re sultado Por isso a teoria acaba por ampliar o âmbito de punição das ações tendo em princípio as seguintes implicações14 a a equiparação entre preparação e tentativa b a punibilidade da tentativa absolutamente inidônea c a equiparação da pena da tenta tiva e da consumação já que a vontade de violar a norma dolo é a mesma em ambos os casos Para a teoria mista que confunde os critérios anteriores objetivo e subjetivo o critério objetivo é insuficiente visto que sem consideração do dolo não é possível se quer apurar a tipicidade de cada conduta e sua exata capitulação jurídicopenal v g sem a consideração do dolo não é possível distinguir entre homicídio doloso e culposo entre homicídio e lesão corporal Por isso para distinguir preparação de tentativa é preciso recorrer necessariamente a critérios tanto objetivos quanto subjetivos pois nenhum critério é por si só suficiente para delimitar com precisão tentativa de crime de atos meramente preparatórios Portanto importam igualmente o desvalor de ação e de resultado De todo modo o mais importante é que independentemente da teoria adotada os critérios tomados em consideração conduzam a uma solução prática conforme o prin cípio da legalidade Pois bem basicamente há dois critérios para distinguir entre atos preparatórios e atos executórias material e formal O primeiro toma em consideração a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido critério porém que não satisfaz já que mesmo nos atos meramente preparatórios há no mínimo perigo de lesão Além disso e mais importante sua adoção poderia resultar em última análise em violação ao princípio da legalidade Já para o segundo os atos executórias começam com o iní cio da realização do tipo penal ou como diz o Código início da execução do crime Assim a execução do homicídio começa com o ato de matar alguém o furto com o ato de subtrair o estupro com o constranger Mas a expressão início da execução do crime não coincide necessariamente com início de realização do tipo15 Exemplo A é preso no quintal de uma residência antes de penetrar no seu interior para furtar B fingindose cliente de um banco é preso mi nutos antes de anunciar o roubo No primeiro caso há um fato punível furto tentado no segundo não Por quê Porque na primeira hipótese o ato de transpor os muros do quintal quando A já atuava ilegalmente saltara o muro já constitui sem dúvida o início de execução de um crime embora não constitua um início de realização do tipo penal de furto isto é não se iniciara o subtrair Já na segunda hipótese B ainda operando dentro da legalidade entrar em lugar de acesso público não iniciara 14 Cf Jescheck cit p 465 15 Executar um delito escrevem Cobo dei Rosal e Vives Antón é dar início à realização do tipo De recho penal cit p 642 301 PAU LO ÜlJEIROZ crime algum tampouco começara a realização do tipo de roubo de sorte que somente se poderia falar de tentativa a partir do momento em que B anunciasse o assalto Dáse a tentativa portanto com o início da execução do crime o que supõe uma atuação ilegal imediatamente anterior à realização do tipo ainda quando tal não signifique começo da realização do tipo Por conseguinte as ações que caracterizam a tentativa são os atos que se encontram situados imediatamente antes da realização do tipo Cobo dei Rosal e Vives Antón têm razão portanto quando assinalam que o iní cio da execução há de ser delimitado a partir dos aspectos constitutivos da infração a materialidade do fato o conteúdo do injusto e o conjunto dos dados típicoformais que a individualizam16 Enfim o conceito de execução como o de consumação é de natureza formal e como tal referese ao tipo delitivo de cuja execução se trate17 sob pena de partindo de critérios outros como o plano do autor ou a ofensividade da ação exclusivamente vio larse o princípio da legalidade Assim ainda que do ponto de vista do plano do autor decidido a matar seja já ato executivo procurar a vítima para matála atalaiála sacar a arma do coldre etc do ponto de vista do princípio da legalidade tais ações não po dem ser consideradas por um observador imparcial como início da execução da ação de matar que é a ação típica do homicídio e portanto não constituem tentativa desse delito mas atos preparatórios18 Por conseguinte o problema da determinação do início da execução do crime como afirma Aníbal Bruno há de ser resolvido em relação a cada tipo de crime to mandose em consideração sobretudo a expressão que a lei emprega para designar a ação típica matar subtrair constranger uma vez que é em referência ao tipo penal considerado que se pode decidir se estamos diante de simples preparação ou já da exe cução iniciada sendo necessário para tanto ter presente o fim visado pelo agente pois embora a linha diferencial seja fundamentalmente de natureza objetiva há nela sempre a influência do elemento subjetivo do agente do fato punível a que verdadeira mente se dirige a sua resolução Exatamente por isso apontar uma arma de fogo para alguém tanto pode caracteri zar atos preparatórios quanto atos de execução de um crime a depender especialmen te do dolo do agente e da imputação que lhe é feita uma vez que se para o tipo de ameaça há consumação ameaçar alguém há tentativa para o crime de estupro cons tranger alguém e simples preparação relativamente ao homicídio matar alguém Quatro variáveis são pois essenciais o dolo do agente a imputação que lhe é feita o verbo ou verbos usado no respectivo tipo imputado e a legalidade da atuação do agente visto que se para um estranho flagrálo no interior de uma casa que seria furtada e cujo domicílio violara já constitui início da execução de um furto o mesmo 1 6 Derecho penal cit p 646647 17 Muíioz Conde Teoría cit p 1 83 1 8 Muíioz Conde Teoría p 1 84 1 85 302 1 os 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA não ocorre mas ato de mera cogitação ou preparação quanto ao caseiro que também furtaria que tem autorização para circular pelo interior do imóvel E quem atua legal mente não inicia em princípio a realização de um tipo penal E se persistir a dúvida sobre se o caso é de preparação ou de tentativa cabe invo car o princípio da dúvida in dubio pro reo 43 Crimes que não admitem tentativa Nem todos os crimes admitem tentativa Assim por exemplo os crimes culposos pois são sempre consumados se v g o agente atropelou e não matou responde por lesões culposas se matou por homicídio culposo vale dizer só se pode cogitar de tentativa em face de crimes dolosos Não comportam tentativa igualmente os crimes omissivos próprios pois ou bem o agente deixa de realizar a ação esperada e o crime estará consumado ou bem é ainda possível a sua realização e em consequência não terá havido início de violação da norma mandamental19os habituais visto que se configurada a habitualidade haverá consumação caso contrário não existirá crime habitual algum os preterdolosos por que ou o fato consequente culposo ocorre quando então estará consumado o crime ou não ocorre hipótese em que haverá crime doloso consumado ou tentado conforme o caso Finalmente as contravenções penais não admitem tentativa por força de expressa disposição legal LCP art 4º Não há falar tampouco de tentativa naqueles casos em que a lei equipara a ação tentada à própria consumação delito de empreendimento a exemplo do art 352 do Código evadirse ou tentar evadirse o preso Nos crimes de mera conduta ou simples atividade é admissível a tentativa que se produz no momento em que o agente dá início à ação mas ainda não consegue conduzila de conformidade com a descrição típica Assim por exemplo no crime de violação de domicílio art 150 haverá tentativa quando o agente tiver já um pé dentro da residência alheia mas não haver transporto integralmente a soleira da sua porta20 44 Punição da tentativa fundamento políticocriminal Salvo disposição em contrário a tentativa é punida com a pena do crime consuma do mas com uma diminuição de um a dois terços CP art 14 parágrafo único O quanto a ser reduzido será fixado proporcionalmente segundo a gravidade e lesividade concretas da ação tentada Ou seja quanto mais próxima a consumação menor será a diminuição logo maior será a pena Quanto mais distante a consumação maior a diminuição portanto menor a pena Assim por exemplo o agente que atira 1 9 Não admitindo a tentativa nos crimes omissivos impróprios Juarez Cirino cit 20 Juarez Tavares Apontamentos cit p 28 303 PAULO QJ E I ROZ contra a vítima sem acertála será punido com pena menor do que aquele que a atinge e a fere O Código adotou por conseguinte um critério objetivo para a apenação da ten tativa já que subjetivamente não há diferença entre tentativa e consumação pois o autor age em ambos os casos com dolo de consumar o delito Em caráter excepcional o Código castiga a tentativa com a mesma pena da con sumação Assim por exemplo o art 352 do CP que pune igualmente o evadirse ou tentar evadirse o preso bem como o art 309 do Código Eleitoral que tipifica o votar ou tentar votar duas vezes Também o Código Penal Militar art 30 parágrafo único admite a possibilidade de punirse a tentativa com a mesma pena do crime consumado para o caso de excep cional gravidade Apesar de parte da doutrina buscar uma justificação especial para o crime tentado Mufioz Conde tem razão quando assinala que o fundamento da punição de todos os atos de execução do delito idôneos ou não deve ser necessariamente unitário e cor responder à mesma finalidade políticocriminal e preventiva que preside todo o direito penal uma vez que as formas imperfeitas de execução são causas de extensão da pena que correspondem a uma mesma necessidade estender a ameaça ou a cominação penal às condutas que embora não consumativas de crime estão muito próximas disso e que importam em grave ofensa ou perigo concreto de ofensa a bem jurídico21 45 Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade Ao distinguir preparação tentativa e consumação o legislador atende a razões de políticacriminal mesmo porque o fundamento da punição de todos os atos de execu ção idôneos ou não tem de ser necessariamente unitário e responder à mesma finali dade políticocriminal e preventiva que preside todo o direito penal A questão a formular e responder é a seguinte será que de fato a tentativa de crime constitui do ponto de vista políticocriminal uma ofensa suficientemente gra ve a justificar a intervenção jurídicopenal Noutras palavras é razoável à luz dos princípios da ofensividade e proporcionalidade a punição da tentativa de forma ir restrita Pensamos que não Em primeiro lugar porque como já assinalado subjetivamente diferença alguma há entre preparar e tentar um crime pois idêntico é o dolo de quem v g prepara a morte de alguém ou tenta matálo A distinção portanto dáse no plano puramente objetivo a tentativa implicaria lesão ao bem jurídico tutelado enquanto na mera pre paração tal não ocorreria o acionar o gatilho é mais grave que o só apontar a arma na direção da vítima 2 1 Teoría cit p 1 841 85 304 l ü8 I CONSUMAÇÃO E TENTATI VA A distinção entre preparar e tentar frequentemente problemática reside por tanto não propriamente no desvalor da ação v g no dolo de matar que é o mesmo mas no desvalor do resultado lesão ao bem jurídico mesmo porque se o conceito de injusto se baseasse apenas no desvalor da ação não seria necessário diferençar sequer entre tentativa e consumação a autorizar tratamento legal idêntico Pois bem uma tal distinção só é válida em termos abstratos É que em concreto o desvalor do resultado do ato preparatório pode ser essencialmente o mesmo do crime tentado Assim por exemplo não há diferença relevante entre surpreender um ladrão de joias escalando uma joalheria e encontrálo já no seu interior a ponto de justificar que no segundo haja crime tentado e no primeiro não preparação Ambas as ações distinguíveis apenas temporalmente momento da prisão têm em realidade a mesma significação não se justificando que uma seja punível e a outra não É também no plano concreto que se poderá identificar com precisão o maior des valor da tentativa em relação à preparação Assim v g atirar contra alguém com intenção de matar atingindoo gravemente em região não letal é mais censurável que simplesmente comprar a arma preparar a emboscada etc Em conclusão a gravidade de um ato preparado tentado ou consumado há de ser sempre aferida concretamen te não bastando a só previsão da punibilidade da tentativa e impunibilidade dos atos preparatórios Releva notar que em muitas situações de desistência e arrependimento eficazes o desvalor do resultado poderá ser maior do que em hipóteses de crimes tentados Não há dúvida que por exemplo disparar contra alguém errando o alvo por imperícia é menos reprovável que acertar a vítima e desistir ou se arrepender eficazmente logo a seguir No entanto no primeiro caso há tentativa branca no segundo não respon dendo o agente unicamente pelos atos já praticados O critério pois do maior desvalor do resultado nos crimes tentados ou mesmo consumados não tem caráter absoluto devendo ser sempre apurado concretamente não basta portanto a mera presunção legal abstrata de maior gravidade no crime tentado e menor gravidade nos atos que não o constituem Enfim razoável seria a que o legislador à semelhança do que fez quanto às contravenções LCP art 4 previsse a impunidade da tentativa de crime sempre que praticado sem vio lência ou grave ameaça à pessoa b nos crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa não havendo distinção relevante entre a preparação e a tentativa parecenos possível em tese inter pretação para considerar atípicas tais condutas com base nos princípios de proporcionalidade e ofensividade inclusive porque se se admite nos crimes consumados até a adoção do princípio da insignificância com maior razão se há de admitir a impunibilidade quando o dano nem sequer se concretize mera tentativa de crime 305 PAULO QllE I ROZ A ressalva quanto aos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa justificase pelo maior desvalor da ação destes que não é o mesmo dos crimes não vio lentos tentar roubar constrangendo a vítima com um revólver apontado contra a sua cabeça não é o mesmo que tentar furtar ausente o dono da coisa O Código Penal português art 23 dispõe a propósito que salvo disposição em contrário a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão razão pela qual a tentativa não é punível de forma irrestrita 5 DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA O agente que desiste voluntariamente de consumar um delito cuja execução inicia ra embora pudesse livremente prosseguir não responde por tentativa É que faltará re quisito essencial da tentativa a não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente respondendo este em consequência somente pelos atos já praticados v g lesão corporal na hipótese de iniciada a execução de um homicídio Com efeito dispõe o Código art 1 5 1ª parte que o agente que voluntariamente desiste de prosseguir na execução somente responde pelos atos já praticados As sim por exemplo se depois de dar um primeiro golpe ferindo a vítima o autor em bora podendo prosseguir golpeando desiste livremente não responderá por homicídio tentado mas pelos atos já praticados isto é responderá por lesões ou não responderá por crime algum caso não resulte nenhuma lesão Mas se não houver desistência alguma ou se houver desistência involuntária forçada existirá tentativa punível As circunstâncias impeditivas da voluntariedade podem dizer respeito aos meios quando ao agente não lhe restam mais recursos para continuar v g acaba a munição como às próprias condições do agente v g acaba ferido22 Haverá pois tentativa nos seguintes casos a suposição de que houve con sumação do crime v g o agente acredita que a vítima está morta ou que morrerá inevitavelmente breação eficiente da própria vítima c intervenção eficiente de ter ceiro em favor da vítima E haverá consumação de crime nas seguintes hipóteses a desistência voluntária ineficaz porque incapaz de evitar a consumação do crime b desistência em verdade arrependimento posterior depois de consumado o crime v g consumado o furto o agente restitui a coisa subtraída à vítima Enfim só há autêntica desistência voluntária se o autor podendo livremente pros seguir na execução de um crime desiste porque quer desistir e não porque haja algum obstáculo concreto impeditivo da consumação do delito já em execução E mais para o reconhecimento da voluntariedade são irrelevantes as razões pessoais que motivaram o autor a tanto piedade remorso etc Daí dizer a doutrina que o essencial é a volunta riedade e não a espontaneidade da desistência 22 Juarez Tavares Apontamentos de aula UERJ 2009 Disponível em Juareztavarescom 306 I OB I CONSUMAÇÃO E TENTATIVA A distinção entre desistência voluntária e involuntária não reside por conseguinte nos motivos pessoais que levam o agente à desistência mas na existência ou não de obstáculos concretos à consumação É que na desistência voluntária o agente muda de propósito já não quer o crime na involuntária forçada mantém o propósito mas recua diante da dificuldade de prosseguir23 Como assinala Juarez Tavares os motivos da desistência são irrelevantes quer se refiram a uma reflexão moral positiva o agente se convence de que deve agir corretamente quer digam respeito a alguma vantagem o indutor lhe oferece dinheiro para desistir24 E a desistência tem a ver com a tentativa imperfeita 25 isto é quando iniciada a execução do crime o autor não exaure todos os meios de que dispõe para consumar o delito Fora daí isto é já havendo exaurido os meios de que dispõe para a consumação tentativa perfeita a hipótese será de arrependimento eficaz que produz o mesmo efeito jurídicopenal 6 ARREPENDIMENTO EFICAZ Também o arrependimento eficaz afasta a imputação de crime tentado visto faltar requisito essencial da tentativa não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente De acordo com o Código ocorre o arrependimento eficaz quando o agente impe de que o resultado se produza art 15 2ª parte O arrependimento tem a ver pois com a chamada tentativa perfeita ou acabada hipótese em que há segundo o plano do autor exaurimento dos meios de execução do resultado Dáse o arrependimento portanto sempre que o agente tendo já exaurido os meios de execução do crime mas sem consumálo ainda desenvolve nova atividade impedindo a produção do resultado Diferentemente da desistência que tem caráter essencialmente negativo o arrependimento tem uma natureza positiva 26 Assim por exemplo se após ministrar veneno à vítima o autor lhe dá um antídoto salvandolhe a vida ou quando depois de disparar todos os tiros de que dispõe leva a vítima ao hospital impedindo a morte Mutatis mutandis vale aqui tudo o que se disse sobre a desistência voluntária Assim se não houver arrependimento ou se se pretender como arrependimento ato não voluntário forçado existirá tentativa punível E se o arrependimento for ineficaz sobrevindo o resultado típico haverá crime consumado 23 Aníbal Bruno Direito penal cit p 246 24 Apontamentos de Aula UERJ 2009 Disponível em Juareztavarescom 25 A distinção entre tentativa perfeita e imperfeita como observa Jescheck só pode ser delimitada po rém segundo um critério subjetivo porque a questão de saber se o autor exauriu ou não os meios de execução depende do seu plano de fato e de sua representação Tratado cit p 490 26 Damásio de Jesus Direito penal cit p 336 307 PAULO QlJ E I ROZ Naturalmente que uma vez consumado o crime não cabe falar de arrependimen to eficaz mas ineficaz É que tanto a desistência voluntária quanto o arrependimento eficaz pressupõem a não consumação do delito isto é uma intervenção voluntária e eficiente ainda na fase de execução do crime Assim por exemplo o agente responde por homicídio consumado se não obstante a atuação no sentido de evitar o resultado a vítima vier a falecer Apesar disso parece razoável reconhecerse para certa classe de delitos o ar rependimento eficaz mesmo quando sobrevenha a consumação do crime Assim por exemplo no crime de furto se o autor procede à restituição da coisa imediatamente à consumação sem que a vítima sequer tenha se dado conta do fato27 61 Posição sistemática Discutese a posição sistemática da desistência voluntária e do arrependimento eficaz Hungria é de opinião que se trata de causa de exclusão de punibilidade por entender que o Estado por motivos de oportunidade renuncia ao direito de punir Já Damásio de Jesus28 tem que se trata de uma causa que exclui a própria tipicidade uma vez que há exclusão do tipo tentado relativamente ao crime de que se desistiu ou se arrependeu eficazmente Temos que não se trata de exclusão de tipicidade porque a desistência e o arrepen dimento pressupõem o início de atos de execução do tipo A ação ou omissão objeto da desistênciaarrependimento são em princípio típicas portanto Afinal quem lesiona outrem com o propósito de matála mas desiste voluntariamente pratica uma ação típica de homicídio tentado embora responda por lesões consumadas A desistênciaarrependimento implica por conseguinte uma mudança da imputa ção jurídicopenal mas não a atípicidade dessa ação que nasce típica e assim perma nece Não é tampouco o caso de exclusão de punibilidade visto que apesar da mudança da imputação a conduta típica é como regra também punível Cuidase mais precisamente de uma causa especial de isenção de pena relativa mente ao crime objeto da desistência ou arrependimento Justamente por isso a de sistência ou arrependimento somente aproveita ao próprio agente que desistiu ou se arrependeu eficazmente não se comunicando aos eventuais coautores ou partícipes que não desistiram ou não se arrependeram 7 TENTATIVA INIDÔNEA OU CRIME IMPOSSÍVEL A tentativa de um crime é considerada inidônea quando em razão da ineficácia dos meios de execução ou da impropriedade do objeto a que a ação se dirige a consu mação for absolutamente impossível 27 Cf Juarez Tavares Apontamentos cit 28 Direito penal cit p 334 308 1081 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Com efeito dispõe o Código art 17 que não se pune a tentativa quando por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto é impossível con sumarse o crime Assim conforme exemplos clássicos quando o agente com dolo de homicídio ministra açúcar no café da vítima supondo arsênico aciona o gatilho de arma descarregada exemplos de ineficácia absoluta do meio ou quando atira contra um cadáver pratica manobras abortivas supondo estar grávida exemplos de impro priedade absoluta do objeto A impossibilidade pode resultar tanto de meio ineficaz revólver sem munição como de impropriedade do objeto matar um cadáver ou da conjugação de ambos Portanto o crime impossível ou tentativa inidônea ocorre sempre que se apurar concretamente que era absolutamente impossível a consumação do crime Por isso não basta a só impossibilidade abstrata da ação pois um instrumento pode ser inofen sivo em abstrato mas ser ofensivo em concreto v g açúcar relativamente ao paciente diabético assim como o meio lesivo abstratamente pode ser inofensivo no caso v g arma com defeito de fabricação que a inutiliza A possibilidade ou impossibilidade do crime deve assim ser apurada concretamente de modo a verificar o grau de ofensivida de que a ação representa para o bem jurídico tutelado avaliada a partir das múltiplas variáveis do caso Tratandose porém de tentativa só relativamente inidônea isto é meio ou objeto que só acidentalmente é ineficaz ou impróprio haverá tentativa punível v g dispara contra a vítima mas a arma nega fogo Não se deve confundir a tentativa inidônea com delito putativo espécie de erro de proibição às avessas porque neste o agente supõe praticar um fato criminoso que não o é v g incesto O delito putativo só existe portanto na imaginação do próprio agente 8 CRIME IMPOSSÍVEL EM RAZÃO DE PROVOCAÇÃO DE FLA GRANTE INTERPRETAÇÃO DA SÚMULA 145 DO STF De acordo com a súmula 145 do Supremo Tribunal Federal não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação ou seja não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimento direto ou por concurso de autoridade que o faz para fim de aprontar ou arranjar o flagrante STF RTJ 98136 A súmula incide portanto sempre que a polícia instigar alguém a praticar um cri me e assim surpreendêlo em flagrante Se isso ocorrer o flagrante é nulo e o crime é considerado impossível em razão da impossibilidade concreta de consumação decor rente da provocação Como assinala Hungria no caso de provocação crime de ensaio só na aparên cia é que ocorre um crime exteriormente perfeito porque em verdade o seu autor é protagonista inconsciente de uma comédia E se sob o aspecto subjetivo existe crime o mesmo não ocorre do ponto de vista objetivo visto que não há violação à lei 309 PAULO QlJEIROZ penal mas uma inconsciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores ou uma simulação embora ignorada pelo agente da exterioridade do crime29 A aplicação da súmula exige o concurso simultâneo de dois requisitos 1 provo cação de flagrante pela polícia 2 impossibilidade absoluta de consumação do crime 81 Provocação do flagrante Inicialmente é necessário que a polícia tome a iniciativa de provocar instigar etc o agente a cometer o crime para com tal expediente oportunizar a prisão v g poli cial que fingindo ser usuário convence o supqsto traficante a venderlhe droga ilícita prendendoo no ato de venda Há pois provocação sempre que a polícia intervier direta ou indiretamente no próprio iter criminis praticando uma ação que leve o suspeito a cometer um determi nado crime que não cometeria não fosse a atuação policial Mas não se deve confundir o flagrante provocado do qual se ocupa a súmula com o simplesmente esperado que é aquele em que a polícia previamente informada do crime que não provocou simplesmente aguarda o momento de sua execução a fim de proceder à prisão em flagrante No caso de flagrante esperado a súmula não é aplicá vel a atuação policial é legítima e por isso há crime punível A distinção entre flagrante esperado e provocado reside no seguinte no primeiro a polícia não intervém no iter criminis isto é não instiga de modo algum o agente a praticar o crime Já no flagrante provocado ao contrário o agente só comete o crime porque a polícia o induz a tanto motivandoo a praticálo A súmula 145 é aplicável por conseguinte exclusivamente ao flagrante provoca do não incidindo sobre o esperado O flagrante esperado é legal enquanto o flagrante provocado é ilegal razão pela 9ual o fato praticado pelo agente que atua sob provoca ção policial não é como regra punível Apesar de a súmula se referir ao flagrante provocado pela polícia parecenos que é ela também aplicável à provocação feita por não policiais segurança privada etc fazendose analogia in banam partem Finalmente a nulidade do flagrante provocado limitase àqueles fatos objeto da provocação pois relativamente a outros que independam da provocação há sim cri me punível não incidindo a súmula Exemplo o agente é preso por vender droga a um policial que se passara por usuário mas em seguida se descobre que sua casa servia de depósito para carros roubados Nesse caso a nulidade do flagrante limitarseá ao crime de tráfico não atingindo o crime contra o patrimônio para o qual não concorreu a provocação policial se bem que no âmbito processual sempre se poderá questionar a licitude da prova 29 Comentários cit p 107 310 1 os 1 CONSUMAÇÃO E TENTATI VA Convém notar que há precedentes do Supremo Tribunal Federal entendendo que no caso de tráfico de droga embora o agente não possa ser licitamente preso por ven da da droga em virtude da provocação crime impossível tal não impediria que pu desse responder pela guarda ilícita da droga posteriormente encontrada em depósito uma vez que constituiriam ações distintas e autônomas vender e guardar em depósito igualmente proibidas por lei E antes da provocação policial já havia um crime consu mado de tráfico na modalidade guardar etc Ocorre que o tráfico de droga embora de múltipla ação exportar importar etc constitui crime único motivo pelo qual o agente caso pratique várias ações responde rá em princípio por uma só infração penal Exatamente por isso é um tanto discutível a interpretação no sentido de considerar impossível o delito quanto a uma ação ven der e possível quanto a outra guardar em depósito como se não houvesse crime de múltipla ação mas múltiplos crimes em concurso material 82 Impossibilidade de consumação Para a aplicação da súmula além da provocação é necessário que o crime não chegue a consumarse Com efeito se não obstante a ação policial no sentido de evitar a consumação o delito se consumar haverá crime punível visto que a incidência da súmula pressupõe a impossibilidade de consumação em razão da provocação policial Em tese é possível inclusive que também o policial provocador responda por crime a título doloso ou culposo conforme o caso A súmula também não incide quando a provocação tiver lugar após a consumação do crime isto é já na fase de exaurimento Exemplo um funcionário público que exi gira vantagem indevida de alguém vem a ser preso dias depois pela polícia que foi previamente avisada pela vítima que fingira concordar com a exigência feita sobre o ocorrido e quando faria o respectivo pagamento É que por se tratar de crime formal concussão CP art 316 cuja consumação ocorre com a só exigência da vantagem indevida tal já havia acontecido previamente com ou sem concordância da vítima independentemente da intervenção policial ra zão pela qual o recebimento do dinheiro constitui simples exaurimento Neste caso o crime não só é possível como já havia se consumado antes de a policia intervir Enfim a súmula não incide sempre que houver consumação do crime quer porque a polícia não conseguiu evitála quer porque a consumação ocorreu antes da interven ção policial Releva notar por fim que a súmula 145 vem sendo duramente criticada havendo quem proponha a sua abolição pura e simples30 30 Vide entre outros Eugênio Pacelli de Oliveira Curso de Processo Penal cit e Andrey Borges de Mendonça Prisões e outras medidas cautelares pessoais S Paulo Editora Método 201 1 3 1 1 PAULO QlJ E I ROZ 83 Flagrante retardado É preciso não confundir o flagrante provocado com o simplesmente retardado ou prorrogado previstos nalgumas leis especiais como a Lei nº 113432006 pois neste último não há nem pode haver nenhum tipo de induzimento instigação ou auxílio por parte da polícia sob pena de também se converter em flagrante provocado tornando impossível o delito Com efeito só há realmente flagrante retardado quando a polícia ou autoridade competente ao invés de proceder à prisão desde logo prorroga tal ato para um mo mento mais adequado do ponto de vista das investigações em curso a fim de conferir lhes o maior êxito possível como por exemplo identificar os principais criminosos desbaratar uma grande quadrilha reunir o máximo de elementos de prova etc Tratase como se vê de uma espécie do gênero flagrante esperado logo flagrante legítimo 9 ARREPENDIMENTO POSTERIOR O arrependimento posterior instituto aplicável aos delitos dolosos e culposos consumados ou tentados é uma causa de redução de pena relativa aos crimes prati cados sem violência ou grave ameaça à pessoa sempre que o autor reparar o dano ou restituir a coisa antes do recebimento da denúncia conforme dispõe o art 16 do Códi go nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa reparado o dano ou restituída a coisa até o recebimento da denúncia ou da queixa por ato voluntário do agente a pena será reduzida de um a dois terços O arrependimento posterior requer por conseguinte o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa b reparação ou restituição anterior ao recebimento da denúncia ou queixa c voluntarie dade do ato Somente os crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa e portan to dolosos impedem o reconhecimento da causa de redução de pena No caso de cri me doloso praticado com violência à coisa e não à pessoa v g furto qualificado com rompimento de obstáculo é perfeitamente possível o arrependimento E também o é nos crimes culposos como homicídio e lesões corporais visto que ao aludir à violên cia ou grave ameaça à pessoa parece claro que o legislador quis se referir aos crimes dolosos exclusivamente A reparação ou restituição poderá ser total ou parcial sendo que o quanto da re dução de pena variará em princípio conforme se trate de reparaçãorestituição total ou parcial se total procederseá à redução máxima 23 caso contrário farseá a redução mínima 1331 Para a fixação do quanto a ser reduzido de pena é também 3 1 Nesse exato sentido HC nº 98658 do Paraná em 091120 1 1 do STF Relatora Ministra Cármen Lúcia 312 1 o s 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA relevante a presteza com que o autor age no sentido de reparar o dano ou restituir a coisa Mas a doutrina majoritária considera contrariamente a isso que só a restituição reparação total é que pode ensejar o arrependimento posterior De todo modo não in tegra a reparação do dano aquilo que poderia ser cogitado em termos de dano moral porque o dano moral não faz parte dos elementos que compõe a lesão do bem jurídico Nem se pode exigir do autor o pagamento de quantia além daquela que resulte do dano real e dos juros ou lucros cessantes efetivamente comprovados32 A doutrina em geral tem que só a reparação feita pelo próprio autor e não por terceiro pode ensejar a redução de pena No entanto se como diz a Exposição de Mo tivos do Código a reparaçãorestituição constitui uma providência de política criminal instituída menos em favor do agente do que da vítima item 15 parece razoável admi tila também quando um terceiro o fizer em favor do autor do crime Também por isso no caso de concurso de agentes a reparaçãorestituição por um deles a todos aproveita A reparação ou restituição poderá ser feita até o despacho de recebimento da de núncia quando a ação penal é formalmente instaurada se o arrependimento tiver lu gar posteriormente ao recebimento da denúncia a reparação ou restituição funcionará como circunstância atenuante CP art 65 III b Na Parte Especial do Código e também na legislação especial há vários crimes que preveem especificadamente o arrependimento posterior ainda que com nome di verso Assim sempre que a reparação ou a restituição já figurar como causa de ex tinção de pena como ocorre no peculato culposo CP art 312 3º a aplicação do art 16 ficará prejudicada prevalecendo a norma mais favorável ao réu em virtude do princípio da especialidade E o arrependimento deve ser voluntário não forçado isto é livremente manifes tado sem nenhum tipo de coação física ou moral Finalmente a Súmula 554 do STF prevê que o pagamento do cheque antes do re cebimento da denúncia extingue a punibilidade do crime de estelionato previsto no art 171 2º VI do Código Penal 32 Juarez Tavares Apontamentos cit p 2425 313 Sumário 1 Introdução 2 Conceito e iter criminis 3 Requisito adesão subjetiva ou nexo psicológico 31 Desistência voluntária e arrependimento eficaz 4 Autoria e participação distinção 41 Teoria unitária ou monista 42 Teoria objetivoformal 43 Teoria subjetiva 44 A teoria do domínio do fato 45 A teoria do domínio do fato segundo Roxin 5 Formas de autoria 51 Coautoria 511 Coautoria em crimes culposos 52 Autoria mediata ou indireta 53 Autoria mediata por domínio de aparato organizado de poder 6 Participação em sentido estrito acessoriedade 61 Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação 7 Formas de participação instigação e cumplicidade 8 Coautoria e participação nos crimes omissivos 9 Participação de menor importância 10 Participação dolosamente diversa ou desvio subjetivo de conduta 11 Comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal 1 INTRODUÇÃO Um crime sempre pode ser praticado por uma ou mais pessoas Quanto praticado por mais de uma concurso eventual cumpre saber como e quando a participação de cada um dos envolvidos assumirá relevância jurídicopenal a fim de se estabelecer e precisar a respectiva responsabilidade e promover a individualização da pena O estudo do concurso de agentes visa aos seguintes fins portanto a saber se uma determinada conduta açãoomissão constitui uma participação penalmente relevante b havendo participação penalmente relevante individualizála identificando os autores coautores e participantes bem como seus respectivos delitos c saber se determinadas circunstâncias são ou não comunicáveis d individualizar a pena Tratase de problema específico dos chamados crimes unissubjetivos os quais podem ser praticados por uma ou mais pessoas já que nos crimes plurisubjetivos ou de concurso necessário a participação de mais de um agente faz parte da própria descrição típica associação criminosa etc sendo inerente à realização do tipo legal de crime 2 CONCEITO E ITER CRIMINIS O concurso de agentes instituto compreensivo da coautoria e da participação em sentido estrito é a intervenção de mais de um agente num mesmo delito O concurso pressupõe portanto convergência de vontade para um fim comum que é a realização do tipo penal embora seja dispensável acordo prévio entre os intervenientes Nos crimes dolosos o concurso pode ocorrer desde a fase de cogitação do crime até a sua consumação durante o iter criminis não depois na fase de exaurimento relativamente ao delito exaurido pois já plenamente realizado o tipo Assim quem simplesmente oculta cadáver não responde por homicídio se a participação tiver lugar PAULO Q1JEI ROZ de fato somente após a consumação do crime Semelhante intervenção ou é punida au tonomamente vg ocultação de cadáver CP art 211 ou não constitui delito algum Consequentemente a chamada coautoria sucessiva quer dizer cooperação num crime já iniciado pressupõe intervenção dolosa durante a sua execução isto é antes de consumado Nos crimes permanentes e habituais a participação poderá darse en quanto não cessar a permanência ou habitualidade ou seja enquanto a consumação for renovada por decisão do autor do fato Assim responderá por sequestro quem nele intervier em qualquer fase de sua execução E nos crimes culposos assunto dos mais controvertidos o concurso pressupõe que duas ou mais pessoas decidam praticar uma ação imprudente conjuntamente dan do causa a um resultado típico culposo Enfim é essencial que o agente adira com sua ação imprudente à ação também imprudente de outrem 3 REQUISITO ADESÃO SUBJETIVA OU NEXO PSICOLÓGICO Para a caracterização do concurso de agentes é indispensável que o coautor ou partícipe tenha voluntariamente a título de dolo ou culpa concorrido para o crime pois do contrário haverá autoria colateral que não constitui concurso de crimes mas crime autônomo Aderir subjetivamente significa no crime doloso intervir dolosamente no crime doloso de que se trata e nos culposos significa aderir com a sua atuação imprudente à ação também imprudente de outrem se um dos intervenientes agir dolosamente e o outro culposamente não haverá concurso de agentes mas ações autônomas típicas ou não conforme o caso Consequentemente não é possível coautoria ou participação do losa em crime culposo nem coautoria ou participação culposa em crime doloso1 É necessário que haja a vontade consciente de concorrer com a própria ação para a ação de outrem 2 Não obstante o concurso de pessoas comumente se realize nos crimes dolosos mediante acordo prévio entre aqueles que nele intervêm como na hi pótese de roubo a banco por exemplo em que os coautores se reúnem para discutir o modus operandi eleger a vítima combinar a repartição do produto do crime etc tal acerto não é essencial à configuração do concurso bastando que o agente saiba que está cooperando para um crime nexo subjetivo É suficiente pois a voluntária adesão de uma atividade à outra não importando que seja ignorada ou até mesmo recusada por quem a recebe3 Assim por exemplo se A após agredido por B vem a ter logo a seguir bens subtraídos por C que simula pres Nesse sentido Hungria Dado o indeclinável requisito de homogeneidade do elemento subjetivo à parte os motivos determinantes que podem ser diversos é bem de ver que se não pode falar de participação culposa em crime doloso ou participação dolosa em crime culposo pois em tais casos é radical o dissídio de vontades Comentários cit p 4 1 6 2 Hungria Comentários cit p 414 3 Hungria Comentários cit p 414 316 j09j CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO tarlhe socorro não há cogitar de concurso entre B e C mas de crimes autonomamente praticados O mesmo ocorreria se ambos furtassem simultânea e independentemente determinada joalheria Naturalmente que não constitui concurso de pessoas o simples ato de assistir ao delito com ou sem o prévio conhecimento nem o mero desejo de que o delito se reali ze ou a só omissão exceto se o omitente tiver o dever legal de agir e de evitar o resulta do garantidor Não basta portanto a mera cogitação ou simples desejo de participar do crime nem a só aprovação dos atos criminosos4 Também por isso a decisão de cometer crime não se confunde com a simples co nivência Assim por exemplo a estagiária de medicina que presencia a prática de um aborto por médico não é coautora nem partícipe do que crime que testemunha ainda que o faça para aprender a técnica abortiva 5 Tampouco responde penalmente a esposa que sabe que o marido pratica tráfico de droga e não o denuncia à autoridade compe tente Quanto à chamada cumplicidade por meio de ações neutras tema dos mais con trovertidos vale dizer contribuições para crime de outrem que à primeira vista pareçam completamente normais6 como v g o empréstimo ou a venda de ferramenta para alguém que sabidamente a utilizará para cometer crime temos que tais ações se forem realmente neutras isto é não constituírem algo mais grave como aderir ao cri me motiválo etc são em princípio jurídicopenalmente irrelevantes e pois atípicas Ademais tivesse o pretendido cúmplice de responder penalmente imputaríamos em última análise conduta de exclusiva responsabilidade de terceiro em clara ofensa ao princípio da pessoalidade da pena Tampouco haverá em tais casos autêntico concurso de agentes visto não existir em tese adesão ao crime Finalmente não seria conforme o princípio da proporcionalidade que o agente que se limitasse a emprestar ou a vender ferramenta respondesse por homicídio e outros delitos graves É preciso reconhecer porém que a cumplicidade por ações neutras admite uma tal variação e combinação de hipóteses que dificilmente poderíamos fixar normas ge rais e precisas de imputação A doutrina brasileira costuma considerar ainda como requisitos do concurso além dessa indispensável adesão subjetiva a pluralidade de condutas a identidade da infração penal e o nexo causal Entretanto em verdade a pluralidade de condutas é pressuposto do próprio concurso de agentes já que só se pode imaginála quando concorram para um mesmo evento diversas pessoas e não uma única A unidade da infração tampouco constitui requisito do concurso mas consequência lógica da teoria unitária adotada pelo Código que inclusive admite em caráter excepcional imputação por crime diverso v g participação dolosamente diversa Finalmente o nexo causal 4 Frederico Marques Tratado cit p 406 5 Juarez Tavares Apontamentos de Aula cit p 1 6 6 Luís Greco Cumplicidade através de ações neutras Rio de Janeiro Renovar 2004 317 PAULO QlJ E I ROZ não é imprescindível à caracterização do concurso pois em muitos casos a participa ção se perfaz por meio de atos secundários sem os quais o resultado final teria ocorri do inevitavelmente 31 Desistência voluntária e arrependimento eficaz Vimos que o agente que voluntariamente desiste de prosseguir na execução de sistência voluntária ou impede a produção do resultado arrependimento eficaz só responde pelos atos já praticados ficando afastada a tentativa visto que esta pressupõe a não consumação por circunstâncias alheias à vontade Pois bem no caso de coautoria discutese se essa desistência ou arrependimento se comunica aos coautores Imaginese que A e B ajustem a morte de alguém ambos atiram contra a vítima mas A desiste e também impede que B consuma o delito B não desiste Nesse caso temos que só B responderá por crime tentado enquanto A respon derá apenas por lesões corporais atos já praticados E assim deve ser porque a embo ra iniciada a execução o crime não se consumou por circunstância alheia à vontade de B desistência e intervenção de A ba desistênciaarrependimento é uma circunstância pessoal que diz respeito exclusivamente à pessoa do desistente A não podendo alcan çar pessoa estranha à própria ação Naturalmente que se no exemplo dado ambos desistirem ou se arrependerem eficazmente a desistênciaarrependimento aproveitará a todos No caso de participação a solução há de ser diversa por se tratar de uma inter venção secundária no crime do autor razão pela qual a desistência ou arrependimento eficaz do autor se comunicará ao partícipe conforme prevê o art 31 do CP inclusive o ajuste a determinação ou instigação e o auxílio salvo disposição expressa em con trário não são puníveis se o crime não chega pelo menos a ser tentado Se em razão da desistênciaarrependimento não tiver início a execução do delito não haverá infração penal a punir E quando a desistênciaarrependimento for inútil ineficaz sobrevindo a consumação todos responderão por crime consumado Em conclusão 1 se os coautores desistem ou se arrependem eficazmente não res pondem por tentativa embora iniciados os atos de execução 2 se os coautores desis tem ou se arrependem de forma ineficaz respondem por crime consumado 3 se o coautor desiste ou se arrepende eficazmente contra a vontade dos demais só ele não responde por tentativa 4 se não houver início dos atos de execução não há crime a punir consumado ou tentado 5no caso de participação a desistência ou o arrependi mento eficaz do autor aproveitará ao partícipe Em suma a desistênciaarrependimento só aproveita como regra ao próprio de sistentearrependido 4 AUTORIA E PARTICIPAÇÃO DISTINÇÃO O nosso Código atual não distingue ou não distingue expressamente autoria coautoria e participação uma vez que simplificou bastante o assunto limitandose a 318 lü9I CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PA RTICI PAÇÃO consignar no principal artigo dedicado ao concurso de pessoas o artigo 29 o seguinte quem de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este cominadas na medida de sua culpabilidade Adotouse no essencial portanto a teoria unitária ou monista rompendo com uma tradição que remontava ao Código Criminal de 1830 que distinguia autores e cúmplices7 Atualmente a maioria dos códigos penais segue outra linha e distingue expressa mente autoria coautoria e participação a exemplo do espanhol que declara que são responsáveis criminalmente dos delitos e faltas os autores e os cúmplices art 27 sendo autores aqueles que realizam o fato por si só conjuntamente ou por meio de ou tro de que se serve como instrumento art 28 E são considerados cúmplices os que não estando compreendidos no artigo anterior cooperam na execução do fato com atos anteriores ou simultâneos art 29 No mesmo sentido o Código Penal português8 Não obstante adote em princípio um conceito unitário de autor o Código prevê os institutos da participação de menor importância e da participação dolosamente di versa CP art 29 1 º e 2º os quais pressupõem a distinção entre autoria e participa ção A teoria monista sofreu importantes ajustes portanto Apesar de adotada a teoria unitária nada obsta a que se recorra eventualmente a outros critérios que distingam autoria e participação desde que compatíveis com os princípios penais Assim convém referir dentre outras a teoria objetivoformal a teoria subjetiva e a teoria do domínio do fato além da própria teoria unitária Cabe frisar que a melhor teoria não é ou não é necessariamente a que oferece a melhor sistematização mas a que conduz a uma solução justa do caso concreto Uma boa teoria é em suma aquela capaz de reduzir e solucionar problemas adequadamen te e não a que se perde em sutilezas e os multiplica 7 Eis o que dispunham os artigos principais do Código imperial de l 830Art 4º São criminosos como autores os que cometerem constrangerem ou mandarem alguém cometer crimes Art 5º São criminosos como cúmplices todos os mais que diretamente concorrerem para se cometer crimes Art 6 Serão também considerados cúmplices 1 Os que receberem ocultarem ou comprarem coisas obtidas por meios criminosos sabendo que o foram ou devendo sabêlo em razão da qualidade ou condição das pessoas de quem as receberam ou compraram 2º Os que derem asilo ou prestarem sua casa para reunião de assassinos ou roubadores tendo conhe cimento de que cometem ou pretendem cometer tais crimes 8 O Código Penal português dispõe A11igo 26º Autoria É punível como autor quem executar o facto por si mesmo ou por intermédio de outrem ou tomar parte directa na sua execução por acordo ou juntamente com outro ou outros e ainda quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto desde que haja execução ou começo de execução A11igo 27 Cumplicidade l É punível como cúmplice quem dolosamente e por qualquer forma prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso 2 É aplicável ao cúmplice a pena fixada para o autor especialmente atenuada 319 PAULO QJEI ROZ 41 Teoria unitária ou monista De acordo com a teoria unitária ou monista não é possível ou conveniente distin guir autoria e participação razão pela qual todos aqueles que participam de um crime são autores9 Tratase da mais antiga teoria autor é quem produz qualquer contribuição causal para a realização do crime10 pois são assim considerados todos que interve nham no processo causal de realização do tipo independentemente da relevância da participação de cada um questão que só importa para fins de aplicação da pena11 As sim o nexo causal constitui em princípio o único critério de relevância jurídicopenal de um comportamento tornando irrelevante o conceito de participação12 A teoria unitária é pois um continuum da teoria da equivalência dos antecedentes causais ou teoria da conditio sine qua non segundo a qual considerase causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido CP art 1313 razão pela qual autor é quem dá causa a um resultado por ação ou por omissão Ou ainda é quem de qualquer modo concorre para o crime e assim incide nas penas a ele cominadas CP art 29 Em suma toda pessoa que concorra para a produção do crime causao em sua totalidade devendo por isso ser imputado a cada um dos partícipes totalmente14 Apesar disso os autores responderão na medida de sua culpabilidade CP art 29 caput de modo que a imputação dos delitos e a aplicação das penas deverão ser indi vidualizadas considerandose dentre outras variáveis a importância da participação Além disso o juiz pode invocando o princípio da insignificância por exemplo decretar a absolvição do acusado sempre e quando se convencer da irrelevância jurídi copenal da intervenção no fato É comum dizerse que se por um lado a teoria unitária tem a vantagem de sim plificar o tratamento legal dos múltiplos problemas relacionados à autoria e à partici pação por outro tem a desvantagem de ampliar consideravelmente a punibilidade e por isso seria dificilmente compatível com o Estado Constitucional de Direito15 Mas a crítica só será procedente se primeiro a teoria for adotada sem os devidos ajustes 9 Mir Puig cit p 360 1 O Juarez Cirino A moderna teoria cit p 275 1 1 Jescheck Tratado cit p 587 12 Jescheck Tratado cit p 587 13 A lei brasileira enfim como escreve Fragoso resolveu em termos simples a questão da codelinquên cia partindo da teoria da equivalência dos antecedentes adotada quanto à relação de causalidade Assim comd não distingue entre os vários antecedentes causais do delito não distingue também entre os vários partícipes na empresa delituosa comum todos são coautores e responderão pelo crime se gundo a mesma escala penal Somente se distingue entre os diversos partícipes na aplicação da pena que dependerá da culpabilidade maior ou menor de cada um Lições cit p 25 1 14 Antolisei apud Cézar Bitencourt cit 15 Nesse sentido Roxin Autoría y dominio dei hecho en el derecho penal cit p 489 Paul Bockelmann chegou a afirmar inclusive com evidente exagero que o conceito unitário de autor é inutizável no 320 I091 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO segundo se o intérprete não tiver a preocupação que deve existir sempre de presti giai a interpretação mais conforme os princípios penais independentemente da teoria 1 adotada 42 Teoria objetivoformal Para a teoria objetivoformal que trabalha com um conceito restritivo de autor o qlfle importa é a realização de todos ou alguns dos atos executivos previstos no tipo legal de crime razão pela qual autor é quem pratica a ação típica16total ou parcialmen te vale dizer autor é aquele que no homicídio realiza a ação de matar no furto a de subtrair no estupro a ação de constranger Haverá coautoria quando a ação típica for realjizada conjuntamente E existirá participação quando fora do caso anterior o agen te cbncorrer para a realização da ação típica 1 Apesar de aceito em geral o mencionado conceito de autor a teoria em questão é criticada sobretudo por não explicar consequentemente a autoria mediata hipótese em que é autor autor mediato quem embora não realize os elementos do tipo pessoal mente utilizase de um terceiro como instrumento autor imediato para a sua realiza ção1vg médico que mata o paciente dolosamente valendose de uma enfermeira que desconhece o plano do autor17 43 Teoria subjetiva 1 A teoria subjetiva que trabalha com um conceito extensivo de autor distingue autÓria de participação a partir da vontade dos concorrentes é autor quem atua com ânimo de autor animus auctoris qualquer que seja sua contribuição material para o fato ou seja independentemente de realizar uma ação típica é partícipe quem toma parte em fato alheio atuando com ânimo de partícipe animus socii ainda que realize a ação típica Decisivo pois para a distinção será sempre a vontade do agente A teoria subjetiva parte portanto do pressuposto de que não é possível distinguir objetivamente autoria de participação visto que ambas são igualmente causas de um resultado típico motivo pelo qual a distinção deve ser feita subjetivamente segundo o plano do agente 1 De acordo com Juarez Tavares existem duas correntes subjetivas uma moderada que pondera subjetivamente em torno do papel principal ou secundário na execução do fato e outra extrema que se funda exclusivamente na consideração de o autor tomar o fato como próprio ou como alheio18 direito penal e conduziria a uma expansão ilimitada do poder punitivo Direito Penal Parte Geral Belo Horizonte DelRey 2007 p 2 1 5 1 6 Magalhães Noronha Direito penal cit p 2 1 7 1 7 Nesse sentido Roxin autoria cit p 5458 1 8 Apontamentos de aula cit 321 PAULO QlJEIROZ 44 A teoria do domínio do fato Para a teoria do domínio do fato uma teoria mista que combina critérios objeti vos e subjetivos especialmente impulsionada por Welzel e Roxin autor como sugere a denominação é a pessoa que detém o domínio da conduta delituosa isto é decide em linhas gerais o se e o como de sua realização19 ou como diz Welzel autor é o senhor da realização do tipo o qual por meio do domínio final da ação distingue se assim do mero partícipe que é quem o auxilia num ato dominado finalmente pelo autor ou que o incita à decisão de delinquir 20 A teoria do domínio do fato tem as seguintes implicações21a é autor quem execu ta por sua própria mão todos os elementos do tipo mata estupra etc b é autor quem executa o fato utilizando outro como instrumento autoria mediata c é autorcoautor quem realiza uma parte necessária da execução do plano global domínio funcional do fato ainda que não seja um fato típico em sentido estrito mas participando da resolu ção criminosa Nos demais casos haverá participação Discutese a aplicabilidade da teoria aos crimes omissivos Roxin que os insere na categoria dos delitos de infração de dever entende que não seja porque o omiten te não é autor por seu eventual domínio do fato mas por infringir um dever de evitar o resultado seja porque o domínio do fato pressupõe uma atuação ativa por parte do autor o que não existe nos crimes omissivos22 seJa porque a se admitir a simples omissão como uma forma de domínio então não seria possível distinguir autoria de participação pois qualquer contribuição a omissão inclusive para o fato poderia ser considerada domínio do fato23 razão pela qual a teoria seria aplicável aos crimes com1ss1vos Apesar de amplamente adotada na atualidade a teoria do domínio do fato tem sido criticada por vários autores 24 ressaltandose dentre outras coisas a imprecisão 19 Muiioz Conde Teoría cit p 196 20 Derecho penal alemán cit p 1 19 21 Cf Jescheck Tratado cit p 593 22 Ibidem p 50 l 504 23 De acordo com Roxin uma fo1mação de conceitos segundo a qual o domínio do fato do omitente se baseia na possibilidade de intervir e evitar o resultado é incorreto e inviável na prática por isso não existe domínio do fato nos casos de omissão e se houvesse com sua ajuda não seria possível fazer uma delimitação das formas de participação ibidem p 504 24 Nesse sentido Mir Puig em que consiste realmente o domínio do fato Temse acusado esta fórmula de carecer de um conteúdo preciso para servir para resolver com nitidez a questão da delimitação entre autoria e paiiicipação Uma possibilidade de concreção do conceito de domínio do fato é entender que concorre no sujeito que tem o poder de inteITomper a realização do tipo Poderseia dizer então que o executor material tem o domínio do fato e é autor porque todas as contribuições anteriores por exemplo do indutor dependem de que aquele culmine a execução e não a deixe inacabada Mas a doutrina tem adve11ido que o poder de interrupção não pode bastar para autoria pois tal possibilidade pode acharse em mãos do indutor do cúmplice e até de terceiros entendendo em consequência que se deve adicionar a ideia de relação de pertinência por isso só são autores aqueles que causam o fato imputável a quem se pode atribuir a pertinência exclusiva ou compa1iida do delito Derecho 322 I091 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO do que pode vir a ser domínio do fato bem como a circunstância de que o controle material do fato não é suficiente à distinção pois tal controle domínio pode acharse eventualmente em mãos do partícipe ou de terceiro 45A teoria do domínio do fato segundo Roxin Rigorosamente não existe uma teoria do domínio do fato e sim diversas mas uma das mais importantes contribuições dadas à teoria coube a Claus Roxin que assim a sintetizou25 1 El autor es la figura central del suceso concreto de la acción 2 La figura central se caracteriza por los elementos dei dominio dei hecho del quebrantamiento de um deber especial o de la comisión de propia mano 1 3 El domínio dei hecho que en los delitos dolosos de comisión determina el con cepto general de autor presenta las manifestaciones dei domínio de la acción dei domínio de la voluntad y dei domínio funcional de hecho 4 E dominio de la acción consiste en la realización dei tipo final y de propia mano 5 El dominio de la voluntad que corresponde a la autoría mediata se classifica en las formas de configuración dei domínio de la voluntad em virtud de coacción que se ajusta ai principio de responsabilidad dei dominio de la voluntad de cuatro gradas em virtud de error y dei domínio de la voluntad de maquinarias de poder organizadas 1 6 El domínio dei hecho funcional que expresa e contenido de la línea directriz de la coautoría se presenta como cooperación en división del trabajo en la fase ejecutiva 1 7 El criterio dei quebrantamiento dei deber especial es determinante para la auto ría en los delitos de infracción de deber por comisión en los delitos omisivos y en los imprudentes 8 La autoría mediata en los delitos de infracción de deber se caracteriza por que el obligado produce e resultado típico por medio de un no obligado 9 La coautoría en los delitos de infracción de deber aparece como quebrantamien to conjunto de um deber especial conjunto penal cit p 366367 De modo similar Cobo dei Rosal e Vives Antón os quais consideram que a teoria do domínio do fato é mais uma imagem do que um autêntico conceito e é em todo caso uma fó1mula imprecisa interpretada rigorosamente resulta inaplicável pois um homem nunca chega a dominar por inteiro o curso dos acontecimentos e ao contrário entendida em sentido amplo poderia predicarse de qualquer classe de ação voluntária pois todas elas supõem certo domínio do fato De recho penal cit p 669 25 Autoría y domínio dei hecho cit p 569570 323 PAULO QJ E I ROZ 10 Los delitos de mano propria se encuentran em el Derecho vigente como delitos de autor jurídicopenal y como delitos vinculados a comportamiento sin lesión de bien jurídico 1 1 La participación es um concepto secundario con respecto al de la autoría Por eso ha de caracterizarse como cooperación sin dominio sin deber especial y sin ser de propia mano 12 La participación en um hecho principal cometido sin finalidade típica por prin cipio está excluida en los delitos de propia mano es posible en los delitos de infración de deber y en los delitos de dominio de circunscribe a la suposición errónea de circunstancias fundamentadoras de dominio del hecho en la perso na del ejecutor directo Como se vê para Roxin o conceito de domínio do fato não é aplicável a todos os crimes mas unicamente aos comuns comissivos e dolosos Neles autor é quem rea liza a ação diretamente autoria direta isto é pessoalmente ou mediatamente auto ria mediata valendose de um terceiro como instrumento bem como quem a realiza conjuntamente coautoria Autor é pois quem domina o fato total ou parcialmente é coautor aquele que presta uma colaboração funcionalmente significativa na fase de execução do delito domínio funcional do fato e é partícipe quem sem dominar o fato concorre para a sua realização Não cabe falar todavia de domínio do fato quanto aos delitos de infração de de ver categoria que compreende entre outros os tipos especiais omissivos e culposos 26 Também os delitos de mão própria constituiriam uma classe especial não explicável segundo a teoria do domínio do fato Aqui portanto o domínio do fato é irrelevante devendo a autoria ser definida segundo outros critérios27 Precisamente por isso nos delitos de infração de dever por exemplo autor não é quem eventualmente domina o fato total ou parcialmente mas quem pratica a ação tí pica isto é nos crimes especiais detém a condição especial prevista em lei e a realiza e nos omissivos aquele que se abstém de praticar a ação exigida pelo respectivo tipo Haverá coautoria se duas ou mais pessoas detiverem a condição legal exigida por lei e praticarem o comportamento típico conjuntamente e será partícipe todo aquele que fora do caso anterior induzirinstigar o autor a realizar a conduta típica pouco impor tando para tanto se domina o fato no todo ou em parte Finalmente para Roxin só existe coautoria quando houver cooperação na efetiva execução do crime razão pela qual não é coautor mas partícipe ou dependendo do 26 Textualmente se se afirma assim que o domínio do fato não basta nos delitos de infração de dever para fundamentar a autoria a questão de colocarse de modo mais radical é necessário o domínio do fato conjunto do curso do fato ao menos junto à infração do dever ou não faz falta A meu juízo há de descartarse completamente a ideia de domínio do fato Autoría y domínio dei hecho cit p 388 27 De acordo com Roxin nos crimes especiais ou próprios vg peculato nem o funcionário precisa ter o domínio do fato nem quem o domina precisa ser funcionário Autoría cit p370 324 I 09 1 CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO caso autor mediato por domínio de aparato organizado de poder o agente que só participe da sua cogitação e preparação Não é coautor por conseguinte o chefe de bando que dirige a ação dos demais nem quem que mediante pagamento contrata a morte de outrem ou o furto de uma obra de arte sem participar diretamente da execução dos crimes Em suma o domínio sobre a preparação não pode fundamentar o domínio sobre o fato pois só há coautoria relativamente aos agentes que tomam parte na execução do delito28 Temos porém que um conceito tão restritivo de autor que praticamente o con diciona à realização dos elementos do tipo não satisfaz seja por considerar como simples partícipe quem pratica uma conduta relevantíssima seja por ampliar excessi vamente o conceito de autoria mediata Convém lembrar inclusive que a pena é agra vada em relação ao agente que promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes CP art 62 I de sorte que também por isso é mais razoável considerar tais indivíduos como autores intelectuais e não simples partícipes Ademais é perfeitamente legítimo falar de domínio comum do fato relativamente ao autor intelectual e o executor 29 Como assinala Juarez Tavares é coautor quem executa diretamente o fato mas também o é aquele que dirige ou planeja a ação uma vez que integra o plano global de sua execução funcional não sendo necessário que esteja presente no local e momento de sua concreta execução 30 5 FORMAS DE AUTORIA A autoria pode ser direta ou de mão própria e indireta ou mediata É autor dire to quem comete o delito pessoalmente ou seja é aquele que no homicídio dispara o revólver no furto subtrai a coisa É autor mediato quem pratica um crime valendose um terceiro como instrumento É autor intelectual quem sem participar diretamente da execução de um crime determina ou contrata a sua execução31 Por sua vez o coautor é um autor direto ou indireto Haverá coautoria por con seguinte sempre que duas ou mais pessoas praticarem uma ação típica conjuntamen te Ou segundo a teoria do domínio do fato há coautoria sempre e quando o domínio do fato pertencer a mais de uma pessoa domínio funcional no todo ou em parte 28 Autoria cit p 325 e ss 29 No mesmo sentido Damásio de Jesus Na autoria intelectual o sujeito planeja a ação delituosa cons tituindo o crime produto de sua criatividade É o caso do chefe de quadrilha que sem efetuar compor tamento típico planeja e decide a ação conjunta Direito penal cit p 40941 0 E mais adiante p 412 O mandante é autor intelectual e não partícipe uma vez que detém o domínio do fato 30 Apontamentos de aula cit 3 1 Tratase de um conceito um tanto em desuso Antônio José da Costa e Silva Código Penal dos Es tados Unídos do Brasil v 1 Brasília Senado 2004 p93 definiao como a dolosa provocação ou determinação por um dos meios indicados na lei de outra pessoa à execução de um crime 325 PAULO QlJEIROZ 51 Coautoria A coautoria é pois a realização conjunta de um delito por duas ou mais pessoas O decisivo portanto na coautoria é que o domínio do fato pertença a várias pessoas que em virtude do princípio da divisão de trabalho assumam igual responsabilidade por sua realização de modo que as distintas contribuições devem ser consideradas como um todo e o resultado total deve ser atribuído a cada coautor independentemente da valoração material de sua intervenção32 Naturalmente para a configuração da coautoria não é necessário que os coautores realizem condutas idênticas v g que todos atirem ou que todos subtraiam valores visto que a divisão funcional do trabalho na coautoria como em qualquer outro em preendimento coletivo implica contribuição mais ou menos diferenciada para a obra comum33 Por fim discutese a possibilidade de coautoria e participação em crimes cul posos 34 51 1 Coautoria em crimes culposos A doutrina alemã35 em geral não admite nem a coautoria nem a participação em crimes culposos diversamente da espanhola36 Já a doutrina brasileira está dividida no particular havendo posicionamento em ambos os sentidos37 Juarez Tavares entende que nem a coautoria nem a participação são possíveis nos crimes culposos É que diferentemente do crime doloso em que o agente atua desde o início contrariamente à norma lesando ou pondo em perigo de lesão o bem jurí dico para a configuração do delito culposo é preciso primeiro que o agente realize uma ação perigosa segundo que essa ação perigosa contravenha a norma de cuidado que se destina a regular aquela espécie de atividade que está sendo desenvolvida e por fim que a execução dessa atividade descuidada tenha se realizado no resultado 32 Muiioz Conde Teoría cit p 1981 99 33 Juarez Cirino A moderna teoria cit p 286 34 De acordo com Welzel quem pratica um fato culposamente mediante uma ação que não observa o dever de cuidado é autor do respectivo crime culposo motivo pelo qual não existe no âmbito dos cri mes culposos diferença entre autoria e participação Derecho penal alemán cit p l 19 No sentido contrário porém de entender cabível a coautoria em crime culposo não obstante falem da necessi dade do requisito subjetivo entre os concorrentes Damásio de Jesus Direito penal cit e Mirabete Manual cit 35 Assim Welzel Jescheck e Roxin 36 Assim Mir Puig e outros 37 Admitindo o concurso de agentes em crime culposo Hungria escreveu O concursus delinquentium é plenamente admissível nos crimes culposos Para que se reconheça o elemento psicológico da par ticipação criminosa é suficiente como já vimos a vontade consciente referida à ação comum Se o resultado é também querido dáse a participação em crime doloso se o resultado não foi querido nem previsto embora previsível ou se foi previsto mas não querido dáse a participação em crime culposo Comentários cit p 420 326 I091 CONCURSO DE AGE NTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO proibido38 Portanto em virtude dessa estrutura complexa do crime culposo se duas ou mais pessoas têm um dever de cuidado e atuam negligentemente de modo a causarem lesão jurídicopenalmente relevante a bem jurídico então cada uma haverá de respon der por seu próprio crime autonomamente autoria colateral e não em coautoria v g equipe médica que decide em conjunto levar adiante cirurgia de risco causando a morte do paciente por imperícia ou imprudência Ainda de acordo com Juarez Tavares também não é possível falar pela mesma razão de participação dolosa ou culposa em crime culposo Assim por exemplo o carona que instiga o motorista a correr mais do que o legalmente permitido não pode responder por crime culposo porque não há relativamente a ele um dever de cuidado e pois infração a um tal dever Em verdade estáse num impasse não pode o insti gador ser autor porque não tem dolo de autor não pode ser partícipe porque se seu dolo se estender à ação descuidada será então autor e não mais partícipe não pode igualmente ser partícipe porque para tanto deveria executar a ação perigosa e se o fizesse seria autor bem como não a executando está desobrigado ao cuidado ne cessário 39 Consequentemente a participação é logicamente inadmissível nos crimes culposos devendo cada um dos participantes responder como autor pela sua respectiva ação dolosa ou culposa40 No mesmo sentido Juarez Cirino dos Santos tem que do ponto de vista concei tuai o concurso no crime culposo é impossível e do ponto de vista prático é desne cessário porque na hipótese de comportamentos imprudentes simultâneos cada lesão do dever de cuidado ou do risco permitido estaria ligada ao resultado motivo pelo qual seriaimputável a cada um dos agentes a título de autoria colateral41 Não estamos de acordo com isso Com efeito temos que tanto a coautoria quanto a participação são perfeitamente compatíveis com os crimes culposos Inicialmente porque o Código ao adotar a teoria monista não fez distinção expres sa entre autoria e participação de modo que quem de qualquer modo concorre para o crime a título culposo inclusive responde penalmente na medida de sua culpabilidade desde que adira à ação também imprudente de outrem Assim por exemplo se duas 1 pessoas ajustam entre si a realização de um pega ou racha Código de Trânsito art 308 1 e um deles vem a colidir com um terceiro causandolhe a morte o causador do evento letal responderá como autor de crime culposo abstraída a discussão sobre a possibilidade de dolo eventual enquanto o outro responderá por participação culposa e se este even tualmente tiver também colidido com o terceiro haverá coautoria culposa Além disso no caso de crime culposo a coautoria e a participação não dizem res peito à produção de um resultado não querido e geralmente não previsto mas à ação 38 Juarez Tavares Direito Penal da Negligência Rio de Janeiro Lumen Juris 2003 p 4 1 641 7 39 Juarez Tavares idem 40 Juarez Tavares ibidem 4 1 Direito Penal cit 327 PAULO QlJEIROZ negligente tomada conjuntamente Enfim se duas ou mais pessoas de comum acordo decidem praticar ações perigosas que produzem resultados imprudentes devem res ponder penalmente como coautores ou partícipes pelas mesmas razões que responde riam caso fossem autores de crimes dolosos Finalmente se assim não for frequentemente o coautor eou partícipe ficarão im punes pois negada a possibilidade de coautoria ou participação em crime culposo dificilmente poderão ser considerados como autores apesar da relevância causal da conduta Notese que nos crimes culposos a adesão subjetiva necessária ao concurso não se refere ao resultado obviamente mas à vontade no sentido de atuar imprudentemen te v g dirigir embriagado competir em alta velocidade etc Obviamente que se não existir nenhum tipo de adesão subjetiva entre os agentes haverá autoria colateral em crime culposo sempre que derem causa a um mesmo resul tado por meio de ações imprudentes autônomas Já vimos que não é possível participação dolosa em crime culposo tampouco par ticipação culposa em crime doloso 52 Autoria mediata A autoria mediata dáse quando o autor se utiliza dolosamente de um terceiro como instrumento para a prática de um crime coação etc hipótese em que em prin cípio só o autor mediato responde penalmente A autoria mediata é pois uma forma de autoria cujo domínio do fato pertence ao homem de trás que controla a ação do executor Naturalmente que a autoria mediata não é de aplicação irrestrita razão pela qual ela deixa de existir quando o sujeito utilizado como instrumento é um autor plenamen te responsável visto que só cabe falar de domínio do fato por parte do autor mediato quando o executor se encontre em sitµação de autêntica subordinação em virtude de coação erro inimputabilidade etc42 É autor mediato por exemplo quem coage física ou moralmente outrem a praticar um delito ou o induz a erro ou instiga portador de transtorno mental a delinquir Mas não bastam tais circunstâncias para qualificar alguém como autor media to pois é necessário que a violência ou erro sejam de tal natureza que convertam em instrumento aquele que atua sob sua influência43 porque do contrário haverá em tese coautoria Não há falar por isso de autoria mediata em relação a adolescentes 42 Jescheck Tratado cit p 605 43 Cobo dei Rosal e Vives Antón Derecho penal cit p 678 Entendem esses autores que para falar se de autoria mediata o instrumento há de atuar se não realiza uma ação como sucede com a hipó tese de vis absoluta então a autoria do homem de trás hitermann não é mediata senão imediata idem 328 1 09 1 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PA RTICI PAÇÃO ou mesmo crianças que participem de crime juntamente com criminosos adultos se e quando o fizerem livremente sem nenhum tipo de coação ou erro Em suma nem sempre a criança ou adolescente que participe de crime sob o co mando de outrem será instrumento porque pode ocorrer inclusive de ser o seu mentor e ter ascendência sobre os demais44 Além disso quem pode ser autor de fato definido como crime adolescente etc pode ser também seu coautor ou partícipe independen temente de ser punível no caso concreto Por fim convém notar que em geral não é admitida a autoria mediata nos crimes culposos especialmente por faltar o domínio do fato Não é aceita tampouco nos cri mes de mão própria por exigirem atuação pessoal do autor vg bigamia45 53 Autoria mediata por domínio de aparato organizado de poder Apesar de a autoria mediata pressupor em princípio a atuação de um executor autor imediato não culpável pois do contrário haverá coautoria possivelmente Ro xin propôs uma nova modalidade de autoria mediata a autoria mediata por domínio de organização ou por domínio de aparato organizado de poder Aliás essa não é a única hipótese de autoria mediata proposta por Roxin em que autor mediato e imediato são penalmente responsáveis visto que ele a admite inclusive quando o homem de trás induz o executor a errar sobre a pessoa errar in persona 1 Tratase de uma espécie diversa de autoria porque aqui autor mediato e imedia to homem de trás e executor são igualmente culpáveis e puníveis Além disso não seriilj o caso de coautoria quer porque o executor é um figura anônima e substituível fungível quer porque não há em geral acordo prévio e preciso entre mandantes e mandatários que com frequência sequer se conhecem vg os chefes de uma orga nização criminosa relativamente a certos membros que dela participam habitual ou eventualmente Roxin escreve textualmente Neste terceiro grupo de casos que é o que aqui nos interessa não falta pois nem a liberdade nem a responsabilidade do executor direto que há de responder como autor culpável e de mão própria Mas essas circunstâncias são irrelevantes para o domínio 44 No sentido do texto Welzel para quem a criança ou o enfermo mental pode desenvolver vontade própria motivo pelo qual no caso de participação de terceiro nesses fatos haverá instigação ou cum plicidade Derecho Penal cit p 124 também Jescheck Tratado cit p 609 e Jakobs que afirma que se contrariando a presunção legal a criança é já capaz de conhecer e observar a norma haverá participação ou coautoria Derecho Penal cit p 779 Criticando Welzel e defendendo posição di versa Roxin assinala que quando houver uso de crianças o sujeito que está por detrás que determina a ação é sempre autor mediato Não obstante entende que quando a criança por sua conta e risco decidir cometer o crime e alguém o auxilia haverá cumplicidade Autoría y domínio dei hecho en Derecho Penal 7ª ed Madrid Marcial Pons p 266267 45 Assim Jescheck Tratado cit No sentido contrário de entender que também os crimes culposos ad mitem a autoria mediata Cobo dei Rosal e Vives Antón Derecho penal cit p 679 329 PAULO QlJEIROZ por parte do sujeito de trás porque o agente não pode ser visto como pessoa individual livre e responsável senão como figura anônima e substituível O executor apesar de participar do domínio da ação é uma engrenagem a qualquer tempo substituível na maquinaria do poder e esta dupla perspectiva impulsa o sujeito de trás junto a ele ao centro do acontecimento46 Cabe afirmar pois em geral que quem é é empregado numa maquinaria organi zativa em qualquer lugar de uma maneira tal que pode impor ordens a subordinados é autor mediato em virtude do domínio da vontade que lhe corresponde se fizer uso de suas competências para que se cometam ações puníveis47 No mesmo sentido Kai Ambos tem que quanto à macrocriminalidade isto é massiva e sistemática planejada e organizada por altos mandatários do Estado ou por um grupo não estatal os autores diretos frequentemente atuam com plena respon sabilidade penal motivo pelo qual a teoria tradicional da autoria mediata é inaplicá vel48 Assinala ainda que para configuração da autoria mediata não interessa tanto o como da execução da ordem quando o se está assegurado Em todo caso o homem de trás poderá confiar que alguma outra pessoa cumprirá suas ordens criminosas A automação do aparato fundamenta o domínio do fato sobre a execução direta do ato e assim parece também sobre executores diretos49 Pois bem temos que definir o domínio de aparato organizado de poder como au toria mediata ou coautoria constitui uma questão secundária O que de fato importa é estruturar juridicamente uma resposta conforme os princípios penais em especial os princípios de culpabilidade e proporcionalidade a evitar a responsabilização penal sem culpa ou por ato de exclusiva responsabilidade de terceiro De todo modo não faz sentido falar neste caso de autoria mediata seja porque esta pressupõe um autor imediato não responsável instrumento seja porque uma vez cessada a irresponsabilidade penal do autor imediato cessa logicamente a autoria me diata que se converte em coautoria dolosa seja porque não cabe cogitar de autoria mediata relativamente a executores plenamente responsáveis e puníveis Em suma a proposta de ampliarse o conceito de autoria mediata para também alcançar agentes pe nalmente responsáveis tornao supérfluo e desnecessário além de não guardar relação alguma com os casos clássicos Como escreve Jakobs referindose à condenação do expresidente peruano Al berto Fujimori que foi considerado autor mediato de diversos crimes praticados du rante sua gestão tratase em verdade de um autor intelectual figura perfeitamente 46 Autoria e domínio dei hecho en derecho penal Madrid Marcial Pons 2000 p273 47 Idem p 275 48 Transfondos políticos y jurídicos dela sentencia contra el ex presidente peruano Alberto Fujimori in autoría mediata cit p74 49 A Parte Geral do Direito Penal Internacional São Paulo RT 2008 p225 330 I091 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E lARTICI AÇÃO conhecida desde a doutrina mais antiga razão pela qual o caso é de coautoria ou ao menos de indutores equiparáveis a autores50 Com efeito os executores de um aparato organizado de poder justamente por atuarem de modo responsável não constituem instrumento algum e portanto quem dá a ordem não é autor mediato mas autor intelectual ou coautor51 Ademais os problemas de legitimação de imputação objetivasubjetiva e valora ção da prova da intervenção penal no particular são exatamente os mesmos quer se trate de autoria mediata quer de coautoria Ou seja independentemente do nome que se dê a esse fenômeno a questão fundamental consiste em punir os culpados e proteger os inocentes enfim decidir justamente 6 PARTICIPAÇÃO EM SENTIDO ESTRITO ACESSORIEDADE A participação é a cooperação no crime do autor participar é colaborar material ou moralmente A participação é pois acessória relativamente à autoria Em razão desse caráter acessório da participação só se pode dela cogitar em con sequência quando o autor tiver praticado um fato típico e ilícito ao menos52 já que não há sentido em pretender punir alguém que se limite a participar de um fato penalmente irrelevante atípico ou conforme o direito lícito A relevância da participação pressu põe portanto a prática pelo autor de no mínimo um fato típico e ilícito Assim não é punível o partícipe se o autor for absolvido por erro de tipo inevitável legítima defesa etc excludentes de tipicidade e de ilicitude Justamente por isso não sé punível a participação quando o crime não chega a ser tentado ao menos pois como regra os atos meramente preparatórios não são pu níveis são atípicos segundo dispõe o Código o ajuste a determinação ou instigação e o auxílio salvo disposição expressa em contrário não são puníveis se o crime não chega pelo menos a ser tentado art 31 Pela mesma razão se iniciada a execução do crime o autor desistir voluntariamente ou se arrepender eficazmente o partícipe não responderá pelo crime objeto da desistência ou arrependimento embora responda pelos atos já praticados na forma do art 1 5 do Código cf Item 31 Contrariamente se a desistência ou o arrependimento forem ineficazes consumar seá o delito cabendo então a punição de todos aqueles que tenham tomado parte no crime a título consumado 50 Sobre la autoria dei acusado Alberto Fujimori Fujimori in La autoría mediata Lima Ara Editores 2010 p 1 06 5 1 Jakobs idem p 108 52 A dependência da participação em face do fato principal como escreve Juarez Cirino referese ao conteúdo do injusto respectivo a participação não tem conteúdo de injusto próprio e por isso assu me conteúdo de injusto do fato principal por outro lado a dependência da participação é limitada à tipicidade e antijuridicidade do fato principal ou seja ao tipo de injusto do fato principal A moderna teoria cit p 291292 331 PAULO QJEIROZ Mas não é necessário para ter lugar a punição do partícipe que o autor seja im putável uma vez que a imputabilidade é uma questão de caráter pessoal e passível de medida de segurança razão pela qual não é comunicável ao partícipe Também não há necessidade de o fato ser punível porque mesmo que o autor seja isento de pena por qualquer motivo v g furto contra ascendente CP art 181 ainda assim o partícipe responderá penalmente 61 Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação Como vimos a participação pressupõe logicamente a autoria por ser uma inter venção secundária no crime do autor Mas esse caráter acessório da participação comporta graus e é ordinariamente as sim classificado53 a acessoriedade mínima a punição do partícipe depende da simples conduta típi ca do autor b acessoriedade limitada a punição do partícipe exige conduta típica e ilícita do autor c acessoriedade máxima ou extremada54 a punição do partícipe exige além da conduta típica e ilícita a culpabilidade do autor d hiperacessoriedade a punição do partícipe depende também da punibilidade do autor Pois bem apesar de a teoria da acessoriedade limitada item b ser amplamente majoritária55 pensamos que a razão está em princípio com a teoria da acessoriedade extremada motivo pelo qual sempre que o autor for absolvido por inculpabilidade v g erro de proibição inevitável tal deverá também beneficiar o partícipe em virtude do caráter acessório da participação Em primeiro lugar porque a inculpabilidade do autor implica o reconhecimento do caráter não criminoso do fato principal logo não faria sentido que se tivesse por criminosa a participação acessória que é É que a participação em fato não crimino so criminosa logicamente não é Em segundo lugar porque a teoria da acessoriedade limitada acaba por autonomizar a participação relativamente à autoria negandolhe 53 Tratase de uma velha classificação que procede de Max Ernst Mayer mas que contrariamente ao que afirma Juarez Tavares Apontamentos cit permanece atual 54 No sentido de admitir a acessoriedade máxima José Cirilo de Vargas Instituições de Direito Penal parte geral tomo Belo Horizonte 1997 p 440 55 Como esclarece Juarez Tavares a teoria da acessoriedade limitada depois da reestruturação do tipo de injusto pelo finalismo passou a ser a teoria dominante porque exige apenas que o autor principal tenha realizado um fato típico e ilícito De acordo com o mesmo autor a teoria da acessoriedade ex trema era própria do sistema causalnaturalista do delito que incluía o dolo e a culpa na culpabilidade Apontamentos cit Apesar disso temos que a teoria da extremada permanece válida embora com fundamentos diversos 332 a pressuposta acessoriedade Em terceiro lugar porque não parece compatível com o princípio da proporcionalidade que embora absolvido o autor se possa castigar o participe Em quarto lugar porque nem sempre é fácil estabelecer uma diferenciação clara entre excluintes de ilicitude e de culpabilidade v g coação moral irresistível e legítima defesa de terceiro e pois saber se o participe é ou não penalmente responsável Quanto à objeção de que o participe seria beneficiado por circunstância pessoal que não lhe diz respeito tal é perfeitamente aplicável às excluentes de tipicidade v g erro de tipo e ilicitude v g legítima defesa e pois não procede Mas nada disso é aplicável à hipótese de inimputabilidade por alienação mental ou menoridade porque diversamente dos demais casos de exclusão de culpabilidade o inimputável sofrerá uma sanção adequada à sua situação medida de segurança e medida socieducativa respectivamente Exatamente por isso o participe ao tomar parte numa ação típica ilícita e culposa logo punível será castigado na forma da lei Aqui sim a circunstância de caráter pessoal do autor não se comunica ao participe E mesmo que pudesse aproveitálo não seria para deixálo imune mas para lhe impôr por medida de segurança ou medida socieducativa sanções legitimamente incompatíveis com a sua condição de imputável Finalmente não parece correto dizer que o Código Penal adotou a teoria da acessoriedade limitada por conta do disposto nos arts 29 2 30 31 e 62 todos do CP Sim porque embora tais artigos afirmem a acessoriedade da participação nada dizem sobre o seu grau que é assim uma questão doutrinária E mais dizem respeito essencialmente à punibilidade e à individualização da pena e só acidentalmente à teoria do crime Releva notar que nada disso teorias sobre os graus de acessoriedade é aplicável à coautoria já que é uma forma de autoria razão pela qual não há cogitar de acessoriedade de nenhuma espécie Enfim o coautor é como regra punível independentemente do que ocorra com os demais 7 FORMAS DE PARTICIPAÇÃO INSTIGAÇÃO E CUMPLICIDADE A doutrina refere duas formas de participação a instigação e a cumplicidade A primeira ocorre quando o instigador persuade o autor por meio de conselhos etc a praticar um crime E a cumplicidade é o auxílio material prestado ao autor Participa será enfim todo aquele que prestar uma colaboração juridicamente relevante para a execução do crime quer persuadindo quer auxiliando o autor Assim é participe de crime de homicídio a mulher que convence o amante a matar a esposa tanto quanto o motoboy que conduz dolosamente ao local do crime PAULO QJEIROZ Quanto ao agente que contrata pistoleiro a doutrina considerao em geral sim ples partícipe instigador Nesse sentido Juarez Tavares quem por exemplo aconse lha alguém a matar seu desafeto é instigador assim também aquele que contrata um pistoleiro para fazêlo58 Também assim Paul Bockelmann É mero partícipe insti gador e não autor quem ao invés de matar apenas paga o assassino mesmo que o interesse na execução do fato exista apenas para ele e não para aquele que aceitou o serviço59 Parecenos porém que o mais correto é considerálo autor autor intelectual seja porque detém o controle do fato decidindo sobre quem como e quando deva consu marse o delito seja porque sua conduta é tão ou mais relevante que a do executor ma terial tanto que sua pena é agravada 8 COAUTORIA E PARTICIPAÇÃO NOS CRIMES OMISSIVOS Discutese a possibilidade de coautoria e participação em crime omissivo haven do quem como Armín Kaufmann responda negativamente porque v g se cinquenta pessoas que sabem nadar assistem passivamente a uma criança se afogar cada um é autor de uma omissão punível60 Parecenos todavia que tanto a coautoria quan to a participação são perfeitamente possíveis nos crimes omissivos próprios e impró prios 61 Com efeito haverá coautoria por omissão própria ou imprópria sempre que os coautores deixarem de cumprir um dever legal de agir que lhes compete conjunta mente62 v g diretores de uma empresa desde que assim procedam de comum acordo nexo subjetivo pois do contrário ambos responderão individual e autonomamente como autores de uma omissão tal como no exemplo dos nadadores O princípio por tanto é o mesmo dos crimes comissivos houve consciência e vontade de realizar um empreendimento comum ou melhor de não realizálo conjuntamente63 logo respon dem em coautoria No caso de omissão imprópria só ocorrerá a coautoria se os coautores ostentarem simultaneamente o status de garante já que como assinalado a coautoria é uma forma de autoria E se alguém não for garante será partícipe se concorrer instigar induzir etc para a omissão criminosa A participação também é possível tanto nos crimes omissivos próprios quanto nos impróprios por parte de quem não tendo o dever legal de agir não sendo autor por tanto tenha concorrido para o não agir criminoso Notese que a participação pressu põe que o partícipe instigue ou induza o autor a se omitir participação por comissão 58 Apontamentos cit 59 Direito Penal cit p 21 9 60 Dogmática de los delitos de omisión Madrid Marcial Pons 2006 p 202 61 No sentido do texto Roxin Autoria y participación cit p 50751 O 62 Jescheck Tratado cit p 582 63 Cezar Bitencourt Manual cit p 396 334 I091 CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO em crime omissivo porque se houver simples omissão a sua conduta será jurídico penalmente irrelevante de modo que nos crimes omissivos próprios não é possível portanto participação por simples omissão Tratandose de crime comissivo e à exceção da situação do garante também a simples omissão é atípica No caso do garante poderá ocorrer inclusive a chamada participação omissiva em crime comissivo v g o agente da segurança deixa de fechar o cofre a fim de um furto Finalmente quanto à possibilidade de autoria mediata em crimes om1ss1vos a doutrina majoritária responde quase sempre negativamente 9 PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA O Código art 29 1º dispõe que se a participação for de menor importância a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço A participação de menor importância é uma causa de redução de pena em virtude da menor culpabilidade do agente Naturalmente que a participação de que estamos tratando não é a que pela sua absoluta irrelevância admite a aplicação do princípio da insignificância mas aquela que confrontada com a a participação dos demais seja de mínima importância embo ra penalmente relevante É o caso da faxineira que intervém numa extorsão mediante sequestro limitandose a alimentar a vítima em cativeiro etc A causa de redução de pena só é aplicável em princípio à participação propria mente dita em sentido estrito e não à coautoria pois dificilmente se poderá conside rar a cooperação de um coautor como de menor importância Reconhecida a participação de menor importância o juiz deverá reduzir a pena de um sexto a um terço fundamentadamente não se trata por conseguinte de mera faculdade apesar de o Código utilizar a expressão pode 10 PARTICIPAÇÃO DOLOSAMENTE DIVERSA OU DESVIO SUBJE Tryo DE CONDUTA Dáse o desvio subjetivo de conduta ou participação dolosamente diversa sem pre que o autor de um crime doloso vai além do ajustado com os demais coautores ou partícipes e comete delito mais grave do que havia sido acordado Apesar do nome o instituto é também aplicável à coautoria de modo a afastála quando ficar claramente configurado o excesso64 Exemplo A encomenda a B a morte de C B porém se exce de e mata C D e E seguranças de C que o acompanhavam hipótese em que A em princípio responderá por um único homicídio diversamente de B que responderá por 64 Como escreve Roxin não cabe falar de coautoria no excesso doloso de um coautor porque quem vai além do acordado sem que os demais cooperem se desvincula da dependência funcional passando a atuar como autor único direto ou quanto ao comparsa que nada sabe como autor mediato Autoría cit p 3 1 7 335 PAULO QJ E I ROZ triplo homicídio Com efeito o art 29 2º do CP dispõe se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave serlheá aplicada a pena deste essa pena será aumentada até a metade na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave E assim deve ser porque se o dolo pressupõe consciência e vontade de realização dos elementos do tipo seguese então que quando o resultado mais grave estiver além do conhecimento e vontade necessários à sua configuração a rigor dolo não há direto ou eventual relativamente ao coautorpartícipe que ajustara o cometimento de crime menos grave Além de evitar a imputação de resultado mais grave sem dolo ou sem culpa o dis positivo legal pretende impedir que o coautor ou partícipe que havia decidido praticar infração menos grave responda por crime de exclusiva responsabilidade de terceiro princípio da pessoalidade da pena De acordo com o Código portanto cada um responde somente até onde alcança o acordo recíproco65 devendo o concorrente responder segundo o seu dolo e não confor me o dolo do autor do crime mais grave66 Assim no exemplo citado A responderá por um único homicídio e não por três e se previsível o resultado mais grave continuará a responder por um só crime mas já agora com pena aumentada até a metade Evidentemente que se o resultado mais grave for imputável a título de dolo dire to ou eventual não haverá participação dolosamente diversa mas participação idênti ca ou similar motivo pelo qual os agentes deverão responder por todos os delitos em coautoria ou participação conforme o caso O artigo agora comentado deve pois ser entendido nos seguintes termos relati vamente ao agente que ajustou a prática de crime menos grave 1 se o resultado mais grave for imprevisível responderá nos limites do ajuste se o ajustado foi um homicí dio responderá por um único e não por vários 2 se o resultado mais grave for pre visível e portanto imputável a título de culpa continuará a responder nos limites do ajuste mas já agora com pena aumentada até a metade 3 se o resultado mais grave for imputável a título de dolo direto ou eventual não existe participação dolosamente diversa mas idêntica ou similar Exatamente por isso é que quem toma parte em crime de roubo com emprego de arma de fogo responde em princípio por latrocínio consu mado ou tentado a título de dolo eventual ao menos quanto ao resultado mais grave morte ainda que não tenha efetivamente atirado contra a vítima 11 COMUNICABILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DE CARÁTER PESSOAL O art 30 do Código dispõe não se comunicam as condições e circunstâncias de caráter pessoal salvo quando elementares do crime A contrario sensu são comunicá veis como regra as circunstâncias de caráter impessoal objetivas 65 Welzel Derecho penal alemán cit 66 Cezar Bitencourt Manual cit p 450 336 I091 CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO As circunstâncias no sentido amplo como o vocábulo é aqui empregado não são apenas as que excedem a configuração do tipo penal isto é as agravantes e atenuantes genéricas e especiais mas também as que constituem elementos essenciais do crime ou que de qualquer modo alteram excluem ou extinguem a punibilidade67 São pessoais as circunstâncias de natureza subjetiva isto é as condições ou qua lidades que só dizem com a pessoa de tal ou qual concorrente sem qualquer reflexo sobte a execução material do crime como a reincidência o motivo torpe a embriaguez prerdenada etc e são reais ou objetivas as que afetam a execução material do crime isto é que dizem respeito à natureza espécie meios objeto tempo lugar etc a exem plo da emboscada do emprego de veneno etc 68 Pois bem a finalidade da norma em questão é preservar em especial o princípio da pessoalidade da pena impedindo que o coautor ou partícipe responda por uma con dição ou circunstância que não lhe diz respeito dado o seu caráter pessoal Imaginese por exemplo que A venha a cometer homicídio contra seu pai contando com o apoio de B um estranho Em tal hipótese aplicarseá a A a agravante do art 61 e do CP crime contra ascendente B porém não terá sua pena agravada por isso em razão do caráter pessoal da agravante em causa ser filho da vítima É que se fosse aplicada a aludida agravante também a B violarseia o princípio da pessoalidade da pena visto que ele sofreria a incidência de circunstância relativa a terceiro A Justamente por isso vigora como regra geral o princípio da incomunicabilidade das circunstâncias ou condições de caráter pessoal que não se estendem aos coautores e partícipes Assim não são comunicáveis a reincidência o motivo fútil ou torpe a embriaguez preordenada o parentesco art 61 a menoridade o motivo de relevante valor moral art 65 etc seja para agravar a pena seja para atenuála Mas em caráter de exceção as circunstâncias pessoais quando elevadas à condi ção ide elementares do crime isto é quando passem a integrar a definição do tipo penal crimes próprios ou especiais comunicarseão aos coautores e partícipes Assim por exemplo aquele que concorre para o peculato CP art 312 ou para a concussão CP art 316 crimes que só podem ser praticados por funcionário público responderá por esses crimes e não por outro crime comum ainda que não seja funcionário público Também por isso responde por infanticídio CP art 123 quem ajuda a mãe a praticá lo No particular incide o salvo quando elementares do crime que consta do art 30 Naturalmente que tais circunstâncias não se comunicarão se o coautor ou participe as desconhecer isto é agir sem dolo Finalmente as circunstâncias objetivas materiais ou reais em razão do seu ca ráter impessoal comunicamse como regra aos partícipes v g emprego de veneno meio cruel etc Mas não é de todo exato afirmar como Hungria que são sempre 67 Hungria Comentários v 1 cit p 436 68 Hungria idem p 436437 337 PAULO QJ E I ROZ comunicáveis porque quem se mete numa empresa criminosa aceitalhe de antemão os riscos69 Sim porque também aqui é preciso não perder de vista os princípios de legalida de e pessoalidade da pena que orientam essa discussão a fim de evitar que o sujeito responda por uma circunstância que não lhe diz respeito quer porque a desconhecia quer porque não aprovou o uso do meio mais gravoso Exemplo se A encomenda a B a morte de alguém de uma determinada forma digamos com o uso de revólver que lhe é dado não parece razoável que se B por sua conta e risco o fizer por meio de veneno etc sem que A tenha prévio conhecimento disso ou anuído para tanto tenha ele A de responder também por essa qualificadora que deve ser imputada ao seu autor exclusi vamente B A não ser assim haveria responsabilidade penal objetiva ou presumida relativa mente à incidência da circunstância qualificadora Notese que o homicídio simples é punido com pena de 6 a 20 anos de reclusão CP art 121 caput e o qualificado com pena de 12 a 30 anos de reclusão CP art 121 2º 69 Hungria ibidem cit p 436 338 A ilicitude ou antijuridicidade é a relação de contrariedade entre um fato e o ordenamento jurídico como um todo motivo pelo qual a conduta será considerada ilícita sempre que praticada sem o amparo de uma causa de justificação como ordinariamente ocorre alhures Assim quem atua amparado por uma excludente v g legítima defesa atua conforme o direito caso contrário agirá ilicitamente Em suma a ilicitudeantijuridicidade é a ausência de justificação legal para a realização de uma ação típica Conforme vimos do ponto de vista analítico o crime é um fato típico ilícito e culposo distinção que não preexiste à interpretação mas é dela resultada motivo pelo qual uma mesma conduta ora poderá ser considerada excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabilidade e viceversa A interpretação é o ser do direito e o ser do direito é um dever já o dissemos De acordo com a já referida teoria dos elementos negativos do tipo aqui adotada um fato típico é necessariamente um fato ilícito mas nem todo fato ilícito é típico v g simples violação de contrato A ilicitude portanto é um momento da própria realização do tipo que se compõe de duas partes a a parte positiva do tipo que é a realização de todos os seus elementos e b a parte negativa do tipo que é a ausência de causas de justificação Exatamente por isso a ausência de causas de justificação confirma o tipo tipo total enquanto sua presença nega o tipo por isso o nome teoria dos elementos negativos do tipo Os elementos que negam o tipo são as excludentes de ilicitude legítima defesa etc Pois bem diversamente dos conceitos de tipicidade e culpabilidade que são conceitos propriamente jurídicopenais a ilicitude é um conceito jurídico e por isso válido para todo o direito e não só para o direito penal Justamente por isso a sentença que reconhece a presença de uma causa de justificação faz em princípio coisa julgada nCivil valendo para todo o direito e não só para o direito penal O Código prevê art 23 quatro excludentes de ilicitude ou causas de justificação a legítima defesa o estado de necessidade o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito No Código Penal português também o consentimento do ofendido figura como causa de justificação art 31 PAULO ÜlJEI ROZ Apesar disso a doutrina discute conforme se verá mais tarde a correta posição sistemática de algumas excludentes 2 REQUISITO SUBJETIVO NAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO Discutese se para reconhecerse uma causa de justificação é necessário que o agente além da presença dos requisitos legais objetivos saiba que atua sob o seu am paro isto é que na legítima defesa por exemplo aja com animus defendendi Parecenos que para a configuração de uma causa de justificação não é suficiente a presença dos requisitos objetivos exigindose ainda que o autor tenha ciência de que está amparado por uma excludente de ilicitude Assim não pode se valer da le gítima defesa quem mata por vingança embora venha a se provar que se encontrava objetivamente em situação de legítima defesa se desconhecia completamente o estado justificante em que se encontrava É que ao atuar movido por vingança e não com a finalidade de autodefesa o au tor de acordo com sua representação pratica um crime não podendo assim valerse de uma causa de justificação visto que não pode ser considerada conforme o direito uma conduta que subjetivamente constitui um delito1 Além disso e como diz Roxin do ponto de vista da concepção do injusto hoje do minante uma conduta só pode ser conforme o direito se desaparecer tanto o desvalor da ação como o desvalor do resultado o que não ocorre em tal situação já que subsiste ao menos o desvalor da ação em toda a sua extensão 2 Em todas as causas de justificação portanto o sujeito que a invoca além de aten der aos requisitos de ordem objetiva deve também agir com o conhecimento da situa ção justificante Por isso é que subsistindo o desvalor da ação não pode haver legítima defesa sem vontade de defenderse estado de necessidade sem intenção de salvar bem em perigo nem estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito sem consciência de agir em tais condições3 Mas o assunto é dos mais controvertidos havendo autores como Juarez Tavares que consideram que o juízo de ilicitude à semelhança do juízo de tipicidade por fazer parte de um processo de imputação deve ser sempre aferido objetivamente bastando que o sujeito tenha tomado como possível a verificação de uma situação justificante4 1 Roxin Derecho penal cit p 597 2 Derecho penal cit p 597 3 Fragoso Lições cit p 1 85 4 Teoria do injusto penal cit p 308 e ss No mesmo sentido são em geral autores causalistas coe rentes com o conceito objetivo de antijuridicidade a exemplo de Hungria a legítima defesa por isso mesmo é uma causa objetiva de exclusão de injuridicidade só pode existir objetivamente isto é quando ocorrem efetivamente os seus pressupostos objetivos Nada têm estes a ver com opinião ou crença do agredido ou do agressor Devem ser reconhecidos de um ponto de vista estritamente objeti vo Assim se Tício ao voltar à noite para casa percebe que dois indivíduos procuram barrarlhe o passo em atitude hostil e os abate a tiros supondoos policiais que o vão prender por um crime 340 I J O CAUSAS DE J USTIFICAÇÃO OU EXCLUD ENTES DE I LICITUDE Convém notar porém que nada disso se aplica ao crime culposo visto que nestes o desvalor da ação já é analisado praticamente no tipo de injusto por meio do questio namento da lesão ao dever de cuidado razão pela qual carece de importância a apura ção do elemento subjetivo para o reconhecimento de uma causa de justificação 5 3 EXCESSO NAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO O Código art 23 parágrafo único dispõe que o agente responderá em quaisquer das causas de justificação por excesso doloso ou culposo Apesar de aplicável a todas as excludentes o excesso é mais frequente na legítima defesa Naturalmente que o excesso de que estamos tratando não é aquele que pela abso luta desnecessidade ou desproporção dos meios afasta a própria descriminante v g mjtar uma criança que subtrai frutas pois se assim for o caso será de ausência pura e simples da excludente por ser absolutamente desnecessária uma vez que a autodefe sa e a proteção da ordem jurídica encontram a sua limitação conjunta no princípio da proporcionalidade que atravessando a ordem jurídica como um todo faz com que se negue por exemplo a legítima defesa quando houver total desproporção entre os bens jurídicos em conflito6 O excesso em questão pressupõe logicamente portanto o reconhecimento da cau sa ide justificação Existe pois excesso sempre que o autor achandose inicialmente amparado por uma causa de justificação for além de seus limites legais razão pela qual para ser admitido é indispensável que a situação caracterize a presença de uma excludente cujo exercício em um segundo momento mostrase excessivü7 Exemplo A depois de imobilizar B que tentava agredilo com uma faca decide castigálo com outros golpes desnecessários causandolhe lesões hipótese em que responderá pelas lesões subsequentes à situação justificante se eventualmente der causa à morte res ponderá por homicídio doloso ou culposo conforme o caso E há excesso no estado de necessidade se depois de saciar a fome o autor de furto famélico resolve estocar mercadoria furtada para revendêla posteriormente Em conclusão existe excesso na legítima defesa quando o agente embora ini cialmente amparado por uma causa de justificação e mesmo depois de fazer cessar a agressão que sofrera prossegue lesionando seu agressor desnecessariamente que anteriormente praticado quando na verdade são ladrões que o querem despojar não se pode negar a legítima defesa Comentários cit p 289 5 Cf Juarez Tavares Teoria do crime culposo Rio Lumen Juris 2009 p 393394 6 Roxin Política criminal cit p 54 7 Cezar Bitencourt Manual cit p 252 Por isso não é exato dizer como faz Assis Toledo que ocorre excesso quando o agente ao se defender de uma injusta agressão emprega meio desproporcionada mente desnecessário exemplo para defenderse de um tapa mata a tiros o agressor Princípios básicos cit p 208 Com efeito sendo o recurso desnecessário como o é revidar um tapa com o tiro o agente não poderá invocar legítima defesa ante a evidente ausência de um seu requisito fundamen tal necessidade dos meios empregados 341 PAULO QJ E I ROZ agora passa à condição de vítima Enfim havendo excesso o agente que se defendia passa da legalidade à ilegalidade devendo responder penalmente a título de dolo ou culpa E assim é porque cessada a agressão injusta cessa também a autorização legal para a defesa que embora inicialmente legítima convertese em ilegítima Existindo excesso na legítima defesa poderá eventualmente ocorrer a chamada legítima defesa sucessiva inclusive o agressor convertese em vítima podendo reagir legitimamente v g autor de crime que depois de legalmente preso é submetido à tortura Reconhecido o excesso o agente responderá a título de dolo ou culpa conforme seja intencional ou imprudente a sua atuação excessiva Obviamente que a punição do excesso culposo só ocorrerá quando se tratar de fato punível a esse título e tal não for exculpável Justamente por isso é que o Código Penal português art 33 dispõe que o agente não é punível se o excesso resultar de perturbação medo ou susto não censurá veis Semelhantemente dispõe o nosso Código Penal Militar art 45 parágrafo único não é punível o excesso quando resulta de escusável surpresa ou perturbação de âni mo em face da situação 4 EFEITOS A ilicitude é a relação de contrariedade entre a conduta e o ordenamento jurídico como um todo e não só em relação ao direito penal Precisamente por isso a sentença penal que reconhece uma causa de justificação produz como regra os seguintes efei tos penais e não penais8 1 faz coisa julgada no cível impedindo eventual ação de reparação de dano pela vítima ou seus sucessores excluindo assim a responsabilidade extrapenal civil administrativa 2 impede a aplicação de qualquer outra consequên cia penal a exemplo das medidas de segurança 3 em razão do caráter acessório da participação os partícipes não respondem penalmente uma vez que o autor atua legi timamente9 8 Em sentido contrário Larrauri Justificación cit p 66 para quem nem sempre há essa exclusão da responsabilidade penal a persistência da responsabilidade civil ou administrativa não é em minha opinião um critério válido para afirmar ou negar a presença de uma causa de justificação Expressan do em outros termos o fato de que uma causa de justificação não elimina todo efeito jurídico ulterior seja uma responsabilidade civil ou sanção administrativa é porque a pena sanção ou responsabi lidade civil têm distinto fundamento Cita como exemplo a declaração judicial de que um guarda municipal tenha atuado no cumprimento do dever o que não impediria que um terceiro acionasse a Administração Pública para obter indenização com base na responsabilidade objetiva p 6668 Apesar disso afirma em síntese em minha opinião é correto afirmar que as causas de justificação marcam o âmbito dos comportamentos autorizados que estas têm como função delimitar o justo do injusto Roxin 1 987234 1994496 que representam o deverser sollen frente ao poder kõn nen próprio da culpabilidade Welzel 1976200 Hassemer 1 987 194 porém disso não deriva que eliminem toda consequência jurídica ou que devem ter um paralelo direito ou dever noutros setores do ordenamento jurídico p 7374 9 Luzón Pefía Curso cit p 577578 342 I IO I CAUSAS DE J USTIFICAÇÃO OU EXCLU DENTES DE I LICITUDE Mas a sentença penal que reconhece uma excludente de ilicitude não fará coisa julgada no cível admitindose por isso a ação de reparação de danos nos seguintes casos excepcionais 1 descriminante putativa erro por não constituir uma excludente legal de ilicitude mas de tipicidade ou de culpabilidade conforme a respectiva orienta ção 2 aberratio ictus por vitimar terceiro inocente 3 excesso visto que o agente vai além do necessário respondendo a título doloso ou culposo Quanto ao estado de necessidade o Código Civil arts 188 929 e 930 assegura dineito à indenização à pessoa lesada ou ao dono da coisa sempre que não for o culpado pela situação de perigo cabendo inclusive ação regressiva do autor do dano contra o terceiro responsável 5 ERRO SOBRE CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO Conforme vimos pode ocorrer de o agente se supor equivocadamente amparado por uma causa de justificação e assim violar bem jurídico alheio Dessa modalidade de 1 erro cuida o art 20 1 º do Código com o nome de descriminante puta tiva que dispõe é isento de pena quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que se existisse tornaria a ação legítima Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo Existe pois erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação sem pre que o autor supuser que age amparado por uma excludente de ilicitude sempre en fim que tiver razões para acreditar que atua numa situação justificante isto é que atua em legítima defesa estado de necessidade etc embora nada disso ocorra efetivamente Assim por exemplo se o autor fere um seu desafeto por supor fundadamente que este iria matálo ficará isento de pena exceto se tiver agido com imprudência e o crime for punível a esse título caso em que responderá por crime culposo Naturalmente que o autor só poderá se valer da descriminante putativa quando além do próprio erro estiverem presentes todos os requisitos legais relativos à exclu dente legal de que se trata No caso de legítima defesa putativa por exemplo tal só é ca9ível se houver repulsa necessária e moderada a uma agressão injusta atual ou imi nente a direito próprio ou alheio Exatamente por isso o autor de roubo que mata a sua 1 vítima por supor que esta estava armada e que reagiria ao assalto não pode invocála pois a sua agressão é criminosa injusta portanto Enfim a distinção entre por exem plo uma legítima defesa real e uma putativa reside apenas no caráter imaginário dessa última O erro de que estamos tratando isto é o erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação pode ser inevitável e evitável se inevitável o autor fica isento de pena se evitável o agente responde por crime culposo se se tratar de infração punida a esse título Apesar de a doutrina divergir quanto à natureza jurídica da descriminante putati va parece claro que o Código a tratou como uma modalidade de erro de tipo conforme vimos 343 PAULO QJElROZ 6 CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO EM ESPÉCIE 61 Legítima defesa Se o fim do direito penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos ante os ataques mais intoleráveis nada mais razoável que reconhecerse àquele que sofra uma lesão jurídica ou se ache sob ameaça de sofrêla o direito de autodefenderse sempre e quando a proteção jurídica que o Estado se predispõe a prestar não puder ser pronta mente realizada Daí se reconhecer a todo indivíduo o direito à legítima defesa diante de ataques ilícitos a bem jurídico seu ou de outrem O indivíduo assim ao se valer da legítima defesa não apenas exerce um direito seu como também concorre para a realização daquela tarefa primária do direito penal que é a proteção de bens jurídicos por meio da autodefesa necessária à preservação de direito seu ou de terceiro injustamente violado ou sob séria e grave ameaça de vio lação Portanto além da proteção individual a legítima defesa tem outro fundamento a afirmação do próprio direito Daí se dizer que o legislador ao permitir a legítima defesa para proteção individual persegue simultaneamente um fim de prevenção geral pois considera desejável que o ordenamento jurídico seja afirmado em face de agres sões a bens jurídicos individuais10 611 Requisitos A legítima defesa CP art 25 exige o concurso simultâneo dos seguintes requi sitos legais a agressão injusta b atualidade ou iminência da agressão c defesa de direito próprio ou de terceiro d necessidade e moderação dos meios empregados A Agressão injusta Atual ou iminente Em primeiro lugar se é de defesa que se trata tal há de pressupor um ataque proveniente de terceiro logo não pode haver legítima defesa senão em face de uma agressão necessariamente agressão humana isto é ato de terceiro ação ou omissão que lese ou ameace de lesão bem jurídico próprio ou alheio Tratandose de ataque de animais a hipótese será a de estado de necessidade sal vo se se tratar de um ataque dirigido por uma pessoa caso em que o animal v g um cão constituirá apenas o instrumento de realização de uma agressão humana Não é possível pela mesma razão legítima defesa para repelir ato de pessoa jurídica ou do Estado embora seja plenamente válida contra aquele que a represente e atue antijuri dicamente Assim o autor de crime que vier a ser preso legalmente poderá empregar eventualmente violência contra o policial que lhe impuser ilegal constrangimento v g 1 O Roxin Derecho penal cit p 608 No mesmo sentido Hungria a defesa privada não é contrária ao direito pois coincide com o próprio fim do direito que é a incolumidade dos bens ou interesses que coloca sob tutela Realiza vontade primária da lei colabora na manutenção da ordem jurídica E assim não pode deixar de ser autorizada ou facultada ou declarada pela própria lei objetivamente lícita Comentários cit p 286 344 l l ü l CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO OU EXCLU DENTES DE I LICITUDE torttura De modo similar não comportam legítima defesa atos puramente causais isto é atos que não sejam propriamente ações humanas como ataque convulsivo epiléptico ou durante o sono etc os quais podem ensejar estado de necessidade11 Também as ações culposas autorizam a invocação da legítima defesa como a ameaça com emprego de arma inclusive exercida contra motorista que dirige em alta velocidade imprudentemente pondo em risco a vida dos passageiros12 Por igual a omissão própria ou imprópria pode constituir agressão passível de legítima defesa v 1g delegado que se recuse a cumprir alvará de soltura médico que deixe de conce der alta ao paciente 1 No caso de omissão imprópria a legítima defesa diante de uma agressão omissiva pode ser realizada ou obrigando o garante a efetuar a atividade que evite o resultado v g obrigar a mãe mediante ameaça a alimentar o filho que pretendia matar por inani ção ou sendo o próprio terceiro defensor que o faça13 Quanto à omissão própria em bora parte da doutrina entenda que não pode ensejar a legítima defesa14 nada impede que tal como na situação anterior se obrigue por exemplo alguém a prestar socorro quando for possível fazêlo sem risco pessoal CP art 135 bem como se constranja o médico a notificar doença CP art 268 A agressão para poder ensejar a defesa legítima deverá ser também injusta isto é pão autorizada pelo direito ilícita não precisando configurar necessariamente in fração penal crime ou contravenção podendo ser exercitada por exemplo para pro teÇão da posse nos termos do Código Civil pouco importando se tal fato constitui ou não crime Sendo justa lícita a agressão evidentemente que não será admitida a de fesa como v g a reação contra prisão legal em flagrante delito ou no cumprimento de mandado judicial Por essa razão não pode haver legítima defesa contra legítima defesa contra estado de necessidade estrito cumprimento do dever legal exercício regular de direito ou consentimento do ofendido exceto se um dos contendores estiver em situação putativa pois obrigatoriamente alguém terá de atuar ilicitamente A agressão embora injusta não precisa ser culpável 15 podendo partir tanto de imfutável quanto de inimputável bem como de inculpáveis de um modo geral mesmo porque não pode a ordem jurídica impor a ninguém um sacrifício de direito seu diante de ataque de pessoa inculpável por qualquer motivo v g agressor que age sob coação moral 1 1 Nesse sentido Roxin Derecho penal cit p 6 1 2 12 Em sentido contrário ZaffaroniPierangeli Manual cit 13 Roxin Derecho penal cit p 612 14 Assim Roxin que considera não ser possível por exemplo que o motorista que se recuse a levar ao hospital vítima de um acidente de trânsito não possa ser coagido a tanto uma vez que se a omis são própria não é punível como lesão ao bem jurídico homicídio lesão corporal tampouco pode fundamentar a agressão ao bem jurídico Derecho penal cit p 614 No sentido do texto Jescheck Tratado cit 1 5 De modo diverso Jakobs Derecho penal cit 345 PAULO QlEROZ Mas nesse caso tendose em conta a especial vulnerabilidade do agressor sobre tudo quando se tratar de crianças alienados mentais e ébrios sem sentido é de convir com Roxin16 que o recurso à legítima defesa somente deve ocorrer em último caso porque do contrário não haverá necessidade da reação a justificála motivo pelo qual a o agredido tem de se esquivar sempre que for possível fazêlo sem risco pessoal b devese buscar auxílio alheio se possível assim repelir menos duramente a agressão17 Não afasta a legítima defesa a eventual provocação do agredido v g se havia an tes injuriado o agressor isto é não elimina a injustiça da agressão exceto se tal cons tituir um expediente para simular uma situação de legítima defesa que jamais existiu Também não pode invocar a excludente o agente que aceita desafio ou duelo motivo pelo qual o vencedor responderá por crime Quanto ao chamado agente infiltrado cuja atuação requer autorização judicial que estabelecerá precisamente os poderes e limites de sua atuação a Lei nº 128502013 prevê que não é punível no âmbito da infiltração a prática de crime no curso da inves tigação quando inexigível conduta diversa art 13 parágrafo único Significa então que se praticar crime o agente infiltrado responderá penalmente exceto se o fizer nos limites da autorização judicial legítima E quando atuar nos limites legais não agirá culpavelmente inexigibilidade de conduta diversa Naturalmente que nada impedirá que se possa eventualmente invocar outras ex cludentes de criminalidade a exemplo da legítima defesa desde que presentes os seus requisitos Convém notar por fim os limites da infiltração é assunto dos mais controvertidos seja porque a lei não define expressamente quais são esses limites seja porque pare cem de fato indefiníveis seja porque ao se permitir a prática de crimes pelo agente infiltrado o Estado se coloca no mesmo nível dos criminosos B Atualidade ou iminência da agressão Não é qualquer agressão ilícita que pode ensejar a legítima defesa devendo ser atual isto é que está se consumando ou iminente que está por se consumar Tratan dose por conseguinte de agressão passada não se configurará a defesa legítima si tuação em que haverá vingança pura e simples não amparada pelo direito Por igual se se cuidar de agressão futura logo nem atual nem iminente incerta enfim não será admitida a excludente pois como dizia Magalhães Noronha a legítima defesa não se 1 6 Derecho penal cit p 638 1 7 No mesmo sentido Jescheck frente a crianças jovens ébrios enfermos mentais pessoas sujeitas a etTo e pessoas que atuam imprudentemente ou em estado de necessidade 35 não se precisa de nenhuma afirmação do ordenamento jurídico pois sua vigência ou não é questionada pela agressão ou só o é de modo acidental Por isso em tais casos a razão do direito de legítima defesa consiste unicamente na faculdade de autodefesa Isso significa que o agredido deve limitarse à proteção dos bens jurídicos e só se acha autorizado para lesionar o agressor quando não possa defenderse sem abandonar o interesse protegido Tratado cit p 3 1 O 346 I IO I CAUSAS DE JUSTI FICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE I LICITUDE funda no temor de ser agredido nem no revide de quem já o foi18 A reação é portanto em qualquer caso preventiva preventiva no começo de ofensa ou preventiva de maior ofensa não sendo cabível contra agressão que já cessou ou contra simples ameaça de sacompanhada de perigo concreto e imediato19 É que não sendo a agressão nem atual nem iminente não existirá propriamente uma reação tampouco necessidade de defesa Tratandose de agressão criminosa a atualidade ou iminência pode darse ainda na fase de exaurimento do crime e não apenas durante a fase de execução tentativa e consumação e excepcionalmente até na preparação imediatamente anterior ao início da execução Assim em qualquer fase da extorsão mediante sequestro já consumada com a exigência de vantagem como condição ou preço do resgate CP art 159 poderá a vítima defenderse legitimamente inclusive depois de iniciada a fuga do cativeiro C Defesa de direito próprio ou de terceiro A legítima defesa poderá amparar tanto direito próprio como de terceiro E qual quer direito vida integridade física honra patrimônio etc é passível de proteção por meio da legítima defesa Sim porque se a finalidade da legítima defesa é assegurar a integridade de um bem jurídico ela deve ser admitida para a proteção de qualquer interesse digno de tutela penal A expressão direito assim é empregada em sentido amplo de modo a compreen der qualquer interesse passível de proteção jurídica motivo pelo qual mesmo a vida em formação pode e deve ser protegida legitimamente por isso que o nascituro é tutelável não só contra agressão de terceiro como também contra agressão da própria gestante Tafubém maustratos e tortura contra animais são passíveis de legítima intervenção Mas não o é em princípio a mera violação de contrato pois do contrário qualquer credor poderia fazer prevalecer seu direito violentamente o qual deverá recorrer aos meios jurídicos postos à sua disposição sob pena de incorrer inclusive no crime de exercício arbitrário ou abuso de poder CP art 350 A honra como qualquer outro bem jurídico tem proteção penal podendo haver legítima defesa em seu favor O que sempre se poderá discutir é a necessidademode ração da reação Assim por exemplo não pode dizerse em legítima defesa quem a pretexto de defender a sua honra de marido traído pretenda matar sua companheira como ocorria em passado recente Com efeito tais comportamentos são claramente criminosos e plenamente puníveis podendo invocarse no máximo o privilégio do art 121 1º do CP com redução da pena de 16 a 13 crime praticado por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima Também é perfeitamente admissível a legítima defesa de bens jurídicos do Estado ou de pessoa jurídica quando se tratar de bens jurídicos individuais v g a propriedade 1 8 1 Direito penal cit 19 Hungria Comentários cit p 291 347 PAULO QlJ E I ROZ de bens públicos contra furtos e roubos bem assim para defesa de bens jurídicos da comunidade sempre que uma pessoa individual resultar diretamente afetada pela agressão 20 Tratandose porém da preservação de direito de terceiro o exercício da legítima defesa há de ser relativizado de modo a ser admitido só quando o titular do direito ofendido tiver interesse real ou presumido na proteção jurídica que se lhe quer em prestar pois se não há concretamente um bem jurídico individual necessitado de pro teção não se pode pretender defendêlo legitimamente21 Assim não pode em princí pio o caseiro arguir legítima defesa se embora terminantemente orientado no sentido de não reagir a pequenos furtos ou se limitar a dar tiros de advertência ou chamar a polícia venha a atirar contra o ladrão mortalmente É que em tal caso não há a juízo do titular do direito necessidade de uma tal defesa Pela mesma razão se houver con sentimento do titular do direito ofendido não se justifica a defesa em seu favor v g não pode invocála quem a pretexto de proteger uma mulher vítima de estupro que em verdade consentira o ato claramente agride o suposto estuprador Cuidandose de defesa de bem jurídico indisponível v g a vida é irrelevante a vontade do agredido não importando eventual consentimento D Uso moderado dos meios necessários É preciso ainda que haja proporção entre a ação a agressão injusta e a reação defesa sob pena de a defesa carecer de legitimidade em virtude do arbítrio de que se reveste Nem poderia ser diferente já que conforme vimos ao realizar a legítima defesa o agente realiza a própria finalidade de prevenção de condutas lesivas de bens jurídicos a exigir necessidade e moderação proporção enfim Os meios empregados para a repulsa da agressão injusta devem ser necessários São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão 22 Sãono quando segundo as circunstâncias concretas do caso e não segundo uma pura abstração estritamente adequados para a defesa que se pretenda exercer conforme a natureza e intensidade do ataque Assim não cabe reconhecêla na ação de quem para proteger o seu pomar atira contra uma criança matandoa porque os meios emprega dos são evidentemente desproporcionais em face da pouca significação do bem que se quis proteger o pomar e da dimensão da lesão produzida morte A necessidade da defesa a ser aferida concreta e contextualizadamente deve cons tituir por conseguinte o meio mais brando possível entre os disponíveis quem pode rechaçar o agressor com seus punhos não pode recorrer sem mais a uma arma de fogo quem pode intimidar seu agressor com simples ameaças ou mediante um disparo 20 Jescheck Tratado cit p 305 2 1 Nesse sentido Roxin o direito à defesa de u m terceiro s ó é aplicável na medida em que o agredido quiser ser defendido fato que deriva do princípio da proteção individual se não há um bem jurídico individual necessitado de proteção o cidadão não tem direito de defesa Derecho penal cit p 661 22 Assis Toledo Princípios básicos cit p 201 348 j IO j CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE I LI CITUDE de advertência não pode invocála por evidente desnecessidade23 Aliás a agressão à vida somente pode ser tolerada em face de ofensas especialmente graves porque o Es tado não pode condescender com penas de morte formais ou informais Naturalmente que a apuração da necessidade e da moderação como ressalta Hun gria deve ser feita sempre de caso em caso segundo um critério de relatividade ou cálculo aproximativo Não se trata pois de pesagem em balança de farmácia mas de aferição ajustada às condições de fato do caso vertente Não se pode exigir uma per feita equação entre o quantum da reação e a intensidade da agressão desde que o meio necessário empregado tinha de acarretar por si mesmo inevitavelmente o rompimen to de tal equação24 Os ofendículos isto é dispositivos predispostos para a defesa da propriedade v g cerca de arame ou eletrificada mecanismos de disparo automático cães ferozes etc podem também ensejar a legítima defesa porque apesar de alguns autores con siderem que se trata de exercício regular de direito 25 força é convir que quem predis põe o ojfendiculum não se encontra em situação diversa por exemplo daquele que se arma de um revólver prevendo a eventualidade de um assalto não importando que a instalação do aparelho insidioso preceda ao momento da agressão desde que só en tre em funcionamento na ocasião em que o perigo se fizer atual 26 Mas os riscos que tais instrumentos implicam correm a cargo de quem se defende de tal modo27 motivo pelo qual o autor poderá responder penalmente a título de culpa ou dolo inclusive especialmente quando atingir pessoas inocentes Ademais os dispositivos perigosos para a vida quase nunca são necessários não são legitimáveis disparos automáticos ou minas explosivas quando bastem dispositivos de alarme descargas elétricas ligei ras etc28 Finalmente cumpre saber se ocorrendo lesão a terceiro estranho ao conflito ha vido entre os contendores aberratio ictus se o agredido poderá invocar a proteção legal Roxin tem que se o prevalecimento do direito junto à proteção individual é carac terística de toda legítima defesa tal só tem sentido em face do agressor e não em face de terceiro circunstância que não excluiria contudo eventual estado de necessidade exculpante motivo pelo qual quem por exemplo dispara contra autor de roubo admi tindo a possibilidade de atingir um transeunte deverá responder em princípio pelas lesões que lhe causar29 a título de dolo ou culpa 23 Roxin Derecho penal cit p 629 24 Comentários cit p 302 25 Assim Régis Prado Curso cit p 33 1 26 Hungria Comentários cit p 294295 27 Jescheck Tratado cit p 307 28 Roxin Derecho penal cit p 634635 29 Derecho penal cit p 664 349 PAULO OJjEIROZ Mas semelhante posicionamento não é sustentável ao menos em face da legislação penal brasileira porque tal importará em erro de execução aberratio ictus razão pela qual na forma do art 73 do Código o agredido responderá como se tivesse atingido o agressor Valerseá da legítima defesa portanto30 Apesar disso responderá civilmente pelos danos causados ao terceiro inocente conforme vimos inicialmente 62 Estado de necessidade 62J Significado e posição sistemática O estado de necessidade constitui no direito penal brasileiro autêntica causa de justificação CP arts 23 1 e 24 de modo que entre nós não cabe distinguir em prin cípio como faz a doutrina estrangeira entre estado de necessidade justificante e es tado de necessidade exculpante teoria diferenciadora uma vez que o Código Penal adotando a teoria unitária31 conferiulhe tratamento único o estado de necessidade exclui sempre a ilicitude do comportamento estado de necessidade justificante Em consequência caso não seja reconhecido o estado de necessidade a hipótese poderá no máximo dar lugar à exclusão da culpabilidade em razão da inexigibilidade de conduta diversa32 estado de necessidade exculpante segundo a doutrina estrangeira Exceção à teoria unitária é o Código Penal Militar que prevê o estado de necessi dade nas duas formas como excludente de ilicitude e de culpabilidade respectivamen te arts 39 e 4033 30 No mesmo sentido Assis Toledo em tais hipóteses não se desfigura a causa de justificação em exame pois a teor do art 73 Tício responderá pelo fato como se tivesse atingido o agressor Caio ou seja a pessoa que pretendia atingir P1incípios básicos cit p 198 3 1 De modo diverso Fragoso A legislação vigente adotando a fórmula unitária para o estado de neces sidade e aludindo apenas ao sacrificio de um bem que nas circunstâncias não era razoável exigirse compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor é o caso do náufrago que para re ter a única tábua de salvamento sacrifica o outro Em tais casos subsiste a ilicitude e o que realmente ocorre é o estado de necessidade excludente da culpa inexigibilidade de outra conduta Lições cit p 1 89 32 Nesse sentido Assis Toledo para quem não é possível invocar estado de necessidade sacrificando bem de maior valor para proteção de bem de menor valor tendose aí uma ação típica e antijurídica No entanto tal não impede que eventualmente seja reconhecida a falta de culpabilidade de modo que admitimos pois com as ressalvas expostas o estado de necessidade exculpante como causa extralegal de exclusão da culpabilidade por ser isso resultado de simples desdobramento do princípio da culpabilidade Princípios básicos cit p 1 8 1 33 Com efeito dispõe o art 39 do CPM Não é igualmente culpado quem para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição contra perigo certo e atual que não provocou nem podia de outro modo evitar sacrifica direito alheio ainda quando su perior ao direito protegido desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa Art 42 Não há crime quando o agente pratica o fato 1 em estado de necessidade II em legítima defesa III em estrito cumprimento do dever legal IV em exercício regular de direito Art 43 Considerase em estado de necessidade quem pratica o fato para preservar direito seu ou alheio de perigo certo e atual que não provocou nem podia de outro modo evitar desde que o mal causado por sua natureza 350 No estado de necessidade diversamente da legítima defesa dáse uma colisão de interesses entre titulares de bens jurídicos reconhecendose o direito de qualquer deles sacrificar interesse alheio de forma a preservar interesse próprio quando tal sacrifício seja inevitável razão pela qual é perfeitamente possível estado de necessidade contra estado de necessidade real ou putativo Assim por exemplo o sacrifício de cão para preservar a incolumidade física a violação de domicílio e dano à propriedade para socorrer vítimas de inundação ou incêndio a subtração de alimentos para evitar a morte por inanição furto famélico o aborto para salvar a vida da gestante aborto necessário CP art 128 I etc Tais perigos tanto podem resultar de ação da natureza como de ação humana Mas se houver uma agressão injusta e atual a direito próprio ou alheio o caso será de legítima defesa Do estado de necessidade cuida o art 24 caput do Código Penal que dispõe Considerase em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual que não provocou por sua vontade nem podia de outro modo evitar direito próprio ou alheio cujo sacrifício nas circunstâncias não era razoável exigirse 1 Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo 2 Embora seja razoável exigirse o sacrifício do direito ameaçado a pena poderá ser reduzida de um a dois terços O estado de necessidade exige portanto o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a a existência de perigo atual e inevitável b perigo não provocado pelo agente c inexistência de dever legal de enfrentar o perigo d inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado e ameaça a direito próprio ou alheio A situação de perigo de que trata o dispositivo pode resultar tanto de ação da natureza incêndio inundação etc como de condutas humanas incêndio provocado acidentes etc Mas diversamente da legítima defesa que pressupõe um ataque ilegal de outrem agressão injusta os agentes quando em estado de necessidade estão igualmente amparados pela excludente de modo que há em geral colisão de interesses entre titulares de bens jurídicos Justamente por isso é possível estado de necessidade real diversamente do que se passa com a legítima defesa É que por se tratar de perigo e não de dano a expressão injusta agressão da legítima defesa pressupõe um dano atual ou iminente seguese que somente diante de um perigo atual probabilidade de dano e não suposto incerto será admitida a adoção da excludente Por isso afirma Frederico Marques que não se inclui aqui o perigo iminente porque a atualidade se refere ao perigo e não ao dano Daí se dizer que embora o Código preveja para o estado de necessidade o perigo atual aceita a iminência do dano Devese ter presente contudo que o perigo é também considerado atual mesmo quando não seja iminente a produção do dano protelar a intervenção implique aumento considerável e não recomendável dos riscos de dano como pode ocorrer com a interrupção da gravidez por médico Haverá ainda atualidade do perigo sempre que se tratar de perigo permanente isto é perigo que se renove no tempo podendo produzir dano a qualquer momento a exemplo de imóveis em ruína etc Naturalmente que nem o perigo que já cessou passado nem o futuro admitem a invocação da excludente Além disso o perigo para autorizar o estado de necessidade deverá ser inevitável ou seja é necessário que o agente não disponha de outros meios de evitálo motivo pelo qual só é legítima a ação menos lesiva entre as concretamente disponíveis A inexigibilidade significa que o recurso utilizado pelo agente para afrontar o perigo seja insubsistível que não podia de outro modo evitar e idôneo idoneidade que deve ser apurada in abstracto posto importando que no caso concreto não tenha sido suficiente para salvar o bem jurídico ameaçado Do contrário o estado de necessidade não se configurará visto que o sacrifício do bem jurídico não é realmente necessário Daí dizer Hungria que o estado de necessidade é eminentemente subsidiário não existe se o agente podia conjurar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem l IO CAUSAS DE I USTI FICAÇÃO OU EXCLUDENTES D E 1 LICITUDE a doutrina majoritária40 tem que somente a provocação dolosa afasta a dirimente de modo que ainda quando o perigo resulte de provocação culposa admitirseá o estado de necessidade como no exemplo dado se o incêndio resultasse não de uma ação premeditada mas imprudente E de fato não seria razoável que o agente que por imprudência negligência ou imperícia causasse um situação de perigo fosse impedido de invocar a dirimente ra zão pela qual a ação voluntária de que trata o dispositivo deve ser entendida como ação dolosa seja dolo direto seja dolo eventual C Inexistência de dever legal de enfrentar o perigo Não pode alegar estado de necessidade quem tem o dever legal de agir e evitar o resultado garante O dever que impede a invocação do estado de necessidade há de ser legal decorrente de lei decreto etc de sorte que o simples dever social religioso ou cbntratual não obsta o reconhecimento da excludente Não podem porém invo cálo o policial por temor do agente de crime em perseguição nem o bombeiro por receio de sofrer queimaduras etc haja vista que têm o dever legal de enfrentar o peri go Naturalmente que tais deveres de proteção estão limitados aos perigos próprios de cada profissão como o policial em relação à perseguição de autor de crime o médico em relação ao atendimento do paciente etc Mas o dever de enfrentar o perigo não tem caráter absoluto motivo pelo qual por não se dirigir a heróis ou santos não é exigível do agente atitude que importe no sacrifício da própria vida por exemplo Em consequência também àquele que tenha o dever legal de afrontar perigo é dado valerse do estado de necessidade não cabendo exigirlhe ações extraordinariamente danosas à vida à saúde ou à integridade física41 D Inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado O estado de necessidade para constituir autêntica causa de justificação deve orientarse pelo princípio da proporcionalidade de modo que não se configurará quan do houver manifesta desproporção entre o perigo que se quer evitar e o dano que se 40 Em sentido contrário Assis Toledo Daí porém não se conclua como fazem alguns autores que só o ato doloso não o culposo afasta o estado de necessidade Esses autores confundem provo cação do perigo com provocação do resultado duas situações bastante diversas Quem provoca conscientemente um perigo engenheiro que na explosão de minas faz explodir dinamites devi damente autorizado para tanto age por sua vontade e em princípio atua licitamente mas pode causar por não ter aplicado a diligência ou o cuidado devidos resultados danosos ferimentos ou mortes e culposos Princípios básicos cit p 1 85 Também Magalhães Noronha Direito penal cit Na Alemanha segundo Roxin atualmente é unânime a opinião no sentido de que a provocação culposa da situação de necessidade não exclui a possibilidade de invocar o estado de necessidade Derecho penal cit p 697 4 1 No mesmo sentido Cezar Bitencourt este dever não tem caráter absoluto a ponto de negarse qualquer possibilidade de ser invocado o estado de necessidade A exigência de sacrificio no exercício dessas atividades perigosas não pode atingir o nível de heroísmo O princípio do razoável também vige aqui embora em sentido diverso para se salvar um bem patrimonial é inadmissível que se exija o sacrificio de uma vida Manual cit p 261 353 PAULO Qj E I ROZ quer justificar Por isso não é lícito sacrificar um bem jurídico de valor superior para proteção de bem jurídico de menor valor Não pode invocála por isso quem para proteger o patrimônio pretenda causar lesões graves ou a morte de alguém porque o sacrifício era razoável exigirse Mas a análise da razoabilidade do sacrifício do inte resse deve ser sempre feita concretamente conforme as circunstâncias do caso Finalmente embora seja razoável exigirse o sacrifício do direito ameaçado a pena poderá ser reduzida de um a dois terços CP art 24 2º E Ameaça a direito próprio ou alheio À semelhança da legítima defesa o estado de necessidade poderá darse tanto para preservação de direito próprio como alheio vida integridade física honra etc Por direito deve ser entendido qualquer interesse digno de proteção jurídica motivo pelo qual se um dos interesses em conflito for ilícito não cabe a proteção legal Tratando se porém de intervenção para proteção de direito disponível de terceiro é indispen sável que essa intervenção esteja autorizada pelo titular do direito Também aqui se não é concebível a ação necessitada por parte da pessoa jurídica de direito público ou privado é perfeitamente admissível que uma pessoa física intervenha para resguardar de lesão seus direitos em perigo42 63 Estrito cumprimento do dever LEGAL Evidentemente que também crime algum haverá sequer será típica a conduta conforme a perspectiva aqui adotada quando o agente praticar o fato no estrito cum primento do dever legal CP art 23 III lª parte Ao contrário haverá ilícito adminis trativo ou mesmo crime contra a Administração Pública v g prevaricação CP art 319 se o funcionário público deixar de praticar o que a lei lhe impõe Daí entendermos que independentemente da adoção da teoria dos elementos negativos do tipo a atipi cidade da conduta praticada no estrito cumprimento decorre de uma razão tautológica quem cumpre um dever legal estritamente não pode ao mesmo tempo realizar tipo penal algum Assim por exemplo o policial que prende em flagrante delito ou o oficial de justiça que cumpre mandado judicial de busca e apreensão não responde por crime ainda quando faça emprego de violência para tanto moderadamente Como é de dever estrito que se trata seguese que só estará legitimada a ação realizada rigorosamente dentro do que a lei autoriza sob pena de descaracterizálo v g prisão fora dos casos legais O dever legal a ser cumprido deve provir de norma de direito positivo lei decreto etc não valendo dever simplesmente social moral reli gioso nem meramente contratual Quanto a policiais que ferem suspeitos de crime para proteção da própria vida o caso é em princípio de legítima defesa 43 se atendidos os requisitos legais e não de es 42 Hungria Comentários cit p 276 43 De modo diverso entende Jakobs que o policial quando do exercício do seu dever funcional não pode invocar legítima defesa podendo fazêlo apenas na condição de particular Derecho penal cit 354 trito cumprimento do dever legal seja porque a pena de morte está constitucionalmente vedada seja porque não existe um dever legal de ferir ou matar seja porque é dever do Estado proteger a vida de todos criminosos ou não E mais no caso de legitima defesa por policial maior deve ser o rigor para reconhecêla por ser em tese um período no uso de arma competirlhe o dever de preservar a vida e proteger a segurança dos cidadãos Também por isso não se deve tolerar sem mais ações arbitrárias da polícia que eventualmente a pretexto de combater o crime promova a execução sumária de sujeitos criminosos Embora o estrito cumprimento do dever legal pressuponha ordinariamente que seu executor seja agente do poder público também o particular poderá invocálo sem que se encontre no exercício de função pública jurado perito etc É certo ainda que o estrito cumprimento do dever legal não é incompatível com outras causas de justificação Assim por exemplo o policial que fere autor de crime preso em flagrante atua a um tempo no estrito cumprimento do dever legal e em legitima defesa se houver reação necessária e moderada a uma injusta agressão do agente 64 Exercício regular de direito Exclui a ilicitude o exercício regular de direito CP art 23 III 2ª parte porque em tal caso o autor simplesmente faz valer um poder ou uma faculdade legal Assim a prisão em flagrante delito feita por particular o penhor forçado o castigo moderado aplicado aos filhos lesões esportivas etc Também aqui só é legítima a ação que se realizar regularmente é dizer dentro dos limites tolerados pelo direito Por isso lesões esportivas por exemplo só são admissíveis dentro das regras de cada esporte pois fora delas haverá crime Assim ainda que o agente v g lutador de boxe lute com a intenção de ferir ou matar seu oponente se o fizer dentro das regras do esporte específico não poderá responder por crime por não ser o fato objetivamente imputável já que atuou conforme as normas de um esporte violento cuja prática pode produzir lesões ou morte A imputação objetiva do resultado pressupõe portanto a não observância das regras do respectivo esporte v g no caso do boxe pontapé ou golpear o oponente já fora de combate PAULO ÜlJEIROZ Haverá crime igualmente se se tratar de lesões produzidas durante lutas torneios etc clandestinasilegais 65 Consentimento válido do ofendido Nos tipos que protegem bens jurídicos individuais crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa etc e cuja configuração exige expressa ou taticamente o dissentimento do titular do direito o consentimento do ofendido é pe nalmente relevante Não o é porém nos delitos que violam bens jurídicos coletivos ou indisponíveis Quando juridicamente relevante a validade do consentimento do ofendido pres supõe o atendimento dos seguintes requisitos a consentimento por agente capaz b disponibilidade do bem jurídico objeto do consentimento c ausência de vício de con sentimento Como regra não podem consentir validamente os menores de dezoito anos nem incapazes de um modo geral portador de doença mental etc motivo pelo qual se o fizerem o consentimento será inválido Mas crimes há como o estupro de vulnerável CP art 2 17A em que o consentimento poderá ser dado por pessoa maior de quatorze anos visto que a condição legal de vulnerável cessa com essa idade Além disso é preciso que o agente ao consentir esteja em condições físicas e psíquicas de fazêlo não valendo o consentimento dado sob o efeito de droga lícita ou ilícita por exemplo Mas não é suficiente que o consentimento proceda de agente capaz É necessário ainda que o bem jurídico objeto do consentimento seja disponível a exemplo do patri mônio Exatamente por isso há crime de homicídio na hipótese de o paciente autorizar o desligamento dos aparelhos que o mantêm vivo antecipandolhe a morte visto que o consentimento recai sobre um bem jurídico indisponível a vida Não existem porém bens jurídicos absolutamente indisponíveis porque absoluto nenhum direito é Em realidade o que há são graus de disponibilidade porque mesmo a integridade física a liberdade e a própria vida são passíveis de relativização a de pender do contexto e dos interesses em causa Assim em princípio é perfeitamente válido o consentimento quanto a lesões leves entre casais sadomasoquistas a esterilização laqueadura a extração de órgãos para transplante a mudança de sexo etc motivo pelo qual seus autores não respondem pe nalmente por tais lesões ou intervenções46 exceto se o consentimento partir de incapaz ou se houver vício do consentimento coação erro etc Quanto à vida cabe lembrar que além de já se admitir a sua supressão nalguns casos excepcionais v g aborto necessário e aborto no caso de gravidez resultante de estupro CP art 128 1 e II alguns países já admitem ou pretendem admitir a eutaná sia e similares 46 Nesse sentido Roxin Derecho penal cit p 53053 1 356 l lO I CAUSAS DE J USTIFICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE I LICITUDE Finalmente é necessário que não tenha havido vício algum de consentimento como coação fraude erro etc Discutese a posição sistemática do consentimento válido do ofendido se exclui a tipicidade ou a ilicitude De acordo com a doutrina tradicional o consentimento válido do ofendido ora funciona como excludente de tipicidade ora como excludente supralegal de ilicitu de Excluiria a tipicidade sempre que o dissenso da vítima fizer parte do tipo penal expressa ou tacitamente Assim por exemplo a violação de domicílio art 1 50 exige para a realização do tipo que o fato se dê contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito o crime do art 164 supõe que a introdução de animais ocorra sem o con sentimento de quem de direito e o estupro art 213 pressupõe que haja resistência da vítima pois do contrário não haverá constrangimento ilegal Em todos esses casos para a configuração do crime é indispensável que exista dissentimento da vítima mo tivo pelo qual o fato será jurídicopenalmente irrelevante quando houver consentimen to válido do titular do direito Nos demais casos em que o dissentimento não fizer parte do tipo a hipótese cons tituiria causa excludente de ilicitude desde que emanasse de pessoa capaz de dispor Assim por exemplo o consentimento quanto ao crime de dano art 163 e à lesão cor poral art 1 29 Cremos porém como Roxin que o consentimento do ofendido sempre exclui a própria tipicidade47 e isso independentemente da adoção da teoria dos elementos nega tivos do tipo Com efeito se os bens jurídicos servem para o livre desenvolvimento do indivíduo não pode existir lesão quando a ação se funda em disposição válida do titular do bem jurídico que não deprecia seu desenvolvimento mas ao contrário constitui sua expres sào48 Assim se o proprietário em virtude de decisão livre consente que se destrua coisa sua não existe lesão ao bem jurídico e sim cooperação para seu exercício livremente tolerado o mesmo ocorrendo quanto ao cirurgião plástico que não viola a liberdade do seu paciente no trato do seu corpo mas o ajuda na realização de sua imagem corporal49 Bem jurídico e poder de disposição sobre o bem jurídico formam portanto como assinala Rudolphi uma unidade porque objeto de disposição e faculdade de disposi ção constituem em sua relação mútua o próprio bem jurídico protegido no tipo 50 47 No sentido do texto Juarez Cirino A moderna teoria cit p 1 94 do ponto de vista teórico os argumentos favoráveis à concepção do consentimento real como excludente do tipo parecem convin centes o consentimento real exclui o desvalor de ação e o desvalor de resultado e por consequência descaracteriza o próprio tipo de crime o consentimento real exprime desinteresse na proteção do bem jurídico e portanto indica situação de ausência de conflito ao contrário da situação de conflito do sistema de justificações 48 Derecho penal cit p 5 17 49 Roxin Derecho penal cit p 5 1 7 50 Citado por Roxin Derecho penal cit p 5 1 8 357 1 INTRODUÇÃO Conforme vimos do ponto de vista analítico o crime é um fato típico ilícito e culpável a culpabilidade é pois o terceiro e último requisito do fato punível Justamente por isso quando inculpável o agente ficará isento de pena ou em caráter excepcional será submetido a uma medida de segurança A culpabilidade é em síntese uma imputação de culpa ao autor de um fato típico e ilícito Mas a palavra culpabilidade é utilizada em múltiplos sentidos e contextos tais como a princípio da culpabilidade b princípio de não culpabilidade c crime culposo d culpabilidade como circunstância judicial e culpabilidade como elemento do conceito analítico de crime E mais recentemente alguns autores falam de coculpabilidade No sentido de princípio de culpabilidade o conceito é empregado como sinônimo de princípio da responsabilidade penal pessoalsubjetiva significando que nenhuma pena passará da pessoa do agente do crime motivo pelo qual só deve responder pela infração penal o seu respectivo autor coautor ou partícipe constitui portanto um postulado políticocriminal que visa a impedir a responsabilidade penal objetiva eou presumida compreendendo o dolo e a culpa inclusive No sentido de princípio da não culpabilidade ou princípio da presunção de inocência significa que ninguém poderá ser considerado juridicamente culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória constitui assim um princípio de caráter processual até prova em sentido contrário e de se ter o agente como inocente de modo que se a inocência é presumida a culpa requer prova por parte de quem formular a acusação Ministério Público ou querelante PAULO QlJEIROZ Já quando empregada impropriamente como sinônimo de crime culposo culpa em sentido estrito corresponde ao crime praticado com imprudência negligência ou imperícia isto é com infração de um dever de cuidado ou ainda mediante a criação de um risco proibido e realização desse risco no resultado A culpabilidade também constitui circunstância judicial CP art 59 a ser con siderada no momento da individualização judicial da pena significa então que ao proceder à fixação da pena o juiz deverá tomar em conta o grau de reprovabilidade exigibilidade da conduta quanto mais exigível um comportamento diversoconfor me o direito mais reprovável será a infração penal quanto menos exigível menor a censurabilidade e pois menor o castigo Enfim a culpabilidade corresponde aqui à ideia mesma de proporcionálidade em sentido estrito a ser apurada segundo múlti plas circunstâncias Mais recentemente alguns autores falam ainda de coculpabilidade como circuns tância supralegal de atenuação da pena 2 É que há casos em que as condições socioeco nômicas do agente são de tal modo adversas que o juiz ao proceder à individualização da pena não pode ignorálas devendo atenuarlhe o castigo por isso desde que haja relação casual entre tais condições e o delito cometido motivo pelo qual a sua aplica ção ocorrerá principalmente mas não exclusivamente nos crimes contra o patrimônio Alguns códigos penais a referem expressamente embora sem recorrer em geral a essa denominação como o Código colombiano ao dispor que a pena será atenuada se o autor praticar a infração penal sob a influência de profunda situação de marginalida de ignorância ou pobreza extrema que hajam influenciado diretamente o cometimento do crime e não sejam suficientes para excluir a própria responsabilidade jurídicopenal art 56 Tratase portanto de um conceito que se aproxima muito do estado de necessida de e da inexigibilidade de conduta diversa e em relação aos quais tem caráter residual subsidiário pois a adoção da atenuante da coculpabilidade pressupõe logicamente a rejeição ou o não reconhecimento da causa de justificação estado de necessidade ou da excludente supralegal de culpabilidade inexigibilidade de conduta diversa com as quais guarda semelhança É que tais excludentes conduzem à absolvição pura e sim ples a coculpabilidade ao contrário pressupõe a condenação Parecenos porém que em verdade a chamada coculpabilidade não é senão uma dimensão do próprio conceito de culpabilidade enquanto circunstância legal a atenuar ou agravar a pena3 conforme o caso uma vez que se culpabilidade é exigibilidade maior ou menor a ser apurada segundo as circunstâncias do caso concreto tal há de ser menor quanto àquele que comete delito premido por condições socioeconômicas especialmente adversas Em suma parecenos que coculpabilidade é um nome novo para designar coisa velha a própria culpabilidade 2 Assim Grégore Moura Do princípio da coculpabilidade NiteróiRio Impetus 2006 3 Tanto é assim que se fala também de coculpabilidade às avessas situação que agravaria a pena 360 1 1 1 1 TEORIA DA CULPA B I LI DADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE Finalmente quando se afirma que um crime é do ponto de vista analítico um fato típico ilícito e culpável querse dizer que além da tipicidade e ilicitude a punibilidade de um comportamento reclama a comprovação de que no caso concreto era perfeita e razoavelmente possível e exigível do seu autor um comportamento diverso isto é conforme o direito o agente não atuará por isso culpavelmente mas inculpavelmente sempre que lhe faltar a imputabilidade a potencial consciência da ilicitude ou a exi gibilidade de conduta diversa É neste exato sentido que o conceito nos interessa no presente capítulo 11 Conceito e elementos Do ponto de vista analítico o crime é um fato típico ilícito e culpável constituin do a culpabilidade o último dos requisitos do fato punível A culpabilidade é assim um juízo de reprovação que recai sobre o autor de um fato típico e ilícito em razão de lhe ser possível e exigível concreta e razoavelmente um comportamento diverso isto é confdrme o direito motivo pelo qual podese dizer que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade4 De acordo com a doutrina a culpabilidade pressu põe a imputabilidade ou capacidade de culpabilidade b conhecimento potencial da ilicitude do fato c exigibilidade de conduta diversa Com efeito se a norma jurídicopenal por meio de mandados e proibições pre tende prevenir em caráter geral e especial infrações penais seguese que para tanto seus destinatários devem se encontrar em condições físicopsíquicas maturidade sa nidade etc de entender o conteúdo de suas mensagens e pois de agirem de acordo com elas pressupondo portanto imputabilidade Assim a culpabilidade não é um pensamento nem um simples aspecto interno da pessoa mas um elemento do fato isto é uma condição sine qua non do mesmo fundada mais que em razões éticas ou utilitárias na estrutura lógica da proibição que impliFa a possibilidade material da realização ou não realização da ação imputáveis à atuação de um sujeito5 4 Eis alguns conceitos de culpabilidade reprochabilidade de um fazer ou de um omitir antijuridica mente desaprovado ou mais brevemente é um reproche fundado sobre o autor Maurach Derecho penal cit p 582 possibilidade de conhecer a exigência do dever e de comportarse de acordo com ele vale dizer é a possibilidade de uma decisão responsável Stratenwerth Derecho penal cit p 7 1 culpabilidade é reprochabilidade da formação de vontade Jescheck Tratado cit p 364 é uma responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante num comportamento antiju rídico Jakobs Derecho penal cit p 566 atua culpavelmente quem pratica um ato antijurídico podendo atuar de modo diverso quer dizer conforme o direito Mufioz Conde Teoria geral do delito trad Juarez Tavares e Régis Prado Porto Alegre Sérgio A Fabris Editor 1988 p 125 culpabilida de é exigibilidade Sílva Sánchez Aproximación cit p 41 3 5 Ferrajoli Luigi Derecho y razón cit p 501 361 PAULO QlJEIROZ A relação entre prevenção e culpabilidade é assim evidente só se pode ex1g1r proibir uma ação quando a omissão for possível e portanto só se pode exigir uma omissão quando a ação for possível Do contrário a norma implicaria uma violência inútil pois estaria a exigir o inexigível abstrata ou concretamente Também faltará a culpabilidade sempre que o agente embora imputável desco nhecer o conteúdo da proibição mesmo porque num sistema democrático a regra é a liberdade a não liberdade a exceção É que também aqui a norma não é passível de motivar seus destinatários razão pela qual a culpabilidade requer conforme a doutrina majoritária conhecimento potencial da ilicitude do fato E especialmente nos dias atuais em que há uma crescente criminalização de condutas sem dignidade penal Normalmente o direito penal exige a realização de comportamentos mais ou me nos incômodos mais ou menos difíceis mas não impossíveis De todo modo não pode exigir comportamentos heroicos pois toda norma tem um âmbito de vigência fora do qual não se pode exigir responsabilidade alguma6 Enfim só se pode falar de culpabili dade quando for possível e exigível um comportamento diverso 12 N eurociência e culpabilidade A neurociência promete uma autêntica revolução para os próximos anos que im plicará uma mudança radical da imagem que o homem faz de si mesmo com reper cussão direta sobre o direito penal mas não só sobre ele especialmente no que diz respeito à culpabilidade Com efeito segundo manifesto publicado na Alemanha em 2004 por 1 1 onze neurocientistas num período de tempo previsível nos próximos vinte ou trinta anos a investigação cerebral poderá alcançar a conexão entre os processos neuroelétricos e neuroquímicos assim como funções perceptivas cognoscitivas psíquicas e motoras até o ponto que será possível fazer predições bastante certeiras sobre estas conexões em ambas direções E isso significa que devemos contemplar a mente a consciência os sentimentos os atos voluntários e a liberdade de ação como processos naturais pois todos se baseiam em processos biológicos7 A anunciada revolução pretende demonstrar possivelmente entre outras coi sas que o homem não é livre isto é que a liberdade de agir ou livre arbítrio é uma ilusão criada pela mente consciente uma vez que todas as nossas decisões procedem de processos neuronais complexos inconscientes sobre os quais o nosso conscien te ou não tem poder algum ou o tem minimamente Pretendese provar assim que aquilo que se nos apresenta como ações refletidas conscientes prudentes etc é em 6 Mufioz Conde e Mercedes García Arán Derecho Penal Parte General Valencia Tirant lo Blanch 2000 p 40 7 Dível em El fantasma de la libertad datos de la revolución neurocietífica de Francisco J Rubia Barcelona Crítica 2009 362 l l I I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE verdade uma ilusão criada pela consciência8 inclusive porque o cérebro é um órgão como qualquer outro e por essa razão é tão determinista em seu funcionamento quanto o coração ou o fígado9 E ninguém pode atuar de modo distinto do que de fato é escreve Wolf Singer1º Como assinala Francisco Rubia para Gerhard Roth as decisões para nossos atos procedem do inconsciente o que quer dizer que temos a impressão de que sa bemos o que fazemos mas em realidade o que o consciente faz é atribuirse algo que não é obra sua11 Daí concluir Rubia que se literariamente em nosso século de Ouro Calderón 16001681 afirmou que a vida é um sonho alguns neurocientistas modernos sustentam que realmente toda vida é uma ilusão motivo pelo qual o li vre arbítrio é provavelmente uma ilusão mais uma ilusão entre muitas que o cérebro inventa12 rambém por isso nossas decisões teriam um insuperável fundo emocional por que a racionalidade não domina nossas ações o que significa que a interação entre o consciente e o inconsciente entre os centros límbicos e os centros motores executivos garante que as ações voluntárias ocorram dentro do âmbito dos sentimentos emocionas incofscientes e da parte racional cognitiva consciente de cada pessoa13 Que semelhante perspectiva importa numa reviravolta no nosso modo de pensar e ver o mundo é evidente já que concretamente isso significa por exemplo que os de linquentes não sabem a rigor porque delinquem que os advogados não sabem porque advogam que os promotores não sabem porque acusam e nem os juízes sabem porque julgam E mais importante nenhum deles poderia agir diversamente Daí não fazer sentido a ideia de culpabilidade mas não só ela visto que não seria razoável exigirse do agente dito culpável um comportamento diverso isto é conforme o direito Estar seia a exigir algo neurocientificamente inexigível 8 De acordo com Gerhard Roth o homem é livre no sentido de que pode atuar em função de sua vontade consciente e inconsciente Apesar disso esta vontade está completamente determinada por fatores neurobiológicos genéticos e do entorno assim como pelas experiências psicológicas e sociais positivas e negativas em particular as que são produzidas em etapas iniciais da vida que dão lugar a mudanças estruturais e fisiológicas no cérebro Isso significa que todas as influências psicológicas e sociais devem produzir mudanças estruturais e funcionais Do contrário não pode riam atuar sobre nosso sistema motor Por último isso supõe que não existe livre arbítrio em sentido firme mas somente em sentido débil e compatibilista E também significa que ninguém nem os filósofos nem os psicólogos nem os neurobiólogos podem explicar como funciona o livre arbítrio em sentido forte La relación entre razón e la emoción y su impacto sobre el concepto de libre al bedrío p 1 14 ln El cérebro Avances recientes en neurociência Madrid Editorial Complutense 2009 9 John R Searle Liberdade e neurobiologia S Paulo Editora UNESP 2007 p 59 1 0 Experiencia própria y descripción neurobiológica ajena p30 Revista electrónica de ciencia penal y criminologia 201 0 revista 12 Criminetugres 1 1 FRubia cit p 15 12 El fantasma cit p 9 1 3 GRoth L a relación entre la razón y l a emoción y su impcto sobre e l concepto de libre albedrío p 1 14 363 lAULO QVEROZ Tampouco faria sentido a distinção entre condutas voluntárias e involuntárias entre ações dolosas e não dolosas imprudentes ou inconscientes entre imputáveis e inimputáveis uma vez que o agente careceria inevitavelmente de liberdade conscien te de agir Afinal as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência Freud Embora talvez fosse mais prudente esperar o que de fato significará essa anuncia da revolução neurocientífica parece claro que a perspectiva neurocientífica ou ao me nos parte importante de neurocientistas tende a reduzir o homem ao cérebro a seguir o cérebro ao cérebro inconsciente e por fim o cérebro consciente a uma espécie de ventríloquo do cérebro inconsciente tal é a superestimação deste último em detrimen to do primeiro14 De todo modo ainda que se prove futuramente que o homem é um escravo de suas pulsões e desejos inconscientes que ele é o que é e não o que ele quer ou pre tende ser é improvável que isso implique a extinção do controle social e tampouco a abolição do controle penal embora possa desencadear uma reformulação radical do direito penal que conhecemos hoje15 Tanto é assim que mesmo os inimputáveis em razão de doença mental ou similar estão sujeitos à intervenção do direito penal medidas de segurança 14 GRoth a consciência entre outras coisas sempre está relacionada com o processamento de informação nova importante e complicada Assim sempre que enfrentamos decisões novas e importantes devemos fazêlo de forma consciente mas em nossa memória inconsciente é guardada tudo que experimentamos em nossas vidas La relación entre la razón y la emoción y su impcto sobre el concepto de libre albedrío p 1 15 De acordo com Freud o inconsciente é a esfera mais ampla que inclui em si a esfera menor do consciente Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e não obstante reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica em sua natureza mais íntima ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais Ainda as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência A interpretação dos sonhos segunda parte capítulo VII a psicologia dos processos oníricos Em Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Vol XV Rio de Janeiro Imago 1 ª edição Mais o inconsciente designa não apenas as ideias latentes em geral mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico ideias que se mantêm à parte da consciência apesar de sua intensidade e ativida de a inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica todo ato psíquico começa com um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência segundo encontra resistência ou não Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise Em Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XII Rio de Janeiro Imago lª edição 1 5 Para Michel Pauen não há nenhuma revolução à vista porque não existe uma refutação científica da liberdade e responsabilidade A liberdade e a determinação não são incompatíveis de modo que ainda que tenhamos demonstrado que o nosso cérebro é um sistema determinista ainda não demonstramos que não sejamos capazes de atuar livremente Autocompreensión humana neuro ciencia y libre albedrío In EI Cerebro Avances recientes en neurociencia Madrid Editorial Com plutense 2009 364 1 1 1 1 TEORIA DA CULPABI LI DADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE Ademais o direito penal não se funda em dados puramente biológicos mas em sistemas socialmente construídos de responsabilidade16 E se o homem é ou não livre isso depende do conceito de liberdade de que se parte que não é em princípio um conceito biológico mas político17 Enfim a investigação que procede da neurociência embora necessária e importante não é suficiente para a implosão do edifício jurídico penal que certamente resistirá à anunciada revolução neurocientífica se bem que a partir de novos fundamentos Finalmente de acordo com Libet a vontade consciente influi o resultado do pro cesso de vontade ainda que este último tenha sido introduzido por processos cerebrais inconscientes razão pela qual conclui que tanto o determinismo quanto o indetermi nismo são indemonstráveis18 13 Direito penal indígena 131 Jurisdição penal indígena De acordo com a visão tradicional ainda hoje dominante o índio responde penal mente quando culpável nos termos da legislação penal em vigor19 1 A tendência atual no entanto é reconhecerse em prejuízo do direito oficial a autonomia e a validade do direito penal indígena20 DPI isto é o direito traduzido nos usos costumes e tradições dos povos indígenas Com efeito e conforme dispõe a Constituição art 231 caput são reconhecidos aos índios sua organização social costumes línguas crenças e tradições e os direitos origil1ários sobre as terras que tradicionalmente ocupam competindo à União demarcá las proteger e fazer respeitar todos os seus bens 16 No mesmo sentido Hassemer responsabilidade e imputação não descansam em conhecimentos da biologia humana mas em razões sociais Não sobrevivem por ignorância e irracionalidade mas por conhecimento e experiência Neurociências y culpabilidad em Derecho penal Disponível em INDRETCOM Barcelona abril 201 1 1 7 Nesse exato sentido escreve Michel S Gazzaniga a neurociência tem pouco que aportar à com preensão da responsabilidade A responsabilidade é um constructo humano que existe só no mundo social onde há mais de uma pessoa É uma regra construída socialmente que existe só no contexto da interação humana Nenhum pixel de uma imagem cerebral poderá manifestar culpabilidade ou rcutpabilidade Os neurocientistas não podem falar sobre a culpabilidade do cérebro como tampouco pode culpar o relojoeiro o relógio Não se nega a responsabilidade só está ausente a des lrição neurocientífica da conduta humana A neurociência nunca encontrará o correlato cerebral da responsabilidade porque é algo que atribuímos aos humanos as pessoas e não aos cérebros E férebro ético Barcelona Paidós 2006 p 1 101 1 1 1 8 Çf Luzón Pefía Libertad culpabilidad y neurociencias Barcelona indretcom julio de 2012 19 O conceito de índio é dado pelo art 3º 1 da Lei nº 6001173 Índio ou Silvícola É todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional 20 Rigorosamente falando não existe um direito penal indígena ou civil etc mas violações mais ou menos graves e puníveis segundo as tradições e costumes de determinada etnia 365 PAULO QlJEJ ROZ Se tomarmos como devemos o dispositivo à sério teremos então de reconhecer 1 A autonomia do DPI consequentemente são válidos os julgamentos feitos pe los povos e tribos indígenas relativamente às infrações cometidas no seu terri tório envolvendo seus membros 2 Não obstante isso é possível recorrerse à justiça comum nos termos do art 5 XXXV da CF princípio da inafastabilidade da jurisdição quer por iniciativa da tribo quer do próprio imputado quer por órgão competente FUNAI MP etc 3 O DPI não é aplicável a conflito envolvendo nãoíndio ainda que ocorrido den tro de território indígena 4 O DPI não incide em princípio sobre conflito ocorrido fora do território indí gena ainda que envolvendo índios 5 O direito penal oficial é acessórioresidual relativamente ao DPI e não o con trário pois há de pressupor a impossibilidade de sua aplicação E assim deve ser porque em primeiro lugar o direito indígena constitui um dos elementos essenciais de sua organização social costumes crenças e tradições razão pela qual reconhecêlo é assegurar o poder de autodeterminaçãoautogoverno dos po vos indígenas e em segundo lugar porque negar validade às práticas jurídicas indíge nas violaria claramente o art 231 da Constituição Diversas constituições preveem expressamente a jurisdição indígena a exemplo da colombiana art 246 da peruana art 149 da boliviana arts 179 e 190 da vene zuelana art 260 da paraguaia art 63 e da equatoriana art 171 A Constituição do Equador art 76 7 i veda inclusive de modo explícito a possibilidade de duplo jul gamento ne bis in idem Ninguém poderá ser julgado mais de uma vez pela mesma causa e matéria Os casos decididos pela jurisdição indígena deverão ser considerados para este efeito Por sua vez o art 9º da Convenção 169 da OIT 2004 dispõe Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos inter nacionalmente reconhecidos deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros Mais recentemente 2007 a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas asseguroulhes entre outros o direito à autodeterminação aí incluí das a conservação e o reforço de suas instituições jurídicas 366 Artigo 4 Os povos indígenas no exercício do seu direito à autodetermi nação têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relaciona das a seus assuntos internos e locais assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas Artigo 5 Os povos indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas jurídicas econômicas sociais e culturais mantendo ao mesmo tempo seu direito de participar plenamente caso o deseje na vida política econômica social e cultural do Estado Aliás já o art 57 da Lei nº 600173 Estatuto do Índio disponha que será tolerada a aplicação pelos grupos tribais de acordo com as instituições próprias de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros desde que não revistam caráter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morte Efetivamente ninguém está em melhor condição de julgar o índio do que a própria comunidade indígena em que se deu o conflito E mais legitimamente Tolerar que o índio continue a ser julgado segundo o direito oficial é tão injusto e inadequado quanto o contrário permitir que os nãoíndios fossem julgados de acordo com o direito indígena Ofendese assim o princípio da igualdade ao negar o direito à diferença e ao tratar como iguais os desiguais Afinal castigar índios que atuam segundo seus usos e costumes é criminalizar sua cultura e tradições A intervenção do direito penal estatal mínima subsidiária e excepcional deve por conseguinte ficar limitada àquelas hipóteses em que o DPI impuser condenações que violem manifestamente direito fundamental vg aplicação de pena de morte Para concluir convém citar exemplo de pena aplicada ao índio Denilson Trindade Douglas por lideranças indígenas tuxuás de várias comunidades Anauá Manoá Wai Wai pena que foi convalidada na ação penal nº 0090100003020RR relativa a homicídio qualificado CP art 121 2º II cometido em 26062009 em que foi vítima o também índio e irmão Alanderson Trindade Douglas fato ocorrido na comunidade indígena de Manoá terra indígena ManoáPium Região Serra da Lua Município de BonfimRR Inicialmente o autor do homicídio foi condenado a construir uma casa para a esposa da vítima e ficou proibido de ausentarse da comunidade de Manoá sem permissão dos tuxuás Posteriormente as lideranças indígenas aplicaramlhe as seguintes sanções 1 O índio Denilson deverá sair da Comunidade de Manoá e cumprir pena na Região Wai Wai por mais 5 cinco anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento 2 Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai respeitando a convivência o costume a tradição e moradia junto ao povo Wai Wai 3 Participar de trabalho comunitário 4 Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade 5 Não comercializar nenhum tipo de produto peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com tuxuá 6 Não desautorizor o tuxuá cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxuá 7 Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxuá PAULO QEIROZ 8 Aprender a cultura e a língua Wai Wai 9 Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar outra de cisão Em suma o direito penal indígena é em princípio um problema indígena 132 Responsabilidade penal do índio Quando fora das hipóteses inicialmente indicadas houver de incidir o direito pe nal oficial o índio responderá nos termos da Constituição dos tratados e acordos in ternacionais e da legislação penal em vigor que lhe dão tratamento jurídico especial Como é óbvio a responsabilidade penal do índio pressupõe o cometimento de in fração penal crime ou contravenção com todos os seus elementos constitutivos tipici dade ilicitude e culpabilidade Tratase porém de um processo de imputação objetiva e subjetiva que além de considerar a singularidade da cultura indígena terá de levar em conta a especificidade do tratamento constitucional e legal notadamente o estatuto do índio Justamente por isso não há em princípio fato típico quando o agente pratica con duta de acordo com suas tradições costumes e crenças Assim por exemplo não exis te estupro de vulnerável CP art 217A no âmbito de certas comunidades indígenas onde o acasalamento ocorre antes de 14 anos de idade Cuidase de fato atípico Nem é típica a pesca ou caça entre outras atividades inerentes à tradição indígena que pode riam em tese configurar crime ambiental A atipicidade decorre da circunstância de o índio não poder figurar como sujeito ativopassivo desses delitos por força do tratamento jurídico especial que lhe é dado Mas outras soluções dogmáticas são igualmente admissíveis ausência de dolo etc até porque conduzem em princípio ao mesmo resultado prático a absolvição pura e simples Naturalmente que essa relação entre proteção de direitos fundamentais e respeito à diversidade étnica e cultural a refletir diretamente sobre a definição social e legal de crime é das mais tensas e problemáticas razão pela qual suscitará com alguma frequência questões de constitucionalidade Basta lembrar que a prática do infanticí dio ou homicídio21 objeto do PL 10572007 ou Lei Muwaji motivado pelas mais di 21 Augusto Silva Dias ao tratar de casos semelhantes ocorridos em GuinéBissau considera que o fato é atípico por ausência de dolo Diz textualmente O agente ou agentes que colocam o ucó ou o ser sob suspeita junto da água do rio ou do mar tendo em vista respectivamente afastálo da família ou obter a prova decisiva realizam objectivamente o tipo de ilícito do homicídio artºl 07 do CP na forma tentada ou consumada consoante o processo causal se quedar no perigo concreto para a vida ou desembocar no resultado morte Sendo o homicídio um crime de forma livre no tipo cabe perfeitamente a exposição ao perigo daquele modo praticadaTodavia em minha opinião o tipo subjectivo do homicídio não se encontra realizado Com efeito as mulheres da família da mãe que pretendem afastar o mau espírito não querem desde o início causar a morte de uma pessoa Como tivemos oportunidade de compreender através das inquirições realizadas e tenho vindo a assinalar ao 368 l 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILI DADE versas razões deficiência física ou mental gêmeo filho de mãe solteira etc tem sido registrada em diversas etnias22 O mesmo vale mutatis mutandis para a verificação da ilicitude e da culpabilida de as quais além de exigirem a presença de todos os pressupostos e requisitos legais devem ser valoradas de acordo com as peculiaridades da cultura indígena No entanto ao contrário do que pretende a doutrina a imputabilidade penal do ín dio não depende do grau de integração à cultura dominante Como escrevem Ela Wiec ko de Castilho e Paula Bajer Costa no paradigma da plurietnicidade o grau maior de integração do indígena à sociedade nacional não o descaracteriza com indígena tam pouco exclui a imputabilidade penal23 Também Augusto Silva Dias tem que aparentemente mais favorável e aberta às pequliaridades das formas de vida esta solução assenta numa visão racista e pater nalista que não respeita a diferença de culturas e uma perspectiva multicultural de abordagem dos problemas baseada no valor do pluralismo Hierarquizando as culturas em civilizadas e selvagens a concepção que criticamos eleva as primeiras a padrão de vida boa Consequentemente os membros das culturas selvagens são rotulados de débeis mentais detentores de um desenvolvimento mental incompleto incapazes de entender as virtudes ínsitas naquele padrão24 Com efeito independentemente do grau de socialização o índio é sim imputável imputabilidade que há de ser apreciada segundo a sua tradição e não conforme os valores eurocêntricos da cultura dominante Logo não é incapaz de autodeterminação em razão de desenvolvimento mental incompleto ou retardado mas plenamente capaz longo da exposição as agentes não querem matar ou por qualquer outra forma hostilizar outrem mas tão só afastar um ser que de humano apenas guarda a aparência A partir do momento em que segundo as crenças partilhadas as pessoas implicadas estão convictas de que se trata de uma pessoa e não de um ucó recolhemna imediatamente e levamna consigo de volta como vimos O que as agentes representam é um ente sobrenatural e não um ser humano Não há pois dolo em qualquer das suas modalidades SILVA DIAS Augusto Problemas do direito penal numa sociedade multicutural o chamado infanticídio ritual na GuinéBissau Coimbra Coimbra Editora Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 6 nº 2 abrljun 1996 22 Semelhante prática tem sido observada por exemplo entre os tapirapés suruwahas e yanomamis 23 O projeto de Lei do Senado nº 1 56 de 2009 que institui novo Código de Processo penal e os crimes praticados contra indígenas ou por indígenas Brasília a 46 nºl 83 julhoset 2009 24 Augusto Silva Dias Augusto Problemas do direito penal numa sociedade multicutural o chamado infanticídio ritual na GuinéBissau Coimbra Coimbra Editora Revista Portuguesa de Ciência Crimi nal ano 6 nº 2 abrljun 1 996 De modo similar Luiz Fernando Villares considerar o índio deficiente mental ou similar é profundamente equivocado pois o índio mesmo os de pouco contato com a sociedade brasileira sempre teve o desenvolvimento mental absoluto de suas faculdades mentais e condições de entender o mundo que o cerca Pertencer a uma cultura de valores diversos dos nossos não produz um indivíduo de incompleto desenvolvimento Para aquelas atividades necessárias à sua vida o índio se adaptou com eficiência o que lhe garantiu a sobrevivência até os dias atuais Direitos e povos indígenas Curitiba Juruá 2009 p 299 369 PAULO QJEIROZ O índio será inimputável apenas quando portador de transtorno mental grave CP art 26 ou menor de 18 anos O que poderá ocorrer eventualmente é a falta de conhecimento da proibição jurídi copenal de que se trata a ensejar o erro sobre a ilicitude do fato CP art 21 vencível ou invencível conforme o caso a ser aferida mediante laudo antropológico O Código Penal do Peru trata dessa hipótese sob o título de erro de compreensão culturalmente condicionado Artigo 15 Erro de compreensão culturalmente condicionado Quem que por sua cultura ou costumes comete um fato punível sem po der compreender o caráter delituoso de seu ato ou determinarse de acordo com essa compreensão é isento de responsabilidade penal Quando por igual razão essa possibilidade tiver diminuído a pena será atenuada Mas o neologismo é desnecessário haverá ou não simplesmente erro de proibi ção por carecer o autor índio que é do conhecimento da proibição Evidentemente que o índio poderá também invocar e com maior razão outras excludentes legais ou supralegais de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade sempre que presentes seus elementos constitutivos 25 O mesmo ocorrerá quanto às causas espe ciais de isenção de pena ou extintivas da punibilidade prescrição etc 2 CULPABILIDADE SEGUNDO A DOUTRINA CAUSALISTA CON CEPÇÃO PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE Para a doutrina causal da ação ou naturalista a culpabilidade consistia na relação psicológica entre o autor e seu fato ou para expressálo com Franz von Liszt culpa bilidade é a ligação subjetiva entre o ato e o autor26 conceito que se mantém coerente com a sua concepção naturalista da ação Com efeito se como pregavam os causalis tas a conduta se dividia em duas partes uma externa a ilicitude de caráter objetivo e outra interna a culpabilidade de natureza subjetiva resulta que nesta última devia residir todo o subjetivismo ou psiquismo do delito vale dizer o dolo e a culpa Nesse sentido Franz von Liszt afirmava que não basta que o resultado possa ser ob jetivamente referido ao de vontade do agente é também necessário que se encontre na culpa a ligação subjetiva Culpa é a responsabilidade pelo resultado produzido27 25 Como observa Márcio Andrade Torres em nome de um Estado de direito democrático e do princípio da culpabilidade na sua vertente limitativa do poder punitivo estatal o condicionamento cultural é fator que deve ser considerado na apreciação de qualquer conduta podendo descaracterizar ora a tipi cidade ora a ilicitude e por fim a culpa onde encontra campo mais abe110 a um freio no direito penal em razão do alcance e natureza dos elementos que a compõem O lugar da cultura na culpabilidade dos índios texto inédito 26 Von Liszt Tratado cit p 249 Igual conceito é adotado pela doutrina penal brasileira menos recente Assim por exemplo Basileu Garcia a culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao seu au tor Instituições cit p 273 27 Tratado cit p 249 370 l 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE Por conseguinte dolo e culpa constituíam as possíveis formas dessa conexão psí quica subjetiva entre o autor e seu fato28 ou seja age culpavelmente quem atua com dolo ou culpa culpa em sentido estrito Em consequência o delito segundo a pers pectiva causalista apresentase como dupla vinculação causal a relação de causali dade material que dá lugar à antijuridicidade e a conexão de causalidade psíquica que é a culpabilidade29 Dentro de tal construção o dolo e a culpa não só eram as duas espécies de culpabilidade como também a totalidade da culpabilidade admitindose porém como pressuposto jurídicopenal a imputabilidade entendida como capacida de de ser culpável 30 Semelhante formulação sofreria diversas críticas sobretudo por não explicar a contento tal conexão psicológica nos crimes culposos salvo na culpa consciente nos quais tal não existe Como assinala Damásio de Jesus se o dolo é caracterizado por um querer a culpa por um não querer conceitos positivo e negativo tais conceitos não podem em consequência ser espécies de um denominador comum qual seja a cul pabilidade mesmo porque na culpa sobretudo na culpa inconsciente não existe essa pretendida relação psíquica31 Além disso com o advento da doutrina finalista o dolo e a culpa viriam a ser deslocados da culpabilidade para a tipicidade Mas nem por isso a culpabilidade deixaria de existir como categoria sistemática da teoria do delito mesmo porque apesar de o autor agir com dolo ou culpa a culpabilidade pode ser excluída por outras razões como por exemplo se o agente tiver atuado sob coação moral irresistí vel ou erro de proibição inevitável Sintetizando a culpabilidade segundo a formulação causalista clássica compu nhase de a imputabilidade e b dolo e culpa em sentido estrito 3 CONCEPÇÃO NORMATIVA DA CULPABILIDADE As críticas que se seguiram à concepção causalista clássica dariam lugar à sua reformulação para lhe acrescer um elemento novo de caráter normativo um juízo negativo de valor qual seja a reprovabilidade ou censurabilidade para se entender culpabilidade como um juízo de reprovação sobre o autor por ter atuado ilicitamente quando lhe era possível e exigível uma atuação conforme o direito Com semelhante folimulação o dolo e a culpa embora permanecessem integrando a culpabilidade dei xariam de constituir suas espécies convertendose em seus elementos Tal concepção que se deve em especial a Frank Goldschmidt e Freudenthal exatamente por ser acrescida desse elemento normativo valorativo ficou conhecida como normativa ou psicológiconormativa De acordo com isso para ser culpável não basta como explica Assis Toledo que o fato seja doloso ou culposo é preciso que além disso seja censurável o autor O dolo 28 Mir Puig Derecho penal cit p 540 29 Mir Puig Derecho penal cit p 541 30 Assis Toledo Princípios básicos cit p 220 3 1 Direito penal cit p 456 371 e a culpa stricto sensu deixam de ser espécies de culpabilidade e passam a ser elementos dela A culpabilidade se enriquece pois com novos elementos o juízo de censura que se faz ao autor do fato e como pressuposto deste a exigibilidade de conduta conforme à norma Assim há culpabilidade ainda quando não haja relação psicológica entre o autor e seu fato como ocorre na culpa inconsciente culpa sem previsão em razão de o agente atuar reprovavelmente violando um dever de cuidado Segundo a concepção normativa a culpabilidade constituise em consequência dos seguintes elementos a imputabilidade b dolo e culpa c exigibilidade de conduta diversaconforme ao direito 4 Culpabilidade segundo a doutrina finalista concepção normativa pura Com o advento do finalismo que deslocaria o dolo e a culpa para a tipicidade e assim abandonaria o critério psicológico a culpabilidade passou a ter um conteúdo puramente normativo Em consequência o juízo de reprovação da culpabilidade de acordo com Welzel criador da doutrina finalista pressupõe que o autor possa atuar de acordo com a norma e isso não tem sentido abstrato de algum homem em vez do autor mas que concretamente este homem poderia em tal situação estruturar sua vontade segundo a norma A culpabilidade conforme a perspectiva finalista significa portanto a possibilidade de o agente atuar concretamente conforme o direito possibilidade que deixaria de existir sempre que o autor não fosse imputável lhe faltasse o conhecimento da ilicitude do fato ou não lhe fosse exigível conduta diversa Assim de acordo com a concepção normativa pura a culpabilidade requer a imputabilidade b potencial consciência da ilicitude e c exigibilidade de conduta diversa E o dolo e a culpa passam a integrar conforme vimos a própria tipicidade O dolo porém com o finalismo é desvinculado da consciência da ilicitude que permanece na culpabilidade potencial consciência da ilicitude l 1 1 I TEORIA DA CULlABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE imposição da pena Assim o autor de um fato antijurídico escreve Jakobs tem culpa bilidade quando tal atuação antijurídica não só indica uma falta de motivação jurídica dominante por isso é antijurídica senão quando o autor é responsável por essa falta Essa responsabilidade ocorre quando falta a disposição de motivarse conforme a norma correspondente Essa responsabilidade por um déficit de motivação jurídica doninante num comportamento antijurídico é a culpabilidade34 Ao adotar semelhante perspectiva Jakobs parece substituir em verdade o concei to de culpabilidade pelo de prevenção geral35 Já para Roxin que se opõe à formulação de Jakobs36 por conduzir a seu ver à instrumentalização do homem em favor do sistema social violando o princípio da dig nidade humana passa a ter papel central o conceito de responsabilidade penal que dete ser entendido a partir dos conceitos de culpabilidade e necessidade de prevenção seus pressupostos pois segundo Roxin só mediante o reconhecimento de culpabili dade e necessidade preventiva como pressupostos da responsabilidade jurídicopenal pode a dogmática conseguir conectarse com a teoria dos fins da pena de modo que só culpabilidade e necessidade preventiva conjuntamente podem dar lugar a uma sanção penal37 Portanto culpabilidade e necessidades preventivas limitamse reciprocamente necessidades preventivas jamais podem autorizar a punição quando inexista culpabili dade nem a culpabilidade basta por si só para legitimar a pena que deve ser indispen sável do ponto de vista preventivo38 Por consequência a pena há de pressupor sempre culpabilidade de sorte que ne nhuma necessidade preventiva de punição por maior que seja pode justificar uma san ção penal que contradiga o princípio da culpabilidade 39 Por isso a exigência do re cohhecimento da necessidade preventiva como pressuposto adicional da punibilidade significa unicamente ulterior proteção ante a intervenção do direito penal enquanto não só se limita o preventivamente admissível mediante o princípio de culpabilidade 34 Derecho penal cit p 566 35 Cf Schünemann Resta por questionar se acaso não devem ser extraídas consequências mais radicais da transfonnação de um direito penal retributivo em direito penal preventivo e em consequência não se deve substituir de modo completo a categoria como pressuposto da punibilidade pela necessidade preventivogeral da pena tal como exige Jakobs e alguma vez insinuou Roxin la función in Fundamentos cit p 160 36 Com efeito afirma Roxin referindose a Jakobs a esta concepção se opõe sobretudo o fato de que abandona a função restritiva da culpabilidade em atenção à prevenção geral A punibilidade do parti cular não depende já de circunstâncias que radicam em sua pessoa senão do que seja presumivelmen te necessário para o exercício dos cidadãos na finalidade ao Direito para a estabilização da confiança no ordenamento Uma instrumentalização tal do indivíduo que só serve já como instrumento dos interesses sociais de estabilização foi criticada por Kant como violação da dignidade humana Derecho penal cit p 806 37 Derecho penal cit p 793 38 Roxin Política criminal cit 39 Roxin Derecho penal cit p 793 373 PAULO ÜlJ E I ROZ mas também se restringe a possibilidade de punição da conduta culpável à exigência de que esta seja preventivamente imprescindível40 Para Roxin portanto a culpabilidade como pressuposto fundamental da res ponsabilidade penal tem papel ambivalente se por um lado só pode ser declarado culpável quem pode ser motivado pela norma isto é alcançado pela prevenção por outro a culpabilidade funciona também como limite à própria prevenção Com efeito carecendo a norma do poder de motivar prevenir a aplicação do direito penal é des necessária e inadequada quando a suposição de que uma pessoa era motivável pelo direito resulte infundada pelo seu estado mental ou anímico ou pelas circunstâncias da situação como ocorre com os enfermos mentais por exemplo de quem não se espera que observem as normas os quais quando infringem a lei não defraudam expectativa social alguma e a consciência social não se comove logo ninguém resulta motivado a imitálos porque a vigência da norma aos olhos da opinião pública não resta diminuí da por esses fatos41 Decisivo porém segundo a formulação roxiniana no que se distingue de Jakobs é o caráter limitador garantista da culpabilidade ao fim de prevenção geral positi va e negativa conforme sua teoria dialética unificadora visto que como ressalta a mui citada expressão de Kohlrausch de que a culpabilidade como poder individual seria uma ficção necessária para o Estado há de ser corrigida Um Direito penal da culpabilidade não é de modo algum necessário para o Estado pois os fins preventivos do Estado podem ser perseguidos muito mais livremente mediante um puro Direito de medidas de segurança A culpabilidade é ao contrário uma garantia da liberdade dirigida contra os excessos punitivos do Estado O princípio de culpabilidade não pre judica o cidadão porque as necessidades preventivas se imporiam com total indepen dência da vinculação à culpabilidade senão que o protege Ao manter a persecução dos fins preventivos nos limites próprios do Estado de Direito serve por sua vez a uma política criminal razoável42 Semelhantemente Schünemann considera que de fato a pena necessita para a sua justificação além de sua utilidade preventiva de um princípio autônomo de 40 Roxin Derecho penal cit p 793 41 Roxin Derecho penal cit p 8 1 08 1 1 42 Roxin Derecho penal cit p 8 1 1812 Adota idêntico posicionamento Figueiredo Dias A verdadei ra função da culpabilidade no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso a culpabilidade não é fundamento da pena mas constitui o seu limite inultrapassável o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou neutralização A função da culpabilidade deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito é por outras palavras a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático E a de por esta via estabelecer uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e o veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar Questões fundamentais cit p 1 34 374 l 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXC LUSÃO DE CULPABILIDADE legitimação para o qual só se pode tomar em conta a culpabilidade de modo que se a necessidade da pena surge exclusivamente de considerações preventivas a culpabilida de constitui a base complementar de legitimação vale dizer a finalidade preventiva fundamenta a necessidade da pena o princípio de culpabilidade limita sua admissibi lidade 43 Uma concepção também funcional adota Francisco Mufíoz Conde que partindo da função motivadora da norma penal como fundamento material da culpabilidade observa que a correlação entre culpabilidade e prevenção geral quer dizer a defesa de determinados interesses legítimos ou ilegítimos é pois evidente Se em dado mo mento histórico se considerou que o alienado ou o menor ficavam isentos de respon sabilidade criminal isso não se fez para debilitar a prevenção geral ou a defesa dos interesses da sociedade frente a essas pessoas mas pelo contrário porque o efeito in timidatório geral e a defesa social se fortaleceriam ao se declararem isentas de respon sabilidade criminal quer dizer de culpabilidade a umas poucas pessoas que como a experiência ensina não se pode esperar que cumpram as expectativas de condutas con tidas nas normas penais confirmando assim a necessidade de seu cumprimento para as outras pessoas que não se encontram nessa situação44 Portanto para o funcionalismo exceção feita a Jakobs sobretudo agora em que defende um direito penal do inimigo a culpabilidade tem papel eminentemente ga rantista ou limitativo do poder punitivo do Estado pois só pode ser declarado culpável 1 quem ao praticar um fato antijurídico tinha condições razoáveis de atuar motivado pela norma agindo conforme o direito não o fazendo embora pudesse fazêlo sem sacrifícios extraordinários É correto dizer ainda com Sílva Sánchez que o conceito de culpabilidade pode e deve ser contemplado desde a perspectiva da exigibilidade podendose afirmar que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade Atua culpavelmente aqvele de quem se pode exigir uma atuação conforme o direito sendo que o grau con creto de exigibilidade resultará do conflito posto em relação por um lado das necessi dades preventivas que abonariam o estabelecimento de maiores níveis de exigência e por outro dos argumentos utilitaristas de intervenção mínima assim como de critérios humanitários garantistas enfim que apoiariam sua redução45 Convém notar finalmente que o princípio de culpabilidade opera como limite do jus puniendi não só quanto à determinação dos pressupostos da pena como também no âmbito da individualização judicial significando dizer que a pena não deve exceder ao limite do que seja adequado à gravidade da culpabilidade do autor por mais que possa ser necessária no caso concreto por motivos de prevenção geral e especial46 É que a 43 La función in Fundamentos cit p 1 62172 44 Teoria cit p 1 29 45 Aproximación cit p 413 46 GarcíaPablos Derecho penal cit p 286 375 PAULO QJEIROZ culpabilidade além de fazer parte do conceito analítico de crime também constitui uma circunstância judicial a ser considerada no momento da fixação da pena 6 CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE EM ESPÉCIE De acordo com a doutrina majoritária são excludentes de culpabilidade a inim putabilidade em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado b inimputabilidade do menor de dezoito anos c embriaguez involuntária completa d erro de proibição inevitável e obediência hierárquica a ordem não mani festamente ilegal f coação moral irresistível Nem todos estão de acordo com essa classificação Parecenos inclusive que o erro de proibição inevitável conforme vimos implica em verdade a exclusão do pró prio dolo por entendermos dolo como dolus malus isto é compreensivo da consciên cia da ilicitude do fato logo constitui uma forma de exclusão da tipicidade e não de culpabilidade Discutese se não se poderia cogitar à semelhança das causas de justificação de causas supralegais de exculpação por inexigibilidade de conduta diversa Roxin afirma que se se permitisse que a políticacriminal do juiz decidisse sobre a punibilidade de uma conduta atentarseia contra a divisão dos poderes assim como contra o princípio constitucional de precisão e concreção sendo em consequência inadmissível habilitar o juiz em caráter geral para eximir de pena sem base na lei com ajuda de uma fórmula vazia como a da inexigibilidade47 Mas tal posição não adotada pela doutrina brasileira majoritária48 tampouco pela jurisprudência peca pelo excessivo formalismo Primeiro porque por mais imaginoso que seja o legislador não pode ele evidentemente contemplar todos os fatos passíveis de legítima exculpação em face da dinâmica social e da consequente multiplicidade de situações que podem surgir na prática Segundo porque a possibilidade de reco nhecimento de uma causa geral de exculpação por inexigibilidade de conduta diversa está plenamente conforme o caráter garantidor do princípio de culpabilidade Terceiro porque admitir que só por meio de lei se possa reconhecêla é votar reverência des medida ao legislador expressando uma desconfiança também desmedida à atuação do juiz ignorando que interpretar é criar direito inevitavelmente dada a irredutível margem de livre apreciação judicial Larenz de sorte que se confunde em última análise lei e direito 47 Derecho penal cit p 961 48 Nesse sentido Damásio de Jesus a aplicação da teoria da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade encontra apoio na integração da lei penal Vimos que o Direito Penal positivo possui lacunas Havendo omissão legislativa no conjunto das normas penais não incriminadoras e não havendo o obstáculo do princípio da reserva legal a falha pode ser suprida pelos processos detenninados pelo art 4º da LICC a analogia os costumes e os princípios gerais de direito Se o caso é de inexigibilidade de conduta diversa e não encontrando o juiz norma a respeito no direito positivo pode lançar mão da analogia para absolver o agente Direito penal cit p 480 376 Finalmente o princípio da divisão de poderes que não é um fim em si mesmo nem absoluto há de estar a serviço da realização dos valores constitucionais fundamentais em especial a dignidade da pessoa humana CF art 1º III Parecenos por conseguinte absolutamente legítima a admissão de outras excludentes de culpabilidade excludentes supralegais inclusive porque conforme vimos a distinção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual não existem a rigor fenômenos típicos ou culpáveis mas apenas uma interpretação tipificante e culpabilizante dos fenômenos 61 Inimputabilidade decorrente de alienação mental 611 Significado e pressupostos Dispõe o art 26 caput do Código que é isento de pena o agente que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento A declaração de inimputabilidade exige pois o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a que o agente seja portador de doença mental ou similar b incapacidade resultante dessa condição c que a incapacidade seja contemporânea do crime e não anterior ou posterior a ele E assim deve ser porque se o direito penal por meio da dominação e da execução de penas pretende em caráter geral e especial motivar seus destinatários a não delinear seguese que semelhante finalidade não pode ser perseguida por meio da punição de alienados mentais porque privados de discernimento são incapazes de tomar a norma jurídicopenal como referência para seus comportamentos Castigar alienados mentais seria enfim castigar inutilmente qualquer que seja o fim que se assinale à pena contrariando o princípio da proporcionalidade adequação inclusive Mas a inimputabilidade não é exclusivamente determinada pela condição de alienado mental porque o Código acrescentou a esse critério dito biológico outro de natureza psicológica o chamado critério biopsicológico a incapacidade de em razão da doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado entender o caráter ilícito do fato Por conseguinte não basta que o agente seja mentalmente enfermo é preciso mais que tal estado de perturbação da saúde mental seja capaz de priválo do discernimento não podendo por isso distinguir entre o legal e o ilegal entre o proibido e o permitido Ademais embora portador de algum transtorno mental importante o indivíduo pode levar uma vida absolutamente normal sobretudo quando adequadamente tratadomedicado Mas há quem considere que entender o caráter ilícito do fato e poder atuar conforme esse entendimento é algo que não admite uma resposta empírica Além dos mais PAULO Ql E I ROZ doença mental e incapacidade são coisas distintas e a primeira não implica a segunda necessariamente É de convir inclusive quanto à impropriedade da expressão método biopsico lógico porque em realidade nem o estado é biológico se nalguns casos o fato está biologicamente fundamentado nem a capacidade é psicológica mas uma cons trução normativa de sorte que se trata mais exatamente de um método psíquico normativo ou psicológiconormativo o psicológico se refere aos estados psíquicos capazes de comprometerem a capacidade de compreensão enquanto o normativo diz respeito à capacidade que não é um estado psíquico mas uma atribuição 50 Além disso muitos transtornos de consciência v g estado passional intenso oligofrenia normal psicológica anomalia psíquica grave que compreende todas as psicopatias graves as neuroses e as anomalias dos instintos não são manifestações de deficiên cias corporais orgânicas biológicas tampouco a constatação da capacidade de atuar de outro modo é um dado psicológico mas essencialmente normativo ou seja uma imputação que se faz51 A expressão doença mental52 deve ser entendida em sentido amplo a fim de com preender toda e qualquer alteração mórbida da saúde mental apta a comprometer total ou parcialmente a capacidade de entendimento do seu portador como esquizofrenia psicose maníacodepressiva psicose alcoólica paranoia epilepsia demência senil pa ralisia progressiva sífilis cerebral arteriosclerose cerebral histeria etc53 pouco im portando a causa geradora de semelhante estado se natural ou tóxica v g uso de droga lícita ou ilícita por exemplo De acordo com a classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID10 Organização Mundial de Saúde OMS a inimputabilidade total ou par cial pode resultar dentre outros dos seguintes transtornos demência na doença de Alzheimer demência vascular transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção 50 Jakobs Derecho penal cit p 630 51 ROXTN Claus Derecho Penal Parte General Tomo 1 Tradución de DiegoManuel Luzón Pena Miguel Díaz y Garcia Conlledo Javier de Vicente Remesal Madrid Civitas 1997 p 823 Tradicio nalmente se habla aquí de un método biológicopsicológico de constatación de la inimputabilidad La base dei mismo es la idea de que primero habrían de se constatados determinados estados orgánicos biológicos y que a continuación se habría de examinar si estaba excluída por ellos la capacidad psicológica de comprensión o de inhibición Sin embargo de esse modo no se caracte1izan correc tamente los datos pues muchos trastomos de conciencia v gr el estado pasional intenso la oligofre nia no1malpsicológica y la anomalia psíquica grave que comprende sobre todo las psicopatias las deficiencias corporalesorgánicas biológicas Tampoco la constatación de la capacidad de actuar de otro modo es como se expuso supra 19 nm 3539 un dato psicológico sino que se basa sustan cialmente también em usa aserción normativa Por eso em la literatura científica se habla hoy com frecuencia de un método psíquiconormativo o psicológiconormativo 52 Segundo Goodwin nem os advogados nem os médicos conseguiram desenvolver seja separada seja conjuntamente uma definição rígida de insanidade pela simples razão de que não existe nenhuma apud Mestieri Manual cit p 169 53 Mirabete Manual cit p 2 1 1 378 cerebrais transtornos mentais decorrentes de uso de substância psicoativa esquizofrenia transtornos do humor afetivos transtorno afetivo bipolar transtorno depressivo recorrente transtornos neuróticos relacionados ao estresse transtornos alimentares transtornos mentais e de comportamentos associados ao puerpério transtornos específicos de personalidade transtorno de personalidade paranoide esquizoide antissocial retardo mental leve moderado grave profundo etc Como transtornos de hábitos e impulsos são citados o jogo patológico o comportamento incendiário patológico piromania roubo patológico cleptomania como transtornos de identidade sexual e preferência sexual transexualismo fetichismo travestismo exibicionismo voyeurismo pedofilia sadomasoquismo etc Já o desenvolvimento mental incompleto referido no dispositivo não atinge em primeiro lugar os menores de dezoito anos já que o art 27 os declara de forma absoluta penalmente inimputáveis independentemente do nível de maturidade que alcancem Restam assim todos aqueles que por qualquer razão não tenham atingido após completar dezoito anos desenvolvimento mental completo desde que nessa condição não tenham de fato adquirido discernimento pleno Vale dizer a inimputabilidade de tais sujeitos deverá ser aferida caso a caso conforme o grau maior ou menor de maturidade e socialização Repitase o Código adotou método psíquiconormativo E o desenvolvimento mental retardado é o estado de pessoas portadoras de algum distúrbio ou transtorno mental privados total ou parcialmente da capacidade de autodeterminação No caso de prática de crime definido na Lei de Drogas Lei nº 113432006 se a inimputabilidade decorrer do uso de droga ilícita o agente ficará isento de pena podendo o juiz submetêlo a tratamento médico adequado art 45 se semiimputável reduzirseá a pena de um terço a dois terços art 46 Finalmente parecenos que não existem a rigor fenômenos psiquiátricos mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos Nietzsche motivo pelo qual a imputabilidade mais do que um estado mental do sujeito é uma atribuição a esse título Exatamente por isso os laudos psiquiátricos não raro se contradizem ora afirmando ora negando a inimputabilidade PAULO QJ E I ROZ A medida de segurança não poderá ser aplicada se o crime já tiver sido atingido por qualquer causa de extinção de punibilidade CP art 107 cc o art 96 parágrafo único a exemplo da prescrição Enfim a imposição de medida de segurança exige à semelhança da pena em nome do princípio da igualdade principalmente a presença de todos os pressupostos da punibilidade fato típico ilícito culpável e punível com exceção da própria imputa bilidade exclusivamente 613 Redução de pena no caso de imputabilidade diminuída Verificandose que o agente em virtude de perturbação da saúde mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento CP art 26 parágrafo único o juiz poderá optar CP art 98 conforme seja mais recomendável ao caso entre aplicar pena ou medida de segurança sistema vicariante não podendo aplicar ambas cumulativamente siste ma binário abolido pela reforma de 1984 A imputabilidade ou capacidade de culpa bilidade diminuída não é todavia uma forma de semiimputabilidade pois o sujeito é ainda capaz de compreender o caráter iajusto do fato e de atuar conforme essa compreensão54 Na hipótese de decidir pela aplicação da pena o juiz deverá reduzila de um a dois terços obrigatoriamente Também no caso de superveniência de doença mental ao cometimento do crime o agente será submetido à medida de segurança 62 Menoridade penal Por expressa determinação constitucional são penalmente inimputáveis os meno res de 18 anos sujeitos às normas da legislação especial CF art 228 CP art 27 Lei nº 806990 art 104 A legislação especial a que se refere o texto é a Lei nº 806990 mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente ECA Talvez mais do que em qualquer outro lugar fica aqui evidente o caráter mar cadamente político do direito penal capítulo que é da anatomia política55 uma vez que atualmente menores de dezoito anos 15 16 17 têm em geral à semelhança dos maiores 18 19 20 plena capacidade de discernir entre o lícito e o ilícito de sorte que ao se adotar um tal critério objetivo de imputabilidade mais do que à maturidade do sujeito atendese a uma questão de conveniência políticocriminal O decisivo não é portanto saber se o menor de dezoito anos é ou não capaz de autodeterminação mas se é socialmente útil e politicamente recomendável castigar penalmente antes dessa idade ou só a partir dela 54 Roxin Derecho penal cit p 839 55 A expressão é de Foucault 380 I I I I TEORIA DA CU LPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CU LPABILIDADE Ao estabelecer a maioridade penal somente a partir dos dezoito anos o legislador adotou um critério puramente etário pouco importando se o agente era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento CP art 26 Importa saber exclu sivamente se ao tempo do crime ação ou omissão e não ao tempo da consumação resultado ou do julgamento o agente já tinha dezoito anos Tratandose portanto de presunção legal absoluta de inimputabilidade não im porta se o autor adquiriu a maioridade civil na forma da lei v g casamento ou se é superdotado multirreincidente etc Para efeitos penais a capacidade civil é irrelevante Se o autor for menor de dezoito anos à época do crime responderá então por ato infracional ECA art 103 conduta descrita como crime ou contravenção ficando sujeito às medidas socioeducativas previstas no art 1 12 do ECA cuja forma mais dura a internação sujeitase entre outros aos princípios de excepcionalidade e brevidade não podendo em nenhuma hipótese exceder a três anos sendo compul sória a liberação aos vinte e um anos de idade conforme dispõe o ECA art 121 e parágrafos No caso de crime permanente isto é crime cuja consumação se renova no tempo enquanto se mantém a violação ao bem jurídico por decisão do agente este responderá segundo o Código Penal sempre que atingir a maioridade durante a permanênciacon sumação 63 Coação moral irresistível CP art 22 A culpabilidade é também excluída sempre que houver coação moral irresistível já a coação física irresistível exclui a própria tipicidade relativamente ao agente que a sofre se resistível a coação física ou moral o fato é punível com pena atenuada A coação física é exercida sobre o corpo do coagido v g constrangendoo a assinar um documento e a coação moral consiste na ameaça de causarlhe mal grave v g matar um filho Com efeito embora por coação se deva entender o emprego de violência física vis absoluta ou moral vis compulsiva para constranger alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa somente a coação moral irresistível constitui autêntica causa de exclu são de culpabilidade uma vez que quem atua sob coação física irresistível não pratica sequer uma ação típica seja por ausência de açãovontade seja por não existir relação causal entre o fato praticado e a atuação do coagido que assim é mero instrumento do autor da coação autor mediato Portanto enquanto o coagido físico pratica uma não ação isto é um comporta mento atípico o coagido moral comete fato típico ilícito mas inculpável em virtude da inexigibilidade de conduta diversa Em ambos os casos porém o autor da coação responderá pelo ato pois nos termos do art 22 segunda parte do Código Penal só é punível o autor da coação autor mediato E no caso de coação resistível física ou moral o fato é punível com pena atenuada 381 PAULO Qlj E I ROZ Na coação moral irresistível exercitável por meio de intimidação grave como ameaça de revelar segredo ou de causar mal grave a alguém o coagido é efetivamente o autor de uma ação típica e antijurídica mas inculpável uma vez que não atua livre mente devendo em consequência responder pelo crime o autor da coação unicamen te que também sofrerá a incidência da agravante prevista no art 62 II do Código De notar que ameaças vagas e imprecisas não podem ser consideradas graves para configurar coação irresistível e justificar a isenção de pena devendo tratarse de mal efetivamente grave e iminente sendo indiferente que se dirija ao próprio coagido ou a alguém de suas ligações afetivas56 Naturalmente que a verificação da gravidade da coação e de sua resistibilidade há de ser feita concretamente segundo a natureza e a importância dos interesses em jogo conforme o princípio da proporcionalidade bem assim a capacidade de resis tência do coagido em especial sua sensibilidade não bastando tomar como referên cia para tanto ao contrário do que sustenta Hungria57 o homo medius sob pena de se punir alguém com base e a partir de uma simples ficção passando a pena a ter caráter puramente exemplificador em prejuízo da dignidade da pessoa humana cul pando um inculpável Necessariamente a coação irresistível exige três protagonistas autor da coação coator coagido quem sofre a coação e vítima terceiro que sofre as consequências da ação do coagido uma vez que se o coagido for a própria vítima haverá simples mente um crime contra esta e se o coagido eventualmente opuser resistência contra o coator poderá ocorrer legítima defesa inclusive Damásio de Jesus considera que além de o coator responder pelo crime com a agravante do art 62 II deverá também responder por constrangimento ilegal con tra o coagido CP art 146 de sorte que se por exemplo A sob ameaça de morte constrange B a lesionar a integridade física de C A responderá pelos crimes de lesão corporal e constrangimento ilegal em concurso formal art 70 com a incidência da agravante referida58 Mas semelhante interpretação não procede porque importa em bis in idem devendo A no exemplo dado responder unicamente pelo crime de lesão corporal com a agravante genérica do art 62 II Pela mesma razão também não pode incidir o art lº 1 b da Lei nº 945597 constranger alguém com emprego de violên cia ou grave ameaça causandolhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa Tratandose de coação resistível física ou moral porque superável sem sacrifí cios extraordinários haverá concurso de agentes coautoria ou participação punível podendose invocar em favor do coagido a atenuante do art 65 III c primeira parte do CP exclusivamente 56 Cezar Bitencourt Manual cit p 3 13 57 Comentários cit p 258 58 Direito penal cit p 490 382 Por fim em tese é possível que o coagido se encontre em uma situação de erro ocorrendo coação moral putativa se tomar como real uma ameaça que de fato não existe ou deixou de existir 64 Obediência hierárquica CP art 22 Exclui a culpabilidade a estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico entendendose por ordem hierárquica a manifestação de vontade do titular de uma função estatal a um funcionário que lhe é subordinado para que realize determinada ação ou omissão Somente haverá a exclusão de culpabilidade quando o subordinado atuar rigorosamente dentro dos limites da ordem determinada pois do contrário responderá pelo excesso Exatamente por isso não é de todo exato o provérbio soldado mandado não tem crime A natureza jurídica do instituto é ambígua porque embora a doutrina o tenha como uma forma especial de erro de proibição pois quem obedece a uma ordem hierárquica não manifestamente ilegal supõe praticar fato autorizado pela lei carecendo assim da consciência do injusto não se pode ignorar que o subordinado em tais casos encontrase também no estrito cumprimento putativo de dever legal uma vez que imagina que ao obedecer à ordem está cumprindo seu dever legal de funcionário subordinado Assim por exemplo pode invocar a excluente de culpabilidade o diferente policial que a mando de Delegado de Polícia realiza prisões ilegais A obediência hierárquica para ensejar a excluente exige o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a proceder de autoridade competente b dispor do subordinado de atribuição legal para a prática do ato c não ser a ordem manifestamente ilegal Cuidandose de ordem manifestamente claramente ilegal não haverá exclusão de culpabilidade uma vez que o seu executor atua com plena consciência do caráter ilícito do ato cuja execução se promove Assim não pode invocar a estrita obediência à ordem não manifestamente ilegal o policial que a mando de seu superior pratica homicídio extorsão roubo etc embora possa em tese invocar coação moral se for o caso Tratandose de servidor militar cumpre esclarecer que embora não lhe seja dado questionar a legalidade da ordem visto ter o dever de obediência podendo a desobediência configurar insubordinação CPM art 163 inclusive não está ele obrigado a cumprir ordens manifestamente criminosas art 38 2º Só a hierarquia decorrente de relação de direito público entre superior e inferior pode ensejar a excluente prevista no art 22 não se compreendendo aí a derivada de relações privadas como relações de trabalho religiosas etc que podem isentar ou atenuar a culpa por motivo diverso coação moral inexigibilidade de conduta diversa etc PAULO QlEIROZ Se for reconhecida a inculpabilidade do subordinado hierárquico responderá pelo ato o superior hierárquico autor da ordem não manifestamente ilegal autoria mediata E no caso de obediência a ordem manifestamente ilegal o fato é punível a título de coautoria ou participação relativamente ao autor da ordem e seu executor Por fim também aqui é possível que o inferior hierárquico se encontre numa situa ção de erro podendo ocorrer obediência hierárquica putativa 65 Embriaguez A embriaguez é a perda total ou parcial da capacidade de autodeterminação em razão do uso de droga lícita ou ilícita De acordo com o Código somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade Nos demais casos o agente é em princí pio culpável e punível Com efeito a embriaguez pode ser voluntária dolosa ou culposa ou involuntária acidental Dizse voluntária quando o agente faz livre uso de droga lícita ou ilícita e perde assim total ou parcialmente a capacidade de discernimento Será dolosa ou voluntária segundo o Código quando o autor fizer uso da substância com a intenção de embriagarse e culposa quando fora do caso anterior embriagarse por imode ração ou imprudência E é preordenada quando o agente se embriaga com o fim de cometer crime Diversamente considerarseá involuntária a embriaguez quando resultar de caso fortuito v g desconhece que determinada substância produz embriaguez ou força maior v g é constrangido à embriaguez Se se tratar de embriaguez involuntária completa excluirseá a culpabilidade do agente que praticar um fato típico e ilícito E se for o caso de embriaguez involuntária incompleta hipótese em que não obstante isso preservase uma certa capacidade de autodeterminação o agente responderá por crime mas com pena reduzida de 13 a 23 CP art 28 II 2º 651 Embriaguez involuntária Conforme vimos somente a embriaguez involuntária completa isto é que resul ta de caso fortuito ou força maior acarreta a exclusão da culpabilidade Nesse exato sentido dispõe o art 28 1 º do CP é isento de pena o agente que por embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento Assim somente é excluída a culpabilidade quando se provar que o agente estava ao tempo da ação inteiramente privado de discernimento em razão de embriaguez acidental isto é que não resultou de decisão própria Se se tratar de embriaguez involuntária incompleta que ocorre quando o autor mantém certa capacidade de autodeterminação a culpabilidade subsistirá mas o agen te fará jus à diminuição da pena de um a dois terços CP art 28 2 A pena pode ser reduzida de um a dois terços se o agente por embriaguez proveniente de caso for tuito ou força maior não possuía ao tempo da ação ou da omissão a plena capacidade 384 l 1 1 I TEORIA DA CU LPABI LIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILI DADE de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendi mento Enfim a embriaguez involuntária completa é excludente de culpabilidade razão pela qual isenta o autor de pena já a embriaguez involuntária incompleta é apenas ate nuante de culpabilidade importando na diminuição da pena 65f Embriaguez voluntária No caso de embriaguez voluntária dolosa ou culposa completa ou incompleta o agente responderá por crime ainda que ao tempo da ação fosse inteiramente incapaz de autodeterminação uma vez que de acordo com o Código não exclui a imputabili dade penal a embriaguez voluntária ou culposa pelo álcool ou substância de efeitos 1 análogos art 28 II Enfim a embriaguez voluntária é em princípio penalmente 1 irrelevante uma vez que não isenta o réu de pena nem a atenua 1 Mas isso não quer dizer que sempre que o agente se embriagar dolosamente res ponderá por crime doloso nem que o imprudente sempre responderá por crime culpo so pois em realidade responderá por crime doloso ou culposo conforme tenha agido com dolo ou culpa podendo ocorrer inclusive como é comum v g crimes de trânsi to de embora embriagado dolosamente praticar crime culposo bem como embria gadq culposamente cometer crime doloso61 Não se deve confundir portanto a vontade de embriagarse com a vontade de delinquir Mas não só A embriaguez voluntária não importa necessariamente em respon sabilidade penal Com efeito na hipótese de imprevisibilidadeinevitabilidade do fato o autor não responderá penalmente mesmo que se encontre em estado de embriaguez voluntária dolosa ou culposa completa ou não sob pena de responsabilização penal objetiva situação incompatível com os princípios constitucionais penais Assim por exemplo não responde penalmente o agente que vem a atropelar um pedestre imprudente que avarice o sinal vermelho se se provar a inevitabilidade do acidente ainda que o condu tor do veículo estivesse sóbrio É que inexistirá nexo causal entre o estado de embria guez e o acidente provocado E mais os crimes culposos pressupõem a criação de um risco proibido e a realização desse risco no resultado 61 Convém evitar assim como assinala Mir Puig o equívoco consistente em pensar que o delito cometi do sob o efeito de embriaguez voluntária sempre tenha sido provocado voluntariamente dolosamen te ou que a embriaguez culposa supõe que o delito que se comete nesse estado haja podido preverse e se deva atribuir à imprudência A embriaguez voluntária não preordenada pode dar lugar a um fato não só não querido previamente como sequer previsto ou previsível e do mesmo modo a embriaguez culposa também pode motivar um fato imprevisível Em suma que o sujeito se tenha embriagado voluntariamente ou por imprudência não significa que se pratica delito em tal estado haja querido o fato nem que este era previsível pois se pode querer ou prever a embriaguez sem querer nem ser previsível que se vai produzir a lesão de um bem jurídico Derecho penal cit p 605 385 Enfim a só condição de embriagado não implica responsabilidade penal necessariamente razão pela qual o decisivo é apurar em cada caso se o agente se houve com dolo ou culpa Além disso nada impede que o autor possa eventualmente invocar excludentes de ilicitude legítima defesa etc ou de culpabilidade erro de proibição inevitável etc Em síntese de acordo com o Código somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade nos demais casos o autor é em princípio culpável e punível Mas isso não significa que sempre que o agente se encontrar em estado de embriaguez voluntária será forçosamente culpável visto que poderá se valer em tese de excludentes de tipicidade e de ilicitude e inclusive de excludentes de culpabilidade Consequentemente o art 28 II do Código Penal deve ser assim interpretado a fim de evitar responsabilidade penal objetiva ou sem culpa apesar da embriaguez voluntária não excluir a culpabilidade a imputação de crime ao agente embriagado pressupõe inevitavelmente a comprovação de todos os seus requisitos tipicidade ilicitude e culpabilidade Afinal a embriaguez prova em princípio a embriaguez mesma mas não a puniabilidade inexorável da conduta Finalmente dizse preordenada a embriaguez espécie de embriaguez voluntária dolosa em que tem plena aplicação a teoria da actio libera in causa quando o sujeito se embriaga propositadamente com dolo de cometer determinado delito Uma vez provada a embriaguez preordenada o agente além de responder por crime doloso terá a pena agravada CP art 61 II I visto que a preordenação constituirá uma circunstância agravante E a embriaguez reconhecidamente patológica é equiparada à doença mental aplicandose ao inimputável a norma do art 26 do CP 66 Emoção e paixão De acordo com o Código art 28 I não excluem a imputabilidade penal a emoção e a paixão amor ódio medo prazer cólera previsão aliás absolutamente necessária mesmo porque são inimagináveis crimes sem alguma emoção ou paixão 1 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE mais ou menos reprovável64 No entanto a influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima constitui circunstância atenuante CP art 65 III c última parte Nalguns crimes específicos v g homicídio lesão corporal pode ainda ocorrer diminuição de pena como no homicídio privilegiado CP art 121 1º sempre que for cometido sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima Emoção é a agitação de sentimento abalo afetivo ou moral turbação comoção paixão é sentimento gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão grande entu siasmo por alguma coisa65 A doutrina as distingue dizendo que a emoção é um estado afetivo de momentânea perturbação da personalidade ao passo que a paixão é uma emoçãosentimento isto é um processo afetivo duradouro66 Eventualmente a emoção e a paixão poderão assumir caráter mórbido apto a com prometer total ou parcialmente a capacidade de autodeterminação do autor hipótese em que incidirá o art 26 do Código 64 Critica a disciplina do Código entendendo que o legislador deveria ser mais sensível aos problemas que podem derivar da emoção e da paixão Mestieri Manual cit p 1 78179 Idem Juarez Cirino para quem a emoção como gênero e a paixão como espécie do gênero ou seja emoção extrema da são forças primárias das ações humanas determinantes menos ou mais inconscientes das ações individuais cuja inevitável influência nos atos psíquicos e sociais do ser humano precisa ser com patibilizada com o princípio da culpabilidade em futuros projetos políticocriminais brasileiros A moderna teoria cit p 222 65 Dicionário Houaiss Rio de Janeiro Ed ObjetivaInstituto Antônio Houaiss 2001 66 Fragoso Lições cit p 202 387 Sumário 1 Concurso material ou real pluralidade de ações e crimes 2 Concurso formal ou ideal unidade de ação e pluralidade de crimes 3 Crime continuado pluralidade de ações e unidade de crime 31 Requisitos 32 Estupro e atentado violento ao pudor na Lei nº 120152009 33 Pena 34 Crime continuado específico 341 Pena O Código prevê três formas de concurso de crimes concurso formal material e continuidade delitiva instituto que não se confunde com o chamado conflito aparente de normas já referido aqui há em princípio vários crimes lá crime único Naturalmente que a distinção entre uma coisa e outra não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto ora reconhecendo a unidade ora a pluralidade de crimes E tampouco há incompatibilidade entre concurso aparente e concurso de crimes que podem coexistir eventualmente 1 CONCURSO MATERIAL OU REAL PLURALIDADE DE AÇÕES E CRIMES Dáse o concurso material quando o agente mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes idênticos ou não situação em que as penas são aplicadas cumulativamente art 69 Na primeira hipótese de prática de crimes idênticos falase de concurso homogêneo vg vários furtos na segunda de concurso heterogêneo porque diversos os crimes vg furto e homicídio A expressão ação ou omissão deve ser tomada no sentido de conduta de sorte que se o agente subtrai objetos diversos num mesmo apartamento pratica uma única ação de subtrair isto é um único crime de furto não existindo concurso de delitos É que uma conduta criminosa é normalmente composta de vários atos que formam um todo Naturalmente que o número de crimes nem sempre coincide com o número de ações visto que assim como ações diversas podem constituir um só crime vg crime habitual uma única ação poderá eventualmente configurar vários delitos vg concurso formal Havendo concurso material as penas dos vários crimes são somadas critério do cúmulo material não podendo sua duração exceder a trinta anos CP art 75 PAU LO Q1EIROZ 2 CONCURSO FORMAL OU IDEAL UNIDADE DE AÇÃO E PLURA LIDADE DE CRIMES Já no concurso formal CP art 70 menos frequente o agente pratica uma única ação ou omissão causando no entanto dois ou mais crimes Exemplo A atira contra B vindo a ofender porém B e C ou dirigindo imprudentemente colide com um outro veículo e causa a morte culposa de várias pessoas Havendo concurso formal de crime o agente responde em princípio por um só crime com pena aumentada Consequentemente aplicase ao agente a mais grave das penas cabíveis ou se iguais somente uma delas mas aumentada em qualquer caso de um sexto até a metade critério da exasperação devendo o respectivo aumento va riar conforme o número de vítimas Assim se no exemplo dado inicialmente B morre e C sofre lesões corporais aplicarseá a pena do homicídio doloso com aumento de corrente do concurso que variará de um sexto até a metade Dito de outro modo dife rentemente do concurso material no concurso formal as penas dos vários crimes não são somadas devendo ser aplicada uma única pena acrescida do aumento decorrente do concurso Excepcionalmente será aplicada ao concurso formal a regra do concurso mate rial Tal ocorrerá quando os vários crimes embora decorrentes de uma ação única resultarem de desígnios autônomos concurso formal imperfeito isto é sempre que o agente quiser praticar dolosamente os vários crimes mediante uma única ação v g se o agente querendo matar um grupo de pessoas aciona uma bomba É o que dispõe o art 70 final as penas aplicamse entretanto cumulativamente se a ação ou a omis são é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos consoante o disposto no artigo anterior Nalgumas hipóteses a aplicação da regra do concurso formal poderá resultar numa apenação mais severa do que aquela que seria cabível para o concurso material con curso material benéfico Assim se conforme o exemplo referido inicialmente resul tando homicídio de B e lesão corporal leve de C se aplicasse a pena do homicí dio doloso digamos 1 2 anos de reclusão com aumento de metade chegarseia a uma pena de dezoito anos de reclusão ao passo que se se aplicasse a regra do concurso material resultaria uma pena de treze anos já que a lesão leve art 129 é punida com pena máxima de um ano de detenção situação mais favorável ao agente não obstante a aplicação cumulativa de penas É para evitar tal incoerência que o Código determina em respeito ao princípio da proporcionalidade que a pena do concurso formal não poderá exceder àquela que seria cabível para o concurso material art 70 parágrafo único 390 1 1 2 1 CONCURSO DE CRIMES 3 CRIME CONTINUADO PLURALIDADE DE AÇÕES E UNIDADE DE CRIME Diz o Código art 71 ao dispor sobre o crime continuado3 que quando o agente mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e pelas condições de tempo lugar maneira de execução e outras semelhantes devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro aplicaselhe a pena de um só dos crimes se idênticas ou a mais grave se diversas aumentada em qualquer caso de um sexto a dois terços O chamado crime continuado constitui assim uma forma de concurso material o agente mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes mas o le gislador por motivos de conveniência políticocriminal tratouo como se constituísse um úhico crime cuidandose de uma ficção legal unidade jurídica de ação Semelhante equiparação tem por objetivo preservar o princípio de proporciona lidade pois reconhecido o concurso material puramente o agente poderia sofrer em muitos casos pena absolutamente incompatível com a lesividade dos crimes praticados Assim por exemplo o falsário que de posse de 10 dez cédulas falsas colocasse em circulação uma nota a cada dia a fim de evitar suspeitas poderia ser castigado por dez orimes autônomos em concurso material sofrendo ao final pena de 30 anos de prisão se aplicada a pena mínima 3 anos de reclusão para cada infração cometida E é para evitar tais excessos que o Código consagra o instituto da continuidade delitiva Ainda hoje muitas são as críticas feitas ao instituto da continuidade delitiva As sim Jescheck assinala que se trata de uma concessão imprópria propugnando inclu sive 1por sua abolição4 Também Stratenwerth afirma que carece de todo fundamento legal constituindo do ponto de vista políticocriminal um fenômeno altamente pro blemático 5 De acordo com Eduardo Novoa Monreal não existe conceito penal mais conf1so e anárquico Grandes diferenças nas legislações penais enormes discrepân cias de parte dos tratadistas e uma apreciação muito instável de parte da jurisprudência de quase todos os países são as notas dominantes a seu respeito6 No entanto o instituto é uma realidade que se impôs e se consolidou histórica e juridicamente Apesar disso força é convir que os critérios para sua delimitação são ainda bastante vagos e incertos sendo mui larga a margem de discricionariedade para o seu reconhecimento Conforme se verá atualmente a continuação delitiva é possível inclusive quando se tratar de crimes violentos contra vítimas diversas estando revogada portanto a 3 Para uma análise exaustiva do tema vide Ney Fayet Júnior Do Crime Continuado Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2012 4 Tratado cit p 652653 5 Derecho penal cit p 353 6 Apud Ney Fayet Júnior Prescrição Penal Temas atuais e controve11idos V 1 Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2007 391 PAULO QJ E I ROZ Súmula 605 do STF anterior à reforma da nova Parte Geral de 1984 que não admitia a continuidade nos crimes contra a vida7 E a continuidade delitiva poderá ser reconhecida tanto no processo de conheci mento quanto depois de proferida a sentença condenatória pelo juiz da execução sem pre que presentes os seus requisitos legais e respeitados os limites da coisa julgada 31 Requisitos À semelhança do concurso material só se pode cogitar de crime continuado diante de várias condutas e não de uma única ainda que composta de uma plura lidade de atos Também por isso não deve ser confundido com o crime habitual v g associação criminosa em que há uma só conduta composta de vários atos não constituindo nenhum deles isoladamente crime algum tampouco deve ser confun dido com o crime permanente v g sequestro em que há um único delito mas cuja consumação se renova no tempo enquanto se mantém a violação ao bem jurídico por decisão do agente Naturalmente que não se pode equiparar à categoria de crime continuado a simples reiteração de crimes pois para a sua configuração os crimes praticados devem guardar entre si uma relação de interdependência ou de necessária sucessão de modo que os subsequentes possam ser havidos realmente como continuação do primeiro cuidandose por conseguinte de situação excepcional a ser apreciada com muita prudência Para o reconhecimento da continuidade delitiva é necessário que haja homoge neidade entre as várias infrações homogeneidade que deve ser apurada segundo as condições de tempo lugar maneira de execução e outras semelhantes Os critérios para apreciação da continuidade são pois de ordem objetiva logo objetivamente ava liáveis mas há quem exija unidade subjetiva como condição para o seu reconhecimen to8 E tais circunstâncias devem ser apreciadas conjuntamente já que formam um todo não tendo qualquer delas por si só valor decisivo seja para afirmar o concurso seja para negálo Quanto ao tempo que deve decorrer entre os delitos o assunto é controvertido na jurisprudência principalmente havendo julgados que admitem a continuidade quan do entre as infrações medeia um lapso de tempo de até um mês e outros mais liberais que a admitem até o limite de três meses entre um delito e outro 7 Súmula 605 Não se admite a continuidade delitiva nos crimes contra a vida 8 De acordo com Ney Fayet Júnior parece certo que o nosso CP adotou a concepção puramente ob jetiva do crime continuado para a qual a unificação das diferentes condutas se realiza por meio de elementos e circunstâncias de índole essencialmente objetiva O delito continuado se perfaz assim a partir de condutas homogêneas que são realizadas de modo subsequente as quais a norma penal estabelece ao invés da soma de penas a unificação das penalidades O ordenamento ju rídico do Brasil silenciou em relação à necessidade de um elemento subjetivo unificante a presidir a configuração da continuidade delitiva em face do que a homogeneização das ações se materializa em dados inteiramente objetivos Do crime continuado Porto Alegre Livraria do Advogado edi tora 2013 p l 96 392 1 1 2 1 CONCURSO DE CRIMES Exigese além disso que os crimes cometidos sejam da mesma espécie Discu tese o que são crimes da mesma espécie havendo posicionamento mais restrito no sentido de que são exclusivamente os delitos previstos no mesmo tipo penal v g só furto assim como no sentido de que são crimes da mesma espécie todos os que ofen dem o mesmo bem jurídico idênticos ou não v g furto e roubo De acordo com este segundo posicionamento mais amplo e mais razoável em tese é possível por exemplo o reconhecimento da continuidade delitiva entre o roubo e a extorsão crimes contra o patrimônio ou entre o homicídio e o aborto crimes contra a vida em razão da semelhança jurídicopenal que há entre eles visto implicarem violação ao mesmo bem jurídico E assim deve ser porque se para a configuração do crime continuado faria sentido exigir a identidade de tipos penais na vigência do Có digo de 1940 a partir da reforma da Parte Geral em 1984 tal não mais se justifica uma vez que o legislador passou a admitir a continuidade delitiva inclusive para os crimes dolosos praticados com violência ou grave ameaça à pessoa contra vítimas diferentes razãoi pela qual o seu conceito foi sensivelmente ampliado Nesse exato sentido o Código Penal português art 302 dispõe que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente Aliás conforme vimos ao tratar do concurso aparente de normas nem mesmo a diversidade de bens jurídicos pode impedir absolutamente a continuidade porque semeihante critério identidade de bem jurídico embora importante e indiciário da ocorrência ou não do crime continuado não pode ser levado a extremos sob pena de inviabilizálo em casos em que seria perfeitamente possível Com efeito se a diversidade de bens jurídicos for levada às últimas consequên cias então não se poderia por exemplo admitir a continuidade entre o sequestro e a extorsão mediante sequestro entre a violação de domicílio e o furto pois na extorsão e no furto se protege o patrimônio enquanto no sequestro e na violação de domicílio o bem jurídico protegido é a liberdade individual hipóteses em que há inclusive a pos sibilidade de reconhecimento de unidade de crime concurso aparente de normas por força da incidência do princípio da consunçãoabsorção 32 Estupro e atentado violento ao pudor na Lei nº 120152009 Be acordo com a Lei nº 120152009 o crime de estupro passa a ter a seguinte redação Constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso Vêse pois que comparada à anterior constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça a atual redação é mais ampla a ponto de com preender por inteiro o tipo de atentado violento ao pudor previsto no art 214 do CP constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal 393 Enfim o atual crime de estupro compreende além do estupro propriamente dito o antigo atentado violento ao pudor razão pela qual é evidente que o art 214 acabou por ser revogado expressamente inclusive art 7º É que o legislador fundiu num só tipo os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor Apesar de revogado o art 214 não houve abolição do crime de atentado violento ao pudor que agora passa a fazer parte do crime de estupro Não há cuidar pois de abolitio criminis mas de simples mudança do nomen juris da infração como convinha aliás visto que realmente não fazia sentido a velha distinção entre estupro e atentado violento ao pudor No essencial tudo continua portanto como antes Não obstante a expressa revogação do art 214 tem importantes consequências práticas Com efeito se antes da reforma parte da jurisprudência relatava em admitir a continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor ao argumento de que não eram crimes da mesma espécie CP art 71 já agora semelhantemente alegação restou superada em virtude da fusão dos tipos dos arts 213 e 214 Exatamente por isso caberá inclusive habeas corpusrevisão criminal em favor dos réus condenados por concurso material desses crimes para o fim de reconhecida a continuidade procederse ao recalculo da pena se o próprio juiz da execução não o fizer Está claro que o reconhecimento da continuidade delitiva só será possível se o único obstáculo para tanto tiver sido a alegação de não se tratar de crimes da mesma espécie Tratase como se vê de um caso de retroatividade da lei penal em razão de nova titio legis in melius Além disso não existe mais concurso formal ou material de crimes mas crime único pois sempre que o agente praticar num mesmo contexto atos libidinosos e conjunção carnal mesmo porque a lei tratou claramente a conjunção como espécie do gênero atos libidinosos além de tais atos fazerem agora parte do mesmo tipo penal Também por isso os réus eventualmente condenados em concurso formal ou material de estupro e atentado violento por praticarem num mesmo contexto tais atos libidinosos farão jus à revisão da pena Novatio legis in melius novamente 33 Pena Reconhecida a continuidade aplicarseá à semelhança do concurso formal uma só das penas necessariamente a mais grave das penas cabíveis se diversas aumentada de um sexto a dois terços Não poderia ser outra a solução legal visto que não continuação delitiva vários crimes formam um só fictivamente É um concurso material que recebe tratamento legal análogo ao concurso formal relativamente à pena Nesse sentido a doutrina e a jurisprudência propõem o seguinte critério 1 1 2 1 CONCU RSO DE CRI M ES Crime continuado ou continuidade delitiva regra de exasperação 16 até 23 2 dois crimes aumento 16 um sexto 3 três crimes aumento de 15 um quinto 4 quatro crimes aumento de 14 um quarto 5 cinco crimes aumento de 13 um terço 6 seis crimes aumento de Yi metade 7 sete ou mais crimes aumento de 23 dois terços O respectivo aumento de um sexto a dois terços variará conforme o número de infrações praticadas em continuidade proporcionalmente portanto 34 Crime continuado específico O Código prevê ainda que nos crimes dolosos contra vítimas diferentes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa o juiz poderá considerando a culpabilidade os antecedentes a conduta social e a personalidade do agente bem como os motivos e circunstâncias aumentar a pena de um só dos crimes se idênticas ou a mais grave se diversas até o triplo CP art 71 parágrafo único Tratase portanto de uma forma mais severa de apenação do crime continuado visto atentar contra bens jurídicos especialmente importantes vida liberdade etc Portanto além dos requisitos gerais já referidos a continuidade específica reclama os seguintes a crimes dolosos ficando excluídos em consequência os culposos b contra vítimas diferentes c com violência ou grave ameaça à pessoa entendendose como tal a ameaça violência contra a pessoa não bastando contra a coisa apenas d circunstâncias judiciais favoráveis Obviamente que todos os requisitos devem estar presentes sem exceção pois do contrário isto é ausente qualquer um a hipótese será a de não ocorrência da continui dade ou de aplicação do caput do art 71 que a pune menos severamente Admitida assim a continuação delitiva nos crimes dolosos com violência ou gra ve ameaça à pessoa contra vítimas diferentes restou revogada a Súmula 605 do Supre mo Tribunal Federal anterior à reforma da nova Parte Geral de 1984 que não permitia a continuidade nos crimes contra a vida Com efeito a Súmula 605 dispunha não se admite a continuidade delitiva nos crimes contra a vida 341 Pena Reconhecida a continuidade específica a pena será aumentada até o triplo aten dendo ao disposto no art 59 quanto à dosimetria da pena não podendo exceder logi camente àquela que seria cabível na hipótese de concurso material Por isso a remissão do art 71 ao parágrafo único do art 70 395 Parte III Consequências jurídicopenais 01Consequências JurídicoPena is do Crime Funções do Direito Penal teorias da pena Sumário 1 Introdução 1 INTRODUÇÃO A discussão sobre os fins e limites da pena ou mais amplamente a discussão sobre as funções do direito penal constituiu tema dos mais controversidos e tema político por excelência uma vez que o direito penal é ao menos na perspectiva do Estado uma forma de gestão política de conflitos nem a única nem a mais importante Daí dizer Tobias Barreto que quem procura o fundamento jurídico da pena deve procurar também o fundamento jurídico da guerra¹ O Direito Penal é a forma da guerra em tempos de paz Há quem entenda inclusive ser impossível saber por que realmente se castiga² ou simplesmente negue qualquer fim racional à pena a exemplo de Eugênio Raúl Zaffaroni para quem a pena é um exercício de poder que está deslegitimado mas que existe como um dado da realidade como um fato político como um fato de poder³ Algumas Constituições assinalam expressamente uma determinada finalidade à pena a exemplo da italiana espanhola e portuguesa A italiana art 27 dispõe que as penas não podem consistir em tratamentos contraditórios ao senso de humanidade e devem tender à redenção do condenado A espanhola art 25 2º prevê que as penas privativas de liberdade estão orientadas para a reeducação e reinserção social e não podem consistir em trabalhos forçados E a portuguesa art 40 1 diz que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade PAULO QlJ E I ROZ A Constituição brasileira nada diz a esse respeito explicitamente havendo quem defenda por isso a plausibilidade de uma teoria agnóstica da pena a partir dela4 que deve consistir numa política de redução de danos A Lei de Execução Penal art lº prescreve que a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado Naturalmente que os fins da sanção penal penas e medidas de segurança de vem pressupor uma sentença penal condenatória motivo pelo qual não é lícito em princípio pretender realizálos por meio de prisões provisórias porque do contrá rio já não haverá distinção entre processo de conhecimento e processo de execução É que prevenir novos crimes seja em caráter geral seja em caráter especial não constitui a rigor fim da prisão provisória mas fim da pena mesma a exigir ao me nos no Estado Democrático de Direito trânsito em julgado de sentença penal conde natória Também não é possível falar de fins do direito penal para além do tempo e do es paço mesmo porque os fins e limites do direito penal são em última análise os fins e limites do próprio Estado motivo pelo qual cada modelo de Estado pede um modelo de direito penal Convém assim não perder de vista o contexto econômico social e político em que a discussão se passa mesmo porque cada sociedade tem sempre suas próprias razões para castigar ou não castigar Atualmente duas principais correntes políticocriminais devem ser consideradas quanto à análise das funções da pena ou mais amplamente do direito penal a saber as teorias legitimadoras e as teorias deslegitimadoras As primeiras tradicionais re conhecem sob os mais diversos fundamentos absolutos relativos ou mistos legitimi dade ao Estado para intervir na liberdade dos cidadãos por meio do direito penal seja como retribuição seja como prevenção As segundas ao contrário negam semelhante legitimidade por considerar a intervenção penal desnecessária imediata perspectiva abolicionista ou mediatamente perspectiva minimalista radical Conforme se perceberá há várias teorias da pena umas legitimadoras outras des legitimadoras outras a um tempo legitimadoras e deslegitimadoras do poder de pu nir Verseá também que apesar de assim classificáveis não raro divergem quanto aos fundamentos do direito de punir Exatamente por isso não existe a rigor uma teoria preventiva especial mas diversas cujos argumentos e postulados nem sempre coincidem entre seus partidários Com efeito ora falam de ressocialização ora de não dessocialização ora propõem a ressocialização como uma finalidade a ser perseguida contra a vontade do condenado inclusive ora como um direito seu que não pode lhe ser imposto sob nenhum pretexto Semelhantemente a prevenção geral negativa pro posta por Ferrajoli não é a mesma que propõe Roxin que não é a mesma que propunha Feuerbach 4 Nesse sentido Saio de Carvalho Antimanual de criminologia Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 400 01Consequências JurídicoPenais do Crime Funções do Direito Penal teorias da pena Enfim como toda classificação as teorias da pena encerram uma redução uma simplificação podendo compreender sob o mesmo título propostas políticocriminais um tanto dispares É que as mesmas palavras e conceitos não designam sempre as mesmas coisas nem o seu uso conduz necessariamente aos mesmos resultados De todo modo parecenos que contrariamente ao que pretendem em geral as diversas teorias não existe uma razão universal para castigar ou não castigar isto é aplicável a todo e qualquer caso e pois válida para além do tempo e do espaço motivo pelo qual cada caso pede uma legitimaçãodeslegitimação particular É que o direito penal como todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e por isso constitui uma universalização do não universal do singular um conceito nasce portanto da postulação de identidade do não idêntico⁵ O conceito de crime por exemplo referese a um semnúmero de condutas que a rigor nada têm em comum à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas matar alguém subtrair coisa alheia móvel emitir cheque sem provisão de fundos portar droga para consumo pessoal abater espécime de fauna silvestre etc espécime que pode variar de uma minhoça ou uma borboleta a uma onça pintada conceitos que por sua vez unificam coisas dispares Com efeito não existe um homicídio absolutamente igual a outro homicídio nem um furto absolutamente igual a outro furto nem um crime ambiental absolutamente igual a outro pois as múltiplas variáveis que sempre envolvem tais atos tornam cada ação humana única irrepetível Enfim um conceito é formado pela eliminação do que há de singular em cada ato e quanto mais exato mais abstrato e mais vazio de conteúdo se torna⁶ Em razão dessa estrutura analógica do direito seguese inclusive que nem todos os comportamentos de que se ocupa o direito penal merecem pena necessariamente nem tampouco a mesma pena ainda que se trate do mesmo tipo de infração v g furto praticado contra ascendente ou descendente não é punível nos termos do art 181 II do CP Além disso parte considerável das infrações penais poderia ser simplesmente abolida Além disso as leis penais presumem de parte de seus destinatários potenciais criminosos uma regularidade de expectativas emoções instintos e interesses que simplesmente não existem É que no fundo praticamos crimes pelas mesmas razões que não os praticamos isto é porque temos ou não motivações para tanto e essas motivações variam de pessoa para pessoa e são sempre novas Talvez por isso tivesse razão Nietzsche quando dizia que é impossível saber por que realmente se castiga e principalmente quando assinalava que o que chamamos justiça não é outra coisa senão uma transformação do ressentimento e pois uma forma de vingança com outro nome PAULO Q E I ROZ O presente capítulo pretende ser uma introdução a este tema sempre atual e con trovertido que é a crítica da razão punitiva e que encerra uma tríplice discussão por que punir o que punir e como fazêlo 402 metafisica a psicologia a representação histórica mas sobretudo a moral Também enquanto apenas pensou o homem arrastou para as coisas o bacilo da vingança Vontade de poder cit p 3803 8 1 02 TEORIAS LEGITIMADORAS Sumário 1 Teorias absolutas 11 Crítica 2 Teorias relativas prevenção geral e prevenção especial ou preventivas 21 Introdução 22 Prevenção geral negativa 221 Crítica 23 Prevenção geral positiva 231 Crítica 24 Prevenção especial ou individual 241 Crítica 3 Teorias ecléticas ou unitárias ou mistas 31 Introdução 32 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin 33 O garantismo de Luigi Ferrajoli 1 TEORIAS ABSOLUTAS Absolutas são todas as teorias que veem o direito penal como um fim em si mesmo independentemente de razões utilitárias ou preventivas de modo que a rigor conforme diz Roxin a pena não serve para nenhum fim¹ uma vez que sua legitimidade decorre do só fato de haver sido cometido um delito Nesse sentido são as teorias de Kant e Hegel Para Kant teoria da retribuição moral a pena se justificava pelo simples fato de retribuir justamente um crime praticado A pena constituía então uma reação estatal legítima à ação ilegítima do indivíduo independentemente de considerações de caráter utilitário razão pela qual era irrelevante investigar se a pena seria ou não capaz de motivar ou dissuadir delinquentes e assim prevenir em caráter geral ou especial novos delitos Enfim a pena se justifica quia peccatum est Com efeito de acordo com Kant as penas são em um mundo regido por princípios morais por Deus categoricamente necessárias² Justamente por isso ainda que uma sociedade se dissolvesse por consenso de todos os seus membros v g se o povo que habitasse uma ilha decidisse separarse e dispersarse pelo mundo então o último assassino deveria ser executado³ Para isso a lei de talião dente por dente olho por olho seria o paradigma da verdadeira justiça pois só a lei de talião proclamada por um tribunal pode determinar a qualidade e a quantidade da punição⁴ já que o mal imerecido que tu fazes a outrem tu fazes a ti mesmo se tu o ultrajas ultrajas a ti mesmo se tu o roubas roubas a ti mesmo se tu o matas matas a ti mesmo⁵ Consequentemente todos os criminosos que cometeram um assassinato ou ainda os que ordenaram ou nele estiveram implicados PAULO ÜJjEIROZ hão de sofrer também a morte assim o quer a justiça enquanto ideia do poder judicial segundo leis universais fundamentadas a priori 6 Se déssemos razão a Kant não faria sentido algum a previsão entre outras situa ções de causas de extinção de punibilidade prescrição etc nem de causas especiais de isenção de pena v g alguns crimes patrimoniais praticados contra ascendentes e descendentes por implicarem a renúncia à punição do autor em tese culpado de crime E uma teoria que veja a pena como uma retribuição jurídica pura e simples não tem como explicar tais casos É que as citadas hipóteses de isenção de pena s6 fazem sentido se tivermos em conta que o direito penal e os conceitos com os quais trabalha crime pena etc são dimensões do poder político razão pela qual antes de tudo cumpre saber o que pode e deve o Estado num dado momento histórico criminalizardescriminalizar e como fazêlo E uma teoria retributiva simplesmente não tem como responder a questões dessa ordem visto pressupor já decidido o problema de saber o que pode e deve ser punido e como punir E tampouco pode dar resposta às críticas das teorias que partindo do pressuposto de que o sistema penal é estruturalmente injusto pretendem deslegitimá lo e abolilo total ou parcialmente7 Apesar disso seja qual for a finalidade declarada assinalada à pena ela sempre deverá ter como pressuposto irrenunciável o cometimento de uma infração penal logo é nesse sentido uma retribuição Quanto a isso estamos todos de acordo Ferrajoli tem razão portanto quando assinala que as teorias retribucionistas con fundem razão legal por que castigar que se refere à legitimação externa da inter venção penal com razão judicial quando castigar que tem a ver com a legitimação interna e que consiste precisamente na retribuição8E Kant só se ocupou em verdade desse segundo problema Já para Hegel teoria da retribuição jurídica a pena que não responde a um man dado absoluto de justiça como em Kant9 é uma exigência da razão que se explica e se justifica a partir de um processo dialético inerente à ideia e ao conceito mesmo de direito 6 Kant Metafisica dos Costumes Parte Lisboa Edições 70 p 149 7 No mesmo sentido ferrajoli Derecho y razón Madrid Trotta editorial 1 995 p 256258 8 Derecho y razón Madrid Trotta editorial 1 995 p 256 9 Apesar disso Ferrajoli considera que só aparentemente se distinguem as concepções de Hegel e Kant uma vez que ao menos em Hegel que concebe o Estado como um espírito ético ou substância ética também a ideia de retribuição jurídica se baseia de fato em última análise no valor moral associado se não a cada imperativo penal à ordem jurídica lesionada Derecho y razón cit p 254 Já Eugênio Pacelli observa não ser exato considerar Hegel defensor de uma teoria retributiva da pena ainda que se possa reconhecer nele um partidário de uma teoria absoluta Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais Belo Horizonte Dei Rey 2004 p 3 1 404 1 02 1 TEORIAS LEGITIM ADORAS Com efeito o delito é uma violência contra o direito e a pena é uma segunda vio lência que anula aquela primeira logo a pena é a negação da negação do direito ou seja é a sua afirmação segundo a regra a negação da negação é a sua afirmação Ou como escreveu Basileu Garcia para Hegel o direito é uma manifestação da vontade racional e a pena é a reafirmação da vontade racional sobre a vontade irracional ser vindo para restaurar uma ideia precisamente para restaurar a razão do direito anulan do la razão do delito10 A legitimidade da pena é indiscutível portanto a pena com que se aflige o cri minoso não é apenas justa em si justa que é é também o ser em si da vontade do cri minoso uma maneira da sua liberdade existir o seu direito11 E em relação ao agente do delito a pena constitui um direito seu uma maneira de sua liberdade existir que o dignifica como ser racional pois está implicada na sua própria vontade no seu ato Porque vem de um ser de razão este ato implica a universalidade que por si mesma o crifiinoso reconheceu e à qual se deve submeter como ao seu próprio direito12 1l Crítica Tais teorias parecem de todo incompatíveis com o perfil dos Estados contempo râneos Estados funcionais ou instrumentais que encontram limites constitucionais intransponíveis em especial a dignidade da pessoa humana razão pela qual todo poder há Ide emanar do povo que o exerce por meio de seus representantes CF art 1 º pará grafo único não podendo o direito penal responder a nenhum propósito transcenden tal ou metafísico Além disso tal formulação parece absolutizar na pena todo controle social sendo inconciliável com a crescente relativização dos modos de atuação dos sistemas penais contemporâneos penas alternativas transação descriminalização despenalização Por fim ignora a própria injustiça ligada ao funcionamento ordinário doisistema penal até porque não raro a maior violência não consiste propriamente em contrariar a norma mas em preservála mantendose a proibição de algo que poderia seli permitido ou prevenido por outros meios mais adequados 2 TEORIAS RELATIVAS PREVENÇÃO GERAL E PREVENÇÃO ES PECIAL OU PREVENCIONISTAS 1 21 Introdução Em oposição às absolutas as teorias relativas são marcadamente teorias finalis tas 13 já que veem a pena não como fim em si mesmo mas como meio a serviço de deter minados fins considerandoa utilitariamente portanto Fim da pena é principalmente 1 0 Basileu Garcia Instituições de direito penal São Paulo Max Limonad 1980 p 73 1 1 Hegel Princípios de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 1 997 p 89 12 Hegel Princípios cit p 89 13 Maurach Derecho penal cit p 87 405 PAULO Q1 E I ROZ a prevenção de novos delitos daí porque são também conhecidas como teorias da pre venção ou prevencionistas Dividemse em teorias da prevenção geral positiva ou negativa e teorias da prevenção especial No primeiro caso de prevenção geral posi tiva a finalidade da pena é fortalecer os valores éticosociais veiculados pela norma estabilizar o sistema social ou semelhante no segundo de prevenção geral negativa a norma tem por objetivo motivar os seus destinatários a se absterem da prática de novos delitos finalmente para as teorias da prevenção especial o fim da norma é evitar a reincidência por meio da ressocialização do condenado ou similar 22 Prevenção geral negativa A principal versão da teoria da prevenção geral negativa devese a Paul Anselm Ritter von Feuerbach Para Feuerbach todos os crimes têm por causa ou motivação psicológica a sen sualidade na medida em que a concupiscência do homem é o que o impulsiona por prazer a cometer a ação A esse impulso da sensualidade opõese um contraimpulso que é a certeza da aplicação da pena Portanto fim da pena é a prevenção geral de no vos delitos por meio de uma coação psicológica exercida sobre seus destinatários dis tinguindose dois momentos da pena o da cominação e o da sua aplicação No primei ro o objetivo da pena é a intimidação de todos como possíveis protagonistas de lesões jurídicas no segundo o fim da norma é dar fundamento efetivo à cominação legal dado que sem a aplicação da cominação tal seria ineficaz14 Em ambos os momentos a direito penal tem por fim a prevenção geral negativa de futuros delitos 221 Crítica De acordo com Roxin nessa teoria permanece em aberto a questão de se saber em face de que comportamentos possui o Estado a faculdade de intimidar ou seja a doutrina da prevenção geral partilha com as doutrinas da retribuição a mesma debili dade isto é fica por esclarecer o âmbito do criminalmente punível15 E desde que se aceite que o fim de intimidação geral justifica a intervenção penal e desde que não lhe delimite o âmbito de atuação tal doutrina tende claramente para um Estado de máxima intervenção16 que se valerá da pena sempre que isso lhe parecer politicamente conveniente Apesar disso Mir Puig entende que quase todas as críticas atacam a prevenção geral porque esta não oferece limites ao poder punitivo do Estado admissíveis num Estado Democrático isto é criticase a prevenção geral porque conduz a prevenção excessivamente longe mas não se demonstra que a prevenção geral dentro de certos limites não constitua uma das possíveis bases de justificação da pena17 14 Feuerbach Tratado de derecho penal trad E R Zaffaroni Buenos Aires Ed Hamrnurabi 1 989 1 3 e s 15 Problemas fundamentais cit p 23 1 6 Roxin Problemas fundamentais cit p 23 1 7 Introducción a las bases dei derecho penal Barcelona Bosch 1976 p 67 406 23 Prevenção geral positiva Entre as atuais teorias da prevenção geral positiva merece especial referência a formulação de Günther Jakobs que inspirada na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann parte da funcionalidade do direito penal para o sistema social Para ele a norma penal constituiu uma necessidade funcionalsistêmica de estabilização de expectativas sociais por meio da aplicação de penas ante as frustrações que decorrem da violação das normas Esse novo enfoque utiliza assim a concepção luhmanniana do direito como instrumento de estabilização social de orientação das ações e de institucionalização das expectativas De acordo com Jakobs os contatos e interações sociais geram expectativas as mais diversas as quais devem ser asseguradas como condição de preservação do sistema social Essas expectativas que podem ser desestabilizadas em face da decepção ou do conflito entre os que participam da interação social são normalizadas e asseguram a confiança e a fidelidade das interações interindividuais ou sistêmicas A pena por sua vez protege as condições de tal interação e tem portanto função preventiva por que assegura a validade da norma razão pela qual a reação punitiva a pena tem como função principal restabelecer a confiança e reparar ou prevenir os efeitos negativos que a violação da norma implica para a estabilidade do sistema e para a integração social Diz Jakobs textualemente a pena é uma demonstração da vigência da norma à custa de um responsável em fim de assegurar a estabilização da norma lesionada como réplica que tem lugar frente ao questionamento da norma Portanto o fundamento da pena não é a prevenção geral negativa para proteção de bens jurídicos nem a prevenção especial mesmo porque de acordo com Jakobs destinatários da norma não são primariamente algumas pessoas enquanto autoras potenciais mas todas visto que ninguém pode passar sem interações sociais e que por isso devem saber o que delas podem esperar Para isso o fim último da pena consiste na manutenção da norma enquanto modelo de orientação de condutas para os contatos sociais Em conclusão o delito é uma ameaça à integridade e à estabilidade social enquanto constitui a expressão simbólica da falta de fidelidade ao direito essa expressão faz estremercer a confiança institucional e a pena é por sua vez uma expressão simbólica oposta à representada pelo crime Recentemente Jakobs passou a defender inclusive ao lado do direito penal do cidadão um direito penal do inimigo modelos políticocriminais cujas notas distintivas essenciais residem especialmente no seguinte a o inimigo não é pessoa mas inimigo não pessoa logo a relação que com ele se estabelece não é de direito mas de coação de guerra b o direito penal do cidadão tem por finalidade manter a vigência da norma o direito penal do inimigo o combate de perigos c o direito penal do cidadão reage por meio de penas o direito penal do inimigo por meio de medidas de segurança d o direito penal do cidadão trabalha com um direito penal do fato o direito penal inimigo com um direito penal do autor e por isso o direito penal do cidadão pune fatos criminosos o direito penal do inimigo a periculosidade do agente f o direito penal do cidadão é essencialmente repressivo o direito penal do inimigo essencialmente preventivo g por essa razão o direito penal do cidadão deve se ocupar como regra de condutas consumadas ou tentadas direito penal do dano ao passo que o direito penal do inimigo deve anteparar a tutela penal para punir atos preparatórios direito penal do perigo h o direito penal do cidadão é um direito de garantias o direito penal do inimigo um direito antiterrorista E assim há de ser porque de acordo com Jakobs aquele que não oferece um mínimo de segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser ainda tratado como pessoa como também o Estado não deve tratálo como pessoa já que o contrário violaria o direito à segurança das demais pessoas os cidadãos Com efeito aquele que por princípio se conduz de modo desviado e não oferece garantia de um comportamento pessoal vg aqueles que tomam parte em terrorismo e criminalidade organizada não pode consequentemente ser tratado como cidadão devendo ser combatido como inimigo e esta guerra se presta a preservar a segurança dos cidadãos Há muita semelhança entre a teoria de Jakobs e as teorias absolutas razão pela qual parte do que se disse sobre tais teorias vale também aqui semelhança reconhecida pelo próprio Jakobs ao confessar que em Hegel a teoria absoluta recebe uma configuração que em pouco se diferencia da prevenção geral aqui representada A crítica mais corrente à teoria de Jakobs consiste em afirmar que não se trata de uma perspectiva instrumental mas simbólica uma vez que o direito já não serve primordialmente ao homem que se reduz a um subsistema físicopsíquico mas ao sistema pois o direito não se presta assim à solução de conflitos nem à proteção de bens jurídicos Daí dizer Zaffaroni que o discurso jurídicopenal sistêmico se afasta do homem perdendo todos os limites e garantias liberais admitindose a possibilidade de punir ações meramente imorais que não lesionam ninguém a emprestar relevância e primazia aos dados subjetivos de ânimo e a sustentar um critério de pena puramente utilitário ou instrumental para o sistema Por isso constituiu uma descrição asséptica e tecnocrata do modo de funcionamento do sistema mas não uma valoração e muito menos uma crítica ao sistema ou como diz Baratta a teoria sistêmica conduz a uma concepção preventiva integradora em que o centro de gravidade da norma jurídica penal passa da subjetividade do indivíduo e do mundo axiológico ao sistema e às expectativas institucionais afastando qualquer reflexão crítica alheia à funcionalidade do castigo para o sistema Nesse modelo tecnojurídico o direito penal já não resolve conflitos sociais o problema do crime senão que integra no sistema intervindo onde e quando aqueles se exteriorizam sintomatologicamente não onde e quando são gerados etiologicamente Por fim para a teoria da prevenção positiva é determinado nível de visibilidade social do desvio de alarme social e não as cifras ocultas da criminalidade que provoca uma resposta penal baseada na teoria da prevenção positiva esta por consequência legitima o princípio da seletividade do sistema e os processos de imunização da resposta penal que dependem estritamente do grau de visibilidade social dos conflitos existentes numa sociedade Quanto ao direito penal do inimigo que parece colocar o homem numa condição inferior à de plantas e animais os quais têm proteção legal diferentemente deste que passam a ser tratados como não pessoas pois não sujeitos do direito mas simplesmente objeto do direito razão assiste a Muñoz Conde quando assinala que os direitos e garantias fundamentalmente próprios do Estado de Direito sobretudo os de caráter penal material princípios de legalidade intervenção mínima e culpabilidade e processual penal direito à presunção de inocência à tutela jurisdicional a não depor contra si mesmo etc são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do Estado de Direito Se se admite sua derrogação ainda que seja em casos pontuais extremos e mui graves temse que admitir também o desmantelamento do Estado de Direito cujo ordenamento jurídico se converte em um ordenamento ou sem nenhuma referência a um sistema de valores ou o que é pior referido a qualquer sistema ainda que seja injusto sempre que seus defensores tenham o poder ou a força suficiente para impôlo O Direito assim PAULO QjEIROZ entendido se converte em um puro Direito de Estado em que o direito se submete aos interesses que em cada momento determine o Estado ou as forças que controlem ou monopolizem seu poder O Direito é então simplesmente o que em cada momento convém ao Estado que é ao mesmo tempo o que prejudica e faz o maior dano possível a seus inimigos34 Parece também evidente que direito penal do cidadão é um pleonasmo e direito penal do inimigo uma contradição em seus termos 35 24 Prevenção especial ou individual Para essa corrente a finalidade do direito penal é prevenir novos crimes resso cializando os seus autores reeducandoos etc ou seja o sentido do castigo é evitar a reincidência razão pela qual a prevenção não se dirige a todos mas a algumas pessoas em particular os criminosos O direito penal pretende em última análise a conversão do delinquente num homem de bem36 Diversas correntes de pensamento advogaram ou ainda advogam essa forma de justificação do direito de punir o correcionalismo espanhol Dorado Montero Con cepción Arena o positivismo italiano Lombroso Ferri Garofalo a chamada mo derna escola alemã de Von Liszt e mais recentemente o movimento de defesa social de Filippo Gramatica Marc Ancel e outros Em sua versão mais radical a teoria da prevenção especial pretende a substituição da justiça penal por uma espécie de medicina social a fim de promover um saneamen to social seja pela aplicação de medidas terapêuticas seja pela segregação por tempo indeterminado seja pela submissão a um tratamento ressocializador apto a inibir as tendências criminosas Representante dessa tendência foi Dorado Montero com seu direito protetor dos criminosos que defendia como missão da administração da justiça penal o sanea mento social uma função de higienização e profilaxia razão pela qual os atuais juízes em vez de julgarem conflitos de interesse passariam a ser novos médicos sociais visando a promover e dirigir o tratamento mais adequado à situação de cada delinquente O juiz severo adusto e temível profetizou Dorado Montero deve de saparecer para passar o posto ao médico carinhoso e entendido37 O processo penal deveria por isso ceder lugar à administração unilateral de tais interesses pelo Esta do pois para a implantação desse novo sistema cumpria suprimirse todo o apa rato de juízes magistrados tribunais hierárquicos ministério público advogados 34 De Nuevo Sobre el Derecho Penal dei Enemigo ln Novos Rumos do Direito Penal Contemporâneo Livro em Homenagem ao Prof Dr Cezar Roberto Bitencourt Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 76 35 Manuel Cancio Meliá Derecho Penal dei inimigo cit 36 Basileu Garcia Instituições cit p 72 37 Bases de un nuevo derecho penal Buenos Aires Depalma 1973 p 66 410 I02 1 TEORIAS LEGITIMADORAS defensores etc38 o que implicaria necessariamente abolir ou relativizar as garantias do direito e processo penal uma vez que constituem um obstáculo a esse fim superior Outro postulado daí resultante é a indeterminação da pena ou das medidas de se gurança enquanto durasse a necessidade de tratamento A Ferri autor de um ambicioso sistema de substitutivos penais pareceu que a experiência secular tem demonstrado o absurdo teórico e a deficiência prática da pena em medida fixa que é consequência lógica do conceito de retribuição da culpa mediante um castigo proporcionado39 mo tivo pelo qual a defesa social contra a criminalidade deveria realizarse ou com o se questro indefinido dos delinquentes não readaptáveis à vida livre ou com a reeducação para a vida social dos delinquentes readaptáveis4º Mas coube especialmente a Franz von Liszt universalizar a teoria da prevenção especial Para Von Liszt fim da pena ou das medidas de segurança era prevenir eficaz mente a prática de futuros delitos conforme as peculiaridades de cada infrator Assim missão da pena para os delinquentes ocasionais que não precisam de correção é a ad vertência função de advertência ou de intimidação para os que precisam de correção é ressocializálos com a educação durante a execução penal função ressocializadora para o delinquente incorrigível ou habitual fim da pena é tornálo inócuo por tempo indeterminado função de inocuização enquanto dure a necessidade inocuizadora Para Von Liszt função da pena e do direito penal era portanto a proteção de bens jurídicos por meio da incidência da pena sobre a personalidade do delinquente com a finalidade de evitar futuros delitos41 241 Crítica Em verdade tais teorias não podem operar como a geral no momento da comi nação mas só na execução da pena42 motivo pelo qual não constituem a rigor uma teoria do direito penal mas uma teoria da execução penal Além disso nada dizem sobre os limites da atuação estatal ou sobre os critérios e razões políticocriminais que devem orientar a intervenção do Estado no particular omitindose sobre o conteúdo do poder punitivo É de convir com Ferrajoli que ao supor uma concepção do poder punitivo como bem metajurídico o Estado pedagogo ou terapeuta e simetricamente do delito como mal moral ou enfermidade natural ou social tais doutrinas se revelam as mais antili berais e antigarantistas a justificarem modelos de direito penal máximo e tendencial mente ilimitado43 38 Dorado Montem Bases cit p 94 39 Princípios de direito criminal trad Paolo Capitania Campinas Bookseller 1 996 p 3 1 1 40 Ferri Princípios cit p 3 13 41 Mir Puig Introducción cit p 70 42 Mir Puig Introducción cit p 68 43 Ferrajoli Derecho y razón cit p 270 4 1 1 PAULO OJjEI ROZ Além disso educar para a liberdade em condições de não liberdade é como afir ma Mufíoz Conde não só de difícil realização como constitui uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida nas prisões44 cujos nocivos efeitos são amplamente co nhecidos Por fim a ressocialização ou a reintegração social do preso tal como prevê a nossa Lei de Execução Penal art 1º pode no máximo constituir um direito do condenado mas jamais um fim legítimo a ser perseguido por meio da violência da pena sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana fundamento declarado do Estado Democrá tico de Direito Não é preciso lembrar que a prisão longe de ressocializar em geral dessocializa corrompe embrutece e pior não tem impedido os criminosos de continuarem a delin quir mesmo quando encarcerados em presídios ditos de segurança máxima 3 TEORIAS ECLÉTICAS OU UNITÁRIAS OU MISTAS 31 Introdução Dizemse unitárias ou mistas ou ecléticas todas as teorias majoritárias na atua lidade que almejando superar as antinomias entre as diversas formulações teóricas apresentadas pretendem combinálas ou unificálas ordenadamente45 Ambicionam sem compromisso com a pureza ou monismo de modelos característicos das teorias absolutas e relativas explicar o fenômeno punitivo em toda a sua complexidade e plu ridimensionalidade46 As teorias unitárias intentam assim conforme observa Jescheck mediar entre as teorias absolutas e relativas não naturalmente somando sem mais suas contraditó rias ideias básicas mas mediante a reflexão prática de que a pena na realidade de sua aplicação pode desenvolver a totalidade de suas funções em face da pessoa afetada e seu mundo circundante de sorte que o que importa realmente é conseguir uma relação equilibrada entre todos os fins da pena método dialético47 servindo de ponte entre umas e outras48 44 Derecho penal y control social cit p 124 45 Para Roxin as teorias monistas quer atendam à culpa quer à prevenção geral quer à especial são necessariamente falsas porque quando se trata da relação do particular com a comunidade e com o Estado a realização estrita de um princípio ordenador tem forçosamente como consequência a arbi trariedade e a falta de verdade Problemas fundamentais cit p 43 De modo similar Figueiredo Dias Desta concepção básica resulta como consequência que não se justifica nem é conveniente nem eficaz assinalar à pena ou só finalidades de prevenção geral ou só de prevenção especial Umas e outras devem coexistir e combinarse da melhor forma e até o limite possíveis porque umas e outras se encontram num propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros Questões fundamentais do direito penal revisitadas São Paulo Revista dos Tribunais 1 999 p 1 29 46 Como observa GarcíaPablos metodologicamente quem propugna por essa solução ou tese seme lhante procura ressaltar os graves inconvenientes dos monismos e da denominada pureza de mode los Derecho penal cit p 1 05 47 Tratado cit p 66 48 Baumann Derecho penal cit 412 Para essa teoria a justificativa da pena depende a um tempo da justiça de seus preceitos e da sua necessidade para a preservação das condições essenciais da vida em sociedade proteção de bens jurídicos Buscase assim unir justiça e utilidade razão pela qual a pena será legítima somente quando for ao mesmo tempo justa e útil Por conseguinte a pena ainda que justa não será legítima se for desnecessária inútil tanto quanto se embora necessária útil não for justa Semelhante perspectiva se caracteriza pois por um conceito pluridimensional da pena que apesar de orientado pela ideia de retribuição a ela não se limita Entre as teorias mistas atuais merecem destaque a teoria dialética unificadora de Claus Roxin e o garantismo de Luigi Ferrajoli 32 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin De acordo com Roxin é preciso considerar na justificação do direito de punir três momentos distintos a a ameaça cominação b a imposição aplicação e c a execução da pena Inicialmente o papel da pena dependerá dos fins cometidos constitucionalmente ao Estado titular do poder punitivo visto que os limites do direito penal são em última análise os limites do próprio Estado Exatamente por isso ao menos na vigência do Estado de Direito em que todo poder emana do povo já não se pode perseguir a realização de fins divinos ou transcendentais de qualquer outro tipo Nem é tampouco finalidade da pena corrigir moralmente o indivíduo Em síntese a finalidade do direito penal é criar e garantir um grupo reunido interior e externamente no Estado as condições de uma existência que satisfaça às suas necessidades vitais Roxin conclui então que a o direito penal tem natureza subsidiária motivo pelo qual a sua intervenção só é legítima se for indispensável para uma vida em comum ordenada pois quando bastem os meios do direito civil ou do direito público o direito penal deve se retirar b o direito penal não pode se ocupar de condutas meramente imorais ou não lesivas de bem jurídico A finalidade precípua do direito penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos prevenção geral subsidiária portanto já quando da sua individualização judicial a finalidade da pena consiste essencialmente mas não exclusivamente em resocializar o condenado prevenção especial limitada pela culpabilidade isto é não para fundamental a pena mas para evitar possíveis excessos que poderiam resultar da prevenção geral passando aquela a funcionar como limite da prevenção geral motivo pelo qual a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade Textualmente o fim de prevenção geral da punição apenas PAULO QJ E I ROZ se pode conseguir na culpa individual pois se vai além e portanto se pretende que o autor expie as tendências criminosas de outros atentase realmente contra a dignidade humana53 A culpabilidade serve assim à limitação do direito de punir razão pela qual não se poderia em nome da prevenção geral ou especial pretender transformar por exem plo mediante vários anos de trabalho reeducativo um mendigo notório num diligente guardalivros pois o escasso conteúdo da culpa proíbe o direito penal de levar a cabo tal tarefa 54 A conclusão de Roxin é pois no sentido de que a pena tem por finalidade a prote ção subsidiária e preventiva tanto geral como individual de bens jurídicos e de presta ções estatais por meio de um processo que salvaguarde a autonomia da personalidade e que esteja limitado pela medida da culpa Finalmente quando da execução a pena tem por fim a reintegração social do delinquente na comunidade Mas em respeito à garantia constitucional da autonomia da pessoa é proibido um tratamento coercitivo que interfira com a estrutura da personalidade mesmo que de eficácia ressocializante razão pela qual seria inadmissível por exemplo a castração de delinquentes sexuais como também a operação cerebral que transforme um desordeiro num manso e obe diente sonhador pois o Estado deve proteger o indivíduo através do direito penal e contra o direito penal Em suma a finalidade essencial da pena é proteger por meio da prevenção geral e especial e subsidiariamente bens jurídicos especialmente importantes 33 O garantismo de Luigi Ferrajoli Para Ferrajoli a única finalidade capaz de legitimar a intervenção penal é a pre venção geral negativa exclusivamente mas não apenas prevenção de futuros delitos mas sobretudo prevenção de reações informais públicas ou privadas arbitrárias fim fundamental da pena a seu ver pois a pena não serve só para prevenir os injustos delitos senão também os castigos injustos que não se ameaça com ela e se a impõe só ne peccetur senão também ne punietur que não tutela só a pessoa ofendida pelo delito e sim também o delinquente frente às reações informais públicas ou privadas arbitrá rias Ferrajoli concebe o direito penal assim como um sistema de garantias conforme a tradição liberal iluminista do cidadão perante o arbítrio realizável pelo Estado ou pelos próprios indivíduos E defende um direito penal mínimo isto é que se limite às hipóteses de absoluta necessidade segundo os princípios de um direito penal e proces sual garantista legalidade lesividade proporcionalidade ampla defesa entre outros Assinala que o direito penal nasce precisamente no momento em que a relação bilateral parte ofendidaofensor é substituída por uma relação trilateral em que uma autoridade judicial se situa numa posição de terceiro ou imparcial 53 Problemas fundamentais de direito penal cit p 35 e ss 54 Problemas fundamentais idem 414 O direito penal concebido como instrumento de defesa dos direitos fundamentais e orientado para tutela desses direitos contra a violência arbitrária do mais forte serviria assim a proteção dos mais fracos Seria o código ou a lei do mais débil Seria um mal menor diante do mal do delito um mal menor diante de reações públicas ou privadas arbitrárias Daí justificar a intervenção do sistema penal por meio de uma equação um sistema penal está justificado só se a soma das violências delitos vinganças e castigos arbitrários que está em condições de prevenir é superior às violências constituídas por delitos não prevenidos e pelas penas estabelecidas para estas Naturalmente um cálculo deste tipo é impossível Podese dizer porém que a pena está justificada como mal menor o que é tanto como dizer só que é menor ou seja menos aflitivo e menos arbitrário face a outras reações não jurídicas que é lícito supor que se produziriam em sua ausência e que em geral o monopólio estatal da potestade punitiva está tanto mais justificado quanto mais baixos sejam os custos do direito penal frente aos custos da anarquia punitiva Finalmente Ferrajoli que propugna pela abolição gradual das penas privativas da liberdade por lhe parecerem excessiva e inútilmente aflitivas assim como propõe a adoção de penas máximas de dez anos de prisão opõese à prevenção especial ao menos nos moldes tradicionais Porque o Estado escreve Ferrajoli que não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados senão só o de impedir que se danem entre si tampouco tem o direito de alterar reduzir redimir recuperar ressocializar ou outras ideias semelhantes a personalidade dos réus E o cidadão embora tenha o dever jurídico de não cometer fatos delitivos tem o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é As penas por conseguinte não devem perseguir fins pedagógicos ou correccionais senão que devem consistir em sanções taxativamente predeterminadas e não agraváveis com tratamentos diferenciados e personalizados do tipo ético ou terapêutico Coerente com sua proposta de direito penal mínimo que exige o máximo de certeza da intervenção jurídicopenal Ferrajoli critica inclusive a flexibilização da pena na fase executiva seja para agravála seja para atenuála razão pela qual ou bem se deve extinguir os atuais benefícios da execução livramento condicional pressão remição etc ou bem se deve convertêlos em direitos do preso já ao tempo da sentença condenatória pois a pena quantitativamente flexível e qualitativamente diferenciada na fase executiva não é menos despótica que as penas arbitrárias prémodernas Considera ainda que o abolicionismo penal para além de suas intenções libertárias e humanitárias é uma utopia regressiva que sob pressupostos ilusórios de uma PAULO QlEIROZ sociedade boa ou de um estado bom pretende legitimar modelos desregulados ou au torregulados de vigilância eou castigo e em relação aos quais o direito penal com seu complexo difícil e precário sistema de garantias constitui histórica e axiologicamen te uma alternativa progressista 58 Tem que a defesa do direito penal equivale em ltima anlise a uma defesa da li berdade fsica de transgresso visto que embora a proba normativamente no a impede materialmente razo pela qual o direito penal no garante apenas a liberdade fsica ou objetiva de delinquir e de no delinquir mas tambm a liberdade moral ou subjetiva de transgresso diversamente de um modelo de sociedade ou estado disciplinrio incompa tvel com a ideia mesma de liberdade 59 Autores há porém que apesar de partidários de um modelo de direito penal míni mo ao menos como trânsito para a abolição do sistema penal assim Baratta Zaffa roni insurgemse contra semelhante forma de justificação Zaffaroni considera que o argumento iluminista da necessidade do sistema penal para prevenir a vingança pública ou privada jamais se confirmou pois no plano real ou social a experiência indicaria que já parece estar bem demonstrada a desnecessidade do exercício do poder do sistema penal para evitar a generalização da vingança porque o sistema penal só atua em reduzidíssimo número de casos e a imensa maioria de cri mes impunes não generaliza vinganças ilimitadas Ademais na América Latina foram cometidos cruéis genocídios que ficaram praticamente impunes sem que tenham ocor rido episódios de vingança massiva Contrariamente ao argumento iluminista ou utilitarismo reformado proposto por Ferrajoli Zaffaroni pretende justificálo diferentemente o direito penal como progra mação da operatividade da agência judicial deve permanecer e inclusive ampliar o seu âmbito na medida em que a sua intervenção resulte menos violenta que as outras formas ou modelos efetivamente disponíveis de decisão de conflitos Diz ser um absurdo prossegue Zaffaroni pretender que os sistemas penais respeitem o princípio de legalidade de culpabilidade humanidade e sobretudo o de igualdade já que estão estruturalmente armados para violálos a todos Considera por isso que o direito penal deve servir à programação da minimização da violência e da arbitrariedade do sistema penal ante a evidente carência do poder da agência judi cial para abolir o sistema penal e substituílo por mecanismos de solução de conflitos análoga à falta de poder da Cruz Vermelha Internacional para suprimir os conflitos bélicos as agências judiciais como objetivo imediato devem proceder conforme a um discurso que trace os limites máximos da irracionalidade tolerável na seleção crimina lizante do sistema penal60 58 Derecho y razón cit p 341 59 Derecho y razón cit p 339 60 En busca de las penas perdidas cit p 190 416 I 02 1 TEORIAS LEGITIMADORAS Mas semelhante perspectiva tem sido igualmente criticada assim Smaus61 ao argumento de que a pena é manifestação de violência em defesa e reprodução de um sistema razão pela qual não faria sentido invocála para outros fins 6 1 Apud Martínez Sánchez Maurício Que pasa en la criminologia moderna Bogotá Temis 1990 p 3640 417 1 03 1 TEORIAS DESLEGITIMADORAS ABOLICIONISMO E MINIMALISMO RADICAL Sumário 1 Introdução 1 1 O crime não existe caráter definitorial do delito 1 2 Inido neidade preventiva ou motivadora 1 3 Excepcionalidade da intervenção penal as cifras ocultas da criminalidade 1 4 Igualdade formal versus desigualdade material seletividade arbitrária do sistema penal 1 5 Caráter consequencial sintomatológico e não causal etiológico da intervenção penal 1 6 Caráter criminógeno do sistema penal 1 7 Reifi cação do conflito do delito neutralização da vítima pelo sistema penal 1 8 O sistema penal intervém sobre pessoas e não sobre situações 2 Conclusão 1 INTRODUÇÃO As teorias deslegitimadoras representadas basicamente pelo abolicionismo penal Hulsman e outros e pelo minimalismo radical Baratta Zaffaroni e outros têm em comum o fato de se insurgirem contra a existência mesma do direito penal Recusam legitimidade ao Estado para exercer o poder punitivo ressaltando principalmente a disparidade entre o discurso e a prática penais bem como a circunstância de o direito penai criar mais problemas do que resolve sendo criminógeno arbitrariamente seleti vo e causador de sofrimentos inúteis Além disso o direito penal a pretexto de cumprir finalidades declaradas de pro teção de bens jurídicos prevenção geral e especial etc jamais comprovadas ou passí veis de comprovação em verdade cumpriria funções latentes não declaradas que o deslegitimam e pois autorizam a sua abolição A seguir alguns dos argumentos mais correntes dessa perspectiva deslegitimado ra comuns ao abolicionismo e ao minimalismo radical2 11 O crime não existe caráter definitorial do delito Adotando postulado do labeling approach teoria do etiquetamento ressaltase que sob a etiqueta de delito reúnese toda uma série de comportamentos que nada têm em comum exceto quanto ao fato de estarem igualmente criminalizados Significa 1 Hulsman e Scheerer são alguns dos poucos autores que ainda podem ser considerados realmente abo licionistas visto que Christie reviu sua posição inicial à semelhança de Matthiesen para declararse minimalista conforme entrevista concedida a Ana Sofia S Oliveira e André Isola Fonseca Revista do IBCCrim São Paulo Revista dos Tribunais ano 6 n 2 1 janmar 1998 2 Empregase a expressão radical para distinguir do chamado minimalismo moderado defendido den tre outros por Ferrajoli GarcíaPablos Larrauri Hassemer e Naucke 419 PAULO QlJ E I ROZ ainda que o crime não é um objeto do sistema penal mas o resultado mesmo do seu funcionamento razão pela qual a criminalidade não existe por natureza pois é mais exatamente uma realidade socialmente construída mediante processos de definição e interação3 Adotase o teorema Thomas segundo o qual se se definem situações como reais são reais em suas consequências4 Por isso que nada haveria na natureza do fato na sua formação intrínseca que permitisse reconhecer se se trata ou não de um crime exceto a competência formal do sistema para intervir em determinadas situações O conceito de crime observa Huls man não é operacional porque é a lei que cria o crime e pois o criminoso 5 Christie assinala que o delito não é uma coisa É antes um conceito aplicado em certas situa ções sociais onde é possível cometêlo e quando a uma ou a várias partes interessa que assim se defina Podese criálo diz ele criando sistemas que requeiram essa palavra podendose extinguilo criando os tipos opostos de sistemas6 1 2 lnidoneidade preventiva ou motivadora A norma penal embora pretenda dissuadir comportamentos delituosos função de prevenção geral ou especial em verdade não se presta a esse fim pois provavel mente ninguém se abstém de praticar crimes em atenção à possibilidade de sofrer a incidência do aparato repressivo vale dizer a norma penal não intervém no processo motivacional de formação da vontade de delinquir já que quando alguém se abstém de praticar crime assim o faz por motivos de outra ordem moral religiosa cultural etc que não o sistema penal Já a prevenção especial é um mito uma vez que a prisão a principal arma dos sistemas penais contemporâneos não ressocializa o criminoso antes o dessocializa o embrutece o estigmatiza De todo modo não está provado que o direito penal tenha de fato capacidade preventiva Argumentase que para além disso em realidade o verdadeiro e real poder elo sistema penal não é o repressivo poder negativo e sim o configurador disciplinário 3 Baratta Criminología crítica cit p 1 09 4 Expressivas no particular são as investigações de Fritz Sack l Os mecanismos de distribuição da qualidade negativa criminalidade são um produto de ajustes sociais como os que regulam a dis tribuição dos bens positivos em uma sociedade 2 A distribuição do bem negativo criminalidade acontece da mesma maneira em que ocorre a distribuição de bens positivos Para a análise dela se utilizam conceitos que geralmente têm dado bom resultado em sociologia como o status modelos de recrutamento carreira critérios de atribuição etc 3 A criminalidade e ele maneira absolutamente geral o comportamento desviado deve ser compreendida como um processo no qual os partners por uma parte aquele que se comporta de modo desviado e por outra quem define o comportamento como desviado são postos um frente ao outro 4 Neste sentido comportamento desviado é aquele que outros definem como desviado Não é uma qualidade ou uma característica que concerne ao com portamento como tal senão que é atribuída ao comportamento cf Baratta Criminología crítica cit p 1 081 09 5 Hulsman et ai Penas perdidas o sistema penal em questão trad Maria Lúcia Karam Niterói Ed Luam 1993 p 64 6 Los límites dei dolor México Fondo de Cultura Económica 1 984 p 1 0 1 420 positivo arbitrário e seletivo uma vez que renunciando à legalidade penal confiase às agências do sistema penal um controle social militarizado e verticalizado de uso cotidiano e exercício sobre a maioria da população que vai muito além do alcance meramente repressivo por ser substancialmente configurador da vida social 13 Excepcionalidade da intervenção penal as cifras ocultas da criminalidade Alegase que a diferença entre o número de crimes praticados e o número de delitos submetidos à efetiva atuação do sistema penal é abismal contrapõemse cifras ocultas a cifras oficiais significativa da desnecessidade do sistema penal porquanto a maior parte dos casos passíveis de intervenção penal passa ao largo do conhecimento da atuação do sistema E se só excepcionalmente se verifica a resolução dos casos por meio do recurso à pena o direito penal não é necessário já que as vítimas ou quem as representa ordinariamente prescindem dele Arguise que se se tiver em conta os números da criminalidade oculta não registrada ou seja a soma de crimes diariamente praticados e que não obstante passa ao largo do conhecimento ou da atuação do sistema penal por que desconhecida quer porque não identificados os seus autores quer porque alcançados pela prescrição quer porque objeto de composição extrajudicial quer porque não provados etc verificarseá que a criminalidade registrada investigada processada e objeto de condenação e execução penais é irrisória desprezível É pois a imunidade e não a penalização a regra no modo de funcionamento do sistema penal Por que achar normal questionase esse respeito Hulsman um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal estatisticamente tão desprezível E um sistema que somente rege casos esporádicos é desnecessário por isso pode e deve ser abolido 14 Igualdade formal versus desigualdade material seletividade arbitrária do sistema penal O sistema penal quer quando da edição das leis criminalização primária quer quando da sua aplicação e execução criminalização secundária seleciona sua clientela sempre e arbitrariamente entre os setores mais vulneráveis da sociedade entre os miseráveis enfim reproduzindo desigualdades sociais materiais Por consequência o fato de as prisões se acharem superlotadas de pessoas pobres não é acidental porque inerente à lógica funcional do modelo capitalista de produção em cujo sistema o acesso aos bens e à riqueza se dá de modo inevitavelmente desigual Assinalase assim que o direito e o direito penal em particular reflete uma contradição fundamental entre igualdade dos sujeitos de direito e desigualdade substancial PAULO ÜlJ E I ROZ dos indivíduos A igualdade formal dos sujeitos de direito serve em realidade de ins trumento de legitimação de profundas desigualdades materiais10 Porque há conforme assinala Baratta um nexo funcional entre os mecanismos seletivos do processo de cri minalização e a lei de desenvolvimento de formação econômica11 Afirmase ainda que a realidade operativa dos sistemas penais jamais poderá se ajustar à planificação do discurso jurídicopenal já que todos os sistemas penais quaisquer que sejam apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder e que anulam o discurso jurídicopenal Porque a seletividade escreve Za ffaroni a reprodução da violência o condicionamento de maiores condutas lesivas a corrupção institucional a concentração de poder a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais mas es truturais ao exercício do poder de todos os sistemas penais12 De fato ainda que o pró prio Deus ditasse as leis ainda que os juízes fossem santos ainda que promotores de justiça fossem superhomens ainda que delegados e policiais formassem um exército de querubins ainda assim o direito e o direito penal em particular seria um instru mento de desigualdade porque a igualdade formal ou jurídica não anula a desigualda de material que lhe subjaz13 Portanto o sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona conforme este reótipos fabricados pelos meios massivos de comunicação14 cria e reforça as desigual dades sociais15 é contrariamente a toda aparência um sistema injusto por excelência16 A propósito São Basílio Magno citado pelo Padre Antônio Vieira que pergun tava que são os grandes reinos senão grandes latrocínios escreveu Não são só ladrões os que cortam bolsas ou espreitam os que vão banhar para lhes colher a roupa os ladrões que mais própria e dignamente merecem esse título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias ou a administra ção das cidades aos quais já com manha já com força roubam e despojam os povos 10 Baratta Criminología crítica cit 1 1 Criminología crítica cit p 1 7 1 Entre nós Vera Regina Pereira de Andrade chega a conclusões semelhantes ao dizer que para além das intervenções contingentes há uma lógica estrutural de operacionalização do sistema penal nas sociedades capitalistas que implicando a violação encoberta seletividade e aberta arbitrariedade dos direitos humanos não apenas viola a sua programação normativa mas é num plano mais profundo oposta a ambas caracterizandose por uma eficácia ins trumental invertida à qual uma eficácia simbólica confere sustentação Mais adiante após consignar que os limites do sistema são os limites da própria sociedade afirma ser irreversível essa lógica e impossibilidade de operacionalização dos sistemas penais adequaremse à sua programação já que constitui uma marca estrutural do exercício do poder que não pode ser eliminada sem a própria su pressão dos sistemas penais A ilusão cit p 3 1 13 19 12 En busca de las penas perdidas cit p 6 1 13 Paulo Queiroz Do caráter subsidiário cit p 30 14 Zaffaroni En busca de las penas perdidas cit 15 Hulsman Penas perdidas cit p 75 16 Baratta Criminología crítica cit p 169 422 1031 TEORIAS DESLEGITI MADORAS ABOLICION ISMO E MINIMALISMO RADICAL Os outros ladrões roubam um homem estes roubam cidades e reinos os outros fur tam debaixo do seu risco estes sem temer nem perigo os outros se furtam são enfor cados estes furtam e enforcam17 15 Caráter consequencial sintomatológico e não causal etiológico da intervenção penal Argumentase que o direito penal constitui uma resposta aos sintomas ou con sequências do crime e não às suas causas Logo pouco ou nada se pode esperar de semelhante intervenção pois mais leis mais policiais mais juízes mais prisões sig nifica mais presos mas não necessariamente menos delitos Jeffery De acordo com ess enfoque a eficácia preventiva do direito penal se é que existe é bastante limitada uma vez que intervém demasiadamente tarde no conflito social não quando este se produz mas quando e onde se manifesta e intervém mal já que não traduz uma res posta etiológica adequada às causas do problema mas meramente sintomatológica18 O sistema penal tecniciza conflitos humanos e ao fazêlo os despolitiza os descontex tualiza e os desumaniza 16 Caráter criminógeno do sistema penal Também é corrente a afirmação de que a atuação do sistema penal é criminógena em muitos casos visto que em vez de coibir determinadas condutas em verdade cria um1clima propício não só para que tais condutas proliferem como também para que outras atividades criminosas vicejem Exemplo disso é a política de repressão à con travenção do jogo do bicho e ao tráfico ilícito de drogas porque o direito penal além de não inibir tais comportamentos ao condenálos à clandestinidade tornaos extre mamente atraentes do ponto de vista econômicofinanceiro gerando entre os seus ex ploradores uma concorrência violenta e sanguinária Com efeito se por um lado esse comércio persiste e persistirá inevitavelmente por outro a proibição acaba por estimu lar uma série de outros males e crimes contrabando de armas extermínio de grupos rivais frequentes confrontos violentos com a Polícia lavagem de capitais e evasão de divisas sonegação tributária corrupção policial criação de preços artificiais da dro ga falta de controle sobre a qualidade da droga consumida etc Apesar disso drogas ilícitas são facilmente encontradas em qualquer Estado da Federação Assim o direito penal não evita a criminalidade ao contrário fomentaa tornandose criminógeno 17 Reificação do conflito do delito neutralização da vítima pelo sistema penal 1 Assinalase que definir fatos ou situações como delituosos significa limitar ex traordinariamente as possibilidades de compreendêlos e apresentar uma resposta 1 7 Se1mões v III São Paulo Editora das Américas 1 8 García Pablos Derecho penal cit p 274 423 PAULO QlEIROZ minimamente racional Daí se preferir a expressão situações problemáticas ou se melhantes ao tradicional crime ou delito num modelo alternativo de justiça que para fazer face a tais situações tenha em conta todas essas opções e possibilidades no sen tido de melhor resolvêlas19 É justamente o que pretende fazer o atual movimento por uma justiça restaurativa 20 Além disso acreditase que a intervenção estereotipada do sistema penal tanto age sobre a vítima como sobre o delinquente Porque todos são tratados da mesma manei ra como se todas as vítimas tivessem as mesmas reações e as mesmas necessidades afinal o sistema não leva em conta as pessoas em sua singularidade e operando em abstrato causa danos inclusive àqueles que diz proteger21 escreve Hulsman22 Nesse sentido também Christie afirma que a vítima no processo penal é em geral um perde dor duplamente em primeiro lugar em relação ao infrator e depois em relação ao Es tado porque está excluído de qualquer participação em seu próprio conflito E o Estado lhe rouba o conflito um todo que lhe é levado a cabo por profissionais23 18 O sistema penal intervém sobre pessoas e não sobre situações Argumentase que todo o sistema penal gira em torno da ideia de culpabilidade individual pessoal desprezando por completo o ambiente ou o sistema social em que se insere Culpamse os indivíduos ignoramse os sistemas as estruturas sociais De acordo com Christie o fato decisivo é o delito não os desejos da vítima não as carac terísticas individuais do culpado não as circunstâncias particulares da sociedade local sendo que ao excluir todos esses fatores o sistema se converte em uma negação de toda uma série de opções e possibilidades que deveriam ser tomadas em consideração E um sistema diz o criminólogo norueguês que permite a si mesmo ser dirigido uni camente pela gravidade do ato em nada contribui para se ter um conjunto satisfatório de modelos para os valores da sociedade24 19 Como exemplo das várias reações possíveis em dada situação conflitiva punitiva reação penal típi ca compensatória terapêutica curativa e conciliadora Hulsman figura hipótese bastante ilustrati va cinco estudantes moram juntos e em determinado momento um deles se arremessa contra a tele visão e a danifica quebrando também alguns pratos Como reagem seus companheiros É evidente responde que nenhum deles vai ficar contente Mas cada um analisando o acontecido à sua maneira poderá adotar uma atitude diferente O estudante número 2 furioso dirá que não quer morar com o primeiro e fala em expulsálo da casa o terceiro declarará o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague O quarto estudante traumatizado com o que acabou de presenciar grita ele está evidentemente doente é preciso procurar um médico leválo a um psi quiatra etc O último ainda sussurra a gente achava que se entendia bem mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade para permitir um gesto como esse Vamos juntos fazer um exame de consciência Penas perdidas cit p 1 00 20 Sobre o assunto Leonardo Sica Justiça Restaurativa Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 2 1 Penas perdidas cit p 8384 22 Penas perdidas cit 23 Límites dei dolor cit p 126 24 Límites dei dolor cit p 6061 424 PAULO QEIROZ não desapareceriam as estruturas do Estado que lhe dão vigência e pior sem nenhu ma garantia29 E seria de fato uma utopia regressiva conforme assinala Ferrajoli o abolicionismo para além de suas intenções libertárias e humanitárias configurase como uma utopia regressiva que sob os pressupostos ilusórios de uma sociedade boa e um Estado bom apresenta modelos em realidade desregulados ou autorregulados de vigilância eou castigo em relação aos quais é o direito penal com seu complexo difícil e precário sistema de garantais que constitui histórica e axiologicamente uma alternativa progressista 30 Parece certo também que apesar da divergência tanto os autores que pregam um direito penal máximo quanto os que defendem a sua pronta abolição alimentam uma mesma ilusão os primeiros supõem que mais leis mais repressão significa mais proteção e os segundos que abolir o sistema penal significará mais liberda de e menos violência necessariamente atribuindo ambos um certo caráter mágico à lei 31 Assim abolicionismo e direito penal do inimigo são em última análise dois ex tremos que de algum modo se tocam em seus excessos e dogmatismo ao conferirem ao sistema penal uma importância que ele simplesmente não tem quer como meio de produção de violência função latente quer como instrumento de prevenção e controle social função declarada Mais razoável é portanto propugnar por um direito penal conforme a Constitui ção é dizer um direito penal mínimo que se limite a disciplinar situações de absoluta necessidade para segurança dos cidadãos Naturalmente que um direito penal mínimo não é em si uma solução mas parte da solução pois o decisivo para o controle racional da criminalidade além da eficientiza ção do controle social não penal particularmente a eficientização do controle adminis trativo é privilegiar intervenções estruturais etiológicas e não apenas individualiza das e localizadas sintomatológicas em especial com vistas a criar as condições que evitem o processo de marginalização social do homem por meio de políticas sociais de integração social deste Um direito penal assim residual não é só portanto o programa de um direito penal mais justo e mais eficaz é também parte de um grande programa de justiça social e de pacificação dos conflitos 32 Assim postas as coisas terá o direito penal um papel bastante modesto e subsidiário de uma política social de largo alcance 29 Introducción al derecho penal Bogotá Ed Temis 1994 p 1951 96 30 Derecho y razón cit p 341 3 1 Como assinalam Zaffaroni e Pierangeli o sistema penal é somente uma forma de controle social institucionalizado e como é lógico o controle social não desaparecerá porque não desaparecerá a estrutura de poder dentro da sociedade O lógico será que se o sistema penal cede muita margem de controle social este será igualmente exercido com outras formas que nem sempre serão melhores quanto ao respeito à dignidade humana Manual cit p 309 32 Baratta La política criminal y el derecho penal de la Constitución nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales Revista Brasileira de Ciências Criminais ano 8 janmar 2000 426 1031 TEORIAS DESLEGITI MADORAS ABOLICIONISMO E M I N I MALISMO RADICAL mas nem por isso menos importante Uma boa política social ainda é enfim a melhor política criminal 33 Porque no fundo e como se vem de demonstrar segurança e proteção têm pouco a ver com proteção penal ou com o aumento da repressão isto é o controle real da cri minalidade tem em verdade pouco a ver com o controle penal34 polícia juízes etc E mais importante a necessidade de segurança dos cidadãos não é somente como assinala Baratta uma necessidade de proteção da criminalidade e de processo de cri minalização pois a segurança dos cidadãos corresponde também à necessidade de estarem e sentiremse garantidos no exercício de todos os seus próprios direitos direito à vida à liberdade ao livre desenvolvimento da personalidade e de suas próprias ca pacidades direito de expressarse de comunicarse direito à qualidade de vida assim como direito de controlar e influir sobre as condições das quais depende em concreto a existência de cada um Enfim a relação entre garantismo negativo limites ao poder punitivo e garantismo positivo assegurar as condições de poder viver condignamente realização dos direitos sociais equivale à relação que existe entre a política de direito penal e a política integral de proteção dos direitos35 Convém notar ainda que enquanto o direito penal existir e nada sugere o contrá rio e independentemente da comprovação da sua incapacidade preventiva investigar as suas funções latentes e manifestas constituirá questão permanentemente nova e re novável e sobre a qual o jurista consequente jamais poderá descuidar seja para denun ciar as injustiças ligadas ao seu funcionamento seja para apontar novos caminhos no sentlido de um direito penal menos injusto mais democrático e fraterno Finalmente e conforme vimos ao tratar do conceito de direito se o direito é uma prática social discursiva é evidente que abolir as normas e instituições jurídicopenais não significaria abolir o direito penal ou as práticas tipicamente penais mas apenas o sistema formal de repressão de modo que se quisermos abolir o direito penal realmen te teremos de começar por abolilo de nós mesmos isto é abolir nossos microssiste mas punitivos 33 A expressão é de Franz von Liszt 34 A pena como assinala GarcíaPablos que não convence só atemoriza reflete mais a impotência o fracasso e a ausência de soluções que a convicção e a energia necessárias para abordar os problemas sociais Por isso uma verdadeira e eficaz prevenção há de ser programada a médio e longo prazos e não deve ser entendida em sua estrita e negativa acepção intimidatória quase policial senão po sitivamente como prevenção social e comunitária El principio de intervención mínima cit www direitocriminalcombr 1º62001 35 Baratta La política criminal Revista cit 427 1 04 1 DA PENA Sumário 1 Conceito fins e limites 1 CONCEITO FINS E LIMITES A pena é a privação ou a restrição de um bem jurídico imposta por uma auto ridade judiciária ao autor de uma infração penal crime ou contravenção a pena constitui portanto a principal consequência do fato punível isto é um fato típico ilícito e culpável Do ponto de vista formal a pena se distingue de outras sanções nãopenais quanto aos pressupostos porque diversamente da sanção administrativa interdição demis são etc por exemplo a penal pressupõe o cometimento de um fato definido como crime ou contravenção E é também quanto aos pressupostos que a pena se distingue da medida de se gurança visto que a pena pressupõe imputabilidade e a medida de segurança requer inimputabilidade Apesar disso não é exato afirmar como pretende a doutrina majori tária que a pena requer culpabilidade e a medida de segurança periculosidade confor me se demonstrará mais tarde Ao pressupor o cometimento de um mal ou algo que assim se interpreta qual seja o crime a pena constitui na essência uma retribuição um castigo1 Mas distinta é a finalidade declarada da pena que é em princípio prevenir em caráter geral e especial novos cnmes E conforme vimos pensar o sentido e os fins da pena é pensar o sentido e os fins do próprio direito penal porque como disse Maurach a história das teorias da pena é uma história universal do próprio direito penal2 Mais os fins e limites do direito penal são os fins e limites do próprio Estado 1 Assim considera a doutrina Nesse sentido Maurach para quem a pena é um mal que se impõe ao delinquente cuja essência é a retribuição Derecho penal cit p 85 e ss GarcíaPablos que entende a pena como um mal de natureza retributiva e para quem segue sendo válido o conceito de Grocio de que poena est malus passionis quod injlingitur propter maum actionis Derecho penal cit p 6465 CoboNives que conceituam a pena como castigo consistente na privação de um bem jurídico Derecho penal cit p 723 Cumpre dizer porém com Roxin que as instituições jurídicas não têm uma essência independente de seus fins senão que essa essência se determina mediante o fim que com ela se quer alcançar Derecho penal cit p 9899 2 Derecho penal cit p 86 429 PAULO QljEJROZ Concluise assim que o problema da prisão é a própria prisão que apresenta um custo social demasiadamente elevado 5 Dizse ainda que educar para a liberdade em condições de não liberdade não só é de difícil realização como constitui uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida nas prisões6 Por isso o cárcere ordinariamente longe de reeducar ou ressociali zar em realidade corrompe embrutece dessocializa Aliás com alguma frequência o réu continua a delinquir mesmo no período em que está privado de liberdade Mas se a pena privativa da liberdade faliu há tanto tempo o que em grande parte traduz a falência do próprio sistema penal como explicar sua extraordinária longe vidade Michel Foucault tem uma explicação originalíssima para isso Para ele a função real oculta da pena ao contrário do que pregam os juristas não é propriamente com bater a criminalidade mas produzila Por isso que ao aparentemente fracassar es creve Foucault a prisão não erra seu objetivo ao contrário ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade que ela per mite separar pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável porque ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível marcada irredutível a um certo nível e secretamente útil rebelde e dócil ao mesmo tempo ela desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar7 Por isso se do ponto de vista das suas funções declaradas oficiais a pena é um fracasso manifesto do ponto de vista das funções ocultas a prisão seria um grande sucesso daí a sua longevidade 5 Lições cit p 288 6 Muiioz Conde Derecho penal cit p 1 24 7 Vigiar e punir cit p 243244 Lêse a propósito no romance Ressurreição de Tolstoi a objeção comum de indagar o que se devia fazer com os ladrões e assassinos há muito tempo não tinha para ele o menor sentido Com efeito tal objeção teria um sentido se os castigos tivessem diminuído o nú mero de crimes ou corrigido os criminosos mas a experiência lhe provava que acontecia justamente o contrário Depois de tantos séculos de encarniçada perseguição ao crime conseguiram os homens suprimilo ou mesmo atenuálo Longe de suprimir longe de atenuar contribuíram ativamente para o desenvolver tanto depravando os prisioneiros pelas condenações como acrescentando à soma dos crimes dos condenados crimes de ladrões e assassinos os seus próprios crimes os crimes desses criminosos que são os conselheiros do tribunal procuradores carrascos juízes de instrução policiais e comitres Tecnoprint Cap VI III p 294 432 PAULO Q1JEIROZ Nesse sentido a fixação da pena constitui um desdobramento do princípio da iso nomia que exige que crimes e criminosos distintos sejam distintamente castigados Ademais nem todos os crimes e criminosos merecem pena e os que a merecem rara mente merecem a mesma pena E podem merecêla por razões mui diversas A determinação da pena não compreende apenas como o nome pode sugerir a fixação da pena mesma mas também o reconhecimento de causas especiais de isenção de pena concessão de perdão etc bem assim a aplicação de medidas de segurança e dos efeitos secundários da condenação Individualizar a pena significa assim tornar individual uma situação algo ou alguém isto é particularizar o que antes era geral a evitar a estandardização2 Junto com a apreciação da prova e a aplicação do preceito jurídicopenal aos fa tos provados a individualização representa o ápice da atividade decisória devendo o juiz ao fazêlo livrarse tanto quanto possível de preconceitos simpatias e emoções e orientar sua decisão por critérios objetivos de valoração 3 Apesar de merecer tratamento constitucional e penal autônomos dada a impor tância que assumiu histórica e politicamente a individualização da pena constitui em verdade uma dimensão capital do princípio da proporcionalidade em sentido amplo que conforme vimos tem uma tríplice dimensão necessidade adequação e proporcio nalidade em sentido estrito que por sua vez compreende proporcionalidade abstrata judicial individualização da pena e executória É importante notar que no caso de concurso de agentes por mais diversas as cir cunstâncias pessoais de cada réu as penas aplicadas não podem divergir exagerada mente sobretudo quando sofram a mesma imputação jurídicopenal É que responder pelo mesmo crime constitui a mais relevante das circunstâncias Não fossem os erros frequentes na aplicação da pena seria desnecessário dizer que a individualização da pena pressupõe como é óbvio uma condenação por crime e eventualmente por contravenção que requer fato típico ilícito e culpável conceito analítico de crime significando que tais pressupostos não podem ser novamente con siderados no momento da dosimetria da pena sob pena de ofensa ao princípio ne bis in idem também ele um momento do princípio da proporcionalidade 11 Individualização da pena e pessoa jurídica O art 59 como de resto todo o Código está essencialmente estruturado para a responsabilidade penal da pessoa física motivo pelo qual as circunstâncias judiciais e legais nada têm a ver em princípio com a apenação da pessoa jurídica uma vez que coisa que pertença realmente a essas diferentes percepções e que as una umas às outras é apenas qualidade que lhes atribuímos quando refletimos sobre elas em virtude da união de suas ideias na imaginação Tratado da Natureza Humana São Paulo UNESP 2000 p 292 2 Guilherme de Souza Nucci Individualização da pena S Paulo RT 2004 p 3 1 3 Jescheck Tratado cit p 787 434 PAULO QlJEIROZ suficiente para a reprovação e prevenção do crime o termo prevenção tanto quanto reprovação deve ser tomado no sentido de prevenção individualespecial É que a não ser assim o juiz não estará a individualizar a pena mas a desindividualizar ou generalizar7 Apesar de a Constituição adotar no essencial um direito penal de garantias CF art 5 o Código que lhe é anterior ao estabelecer as circunstâncias que devem ser consideradas para a fixação da pena ainda se utiliza de critérios dificilmente compa tíveis com o Estado Constitucional de Direito que outorgando à liberdade uma pro teção formal amplíssima reconhece à pessoa humana o mais largo direito à diferença particularmente art 3º IV sendo por isso compatível unicamente com um direito penal do fato segundo o qual o sujeito só pode ser responsabilizado penalmente pelo que faz crime comissivo ou excepcionalmente pelo que deixa de fazer crime omis sivo mas jamais pelo que é ou deixa de ser Exemplo desse resíduo de direito penal do autor herança do positivismo criminológico é a referência aos maus antecedentes à conduta social à personalidade do agente e à própria reincidência como critério de fixação da pena No particular Salo de Carvalho tem razão quando assinala que apesar de os ter mos referidos maus antecedentes reincidência etc servirem de pretexto para maior quantificação da pena ou para dificultar ou impedir o exercício de certos direitos são eles incompatíveis com a perspectiva de um direito penal do fato uma vez que substi tuem a avaliação objetiva e cognoscitiva pelo julgamento moral da interioridade da pessoa e de suas tendências acabandose por castigála não propriamente pelo que fez mas pelo que é8 E o Estado conforme escreve Ferrajoli não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados mas só o de impedir que se danem entre si razão pela qual tampouco tem o direito de alterar reeducar ressocializar etc a personalidade dos réus E o cidadão embora tenha o dever jurídico de não cometer fatos delitivos tem o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é9 Por isso que o juiz cujo compromisso fundamental é com a Constituição deve esforçarse por aplicar uma pena justa ou minimamente injusta e conforme os prin cípios constitucionais Parecenos também que a individualização das medidas de segurança deve seguir o mesmo procedimento para a individualização da pena sobretudo por considerarmos não pode perseguir finalidades de prevenção geral que fariam de cada uma de suas condenações uma sentença exemplar Derecho y razón cit p 406 De modo diverso Jescheck Tratado cit p 79 1 7 No mesmo sentido Zugaldía Espinar para quem se prescindirmos das concretas exigências preven tivas especiais e operarmos apenas com critérios de prevenção geral o autor do crime deixaria de ser um fim em si mesmo para se converter num meio para obter efeitos sobre outros o que implicaria instrumentalizálo e violar a dignidade da pessoa humana cit p 1 741 75 8 Pena e garantias uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil Rio de Janeiro Lumen Juris 200 1 p 1 54 9 Derecho y razón cit p 223224 436 PAULO QlEIROZ 22 Emendatio e mutatio libelli Decidindo pela condenação o juiz dará a definição jurídica dos fatos podendo di vergir daquela pretendida pelo Ministério Público ou querelante Assim poderá enten der que houve estelionato e não peculato furto e não roubo difamação e não calúnia e viceversa Em havendo simples erro na classificação jurídica não obstante a denún cia ou a queixa tenha narrado corretamente os fatos o juiz dará a definição jurídica exata emendatio libelli CPP art 383 uma vez que de acordo com a doutrina o acu sado se defende dos fatos articulados pela acusação e não da capitulação jurídicopenal dada aos fatos No entanto verificando o juiz que essa redefinição jurídica decorre de circunstância não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa a exigir por isso a mudança dos termos da petição inicial mutatio libelli CPP art 384 terá de previamente ouvir a acusação a fim de aditála e a defesa para falar a respeito de sorte a preservar o contraditório e a ampla defesa podendo ser reaberta a instrução com novo interrogatório do acusado inclusive 23 Sistema acusatório e emendatio libelli Parte da doutrina vem defendendo nos últimos anos a inconstitucionalidade da emenda e mudança do libela11 CPP arts 383 e 384 argumentando fundamentalmen te que o juiz ao condenar o réu por crime diverso do capitulado na denúncia estaria fazendo as vezes de acusador violando o sistema acusatório e pois agindo sem um mínimo de isenção Isso significaria em termos práticos o seguinte ou o juiz absolve o réu ou o condena como o órgão da acusação quer e propõe12 A crítica ao art 384 restou superada com a redação que lhe deu a Lei nº 11719 de 20 junho de 2008 pois a partir de agora se o Ministério Público não fizer o aditamento na forma da lei o juiz só poderá julgar nos termos da denúncia em respeito ao princí pio acusatório 1 1 Nesse sentido Fauzi Hassan Choukr Código de processo penal comentários consolidados e crítica jurisprudencial Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 Aramis Nassif Sentença penal o desvendar de Themis Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 2005 entre outros Criticamente sobre a mutatio libelli Eugênio Pacelli Curso de Processo Penal Belo Horizonte Dei Rey 2004 12 Na verdade a tese principal de violação do sistema acusatório e comprometimento total ou parcial da isenção teria diversas outras implicações tais como 1 impossibilidade de prosseguir no pro cesso do juiz que decretou medida constritiva contra o réu v g busca e apreensão prisões etc 2 impossibilidade de o juiz decretar qualquer medida constritiva de oficio 3 impossibilidade de o juiz proceder ao interrogatório e inquirição de testemunhas diretamente tarefa que deverá ser conferida ao órgão da acusação exclusivamente 4 impossibilidade de o juiz recorrer de ofício de certas decisões 5 impossibilidade de o juiz condenar quando o Ministério Público pedir a absol vição em alegações finais 6 impossibilidade de o juiz rejeitar pedidos de arquivamento mas se o fizer não poderá atuar na eventual ação penal 7 impossibilidade de o juiz que proferiu sentença voltar a atuar no processo posteriormente anulado 8 impossibilidade de o juiz que recebeu a denúncia prosseguir na ação penal 9 impossibilidade de o juiz requisitar inquérito de oficio 1 O impossibilidade de o Ministério Público recorrer nos casos em que pediu a absolvição por falta de interesse de agir etc 438 PAULO QJ E I ROZ Finalmente a pretexto de evitar que o juiz se converta em acusador na verdade se converte o acusador em juiz ditando a este como pode interpretarjulgarcondenar exatamente apequenando o papel do magistrado No fundo se está a transformar por tanto o juiz numa espécie de ventríloquo a serviço do órgão da acusação por meio de uma divisão de funções excessivamente rígida em que o Ministério Público além de dono da ação penal passa a ser também senhor da interpretação Mas isso não quer dizer que no caso de emendatio libelli o processo não possa ser eventualmente anulado por ofensa ao contraditório e à ampla defesa a ser analisa do caso a caso É que haverá situações em que a emenda é de tal modo radical ou sur preendente que a falta ou deficiência da defesa será inevitável a justificar a anulação especialmente em virtude da superprodução de leis penais muitas das quais desconhe cidas total ou parcialmente Aqui a anulação ocorrerá sempre que houver manifesto prejuízo para a defesa Exatamente por isso seria conveniente nalguns casos especiais que o juiz abrisse às partes prazo para se manifestarem a respeito possibilitando ao Ministério Público o aditamento da denúncia inclusive 3 PODE O JUIZ FIXAR PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL Devendo o juiz fixar a pena com base nos limites legais previstos máximo e mí nimo cabe perguntar pode o juiz aplicar pena abaixo do mínimo legal quando existi rem circunstâncias atenuantes em favor do réu De acordo com a doutrina e a jurisprudência majoritárias o juiz não poderia fixar pena abaixo do mínimo legal porque se o fizesse violarseia o princípio da le galidade das penas Nesse exato sentido dispõe a Súmula 231 do STJ A incidência de circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal Não estamos de acordo com isso E mais temos que mesmo não existindo cir cunstâncias atenuantes em favor do réu o juiz pode em casos excepcionais fixar pena abaixo do mínimo legal Primeiro porque a possibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal não implica violação ao princípio da legalidade13 segundo porque aplicar a pena justa não importando se no mínimo legal aquém ou além dele é uma exigência de propor cionalidade14 terceiro porque o compromisso fundamental do juiz não é com a pena mínima mas com a pena proporcional15 13 Este é o argumento principal aliás daqueles que como Damásio de Jesus O juiz pode em face das circunstâncias atenuantes genéricas fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato in Boletim do IBCCrim n 73 São Paulo 2003 são contrários à possibilidade de as circunstâncias atenuantes reduzirem a pena abaixo do mínimo legal 14 Não sem razão temse proposto a abolição da pena mínima Nesse sentido Ferrajoli Derecho y razón cit p 400 Edson ODwyer Se eu fosse juiz criminal in Boletim do IBCCrim n 86 São Paulo jan 2000 e Saio de Carvalho Pena e garantias cit 15 No sentido do texto Andrei Schmidt O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2001 p 301 307 440 PAULO QJEIROZ Convém notar ainda que não obstante a vedação sumular juízes e tribunais vêm admitindo relativamente ao crime do art 273 do Código que comina pena de prisão de 10 a 15 anos a aplicação da Lei de Drogas que prevê reclusão de 5 a 15 anos obje tivando aplicar uma pena proporcional à gravidade do caso 4 ERROS FREQUENTES NA APLICAÇÃO DA PENA Talvez por ser a aplicação da pena tema ordinariamente relegado a plano secundá rio frequentes são os erros quando da sua fixação consistentes sobretudo em revalorar elementos inerentes à estrutura do crime tipicidade ilicitude e culpabilidade toman do como circunstâncias judiciais os próprios pressupostos da condenação incorrendo se em bis in idem Quanto à tipicidade não é incomum que ao dosar a pena o juiz tome como crité rio de aferição da culpa dados ou circunstâncias que já fazem parte da própria figura típica Assim por exemplo ao condenar funcionário público por crime contra a Ad ministração Pública v g peculato corrupção passiva afirmar que o réu praticou ação das mais reprováveis visto que violou a confiança inerente ao exercício da função pública como se o fato de ser servidor público já não tivesse orientado a decisão po líticocriminal do legislador de autonomizarcriminalizar tais condutas punindoas de forma mais dura precisamente em razão dos deveres inerentes ao cargofunção Além disso ao considerar os motivos do crime aptos a agravar a pena frequen temente são tomadas em consideração motivações inerentes à própria infração penal e pois já valoradas por ocasião da tipificação como v g a libido exacerbada ou a falta de pudor nos crimes sexuais a ganância a ambição ou o ganho fácil nos crimes patrimoniais ou tráfico de droga o desprezo à pessoa humana nos crimes con tra a vida etc Também é comum elevar à condição de circunstância judicial aspectos jurídicopenalmente irrelevantes ferindo o princípio da legalidade tais como a não confissão o não arrependimento a fuga do distrito da culpa a inadequação da conduta etc Por vezes ao valorar negativamente as consequências do crime recorrese aos resultados próprios da conduta criminosa como em caso de homicídio dizerse que as consequências do crime foram danosas pois uma vida foi ceifada como se fosse possível homicídio consumado sem a morte da vítima Erro frequente também ocorre na avaliação da culpabilidade Sinteticamente po dese dizer que a culpabilidade é um juízo de reprovação sobre o autor do injusto penal em razão da possibilidade de se lhe exigir concreta e razoavelmente um comporta mento conforme o direito de sorte que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade Acontece que a culpabilidade tem uma dupla função pois tanto é requisito do fato punível quanto é critério de apuração da pena justa No primeiro caso 442 por latrocínio a aplicação da pena abaixo do mínimo legal fazendo inclusive uma interessante com paração das penas mínimas do estupro com morte atualmente 1 2 anos com o latrocínio atualmente 20 anos lü6I I N DIVI DUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA fazse um juízo qualitativo de constatação o réu é culpável logo o condeno no segundo um juízo quantitativo de aferição do grau de culpa que é mínima média ou máxima E se culpabilidade é exigibilidade e se há diferentes graus de exigência maior ou menor não há problema algum em tomála em conta novamente não como pressuposto da condenação mas como circunstância judicial de sorte que quanto maior for a culpabilidade maior exigibilidade maior a pena cabível quanto menor menor o castigo Tratase enfim de concretizar o princípio da proporcionalidade que informa todo o ordenamento jurídico segundo o qual de quem se pode exigir mais se deve castigar mais de quem se pode exigir menos se deve castigar menos Imaginese por exemplo que A B e C tomem parte num crime de extorsão me diante sequestro A arrependido vem a facilitar a fuga da vítima dias depois enquan to B se limita a atender ligações telefônicas observar a vítima e alimentála diferen temente de C que tudo arquiteta comanda a operação e trata a todos com violência e supordinação Parece evidente que não obstante a culpabilidade de todos Uuízo de constatação a ensejar a condenação ela a culpabilidade como juízo de aferição a en sejar penas distintas não é a mesma para todos uma vez que o grau de reprovabilidade de A que merece pena menor não é o mesmo de B que merece pena intermediária que não é o mesmo de C que merece pena maior devendo o castigo ser distribuído desigualmente Eventualmente as condutas de A e B poderão ser consideradas inclusi ve como participação de menor importância a autorizar a redução da pena Essa maior ou menor reprovabilidade constitutiva da culpabilidade pode ser afe rida a partir de diferentes critérios motivos circunstâncias consequências compor tamento da vítima etc razão pela qual ela compreende também todos aqueles ele mentos que o legislador já houve por bem autonomizar Se isso não tiver ocorrido a culp11bilidade passa a ser um critério subsidiário de verificação daqueles dados que podiam eventualmente ser previstos pelo legislador mas não o foram reprovando para mais ou para menos a infração penal Pois bem no particular o equívoco na aplicação da pena consiste em tomar no vamente em conta a culpabilidade não como critério de valoração do grau de culpa juízo quantitativo mas como pressuposto da condenação Uuízo qualitativo Não é infrequente por exemplo afirmarse que o réu é culpável pois tinha plena consciên cia da ilicitude do fato sabia exatamente o que fazia ou ainda agiu livremente Ora não fosse o réu culpável por quaisquer desses motivos e seria o caso de absolvêlo ou diminuirlhe a pena seja por erro de proibição inevitável ou evitável seja por coa ção física ou moral irresistível ou resistível É que conforme vimos são elementos da culpabilidade a imputabilidade a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa Por fim é recorrente a valoração de circunstâncias próprias de um direito próprio do autor se bem que com algum apoio no Código que prevê como circunstância ju dicial a personalidade do agente No particular não é raro assinalar que o réu tem personalidade agressiva personalidade voltada para o crime etc esquecendose primeiro que nada disso autoriza a condenação de quem quer que seja razão pela 443 PAULO QlJ E I ROZ qual tampouco pode justificar a majoração da pena castigandose pela via indireta o que não o é pela via direta segundo porque a permitir que o Estado possa coagir os cidadãos a não serem agressivos malvados etc estarseia a confundir direito e moral punindo o autor não exatamente pelo que fez mas pelo que é Não cabe tampouco agravarse a pena sob a alegação de que o condenado tem ní vel universitário ou similar e por isso sua conduta seria particularmente reprovável Primeiro porque importa em castigar alguém pelo que se é direito penal do autor se gundo porque como ninguém é punível diretamente por um ato legal tampouco pode sêlo indiretamente terceiro porque frequentemente não existe relação alguma entre o delito praticado e a condição de universitário quarto porque não está em discussão no mais das vezes o grau de consciência da reprovabilidade da conduta e por último porque se trata de uma circunstância juridicamente irrelevante Amiúde procurase ainda dar à sentença caráter exemplificador pretendendo em prestarlhe efeitos universais com fins de prevenção geral principalmente em casos de tráfico de drogas em que se alude a expressões como o tráfico é um mal que assola toda a humanidade e que precisa por isso ser exemplarmente punido para que possa mos dar um fim a isso aplicandose a partir de tal argumento penas altas em dema sia que não retratam o caso concreto e transcendem o merecimento do autor pois não se está a rigor a julgar o traficante mas o tráfico Não há aí individualização da pena mas desindividualização generalização No caso de tráfico droga e afins os erros mais comuns consistem em considerar como circunstâncias judiciais ou legais ao objetivo de lucro como se o tráfico já não fosse um comércio criminoso b a paga ou promessa de recompensa que é inerente à própria atividade de tráfico ilícito c a ofensa à saúde pública que constitui a pró pria lesão ao bem jurídico e o resultado inerente ao tipo consumado d que o tráfico provoca malefícios a toda sociedade e às gerações futuras aplicandose uma pena de caráter exemplificador que não retrata o caso concreto e o motivo torpe geralmente o fim de lucro também inerente ao tipo f a falta de fiscalização nas fronteiras como se o condenado fosse de algum modo corresponsável pela segurança nos territórios por onde passou 41 Modelo de sentença Abaixo modelo de sentença com comentário tráfico de droga que comete tais erros Modelo de sentença 1 Comentários Vistos etc Passo à individualização da pena e apreciação das circunstâncias judiciais do art 59 do Código Pe nal 444 lü6I I N D IV IDUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA 1 Modelo de sentença Comentários O réu é imputável detinha consciência da ilicitu A imputabilidade a potencial consciência da ilici de e lhe era exigível conduta diversa razão pela tude e a exigibilidade de conduta diversa são ele qual sua culpabilidade é máxima mentos constitutivos da culpabilidade logo são pressupostos da condenação Consequentemente considerálos na fixação da pena importa em bis in idem A conduta social do réu não é boa pois não tra Ninguém é obrigado a trabalhar Ademais o só balha e responde a vários inquéritos e processos fato de não trabalhar não implica má conduta so eia A referência aos processo em andamento vio la nos termos da Súmula 444 do STJ o princípio da presunção de inocência Por conseguinte se não importa em maus antecedentes tampouco signifi ca má conduta social O réu tem personalidade voltada para o crime Aqui a decisão repete o argumento anterior sen tanto é assim que responde a vários inquéritos e do criticável pelas mesmas razões já assinaladas processos Além disso o juiz não dispõe ordinariamente de elementos para avaliar a personalidade quer posi tiva quer negativamente Os motivos do crime a cobiça e a ambição exage Novamente bis in idem Com efeito se os motivos radas são injustificáveis fossem justificáveis incidiriam possivelmente causas de justificação estado de necessidade etc Além disso tais motivos são inerentes ao crime de tráfico de droga por se tratar de um comércio proibido Os resultados do crime são gravíssimos pois o Aqui a sentença assume caráter exemplificador em tráfico produz um número indefinido de vítimas desacordo com o princípio da individualização em todo o país e fomenta diversas outras práticas uma vez que ignora o caso concreto e passa a fa criminosas zer considerações genéricas que o transcendem A sentença desindividualiza As circunstâncias do delito lhe são de todo des No particular decisão ofende o princípio da pes favoráveis pois o réu se valeu da ausência de soalidade da pena visto que imputa ao réu conduta fiscalização das fronteiras para praticar a infração do Estado que se omitiu no dever de fiscalizar suas penal fronteiras Assim como necessário e suficiente à reprovação Os erros apontados impediriam a fixação de pena e prevenção do crime CP art 59 fixo a penaba base acima do mínimo legal 5 anos de reclusão se em 8 oito anos de reclusão 445 PAULO Q E I ROZ 8 fundamentação dos efeitos da condenação referidos no art 92 do Código 1 PRIMEIRA FASE FIXAÇÃO DA PENABASE Para a fixação da penabase o juiz tomará em consideração as diversas circuns tâncias judiciais do art 59 do Código umas de caráter subjetivo como a culpabilidade os antecedentes a conduta social a personalidade do réu os motivos do crime outras de cunho objetivo as circunstâncias e consequências do crime bem assim o comporta mento da vítima as quais tanto podem servir para agravar quanto para atenuar a pena inicial Naturalmente que tais circunstâncias jamais poderão servir para sopesar a pena mais de uma vez nas várias fases de fixação ne bis in idem Nesse sentido dispõe a Súmula 241 do STJ A reincidência penal não pode ser considerada como circunstân cia agravante e simultaneamente como circunstância judicial Apesar de a súmula em questão se referir à reincidência ela é perfeitamente aplicável a toda e qualquer circunstância judicial ou legal agravante ou atenuante Naturalmente que o juiz não precisa necessariamente referir cada uma das cir cunstâncias judiciais do art 59 só deve fazêlo quando for importante para a fixação da pena Quando determinada circunstância for irrelevante para o caso deve dizer ex pressamente que deixa de considerála ou não fazer referência alguma 2 SEGUNDA FASE FIXAÇÃO DA PENA PROVISÓRIA 21 Concurso de agravantes e atenuantes No caso de só incidirem agravantes ou só atenuantes o juiz em princípio as aplica rá cumulativamente Em ambos os casos o Código não estabeleceu qualquer limite seja para mais seja para menos mas uma coisa é certa as agravantes jamais poderão fazer a pena exceder ao máximo legal mas as atenuantes podem justificar contrariamente à Súmula 231 do STJ a fixação de pena abaixo do mínimo legal Quanto aos limites má ximos da apenação alguns autores têm proposto à falta de critério legal que o percen tual para mais ou para menos não exceda o teto de um sexto da penabase aplicada2 Se concorrerem agravantes e atenuantes o Código determina que a pena deve aproximarse do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes entendendose como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime da personalidade do agente e da reincidência CP art 67 Parte da doutrina e da jurisprudência admite in clusive que se declare a neutralização ou compensação de uma ou mais agravantes ou de uma ou mais atenuantes Havendo concurso entre circunstâncias igualmente preponderantes é perfeita mente possível a compensação entre elas Mas como é impossível determinar a priori a importância da circunstância preponderante ou não o mais razoável é sempre valo rálas concretamente para se admitir ou não a compensação e em que termos 2 Nesse sentido Paganella Boschi Penas e seus critérios cit p 277278 448 PAULO ÜlJEIROZ 3 TERCEIRA FASE FIXAÇÃO DA PENA DEFINITIVA 31 Causas de aumento de pena e qualificadoras distinção Não há distinção ontológica entre qualificadora e causa de aumento de pena tam pouco há distinção essencial entre causa de diminuição de pena e atenuantes genéricas tanto que determinadas circunstâncias v g motivo torpe motivo fútil etc ora apare cem como qualificadora ora como causa de aumento outras tantas circunstâncias v g motivo de relevante valor social ou moral que ora figuram como simples atenuante genérica ora como causa de diminuição de pena Semelhante tratamento um tanto casuístico atende a critério de conveniência política puramente Com efeito quando o legislador pretende reprimir mais duramente uma determinada circunstância trataa como qualificadora se não tão severamente como causa de aumento se mais branda mente como circunstância agravante No entanto a distinção é relevante para efeito de aplicação da pena Sim porque as qualificadoras que implicam a fixação de novos limites mínimo e máximo de pena v g o homicídio qualificado por motivo fútil CP art 121 2º II cuja pena é de doze a trinta anos de reclusão e não seis a vinte anos de reclusão devem ser levadas em conta já no momento mesmo da aplicação da penabase primeira fase Diferente mente as causas de aumento ou de diminuição serão consideradas somente na terceira fase Naturalmente que a mesma circunstância não poderá ser tomada em conta mais de uma vez na mesma sentença sob pena de bis in idem Assim se a mesma circunstância já figurar como qualificadora deverá ser ignorada como causa de aumento ou agra vante se já figurar como causa de diminuição deverá ser desprezada como atenuante genérica No particular vigora o seguinte princípio as qualificadoras prevalecem so bre as causas de aumento de pena que prevalecem sobre as circunstâncias agravantes As agravantes só têm aplicação portanto quando não constituírem nem qualificadora nem causa de aumento O mesmo deve ser dito quanto às causas de diminuição de pena que prevalecem sobre as circunstâncias atenuantes 32 Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento e dimi nuição A doutrina considera que diferentemente do que ocorre com circunstâncias agra vantes e atenuantes as causas de aumento podem elevar a pena além do máximo e as de diminuição reduzila aquém do mínimo legal cominado Nesse sentido Paganella Boschi embora reconheça que as causas especiais de aumento ou diminuição diferem das agravantes e atenuantes sob a perspectiva meramente topográfica pois as primei ras estão espalhadas pelo Código ao passo que as últimas aparecem definidas só na Parte Geral entende acompanhando a doutrina que as agravantes não autorizam à luz do sistema legal vigente individualização da penabase além dos limites definidos em abstrato mas tal restrição não se aplica às causas especiais de aumento uma vez que a possibilidade de extrapolação da margem superior cominada no tipo não ofende 450 I071 MÉTODO DE FIXAÇÃO DA PENA o princípio constitucional da legalidade art 5º inc XXXIX pois decorre da funcio nalidade do sistema adotado pelo nosso Código art 68 do CP4 Mas semelhante interpretação no que toca à possibilidade de fixação da pena além do máximo legal por força de causa de aumento é um tanto discutível Sim porque se o legislador cominou um máximo legal de pena v g no furto cuja pena varia de 1 a 4 anos de reclusão parece que o mais razoável seria concluir que o juiz não poderia estabelecer novos parâmetros legais máximos Em suma em nome da garantia consti tucional de legalidade da pena deveria darse tratamento unitário a todas as situações quer se trate de circunstância agravante quer de causa de aumento a pena não poderia ser fixada além do máximo legal cominado Mas o contrário não está vedado tanto as circunstâncias atenuantes quanto as causas de diminuição podem justificar a aplicação da pena aquém do mínimo legal previsto 33 Concurso de causas de aumento e diminuição de pena possibilidades Nessa terceira fase o juiz poderá deparar com as seguintes hipóteses a incide mais de uma causa de aumento de pena b incide mais de uma causa de diminuição de pena c incide simultaneamente mais de uma causa de aumento e de diminuição de pena Pois bem para as duas primeiras hipóteses o Código prevê a mesma solução o juiz pode limitarse a um só aumento ou a uma só diminuição prevalecendo todavia a causa que mais aumente ou mais diminua CP art 68 parágrafo único Significa dizer portanto que o legislador entendeu de à vista da incidência si multânea de várias causas de aumento ou de diminuição privilegiar uma única a que mais aumenta ou a que mais diminui em prejuízo das demais de modo a evitar que a consideração de múltiplas causas de aumento ou de diminuição conduzisse o juiz a fixar uma pena desproporcional alta demais no primeiro caso ou baixa demais no se gundo podendo chegar teoricamente à pena zero inclusive Apesar de não existir previsão semelhante quanto às circunstâncias agravantes talvez pudesse o juiz recorrer analogicamente a tanto visto que a razão políticocri minal é a mesma ou seja havendo concurso de agravantes ou atenuantes sobre um mesmo crime em tese seria possível que o juiz preferisse uma a mais importante em prejuízo das demais Discutese se tal possibilidade constitui uma faculdade ou um dever do juiz Te mos que a despeito de opiniões em contrário tratase de um dever e não de simples faculdade Outra questão relevante é a seguinte o Código fala expressamente de con curso de causas previstas só na Parte Especial De acordo portanto com a literali dade da norma tal regra não se aplicaria aos casos de concurso entre causas da Parte Especial e da Geral ou só da Parte Geral Esse aliás é o entendimento majoritário na 4 Penas e seus critérios cit p 296 451 PAULO Q1JEIROZ doutrina se o concurso se der entre causas previstas só na Parte Geral ou previstas na Parte Especial e na Geral não cabe invocar a regra do art 68 parágrafo único No entanto não parece justificada a restrição nem um tal apego à letra da lei Além disso em princípio é irrelevante o lugar onde se acha localizado no Código a causa de au mento ou de diminuição devendo darse tratamento unitário a tais situações Finalmente na terceira hipótese em que incidem ao mesmo tempo causas de au mento e de diminuição de pena a solução é diferente o juiz apreciará sucessivamente todas as causas presentes de aumento e de diminuição não podendo invocar a regra do art 68 452 PAULO QV E I ROZ entanto se adotado o método isolado ambos os aumentos incidiriam sobre a pena pro visória de 4 anos resultando numa pena final de 8 anos segundo a operação seguinte 4 2 12 6 6 2 112 de 4 8 O método isolado poderá ser também desfavorável em algumas situações como por exemplo incidirem uma causa de diminuição e outra de aumento como ocorre no furto tentado praticado durante o repouso noturno2 Com efeito definida a pena provisória em 3 anos havendo uma redução de 23 e um aumento de 13 e aplicado o método sucessivo obterseia uma pena final de 1 ano e quatro meses conforme a ope ração seguinte 3 2 23 l 1 4 meses 13 de 1 ano 1 ano e quatro meses Já a aplicação do método isolado ensejaria uma pena final de 2 anos a operação seria 3 2 1 1 1 13 de 3 2 Em conclusão3 1 no concurso entre causas de aumento o método sucessivo prejudica o réu 2 no concurso entre causas de diminuição o método isolado é impraticável ilógi co 3 no concurso entre causas de aumento e de diminuição o critério isolado preju dica o réu Por isso temos que como regra o método a ser aplicado é o sucessi vo e só excepcionalmente o isolado sempre que for mais favorável ao réu 2 Cf Fernando Galvão idem p 618 3 Cf Gilberto Ferreira cit p 160 456 PAULO QJEJROZ Por isso diz GarcíaPablos que o princípio de culpabilidade funciona como limite do poder de punir não só quanto à determinação dos pressupostos da pena mas tam bém quanto à sua individualização judicial significando dizer que não pode exceder ao que seja adequado e conforme a gravidade da culpa do autor por mais que seja neces sária no caso concreto por motivos de prevenção geral ou especial a aplicação de pena mais severa 3 Superada a análise da culpabilidade enquanto pressuposto da condenação juízo qualitativo de culpabilidade o juiz agora a tomará em consideração para efeito de afe rição do grau de culpa do réu juízo quantitativo vale dizer considerálaá para fixar uma reprimenda compatível com o grau máximo médio ou mínimo de reprovabilida de Há quem defenda4 que para a aferição da culpabilidade há de ser considerada tam bém a intensidade do dolo apesar de este ter migrado para a tipicidade com o advento da teoria final da ação Mas isso não parece correto visto que sendo o dolo requisito dos tipos dolosos e pois pressuposto da própria condenação considerálo para efeito de majorar ou atenuar a pena constitui bis in idem até porque frequentemente a maior intensidade do dolo já figura como agravante genérica causa de aumento de pena ou qualificadora como no homicídio CP art 121 2º em que ela pode atender pelo nome de motivo fútil torpe meio cruel etc O mesmo deve ser dito da sua menor inten sidade que pode aparecer no caso específico do homicídio com a roupagem de motivo de relevante valor moral ou social e semelhantes Portanto a culpabilidade funciona como limite máximo de fixação da pena mo tivo pelo qual não é exato dizer como dizia Cezar Bitencourt que ela funcionando como limite impede que seja imposta uma pena aquém ou além da medida prevista pela própria ideia de culpabilidade5 É que embora não se possa realmente aplicar pena além da culpabilidade do réu nada impede que a sanção seja imposta aquém dela uma vez que como assinala Roxin o princípio da culpabilidade ditado em nome da dignidade humana é um meio imprescindível para limitar o poder penal estatal num Estado de Direito motivo pelo qual é perfeitamente admissível aplicar uma pena in ferior à culpa6 Mas a culpabilidade é analisada não só aí como também durante todo o processo de individualização da pena a exemplo do que ocorre quando do reconhecimento da participação de menor importância do erro de proibição evitável da semiimputabili dade etc fundamento da pena isto é característica negativa da conduta proibida e que já deve ter sido objeto de análise juntamente com a tipicidade e a antijurídicidade concluindose pela condenação e presumese que esse juízo tenha sido positivo porque do contrário nem se teria chegado à condenação Manual cit p 55 1 3 Derecho penal cit p 286 4 Cezar Bitencourt Manual cit p 5 5 1 5 Cezar Bitencourt Manual cit p 5 5 1 6 Problemas fundamentais cit p 3839 458 l l ü l C I RCUNSTÂNCIAS UDICIAIS EM ESPÉCIE Não é preciso dizer que na prática forense há frequentes erros na aplicação da pena quando se analisa a culpabilidade como por exemplo afirmarse que o réu é culpável pois tinha plena consciência da ilicitude do fato sabia exatamente o que fazia ou ainda agiu livremente Ora não fosse o réu culpável por quaisquer desses motivos seria o caso de absolvêlo ou diminuirlhe a pena seja por erro de proibição inevitável ou evitável seja por coação física ou moral irresistível ou resistível visto que as excludentes de culpabilidade constituem pressupostos da condenação mesma vide erros frequentes na aplicação da pena 2 ANTECEDENTES DO RÉU Antecedentes são fatos passado da conduta do condenado dignos de nota e pois merecedores de apreciação na sentença seja para aprovála seja para reprovála Por óbvio que fatos posteriores ou consequentes ao crime não podem ser tidos como ante cedentes simplesmente porque não o são É que os antecedentes a que se refere a lei são os antecedentes ao crime e não à sentença Somente os episódios que direta ou indiretamente ou que de alguma forma te nham relação com o fato devem ser levados em consideração seja porque tenham influenciado ainda que remotamente a prática do crime seja porque revelam maior periculosidade do agente7 Convém notar que a Constituição considera que ninguém será considerado cul pado senão após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória art 5 LVII motivo pelo qual inquéritos policiais e processos penais em curso ou arquivados bem como condenações ainda em grau de recurso não podem implicar maus antecedentes sob pena de violação ao princípio pois do contrário será imposta uma condenação reflexa permitindose pela via indireta o que a lei proíbe diretamente conforme tem decidido o Supremo Tribunal Federal8 Não por outra razão foi editada a Súmula 444 do STJ dispondo que é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a penabase Também por isso se os maus antecedentes não servem como tal não servem tam poucp para valorar negativamente a conduta social a personalidade do réu etc9 Consequentemente se os maus antecedentes fundados em inquérito ou ação pe nal em curso não podem agravar a penabase não podem tampouco implicar outras 7 Gilberto Ferreira cit p 8384 8 Presunção constitucional de não culpabilidade cf art 5º LVII Mera existência de inquéritos poli ciais em curso ou arquivados ou de processos penais em andamento ou de sentença condenatória ainda suscetível de impugnação recursai Ausência em tais situações de título penal condenatório ir recorrível Consequente impossibilidade de formulação contra o réu com base em episódios proces suais ainda não concluídos de juízo de maus antecedentes Pretendida cassação da ordem de habeas corpus Postulação recursai inacolhível Recurso extraordinário improvido STF RE nº 464947 Rei Min Celso de Mello 9 Nesse sentido HC nº 1 564 77 AM Relatora Ministra Laurita Vaz do STJ julgado em 221 120 1 1 459 PAULO QEIROZ restrições legais a exemplo de impedir o reconhecimento da causa de redução do art 33 4º da Lei nº 1 134320061º É que o fundamento jurídicoconstitucional para a edição da Súmula nº 444 tem plena aplicação também aqui qual seja violação ao prin cípio da presunção de inocência Não se trata portanto de um argumento válido espe cífica e exclusivamente para a fixação da penabase mas para toda e qualquer restrição legal que tenha por pressuposto os maus antecedentes Parece razoável por conseguinte que uma vez afastados os maus antecedentes para fixação da penabase deve ser também removido o obstáculo legal para a admis são da citada causa de redução de pena Com maior razão não podem ser considerados a título de maus antecedentes fatos desabonadores e mesmo criminosos que sequer foram objeto de investigação po licial Conforme vimos a reincidência perde seus efeitos legais depois de decorridos mais 05 cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e o cometimen to de nova infração penal CP art 64 1 Apesar disso a doutrina e a jurisprudência têm como possível e legítimo que ela seja considerada como maus antecedentes Temos porém que essa utilização da reincidência como maus antecedentes é abu siva pois se não vale como reincidência mesma não há de valer tampouco como maus antecedentes sob pena de violação ao princípio da legalidade Ademais se não é juri dicamente possível o mais agravamento da pena provisória pela reincidência não há de ser possível o menos aumento da penabase por maus antecedentes E mais aquilo que o ordenamento jurídicopenal veda diretamente efeitos da re incidência como reincidência não pode ser tolerado indiretamente efeitos da reinci dência como maus antecedentes sob pena de fraude à lei Além disso se não for assim estarseia a perpetuar o possível aumento da pena a título de maus antecedentes Convém lembrar a propósito que a reincidência é uma espécie a mais importan te inclusive do gênero maus antecedentes Consequentemente uma vez extintos os efeitos da reincidência diretos e indire tos o réu retoma a condição legal de primário não podendo ipso facto lhe serem negados direitos a pretexto de existirem maus antecedentes em seu desfavor11 Também não podem ser reconsideradas as circunstâncias que já foram tomadas em conta na própria sentença ne bis in idem Que restará então a título de maus antecedentes Unicamente as condenações com trânsito em julgado que apesar disso não importem em reincidência na forma da lei E 1 0 O art 33 4 da Lei nº 1 1 3432006 prevê uma causa de redução de pena de 16 a 23 nos delitos definidos no caput e no 1 º deste artigo as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços vedada a conversão em penas restritivas de direitos desde que o agente seja primário de bons ante cedentes não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa 1 1 No sentido do texto Paganella Boschi cit 460 I JOI CI RCUNSTÂNCIAS J UDICIAIS EM ESPECIE mais é necessário que não incida nenhuma das hipóteses do art 64 do Código a saber decurso do prazo de cinco anos a contar da extinção da pena pelo crime anterior12 e condenação por crimes militares próprios e políticos pois não geram reincidência 3 CONDUTA SOCIAL A conduta social que praticamente se confunde com os antecedentes diz respeito às relações do acusado com a família e sua adaptação ao trabalho ao estilo de vida honesto ou desonesto13 De acordo com Guilherme de Souza Nucci o magistrado pre cisa conhecer a vida pessoal de quem está julgando a fim de saber se merece uma reprimenda maior ou menor daí a importância das perguntas que devem ser feitas ao acusado no interrogatório e às testemunhas durante a instrução Assim por exemplo um péssimo pai e marido violento em caso de condenação por lesões corporais graves menice pena mais severa do que o pai terno e esposo dedicado14 De todo modo difícil é compatibilizar o exame da conduta social do apenado com a perspectiva de um direito penal do fato já que o condenado deve responder penal mente pelo que faz e não pelo que é Para avaliar a conduta social do condenado o juiz não poderá por óbvio ignorar o contexto social em que está inserido e as possibilidades reais de se comportar na sociedade e interagir com o meio sob pena de se julgar não propriamente um homem mas lum estereótipo 4 PERSONALIDADE DO RÉU Mais difícil ainda será como assinala Paganella Boschi a avaliação da persona lidade do réu seja porque como regra o juiz não domina conteúdos de psicologia an tropologia ou psiquiatria seja porque possui como todo indivíduo atributos próprios de personalidade por isso que a valoração que se faz nas sentenças criminais é quase sempre precária superficial e não raro preconceituosa limitada a afirmações genéri cas do tipo personalidade ajustada desajustada agressiva impulsiva boa má que nada dizem tecnicamente15 Já não bastassem tais dificuldades aliada a sua irrelevância mesma semelhante avaliação não parece legítima no contexto de um direito penal do fato pois além de possibilitar ao julgador invadir arbitrariamente âmbito da liberdade onde não lhe é lícito opinar interioridade da pessoa estabelece uma verdadeira porta aberta para a perversão do princípio da culpabilidade pelo fato16 Logo e de acordo com um direito 1 2 N o mesmo sentido Paganella Boschi Penas e seus critérios de aplicação Porto Alegre Livraria do Advogado Ed 2000 p 208 13 Fragoso Lições cit p 322 14 Individualização da pena cit p 201 1 5 Paganella Boschi Penas cit p 2 1 1 1 6 Saio de Carvalho Aplicação da pena e garantismo Rio de Janeiro Lumen Juris 200 1 p 5 1 52 461 PAULO QJEIROZ penal garantista são admissíveis apenas normas que proíbam e previnam fatos e não normas que proíbam ou desmoralizem identidade apenas juízos que acertem a prova de uma ação e não valorações sobre a personalidade do réu apenas tratamentos puniti vos relacionados ao fato previsto como crime e resolvido mediante provas e não trata mentos individualizados e modelados sobre a personalidade do imputado ou recluso17 em geral argumentos potestativos e por isso dificilmente refutáveis 5 MOTIVOS DO CRIME Para a fixação da penabase o juiz deve também sopesar os motivos do crime isto é as razões próximas e remotas que levaram o agente a praticar o delito Nesse sentido são mais reprováveis por exemplo os crimes que tenham como motivação a inveja o ódio gratuito a ambição desmedida a lascívia etc Contrariamente são me nos censuráveis os crimes que tenham uma motivação nobre como a defesa da própria honra injustamente ofendida o amor etc Naturalmente que tais motivos não deverão ser considerados como circunstâncias judiciais quando já fizerem parte da definição do próprio tipo penal ou já constituírem circunstância atenuante agravante ou qualifica dora ne bis in idem Exatamente por isso não podem ser tomadas em consideração as motivações ine rentes à própria infração penal e pois já valoradas por ocasião da tipificação como v g a libido exacerbada ou a falta de pudor nos crimes sexuais a ganância a ambição ou o ganho fácil nos crimes patrimoniais ou tráfico de droga o desprezo à pessoa humana nos crimes contra a vida etc 6 CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME As circunstâncias são dados ou fatos lugar modo de execução etc que estão em derredor do crime e que devem ser levados em consideração para efeito de individua lização da pena Já as consequências do crime são os efeitos principais e secundários decorrentes da infração cujo grau maior ou menor de lesividade social e individual deve ser considerado de modo a ensejar a aplicação de uma pena justa Mas ao contrário do que por vezes se afirma18 tanto nos crimes dolosos quanto nos culposos tais consequências devem influir na dosagem da pena mesmo porque a lei não faz distinção alguma no particular Como assinala Paganella Boschi as consequências do crime a que se refere o art 59 são evidentemente aquelas que se projetam para além do fato típico porque se as sim não fosse poderiam acarretar a quebra da regra do ne bis in idem especialmente naqueles casos em que aparecem compondo a figura penal Daí por que é inviável na 1 7 Ferrajoli apud Saio de Carvalho Aplicação da pena cit p 53 18 Assim Delmanto Código Penal Comentado 6 ed Rio de Janeiro Renovar 2002 para quem tra tandose de crimes culposos as consequências não devem influir 462 j IOj C I RCUNSTÀNCIAS J U DICIAIS EM ESPÉCIE dosimetria da penabase do homicídio valoração negativa das consequências porque a morte da vítima é condição para que o tipo se realize a incapacidade para o trabalho não pode ser considerada como circunstância judicial no crime de lesões corporais gra víssimas porque integra o tipo no infanticídio o estar a vítima à mercê da ré é circuns tância conatural ao delito Já o desamparo da prole e os inconvenientes dos reiterados tratamentos médicos para a correção ou eliminação da grave perturbação emocional da vítima podem ser perfeitamente considerados19 7 COMPORTAMENTO DA VÍTIMA Também é relevante para a aplicação de uma pena justa saber sobre o compor tamento da vítima no desenrolar do episódio criminoso vale dizer a forma como a conduta da vítima pôde favorecer ou motivar a atuação criminosa do agente Cumpre notar porém que o comportamento do ofendido deve ser apreciado de modo amplo no contexto da censurabilidade do autor do crime não só podendo diminuir como au mentar eventualmente a pena20 Naturalmente que o comportamento de que estamos tratando não é aquele que faz incidir a legítima defesa por exemplo nem o privilégio de alguns crimes assim o homicídio CP art 121 lº mas condutas que em nada afetam a tipicidade ou a ilicitude do fato 19 Das penas e seus critérios de aplicação Porto Alegre Livr do Advogado Ed 2002 p 2 12 20 Delmanto Código Penal Comentado cit p 95 463 1 1 21 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCIE A prova da reincidência deverá ser feita mediante certidão do cartório competen te não bastando a simples exibição de folha de antecedentes nem sempre exata nem sempre atualizada Tampouco pode ser provada pela simples confissão do réu Alguns autores entendem que se a reincidência decorrer de duas ou mais conde nações o juiz poderá considerar uma delas como maus antecedentes para aplicação da penabase e a outra como agravante para fixação da pena provisória Mas um tal aproveitamento do instituto ofende o princípio da legalidade e implica bis in idem uma vez que embora com nome diverso estarseá ainda a elevar a pena com base na mes ma circunstância a reincidência Além disso não se pode ignorar que a reincidência é espécie do gênero maus antecedentes sua máxima expressão motivo pelo qual não pode ensejar múltiplos aumentos ora com o nome de maus antecedentes ora com o nome de reincidência b Crimes que não geram reincidência Nem todos os crimes geram reincidência O Código excepciona os crimes milita res próprios e os crimes políticos art 64 11 Crimes militares próprios são os defini dos exclusivamente no Código Penal Militar e que somente podem ser cometidos por mifüar v g deserção abandono de posto insubordinação etc e não o civil Não se confundem portanto com crimes militares impróprios que podem ser praticados por qualquer pessoa militar ou civil Já os crimes políticos são os praticados contra a segurança interna e externa do Estado sendo puramente políticos os crimes que atentam exclusivamente contra inte resses políticos da nação v g incitação ou propaganda subversiva e relativamente políticos são os crimes que se referem a fatos puníveis segundo a lei penal comum praticados com finalidade políticosubversiva v g roubo ou sequestro com fins políti cos1 Somente os puramente políticos não geram reincidência e Extinção da reincidência A reincidência não é perpétua haja vista que se entre a data do cumprimento ou extinção da pena anterior e a prática da infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos extinguirseão todos os seus efeitos isto é o sentenciado voltará à condição de primário CP art 64 II Estando o réu no gozo de livramento condicional computarseá também no prazo legal de cinco anos o tempo em que o condenado esteve sob livramento desde que não tenha havido revogação Assim se condenado a seis anos de prisão após quatro anos cumpriu o restante dois anos em livramento condicional os efeitos da reincidência extinguirseão em três anos a con tar da audiência admonitória e não da sentença que declara extinta a pena por força do cumprimento das condições legais do benefício O mesmo ocorrerá se estiver em gozo de suspensão condicional da pena sursis 1 Fragoso Lições cit p 330 469 PAULO ÜlJEIROZ Conforme vimos autores há que entendem que retomando a condição de primá rio em razão do decurso do prazo de cinco anos sem praticar novo delito poderseá usar tal condenação como maus antecedentes Também aqui no entanto há clara ofen sa ao princípio da legalidade pois se com o decurso do prazo cessa a reincidência principal forma de maus antecedentes ela não pode ser aproveitada para outros fins frustrando a finalidade da lei até porque o acessório maus antecedentes deve seguir a sorte do principal a reincidência Mais os maus antecedentes reincidência acaba riam assumindo caráter perpétuo d Constitucionalidade da reincidência Apesar de consagrada pela maioria dos Códigos a reincidência que encerra uma presunção absoluta de maior perigosidade do réu é dificilmente compatível com os princípios penais especialmente ne bis idem vide capítulo específico Inicialmente é de ver que com a relativização determinada pelo princípio da pre sunção de inocência o instituto perdeu grandemente o seu sentido uma vez que nem sempre o réu reincidente é mais perigoso do que o não reincidente Afinal o agente pode ser primário não obstante ter praticado diversos delitos assim como pode ser reincidente mas em crimes de menor potencial ofensivo2 É de reconhecer portanto que a reincidência já não constitui uma prova segura de maior perigosidade não se justificando também por essa razão sua existência Por isso não é exato dizer que a reincidência é um sinal de periculosidade como a febre é sinal de infecção como a putrefação é sinal de morte Hungria Além disso a reincidência não passa como assinala Mufíoz Conde de uma pena tarifada na medida em que ela atua como causa de agravamento da pena fundada em fato diverso gerador de culpabilidade e de responsabilidade próprias de modo que o plus de gravidade decorrente da reincidência equivale à pena sem culpabilidade es tranho ao fato e que importa em dupla valoração da mesma causa constituindo bis in idem3 2 Sem razão portanto Mirabete quando afirmava que a exacerbação da pena justificase plenamen te para aquele que punido anteriormente voltou a delinquir demonstrando com sua conduta crimi nosa que a sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimidálo ou recuperálo Há inclusive um índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide Manual cit p 30 1 3 Apud Paganella Boschi Penas cit No mesmo sentido André Copetti para quem ao aumentar a pena do delito posterior pela existência da circunstância agravante da reincidência em realidade se está punindo novamente a situação já sentenciada Direito penal cit p 1 94 Idem Saio de Carvalho Aplicação da pena cit e Lênio Streck Tribunal do Júri símbolos e rituais Porto Alegre Livraria do Advogado Ed 2001 Com razão Paganella Boschi assinala que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justificada como imperiosa punição ao condenado que por máformação desvio de conduta tendência ao crime insiste em continuar violando a lei como tradicionalmente se afirma mas isto sim deve ser compreendida também como expressão final do processo de perversão e de estigmatização do homem pela prisão ou pela absoluta falta de políticas oficiais de amparo ao egresso criadoras de novas oportunidades para a harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho Penas 470 1 12 1 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCI E Por isso é que Cobo del Rosal e Vives Antón propõem a abolição pura e simples do instituto porque além de incompatível com um direito penal da culpabilidade pelo fato está evidenciada sua total ineficácia4 Efetivamente a reincidência importa em bis in idem porque ao se punir mais gra vemente um crime tomandose por fundamento um delito anterior estáse em ver dade a valorar e castigar por mais uma vez a infração anteriormente praticada em relação à qual o autor já foi sentenciado chegandose por vezes a absurdos como por exemplo estabelecer o juiz depois de fixar a penabase em vinte anos de prisão por latrocínio aumentála de metade em razão da reincidência mais dez anos Nota o crime anterior um furto fora apenado com dois anos de prisão A rigor portanto o condenado estará a cumprir a mesma pena por mais cinco vezes Apesar disso o Supremo Tribunal Federal decidiu que a agravante da reincidência é constitucional legítima portanto De todo modo temos que o acréscimo de pena que resulta da reincidência não poderá acarretar aumento igual ou superior mas sempre inferior proporcionalmente à pena ou penas aplicada na sentença anterior que a gerou sob pena de o acréscimo exceder à própria pena antes imposta desproporcionalmente Assim no exemplo antes mencionado o aumento de pena deveria ser inferior a dois anos de prisão Finalmente autores há que propõem que a reincidência em vez de ensejar o agra vamento da pena deve ao contrário justificar sua atenuação Nesse sentido Juarez Cirino dos Santos para quem é necessário reconhecer a se o novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema formal de controle social com efetivo cum primento da pena criminal o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reincidência real entre as circunstâncias atenuantes como produto específico da atuação deficiente e predatória do Estado sobre sujeitos criminalizados b se o novo crime é cometido após a simples formalidade do trânsito em julgado de condenação anterior a reincidência ficta não indica qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar circunstância agra vante Conclui então que no caso de reincidência real o condenado cumpriu de fato a p1ena passando pela experiência carcerária deve ela ensejar a atenuação da pena na hipótese de reincidência ficta o condenado não chegou a cumprir pena alguma por cit p 269 Por isso entende Juarez Cirino que em verdade a reincidência ou deveria ser atenuante quando houvesse o cumprimento da pena em virtude da dessocialização decorrente da experiência carcerária ou deveria ser penalmente indiferente quando não tivesse havido o cumprimento da pena Direito penal Rio de Janeiro Forense 1985 p 245 4 Derecho penal cit p 815 Escrevem os citados autores textualmente a reincidência pois não nos deve situar em outro Direito Penal De um Direito Penal distinto ao da mera e única repressão por meio da pena de um Direito Penal preventivo e de medidas de segurança que conhece e concede maior relevância não tanto ao delito mas ao estado perigoso entendido como pressuposto da aplica ção daquelas E dentro deste marco seguimos apesar de tudo propugnando o desaparecimento do instituto da reincidência em suas distintas manifestações assim como em sua consideração como agravante da pena pois está evidenciada a sua total inoperatividade 471 PAULO QJEIROZ qualquer motivo como fuga por exemplo tal circunstância é irrelevante devendo ser ignorada5 2 MOTIVO FÚTIL OU TORPE O Código prevê como agravante genérica o motivo fútil ou torpe Torpe é motivo que mais vivamente ofende a moral média ou o sentimento éticosocial comum É o motivo abjeto ignóbil repugnante que imprime ao crime um caráter de extrema vile za ou imoralidade a exemplo do fim de lucro ou cupidez o prazer do mal o desenfreio da lascívia a vaidade criminal o despeito da imoralidade contrariada etc6 É preciso porém não perder de vista que para alguns crimes tal motivo pode simplesmente constituir um estado normal de quem se determina a praticálo e em consequência deve ser desprezado sob pena de dupla valoração do fato bis in idem Assim não cabe tomar em conta a motivação lasciva para os crimes sexuais o motivo de lucro para os delitos contra o patrimônio extorsão mediante sequestro receptação estelionato etc Fútil é o motivo frívolo insignificante absolutamente desproporcionado que ex prime total indiferença do sujeito para com o bem jurídico tutelado Apesar isso não pode ser considerada fútil a simples falta de motivo nem a só injustiça do motivo Assim se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade o motivo fútil tra duz egoísmo intolerante prepotente mesquinho que vai até a insensibilidade moral7 Também aqui é preciso estar atento para a possibilidade de ocorrência de bis in idem já que o caráter fútil do crime pode já integrar a própria tipificação sendo inerente à sua estrutura Discutese se o ciúme pode ser considerado motivo fútil Parecenos que sobretu do quando se tratar de ciúme havido entre casais tal não pode ser tomado à conta de fútil especialmente em virtude da tradição moral cristã que atribui à fidelidade conju gal extraordinária relevância e mais ainda quando se tratar de ciúme fundado Finalmente de acordo com a jurisprudência o motivo fútil é como regra incom patível com a embriaguez exceto a embriaguez preordenada 3 PARA FACILITAR OU ASSEGURARA EXECUÇÃO A OCULTAÇÃO A IMPUNIDADE OU A VANTAGEM DE OUTRO CRIME O crime é também agravado sempre que for praticado para facilitar ou assegurar a execução a ocultação a impunidade ou a vantagem de outro crime Na primeira hi pótese o que agrava não é prática efetiva do crime mas o fim de cometer outro crime Assim por exemplo o indivíduo que ao tentar uma extorsão mediante sequestro mata a pessoa que se interpõe para evitálo não deixa de responder por homicídio qualifica do ainda quando a seguir desista de consumar a extorsão mediante sequestro Também 5 Direito Penal cit 6 Hungria Comentários cit v 5 p 163 7 Hungria cit p 164 472 I I 2 1 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉC I E nas outras hipóteses a agravante não depende da real consecução do fim a que se pro põe o agente Nas segunda e terceira hipóteses o escopo do agente é destruir a prova de outro crime ou evitar as consequências processuais ou penais dele decorrentes v g executando testemunha do crime Na última hipótese o propósito do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem patrimonial ou não direta ou indireta resultante de outro crime não importando em nenhum desses casos se o agente atua em favor pró prio ou de outrem8 Também aqui é discutível se não há bis in idem haja vista que o agente poderá também responder pelo crime que pretendeu facilitar assegurar a execução a oculta ção ou a impunidade 4 TRAIÇÃO EMBOSCADA DISSIMULAÇÃO OU QUALQUER RE CURSO QUE DIFICULTE OU TORNE IMPOSSÍVEL A DEFESA DO OFENDIDO Também agravam a pena a traição a emboscada a dissimulação ou qualquer ou tro fecurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido A traição é o crime cometido mediante ataque súbito e sorrateiro atingindo a vítima descuidada ou confiante antes de perceber o gesto criminoso Emboscada é a dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar é a tocaia enfim Nela o criminoso escon dido aguarda a passagem da vítima desprevenida que fica à sua mercê Dissimulação é a ocultação da intenção hostil para acometer a vítima de surpresa O criminoso age com falsas amostras de amizade ou de tal modo que a vítima iludida não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa9 Finalmente constitui agravante genérica o uso de qualquer recurso que à semelhança da traição da embos cada e da dissimulação dificulte ou torne impossível a defesa da vítima como o uso de algemas imobilização surpresa etc Em síntese tais circunstâncias ocorrem quando o agente quebra deliberadamente o dever de lealdade e ataca pelas costas traição monta previamente uma cilada ou tocaia para apanhar a vítima emboscada ou sorrateiramente dela se aproxima com ares de amigo para colocarse em vantagem dissimulação sendo que em todas essas situações em que o ofendido é colhido repentinamente sem condições de defesa efi caz justificase a exasperação da pena porque o agente que tinha tempo para refletir e desistir do intento optou por prosseguir10 5 EMPREGO DE VENENO EXPLOSIVO ETC O emprego de veneno fogo explosivo tortura ou outro meio insidioso ou cruel e o meio de que poderia resultar perigo comum também agravarão a pena Veneno 8 Hungria idem p 1 7 1 9 Hungria cit p 1 681 69 1 O Paganella Boschi Penas cit p 273 473 PAULO QJ E I ROZ é toda substância que introduzida no organismo é capaz de mediante ação química ou biológica lesar a saúde ou destruir a vida explosivo é qualquer corpo capaz de se transformar rapidamente em gás à temperatura elevada a exemplo dos derivados da nitroglicerina dinamite da nitrobenzina belite do nitrocresol cresolite da ni tronaftalina do nitrotolueno etc a tortura é o suplício inflição de tormentos meio insidioso é o meio dissimulado na sua influência maléfica meio cruel é todo aquele que causa um sofrimento físico inútil ou mais grave do que o necessário e suficiente para a consumação do crime meio de que possa resultar perigo comum é o que além de atingir a vítima escolhida pode criar uma situação de perigo extensivo a número indeterminado de pessoas11 6 EMBRIAGUEZ PREORDENADA Conforme vimos a pena será igualmente agravada quando o crime resultar de em briaguez preordenada actio libera in causa que ocorre quando o agente fazendo uso de droga lícita ou ilícita se coloca dolosamente nessa condição a fim de delinquir seja para encorajarse seja para simular uma excludente da culpabilidade seja por qualquer outro motivo tratase de uma espécie de embriaguez dolosa portanto As demais formas de embriaguez dolosa culposa ou acidental não têm rele vância no particular isto é para o fim de agravamento da pena 7 ASCENDENTE DESCENDENTE IRMÃO OU CÔNJUGE A pena será também exasperada quando se tratar de crime praticado contra ascen dente descendente irmão ou cônjuge A propósito Paganella Boschi afirma que os deveres de auxílio mútuo de fraternidade e de respeito próprio de pessoas que man têm laços de parentesco próximo justificam moral e juridicamente a mais intensa rea ção do direito penal quando são violados12 Mas isso não é de todo exato porque da relação de parentesco não decorre necessariamente o dever de manter relações frater nais pois não raro parentes próximos convivem e se relacionam entre si como autênti cos inimigos de modo que não há aí motivo algum para se auxiliarem mutuamente Na verdade a incidência ou não dessa agravante deve ser avaliada concretamente porque do contrário se estará conferindo caráter absoluto a uma presunção legal além de con fundir direito e moral até porque por vezes a única coisa em comum entre parentes é o vínculo de sangue Já Antônio José da Costa e Silva assinalava que o caráter absoluto da circuns tância agravante atribuída ao parentesco a certas relações de família ou dependên cia não se justifica porque vivem os parentes muita vez como inimigos Alguns pais tratam desamorosamente os filhos perdendo por culpa própria a amizade 1 1 Hungria Comentários cit p 1 661 67 12 Penas cit p 277 474 1 1 2 1 C I RCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCIE destes Há cônjuges que não habitam sob o mesmo teto e que se odeiam E assim por diante 13 Também a agravante não poderá incidir naquelas hipóteses em que o crime for praticado em represália a abusos sexuais ou semelhantes por parte de parente próximo até porque tais motivos podem eventualmente ensejar a invocação da legítima defesa inclusive Ney Moura Teles entende com razão que se é justa a agravação em face da maior censurabilidade do comportamento praticado contra pessoas íntimas estimadas não se pode aplicála se o crime é cometido contra cônjuge do qual o outro já se encontrava separado ainda que tão somente de fato porquanto entre eles já não existiam relações cuja agressão autorizava a majoração da reprimenda14 Mas ao contrário do que sus tenta este autor tal rol não pode ser ampliado para incluir outras pessoas pelas quais o autor do crime tenha especial estima ou relação de intimidade concubina etc sob pena de violação ao princípiogarantia da legalidade da pena15 Tampouco incidirá a agravante se o réu desconhecer o parentesco por algum motivo a evitar a responsabili dade penal presumida ou objetiva Naturalmente que sempre que o parentesco já fizer parte da descrição legal do tipo ou já o qualificar ou aumentar a pena a agravante não incidirá como v g lesão corporal no âmbito doméstico art 129 9º omissão de socorro CP art 135 biga mia art 235 abandono material CP art 244 abandono intelectual CP art 246 etc Não é preciso dizer que a prova do parentesco deverá ser feita mediante documento hábil como certidão de casamento ou nascimento conforme o caso 8 CONTRA CRIANÇA MAIOR DE SESSENTA ANOS ENFERMO E MULHER GRÁVIDA O sentido da maior agravação do crime praticado contra criança pessoa menor de doze anos conforme dispõe o ECA maior de sessenta anos enfermo ou mulher grávida é precisamente a inferioridade e menor capacidade de resistência destes em relação ao agente16 de modo que todos esses casos partem da mesma presunção a de que tais pessoas são mais vulneráveis e portanto não têm como esboçar uma reação minimamente proporcional 13 Código Penal dos Estados Unidos do Brasil Comentado cit p 329 14 Direito Penal Parte Geral São Paulo Atlas 2006 p 383 15 No sentido do texto Gilberto Ferreira se o casal está separado não incide a agravante uma vez que os deveres de respeito fidelidade e ajuda mútua se romperam com a dissolução da convivência comum Se vive amancebado a agravação não poderá ocorrer já que a lei fala em cônjuge termo que designa as pessoas civilmente casadas não sendo possível fazer interpretação analógica ou ex 1tensiva por ser in malam partem Entretanto a agravante poderá incidir com fundamento na alínea f se o delito foi cometido com prevalecimento de relações domésticas ou de coabitação Aplicação da pena cit p 240 16 Paganella Boschi Penas cit p 279 475 PAULO Q1J E I ROZ Mas por se tratar de uma presunção cumpre verificar se no caso concreto há de fato essa maior vulnerabilidade pois descaberá sua incidência se tal não existir Assim não poderá incidir quando a vítima apesar de se achar nessas hipóteses v g maior de sessenta anos em excelente estado físico por ser exímio conhecedor de artes marciais tiver inclusive em situação de igualdade ou superioridade física relativamente ao agente do crime Tampouco poderá incidir se o agente desconhecer esta condição da vítima v g mulher grávida cujos sinais de gravidez ainda não apareceram sob pena de incorrerse em responsabilidade penal objetiva Por últi mo não cabe a agravante se não houver relação alguma nexo causal entre o fato praticado e essa especial condição da vítima irrelevante que é para o caso como por exemplo o furto do automóvel pertencente a tais pessoas No entanto se se tra tar de crime de roubo praticado que é com violência ou grave ameaça à pessoa a agravante incidirá 9 ABUSO DE PODER OU VIOLAÇÃO INERENTE A CARGO OFÍCIO MINISTÉRIO OU PROFISSÃO Cargo é o posto criado por lei na estrutura da Administração Pública função um conjunto de atribuições pertinentes ao serviço público que pode ser exercida também por quem não ocupe cargo ministério o exercício de atividade religiosa profissão uma atividade especializada legalmente regulamentada17 O legislador parte do pressuposto de que em tais casos maior é a reprovabilida de moralsocial do crime cometido em virtude da confiança inerente ao cargo ofí cio ministério ou profissão que se exerce mesmo porque em geral as suas vítimas clientes pacientes etc se acham em situação mais vulnerável às vezes de desamparo em comparação com as vítimas comuns frequentemente sem poder esboçar mínima reação Assim por exemplo os crimes praticados por advogados contra seus clientes os abusos cometidos por profissionais de saúde médicos dentistas etc e autoridades religiosas padres pastores contra pacientes e crentes as fraudes levadas a cabo por funcionários públicos etc Naturalmente que a agravante em questão não incidirá sempre que se tratar da prática de delito em que o abuso de poder ou a violação do dever inerente ao cargo ministério profissão etc já integrar a própria figura típica ne bis in idem Assim não incide ordinariamente nos crimes de abuso de autoridade peculato corrupção passiva patrocínio infiel entre outros uma vez que a traição a um tal dever é inerente à tipificação penal da conduta 10 OFENDIDO SOB PROTEÇÃO DE AUTORIDADE A pena é também agravada quando a vítima do crime se achar sob a proteção da autoridade pessoa detida ou presa testemunha sob proteção etc em virtude de o 1 7 Guilherme de Souza Nucci Individualização da pena cit p 255257 476 I I 2 1 CRCUNSTÀNCIAS AGRAVANTES EM ESPECIE autor do crime colher a vítima de surpresa demonstrando inclusive ousadia e maior periculosidade a exemplo do arrebatamento de preso para execução Notese que autor do crime no caso é o particular e não a autoridade pública a quem se confiou a prote ção pois se o for o caso será de incidência da agravante de abuso de poder ou viola ção de dever inerente a cargo ou função 11 OCASIÃO DE INCÊNDIO NAUFRÁGIO INUNDAÇÃO OU QUAL QUER CALAMIDADE PÚBLICA OU DE DESGRAÇA PARTICULAR DO OFENDIDO Também nessas hipóteses em que a vítima se encontra em situação de maior vul nerabilidade o legislador determina que a pena seja agravada em razão de o autor do crime além de revelar especial insensibilidade valerse de desgraça alheia para cometer crime v g em vez de prestar socorro à vítima de acidente aproveita para lhe subtrair valores 12 ABUSO DE AUTORIDADE OU PREVALECIMENTO DE RELA ÇÕES DOMÉSTICAS DE COABITAÇÃO OU DE HOSPITALIDADE OU COM VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA FORMA DA LEI ES PECÍFICA Também nas relações privadas poder familiar tutela curatela organizações re ligiosas e civis relações de trabalho pode existir relação de autoridade caso em que havendo abuso isto é uso ilegítimo excessivo ou indevido por parte de quem a exerce a pena será agravada Também aqui o legislador considera que em razão do poder que exercem tais pessoas merecem uma mais grave censura até porque em geral suas víti mas estão em situação de maior vulnerabilidade O mesmo ocorrerá se o agente se valer de relações domésticas de coabitação ou de hospitalidade domésticas são aquelas existentes no meio familiar entre pais e fi lhos irmãos empregados domésticos e amigos que convivam em ambiente de famí lia18 coabitação significa a convivência em um mesmo espaço físico e pressupõe uma relaÇão mais restrita e próxima do que as relações domésticas sendo um estado de fato em que duas ou mais pessoas achamse reunidas para a vida em comum no mesmo lugar por qualquer tempo19 a agravante que resulta de relações de hospitalidade que é incompatível com o ingresso clandestino ou violento em casa alheia 20 incidirá sempre que o hóspede ou hospedante valendose dessa condição praticar delito quebrando a confiança que aí houver Finalmente a pena será também agravada quando se tratar de violência contra a mulher na forma da lei específica conforme redação dada pela Lei nº 1 13402006 1 8 Ney Moura Teles Direito Penal Parte Geral São Paulo Atlas 2006 p 384 19 Fernando Galvão Direito Penal p 728 20 Fernando Galvão idem 477 PAULO QJEIROZ 13 AGRAVANTES EM CONCURSO DE PESSOAS Apesar de o Código se referir à agravante no caso de concurso de pessoas nem todas as situações aí previstas o são realmente já que algumas hipóteses constituem autoria mediata e não concurso de agentes propriamente 131 Agente que promove organiza a cooperação ou dirige a atividade dos demais agentes O legislador entendeu inicialmente que o sujeito que promove dirige a atividade de outros agentes ou organiza a cooperação no crime vale dizer a pessoa que exerce função de liderança o assim chamado autor intelectual merece maior censura deven do sofrer pena agravada afinal sua ação é essencial para o êxito da empreitada crimi nosa cabendolhe em geral definir como e quando se dará a ação delituosa Para que tenha lugar a agravante é necessário que haja de fato comando do agente relativamente à ação dos demais criminosos porque do contrário isto é se os corréus decidirem praticar o crime sem que haja prevalência da decisão de uns sobre os outros a agra vante em questão não incidirá Enfim a agravante só é cabível quando ficar claramente caracterizada a situação de liderança promoção direção ou organização para um agir cnmmoso 132 Agente que coage ou induz outrem à execução material do crime A pena também será agravante em relação ao agente que para a execução mate rial do crime tiver usado de coação física ou moral resistível ou irresistível Natu ralmente que o coagido no caso de coação física ou moral irresistível será absolvi do no primeiro caso por ausência de ação fato atípico no segundo por ausência de culpabilidade Se resistível a coação física ou moral coautoria o coagido será pu nido mas fará jus à atenuante a que já nos referimos No entanto o autor da coação além de responder pelo crime cometido por meio do coagido sofrerá a incidência da agravante de que estamos tratando Se se entender eventualmente que a coação cons titui por si só crime autônomo v g constrangimento ilegal a agravante não poderá ser aplicada ne bis in idem motivo pelo qual a sua incidência pressupõe a não con figuração de crime autônomo É certo ainda que não poderá ser aplicada se a coação embora exercida sobre o coagido não tiver nenhuma influência sobre sua decisão de tomar parte no crime 21 Também responderá pela agravante o agente que induzir isto é instigar persua dir incitar outrem a praticar o delito desde que o induzido não queira ou não tenha pensado em praticálo ou ainda não esteja decididodeterminado a tanto uma vez que se já tiver claramente formada a sua intenção de levar adiante uma empreitada criminosa a agravante não incidirá É que não existe aí indução jurídicopenalmente relevante ao menos para esse efeito específico 2 J Fernando Galvão Direito Penal Parte Geral Rio Impetus 2004 p 743 478 1 1 2 1 C I RCUNSTÂNCIAS AGRAVA NTES EM ESPÉCIE 133 Agente que instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal Também aqui o Código quer apenar mais gravemente pessoas que exerçam algum tipo de influência importante sobre o autor coautor ou partícipe do crime instigandoo de algum modo isto é estimulandoo motivandoo a tanto A expressão autoridade aí empregada deve ser entendida em sentido amplo para alcançar toda e qualquer pessoa que tenha de fato algum tipo de poder sobre a outra a exemplo dos pais em relação aos filhos tutores em relação aos tutelados professores em relação aos alunos etc A agra vante também incidirá quando o instigador se valer para cometer o delito de pessoa não punível em razão de sua condição ou qualidade pessoal menores alienados men tais e incapazes de um modo geral 134 Paga ou promessa de recompensa Por fim a pena será agravada sempre que o crime for motivado pelo pagamento ou promessa de recompensa ainda que não cumprida Para que tenha lugar a agravante não é preciso que a vantagem prometida seja necessariamente patrimonial podendo consistir em outros meios como promessa de emprego favores sexuais etc No entan to o assunto é controvertido havendo quem entenda como Fragoso que a promessa de recompensa deve ter caráter econômico obrigatoriamente22 Discutese se a agravante é também aplicável ao mandante Parecenos que de fato só o executor deva responder por ela uma vez que a lei quis atingir diretamente o sujeito que não tendo motivo algum para cometer o delito nele intervém por dinhei ro aceitandoo ou até se dedicando profissionalmente ou não à atividade crimino sa Aliás quanto ao mandante é irrelevante do ponto de vista da censurabilidade da conduta se ele comete o crime pessoalmente ou se vale de terceiro para tanto já que a culpabilidade é a mesma em ambos os casos Além disso em geral o mandante atua com motivação diversa do executor podendo inclusive agir por motivo de relevante valor social ou moral Como assinala Fragoso a qualificação do crime mercenário se justifica pela ausência de razões pessoais por parte do executor e pelo motivo torpe que o leva ao delito algo que não ocorre em princípio com o mandante que busca a impu nidade e a segurança servindose de um terceiro23 Desnecessário dizer que mandatos gratuitos não ensejam a incidência da agravante Naturalmente que a agravante não incidirá quando a vantagem econômica ou de outra natureza for inerente ao tipo legal de crime ne bis in idem Assim por exemplo não tem aplicação nos crimes patrimoniais apropriação ou desvio de dinheiro público peculato corrupção tráfico de droga etc 22 Lições de direito penal Parte Especial V 1 1 1 ª ed Rio Forense 1995 p 40 23 Lições de direito penal Parte Especial V 1 1 1 ª ed Rio Forense 1995 p 40 479 PAULO QJEIROZ Não estamos de acordo com isso Primeiro porque a Constituição e o estatuto nada previram nesse sentido específico motivo pelo qual compete ao legislador or dinário decidir a esse respeito Aliás temos que por se tratar de típica matéria infra constitucional o legislador poderá inclusive modificar no futuro e eventualmente abolir as disposições jurídicopenais que favorecem o idoso autor de delito Segundo porque a distinção entre idoso autor e vítima de crime não é arbitrária visto que cabe à lei em princípio protegêlos de modo especial contra as infrações de que são vítimas independentemente da idade do agente idoso ou não e não das que vier a cometer Terceiro porque os argumentos de política criminal invocados v g ser o idoso mais vulnerável em comparação com o agente não idoso em favor de um tratamento legal mais favorável justificam a discriminação positiva mas não necessariamente no senti do proposto Por fim sempre que o Estatuto quis modificar o Código Penal fez expres samente como ocorreu em muitos casos Por conseguinte tanto a redução da maioridade civil para dezoito anos novo Có digo Civil como a definição de idoso como pessoa maior de sessenta anos não têm qualquer repercussão no particular Conforme se verá mais adiante a idade do agente é também importante para efeito de prescrição quando os prazos são reduzidos de metade CP art 115 3 DESCONHECIMENTO DA LEI A previsão do desconhecimento da lei como atenuante genérica já não faz sentido algum pois ou bem se trata de algo juridicamente irrelevante uma vez que a ignoràn cia da lei é em princípio inescusável CP art 21 ou bem é algo sério e a ser tomado em conta razão pela qual será o caso de excluir ou atenuar a culpabilidade por erro ele proibição inevitável ou evitável Na verdade a norma em causa é como diz Juarez Cirino dos Santos um remanescente esclerosado do sistema causal do Código Penal de 1940 ainda fundado na dicotomia entre erro de fatoerro de direito e regido pelo princípio ignorantia legis neminem excusat se o erro de direito é irrelevante então o desconhecimento é atenuante2 devendo a atenuante ser abolida portanto 4 MOTIVO DE RELEVANTE VALOR SOCIAL OU MORAL A motivação do crime implicará a atenuação da pena sempre que for importante digno de consideração e que importe assim em menor grau de reprovabilidade Motivo ele relevante valor moral diz respeito a interesse particular do agente motivo de rele vante valor social referese a interesse público coletivo É que embora possa parecer uma contradição crimes há que podem ser cometidos por um motivo não reprovável ou até nobre como registrar como próprio filho alheio para protegêlo fato consti tutivo de crime CP art 242 Apesar de criminoso o fato a pena deve ser atenuada em razão do motivo de relevante valor moral ou social Eventualmente o motivo de 2 Teoria da pena Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 p 1 33 482 PAULO Ql E I ROZ em tese com a negativa de autoria como por exemplo a reparação do dano causado pelo delito Tampouco importa em confissão o silêncio do acusado CPP art 198 Embora espontânea não cabe exigir como pretendem alguns autores que a con fissão resulte de um reclamo de consciência moral em que a confissão da prática delitiva seja desprovida de outra causa que não a satisfação íntima de lealdade consigo mesmo e em relação aos outros3pois se assim fosse estarseia a confundir direito e moral além de condicionar a aplicação da atenuante a uma prova dificílima senão impossível Tampouco é necessário que a autoria do crime seja desconhecida bastanto que comparecendo perante a autoridade competente o agente confesse a prática do delito É irrelevante apurar enfim se a confissão facilitou ou não a apuração do crime Como a lei fala de espontaneidade a confissão há de ser feita sem nenhum tipo de constrangimento legal ou ilegal motivo pelo qual raramente é compatível com a prisão em flagrante por exemplo Mas ainda que se pretenda equiparar como quer parte da doutrina a confissão espontânea à confissão pura e simples sua importância deve ser avaliada caso a caso Confessar a autoria do crime não significa porém admitir a prática de um fato típico ilícito e culpável mas sua materialidade e autoria Justamente por isso se o agente embora confessando a prática do fato alega excludentes de criminalidade v g legítima defesa fará jus à atenuante É igualmente razoável reconhecerse a confissão ainda que o réu se retrate poste riormente Finalmente a confissão espontânea não se confunde com a colaboração premiada prevista na Lei nº 128502013 art 4º visto que ali o colaborador vai além da simples confissão e delata seus comparsas etc implicando o perdão judicial extinção da puni bilidade ou a redução da pena Conforme dispõe o Código de Processo Penal arts 197 a 200 o valor da con fissão será aferido pelos critérios adotados para os outros elementos de prova e para a sua apreciação o juiz deverá confrontála com as demais provas do processo veri ficando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância Será divisível e retratável sem prejuízo do livre convencimento do juiz fundado no exame das provas em conjunto 8 INFLUÊNCIA DE MULTIDÃO EM TUMULTO SE NÃO O PROVO COU Por entender que a influência de multidão em tumulto implica menor grau de cen surabilidade da conduta o Código a eleva à condição de circunstância atenuante É que sob a influência de multidão em tumulto o agente é em geral mais propenso a fazer 3 Fernando Galvão Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro 2004 p 763 citando Pedro Vergara 484 1 13 1 C I RCUNSTÂNCIAS ATENUANTES EM ESPÉCIE coisas que não faria não fosse aquele estado em que se viu envolvido como participar de dano a bens públicos briga entre grupos rivais tomar parte em linchamento de autor de crime etc havendo menor grau de culpabilidade Naturalmente que o próprio sujeito que organizou ou provocou o tumulto não fará jus à atenuante Fixada a pena definitiva ao juiz caberá especificar o regime prisional a que ficará sujeito o condenado fundamentadamente 485 PAULO QJEIROZ No regime fechado o condenado será submetido no início do cumprimento da pena a exame criminológico de classificação para individualização da execução fi cando sujeito a trabalho durante o período diurno internamente de acordo com suas aptidões e a isolamento durante o repouso noturno O trabalho externo é admissível em serviços ou obras públicas Já no regime semiaberto o condenado ficará sujeito a trabalho interno durante o período diurno sendo admitido o trabalho externo bem como frequência a cursos supletivos profissionalizantes de instrução de segundo grau ou superior Finalmente no regime aberto baseado na autodisciplina e senso de responsabilidade o condenado deverá fora do estabelecimento e sem vigilân cia trabalhar frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada permanecen do recolhido durante o período noturno e nos dias de folga Excepcionalmente o cumprimento do regime aberto LEP art 1 17 poderá darse em residência particu lar prisão domiciliar quando se tratar de a condenado maior de setenta anos b condenado acometido de doença grave c condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental d condenada gestante Como se vê a prisão domiciliar constitui um modo especial de cumprimento do regime aberto Apesar disso alguns autores propõem que mesmo quando se tratar de condenação a regime fechado ou semiaber to seria razoável que o condenado também fizesse jus ao benefício se se encontrasse nessas mesmas condições1 A progressão para regime mais brando de execução consequência natural da de terminação da pena e admitida como forma de possibilitar a reinserção gradual do preso à comunidade exige o cumprimento de ao menos um sexto da pena no regime anterior e comportamento prisional satisfatório LEP art 112 Para tanto o juiz que decidirá fundamentadamente ouvirá previamente o Ministério Público e o defensor Tratandose de nova progressão o cálculo deverá ser feito com base na pena que resta va por cumprir e não com base no total da pena aplicada Tratandose de condenação por crime hediondo e assemelhados o condenado po derá progredir depois de cumprir 25 da pena se primário e 35 se reincidente con forme redação dada pela Lei nº 1 14642007 Esse limite só é aplicável aos crimes hediondos cometidos posteriormente à en trada em vigor da nova lei princípio da irretroatividade porque apesar de ser mais favorável se comparada à Lei nº 807290 por admitir a progressão a declaração de in constitucionalidade pelo STF atinge todos aqueles que praticaram delito antes da nova lei É que embora proferida em caráter incidental semelhante decisão deve produzir efeitos para além do caso concreto erga omnes conforme vem decidindo o próprio Supremo Tribunal Federal Assim os crimes hediondos praticados anteriormente à nova lei além de admitirem a progressão regerseão pelo Código Penal e Lei de Exe cução Penal por serem mais favoráveis do que a nova lei quanto ao limite mínimo de pena para progressão Nesse sentido Alberto Silva Franco Crimes hediondos cit 488 PAULO QJEIROZ semiaberto de execução exceto como é óbvio quando sobrevier nova condenação a regime fechado de execução Fora dessa hipótese deverá o preso regredir para o regi me semiaberto não podendo darse a regressão direta para o fechado Finalmente convém referir o enunciado da Súmula 493 do STJ é inadmissível a fixação de pena substitutiva art 44 do CP como condição especial ao regime aberto 11 Regime disciplinar diferenciado Além dos regimes fechado semiaberto e aberto há agora o regime disciplinar diferenciado LEP art 52 fechadíssimo espécie de prisão no interior da prisão apli cável àquele que se achar preso provisória ou definitivamente sempre que a cometer crime doloso que ocasione subversão da ordem ou disciplina internas b apresentar alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade e houver fundada suspeita de envolvimento ou participação a qualquer título em orga nizações criminosas quadrilha ou bando O RDD tem as seguintes características a duração máxima de trezentos e sessenta dias sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie até o limite de um sexto da pena aplicada b reco lhimento em cela individual c visitas semanais de duas pessoas sem contar crianças com duração de duas horas d o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol Para decretálo o juiz competente que deverá previamente ouvir o Ministério Público e a defesa considerará a natureza os motivos as circunstâncias e as consequências do fato bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão Conforme assinalamos tratase de pena cruel e degradante que atenta contra a dignidade da pessoa humana logo inconstitucional além de não ter finalidade edu cativa alguma que assim frustra os fins a que se propõe a Lei de Execução Penal art 1 º por vedar em caráter quase absoluto todo e qualquer contato com o mundo exterior e interior inclusive bem como impedir o exercício de direitos básicos previstos na LEP como o direito ao lazer praticar atividades desportivas etc Não bastasse isso a circunstância de o preso apresentar alto risco para a ordem e segurança do estabe lecimento penal ou da sociedade constitui a razão mesma da privação da liberdade em presídio de segurança máxima ou média normalmente então submetêlo a novas restrições no seu interior constitui manifesto bis in idem próprio de um direito penal do inimigo castigandoo duplamente pelo crime já objeto da prisão cautelar ou defini tiva Ademais se determinado preso for realmente capaz de representar alto risco para a segurança do estabelecimento prisional não será com um tal castigo que se resolverá o problema que a rigor a ele não pode ser imputado mas à própria administração que deverá encontrar meios de resolver eventuais conflitos legalmente e sem abusos E mais como falar de alto risco para a sociedade se o réu já se encontra encarcerado O mesmo deve ser dito da fundada suspeita de envolvimento ou participação em organizações criminosas ou quadrilha ou bando No mais a lei ofende os princípios da legalidade e presunção de inocência entre outros5 5 No sentido do texto Juarez Cirino dos Santos Teorias da pena p 7677 490 PAULO QiJEROZ Em suma atualmente é perfeitamente possível a progressão nos crimes hedion dos e mais o regime inicial de cumprimento poderá ser o semiaberto ou aberto 3 EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA SENTENÇA Como regra a execução penal só deve ter lugar após transitar em julgado a sen tença condenatória sob pena de violação ao princípio da presunção legal de inocência CF art 5 LVII isto é só depois de exauridos os recursos legalmente admitidos é lí cito fazer expedir mandado de prisão contra o réu para cumprimento da pena imposta vindo ele a gozar dos direitos inerentes à execução como a progressão de regime etc sempre que tiver atendido os requisitos legais para tanto A doutrina e a jurisprudência admitem porém a execução provisória em favor do condenado preso provisoriamente prisão preventiva etc sempre que houver trânsito em julgado para a acusação mas pender ainda de julgamento recurso da defesa8 ad missão absolutamente legítima uma vez que em nada ofende o princípio da presunção de inocência instituído que é histórica e constitucionalmente em favor do indivíduo Assim se o réu condenado à pena de seis anos de prisão já se achar preso há três anos não seria justo que tendo a sentença passado em julgado para o Ministério Pú blico que se conformara com a decisão fosse o réu prejudicado pela demora na apre ciação de recurso que ele mesmo interpôs e lhe fosse negado por exemplo o direito ao livramento condicional embora já tivesse cumprido mais de metade da pena quando lhe bastava cumprir mais de um terço Ademais havendo exclusivamente recurso da defesa não há a possibilidade legal de reforma da decisão em seu desfavor reformatio in pejus Não seria razoável enfim que o réu condenado provisoriamente não pudesse fazer jus a benefícios que são reconhecidos ao condenado definitivo Em suma o preso provisório pode em princípio postular todos os direitos legiti mamente postuláveis pelo réu já definitivamente condenado A jurisprudência vinha também admitido a execução provisória em prejuízo do réu que embora condenado aguardava o julgamento do processo em liberdade e havia interposto recurso especial ou extraordinário por não terem efeito suspensivo Súmula 267 do STJ9 Assim o réu que sempre esteve em liberdade e ainda aguardasse o jul gamento de seu recurso especial STJ ou extraordinário STF poderia ter contra si expedido mandado de prisão Mas uma tal possibilidade execução provisória contra o réu que aguardava o julgamento em liberdade ofendia claramente o princípio da presunção legal de 8 Nesse sentido a Súmula 7 1 6 do STF Admitese a progressão de regime de cumprimento de pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória Também assim a Súmula 7 1 7 Não impede a progressão de regime de exe cução de pena fixada na sentença não transitada em julgado o fato de o réu se encontrar em prisão especial 9 A Súmula 267 do STJ dispunha A interposição de recurso sem efeito suspensivo contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão 492 l 14 I REGIMES PRISIONAIS inocência razão pela qual a expedição de mandado de prisão deveria aguardar o trân sito em julgado da sentença condenatória salvo se a prisão fosse justificável cautelar mente Exatamente por isso o Supremo Tribunal Federal contrariando a Súmula 267 do STJ decidiu que ofende o princípio da nãoculpabilidade a execução da pena priva tiva de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art 312 do CPP HC 84078MG Rel Min Eros Grau 522009 Atual mente a matéria está pacificada no sentido de não admitir a execução provisória da sentença contra o réu que aguarda o julgamento definitivo da ação penal em liberdade E essa proibição de execução provisória contra o réu é também aplicável às medi das de segurança sanção penal que é Nesse sentido HC 226014SP Rel Min Laurita Vaz julgado em 19042012 do STJ Apesar disso ainda não se admite a execução provisória da sentença em favor do preso provisório se houver recurso da acusação sobretudo se visar a agravarlhe a pena ou similar Temos porém que é perfeitamente cabível a execução provisória ainda quando isso ocorra sempre que o réu estiver preso provisoriamente e o recurso não objetivar o aumento de pena quando v g insurgirse apenas contra a parte da sentença que haja absolvido em caso de concurso de agentes um dos corréus ou quando só objetive a absolvição ou atenuação da pena do condenado Dito de outro modo até no caso de a sentença condenatória pender de recurso da acusação será legítima a execução provi sória desde que o recurso que se haja interposto não almeje a majoração da sanção uma vez que a sua interposição não é incompatível com a execução provisóriaw To davia isso só poderá ser tolerado quando estiver preso o condenado pois do contrário deverá permanecer livre enquanto não passar em julgado a sentença afinal numa pers pectiva garantista a execução provisória somente é admissível em seu favor nunca em seu prejuízo Mas mais importante mesmo na presença de recurso da acusação que objetive majorar a pena temos ser possível excepcionalmente a execução provisória quando se verificar que o eventual provimento do recurso não tiver qualquer repercussão sobre o direito que se pretende ver reconhecido direito à progressão etc Assim por exem plo se o Ministério Público recorrer para obter a aplicação de uma causa de aumento de pena de um terço sobre uma condenação de seis anos caso em que a aumentaria para oito anos tal circunstância em nada afetará o direito à obtenção de livramento condicional se o réu primário e sem antecedentes criminais já houver cumprido mais de metade da pena quando lhe bastava o cumprimento de mais de um terço CP art 83 I Sim porque ainda que provido o recurso da acusação e aumentada a pena para oito anos o sentenciado já teria atingido mais de 13 dessa nova pena fazendo jus 1 O No sentido do texto Sídio Rosa de Mesquita Júnior Execução criminal São Paulo Atlas 2005 493 PAULO QJ E I ROZ portanto ao livramento condicional Numa palavra somente o recurso que possa al terar a situação do sentenciado prejudicando o reconhecimento do direito que postula especificamente pode ter o condão de inviabilizar a execução provisória não o impe dindo aquele que em nada modifique tal situação Em suma pensamos que a execução provisória deverá ser admitida sempre em favor do réu preso jamais contra ele quando houver trânsito em julgado da sentença para a acusação mas pender de julgamento recurso da defesa ou havendo recurso da acusação a este visar à melhora da situação do réu b o recurso da acusação objetivar a majoração da pena mas o seu possível resultado não tiver qualquer repercussão so bre o direito especificamente postulado pelo condenado na execução Contrariamente em hipótese alguma a execução provisória deverá ser admitida em prejuízo do acusado v g se aguardava o julgamento solto Semelhante tratamento preserva a um tempo os princípios da presunção legal de inocência e isonomia conferindo aos condenados provisórios os benefícios já assegurados àqueles definitivamente sentenciados Admitida a execução provisória da sentença LEP art 2º parágrafo único sem pre em favor do condenado não em seu desfavor sob pena de violação ao princípio da presunção legal de inocência fará ele jus a todos os direitos previstos na Lei de Execu ção Penal desde que atenda aos requisitos legais específicos Naturalmente que se no curso da execução sobrevier acórdão que provendo o recurso absolva o acusado será ele imediatamente posto em liberdade 494 PAULO ÜJEIROZ Além da prisão provisória deve ser também considerado para efeito de detração o tempo de medida cautelar diversa da prisão a que o réu ficou submetido durante a ação penal CPP art 319 Finalmente há quem entenda que a detração deve ser levada em conta inclusive para efeito de prescrição abatendose do total da pena cominada ou aplicada na sen tença o período de prisão em que esteve preso2 Mas esse é um tema controvertido tanto na doutrina quanto na jurisprudência Atualmente e conforme vimos a detração deve ser também considerada para fins de fixação do regime inicial de cumprimento de pena E será considerada já pelo pró prio juiz ou tribunal que proferir a condenação CPP art 387 2º 2 CONEXÃO PROCESSUAL Em passado recente muito se discutiu sobre a necessidade de conexão entre os processos para ter lugar a detração Mas semelhante discussão ficou grandemente su perada com a Lei de Execução Penal que admitiu a detração no mesmo processo ou em processos distintos art 11 1 de modo que ela é cabível independentemente da existência de nexo processual3 Sobrevindo condenação nos vários processos procedese à unificação das penas impostas e à detração cabível Na hipótese de absolvição ou decretação da extinção da punibilidade em processo no qual esteve o réu preso provisoriamente e condenação noutro questionase se seria possível a detração Mirabete informava que numa posição liberal temse admitido tanto na doutrina como na jurisprudência a detração por prisão ocorrida em outro processo de que o crime pelo qual o sentenciado cumpre pena tenha sido praticado anteriormente à pri são pois seria uma hipótese de fungibilidade da prisão Considera no entanto que evidentemente não se pode admitir a contagem do tempo de recolhimento quando o crime é praticado posteriormente a ele Admitirse outro entendimento conduziria a estabelecer uma espécie de conta corrente com o criminoso4 Parecenos porém que se a detração é cabível quanto aos processos que resul taram numa condenação o mesmo deve ocorrer com maior razão naqueles em que o réu foi absolvido ou teve extinta a punibilidade e não obstante isso ficou provisória e ilegalmente preso mesmo porque a Constituição assegura que o Estado indenizará o condenado por erro judiciário assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença art 5º LXXV5 E certamente a detração é uma das formas mais adequadas e prontas de se lhe atenuar ao menos em parte o ilegal constrangimento 2 Nesse sentido Fernando Galvão Direito Penal p 524 3 No mesmo sentido Delmanto Código Penal comentado cit Contra Damásio de Jesus Direito penal cit 4 Manual cit p 264265 5 Recentemente decidiu o STF de modo contrário HC 93979RS Rei Min Carmen Lúcia 2242008 496 1 1 5 1 DETRAÇÃO Não vemos pois porque repudiar a priori a alegada conta corrente com o con denado que tendo ficado ilegalmente preso venha a postular a detração relativamente àquele inquérito ou processo que resultou em arquivamento absolvição ou similar 497 PAULO QJEROZ imposto mas livremente exercido seguese que nem mesmo ao preso poderá sêlo Em consequência também não podem subsistir as exigências legais que constam dos arts 83 III e 36 1 º primeira parte ambos do CP bem como aquela do art 1 14 1 da LEP1 Mas há outros tantos exemplos de violação à legalidade constitucional a perda dos dias remidos por falta grave ofende a intangibilidade da coisa julgada CF art 5º XXXVI2 a admissão da execução provisória da sentença em desfavor do condenado o princípio da presunção de inocência3 o pagamento de salário inferior ao mínimo a previsão do art 7º IV da CF o dever de indenizar a vítima na execução a vedação de prisões por dívida CF art LXVII a ausência de defesa técnica por advogado na execução a norma do art 133 da CF Aliás tantas são as violações ao princípio da legalidade que se pode dizer com Andrei Schmidt que no particular foi adotada uma espécie de legalidade atenuada onde a elasticidade e a indeterminação das faltas disciplinares por exemplo fazem com que o sistema de definição da desviação fundamentese numa epistemologia an tigarantista de sancionamento quia peccatum e não quia prohibitum4 Porque de fato há uma infinidade de disposições na lei de tal modo vagas que acabam por dissolver a pretensão de certeza inerente ao princípio da legalidade por cujo meio se pretende proteger o mais débil o condenado contra reações arbitrárias por parte do mais forte o Estado Assim por exemplo constitui falta grave o incitar ou participar de movi mento para subverter a ordem ou a disciplina LEP art 50 1 razão pela qual já se reconheceu como casos de falta grave a impedir o gozo de certos direitos greve de fome em protesto contra a morosidade da justiça recusarse a cortar o cabelo apresen tar sinais de embriaguez etc5 Como exemplo de violação ao princípio da proporcionalidade podese citar o art 49 parágrafo único da LEP que equipara a tentativa de falta à falta consumada Afi nal se a prática de um crime sujeita o infrator como regra à pena do crime consumado A11 36 1 º do CP O condenado deverá fora do estabelecimento e sem vigilância trabalhar frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga Art 83 O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 dois anos desde que III comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto Art 1 14 I da LEP Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que l estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazêlo imediatamente 2 Nesse sentido Luiz Antônio Bogo Chies Prisão Tempo Trabalho e Remição Reflexões Motivadas pela Inconstitucionalidade do Artigo 127 da LEP Crítica à execução penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 3 Nesse sentido Alexandre Wunderlich Muito além do bem e do mal Considerações sobre a Execução Penal Antecipada Crítica à execução penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 4 Andrei Schmidt A crise da legalidade na execução penal Crítica à execução penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 p 66 5 Andrei Schmidt idem p 6465 500 1 16 1 D I REITOS E DEVERES DO CONDENADO com redução de 13 a 23 CP art 14 II algo similar deve ocorrer relativamente às faltas disciplinares Também é frequente ocorrer de o condenado que praticou falta grave sofrer a in cidência de múltiplas punições disciplinares indiretas como por exemplo após de cretada a regressão de regime serlhe negado o direito a livramento condicional e sucessivamente pela mesma falta o direito a indulto comutação de pena perda dos dias remidos etc em flagrante bis in idem O mesmo ocorre quando se nega ao con denado o direito ao livramento condicional em virtude de possuir maus antecedentes os quais já foram tomados em conta na sentença penal condenatória razão pela qual considerálos novamente na fase de execução constitui dupla valoração da mesma cir cunstância Nesse sentido Súmula 444 do STJ Exemplo de violação ao princípio da pessoalidade reside no dever do preso de se opor a movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina situação em que a lei está a lhe imputar um insólito dever de garante como se autoridade fosse e pudesse ele agir sem riscos pessoais hipótese em que o condena do acaba por responder por ato de exclusiva responsabilidade de terceiro Ademais e conforme assinala Andrei Schmidt ao estabelecer um dever de conduta oposta está o legislador a bem da verdade proibindo a própria inércia do preso em relação a des vios verificados no estabelecimento prisional ao mesmo tempo em que o simples fato de não estar ele participando do movimento de subversão à ordem e à disciplina já constitui um seu mérito6 Finalmente todos os deveres previstos no art 39 da LEP que não impliquem lesão concreta a bem jurídico alheio v g higiene pessoal são de todo ilegítimos uma vez que dizem respeito exclusivamente à pessoa do próprio condenado 6 Direitos Deveres e Disciplina na Execução Penal ln Crítica à Execução Penal Rio Lumen Juris 2002 p 287 501 1 171 REMIÇÃO A remição é a contagem como tempo de pena efetivamente cumprido do período de trabalho ou estudo por parte do condenado A remição é aplicável ao preso provisó rio ou definitivo que se encontre como regra no regime fechado ou semiaberto Atual mente é possível em caráter excepcional a remição somente por estudo em regime aberto e em liberdade condicional A remição é por conseguinte uma forma de abreviar a pena e facilitar a reinser ção social do condenado constituindo por isso um direito seu1 Mas não há a rigor abatimento do total da pena porque o tempo remido é em verdade contado corno de efe9va execução da pena privativa da liberdade2 A contagem do tempo de remição será feita à razão de 1 um dia de pena para cada 03 três dias de trabalho externo ou interno Já a contagem do tempo de remição por estudo será feita à razão de 1 um dia de pena para cada 12 doze horas de fre quência escolar atividade de ensino fundamental médio profissionalizante superior ou de requalificação profissional No caso de conclusão do ensino fundamental médio ou superior durante o cumprimento da pena o tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 13 O preso que eventualmente ficar impossibilitado de prosseguir na atividade em razão de acidente continuará a fazer jus à remição Também o preso provisório que trabalhe ou estude na forma da lei LEP art 126 7 terá direito ao benefício Enfim é também passível de remição o tempo de traba lho ou estudo ocorrido durante o período em que o réu esteve provisoriamente preso prisão preventiva etc O tempo remido que deve assim ser considerado como tempo de pena privativa da liberdade cumprida pelo condenado e não simplesmente abatido do total da sanção será computado para todos os efeitos legais a exemplo de progressão de regime indul to etc Em caso de falta grave LEP arts 50 a 52 o juiz poderá revogar até 13 um ter ço do tempo remido recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar LEP art 127 Parecenos porém que semelhante castigo importa em bis in idem visto que já ensejará outras sanções disciplinares regressão etc E mais se a remição constitui um direito do sentenciado uma vez declarado na sentença o tempo remido se incorpora ao seu patrimônio jurídico passando a constituir direito adquirido e intangí vel CF art 5º XXXVl3 1 Gamil Fõppel Remição versus fuga ln Boletim do IBCCrim ano 9 n 102 2 Mirabete Execução penal São Paulo Atlas 2000 p 426 3 Gamil Fõppel Remição Boletim cit Em sentido contrário Mirabete Execução penal cit p 437 503 PAULO QiJEIROZ Advirtase porém que não é esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal cuja Súmula vinculante nº 9 anterior à recente reforma dispõe O disposto no artigo 127 da Lei nº 72101984 Lei de Execução Penal foi recebido pela ordem constitucio nal vigente e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58 O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que esteja em liberdade condicional poderão remir pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional parte do tempo de execução da pena ou do período de prova Especificamente quanto ao trabalho prestado em regime aberto de execução o Supremo Tribunal Federal tem decidido que tal não implica direito à remição exceto para o caso mencionado acima remição por estudo Nesse sentido HC nº 98261RS rel Min Cezar Peluso de 232010 Autores há que defendem que a omissão do Estado em disponibilizar trabalho nal guns presídios gera um direito à remição remição ficta Mas a tese favorável à remi ção ficta não procede Primeiro porque a omissão do Estado em disponibilizar traba lho apesar de ilegal não conduz necessariamente ao reconhecimento de um direito à remição que pressupõe trabalho efetivo Enfim a omissão cria em princípio apenas um dever legalestatal de ação e não um direito automático à remição Além disso a ser admitida a remição ficta violarseia o princípio da isonomia visto que equiparar seiam presos que estão em situação de desigualdade os que realmente trabalham e os que nada fazem ainda que a omissão estatal concorra para tanto Finalmente é evidente que a Lei nº 124332011 por ser mais favorável ao réu em comparação com a legislação anterior deve retroagir novatio legis in mellius4 4 Nesse exato sentido decidiu o STF HC nº 1 0985 1RS relator Ministro Gil mar Mendes 1 81020 1 1 504 PAULO QEIROZ 2 ALCANCE Discutese se a contagem do prazo dos benefícios legais durante a execução da pena deve ter por base a soma das penas aplicadas ou a pena unificada em trinta anos De acordo com a Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento determinado pelo art 75 do Código Penal não é considerada para a concessão de outros benefícios como o livra mento condicional ou regime mais favorável de execução de modo que a contagem dos prazos deve ter como parâmetro não a pena unificada em trinta anos mas a soma das penas aplicadas3 Assim o réu que para fazer jus ao livramento condicional tivesse de cumprir mais de 23 da pena de 60 sessenta anos haveria de cumprir no mínimo 40 quaren ta anos tempo superior à pena unificada Não estamos de acordo com isso Em primeiro lugar porque se considerarmos que para efeito de livramento condi cional por exemplo seja tomado em conta a soma das penas aplicadas submeterseá o condenado a cumprir indiretamente pena superior a trinta anos inclusive por ser o aludido benefício é um modo legal de execução da pena Enfim sujeitarseá o réu a cumprir pela via oblíqua o que é lhe vedado pela via direta em afronta ao princípio da legalidade Em segundo lugar porque ao contrário do que afirma Rogério Greco4a interpre tação aqui proposta não ofende o princípio da isonomia pois ao fixarse o limite má ximo de trinta anos o legislador equiparou todos aqueles se encontrem nessa situação pouco importando se condenados a trinta sessenta ou noventa anos razão pela qual terão de cumprir indistintamente tão só o limite máximo de trinta anos Assim se houvesse violação ao princípio da isonomia a própria unificação estaria irremediavelmente comprometida visto igualar situações desiguais 3 No mesmo sentido Damásio de Jesus Cezar Bitencourt Rogério Greco entre outros Em sentido con trário entre outros Mirabete Delmanto e Alberto Silva Franco et ai que escrevem textualmente Não há assim cogitar de dois parâmetros autônomos um para estabelecer o máximo de tempo de duração das penas privativas de liberdade pena unificada e outro para o cálculo do prazo dos benefícios legais total de penas não unificadas Se o intento do legislador fosse o de exclusivamente fixar o limite máxi mo de cumprimento das penas privativas da liberdade constituiria um verdadeiro contrassenso unificar penas p1ivativas da liberdade para um só fim e ao mesmo tempo manter uma dualidade de penas para os demais fins Unificar como observa Julio Fabbrini Mirabete quer dizer transformar várias penas em uma só Código Penal e sua interpretação jurisprudencial cit v 1 t 1 4 Curso cit p 689 Assinala este autor textualmente A nosso ver entendemos que a razão se en contra com a nossa Corte Maior se adotássemos a unificação como regra geral para todos os cálculos além de ser o teto máximo de cumprimento da pena estaríamos ofendendo o princípio da isonomia que determina simplificadamente que os iguais sejam tratados igualmente bem como que os desiguais tenham tratamento desigual Não podemos comparar aquele condenado a duzentos e cin quenta anos de reclusão com aquele que praticou um número bem menor de crimes e fora condenado a trinta anos 506 j 1 8 j LIMITE MÁX I MO DA PENA DE PRISÃO Em terceiro lugar porque como a lei não faz qualquer ressalva no particular a Sú mula 715 ao desprezar o limite de trinta anos faz analogia in malam partem violando o princípio da legalidade Finalmente porque o entendimento prestigiado pela súmula pode inviabilizar em muitos casos a individualização na execução da pena uma vez que nenhuma utilidade terá por exemplo o trabalho para efeito de remição nem a excelência do comportamento para efeito de progressão para condenados a penas muito altas O mesmo deve ser dito do livramento condicional pois se exigirmos que o cálculo seja feito com base na pena aplicada a sua concessão ficará impossibilitada em muitos casos E tão ilógico é o entendimento sumular que o condenado a 60 anos que tivesse de cumprir para obter livramento condicional no mínimo 23 da pena haveria de cum prir tempo superior à pena unificada isto é mais de quarenta anos Em conclusão o mais razoável é que o legislador previsse regra específica para so lucionar o problema Mas à falta de um tal norma a unificação há de servir também de parâmetro para o cálculo dos benefícios legais diversamente do que dispõe a referida súmula Releva notar por fim que com a decisão do STF declarando a inconstituciona lidade da não progressão em crimes hediondos é possível que a Súmula 715 venha a ser questionada e eventualmente revista já que em muitos casos sua adoção acaba por impedir a progressão o livramento condicional etc 3 SUPERVENIÊNCIA DE NOVA CONDENAÇÃO Iniciado o cumprimento da pena unificada em trinta anos poderão ocorrer duas hipóteses a superveniência de nova condenação por crime anterior à unificação b superveniência de nova condenação por crime posterior à unificação Pois bem somente na segunda hipótese de cometimento de novo crime durante a execução isto é por fato posterior ao início do cumprimento da pena na qual o sentenciado revela a juízo do legislador maior periculosidade e por isso deve merecer tratamento mais severo haverá nova unificação de pena desprezandose o período de tempo já cumprido conforme dispõe o art 75 2º do CP Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena farseá nova unificação despre zandose para esse fim o período de pena já cumprido Fazer uma nova unificação significa somar a nova pena àquela que restava por cumprir e se o total exceder ao limite de trinta anos o réu voltará a cumprir esse li mite reunificado Não é preciso dizer que a desconsideração nessa nova unificação da pena já efetivamente cumprida visa a evitar bis in idem isto é que o réu cumpra uma segunda vez a mesma pena Assim por exemplo se o réu condenado a sessenta anos de prisão cuja pena fora unificada em trinta anos vem a sofrer nova condenação a mais cinco anos depois de 507 PAULO WEIROZ cumprir vinte anos deverá cumprir quinze anos pena que resulta da soma da nova pena cinco anos com a pena que restava por cumprir dez anos Finalmente a superveniência de nova condenação por crime anterior à unificação não tem qualquer repercussão no particular mantendose sem mais a unificação rea lizada mesmo porque já ao tempo da unificação em trinta anos tal condenação seria absolutamente irrelevante 508 PAU LO QJEIROZ Atendidos os requisitos legais para a aplicação da pena restritiva o sentenciado fará jus à substituição devendo o juiz decidir a respeito sempre que o condenar por crime culposo ou impuser pena privativa da liberdade não superior a quatro anos por crime doloso quer para conceder quer para negar a substituição Para tanto é irrele vante prévia manifestação de interesse ou consentimento do réu Tratandose de condenação à pena de prisão igual ou inferior a um ano a substi tuição pode ser feita por uma pena de multa ou por uma pena restritiva de direito se superior a um ano a pena privativa da liberdade poderá ser substituída por duas penas restritivas de direito ou por uma restritiva e uma de multa cumulativamente conforme seja mais adequado A pena restritiva de direito deverá ter a mesma duração da pena de prisão subs tituída ressalvado o disposto no art 46 4º CP art 55 que prevê a possibilidade de prestação de serviço à comunidade por prazo inferior à pena de prisão imposta É evidente que o prazo da pena restritiva de direito jamais poderá exceder àquele da pena de prisão substituída Convém notar que há exemplos na legislação especial de vedação total ou parcial de penas restritivas de direito Nesse sentido Lei nº 1 1 3402006 violência doméstica e familiar e Lei nº 1 1 3432006 Lei de Drogas Finalmente as penas restritivas de direito notadamente as pecuniárias e a perda de bens e valores não são passíveis de estenderem aos herdeiros do condenado sob pena de violação ao princípio da pessoalidade da pena que não permite que a sanção penal possa atingir pessoa diversa do autor coautor ou partícipes do crime CF art XLV Mas o tema é controvertido 2 REQUISITOS PARA A SUBSTITUIÇÃO A substituição da pena privativa da liberdade por pena restritiva de direito requer o concurso simultâneo dos seguintes requisitos CP art 44 1 que a pena aplicada não seja superior a quatro anos 2 que não se trate de crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa 3 que o réu não seja reincidente em crime doloso 4 que circunstâncias judiciais sejam favoráveis isto é que a culpabilidade os antecedentes a conduta social a personalidade do condenado os motivos e circunstâncias indiquem a substituição como suficiente Em se tratando de concurso formal material ou continuado de crimes a substitui ção terá em conta o total das penas aplicadas 510 a Limite de quatro anos Inicialmente o Código exige que a pena aplicada e não a pena cominada não exceda a quatro anos Tratandose de crime culposo cabe rá a substituição ainda quando a pena ultrapasse esse limite situação um tanto rara embora perfeitamente possível pois em geral tais delitos são punidos com pena inferior a quatro anos Se houver concurso de crimes formal material j 19j lENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS crime continuado considerarseá para tanto o total das penas aplicadas e não cada pena isoladamente imposta No caso de concurso material de crimes se houver aplicação de mais de uma pena restritiva de direito o condenado cumprirá simultaneamente as penas que forem com patíveis entre si e sucessivamente as demais CP art 69 2º b Crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa A substituição não será admitida quando se tratar de condenação por crime praticado com vio lência ou grave ameaça à pessoa a exemplo do roubo da extorsão mediante sequestro etc Quanto à violência ficta ou presumida temos que ela é também impeditiva da substituição visto que a lei a equipara à violência real a exemplo do que ocorre com o estupro de vulnerável Tratandose de crime praticado com violência contra a coisa apenas v g furto com rompimento de obstáculo a substituição é perfeitamente possível2 Desnecessário dizer que crimes culposos apesar de eventualmente violentos não estão sujeitos à ve dação quer porque a violência não é intencional quer porque a lei admitiu a substitui ção ainda quando a pena exceda ao limite de quatro anos Há quem entenda que todos aqueles crimes praticados por meio não violento es tariam excluídos da vedação legal a exemplo do homicídio cometido com emprego de Vf neno roubo com uso de narcótico etc pois não seriam delitos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa3 Mas tal não procede visto implicar uma simpli ficação grosseira do conceito de violência contra a pessoa a qual pode realizarse das mais variadas formas Existe também quem considere que a vedação não compreenderia as infrações penais em que a grave ameaça ou a violência não fossem meio para cometimento do ilícito mas constitutivas do próprio crime v g lesão corporal e ameaça Luiz Flávio Gomes observa ainda que a rigidez do critério em questão pode dar margem à injustiça pois crimes como o constrangimento ilegal e a ameaça que em virtude da pena cominada permitem as soluções consensuais da Lei dos Juizados Es peciais Criminais Lei nº 909995 não admitiriam a substituição Por isso propõe interpretar o dispositivo sistematicamente para admitir a substituição em tais casos apesar da violência ou grave ameaça à pessoa4 o mesmo devendo ocorrer quanto à lesão corporal leve CP art 129 caput Quanto aos crimes hediondos e afins não há em princípio impedimento legal à substituição desde que se trate de delito praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa 2 De modo diverso Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit p 168 3 iNesse sentido Mirabete cit 4 Penas e medidas alternativas à prisão São Paulo Revista dos Tribunais 2000 p 1 15 Em sentido contrário Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit p 1 69 5 1 1 PAULO QEIROZ A não ser assim violarseia o princípio da legalidade fazendose analogia in ma lam partem5 No particular é irrelevante portanto o argumento de que de acordo com a Lei nº 807290 a pena será cumprida em regime integralmente fechado6 mesmo porque na hipótese discutese questão distinta e prévia à execução da sentença a sa ber a individualização da pena e a possibilidade de substituição por pena restritiva de direito Exatamente por isso é que o Supremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de o réu condenado por tráfico ilícito de droga fazer jus à substituição por pena restritiva de direito por se tratar de crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa7 Quanto à expressa vedação legal da substituição prevista na nova Lei de Drogas Lei nº 1 1 3432006 art 33 4 o STF reconheceulhe a inconstitucionalidade HC 97256 relator Ministro Carlos Aires de Brito em 01092010 razão pela qual a subs tituição é atualmente perfeitamente possível desde que o condenado atenda aos requi sitos legais Justamente por isso o Senado editou a Resolução nº 5 de 15022012 sus pendendo a expressão vedada a conversão em penas restritivas de direitos prevista no art 33 4 e Reincidência em crime doloso O Código em princípio não admite a substitui ção quando o condenado for reincidente em crime doloso Referindose à rein cidência em crime doloso admitese a aplicação ao reincidente sempre que um dos crimes objeto da condenação anterior ou posterior ou ambos os crimes for culposo Também não obsta a substituição a circunstância de o réu reincidir em contravenção Portanto o só fato de ser reincidente não impede a aplicação de pena restritiva só o impedindo a reincidência em crime doloso Mas mesmo essa vedação não tem caráter absoluto pois o 3º do art 44 abre uma exceção ao dispor que se o condenado for reincidente o juiz poderá aplicar a substituição desde que em face de condenação anterior a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime A substituição é pois possível mesmo havendo reincidência em crime doloso desde que socialmente recomendável Na verdade o legislador atento ao fato de que a 5 No sentido do texto entre outros Luiz Flávio Gomes Penas e medidas alternativas cit Damásio de Jesus Penas alternativas São Paulo Saraiva 1 999 Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit Guilherme de Souza Nucci Código Penal comentado cit 6 Nesse sentido de entender inadmissível a substituição Mirabete Manual cit 2001 p 278 7 HC 849288Minas Gerais Rei Min Cezar Peluso l ª Tmma v de 2792005 que tem a seguinte ementa SENTENÇA PENAL Condenação Tráfico de entorpecente Crime hediondo Pena pri vativa de liberdade Substituição por restritiva de direitos Admissibilidade Previsão legal de cum primento em regime integralmente fechado Irrelevância Distinção entre aplicação e cumprimento de pena HC deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau Interpretação dos arts 1 2 e 44 do CP e das Leis nos 636876 807290 e 971498 Precedentes A previsão legal de regime integralmente fechado em caso de crime hediondo para cumprimento de pena privativa da liberdade não impede seja esta substituída por restritiva de direitos 5 1 2 PAULO QhJ E I ROZ Presumese que semelhante vedação pretendeu realmente inviabilizar orientação do Supremo Tribunal Federal que se consolidava no sentido de admitir na vigência da lei revogada a possibilidade de substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito Que o legislador ordinário podia estabelecer novos parâmetros de pena bem como vedar a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito parece fora de dú vida Com efeito se podia o mais criminalizardescriminalizar penalizardespenalizar podia o menos proibir a admissão de pena não privativa da liberdade para os crimes mais gravemente punidos em especial o tráfico por se tratar de crime assemelhado a hediondo se bem que os argumentos utilizados pelo STF para declarar a inconstituciona lidade da não progressão em crimes hediondos parecem valer também aqui Mas isso não impede o juiz senhor que é da individualização da pena de dar à nova lei interpretação conforme a Constituição tomando como parâmetro a legislação infraconstitucional inclusive especialmente o Código Penal Com efeito não parece razoável que sentenciados por crimes de tráfico e similar não tenham direito à substituição enquanto outros condenados por delitos tão ou mais graves v g peculato concussão corrupção passiva crime contra o sistema financei ro possam fazer jus ao benefício Notese aliás que o condenado por este e outros crimes de dano e não de simples perigo como é o tráfico a exemplo do homicídio culposo tem em tese direito à substituição apesar de se tratar de crime contra a vida e pois mais grave desde que a pena não seja superior a quatro anos diversamente do condenado por tráfico à mesma pena ou à pena inferior a quatro anos que não faria jus ao benefício Ora é evidente que semelhante tratamento ofende o princípio da isono mia sobretudo porque o critério de aferição da maior gravidade do crime desvalor de ação e resultado e portanto da condenação é essencialmente formal objetivamente a pena cominada ou imposta subjetivamente a existência ou não de antecedentes Logo não faz sentido por exemplo que duas pessoas igualmente primárias e sem antecedentes que cometam crime sem violência ou grave ameaça à pessoa sofram a mesma pena digamos dois anos de prisão mas tenham tratamento sensivelmente de sigual uma fará jus à substituição e a outra não só por ser tráfico de droga o seu crime e pois existir vedação legal no particular Notese que o crime do beneficiado pela substituição poderá ser eventualmente hediondo inclusive v g falsificação de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais a demonstrar ainda mais contundente mente a violação ao sistema de valores e princípios constitucionais Portanto não parece conforme os princípios de proporcionalidade individualiza ção da pena e isonomia que o juiz ao condenar o réu por crime de tráfico à pena não superior a quatro anos não possa substituíla em virtude da só vedação legal mesmo porque a missão do juiz já não é mais como no velho paradigma positivista sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado mas sujeição à lei enquanto válida isto é coerente com a Constituição9 9 Ferrajoli Derechos y garantías cit p 26 5 1 4 PAULO Q1JEIROZ limitação de final de semana etc Mas todas essas hipóteses nada têm de especiais são apenas as formas possíveis de descumprimento das condições impostas na sentença condenatória Nem todas as penas são passíveis de conversão Com efeito as penas de prestação pecuniária e a perda de bens e valores em face de sua natureza pecuniária a exemplo da pena de multa não podem ser convertidas em pena de prisão pela falta de paga mento porque a conversão implicaria violação ao princípio constitucional que veda a prisão por dívida CF art 5º LXVII12 Sempre que ocorrer a conversão o juiz obrigatoriamente deduzirá o tempo cum prido da pena restritiva de direitos art 44 4º de modo que na hipótese de ter cumprido quatro meses de uma pena de dez meses de prisão o sentenciado precisará cumprir o restante apenas seis meses de prisão Desnecessário dizer que qualquer período de pena eventualmente cumprido de verá ser deduzido no caso de conversão mas na melhor das hipóteses o réu terá de cumprir no mínimo trinta dias de prisão ainda que faltassem apenas alguns dias para o integral cumprimento da pena restritiva É que a lei prevê expressamente que no cál culo da pena a ser deduzida deverá ser respeitado o saldo mínimo de 30 trinta dias de detenção ou reclusão Parece evidente porém que essa ressalva que visaria a de sestimular o descumprimento injustificado nos últimos dias da substituição 13 constitui manifesto bis in idem já que o sentenciado terá de cumprir pena além da que restava efetivamente 4 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITO EM ESPÉCIE 41 Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas somente aplicável às condenações superiores a seis meses de prisão14 consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado a serem prestadas em entidades assistenciais hospitais esco las orfanatos e outros estabelecimentos congêneres em programas comunitários ou estatais CP art 46 lº e 2º os quais devem ser credenciados ou convencionados LEP art 149 1 incumbindolhes encaminhar ao juiz da execução relatório mensal das atividades do condenado e comunicar eventuais faltas LEP art 150 Não é pois possível a prestação de serviço numa entidade privada que não cum pra nenhum programa comunitário porque nesse caso haveria apropriação indevida de 12 No mesmo sentido Luiz Flávio Gomes e Cezar Bitencourt 1 3 Cezar Bitencourt cit p 507 14 Não se admite assim em absoluto que penas inferiores a este limite possam ser substituídas por prestação de serviços Quis o legislador assim segundo observa Luiz Flávio Gomes destinar essa sanção para penas mais elevadas certamente por considerar que sanção até esse limite só justifica em princípio a imposição da multa substitutiva Penas e medidas alternativas cit p 1 50 516 PAULO ÜlEIROZ é aplicável independentemente da sanção cabível no âmbito civil ou administrativo motivo pelo qual a atuação disciplinar dos órgãos administrativos competentes é per feitamente compatível com a intervenção penal não havendo cogitar de bis in idem no particular dada a diversidade de fundamento da punição Cinco são as penas de interdição temporária de direitos CP art 47 a proibição do exercício de cargo função ou atividade pública bem como de mandato eletivo b proibição do exercício de profissão atividade ou ofício que dependam de habilitação especial de licença ou autorização do poder público c suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo d proibição de frequentar determinados lugares b Primeira interdição A interdição do exercício de cargo função ou atividade pública cujos conceitos constam do art 327 do Código importa na incapacida de e não a perda do exercício de tais funções durante determinado período de tempo findo o qual o apenado as retomará normalmente exceto se tiver havi do afastamento definitivo da função no âmbito administrativo pela autoridade competente Tratase de uma pena específica haja vista que só é aplicável aos crimes come tidos no exercício de cargo função ou atividade sempre que houver violação dos de veres que lhe são inerentes art 56 ou seja a sua aplicação exige nexo entre o crime cometido e o exercício da atividade que é interditada temporariamente é pois indis pensável que o delito praticado esteja diretamente relacionado com o mau uso do direi to interditado16 Fora dessa hipótese é incabível Mas isso não quer dizer que a infração deva necessariamente constituir crime con tra a Administração Pública corrupção peculato prevaricação bastando que seu co metimento tenha relação direta ou indireta com o exercício funcional Quanto à interdição temporária do exercício de mandato eletivo Delmanto enten de que o dispositivo é inconstitucional pois os parlamentares só podem ser impedidos de exercer mandato eletivo na forma da Constituição17 Convém também lembrar que a condenação criminal transitada em julgado acarreta a suspensão dos direitos políticos enquanto durarem seus efeitos CF art 15 III Notificada da interdição judicial decretada a autoridade administrativa compe tente deverá vinte e quatro horas depois baixar ato administrativo a partir do qual a execução terá início LEP art 154 1 º e Segunda interdição A proibição temporária do exercício de profissão ati vidade ou ofício que dependam de habilitação especial de licença ou auto rização do poder público atinge toda e qualquer atividade profissional que exija para seu exercício especial habilitação do Estado médico advogado 16 Jescheck apud Cezar Bitencourt Manual cit p 474 1 7 Código Penal comentado cit p 96 De modo similar Luiz Flávio Gomes para quem o juiz não pode proibir deputados federais e senadores de exercício do mandato Penas e medidas alternativas cit p 1 56 518 j 19 PENAS RESTRITIVAS DE DIRE ITOS dentista ou autorização despachante etc Também aqui tratandose de pena específica é indispensável a existência de nexo entre a atividade que se proíbe e o crime que se comete exigindose violação dos deveres inerentes à função art 56 Assim pode ser aplicada para o autor dos crimes de violação de segredo médicos advogados de fraude processual e patrocínio infiel advogados de omissão de socor ro e aborto médicos enfermeiros de desabamento culposo engenheiros de maus tratos professores de falsidade de atestado médicos ou de qualquer crime ainda que não próprio desde que haja violação dos deveres inerentes a profissão ou atividade cujo exercício dependa de habilitação ou autorização18 1Se eventualmente o condenado exercer múltiplas profissões atividades ou ofícios a pena cingirseá àquela que tiver relação concreta com a infração penal cometida isto é àquelas em cujo exercício se deu o abuso ld Terceira interdição A suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo que não deve ser confundida com a inabilitação para dirigir veículo do art 92 III do CP é uma pena somente aplicável aos crimes culposos de trânsito CP art 57 restrição aliás injustificável já que é possível o cometi mento de crime de trânsito com dolo eventual por exemplo a recomendar com maior razão a aplicação dessa pena sobretudo quando não couber a incidência do art 92 III No entanto tal pena dificilmente será aplicada diante do art 292 do Código de Trânsito Lei nº 950397 que prevê para os delitos de trânsito A suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pode ser imposta como penalidade principal isolada ou cumulativamente com outras penalidades Luiz Flávio Gomes entende inclusive que a parte do art 47 II que fala pe suspensão da habilitação resultou afetada pelo Código de Trânsito estando derrbgada19 1 e Quarta interdição O juiz poderá também proibir o condenado de frequentar determinados lugares pena que tem como finalidade precípua evitar a rein cidência Naturalmente que haverá de existir adequação entre o crime que se cometeu e a proibição de frequência que se impõe pois do contrário a pena será inteiramente arbitrária princípio da proporcionalidade Além disso o juiz de verá fixar precisamente quais os lugares que não poderão ser frequentados pelo sentenciado Cezar Bitencourt que a critica duramente entende que essa proibição pressupõe que o lugar determinado exerceu ou possa exercer alguma influência criminógena so bre o infrator motivo pelo qual não será qualquer lugar em que a infração foi cometida 1 8 Mirabete Manual cit p 273 19 Penas e medidas alternativas cit p 1 58 519 PAULO QlEJ ROZ que poderá ser objeto dessa sanção proibitiva sendo fundamental que esse local não tenha sido meramente acidental na ocorrência do delito20 f Quinta interdição Finalmente o juiz poderá proibir o condenado de inscrever se em concurso avaliação ou exame públicos Também aqui é necessário que haja relação entre a infração penal praticada e a interdição que é imposta a exemplo de fraudar concurso público porque do contrário faltarlheá perti nênciaadequação 43 Limitação de final de semana A limitação de final de semana uma espécie de prisão de fim de semana uma vez que o condenado fica privado da liberdade durante a sua execução21 consiste na obrigação de permanecer aos sábados e domingos preferencialmente por cinco horas diárias num total de 10 horas de pena em casa de albergado ou em outro estabeleci mento adequado CP art 48 LEP art 1 52 sendo que durante a permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuídas atividades educativas Na prática tal pena temse revelado um grande fracasso porque poucos foram os Es tados que se dignaram a criar as tais casas de albergado impossibilitando grandemente a sua execução Ao juiz da execução compete determinar a intimação do condenado informan doo do local dias e horário em que deverá cumprir a pena que terá início a partir da data do primeiro comparecimento LEP art 151 devendo o estabelecimento designa do encaminhar relatório mensal sobre o cumprimento da pena art 1 53 44 Perda de bens e valores O Código prevê ainda a perda de bens e valores pertencentes ao condenado perda que se dará não em favor da vítima mas em favor do Fundo Penitenciário Nacional dispondo que o valor terá como teto máximo o montante do prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou terceiro em consequência da prática do crime CP art 45 3 Mas uma tal pena ou é inconstitucional por importar em confisco não autorizado constitucionalmente ou é desnecessária22 Inconstitucional porque o confisco somente é tolerável tal como já o prevê o art 91 do Código relativamente aos instrumentos do crime instrumentas sceleris e pro dutos do crime produtas sceleris ou do proveito obtido com ele de sorte que o perdi mento de bens referido no art 5º XLV e XLVI da Constituição deve ser assim enten dido restritivamente para só incidir sobre bens ilicitamente adquiridos 20 Manual cit p 479 2 1 Luiz Flávio Gomes Penas e medidas alternativas cit p 1 59 22 No mesmo sentido Régis Prado Curso cit p 485 Contrariamente Luiz Flávio Gomes Penas e medidas alternativas cit 520 f 19 PENAS RESTRITIVAS DE 01 REI TOS Além disso caso se considere como faz Luiz Flávio Gomes que a perda constitui uma antecipação da reparação dos danos força é convir que essa civilização do direito penal é indevida uma vez que semelhante reparação deverá ser feita em favor das víti mas do crime não em favor do Fundo Penitenciário Nacional E mais se constitui uma indenização já prevista civilmente ainda que contemplando destinatários diversos ha verá bis in idem em prejuízo do condenado Cumpre também dizer que os eventuais prejuízos causados à vítima serão objeto de reparação no juízo cível que se valerá da sentença penal condenatória como título executivo para tanto Finalmente se se entender como aqui entendemos que o perdimento só com preende os bens e valores ilicitamente obtidos com a infração penal concluirseá pela sua fbsoluta desnecessidade pois tal já constitui um efeito da condenação CP art 91 45 Prestação pecuniária A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima a seus de pendentes ou a entidade pública ou privada com destinação social de importância fi xada pelo juiz não inferior a um saláriomínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos CP art 45 l º havendo quem questione a constitucionalidade da fixação não em diasmulta mas em saláriomínimo 23 Tratase como se vê de mais uma típica sanção civil transportada acríticamente para o direito penal e que em realidade tem caráter de multa reparatória24 tanto que o valor pago deverá ser deduzido do montante de eventual condenação em ação de repa ração civil se coincidentes os beneficiários Por isso é que cuidandose de autêntica multa reparatória e apesar de fazer parte do rol das penas restritivas de direito não se pode tolerar que diante do seu descum primento tenha lugar a conversão em pena de prisão sob pena de violação ao princí pio constitucional proibitivo de prisão por dívida CF art 5 Preferencialmente a prestação pecuniária deverá ser feita em favor da vítima do crime ou de seus dependentes Mas excepcionalmente seja porque não houve dano a reparar seja porque não houve vítima direta ou imediata o montante da condenação será destinado a entidade pública ou privada com destinação social Como assinala Ce zar Bitencourt a excepcionalidade dessa possível destinação secundária prendese ao caráter indenizatório que a referida sanção traz em sua finalidade25 Convém notar que a pena de prestação pecuniária está expressamente vedada para os crimes previstos na Lei nº 1 1 3402006 violência doméstica 23 Cezar Bitencourt cit 24 Nesse sentido Cezar Bitencourt Manual cit 25 Manual cit p 460 521 PAULO Q1JEI ROZ 451 Substituição por prestação de outra natureza O Código prevê ainda que se houver concordância do beneficiário a pena de pres tação pecuniária poderá ser substituída por prestação de outra natureza art 45 2º pena que tem sido duramente criticada por violar o princípio da certeza e determinação das penas26 legalidade Semelhante substituição está condicionada à prévia aceitação e concordância do beneficiário isto é a vítima seus dependentes ou instituição beneficiada sendo desca bida sempre que houver recusa 46 Multa substitutiva Ainda que não haja previsão legal expressa isolada alternativa ou cumulativa mente o juiz também poderá substituir a pena de prisão por pena de multa sempre que a condenação for igual ou inferior a lum ano se superior a 1 um ano a pena privativa da liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direito e multa ou por duas restritivas de direito CP art 44 2º Aqui a pena de multa seguirá os princípios e regras que lhe são próprios dos quais se tratará a seguir O art 60 2º está revogado 26 Assim Cezar Bitencourt Manual cit 522 1 20 1 PENA DE MULTA Sumário 1 Significado e crítica 2 Individualização da pena limites máximo e mínimo 3 Pagamento e execução da multa 1 SIGNIFICADO E CRÍTICA A terceira modalidade de pena adotada pelo Código é a multa que consiste no pagamento ao Fundo Penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias multa CP art 49 Tratase em realidade de um tipo de pena que parece ser tão criticável quanto a própria prisão que na prática tem se revelado grandemente inócua haja vista que a maior parte dos condenados é formada por miseráveis que ordinariamente não dis põem de recursos para pagála De mais a mais a pena de multa é em geral fixada em valores tão irrisórios que a sanção não cumpre qualquer finalidade preventiva Não bastasse isso a Lei nº 105222002 art 201 ao prever o arquivamento das exe cuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R 1000000 atual mente o valor é R 2000000 veio demonstrar ainda mais claramente quão inúteis são as penas de multa decorrentes de sentença penal condenatória pois dificilmente excederão a esse teto razão pela qual não poderão ser objeto de execução forçada Não é necessário dizer que embora a lei em causa que é federal se refira à execução fiscal da Fazenda Nacional tem ela de ser aplicada a todos os Estados da Federação e Dis trito Federal em respeito ao princípio federativo à competência da União para legislar sobre matéria penal e também ao princípio da isonomia É bem verdade que a Lei nº 105222002 excepciona a multa penal mas o fato é que soa no mínimo estranho que créditos civis de valores tão mais vultosos ordina riamente não sejam passíveis de execução forçada enquanto multas penais de valores normalmente irrisórios possam sêlo Por isso Ferrajoli propõe a abolição pura e simples de toda sorte de penas pecu niárias por ser impessoal podendo ser paga por qualquer pessoa e por ser desigual incidindo de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio sendo fonte de in toleráveis discriminações2 Mas a abolição deve ocorrer principalmente porque a pena 1 Dispõe o art 20 textualmente Serão arquivados sem baixa na distribuição mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados de valor consoli dado igual ou inferior a R 1 000000 dez mil reais Redação dada pela Lei nº 1 1 033 de 2004 2 Derecho y razón cit p 4 1 6 523 PAULO QJ E I ROZ pecuniária é incompatível com um modelo de direito penal mínimo3 e regido pelos princípios de proporcionalidade e subsidiariedade pois a justiça penal com o caráter inevitavelmente desonroso de suas intervenções não pode ser incomodada e sobretudo não pode incomodar os cidadãos por fatos de mínima importância como são os crimes punidos com multa unicamente4 Parece ter razão Ferrajoli portanto quando conclui que ou a pena pecuniária é considerada suficiente e nesse caso a infração deverá ser descriminalizada para consti tuir ilícito administrativo ou é insuficiente devendo ser substituída por pena mais se vera ou quando cominada alternativa ou cumuladamente ser simplesmente abolida5 2 INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO Como pena que é a multa deve ser também objeto de individualização judicial de acordo com as circunstâncias judiciais legais e causas de aumento e diminuição de pena Além disso o juiz inicialmente fixará a quantidade de diasmulta a seguir esta belecerá o valor de cada diamulta6 O limite mínimo da pena de multa é de dez diasmulta sendo o máximo em prin cípio de trezentos e sessenta diasmulta valor que será atualizado quando da execução pelos índices de correção monetária art 49 2º Mas esse quantum máximo poderá ser aumentado até o triplo se o juiz considerar que é ineficaz em virtude da situação econômica do réu embora aplicada no máximo art 60 lº Fixada a pena pecuniária em diasmulta a seguir o juiz determinará o valor de cada diamulta Porém esse valor não poderá ser inferior a um trigésimo do maior sa lário mínimo mensal vigente à época do fato nem superior a cinco vezes esse salário art 49 1 º Para a aplicação da pena de multa que deverá atender como dissemos aos cri térios legais de individualização o juiz tomará em consideração principalmente a si tuação econômica do réu art 60 A aplicação realizarseá assim em duas fases na primeira o juiz fixará com base nas circunstâncias dos arts 59 e 68 a quantidade de diasmulta na segunda estabelecerá com base principalmente mas não exclusiva mente pois também importa na ofensividade da conduta na situação econômica do réu Convém notar que a legislação especial não raro prevê parâmetros diversos para a fixação da pena de multa Assim por exemplo a Lei nº 113432006 Lei de Droga 3 Como assinala Ferrajoli se quisermos ser coerentes com um modelo de direito penal mínimo que proíba unicamente infrações graves nenhuma pena pecuniária pode ser considerada suficiente para sancionálas de modo adequado mesmo porque ao sancionar condutas irrelevantes jurídicopenal mente tal pena só contribui para a inflação penal Derecho y razón cit p 4 1 7 4 Ferrajoli Derecho penal cit p 4 1 7 5 Derecho penal cit p 4 1 7 Em sentido similar André Copetti Direito penal cit 6 No sentido do texto Rogério Greco Direito Penal cit 524 1201 PENA DE MULTA comina multa de 500 quinhentos a 1500 mil e quinhentos diasmulta para o crime de tráfico art 33 podendo ser aumentada até o décuplo quando houver concurso de pessoas e a situação econômica do acusado justificálo Também é certo que há leis que a vedam expressamente v g Lei nº 1 13402006 Discutese a possibilidade de aplicação cumulativa de pena de multa uma como pena substitutiva de pena privativa da liberdade e outra como pena autônoma A Sú mula 171 do STJ prevê que cominadas cumulativamente em lei especial penas pri vativas de liberdade e pecuniária é defesa a substituição da prisão por multa 3 PAGAMENTO E EXECUÇÃO DA MULTA A multa deverá ser paga dentro de dez dias depois de transitada em julgado a sen tença podendo o pagamento ser parcelado a requerimento do condenado art 50 Se não houver pagamento da multa não poderá como no passado ser convertida em pena privativa da liberdade mesmo porque isso importaria na prisão por dívida CF art 5 LXVII Nesse caso a multa será convertida em dívida de valor aplicando selhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública atualmente Lei nº 683080 inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição Por isso a execução da pena de multa convertida em dívida de valor com petirá à Fazenda Pública 525 PAU LO QlJEIROZ Em suma não é possível aplicarse medida de segurança ao inimputável sempre que incidirem excludentes de criminalidade em seu favor Assim todos os pressupostos jurídicopenais necessários para a imposição de uma pena hão de ser também exigidos para as medidas de segurança com exceção ape nas da imputabilidade pois do contrário tratarseá o inimputável injusta e desigual mente com manifesta violação aos princípios penais os quais devem incidir aqui com mais razão em virtude do maior grau de vulnerabilidade em que se encontram a lei penal como a lei do mais débil relativamente aos demais criminosos É infundada portanto a afirmação corrente na doutrina de que a pena pressupõe culpabilidade e que a medida de segurança requer perigosidade Nesse sentido não cabe dizer mais que a diferença fundamental entre pena e medida de segurança re side na circunstância de ser pressuposto irrenunciável da aplicação de qualquer pena a estrita observância do princípio da culpabilidade princípio que não exerce papel de nenhuma espécie no âmbito das medidas de segurança3 Com efeito se todos os pressupostos de punibilidade hão de ser exigidos para a aplicação de medida de segurança nenhuma constrangimento poderá ser imposto ao inimputável quando incidir em seu favor causa excludente de culpabilidade Logo não sendo o agente culpável embora inimputável nenhum medida de segurança pode rá ser imposta Apesar disso a posição que ora defendemos está longe de ser majoritária4 pois mesmo um autor como Juarez Cirino dos Santos de posições sempre críticas afirma que se o inimputável em razão de doença mental ou perturbação da saúde mental é incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinarse de acordo com esse en tendimento tampouco poderá ter conhecimento da proibição ou de poder determinar se pelo conhecimento da proibição razão pela qual não poderia logicamente invocar erro de proibição Não poderia alegar outras excludentes de culpabilidade porque a inexigibilidade de conduta diversa pressuporia a exigibilidade de conduta conforme o direito o que não é possível em se tratando de inimputável5 Não estamos de acordo com isso evidentemente Em primeiro lugar porque como demonstra Quintem Olivares6 uma rígida separação entre inimputáveis e imputáveis 3 Figueiredo Dias Questões fundamentais cit p 1 55 4 Exceção a isso é Saio de Carvalho Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal brasileiro São Paulo Saraiva 2013 5 Direito Penal cit p 643 6 Locos y Culpables Pamplona Aranzadi Editorial 1 999 Como assinala Quintero de acordo com um conceito atual de enfermidade mental não é possível afirmar que uma de suas características seja a impossibilidade de poder distinguir entre o bem e o mal entre o permitido e o proibido motivo pelo qual um indivíduo clinicamente enfermo mental pode ter uma capacidade intelectual suficiente para atingir a compreensão que os juristas consideram necessária para o conhecimento da ilicitude cit p 1 03104 O referido autor propõe um sistema unitário de apuração da responsabilidade penal unidade que significará tanto um processo uno com todas as garantias penais e processuais inerentes 528 1 2 1 1 MEDIDAS DE S EGURANÇA constitui uma ficção desacreditada pela psiquiatria mais recente e pela própria realida de segundo porque alienação mental e inimputabilidade não são equivalentes haven do diversos graus de inimputabilidade conforme a respectiva causa terceiro porque a loucura e pois a inimputabilidade são socialmente construídas variando no tempo e no espaço os comportamentos assim etiquetados tanto que os laudos psiquiátricos não raro se contradizem razão pela qual se poderia dizer à maneira de Nietzsçhe que a rigor não existem fenômenos psiquiátricos mas apenas uma interpretação psiquiátri ca dos fenômenos7 quarto porque ainda que assim não fosse o inimputável poderia alegar excludentes de culpabilidade sempre que se achasse numa situação em que o imputável pudesse fazêlo por força do princípio da isonomia inclusive quinto porque tal entendimento implicaria tratar o inimputável não como sujeito de direito como é conium aliás mas como objeto da intervenção jurídicopenal Imaginese que A e B ambos residentes na zona rural dos confins do Brasil estando a pescar ou a caçar como é comum naquela região sejam presos por porte ilegal de arma e crime ambien tal A plenamente imputável é absolvido invocando erro de proibição inevitável mas B ibimputável apesar de se encontrar na mesma situação seria submetido a medida de segurança implicando grave restrição à liberdade do agente Parece claro ainda que se A pode alegar erro de proibição B mais vulnerável poderá fazêlo com maior razão sob pena de se consagrar uma manifesta injustiça Ademais quando o agente atua sob o amparo de excludente de culpabilidade a medida de segurança tornase absolutamente desnecessária seja para fins de preven ção geral seja para fins de prevenção especial já que não representa perigo algum Em suma o inimputável pode alegar excludentes de culpabilidade pela mesma razão que poderia invocar excludentes de tipicidade e de ilicitude inclusive porque como vimos a distinção entre tais categorias além de inconsistente não preexiste à interpretação mas é dela resultado ao devido processo legal inclusive no que toca à individualização da sanção penal quanto à reação preventivarepressiva em cuja execução é necessário adotar os meios adequados para a separação e classificação dos condenados de acordo com a sua saúde mental cit p 1 6 1 7 De acordo com Thomas Szasz estritamente falando a doença ou a enfermidade só podem afetar o corpo motivo pelo qual não pode haver nenhuma doença mental A doença mental é uma metáfora pois as mentes podem estar doentes apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as eco nomias estão doentes O mito da doença mental Rio de Janeiro Zahar 1 979 p 234 Ainda conforme o autor o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com relação às superstições e práticas das caças às bruxas segundo a interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contemporânea nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do Iluminismo tal como pensam os românticos tradicionalistas Na realidade a Psiquiatria Institucional é uma continuação da inquisição O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social O vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época é um jargão pseu docientífico que parodia os conceitos da ciência O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época é um movimento social pseudo liberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade A fabricação da loucura Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de saúde mental Rio de Janeiro Zahar Editores 1976 p 56 529 PAULO QJEIROZ Já vimos também que a inimputabilidade como o próprio nome sugere não é um estado mental do sujeito mas uma atribuição ou mais precisamente uma nãoatribui ção Uma última observação se a culpabilidade é requisito do crime e não simples pressuposto da pena o alienado mental e o menor de dezoito anos cometeriam crime já que são inculpáveis Bem se o conceito analítico de crime é um desdobramento do conceito formal seguese que o menor não comete crime mas ato infracional conforme consta da pró pria lei Lei nº 806990 logo não está sujeito à pena mas à medida socioeducativa que consistirá em internação nos casos mais graves Já o alienado mental comete cri me sim desde que a conduta por ele praticada seja típica ilícita e culpável porque se for atípica ou lícita ou inculpável por qualquer motivo que não a própria inimputabili dade nenhuma sanção poderá sofrer Se diversamente do imputável ele não fica sujei to à pena mas à medida de segurança é porque a imposição de uma pena em sentido estrito seria um castigo inútil Mais a distinção entre pena e medida de segurança é puramente formal materialmente a medida de segurança pode ser mais lesiva à liber dade inclusive Além dos pressupostos ordinários de punibilidade a aplicação da medida de se gurança exige a comprovação mediante perícia da perigosidade do agente que é pre sumida quando se tratar de inimputável art 26 e real quando se cuidar de semiim putável art 26 parágrafo único A perícia médica será realizada ao final do prazo mínimo fixado e deverá ser re petida anualmente ou a qualquer tempo se o juiz da execução assim determinar art 97 2º Por último é possível aplicarse medida de segurança também ao autor de con travenção LCP art 13 Mas tal previsão parecenos incompatível com o requisito da periculosidade necessária à sua aplicação 8 O mesmo vale para os crimes culposos e de menor potencial ofensivo 11 A Lei de Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial A Lei de Reforma Psiquiátrica Lei nº 102162001 que é expressamente aplicável às medidas de segurança que as chama de internação compulsória arts 6 III e 9º 8 Haroldo Caetano defende que a nova Parte Geral Lei nº 720984 revogou o art 13 da LCP pois ela só refere à aplicação de medida de segurança para as infrações crimes punidas com reclusão e detenção motivo pelo qual estaria vedada nas contravenções punidas que são com prisão simples Execução Penal cit p 297 Ocorre porém que o CP só define crimes os quais de acordo com o seu conceito legal são punidos com reclusão ou detenção não faria sentido portanto que também fizesse referência às contravenções e à prisão simples objeto que é de lei especial Não há falar assim de violação ao princípio da legalidade ao menos com base em semelhante argumento Além disso em princípio a lei especial LCP prevalece sobre a lei geral CP e não o contrário ex specialis derogat legi generali 530 j21 j MEDIDAS DE SEGURANÇA trouxe importantes modificações a exigir uma releitura do Código Penal e da Lei de Execução Penal havendo inclusive quem defenda a revogação da LEP no particular e de parte do Código Penal e Processual Penal9 Eis as mais importantes 1 Finalidade preventiva especial A lei considera como finalidade permanente do tratamento a reinserção social do paciente em seu meio art 4 º 1 º reforçando assim a finalidade já prevista na LEP preventiva individual das medidas de segurança Portanto toda e qualquer disposição que tiver subjacente a ideia de castigo restará revogada 2 Excepcionalidade da medida de segurança detentiva internação Exatamente por isso a internação só poderá acontecer quando for absolutamente necessá ria isto é quando o tratamento ambulatorial não for comprovadamente o mais adequado É que de acordo com a lei a internação só é indicada quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes devendo ser prioriza dos os meios de tratamento menos invasivos possíveis arts 4º e 2º parágrafo único VIII Por isso que independentemente da gravidade da infração penal cometida preferirseá o tratamento menos lesivo à liberdade do paciente razão pela qual independentemente da pena cominada se reclusão ou detenção o tratamento ambulatorial extrahospitalar passa a ser a regra e a internação a exceção apesar de o Código dispor em sentido diverso10 Também por isso é vedada a internação de pacientes em instituições com características asilares art 4º 3º 3 Revogação dos prazos mínimos da medida de segurança Parece certo tam bém que a fixação de prazos mínimos restou revogada pois são incompatíveis com o princípio da utilidade terapêutica do internamento art 4 lº ou com o princípio da desinternação progressiva dos pacientes cronificados art 5º Além disso a presunção de periculosidade do inimputável e o seu tratamento em função do tipo de delito que cometeu se punido com reclusão ou detenção baseado em prazos fixos e rígidos são incompatíveis com as normas sanitárias que visam à reinserção social do paciente11 4 Alta planejada e reabilitação psicossocial assistida No caso de paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional decorrente de quadro clínico ou de ausência de su porte social será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida sob responsabilidade da autoridade sanitária compe tente art 5º 9 Assim Paulo Jacobina Direito Penal da Loucura Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica ln Boletim dos Procuradores da República nº 70 ano VI maio2006 O autor também defende a inconstitucionalidade das medidas de segurança 1 O No sentido do texto Haroldo Caetano Execução Penal Porto Alegre Magister Editora 2006 p 295 1 1 No sentido do texto Paulo Jacobina cit 531 PAULO QJEIROZ 5 O paciente tem direito ao melhor tratamento do sistema de saúde de acordo com as suas necessidades garantindoselhe entre outras coisas livre acesso aos meios de comunicação disponíveis art 2º parágrafo único Como se vê o fim precípuo da lei é em nome da dignidade humana proteger o portador de transtorno mental de todo e qualquer abuso estatal e emprestarlhe o melhor tratamento possível para além de todos os rótulos preferencialmente fora do ambiente manicomial carcerário asilar Releva notar que o CNJ Conselho Nacional de Justiça editou Resolução nº 1 13 de 20 de abril de 2010 e recomendação nº 35 de 12 de julho de 2011 determinando o cumprimento da mencionada lei relativamente à execução das medidas de segurança 2 FINALIDADE As medidas de segurança como sanção penal que são têm à semelhança das pe nas uma finalidade essencialmente preventiva e sobretudo preventiva especial visto que por meio delas pretendese evitar que o inimputável autor de infração penal volte a cometêla12 Sua finalidade principal é evitar a reiteração de crimes portanto Secundariamente as medidas de segurança têm uma finalidade de prevenção ge ral negativa no sentido de prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra o inimputável haja vista que por meio delas não apenas se previnem atos de vingança por parte de particulares v g linchamento do inimputável que tenha cometido ho micídio como também se evitam reações abusivas do próprio Estado que poderia por exemplo por meio de uma intervenção pretensamente terapêutica internálos inde finidamente ainda quando não tivessem cometido um crime e sem garantir os meios e recursos inerentes ao devido processo legal ampla defesa etc Mas tais medidas não perseguem em princípio a prevenção geral negativa de futuros delitos tampouco a prevenção geral positiva13porque como assinala Roxin os inimputáveis quando infringem a lei não defraudam nenhuma expectativa a consciên cia social não se comove e ninguém resulta motivado a imitálo porque a vigência da norma aos olhos da opinião pública não é alterada com tais fatos14 3 PRAZOS MÁXIMO E MÍNIMO O Código estabelece que o tempo mínimo das medidas de segurança é de um a três anos período em que o inimputável será submetido a tratamento e terá avaliada a 12 No mesmo sentido Roxin para quem pena e medida de segurança não se diferenciam quanto ao fim mas quanto à limitação exclusivamente Derecho penal cit p 1 05 13 Em sentido contrário entendendo que a medida de segurança tem finalidade preventiva geral positi va Figueiredo Dias Questões fundamentais cit e Eduardo Reale Ferrari Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito São Paulo Revista dos Tribunais 2001 No sentido porém de entender que nenhuma teoria é capaz de justificar suficientemente as medidas de seguran ça as quais pretenderiam legitimar o ilegitimável Gamil Fõppel A função da pena cit 14 Derecho penal cit p 8 1 1 532 1 2 1 1 MEDIDAS DE SEGU RANÇA sua perigosidade sendo que a sentença fixará o prazo mínimo exato necessariamente Mas isso somente se se entender que não houve a revogação desses prazos pela Lei de Reforma Psiquiátrica conforme vimos Mas que fazer se antes de transcorrer o prazo mínimo restar clara a sua desne cessidade em virtude de cessação da perigosidade do agente É evidente que nesse caso a medida de segurança perde sua razão de ser parecendonos que o constrangi mento deva cessar prontamente em nome dos princípios de humanidade e proporcio nal idade das penas especialmente Aliás e conforme observa Roxin a medida de segurança sequer pode ser imposta ou mantida se não guardar proporção com a infração penal cometida razão pela qual os danos e perigos que partem do autor devem ser suportados pela sociedade apesar do interesse preventivo em evitálos quando forem menores que a privação da liberda de que a medida de segurança encerra15 Difícil é justificar por exemplo a aplicação de medida de segurança quando o inimputável responder por crime culposo ou contraven ção notadamente se não tiver antecedentes nesse sentido Quanto à duração máxima o Código dispõe que a internação ou tratamento am bulatorial será por tempo indeterminado perdurando enquanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação de periculosidade art 97 lº de modo que sua duração máxima é indeterminada diversamente de outros Códigos estrangeiros que preveem prazo máximo de duração Mas uma tal indeterminação do prazo máximo é francamente abusiva visto ofen der os princípios de proporcionalidade de não perpetuação da pena e igualdade Com efeito não é razoável por exemplo que alguém que responda por lesão corporal leve CP art 129 caput cuja pena máxima é um ano de detenção possa ficar sujeito à me dida de segurança superior a esse prazo indefinidamente Também se viola o princípio da não perpetuação das penas haja vista que embora as medidas de segurança não sejam penas em sentido estrito formalmente constituem um gravíssimo constrangi mento à liberdade de quem as suporta Finalmente ao fixar penas determinadas apesar de eventualmente persistir a pe riculosidade do réu imputável e mesmo a probabilidade de reincidência o Código ao dispor diferentemente quanto às medidas de segurança fere o princípio da igualdade pois dispensa ao inimputável tratamento injustificadamente diferenciado os imputá veis perigosos ou não ao final da pena serão postos em liberdade os inimputáveis ao contrário a pretexto de não ter cessado a perigosidade permanecerão em tratamen to indefinidamente não raro privados de liberdade No particular Ferrajoli tem razão quando assinala que a duração indeterminada das medidas de segurança traduz uma espécie de segregação da vida dos internados 1 5 Assim o Código espanhol art 1 O1 prevê que o internamento não poderá exceder ao tempo de pena que seria cabível se fosse imputável o sujeito devendo o juiz ou tribunal fixar na sentença esse limite máximo 533 PAU LO ÜlJEIROZ em hospitais psiquiátricos cárcereshospitais ou hospitaiscárceres por cujo meio se consuma uma dupla violência institucional cárcere e manicômio16 Consequentemente as medidas de segurança não devem exceder ao tempo de pena que seria cabível na mesma hipótese sendo mesmo recomendável que o juiz pro ceda à individualização da pena substituindoa a seguir pela medida de segurança pelo mesmo prazo conforme precedentes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Cabe frisar que há precedente do STF no sentido de que o prazo máximo da medi da de segurança não poderá exceder ao limite de trinta anos17 Naturalmente que tais considerações são também aplicáveis ao tempo mínimo da medida de segurança e não só ao tempo máximo porque não faz sentido por exemplo que o inimputável que tenha cometido um crime ou contravenção punido com pena de seis meses de prisão tenha fixada a duração da medida em um ano pra zo mínimo No caso de superveniência de alienação mental no curso da execução de pena CP art 41 LEP art 183 o réu será tratado em local apropriado e se recuperar a saúde mental voltará a cumprir a pena regularmente No entanto se não o recuperar a pena será substituída por medida de segurança pelo tempo de pena que restava por cumprir Porque se assim não for violarseão os princípios de legalidade da pena e intangibili dade da coisa julgada 4 PENAS E MEDIDAS DE SEGURANÇA SE DISTINGUEM REAL MENTE A doutrina costuma distinguir penas e medidas de segurança recorrendo aos se guintes critérios18 1 6 Derecho y razón cit p 782 1 7 HC nº 8421 9SP lª Turma Rei Ministro Marco Aurélio julgado em 1 682005 publicado no DJ em 2392005 p 1 6 1 8 Conforme Damásio de Jesus Direito penal V 1 São Paulo Saraiva 2003 p 545 Idem Flávio Augusto Monteiro de Barros para quem a ausência de culpabilidade não impede a aplicação da medida de segurança pois o juízo de culpabilidade é substituído pelo de periculosidade Poderseia obtemperar que esse tratamento díspar viola o princípio da isonomia Ledo engano pois a ausência de imputabilidade toma inadmissível o questionamento da culpabilidade Direito penal Parte Geral V 1 São Paulo Saraiva 2003 p 479 De modo similar Cezar Roberto Bitencourt Tratado de direito penal São Paulo Saraiva 2004 p 681 A despeito disso Cezar Bitencourt reconhece que a medida de segurança pressupõe prática de fato típico punível pois é indispensável que o sujeito tenha pra ticado um ilícito típico Assim deixará de existir esse primeiro requisito se houver por exemplo ex cludentes de criminalidade excludente de culpabilidade erro de proibição invencível coação moral irresistível e obediência a ordem hierárquica embriaguez completa fortuita ou por força maior com exceção da inimputabilidade ou ainda se não houver prova do crime ou da autoria etc Resumindo a presença de excludentes de criminalidade ou de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança p 682 534 1 2 1 I MEDIDAS DE SEGURANÇA 1 a pena pressupõe culpabilidade e as medidas de segurança requerem periculo sidade razão pela qual a ausência de culpabilidade não impede a aplicação de medida de segurança pois ela é substituída pelo juízo de periculosidade19 2 as penas têm natureza retributivapreventiva e as medidas de segurança são preventivas 3 as penas são proporcionais à gravidade da infração e a proporcionalidade das medidas de segurança fundamentase na periculosidade do agente 4 as penas são por tempo determinado e as medidas de segurança são por tempo indeterminado 5 as penas são aplicáveis aos imputáveis e as medidas de segurança aos inimpu táveis Não estamos de acordo com isso Inicialmente não é exato que quanto aos inimputáveis o juízo de culpabilidade é substituído pelo juízo de periculosidade Sim porque como vimos em favor do inim putável também militam além das excludentes de tipicidade e ilicitude todas as causas de exclusão de culpabilidade bem como causas extintivas de punibilidade conforme prevê o art 96 parágrafo único do Código Penal inclusive Ora se isso é certo segue se que a periculosidade embora necessária não é suficiente para justificar a aplicação de medida de segurança pois devem concorrer todos os pressupostos da punibilidade já que são inadmissíveis medidas predelituais Se no entanto os inimputáveis ficam sujeitos não à pena mas à medida de segurança é porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade necessidadeadequação pois sentido algum faria enclausurálos numa penitenciária Afinal se o juiz constatar que o réu agiu sob o amparo de excludentes de culpa bilidade será de todo ilegal a aplicação de medida de segurança impondose a absol vição pura e simples CPP art 386 III e V visto que se nas mesmas circunstâncias se puder invocálas em favor do imputável o mesmo deverá ocorrer com maior razão quanto ao inimputável pois num sistema Democrático de Direito as garantias devem ser proporcionais ao grau de vulnerabilidade de quem delas necessita os mais débeis Tampouco cabe dizer que as penas têm natureza retributivopreventiva e as me didas de segurança têm natureza só preventiva Primeiro porque conforme vimos tanto as penas quanto as medidas de segurança pressupõem a prática de crime puní vel de modo que desse ponto de vista também as medidas de segurança constituem uma iretribuição Segundo porque no essencial as medidas de segurança perseguem os mesmos fins assinalados à pena prevenir reações públicas ou privadas arbitrá rias contra o inimputável prevenção geral negativa e evitar a reiteração de crimes20 1 9 Damásio de Jesus cit p 545 20 Çomo assinala Fragoso a propósito ainda da medida de segurança aplicável ao imputável pena e medida de segurança têm o mesmo fundamento Ambos servem à proteção de bens jurídicos e se 535 PAULO QlJ E I ROZ prevenção especial Finalidade da intervenção penal é pois a proteção subsidiária de bens jurídicos No que tange à indeterminação do prazo máximo das medidas de segurança he rança do positivismo criminológico cabe redarguir que em homenagem aos princípios da igualdade proporcionalidade e não perpetuação das penas não se justifica numa perspectiva garantista que tais sanções diferentemente das penas possam durar in definidamente enquanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação da periculosidade CP art 97 lº razão pela qual jamais deverão exceder ao tempo de pena que seria cabível na espécie Ademais devem ser minimamente aflitivas para o criminoso inimputável pois encerram dupla violência hospital e cárcere Cumpre notar ainda que se analiticamente crime é conforme a perspectiva aqui adotada fato típico ilícito e culpável seguese que faltando a culpabilidade em razão de o réu se achar numa situação de exclusão da culpabilidade faltará o crime motivo pelo qual também por essa razão não se justificaria a aplicação de uma medida de se gurança Assim diferença ontológica nenhuma há entre penas e medidas de segurança pois ambas perseguem os mesmos fins e reclamam o concurso de idênticos pressupostos de punibilidade fato típico ilícito culpável e punível A distinção reside portanto unicamente nas consequências os imputáveis estão sujeitos à pena os inimputáveis à medida de segurança atendendose a critério de pura conveniência políticocriminal ou de adequação Desnecessário dizer que todas as garantias processuais contraditório etc militam em favor do inimputável Não sem razão o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem nos casos de inimputabilidade procedido inicialmente à individualização da pena como se o réu fosse imputável para só em seguida a substituir pela medida de segurança cujo prazo máximo é aquele da pena fixada sem prejuízo de ser liberado antes quando verificada a cessação da periculosidade estabelecendo ainda o limite máximo de um ano para a sua averiguação21 destinam a prevenir a prática de crimes Na execução ambas tendem à reintrodução do agente na sociedade sem que venha a cometer novos crimes É certo que a pena em sua natureza jurídica é em essência retributiva porque é perda de bens jurídicos imposta ao transgressor Mas a medida de segu rança detentiva para imputáveis que o condenado recebe e sofre como uma pena também é perda de bens jurídicos tendo natureza aflitiva por vezes mais grave do que a pena Lições de direito penal Rio de Janeiro Forense 1 994 p 387 Também no sentido de que a medida de segurança persegue fins de prevenção geral positiva e especial Figueiredo Dias Questões fundamentais do direito penal revisitadas São Paulo Revista dos Tribunais 1 999 Para uma crítica à prevenção geral ou especial no que toca a medidas de segurança Gamil Fõppel A função da pena na visão de Claus Roxin Rio de Janeiro Forense 2004 2 1 PROCESSUAL PENAL MEDIDA D E SEGURANÇA PRAZO INDETERMINADO INCONSTI TUCIONALIDADE PROIBIÇÃO DE PENAS PERPÉTUAS OU DE OUTRO MODO ABUSIVAS NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DOS LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO É inconstitucional a indeterminação de limite máximo bem como abusivo prolongado e excessivo o prazo mínimo para 536 PAULO Q1JEIROZ e Tratamento psiquiátrico HCT ou à falta em estabelecimento adequado e que importa na privação da liberdade do paciente destinase aos crimes mais graves punidos com reclusão a segunda cujo tratamento ocorrerá nos mesmos locais diri gese aos delitos menos graves punidos com detenção O elenco das medidas de se gurança é pois bastante limitado diversamente do Código espanhol por exemplo que prevê um extenso número de medidas privativas e não privativas da liberdade art 96 Como se vê a medida prioriza a gravidade e resultado do crime em detrimento dos distúrbios mentais diagnosticados pelos peritos sendo que a modalidade de terapia decorre mais do desvalor do resultado do que do grau de perigosidade do agente o que é um contrassenso Portanto não é o médico que sugere a internação ou o tratamento ambulatorial de acordo com as necessidades do agente mas a lei que preestabelece a medida23 Mas conforme vimos essa situação mudou radicalmente com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica que privilegiou a saúde mental do inimputável em detri mento da infração penal por ele praticada Convém notar que apesar de existirem precedentes tolerando a custódia do inter no em cadeias públicas por exemplo o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que configura constrangimento ilegal a prisão do inimputável em regime fechado pela ausência de vaga em estabelecimento adequado para o cumprimento da medida de se gurança 24 devendo o juiz da execução à falta de estabelecimento adequado substituir a internação por tratamento ambulatorial Notese ainda que a internação passou a ser medida excepcional a partir da reforma psiquiátrica 51 Conversão regressiva e progressiva A LEP art 184 prevê a possibilidade de conversão de tratamento ambulatorial em internação se o agente revelar incompatibilidade com a medida caso em que o prazo mínimo será de um ano não prevê o contrário porém conversão progressiva conversão da internação em tratamento ambulatorial Mas tal é perfeitamente possível seja porque a finalidade declarada da medida é a recuperação do sentenciado seja por que não há proibição alguma no particular 25 23 SMANIOTO Edson Alfredo Martins Da Medida de Segurança ln Revista Brasileira de Ciências Criminais n 6 2001 24 EXECUÇÃO PENAL HABEAS CORPUS APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA DE IN TERNAÇÃO FALTA DE VAGA EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO I Sendo aplicada ao paciente a medida de segurança de internação constitui constrangimento ilegal sua manutenção em prisão comum ainda que o motivo seja a alegada inexistência de vaga para o cumprimento da medida apli cada II A manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança de internação é de responsabilidade do Estado não podendo o paciente ser penalizado pela insuficiência de vagas Habeas corpus concedido STJ HC nº 3 1 902 Rei Min Félix Fischer DJ l º072004 No mesmo sentido STJ RHC nº 1 3346SP e HC n 22916MG 25 No sentido do texto Haroldo Caetano Execução penal Po1io Alegre Magister Editora 2006 p 303 538 1 2 1 1 MEDIDAS DE SEGURANÇA 6 EXTINÇÃO A medida de segurança decretada será extinta somente quando for averiguada me diante perícia a cessação da periculosidade art 97 Antes porém o agente será desinternado ou liberado condicionalmente durante o prazo de um ano Se ao final desse período não praticar fato indicativo de persistência da periculosidade decretarseá a extinção da medida definitivamente Caso contrário isto é se durante esse prazo de provação ou liberdade condicional vier a cometer fato indicativo de perigosidade será restabelecida a situação anterior reinternação ou tratamento ambulatorial Convém lembrar que quando no curso da execução da pena privativa da liberda de sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental o juiz de ofício ou a re querimento do Ministério Público ou da autoridade administrativa poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança CP art 41 LEP art 183 hipótese em que o prazo não poderá exceder ao tempo de pena que restava por cumprir É que a não ser assim violarseia o princípio da legalidade da pena já que o réu fora con denado a uma pena por tempo determinado e o princípio da intangibilidade da coisa julgada 539 PAULO QlEIROZ a sursis comum b sursis especial c sursis etário d sursis por motivo de saúde Ordinariamente deferido o sursis sursis comum o condenado prestará no primei ro ano serviço à comunidade ou sofrerá a limitação de final de semana a critério do juiz No entanto se houver reparação do dano salvo impossibilidade de fazêlo e forem inteiramente favoráveis as circunstâncias judiciais o juiz poderá sursis especial substi tuir as exigências antes referidas pelas seguintes aplicadas cumulativamente a proibição de frequentar determinados lugares b proibição de ausentarse da comarca onde reside sem autorização dojuiz c comparecimento pessoal e obrigatório em juízo mensalmente para informar e justificar suas atividades Tratandose de réu maior de setenta anos sursis etário condenado à pena não superior a quatro anos a execução da pena privativa da liberdade poderá ser suspensa por quatro a seis anos CP art 77 2º O mesmo ocorrerá quando independentemen te da idade razões de saúde justificarem a concessão da suspensão sursis por motivo da saúde No caso de condenação por contravenção penal LCP art 1 1 a suspensão da pena de prisão simples será por tempo não inferior a 1 um ano nem superior a 3 três anos Além das condições legalmente previstas condições legais a sentença poderá condições judiciais especificar outras desde que adequadas ao caso e à situação pes soal do condenado princípio da proporcionalidade A suspensão será necessariamente revogada revogação obrigatória sempre que o réu a for condenado irrecorrivelmente por crime doloso b descumprir a pena de prestação de serviço à comunidade ou limitação de fim de semana que lhe foi imposta c não reparar o dano sem motivo justificado A lei também refere como causa revocatória obrigatória a circunstância de o con denado frustrar embora solvente a execução da pena de multa No entanto tal dispo sitivo ofende o princípio proibitivo de prisão por dívida Além disso já não existe mais a possibilidade legal de o descumprimento da multa converterse em prisão uma vez que transitada em julgado a sentença a multa será considerada dívida de valor apli candoselhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública CP art 5 1 Nos demais casos como superveniência de condenação irrecorrível por crime cul poso ou por contravenção descumprimento das condições judiciais etc a revogação 542 1 2 2 1 SUSPENSÃO CONDICIONAL DA EXECUÇÃO DA PENA SURSIS ficará a critério do juiz revogação facultativa Todavia somente a condenação à pena privativa da liberdade ou à restritiva de direito implicará a revogação facultativa moti vo pelo qual a condenação à pena de multa não tem o condão de revogar o sursis nem obrigatória nem facultativamente CP art 81 1 Quando facultativa a revogação o juiz poderá em vez de decretála prorrogar o período de prova até o máximo se este não tiver sido o fixado CP art 81 3º Se eventualmente o condenado estiver respondendo a outro processo por crime ou contravenção praticado antes ou durante o sursis o juiz não poderá decretar a revoga ção em razão do princípio da presunção de inocência Apesar disso o prazo da sus pensão ficará prorrogado até o julgamento definitivo do processo que ensejar a prorro gação CP art 81 2º Cumpridas regularmente as condições da suspensão a pena será extinta 543 PAULO QlJEIROZ para o trabalho b comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação c não mudar de residência sem prévia autorização do juízo da execução Poderão ser ainda impostas condições facultativas a não mudar de residência sem comunicação ao juiz compe tente b recolherse à habitação em hora fixada c não frequentar determinados luga res Desnecessário dizer que o prazo do livramento corresponderá ao tempo de pena que restava por cumprir de modo que se por exemplo o réu vem a ser condenado a doze anos de reclusão obtendoo depois de seis anos ficará em período de provação pelos seis anos restantes O instituto é também aplicável às contravenções penais LCP art 1 1 Para deferilo o juiz que decidirá de modo fundamentado ouvirá previamente o Ministério Público e o defensor do interessado já não mais se exige parecer do Con selho Penitenciário nem exame criminológico para tanto Apesar disso foi editada a Súmula Vinculante nº 26 pelo STF3 11 Pena igual ou superior a dois anos A lei prevê inicialmente que somente as condenações iguais ou superiores a dois anos possam ser objeto de livramento condicional Consequentemente as condenações inferiores a dois anos as quais em geral já serão alcançadas por outros institutos a exemplo da suspensão condicional do processo e da substituição por penas restritivas de direito ficam excluídas do livramento condicional Nesse sentido também se posiciona a doutrina majoritária entendendo que se a pena não atingir o mínimo de dois anos e não couber a substituição por penas restriti vas de direito o condenado não fará jus ao livramento condicional devendo cumprir a pena na prisão4 Mas semelhante exclusão é inteiramente despropositada afinal crimes mais gra ves terão tratamento mais brando do que crimes menos graves numa clara violação ao princípio da proporcionalidade tal limite há de ser ignorado portanto E de lege ferenda deve ser abolido 12 Cumprimento de parte da pena O condenado não reincidente em crime doloso e que tiver bons antecedentes de verá cumprir mais de um terço da pena de modo que por exemplo condenado a seis anos de prisão deverá ter cumprido mais de dois anos ficando o restante do período 3 A súmula citada dispõe para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo ou equiparado o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art 2º da Lei n 8072 de 25 de julho de 1 999 sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche ou não os requisitos objetivos e subjetivos do beneficio podendo determinar para tal fim de modo fundamentado a rea lização de exame criminológico 4 Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit p 279 546 PAULO QJElROZ injustificadamente descumprir quaisquer das condições constantes da decisão concessiva do livramento A revogação só acontecerá em ultima ratio quando inevitável 23 Efeitos da revogação Para verificação dos efeitos da revogação é preciso distinguir três hipóteses 1 condenação irrecorrível por infração crime ou contravenção praticada antes do livramento 2 condenação irrecorrível por infração praticada durante o livramento 3 descumprimento das condições impostas Na primeira hipótese como a revogação do livramento resultou de fato alheio à vontade do condenado superveniência de nova condenação por infração penal ante rior ao benefício os efeitos da revogação são mais brandos quais sejam a o condenado terá direito a novo livramento mesmo em relação à pena que estava cumprindo desde que somadas a condenação atual e a anterior o condenado atenda ao requisito temporal b o tempo em que esteve solto será considerado como de efetivo cumprimento da pena7 Na segunda situação por se julgar que o liberado ao cometer novo crime durante o período de provação demonstra que em verdade não fazia jus ao livramento confe reselhe o mais severo dos tratamentos a saber a não poderá obter novo livramento em relação à mesma pena permitindose porém que obtenha o benefício quanto à nova condenação b não se computa o período de tempo em que esteve em liberdade condicional tendo de cumprir a pena integralmente LEP art 142 No caso de descumprimento das condições impostas na sentença havendo uma única pena a ser cumprida o condenado terá à semelhança da hipótese anterior de cumprila integralmente não podendo obter novo livramento bem como não será computado o período em que esteve solto Mas tais efeitos podem e devem ser revistos em face dos princípios penais espe cialmente o princípio ne bis in idem pois não parece razoável que decretada nova con denação seja desconsiderado todo o período de regular cumprimento das condições do livramento não raro longos e árduos anos de cumprimento acabando por conduzir o condenado a cumprir a mesma pena uma segunda vez 7 Art 1 4 1 da LEP Se a revogação for motivada por infração penal anterior à vigência do livramento computarseá corno tempo de cumprimento da pena o período de prova sendo permitida parn a concessão de novo livramento a soma do tempo das duas penas A11 1 42 No caso de revogação por outro motivo não se computará na pena o tempo em que esteve solto o liberado e tampouco se concederá em relação à mesma pena novo livramento 550 1231 LIVRAMENTO CONDICIONAL 3 EXTINÇÃO DA PENA Cumpridas as condições do livramento regularmente o juiz declarará a extinção da pena CP art 90 No entanto não poderá fazêlo enquanto não passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado por crime cometido na vigência do livramento CP art 89 Nada impede portanto fora dessa hipótese crime cometido na vigência do livramento a decretação da extinção da pena Com efeito se eventualmente o condenado responder à ação penal por crime co metido durante o livramento o juiz não poderá declarar extinta a pena pois se sobre vier nova condenação o benefício será revogado perdendo o liberando como vimos o período de pena já cumprido O mesmo não ocorrerá perda do tempo cumprido e prorrogação porém se se tratar de crime cometido antes do livramento Portanto a prorrogação do livramento só acontecerá se ao final do período de pro va o réu ainda responder a uma ação penal por crime praticado no curso do benefício razão pela qual se disser respeito a crime anterior deverseá decretar a extinção da pena sem mais Como a lei refere apenas processo a simples existência de inquérito policial não impedirá o juiz de decretar a extinção da pena tão logo expire o período de prova Pela mesma razão processo por contravenção não tem o condão de fazer prorro gar o livramento pois a lei alude a crime tão só 551 PAULO QJEIROZ 11 Ação penal no atual crime de estupro qualificado De acordo com a Lei nº 120152009 a ação penal no crime de estupro é agora pública condicionada à representação do ofendido CP art 225 e não mais de ação penal privada à exceção do estupro de menor de 18 dezoito anos ou vulnerável de ação penal pública incondicionada Em razão disso alguns autores2 vêm defendendo que mesmo no caso de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte a instau ração da ação penal dependeria de representação O equívoco é manifesto Em primeiro lugar porque incide no caso o art 101 do Código Penal sobre crime complexo que tem a seguinte redação Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes cabe ação pública em relação àquele desde que em relação a qualquer destes se deva proceder por iniciativa do Ministério Público É bem verdade que o estupro simples não é complexo ou composto visto que embora o constrangimento ilegal constitua crime autônomo o ato sexual por si só não o é E o crime complexo como é sabido é aquele resultante da fusão de dois ou mais tipos3 Mas se o crime de estupro na forma simples não é complexo o é na forma qualificada por lesão grave ou morte visto resultar da fusão de dois tipos penais autô nomos estupro simples ou constrangimento ilegal e lesão grave ou homicídio Incide pois o art 101 do Código Penal porque tanto a lesão grave quanto a morte são condutas que a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes Exatamente por isso não fosse a previsão legal expressa das circunstâncias qualificadoras nos 1 º e 2º do art 213 do Código Penal o agente responderia em concurso formal ou material por estupro e lesão cor poral grave ou estupro e homicídio por serem infrações autônomas 2 Nesse sentido Rómulo de Andrade Moreira A Ação Penal nos Crimes Contra a Liberdade Sexual em Face da Lei nº 1201 509 Disponível em jusvicom E Artur de Brito Gueiros Souza Incons titucionalidade da Lei nº 1201 509 Disponível em lfgcombr Existe inclusive uma ADin no STF questionando a constitucionalidade da lei no particular 3 É de ver no entanto que na doutrina alemã é comum considerar como complexo o delito que ofende mais de um bem jurídico não necessariamente resultante da fusão de dois ou mais tipos Nesse sen tido Roxin Os delitos simples protegem só um bem jurídico e os compostos vários Delitos compostos são entre outros o furto 242 que se dirige contra a propriedade e a custódia Derecho Penal Parte Gereral Madrid Editorial Civitas 1 997 p 337 e Jescheck de acordo com o número de bens jurídicos protegidos no preceito penal há delitos simples e compostos Tratado de Derecho Penal Parte General Granada Comares 1993 p 239 Já na doutrina espanhola Mufioz Conde e Mercedes Arán definem crimes complexos como aqueles que se caracterizam pela concor rência de duas ou mais ações cada uma constitutiva de um delito autônomo mas de cuja união nasce um complexo delitivo autônomo distinto Derecho Penal Parte General 4 ed Valencia Tirant lo Blanch 2000 p 296 E para Rodriguez Mourullo os tipos complexos se caracterizam porque estão integrados por duas ou mais ações que são em si mesmas delitivas Derecho Penal Parte General Madrid Civitas 1 978 p 274 554 1 24 1 DA AÇÃO PENAL Em segundo lugar não faria sentido algum que para crime menos grave estupro de vulnerável ou menor de 18 anos punido com pena de 8 a 15 anos de reclusão fosse admitida a ação penal pública incondicionada e para um mais grave punido com pena de até 30 anos de reclusão a ação penal dependesse de representação Notese mais que também para o estupro de vulnerável CP art 217A 3º e 4 a lei prevê as formas qualificadas da lesão grave e morte da vítima Sistematicamente portanto a pretensão de se exigir representação para o estupro qualificado é infundada inclusive porque violaria os princípios de isonomia e proporcionalidade proibição de proteção deficiente Finalmente não se compreenderia que uma lei que aboliu a ação penal privada e pretendeu castigar mais duramente seus destinatários tratasse de modo mais brando justamente os autores dos delitos mais graves até com resultado morte ao condicio nar supostamente a ação penal à representação da vítima que poderá estar morta inclusive Em síntese a jurisprudência Súmula 608 do STF4 que se consolidara sobre o tema permanece absolutamente inalterada a ação penal no crime de estupro com le são grave ou morte é de ação penal pública incondicionada porque tanto a lesão grave quanto o homicídio são delitos de ação penal pública incondicionada 2 AÇÃO PENAL PÚBLICA A ação penal pública subdividese em pública incondicionada e pública condicio nada A primeira independe do implemento de qualquer condição vale dizer a inicia tiva de apuração do crime pela autoridade competente e o ajuizamento da denúncia devem ocorrer independentemente e mesmo contrariamente do interesse das partes direta ou indiretamente afetadas pelo crime autor vítima etc Também por isso a au toridade policial deverá proceder à apuração do fato prontamente de ofício CPP art 5º I Já na segunda hipótese de ação penal pública condicionada a investigação da infrkção penal pela autoridade policial e a propositura da ação penal pelo Ministério Público dependem do implemento de uma condição indispensável a iniciativa do ofen dido ou de seu representante legal que deverá manifestar claramente seu interesse em ver apurado o fato e processado o seu autor por meio de uma representação ou requisi ção do Ministro da Justiça Se eventualmente o ofendido for incapaz e não dispuser de representante legal o juiz nomeará curador especial para representálo O mesmo ocorrerá se houver confli to entre o interesse do incapaz e seu representante legal Já as pessoas jurídicas serão representadas por quem o respectivo estatuto designar e à falta por seus diretores ou sóciogerentes 4 A Súmula 608 dispõe No crime de estupro praticado mediante violência real a ação penal é pública incondicionada 555 PAULO ÜlJEI ROZ Como regra a ação penal é pública incondicionada isto é sempre que o tipo pe nal nada disser a respeito da legitimidade da ação tratarseá de crime dessa natureza art 100 lº Quando se tratar de ação penal pública condicionada o Código ou lei faz expressa menção referindo a necessidade de representação do ofendido ou de re quisição do Ministro da Justiça Assim por exemplo o art 147 crime de ameaça ao dispor parágrafo único que somente se procede mediante representação Por igual quando for o caso de ação penal privada a lei dirá expressamente que somente se pro cederá mediante queixa v g crimes contra a honra 21 Princípios que a regem A ação penal pública em virtude do interesse coletivo predominante que a move é obrigatória Isto quer dizer que não é dado ao seu titular o Ministério Pú blico decidir sobre a conveniência oportunidade etc da ação devendo intentála sempre que dispuser de prova da materialidade e autoria de crime Naturalmente que à falta de tais elementos de prova que amparem a acusação deverá propor o arquivamento do procedimento inquérito representação etc ou requerer novas di ligências quando necessário Caberlheá também requerer a transação penal quando se tratar de crime de menor potencial ofensivo pena máxima não superior a dois anos de prisão ou a suspensão condicional do processo nos crimes de médio poten cial ofensivo pena mínima não superior a um ano nos casos em que couber Lei nº 909995 Consequentemente a ação penal é também indisponível haja vista que o seu titu lar não pode propor acordos sugerir perdão etc exceto nos casos legalmente admiti dos Por igual não poderá desistir da ação que tenha iniciado ou do recurso que haja interposto Finalmente a ação penal é indivisível já que deve ser proposta contra todos os autores conhecidos não se lhe permitindo escolher uns em prejuízo de outros sempre que dispuser de prova da participação de todos Mas a indivisibilidade da ação penal pública é controvertida havendo precedentes inclusive do STF admitindo a sua divi sibilidade 5 22 Irretratabilidade da representação A representação como condição de procedibilidade da ação penal pública condi cionada pode ser objeto de retratação do ofendido que venha a se arrepender ou dela desistir Antes de oferecida a denúncia pelo Ministério Público a retratação é perfeita mente possível Mas uma vez oferecida a denúncia pelo Ministério Público a representação torna se irretratável CP art 102 O oferecimento pelo titular da ação que não se confunde 5 Sobre o tema Humberto Fernandes Princípios constitucionais do processo penal brasileiro Brasília Brasília Jurídica 2006 556 1 241 DA AÇÃO PENAL com o despacho judicial de recebimento da denúncia dáse com a sua formalização perante o juiz competente 1Referindose o Código somente à representação a doutrina diverge sobre a possi bilidade de retratação da requisição do Ministro da Justiça6 Não se pode ignorar todavia que à semelhança da representação a requisição constitui condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada e cujos fun damentos e fins são os mesmos Por isso é de convir que apesar de a lei se referir à representação a retratação deve também alcançar a requisição do Ministro da Justiça A representação que pode ser oral ou escrita e que não exige formalidades espe ciais pode ser feita à autoridade policial ao Ministério Público ou ao próprio juiz Se feita oralmente será reduzida a termo 3 AÇÃO PENAL PRIVADA O direito de propor a ação penal privada é exclusivo do próprio ofendido ou do seu representante legal que se fará representar por meio de advogado A Súmula 714 do STF estabeleceu ainda que é concorrente a legitimidade do ofendido mediante queixa e do Ministério Público condicionada à representação do ofendido para a ação penal por crime contra a honra do servidor público em razão do exercício de suas fun ções Na ação penal privada diferentemente da ação penal pública vigora o princípio da dísponibilidade de modo que ao seu titular é dado a qualquer tempo renunciar per doar1 desistir da queixa etc Também é regida pelo princípio da indivisibilidade devendo o querelante intentar a ação contra todos os autores conhecidos não podendo preferir uns a outros 31 Renúncia do ofendido Em razão da disponibilidade da ação penal privada o ofendido pode renunciar ao direito de queixa expressa ou tacitamente ensejando a extinção da punibilidade CP arts 104 e 107 V A renúncia que ocorre antes de proposta a ação penal pois depois dela será o 1 caso de perdão pode ser expressa ou tácita A renúncia expressa constará de decla ração assinada pelo ofendido seu representante legal ou procurador com poderes especiais CPP art 50 A tácita ocorrerá quando houver prática de ato manifesta mente incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa não se conside rando como tal o fato de o ofendido receber a indenização do dano causado pelo crime CP art 104 parágrafo único e CPP art 57 Exemplo de renúncia tácita é o casamento do autor do crime com a sua vítima que embora não constitua mais uma 6 Admitindo a retratação da requisição Delmanto Código Penal comentado cit contrariamente Ce zar Bitencourt Código Penal comentado cit 557 PAULO QJEI ROZ causa expressa de extinção de punibilidade implica em princípio a renúncia de que estamos tratando No caso de concurso de agentes coautoria e participação a renúncia se comunica a todos os coautores e partícipes CPP art 49 em razão da indivisibilidade da ação penal privada 32 Perdão do ofendido O perdão que poderá ocorrer até o trânsito em julgado da sentença condenatória CP art 106 2º é a desistência do direito de dar prosseguimento à ação penal pri vada já iniciada ensejando a extinção da punibilidade CP arts 105 e 107 V À semelhança da renúncia o perdão poderá ser tácito ou expresso Também aqui o perdão concedido a um dos coautores ou partícipes aproveita a todos Sendo um ato bilateral diferentemente da renúncia unilateral o perdão não pro duz efeito se o querelado o recusar CP art 106 III No caso de existir mais de um ofendidoquerelante o perdão concedido por um não prejudica o direito dos outros 4 AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA A ação penal privada subsidiária CF art 5º LIX tem por finalidade suprir even tual inércia do titular da ação penal pública Ministério Público que embora dispon do de elementos de prova para oferecer denúncia deixa de fazêlo no prazo legal CP art 100 3º Reconhecese assim ao ofendido ou a quem o represente cônjuge ascendente descendente ou irmão o direito de oferecer queixa de sorte a suprir a omissão ministerial Mas não implica inércia e em consequência não será admitida a ação privada subsidiária o requerimento de novas diligências ou o pedido de arquivamento do in quérito pelo Ministério Público E a ação penal subsidiária que é originariamente pública não se converte em ação privada preservando a sua natureza pública e por essa razão o querelante não pode dela desistir renunciar perdoar ou ensejar a perempção7 razão pela qual o Ministé rio Público pode aditar a queixa oferecer denúncia substitutiva requerer diligências produzir provas recorrer e a qualquer momento retomar o prosseguimento da ação se houver negligência do querelante CPP art 29 5 DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA E DE REPRESENTAÇÃO Nos crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada o ofen dido dispõe do prazo de seis meses para oferecer a queixa ou exercer o direito de 7 Cezar Bitencourt Manual cit p 690 558 1241 DA AÇÃO PENAL representação a contar do dia em que veio a saber quem é o autor do crime de sorte que decairá desse direito CP art 103 se não o fizer tempestivamente Tratase de prazo penal CP art 10 motivo pelo qual se inclui o dia do começo no seu cômputo Quanto à ação penal privada subsidiária da pública o prazo de seis meses contase do dia em que se esgota o prazo para o Ministério Público oferecer a denúncia CPP arts 38 e 46 Também aqui o Código fala de decadência do direito de representação omitindo se quanto à requisição motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência entendem que a decadência não atinge a requisição No entanto o que se disse a respeito da retratação é perfeitamente válido para a decadência de modo a admitila também quanto à requisição 559 125 1 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE Sumário 1 Introdução 2 Causas de extinção em espécie 2 1 Morte do agente 22 Anistia graça e indulto 23 Perempção 24 Retratação 25 Perdão judicial 26 Abolitio criminis e outras 27 Prescrição 27 1 Conceito e fundamento 272 Espécies de prescri ção 273 Prazos 274 Causas de aumento e de diminuição de pena 275 Reincidência 276 Concurso de crimes 277 Prescrição ordinária da pretensão punitiva 278 Pres crição extraordinária retroativa e superveniente 279 Prescrição retroativa antecipada 27 10 Termo inicial da prescrição 27 1 1 Termo inicial da prescrição da pretensão puniti va 27 1 2 Termo inicial da prescrição da pretensão executória 27 1 3 Causas impeditivas ou suspensivas da prescrição 27 1 4 Causas interruptivas da prescrição 1 INTRODUÇÃO Conforme vimos o crime do ponto de vista analítico é um fato típico ilícito e culpável A punibilidade portanto não é uma nota essencial do conceito de crime mas sua consequência jurídica A punibilidade é assim a possibilidade de se aplicar uma sanção penal pena ou medida de segurança ao autor de um injusto penal culpável 1 Mas quando criminoso o fato não se segue necessariamente a aplicação de uma penf haja vista que o direito de punir pode ser atingido por uma causa de extinção de punibilidade fazendo desaparecer a punição in concreto Apesar de a expressão extinção de punibilidade sugerir que tal somente é apli cável aos casos passíveis de pena as causas de que trata o Código Penal são também aplicáveis às situações passíveis de medida de segurança em razão de inimputabilidade decorrente de doença mental ou perturbação da saúde mental do autor CP art 26 Com efeito também não é possível a aplicação de medida de segurança se a infração penal já tiver sido atingida por uma causa de extinção de punibilidade No particular o CócVgo é expresso ao dispor que extinta a punibilidade não se impõe medida de se gurança nem subsiste a que tenha sido imposta art 96 parágrafo único Se não fosse assim violarseiam os princípios de igualdade e proporcionalidade 1 As causas de extinção de punibilidade não se confundem com certas causas es peciais de isenção de pena previstas na Parte Especial do Código conhecidas como causas especiais de isenção de pena ou escusas absolutórias que embora produzam os mesmos efeitos são concedidas em caráter personalíssimo e só são aplicáveis a de terminados crimes a exemplo do crime de furto praticado em prejuízo do cônjuge ascendente ou descendente CP art 181 Das causas de extinção da punibilidade cuida o art 107 do Código Mas tal elenco não é taxativo pois outras existem no próprio Código e fora dele a exemplo do ressar cimento no peculato culposo CP art 312 3º ia parte e da colaboração premiada Lei nº 128502013 art 4 561 PAULO QEIROZ De acordo com Heleno Cláudio Fragoso no rol das causas extintivas de punibili dade previstas no Código figuram também situações que extinguem não a pena mas o próprio crime como ocorre com a anistia que faz desaparecer o delito e a abolitio criminis que faz o agente retomar a condição de primário1 Por fim o art 108 do Código dispõe que a extinção da punibilidade de crime que é pressuposto elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não se es tende a este Nos crimes conexos a extinção da punibilidade de um deles não impede quanto aos outros a agravação da pena resultante da conexão disposição que tem as seguintes implicações a a extinção da punibilidade de crime que é pressuposto de outro não se estende a este Essa norma é aplicável aos crimes acessórios cuja configuração pressupõe um outro principal assim a receptação em relação ao furto sendo que a extin ção da punibilidade do principal no caso o furto não se comunica ao acessório no caso a receptação b a extinção da punibilidade de crime que é elemento de outro não se estende a este Essa norma é aplicável aos crimes complexos assim a extorsão mediante sequestro caso em que a extinção da punibilidade do sequestro Uá contido na extorsão CP art 148 não se estende à extorsão mediante sequestro CP art 159 c a extinção da punibilidade de crime que é circunstância agravante ou qualifica dora de outro não se estende a este Essa norma é também aplicável aos crimes complexos como v g ao furto qualificado pela destruição de obstáculo CP art 155 4º I lª parte em que a extinção da punibilidade do dano CP art 163 que qualifica o furto não o atinge d nos crimes conexos a extinção da punibilidade de um deles não impede quan to aos outros a agravação da pena resultante da conexão v g o agente que para estuprar uma mulher mata pessoa que testemunha o crime terá a pena do homicídio qualificada pela conexão CP art 121 2º V ainda que venha a ocorrer a extinção da punibilidade do estupro por qualquer motivo prescrição decadência etc 2 Parecenos todavia quanto à última hipótese agravação da pena resultante da conexão entre os delitos que nem sempre é razoável ou legítimo o aumento com base em crime já atingido pela extinção da punibilidade Assim por exemplo se o agente acusado de duplo homicídio culposo em conexão é beneficiado pelo perdão judicial relativamente a um deles não faz sentido agravarse a pena daquela infra ção que motivou a condenação visto que a agravante fundarseia num nãocastigo numa nãopena decisão absolutória Enfim uma sentença absolutória não pode em Lições cit p 399 2 Damásio de Jesus Direito penal cit p 681 562 PAULO QlEIROZ 22 Anistia graça e indulto Anistia graça e indulto são manifestações de indulgência clemência do Estado em favor de autor de crime Distinguemse pela competência alcance e motivação A anistia normalmente concedida em crime político e que poderá darse antes ou depois da sentença penal passada em julgado é de atribuição do Congresso Nacional sujeita à sanção do Presidente da República CF art 48 VIII Já a graça também conhecida como indulto individual e o indulto de compe tência privativa do Presidente da República CF art 84 XII geralmente concedidos a quem se acha no cumprimento de pena embora extingam a punibilidade mantêm inal terados os demais efeitos da condenação reincidência etc diferentemente da anistia que faz cessar todos os efeitos penais É importante notar que o Presidente da República poderá delegar a concessão de indulto e a comutação de penas aos Ministros de Estado ao ProcuradorGeral da Re pública ou ao AdvogadoGeral da União CF art 84 parágrafo único Na prática os decretos de indulto anualmente editados já preveem os casos que comportariam a graça mas a doutrina os distingue dizendo que a graça é individual e solicitada enquanto o indulto é coletivo e espontâneo Em princípio todos os crimes são passíveis de anistia graça e indulto Mas a Constituição fez uma ressalva para declarar insusceptíveis de anistia e graça os crimes hediondos e assemelhados CF art 5º XLIII Nesse sentido também dispõe a Lei nº 945597 que proíbe a graça e a anistia para os condenados por crime de tortura Já a Lei nº 807290 art 2º Lei de Crimes Hediondos foi aparentemente além da Cons tituição e referiu também o indulto a cujo respeito o texto constitucional fora omisso motivo pelo qual a doutrina diverge sobre a constitucionalidade da lei no particular Alberto Silva Franco defensor da posição minoritária tem que se a Constituição incluiu a concessão de indulto e a comutação de penas entre as atribuições privativas do Presidente da República CF art 84 XII e se ela própria não excepcionou o exer cício dessa competência não poderia fazêlo o legislador ordinário motivo pelo qual o inciso 1 do art 2º da Lei nº 807290 é inconstitucional5 Historicamente o indulto era concedido somente ao réu condenado a pena corpo ral prisão etc Mas os últimos decretos têm previsto expressamente a possibilidade de concessão de indulto ao réu em cumprimento de pena restritiva de direito presta ção de serviço à comunidade etc mesmo que jamais tenha passado pela experiência carcerária E é de todo razoável que seja assim seja porque quem pode o mais indultar cri mes mais graves pode em princípio o menos indultar crimes menos graves seja por que se delitos e penais mais graves são indultáveis é imperioso que os menos graves também o sejam 5 Crimes hediondos 5 ed São Paulo RT 2005 p 1 7 1 564 12s 1 CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE ruNJBILIDADE 27 Prescrição 2 71 Conceito e fundamento A prescrição penal é a extinção do direito de punir em virtude do decurso do pra zo legal para o exercício da ação penal ou para promover a execução da sentença penal condenatória No primeiro caso haverá prescrição da pretensão punitiva ou prescrição da ação no segundo prescrição da pretensão executória ou prescrição da condenação Tratase da causa mais importante de extinção da punibilidade uma vez que é a mais frequente podendo atingir tanto a pretensão punitiva quanto a pretensão executó ria Não poderia ser diferente a extraordinária frequência da prescrição haja vista que diante do excesso de leis penais aliado à tradicional lentidão do sistema penal não poderia o Estado pretender ter o controle de coisa alguma tudo a concorrer para o descrédito dos órgãos e agentes incumbidos da repressão penal A prescrição constitui assim prova de que contrariamente ao provérbio a justiça tarda e falha Cuidandose de matéria de ordem pública a prescrição deve ser decretada inde pendentemente de provocação do interessado de ofício portanto e a qualquer tem po constituindo questão prejudicial ao conhecimento do mérito da causa razão pela qual eventual recurso da defesa não terá seguimento se a prescrição for previamente reconhecida por falta de interesse de agir A razão para não se admitir a apreciação do mérito em tais casos reside nisso quem não pode condenar tampouco pode absolver Consequentemente a decretação da prescrição prejudica todo e qualquer julgamento de mérito contra ou a favor do réu Além disso tolerar recurso visando a decretar a absolvição não obstante a prescrição da pretensão punitiva tornaria o instituto grandemente inútil Apesar disso parece razoável admitirse em casos extremos recurso do réu que pretenda provar sua inocência e só neste caso visto que a decisão que decreta a prescrição sempre deixa em suspense a culpabilidade podendo macularlhe a reputa ção gravemente Como regra vigora o princípio da prescritibilidade de todos os crimes de ação penal pública ou privada hediondos ou não Mas a Constituição previu uma exceção ao declarar imprescritíveis a prática do racismo e a aÇão de grupos armados civis ou niilitares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático art 5 XLII e XLIV exceção injustificável uma vez que crimes tão ou mais graves são passíveis de prescrição latrocínio homicídio etc Também são imprescritíveis em geral os chamados crimes internacionais de competência dos tribunais internacionais a exem plo dos crimes de genocídio contra a humanidade de guerra e de agressão art 29 previstos no Estatuto de Roma art 5º que criou o Tribunal Penal Internacional TPI Discutese se a lei ordinária poderia ampliar o rol dos crimes ditos imprescrití veis parecendonos que sim por se tratar de típica matéria infraconstitucional além de existir na legislação ordinária infrações mais graves Enfim o rol constitucional dos crimes imprescritíveis é meramente exemplificativo motivo pelo qual o legislador 567 PAULO QJ E I ROZ ordinário poderá eventualmente dispor a esse respeito ampliando ou restringindo o elenco das infrações imprescritíveis inclusive porque a afirmação constitucional de imprescritibilidade de certos delitos implica apenas a imprescritibilidade mesma e não a prescritibilidade de todos os demais crimes8 Apesar de consagrada histórica e constitucionalmente autores importantes a ela se opuseram como Beccaria para quem tratandose de crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens se os mesmos forem provados não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga Não é todavia o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis é mister fixar um tempo após o qual o acusado bastante punido pelo exílio voluntário possa reaparecer sem recear novos castigos9 Sobre a razão de ser do instituto há muita divergência10 Mas é erro dissociálo dos fins assinalados ao direito penal mesmo uma vez que sua justificação tem caráter marcadamente políticocriminal É que como disse Carrara a prescrição constitui um modo político de extinção da ação 11 Com efeito ao estabelecer determinado prazo para o exercício da ação penal ou para a execução da pena o Estado julga segundo critério de política criminal que excedido aquele período de tempo a pena tornarseá desnecessária por não mais servir à prevenção geral e especial de delitos ou outros fins políticos que sejam assinalados Daí dizer Manzini que se o poder de punir se jus tifica exclusivamente pelo critério da necessidade todo o exercício do poder repressivo será injustificado quando não pareça necessário12 Enfim tal qual as demais causas de extinção de punibilidade anistia etc a pres critibilidade ou não do crime encerra uma decisão política mesmo porque o próprio direito penal é um fenômeno político com fins e limites também políticos Recentemente em 5 de maio de 2010 entrou em vigor a Lei nº 12234 que modi ficou a prescrição quanto ao seguinte a aumentou o prazo mínimo de prescrição de 2 dois anos para 3 três anos se o máximo da pena cominada for inferior a 1 um ano b vedou a contagem da prescrição retroativa entre a data do fato e a data do recebi mento da denúncia E por se tratar de lei prejudicial ao réu só poderá ser aplicada às infrações penais cometidas posteriormente à sua entrada em vigor por força do princí pio da irretroatividade da lei Não houve porém extinção da prescrição retroativa que subsistiu mas já agora somente é possível entre o despacho de recebimento da denúncia e a sentença 8 No mesmo sentido Ney Fayet Júnior Prescrição Penal v 3 Porto Alegre Livraria do Advogado editora 201 1 p 60 9 Dos delitos e das penas cit XIII p 77 1 0 Sobre o assunto vejase Da prescrição penal de Antônio Rodrigues Porto São Paulo Revista dos Tribunais 1 983 1 1 Apud Rodrigues Porto Da prescrição penal cit p 8 12 Tratado de derecho penal Trad Santiago Sentís Melendo Buenos Aires Ediar 1950 v 5 p 147 568 1 25 1 CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE PUNIBI LI DADE Não cabe mais falar enfim de prescrição retroativa entre a data da consumação do crime e o despacho de recebimento da denúncia ou queixa Entre um marco e outro só é possível atualmente prescrição da pretensão punitiva ordinária regulada com base na pena máxima cominada 2 72 Espécies de prescrição 1 Duas são as espécies de prescrição prescnçao da pretensão pumtlva ou da açã9 e prescrição da pretensão executória ou da condenação A primeira ocorre an tes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória a segunda após o trânsito em julgado No primeiro caso a prescrição será regulada pelo máximo da pena cominada ao crime conforme parâmetro do art 109 do CP que estabelece prazos proporcionais à gravidade da infração Assim por exemplo a lesão corporal leve CP art 109 caput cuja pena máxima é de um ano de detenção prescreverá em quatro anos o furto sim ples CP art 155 caput cuja pena máxima é de quatro anos de reclusão prescreverá em oito anos o homicídio simples CP art 121 caput cuja pena máxima é de vinte anos prescreverá em vinte anos etc No segundo caso prescrição da condenação a prescrição regularseá pela pena aplicada na sentença não mais importando a pena cominada O motivo a autorizar semelhante distinção para a verificação da prescrição é sim ples no primeiro caso o legislador por não saber qual a pena justa a ser aplicada ao réu optou ante a incerteza por tomar como referência o máximo da pena aplicável à espécie No segundo caso já se sabendo qual a pena justa cujo quantum não é mais modificável não faria sentido insistir em regular a prescrição com base no máximo da pena cominada estando assim justificado o abandono daquele critério inicialmente adotado Exemplificando se A pratica em 20 de maio de 2010 crime de violação de corres pondência CP art 151 vindo o inquérito a ser concluído somente em 20 de junho de 20B o Ministério Público em vez de oferecer denúncia terá de requerer o arquiva merito do inquérito em face da prescrição que é de três anos uma vez que a pena má xim1a cominada ao crime é inferior a um ano isto é seis meses de detenção Na mesma hipótese ocorreria prescrição da condenação se não tendo havido prescrição da ação fosse o réu condenado a quatro meses de prisão vindo a se iniciar por qualquer razão fuga desleixo etc a execução da pena mais de três anos após o trânsito em julgado da sentença A prescrição da pretensão punitiva compreende além da prescrição antes refe rida que poderíamos chamar ordinária a prescrição extraordinária retroativa e superveniente a qual diferentemente da primeira é regulada com base no mesmo critério da prescrição da pretensão executória a pena aplicada e não a pena comi nada Em ambos os casos só se poderá cogitar de prescrição retroativa ou super veniente quando houver trânsito em julgado da sentença para a acusação ou se o evelltual provimento do recurso da acusação não tiver qualquer repercussão sobre o 569 PAULO QljEI ROZ prazo prescricional Exemplo se o Ministério Público inconformado com uma sen tença condenatória a um ano de reclusão apelar da sentença para obter um aumento em virtude de continuidade delitiva o provimento desse recurso não modificará em nada o prazo prescricional que continuará sendo de quatro anos CP art 109 V Como veremos o acréscimo de pena decorrente de concurso de crimes é irrelevante para fins prescricionais Notese que todas essas modalidades de prescrição retroativa superveniente e prescrição da pretensão executória são formas residuais de prescrição vale dizer so mente serão apreciadas e decretadas caso já não tenha ocorrido a prescrição da preten são punitiva ordinária Portanto entre essas modalidades de prescrição há relação de sucessão e prejudicialidade uma vez que a prescrição extraordinária pressupõe a não ocorrência da prescrição ordinária e a prescrição da pretensão executória pressupõe a não verificação das demais Não obstante é possível que diante de desatenção das partes ou do juiz todas elas venham a ocorrer num mesmo processo 2 73 Prazos Os prazos prescricionais variam conforme a pena de prisão cominada ao crime Seu prazo mínimo é em princípio de três anos e o máximo de vinte anos Estão pre vistos no art 109 que fixa os seguintes prazos 1 vinte anos se o máximo da pena é superior a doze 2 dezesseis anos se o máximo da pena é superior a oito anos e não ex cede a doze 3 doze anos se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito 4 oito anos se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro 5 quatro anos se o máximo da pena é igual a um ano ou sendo superior não excede a dois 6 três anos se o máximo da pena é inferior a um ano conforme redação dada pela Lei nº 122342010 Tratandose de pena de multa é preciso distinguir No caso de ser a única pena cominada ou a única pena aplicada a multa prescreverá no prazo de dois anos CP art 1 14 I Mas se a multa for alternativa ou cumulativamente cominada ou cumulati vamente aplicada com pena privativa da liberdade prescreverá no mesmo prazo desta última CP art 1 14 II até porque as penas mais leves prescrevem com as mais graves CP art 1 18 Não faz sentido algum porém que na hipótese de ser a multa alternati vamente cominada prescreva ela como manda o Código no prazo da pena de prisão É que num tal caso não havendo a possibilidade de o juiz aplicála cumulativamente com a pena de prisão mais razoável seria que prescrevesse também no prazo de dois anos à semelhança da multa como única pena cominada Há quem entenda13 que por força da nova redação do art 51 do Código dada pela Lei nº 971498 prevendo que transitada em julgado a sentença condenatória a mul ta será considerada dívida de valor aplicandolhe a legislação relativa à dívida ativa 1 3 Fernando Capez Direito Penal Parte Geral São Paulo Saraiva 2006 p 580 No mesmo sentido Cezar Bitencourt Tratado de direito penal 1 1 ed São Paulo Saraiva 2007 p 73 1 570 1 25 1 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE da Fazenda Pública o prazo de prescrição da pretensão executória da pena de multa passou a ser de cinco anos Temos porém que a só conversão da multa em dívida de valor não lhe retira o caráter penal motivo pelo qual o prazo prescricional permanece rigorosamente o mesmo dois anos A não ser assim violarseiam os princípios de legalidade da pena e de intangibilidade da coisa julgada Salvo disposição em contrário a pena restritiva de direito prescreverá no prazo da pena privativa da liberdade substituída CP art 109 parágrafo único e art 1 18 Quan do a pena restritiva de direito for cominada autonomamente tal como ocorre nalgumas leis especiais v g Código de Trânsito a prescrição da pretensão punitiva será calcu lad1 com base na pena máxima respectiva v g se a lei prevê suspensão de habilitação de 2 a 5 anos a prescrição ocorrerá em 12 anos E a prescrição retroativasupervenien te e da pretensão executória serão calculadas com base na pena aplicada Os prazos prescricionais serão reduzidos de metade sempre que o agente for ao tempo do crime menor de vinte e um anos O mesmo ocorrerá se à época da sentença for maior de setenta anos CP art 115 O termo sentença deve compreender também aléqi das decisões condenatórias de primeiro grau o acórdão condenatório proferido em ação penal originária e em grau recursa seja quando condena pela primeira vez seja quando confirma condenação anterior Evidentemente a redução da maioridade civil para dezoito anos e a definição de idoso como pessoa de sessenta anos não têm qualquer repercussão jurídicopenal no particular14 Quanto às contravenções a prescrição à falta de previsão legal expressa segue os mesmos critérios e prazos do Código Penal CP art 12 No que tange às medidas socioeducativas a Lei nº 806990 Estatuto da Criança e do 1dolescente nada previu a respeito da prescrição Mas a Súmula 338 do STJ dispõe que lhe são aplicáveis as normas do Código inclusive quanto aos prazos mínimos e máximos Finalmente leis há que preveem prazos próprios e diversos de prescrição a exem plo da Lei nº 1 13432006 cujo art 30 dispõe que quanto ao crime do art 28 porte de droga para consumo pessoal o prescrição ocorrerá em dois anos 2 7 3 1 Prescrição da Medida de Segurança No que tange à prescrição das medidas de segurança o Código não prevê norma específica razão pela qual os prazos são em princípio os mesmos previstos para a pres crição da pena adotados os mesmos critérios Enfim a prescrição seria regulada com base na pena máxima cominada Entretanto há quem entenda que a prescrição da me dida de segurança por ser em tese uma sanção penal mais branda deve ser regulaclz não com base na pena máxima cominada mas na pena mínima15 O mesmo ocorrerá 14 No sentido do texto STF HC nº 89969 Min Marco Aurélio decisão de 1 3 03 2007 1 5 Nesse sentido Sídio Rosa d e Mesquita Júnior Prescrição Penal 3 ed S PaLtlo Atlas 2003 p 1 35 1 36 Também assim Capez que invoca precedente do STJ Direito Penal Parte Geral S Paulo 5 7 1 PAULO QJ E I ROZ quanto à prescrição da pretensão executória exceto se o juiz eventualmente proceder à prévia individualização da pena e a substituir pela medida de segurança caso em que o prazo prescricional seria regulado com base na pena substituída Quanto a saber se a sentença que a impõe interrompe ou não o prazo de prescri ção tudo depende da natureza jurídica conferida à decisão De fato se se entender conforme a doutrina e jurisprudência majoritárias que a aludida sentença é absolutória imprópria é evidente que não há interrupção Ao contrário caso se tenha a decisão como condenatória ou mista conforme entendemos o prazo interromperá com a sua publicação Por fim no caso de conversão da pena de prisão em medida de segurança em ra zão de superveniência de doença mental a prescrição será regulada com base na pena aplicada na sentença condenatória porque a não ser assim violarseia a coisa julgada 2 74 Causas de aumento e de diminuição de pena À exceção do aumento decorrente de concurso de crimes material formal e crime continuado as causas de aumento e de diminuição de pena devem ser consideradas para efeito de prescrição Se houver causas de aumento de pena é preciso distinguir quando se tratar de limite fixo v g aumento de metade a prescrição regularseá pelo máximo da pena cominada ao crime com o aumento decorrente da incidência da causa de aumento quando se tratar de limite variável v g aumento de 13 a 23 a prescrição regular seá pelo máximo da pena cominada ao crime acrescentado do aumento máximo pre visto no caso 23 Tratandose de causa de diminuição de pena darseá o contrário isto é abater seá do máximo da pena cominada ao crime o mínimo previsto de diminuição Assim na hipótese de crime tentado CP art 14 II parágrafo único em que se prevê dimi nuição de um terço a dois terços de pena reduzirseá da pena máxima o mínimo de um terço Se se cuidar de limite fixo não há dificuldade uma vez que será diminuído esse quantum Como se vê prevalece sempre para todos os casos o prazo máximo de prescrição possível regulado que é segundo o critério da mais alta pena cabível Já as circunstâncias judiciais CP art 59 e legais agravantes e atenuantes são ir relevantes para efeito de prescrição da pretensão punitiva ordinária uma vez que já é regulada com base na pena máxima cominada a qual não pode ser majorada para além do máximo ainda que presentes tais circunstâncias No entanto no caso de prescrição extraordinária ou executória que são reguladas com base na pena aplicada deve ser tomada em conta a pena definitiva e não a penabase ou provisória e portanto já ago ra as circunstâncias judiciais e legais contam para esse efeito Saraiva 2006 p 574 572 1251 CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE PUNIBILIDADE 2 75 Reincidência Em se verificando que o sentenciado é reincidente o prazo de prescrição aumenta rá de um terço relativamente à infração que a acarretar mas esse aumento só é aplicá vel à prescrição da pretensão executória Nesse sentido a Súmula 220 do STJ dispõe A reincidência não influi no prazo da prescrição da pretensão punitiva Nos demais casos prescrição retroativa e superveniente o aumento da reincidência não incidirá haja vista que tais modalidades de prescrição ao atingirem a pretensão punitiva des constituem a própria sentença Além de aumentar o prazo prescricional a reincidência também interrompe a prescrição figurando entre as causas de interrupção da prescrição da pretensão exe cutória CP art 1 17 VI motivo pelo qual a sentença que a reconhecer importará no surgimento de um novo termo inicial de prescrição 2 7 6 Concurso de crimes Havendo concurso de crimes formal material ou continuidade delitiva as pe nas não serão somadas para efeito de prescrição de modo que cada crime prescreverá isoladamente CP art 119 É que ao regular o instituto da prescrição o Código des prezou a disciplina do concurso de crimes Poderseia mesmo dizer para efeito de prescrição não existe concurso de crimes Assim se o agente cometeu em concurso material crimes de homicídio e ocultação de cadáver as penas dos dois delitos não serão somadas devendose verificar a prescrição de cada um deles autonomamente conforme o máximo da pena cominada ou aplicada Quanto à continuidade delitiva a Súmula 497 do STF dispõe que quando se tra tar de crime continuado a prescrição regulase pela pena imposta na sentença não se computando o acréscimo decorrente da continuidade delitiva O mesmo deve ser dito do aumento decorrente do concurso formal 2 7 7 Prescrição ordinária da pretensão punitiva A prescrição da pretensão punitiva ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória tendo como parâmetro o máximo da pena cominada já que não se sabe qual pena será aplicada finalmente ao respectivo delito Nesse caso a prescrição será contada da data do fato à data do despacho de recebimento da denúncia ou queixa ato judicial que interrompe o curso da prescrição Também poderá ocorrer entre o dia em que se deu o aludido despacho e a respectiva sentença penal Exemplificando a segunda hipótese já que exemplo da primeira foi anteriormente referido o Ministério Público oferece denúncia por crime de ameaça CP art 147 dentro do prazo legal de três anos Recebida a denúncia em 20062010 a instrução processual e demais atos encerram somente em 25062013 Nesse caso o juiz ao in vés de julgar o réu deverá decretar a prescrição haja vista que entre a data do despa cho de recebimento da denúncia e o dia em que deveria ser julgada a ação decorreu tempo superior ao prazo prescricional que é de três anos 573 PAULO QJEIROZ 2 78 Prescrição extraordinária retroativa e superveniente O Código admite que a prescrição da pretensão punitiva seja regulada não com base na pena máxima cominada mas com base na pena aplicada ou seja pode ser adotado excepcionalmente o mesmo critério válido para a prescrição da pretensão executória Tal possibilidade somente é possível quando já houver uma sentença penal condenatória que tenha transitado em julgado para a acusação ainda que dela a defesa tenha eventualmente recorrido Aliás mesmo havendo recurso da acusação visando a aumentar a pena também será possível decretála se o eventual provimento do recurso da acusação não tiver qualquer repercussão sobre o prazo prescricional Exemplo se o Ministério Público inconformado com uma sentença condenatória a um ano de re clusão apelar da sentença para obter um aumento de até o dobro da pena dois anos de prisão o provimento desse recurso não modificará em nada o prazo prescricional que continuará sendo de quatro anos CP art 109 V Essa prescrição extraordinária pode ser contada retroativamente à sentença prescrição retroativa e supervenientemente a esta prescrição superveniente Em am bos os casos tal é admitido por já se conhecer a pena justa e este ser em verdade o critério que deveria desde o princípio regular a prescrição desprezandose o máximo da pena cominada A prescrição retroativa pressupõe a impossibilidade de reforma da sentença em prejuízo do réu vale dizer exigese o trânsito em julgado para a acusação sendo ir relevante o trânsito em julgado para a defesa É que na hipótese de só existir recurso da defesa a pena não poderá ser majorada em prejuízo do réu reformatio in pejus e aumentar o prazo prescricional Exemplificando o agente é condenado em 06072013 pelo crime de lesão cor poral leve CP art 1 29 caput cuja denúncia foi recebida em 06062010 a onze me ses de detenção ocorrendo o transitado em julgado da sentença para a acusação Pois bem embora não tenha havido prescrição ordinária da pretensão punitiva que ocor reria em quatro anos houve prescrição extraordinária retroativa uma vez que entre a data do despacho de recebimento da denúncia e a sentença transcorreram mais de três anos que é o prazo prescricional com base na pena concreta 11 meses Mutatis mutandis ocorreria prescrição superveniente se tendo sido publicada a sentença condenatória em 06062010 com trânsito em julgado logo a seguir para a acusação o tribunal viesse a se reunir para julgar eventual apelação da defesa so mente em 06102013 Em tal caso deverseia decretar a prescrição superveniente entre a data da publicação da sentença e a respectiva sessão de julgamento do recur so da defesa Enfim a prescrição retroativa como o próprio nome diz retroage à data da sen tença contase para trás e a superveniente sobrevém à sentença contase para fren te adotandose os mesmos critérios pena em concreto trânsito em julgado da senten ça para a acusação etc 574 l25j CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE PUN I B I L I DADE Já vimos que em 5 de maio de 2010 entrou em vigor a Lei nº 12234 que modificou a prescrição quanto ao seguinte aaumentou o prazo mínimo de prescrição de 2 dois anos para 3 três anos se o máximo da pena cominada for inferior a 1 um ano bve dou a contagem da prescrição retroativa entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia E por se tratar de lei prejudicial ao réu só poderá ser aplicada às infra ções penais cometidas posteriormente à sua entrada em vigor por força do princípio da irretroatividade da lei 1 Não houve portanto extinção da prescrição retroativa que subsistiu mas já ago ra somente é possível entre o despacho de recebimento da denúncia e a sentença Não cabe mais falar enfim de prescrição retroativa entre a data da consumação do crime e o despacho de recebimento da denúncia ou queixa Entre um marco e outro só é possível atualmente prescrição da pretensão punitiva ordinária regulada com base na pena máxima cominada 2 7 9 Prescrição retroativa antecipada Discutese se seria cabível a decretação da prescrição antes de sua efetiva ocorrên cia ante a sua provável consumação em virtude das múltiplas circunstâncias do caso tempo decorrido ausência de antecedentes do réu e possível pena a ser aplicada Então indagase o seguinte diante da provável ocorrência da prescrição não seria razoável que o juiz a reconhecesse desde logo evitando um processo que se sabe de antemão inútil De acordo com a jurisprudência tal não é possível Nesse exato sentido dispõe a Súmula 438 do STJ é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pre tenso punitiva com fundamento em pena hipotética independentemente da existência ou sorte do processo penal Já a doutrina está dividida no particular Contra essa modalidade prescritiva a doutrina e a jurisprudência alegam em ge ral o seguinte falta de previsão legal violação ao princípio do estado de inocência fundkmentação em dado aleatório possibilidade de mudança do libelo etc A argumentação não convence porém Primeiro porque o fato de não existir pre visão legal argumento próprio de quem confunde a lei com o direito e supõe um sistema jurídico hermético e sem lacunas não impede que se reconheça por analogia 1 analogia in banam partem tal possibilidade desde que compatível com as garan tias inerentes ao direito e processo penal Segundo porque interessando a prescrição pouco importando se antecipada ou não ao próprio agente não há falar de violação à garantia da presunção de inocência que é instituída em favor do indivíduo e não do Estado a quem não interessa ao menos em tese o reconhecimento da prescrição Terceiro porque o juiz deveria reconhecêla fundamentadamente valendose de fatos dados e circunstâncias que dessem como certa a inevitabilidade da prescrição não se baseando em dado aleatório Finalmente porque a possibilidade de mudança do libelo é aplicável a toda e qualquer modalidade de prescrição 575 PAULO QlJEIROZ Não seria pois irrazoável decretarse a prescrição antecipadamente quando ine vitável uma vez que em tais casos o titular da ação careceria de interesse de agir haja vista que a intervenção penal como ultima ratio do controle social formal somente deve ter lugar em casos de absoluta necessidade para segurança dos cidadãos o que não se verifica em semelhante contexto por se estar diante de uma persecução penal natimorta inteiramente inútil16 A prescrição retroativa antecipada ou simplesmente prescrição antecipada ou em perspectiva consistiria assim no reconhecimento da prescrição retroativa com base numa pena hipotética sob o argumento de que a eventual pena a ser aplicada em caso de condenação ensejaria inevitavelmente ou com grande margem de probabilidade a prescrição retroativa da pretensão punitiva17 De todo modo semelhante discussão restou grandemente prejudicada com o ad vento da citada Súmula 438 do STJ que a inadmitiu 2 71 O Termo inicial da prescrição O termo inicial da prescrição varia conforme se trate de prescrição da pretensão punitiva ou de prescrição da pretensão executória 2 711 Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva A prescrição começa a correr do dia em que o crime se consumou Diferentemente da disciplina conferida ao tempo do crime art 4º quando se filiou à teoria da ação o Código adotou no particular a teoria do resultado segundo a qual para efeito de prescrição não importa o momento da ação mas o momento do resultado Assim por exemplo se A desfere golpes contra B que falece meses após é a partir da morte con sumação que terá início o prazo prescricional Tratandose de crimes materiais a consumação dáse com a produção do resulta do formais e de mera conduta com a realização da atividade visto que é irrelevante o resultado naturalístico para efeito de consumação omissivos impróprios com o ad vento do resultado omissivo próprio com a abstenção da conduta legalmente exigida permanentes e habituais com a cessação da permanência ou da habitualidade Nesse sentido de considerar que o prazo da prescrição no crime habitual iniciase da data da última das ações que constituem o fato típico HC 87987RS do STF Rei Min Se púlveda Pertence 95200618 1 6 No sentido do texto dentre outros Celso Delmanto Código Penal comentado cit Idem Paula Ma chado Prescrição penal Prescrição funcionalista São Paulo Revista dos Tribunais 2000 Lozano Jr Presctição Penal Saraiva 2002 Eugênio Pacelli Curso de processo penal Belo Horizonte Dei Rey 2003 1 7 Lozano Jr Prescrição penal São Paulo Saraiva 2002 p 1 8 1 1 8 De modo diverso Ney Fayet Júnior para quem nos crimes habituais a prescrição antes de transi tar em julgado a sentença final deve começar a correr com a consumação delitiva e não a partir da 576 PAULO QJ E I ROZ Nesse caso o termo inicial da prescrição é aquele em que houve preclusão do di reito de a acusação apelar em primeiro grau 20052005 ou a data em que a sentença passou em julgado para acusação em segundo grau 30052013 Se considerarmos o primeiro termo inicial haverá prescrição se consideramos o segundo não Temos que nesse caso não houve prescrição da pretensão executória É que a prescrição da pretensão executória há de pressupor forçosamente o trân sito em julgado da decisão para a acusação e defesa em última instância e não em pri meiro grau exceto se não houver recurso algum motivo pelo qual somente a partir do momento em que a condenação fizer coisa julgada passar a constituir título executivo judicial e pois autorizar o imediato cumprimento da pena é que se poderá cogitar de prescrição da pretensão executória Em suma a prescrição em causa que pressupõe o trânsito em julgado da decisão para ambas as partes tem por termo inicial o dia do trânsito em julgado para a acusa ção em última instância Primeiro porque por força do princípio da presunção de inocência CF art 5 LVII ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória Logo o cumprimento da pena não pode darse antes disso embora o processo possa eventualmente comportar prisão provisóriacautelar Naturalmente que o trânsito em julgado pressupõe o exaurimento de todos os re cursos possíveis da acusação e da defesa Antes disso não cabe falar por conseguinte de prescrição da pretensão executória que pressupõe logicamente a constituição defi nitiva da sentença como título executivo judicial contra o respectivo condenado Além disso não faria sentido algum que embora vedada a execução provisória da pena contra o réu o prazo prescricional da pretensão executória pudesse fluir de forma antecipada e normalmente E mais não sendo juridicamente possível a execução provisória da sentença passível ou pendente de recurso não há cogitar de inércia da acusação e consequentemente de prescrição a qual constitui em última análise uma forma de punição da negligência no exercício do poder punitivo Ademais como falar de prescrição relativamente a uma sentença ainda passível de ser reformada e anulada total ou parcialmente Enfim se não é juridicamente possível o ato principal execução da sentença con denatória não o é tampouco o acessório fluência do prazo prescricional que o pres supõe Segundo porque a não ser assim a lei penal estaria a fomentar a interposição de recursos com fins meramente procrastinatórios visando à consumação da prescrição Terceiro porque a doutrina contrária ao que aqui defendemos confunde clara mente o trânsito em julgado da sentença coisa julgada com a simples preclusão do direito de apelarrecorrer Em síntese o termo inicial da prescrição da pretensão executória é realmente o dia do trânsito em julgado da sentença para a acusação 578 1251 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE Mas isso não quer dizer evidentemente preclusão do direito de apelar pois ainda que tal ocorra há sempre a possibilidade de interposição de múltiplos recursos da acu sação e da defesa nas instâncias superiores tribunal de justiça etc motivo pelo qual só depois do julgamento definitivo de todos os recursos interpostos é que se poderá cogitar de prescrição da pretensão executória visto que só aí a sentença terá definitivamente transitado em julgado e se constituído em título executivo judicial em favor do Estado Não se pode pois confundir trânsito em julgado da sentença com preclusão do direito de apelar da sentença em primeiro grau visto que a prescrição da pretensão executória pressupõe coisa julgada formal e material e a consequente constituição do título executivo judicial além da inércia estatal Afinal a prescrição da pretensão exe cutória tem por pressuposto a possibilidade legal da execução penal e a sua inexecução por desídia dos órgãos competentes Obviamente que a expressão sentença a que se refere o art 112 do CP não pode ser interpretada literalmente pois do contrário excluiria toda e qualquer decisão acór dão proferida nos tribunais inclusive o acórdão condenatório em ação penal originá ria O termo sentença deve ser entendido por isso como toda e qualquer decisão que importe em condenação total ou parcial Em conclusão 1 a prescrição da pretensão executória é uma forma residual de prescrição pois pressupõe a não ocorrência de prescrição da pretensão punitiva em quaisquer de suas formas 2 pressupõe o trânsito em julgado para ambas as partes 3 logo não corre enquanto não fizer coisa julgada para acusação e defesa 4 apesar disso o termo inicial é o dia do trânsito em julgado para a acusação sendo irrelevante quando se deu o trânsito para a defesa 5 o termo inicial não é o dia em que precluiu o direito de apelar exceto se não houve recurso algum das partes 6 o termo inicial é o dia em que a decisão sentença eou acordão passou em julgado para a acusação na última instância juízo ou último tribunal a apreciar recurso das partes b Revogação de livramento condicional No caso de o condenado se achar no gozo de livramento condicional poderá eventualmente ocorrer a revogação voltando à prisão Em isso ocorrendo a prescrição começará a correr do dia da sentença que revogou o benefício c Dia de interrupção da execução A execução da pena poderá ser interrompida por duas razões fuga do condenado ou internação em hospital psiquiátrico CP art 41 No primeiro caso a prescrição correrá a partir da data da evasão do condenado E mais importante será regulada não com base na pena imposta na sentença mas com fundamento na pena que restava por cumprir art 1 1 3 de sorte que se condenado a seis anos de prisão vem a empreender fuga após o cumprimento de quatro anos a prescrição será calculada com base no tempo restante de pena dois anos Há inclusive quem entenda que a detração deve ser considerada para esse efeito20 20 Assim Delmanto Código Penal comentado cit 579 PAULO QjEIROZ No segundo caso de internação em hospital psiquiátrico em virtude da super veniência de doença mental ou perturbação da saúde mental no curso da execução o tempo de internamento será computado na pena 2 713 Causas impeditivas ou suspensivas da prescrição Causas há que impedem ou suspendem a prescrição de modo que com o seu ad vento o prazo de prescrição não corre ficando suspenso e na dependência daquela causa que a determina Nesse caso e diferentemente do que ocorre com as causas in terruptivas da prescrição o tempo transcorrido antes da suspensão será contado para efeito de verificação da extinção da punibilidade Assim antes de passar em julgado a sentença final a prescrição não corre CP art 116 a enquanto não resolvida em outro processo questão de que dependa o reconhe cimento da existência do crime b enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro Na primeira hipótese o Código cuida das chamadas questões prejudiciais previs tas nos arts 92 a 94 do Código de Processo Penal Na segunda se o agente estiver cumprindo pena no exterior aguardarseá o seu cumprimento período em que o prazo prescricional não fluirá Diversas outras causas de suspensão do prazo prescricional estão previstas fora do Código Assim a suspensão condicional do processo Lei nº 909995 art 89 6º a citação por edital do réu que não constitui advogado CPP art 366 a inclusão no REFIS Lei nº 99642000 art 15 etc 2 714 Causas interruptivas da prescrição Já as causas interruptivas da prescrição como o nome diz simplesmente inter rompem o prazo prescricional fazendo começar um novo prazo a partir da causa inter ruptiva desprezandose o tempo anteriormente transcorrido Vejamos cada uma sepa radamente CP art 1 17 a Despacho de recebimento da denúncia ou da queixa O primeiro ato a interromper a prescrição é o despacho de recebimento da denún cia ou da queixa que não deve ser confundido com o mero oferecimento da denúncia ou da queixa Obviamente não a interrompe o despacho que a rejeitar na forma da lei CPP art 43 Quando se tratar de concurso de agentes coautoria ou participação diz o Código art 1 17 1 º primeira parte que a interrupção da prescrição produz efeitos relativa mente a todos os autores do crime Como interpretar esse artigo Parecenos que a comunicabilidade de que trata o dispositivo somente é legítima quando se cuidar de coautores ou partícipes assim reconhecidos no despacho de rece bimento da denúncia ou da queixa Consequentemente a prescrição não é interrom pida quanto àqueles que embora formalmente denunciados foram beneficiados por despacho judicial de rejeição da denúncia ou da queixa Assim por exemplo se o juiz 580 PAULO QJEIROZ palavra o despacho de recebimento eou aditamento da denúnciaqueixa devem ter o mesmo tratamento pois implicam a admissão formal de uma acusação mas exclusiva mente quanto a quem tiver contra si admitida A interrupção ocorrerá com a publicação da decisão em cartório Quando se tratar de ação penal da competência originária dos tribunais ou de apreciação de recurso a interrupção ocorrerá no dia da respectiva sessão de julgamen to e não quando da publicação do seu resultado no diário oficial quer porque a sessão é pública quer porque a publicação no diário visa a fins processuais em especial dar ciência ao réu da decisão oportunizandolhe a interposição de recurso b Decisão de pronúncia Nos crimes de competência do crimes dolosos contra a vida interrompe o prazo prescricional a decisão que pronuncia o réu submetendoo a julgamento perante aque le tribunal em virtude de prova da materialidade do crime e de indícios suficientes da autoria Contrariamente o despacho de impronúncia do réu de absolvição sumária ou de desclassificação são irrelevantes para esse fim Na hipótese de o desclassificar o cri me incide a Súmula 191 do STJ A pronúncia é causa interruptiva da prescrição ainda que o venha a desclassificar o crime Também a decisão do tribunal que confirma a decisão de pronúncia interromperá a prescrição c Sentença ou acórdão condenatórios recorríveis Interrompe a prescrição a sentença que condena o réu a contar da publicação A contrario sensu não produz o mesmo efeito a sentença que o absolver ainda que apli cando medida de segurança caso se trate de inimputável ou semiimputável Na hipótese de condenação por um crime e absolvição por outro a interrupção limitarseá ao delito objeto da condenação idem se havendo concurso de agentes ocorrer condenação de uns e absolvição de outros devendo a interrupção alcançar so mente os condenados Também não a interrompe a sentença concessiva de perdão ju dicial visto ter caráter absolutório havendo mais de um réu a sentença somente inter romperá a prescrição quanto aos condenados não atingindo os corréus absolvidos A interrupção ocorrerá com a publicação da sentença em cartório CPP art 389 Nas mesmas circunstâncias interromperá a prescrição o acórdão do tribunal que condenar o réu absolvido em primeiro grau ou confirmar a sentença condenatória a quo De acordo com o art 1 17 IV do Código Penal interrompe a prescrição a sentença condenatória recorrível Apesar de o Código se omitir quanto ao acórdão condenatório a doutrina entendia que também este interrompe a prescrição em duas hipóteses a condenação pelo tribunal em ação penal originária b condenação em grau de recurso reformando sentença absolutória É que não obstante o nome acórdão a decisão do tribunal equivaleria a uma autêntica sentença condenatória No entanto distinguiase este acórdão condenatório daquele que confirmava a sentença condenatória de primeiro grau diziase então que este acórdão confirmatório 582 1251 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNI BI LIDADE da condenação não interrompia a prescrição A interpretação fundavase em dois ar gunjlentos básicos a quando o Código quis referir a decisão confirmatória como causa interruptiva fez expressamente a exemplo da decisão confirmatória da pronúncia in ciso III b não se pode considerar como sentença condenatória recorrível acórdão confirmatório de sentença condenatória recorrível por serem atos judiciais distintos o primeiro é pressuposto do segundo inclusive Do contrário haveria analogia in malam par4em em prejuízo do acusado Exatamente por isso a prescrição era por esta e outras razões bastante frequente já que novos recursos eram interpostos contra o acórdão confirmatório da sentença condenatória recorrível por vezes meramente procrastinatórios a ensejar a decretação de prescrição tendo por termo inicial a sentença condenatória de primeiro grau A Lei nº 1 159607 foi editada justamente com a finalidade de dar efeito interrup tivo também ao acórdão confirmatório da sentença penal recorrível conforme consta expressamente da justificação do Projeto nº 401200322 suprindo a omissão do Código dispondo que a prescrição é interrompida pela publicação da sentença ou acórdão condenatório recorríveis Apesar disso alguns autores23 ainda afirmam que a omissão persiste o acórdão confirmatório da sentença condenatória recorrível não interrompe a prescrição Dizem que ia lei se limitou a dispor sobre tema já pacificado na jurisprudência o acórdão que provendo recurso da acusação condenar o réu interrompe a prescrição idem acórdão que condenar em ação penal originária O equívoco é manifesto Primeiro porque esta lei não faz distinção entre acórdão condenatório e confirma tóriÓ da sentença condenatória distinção que é própria da decisão de pronúncia por outras razões no particular a distinção é arbitrária portanto Segundo porque o acór dão que confirma a sentença condenatória a substitui Terceiro porque este acórdão é tão condenatório quanto qualquer outro Quarto porque a distinção implicaria conferir a este acórdão efeito próprio de absolvição Quinto porque não faria sentido algum que I º acórdão que condenasse pela primeira vez interrompesse o prazo prescricional e o acordão que mantivesse a condenção anteriormente decretada não dispusesse desse mesrio poder 22 1Diz a justificação Senador Magno Malta que sabemos que no âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido o entendimento de que o acórdão confirmatório da condenação de primeira instância não é causa interruptiva da prescrição justamente por conta da ausência de expressão previ são legal A presente proposição nesse sentido contribuirá para dirimir os conflitos de interpretação consolidando a posição mais razoável de que o acórdão confirmatório da sentença recorrivel também interrompe a prescrição 23 Nesse sentido Fábio Machado Delmanto e outros Lei nº 1 1 596 Alterações ao art 1 1 7 do Código 1Penal ln Boletim do IBCCrim S Paulo ano 15 nº 1 82 janeiro2008 p 7 Idem Robson Antônio Galvão da Silva e Daniel Laufer Prescrição alteração trazida pela Lei nº 1 1 5962007 ln Boletim do IBCCrim nº 1 83 fevereiro de 2008 583 PAULO QlJ E I RDZ Finalmente se os argumentos no sentido de distinguir acórdão condenatório e confirmatório faziam sentido antes da reforma já agora não fazem mais A interpre tação parte assim de um panorama legislativo e pois doutrinário e jurisprudencial superado Notese mais que rigorosamente falando não existe acórdão confirmatório de condenação seja porque em tese o tribunal reexamina a prova os fundamentos fáti cos e jurídicos da decisão impugnada seja porque não raro procede à revisão da pena altera a capitulação jurídica dos fatos ou absolve total ou parcialmente alguns dos réus Também por isso o assim chamado acórdão confirmatório é em verdade um acórdão condenatório formal e materialmente É evidente que a lei poderia ser mais explícita consignando por exemplo que interromperá a prescrição a sentença o acórdão condenatório ou confirmatório da condenação mas tal referência seria absolutamente desnecessária por tudo que já se disse muito especialmente acórdão confirmatório de condenação é acórdão condena tório e não absolutório ou similar a pressupor e exigir assim tratamento uno Assim doravante todo e qualquer acórdão que importar em condenação quer em ação penal originária quer em grau de recurso sempre interromperá a prescrição24 d Início ou continuação do cumprimento da pena Cuidandose de prescrição da pretensão executória a interrupção ocorrerá com o início do cumprimento da pena ou no caso de fuga ou suspensão da execução com a sua continuação e Reincidência A reincidência interrompe a prescnçao da pretensão executiva exclusivamen te não se aplicando à prescrição da pretensão punitiva em quaisquer de suas formas 24 Nesse sentido decidiu o STF A Lei l 1 5962007 ao alterar a redação do inciso IV do art 1 17 do CP Art 1 17 O curso da prescrição interrompese IV pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis apenas confirmara pacífico posicionamento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que o acórdão condenatório revestese de eficácia interruptiva da prescrição penal Com base nesse entendimento a Turma indeferiu habeas corpus em que pleiteada a declaração de extinção da punibilidade do paciente que inicialmente condenado por abuso de autoridade Lei 489865 art 4º a tivera sua sentença reformada pelo tribunal de justiça local para a prática do crime de extorsão sendo este acórdão anulado pelo STJ no tocante à causa especial de aumento de pena Inicialmente aduziuse ser juridicamente relevante a existência de dois lapsos temporais a saber a entre a data do recebimento da denúncia e a sentença condenatória e b entre esta última e o acórdão que reformara em definitivo a condenação já que o acórdão que modifica substancialmente decisão monocrática representa novo julgamento e assume assim caráter de marco interruptivo da prescrição Tendo em conta a pena máxima cominada em abstrato para o delito de extorsão simples ou a sanção concreta mente aplicada constatouse que no caso a prescrição não se materializara O Min Marco Aurélio ressaltou em seu voto que a mencionada Lei 1 1 5962007 inse1ira mais um fator de intenupção pouco importando a existência de sentença condenatória anterior sendo bastante que o acórdão ao confir mar essa sentença também por isso mesmo mostrese condenatório HC 92340SC Rei Min Ricardo Lewandowski 1 832008 HC92340 584 125 1 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUN I BI L I DADE ordinária retroativa superveniente Quanto aos réus reincidentes portanto além da própria sentença penal condenatória que implica a reincidência o trânsito em julgado dessa nova sentença passará a interromper o prazo prescricional já que não basta o simples cometimento de novo crime após o trânsito em julgado em razão do princípio da presunção de inocência A reincidência como se pode notar pode produzir dois distintos efeitos importa em aumento do prazo prescricional art 1 10 e interrupção do prazo da prescrição da pretensão executória 585 PAULO QEIROZ mínimo para reparação dos danos causados pela infração considerando os préjuízos sofridos pelo ofendido Transitada em julgado a sentença penal promoverseá no juízo cível unicamente a liquidação por ser um título judicial em parte incompleto CPP art 63 a fim de apurar o quantum a ser indenizado ficando assim prejudicada toda discussão sobre a prova da materialidade autoria e ilicitude do fato Naturalmente que a sentença condenatória só pode ser executada no juízo cível contra quem foi réu na ação penal pois para acionar o responsável civil que nela não tenha figurado como acusado será necessária a ação cível específica servindo a con denação penal como elemento de prova e não como título executivo1 Como a lei menciona a sentença penal condenatória fica por consequência ex cluída toda e qualquer decisão que tenha caráter absolutório a exemplo da que reco nhece excludentes de ilicitude ou de culpabilidade Também não fazem coisa julgada no cível por não terem natureza condenatória a a sentença que concede perdão judicial Súmula 1 8 do STJ b a sentença que reconhece a prescrição da pretensão punitiva ordinária e extraordinária de modo que só a prescrição da pretensão exe cutória não impede a execução no cível c a sentença que homologa a composição e a transação penal Lei nº 909995 Quanto à sentença que declara a inimputabilidade do agente por doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado CP art 26 a doutrina majoritária entende que não faz coisa julgada no cível por se tratar de decisão absolutória exceção feita à hipótese do parágrafo único do art 26 semiimputabilidade ainda que a pena seja substituída por medida de segurança Parecenos porém que a sentença que aplica a medida de segurança há de pressu por todos os requisitos do crime fato típico ilícito e culpável motivo pelo qual há de também fazer coisa julgada logo a sentença tem natureza mista é a um tempo conde natória e absolutória porque assim trata o Código de Processo Penal Se eventualmente o condenado for absolvido em revisão criminal hipótese em que a sentença será desconstituída perderá o caráter de título executivo judicial Conforme vimos quando aplicada pena de prestação pecuniária CP arts 43 I e 45 1 º o valor pago será deduzido do montante da eventual condenação em ação de reparação civil ou em execução de sentença penal condenatória se coincidentes os be neficiários A mesma dedução deve ser feita quando o juiz criminal houver fixado valor mínimo da indenização 22 Confisco em favor da União dos instrumentos e produtos do crime Outro efeito automático decorrente da condenação é a perda em favor da União ressalvado o direito do ofendido ou terceiro de boafé a dos instrumentos do crime 1 Cezar Bitencourt Manual cit p 664 588 1261 Dos EFEITOS DA CONDENAÇÃO desde que consistam em coisas cujo fabrico alienação uso porte ou detenção cons titua fato ilícito b do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito obtido pelo agente com a prática do fato criminoso art 91 II a e b Como a lei fala de condenação por crime ficariam excluídas as contravenções mas há posicio namento em sentido contrário com base no art 1 º da LCP A primeira hipótese compreende as instrumenta sceleris que são os objetos utili zados pelo agente no cometimento do crime revólver faca moeda falsa etc Todavia nem todos os instrumentos são passíveis de confisco Com efeito a lei exige que sejam coisas cujo fabrico alienação uso porte ou detenção constituam fato ilícito Assim o automóvel ou a aeronave eventualmente utilizados no roubo no contrabando ou desca minho etc não podem ser confiscados por esse motivo pois não são coisas de fabrica ção porte ou uso ilícitos A segunda hipótese compreende as coisas adquiridas diretamente com o crime assim como toda e qualquer vantagem dele resultante como bens móveis ou imóveis adquiridos com contrabando ou descaminho extorsão mediante sequestro etc Já ago ra diferentemente da hipótese anterior são confiscáveis automóveis aeronaves etc que tenham sido adquiridos com o produto do crime Já o tráfico ilícito de drogas tem tratamento constitucionallegal específico e par ticularmente drástico uma vez que a Constituição art 243 previu expressamente a expropriação confisco de glebas utilizadas para cultura de plantas psicotrópicas bem como de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfi co ilícito de entorpecentes e drogas afins Mas tal confisco só pode ocorrer segundo os princípios que a própria Constituição consagra notadamente os princípios do devido processo legal e proporcionalidade Tratandose de crime ambiental Lei nº 960598 art 25 serão confiscados os ins trumentos utilizados na prática da infração independentemente de serem coisas cujo fabrico posse ou uso seja produto de crime v g moto serra ferramentas Desnecessário dizer que o confisco não se confunde com a simples apreensão dos bens que é seu pressuposto Além do mais a apreensão poderá compreender não só os bens confiscáveis mas todos os objetos que tiverem relação com o crime e não podem ser restituídos quando interessarem ao processo CPP art 118 Pode ocorrer de tramitar simultaneamente junto à Administração processo ad ministrativo visando ao perdimento do bem caso em que competirá à Administração deliberar a esse respeito independentemente do que o juízo cível decida Convém notar por fim que o Decreto nº 56872006 que promulga a convenção das Nações Unidas contra a corrupção prevê art 31 embargo preventivo apreensão e confisco a do produto de delito qualificado de acordo com a aludida convenção ou de bens cujo valor corresponda ao de tal produto b dos bens equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados utilizados na prática de delitos qualificados con forme a convenção 589 PAULO QJ E I ROZ 3 EFEITOS ESPECÍFICOS Os chamados efeitos específicos da condenação diferentemente dos efeitos ge néricos não sendo automáticos devem ser declarados na sentença expressa e funda mentadamente art 92 parágrafo único São específicos porque somente podem ser aplicados a determinadas infrações e desde que haja nexo entre o crime que se comete e o efeito que se impõe a saber 1 perda de cargo função pública ou mandato eletivo 2 incapacidade para o exercício de poder familiar tutela ou curatela 3 inabilitação para dirigir veículo 31 Perda de cargo função pública ou mandato eletivo A aplicação de tal efeito requer o concurso de dois requisitos a aplicação de pena de prisão igual ou superior a um ano b abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública Semelhante possibilidade não se confunde com a pena similar de interdição tem porária de direitos por duas razões primeiro porque tecnicamente pena não é mas um efeito reflexo da condenação segundo porque aqui há a perda de cargo função pública ou mandato eletivo enquanto lá há a só interdição temporária Não é possível a aplicação simultânea de ambas pena e efeito da condenação pois isso implicaria bis in idem Aliás dáse uma impossibilidade lógica visto que decretada a perda frustrase a possibilidade de interdição temporária consequente mente Nos crimes comuns em que não há relação com a Administração Pública idênti co efeito poderá ser emprestado à sentença condenatória desde que seja imposta pena superior a quatro anos Convém lembrar que a Constituição CF arts 15 III e 55 VI prevê que a con denação criminal transitada em julgado implicará a perda ou suspensão de direitos políticos enquanto durarem seus efeitos Exatamente por isso a Súmula 9 do Tribunal Superior Eleitoral TSE dispõe que a suspensão dos direitos políticos decorrentes de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena independendo de reabilitação ou prova de reparação dos danos No caso de condenação de membro do Congresso Nacional Câmara e Senado compete à respectiva casa legislativa decidir sobre a perda do mandato CF art 55 2 32 Incapacidade para o exercício do poder familiar tutela ou curatela Também constitui efeito específico da condenação a incapacidade para o exercício do poder familiar tutela ou curatela sempre que se trate de crime doloso punido com pena de reclusão praticado contra filho tutelado ou curatelado Para decretálo não se exige ao menos em princípio abuso ou violação dos de veres inerentes a tais múnus pois a lei presume iuris et de iure a incompatibilidade quando o agente for condenado por crime doloso ao qual se imponha pena de reclusão 590 1261 Dos EFEITOS DA CONDENAÇÃO Devendo tal efeito ser expressamente declarado a sentença deverá justificar sua necessidadeadequação fundamentadamente Também o Código Civil art 1637 parágrafo único prevê a suspensão do exercí cio do poder familiar ao pai ou mãe condenados por sentença irrecorrível em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão Naturalmente que tal suspensão não se dará automaticamente mas somente nos casos em que houver conexão entre a in fração penal praticada e o exercício do poder familiar princípio da adequação como abusos sexuais assédio sexual estupro ou materiais abandono material maustratos lesões corporais contra os filhos pois sentido algum faria decretar a suspensão em ca sos de condenação por crimes que nenhuma relação guardem com o exercício do poder familiar sonegação fiscal crime eleitoral etc 33 Inabilitação para dirigir veículo Por fim poderseá decretar a inabilitação para dirigir veículo quando utilizado como meio para a prática de crime doloso Consequentemente no caso de crime culpo so só caberá a aplicação da pena restritiva de direito similar 591 PAULO QIJEIROZ prova inquéritos arquivados etc motivo pelo qual no particular o instituto é útil principalmente para afastar o uso de tais registros como maus antecedentes3 O argumento não procede porém Primeiro porque a reabilitação tem por finali dade suspender exclusivamente alguns efeitos específicos da condenação não se apli cando aos casos de absolvição etc uma vez que o inocente ou pessoa que se presume como tal nada tem do que se reabilitar nem teria interesse de agir para tanto segundo porque se pudéssemos dar à reabilitação interpretação tão ampla o mesmo poderia também ocorrer quanto ao art 202 da LEP que no essencial tem a mesma redação terceiro porque ainda que comum na prática forense o uso de processos ou inquéritos arquivados como maus antecedentes ofende o princípio da presunção de inocência Sú mula 444 do STJ E pretender reabilitar inocentes é um absoluto contrassenso Nenhum outro efeito pode resultar da sentença concessiva da reabilitação visto que o condenado reabilitado continua reincidente para todos os efeitos legais tem o dever legal de indenizar eventuais vítimas do crime subsiste o confisco decretado na sentença condenatória etc Parecenos portanto que a reabilitação tal como se encontra hoje disciplinada é grandemente inútil a justificar a sua abolição pura e simples ou a sua total reformu lação porque incapaz de efetivamente reabilitar o condenado É também evidente que não se pode falar de recuperação do status quo ante decorrente da reabilitação até porque tal seria impossível A reabilitação só poderá ser requerida depois de decorrido o prazo de dois anos do dia em que foi cumprida ou extinta a pena por qualquer modo computandose para esse efeito o período de prova da suspensão condicional da pena ou do livramento condicional se não ocorrer revogação Além disso o requerente deverá atender aos seguintes requisitos a ter domiciliado no país nesse prazo de dois anos b ter demonstrado bom comportamento público e privado durante esse período c ter reparado o dano salvo impossibilidade de fazêlo Deferida a reabilitação poderá ser eventualmente revogada de ofício ou a reque rimento do Ministério Público se o reabilitado for condenado como reincidente por decisão definitiva à pena que não seja de multa Portanto a revogação só ocorrerá se a nova condenação for a pena de prisão ainda que eventualmente substituída por pena restritiva de direito e dentro do prazo legal de cinco anos porque se expirado esse prazo cessará a reincidência Também se a nova condenação não implicar reincidên cia por não ser a hipótese de prática de novo crime após o trânsito em julgado de sen tença penal condenatória ou for por crime militar ou político próprios a reabilitação subsistirá Quando revogada a reabilitação o reabilitando votará à situação anterior à sentença concessiva 3 Direito Penal cit p 87087 1 594 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO Nicola Dicionário de filosofia São Paulo Martins Fontes 2003 ABEL Gunter Verdade e interpretação in Nietzsche na Alemanha São Paulo Discurso editorial 2005 ALEXY Robert Teoria da argumentação jurídica Trad Zilda Silva São Paulo Landy 200 1 AMBOS Kai A Parte Geral do Direito Penal Internacional São Paulo RT 2008 ANCEL Marc A nova defesa 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PAULO QUEIROZ CURSO DE DIREITO PENAL PARTE GERAL 1 11ª edição 2015 revista ampliada e atualizada EDITORA JUS PODIVM wwweditorajuspodivmcombr CURSO DE DIREITO PENAL PARTE GERAL PAULO QUEIROZ Membro do Ministério Público Federal site wwwpauloqueiroznet CURSO DE DIREITO PENAL PARTE GERAL 11ª EDIÇÃO REVISADA AMPLIADA E ATUALIZADA 2015 1 iij EDlTORA 4 JusPODIVM wwweditorajuspodivmcombr lf I EDITORA JmPODIVM wwweditorajuspodivmcombr Rua Mato Grosso 175 Pituba CEP 41830151 Salvador Bahia Tel 71 33638617 Fax 71 33635050 Email faleeditorajuspodivmcombr Copyright Edições JusPODIVM Conselho Editorial Dirley da Cunha Jr Leonardo de Medeiros Garcia Fredie Didier Jr José Henrique Mouta José Marcelo Vigliar Marcos Ehrhardt Júnior Nestor Távora Robério Nunes Filho Roberval Rocha Ferreira Filho Rodolfo Pamplona Filbo Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha Capa Rene Bueno e Daniela Jardim wwwbuenojardimcombr Diagramação Couto Coelho coutovskyahoocombr Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio ou processo sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor sem prejuízo das sanções civis cabíveis Á memória do professor José Cirilo de Vargas ilustre penalista mi neiro que sempre me incentivou Uma coisa em si tão errada quanto um sentido em si uma sig nificação em si Não há nenhum estado de coisas em si contudo um sentido precisa sempre ser primeiro projetado lá dentro para que possa haver um estado de coisas O o que é isso constitui uma postulação de sentido a partir da perspectiva de algo outro A essência a essencialidade é algo perspectivístico e já pres supõe uma multiplicidade Subjacente está sempre o que é isso para mim para nós para tudo o que vive etc Uma coisa estaria designada somente quando todos os entes tivessem perguntado e respondido ao seu o que é isso Digamos que falte um único ente com as suas relações e perspectivas peculiares em relação a todas as coisas e tal coisa não estaria ainda bem definida 2149 Em suma a essência de uma coisa também é apenas uma opinião so bre a coisa Ou melhor o ela vale é o autêntico isso é o único isto é 2 150 Contra o positivismo que fica preso ao fenômeno só há fatos eu diria não justamente fatos é o que não há e sim apenas interpre tações Não podemos constatar nenhum fato em si talvez seja um absurdo querer algo assim Tudo é subjetivo direi vós mas já isso é exegese o sujeito não é nada dado porém algo inventado por acréscimo suposto Será que é necessário em última instância colocar o intérprete ainda por trás da interpretação Já isso é in vencionice hipótese Na medida em que a palavra conhecimento ainda tem qualquer sentido o mundo é cognoscível mas ele é in terpretável de outro modo ele não tem nenhum sentido subjacente porém inúmeros sentidos perspectivismo Nossas necessidades são aquilo que interpreta o mundo os nossos instintos e seus prós e contras Cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de im por como norma a todos os demais instintos 7 60 Niet zsche Friedrich Fragmentos finais Brasília Editora UnB 2007 s NOTA DO AUTOR 23 PAULO QlJEIROZ 31 Princípio da necessidade nullum crimen nulla poena sine necessitate 83 32 Princípio da adequação ou exigibilidade ou idoneidade 84 33 Princípio da proporcionalidade das penas proporcionalidade em sentido estrito 85 34 O princípio ne bis in idem 85 35 Princípio da insignificância 86 4 Princípio da humanidade 90 5 Princípio da responsabilidade pessoal ou de culpabilidade 93 6 Princípio de lesividade ou ofensividade 95 7 Princípio da igualdade ou isonomia 96 8 Direito e Interpretação 99 81 Introdução 99 82 Interpretar é compreender e argumentar 102 83 O chamado círculo hermenêutico 103 84 Limites da interpretação 109 85 Interpretação e garantismo 111 86 Prevalência da Constituição 112 87 Existe a resposta juridicamente correta 113 88 Direito e analogia 118 89 Analogia e interpretação analógica 120 9 Concurso de tipos penais ou conflito aparente de normas 122 91 Introdução 122 92 Princípio da especialidade 124 93 Princípio da subsidiariedade 125 94 Princípio da consunção ou absorção 125 941 Crime complexo ou composto 127 942 Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito 127 95 Primazia do princípio da especialidade 128 1031 A LEI PENAL NO TEMPO 129 1 Princípio da legalidade e consectários lógicos anterioridade e irretroatividade da lei penal mais severa 129 11 Introdução 129 2 Hipóteses de irretroatividade 130 21 Neocriminalização novatio legis incriminadora 130 22 Lei nova mais severa novatio legis in pejus 130 23 Irretroatividade da jurisprudência 131 3 Hipóteses de retroatividade 132 8 31 Descriminalização abolitio criminis 132 311 Abolitio criminis temporalis 133 SUMÁRIO 32 Lei penal mais branda novatio legis in mellius 133 4 Combinação de leis penais ex tertia 134 5 Sucessão de leis penais a lei intermediária 136 6 Lei temporária e excepcional 136 7 Irretroatividade da lei processual 137 8 Irretroatividade da Lei de Execução Penal 139 9 Leis penais em branco 140 10 Aplicação da lei e vacatio legis 141 11 Tempo do crime 141 10 41 A LEI PENAL NO ESPAÇO 145 1 Introdução 145 2 1 Conceito de território 146 3 Lugar do crime 146 4 Extraterritorialidade 147 5 Pena cumprida no estrangeiro 148 6 Eficácia da sentença penal estrangeira 148 7 Imunidade diplomática 149 8 Extradição 150 81 Extradição x entrega 151 1011 PARTE II Teoria do delito INTRODUÇÃO GERAL 155 1 Conceito e instrumentalidade da teoria do delito 155 11 Crítica da razão técnicojurídica 159 2 Funcionalismo sistema racionalfinal teleológico ou funcional 163 3 Evolução da teoria do delito causalismo finalismo e funcionalismo 166 31 Introdução 166 32 A teoria causal da ação causalismo ou naturalismo 166 33 A teoria final da ação finalismo 167 34 Funcionalismo 168 4 Responsabilidade penal da pessoa jurídica 170 102 1 41 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STJ 175 42 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STF 177 CONCEITO DE CRIME 179 1 Introdução 179 9 PAULO Q1J E I ROZ 11 Posse de droga para consumo pessoal descriminalização ou despenalização 180 2 Conceito doutrinário de crime 181 3 Conceito analítico de crime 183 103 1 31 Tipicidade 184 311 Expansão do conceito de tipicidade 184 32 Ilicitude 185 33 Culpabilidade 186 34 Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime 186 35 Elementos não valorativos do tipo 187 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO 189 1 Sistema tripartido o tipo como indício de antijurídicidade 189 2 Sistema bipartido a teoria dos elementos negativos do tipo 190 3 Posição aqui adotada teoria dos elementos negativos do tipo sistema bipartido 191 4 Teoria da tipicidade conglobante 193 5 Para uma configuração monistafuncional da teoria do delito 195 51 Culpabilidade como exigibilidade tendo em vista os fins 10 41 de prevenção geral e especial 195 52 Ainda o conceito analítico o que há em comum e distinto entre as várias excludentes 201 CLASSI FI CAÇÃO DOS CRI MES 207 1 Crimes dolosos culposos e preterdolosos 207 2 Crimes materiais formais e de mera conduta 208 3 Crimes comissivos omissivos próprios e omissivos impróprios 209 4 Crimes comuns e especiais 210 5 Crimes principais e acessórios 210 6 Crimes instantâneos permanentes e de estado 21 1 7 Crimes simples e compostos ou complexos 213 8 Crimes de dano e de perigo 214 81 Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato 216 9 Crimes unissubjetivos e plurissubjetivos 216 10 Crimes de ação única e de ação múltipla 216 1 1 Crimes habituais 217 1os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA 219 1 Introdução 219 10 SUMÁRIO 211 PAULO QjEIROZ 106 Divisibilidade do erro 267 1 1 Erro sobre causas de justificação descriminantes putativas 268 1 11 Conceito 268 1 1 2 Espécies erro inevitável e evitável 269 113 Descriminantes putativas por erro de proibição 269 114 Posição sistemática 269 12 Unificação dos erros 271 13 Erro provocado por terceiro 274 14 Erro sobre a pessoa errar in persona e aberratio ictus 275 141 Erro sobre a pessoa e processo penal 276 142 Crítica da teoria da equivalência 277 15 Resultado diverso do pretendido aberratio delicti 280 101 1 TEORI A DO CRI ME CULPOSO 283 1 Introdução 283 2 Excepcionalidade do crime culposo 284 3 Conceito de culpa requisitos 284 4 Princípio da confiança 287 5 Estrutura do crime culposo 287 51 Estrutura do crime culposo excludentes de ilicitude e culpabilidade 289 6 Espécies culpa consciente e culpa inconsciente 290 7 Imprudência negligência e imperícia 291 8 Autocolocação em perigo 292 108 1 CONSUMAÇÃO E TENTATI VA 295 1 Introdução 295 2 Crime consumado significado 295 21 Consumação nos crimes materiais formais de mera conduta e outros 297 3 Consumação e exaurimento 297 4 Tentativa conceito e requisitos 298 41 Tentativa e dolo eventual incompatibilidade 299 42 Preparação e tentativa distinção 300 43 Crimes que não admitem tentativa 303 44 Punição da tentativa fundamento políticocriminal 303 45 Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade 304 5 Desistência voluntária 306 6 Arrependimento eficaz 307 61 Posição sistemática 308 7 Tentativa inidônea ou crime impossível 308 8 Crime impossível em razão de Provocação de flagrante 1 2 Interpretação da Súmula 145 do STF 309 SUMÁRIO 81 Provocação do flagrante 310 82 Impossibilidade de consumação 311 83 Flagrante retardado 312 9 Arrependimento posterior 312 109 1 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICIPAÇÃO 315 1 Introdução 315 2 Conceito e iler criminis 315 3 Requisito adesão subjetiva ou nexo psicológico 316 31 Desistência voluntária e arrependimento eficaz 318 4 1 Autoria e participação distinção 318 1 41 Teoria unitária ou monista 320 1 42 Teoria objetivoformal 321 43 Teoria subjetiva 321 44 A teoria do domínio do fato 322 45 A teoria do domínio do fato segundo Roxin 323 5 Formas de autoria 325 51 Coautoria 326 511 Coautoria em crimes culposos 326 52 Autoria mediata 328 53 Autoria mediata por domínio de aparato organizado de poder 329 6 1 Participação em sentido estrito acessoriedade 331 61 Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação 332 7 Formas de participação instigação e cumplicidade 333 8 1 Coautoria e participação nos crimes omissivos 334 9 1 Participação de menor importância 335 10 Participação dolosamente diversa ou desvio subjetivo de conduta 335 1 1 Comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal 336 110 1 CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE ILICITUDE 339 1 Introdução 339 2 Requisito subjetivo nas causas de justificação 340 3 Excesso nas causas de justificação 341 4 1 Efeitos 342 5 Erro sobre causas de justificação 343 6 Causas de justificação em espécie 344 61 Legítima defesa 344 611 Requisitos 344 62 Estado de necessidade 350 621 Significado e posição sistemática 350 6211 Estado de necessidade como excludente do crime 351 13 1111 PAULO QlJEIROZ 622Re quisitos 351 63 Estrito cum primento do dever LEGAL 354 64 Exercício regular de direito 355 65 Consentimento válido do ofendido 356 TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE 359 1 Introdução 359 11 Conceito e elementos 361 12 Neurociência e cul pabilidade 362 13 Direito penal indígena 365 131 Jurisdição penal indígena 365 132 Res ponsabilidade penal do índio 368 2 Cul pabilidade segundo a doutrina causalista conce pção psicológica da cul pabilidade 370 3 Conce pção normativa da cul pabilidade 371 4 Cul pabilidade segundo a doutrina finalista conce pção normativa pura 372 5 Cul pabilidade segundo o funcionalismo cul pabilidade como limite à prevenção 372 6 Causas de exclusão de cul pabilidade em es pécie 376 11 21 61 Inimputabilidade decorrente de alienação mental 377 611 Significado e pressu postos 377 612 Efeito 379 613 Redução de pena no caso de imputabilidade diminuída 380 62 Menoridade penal 380 63 Coação moral irresistível CP art 22 381 64 Obediência hierárquica CP art 22 383 65 Embriaguez 384 651 Embriaguez involuntária 384 652 Embriaguez voluntária 385 66 Emoção e paixão 386 CONCURSO DE CRIMES 389 1 Concurso material ou real pluralidade de ações e crimes 389 2 Concurso formal ou ideal unidade de ação e pluralidade de crimes 390 3 Crime continuado pluralidade de ações e unidade de crime 391 14 31 Re quisitos 392 32 Estu pro e atentado violento ao pudor na Lei nº 120152009 393 33 Pena 394 34 Crime continuado es pecífico 395 341 Pena 395 10 1 SUMÁRIO PARTE III Consequência s jurídicopena is CONSEQUÊNCI AS JURÍDI COPENAI S DO CRI ME FUNÇÕES DO DI REI TO PENAL TEORI AS DA PENA 399 1 Introdução 399 10 21 TEORI AS LEGITI MADORAS 403 1 Teorias absolutas 403 11 Crítica 405 2 Teorias relativas prevenção geral e prevenção es pecial ou prevencionistas 405 21 Introdução 405 22 Prevenção geral negativa 406 221 Crítica 406 1 23 Prevenção geral positiva 407 I 231 Crítica 408 1 24 Prevenção es pecial ou individual 410 241 Crítica 41 1 3 Teorias ecléticas ou unitárias ou mistas 412 I 31 Introdução 412 I 32 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin 413 I 33 O garantismo de Luigi Ferrajoli 414 lºil TEORI AS DESLEGI TI MADORAS ABOLICIONI SMO E MI NI MALI SMO RADI CAL 419 1 Introdução 419 11 O crime não existe caráter definitorial do delito 419 12 Inidoneidade preventiva ou motivadora 420 13 Exce pcionalidade da intervenção penal as cifras ocultas da criminalidade 421 14 Igualdade formal versus desigualdade material seletividade arbitrária do sistema penal 421 15 Caráter consequencial sintomatológico e não causal etiológico da intervenção penal 423 16 Caráter criminógeno do sistema penal 423 1 7 Reificação do conflito do delito neutralização da vítima pelo sistema penal 423 18 O sistema penal intervém sobre pessoas e não sobre situações 424 2 Conclusão 425 1 5 PAULO Q1JEIROZ 10 41 DA PENA 429 1 Conceito fins e limites 429 1os 1 PENA DE PRISÃO 431 1 Falência da pena de prisão 431 10 61 INDIVIDUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA 433 1 Significado e im portância 433 11 Individualização da pena e pessoa jurídica 434 2 Individualização e garantismo 435 21 Concurso de agentes e concurso de crimes 437 22 Emendatio e mutatio libelli 438 23 Sistema acusatório e emendatio libelli 438 3 Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal 440 4 Erros fre quentes na aplicação da pena 442 41 Modelo de sentença 444 10 71 MÉTODO DE FIXAÇÃO DA PENA 447 1 Primeira fase fixação da penabase 448 2 Segunda fase fixação da pena provisória 448 21 Concurso de agravantes e atenuantes 448 22 Qualificadoras e agravantes 449 3 Terceira fase fixação da pena definitiva 450 108 1 31 Causas de aumento de pena e qualificadoras distinção 450 32 Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento e diminuição 450 33 Concurso de causas de aumento e diminuição de pena possibilidades 451 DE COMO SE PROCEDE AO CÁLCULO DA PENA 453 109 1 MÉTODO PARA INCIDÊNCIA DAS CAUSAS DE AUMENTO E DIMINUIÇÃO 455 110 1 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS EM ESPÉCIE 457 1 Cul pabilidade 457 2 Antecedentes do réu 459 16 SUMÁRIO 3 1 Conduta social 461 4 1 Personalidade do réu 461 5 Motivos do crime 462 6 Circunstâncias e conse quências do crime 462 7 Com portamento da vítima 463 11 1 1 SEGUNDA FASE FIXAÇÃO DA PENA PROVISÓ RIA 465 11 21 CJJ RCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCIE 467 1 Reincidência 467 2 Motivo fútil ou tor pe 472 3 1 Para facilitar ou assegurar a execução a ocultação a im punidade 1 ou a vantagem de outro crime 472 4 Traição emboscada dissimulação ou qualquer recurso que dificulte ou torne im possível a defesa do ofendido 473 5 Em prego de veneno ex plosivo etc 473 6 Embriaguez preordenada 474 7 Ascendente descendente irmão ou cônjuge 474 8 Contra criança maior de sessenta anos enfermo e mulher grávida 475 9 i Abuso de poder ou violação inerente a cargo ofício ministério ou profissão 476 10 Ofendido sob proteção de autoridade 476 1 1 Ocasião de incêndio naufrágio inundação ou qual quer calamidade pública ou de desgraça particular do ofendido 477 12 Abuso de autoridade ou prevalecimento de relações domésticas de coabitação ou de hos pitalidade ou com violência contra a mulher na forma da lei es pecífica 4 77 13 Agravantes em concurso de pessoas 478 131 Agente que promove organiza a coo peração ou dirige 113 1 a atividade dos demais agentes 478 132 Agente que coage ou induz outrem à execução material do crime 478 133 Agente que instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal 479 134 Paga ou promessa de recompensa 479 CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES EM ESPÉCIE 481 1 Introdução 481 2 Idade do agente 481 3 Desconhecimento da lei 482 4 1 Motivo de relevante valor social ou moral 482 17 PAULO Q1JEIROZ 5 Evitação das conse quências ou re paração do dano 483 6 Coação resistível cumprimento de ordem hierárquica etc 483 7 Confissão es pontânea 483 8 Influência de multidão em tumulto se não o provocou 484 11 41 REGIMES PRISIO NAIS 487 1 Progressão e regressão de regime 487 11 Regime disci plinar diferenciado 490 2 Progressão nos crimes hediondos 491 3 Execução provisória da sentença 492 11 51 DETRAÇÃO 495 1 Conceito e cabimento 495 2 Conexão processual 496 11 61 DIREITO S E DEVERES DO CO NDENADO 499 11 71 REMIÇÃO 503 118 1 LIMITE MÁX IMO DA PENA DE PRISÃO 505 1 Significado e justificação 505 2 Alcance 506 3 Superveniência de nova condenação 507 119 1 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITO S 509 1 Introdução 509 2 Re quisitos para a substituição 510 21 Vedação de pena restritiva de direito na nova Lei de Drogas 513 3 Conversão em pena privativa da liberdade 515 4 Penas restritivas de direito em es pécie 516 41 Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas 516 42 Interdição tem porária de direitos 517 43 Limitação de final de semana 520 44 Perda de bens e valores 520 18 45 Prestação pecuniária 521 451 Substituição por prestação de outra natureza 522 46 Multa substitutiva 522 SUMÁRIO 541 PAULO QlJ E I ROZ 3 Ação penal privada 557 31 Renúncia do ofendido 557 32 Perdão do ofendido 558 4 Ação penal privada subsidiária 558 5 Decadência do direito de queixa e de re presentação 558 1251 CA USA S DE EXTI NÇÃO DE PUNI BI LIDADE 561 1 Introdução 561 2 Causas de extinção em es pécie 563 1261 21 Morte do agente 563 22 Anistia graça e indulto 564 23 Perem pção 565 24 Retratação 565 25 Perdão judicial 566 26 Abolitio criminis e outras 566 27 Prescrição 567 271 Conceito e fundamento 567 272 Es pécies de prescrição 569 273 Prazos 570 2731 Prescrição da Medida de Segurança 571 274 Causas de aumento e de diminuição de pena 572 275 Reincidência 573 276 Concurso de crimes 573 277 Prescrição ordinária da pretensão punitiva 573 278 Prescrição extraordinária retroativa e su perveniente 574 279 Prescrição retroativa anteci pada 575 2710 Termo inicial da prescrição 576 2711 Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva 576 2712 Termo inicial da prescrição da pretensão executória 577 2713 Causas im peditivas ou sus pensivas da prescrição 580 2714 Causas interru ptivas da prescrição 580 DOS EFEI TOS DA CONDENA ÇÃO 587 1 Significado 587 2 Efeitos genéricos 587 21 Dever de indenizar 587 22 Confisco em favor da União dos instrumentos e produtos do crime 588 3 Efeitos es pecíficos 590 20 31 Perda de cargo função pública ou mandato eletivo 590 32 Inca pacidade para o exercício do poder familiar tutela ou curatela 590 1271 SUMÁRIO 33 Inabilitação para dirigir veículo 591 REABI LITAÇÃO 593 REFERÊNCI AS BIBLI OGRÁFI CAS 595 21 O texto que o leitor tem em mãos pretende tratar o direito penal sob uma perspectiva crítica e comprometida com o sistema de valores e princípios da Constituição alfa e ômega do ordenamento jurídico e pois começo e fim da juridicidade De acordo com semelhante perspectiva todos aqueles que lidam com o direito juízes membros do Ministério Público advogados etc há de deixar de ser meros espectadores da lei para exercerem ativamente como seus intérpretes e aplicadores vivos um papel mais dinâmico complexo crítico e criativo do direito tendo como referência a legalidade constitucional E esse novo e desafiador papel mais cresce de importância e mais exige de seus operadores quando se editam e se multiplicam leis penais simbólicas demagógicas e que por conseguinte só descreditam mais ainda o já desacreditado sistema penal pois servem apenas para criar uma só impressão e uma falsa impressão de segurança jurídica Além disso com a constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais do homem CF art 5º a questão dos fins do direito penal deixou de ser uma perspectiva teórica para tornarse uma questão de direito positivo de fundamental importância para juízes e legisladores visto que a Constituição fundamento de validade da ordem jurídica deve orientar tanto a elaboração das leis quanto a sua concretização vale dizer deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada de toda construção doutrinária e jurisprudencial Naturalmente que um direito penal assim concebido um direito penal da Constituição há de ser mínimo garantista instrumental e subsidiário da política social e em particular da política de prevenção e controle da desvio que deve ter como prioridade a integração social do homem e a realização de suas necessidades básicas emprego escola saúde lazer em cujo contexto o direito penal como parte de uma política de proteção integral dos direitos humanos há de ocupar e desempenhar um papel bastante modesto Direito penal mínimo porque a vocação libertária do constituinte de 1988 é manifesta conforme demonstra sua exaustiva declaração de direitos e garantias individuais art 5º de sorte que sendo a liberdade a regra e a não liberdade a exceção medidas constritivas da liberdade em especial as de caráter penal devem constituir a exceção das exceções é dizer devem ser o último recurso de defesa da juridicidada ga Garantista porque por maior que seja o interesse do Estado em castigar o castigo só será legítimo quando respeitadas formal e materialmente as garantias penais e processuais do réu sujeito que é de direito e não simples objeto do direito penal Instrumental porque não constituindo o direito penal um fim em si mesmo mas um meio de proteção de bens jurídicos sua intervenção só se justifica quando e se necessária para a consecução dos fins que lhe são assinalados Por fim subsidiário porque 25 Porque conforme assinala Castanheira Neves o caso não é apenas a condição históricosituacional da compreensão da norma o fator situacionalmente hermenêutico dessa compreensão mas a própria determinante problemática da intenção interpretativa O que significa evidentemente que é o caso e não a norma o prius problemáticointencional e metódico não se intenciona o problema interpretativo nem se parte metodicamente nele da norma para o caso em ordem a uma aplicação da norma que a sua prévia e abstracta interpretação possibilitasse mas do caso para a norma mediantse a interrogação do critério normativo adequado que a norma possa oferecer para o caso Aliás é engano pensar que a técnica jurídica seja bastante para se decidir justamente Sim porque a formação técnicojurídica só pode oferecer na melhor das hipóteses isso uma decisão técnica Mas uma decisão técnica não é uma decisão justa ou não é necessariamente em particular aqueles que acompanham mais de perto as decisões do tribunal do júri sabem que os jurados embora leigos em direito por vezes decidem mais justamente do que os juízes togados É que para o juiz técnico interessa primeiramente a técnica para o juiz leigo importa primordialmente a justeza das decisões por vezes valendose de argumentos insustentáveis de um ponto de vista estritamente dogmático Parece inclusive que no fundo os grandes juízes de direito promotores de justiça e advogados talentosos diferentemente dos meros burocratas à semelhança dos poetas e músicos virtuosos não se tornam nascem e a técnica para tais pessoas constituiu apenas um instrumento de aperfeiçoamento de habilidadesqualidades inatas preexistentes à formação técnica a qual não constitui em si mesma garantia de justeza É que uma boa interpretação na arte como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sensibilidade Ademais semelhante perspectiva práticogarantista infensa a dogmas verdade estimula o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de sua aplicação assim como a consciência do caráter em grande parte ideal e pois irrealizado e carente de realização de seus próprios fundamentos e fontes de legitimação jurídica O leitor logo perceberá que consequentemente com semelhante projeto o autor ousou em mais de um lugar defender posições divergentes da doutrina e do direito codificado por entender que o saber penal não é a mera contemplação do direito como é mas a projeção do direito que deve ser Filangieri Afinal a história do direito penal é a PAULO Q1J E I ROZ sua atuação há de pressu por o fracasso de outras instâncias menos lesivas de controle social com as quais deverá concorrer utilmente A questão fundamental reside assim em dar efetividade ao projeto democráti co maximizando a proteção do cidadão e minimizando a violência projeto para o qual pouco pode contribuir a intervenção penal inevitavelmente traumática cirúr gica e negativa1 Afinal um Estado que se diz Democrático de Direito CF art lº que declara como seus fundamentos a dignidade da pessoa humana a cidadania os valores sociais do trabalho e proclama como seus objetivos fundamentais consti tuir uma sociedade livre justa e solidária que promete erradicar a pobreza e a mar ginalização reduzir as desigualdades sociais e regionais promover o bem de todos sem preconceitos de origem raça sexo cor idade art 3º não deve lançar sobre seus jurisdicionados prematuramente esse sistema de violência seletiva e dis criminatória que é o sistema penal princi palmente quando é esse mesmo Estado por ação eou omissão em parte corres ponsável pela produção e incremento da cri minalidade Antes e para não os iludir com a mera retórica constitucional há de assumir não uma postura passivanegativa garantismo negativo mas uma postura ativa positiva garantismo positivo em face de seus jurisdicionados é dizer há de alimentálos há de darlhes teto há de prestigiarlhes a saúde o trabalho há de realizar a função social da pro priedade há de possibilitarlhes o exercício da cidadania pro porcionandolhes as condições mínimas de desenvolvimento de suas potencialidades e assim reduzir os níveis de desigualdade social realização dos direitos sociais sob pena de esse Estado carecer de legitimidade para exigir dos indivíduos qualquer prestação já que como ressalta Ferrajoli a declaração constitucional dos direitos dos cidadãos e quivale à de claração constitucional dos deveres do Estado2 Cum pre pois trabalhar com um mí nimo de direito penal e com o máximo de políticas sociais mesmo porque problemas estruturais demandam soluções também estruturais e no mais das vezes intervenções individuais v g castigar criminosos embora necessárias servem a penas para a pre texto de mudálas manter as coisas como estão e têm portanto caráter grandemente conservador do status quo Por fim por não ser o direito penal uma ciência de professores mas uma ciência de casos3 toda construção doutrinária e juris prudencial deve ter como prioridade a resolução de conflitos reais evitandose abstrações excessivas e inúteis de interesse puramente acadêmico de modo que o decisivo é a parelhar as agências judiciais dos instrumentos necessários à solução justa ou minimamente injusta dos conflitos ju rídico penais Os conceitos e institutos jurídico penais a teoria do delito etc devem enfim constituir uma ferramenta útil de trabalho 1 A expressão é de Antônio GarcíaPablos 2 Derecho y razón Teoria de Garantismo Penal Madrid Ed Trotta 1995 p 862 3 A expressão é de Santiago Mir Puig 24 PAULO Q1JEIROZ história do Estado um largo caminho de democratização que só estamos iniciando e que por isso re quer uma constante revisão crítica e im plica ao mesmo tempo remover permanentemente mitos ficções e alienações que impeçam essa revisão6 6 Juan Bustos Ramírez Bases Críticas de un nuevo derecho penal Bogotá Temis 1982 p 1 50 26 Sumário 1 Conceito de direito penal 11 Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal 12 Conceito de Direito limites de um conceito 13 Conceito de Direito o Direito não existe 14 Leis são necessárias 15 Direito e arte 151 Direito uma ficção 2 Direito penal criminologia e política criminal 21 Direito penal e política criminal há distinção realmente 3 Direito penal e controle social 4 Direito penal e moral 41 Deus e o Direito 5 Caráter subsidiário do direito penal 6 Caráter fragmentário do direito penal 7 Ilícito penal e ilícito não penal 8 Legislação especial 9 Sobre a legislação em vigor 10 Contagem dos prazos penais e processuais penais 1 CONCEITO DE DIREITO PENAL Simplificadamente1 o direito penal ou direito criminal2 é a parte do ordenamento jurídico que define as infrações penais crimes e contravenções e comina as respectivas sanções penas e medidas de segurança3 Eis algumas das definições mais conhecidas Franz von Liszt o define como o conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime como fato a pena como consequência4 Mezger como o exercício do poder punitivo do Estado que conecta ao delito como pressuposto e a pena como consequência jurídica Welzel como a parte do ordenamento jurídico que determina as características da ação delituosa e lhe impõe penas ou medidas de segurança6 1 Por conceito entendese todo o processo que torne possível a descrição a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis Assim entendido esse termo significa generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou procedimento semântico seja qual for o objeto a que se refere abstrato ou concreto próximo ou distante universal ou individual Nicola Abbagnano Dicionário de Filosofia S Paulo Martins Fontes 2003 p 164 2 Direito penal e direito criminal são as denominações mais comuns Alguns autores referem outras tais como direito protetor dos criminosos Dorado Montero direito repressivo etc mas todas as denominações são mais ou menos corretas mas ou menos críticas A expressão direito repressivo por exemplo constitui a rigor um pleonasmo pois todo o direito e não só o direito penal é repressor visto proibir certas ações e permitir outras Assim o direito civil ao só admitir o casamento monogâmico entre pessoas de sexos opostos reprime e remete para a clandestinidade várias formas de casamento como as relações homoafetivas extraconjugais etc 3 De acordo com Juarez Cirino o direito penal é o setor do ordenamento jurídico que define crimes comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incriminadas Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 3 Um conceito especialmente interessante e diverso aos quais críticos é dado por ZaffaroniBatista ao afirmarem ser o direito penal o ramo do saber jurídico que mediante a interpretação das leis penais propõe aos juízes um sistema orientador das decisões que centrem e reduz o poder punitivo para impulsionar o progresso do estado constitucional do direito Direito Penal Brasileiro 1 Rio de Janeiro Revan 2003 p 40 1 p 1 1 Tratado de direito penal alemão trad José Hygino Duarte Pereira Rio de Janeiro Bgirguet 1899 v 1 p 1 1 Tratado de direito penal 2 ed Madrid 1946 v 1 p 2728 1 Derecho penal alemán trad Bustos e Pérez Santiago Ed Jurídica del Chile 1993 p 1 PAU LO QhEIROZ Wessels dá uma definição mais completa por Direito Penal designase a parte do ordenamento jurídico que determina os pressupostos da punibilidade bem como os caracteres específicos da conduta punível cominando determinadas penas e pre vendo a par de outras consequências jurídicas especialmente medidas de segu ran ça7 Entre nós Frederico Marques assinala que prura se ter uma noção exata é impres cindível que nela se compreendam todas as relações jurídicas que as normas penais disciplinam inclusive as que derivam dessa sistematização ordenadora do delito e da pena apresentando o seguinte conceito o direito penal é o conjunto de normas que ligam ao crime como fato a pena como consequência e disciplina também outras relações jurídicas daí derivadas para estabelecer a aplicabilidade de medidas de segu rança e a tutela do direito de liberdade em face do poder de punir do Estado8 Mas tais definições não são de todo exatas estando o objeto do direito penal além delas Basta referir algumas normas não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime considerase praticado o crime no momento da ação ou omissão ainda que outro seja o momento do resultado CP arts lº a 4º a pena cum prida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime art 8º o resultado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa art 13 entendese em legítima defesa quem art 25 é isento de pena art 181 considerase funcionário público art 327 Vêse pois que as normas jurídicopenais não se limitam à definição de com portamentos delituosos cominandolhes as respectivas sanções A prevalecer tão restrito conceito só teremos como normas penais aquelas previstas na chamada Par te Especial dos códigos e leis penais extravagantes que preveem as condutas delituo sas A Parte Geral e não raro também a Parte Especial em vez de declarar quais são os comportamentos criminosos ou contravencionais trata de delimitar o âmbito de atuação das normas penais e de estabelecer os critérios de interpretaçãoaplicação do direito penal Mas não apenas isso A Constituição principalmente e o Código Penal definem ainda as bases e os princípios que informam o direito penal traçandolhe o perfil limi tes e contornos Numa palavra dãolhe a conformação políticojurídica Assim por exemplo quando adota o princípio da legalidade o princípio da não perpetuação das penas ou o princípio da individualização judicial da pena Enfim as normas jurídicopenais propriamente ditas previstas ou não num diploma penal ao tempo em que fundam e estruturam o poder punitivo do Estado fixam os princípios e regras fundamentais que vão governar a intervenção jurídicopenal criando um siste ma de garantias em face do exercício deste poder 7 Direito penal trad Juarez Tavares 5 ed Porto Alegre Sergio A Fabris Editor 1976 p 5 8 Tratado de direito penal Campinas Bookseller 1997 p 24 30 PARTE I FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL Ademais tais definições ao ressaltarem a relação Estadoinfrator marginalizam a vítima desconsiderando o papel fundamental que esta vem de assumir no direito penal e no direito processual penal PAULO QlJEIROZ 11 Relação eJtre Direito Penal e Direito Processual Penal O direito penal não se confunde com o direito processual penal Com efeito se o direito penal define os crimes e comina as penas por sua vez o processo penal disci plina o modo como se dará a apuração dos delitos e a aplicação das penas Ou seja o processo penal estabelece as condições princípios etc de legitimação da jurisdição penal dispondo sobre quem pode investigar acusar e julgar as infrações penais como isso ocorrerá ação penal etc e quando se realizará prazos etc O direito processual penal é por conseguinte a parte do ordenamento jurídico que institui e organiza os órgãos públicos que cumprem a função jurisdicional do Estado e disciplina os atos que integram o procedimento necessário para a aplicação de uma pena ou medida de segurança13 Ao processo penal incumbe enfim regular o direito de ação definir competên cias fixar o procedimento e meios de prova bem como estabelecer as providências cautelares pessoais e reais prisões etc e recursos necessárias à aplicação do direito penal razão pela qual o processo penal nada mais é do que um continuum do direito penal ou seja é o direito penal em movimento14 razão pela qual formam uma unidade Afinal e como assinala Aury Lopes Jr não existe crime sem castigo nem castigo sem crime e processo nem processo criminal senão para determinar um crime e impor um castigo15 Ademais se como veremos a interpretação constitui a própria realização do di reito e não a constatação de um direito preexistente razão pela qual o direito não existe a priori mas a posteriori seguese então que essa realização se dá por meio do p 8 1 Também Kelsen observou O Direito e a força não devem ser compreendidos como absoluta mente antagônicos O Direito é uma organização da força Porque o Direito vincula certas condições para o uso da força nas relações entre os homens autorizando o emprego da força apenas por certos indivíduos e sob certas circunstâncias O Direito autoriza certa conduta que sob todas as outras cir cunstâncias deve ser considerada proibida ser considerada proibida significa ser a própria condição para que tal ato coercitivo atue como sanção O indivíduo que autorizado pela ordem jurídica aplica a medida coercitiva a sanção atua como um agente dessa ordem ou o que equivale a dizer o mes mo como um órgão da comunidade constituído por ela Apenas esse indivíduo apenas o órgão da comunidade está autorizado a empregar a força Por conseguinte podese dizer que o Direito faz o uso da força um monopólio da comunidade E precisamente por fazêlo o Direito pacifica a comu nidade Teoria geral do direito e do estado Tradução Luíz Carlos Borges 4ª Ed São Paulo Martins Fotnes 2005 p 30 1 3 Maier Julio B J Derecho Procesal Penal Tomo 1 Fundamentos 3 ed Buenos Aires Editores dei Puerto 2004 p 75 De acordo com José Frederico Marques o direito processual penal é o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do direito penal bem como as atividades persecutórias da polícia judiciária e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares Elementos de direito processual penal v 1 São Paulo Forense 1965 p 20 1 4 Como escreve Fernando da Costa Tourinho Filho é o Direito Processual Penal que dinamiza o Direi to Penal O Direito Penal material é a energia potencial o Direito Processual Penal é o meio pelo qual essa energia pode colocarse concretamente em ação Processo Penal São Paulo Editora Saraiva 201 0 p54 1 5 Direito Processual Penal São Paulo Saraiva 201 3 p76 32 1 0 1 1 I NTRODUÇÃO prncesso penal que cria as condições de legitimaçãodeslegitimação da jurisdição pe nal Como ensinava Calmon de Passos não há um direito independente do processo de sua enunciação o que equivale a dizerse que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um16 O processo penal é em suma o modo constitucionalmente legítimo de realização do direito penal Efetivamente não pode haver direito penal sem processo penal porque é por meio do processo que o Estado detentor do poder de punir17 determinará por exemplo se houve crime quem é seu autor se a prova produzida é lícita se se agiu ou não ampa rado por excludentes de ilicitude ou de culpabilidade etc Por isso é que entre o direito peoal e o processo penal há uma relação de mútua referência e complementaridade18 visto que o direito penal é impensável sem um processo penal e viceversa Daí dizer Calmon de Passos que a relação entre o direito material e o processo não é uma rela ção apenas de meio e fim isto é instrumental mas uma relação integrativa orgânica substancial uma vez que o direito é socialmente construído historicamente formu 1 lado atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço e pois somente o é depois de produzido19 A função essencial do processo é criar portanto as condições de realização de um direito justo ou ao menos conforme as garantias de um direito penal democrá tico 20Como observa Roxin tratase de um processo estruturado dialeticamente que envolve interesses contrapostos da acusação e da defesa e que visa a fins complexos a condenação do culpado a proteção do inocente a legalidade do procedimento e a estabilidade jurídica da decisão21 Justamente por isso os princípios que informam o direito penal irretroatividade inclusive hão de igualmente valer para o processo penal indistintamente Também por isso os constrangimentos previstos na legislação processual jamais poderão exceder àqueles que podem resultar da própria condenação sob pena de violação ao princípio 16 Instrumentalidade do processo e devido processo legal Revista de processo nº 1 02 São Paulo RT 200 1 ano 26 abriljunho de 2001 17 Segundo Aury Lopes Júnior o processo como instituição estatal é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena visto que o direito penal é desprovido de coação direta e diferentemente do direito privado não tem atuação nem realidade concreta fora do processo corres pondente in Introdução Crítica ao Processo Penal 4 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 3 1 8 Figueiredo Dias Jorge Direito Processual Penal ed Coimbra Coimbra Editora 1974 reimpres são 2004 p 28 19 J J Calmon de Passos Direito poder justiça e processo Forense Rio de Janeiro 1999 p 52 e 68 20 De acordo com Pontes de Miranda a finalidade preponderante hoje do processo é realizar o Direito o direito objetivo e não só menos ainda precipuamente os direitos subjetivos O processo não é mais que do que o corretivo da imperfeita realização automática do direito objetivo Daí dizerem alguns autores que é meramente instrumental Tratado das ações tomo I Campinas SP Bookseller 1998 p 245246 21 Derecho Procesal Penal Buenos Aires Editores dei Puerto 2000 p4 33 PAULO QlJEIROZ da proporcionalidade e conversão do processo em pena antecipada Assim não cabe por exemplo a prisão provisória do réu se a infração penal a que responde não comina pena privativa da liberdade ou admite a substituição por pena restritiva de direito CPP art 283 1 º Ademais o princípio in dubio pro reo tradicionalmente associado à valoração da prova no processo penal é também aplicável ao direito penal porque constitui uma di mensão do princípio da presunção de inocência Consequentemente existindo fundada dúvida por exemplo sobre se se trata de crime doloso ou culposo de atos preparató rios ou executórios se existe ou não nexo causal se ocorreu ou não prescrição etc haverá de prevalecer a tese mais favorável ao réu É ônus da acusação e não da defesa fazer prova dos fatos alegados na denúncia queixa ou seja é seu dever demonstrar o cometimento de uma infração penal punível com todos os seus elementos constitutivos Não se prova a inocência mas a culpa E é sempre preferível absolver um suposto culpado a condenar um possível inocente Apesar do que aqui se diz e se propõe direito penal e processo penal não são con fundíveis porque a prisão provisória em flagrante delito etc por exemplo não é a própria pena cominada ao crime nem sua antecipação a qual pressupõe um processo sob pena de se confundir o processo de conhecimento com o processo de execução a própria execução da pena e neste caso o processo que deveria assegurar ao réu as garantias que lhe são inerentes com vistas à realização de um julgamento justo seria um simples pretexto para se infligir um castigo antecipado a alguém e legitimar deci sões arbitrárias como se de fato processo algum existisse Embora o direito penal e o processo formem um todo indissociável não é função do processo penal democrático prevenir em caráter geral ou especial novos delitos porque tal finalidade pressupõe um agente declarado culpado de crime segundo o de vido processo constitucional Enfim não é possível em princípio falar de prevenção positiva ou negativa geral ou individual relativamente a alguém que a lei tem como presumido inocente22 Exceção a isso é a prisão preventiva para evitar a reiteração de crimes garantia da ordem pública dado o perigo concreto de que tal ocorra Com efeito o que de fato em está em causa relativamente à prisão provisória de membros de organizações cri minosas delinquentes habituais multirreincidentes etc é a segurança dos indivíduos e a proteção social típica finalidade políticocriminal que pressupõe sentença penal condenatória23 22 De modo diverso Jürgen Wolter e Georg Freund El sistema integral dei Derecho penal delito determinación de la pena y processo penal Barcelona Marcial Pons 2004 Para uma crítica a esses autores Fernando Díaz Cantón Vicisitudes de la cuestión de la autonomia o dependencia entre el Derecho penal y el Derecho procesal penal ln Estudios sobre Justicia Penal Homenaje ai professor Julio BJMaier Buenos Aires Editores dei Puerto 2005 23 Pa11e da doutrina tem que a prisão preventiva para garantia da ordem pública é inconstitucional por violação ao princípio da presunção de inocência Ferrajoli propõe inclusive a abolição pura e simples 34 1 01 1 1 NTRODUÇÀO O mesmo deve ser dito mutatis mutandis das medidas cautelares pessoais e reais decretadas para proteger a vítima ameaçada fazer cessar a atividade criminosa evitar novos crimes ou exercer algum controle sobre o réu fora da prisão CPP art 319 As sim também ocorre com certas formas de composição previstas em lei a exemplo da transação penal suspensão condicional do processo etc Por fim também a execução penal última etapa de realização do direito penal há de regerse pelos princípios constitucionais do direito e processo penal pois o direito apesar de dividido em ramos pretende ser um só Assim modificações legis lativas criadas em desfavor do condenado não podem atingir as condenações por cri mes cometidos anteriormente à sua entrada em vigor sob pena de violação ao prin cípio da irretroatividade da lei mais severa v g uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência Em conclusão e contrariamente à doutrina e à jurisprudência ainda hoje majoritá rias temos que os princípios que informam o direito penal hão de também valer para o direito processual penal e execução penal de modo a conferirlhes tratamento unitário e conforme a Constituição24 É que apesar da distinção direito penal processo penal e execução penal consti tuem momentos de um mesmo fenômeno que é o exercício do poder punitivo estatal destinados a legitimardeslegitimar uma forma especial real e simbólica de violência a pena 12 Conceito de Direito limites de um conceito Dizer que o direito penal é a parte do ordenamento jurídico que define crimes e comina penas é dizer muito pouco mesmo porque nada foi dito sobre o que vem a ser o direito realmente E o direito penal antes de ser penal é direito e pois sujeito em princípio aos mesmos fins e limites de todo o direito de toda e qualquer prisão provisória Derecho y razón Madrid Editorial Trotta 1 995 p 559561 Não estamos de acordo com isso É que para reconhecer essa ideia extrema teríamos de partir lógica e coerentemente de uma premissa igualmente extrema isto é que o princípio da presunção de ino cência é absoluto e não comporta uma tal exceção Ocorre que se essa tese estiver correta teríamos de concluir logicamente que toda e qualquer medida cautelar pessoal ou real e não só a prisão preven tiva para evitar a reiteração de delitos e semelhantes seria inconstitucional já que sempre implicaria um juízo provisório de culpa e pois uma relativização indevida do princípio da não culpabilidade Ademais se a prisão preventiva nesse caso específico tem ou não natureza cautelar isso depende do conceito de cautelaridade de que se parte Finalmente se entendermos que casos tão extremos não legitimam a prisão provisória é improvável que as demais hipóteses legais conveniência da instrução criminal etc possam fazêlo Não obstante isso é certo que na prática é frequente o abuso da prisão preventiva a pretexto de garantir a ordem pública 24 Também por isso é recomendável que as refonnas penais e processuais sejam feitas simultaneamente e seguindo uma mesma linha políticocriminal 35 PAULO Ül E I ROZ Pois bem em primeiro lugar o direito é um conceito tal qual justiça moral ética ou estética E como conceito remete necessariamente a outros conceitos lei ordem segurança liberdade bem jurídico etc que também reenviam a outros tan tos motivo pelo qual só se pode obter um conceito de direito por meio de remissões associações 25 Em segundo lugar o mais elaborado ou prestigiado conceito de direito é apenas um entre vários conceitos possíveis de sorte que traduz em última análise o ponto de vista de seu autor ou de quem o adota afinal outros tantos conceitos mais ou menos exatos mais ou menos amplos são igualmente possíveis26 Também por isso um con ceito constitui uma apreensão sempre parcial do mundo num universo de possibilida des um conceito é uma simplificação uma redução27 Em terceiro lugar todo conceito como representação formal do pensamento pouco ou nada diz sobre o seu conteúdo isto é pouco ou nada diz sobre as múltiplas formas que ele pode histórica e concretamente assumir até porque embora pretenda valer para o futuro é pensado a partir de uma experiência passada a revelar que defi nir algo é de certo modo legislar sobre o desconhecido28 Também por isso um concei to como expressão da linguagem é estruturalmente aberto e pois pode compreender objetos históricos os mais díspares v g o conceito de legítima defesa depende do que se entenda em dado contexto por injusta agressão uso moderado dos meios neces sários etc Conceitos são cheques em branco 25 Cada conceito remete a outros conceitos não somente em sua história mas em seu devir ou suas conexões presentes Cada conceito tem componentes que podem ser por sua vez tomados como con ceitos Os conceitos vão pois ao infinito e sendo criados não são jamais criados do nada Giles Deleuze e Félix Guattari O que é filosofia S Paulo Editora 34 2005 26 Eis alguns conceitos o direito é pois o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade Kant Metafisica dos costumes parte 1 Lisboa Edições 70 p 36 o domínio do direito é o espírito em geral aí a sua base própria o seu ponto de partida está na vontade livre de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo Hegel Princípios de filosofia do direito trad Orlando Vitorino São Paulo Martins Fontes 1 997 p 1 2 Direito é a ordenação heterônoma coercível e bilateral atributiva das relações de convivência segundo uma integração nor mativa de fatos segundo valores Miguel Reale Lições preliminares de direito São Paulo Saraiva 2005 p 67 27 Na Física a situação não é diversa porque de acordo com FritjofCapra a Física moderna confirmou de forma dramática uma das ideias básicas do misticismo oriental a de que todos os conceitos que utilizamos para descrever a natureza são limitados e não são características da realidade como tende mos a acreditar mas criações da mente partes do mapa e não do território Sempre que expandimos o reino de nossas experiências as limitações da nossa mente racional tornamse evidentes levandonos a modificar ou menos a abandonar alguns de nossos conceitos O Tao da Física S Paulo Cultrix 1 995 p 1 26 28 Talvez por isso tenha dito Nietzsche que conhecimento em si no devir é impossível como é por tanto possível conhecimento Como erro sobre si mesmo como vontade de poder como vontade de ilusão Vontade de poder cit 36 1 01 1 I NTRODUÇÃO Em quarto lugar um conceito que é assim socialmente construído so e com preensível num espaço e tempo determinados motivo pelo qual com ou sem alteração de seus termos está em permanente transformação afinal um conceito encerra uma convenção sempre provisória e está condicionado por préconceitos ou préjuízos Por isso é que o legal e o ilegal o lícito e o ilícito variam no tempo e no espaço inde pendentemente inclusive da alteração dos termos da lei até porque o direito existe com ou sem leis v g comunidades ou países que seguem um direito costumeiro Todo conceito como todo texto pressupõe um dado contexto Exatamente por isso o que é justo hoje ou o foi ontem não será necessariamente amanhã Pode ocorrer inclusive de se ter por justo e legal num dado momento algo que se tornará injusto e ilegal e eventualmente criminoso em momento posterior v g a discriminação de homossexuais ou de filhos havidos fora do casamento danos ao meio ambiente podendose imaginar que no futuro tal como já ocorre nalguns países muito do que atualmente é ilegal se tornará legal e viceversa como a euta násia o casamento entre pessoas do mesmo sexo a adoção por tais casais a mudança de sexo etc Aliás historicamente nem todas as pessoas foram consideradas como sujeitos de direito v g estrangeiros prisioneiros de guerra mulheres escravos29 O ser do direito é um devir30 Não existe portanto direito vagando fora ou além da história nem fora ou além das relações de poder que o constituem Afinal o tempo são palavras de Kant é a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral uma vez que todos os obje tos dos sentidos estão no tempo e necessariamente sujeitos às relações do tempo31 Naturalmente que apesar de inexistir um direito ahistórico atemporal existem pessoas que assim se pretendem isto é que são de tal modo conservadoras que estão em permanente conflito com os valores de seu tempo Em quinto lugar o conceito de direito tal qual o conceito de justiça liberdade igualdade e diferentemente do conceito de cavalo automóvel etc que dizem respeito a algo concreto não remete a uma coisa a um objeto propriamente mas a relações e conflitos que daí resultam v g paisfilhos empresaempregados autoresvítimas Estadocriminosos etc Exatamente por isso o direito não é um conjunto de artigos de lei mas um conjunto de relações humanas32 29 Também por isso não é correto criticar ajustiça ou injustiça de um ato ou instituição v g a escravi dão desconsiderando o contexto em que surgiram Não é de admirar por isso que no futuro tal como já ocorre nalguns países se for abolida a repressão ao tráfico ilícito drogas passem a ser vendidas em drogarias e a história da sua repressão seja vista como selvageria ou algo similar 30 Devir ou vir a ser 1 O mesmo que mudança 2 Uma forma particular de mudança a mudança absolu ta ou substancial que vai do nada ao ser ou do ser ao nada Nico la Abbagnano Dicionário de Filosofia cit p 268 3 1 Crítica da razão pura Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 201 O p 73 32 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 37 PAULO QJEIROZ Espinosa tinha razão portanto quando dizia que o bem leiase o lícito e o mal leiase o ilícito não são coisas reais entia realia mas entes da razão entia rationis logo são apenas relações e que por isso não existem na natureza pois jamais se disse que algo é bom senão em relação a outro que não é tão bom ou não nos é tão útil como o primeiro E assim quando alguém diz que um homem é mau não o diz senão em relação a outro que é melhor ou também que uma maçã é má senão em relação a outra que é boa ou melhor33 Ou ainda como escreve Michel Onfray o bem e o mal o verdadeiro e o falso o justo e o injusto o belo e o feio pertencem a decisões huma nas contratuais relativas e históricas Essas formas não existem a priori mas a poste riori elas devem se inscrever na rede neuronal para ser não há moral sem as conexões neuronais que permitam sua existência34 Finalmente todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e por isso constitui uma universalização do não universal do singular um conceito nasce portanto da postulação de identidade do não idêntico35 O conceito de crime por exem plo referese a um semnúmero de condutas que a rigor nada têm em comum à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas matar alguém subtrair coisa alheia móvel emitir cheque sem provisão de fundos portar droga para consumo pessoal abater espécime de fauna silvestre etc espécime que pode variar de uma minhoca ou uma bor boleta a uma onça pintada conceitos que por sua vez unificam coisas díspares Com efeito não existe um homicídio absolutamente igual a outro homicídio nem um furto absolutamente igual a outro furto nem um crime ambiental absolutamente igual a outro pois as múltiplas variáveis que sempre envolvem tais atos tornam cada ação humana singular única irrepetível Enfim um conceito é formado pela elimi nação do que há de particular em cada ato e quanto mais exato mais abstrato e mais vazio de conteúdo se torna36 Aliás a analogia que tradicionalmente tem merecido um tratamento secundário não constitui conforme veremos um elemento acidental mas essencial ao conheci mentointerpretação pois o belo e o feio o justo e o injusto o legal e o ilegal são cons truídos em verdade a partir de comparações analogias isto é recorrendose cons cientemente ou não a experiências sempre novas de beleza de justiça e de legalidade O direito não é um saber lógico mas analógico Por fim o conceito de direito não é a própria coisa práticas sociais etc que desig namos como direito assim como o conceito de automóvel não é o próprio automóvel37 Um conceito é essencialmente uma imagem ela mesma um conceito 33 Breve Tratado de Deus do homem e de seu bemestar São Paulo Autêntica editora 2012 p8687 34 A potência de existir Michel Onfray São Paulo Martins Fontes 2010 p47 35 Nietzsche Friedrich Sobre verdad y mentira en sentido extramoral Madrid Ternos 1 996 36 Nietzsche Friedrich Sobre verdad y mentira en sentido extramoral Madrid Ternos 1 996 37 De acordo com Flávio Kothe jamais o que se tem na mente pode ser idêntico à coisa como tal já porque são duas existências distintas e irreconciliáveis numa só Já por isso ninguém poderia 38 01 INTRODUÇÃO De tudo isso resulta que o direito não está previamente dado pois é parte da cons trução social da realidade e portanto o direito não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual a interpretação não é um modo de desvelar um suposto direito preexistente mas a forma mesma de realização do direito Enfim não é mais a interpretação que depende do direito ou da lei mas o direito ou a lei que depende da interpretação Que é pois o direito Sob essa perspectiva o direito é um conjunto móvel de me táforas e metonímias38 13 Conceito de Direito o Direito não existe É importante notar ainda que o que a tradição nos legou com o nome de Direito não é uma coisa isto é não tem uma essência uma substância não existe ontologica mente independentemente da representação que fazemos a seu respeito porque cons titui uma criação humana que nasce e morre com o homem ou seja o direito não é sólido nem líquido nem gasoso nem animal nem vegetal39 Com efeito aquilo que uma teoria do direito objetiva como direito são palavras de François Ewald como natureza do direito como essência do direito não tem exis tência real O Direito demoslhe maiúsculas não existe Ou antes não existe a não ser como um nome que não reenvia a um objeto mas serve para designar uma multipli cidade de objetos históricos possíveis que como realidades não têm os mesmos atri butos e que podem mesmo ter atributos irredutíveis40 de sorte que assim como não portanto pretender absoluta adequação já que existe uma inadequação constitutiva Ensaios de semiótica da cultura Brasília Editora UnB 201 1 p 56 38 Eis textualmente o que Nietzsche escreveu a propósito da verdade Qué es entonces la verdad Un hueste em movimiento de metáforas metonimias antropomorfismos en resumidas cuentas una suma de relaciones humanas que han sido realizadas extrapoladas y adornadas poetica y retórica mente y que después de un prolongado uso un pueblo considera firmes canónicas y vinculantes las verdades son ilusiones de las que se ha olvidado que lo son metáforas que se han vuelto gastadas y sin fuerza sensible monedas que han perdido su troquelado y no son ahora ya consideradas como monedas sino como metal cit p 25 39 Calmon de Passos Direito poder justiça e processo Rio de Janeiro Forense 1 999 p 6768 40 Foucault A norma e o direito Lisboa Vega 1 993 p 1 60 De modo similar Calmon de Passos afinna que o direito enquanto apenas formulação teórica enunciado no1mativo proposição ou juízo ainda não é o Direito pois o Direito é o que dele faz o processo de sua produção Isso nos adverte de que nunca é algo dado pronto preestabelecido ou préproduzido cuja aplicação é p ossível mediante simples utilização de determinadas técnicas e instrumentos com segura previsão das consequências razão pela qual O Direito em verdade é produzido a cada ato de sua pro dução concretizase com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado Direito poder justiça e processo Rio de Janeiro Forense 1 999 p 6768 Não por outra razão Oliver Wendell Holmes afirmava que o que o direito realmente faz é criar profecias sobre o que os tribunais farão de fato Textualmente the propheties ofwhat the courts will do in fact and nothing more pretentious are what I mean by the law apud Arthur Kaufmann Filosofia do direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 39 PAULO QlJ E I ROZ existem fenômenos morais mas uma interpretação moral dos fenômenos41 tampouco existem fenômenos jurídicos mas só uma interpretação jurídica dos fenômenos pois nada é onticamente jurídico lícito ou ilícito mas socialmente construído Em direito nada é dado tudo é construído Em conclusão o direito é o que dizemos que ele é porque o direito como de resto quase tudo que diz respeito ao homem não está no fato ou na norma em si mas na cabeça das pessoas de modo que podemos afirmar parafraseando o Evangelho Lu cas 1721 que o reino do direito está dentro de nós e que nós o criamos e recriamos permanentemente dandolhe distintos significados a cada momento de sua produção segundo um dado contexto históricocultural Dito de outra forma o direito e o não di reito tal qual o justo e o injusto o pio e o ímpio o moral e o imoral o ético e o estético é em nós que ele existe42 Daí que o direito como o poder não é uma coisa mas relaçõesinteraçõesinter pretaçõesdecisões que é algo que se exerce que se efetua que funciona como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo mas se dissemina por toda a estrutura social43 Constitui por isso uma grande simplifica ção supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se esgote no direito legislado44 já que cada um carrega dentro de si seus microssistemas jurídi cos e os faz ou tenta fazêlos prevalecer nos seus espaços de interaçãoexercício de poder 4 1 Nietzsche Friederich Para além do bem e do mal trad Alex Marins São Paulo Martin Claret 2002 p 92 aforismo 1 08 42 Só assim se explica por exemplo que interpretando a Constituição americana que vigora há séculos tenha a Suprema Corte entendido inicialmente que o racismo era constitucional mais tarde década de 1 950 passouse a considerálo parcialmente inconstitucional e finalmente a partir da década ele 1 970 prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional O que mudou se o texto da lei é o mesmo desde então A resposta é o homem que o interpreta 43 Roberto Machado Por uma genealogia do poder in Michel Foucault Microfisica do Poder Rio ele Janeiro Graal 1 995 p XIV 44 Não sem razão Boaventura de Souza Santos refere além do direito estatal ou territorial o direito doméstico o direito de proteção o direito da comunidade e o direito sistêmico classificação que não é exaustiva O direito doméstico grandemente informal é o direito do espaço doméstico o conjunto de regras de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da e na sedimentação das relações sociais do agregado doméstico o direito da produção é o di reito da fábrica ou da empresa o conjunto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assalariado códigos de fábrica regulamentos da linha de produção códigos de condutas dos empregados etc o direito da comunidade como sucede com o espaço da comunidade é uma das fontes de direito mais complexas na medida em que cobre si tuações extremamente diversas podendo ser invocado tanto pelos grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos finalmente o direito territorial ou estatal é o direito do espaço da cidadania e nas sociedades modernas é o direito central na maioria das constelações de ordens jurídicas sendo que ao longo dos últimos duzentos anos foi construído pelo liberalismo político e pela ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade in Crítica da razão indolente São Paulo Cortez 2000 p 290 e ss 40 1 01 1 1 NTRODUÇÃO Dizemos por exemplo o direito penal primeiro por meio dos processos de crimi nalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e não é cri me porque assim o exige o princípio da legalidade CF art 5 XXXIX segundo por meio dos processos de criminalização secundária isto é através das ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente envolvidas com o crime Judiciário Ministério Público polícia etc Assim se não há crime nem pena sem lei anterior que o defina seguese que por mais que uma determinada conduta humana seja moral e socialmente reprovável se não houver lei que a declare criminosa criminosa não é sendo jurídicopenalmente irrelevante É a lei portanto que cria o crime é a lei que cria o criminoso Numa pala vra só é crime o que o legislador diz que é45 Mas esse discurso aí não cessa porque prossegue por meio dos processos de defi nição e reação social isto é os processos de criminalização secundária que nada mais são do que um continuum daquele É que de um certo modo a lei nada prescreve proí be ou permite pois a lei prescreve proíbe ou permite o que dizemos que ela prescreve proíbe ou permite de sorte que a lei diz o que dizemos que ela diz46 45 Apesar disso tem razão Niklas Luhmann quando de uma perspectiva distinta assinala que o direi to não se origina da pena do legislador A decisão do legislador e o mesmo é válido como hoje se reconhece para a decisão do juiz se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes entre as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade Se não fosse assim ela não seria uma decisão jurídica Sua função portanto não reside na criação do direito mas na seleção e na dignificação simbólica de nonnas enquanto direito vinculativo Ele envolve um filtro processual pelo qual todas as ideias jurídicas têm que passar para se tomarem socialmente vinculativas enquanto direito Esses processos não geram o direito propriamente dito mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões aí se decide sobre a vigência ou não mas o direito não é criado do nada É importante ter em mente essa diferença pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção totalmente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador É necessário em outras palavras diferenciar entre atribuição e causalidade A proeminência especial do processo decisório por instâncias legislativas ou por juízes e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação como algo criativo ou causal o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento de possibilidades e sua redução a uma decisão consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais decisões Sociologia do direito II Rio de Janeiro Biblioteca Tempo Universitário 80 1985 p 8 46 Por isso afirma Lênio Luiz Streck que não existem julgamentos de acordo com a lei ou em de sacordo com ela porque o texto normativo não contém imediatamente a norma Müller a qual é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito de sorte que quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário Conclui então que é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras é também comportamentos símbolos conhecimentos expressados sempre na e pela linguagem É o que a lei manda mas também o que os juízes interpretam os advogados argumentam as partes declaram os teóricos produzem os legisladores criticam É enfim um discurso constitutivo uma vez que designaatribui significado a fatos e palavras in Hermenêutica jurídica em crise Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 1 999 p 2 1 02 1 1 41 PAULO QjEIROZ Aliás e conforme assinala Umberto Eco um texto uma vez separado do seu emissor bem como da intenção do seu emissor e das circunstâncias concretas da sua emissão e de seu referente implícito flutua no vácuo de um espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis Consequentemente texto algum pode ser interpre tado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo original e definitivo A lingua gem sempre diz algo mais do que o seu inacessível sentido literal o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual47 É que o sentido das coisas fatos provas textos etc não é dado pelas próprias coisas mas por nós ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibi lidades aí incluída a falta de sentido inclusive48 Justamente por isso matar roubar ou estuprar pode ser conforme o direito inclu sive porque o que seja matar roubar ou estuprar e as possíveis formas de legi timação dessas ações legítima defesa etc e de isenção de culpa doença mental etc 47 Os limites da interpretação S Paulo Editora Perspectiva 2000 p XIV Apesar disso e conforme sugere o próprio título do texto os limites da interpretação Umberto Eco entende com razão que há limites à interpretação de sorte que nem toda interpretação é aceitável ou válida Vide capítulo sobre interpre tação Algo similar se lê também em Gadamer A compreensão não é uma transposição psíquica O horizonte de sentido da compreensão não pode ser limitado nem pelo que o autor tinha originalmente em mente nem pelo horizonte do destinatário a que foi escrito o texto na origem Por conseguinte não é a partir daí que podem ser traçados os limites de seu sentido Os textos não querem ser entendi dos como expressão vital da subjetividade de seu autor Conceitos normativos como a opinião do autor ou a compreensão do leitor originário não representam na realidade mais que um lugar vazio que se preenche de compreensão de ocasião em ocasião Gadamer cit p 575576 E Ricoeur graças à escrita o discurso se liberta da tutela de intenção do autor das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável Paul Ricoeur in O justo e a essência da justiça Instituto Piaget Lisboa 1995 48 Arthur Schopenhauer escreveu O mundo é a minha representação Esta proposição é uma verda de para todo ser vivo e pensante embora só no homem chegue a transformarse em conhecimento abstrato e refletido A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado pode dizerse que nasceu nele o espírito filosófico Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra mas apenas olhos que veem este sol mãos que tocam esta terra em uma palavra ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação na sua relação com um ser que percebe que é o próprio homem Se existe uma verdade que se possa afirmar a priori é esta pois ela exprime o modo de toda experiência possível e imaginável conceito muito geral que os de tempo espaço e causalidade que o implicam Com efeito cada um destes conceitos nos quais reconhecemos formas diversas do princípio da razão apenas é aplicável a uma ordem determinada de representações a distinção entre sujeito e objeto é pelo contrário o modo comum a todas o único sob o qual se pode conceber uma representação qualquer abstrata ou intuitiva racional ou empírica Nenhuma verdade é portanto mais certa mais absoluta mais evidente do que esta tudo o que existe existe para o pensamento isto é o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito percepção apenas em relação a um espírito que percebe Em uma palavra é pura representação Esta lei aplicase naturalmente a todo o presente a todo o passado e a todo o futuro àquilo que está longe tal como àquilo que está perto de nós visto que ela é verdadeira para o próprio tempo e o próprio espaço graças aos quais as representações particulares se distinguem umas das outras Tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária perante o sujeito e apenas existe para o sujeito O mundo é portanto represen tação O mundo como vontade e representação S Paulo Contraponto 2004 2ª reimpressão p 9 42 1 01 1 I NT RODUÇÃO não estão previamente dadas apesar de existir grande consenso sobre tais assuntos49 O direito é pois uma construção social relativamente arbitrária que como tal pode em tese compreender qualquer conteúdo motivo pelo qual nada existe a priori que não possa ser direito Também por isso o direito sobretudo o penal pode eventualmente legitimar formas muito cruéis de violência sem que percebamos como tal Mais concretamente a lei prescreve que o crime de estupro consiste em constran ger alguém à prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça CP art 213 parece óbvio saber em que consiste o crime pois No entanto práticas sadomasoquistas podem ser consideradas criminosas Não faz muito tempo autores importantes afirmavam que o marido não podia responder por crime de estupro contra a esposa porque diziam entre os direitos inerentes ao casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente razão pela qual não lhe era dado oferecer resistência lícita 50 Ainda hoje parte da doutrina entende que é possível estu pro nesse caso mas desde que a esposa tenha justa causa para a negativa 51 Não bastasse isso o Código equipara a estupro violento o estupro de vulnerável isto é praticado contra menores de catorze anos CP art 217A52 ou contra pessoa que padeça de deficiência mental etc o que significa dizer que muitos namoros poderão ser interpretados como autênticos estupros ainda quando se passem entre menores ou 49 Um exemplo extremo disso é a figura do agente infiltrado que nalguns países pode dispor de autorização judicial e legal para cometer toda sorte de crimes em nome do Estado de modo que a lei que afaga é a mesma que apedreja Como escreveu Pascal o latrocínio o incesto o assassinato das crianças e dos pais tudo encontrou seu lugar entre as ações virtuosas Pode haver algo de mais absurdo que um homem ter direito de matarse porque mora do outro lado do rio e seu príncipe é contendor com o meu embora eu não tenha nada contra ele Pensamentos sobre política São Paulo Martins Fontes 1994 50 Assim Nélson Hungria questionase sobre se o marido pode ser ou não considerado réu no estupro quando mediante violência constrange a esposa à prestação sexual A solução justa é no sentido negati vo O estupro pressupõe cópula ilícita fora do casamento A cópula intra matrimonium é recíproco de ver dos cônjuges O marido violentador salvo excesso inescusável ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência tisica em si mesma excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito in Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro Forense 1959 p 125126 Assim também Magalhães Noronha as relações sexuais são pertinentes à vida conjugal constituindo direito e dever recíproco dos que casam O marido tem direito à posse sexual da mulher 1 ao qual ela não pode se opor Casandose dormindo sob o mesmo teto aceitando a vida em comum a mulher não se pode furtar ao congresso sexual cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie Avio lência por parte do marido não constituiria em princípio crime de estupro desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo podendo todavia ele responder por excesso cometido Direito penal v 3 São Paulo Saraiva 27 ed 2003 5 1 Damásio de Jesus Direito Penal Parte Especial 3 volume p 96 São Paulo Saraiva 2002 Paulo José da Costa Júnior até recentemente defendia que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo marido Curso de Direito Penal São Paulo Saraiva 2008 52 Diz o referido at1igo que incorre na pena de 8 a 1 5 anos de reclusão aquele que mantiver relações sexuais com menor de 14 anos caput ou praticar as ações descritas no caput com alguém que por enfermidade ou deficiência mental não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que por qualquer outra causa não pode oferecer resistência 1 º 43 PAULO QjEIROZ entre pessoas também portadoras de alguma deficiência mental Finalmente o que sig nifica ou pode significar constranger Consideremos outro exemplo A Constituição veda expressamente as penas de morte e cruéis CF art 5 XLVIl53 Mas o que vem a ser pena de morte ou pena cruel A resposta não é tão óbvia como parece É evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal procla mar a culpa de um réu e condenálo à pena capital seja com um tiro de fuzil seja por enforcamento seja por qualquer outro meio A pena de morte é enfim um homicídio levado a cabo pelo Estado legalmente Mas veja o art 303 2º da Lei nº 7565 de 1 9 de dezembro de 1986 Código Brasileiro de Aeronáutica alterada pela Lei nº 961498 bem assim o Decreto nº 5144 de 16 de julho de 2004 que o regulamentou previu a destruição de aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins Perguntase não seria isso pena de mortecruel por juízo de exceção constitucionalmente vedada Pois bem apreciando petição que arguia a inconstitucionalidade não recepção da aludida legislação o Procuradorgeral da República contrariamente assinalou que a medida de destruição não guarda relação com a pena de morte Aliás sequer pode ser considerada uma penalidade porquanto não se busca com sua aplicação a expiação por crime cometido Em realidade constitui essencialmente medida de segurança ex trema e excepcional que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia das medidas coercitivas precedentes É importante frisar que tal medida tem por objeto a preserva ção da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro54 Esse exemplo também demonstra claramente que o direito é uma dimensão do poder afinal diz o direito quem tem atribuição poder para tanto inclusive porque é o poder que dá nome sentido e limite às coisas motivo pelo qual só é direito o que o poder reconhece como tal 55 E tem razão Pierre Bourdieu quando afirma que o que faz 53 Dispõe o artigo não haverá penas a de morte salvo no caso de guerra declarada nos termos do ai1 84 XIX e cruéis 54 Processo PGR 1 00000000836200571 pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles então ProcuradorGeral da República datado de 1432005 Na representação formulada também por mim subscrita os autores sustentaram a violação dos seguintes princípios a inviolabilidade da vida art 5º caput b proibição da pena de morte em tempo de paz art 5 XLVTI a c presunção de inocência art 5º LVII d proibição de juízo ou tribunal de exceção art 5 XXXVII e devido processo legal art 5º f prevalência dos direitos humanos art 4 II g defesa da paz art 4º VI h solução pacífica dos conflitos art 4º VII i repúdio ao terrorismo art 4º VII j legalidade 1 proporcionalidade e m inviolabilidade da propriedade art 5º caput 55 Nietzsche observou Assim nascem os direitos graus de poder reconhecidos e assegurados Se as relações de poder mudam substancialmente direitos desaparecem e surgem outros é o que mostra o direito dos povos em seu constante desaparecer e surgir Se nosso poder diminui substancialmente modificase o sentimento daqueles que vêm assegurando o nosso direito eles calculam se podem nos restabelecer a antiga posse plena sentindose incapazes disso passam a negar nossos direitos Onde o direito predomina um certo estado e grau de poder é mantido uma diminuição ou um aumento é rechaçado O direito dos outros é a concessão feita por nosso sentimento de poder ao 44 1 01 1 I NTRODUÇÃO o poder das palavras e das palavras de ordem poder de manter a ordem ou de a sub verter é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia crença cuja produção não é da competência das palavras56 Aliás a própria pena privativa da liberdade que em geral consiste no encarcera mento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural artificial em espaço físico minúsculo superlotado sem salubridade privado quase que integralmente de contato com o mundo exterior não seria ela mesma pena cruel Não seriam as medidas de se gurança uma forma disfarçada de sequestro por tempo indeterminado E que dizer de certas formas de sacrifício v g de gêmeos ou deficientes físicos e mentais e rituais de antropofagia ainda praticados por algumas tribos brasileiras Ademais nenhum comportamento é criminoso em si mesmo tudo dependendo das reações que desencadeia ou não desencadeia Assim se um pai sabe que seu filho lhe subtraiu valores provavelmente não tomará isso como um fato criminoso isto é furto por isso não procurará a polícia não fará funcionar a máquina estatal tudo não passará de um problema de família e resolvido em família57 O próprio Código Penal art 181 II prevê isenção de pena sempre que o crime for praticado contra ascendente ou descendente E certamente reações diversas teriam lugar se ao invés de um filho fosse autora do fato a empregada doméstica ou um estranho De modo similar o tráfico pressupõe que a droga seja ilícita as quais são assim definidas pelo Ministério da Saúde um tanto arbitrariamente dentro de um universo vastíssimo de drogas capazes de produzir de pendência física ou psíquica estando excluídos por exemplo álcool tabaco etc Mais o assédio sexual CP art 216A embora praticável em tese por qualquer pessoa é sentimento de poder desses outros Quando o nosso poder mostrase abalado e quebrantado cessam os nossos direitos e quando nos tomamos muito mais poderosos cessam os direitos dos outros sobre nós tal como os havíamos reconhecido a eles até então NIETZSCHE Frederich Aurora Reflexões sobre os preconceitos morais 1 ª reimpressão São Paulo Companhia das Letras 2004 p 83 56 Pierre Bourdieu O poder simbólico Rio Bertrand Brasil 1998 p 1 5 57 Um caso real bem ilustra isso A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha B de dois anos e por isso foi presa processada e condenada a 7 anos e 6 meses de reclusão por crime de atentado violento ao pudor CP art 2 1 4 agora revogado crime hediondo Lei nº 807290 O exame crimino lógico assim a diagnosticou personalidade primitiva com nível mental baixo e consequente imaturi dade intelectual e afetiva que motivam os comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas manifestadas através de descargas emocionais intensas que refletem a dificuldade de controle sobre os impulsos Em consequência o processo de interrelação social tomase dificil sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesma como uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular Ora tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta outro seria o desfecho certamente a família submeteria A a tratamento psicológicopsiquiátrico a sessões de análise ou semelhante e no máximo tiraria dela provisória ou definitivamente a guarda da criança B Assim não haveria polícia nem crime nem pena nem prisão tudo não passaria de um problema de família e resolvido em família 45 PAULO QJEIROZ um típico crime masculino só praticável por homem e não por mulher pois é muito raro um homem interpretar o assédio feminino como algo ofensivo ou criminoso58 Convém repetir portanto o que chamados direito são relações interações inter pretações decisões de poder O direito é um momento da experiência do homem no mundo59 Exatamente por isso não se pode determinar a priori o que é o direito quais são as práticas que assim devem ser qualificadas porque isso depende daquilo que é refle tido como direito no quadro de determinadas experiências jurídicas60 Logo o direito não é só o que o legislador diz que é é também o que os juízes dizem que é a partir e segundo múltiplos discursos de atores sociais múltiplos61 é pois um discurso uma prática social discursiva62 socialmente construída variável no tempo e no espaço mais ou menos previsível e no caso penal mas não só nele ar bitrariamente seletiva porque o sistema penal recruta sua clientela quase sempre entre 58 Becker escreveu os grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulálas como outsiders Desse ponto de vista o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete mas uma consequência da aplicação por outras de regras e sanções a um infrator O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso O comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal Se um ato é ou não desviante depende portanto de como outras pessoas reagem a ele O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que reagem a ele Howard S Becker Outsiders Estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 p 2 1 e ss 59 Gadamer Verdade e Método cit p 3 1 Nietzsche escreveu todo conhecimento humano é ou experiência ou matemática Nietzsche Aforismo 530 Vontade de Poder Rio Contraponto 2008 p 279 60 François Ewald Foucault a norma e o direito cit p 1 6 1 6 1 Por essas e outras razões Rosa Maria Cardoso da Cunha atribui ao princípio da legalidade um ca ráter puramente retórico pois não cumpre as funções que lhe são cometidas pela dogmática antes desempenha uma função retórica que orienta a interpretação a aplicação e a argumentação referida à lei penal Textualmente o princípio da legalidade dos delitos e das penas não constitui uma garantia essencial do cidadão em face do poder punitivo do Estado Não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e diversamente do que afirma a doutrina não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direitos do acusado Tampouco estabelece a lei escrita como única fonte de incrimi nação e penas impede o emprego da analogia em relação às normas incriminadoras ou ainda evita a criação de normas penais postas em linguagem vaga e indeterminada O caráter retórico do princípio da legalidade Porto Alegre Síntese 1 979 p 1 7 e 1 28 62 No sentido do texto Carlos Maria Cárcova escreve que frente aos tradicionais reducionismos da teoria jurídica normativismofacticismo sustentamos a tese de que o direito deveria ser entendido como discurso com o significado que os linguistas atribuem a essa expressão isto é como processo social de criação de sentido como uma prática social discursiva que é mais do que palavras que é também comportamentos símbolos conhecimentos que é ao mesmo tempo o que a lei manda os juízes interpretam os advogados argumentam os litigantes declaram os teóricos produzem os le gisladores sancionam ou os doutrinários criticam e sobretudo o que ao nível dos súditos opera como sistema de representações Direito Política e Magistratura S Paulo LTr 1996 p 1 74 46 1 0 1 1 I NTRODUÇÃO os grupos mais vulneráveis da população notadamente autores de crimes patrimoniais roubo etc típica criminalidade de rua própria de sujeitos socialmente excluídos La ley es como las serpientes solo pica a los descalzos63 Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem mas também e princi palmente o que dizemos que as normas dizem não é só o deverser mas o ser Arthur Kaufmann tem razão portanto quando assinala que só quando a norma e situação de vida dever e ser são postos em relação em correspondência um com o outro surge o direito real o direito é a correspondência entre o dever e o ser O direito é uma corres pondência não tem um caráter substancial mas sim relacional o direito no seu todo não é o complexo de artigos da lei um conjunto de normas mas sim um conjunto de relações 64 Assim supor que a lei é o próprio direito seria confundir o mapa com o território o cardápio com a refeição65 seria confundir enfim discurso e realidade teoria e prá xis dever ser e ser mesmo porque o direito constitui uma ideia um conceito que reen via a outros tantos conceitos que à semelhança de compartimentos vazios tem seus conteúdos preenchidos mais ou menos arbitrariamente pelas pessoas e autoridades que participam da sua construção social66 Por isso disse Nietzsche que se houvesse uma escola para legisladores seria im portante ensinar que palavras como lei direito dever propriedade e crime constituem em si mesmas uma abstração sem valor e à espera de conteúdo cor e significado de acordo com as circunstâncias particulares que as incrementam67 63 A frase procede ao parecer de Oscar Romero 64 Filosofia do direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 p 2 1 9 Dei Vecchio dizia no entanto a partir de postulados kantianos que a noção universal do direito é anterior à experiência jurídica aos fenômenos jurídicos singulares sendo a experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma Assim uma proposição só é jurídica na medida em que participar da forma lógica universal do Direito Fora desta forma indiferente ao conteúdo nenhuma experiência jurídica é possível Sem ela falta a qualidade que permite adscrevêla a esta espécie de experiência A forma lógica do Direito é um dado a priori ou seja não empírico e constitui precisamente a condição da experiência jurídica em geral in Lições de filosofia do direito Coimbra 1 979 p 344345 65 A expressão é de Louk Hulsman 661 Não sem razão Kelsen dizia de uma perspectiva distinta que todo e qualquer conteúdo pode ser Direito Não há qualquer conduta humana que como tal por força do seu conteúdo esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica Teoria Pura do Direito S Paulo Martins Fontes 2003 p 221 67 ln A minha irmã e eu Editora Moraes S Paulo 1992 p 4243 Não surpreende por isso que todos sem exceção e até mesmo organizações criminosas recorram invariavelmente à justiça à liberdade à paz etc e não o contrário a exemplo do assim chamado Primeiro Comando da Capital PCC cujo estatuto adota como princípios 1 Lealdade respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido 2 A luta pela liberdade justiça e paz 3 A união da luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões Diz ainda 9 que o partido não admite mentiras traição inveja cobiça calúnia egoísmo interesse pessoal mas sim a verdade a fidelidade a hombridade a solidariedade e o interesse como o bem de todos porque somos um por todos e todos por um 47 PAULO Q1JEIROZ Naturalmente que mesmo no âmbito jurídicopenal ramo do direito em que a dog mática parece ter atingido maior nível de sofisticação o recurso às categorias da tipicida de ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se vem afirmar É que se sob o aspecto material o delito não existe seguese logicamente que também o seu conceito formalanalítico crime como fato típico ilícito e culpável é socialmente construído de sorte que uma dada conduta será criminosa somente quando dissermos aceitarmos que é uma vez que tais categorias remetem a conceitos os mais variados dolo culpa sig nificânciainsignificância causalidade legítimailegítima defesa estado de necessidade desnecessidade coação físicamoralresistívelirresistível obediência hierárquica erro de proibição vencívelinvencível embriaguez voluntáriainvoluntária etc os quais reen viam por sua vez a uma infinidade de conceitos outros como vida honra patrimônio agressão justainjusta intenção previsão consciênciainconsciência boamáfé prova lícitailícita exigívelinexigível valores princípios etc Não bastasse isso o manuseio de tais conceitos se faz por vezes de modo franca mente arbitrário como acontece por exemplo nos julgamentos pelo tribunal do júri formado que é por leigos Daí dizer Castanheira Neves que o direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem O que quer que seja e como quer que seja o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque o direito éo numa lingua gem e como linguagem propõese sêlo numa linguagem nas significações linguís ticas em que se constitui e exprime e atingenos através dessa linguagem que é68 De modo semelhante Calmon de Passos ensinou Direito é uma palavra que não se refere a nenhum objeto material algo suscetível de sensação ou percepção pelo homem isto é que ele possa ver ouvir aspirar degustar ou tocar Direito portanto é sentido e significação que o homem empresta ao seu agir e interagir por conseguinte enquanto sentido e significação linguagem Linguagem que objetiva definir ou determinar o que é lícito ou ilícito proibido devido ou facultado Direito só se materializa destarte como linguagem69 No particular Gadamer tem razão portanto o ser que pode ser compreendido é linguagem70 Finalmente Nietzsche escreveu minha sentença principal não há nenhum fe nômeno moral mas antes apenas uma interpretação moral desses fenômenos Essa interpretação é ela própria de origem extramoral71 E cabe parafraseálo minha sen tença principal não há nenhum fenômeno jurídico nem jurídicopenal mas antes uma interpretação jurídica e jurídicopenal desses fenômenos Essa interpretação é ela própria de origem extrajurídica 68 Metodologia jurídica Coimbra Coimbra Editora 1 993 p 90 69 Comentários ao Código de Processo Civil vol III Rio de Janeiro 2005 9 ed p 1 70 Verdade e método Petrópolis Vozes 1 999 p 687 7 1 A vontade de poder cit p 1 53 48 Consequentemente não existem fenômenos criminosos nem típicos antijurídicos ou culpáveis mas uma interpretação criminalizante dos fenômenos e portanto uma interpretação tipificante antijurisdicionante e culpabilizante dos fenômenos PAULO QlJEIROZ Mas os exemplos disso inadequação da lei para transformar a realidade são inumeráveis no âmbito jurídicopenal especialmente a edição de uma lei de crimes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade a promulgação de uma lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos leis em fa vor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de crescer leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na infração leis proibitivas de estupros e tráfico de drogas não parecem evitar tais delitos mesmo por que o criminoso antes de decidir praticar uma determinada infração não parece fazer uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse respeito Pergunte sincera mente a si mesmo por que ainda não pratiquei estupro por que ainda não matei alguém por que ainda não assaltei um banco É pouco provável que a resposta seja porque há uma lei que o proíbe e se a lei for revogada eu o farei Pois quem tiver chegado a uma tal resposta jamais seria obstado pela simples existência da lei Ordinariamente inclusive o autor de uma infração seja qual for acredita que não será descoberto e segue adiante se tiver motivaçãodisposição bastante para tanto Notese ainda que a eventual abolição desses crimes não significaria autorizálos uma vez que tais condutas são proibidas desde sempre pela moral pelos costumes pelas convenções sociais e pelo próprio direito Parece certo aliás que de certo modo somos todos criminosos reais ou poten ciais seja por ação seja por omissão porque somos capazes de cometer as maiores violências sob as mais diversas motivações e pretextos as quais variam de pessoa para pessoa e são mais ou menos vis poder dinheiro ciúme ódio inveja etc73 Enfim cometemos crimes pelas mesmas razões que não os cometemos o decisivo são sempre as motivações humanas que mudam permanentemente as quais podem ter inclusive como a história de ontem e de hoje o demonstra fartamente os mais nobres pretextos a pátria o bem o amor a honra a lei a justiça Deus74 etc É de convir assim que as leis são não infrequentemente um instrumento retóri co e demagógico de criar uma impressão uma falsa impressão de segurança criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo resolvidos até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efetivação E as leis parecem assumir nos dias atuais cada vez mais uma função mítica simbólica E o legislador tem sabido tirar proveito disso ao decidir legislar em profusão como se a 73 Como demonstra Philip Zimbardo O efeito lúcifer Rio de Janeiro Record 201 2 pessoas normais e pacíficas podem em circunstâncias especiais ou desconhecidas vg guerra como de normalização da violência e desumanização revelaramse cruéis e sádicas e praticarem os mais diversos crimes vg tortura violência sexual etc 74 Em nome de Deus por exemplo foi e é cometida toda sorte de violência a noite de São Bartolomeu o extermínio dos cátaros ou albigenses as cruzadas a inquisição os massacres patrocinados por Moisés Êxodo 3227 e 28 ou Josué 621 e seus atuais seguidores Bin Laden Bush além de outras formas sutis atuais de violência como a discriminação contra homossexuais etc 50 1 01 1 I NTRODUÇÃO edição de novas leis ao invés de proteção não significasse apenas a multiplicação de novas violações à lei e pois mais arbitrariedade75 Por isso é que se quisermos tomar a sério a legislação cumpre adotar um corpo mínimo de leis claras precisas necessárias e com um mínimo de efetividade social pois como há muito disse Montesquieu as leis desnecessárias enfraquecem e desacre ditam as leis necessárias76 É que problemas estruturais demandam soluções também estruturais no mais das vezes intervenções individuais v g castigar criminosos apenas servem para manter as coisas como estão a pretexto de mudálas e pois têm caráter essencialmente con servador do status quo 1 5 Direito e arte Parece certo que por mais que estudemos literatura teatro ou pintura é pouco provável que um dia escreveremos como um Tolstói faremos filmes como Charles Chaplin ou pintaremos como um Picasso É que a arte movida grandemente pela ins piração requer qualidades que estão além da técnica que pode eventualmente ajudar a aperfeiçoálas mas que dificilmente fará de um desafinado um virtuoso Talvez se possa dizer o mesmo do direito uma excelente formação dogmática não é garantia de decisões justas porque a técnica no direito como na arte só pode oferecer na melhor das hipóteses isso decisões tecnicamente corretas Mas decisões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas assim como decisões tecnicamente incorretas não são necessariamente decisões injustas É que uma boa in terpretação na arte como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sen sibilidade E a técnica jurídica é apenas um meio a serviço de um fim a justiça Existem outras semelhanças entre direito e arte Ainda hoje é muito comum con fundir lei e direito como se fossem a mesma coisa No entanto confundir lei e direito equivale a confundir partitura e música que são obviamente coisas distintas poden do inclusive existir uma sem a outra Com efeito é perfeitamente possível produzir som melodia e música como é comum aliás e principalmente compor sem partitura alguma a revelar que a música independe da partitura Pois bem o mesmo ocorre com o direito é possível decidir casos sem nenhuma lei basta pensar nos conflitos havidos em comunidades mais primitivas v g indígenas ou no common law além dos inú meros casos não disciplinados pela lei lacuna legal O direito como a música existe com ou sem lei com ou sem partitura Mas o mais importante parece residir nisso uma mesma partitura pode ser tocada de mil formas e ritmos como por exemplo na forma de música clássica rock samba 75 Como disse Beccaria criar novas leis não significa impedir mais crimes mas criar outros novos Dos delitos e das penas cit 76 O espírito das leis trad Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Matos Rodrigues Brasília Ed UnB 1995 51 PAULO QEIROZ etc E cada um desses ritmos sons e estilo variará conforme o seu intérprete suas influências experiência talento necessidades etc Também assim é a lei uma lei por mais clara e precisa pode ser interpretada de diversos modos variando conforme os préconceitos influências experiências motivações e sensibilidade de seu intérprete A lei é uma partitura que pode ser interpretada de mil formas embora nem todas se jam plausíveis Não se deve pois confundir lei e direito assim como não se deve confundir par titura e música a música é o que decorre da execução do músico o direito é o que resulta da interpretação do juiz ou tribunal O direito como a música não é a lei nem a partitura o direito é interpretação Algumas interpretações julgamos boas e aplaudi mos outras julgamos ruins e condenamos 151 Direito umaficção Direito e arte são formas distintas de retratar o ser humano e suas circunstâncias sobretudo porque enquanto o direito se ocupa de situações reais visando a decidir e resolver conflitos também reais a arte especialmente o teatro o cinema e a literatura trata em geral da ficção com motivação e fins diversos Mas não é de todo correto dizerse que a literatura ou o cinema tratam da ficção enquanto o direito cuidaria de casos reais exclusivamente É que existem obras lite rárias que relatam situações reais a exemplo de A sangue frio de Truman Capote De fato nesse famoso livro Capote narra a história da família Clutter cujos quatro mem bros foram brutalmente assassinados por Perry Smith e Richard Hickock na fazenda River Valley na cidade de Holcomb no Estado do Kansas Estados Unidos em novem bro de 1959 Os criminosos foram condenados à pena de morte e executados Para escrever o livro e retratar essa tragédia com o máximo de precisão Capote residiu por mais de um ano na região e entrevistou os moradores e principais perso nagens dessa história macabra realizando uma investigação paralela De acordo com Capote todo o material contido neste livro que não provém de minha própria ob servação ou foi retirado dos registros oficiais ou resulta de conversas com as pessoas diretamente envolvidas entrevistas em geral realizadas ao longo de um extenso perío do77Não é por acaso que o subtítulo de A sangue frio é um relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências O que distingue então a narrativa de Truman Capote da narrativa dos réus das testemunhas do promotor do advogado do juiz etc Ademais o direito em vários momentos recorre à ficção Assim por exemplo quando adota a teoria da equivalência quanto ao erro sobre a pessoa e à aberratio ictus quando dá vida às pessoas jurídicas quando adota a continuidade delitiva quando presume verdadeiros os fatos não contestados pelo réu etc Também concei tos como liberdade igualdade presunção de inocência de vulnerabilidade etc são 77 A sangue frio São Paulo Companhia das letras 201 1 p 1 7 agradecimentos 52 1 01 1 I NTRODUÇÃO ficções jurídicas quer porque ninguém é absolutamente livre ou igual a outrem mas apenas relativamente quer porque o presumido inocente pode ser inclusive um cri minoso confesso Vêse pois que não é de todo exato afirmar que o direito trata da realidade e a literatura da ficção visto que independentemente de cuidarem de fatos reais ou ima ginários direito e literatura constituem em última análise formas de ficção embora com fins limites e consequências distintas Sim porque se pensarmos bem nos daremos conta de que os juristas profissio nais do direito pertencem a uma classe particular de contadores de histórias afinal juízes promotores e advogados não fazem outra coisa senão contar suas próprias his tórias a partir de outras tantas Uns contam tragédias outros comédias uns preferem o conto outros a novela ou o romance e o fazem com maior ou menor imaginação com maior ou menor talento com maior ou menor honestidade Mas todos contam histórias e pois dão sua própria versão dos fatos Sim porque o que pretendem como simples sentença denúncia testemunho fatos não é uma pura narração mas uma construção isto é uma interpretação a partir do que a mente percebe e a memória retém No direito como na arte nada é dado tudo é cons truído Que são afinal os grandes advogados senão exímios contadores de histórias e que como bons contadores contamnas conforme o seu respectivo auditório juiz tribunal etc com ele interagindo e persuadindoo Enfim que fazem os juristas senão contar histórias mais ou menos verossímeis mais ou menos exatas no seu próprio interesse e no interesse de seus clientes Estado réu vítima Ademais no direito e na arte o modo como se conta uma história é mais impor tante do que a história mesma Tratase enfim de uma história recontada conforme os nossos sentidos as nos sas necessidades os nossos interesses as nossas crenças as nossas limitações Não existem fatos só existem interpretações Nietzsche mesmo porque o direito escreve roteiros que permitem aos atores grande margem de improvisação78 Daí dizer François Ost que entre direito e literatura solidários por seu enraiza mento no imaginário coletivo os jogos de espelho se multiplicam sem que se saiba em última instância qual dos dois discursos é ficção do outro Diz ainda que ao invés de se afirmar que o direito se origina dos fatos ex facto ius oritur seria mais exato dizer ex abula ius oritur é da narrativa que sai o direito79 78 François Ost Contar o Direito as fontes do imaginário jurídico Porto Alegre Editora Unisinos 2005 p 44 79 Idem p 24 53 PAULO ÜlJEIROZ De certo modo portanto o direito é uma espécie sutilíssima de ficção mas que não percebemos como ficção80 Também por isso não surpreende quão arbitrários podem ser nossos juízos de valor afinal em última análise interpretamos o mundo e tudo lhe diz respeito conforme o nosso grau de envolvimento e identificação com os personagens dramas e temas em questão Não é por acaso que tendemos a compreender e perdoar as pessoas de que gostamos e pelos mesmos atos abominamos aqueles que nunca vimos ou conhece mos uns cometem erros outros crimes Não por outra razão é que a lei declara impedido ou suspeito o juiz segundo o grau de parentesco ou amizade com as partes do processo Parece mesmo que condenamos nos outros o que conscientemente ou não con denamos em nós mesmos e absolvemos nos outros o que absolvemos ou toleramos em nós mesmos Compreendese assim que no passado os jurados absolvessem o marido que surpreendia a esposa em adultério e a matava acolhendo a tese que hoje rejeitam solenemente de legítima defesa da honra Consequentemente tão ou mais importante que a verdade processual e o conheci mento da legislação é o tipo de relaçãointeração que se passa nem sempre conscien temente entre quem julga e o que julga e quem é julgado e o que é Naturalmente que entre direito e arte há muitas diferenças Faltam em geral ao direito e aos juristas por exemplo a criatividade e a subversão que caracterizam a grande arte Como escreve Flávio Kothe arte é transcendência não no sentido re ligioso de advento de uma instância metafísica e sim no duplo sentido de arrancar o sujeito de sua circunstância e permitir o acesso a algo além do aqui e agora A arte é sempre subversiva no sentido de arrancar o sujeito da tirania de sua circunstância e de seu conformismo Somente pode ser gerada a partir de uma experiência de choque e de uma vivência de exclusão Ela é a elaboração de um abismo o qual separa o sujeito de sua circunstância e o leva ao espaço privilegiado de alguma espécie de moldura dentro da qual ele opera o seu milagre criativo81 Também por isso o artista dispõe de uma liberdade de criação muito superior àquela dos juízes e tribunais Por tudo isso talvez tenhamos mais a aprender com a literatura o teatro o cine ma a música a arte do que com os livros técnicos sobretudo nos dias atuais em que a doutrina tende a não doutrinar mas a repetir precedentes judiciais acriticamente 80 Nietzsche observou Parmênides disse não se pensa o que não é estamos na outra extremidade e dizemos o que pode ser pensado há de ser seguramente uma ficção Aforismo 539 Vontade de Poder Rio Contraponto 2008 p 282 Eis a propósito um dos sentidos possíveis de ficção relato ou narrativa com intenção objetiva mas que resulta de uma interpretação subjetiva de um acontecimento fenômeno fato etc Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa Ed Objetiva Rio de Janeiro 2001 1 ed p 1 336 8 1 O Cânone Republicano II Brasília Editora Universidade de Brasília 2004 p 473 54 Distinguese direito penal criminologia e política criminal PAU LO Q1EIROZ opções e estratégias concretas de controle da criminalidade por último o direito penal deve encarregarse de converter em proposições jurídicas gerais e obrigatórias o saber criminológico esgrimido pela política criminal86 devendo o direito penal ser crimino logicamente fundado e políticocriminalmente orientado E finalmente parece ter razão Alessandro Baratta quando assinala que entre todos os instrumentos de política criminal o direito penal é o mais inadequado 87 sobretudo em razão da violência estrutural inerente ao seu funcionamento de sorte que não se deve confundir controle da criminalidade com controle penal em face das múltiplas possibilidades de política social utilizáveis pelo Estado para a prevenção e controle da desviação 21 Direito penal e política criminal há distinção realmente Como se vê a doutrina distingue direito penal política criminal e criminologia recorrendo ainda que não explicitamente à estrutura tridimensional do direito a cri minologia se ocupa do crime enquanto fato a política criminal enquanto valor o di reito penal enquanto norma88 Mas não é tão fácil estabelecer uma distinção entre política criminal e direito pe nal Primeiro porque o direito penal é um fenômeno político por excelência89 Afinal sua existência mesma não decorre de uma necessidade moral religiosa ou ética mas política essencialmente se num determinado momento o Estado entendeu e ainda entende de se valer de leis e instituições penais para responder a determinados confli tos assim q fez por julgálo necessário à sua própria afirmação enquanto poder Além disso e conforme assinala Foucault a lei nasce das batalhas reais das vitórias dos massacres das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror a lei nasce das ci dades incendiadas das terras devastadas ela nasce com os famosos inocentes que ago nizam no dia que está amanhecendo Mas isso não quer dizer que a sociedade a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras ou a sanção definitiva das vitórias 86 GarcíaPablos Criminología cit p 9798 87 Criminología crítica y crítica dei derecho penal introducción a la sociología jurídicopenal trad Álvaro Búnster 4 ed Bogotá Siglo Veintiuno Ed 1 993 p 2 14 88 Mir Puig Derecho penal parte general Barcelona 1 998 p 1 6 89 O direito é uma espécie de armadura que veste e protege o corpo político isto é as estruturas de poder existentes numa dada sociedade que são as forças políticas em combate permanente E se é de combate que estamos falando é de prever que os grupos mais vulneráveis social econômica e politicamente sejam suas principais vítimas e é sob este aspecto que se deve entender a arbitrária e discriminatória seletividade do sistema penal Consequentemente o direito como realização da política será menos injusto à medida que houver menos injustiças sociais e maior equilíbrio entre as forças políticas Ihering tinha razão portanto quando dizia que o fim do direito é a paz o meio de que se serve para conseguilo é a luta Enquanto odireito estiver sujeito às ameaças da injustiça e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta pois a vida do direito é a luta luta dos povos dos governos das classes sociais dos indivíduos cf A luta pelo direito São Paulo Ed Martin Claret 2004 p 27 56 A lei não é pacificação pois sob a lei a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder mesmo os mais regulares A guerra é que é o motor das instituições e da ordem a paz na menor de suas engrenagens faz suddenamente a guerra Em outras palavras cumpre decifrar a guerra sob a paz a guerra é a cifra mesma da paz Portanto estamos em guerra uns contra os outros uma frente de batalha perspassa a sociedade inteira contínua e permanentemente e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro Não há sujeito neutro Somos forçosamente adversários de alguém PAULO QEIROZ Finalmente sabese hoje que o delito que não tem consistência material ou onto lógica é socialmente construído teoria do etiquetamento tendo o direito penal um papel importante nessa definição rotulação do que seja crime e criminoso já que é ele que fornece a principal ferramenta a dogmática com a qual o sistema penal traba lha Nesse contexto a lei penal configura como diz Vera Andrade apenas um marco abstrato de decisão no qual os agentes do controle social formal desfrutam de ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter definitorial da criminalidade pois entre a seleção abstrata e provisória da lei e a seleção definitiva operada pelos agentes de criminali zação secundária polícia Ministério Público Judiciário etc medeia um complexo e dinâmico processo de refração94 E se a Constituição alfa e ômega do ordenamento jurídico e pois começo e fim da atividade judicial e doutrinária não estabelece fórmulas matemáticas para solução dos casos penais declarando principalmente em termos gerais e abstratos o que os seus intérpretes não podem fazer mas não o que podem limites essencialmente nega tivos de atuação força é convir que o juiz e o doutrinador dispõem por conseguinte de ampla liberdade de argumentar jurídica e validamente Assim o juiz não pode condenar alguém à pena de morte à prisão perpétua ou à mutilação de membros Mas nada impediria se tais penas fossem admitidas de deixar de aplicálas em nome de determinados valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana Também por isso nada o obsta de a despeito de não existir previsão legal para tanto adotar o princípio da insignificância nalguns casos etc Nesse sentido as normas penais expressam sem dúvida um dado modelo polí ticocriminal ou mais exatamente vários modelos políticos liberais conservadores etc Falar de direito penal é falar assim de um modelo político normatizado que em razão das múltiplas possibilidades de interpretação e mudança do contexto sociocultu ral jamais será um modelo estático mas sempre dinâmico em permanente transfor mação Por isso é que por exemplo quase nenhum autor defende nos dias atuais como no passado que o marido em razão dos deveres do casamento não pode ser sujeito ativo do crime de estupro95 Disso também resulta que a atividade judicial constitui uma atividade política por excelência96 mesmo porque conscientemente ou não o juiz sempre adere ou 94 A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal Po110 Alegre Livraria do Advogado Ed 1 997 p 260 95 Exceção a isso era Paulo José da Costa Júnior que escrevia textualmente discutese se o marido pode ser sujeito ativo de estupro Quernos parecer que não pois o estupro pressupõe a cópula ilícita e a prestação sexual é dever recíproco dos cônjuges Estará pois o marido exercitando um seu direito se o fizer regularmente Isso significa que poderá responder pela violência tisica excessiva que venha a empregar para compelir a esposa à cópula Curso de Direito Penal S Paulo Saraiva 2008 p 607 608 96 Não necessariamente políticopartidária exceto naqueles países em que os juízes são eleitos pelo voto e são filiados a um partido político 58 f 01 f INTRODUÇÃO se vincula a uma dada concepção políticocriminal entre as várias possíveis ain da quando supõe de forma acrítica estar julgando rigorosamente conforme a lei leâ que já é em si uma expressão política97 de sorte que decisões jurídicas são deci sões políticas Por exemplo em face de uma denúncia por tráfico de pequena quanti dade de droga o juiz pode em tese adotar as seguintes decisões 1 absolver o réu por entender inconstitucional toda norma penal em branco heterogênea por remeter a sua complementação a uma norma de grau inferior no caso uma portaria da AN VISA 2 absolver o réu por julgar que embora constitucional o artigo em questão é insignificante a quantia apreendida 3 condenar o réu a uma pena de prisão 4 condenar o réu a uma pena de prisão mas admitir a substituição por pena restritiva de direito 5 entender que o caso não é de tráfico mas de porte para consumo 6 etc Ao decidir a lide por conseguinte o juiz a pretexto de aplicar a lei faz necessa riamente dentro da lei e segundo a sua formação liberal conservadora etc política criminal no caso concreto A realização do direito é portanto como observa Roxin consideravelmente mais do que a aplicação de uma lei já determinada em todos os seus detalhes por meio de um processo lógico de dedução Ela é muito mais a con cretização de uma moldura contida na regra legal e ao desenvolver criativamente as finalidades do legislador faz verdadeira política criminal sob o manto da dogmá tica98 Daí se afirmar que a tarefa do juiz é construtiva e performativa porque decide à semelhança de um diretor de cinema que grava por horas para editar um filme de poucos minutos cuja síntese final é o resultado de uma operação de montagem isto é de um semnúmero de seleções e abduções de continuidades e descontinuidades de repetições e silêncios constitutivos de sentido99 Ao sentenciar portanto o magistrado monta a partir de pretensões de validade enunciadas pelas partes o que se chama ver dade processual lançando mão das provas dos significantes produzidos validamente manejando a técnica de bricolagem jurídica ou seja construindo com o que tem à mão sem o pretendido controle racional total existindo uma compulsão de dizer o in dizível onde a palavra falha o espelho da realidade na escrita que insiste em nomear em reduzir em racionalizar100 97 Como observa Hassemer carece de sentido afirmar que o juiz tem de se ater estritamente ao sentido literal da lei desconhecendo a vagueza e porosidade dos conceitos legais e as diferentes formas que têm os juízes de compreendêlos pois se é verdade que a atuação judicial tão só estabelece o marco do significado das palavras da lei mediante a interpretação desta em relação ao caso então a con cepção rigorosa da vinculação do juiz não mudará este fato senão que o ocultará simplesmente El pensamiento filosófico contemporáneo Madrid Debate 1 992 p 2 1 O 98 Funcionalismo cit p 245 99 Carlos Maria Cárcova Ficción y verdad en la escena dei Derecho in Direito e Psicanálise interse ções a partir de O Processo de Kafka Coordenador Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 100 Alexandre Morais da Rosa Decisão penal a bricolagem de significantes Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 365366 59 PAULO Ü1JEIROZ Daí dizer Maiwald que não existe um limite rígido entre política criminal Di reito Constitucional e dogmática jurídicopenalIO mesmo porque o dogmático deve tanto quanto o legislador argumentar políticocriminalmente tendo de terminar de pintar em todos os seus detalhes o quadro do direito vigente que o legislador só pode desenhar em suas linhas mestrasw2 E mais discutível ainda é esta delimitação quando se entende a ciência penal não como a mera descrição do direito como é mas como a projeção do direito que deve ser Filangieri É bem verdade como observa Roxin que política criminal e dogmática não têm as mesmas competências pois do contrário se estaria igualando o juiz ao legislador violando o princípio da divisão de poderes e que a dogmática deve muito mais rea lizar política criminal dentro da moldura da lei isto é dentro dos limites da interpre tação103 Mas isso só confirma que dogmática e política criminal são modos de tratar um mesmo problema o problema da criminalidade os quais não se opõem nem se repelem mas antes se atraem e se completam mutuamente mesmo porque o direito não é senão um momento da política razão pela qual não pode nem deve a ciência penal simplesmente pretender descrever o direito mas sobretudo criticálo perma nentemente com vistas a implementar não apenas um direito penal melhor mas algo melhor do que o próprio direito penal Radbruch Em suma o direito é um fenômeno político com fins e limites também políticos E como fenômeno político é explicável legitimável e também deslegitimável politica mente 3 DIREITO PENAL E CONTROLE SOCIAL O direito não é a única nem a mais importante expressão do controle social for mal Com efeito conscientes ou não estamos permanentemente sujeitos a um universo infindável de regras de comportamento as quais surgem das mais diversas formas de interação e controle social E todas as regras por mais informais preveem sanções como meio de afirmação e validação Realmente já no período de gestação estamos de algum modo sendo socializa dos dãonos nome direitos família religião língua nacionalidade orientação sexual etc e passamos a fazer parte de um projeto de vida que não escolhemos de modo que somos alguém antes mesmo de nascermos Mais tarde seremos socializados pela família escola trabalho religião moral etc quando então aprenderemos os mandamentos de não matar não furtar não pres tar falso testemunho etc razão pela qual o processo de socialização está presente nas nossas vidas a todo tempo e em toda parte de modo que nunca estamos realmente sós 1 0 1 Apud Roxin Funcionalismo cit p 245 1 02 Roxin Funcionalismo cit p 245 1 03 Roxin Funcionalismo cit p 245 60 J 01 J INTRODUÇÃO Em semelhante contexto a ordem jurídica estatal não é portanto mais do que o reflexo ou a superestrutura de uma determinada ordem social incapaz por si mesma de regular a convivência de modo organizado e pacífico104 Por sua vez a ordem jurídicopenal não é outra coisa senão um dos instrumentos destinados à socialização do homem ou ainda o direito penal é um sistema de contro le social puramente confirmador de outras instâncias mais sutis e eficazes105 O ordenamento penal não é pois o começo da socialização mas a sua culmina ção não é todo o controle social nem sequer é sua parte mais importante é mais exa tamente a parte visível de um iceberg em que o que não se vê seja talvez o que mais importa mesmo porque a norma penal não cria valores nem constitui um sistema au tônomo de motivação do comportamento humano106 Em consequência o sistema penal há de desempenhar relativamente ao sistema social como um todo um papel subsidiário Sim porque o direito penal parte da ma quinaria pesada do Estado107 só tem sentido se considerado como continuação de um conjunto de instituições públicas ou privadas cuja finalidade consiste em socializar e educar os indivíduos por meio da aprendizagem e da internalização de certas pautas de comportamento108 O direito penal é por conseguinte a ultima ratio do controle social formal ou ainda o direito penal é a fortaleza e os canhões dos demais direitos109 Se pensarmos por exemplo naquele que emite dolosamente cheque sem provisão de fundos CP art 171 veremos que atuam concorrentemente com a intervenção jurídicopenal censura social perda do crédito pagamento de juros encerramento da conta bancária inscri ção do nome em serviços de proteção ao crédito protesto eou execução forçada do tí tulo e por fim já agora intervindo o direito penal indiciamento em inquérito policial 4 DIREITO PENAL E MORAL De certo modo o direito é uma continuação da moral por outros meios espe cialmente porque as proibições e permissões jurídicas são no essencial proibições e permissões morais não matar não furtar etc Justamente por isso a distinção entre moral e direito são palavras de Kelsen não pode ser encontrada naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana11ºA distinção entre ordem jurídica e moral tem a ver portanto não propriamente com o conteúdo mas com a forma essencialmente 1 04 Muiioz Conde Derecho penal y control social Jerez Fundación Universitaria de Jerez 1 985 p 24 1 05 Muiioz Conde Derecho penal y control social cit p 1 7 106 Muiioz Conde Derecho penal y control social cit p 1 7 107 A expressão é de GarcíaPablos 108 Muiioz Conde Derecho penal y control social cit p 37 109 A expressão é de Alfonso de Castro citado por Berdugo Gomes Derecho Penal cit 1 1 O Kelsen Hans Teoria Pura do Direito Tradução João Baptista Machado Martins Fontes São Paulo 2003 p 7 1 61 PAULO QlJEIROZ Naturalmente que na vigência de um modelo de Estado formalmente secular como pretende ser o Estado Democrático de Direito não é possível nem desejável uma concordância absoluta entre preceitos morais e jurídicos nem jurídicopenais Primeiro porque a rigor não existem fenômenos morais mas uma interpreta ção moral dos fenômenos Nietzsche e pois múltiplas formas de expressão da mo ral111 segundo porque o direito é no fundo uma dimensão do poder razão pela qual pode ser eventualmente imoral inclusive relativamente a uma determinada perspec tiva ou sistema moral112 tal como ocorre com o instituto da colaboração premiada e a figura do agente infiltrado terceiro porque a moral pressupõe em princípio espon taneidade diversamente do direito que não pode existir senão por meio da violência isto é por meio da possibilidade de recurso à força coercibilidade E mais em razão de seu caráter subsidiário a intervenção do direito penal só se justifica quando fra cassam outras formas de prevenção e controle social aí incluída a intervenção moral inclusive No particular a máxima atribuída ao jurisconsulto romano Paulo permanece atua líssima non omne quod licet honestum est D 50 141 1 isto é nem tudo que é lícito é honestomoral Finalmente se a moral persegue o aperfeiçoamento ético do homem o direito como instrumento de controle social formal objetiva tornar possível a convivência so cial independentemente da adesão moral de seus destinatários Porque como escreve Mourullo ao direito interessa os comportamentos humanos somente quando transcen dam à ordem social exterior e não pelo que representam em si mesmos do ponto de vista moral113 Não pode haver por isso uma concordância absoluta entre moral e direito mesmo porque do contrário violarseia o pluralismo inerente ao Estado Democrático de Di reito convertendoo em Estado policial puramente Exatamente por isso é que por mais imorais que possam ser determinadas condu tas o direito penal não pode intervir sobre elas exceto quando implicarem lesão grave de bem jurídico alheio conforme o princípio da lesividade114 Existe portanto um 1 1 1 A propósito Kelsen escreveu se pressupusermos somente valores morais relativos então a exigência de que o Direito deve ser moral isto é justo apenas pode significar que o Direito positivo deve corres ponder a um determinado sistema de Moral entre os vários sistemas morais possíveis cit p 75 1 1 2 Como assinala Kelsen devemos ter presente porém quando apreciamos moralmente uma ordem jurídica positiva quando a valoramos como boa ou má justa ou injusta que o critério é um critério relativo que não fica excluída uma diferente valoração com base num outro sistema de moral que quando uma ordem jurídica é considerada injusta se apreciada com base no critério fornecido por um sistema moral ela pode ser havida como justa se julgada pela medida ou critério fornecido por um outro sistema moral cit p 76 1 1 3 Derecho penal parte general Madrid Ed Civitas 1978 p 20 1 1 4 Como diz Femández Carrasquilla o direito penal não é um instrumento de moralização ou de aper feiçoamento espiritual do homem senão um instrumento para a preservação da paz social pois supor que ele se presta à persecução do primeiro fim significaria contrariar a liberdade de consciência e 62 1 01 1 l NTRODUÇÃO âmbito da vida pessoal intocável pelo poder do Estado e ao resguardo do controle pú blico e da vigilância policial não só as interações e os projetos mas também os erros de pensamento e de opinião115 41 Deus e o Direito Diz Michel Onfray que apesar do triunfo aparente dos ideais do Iluminismo que sonhara com um direito laico e que portanto distinguisse e separasse muito claramente direito e moral direito e religião crime e pecado ainda hoje a episte me do direito permanece judaicocristã pois no essencial se mantém fiel aos seus valores fundamentais116 Afirma que embora os tribunais de justiça da França não possam ostentar símbolos religiosos nem proferir decisões com apoio na Bíblia no Alcorão ou na Torá nada existe no direito francês que contravenha essencialmente as prescrições da igreja católica apostólica e romana117 Diz mais o saber e a meta física do direito provêm diretamente da fábula do paraíso original versão monoteísta do mito grego de Pandora o homem é livre e pois responsável e culpável logo por ser dotado de liberdade pode decidir e preferir uma coisa a outra num universo de possibilidades118 Assim o direito não seria outra coisa senão uma continuação da tradição moral cristã por outros meios já que todos aqueles que dele se utilizam legisladores juízes promotores advogados etc seriam meros portadores conscientes ou não dos valores cristãos por sua vez a moral seria a continuação da religião o conhecimento um continuum da moral e da religião embora por meios diversos119 Por conseguinte a tão propalada separação entre direito e moral entre direito e religião entre crime e pecado seria mais aparente do que real afinal os dois mil anos de história e dominação ideológica do cristianismo continuariam a forjar os sujeitos ditandolhes o modo cor reto de nascer viver e morrer120 portanto o pluralismo ideológico e a tolerância moral e ideológica que aquela implica Concepto y límites dei derecho penal Bogotá Ed Temis 1 992 p 2324 1 1 5 Ferrajoli Derecho y razón cit p 482 1 1 6 De acordo com Ernst Cassirer a consciência teórica prática e estética o mundo da linguagem e do conhecimento da arte do direito e da moral as formas fundamentais da comunidade e do Estado todas elas se encontram originariamente ligadas à consciência míticoreligiosa Linguagem e mito S Paulo 2006 p 64 1 1 7 Tratado de ateología fisica de la metafisica Buenos Aires Ediciones de la Flor 2005 p 73 1 1 8 Idem p 73 No particular ele escreve o seguinte a máquina da colônia penitenciária de Kafka repercute diariamente nos palácios chamados de Justiça europeus e em suas prisões contíguas O choque entre o livrearbítrio e a eleição voluntária do Mal que legitima a responsabilidade portanto a culpabilidade portanto o castigo pressupõe o funcionamento de um pensamento mágico que ignora o que a obra póscristã de Freud ilustra através da psicoanálise e a de outros filósofos que demonstram o poder dos determinismos inconscientes psicológicos culturais sociais familiares etológicos etc cit p 75 1 1 9 Giles Deleuze Nietzsche e a filosofia Lisboa RésEditora 200 1 p 148 120 Naturalmente que isso não constitui uma exclusividade do direito atingindo todo o conhecimento humano ético bioético pedagógico político filosófico etc Quanto à psiquiatria por exemplo 63 PAULO QlJEIROZ Será isso exato relativamente ao direito brasileiro Bem se tomássemos como referência o Livro V das Ordenações Filipinas que vi gorou entre nós de 1603 a 1830 típica legislação medieval contra a qual se insurgiria a filosofia das luzes não se teria nenhuma dúvida a esse respeito uma vez que ali a confusão entre Estado e Igreja era manifesta conforme se lê de alguns títulos como por exemplo dos hereges e apóstatas dos que arrenegão ou blasfemão de Deos ou dos Santos dos feiticeiros dos que benzem cães ou bichos sem autoridade dEl Rey ou dos Prelados Títulos 1 II III e IV etc Mas poderseá dizer o mesmo do Brasil de hoje que é formalmente uma Repú blica Federativa que se constitui em Estado Democrático de Direito Estado secu lar portanto e que tem como objetivos declarados entre outros promover o bem de todos sem preconceitos de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação121 CF arts 1º e 3º IV Parecenos que sim Desde logo porque foi o próprio Constituinte que Jª no preâmbulo da Constituição fez consignar que a promulgava sob a proteção de Deus estabeleceu a monogamia conferiu ainda efeitos civis ao casamento religioso reco nheceu a união estável entre o homem e a mulher e não simplesmente entre pessoas independentemente da orientação sexual restrição que terá importantes e discrimi natórias implicações no direito civil como por exemplo sobre a adoção a sucessão direitos previdenciários etc decretando assim a clandestinidade das relações entre pessoas do mesmo sexo bem como entre parentes tal como a lei mosaica que dispõe sobre os casamentos ilícitos e as uniões abomináveis Entre nós sequer existe a proibi ção explícita de os juízos e tribunais ostentarem símbolos religiosos razão pela qual não é incomum encontrar algum crucifixo exposto em salas de audiência Semelhantemente o Código Penal pune entre outras coisas o aborto a bigamia a mediação para servir à lascívia de outrem o favorecimento à prostituição a casa de Thomas Szasz assinala que o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com relação às superstições e práticas das caças às bruxas segundo a interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contemporânea nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do Iluminismo tal como pensam os romãnticos tradicionalistas Na realidade a Psiquiatria Institucional é uma continuação da Inquisição O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social O vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época é um jargão pseudocientífico que parodia os conceitos da ciência O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época é um movimento social pseudoliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade A fabricação da loucura Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de Saúde Mental Rio de Janeiro Zahar Editores 1976 p 56 1 2 1 De acordo com Scarlett Marton para Nietzsche que critica os valores do cristianismo como falsos valores e sua moral como moral dos fracos a Revolução Francesa e seus ideais de igualdade e fra ternidade é filha e continuadora do cristianismo tendo cabido ao primeiro a inversão de valores ao segundo a sua preservação Scarlet Marton Nietzsche e a Revolução Francesa in Extravagâncias ensaios sobre a filosofia de Nietzsche S Paulo Discurso Editorial 200 1 64 prostituição o rufianismo etc o mesmo ocorrendo quando a legislação especial proíbe a produção o comércio e o porte de droga ilícita a revelar quão presente está no direito o ideal ascético próprio do cristianismo É que no particular o legislador tal como Moisés está a nos dizer o que é lícito fazer e não fazer com o corpo assim como o que é permitido e não permitido consumirfumar Também é certo que muitos temas e discussões não avançam ou sequer são colocados em pauta a exemplo do aborto e da eutanásia justamente em razão de trazerem os interesses da Igreja para a qual a vida é um dom de Deus logo um bem jurídico de que não se pode dispor Mas isso não é o mais importante o mais relevante consiste no seguinte editar uma legislação democrática e laica não significa necessariamente adotar um direito democrático ou laico sob pena de se confundir discurso e realidade teoria e práxis É o direito uma prática social discursiva não é só o que as leis dizem mas sobretudo o que dizemos que as leis dizem ou seja o direito não é feito um objeto físico mas interpretação de sorte que em última análise o direito não reside propriamente nos fatos ou nas normas mas na cabeça das pessoas Numa palavra e conforme já o assinalamos o direito tal qual o justo e o injusto ético e o estético é em nós que ele existe motivo pelo qual com ou sem alteração da redação dos textos legais está em permanente transformação decisivo portanto não é a lei mas o homem E se de fato somos forjados segundo a tradição judaicocristã seguese que o direito expressará necessariamente esses valores Dito de outro modo a pretexto de atuarem em nome da lei juízes e tribunais atuariam em verdade em nome de Deus o Deus do cristianismo Afinal embora façamos como se a religião já não houvesse impregnado e penetrado nas nossas consciências corpos e almas certo é que falamos vivemos amamos sonhamos imaginamos sofrermos pensamos e julgamos segundo o ensinamento judaicocristão moldado por mais de dois mil anos de monoteísmo bíblico PAULO ÜJEIROZ 5 CARÁTER SUBSIDIÁRIO DO DIREITO PENAL Discutese se o direito penal tem caráter constitutivo originário ou primário ou subsidiário sancionador ou acessório discussão que envolve dois aspectos distintos político ou social e lógico ou sistemático Quanto ao aspecto político a doutrina é pacífica em reconhecer que o direito pe nal por ser a forma mais violenta de intervenção do Estado somente deve ser chamado a intervir quando fracassem outros modos de prevenção e controle social Mas quanto ao aspecto lógicosistemático os autores divergem uns consideram que o direito penal tem natureza subsidiária outros constitutiva Assim Jescheck para quem o direito penal cria o ilícito afirma que historicamen te o direito penal constitui a forma mais antiga de manifestação do direito e regula de maneira autônoma e sem precisar recorrer a conceitos e funções de outros ramos do direito áreas extensas como o direito à vida à liberdade ou à honra124 De modo semelhante Cezar Bitencourt diz que é preciso reconhecer a natureza primária e cons titutiva do direito penal e não simplesmente acessória uma vez que protege bens e interesses não protegidos por outros ramos do direito e mesmo quando tutela bens já cobertos pela proteção de outras áreas do ordenamento jurídico ainda assim o faz de forma particular dandolhes nova feição e com distinta valoração125 Em verdade o significado do que seja caráter primário ou acessório do direito penal já é em si algo problemático De todo modo pensamos que em ambos o casos se está a discutir em última análise uma mesma coisa a conveniência política de se recorrer ou não ao direito penal para solução de determinados conflitos Não se discu te portanto como supõe Jescheck questão cronológica mas lógica saber se o ilícito penal pressupõe um ilícito não penal E em qualquer sentido o direito penal é sempre subsidiário e não primário Com efeito a natureza subsidiária e não principal do direito penal diante de outras formas de controle social decorre em primeiro lugar da circunstância de o direito penal constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dcs cidadãos Consequentemente somente quando não forem suficientes outros modos de intervenção é legítimo recorrer ao direito penal para proteção de bens jurídicos Assim por exemplo já não mais se justifica nos dias atuais a criminalização da bi gamia porque a intervenção do direito civil é suficiente para proteção do casamento 1 24 Tratado de derecho penal trad José Luis Manzanares Samaniego 4 ed Granada Ed Comares 1993 p 46 Não é exato dizer porém que a lei criminal tenha precedido à lei civil ou que as comuni dades primitivas só tenham conhecido o direito criminal seja porque é um tanto arbitrário estabelecer em relação às comunidades selvagens uma clara delimitação entre normas civis e penais seja porque o acasalamento o parentesco as permutas etc seguiam regras próprias e não necessariamente crimi nais Nesse sentido Bronislaw Malinowski Crime e costume na sociedade selvagem Brasília Ed UnB 2003 1 25 Manual de direito penal São Paulo Revista dos Tribunais 1 999 p 36 66 1 01 1 I NT RODUÇÃO O caráter subsidiário do direito penal decorre portanto de um imperativo políti cocriminal proibitivo do excesso não se justifica o emprego de um instrumento espe cialmente lesivo à liberdade se se dispõe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade A natureza secundária das normas penais é por conseguinte como diz Maurach uma exigência políticojurídica dirigida ao legislador126 Mas além dessa subsidiariedade social existe como vimos uma subsidiariedade lógicosistemática do direito penal em relação aos demais ramos do direito que de corre da unidade lógica do direito já que apesar de dividido em disciplinas o direito é um só não devendo haver contradições dentro do sistema O ilícito latente ou ma nifesto preexiste portanto à sistematização do direito penal visto que tal já é antes objeto do direito civil administrativo etc e sobretudo objeto do direito constitucional porque toda ilicitude nasce originariamente na Constituição e só derivadamente na or dem infraconstitucional Assim compete ao legislador ordinário ao dispor sobre os limites dessa ilici tude eleger os instrumentos de defesa civil etc desse interesse protegido consti tucionalmente Disso cuida o direito civil quando dispondo sobre a propriedade e a posse assegura o direito à ação reivindicatória e aos interditos possessórios etc Também disso trata o legislador penal quando define como crime o furto ou o roubo que não são senão modos qualificados de esbulho O direito penal é o braço armado da Constituição127 Mas essa subsidiariedade se estende também às demais formas de intervenção jurídica porque o legislador penal ao tipificar determinados comportamentos pres supõe nem sempre acertadamente o fracasso das instâncias de controle social que lhe precedem De modo que o direito penal não constitui o ilícito pois se limita a reforçar a proteção de interesses já protegidos ao castigar mais gravemente condutas que já são sancionadas pelo direito como um todo O direito penal é um direito resi dual Consequentemente o direito penal não cria um sistema exclusivoautônomo de ilicitudes fora ou além da ordem jurídica vigente mesmo porque como disse Hungria a ilicitude jurídica é uma só do mesmo modo que um só é o dever jurídico128 ou seja todos os preceitos primários penais pressupõem outro preceito não penal do qual são o complemento e reforço129 Mas isso não significa que o direito penal não tenha auto nomia relativamente aos outros ramos do direito razão pela qual pode criar conceitos e institutos próprios que nem sempre coincidem com o direito civil etc 126 Derecho penal pai1e general Buenos Aires Astrea 1994 p 34 1 27 Luiz Carlos Perez Tratado de derecho penal Bogotá Ed Tem is 1 967 p 4243 128 Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro Forense 1 978 v 1 t 2 p 30 129 Grispigni Diritto penale italiano Milano 1 947 v 1 p 235 67 PAULO QEIROZ Naturalmente que não se deve tomar em termos absolutos a afirmação de que o direito penal é a forma mais grave de intervenção do Estado na vida dos cidadãos pois pode ocorrer nalguns casos de a intervenção não penal ser até mais grave tal como ocorre nos crimes de trânsito em que as sanções administrativas por vezes são mais pesadas do que as penais 6 CARÁTER FRAGMENTÁRIO DO DIREITO PENAL Também por isso caráter subsidiário o direito penal não constitui um sistema exaustivo de ilicitudes ou de proteção de bens jurídicos mas descontínuofragmentá rio já que sua intervenção pressupõe o fracasso de outras formas de controle É que o direito penal seleciona e tipifica condutas atendendo à relevância do bem jurídico e segundo a intensidade da lesão de que se trate outorgandolhes uma proteção relativa Não se protegem portanto todos os bens jurídicos mas só os mais importantes nem sequer os protege em face de qualquer classe de atentados mas tão só em face dos ata ques mais intoleráveisYº Assim nem mesmo o direito à vida recebe proteção penal absoluta pois por exemplo atos simplesmente preparatórios que visem à sua eliminação são como regra jurídicopenalmente irrelevantes e ordinariamente a lei penal só reprime ações dolo sas aliás o próprio Código tolera a morte quando autoriza o aborto necessário ou sen timental CP art 228 de modo que o bem jurídico vida recebe uma proteção apenas fragmentária Subsidiariedade e fragmentariedade são assim verso e reverso de uma mesma moeda a relatividade dessa proteção extrema 7 ILÍCITO PENAL E ILÍCITO NÃO PENAL Em razão do que vem sendo dito não cabe falar por força da unidade do direito inclusive duma distinção qualitativa mas quantitativa entre o ilícito penal e o ilícito não penal Com efeito definir ou não determinados comportamentos como delituosos ou contravencionais para os submeter a seguir a uma disciplina especialmente dura o direito penal é uma questão de conveniência política A distinção entre por exemplo as sanções penais e as administrativas é puramente quanto ao maior rigor entre elas diferença de grau Assim enquanto o direito administrativotributário pune o autor do descaminho com a perda das mercadorias apreendidas e multa o Código Penal art 334 castiga essa mesma conduta com pena de prisão de um a quatro anos enquanto o direito civil reprime o homicídio culposo com a reparação do dano o direito penal o pune com pena de prisão CP art 121 3º E se julgar bastante a repressão administrativa ou civil o Estado pode renunciar à intervenção penal descriminalizando o comportamento em questão Porque na di versidade de tratamento dos fatos antijurídicos a lei não obedece a um critério de rigor 130 Rodriguez Mourullo Derecho penal cit p 19 68 1 01 1 I NTRODUÇÃO científico ou fundado numa distinção ontológica entre tais fatos mas a um ponto de vista de conveniência política variável no tempo e no espaço131 8 LEGISLAÇÃO ESPECIAL O Código Penal constitui em nível infraconstitucional a legislação penal funda mental Mas fora do Código existe uma legislação especial cada vez mais abundante definindo novos crimes e por vezes estabelecendo novos critérios de imputação ju rídicopenal a exemplo da Lei nº 960598 Lei de Crimes Ambientais que adotou a responsabilidade penal da pessoa jurídica Exatamente por isso o art 12 dispõe que as regras gerais do Código aplicamse aos fatos incriminados por lei especial se esta não dispuser de modo diverso Vigora no particular o princípio da especialidade portanto a lei especial prevalece sobre a lei geral sempre que dispuser diversa ou contrariamente ex especialis derogat legi generali E não poderia ser diferente já que a lei especial é editada justamente para dar tratamento melhor e mais sistematizado a determinados temas seja criminalizando novos comportamentos seja penalizando mais duramente seja descriminalizando seja despenalizando etc Por vezes a mesma conduta acaba por ser criminalizada múltiplas vezes inclusive numa clara ofensa ao princípio ne bis in idem Pois bem apesar de a lei especial prevalecer em princípio sobre a lei geral o Có digo Penal por ser a legislação penal fundamental é aplicável relativamente às regras gerais desde que a lei não disponha de forma diversa Assim por exemplo são aplicá veis ordinariamente à legislação penal especial os conceitos básicos dolo culpa erro de tipo etc as excludentes de ilicitude legítima defesa estado de necessidade etc as excludentes de culpabilidade erro de proibição inevitável coação moral irresistível os critérios de individualização judicial da pena art 59 e as causas de extinção de punibilidade morte do agente prescrição entre outros É certo ainda que as regras gerais do Código a que a alude o art 12 não se con fundem com a Parte Geral que vai do art lº ao art 120 porque também na parte especial há regras gerais aplicáveis à legislação especial a exemplo do conceito legal de funcionário público CP art 327 9 SOBRE A LEGISLAÇÃO EM VIGOR A Constituição 1988 apesar de seu caráter generalíssimo constitui a legislação jurídicopenal fundamental porque define princípios e garantias penais e processuais penais estabelece limites à intervenção penal e prevê mandados de criminalização e não criminalização de penalização e não penalização art 5 No âmbito infraconstitucional o texto fundamental é o Código Penal 1940 que é composto de duas partes a Parte Geral que vai do art 1 º ao art 120 e foi inteiramente 1 3 1 Hungria Comentários cit v 1 t 2 p 29 69 PAULO ÜlJ E I ROZ revista em 1984 e a Parte Especial que vai do art 121 ao art 361 A Parte Geral prevê os princípios e conceitos jurídicopenais essenciais a teoria do delito dolo culpa erro de tipo erro de proibição legítima defesa estado de necessidade etc define enfim os critérios de imputação e não imputação penal A Parte Geral prevê também a indi vidualização judicial da pena e seus conceitoschave espécies de pena e regimes de cumprimento medidas de segurança causas de extinção de punibilidade etc Já a Parte Especial cuida no essencial de definir os tipos legais de crime e cominar penas começando pelos crimes contra a vida Apesar de ser de 1940 a Parte Especial sofreu um semnúmero de alterações ora incorporando novos tipos ora abolindo ou tros Além do Código existe uma extensa legislação especial antiga e recente definin do novos crimes e estabelecendo novos critérios de imputação penal a exemplo da Lei de Contravenções da Lei de Execução Penal da Lei de Crimes Ambientais etc No Brasil Colônia vigoraram as Ordenações Portuguesas especialmente as Orde nações Filipinas 16031830 que foram sucedidas pelo Código Criminal do Império 1830 e Código Penal Republicano 1890 10 CONTAGEM DOS PRAZOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS De acordo com o Código Penal art 10 na contagem dos prazos penais v g o tempo exato de pena a ser cumprido é incluído o dia do começo não havendo prorro gação com a superveniência de férias sábados domingos ou feriados Assim o cum primento de uma pena de um ano de prisão que se iniciar por exemplo a qualquer hora do dia 20 de maio de 2008 terminará às 24 horas do dia 19 de maio do ano seguinte 2009 Apesar disso o prazo penal será interrompido ou suspenso sempre que houver previsão legal expressa nesse sentido tal como ocorre com os prazos de prescrição CP arts 116 e 1 17 Diversa é a contagem dos prazos processuais penais v g prazo para apresen tar defesa prévia alegações finais recorrer Com efeito já agora é excluído o dia do começo e o cômputo do prazo tem assim início a partir do primeiro dia útil seguinte incluindose o dia do vencimento CPP art 798 1 º Além disso quando a intimação tiver lugar na sextafeira ou a publicação com efeito de intimação for feita nesse dia o prazo terá início na segundafeira imediata salvo se não houver expediente caso em que começará no primeiro dia útil que se se guir conforme dispõe a Súmula 310 do STF132 Assim se o prazo para a interposição do recurso de apelação se iniciou por exemplo no dia 5 segundafeira a contagem começará no dia 6 terçafeira sendo tempestivo o recurso que for interposto até o dia 1 32 A Súmula 3 1 O do STF dispõe textualmente quando a intimação tiver lugar na sextafeira ou a publicação com efeito de intimação for feita nesse dia o prazo j udicial terá início na segundafeira imediata salvo se nào houver expediente caso em que começará no primeiro dia útil que se seguir 70 1 01 1 1 NTRODUÇÃO 12 segundafeira pois o termo final que se deu no dia 10 sábado prorrogase para o próximo dia útil Se o prazo estiver previsto em ambos os Códigos Penal e Processual Penal pre valecerá o mais favorável ao acusado isto é o prazo do art 10 do CP e não art 798 1 º do CP É o que se dará por exemplo na contagem dos prazos decadenciais e pres cnc10nais Portanto na hipótese dos arts 103 do CP e 38 do CPP que tratam da decadência para o oferecimento de queixa pelo ofendido ou seu representante legal no prazo de seis meses farseá a contagem do prazo decadencial na forma do Código Penal Por isso o que poderia parecer regra de direito processual com previsão no Código de Processo inclusive prazo para oferecimento da queixa é em verdade regra de direito material que se não observada implicará a extinção da punibilidade CP art 107 IV Quanto à contagem do prazo de prisão provisória flagrante temporária preven tiva etc prisão temporária em especial que pode ser decretada pelo prazo de cinco dias prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade nos termos do art 2º da Lei nº 796089 devese observar a regra do art 10 do CPP analogicamente incluindose portanto o dia em que se executar a ordem de pri sào133 Não é preciso dizer que o calendário comum a que o Código art 10 se refere é o oficial gregoriano sendo que os prazos em meses são contados não pelo número real de dias meses com 28 29 30 ou 31 dias mas de determinado dia à véspera do mesmo dia do mês subsequente O mesmo ocorre quanto à contagem de prazos em anos134 Na contagem da pena privativa de liberdade CP art 11 desprezamse as frações de dia logo não há como a pena ser fixada em 15 dias e 8 horas por exemplo Mas as frações de meses dias ou ano meses devem incidir na pena Também na pena de multa devem ser desprezadas as frações de real ou seja os centavos Apesar de o Código art 1 1 se referir às frações de cruzeiro em razão das sucessivas alterações na nossa moeda é de concluir que ele faça referência hoje às fra ções de real135 Finalmente já se decidiu apesar de opinião em sentido contrário136 que não se computam nas penas de multa as frações de diasmulta aplicandose por analogia o art 1 1 do CP 1 33 Nesse sentido Paulo Rangel Direito Processual Penal 12 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 p 648 1 34 MIRABETE Julio Fabbrini Código Penal Interpretado 5 ed São Paulo Atlas 2005 p 1 39 1 35 O Decretolei nº 228486 criou o cruzado a Lei nº 802490 voltou a instituir o cruzeiro a Lei nº 869793 criou o cruzeiro real sendo que por fim a Lei nº 8880 atualmente vigente criou o real 1 36 MIRABETE Julio Fabbrini Código Penal Interpretado 5 ed São Paulo Atlas 2005 p 1 39 71 Sumário 1 Introdução 11 Bem jurídico 2 Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa Nullum crimen nulla poena sine praevi lege 21 Princípio da taxatividade certeza ou determinação 22 Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal 23 Leis penais em branco e princípio da reserva legal 3 Princípio da proporcionalidade em sentido amplo 32 Princípio da adequação ou exigibilidade ou idoneidade 33 Princípio da proporcionalidade das penas proporcionalidade em sentido estrito 34 O princípio ne bis in idem 35 Princípio da insignificância 4 Princípio da humanidade 5 Princípio da responsabilidade pessoal ou culpabilidade 6 Princípio de lesividade ou ofensividade 7 Princípio da igualdade ou isonomia 8 Direito e interpretação 81 Introdução 82 Interpretar é compreender e argumentar 83 O chamado círculo hermenêutico 84 Limites da interpretação 85 Interpretação e garantismo 86 Prevalência da Constituição 87 Existe a resposta juridicamente correta 88 Direito e analogia 89 Analogia e interpretação analógica 9 Concurso de TIPOS penais ou conflito aparente de normas 91 Introdução 92 Princípio da especialidade 93 Princípio da subsidiariedade 94 Princípio da consumação ou absorção 941 Crime complexo ou composto 942 Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito 95 Primazia do princípio da especialidade PAULO ÜlJEIROZ resultam da interpretação dos valores que a própria Constituição consagra como é o caso dos princípios de proporcionalidade e lesividade E os princípios penais representam limitações importantes ao poder de punir razão pela qual constituem autênticas garantias políticas individuais oponíveis ao próprio exercício do poder punitivo estatal A Constituição pretende portanto pro teger o indivíduo duplamente isto é por meio do direito penal e contra o direito penal3 E porque nasceram historicamente e permanecem constitucionalmente art 5º como autênticas garantias individuais não se pode perder de vista que estão destina dos em princípio à proteção do cidadão contra possíveis reações públicas ou privadas arbitrárias e não para pretextar atuações abusivas em nome da segurança pública ou semelhante Exatamente por isso é que a lei não pode retroagir para prejudicar o réu embora possa retroagir para favorecêlo Mas se por um lado os princípios constituem limites à intervenção do Estado função de garantia por outro funcionam como critério de justificação da intervenção penal função legitimadora razão pela qual tanto servem à legitimação quanto à des legitimação do sistema penal Não surpreende assim que acusação e defesa não raro argumentem a partir de um mesmo princípio e formulem pretensões antitéticas inclu sive a demonstrar que o conteúdo essencial de um princípio não é dado pelo próprio princípio mas pelos sujeitos que interpretam caráter retórico Notese mais que a Constituição além de consagrar extensa lista de direitos e ga rantias individuais prevê também mandados de criminalização eou penalização art 5º XLI XLII XLIII XLIV 7 X 29A 2º e 3º 225 4º e impede a punição de certas condutas art 53 isto é estabelece mandados de não criminalização ou não penalização etc4 11 Bem jurídico Bem jurídico penal é todo valor ou interesse individual ou coletivo legitima mente protegível penalmente5 Assim a vida a liberdade o meio ambiente a probida de administrativa etc 3 Roxin Claus Problemas fundamentais de direito penal Lisboa Ed Vega 1993 p 28 4 Vide Luciano Feldens A Constituição Penal Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 do mesmo autor Direitos fundamentais e direito penal Porto Alegre Livraria do Advogado editora 2008 E Luiz Carlos dos Santos Gonçalves Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1 988 Belo Horizonte Editora Fórum 2007 5 De acordo com Jescheck Tratado de Derecho Penal cit p 23 1 bens jurídicos são interesses vitais da comunidade aos quais o direito penal outorga proteção Para Roxin Derecho Penal cit p 56 bens jurídicos são circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio sistema 74 1 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS Naturalmente que o catálogo dos bens jurídicos passíveis de legítima proteção ju rídicopenal não pode ser objeto de uma sistematização exaustiva já que sua definição depende dos fins e limites constitucionalmente assinalados ao Estado permanente mente em mutação6 Também por isso se é certo que uma teoria do bem jurídico limitadora do poder punitivo estatal faz todo sentido para o mundo ocidental herdeiro de uma tradição secularliberal o mesmo já não ocorre com os países com um legado político diverso especialmente os de perfil teocrático nos quais pode ser legítimo castigar simples he resias ou blasfêmias por exemplo Não surpreende assim que um recente projeto de código penal iraniano tipificas se a apostasia abandono da religião islâmica e lhe cominasse pena de morte Nem é de admirar que alguns países ainda criminalizem a prática de relações homossexuais ou o incesto A teoria do bem jurídico é por conseguinte a própria teoria dos fins da pena em bora com outro nome a qual depende da conformação política de cada Estado7 Além disso ela se presta essencialmente a fixar as condições de deslegitimação isto é demonstrativas de quando não é legítima a intervenção penal visto exigir lesão ou perigo de lesão de bem jurídico de terceiro8 sos Consequentemente não cabe intervir penalmente entre outros nos seguintes ca a situações de má disposição de direito próprio isto é condutas que só lesionam o próprio titular do direito autolesão a exemplo de suicídio tentado uso de droga etc b repressão de questões puramente morais vg prostituição adulta lenocínio etc c inexistência de lesão ou perigo de lesão juridicamente relevante d condutas sem dignidade penal quer por serem insignificantes quer por serem passíveis de repressão suficiente fora do âmbito penal caráter subsidiário da intervenção penal9 6 Daí porque toda pretensão no sentido de criar um catálogo exaustivo de bens jurídicos é vã e inútil 7 No mesmo sentido Ferrajoli Derecho y razón cit p 467 8 Ferrajoli Derecho y razón cit p 47 1 9 De acordo com Roxin não se prestam a proteger bem jurídico aas normas penais arbitrárias bas que têm finalidade puramente ideológica e cas que proíbem simples imoralidades Derecho Penal cit p 56 75 PAULO ÜJEIROZ 2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E IRRETROATIVIDADE DA NORMA PENAL MAIS SEVERA NULLUM CRIMEN NULLA POENA SINE PRAEVIA LEGE A atribuição exclusiva do legislador para definir crimes e cominar penas constitui desde a Revolução Francesa a pedra angular do direito penal moderno10 sendo a ideia de submeter a intervenção do Estado ao império da lei inerente ao conceito mesmo de Estado de Direito Que a atuação do Estado seja orientada por regras jurídicas que ex pressem a vontade popular é condição de legitimação democrática por meio do poder competente o Poder Legislativo E particularmente no âmbito jurídicopenal em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade com maior razão impõese o respeito ao princípio da legalidade Semelhante princípio atende pois a uma necessidade de segurança jurídica e de controle do exercício do poder punitivo de modo a coibir possíveis abusos à liberdade individual por parte do titular desse poder o Estado Consiste portanto constitucio nalmente numa poderosa garantia política para o cidadão expressiva do império da lei da supremacia do Poder Legislativo e da soberania popular sobre os outros po deres do Estado de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais11 Do aludido princípio cuida o art 5 XXXIX da Constituição ao dispor que não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal Tal princípio representa a um tempo uma limitação formal e material como dito antes12 Formalmente significa que só por lei em sentido estrito emanada do Poder Le gislativo o Estado poderá legislar sobre matéria penal definindo as infrações penais e cominando as respectivas sanções são inconstitucionais portanto atos legislativos que sem revestirem o status de lei pretendam definir crimes ou cominar penas As sim por exemplo medida provisória CF art 62 1 1 b mesmo porque em virtude de seu caráter provisório e a possibilidade de não conversão em lei inclusive por rejei ção pelo Congresso Nacional é incompatível com o postulado de segurança jurídica que o princípio encerra E dificilmente se poderia compatibilizar os pressupostos de relevância e urgência da medida com pretensões criminalizantes sobretudo à vista dos constrangimentos que podem ocorrer no curto espaço de sua vigência Mas convém ressalvar que outros atos legislativos podem eventualmente dispor sobre matéria penal sempre que a hipótese não seja a de definir crimes nem a de co minar penas ou aumentar o rigor punitivo e sim a de conceder benefícios ou similar como ocorre com o indulto ou a comutação de penas que competem ao Presidente da 1 O Gómez de la Torre e outros Lecciones cit p 36 1 1 GarcíaPablos Derecho penal cit p 234 1 2 De acordo com Jescheck a lei penal em sua aplicação não só tem de satisfazer os princípios jurídicos formais senão também em seu conteúdo há de responder às exigências da justiça encarnadas no princípio material do Estado de Direito Tratado cit p 1 12 76 lü2 1 PRI NCiPIOS PENAIS República CF art 84 XII que se utiliza de simples decreto para tanto Também por isso nada impede que outra norma v g medida provisória possa dispor sobre maté ria penal desde que favoravelmente ao réu13 Apesar de a Constituição se referir ao crime e à pena tal é também aplicável às contravenções penais tanto quanto às medidas de segurança Enfim o princípio é apli cável a toda e qualquer intervenção penal que implique privação ou restrição a direito ou liberdade do agente medidas de segurança inclusive que são um misto de prisão e hospital tão ou mais lesiva à liberdade quanto a própria prisão Compete privativamente à União legislar sobre direito penal CF art 22 1 mas excepcionalmente os Estadosmembros podem também fazêlo quanto a questões es pecíficas v g trânsito local desde que haja autorização por lei complementar para tanto CF art 22 parágrafo único No que tange ao direito internacional quando se tratar das relações do indivíduo com organismos internacionais v g Tribunal Penal Internacional TPI os tratados e convenções internacionais constituem as fontes di retas do respectivo direito penal tal como ocorreu com o Tratado de Roma que definiu os crimes de guerra contra a humanidade etc sujeitos à competência do TPI criado por aquele tratado Mas essas normas de direito penal internacional não são aplicáveis às relações entre os indivíduos e o Estado brasileiro que ficam sujeitos à justiça brasi leira14 Por fim temos que o princípio da legalidade compreende 1 o princípio da reserva legal só a lei pode em princípio dispor sobre matéria penal 2 taxatividade a lei deve descrever com o máximo de precisão possível os tipos penais incriminadores 3 irretroatividade da lei mais severa lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu E há quem a exemplo de Ferrajoli considere que o princípio em sentido estrito compreende todas as demais garantias penais e processuais como condições neces sárias à legalidade penal proporcionalidade devido processo legal etc15 E países há como a Espanha que exigem lei complementar para definir crimes e cominar penas 21 Princípio da taxatividade certeza ou determinação Não basta que a lei defina o crime e comine a respectiva pena porque o Estado sempre poderá iludir semelhante garantia de legalidade de seus atos por meio da edi ção de leis penais de conteúdo excessivamente impreciso ou vago como ocorreu na 1 3 No sentido do texto Luiz Flávio Gomes Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica S Paulo Premier 2008 p 42 14 Luiz Flávio Gomes idem p 3839 1 5 Derecho y razón cit p 95 77 PAULO QEIROZ Alemanha nazista em que determinada lei previa a punição de quem atente contra a ordem jurídica ou atue contra o interesse das Forças Aliadas 16 bem assim diversas disposições da Lei de Crimes Ambientais nº 96059817 por exemplo Por isso o princípio implica a máxima determinação e taxatividade dos tipos penais impon dose ao Poder Legislativo na elaboração das leis que formule tipos penais com a máxima precisão de seus elementos e ao Judiciário que os interprete adequadamente Porque a máxima taxatividade possível e de real vinculação do juiz à lei é como diz Sílva Sánchez um objetivo irrenunciável para o direito penal de um Estado De mocrático de Direito que implica a máxima precisão das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens quando das suas decisões motivo pelo qual se trata de um princípio de legitimação democrática das intervenções pe nais como garantia da liberdade dos cidadãos derivada do princípio da divisão de poderes18 22 Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal Antes da lei não existe violação à lei De acordo com o princípio da anterioridade a lei penal deve necessariamente pre ceder às infrações penais nela previstas como condição de validade pois do contrário a norma acabaria por incidir sobre condutas que até então não constituíam ilícito penal ou que eram punidas menos gravemente Justamente por isso a nova lei só poderá ser aplicada a fatos futuros e não pretéritos exceto se favorecer o réu Em consequência como regra geral vigora a irretroatividade da lei penal não po dendo a nova lei alcançar fatos anteriores à sua vigência Mas excepcionalmente a norma atuará retroativamente alcançando por conseguinte situações anteriores à sua entrada em vigor sempre que for mais benéfica para o infrator ou porque lhe é mais branda ex mitior ou porque descriminaliza a conduta abolitio criminis Justificase a exceção em favor da liberdade por não implicar ofensa à pretensão garantidora que o princípio encerra Daí dispor a Constituição art 5º XL que a lei penal não retroagi rá salvo para beneficiar o réu 1 6 RoxinArztTiedmann lntroducción ai derecho penal y ai proceso penal trad Arroyo Zapatero e Gomez Colomer Barcelona Ed Ariel 1989 1 7 Escreve Juarez Tavares que algumas fórmulas sintéticas correntes nas leis penais aceitas acriticamente pela doutrina importam em violação ao princípio da legalidade a exemplo do crime de aborto cuja conduta é descrita como provocar aborto arts 124 125 e 126 sem nada dizer sobre a interrupção da gravidez ou da morte do feto a injúria que se resume em injuriar alguém ofendendolhe a digni dade ou decoro art 140 sem referência ao que constitua afinal essa atividade de injuriar o mesmo ocorrendo frequentemente nos crimes culposos cujo tipo salvo raras exceções p ex na receptação culposa art 1 80 1 º não vem descrito expressamente na lei penal Teoria do injusto penal Belo Horizonte Dei Rey 2000 p 1 87 18 Aproximación al derecho penal contemporáneo Barcelona Bosch 1992 p 256257 78 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS 23 Leis penais em branco e princípio da reserva legal As assim chamadas leis penais em branco expressão que procede de Karl Bin ding são tipos penais que embora cominem a sanção penal respectiva seu preceito por ser incompleto remete expressa ou tacitamente a sua complementação a uma ou tra norma ora de mesmo grau hierárquico lei etc ora de grau hierárquico inferior portaria etc de modo a precisarlhe o significado e conteúdo exatos os tipos penais em branco são estruturalmente incompletos portanto19 Em suma são tipos penais que remetem parcialmente a complementação do pre ceito primário definição da conduta incriminada para uma norma de igual ou diverso nível hierárquico Exemplo disso é o tráfico de droga e a omissão de notificação de doença CP art 269 que são complementados por outra norma que especificará res pectivamente quais são as drogas ilícitas e quais são as doenças de notificação com pulsória Mas não se deve confundir tipos penais em branco com os abertos ou vagos uma vez que são conceitos distintos embora não sejam incompatíveis entre si20 A lei que criminaliza o tráfico de droga por exemplo não só é completa quanto à des crição do tipo por descrever seus elementos essenciais como é exaustiva ao fazêlo referindo uma dezena de verbos que o constituem E a distinção é relevante pois do contrário praticamente quase nenhum tipo ficaria imune à crítica que se fará a seguir Convém notar aliás que em virtude da estrutura aberta da linguagem jurídica inclusive todos os tipos são mais ou menos abertos mais ou menos incompletos tam bém por isso a tradicional classificação entre elementos objetivos subjetivos e norma tivos do tipo carece de fundamento conforme será visto oportunamente De todo modo só há autêntico tipo penal em branco quando a norma apesar de descrever a ação típica com seus elementos essenciais e cominar a respectiva pena remeter explícita ou implicitamente a complementação do preceito primário incrimi nador a uma outra de mesmo grau hierárquico homogênea ou de grau inferior he terogênea Autores há que restringem ainda mais esse conceito entendendo que não se pode considerar como tal aqueles tipos penais cuja integração é feita por norma de mesmo nível hierárquico21 1 9 Utilizo aqui a expressão em sentido estrito Binding e não em sentido amplo Mezger pois do contrário confundirseão leis penais em branco com leis penais incompletas Conceito ainda mais restrito dános Rodriguez Mourullo para quem as leis penais em branco são sempre leis que reme tem expressa ou tacitamente a determinação concreta do preceito a uma autoridade distinta de nível inferior Derecho penal cit p 8789 20 Parece fazer essa confusão Sídio Rosa de Mesquita Júnior que se posiciona no sentido da constitu cionalidade das leis penais em branco argumentando dentre outras coisas que o reconhecimento da inconstitucionalidade acabaria por inviabilizar praticamente toda a legislação penal Comentários á lei antidrogas São Paulo Atlas 2007 2 1 Nesse sentido Rodrigues Mourullo Derecho Penal Parte general Madrid Civitas 1978 79 PAU LO QlEIROZ Exatamente por isso não o são os tipos penais abertos em virtude da vagueza da descrição de seus termos v g culposos tampouco os que simplesmente recorrem a elementos ditos normativos como por exemplo o sem licença ou autorização da autoridade competente ou o em desacordo com a lei etc presentes em muitos tipos penais inclusive em tipos penais em branco como a lei de droga a demonstrar que apesar da distinção que se deve fazer tais classificações não são incompatíveis entre si podendo o tipo penal ser simultaneamente em branco e aberto Pois bem questão das mais relevantes diz respeito à constitucionalidade das leis penais em branco A doutrina em geral as tem como constitucionais e compatíveis com o princípio da reserva legal embora exija o atendimento de certos requisitos Assim por exemplo Luzón Pefia para quem o recurso à técnica de remissão há de ser absolutamente excep cional por resultar estritamente necessário e imprescindível para completar a descrição típica da conduta22 De modo semelhante Cerezo Mir diz que essa técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de técnica legislativa e pelo caráter sempre mutável da matéria objeto da regulação que exigiria uma revisão muito frequente das ações proibidas ou ordenadas motivo pelo qual na lei penal em branco já deve estar contida a descrição do núcleo essencial da ação proibida ou ordenada23 E Jescheck considera que quando a norma que há de completar o tipo penal em branco tiver cará ter delegado o legislador deve prever a cominação legal bem como descrever com pre cisão o conteúdo a finalidade e o alcance da autorização que o cidadão possa extrair já na lei mesma os pressupostos da punibilidade e a classe de pena pois do contrário não se respeitaria o princípio da determinação legal do delito e da pena24 Entre nós são pela constitucionalidade Luiz Régis Prado25 Guilherme de Souza Nucci26 e Pablo Al fen 27 entre outros Defendem a inconstitucionalidade Rogério Greco André Copetti ZaffaroniBatista28 e Andrei Schmidt29 Sobre o assunto o Tribunal Constitucional espanhol Sentença 1271990 de 5 de julho já teve ocasião de se pronunciar pela constitucionalidade exigindo porém que o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado em razão do bem jurídico pro tegido pela norma penal que a lei além de prever a pena contenha o núcleo essencial da proibição e seja satisfeita a exigência de certeza ou se dê a suficiente concreção 22 Curso de derecho penal Madrid Ed Universitas 1996 p 146 e ss 23 Curso de derecho penal espafiol introducción Madrid Tecnos 1997 p 1 56 24 Tratado cit p 98 25 Curso de direito penal brasileiro São Paulo Revista dos Tribunais 2002 26 Código Penal comentado São Paulo Revista dos Tribunais 2002 27 Leis Penais em branco e o direito penal do risco Rio de Janeiro Lumen Juris 2004 28 Direito penal brasileiro I p 205206 para os quais a lei penal em branco sempre foi lesiva ao prin cípio da legalidade formal e além disso abriu as portas para a analogia e para a aplicação retroativa motivos suficientes para considerála inconstitucional 29 Princípio da legalidade penal Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2001 p 1 501 56 80 I 02 1 P RI NCÍPIOS PENAIS para que a conduta considerada criminosa fique suficientemente precisa com o com plemento indispensável da norma a que a lei penal faz remissão e resulte desta for ma salvaguardada a função de garantia do tipo com possibilidade de conhecimento da atuação penalmente cominada De acordo com esse entendimento portanto são necessários os seguintes requisitos a necessidade estrita da remissão b que a norma embora incompleta já preveja a sanção específica c que o preceito contenha o nú cleo essencial da proibição Temos que os tipos penais em branco que remetem o complemento à norma infe rior tipos penais em branco heterogêneos são inconstitucionais por implicarem viola ção aos princípios da reserva legal e divisão de poderes Com efeito tomando como exemplo o tráfico ilícito de drogas temse que a lei brasileira atende aos requisitos exigidos pelo tribunal espanhol uma vez que ao des crever o núcleo essencial da conduta típica criminaliza mais de uma dezena de verbos e comina a pena cabível Além disso podese dizer que o bem jurídico supostamente protegido a saúde pública30 justifica plenamente a remissão Estariam assim satis feitas as exigências daquela Corte constitucional No entanto quando a lei permite que o núcleo essencial da proibição seja com pletado por simples ato administrativo é o Poder Executivo quem dirá em última aná lise o que constitui ou não tráfico ilícito de drogas afinal é ele que um tanto arbi trariamente discriminará as drogas que devem constar do rol do núcleo essencial da proibição Convirá saber então quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilícito de en torpecentes Parece claro que não é o Poder Legislativo mas o Poder Executivo mais exatamente o Ministério da Saúde ANVISA que se utiliza de simples portaria para tanto decretando dentro do vastíssimo universo das drogas as que devem ser consi deradas ilícitas Enfim quanto ao assunto drogas ilícitas quem legisla sobre matéria penal é em última instância o próprio Ministério da Saúde Poder Executivo mesmo porque a lei penal em branco era até então uma alma errante em busca de um corpo Binding e portanto carente de autoaplicação ante a manifesta imprecisão de seus termos e consequente necessidade de complementação Até aí a lei penal era uma espé cie de cheque em branco emitido em favor do Executivo Por conseguinte semelhante ato viola a um tempo o princípio da reserva legal por tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal criminalizando uma dada conduta e o princípio da divisão de poderes já que é aquele poder e não o Legislativo que acaba legislando em tal caso Mas isso não quer dizer que os tipos penais em branco sejam sempre inconstitu cionais inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o status 30 Vide Paulo Queiroz Alexandre Bizzoto e Andréia Rodrigues Comentários Críticos à Lei de Drogas Rio Lumen Juris 2010 81 PAULO QEIROZ de lei em sentido formal bem assim o preceito de norma que não contenha o núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena O primeiro obstáculo pode rá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declaratória das drogas ilícitas ainda que meramente homologatória de proposta portaria do Ministério da Saúde de sorte a converter uma norma penal em branco heterogênea em homogênea o segundo com a redação de tipos penais com precisão de seus elementos constitutivos conforme o princípio da taxatividade Em isso não ocorrendo tolerarseá mais uma violação ao princípio da reserva legal entre tantas violações que o silêncio ou conve niência vai perpetuando Por fim quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser ordinaria mente instável o que a justificaria temos que a instabilidade e a incerteza recomen dam justamente o contrário que não deveria ser objeto de criminalização ou que somente o fosse depois de exaustiva discussão sobre o assunto motivo pelo qual também por essa razão o Poder Legislativo deveria se manifestar previamente sobre o assunto 3 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO AMPLO O princípio da proporcionalidade31 entendido como mandado de otimização do respeito máximo a todo direito fundamental Alexy compreende os princípios ou subprincípios de necessidade adequação e proporcionalidade em sentido estrito já que a intervenção do poder público sobre a liberdade dos cidadãos só pode ser legítima na medida em que seja necessária adequada e proporcional afinal como disse Bec caria na conclusão de seu famoso opúsculo a pena para não ser um ato de violência contra o cidadão deve ser essencialmente pública pronta necessária a menor das pe nas aplicáveis nas circunstâncias dadas proporcionada ao delito e determinada pela lei 32 Além da proibição de excesso o princípio da proporcionalidade compreende a proibição de insuficiência da intervenção jurídicopenal Significa dizer que se por um lado deve ser combatida a sanção penal desproporcional porque excessiva por outro cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento dado o grau de ofensividade e significação políticocriminal afinal a desproporção tanto pode darse para mais quanto para menos Exemplo disso de in suficiência da resposta penal são os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei 3 1 O princípio da proporcionalidade é atualmente um dos mais importantes de todo o direito e em parti cular do direito penal Porque praticamente toda discussão penal envolve de algum modo o princípio da proporcionalidade desde a sua existência mesma passando pelos conceitos de eno de tipo e de proibição de legítima defesa de coação inesistível incluindo toda a controvérsia em denedor da responsabilidade penal da pessoa jurídica até chegar às causas de extinção de punibilidade v g prescrição afinal o que está em causa é em última análise em todos esses casos a necessidade adequação proporcionalidade enfim da intervenção jurídicopenal 32 Dos delitos e das penas trad Paulo Oliveira Rio de Janeiro Tecnoprint 1980 XLII 82 1 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS nº 489865 que comina para as graves infrações que define prisão de dez dias a seis meses art 6 3º b33 31 Princípio da necessidade nullum crimen nulla poena sine necessitate Se o direito penal constitui ordinariamente a forma mais enérgica de coerção na liberdade dos cidadãos seguese que sua intervenção só deve ocorrer em casos de efe tiva necessidade para a segurança desses cidadãos Já Montesquieu assinalara que toda pena que não deriva da necessidade é tirânica34 enquanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 art 8º proclamaria que a lei devia estabelecer unica mente penas estrita e manifestamente necessárias35 Consequentemente a intervenção penal como ultima ratio da política social deve ter caráter subsidiário e fragmentário conforme o princípio de mínima intervenção devendo ser utilizada apenas quando fracassem outras instâncias de prevenção e con trole social menos onerosas e mais eficazes 36 33 Sobre o assunto Ingo Wolfgang Sarlet Constituição e proporcionalidade o direito penal e os di reitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência in Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Revista dos Tribunais ano 1 2 n 47 marabr 2004 Com base no princípio da proibição de proteção deficiente Maria Luiza Schiifer Streck considera inconstitucional ou incom patível com o aludido princípio 1 a possibilidade de redução de pena prevista no 4º do art 33 da Lei nº 1 1 3432006 para os traficantes de droga que sejam primários sem antecedentes criminais e sem envolvimento com organização criminosa 2 a previsão do pagamento do tributo como causa de extinção de punibilidade Lei nº 924995 art 34 para os crimes contra a ordem tributária 3 a con tinuidade delitiva para os crimes hediondos 4 a admissão do indulto para crimes hediondos Direito Penal e Constituição A face oculta da proteção dos direitos fundamentais Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2009 34 O espírito das leis trad Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Matos Rodrigues Brasília Ed UnB 1995 Livro XIX Cap XIV p 232 35 Por meio de Aviso de 28 de agosto de 1 822 o príncipe D Pedro determinara que os juízes do crime deviam guiarse pelas bases da Constituição monárquica portuguesa de 1 O de março de 1 82 1 desta cadamente o art 1 2 que dispunha Nenhuma lei e muito menos a lei penal será estabelecida sem absoluta necessidade Toda pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma pena deve passar da pessoa do delinquente 36 Por meio do princípio da proporcionalidade se condiciona portanto como afirma Canotilho o exercício da função legislativa de modo a coibir abusos à Constituição por meio da lei apud Suzana Toledo O princípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fim damentais Brasília Brasília Jurídica 2000 p 74 Segundo Suzana Toledo sob a perspectiva da adequação fica excluída qualquer consideração atinente ao grau de eficácia dos meios tidos como aptos a alcançar o fim desejado visto que a questão sobre a escolha do meio melhor menos gravoso ao cidadão já entra na órbita do princípio da necessidade p 76 O princípio de subsidiariedade expressa como assinala GarcíaPablos uma exigência elementar a necessidade de hierarquizar e racionalizar os meios disponíveis para responder ao problema criminal adequada e eficazmente El principio de la intervención mínima como límite de poder penal dei Estado disponível no site wwwdireitocriminalcombr 1º62001 83 PAULO QJEIROZ 32 Princípio da adequação ou exigibilidade ou idoneidade Se a finalidade declarada do direito penal é a prevenção geral e especial confor me doutrina hoje majoritária de comportamentos socialmente lesivos como forma de proteção de bens jurídicos então a sua intervenção há de pressupor uma relação lógica de adequação utilidade entre meio direito penal e fim prevenção de delitos Assim uma vez verificada a inutilidade ou inadequação da norma penal devese proceder à descriminalização pura e simples ou a só despenalização37 caso se trate respectiva mente de inadequação da própria proibição que o tipo penal encerra ou somente da espécie de pena cominada De acordo com o princípio da adequação o Estado só pode se valer portanto de meios idôneos para a realização de seus fins constitucionais Já dizia a propósito Ro magnosi que uma pena só será justa unicamente quando seja necessária para afastar os delitos da sociedade e só na medida em que seja necessária para este fim e mais que uma pena que resulte ineficaz para conseguir seu fim que consiste em refrear o delito no coração dos malvados longe de ser necessária não seria em relação com seu fim senão um puro nada38 Justamente por isso não parece fazer sentido algum reprimir penalmente os assim chamados crimes sem vítima39 como é o caso da contravenção do jogo do bicho e especialmente o porte e tráfico de droga entre pessoas adultas Parece inclusive que quão mais repressora é a política antidroga mais forte e violento se torna o tráfico mesmo porque enquanto houver procura de droga lícita ou ilícita haverá oferta ine vitavelmente Porque no fundo o problema fundamental não reside propriamente na produção e consumo de drogas legais ou ilegais presentes na história da humanidade desde sem pre mas na irracionalidade do discurso de guerra às drogas e na violência arbitrária que resulta da atual política proibicionista um autêntico genocídio em marcha40 37 Descriminalizar abolir o crime significa deixar de considerar como criminosa por lei ou interpretação determinada conduta já despenalizar significa basicamente utilizar alternativas à pena privativa da liberdade 38 Génesis dei derecho penal trad C Gonzáles Cortina e Jorge Guerrero Bogotá Ed Temis 1 956 Libro I Caps I e II p 1581 64 39 A expressão procede de E Schur 40 Thomas Szasz comparando política de drogas e discurso religioso afirma que como un judío pro fanando la Torah o un cristiano la hostia un americano que usa droga ilícita es culpable dei crimen místico de profanación transgrede el más estricto y más remido tabú Quien abusa de las drogas se contamina a sí mesmo y contamina a su comunidad poniendo em peligro a ambos De ahí que para el libertario laico quen abusa de las drogas comete un crimen sin víctima esto es ningún crimen em absoluto mientras para el hombre normalmente socializado es un peligroso profanador de lo sagrado Por eso su eliminación está ampliamente justificada SZASZ Thomas Nuestro derecho a las drogas Tradución de Antonio Escohotado Barcelona Compactos Anagrama 2001 p 1 1 2 Comparação seme lhante faz Antonio Escohotado que em análise longa e exaustiva fala de cruzada contra as drogas 84 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS 33 Princípio da proporcionalidade das penas proporcionalidade em sen tido estrito De acordo com o princípio da proporcionalidade o castigo deve variar conforme a gravidade do crime cometido isto é o princípio requer um juízo de ponderação entre a carga de privação ou restrição de direito que a pena comporta e o fim perseguido com a incriminação e com as penas em questão41 O princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem uma tríplice dimensão a proporcionalidade abstrata ou legislativa a ser observada no momento da vota ção e edição da lei penal e cominação das sanções com seus limites legais b proporcionalidade concreta ou individualização judicial da pena a ser conside rada pela autoridade judiciária quando da determinação da pena e c proporcionalidade executória que corresponde à individualização da pena du rante o processo de execução penal segundo o mérito do condenado progres são de regime etc O princípio tem por conseguinte tríplice destinatário o legislador o juiz e os órgãos da execução penal Em nome do princípio da proporcionalidade42 cumpre que a pena cominada e aplicada guarde justa proporção com o grau de ofensividade da conduta delituosa ob jetivando orientar a criminalização de comportamentos pelo legislador e a respectiva individualização judicial da pena devendo a sanção penal retratar o merecimento do autor da infração de acordo com as circunstâncias jurídicopenalmente relevantes CP arts 59 e 68 Portanto o mencionado princípio rechaça o estabelecimento de comina ções penais proporcionalidade abstrata e a imposição de penas proporcionalidade concreta que careçam de toda relação valorativa com o fato contemplado na globali dade de seus aspectos43 34 O princípio ne bis in idem Tampouco é possível punirse mais de uma vez uma mesma conduta por um mes mo fundamento jurídico sob pena de violação ao princípio ne bis in idem Tratase de proibição que resulta diretamente dos princípios da proporcionalidade e legalidade a impedir a dupla valoração e punição do mesmo fato com idêntico fun damento jurídico Consequentemente é vedada a multiplicidade de penas para o mes m0 sujeito por uma mesma ação se tiverem um mesmo fundamento44 4 1 Gómez de l a Torre e outros Lecciones cit p 47 42 Ferrajoli entende quanto às penas privativas da liberdade que não se justifica o estabelecimento de um mínimo legal acreditando que seria melhor confiar ao poder equitativo do juiz a eleição da pena abaixo do máximo estabelecido pela lei sem vinculálo a um limite mínimo ou vinculálo a um míni mo bastante baixo Derecho y razón cit p 400 No mesmo sentido Édson ODwyer Se eu fosse juiz criminal Boletim do IBCCrim São Paulo n 86 jan 2000 43 Sílva Sánchez Aproximación cit p 260 44 Berduzo Gómez de la Torre e outros Lecciones cit p 45 85 PAULO Q1JEIROZ Não há bis in idem porém em princípio quando o fato é punível simultânea ou sucessivamente em âmbitos jurídicos distintos visto que diversa é a fundamentação jurí dica Assim por exemplo o peculato CP art 312 é legitimamente punível civil admi nistrativa e penalmente respectivamente reparação do dano perda do cargo e prisão Nem importam em dupla valoração e punição do fato as hipóteses legais de con curso de crimes formal material e continuado CP arts 69 a 71 Discutese se a circunstância agravante da reincidência ofende o princípio em questão Parecenos que sim uma vez que ao se punir mais gravemente um crime tomandose por fundamento um delito anterior estáse em verdade a valorar e casti gar por mais uma vez a infração anteriormente praticada em relação à qual o autor já foi sentenciado chegandose por vezes a absurdos como por exemplo estabelecer o juiz depois de fixar a penabase em vinte anos de prisão por latrocínio aumentála de metade em razão da reincidência mais dez anos Nota o crime anterior um furto fora apenado em dois anos de prisão A rigor portanto o condenado estará a cumprir a mesma pena por mais cmco vezes Apesar disso o Supremo Tribunal Federal decidiu que a agravante da reincidência é constitucional legítima portanto De todo modo temos que o acréscimo de pena que resulta da reincidência não po derá acarretar aumento igual ou superior mas sempre inferior proporcionalmente à pena ou penas aplicada na sentença anterior que a gerou sob pena de o acréscimo ex ceder à própria pena antes imposta desproporcionalmente Por conseguinte no exem plo antes mencionado o aumento de pena deveria ser inferior a dois anos de prisão Zaffaroni e Nilo Batista propõem para fins de individualização da pena especial mente que o juiz considere eventuais lesões doenças ou prejuízos patrimoniais por ação ou omissão dos agentes do Estado durante a investigação ou repressão do delito cometido Tratase dizem de uma efetiva dor punitiva que deve ser considerada para afastar ou atenuar dupla punição45 Propõem ainda que nos casos de comunidades indígenas e semelhantes que dis põem de um sistema próprio de decisão e punição de conflitos que as sanções aplica das por esses povos sejam tomadas em consideração quer para fins de isenção de pena quer para atenuála 35 Princípio da insignificância46 Apesar de pretender se ocupar exclusivamente de condutas especialmente graves a lei penal em virtude de seu caráter abstrato e generalíssimo pode alcançar condutas 45 Direito Penal brasileiro I Rio Revan 2003 p234236 46 Deixo de referir o princípio da adequação social formulado por Welzel entendido como princípio geral de interpretação Derecho penal alemán cit p 69 por cujo meio se afastaria a tipicidade ou antijuridicidade de condutas socialmente adequadas ou irrelevantes por julgálo com Jes check Tratado cit p 228 e Roxin Derecho penal cit p 296297 desnecessário a par de vago 86 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS praticamente insignificantes a deslegitimar a intervenção penal motivo pelo qual a dirntrina sistematizou o que hoje conhecemos por princípio da insignificância a fim de que o direito penal incida apenas sobre ações e omissões concretamente graves A incidência do princípio aplicável em tese aos crimes dolosos e culposos con sumados e tentados materiais e formais comissivos e omissivos de dano e de peri go pressupõe a absoluta insignificância do desvalor da ação e do resultado e deve por isso levar em conta entre outros elementos objetivos aa magnitude concreta da conduta açãoomissãoresultado ba eventual reparação do dano ou a restituição da coisa ca possível perda da coisa em favor da União da aplicação de sanções extra penais E para aqueles que consideram relevantes aspectos subjetivos a existência ou não de maus antecedentes a reincidência etc O princípio da insignificância constitui portanto um instrumento por cujo meio o juiz em razão da manifesta desproporção entre crime e castigo reconhece o caráter não criminoso de um fato que embora formalmente típico não constitui uma lesão digna de proteção penal por não traduzir uma violação realmente importante ao bem jurídico tutelado Tratase por conseguinte como diz Vico Mafias de um critério de interpretação restritiva fundada na concepção material do tipo penal por cujo meio é possível alcan çar pela via judicial e sem fazer periclitar a segurança jurídica do pensamento sistemá tico a proposição políticocriminal da necessidade de descriminalização de condutas que apesar de formalmente típicas não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal47 Discutese se o princípio da insignificância é aplicável aos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa Parecenos que sim se não para isentar o réu de pena ao menos para eventualmente desclassificar a infração penal a exemplo da im putação de roubo CP art 157 Com efeito não se justifica que o agente que subtraia quantia absolutamente insignificante v g R 100 tenha de responder por um delito tão gravemente punível 4 a 10 anos de prisão Mais razoável é que afastada a acusa ção de roubo o autor responda por constrangimento ilegal48 CP art 146 e impreciso podendose chegar ao mesmo resultado pela simples interpretação teleológica e restri tiva da norma penal incriminadora De mais a mais seu alcance é em todo o caso reduzidíssimo pois mesmo na hipótese da contravenção do jogo do bicho que admitiria sua invocação em favor do apontador Cezar Bitencourt Manual cit p 49 é perfeitamente cabível a adoção do princípio da insignificância 47 O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal São Paulo Saraiva 1 993 p 58 48 No sentido do texto Rogério Greco Direito Penal Parte Geral Rio Impetus 2003 p 7 1 e Antônio de Padova Marchi Júnior citado por este autor Idem precedente do TJMG Penal Roubo Princípio da insignificância É possível a incidência do princípio da insignificância mesmo nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa porque o juízo de tipicidade material não passa pela análise do comportamento da vítima ou seja seu dissenso ou contrariedade à ação do agente e sim em um juízo de lesividade da conduta nullum crimem sine iniuria Sendo o delito de roubo espécie de crime 87 PAULO QlJEJROZ No caso de descaminho e outros tipos penais análogos o Supremo Tribunal Fe deral vem admitindo o princípio com base na Lei nº 105222002 art 2049 a qual previu o arquivamento das execuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R 1000000 dez mil reais Atualmente o valor é R 2000000 por força da portaria nº 75 de 22032012 DOU Seção 1 de 26032012 p 2223 do Ministério da Fazenda Efetivamente tendo a União renunciado à execução forçada do crédito por en tender possivelmente que os custos e benefícios não justificariam a judicialização da demanda não faria sentido algum promover a ação penal em tais casos em razão do caráter subsidiário do direito penal que é um plus relativamente à intervenção civil Mas não é o caso de insignificância porque é sim significativa a quantia de R 1000000 ou R 2000000 conforme portaria tanto que a Fazenda Nacional renun cia só à execução judicial do crédito mas não à cobrança administrativa nem aos di versos constrangimentos legais cabíveis inscrição do nome do devedor no CADIN etc A hipótese é mais precisamente de incidência do princípio da proporcionalidade visto que se não é necessáriaadequada a intervenção menos grave civil tampouco será a mais grave penal Tratase por conseguinte de uma providência de caráter políticoadministrativo fiscal que embora não afete a estrutura do crime repercute diretamente sobre a puni bilidade do delito por constituir uma causa especial de isenção de pena Não vemos ademais problema algum em admitir que essa despenalização se dê por meio de simples portaria já que o princípio da legalidade como vimos constitui histórica e constitucionalmente uma garantia individual instituída em favor do jurisdi cionado visando a evitar excessos no exercício do poder punitivo estatal Quanto aos crimes contra a fé pública embora juízes e tribunais ainda relutem em admitir a adoção do princípio alegando que nesses casos não cabe falar de insignifi cância por ofensa a bem jurídico difuso já há decisão do STF 50 inclusive reconhecen do essa possibilidade E não poderia ser diferente pois não parece razoável condenar alguém por exemplo a uma pena de três anos de prisão pena mínima por crime de moeda falsa por ter colocado em circulação quantia absolutamente irrisória v g R 100 complexo a lesividade da conduta para se adequar a este tipo penal deve abranger necessariamente os dois valores protegidos pela norma sendo imprescindível significativa lesão ao patrimônio e à pessoa cumulativamente Não havendo lesividade relevante ao patrimônio da ofendida ocorre a descaracteri zação do crime complexo de roubo TJMG 5 C Crim Apel 1 0024990876823001 Rei para acórdão Alexandre Victor de Carvalho j 13022007 DOE 1 0032007 ementa oficial 49 Dispõe o art 20 textualmente Serão arquivados sem baixa na distribuição mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados de valor consoli dado igual ou inferior a R 1 000000 dez mil reais Redação dada pela Lei nº 1 1 033 de 2004 50 HC 83526CE Rei Min Joaquim Barbosa DJ 752004 88 lü21 PRI NCÍPIOS PENAIS Já se admite o princípio também em crimes militares e contra o meio ambiente inclusive 51 Discutese também se é possível a adoção do princípio da insignificância quando não obstante a irrelevância jurídicopenal da ação ficar demonstrado que o agente tem maus antecedentes é reincidente ou há continuidade delitiva O STF ora decide num sentido ora noutro Parecenos que se o princípio da insignificância constitui conforme a doutrina e a própria jurisprudência reconhecem uma excludente de tipicidade visto que embora formalmente criminalizada a conduta não traduz em concreto uma lesão digna de proteção penal tal deve ser admitido independentemente da existência de maus ante cedentes ou reincidência Com efeito subtrair R 100 um real por exemplo não deixa de ser insignifican te pelo só fato de o agente já ter sido anteriormente condenado ou responder a inquérito ou ação penal pelo mesmo crime E mesmo a continuidade no cometimento de ações insignificantes não torna a ação significativa inclusive porque o crime continuado é a rigor uma forma de concurso material tratado como crime único e como tal pressupõe que cada ação seja autono mamente criminosa a fim de que os atos subsequentes sejam havidos como continua ção do primeiro CP art 71 Enfim por traduzir um problema de tipicidade e não de individualização judicial da pena o princípio da insignificância deve ser reconhecido independentemente da existência de maus antecedentes reincidência ou continuidade delitiva Além do mais recentemente o STJ editou a Súmula 444 que tem o seguinte teor é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a penabase vedação perfeitamente aplicável à discussão sobre a insignificância em virtude de sua fundamentação constitucional violação ao princípio da presunção de inocência Finalmente convém notar que há diversos precedentes do Supremo Tribunal Fe deral condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos a mínima ofensividade da conduta b nenhuma periculosidade social da ação c reduzidíssimo grau de reprovabilidade d inexpressividade da lesão jurídica Mas tais requisitos são claramente tautológicos Sim porque se mínima é a ofensa então a ação não é socialmente perigosa se a ofensa é mínima e a ação não 5 1 Admitindo o princípio da insignificância em crimes ambientais Ivan Luiz da Silva Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 89 PAULO QJ E I ROZ perigosa em consequência mínima ou nenhuma é a reprovação e pois inexpressiva a lesão jurídica Enfim os supostos requisitos apenas repetem a mesma ideia por meio de palavras diferentes argumentando em círculo 4 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE Por mais grave que seja o crime cometido o seu autor não perde a condição jurídi ca de sujeito de direito razão pela qual a pena que lhe for eventualmente imposta não poderá acarretarlhe a destruição ou inutilização Com efeito uma outra importante limitação ao poder punitivo decorre do art 1 º III da Constituição ao elevar a dignidade da pessoa humana à condição de fundamen to do Estado Democrático e assim proibir dentre outras coisas a adoção de penas que por sua natureza ou modo de execução importem na destruição ou inutilização do autor de crime quer por lhe inviabilizar a reinserção social quer por submetêlo a sofrimento excessivo52 desumano ou degradante E assim deve ser porque o Estado Democrático não persegue a realização de valo res absolutos de justiça nem fins teocráticos ou metafísicos nem o só retribuir por re tribuir O princípio da dignidade da pessoa humana representa assim como diz Daniel Sarmento o epicentro da ordem jurídica conferindo unidade teleológica e axiológica a todas as normas constitucionais pois o Estado e o Direito não são fins mas apenas meios para a realização da dignidade do homem53 É que o Estado que mata que tor tura que humilha o cidadão não só perde qualquer legitimidade como contradiz a sua própria razão de ser que é servir à tutela dos direitos fundamentais do homem colo candose no mesmo nível dos delinquentes54 Justamente por isso a Constituição veda de forma expressa a adoção da pena de morte salvo no caso de guerra declarada de caráter perpétuo de trabalhos forçados de banimento e cruéis ou degradantes CF art 5 XLVII mesmo porque incompa tíveis com uma sociedade que se pretende civilizada São assim inadmissíveis por atentarem contra a dignidade humana a castração a mutilação de membros a esteri lização de órgãos e toda sorte de pena que converta o infrator num inválido total ou parcialmente ou que o impossibilite de cumprida a pena reintegrarse à vida social Disso também resulta que as penas constitucionalmente admitidas em especial as pri vativas da liberdade hão de ser executadas condignamente em condições mínimas de higiene salubridade etc assegurandose o livre exercício dos direitos não atingidos 52 Como observa GarcíaPablos o princípio de humanidade ratifica e conige os resultados de uma arit mética penal talonária baseada na aplicação mecânica do princípio da proporcionalidade Entretanto supera e hanscende a própria ideia de proporcionalidade porque não só supõe o rechaço de certas pe nas e consequências jurídicas inumanas como também determinada compreensão do processo penal da execução de penas e inclusive da política criminal Derecho penal cit p 292293 53 A ponderação de interesses na Constituição Federal Rio de Janeiro Lumen Juris 2000 p 195 1 96 54 Fenajoli Derecho y razón cit p 396 90 I 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS pela privação da liberdade sob pena de se tornarem inconstitucionais na sua execução por degradarem a condição humana inviabilizando a reintegração social do condena do Lei nº 721084 art 41 Significa dizer noutros termos que a execução da pena privativa da liberdade há de ser programada de tal modo que se evitem o quanto possí vel os efeitos negativos dessocializadores próprios da pena de prisão55 Por isso que a execução de penas ou medidas de segurança ou mesmo o cumpri mento de prisão provisória em condições degradantes em presídios que não ofereçam as condições mínimas de higiene salubridade etc são francamente ofensivas ao prin cípio de que estamos tratando podendo dar ensejo à concessão de habeas corpus ou para que se cumpra a lei em prazo razoável v g transferência de presídio ou para progredir de regime ou para o paciente ser posto em liberdade ante a omissão da autoridade responsável que não pode contar com a eventual indiferença conivência ou omissão do Ministério Público do Judiciário ou dos Conselhos Penitenciários Esta duais aos quais incumbe a defesa e o cumprimento da lei e da Constituição56 Exemplo de pena crueldegradante e pois inconstitucional é o regime disciplinar diferenciado57 Lei nº 107922003 uma vez que ao se admitir a possibilidade de iso lamento do preso numa cela individual durante 360 dias até o limite de um sexto da pena aplicada vedando em caráter quase absoluto qualquer possibilidade de contato com o mundo exterior subtraindolhe assim direitos básicos como o direito ao traba lho ao exercício de atividades profissionais desportivas etc Lei nº 721084 art 41 o Estado acaba por tratálo como não pessoa sujeito de direito ou como um animal qualquer submetendoo a um sofrimento absolutamente desnecessário e desumano Aliás fosse outro o animal enjaulado e talvez se tornasse mais fácil perceber nesse 5 5 GarcíaPablos Derecho penal cit p 296 Entendendo que o princípio d e humanidade das penas também importa o acolhimento do sistema progressivo de penas Silva Franco para quem um texto legal que proscreva toda e qualquer possibilidade de um sistema progressivo de pena privativa da liberdade deixando o recluso subordinado unicamente ao regime fechado num estabelecimento prisional de segurança máxima tem assim um significado c laro e preciso transfonnar a finalidade da pena numa resposta estatal que paga o mal causado com outro mal de igual ou superior intensi dade dela eliminando não apenas qualquer intento ressocializador mas também o mínimo ético que é exigível na execução penal Código Penal e sua interpretação j urisprudencial cit p 3 5 56 Com acerto portanto a 5ª Tunna do STJ sendo Relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca apre ciando habeas corpus decidiu Pena a ser cumprida em semiaberto Condenado recolhido em presi dio de segurança máxima incompatível com o regime fixado na sentença à alegação de inexistência de vagas no estabelecimento adequado Constrangimento ilegal configurado Assentada jurisprudên cia desta Cor1e no sentido de que a falta de vagas em estabelecimento adequado para o cumprimento de pena imposta para o regime semiaber1o não j ustifica a permanência do condenado em condições prisionais mais severas Ordem concedida em par1e para determinar a transferência do paciente para o estabelecimento adequado ao regime semiaberto ou persistindo a falta de vagas assegurarlhe em caráter excepcional o cumprimento da pena em regime aberto sob as cautelas do Juízo das Execu ções até que surjam vagas no estabelecimento prisional adequado 5 T HC 1 3 897 Rel Min José Arnaldo da Fonseca j 7 1 1 2000 v u DJU 1 1 dez 2000 p 223 57 Nesse sentido inclusive manifestouse o Tribunal de Justiça de São Paulo HC nº 9783053000 91 PAULO QlJEIROZ autêntico zoológico humano quão evidentes são os maustratos a que essas pessoas animais são submetidas por seus donos Parece óbvio também que essa nova modalida de de tortura física e psicológica sem finalidade educativa alguma frustra claramente os fins a que se propõe a Lei de Execução Penal que já em seu art l º proclama que a execução penal tem por objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado Já a pena de morte cuja execução se dará por fuzilamento e somente após sete dias de comunicada a sentença condenatória ao Presidente da República CPM arts 56 e 57 poderá ocorrer exclusivamente nos crimes militares em tempo de guerra como traição covardia qualificada espionagem abandono de posto deserção em presença do inimigo homicídio qualificado genocídio roubo ou extorsão etc CPM arts 355 a 408 Mas o rol das infrações penais que a cominam há de ser repensado à luz da Cons tituição de 1988 de modo a afastar a pena capital dos crimes menos graves como dano especial e saque limitandoa aos casos absolutamente necessários se é que nalgum caso ela o é realmente Se nem mesmo por emenda constitucional é possível admitir penas cruéis e degradantes seguese que tampouco a subscrição pelo Brasil de tratados interna cionais poderá implicar qualquer concessão no particular tal como se pretende por meio do Tratado de Roma art 77 1 b que prevê a pena de prisão perpétua sem pre que o crime for extremamente grave e considerando as circunstâncias pessoais do condenado Mas o tema é controvertido tanto na doutrina quanto na jurisprudên cia 58 É de convir ainda com Zugaldía Espinar que em nome da dignidade ficam tam bém proscritas as penas exemplificadoras porque se prescindirmos das concretas exi gências preventivas especiais e passamos a operar com critérios de prevenção geral puramente o delinquente deixa de ser um fim em si mesmo para se converter num 58 Admitindo a pena perpétua e inclusive a entrega de nacionais para o TPI Valério Mazzuoli Curso de direito internacional público S Paulo RT 2007 Apesar da distinção técnicaformal entre os institutos da entrega e extradição é evidente que materialmente ambos implicam o mesmo tipo e grau de constrangimento à liberdade individual tal qual a própria abdução que consiste num sequestro criminoso Na verdade se a extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para aí ser julgado força é convir que ela a entrega é uma espécie do gênero extradição compreendida que está no seu conceito ou se preferir a entrega é uma forma de extradição com nome diverso Exatamente por isso a entrega e a extradição devem estar subordinadas aos mesmos princípios e regras em virtude de encerrarem a mesma sorte de constrangimento à liberdade e pois aos direitos e garantias individuais Com efeito a só alteração do nomenjuris não pode ter o condão de legitimar certas práticas de violência institucional ainda que admitidas a pretexto de castigarem violências maiores Mutatis mutandis o mesmo deve ser dito quanto à possibilidade de aplicação de penas perpétuas pelo TPI mesmo porque do contrário estarseia ainda que indiretamente a atribuir status supraconstitucional a tratado internacional e a negar o caráter residual dessa jurisdi ção Evidentemente que a ser admitida a prisão perpétua obstáculo algum haveria à pena de morte e semelhantes se assim dispuser o tratado 92 I021 PRINCiPIOS PENAIS meio para se obter efeitos sobre outros convertendo a pena individualizada em inuma na e degradante 59 Resta saber se semelhante limitação também valeria para as medidas de seguran ça em especial em face da indeterminação do tempo máximo de sua duração prevista em lei CP art 97 1º já que de acordo com o Código a internação perdurará en quanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação da periculosidade Pensamos que a partir do momento em que o legislador adotou o sistema de de terminação de pena motivo pelo qual uma vez cumprida o condenado será necessa riamente posto em liberdade ainda que perigoso a exigência para os inimputáveis de que a liberação dependa da cessação da periculosidade é de todo inconstitucional por violação aos princípios de isonomia proporcionalidade e proibição de penas perpétuas A propósito a Constituição portuguesa art 30 dispõe expressamente que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida De modo semelhante dispõe o Código Penal espanhol Nem se poderia justificar o tratamento diferenciado alegando que medidas de se gurança não são penas Sim porque se formalmente penas não são materialmente são com frequência muito mais lesivas para a liberdade de quem as suporta até porque diferentemente do imputável que tem direito a indulto progressão de regime livra mento condicional comutação remição etc os inimputáveis não fazem jus a nada disso motivo pelo qual de tudo ou quase tudo são privados já não bastassem a miséria e o abandono do Estado da sociedade e da própria família a que são frequentemente condenados nos hospitais de custódia e tratamento autênticos hospitaisprisões ou pri sõeshospitais 60 Por isso autores há que propõem que as medidas de segurança tenham como limite máximo a pena máxima cominada Aliás já há decisões mais ousadas procedendo à individualização judicial da pena e a seguir substituindoa por medida de segurança pelo prazo da pena aplicada conforme se verá mais tarde Mas semelhante discussão restou grandemente superada com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica de 2001 Lei nº 10216 que revogou boa parte das disposições penais a respeito das medidas de segurança conforme se verá no capítulo próprio 5 PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL OU DE CULPABI LIDADE De acordo com o princípio da pessoalidade da pena impeditivo da responsabi lidade penal objetiva ou sem culpa presumida ou sucessiva nenhuma pessoa pode 59 Fundamentos dei derecho penal parte general 2 ed Granada Universidad de Granada 199 1 p 1 74 1 75 60 A expressão é de Ferrajoli 93 PAU LO Ül E I ROZ ser responsabilizada por fato de terceiro ou objetivamente devendo apurarse sempre se o autor agiu com dolo ou culpa ao menos Nesse exato sentido dispõe a Consti tuição art 5 XLV nenhuma pena passará da pessoa do condenado podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens nos termos da lei ser estendidas aos sucessores e contra eles executadas até o limite do patrimônio transferido E não poderia ser diferente pois se a função declarada do direito penal conforme a doutrina majoritária é a proteção subsidiária de bens jurídicos seguese que se melhante intervenção há ter lugar somente quando os seus destinatários se achem em condições de agirem conforme a norma porque fora daí quando falte o domínio da vontade humana v g caso fortuito ou força maior a norma penal é todo ineficaz por não poder mudar o curso dos eventos naturais61 Por conseguinte só pode haver responsabilidade penal a título de dolo ou cul pa CP art 18 vale dizer quando as condutas sejam previsíveis e evitáveis isto é passíveis de motivação normativa Como assinala GarcíaPablos um direito penal que pretendesse exigir responsabilidade por fatos que não dependam em absoluto da von tade do indivíduo deve ser qualificado de arbitrário e disfuncional haja vista que a norma penal carece de todo poder motivador e o castigo perderia toda sua justifica ção62 Diferentemente do que ocorre no direito civil por exemplo em que se admite eventualmente a responsabilidade objetiva a responsabilidade penal é sempre pessoal não cabendo a responsabilidade coletiva subsidiária solidária ou sucessiva63 por isso que os pais não respondem pelos filhos nem os tutores pelos pupilos nem os curadores pelos curatelados exceto se houverem concorrido dolosamente para tanto ou tiverem agido com culpa64 Quanto à ressalva constitucional de que a obrigação de reparar o dano e a decre tação de perdimento de bens poderá se estender aos sucessores do condenado até o limite do valor do patrimônio transferido não há aí como supunha Mirabete65 afronta ao princípio uma vez que o que se estende aos sucessores do condenado não é a pena mas só os efeitos civis da sentença exclusivamente em relação aos bens adquiridos com o produto do crime e até o limite do patrimônio transferido possibilidade há muito permitida 6 1 Como assinala Silva Franco na compreensão do caráter pessoal da responsabilidade penal está in serida a ideia de que essa responsabilidade é subjetiva isto é pertence a seu autor é própria dele na medida em que é responsável pelo fato praticado porque quis ou porque tal fato é devido à falta de um dever de cuidado Código Penal e sua interpretação jurisprudencial cit p 36 62 Derecho penal cit p 287 63 Nilo Batista Introdução crítica cit p 104 64 Dispõe a esse respeito o art 29 do Código Penal Quem de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este cominadas na medida de sua culpabilidade 65 Manual de direito penal São Paulo Atlas 2000 p 244 94 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS 6 PRINCÍPIO DE LESIVIDADE OU OFENSIVIDADE Segundo o princípio de lesividade nullum crimen sine iniuria66 só podem ser consideradas criminosas condutas lesivas de bem jurídico alheio por isso também conhecido como princípio de proteção de bens jurídicos público ou particular en tendendose como tal os pressupostos existenciais e instrumentais de que a pessoa ne cessita para a sua autorrealização na vida social Mufíoz Conde não podendo haver a criminalização de atos que não ofendam seriamente bem jurídico ou que representem apenas má disposição de interesse próprio como automutilação suicídio tentado dano à coisa própria etc Numa palavra de acordo com o princípio da lesividade o direito penal não pode se ocupar de comportamentos que impliquem apenas autolesão isto é que não trans cendam a pessoa do próprio lesionado por mais que lamentemos tais decisões autole sivas Não por acaso a Constituição argentina art 19 dispunha expressamente que as ações privadas de homens que de nenhum modo ofendam à ordem e à moral pública nem prejudiquem a um terceiro estão reservadas a Deus e isentas da autoridade dos magistrados67 E embora não tenhamos um dispositivo constitucional tão claro cabe dizer com Karam que o direito à intimidade e à vida privada garantido no art 5 da nossa Constituição permite depreender como se deve depreender de qualquer or denamento jurídico que se pretenda democrático que o direito só pode intervir em condutas que tenham potencialidade lesiva68 Com efeito se é objetivo fundamental da República como declarado no art 3º constituir uma sociedade livre se são invioláveis a liberdade a intimidade art 5º e a vida privada e se é explícita a sua vocação libertária seguese que nenhum ato de constrição à liberdade pode ser tolerado salvo quando em virtude do abuso no seu exercício resultar danolesão à liberdade de outrem Em consequência condutas me ramente imorais por mais escandalosas não autorizam a intervenção penal tampouco 66 Conforme Nilo Batista o princípio da lesividade tem quatro funções proibir a incriminação de uma atitude interna proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do autor proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais e proibir a incriminação de condutas des viadas que não afetam qualquer bem jurídico Introdução crítica cit p 9197 Penso porém que em realidade a última função apontada que em rigor é a função de proteção de bens jurídicos compreende todas as demais 67 Com base nesse dispositivo a Corte Suprema de Justiça argentina em decisão de 29 de agosto de 1986 concluiu pela inconstitucionalidade do art 6º da Lei nº 20 77 1 que tem similar na nossa Lei de Drogas ao punir o porte de droga para consumo Em sentido análogo dispunha o art 4º da Declaração de Direitos de 1 789 ao estabelecer que a liberdade consistia em poder fazer tudo que não prejudica aos demais desse modo a existência dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que aqueles que asseguram aos demais membros da sociedade o desfrute desses direitos Esses limites não podem ser determinados senão pela lei 68 De crimes penas e fantasias cit p 130 95 PAULO Q1JEI ROZ presunções legais de violência ou de perigo podem vingar em caráter absoluto como ainda prevê o Código Penal sob pena de absolutizar o que é relativo A propósito John Stuart Mill assinalava que o indivíduo não responde perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém a não ser ele próprio Conselho ensino persuasão esquivança da parte de outras pessoas se para o bem próprio a julgam necessária são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da conduta do indivíduo69 Portanto o autor há de responder exclusivamente pelo que faz direito penal do fato e não pelo que é direito penal do autor de modo que não é o crime que é identificado a partir do criminoso mas o criminoso a partir do crime E no sistema garantista só é lícito criminalizar tipos de ação e não tipos de autor castigase pelo que se faz não pelo que se é interessase por comportamentos danosos não por seus autores cuja identidade diversa tutela ainda que sejam desviados dirige ao processo a prova dos fatos não a inquisição sobre pessoas70 Naturalmente que o princípio se dirige tanto ao legislador quanto aos juízes aos quais compete verificar a existência e a intensidade da lesão seja para considerar os comportamentos atípicos se não existir ou for ínfima a lesão seja para considerálos típicos se existente e relevante o dano seja para proceder à individualização da pena 7 PRINCÍPIO DA IGUALDADE OU ISONOMIA De acordo com a Constituição todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza CF art 5º O princípio da igualdade pretende impedir por isso o estabelecimento de distinções arbitrárias entre os indivíduos com base em preconceito de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação CF art 3º IV Mas igualdade não significa adotar normas idênticas e invariáveis para todos com pretensão de validade para além do tempo e do espaço e das pessoas histórica e con cretamente consideradas pois não existem princípios absolutos mesmo porque absolu tizálos implicaria a negação mesma do direito Aliás sequer o direito à vida o é tanto que a lei admite a pena de morte nalguns casos excepcionais é assegurada a legítima defesa e o aborto está autorizado para certos casos E tão importante quanto o direito à liberdade de expressão por exemplo é o direito à honra igualmente protegido cons titucionalmente razão pela qual a pretexto de absolutizar o primeiro extinguirseia o segundo e viceversa O princípio tem um caráter essencialmente formaltautológico manda tratar igual mente os iguais e desigualmente os desiguais mas nada diz sobre quem é igual e quem 69 Sobre a liberdade trad Alberto da Rocha Barros Petrópolis Vozes 1 99 1 p 1 37 70 Ferrajoli Derecho y razón cit p 704 96 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS não o é tampouco fornece critérios objetivos para igualar e desigualar de modo que o conteúdo essencial do princípio não é dado pelo próprio princípio Ademais em virtude do caráter analógico do direito a igualdade é sempre uma equiparação que não se funda apenas num juízo racional mas numa decisão de poder motivo pelo qual igualdade é sempre igualdade de relações e pois uma correspondên cia uma analogia71 Afinal rigorosamente falando nada ou ninguém é absolutamente igual a outro nem absolutamente desigual mas mais ou menos semelhante72 Um cri me por exemplo pode ser doloso culposo ou preterdoloso simples qualificado ou privilegiado hediondo ou não justificável ou não punível ou não etc e seu autor pri mário ou reincidente imputável ou inimputável sendo que cada uma dessas variáveis faz de cada delito uma ação humana singular distinta Daí dizer Arthur Kaufmann que igualdade é abstração da diferença e diferença é abstração da igualdade73 E ainda se tudo fosse idêntico se não houvesse quaisquer diferenças então seria despropositado senão impossível formar diferentes palavras e diferentes normas e se não houvesse conexão entre as coisas teríamos de ter um nome específico para cada coisa e a uma norma específica para cada ação74 Exatamente por isso a lei nem sempre acertadamente distingue por meio de cri térios nunca inquestionáveis entre crianças adolescentes adultos e idosos entre ho mens e mulheres entre nacionais e estrangeiros entre brancos e negros entre índios e não índios entre civis e militares entre capazes e incapazes entre deficientes e não deficientes entre cidadãos urbanos e rurais etc E por vezes o legislador simplesmente ignora certas formas de expressão por meio de preconceitos que pretende legítimos como a homossexualidade ou a prostituição recusandolhes certos direitos v g casamento adoção direitos trabalhistas a de monstrar que o direito é social e historicamente construído o direito é um conjunto móvel de metáforas e metonímias produzidas pelas relações de poder já o dissemos Também por isso o significado formal e material do princípio da igualdade como de todo princípio não está previamente dado porque não é a interpretação que depen de do direito mas é o direito que depende da interpretação Por isso ora se entende por exemplo que o sistema de cotas é legítimo ora que não o é ora que alguém é ne gro1 ora que não o é ora se decide que um dado tratamento ofende o princípio ora que lhe é conforme 71 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito cit p 23023 1 72 Daí dizer Ferrajoli que em sentido cognitivo ou seja entendida como fato a igualdade é falsa e em sentido prescritivo isto é como valor expressa um ideal limite jamais plenamente realizado mas progressivamente realizável Principia iuris cit p 755 73 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito cit p 230 74 Arthur Kaufmann ibidem 97 No direito penal a desigualdade existe em muitos casos já na própria tipificação de certas infrações criminalização primária como a definição como contravenção penal da vadiagem na maior criminalizaçãopenalização dos crimes contra o patrimônio etc No processo penal a desigualdade de tratamento reside entre outros casos na adoção do foro por prerrogativa de função para alguns ocupantes ou exocupantes de cargos públicos na previsão de prisão especial para determinados agentes CPP art 295 etc Por isso afirma Alessandro Baratta quanto mais uma sociedade é desigual tanto mais ela tem necessidade de um sistema de controle social do desvio de tipo repressivo como o que é realizado através do aparato penal do direito burguês Se o direito penal é um instrumento precípuo de produção e de reprodução de relações de desigualdade de conservação da escala social vertical e das relações de subordinação e de exploração do homem pelo homem então não devemos hesitar em declarar o modelo da sociedade socialista como o modelo de uma sociedade que pode prescindir cada vez mais do direito penal e do cárcere 102 1 PRINCÍPIOS PENAIS de detenção mais grave para o homicídio culposo na direção de veículo automotor do que a prevista no Código Penal art 121 3º78 8 DIREITO E INTERPRETAÇÃO 81 Introdução Num livro que se tornou clássico hermenêutica e aplicação do direito de 1924 Carlos Maximiliano dizia que interpretar é explicar esclarecer dar o sentido de vo cábulo atitude ou gesto reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão extrair de frase sentença ou norma tudo o que na mesma se contém79 Em síntese interpretar era descobrir e fixar o senti do verdadeiro da regra positiva80 No mesmo sentido Aníbal Bruno afirmava que interpretar a lei isto é pene trarlhe o verdadeiro exclusivo sentido é o primeiro problema do jurista em face do Direito positivo Por sua vez Nélson Hungria assinalava que a fonte única do di reito penal é a norma legal Não há direito penal vagando fora da lei escrita Não há distinguir em matéria penal entre lei e direito A lei penal é assim um sistema fechado ainda que se apresente omissa ou lacunosa não pode ser suprida pelo arbí trio judicial ou pela analogia ou pelos princípios gerais de direito ou pelo costume Do ponto de vista de sua aplicação pelo juiz pode mesmo dizerse que a lei penal não tem lacunas81 Em termos semelhantes Beccaria já havia escrito em 1764 que o juiz deve fazer um silogismo perfeito A maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme a lei a consequência a liberdade ou a pena Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais ou se o fizer por conta própria tudo se torna incerto e obscuro Nada mais pe rigoso do que o axioma de que é preciso consultar o espírito da lei Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões82 Enfim o juiz era a boca que pronunciava as palavras da lei conforme proclamara Montesquieu em 174883 78 RE 428864SP Rei Minª Ellen Gracie 14102008 79 Hermenêutica e aplicação do direito Rio de Janeiro Forense 2003 p 7 80 Carlos Maximiliano idem 8 1 Comentários ao Código Penal cit Apesar disso Hungria afirma mais adiante que no estado atual da civilização juridica ninguém pode negar ao juiz a faculdade de afeiçoar a rigidez da lei ao progressivo espírito da sociedade ou de imprimir ao texto legal a possível elasticidade a fim de atenuar os con trastes que acaso surjam entre ele e a cambiante realidade Já passou o tempo do rigoroso tecnicismo lógico que abstraía a lei do seu contato com o mundo real e a consciência social Comentários p 7980 82 Dos delitos e das penas cit IV p 35 83 O espírito das leis cit Livro XI VI p 1 23 99 PAULO QJEIROZ Pois bem desde então pouco mudou a esse respeito uma vez que a doutrina ma joritária ainda parte ordinariamente dos seguintes pressupostos ao tratar da relação entre direito e interpretação a a lei já contém o direito que está assim previamente dado b a finalidade da interpretação é encontrar o sentido exatocorreto contido na lei isto é a vontade da lei ou a vontade do legislador etc c a esse sentido correto da lei se chega por meio dos métodos de interpretação lógico teleológico histórico etc de modo que uma interpretação correta é uma interpretação conforme o método d o juiz quando julga um caso faz ou deve fazer um juízo lógico de subsunção do fato à lei e prioridade da lei sobre o caso f direito e interpretação são coisas distintas e autônomas g uma coisa é interpretar e outra é aplicar o direito h interpretação e integração do direito são coisas distintas i analogia integração e interpretação analógica são inconfundíveis Temos porém que tudo isso está ou deveria estar completamente superado Afinal são palavras de Foucault não há nada absolutamente primeiro a interpretar porque no fundo já tudo é interpretação cada símbolo é em si mesmo não a coisa que se oferece à interpretação mas a interpretação de outro símbolo84 Com efeito a interpretação e a aplicação do direito formam um processo único85 e complexo que compreendem a análise e a apreciação de fatos provas e textos de sorte que constituem momento dos mais importantes da reconstrução social da realidade jurídica e jurídicopenal Além disso a aplicação da lei em cada caso particular requer necessariamente como todo e qualquer texto interpretação do seu significado com vistas a decidir casos concretos realizando o direito daí que o aforisma in claris non fit interpretatio não é mais que uma falácia confunde a ausência de dificuldades in terpretativas com a ausência de interpretação86 mesmo porque afirmar que um texto é claro ou que dispensa interpretação já é um modo de interpretálo 84 Nietzsche Freud Marx São Paulo Princípio Editora 1 997 p 22 85 Como diz Eros Grau interpretação e aplicação não se realizam autonomamente O intérprete dis cerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso Gadamer 1 99 1 397 A in terpretação do direito consiste em concretar a lei em cada caso isto é na sua aplicação Gadamer 1 99 1 301 Assim existe uma equação entre interpretação e aplicação não estamos aqui diante de dois momentos distintos porém frente a uma só operação Marí 1 991 236 Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário Gadamer 1991381 se superpõem Ensaio e discurso sobre interpretaçãoaplicação do direito São Paulo Malheiros 2002 p 84 86 Cobo dei Rosal e Vives Antón Derecho penal p 1 03 100 1 02 1 P RINCÍPIOS PENAIS Além disso e conforme dissemos ao tratar do seu conceito o direito não existe fi sicamente pois é socialmente construído razão pela qual os pressupostos listados ini cialmente não resistem a uma análise minimamente crítica É que não é possível pen sar que haja um mundo préfabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua representação em nossa consciência afinal nos processos de interpretação não se trata de descobrirdesvelar uma vontade preexistente e pronta pois não é a interpretação que depende do direito ou da lei mas o direito ou a lei que depende da interpretação 87 Dito de outro modo os juristas em geral pensam fundamentar a priori dedutivamente o que em verdade é fundamentado a posteriori empiricamente 88 Em síntese o direito não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual constitui a forma mesma de realização do direito afinal não existem fenô menos jurídicos nem jurídicopenais mas apenas uma interpretação jurídica e jurídico penal dos fenômenos Nietzsche89 E apesar da condição privilegiada do juiz no processo penal não é ele o único a interpretarjulgar pois tal tarefa é comum aos diversos personagens que tomam parte nessa construção social da realidade pois são especialmente importantes nesse proces so de produção de sentido membros do Ministério Público advogados testemunhas peritos réus vítimas etc cada um a seu modo dando sua própria versão e interpreta ção dos fatos submetidos a julgamento de sorte que em última análise a interpretação judicial sintetiza múltiplas interpretações é a interpretação das interpretações Exatamente por isso não se pode dizer a priori se um determinado comportamen to é doloso ou culposo lícito ou não culpável ou inculpável razão pela qual uma mes ma conduta v g ferir o cônjuge por flagrálo em adultério ora poderá ser considerada lícita ora ilícita ora culpável ora inculpável ora punível ora impunível a depender da interpretação inclusive porque todo texto pressupõe um dado contexto Uamais re petível Finalmente conforme ressalta Castanheira Neves o problema jurídiconormativo da interpretação não é apenas o de determinar a significação jurídica que exprimem as leis ou quaisquer normas jurídicas mas o de obter dessas leis ou normas um critério prátco normativo adequado de decisão dos casos concretos motivo pelo qual uma boa interpretação não é aquela que numa perspectiva hermenêuticoexegética deter mina corretamente o sentido textual da norma é antes aquela que numa perspectiva 87 Günter Abel Verdade e interpretação in Nietzsche na Alemanha org por Scarlett Merton S Paulo Discurso Editorial 2005 88 Pierre Bourdieu Los juristas guardianes de la hipocresía colectiva in Jueces para la democracía 200347 julio 89 Mesmo na Física não é diversa a situação porque como assinala FritjofCapra na Física moderna o universo é pois experimentado como um todo dinâmico e inseparável que sempre inclui o observa dor num sentido essencial Nessa experiência os conceitos tradicionais de espaço e tempo de objetos isolados de causa e efeito perdem seu significado O Tão da Física S Paulo Cultrix 1 995 p 68 101 PAULO ÜlJEIROZ práticonormativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto90 Também por isso o caso não é apenas a condição históricosituacional da com preensão da norma o factor situacionalmente hermenêutico dessa compreensão mas a própria determinante problemática da intenção interpretativa O que significa evi dentemente que é o caso e não a norma o prius problemáticointencional e metódico não se intenciona o problema interpretativo nem se parte metodicamente nele da norma para o caso em ordem a uma aplicação da norma que a sua prévia e abstracta interpretação possibilitasse mas do caso para a norma mediante a interrogação do critério normativo adequado que a norma possa oferecer para o caso91 82 Interpretar é compreender e argumentar De todo modo ainda hoje é lugar comum afirmar que interpretar é extrair do texto legal o seu correto significado ideia que pressupõe a existência de um sentido prévio à interpretação mesma sentido a ser descoberto por meio dos métodos interpretativos como se o direito já estivesse previamente dado como se existisse ontologicamente e subjacente a isso está uma confusão mais ou menos consciente entre lei e direito No entanto se conforme dissemos o direito não existe seguese que interpretar é compreender e argumentar corretamente num sistema aberto92 argumentação de que participam sobretudo advogados promotores e juízes mas não só eles E se múltiplas são as possibilidades de argumentação múltiplas também hão de ser as possibilidades de interpretação correta do texto e da realidade a que se refere e se reconstrói a par tir dele Por isso a interpretação do caso não deve necessariamente conduzir a uma solução como sendo a única correta mas a diversas soluções que na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar têm igual valor93 Ou seja interpretar é decidir entre várias possibilidades igualmente válidas pois como disse Kelsen o direito a aplicar forma em todas as hipóteses uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação razão pela qual é conforme o direito todo ato que se mantenha dentro desse quadro ou moldura que preencha essa moldura em qualquer sentido possível94 Mas o certo é que a pretexto de preservar o princípio da segurança jurídica a doutrina costuma defender a necessidade de se adotar critériosmétodos no sentido de 90 Metodologia jurídica Coimbra Coimbra Editora 1993 p 84 91 A Castanheira Neves O actual problema metodológico da interpretação jurídica Coimbra Editora 2003 p 8081 O autor cita ainda M Kriele no princípio está o caso real ou imaginário e não o texto Fikentscher o ponto de partida é o caso concreto decidendo e R Grõschner não o texto legal mas o caso é o A e o O dos juristas 92 Arthur Kaufmann Panorámica histórica de los problemas de la filosofia dei derecho in El pensamien to jurídico contemporáneo Ed Debate 1992 p 1 3 1 93 Kelsen Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 2003 p 390 94 Teoria pura do direito cit p 390 102 I 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS encontrar a única ou melhor resposta correta invocando para tanto metáforas como o espírito da lei e semelhantes já em si uma tática argumentativa Isso além de ilu sório não seria nem justo nem conveniente visto que uma tal ideia incompatível com uma sociedade multicultural e multifacetada é própria de uma ideologia antiliberal em última análise que não acolhe antes rechaça as diferenças de sexo de raça de cultura etc Ademais pretender unir ciência à ideia de unidade de pureza de perfei ção quer se refira à política quer se refira à religião quer se refira ao direito é sem pre perigoso e tendencialmente tirânico e que há de ser por isso permanentemente combatido No particular nada há a lamentar portanto muito ao contrário com abolir semelhante preconceito surgem novas possibilidades de um direito penal democrá tico plural porque reconhecer a incerteza e a diversidade no direito é reconhecer a incerteza e a diversidade mesma do homem A não ser assim poderseá substituir no futuro os atuais juízes promotores e advogados por sofisticados programas de com putador Portanto afirmar que só uma resposta é correta é assumir uma postura arrogante diante de outras respostas igualmente possíveis e válidas Como bem observa Marga rida Camargo ao contrário dessas posições monolíticas o que se aponta agora sob o viés da pósmodernidade é que no lugar do universal encontrase o histórico no lugar do simples o complexo no lugar do único o plural no lugar do abstrato o concreto e no lugar do formal o retórico pois o direito consiste na realização de uma prática que envolve o método hermenêutico e a técnica argumentativa95 83 O chamado círculo hermenêutico Assim interpretar um texto legal isto é compreender e fazer compreender o seu significado não é uma questão de mera aplicação de métodos96 porque entender e in terpretar textos não é somente um empenho da ciência já que pertence ao todo da ex periência do homem no mundo97 e isso se dá de tal modo que aquele que compreende já está incluído num acontecimento em razão do qual se faz valer o que tem sentido de sorte que não existe compreensão que seja livre de todo preconceito por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos98 Dito de outro modo a compreensão do sentido 95 Hermenêutica e argumentação Rio de JaneiroSão Paulo Renovar 2003 p 250 96 Como assinala Hassemer não há uma metarregra das regras interpretativas isto é não há uma pauta que prescreve ao juiz a aplicação de um determinado método em cada caso pois metodicamente o juiz é livre na eleição das regras interpretativas e como as diferentes regras conduzem a resultados diferentes quanto à compreensão correta da norma não podem elas por consequência garantir a vinculação estrita do juiz à lei E pensamiento jurídico contemporáneo cit p 2 1 2 No mesmo sen tido Kelsen Teoria pura do direito cit 97 Gadamer Verdade e método Petrópolis Vozes 1 999 p 3 1 98 Gadamer Verdade e método cit p 708709 Escreve o citado autor textualmente Aquele que compreende já está sempre incluído num acontecimento em virtude do qual se faz valer o que tem sentido Está justificado que para o fenômeno hermenêutico se empregue o mesmo conceito 103 PAULO QjEIROZ linguístico não constitui um fenômeno puramente receptivo pois implica inevitavel mente a autocompreensão do próprio sujeito que realiza a compreensão fazendo surgir o direito histórico concreto99 Portanto a interpretação do direito realizase por meio de um processo circular de compreensão em que entre o texto e o intérprete se estabelece uma mútua referência pois como diz Saavedra o leitor entende o texto a partir da posição de parcialidade que decorre de sua relação com o objeto mencionado no texto se o texto escreve Saavedra fala de poder de justiça de arte ou da vida o leitor compreenderá o texto em função de suas próprias experiências sobre o poder a justiça a arte ou a vida Es sas experiências podem mudar evidentemente e pode mudar também a consequência do contato que o leitor mantém com o texto mas o que parece evidente é que não há nenhuma leitura ingênua porque o intérprete sempre leva consigo uma compreensão prévia daquilo que quer compreender quando empreende a leitura do texto100 Dito de outro modo à semelhança do pintor que não pinta sobre uma tela virgem e do escri tor que não escreve sobre uma página em branco pois a tela ou a página já estão co bertas de clichês preexistentesº também o juiz não julga a partir apenas dos dizeres da lei isto é a partir do nada w2 do jogo que para a experiência do belo Quando compreendemos um texto nos vemos tão atraídos por sua plenitude de sentido como pelo belo Na medida em que compreendemos estamos incluídos num acontecer da verdade e quando queremos saber o que temos que crer parecenos que chegamos demasiado tarde Assim é certo que não existe compreensão que seja livre de todo preconceito por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar sempre dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos No conjunto da nossa investigação evidenciase que para garantir a verdade não basta o gênero de certeza que o uso dos métodos científicos proporciona Isso vale especialmente para as ciências do espírito mas não significa de modo algum uma diminuição de sua cientificidade mas antes a legitimação da pretensão de um significado humano especial que elas vêm reivindicando desde antigamente O fato de que em seu conhecimento opere também o ser próprio daquele que conhece designa certamente o limite do método mas não o da ciência O que a ferramenta do método não alcança tem de ser conse guido e pode realmente sêlo através de uma disciplina do perguntar e do investigar que garante a verdade 99 Arthur Kaufmann Panorámica in El pensamiento cit p 1 29 Já Heidegger escrevera que a interpretação de algo como algo fundase essencialmente numa posição prévia visão prévia e con cepção prévia A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições Se a concreção da interpretação no sentido da interpretação textual exata se compraz em se basear nisso que está no texto aquilo que de imediato apresenta como estando no texto nada mais do que opinião prévia indiscutida e supostamente evidente do intérprete Em todo princípio de interpreta ção ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já põe ou seja que é preliminarmente dado na posição prévia visão prévia e concepção prévia Ser e tempo Petrópolis Vozes 2002 p 207 1 00 Citado por Amilton Bueno de Carvalho Papel dos juízes na democracia Doutrina Rio de Janeiro nº 1 2002 1 0 1 Deleuze Giles e Guattari Félix O que é filosofia S Paulo Editora 34 2005 1 02 Lembra Hassemer que expectativas de sentido e précompreensões não são em última análise po tencialidades de apenas alguns indivíduos determinados Elas são antes de tudo características de 104 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS Em consequência não é possível como assinala Arthur Kaufmann interpretar corretamente segundo métodos ou segundo a hierarquia de argumentos pois em últi ma análise sobre o valor e a hierarquia de um meio interpretativo ou de um argumento decide o próprio intérprete103 mesmo porque não há um método para a escolha do mé todo104 E o juiz que supõe tomar seus critérios de decisão unicamente da lei é vítima de fatal engano pois inconscientemente permanece dependente dele mesmo quando em realidade só o juiz que tenha plena consciência de que sua pessoa se coimplica no processo interpretativo pode ser verdadeiramente independente105 Por isso que o ato de interpretar não é algo meramente contemplativo da norma não é uma revelação não é um ato declarativo mas constitutivo 106 por cujo meio se investiga e se desco bre a prévia vontade da lei ou a vontade do legislador como ainda entende gran de parte da doutrina mas um ato de criação do direito a partir de argumentação que empresta certo e determinado significado àquilo que se interpreta107 Numa palavra com a interpretação não se extraem sentidos da lei mas sentidos lhe são atribuídos por meio da interpretação Nietzsche tinha razão portanto quando dizia que nós introduzimos nossos valo res nas coisas por meio da interpretação108 Parece haver aliás algo de mágico nessa crença de que o juiz julga segundo uma suposta vontade da lei ou do legislador pois seria como acreditar por exemplo que a partir do sopro de um sax ou do dedilhar de uma guitarra se pudessem produzir todos os sons e melodias já que de acordo uma tal concepção importa mais o objeto uma sociedade e cultura resultados do contexto histórico no qual se encontram não apenas as pessoas mas também seu Direito cit p 96 103 Arthur Kaufmann Panorámica in El pensamiento cit p 1 29 l 04 Lédio Rosa de Andrade O que é direito alternativo Florianópolis Habitus 200 1 p 54 105 Arthur Kaufmann Panorámica in El pensamiento cit p 1 30 l 06 Como ensina Kelsen uma decisão judicial não tem como por vezes se supõe um simples caráter declaratório O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado cuja produção já foi concluída A função do tribunal não é simples descoberta do Direito ou jurisdição declaração do Direito neste sentido declaratório A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso concreto E mesmo esta determinação não tem um caráter simplesmente declarativo mas constitutivo Teoria pura do direito cit p 264 1 07 1 De acordo com Lênio Streck não existem em verdade julgamentos de acordo com a lei ou em desa cordo com ela porque o texto normativo não contém imediatamente a norma Müller a qual é cons truída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito de sorte que quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário Conclui então que é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras é também comportamentos símbolos conhecimentos expressados sempre na e pela linguagem É o que a lei manda mas também o que os juízes interpretam os ad vogados argumentam as partes declaram os teóricos produzem os legisladores criticam É enfim um discurso constitutivo uma vez que designaatribui significado a fatos e palavras Hermenêutica jurídica em crise Porto Alegre Livraria do Advogado Ed 1 999 p 2 1 02 1 1 1 08 A vontade de poder cit p 31 O aforismo 590 105 PAULO QJEIROZ do que o sujeito mais o instrumento do que o instrumentista No entanto uma boa interpretação na música como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sensibilidade E se os textos não fossem compreendidos a partir da experiência do homem no mundo da précompreensão que o próprio intérprete tem do texto interpretado não se entenderia como o mesmo enunciado legal pudesse comportar ao mesmo tempo múltiplas interpretações pelo mesmo intérprete até ou que ao longo do tempo pu desse sofrer tantas mudanças de interpretação sem alteração da redação do texto legal inclusive a exemplo da Parte Especial do Código Penal de 1940 especialmente no que se refere ao capítulo dedicado aos crimes sexuais O direito é assim algo que com ou sem mudança dos textos está em permanente evolução e transformação não sendo em conclusão um objeto que possa ser conhecido independentemente do sujeito109 Aliás o espectador minimamente crítico sabe que expressões como o juiz é um escravo da lei ou o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei110 etc são meros chavões principalmente se já houver tido a oportunidade de assistir ao que se passa durante uma sessão do em que se pede aos jurados que julguem conforme a cons ciência e os ditames da justiça CPP art 472 e não conforme a lei algo um tan to distinto onde o resultado do veredicto depende grandemente da performance dos oradores promotores e advogados e ali o júri mais do que fatos julga as pessoas envolvidas no conflito acusado e vítima seu modo de ser seu histórico de vida sua família status etc não raro absolvendo o réu e condenando a vítima Parece inclusive que quando os juízes e nós de algum modo se identificam com o autor do crime tendem naturalmente a absolvêlo ou a atenuar o castigo v g solida rizarse com o cônjuge traído que reage a isso com violência contrariamente quando a identificação é com a vítima do crime v g criança indefesa o desfecho provável é a condenação Parece também que nossas escolhas podem ser racionalmente justifica das mas não o porquê dessas escolhas e não outras que em grande parte remetem ao inconsciente de modo que o essencial sobre o homem ele ignora111 1 09 Na verdade no âmbito do direito penal não se pode falar rigorosamente de uma relação sujeito objeto simplesmente porque o seu objeto é o próprio sujeito isto é o homem autor de uma conduta pretendidamente típica antijurídica culpável e punível de modo que aqui o que se estabelece é mais exatamente uma relação sujeitosujeito o homem que compreende que interpreta que julga o seu semelhante e que portanto compreende e julga a si mesmo Daí dizer Boaventura de Souza Santos que todo conhecimento é uma forma de autoconhecimento e todo desconhecimento é autodesconhe cimento Um discurso sobre as ciências São Paulo Cortez 2003 p 92 1 1 O A expressão é de Montesquieu 1 1 1 De acordo com Freud o inconsciente é a esfera mais ampla que inclui em si a esfera menor do cons ciente Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e não obstante reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica em sua natureza mais íntima ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo e é tão incompletamen te apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos 106 1 02 1 PRI NCÍPIOS PENAIS Daí dizer Arthur Kaufmann que a hermenêutica jurídica não diz nada diferente do que tem sido válido e sempre tem sido praticado porque o único que realmente faz é mostrálo à luz destruindo assim algumas ilusões sobretudo a ilusão de que a investigação do direito seja mera subsunção lógicoformal do fato à lei112 Enfim o raciocínio dos magistrados não é como assinala Lédio Rosa de Andrade silogístico mas redutivo e classificatório porquanto ao atribuir uma interpretação ao signo lei o magistrado usa ideologia e ressignifica seu conteúdo de modo que não só acrescenta algo ao direito como o modifica constantemente113 Por conseguinte a interpretação à semelhança da fotografia varia conforme não apenas as imagens que se veem e se contemplam mas também segundo a ciência ou a insciência a maturidade ou a imaturidade a arrogância ou a humildade de quem inter preta ou fotografa pois o homemjuiz ao pretender julgar o processo segundo a lei julga conforme os seus medos as suas pretensões e os seus sentimentos a sua vocação ou o seu alheamento a sua grandeza ou a sua pequenez julga enfim segundo a sua sensibilidade A interpretação é uma fotografia da alma do intérprete114 órgãos sensoriais Ainda as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistên cia da consciência A interpretação dos sonhos segunda parte capítulo VII a psicologia dos proces sos oníricos Em Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Vol XV Rio de Janeiro Imago l ª edição Mais o inconsciente designa não apenas as ideias latentes em geral mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico ideias que se mantêm à parte da consciência apesar de sua intensidade e atividade a inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica todo ato psíquico começa com um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência segundo encontra resistência ou não Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise Em Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XII Rio de Janeiro Imago 1 ª edição 1 12 Panorámica in El pensamiento cit p 1 3 1 1 1 3 Direito ao direito Curitiba JM Ed 200 1 p 1 17 1 14 Como observa AlfRoss o juiz é um ser humano Por trás da decisão tomada encontrase toda a sua personalidade Mesmo quando a obediência ao direito a consciência jurídica formal esteja profunda mente enraizada na mente do juiz como postura moral e profissional ver nesta o único fator ou móvel é aceitar uma ficção O juiz não é um autômato que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões É um ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social tomando decisões que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural Seu respeito pela lei não é absoluto A obediência a esta não constitui o único motivo Aos seus olhos a lei não é uma fórmula mágica mas uma manifestação dos ideais posturas padrões ou valorações que denominamos tradi ção cultural Se na maioria dos casos o juiz decide dentro do campo de interpretação cognosciti va é indício de que sua consciência jurídica julgou possível aprovar a decisão ou em todo caso não a considerou incompatível com o justo ou com o socialmente desejável num tal grau que tomasse a recorrer a algum expediente para livrarse das amarras da lei Se os postulados políticojurídicomo rais de sua consciência jurídica tivessem levado o juiz a considerar que a decisão é inaceitável esse teria podido também mediante uma adequação descobrir a via para a melhor solução Podemos de maneira definitiva dizer que a administração do direito não se reduz a uma mera atividade intelec tual Está enraizada na personalidade total do juiz tanto em sua consciência jurídica formal e material quanto em suas opiniões e pontos de vista racionais Tratase de uma interpretação construtiva a qual é simultaneamente conhecimento e valoração passividade e atividade Direito e justiça São Paulo Edipro 2003 p 1 68169 107 aa PAULO QEI ROZ Talvez se possa dizer aqui mutatis mutandis o que escreveu Oscar Wilde todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista não do modelo O modelo é apenas acidental o pretexto Não é ele que o pintor revela é na verdade o artista que na tela colorida se revela115 No fundo as coisas parecem enfim relativamente simples juízes corajosos e im parciais interpretam e decidem corajosa e imparcialmente promotores implacáveis in terpretam e acusam implacavelmente e advogados apaixonados compreendem e advo gam apaixonadamente A interpretação é o próprio homem Ademais o ato de interpretar é algo singular e único mesmo porque o contexto em que são praticados e julgados os fatos é irrepetível e como disse Heráclito não se pode entrar duas vezes no mesmo rio pois novas águas estão sempre fluindo116 Mais graças à escrita o discurso se liberta da tutela de intenção do autor das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável117 Convém notar ainda com Foucault que por meio do direito penal julgamse também as paixões os instintos as anomalias as enfermidades as inadaptações os efeitos do meio ambiente ou de hereditariedade punemse as agressões mas por meio delas as agressividades e ao mesmo tempo as perversões impulsos e desejos huma nos julgase enfim a alma do criminoso de sorte que a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa pois implica uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível118 Por tudo isso parecenos inútil estudar interpretação a partir de métodos porque a não existe um método para a eleição do método cabendo ao intérprete decidir sobre o método e o argumento a seguir e sua respectiva hierarquia b toda compreensão é precedida de uma précompreensão a qual é determinante para a decisão c é possível partir do mesmo método e não obstante chegar a decisões distintas pois a pessoa do intérprete está coimplicada no processo de interpretação d a eventual adoção de um método se tiver alguma relevância servirá apenas para justificarlegitimar decisões já tomadas previamente à eleição do método e o direito não é um saber lógico mas ana lógico f em direito nada é dado tudo é construído g todo texto pressupõe um dado contexto que é sempre novo h por meio da interpretação não se extraem significados da lei mas significados lhe são atribuídos pois o sentido das coisas textos fatos pro vas etc não é dado pelas próprias coisas mas por nós ao atribuirmos um determinado 1 1 5 Oscar Wilde O retrato de Dorian Gray São Paulo Companhia das Letras 2012 p12 1 16 Cf Bertrand Russell História do pensamento ocidental as aventuras das ideias dos présocráticos a Wittgenstein Rio de Janeiro Ediouro 200 1 p 3 1 1 17 Paul Ricoeur in O justo e a essência da justiça Lisboa Instituto Piaget 1995 1 1 8 Vigiar e punir história da violência nas prisões trad Raquel Ramalhete 1 2 ed Petrópolis Vozes 1 995 p 2 1 e ss 108 1 02 1 P RI NCÍPIOS PENAIS sentido num universo de possibilidades aí incluída a falta de sentido inclusive i pre valência do caso sobre o texto A eventual invocação de métodos interpretativos constitui por isso apenas uma forma retórica de justificar decisões tomadas independentemente de qualquer método Em conclusão não é a interpretação que depende do direito mas é o direito que depende da interpretação porque a interpretação constitui a própria realização do di reito A rigor não existem portanto fenômenos jurídicos nem jurídicopenais mas apenas uma interpretação jurídica e jurídicopenal dos fenômenos Também por isso não existem fenômenos típicos antijurídicos e culpáveis mas apenas uma inter pretação tipificante antijuridicizante e culpabilizante dos fenômenos A interpretação é pois o ser do direito e o ser do direito é um devir 84 Limites da interpretação Atualmente parece não haver dúvida de que por maior que seja a clareza e a exati dão de um texto legal é sempre possível interpretálo de várias formas em virtude do caráter estruturalmente aberto da linguagem e pois dos conceitos jurídicos Há quem afirme inclusive que as possibilidades de interpretação são infinitas Nietzsche Der rida Umberto Eco Mas isso significa que qualquer interpretação é válida Existem limites à interpretação Parecenos que tais limites existem ou devem existir realmente119 Em primeiro lugar é preciso reconhecer que há interpretações erradas isto é tec nicamente incorretas Exemplo disso são as que se fundam em leis já revogadas como se ainda estivessem em vigor as que desconhecem a legislação específica as que con validam cálculos matemáticos incorretos relativamente à prescrição decadência pra zos etc as que se baseiam numa leitura equivocada do texto as tomadas por juízes manifestamente incompetentes as que contrariam princípios e regras por desconheci mento as que encerram contradição insuperável entre outras Mas que dizer da interpretação tomada conscientemente e sem erros técnicos Poqe um juiz deixar de condenar alguém por crime contra a liberdade sexual por julgar que a vítima por ser prostituta ou similar não é digna ou passível de proteção jurídica É sustentável ainda como no passado que mulher casada não pode ser vítima de estu pro praticado pelo marido em razão dos deveres do casamento Policiais podem matar fora dos casos legalmente admitidos l 19 Nesse sentido Umberto Eco dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz Até mesmo o desconstrucionismo mais radical aceita a ideia de que existem interpretações clamorosamente inaceitáveis Isso significa que o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto o que não quer dizer que coincidem com os direitos do seu autor Os limites da interpretação S Paulo Editora Perspectiva 2000 p XXII E Nietzsche Infinita possibilidade de interpretação do mundo cada inter pretação é um sintoma de crescimento ou de declínio in Vontade de Poder cit 109 PAULO QlJEIROZ Temos que seja qual for o rótulo que se associe a cada comportamento prostituta etc toda pessoa humana independentemente de qualquer outra condição tem direito de ser respeitada enquanto tal fazendo por isso jus à proteção da vida da honra e da liberdade em toda e qualquer circunstância motivo pelo qual o juiz não pode negar proteção à prostituta ou à mulher casada sob nenhum pretexto Além do mais se é certo que temos o direito de ser preconceituosos não temos porém o direito de fazer dos nossos preconceitos um direito especialmente quando isso signifique excluir ou violentar outrem Pela mesma razão não se pode considerar legítima a ação de policiais que torturam e matam supostos criminosos fora dos casos legalmente autorizados legítima defesa em nome da segurança pública ou semelhante porque do contrário não existirá diferença alguma entre policiais e criminosos entre lícito e ilícito entre o direito e o torto Não obstante isso por mais que consideremos determinadas decisões como incor retas absurdas ou inaceitáveis uma coisa é certa os limites de uma interpretação são dados por uma outra interpretação afinal a afirmação de que uma determinada senten ça é incorreta absurda ou inaceitável encerra igualmente uma interpretação12º Naturalmente que a interpretação predominante majoritária não é necessaria mente a melhor porque tal encerra uma decisão de poder motivo pelo qual prevalecerá a de quem pessoa órgão ou instituição tiver atribuição legal poder para a impor ou institucionalizar podendo inclusive ser a mais arbitrária dentre as possíveis afinal só é direito o que o poder reconhece como tal121 Dito sem rodeios quem tem poder cria o direito quem não o tem o sofre Porque é o poder um conjunto de relações histórica e permanentemente em cons trução que em última análise cria e extingue estados promulga leis e revoga cons tituições institui exércitos e parlamentos declara a guerra e a paz forja deuses e de mônios distingue mito e realidade saber e ignorância bem e mal verdade e mentira direito e torto Não surpreende assim que a lei tenha historicamente protegido e preferido os homens às mulheres os héteros aos homossexuais os senhores aos escravos os pa trões aos empregados os incluídos aos excluídos socialmente e todos eles aos animais preferido enfim os mais fortes aos mais vulneráveis 120 Como assinala Hassemer apenas uma compreensão jurídica obtusa mas não aquela orientada pela teoria linguística poderia supor que existem fronteiras abstratas entre linguagem e compreensão fora da linguagem e da compreensão A interpretação judicial das leis é um ato de compreensão de texto e por isso provida de todas as limitações préconceitos subjetivismos rotinas e caráter espontâneo das demais formas de compreensão Cit p 66 121 De acordo com François Ewald não há saber neutro purificado desafectado como foi dito a res peito da ciência Todo o saber é político não porque dele se possam deduzir consequências em polí tica nem porque a política se possa servir dele ou utilizálo mas muito mais profundamente porque não há saber que não seja fundado ou não encontre as suas condições de possibilidade em relações de poder Foucault e o direito cit p 55 110 l ü2 1 P RI NCÍPIOS PENAIS Naturalmente que essa relação não é estática mas dinâmica e pois muda segun do a conformação política e econômica das sociedades 85 Interpretação e garantismo O garantismo122 conforme definição de Ferrajoli constitui um esquema epistemo lógico de identificação da desviação penal destinada a assegurar em relação a outros modelos de direito historicamente concebidos e realizados o máximo grau de raciona lidade e pois o máximo grau de limitação da potestade punitiva e de tutela da pessoa humana contra a arbitrariedade123 ou seja constitui uma técnica de tutela capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade124 como instrumento de defesa dos direitos fundamentais Dirseá garantista assim todo modelo de direito penal que res peitar minimamente as seguintes garantias os dez axiomas do garantismo penal 1 o princípio de retributividade ou de sucessividade da pena em relação ao delito nula poena sine crimine 2 o princípio da legalidade nullum crimen sine lege 3 o princípio da necessidade ou da economia do direito penal nulla ex sine ne cessitate 4 o princípio da lesividade ou da ofensividade do fato nulla necessitas sine iniuria 5 o princípio de materialidade ou de exterioridade da ação nulla iniuria sine ac tione 6 o princípio da culpabilidade ou de responsabilidade pessoal nulla actio sine culpa 7 o princípio da jurisdicionalidade nulla culpa sine iudicio 8 o princípio acusatório ou de separação entre juiz e acusação nullum iudicium sine accusatione 9 o princípio do ônus da prova ou de verificação nulla accusatio sine probatio ne lOo princípio do contraditório nulla probatio sine defensione125 Contrariamente dirseá antigarantista todo modelo de direito que não respeitar total ou parcialmente tais princípios 1 122 Convém esclarecer que o garantismo é um modelo de justificação do direito e não só do direito penal mas aqui nos interessa de modo particular o direito penal A expressão também pode ser adjetivada de garantismo negativo e garantismo positivo A primeira tem a ver com o respeito às garantias de legalidade proporcionalidade etc A segunda diz respeito à realização dos direitos sociais 1 23 1 Derecho y razón cit p 34 1 24 Ferrajoli Derecho y razón cit p 851 125 Ferrajoli Derecho y razón cit p 93 1 1 1 PAULO QEIROZ Dito de outro modo o garantismo penal é um modelo de legitimação e também de deslegitimação do sistema penal que parte da premissa de que o direito penal surgiu e se justifica histórica e politicamente como um instrumento de prevenção subsidiária de reações públicas ou privadas arbitrárias contra os cidadãos de tal modo que os prin cípios liberais de legalidade proporcionalidade pessoalidade da pena etc constituem autênticas garantias individuais Ou ainda o direito penal por meio de seu sistema de garantias constitui a lei do mais fraco diante do mais forte no momento do cometi mento do crime pretende proteger a vítima o mais fraco contra o criminoso o mais forte no momento do processo o réu o mais fraco contra o Estado o mais forte Constitui também um sistema que busca aproximar maximamente normatividade e efetividade diminuindo tanto quanto possível o abismo existente entre o discurso ju rídicopenal e sua realidade operativa 86 Prevalência da Constituição Se a Constituição é o alfa e o ômega e pois começo e fim do ordenamento jurí dico seguese que os princípios e valores constitucionais fundamentais devem ser em consequência o ponto de partida e o ponto de chegada de toda e qualquer interpre tação independentemente da natureza civil penal das normas em questão mesmo porque em razão da pretendida unidade lógica do direito não se pode falar de uma hermenêutica civil penal ou processual mas de hermenêutica jurídica simplesmente Assim a Constituição passa a ser em toda a sua substancialidade o topos hermenêu tico que conformará a interpretação judicial do restante do sistema jurídico126 Afinal se interpretar é argumentar corretamente isso significa antes de tudo argumentar a partir de princípios e não só a partir de regras buscando sempre a interpretação mais condizente com os valores de liberdade igualdade e fraternidade especialmente Isso vale especialmente para o direito penal por traduzir a forma mais incisiva de intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos em cujo favor da liberdade a Cons tituição visando a assegurarlhe a efetividade consagra num exaustivo artigo o 5º uma série de garantias legalidade humanidade das penas estado de inocência etc E essa incorporação em nível constitucional dos direitos fundamentais altera como res salta Ferrajoli a relação entre o juiz e a lei e atribui à jurisdição um papel de garantia do cidadão contra as violações da legalidade em qualquer nível por parte dos poderes públicos127 significando dizer que o direito de exigir a observância das garantias cons titucionais constitui uma garantia do cidadão em face do poder punitivo do Estado128 Justamente por isso não basta à aplicabilidade da lei penal sua vigência entendi da como respeito à competência e procedimento para a sua elaboração é preciso mais 126 Lênio Streck Hermenêutica cit p 2 1 5 1 27 Derechos y garantías la ley dei más débil Madrid Ed Trotta 1 999 p 26 128 Para Lênio Streck a interpretação conforme a Constituição é mais do que princípio é um princípio imanente da Constituição até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obriga ção de que todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela Hermenêu tica cit p 221 1 1 2 a sua validade é dizer conformação da norma às garantias fundamentais da pessoa humana Aliás exatamente nessa sujeição do juiz à Constituição e portanto no seu papel de garante dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos reside o principal fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do Poder Judiciário perante os demais Poderes Legislativo e Executivo Afinal conforme assinala Ferrajoli a sujeição do juiz não é mais como no velho paradigma positivista sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado senão sujeição à lei enquanto válida é dizer coerente com a Constituição E no modelo constitucionalgarantista a validade já não é um dogma associado à mera existência formal da lei razão pela qual a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos ou seja compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos Isso significa portanto a não sujeição à lei de forma acrítica e incondicionada senão sujeição sobredotada à Constituição que impõe a crítica das leis inválidas através da sua reinterpretacão em sentido constitucional e a denúncia de sua inconstitucionalidade PAULO Q1EIROZ heideggeriana no imaginário dos juristas e que tem se mostrado de maneira emblemá tica no vetusto jargão sentença vem de sentire para citar apenas um entre tantos chavões que como já demonstrei transformaramse em enunciados performáticos A primeira questão reside em saber se existiria de fato um tal juizsujeito Afinal de acordo com o autor não é mais possível pensar que a realidade passa a ser uma construção de representações de um sujeito isolado solipsista O giro ontológicolin guístico já nos mostrou que somos desde sempre seresnomundo o que implica dizer que originariamente já estamos fora de nós mesmos nos relacionando com as coisas e com o mundo Esse mundo é um ambiente de significância um espaço no interior do qual o sentido definitivamente não está à nossa disposição133 Se isto é correto parece então que um juiz solipsista jamais existiu realmente ainda que ele o juiz pensasse decidir isoladamente com base exclusivamente em sua consciência E mesmo um Robinson Crusoé cuja consciência era o resultado de toda a tradição moral religiosa jurídica etc que lhe fora ensinada antes do naufrágio que o vitimara tinha na ilha a companhia de um SextaFeira Tinha pois além de seus pró prios limites os limites de um semelhante e da ilhanatureza em que passou a habitar Enfim nem mesmo para Robinson Crusoé é possível falar de um grau zero de sentido E como assinala Gadamer não é a história que pertence a nós mas nós que pertencemos à história Muito mais do que nós compreendemos a nós mesmos na re flexão já estamos compreendendo de uma maneira autoevidente na família na socie dade e no Estado em que vivemos A lente da subjetividade é um espelho deformante A autoreflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica Por isso os préconceitos de um indivíduo são muito mais que seus juízos a realidade histórica de seu ser134 Justamente por isso carece de sentido a pergunta onde ficam a tradição a coe rência e integridade do direito Cada decisão parte ou estabelece um grau zero de sentido135 Aliás é o próprio autor quem conclui que é exatamente por isso que podemos dizer sem medo de errar que o sujeito solipsista foi destruído embora sobreviva em grande parte do ambiente jusfilosófico Afinal como diz Gadamer quem pensa a lin guagem já se movimenta para além da subjetividade136 Mas não é só Para Lênio Streck que cita voto proferido por um certo ministro que afirma não importar o que os doutrinadores pensam já como preliminar é neces sário lembrar antes mesmo de iniciar nossas reflexões no sentido mais crítico que o direito não é e não pode ser aquilo que o intérprete quer que ele seja Portanto o direito não é aquilo que o Tribunal no seu conjunto ou na individualidade de seus 133 Idem p 57 134 Verdade e Método Petrópolis Editora Vozes 1999 3 ed 135 Ibidem p 27 136 fbidem p 58 1 14 l ü2 1 PRINCÍPIOS P ENAIS componentes dizem que é137 Uma das conclusões a que chega é exatamente nesse sentido o direito não é aquilo que o judiciário diz que é E tampouco éserá aquilo que em segundo momento a doutrina compilando a jurisprudência diz que ele é a partir do repertório de ementários ou enunciados com pretensões objetivadoras138 A pergunta que sempre fica é se o que os tribunais e juízes dizem que é o direito direito não é o que seria isso então O não direito o torto o arbítrio E o que seria o direito Segundo Lênio Streck a decisão judicial não é um ato de vontade O que seria então Um ato de verdade entendida como a resposta constitucionalmente adequada ou similar139 Mas a verdade escreveu Nietzsche não é algo que existisse e que se houvesse de encontrar de descobrir mas algo que se há de criar e que dá o nome a um processo mais ainda uma vontade de dominação que não tem nenhum fim em si estabelecer a verdade como um processus in infinitum um determinar ativo não um tornarse consciente de algo que fosse em si firme e determinado Tratase de uma pala vra para a vontade de poder14º 13 7 Ibidem p 25 1 38 Ibidem p 1 07 139 Em Verdade e consenso Rio Lumen Juris 2007 p 309 Lênio Streck diz que a resposta correta aqui trabalhada é a resposta hermeneuticamente correta que limitada àquilo que se entende por feno menologia hermenêutica poderá ser denominada de verdadeira se por verdadeiro entendermos a pos sibilidade de nos apropriarmos de préjuízos autênticos e dessa maneira podermos distinguilos dos préjuízos inautênticos Tem ainda que na medida em que o caso concreto é irrepetível a resposta é simplesmente uma correta ou não para aquele caso A única resposta acarretaria uma totalidade em que aquilo que sempre fica de fora de nossa compreensão seria eliminado O que sobra o nãodito o ainda nãocompreendido é o que pode gerar na próxima resposta a um caso idêntico uma resposta diferente da anterior Portanto não será a única resposta será sim a resposta idem p 3 1 7 E mais a única reposta correta é pois um paradoxo tratase de uma impossibilidade hermenêutica e ao mesmo tempo uma redundância pois a única resposta acarretaria o seqüestro da diferença e do tempo não esqueçamos que o tempo é a força do ser na hermenêutica E é assim porque conteduís tica exsurgindo do mundo práticoIbidem p 3 1 7 Conclui que em síntese a afirmação de que sempre existirá uma resposta constitucionalmente adequada que em face de um caso concreto será a resposta correta nem a melhor nem a única decorre do fato de que uma regra somente se mantém se estiver em confo1midade com a Constituição idem p 364 Em o que é isto Decido conforme a minha consciência Lênio Streck volta a afirmar que a resposta que propõe não é nem a única nem a melhor mas simplesmente se trata da resposta adequada à Constituição isto é uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição na Constituição mesma no sentido hermenêutico do que significa a Constituição mesma cit p 97 Idem p 84 nota de rodapé 96 Lênio Streck escreve de se ressaltar que por certo não estou afirmando que diante de um caso concreto dois juízes não possam chegar a respostas diferentes Volto a ressaltar que não estou afirmando com a tese da resposta correta adequada constitucionalmente que existam respostas prontas a priori como a repristinar as velhas teorias sintáticassemânticas do tempo posterior à revolução francesa Ao contrá rio é possível que dois juízes cheguem a respostas diferentes e isso o semanticismo do positivismo normativista já havia defendido desde a primeira metade do século passado Todavia meu argumento 1 vem para afirmar que como a verdade é que possibilita o consenso e não contrário no caso das res postas divergentes ou um ou ambos os juízes estarão equivocados 140 Nietzsche Vontade de Poder Rio de Janeiro Contraponto 2008 p 288 1 1 5 PAULO Q1EIROZ Precisamente por isso é que Günter Abel diz que não é mais a interpretação que depende da verdade mas justamente o contrário que é a verdade que depende da inter pretação pois nos processos de interpretação não se trata primariamente de descobrir uma verdade preexistente e pronta uma vez que não é possível pensar que haja um mundo préfabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua representação e espelhamento em nossa consciência141 E se existem apenas perspectivas sobre a verdade não existe por conseguinte a verdade consequentemente não existe a resposta constitucionalmente adequada ou correta etc mas apenas perspectivas sobre a resposta constitucionalmente adequa da142A resposta constitucionalmente adequadacorreta é uma ficção inútil portanto Por que o que quer que possa ser pensado como quer que seja pensado por quem quer que seja pensado sempre poderá ser pensado de diversas outras formas e por isso con duzir a resultados também diversos Quem à maneira de Narciso propõe semelhante ficção oculta o essencial eu sou a resposta correta E mais como não há conhecimento humano desinteressado visto que a vontade de conhecer já constitui ela mesma um impulso e um interesse de saber pensamos interpretamos e argumentamos estratégica e interessadamente Ademais o legal e o ilegal o justo e o injusto o correto e o incorreto não são qualidades daquilo que designamos como tal mas uma relação interação entre o sujeito e a coisa assim designada Consequentemente nada existe de legal justo ou correto em si mesmo mas apenas perspectivas sobre a legalidade a justiça e a cor reção143 141 Verdade e interpretação in Nietzsche na Alemanha org Scarlett Merton discurso editorial S Paulo 2005 p 1 791 99 142 Nietzsche escreveu há muitos olhos Também a esfinge tem olhos consequentemente há muitas verdades e consequentemente não há nenhuma verdade Vontade de poder cit p 282 143 Nietzsche escreveu até onde vai o caráter perspectivista da existência ou mesmo se ela tem algum outro caráter se urna existência sem interpretação sem sentido Sinn não vem a ser justamente absurda Unsinn se por outro lado toda a existência não é essencialmente interpretativa isso não pode como é razoável ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e autoexa me do intelecto pois nessa análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas Não podemos enxergar além de nossa esquina é uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haver por exemplo se quaisquer outros seres podem sentir o tempo retroativamente ou alternando progressiva e regressi vamente com o que se teria uma outra orientação da vida e uma outra noção de causa e efeito Mas penso que hoje pelo menos estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar a partir de nosso ângulo que somente dele podese ter perspectivas O mundo tomouse novamente infinito para nós na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações Mais urna vez nos acomete o grande tremor mas quem teria vontade de imediatamente divinizar de novo à maneira antiga esse monstruoso mundo desconhecido E passar a adorar o desconhecido como o ser desconhecido Ah estão incluídas demasiadas possibilidades não divinas de interpre tação nesse desconhecido demasiada diabrura estupidez tolice de interpretação a nossa própria humana demasiado humana que bem conhecemos Nietzsche Friederich A gaia ciência SPaulo Companhia das Letras 2009 aforismo 374 p 278 1 16 I021 PRI NCÍPIOS PENAIS Queiramos ou não e ainda que em caráter de exceção quase tudo é em tese legi timável logo também deslegitimável por meio do direito O que é verdadeiramente trágico é saber quando como e sob que condições isso é possível Como assinala Wolfgang MüllerLauter todas as interpretações são apenas pers pectivas razão pela qual não há qualquer parâmetro que permita provar qual é a mais correta e a menos correta o único critério para a verdade de uma exposição da efe tividade consiste se e em que medida ela está em condições de se impor contra outras exposições Cada exposição tem tanto direito quanto tem poder144 E o que é e quem diz qual é essa resposta constitucionalmente adequada E o que a torna a resposta adequada relativamente às demais não adequadas É certo que Lênio Streck entende existir a resposta correta não a única isto é ade quada à Constituição e não à consciência do intérprete145 chegando a defender inclu sive um direito fundamental a isso146 Mas o que seria de fato a resposta constitucional mente adequada senão aquela que o próprio intérprete juiz tribunal etc pretende como tal segundo a sua perspectiva consciência etc Como toda pretensão ao universal e portanto ao impessoal a tese da resposta correta oculta a singularidade que a produz147 Kelsen tinha razão portanto quando assinalava que todos os métodos de inter pretação até o presente elaboradas conduzem sempre a um resultado apenas possível nunca a um resultado que seja o único correto Na aplicação do Direito por um órgão jurídico a interpretação cognoscitiva obtida por uma operação de conhecimen to do Direito a aplicar combinase com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva148 Parecenos por conseguinte que podemos criticar um certo tipo de vontade v g de condenar sem prova de absolver um culpado etc mas não a vontade mesma que está na raiz de toda decisão judicial ou não inevitavelmente E por mais que consideremos uma determinada decisão interpretação arbitrária incorreta ou in justa uma coisa é certa os limites de uma interpretação são dados por uma outra interpretação Finalmente a possibilidade de decisões absurdas ou teratológicas contra le gem é em princípio necessária à democracia O que diria com efeito a doutrina da época sobre a primeira decisão solipsista que no auge do regime declarava a nu lidade do contrato de compra e venda de escravos que admitia a adoção por casais 1 44 Wolfgang MüllerLauter a doutrina da vontade de poder em Nietzsche São Paulo ANNABLUME editora 1997 p 1 3 1 1 45 O que é isto9 p 1 0 1 146 O que é isto p 84 1 47 Leon Kossovitch Signos e poderes em Nietzsche Rio de Janeiro Azougue editorial 2004 p96 148 KELSEN Hans Teoria pura do Direito 6ª ed Trad João Baptista Machado São Paulo Martins Fontes 2003 p 394395 1 17 PAULO QjEIROZ homossexuais que recusava a distinção legal entre filhos legítimos e ilegítimos que permitia a mudança de sexo etc E mais a questão fundamental não reside mais em saber se a sentença encerra ou não um ato de vontade se há ou não uma resposta constitucionalmente adequada mas na legalidade e legitimidade do controle dos atos do poder público aí incluídas as decisões judiciais O direito como as línguas nasce mais ou menos inconscientemente e se realiza e se desenvolve mais ou menos arbitrariamente por mais que os ordenamentos jurídicos tentem moldálo e sistematizálo 88 Direito e analogia É comum darse à analogia149 no direito e fora dele tratamento secundário150 por se pressupor em geral que o meio mais apropriado para a interpretaçãoaplicação do direito é a subsunção em nome da segurança jurídica principalmente Afirmase assim que a analogia só é admitida no direito penal quando for para beneficiar o réu in ba nam partem não para prejudicálo in malam partem distinguese ainda analogia de interpretação analógica que seriam institutos distintos Mas conforme vimos se um conceito surge da postulação de identidade de coisas não idênticas v g a única coisa em comum entre matar alguém e soltar balões é sua tipificação jurídicopenal seguese que a analogia não constitui um elemento aciden tal mas essencial ao conhecimento porque os juízos sobre o belo o justo ou o legal são construídos em verdade a partir de comparações de analogias isto é recorrendo se conscientemente ou não a experiências sempre novas de beleza de justiça e de legalidade uma vez que algo é belo justo ou legal em relação comparação a alguma outra coisa Nossos juízos de valor são juízos analógicos Significa dizer que a analogia está assim subjacente a nossos juízos éticos esté ticos jurídicos etc ainda quando dela não nos apercebemos de modo que quando afirmamos por exemplo que algo ou alguém é bom ou ruim partimos sempre de nos sas referênciasexperiências permanentemente em mutação sobre tais assuntos e se eventualmente somos questionados ou contestados sobre o juízo que expressamos a esse respeito não raro dizemos que não tem comparação é incomparável não há nada igual etc explicitando assim o que está subjacente aos nossos julgamentos Exatamente por isso isto é por formarmos nossos juízos a partir de experiên cias analógicas é que com frequência o que antes julgávamos belo ou justo julgamos 149 De acordo com Bobbio a analogia é um procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulamen tado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante Teoria do ordenamento jurídico Brasília UnB 1 999 p 1 5 1 1 50 Apesar de alguns autores como Bobbio reconhecerem que a analogia é certamente o mais típico e o mais importante dos procedimentos interpretativos de um sistema normativo é o procedimento mediante o qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandirse além dos casos expressamente regulamentados Teoria do ordenamento jurídico p 1 5 1 1 18 I 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS agora feio ou ultrapassado ou injusto e viceversa É que mudam nossos objetos de comparação mudam as nossas experiências mudam os nossos juízos sobre as coisas mudamos enfim nós mesmos Naturalmente que isso não significa que coisas antigas se tornem necessariamente piores ou desinteressantes com o passar do tempo embora possam se tornar ultrapassadas v g arquitetura automóveis etc e ainda quando as coisas não mudam muda nossa percepção sobre elas Mas a analogia é essencial à realização do direito por um outro motivo ao recorre rem na fundamentação de suas decisões a leis precedentes judiciais ou doutrina juí zes e tribunais a pretexto de fazerem subsunção em realidade fazem analogia pois as situações em comparação nunca são idênticas mas mais ou menos semelhantes Dito de outro modo as leis doutrina ou precedentes e situações a que se referem nunca são absolutamente iguais nem absolutamente desiguais e sim mais ou menos análogos e quando as semelhanças prevalecem sobre as dessemelhanças e isso requer um juízo de valor sempre questionável damos tratamento unitário caso contrário damos so lução diversa Com efeito não existe v g um furto nem um homicídio absolutamente idêntico a outro porque as múltiplas variáveis de tempo e espaço inclusive que sem pre envolvem tais atos tornam cada ação singular única Por isso que os casos habituais de subsunção são em verdade casos de analogia pois conforme observa Arthur Kaufmann só se poderia separar logicamente subsun ção e analogia se existisse uma fronteira lógica entre igualdade e semelhança mas tal fronteira não existe porque a igualdade material é sempre mera semelhança e a igualdade formal não ocorre na realidade existindo apenas no domínio dos números e sinais matemáticos lógicoformais151 Daí dizer Castanheira Neves que a analogia é metodologicamente um elemento da interpretação e a interpretação é normativamente um resultado da analogia152 E não é outra a conclusão de Hassemer para quem toda interpretação é analo gia pois toda interpretação toda compreensão de uma lei pressupõe a comparação do caso a ser resolvido com outros casos que imaginados ou judicialmente decididos são casos desta lei isentos de dúvida Não há interpretação sem um tertitum com parationis por mais que este seja pobre de conteúdo e que a decisão seja ainda assim inevitável Interpretação e analogia são estruturalmente idênticos153 1 5 1 Filosofia do Direito cit p 1 86 1 52 O Princípio da Legalidade Criminal Coimbra 1988 p 142143 Como escreve Stratenwerth interpre tação é um caso de pensamento analógico e a analogia é por sua vez um meio para a interpretação razão pela qual a interpretação da lei não é possível sem analogia Com efeito dado que os fatos juridi camente relevantes jamais são completamente iguais é tarefa própria do jurista descobrir suas coinci dências e suas diferenças analogia Apesar disso se demonstrada a analogia como tal não significa ainda que os casos comparáveis mereçam ser equiparados em seus efeitos jurídicos O decisivo é pois determinar se do ponto de vista em que se verifica a coincidência é legítima ou não a equiparação jutidicopenal Stratenwerth Gunter Derecho penal parte general Madrid Edersa 1982 p 38 1 53 Direito Penal Fundamentos Estrutura Política Organização e revisão por Carlos Eduardo de Olivei ra Vasconcelos Porto Alegre Sergio Fabris 2008 p 6465 1 19 PAULO ÜlJEIROZ 89 Analogia e interpretação analógica Mas o certo é que ainda hoje a doutrina distingue analogia e interpretação ana lógica afirmando como faz Damásio de Jesus que a diferença entre interpretação analógica e analogia reside na voluntas legis na primeira a vontade da norma pretende abranger os casos semelhantes por ela regulados na segunda ocorre o inverso não é pretensão da lei aplicar o seu conteúdo aos casos análogos tanto que silencia a respei to mas o intérprete assim o faz suprindo a lacuna154 De acordo com esse entendi mento haveria interpretação analógica por exemplo no art 28 II do CP quando se utiliza da expressão substância de efeitos análogos no art 71 caput quando refere e outras semelhantes etc Diferentemente haverá analogia quando não existindo previsão legal expressa o intérprete puder suprir essa lacuna recorrendo a uma lei ou precedente que trate de caso semelhante Enfim haveria analogia sempre que a lei nada dissesse expressamente sobre um dado assunto lacuna legal155 omitindose e haveria interpretação analógica quando a própria lei depois de uma sequência casuística recorresse a uma fórmula genérica interpretável de acordo com os casos anteriormente citados Mas a distinção entre analogia e interpretação analógica é ilusória porque preten de distinguir onde há identidade Sim porque tanto num como noutro caso tratase de fazer um juízo analógico simplesmente A diferença consiste unicamente nisto se a lei expressamente permitir o uso da analogia haveria interpretação analógica se não o fizer o caso seria de analogia O que ocorre portanto é sempre analogia ora expressa ora tácita mas sempre analogia isto é um juízo comparativo entre duas ou mais si tuações semelhantes para se tirar uma determinada conclusão razão pela qual a assim chamada interpretação analógica é apenas um sinônimo para analogia tácita É que interpretar analogicamente e fazer analogia são uma só e mesma coisa uma vez que se está em ambos os casos a interpretar por meio de comparações Ademais se mesmo a lei mais perfeitamente redigida demanda interpretação ain da mais evidente será a atividade interpretativa quando se tratar de omissão normativa já que maior será o esforço do intérprete para construir um resposta justa e adequada para o caso Enfim não faz sentido algum falar de interpretação na presença da lei e de integração na sua ausência O que os autores pretendem como interpretação analógica é portanto analogia com outro nome 1 54 Direito Penal Parte Geral S Paulo Saraiva 2003 p 46 1 55 De acordo com Carlos Maximiliano a analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante Hermenêutica e Aplicação do Direito Rio de Janeiro Forense 2003 p 169 120 1021 PRI NCÍPIOS PENAIS Além do mais semelhante distinção parte do pressuposto de que a interpretação jurídica é como regra um ato lógicosubsuntivo e não analógico Ocorre que a analo gia comparação um modo de inferência misto dedutivoindutivo constitui o próprio critério de determinação do direito conforme vimos Sim porque o fato e a norma o ser e o dever ser que têm de ser postos em relação recíproca no processo de determi nação do direito nunca são iguais mas apenas mais ou menos semelhantes uma vez que nunca existe uma absoluta igualdade ou uma absoluta desigualdade porque qual quer ente é igual a todos os outros pelo menos no fato de ser e distinguese ao menos pelo fato de estar numa diferente posição espacial156 Assim a pretexto de fazer subsunção lógica do fato ao tipo legal de crime o juiz em realidade faz analogia pois entre as previsões legais normas jurídicas e as ações humanas fatos sempre novas há relação de aproximação de semelhança de corres pondência Finalmente a pretendida distinção entre analogia e interpretação analógica parte da premissa equívoca de que quando da interpretaçãoaplicação o direito já está previamente dado cabendo ao intérprete a cômoda tarefa de descobrir uma suposta vontade da lei ou do legislador ignorando que em verdade o crime e o próprio di reito não existe materialmente que é socialmente construído conforme os processos de criminalização primária e secundária motivo pelo qual o juiz não descobre um sentido prévio à interpretação mas o constrói por meio dela É impossível assim estabelecer uma diferenciação entre analogia e interpretação analógica porque é impossível pensar que uma palavra descreva uma gama limitada de fatos ficando outras embora semelhantes fora dela157 Também por isso não cabe distinguir como a doutrina e a legislação ainda fazem CPP art 3º158 entre interpretação aplicação e integração do direito e entre interpre tação extensiva e analogia etc as quais devem ser superadas159 1 56 Arthur Kaufmann Filosofia do Direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 p 1 1 9 1 20 De modo similar Rosa Maria Cardoso da Cunha assinala que relativamente à proibição da analogia in malam partem há de se considerar que esta constitui um procedimento lógico e semiótico indeclinável no processo de interpretação da lei É que o direito e particularmente o di reito penal não se comunica de uma forma digital como a linguagem algébrica por exemplo O estabelecimento da significação jurídica reclama em todos os níveis raciocínios por imagens de tipo ou caráter analógico Assim quando surge um caso que os critérios estabelecidos ainda não assimilaram aos casos paradigmáticos relacionados com o tipo é necessário ampliarlhe a significação para fazer caber o novo caso O caráter retórico do princípio da legalidade Porto Alegre 1 979 p 1 04 157 Andrei Schmidt O Princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 200 1 p 1 89 1 58 Diz o art 3º do CPP que a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógi ca bem como o suplemento dos princípios gerais de direito 159 Criticamente A Castanheira Neves Metodologia jurídica cit Idem Alf Ross cit 121 PAULO Q1JEIROZ 9 CONCURSO DE TIPOS PENAIS OU CONFLITO APARENTE DE NORMAS 91 Introdução Dáse o assim chamado conflito aparente de normas ou mais precisamente con curso de tipos penais sempre que sobre um dado comportamento incide ou parece in cidir simultaneamente mais de um tipo legal de crime embora só um possa em prin cípio prevalecer Assim por exemplo sobre a conduta de eliminar a vida de alguém incidem em tese os arts 121 homicídio doloso culposo etc 123 infanticídio 124 aborto 129 3º lesão corporal seguida de morte 157 3º latrocínio 158 3º extorsão seguida de morte 213 2º estupro com resultado morte todos do Código Penal visto produzirem o mesmo resultado final a morte de alguém Em semelhante contexto não raro de difícil solução o juiz considerando as parti cularidades do caso e as circunstâncias e elementos que dizem com os tipos penais em concurso deverá decidir sobre o tipo legal que incidirá na hipótese visto que a aplica ção simultânea de mais de um violaria os princípios de legalidade e proporcionalidade ne bis in idem A ideia básica que preside o concurso é que o conteúdo do injusto e da culpabilidade de uma ação punível pode ser determinado já exaustivamente conforme uma das normas tomadas em consideração razão pela qual desaparece a necessidade ulterior de pena160 Com efeito a ser admitida a aplicação simultânea de normas penais sobre um só e mesmo fato violarseia o princípio proibitivo de dupla valoração do mesmo com portamento ne bis in idem pois do contrário haveria uma imputação multiplicada e a imposição de um castigo repetido do mesmo fato161 Mas como vimos nada impede que o agente seja concomitantemente punido em âmbitos jurídicos distintos relativamente à mesma conduta porque em tal hi pótese os fundamentos da apenação são diversos Assim por exemplo o servidor público corrupto pode ser condenado à pena de prisão à demissão e a reparar o dano respectivamente no âmbito penal administrativo e civil A análise do conflito aparente de normas visa assim a impedir bis in idem preservandose os princípios de legalidade e proporcionalidade De proporcionalidade porque se todas as nor mas em conflito fossem aplicadas simultaneamente punirseia a conduta com penas desproporcionais E de legalidade porque o agente acabaria respondendo por tipos penais em que a rigor não incorreu Naturalmente que para resolver os vários conflitos não basta a só aplicação dos princípios que serão vistos a seguir pois para a seleção do tipo exato a ser aplicada ao caso o essencial é identificar o elemento subjetivo do agente dolo ou culpa Se por 160 Jescheck Tratado cit p 670 161 Jakobs Derecho penal parte general Trad Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de Murillo Madrid Marcial Pons 1995 p 1 049 122 1 021 PRI NCÍPIOS PENAIS exemplo o autor quis matar mediante tortura responderá por homicídio qualificado pela tortura CP art 121 2º se ao contrário pretendeu torturar simplesmente ad vindo daí a morte da vítima incidirá nas penas do crime de tortura qualificado pelo resultado morte Lei nº 945597 art lº Se quis num primeiro momento torturar e de pois disso decidiu por qualquer motivo matar a vítima já torturada haverá concurso material de crimes tortura e homicídio Ademais se não agiu com dolo ou o agente responderá por crime culposo ou não responderá penalmente CP art 18 Também é importante verificar se as normas em questão protegem ou não o mes mo bem jurídico porque em caso afirmativo haverá em princípio unidade de crimes em caso negativo ocorrerá concurso de crimes normalmente Mas semelhante cri tério embora importante e indiciário da ocorrência ou não de conflito aparente não pode ser levado a extremos sob pena de inviabilizar o próprio reconhecimento da uni dade de crime Com efeito se a diversidade de bens jurídicos for conduzida às últimas consequências então não se poderia por exemplo admitir absorção do sequestro pela extorsão mediante sequestro da violação de domicílio pelo furto porque na extorsão e no furto se protege o patrimônio enquanto no sequestro e na violação de domicílio o bem jurídico protegido é a liberdade individual Finalmente não se deve confundir o concurso de normas com o concurso de cri mes CP arts 69 70 e 71 formal material ou continuado pois no conflito aparente há um único crime enquanto no concurso de crimes existem vários ainda quando o Código lhes dá tratamento unitário crime continuado ou manda aplicar uma única pena com aumento concurso formal Apesar disso o concurso de tipos e o concurso de crimes são perfeitamente compatíveis porque pode ocorrer por exemplo de reco nhecida a continuidade delitiva discutirse sobre a incidência do Código Penal ou de determinada lei especial Notese ainda que a distinção entre unidade e pluralidade de crime concurso não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual não é raro juízes e tribunais divergirem sobre o assunto ora afirmando ora negando o concurso de cnmes O concurso de tipos não se confunde tampouco com o concurso de leis no tempo visto que no primeiro dáse o concurso entre leis ainda em vigor enquanto no segundo há sucessão de leis no tempo e portanto consequente revogação total ou parcial da lei anterior pela posterior Naturalmente que não existe incompatibilidade entre o con curso de tipos e a sucessão de leis penais no tempo que podem coexistir Basicamente três princípios são admitidos pela doutrina para solucionar o conflito de tipos 1 princípio da especialidade 2 princípio da subsidiariedade e 3 princípio da consunção Alguns códigos penais a exemplo do espanhol referem tais princípios expressamente art 8º declarando que o preceito especial prevalecerá sobre o geral que o subsidiário só se aplicará quando não couber o principal e que o preceito amplo ou complexo absorverá aquele menos amplo que já fizer parte de sua descrição típica 123 PAULO ÜlJEIROZ Afirma ainda que se tais critérios forem insuficientes prevalecerá a norma que comi nar pena mais grave No entanto a grande maioria dos possíveis conflitos é perfeita mente solucionável por meio do princípio da especialidade devendose recorrer aos demais subsidiariamente Alguns autores citam ainda o princípio da alternatividade que teria aplicação quando a norma penal previsse vários fatos alternativamente como modalidade de um mesmo crime No entanto tais hipóteses constitutivas de crimes de múltipla ação não configuram concurso de normas pois em verdade há uma única norma a ser aplicada que é precisamente a que descreve a ação múltipla ou de conteúdo variado a exemplo do art 33 da Lei nº 1 134306 que prevê mais de uma dezena de formas pelas quais é possível praticar o crime de tráfico de droga sendo que o cometimento de uma ou mais ações constitui crime único v g exportar importar vender fornecer etc E a prevalência de um determinado princípio não afasta necessariamente a inci dência de outros que podem ser igualmente importantes para a solução do conflito de normas Aliás se é certo conforme se verá que aquele que realiza o tipo especial tam bém realiza o tipo geral embora a recíproca não seja verdadeira razão pela qual existe uma relação lógica entre continente e conteúdo uma vez que o tipo especial contém o tipo geral é de concluirse que o princípio da especialidade implica sempre uma rela ção de consunção Enfim toda norma especial é uma norma consuntiva mas nem toda norma consuntiva é uma norma especial Por fim há quem entenda que não obstante o reconhecimento da unidade de cri me por força da consunção o delito consumido pode ser considerado para fins de fi xação e agravamento da pena162 Temos porém que o princípio que veda a dupla sub sunção do fato impede igualmente como regra geral que o tipo absorvido possa ser tomado em conta para fins de aplicação da pena do delito que prevalecer Afinal o que não é admitido pela via direta não pode sêlo indiretamente bis in idem 92 Princípio da especialidade Dizse que uma norma é especial em relação à outra dita geral quando além dos requisitos que esta prevê contém ela outros elementos chamados especializantes ausentes na descrição do tipo penal genérico de tal modo que aquele que realiza o tipo especial realiza necessariamente o tipo geral embora a recíproca não seja verdadei ra163 Havendo pois essa relação de generalidade e especialidade a norma especial prevalecerá sobre a geral ex specialis derogat legi generali Existe portanto uma relação lógica entre continente e conteúdo uma vez que o tipo especial contêm o tipo geral164 É o que ocorre entre os crimes de homicídio norma 162 Nesse sentido Pedro Jorge Costa A consunção no direito penal brasileiro Porto Alegre Sérgio Antônio Fabris Editor 2012 163 Mir Puig Derecho penal cit p 678 164 Santos Juarez Cirino dos Direito Penal parte geral Curitiba ICPC Lumen Juris 2006 p 4 1 8 124 1 02 1 PRINCÍPIOS PENAIS geral e infanticídio norma especial em que este além de conter o matar alguém referido no art 121 do CP alude ainda às circunstâncias especiais especializantes o próprio filho sob a influência do estado puerperal e durante o parto ou logo após CP art 123 inexistentes no art 121 Igualmente há especialidade entre tipos penais qualificados e privilegiados norma especial em relação ao tipo básico norma geral de que derivam v g entre o furto simples e o qualificado por emprego de chave falsa Em geral também as leis penais especiais descrevem tipos especiais em face do pró prio Código Penal por isso que prevalecem sobre este último ordinariamente 93 Princípio da subsidiariedade Existe relação de subsidiariedade entre tipos penais quando visando a proteger o mesmo bem jurídico a lei descreve graus diversos de violação havendo assim um tipo principal e outro subsidiário O princípio da subsidiariedade pressupõe portanto a existência de um tipo principal que criminaliza a ofensa mais grave e um acessório que tipifica a ofensa menos grave relativamente ao mesmo bem jurídico Há assim uma espécie de hierarquização valorativa de bens jurídicos ou como diz Honig há diferentes proposições penais protegendo o mesmo bem jurídico em di ferentes fases de ataque165 razão pela qual a norma subsidiária soldado de reserva conforme a expressão de Hungria 166 só será aplicada quando não couber a aplicação da principal de sorte que o tipo fundamental prevalecerá sobre o secundário ex pri maria derogat legi subsidiariae Nesse sentido há relação de subsidiariedade entre os crimes dolosos e culposos entre os consumados e tentados entre os de dano e de peri go e entre os qualificados e simples hipóteses em que os tipos subsidiários culposos tentados de perigo e simples só são aplicáveis quando a conduta não puder configurar o delito principal e mais grave dolosos consumados de dano e qualificados Essa relação de subsidiariedade tanto pode ser expressa quando a lei explicita mente condiciona a aplicabilidade da norma subsidiária à inaplicabilidade da norma principal v g o art 132 do CP depois de descrever o fato comina pena de prisão de três meses a um ano se o fato não constitui crime mais grave quanto tácita quando não existindo previsão legal expressa tal decorrer de interpretação dos res pectivos tipos 94 Princípio da consunção ou absorção Existe relação de consunção ou absorção entre os tipos penais sempre que o con teúdo de um já se achar necessariamente inserido noutro razão pela qual o crime me nos amplo constitui em verdade parte da realização do tipo mais amplo Nesse caso como escreve Hungria os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie mas de minus e plus de conteúdo e continente de parte e todo de meio e fim de fração e 165 Citado por Jescheck Tratado cit p 672 166 Hungria Nelson Comentários ao Código Penal Vol I Tomo 1 Rio de Janeiro Forense 1 958 p 139 125 PAULO Ql E I ROZ inteiro167 É o que ocorre por exemplo entre o crime de dano CP art 163 e o crime de furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo art 155 4º I en tre o crime tentado e o consumado entre a violação de domicílio art 1 50 e o furto entre a lesão corporal art 129 e o homicídio art 121 entre o sequestro art 148 e a extorsão mediante sequestro art 159 hipóteses em que o crime de furto absorve o dano e a violação de domicílio o consumado o tentado o homicídio a lesão a extor são o sequestro Lex consumens derogat legi consumptae Logicamente a absorção de um crime por outro só poderia ocorrer quando o cri me mais amplo cominasse pena mais grave do que o menos amplo até porque a maior gravidade deveria ser avaliada em princípio segundo um critério objetivo a pena co minada No entanto pode ocorrer de um crime menos grave absorver um mais grave Nesse exato sentido dispõe a Súmula 17 do STJ que quando o falso se exaure no estelionato sem mais potencialidade lesiva é por este absorvido hipótese em que um crime teoricamente menos grave estelionato previsto no art 171 do CP cuja pena va ria de 1 a 5 anos de reclusão pode absorver o mais grave v g falsidade de documento público previsto no art 297 do CP apenado com reclusão de 2 a 6 anos 168 Obviamente que apesar disso um crime não pode ser absorvido por simples con travenção E para configurarse a consunção é necessário que um dos tipos legais em concur so contemple totalmente o desvalor e a reprovação que o ordenamento jurídico atribua à conduta de que se trata porque se a considera apenas em sua maior parte sendo necessária ainda a combinação de outra lei para apreciar sua totalidade não haverá em princípio concurso de tipos consunção impura169 Normalmente há relação de consunção entre um crimemeio e um crimefim mo tivo pelo qual o ante fac tum é impunível sempre que constituir uma etapa necessária da realização do tipo principal a exemplo da violação de domicílio relativamente ao furto e do porte ilegal de arma quanto ao roubo circunstanciado O mesmo ocorre em geral no caso de post factuni impunível visto implicar ordinariamente o exaurimento de um crime já consumado Assim por exemplo a condução ou a ocultação do veículo furtado ou roubado pelo próprio ladrão que não responde por receptação na modali dade conduzir ou ocultar ou o uso de documento falso pelo próprio falsário que não responde por uso de documento falso mas apenas por falsificação de documento É certo que o fato posterior post factum deixará de ser punido quando se inserir no curso normal de desenvolvimento da intenção do agente ou quando já não repre sentar maior dano para o bem jurídico anteriormente violado Assim a punição do 167 Comentários cit p 140 168 No sentido do texto Jakobs cit 169 Rosal M Cobo Dei Anton T Vives Derecho Penal parte general Valencia Tirant lo Blanc 1 996 p 162 1 26 1021 P RI NCÍPIOS PENAIS primeiro crime absorve a dos últimos170 Na verdade os atos posteriores impunes cons tituem uma forma de assegurar ou realizar um benefício obtido ou perseguido por um fato anterior sem lesionar nenhum bem jurídico distinto daquele antes atingido sem também aumentar o dano já produzido Ademais os diversos fatos devem estar numa mesma linha de progressão no ataque a um mesmo bem jurídico protegido pois do contrário já não se poderá falar de conflito de normas consunção senão de concurso de crimes v g furto e receptação por indução falsificação e posterior uso de docu mento falso falsificação de moeda com posterior introdução em circulação furto e estelionato em razão da venda pelo agente da coisa furtada etc Como se vê os fatos posteriores geralmente são mero exaurimento ou aproveitamento do crime razão pela qual não são puníveis autonomamente Finalmente há consunção nos fatos típicos acompanhantes171 que se verificam quando um resultado eventual previsto para um determinado tipo penal inclui já em si o desvalor delitivo de outro de modo que o legislador fixou a pena do delito que normalmente supõe o fato acompanhante em tese mais gravemente v g lesões leves resultantes da violência exercida no roubo e no estupro 941 Crime complexo ou composto Existe também consunção nos casos de crimes complexos ou compostos que ocorrem quando o tipo alude a mais de uma lesão são crimes que resultam enfim da fusão de mais de um tipo penal exemplo roubo art 157 que deriva da fusão de furto art 155 constrangimento ilegal art 146 latrocínio que decorre da fusão de roubo homicídio Em tais casos haverá uma única infração penal qual seja aquela resultante da união dos tipos autônomos mais ampla a qual absorverá as demais por já compreendêlas na sua descrição típica172 942 Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito Semelhantemente haverá absorção nos assim chamados crimes progressivos nos quais o agente pretendendo cometer crime mais grave passa num mesmo contexto da ação de um crime menos grave para outro mais grave violando o mesmo bem jurídico 1 70 Francisco de Assis Toledo Ob cit p 54 1 7 1 Zaffaroni Eugenio Raúl Pierangeli José Henrique Manual de Direito Penal brasileiro parte geral 4 ed São Paulo RT 2002 p 735 Fragoso Heleno Cláudio Lições de Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro Forense 1994 p 359 172 A exata situação sistemática de tais crimes é controvertida Para Jakobs tratase de uma manifestação do princípio da especialidade na modalidade especialidade em virtude da intensidade do fato típico Jakobs ob cit p 1 053 No mesmo sentido Welzel Hans Derecho Penal Aleman 4 edición Chi le Editorial Juridica de Chile 1993 p 276 Porém Regis Prado Curso de Direito Penal Brasileiro Vol I 5 ed São Paulo RT 2004 p 232233 e Fragoso Lições de Direito Penal Parte geral Rio de Janeiro Forense 1 994 p 358 entendem que a questão deve ser resolvida pela subsidiariedade implícita Já Asúa cuja classificação é adotada por Damásio de Jesus ob cit p 1 16 defende que o princípio da consunção é que é aplicável ao crime complexo 1 27 PAULO QJEIROZ v g agride a vítima objetivando matála o que de fato acontece caso em que haverá o crime mais grave homicídio e não lesão corporal existindo relação de meio lesões e fim homicídio O mesmo ocorre absorção do crime menos grave pelo mais grave na chamada progressão criminosa em sentido estrito em que o autor visa inicialmente a praticar um crime de menor gravidade e depois de conseguilo resolve continuar a agressão para consecução de um resultado mais gravoso v g quer só lesionar a vítima mas decide matála a seguir Assim a diferença básica entre crime progressivo e progressão criminosa é que nesta há uma mutação no elemento subjetivo do tipo dolo ocasionada por uma su cessão de impulsos volitivos diversos Já no crime progressivo existe unidade de de sígnios tendo em vista que a intenção do autor é única desde o início do iter criminis qual seja praticar o fato mais grave ainda que para isso tenha que cometer delitos de menor gravidade 95 Primazia do princípio da especialidade Finalmente há quem entenda como Jakobs que todos os possíveis conflitos de normas podem ser resolvidos pelo princípio da especialidade unicamente uma vez que a especialidade é uma forma de manifestação da primazia de uma lei sobre ou tra 173 a qual compreende assim quatro subdivisões 1 ª especialidade em virtude da intensidade do fato típico que abrange as formas qualificadas privilegiadas e o crime complexo 2ª especialidade em virtude de concreção da consumação ou de intensidade do resultado hipóteses de subsidiariedade 3ª especialidade relativa ao fato concomitante hipóteses de consunção e 4ª especialidade em virtude de intervenção prévia É que segundo Jakobs o mé todo para evitar dupla punição consiste em aplicar somente aquela figura do delito que regula o caso concreto no contexto mais completo método que se baseia no princípio hermenêutico de que ceteris paribus uma expressão con creta de conteúdo mais amplo abrange o menos amplo174 1 73 Jakobs Derecho penal cit p 1 053 1 74 Jakobs Derecho penal cit p 1 050 1 28 1 03 j A LEI PENAL NO TEMPO Sumário 1 Princípio da legalidade e consectários lógicos anterioridade e irretroati vidade da lei penal mais severa 1 1 Introdução 2 Hipóteses de irretroatividade 2 1 Neocriminalização novatio legis incriminadora 22 Lei nova mais severa novatio egis in pejus 23 Irretroatividade da jurisprudência 3 Hipóteses de retroatividade 3 1 Descriminalização abolitio criminis 3 1 1 Abolitio criminis temporalis 32 Lei penal mais branda novatio legis in mellius 4 Combinação de leis penais ex tertia 5 Sucessão de leis penais a lei intermediária 6 Lei temporária e excepcional 7 Irretroa tividade da lei processual 8 Irretroatividade da Lei de Execução Penal 9 Leis penais em branco 1 O Aplicação da lei e vacatio legis 1 1 Tempo do crime 1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E CONSECT ÁRIOS LÓGICOS ANTE RIORIDADE E IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS SEVERA 11 Introdução De acordo com o princípio da legalidade compreensivo da reserva legal taxati vidade e irretroatividade da lei mais severa não há crime sem lei que o defina nem pena sem cominação legal CF art XXXIX CP art 1 Mas o princípio seria gran demente inútil se a nova lei pudesse retroagir e incidir sobre fatos consumados antes da sua entrada em vigor A anterioridade e a irretroatividade da lei penal são por isso consequência lógica do princípio já que como disse Hobbes se a pena supõe um fato considerado como transgressão à lei o dano praticado antes de existir a lei que não o proibia não é uma pena mas um ato de hostilidade pois antes da lei não existe transgressão à lei1 Por isso que a Constituição e o Código Penal dispõe que não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia com inação legal de sorte que a formulação completa do princípio da legalidade compreende necessariamente a anterioridade da lei nullum crimen nulla poena sine praevia lege e a sua irretroati vidade Em consequência a nova lei só alcançará como regra fatos posteriores à sua entrada em vigor Exatamente por isso a Constituição art 5º XL e CP art 2º diz que a lei não re troagirá salvo para beneficiar o réu de modo que sempre que a lei penal dispuser des favoravelmente ao réu seja criminalizando novos comportamentos seja tratandoos mais severamente terá efeito irretroativo Contrariamente a lei retroagirá sempre que dispuser favoravelmente ao acusado seja descriminalizando o fato abolitio criminis seja tratandoo mais suavemente A razão a autorizar a exceção é já conhecida sendo o princípio da legalidade uma garantia do indivíduo acusado ou não seu fundamento político e histórico inclusive é prevenir excessos por parte do Estado no exercício do 1 Leviatã São Paulo Abril Cultural 1992 XXVIII 129 PAULO QlEIROZ poder punitivo de sorte que nas hipóteses de admissão de retroatividade não existe ofensa à pretensão garantidora que o princípio encerra Ao adotar os princípios da anterioridade e da irretroatividade das leis penais objetivase ademais evitar que os seus destinatários sejam surpreendidos por tipos penais que incriminem fatos novos ou que os agravem de modo que tais garantias constituem também uma exigência infranqueável de segurança jurídica Por fim se a finalidade principal do direito penal é a prevenção subsidiária de delitos seguese que tais infrações devem ser conhecidas por seus destinatários já ao tempo do seu cometimento e não depois haja vista que só assim podem as normas jurídicopenais advertir e prevenir 2 2 HIPÓTESES DE IRRETROATIVIDADE 21 Neocriminalização novatio legis incriminadora Antes da lei não existe violação à lei Justamente por isso sempre que a lei criar novas infrações penais novatio legis incriminadora passando a criminalizar compor tamentos que até então não o eram isto é eram jurídicopenalmente irrelevantes sua aplicação se limitará às situações consumadas a partir de sua entrada em vigor Nesses casos os novos tipos neocriminalizadores não poderão alcançar as pessoas que ante riormente à sua vigência tenham incorrido na prática de tais infrações Sua aplicação darseá em consequência exclusivamente em relação aos fatos ocorridos a partir da sua entrada em vigor Desnecessário dizer que o princípio também é aplicável à lei que crie nova contra venção a impedir a incidência retroativa 22 Lei nova mais severa novatio legis in pejus Não poderá retroagir tampouco a norma penal que de qualquer modo der trata mento mais severo a condutas já punidas pelo direito penal seja criminalizando o que antes constituía simples contravenção seja impondo disciplina mais gravosa hipótese em que se limitará a reger as infrações consumadas a partir de sua efetiva vigência Exemplo disso é a Lei de Crimes Hediondos Lei nº 807290 que elevando determi nados crimes à categoria de hediondos latrocínio extorsão mediante sequestro etc conferiulhes tratamento mais severo como por exemplo aumentando as penas co minadas dificultando a progressão de regime negando a possibilidade da concessão de graça anistia e indulto etc No mesmo sentido é em princípio a Lei 113432006 relativamente à pena cominada ao tráfico de droga de 3 a 12 anos de reclusão para 5 a 15 anos de reclusão não podendo retroagir portanto 2 Como escreve GarcíaPablos seja ou não seja inerente à própria estrutura da lei o certo é que a proibi ção de retroatividade de algum modo vem reclamada pelos conceitos de delito culpabilidade e pena e por poderosas exigências políticocriminais Derecho penal cit p 247 130 1031 A LEI P ENAL NO TEMPO 23 Irretroatividade da jurisprudência Discutese se o princípio da irretroatividade seria também aplicável à nova orien tação da jurisprudência que dá às normas penais interpretação desfavorável ao réu ou se é exclusividade da lei Imaginese por exemplo que o Supremo Tribunal Federal revendo posicionamento adotado por longos anos no sentido da falta de tipicidade de uma determinada conduta passe a considerála criminosa Perguntase então quem praticou semelhante comportamento antes da mudança de orientação jurisprudencial responderia por crime isto é a nova orientação retroagiria em prejuízo do réu De acordo com Roxin para quem a proibição de irretroatividade se refere à lei exclusivamente se o Tribunal interpreta uma norma de modo mais desfavorável para o acusado que o havia feito a jurisprudência anterior este tem de suportálo pois con forme o seu sentido a nova interpretação não é uma punição ou agravação retroativa mas a realização de uma vontade da lei que já existia desde sempre e que somente agora foi corretamente reconhecida 3 Já Odone Sanguiné sustenta com razão que a posição mais correta consiste em solucionar essa questão da perspectiva constitucional estendendo a proibição de re troatividade às alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu postura que se am para por um lado na ideia de segurança jurídica como fundamento do princípio da irretroatividade e ademais na proposta de revisão do vetusto significado da separação dos poderes por outro na harmonização dessa doutrina com o princípio de determi nação a fim de substituir a posição tradicional por uma visão superadora da pretendida distinção absoluta entre a função da lei e a função da jurisprudência penal4 É que a lei e sua interpretação escreve Sanguiné se encontram em um vínculo necessário de complementação de modo que a realidade jurídica do princípio da lega lidade só será atendida quando para determinado tipo penal vigore a mesma interpre tação que lhe era dada à época do cometimento do fato e que corresponda à verdadeira pretensão normativa5 Ademais se conforme temos sustentado o direito não preexiste à interpretação mas é dela resultado motivo pelo qual a interpretação constitui o ser do direito segue se logicamente que a lei e sua interpretação são inseparáveis logo o discurso sobre a retroatividade ou não da lei deve ser exatamente o mesmo também aqui de sorte a não ser admitida a retroatividade da nova jurisprudência contrária ao réu Afinal em úl tima análise o direito é o que os juízes e tribunais mas não só eles dizem que é visto que só é direito o que o poder reconhece como tal especialmente o Poder Judiciário Pela mesma razão alterações da jurisprudência que favoreçam o réu devem re troagir de sorte a admitir a revisão criminal inclusive Assim por exemplo a decisão 3 Derecho penal cit p 1 65 4 lITetroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal Revista Brasileira de Ciências Criminais ano 8 n 3 1 p 1 54 julset 2000 5 rretroatividade Revista cit p 162 131 PAULO ÜlJEIROZ do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 807290 quanto à vedação de progressão de regime para os crimes hediondos e afins 3 HIPÓTESES DE RETROATIVIDADE 31 Descriminalização abolitio criminis Se a intervenção jurídicopenal só se justifica quando necessária para a segurança dos cidadãos seguese que seus efeitos não podem prevalecer sempre que o Estado renunciar ao poder de punir por meio da abolição do crime abolitio criminis Assim com a descriminalização do fato todos os efeitos jurídicopenais principais e acessó rios cessam com a cessação da sua causa a norma penal incriminadora revogada Em consequência o inquérito ou o processo será arquivado sendo posto em liberdade quem se achar preso de modo que a partir da abolição do crime todos os efeitos pe nais desaparecem como se o crime jamais tivesse existido O Código Penal art 2º é claríssimo em afirmar ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória transitada em julgado Exemplo disso foi a descriminalização do adulté rio e da sedução Convém notar que a descriminalização embora resulte ordinariamente de lei nova que revoga total ou parcialmente lei anterior pode também resultar de decisão judicial sempre que o juiz ou tribunal considerar que um determinado fato não con figura crime ou contravenção a exemplo do que ocorre com a sentença que declara a inconstitucionalidade de tipos penais bem como a que adota o princípio da insignifi cância e assim decreta a atipicidade do fato Não se deve confundir a abolição do crime com a simples revogação do tipo penal incriminador É que por vezes o legislador promove a revogação de um tipo legal de crime mas preserva seu caráter criminoso noutro Exemplo disso é a recente Lei nº 120152009 que embora tenha revogado o art 214 do Código Penal atentado violento ao pudor deu nova e mais ampla redação ao artigo 213 estupro que passou a com preender o antigo atentado violento ao pudor Enfim houve simples fusão dos antigos crimes de estupro e atentado num só tipo o novo art 213 de sorte que a incriminação antes contida no revogado art 214 migrou para o atual art 213 A expressão descriminalizar abolir o crime tal como o étimo da palavra indica significa retirar de certa conduta o caráter de criminosa mas não o caráter de ilicitu de já que o direito penal não constitui o ilícito caráter subsidiário logo não pode desconstituílo consequentemente Por isso que embora não subsistam quaisquer dos efeitos penais v g reincidência permanecem todas as consequências não penais ci vil administrativa do fato como a obrigação civil de reparar o dano que independe do direito penal 132 I031 A LEI PENAL NO TEMPO 311 Abolitio criminis temporalis Alguns autores chamam abolitio criminis temporalis6 os casos em que a lei pos sibilita ao agente regularizar num prazo determinado a sua situação jurídicopenal isentandoo de responsabilidade Exemplo disso é o art 30 da Lei nº 108262003 que permüiu aos possuidores de arma de fogo não registrada regularizar no prazo de 180 dias o respectivo registro junto ao órgão competente De modo semelhante dispôs a Lei nº 1 17062008 O Superior Tribunal de Justiça STJ editou inclusive a Súmula 5 13 que dis põe a abolitio criminis temporária prevista na Lei n 108262003 aplicase ao cri me de posse de arma de fogo de uso permitido com numeração marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado suprimido ou adulterado praticado somente até 23102005 Mas não é exato falar em princípio de abolitio criminis porque a rigor não existe infração penal a punir pois o fato praticado é formalmente atípico É que o crime do art 12 da referida lei posse irregular de arma por exemplo só se realiza se o agente possuir ou mantiver sob sua guarda arma de fogo em desacordo com determinação legal ou regulamentar Exatamente por isso se de conformidade com a própria lei o sujeito vem a regu larizar no prazo legal o porte de arma o tipo não chegará a se realizar plenamente por falta de um seu elemento normativo essencial Afinal nos casos de lei penal em branco como aqui não há infração penal sempre que o agente atender à norma a que o tipo remete lei regulamento portaria etc Tratarseá portanto mais exatamente de um comportamento atípico logo não cabe falar de abolitio criminis visto que não existe crime punível A abolição de crime pressupõe logicamente o cometimento de um crime isto é fato típico ilícito e culpá vel Só haverá abolitio criminis relativamente ao agente que tendo cometido crime na vigência de uma determinada lei for beneficiado por lei posterior a exemplo da Lei nº 1 17062008 Evidentemente que a abolição do delito produz efeitos independentemente de ser definitiva ou temporária mesmo porque nem a Constituição nem o Código Penal fa zem distinção no particular nem se compreenderia que o fizessem 32 Lei penal mais branda novatio legis in mellius A norma penal retroagirá sempre que dispuser mais favoravelmente ao infrator É o que dispõe o Código Penal art 2º parágrafo único a lei posterior que de qual quer modo favorecer o agente aplicase aos fatos anteriores ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado A lei mais benigna é em princípio a 6 Rogério Greco Curso de Direito Penal Parte Geral Niterói 2009 1 1 ed p 1 13 1 33 PAULO QlJEIROZ que menos severamente incide sobre a liberdade e o patrimônio do réu7 Assim por exemplo se atenua a pena cominada ou passa a admitir determinados benefícios le gais em seu favor não permitidos anteriormente como admissão de penas alternativas progressão de regime ou que de qualquer outro modo o favoreça Naturalmente que para decidir sobre qual é a lei mais favorável poderá não ser suficiente a consideração da lei em abstrato razão pela qual o juiz terá de tomar em conta as múltiplas variáveis do caso e os resultados concretos para o autor procedendo quando necessário e cabível à individualização judicial da pena inclusive Assim por exemplo a nova Lei de Drogas embora tenha aumentado a pena cominada para o trá fico que era de 3 a 12 anos de reclusão para de 5 a 15 anos de reclusão previu que o réu primário sem antecedentes e sem envolvimento com organização criminosa fará jus à redução da pena em 16 a 23 benefício que não existia na lei anterior Logo para tais réus e somente para eles a nova lei é mais branda devendo prevalecer sobre a lei anterior Mas frisese só é mais favorável se não for admitida a combinação de leis conforme veremos mais à frente Se houver dúvida sobre qual é a lei mais favorável para o infrator quer se consi derando a norma abstrata quer concretamente nada impede apesar das opiniões em sentido contrário que se consulte o próprio acusado em cujo favor milita a garantia constitucional Aliás o Código Penal espanhol 1996 assim dispõe no caso de dúvida sobre a determinação da lei mais favorável será ouvido o réu art 2º 2 Também o nosso Código Penal Militar art 2º prevê que para se reconhecer qual a mais favo rável a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato Finalmente a definição da autoridade judiciária competente para decidir sobre a lei mais favorável dependerá do andamento do processo se estiver na fase de conheci mento competente será o juiz de primeiro grau se em grau de recurso será competen te o respectivo tribunal se o processo já se encontrar em fase de execução será com petente o juiz da execução penal conforme dispõe a Súmula 611 do STF transitada em julgado a sentença condenatória compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna Mas nem sempre a definição da autoridade judiciária competente será tão simples podendo haver necessidade de submeter a questão à apreciação do tribunal se a matéria transcender a competência dos juízes de primeiro grau inclusive do juiz da execução 4 COMBINAÇÃO DE LEIS PENAIS LEX TERTIA No caso de sucessão de leis pode ocorrer de a nova lei ser em parte favorável e em parte desfavorável ao réu hipótese que tem como exemplo recente a revogação da Lei nº 636876 pela Lei nº 1 13432006 relativamente ao tráfico ilícito de droga Com efeito apesar de a nova lei ter aumentado a pena cominada ao crime de 3 a 12 anos de 7 Antônio José da Costa e Silva Comentários cit 1 34 I031 A LEI PENAL NO TEMPO reclusão para 5 a 15 anos de reclusão passou a admitir uma causa de redução de pena que não existia na lei revogada de 16 a 23 para o réu primário sem antecedentes criminais e sem envolvimento com organização criminosa Discutese então se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da Lei 636876 revogada poderia ficar sujeito àquela pena inicial 3 a 12 anos com a redução de pena da nova lei por lhe ser mais favorável havendo posicionamento da doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos isto é contrário e a favor da combina ção 8 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam que a combinação implicaria criação de uma terceira lei ex tertia e o juiz estaria assim usurpando função própria do legislador em afronta aos princípios de legalidade e divisão de poderes Pensamos que a assim chamada combinação é em verdade um caso de retroati vidade parcial da lei já que a nova lei sempre pode ser total ou parcialmente favorável ao réu podendo inclusive ser benéfica na parte penal e prejudicial na parte processual ou viceversa Pois bem se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu é evidente que re troagirá de forma integral mas se o for em parte então o caso é de retroatividade parcial da nova lei Parece claro que se deve retroagir quando for integralmente favo rável tal deverá ocorrer com maior razão quando o for apenas em parte em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior pouco importando o quanto de benefício encerre afinal se a lei deve retroagir no seu todo quando mais branda o mesmo há de ocorrer quando somente o for em parte Ademais o Código art 2º pa rágrafo único prevê a retroatividade quando a lei posterior favorecer o agente de qual quer modo isto é incondicionalmente sempre que a nova lei acarretar alguma espécie de atenuação do castigo E se não for admitida a retroatividade parcial da lei nova negarseá vigência ao princípio constitucional da retroatividade da lei mais favorável9 Ademais aqueles que se opõem a assim chamada combinação de leis partem de uma perspectiva hermenêutica superada pois pressupõem que a interpretação depende do direito e não o contrário que é o direito que depende da interpretação afinal a 8 Admitindo a combinação Frederico Marques Francisco de Assis Toledo Damásio de Jesus Cezar Roberto Bitencourt Juarez Cirino dos Santos Andrei Schmidt entre outros Contrariamente Nélson Hungria Aníbal Bruno Heleno Cláudio Fragoso etc 9 No sentido do texto Ney Moura Teles assinala que se a Constituição Federal manda a lei penal mais benéfica retroagir sempre o que se pode afamar é que apenas o dispositivo benéfico retroage irre troativo o mais severo uma vez que a pretensão da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica e não o texto legal integral a não ser que fosse ele integralmente mais favorável Se num texto há vários dispositivos uns benéficos outros prejudiciais é claro que só aqueles retroagem Ao combinarem os dispositivos de duas leis o juiz não cria uma terceira lei mas apenas obedece ao preceito consti tucional maior que não manda a lei retroagir por inteiro mas dete1mina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier favorecer o réu Direito Penal Pai1e Geral S Paulo Atlas 2006 1 35 PAULO QEI ROZ interpretação é a forma mesma de realização do direito vide capítulo sobre o conceito de direito e sobre direito e interpretação Não existe portanto direito fora ou além da interpretação Porque a interpretação é o alfa e o ômega o começo e o fim a vida e a morte do direito Apesar disso o STJ aprovou a Súmula 501 contrária à mencionada combinação É cabível a aplicação retroativa da Lei 1 13432006 desde que o resultado da incidên cia das suas disposições na íntegra seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n 63681976 sendo vedada a combinação de leis Também assim decidiu o plenário do STF por maioria sessão de 0711112013 5 SUCESSÃO DE LEIS PENAIS A LEI INTERMEDIÁRIA Em havendo sucessão de leis penais questionase a possibilidade de aplicação de uma lei intermediária mais favorável ao réu ainda que não seja nem a lei da época do cometimento do crime nem a do seu julgamento Assim por exemplo se ao tempo da prática do delito vigorava a lei A sucedida pela lei B estando em vigor finalmente quando do julgamento a lei C sendo a lei B lei intermediária a mais favorável Em tal hipótese não há dúvida aplicase a lei mais benéfica vale dizer a lei B lei inter mediária ainda que não seja nem a lei do tempo do fato nem a do seu julgamento Enfim prevalecerá sempre a norma mais favorável independentemente de ser a lei vigente à época do crime à época do seu julgamento ou intermediária lei que vigo rou entre uma data e outra 6 LEI TEMPORÁRIA E EXCEPCIONAL O Código art 3º dispõe que a lei excepcional ou temporária embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que as determinaram aplicase ao fato praticado durante sua vigência A lei temporária é aquela cujo prazo de vigên cia vem nela prefixado e excepcional é a lei editada para atender a situações anormais ou emergenciais guerra calamidade pública etc enquanto persistirem as razões que a determinaram Diversamente das demais a lei excepcional ou temporária produz efeitos mesmo após o advento da cessação de sua vigência relativamente às infrações cometidas duran te a sua existência e não antes ou depois dela visto que antes da lei ou depois da lei ex tinção da lei não existe violação à lei Assim por exemplo se o agente praticou delito previsto numa lei temporária ou excepcional continuará respondendo mesmo depois de cessada a sua vigência ao respectivo inquérito ou processo mantida eventual prisão e quando houver todos os efeitos da sentença penal condenatória persistirão As leis temporárias e excepcionais são pois ultrativas visto que valem para além do tempo legal de sua existência A razão prática a legitimar a ultraatividade desse tipo de lei é a seguinte se tais normas ao final de sua duração perdessem sem mais o seu poder coercitivo é pouco provável que os seus destinatários as tomassem a sério e pois seriam incapazes de motiválos função motivadora da norma Justificarseia a ultraatividade em nome da 1 36 I OJ I A LEI PENAL NO TEMPO autoridade da lei razão pela qual subsistem todos os seus efeitos mesmo após a cessa ção de sua vigência relativamente àqueles crimes praticados durante a sua existência No entanto discutese atualmente a constitucionalidade não recepção do art 3º do Código que prevê a ultraatividade das leis excepcionais e temporárias10 Temos que há realmente violação ao princípio da retroatividade apesar de não ser o caso propriamente de sucessão de leis penais no tempo mas de decurso puro e simples do prazo legal de sua vigência É que o advento do termo final da lei excepcional ou temporária implica automa ticamente a descriminalização da conduta abolitio criminis e pois nenhum efeito pode produzir desde então mesmo em relação àqueles que cometeram crime durante a sua vigência tal como ocorre com as leis normalmente editadas Ademais quando o prazo legal de duração da lei sobrevém o Estado renuncia ainda que implicitamente ao poder de punir não se justificando também por isso a penalização dos infratores sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade inclusive afinal a pena já não é necessária para prevenção geral e especial de novos delitos E o só argumento prá ticoutilitário de lhes assegurar a função motivadora não é suficiente para legitimar a pretendida ultraatividade Finalmente é certo que a Constituição não previu nenhuma exceção no particular isto é nada dispôs sobre a ultratividade da lei temporária ou excepcional Notese que a discussão tem a ver não com a constitucionalidade da lei mesma excepcional ou temporária mas com a eficácia ultrativa que lhe é tradicionalmente atribuída 7 IRRETROATIVIDADE DA LEI PROCESSUAL O Código de Processo Penal art 2º dispõe que a lei processual penal aplicar seá desde logo sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei an terior Justamente por isso a doutrina considera em geral que a nova lei processual penal deve ser aplicada ao processo imediatamente podendo incidir sobre crime come tido anteriormente à vigência ainda que em prejuízo do réu Assim por exemplo se uma determinada lei passasse a considerar como hediondo crime que não o era até en tão aumentandolhe a pena cominada e além disso proibisse a liberdade provisória deveria ser aplicada imediatamente quanto à parte processual proibição de liberdade provisória embora o mesmo não pudesse ocorrer quanto à parte penal equiparação a crime hediondo com aumento de pena Também por isso a recente extinção do recurso de protesto por novo júri atingiria todos os processos em curso independentemente da data em que o delito foi praticado Parecenos porém que a irretroatividade da lei penal deve também compreender pelas mesmas razões a lei processual penal apesar do que dispõe o art 2º do Código de Processo Penal que determina a aplicação imediata da norma uma vez que deve 10 No sentido da não recepção Andrei Schmidt ZaffaroniBatista Juarez Cirino dos Santos e Gamil Fõppel 137 PAULO O EIROZ ser reinterpretado à luz da Constituição Com efeito sempre que a nova lei processual for prejudicial ao réu porque suprime ou relativiza garantias v g adota critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares veda a liberdade provisória res tringe a participação do advogado etc limitarseá a reger as infrações penais consu madas após a sua entrada em vigor afinal também aqui a lei deve cumprir sua função de garantia de modo que por norma processual menos benéfica se há de entender toda disposição normativa que importe em diminuição de garantias e por mais benéfica a que implique o contrário aumento de garantias processuais11 Contrariamente sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu v g passa a admitir a fiança amplia a participação do advogado aumenta os prazos de defesa prevê novos recursos etc terá aplicação retroativa Tratandose de normas meramente procedimentais que não impliquem aumento ou diminuição de garantias como ocorre com regras que modificam a competência ou alteram a forma de intimação terão igualmente aplicação imediata CPP art 2º alcançando o processo no estado em que se encontra e respeitados os atos validamente praticados Exatamente por isso se por exemplo for abolida a prerrogativa de foro para determinada autoridade o inquérito ou ação penal serão imediatamente remeti dos para o novo juízo ou tribunal competente respeitados os atos já praticados Se a sentença já houver transitada em julgado procederseá à sua execução pura e simples Em conclusão parecenos irrelevante a mui recorrente distinção entre lei pe nal e lei processual penal12para fins de retroatividade da lei uma vez que ambas cumprem a mesma função políticocriminal de proteção do mais débil o acusado em face do mais forte o Estado além de que o Direito é uno não podendo por isso ser garantista num momento penal e antigarantista noutro processual Dito de outro modo no que toca ao tema da retroatividade da lei o que importa numa perspectiva garantista não é a natureza jurídica da norma se penal se processual 1 1 No sentido do texto Aury Lopes Júnior Introdução crítica ao Processo Penal 4 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 Também assim Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya Introdução ao Direito Penal Fundamentos para um Sistema Penal Democrático Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 1 2 Não é exato dizer portanto com Frederico Marques Nada mais condenável que esse alargamento da lei penal mais branda porquanto invade os domínios do direito processual em que vigoram diretrizes diversas no tocante às normas intertemporais Direito Penal é Direito Penal e processo é processo Um disciplina a relação material consubstanciada no jus puniendi e outro a relação instrumental que se configura no actum trium personarum do juízo seja civil ou penal É inaceitável assim como lembra Antón Oneca a aplicação das regras do Direito Penal intertemporal ao processo penal Se a lei penal não é lei processual e a lei processual não é lei penal as regras sobre a ação penal e as condições de procedibilidade queixa representação e requisição ministerial não se incluem no cânon constitucional do art 5º XL que manda retroagir em beneficio do réu tãosó a lei penal Tratado v 1 p 258 Na linha adotada por Frederico Marques pensam ainda Edilson Bonfim e Fernando Capez Direito penal parte geral São Paulo Saraiva 2004 p 1 86 para os quais a lei processual não se submete ao princípio da retroatividade em beneficio do agente tendo aplicação imediata nos termos do art 2º do CPP ainda que o crime lhe seja anterior e a situação do acusado agravada E Tourinho Filho que conclui entrando em vigor nova lei processual penal hoje ela terá aplicação mesmo aos processos que estejam em curso pouco importando sua severidade ou brandura Processo penal São Paulo Saraiva 1998 v 1 p 1 14 138 I031 A LEI PENAL NO TEMPO penal distinção nem sempre fácil mas o grau de garantismo que encerra Afinal e como assinala Binder tanto a infração penal quanto o modo de comprovação de sua existência e aplicação da pena têm de vir previstos antes do fato que motivou a intervenção jurídicopenal a fim de que o cidadão saiba claramente o que deve e o que não deve fazer como também o que será sancionado quais são as limitações do juiz e quais são suas garantias no processo penal13 Ou seja as regras do jogo hão de ser conhecidas antes mesmo de seu início as quais não poderão por isso ser modifi cadas depois de iniciado salvo para favorecer o réu Finalmente cuidandose de normas de conteúdo misto em parte favorável ao réu e em parte não vale o que já se disse sobre a irretroatividade da lei penal sendo tam bém admitida a combinação entre as normas anterior e posterior Mas não sendo isso possível em razão do caráter unitário da alteração levada a efeito a eleição da norma aplicável ao caso deverá ter em conta o significado políticocriminal prevalecente da reforma para os interesses concretos do acusado Exemplo disso foi dado pela Lei nº 9271196 que modificando a redação do art 366 do Código de Processo Penal deter minou que quando o réu citado por edital não comparecer em juízo nem constituir advogado ficarão suspensos o processo e o prazo prescricional Assim enquanto a parte relativa à suspensão do processo é favorável ao réu por implicar aumento de ga rantia pois a redação original do art 366 previa o prosseguimento do feito no caso de citação por edital e revelia a parte alusiva à suspensão do prazo de prescrição lhe era prejudicial pois antes a prescrição corria normalmente Num tal caso a combinação de normas é impossível uma vez que a suspensão do prazo prescricional pressupõe logicamente a suspensão do processo Daí ter decidido o STF corretamente que a reforma introduzida pela Lei nº 9271196 era irretroativa pois no todo era nociva aos interesses do acusado 8 IRRETROATIVIDADE DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL O mesmo deve ser dito quanto à Lei de Execução Penal porque também aqui se trata de preservar o caráter garantidor do princípio da legalidade em seus vários mo mentos de concretização cominação investigaçãoaplicação e execução da pena de modo que sempre que as modificações forem prejudiciais ao sentenciado não poderão retroagir só incidindo em consequência sobre os crimes consumados após a sua en trada em vigor Exemplo disso foi dado pela Lei nº 107922003 que alterando a Lei de Execução Penal Lei nº 721084 introduziu art 52 o regime disciplinar diferencia do14 que consiste no cumprimento da pena em condições extremamente penosas para 13 Introdução ao direito processual penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2003 p 99 14 Dispõe o referido art 52 que a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas sujeita o preso provisório ou condenado ao regime diferenciado Nesse caso o preso será recolhido em cela individual inciso II com direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol inciso TV de modo que só poderá ficar isolado por vinte e duas horas diárias 1 39 PAULO QjEIROZ o preso regime a ser imposto exclusivamente àqueles que cometeram delito após a süa vigência e não antes sob pena de violação ao princípio da legalidade da pena Aliás aqui mais do que no processo de conhecimento importa respeitar o aludido princípio pois é na execução penal que se verifica ordinariamente o maior déficit de proteção jurídica menor grau de garantismo tal é a relativização ou inexistência mes ma das garantias contraditório defesa técnica por advogado etc que o informam E onde há maior vulnerabilidade maiores devem ser os níveis de tutela legal maior grau de garantismo conforme o princípio da proporcionalidade E os princípios devem repercutir unitariamente porque apesar da distinção direi to penal processo penal e execução penal constituem fases de um mesmo fenômeno que é o exercício do poder punitivo estatal destinados a legitimar uma forma especial de violência a pena 9 LEIS PENAIS EM BRANCO As leis penais em branco expressão que procede de Karl Binding são os tipos cujo conteúdo por ser incompleto é integrado por outra regra jurídica lei decreto portaria ou como diz Assis Toledo são as que estabelecem a cominação penal mas remetem à complementação da descrição da conduta proibida para outras normas le gais regulamentares ou administrativas15 Exemplo disso são a norma do art 269 do CP omissão de notificação de doença e as normas que tipificam o tráfico de dro gas Ambas com efeito não dizem respectivamente quais são as tais doenças de no tificação compulsória nem quais são as drogas proibidas Silenciando a esse respeito sua eficácia fica condicionada às normas emanadas do Ministério da Saúde que lhes complementam o significado e conteúdo exatos esclarecendo quais são as doenças de notificação obrigatória e quais são as drogas que determinam dependência física ou psíquica A questão que as leis penais em branco suscitam no particular é saber na hipótese de revogação das normas que as complementam lei decreto regulamento se teriam ou não efeito retroativo Em verdade semelhante questionamento não oferece maiores dificuldades Com efeito salvo a hipótese de a norma complementadora ter conteúdo temporário ou ex cepcional tal como nas situações já estudadas e pelas mesmas razões já estudadas caso em que terá efeito ultrativo a consequência da revogação será como regra o re troativo Assim se essas normas não tiverem tal caráter temporário ou excepcional terão efeito retroativo sempre que beneficiem o réu v g caso a maconha cannabis sativa deixasse de figurar no elenco das drogas ou se determinada doença deixasse de integrar o rol das enfermidades cuja notificação fosse compulsória Contrariamen te tabelas de preço em relação aos crimes contra a economia popular mesmo após a 1 5 Princípios básicos cit p 1 42 140 1031 A LEI PENAL NO TEMPO cessação de sua vigência continuarão regendo as situações consumadas durante a sua existência em face do seu caráter temporário Por fim e conforme vimos temos por inconstitucionais as chamadas leis penais em branco heterogêneas por violarem os princípios de divisão de poderes e reserva legal 10 APLICAÇÃO DA LEI E VACATIO LEGIS Discutese se seria possível a aplicação da lei mais benéfica já durante o período de vacatio isto é durante o prazo que precede à sua entrada em vigor 45 dias etc A doutrina majoritária entende que tal não é possível simplesmente porque a lei ainda não vige logo não é passível de aplicação mesmo que favorável ao réu Parecenos que a razão está com a doutrina minoritária visto que o período de vacatio legis objetiva evitar surpresas para aqueles a que se destinam as leis muito es pecialmente os infratores que vão sofrer os seus efeitos16 Portanto não há motivo para que os juízes não possam aplicála desde logo já que instituída essencialmente para proteção do indivíduo sempre que dispuser em seu favor Finalmente também se discute a retroatividade das leis inconstitucionais haven do quem defenda como Gamil Fõppel que deve ser reconhecida a retroatividade da norma penal benéfica inconstitucional já que participou da formação da consciência quanto à ilicitude do fato17 11 TEMPO DO CRIME Quando a ação e o resultado se separam cronologicamente discutese se o tempo do crime é o da ação ou o do resultado Sobre o assunto existem três teorias a teoria da ação que considera praticado o crime no momento da ação ou omissão b teoria do resultado que considera como tempo do crime o momento do resultado e c teoria mista ou da ubiquidade que considera como tempo do crime tanto o momento da ação quanto o do resultado indiferentemente O Código Penal adotou como regra a teoria da ação Com efeito o seu art 4º dis põer considerase praticado o crime no momento da ação ou omissão ainda que outro seja o momento do resultado Assim no homicídio CP art 121 tempo do crime é o mofllento em que o agente lesiona a vítima momento da ação ainda que o resultado a morte só venha a consumarse meses após Semelhantemente se o agente quando da kção era menor de dezoito anos será considerado penalmente inimputável ainda que ao tempo da morte da vítima resultado tenha atingido a maioridade penal Imagi nese ainda que o agente lesione uma vítima de treze anos que morre após completar 1 6 No sentido do texto Gamil Fõppel O princípio da legalidade com um ideal radicalmente garantista in Novos desafios do direito penal no terceiro milênio Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 E Alberto Silva Franco Código Penal e sua interpretação judicial S Paulo RT 200 1 1 7 Gamil Fõppel cit 141 PAULO QJEIROZ catorze anos de idade Nesse caso incidirá o aumento de pena de 13 aplicável ao autor de homicídio doloso contra menor de catorze anos CP art 121 4 final visto que ao tempo da ação a vítima era menor de catorze O Código porém ao tratar da prescrição CP art 11 1 transigiu com a teoria do resultado dispondo que o termo inicial da prescrição é em princípio a data da consumação do crime Justamente por isso o prazo prescricional no exemplo dado começará a partir do dia que a vítima veio a óbito e não a partir da data em que so freu a lesão Tratandose de crimes permanentes cuja consumação se estende no tempo en quanto persiste a ofensa ao bem jurídico por decisão do agente v g extorsão mediante sequestro o tempo do crime se renovará pelo período de permanência Assim se o autor menor durante a fase de execução do crime vier a atingir a maioridade respon derá segundo o Código Penal e não segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA Lei nº 806990 Quanto aos crimes continuados que em verdade são vários crimes concurso ma terial de crimes mas tratados como constitutivos de crime único atendendo à conve niência políticocriminal CP art 71 o Supremo Tribunal Federal acompanhando a doutrina majoritária editou a súmula 711 com o seguinte teor a lei penal mais grave aplicase ao crime continuado ou ao permanente se a sua vigência é anterior à cessa ção da continuidade ou da permanência razão pela qual passaram a ter tratamento si milar ao dos crimes permanentes Assim se o agente comete crime continuado duran te meses seguidos a continuação delitiva será regida no caso de sucessão de normas não pela lei que vigorava à época do primeiro crime mas do último isto é da cessação da continuidade ainda que seja a mais gravosa Com efeito e conforme Hungria se os atos sucessivos já eram incriminados pela lei antiga não há duas séries uma anterior outra posterior à nova lei mas uma única dada a unidade jurídica do crime continuado que incidirá sob a nova lei ainda que esta seja menos favorável que a antiga pois o agente já estava advertido da maior se veridade da sanção caso persistisse na continuação Se entretanto a incriminação so breveio com a lei nova segundo esta responderá o agente a título de crime continuado somente se os atos posteriores subsequentes à entrada em vigor da lei nova apresen tarem a homogeneidade característica da continuação ficando abstraídos os atos ante riores18 Esse entendimento conduz às seguintes consequências 1 se o agente praticou uma série de crimes na vigência de leis diversas todas as infrações serão regidas pela última lei ainda que seja a mais gravosa admitese a novatio legis in pejus 2 se hou ver novatio legis incriminadora a nova lei criminaliza conduta até então atípica a lei nova regerá exclusivamente os delitos cometidos na sua vigência já que até então não havia crime algum a punir 3 se houver abolitio criminis ou novatio legis in mellius a nova lei retroagirá para favorecer o réu 1 8 Comentários cit p 1 28 No mesmo sentido Frederico Marques e Damásio de Jesus entre outros 142 l ü3 I A LEI PENAL NO TEMPO Não estamos de acordo com semelhante orientação item 1 relativamente à in cidência da lei nova mais gravosa para os atos cometidos em continuidade delitiva pois ela implica uma inversão lógica e cronológica do conceito legal de continuação ofendendo o princípio da legalidade É que de acordo com o Código art 71 no de lito continuado os crimes subsequentes são havidos como continuação do primeiro e não o contrário de modo que o agente ao invés de responder por vários crimes em concurso material deve responder por um único delito o mais grave se diversos com aumento de um sexto a dois terços Portanto os crimes subsequentes só têm relevância jurídicopenal para efeito de individualização judicial da pena escolha da pena mais grave quando diversas as infrações e fixação do respectivo aumento pois o primeiro crime prevalece sobre todos os demais como se estes simplesmente não existissem exceto para efeito de aplicação da pena Por conseguinte se o autor só responde pelo primeiro crime e não pelos subsequen tes parece evidente que a lei posterior mais severa não poderá alcançálo porque se assim for inverterseá o conceito legal de crime continuado lógica e cronologicamente os últimos crimes serão os primeiros considerandose a continuação do final para o início ou seja os subsequentes prevalecerão sobre o primeiro e não o contrário o pri meiro prevalecer sobre os subsequentes como prevê a lei Exemplo se o autor pratica quatro infrações na vigência da lei revogada cuja pena cominada era de 4 a 8 anos de reclusão e uma única infração na vigência da nova lei cuja pena passou a ser de 8 a 16 anos de reclusão e tratou o delito inclusive como hediondo o autor responderá nos termos da Súmula 7 1 1 segundo a nova lei razão pela qual serlheá aplicada a pena de um crime equiparado a hediondo É que de acordo com a aludida súmula a lei penal mais grave no caso a lei nova aplicase ao crime continuado ou ao permanente se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência A súmula portanto contraria claramente o princípio da legalidade em prejuízo do réu conferindo à continuação tratamento jurídicopenal diverso mais gravoso além de lógica e cronologicamente insustentável Não bastasse isso a súmula de certo modo acaba por emprestar ao crime conti nuado tratamento legal mais severo do que aquele conferido ao concurso material de crimes Sim porque no caso de concurso material cada delito é regido pela lei vigente à época de sua consumação não podendo ser alcançado por novatio legis in pejus ao passo que agora na continuação crimes anteriores à nova lei seriam por ela atingidos Também por isso a súmula viola o princípio da irretroatividade da lei pois por meio da redefinição da continuidade delitiva permite a incidência da nova lei sobre fatos ocorridos antes da sua vigência como reconhece aliás Cezar Bitencourt19 Quanto à prescrição o problema é diverso porque no caso de concurso de crimes continuação delitiva inclusive cada crime prescreverá isoladamente como se concurso não existisse conforme dispõem o art 1 19 do Código e a Súmula 497 do STF 1 9 Tratado de direito penal Parte geral S Paulo Saraiva 2007 1 1 ed p 1 73 1 74 143 04 A LEI PENAL NO ESPAÇO Sumário 1 Introdução 2 Conceito de território 3 Lugar do crime 4 Extraterritorialidade 5 Pena cumprida no estrangeiro 6 Eficácia da sentença penal estrangeira 7 Imunidade diplomática 8 Extradição 81 Extradição x entrega 1 INTRODUÇÃO A aplicação da lei penal no espaço questão diretamente ligada ao princípio da soberania dáse naturalmente dentro dos limites do território em que o Estado é soberano e pois exerce o jus imperium Além disso sendo a lei penal um produto históricocultural não poderia tampouco pretender ter validade universal ficando sua aplicação submetida em consequência a determinadas limitações espaciais por exemplo g que aqui vivessem as leis penais chinesas ou que lá vigorassem as leis penais brasileiras Por isso o Código Penal em conformidade com a Constituição arts 1º I e 4º I consagra art 5º caput o princípio da territorialidade segundo o qual o Estado brasileiro compete apurar processar e julgar todas as infrações penais ocorridas em território nacional independentemente da nacionalidade dos envolvidos autores e vítimas Mas a adoção de semelhante princípio não se deu de forma absoluta uma vez que excepcionalmente o Código previa a não incidência da lei penal brasileira mesmo em relação à infração penal ocorrida em território nacional sempre que assim dispuser convenção tratado ou regra de direito internacional O art 5º caput é claro no particular ao estabelecer Aplicase a lei brasileira sem prejuízo de convenções tratados e regras de direito internacional ao crime cometido no território nacional Dai se dizer que o Código adotou como regra geral o princípio da territorialidade temperada Foram também adotados em caráter excepcional e complementar ou que toca à extraterritorialidade da lei vale dizer incidência da lei brasileira sobre crime praticado fora do território nacional os princípios da nacionalidade art 7º II b da proteção art 7º I a b e c universal art 7º II a e da representação art 7º II c De acordo com o princípio da nacionalidade ou personalidade o Estado sanciona segundo seu direito todos os fatos cometidos por nacionalidade ativa ou contra nacionalidade nacionalidade passiva seus nacionais sendo indiferente o lugar do cometimento Segundo o princípio da proteção ou defesa ou real o Estado castiga todos as ações que se dirijam contra seus interesses sem importar onde e por quem tenham sido cometidos O princípio universal ou cosmopolita confere ao Estado o poder de castigar todos os fatos que sejam puníveis conforme seu direito sem importar onde por PAULO Q1JEIROZ quem e contra quem tenham sido cometidos2 Finalmente pelo princípio da represen tação ou da bandeira a lei penal brasileira é aplicável aos crimes cometidos a bordo de aeronaves e embarcações privadas que se achem em território estrangeiro e aí não sejam julgados 2 CONCEITO DE TERRITÓRIO A expressão território cujo conceito jurídico não coincide precisamente com o conceito geográfico compreende todo o espaço terrestre fluvial marítimo e aéreo onde o Estado exerce a sua soberaniajurisdição De acordo com Valério Mazzuoli o território pode ser conceituado como a su perfície terrestre terra firme incluídas as águas doces que nela se encontram e as zonas marítimas sobre a qual se assenta uma dada população que exerce por meio de um governo independente a sua soberania assim como o espaço aéreo que se levanta sobre tal superfície onde têm lugar a aviação civil e militar e em relação ao qual a utilização depende de autorização estatal e o subsolo incluindose a plataforma con tinental que se estende para além das margens das águas superficiais estatais A regra universalmente aceita em relação ao subsolo é a de que ele pertence ao Estado que detém soberania sobre a superfície Esses três elementos superfície terrestre espa ço aéreo e subsolo fazem do moderno conceito de território uma realidade bastante complexa razão pela qual os internacionalistas preferem aludir ao domínio terrestre aquático e aéreo áreas em relação as quais costumase normalmente falar que o Esta do exerce a suajurisdição3 São também território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras públicas ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem bem como as aeronaves e embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada desde que se achem respectivamente no espaço aéreo correspondente ou em altomar art 5º 1 O mes mo ocorre inversamente com as aeronaves e embarcações estrangeiras se públicas são no Brasil território estrangeiro se privadas são território nacional art 5º 2º por força do princípio da reciprocidade 3 LUGAR DO CRIME Para a definição do lugar do crime o Código art 6º diversamente do que ocor reu quanto ao tempo do crime art 4º adotou o princípio da ubiquidade de sorte que é lugar do crime tanto o local da ação ou omissão quanto o do resultado indiferente mente Assim pouco importa que o crime tenha se iniciado em território brasileiro e se consumado no exterior ou viceversa pois em ambos os casos a justiça brasileira é competente para decidir sobre o assunto 2 Maurach Derecho penal cit p 1 74 3 Curso de Direito Internacional Público São Paulo RT 2008 p 400 146 lü41 A LEI PENAL NO ESPAÇO Tratandose de crime tentado cujos atos de execução tenham se iniciado em ter ritório estrangeiro o Brasil será competente sempre que aqui deveria produzirse o resultado art 6 in fine O Código Penal Militar art 6 mais completo dispõe que considerase pratica do o fato no lugar em que se desenvolveu a atividade criminosa no todo ou em parte e ainda que sob forma de participação bem como onde se produziu ou deveria produ zirse o resultado Nos crimes omissivos o fato considerase praticado no lugar em que deveria realizarse a ação omitida 4 EXTRATERRITORIALIDADE A lei penal brasileira pode também incidir excepcionalmente sobre crimes ocorridos em território estrangeiro Dessas hipóteses de extraterritorialidade da lei brasileira que pode ser incondicionada e condicionada cuida o art 7º do CP No primeiro caso a fixação da competência independe do implemento de qualquer con dição no segundo a extraterritorialidade da lei depende do atendimento de deter minados requisitos São hipóteses de extraterritorialidade incondicionada aquelas previstas no inciso 1 regidas pelos princípios da proteção letras a b e e e da justi ça universal letra d puníveis independentemente de condenação ou absolvição no exterior Eilas 1 crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da República homicídio sequestro etc ficando pois excluídos os demais crimes v g patrimo niais 2 crimes contra o patrimônio ou a fé pública da União do Distrito Federal de Estado de Território de Município de empresa pública sociedade de economia mista autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público 3 crimes contra a Ad ministração Pública por quem está a seu serviço 4 crimes de genocídio quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil São hipóteses de extraterritorialidade condicionada aquelas previstas no inciso II a b e e do 3º do art 7º cuja fixação da competência depende do implemento das condições estabelecidas nos 2º e 3 Os casos de extraterritorialidade condi cionada regemse pelos princípios da justiça universal II a da nacionalidade II b da representação II e e da proteção 3º a saber 1 crimes que por tratado ou convenção o Brasil se obrigou a reprimir 2 praticados por brasileiro 3 pratica dos em aeronaves ou embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados Nesses casos a aplicação da lei brasileira depende do implemento das seguintes condições a entrar o agente em território nacional b ser o fato punível também no país em que foi praticado c estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição d não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena e ser o fato ainda punível isto é não ter sido atingido por causa de extinção de punibi lidade prescrição decadência perdão etc Finalmente a lei brasileira aplicase ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil se além de atendidas tais condições não foi pedida ou negada a extradição e houve requisição do Ministro da Justiça 3 147 PAULO ÜlJEIROZ Tratandose de contravenção o princípio da extraterritorialidade não incide uma vez que a lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada em território nacional Decretolei nº 368841 art 2º 5 PENA CUMPRIDA NO ESTRANGEIRO Por força do princípio ne bis in idem a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime quando diversas ou nela é computada quando idênticas CP art 8º Significa dizer que o autor não cumprirá pena no Bra sil se o fizer no estrangeiro relativamente ao mesmo crime Na hipótese de a pena lá cumprida ser inferior àquela a ser cumprida aqui deverá submeterse ao tempo restante de pena Cuidandose não propriamente de execução de pena no estrangeiro que pressu põe sentença penal condenatória transitada em julgado mas de cumprimento de pri são provisória prisão preventiva etc que precede à sentença e tem natureza cautelar dáse mutatis mutandis o mesmo aplicandose o instituto da detração CP art 42 abatendose o período em que lá esteve provisoriamente preso ou internado conforme o caso 6 EFICÁCIA DA SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA Em razão do princípio da soberania a sentença penal estrangeira não tem como regra eficácia no Brasil Mas em caráter excepcional o Código admite tal possibilida de emprestandolhe eficácia de título executivo para obrigar o condenado à reparação do dano a restituições e a outros efeitos civis art 9 1 Também é possível para sub meter o sentenciado à medida de segurança nos termos do art 9º II Semelhante pos sibilidade parece ferir no entanto o princípio da isonomia pois tanto quanto a pena a medida de segurança constitui sanção penal restritiva da liberdade do sentenciado devendo em consequência submeterse às mesmas limitações e princípios A eficácia da sentença estrangeira sujeita à homologação pelo Superior Tribunal de Justiça CF art 105 I i depende a para os efeitos de reparação de pedido do in teressado b para sujeição à medida de segurança da existência de tratado de extradi ção com o país de cuja autoridade judiciária emanou a sentença ou na falta de tratado de requisição do Ministro da Justiça art 9º parágrafo único a e b E casos há em que a sentença estrangeira produz efeitos no Brasil independente mente de homologação judicial como ocorre v g com a reincidência CP art 63 e a detração art 42 É de convir por fim com Luiz Fernando Lessa que o Código Penal está grande mente defasado quanto à aplicação da lei penal no espaço pois embora o ordenamento jurídico permita atualmente a prisão e a extradição do indivíduo por vezes sem que haja condenação definitiva o Código impede que uma sentença condenatória estran geira seja homologada e executada em sua inteireza no Brasil Notese mais que o Brasil participa de diversos tratados de transferência de apenados por meio dos quais a 148 j 04j A LEI PENAL NO ESPAÇO sentença estrangeria é executada da forma em que foi prolatada no exterior isto é sem que se faça sequer um juízo de valor sobre a sua adequação ao direito brasileiro4 7 IMUNIDADE DIPLOMÁTICA Por força da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de abril de 1961 aprovada pelo Decreto nº 56435 de 8 de junho de 1965 é inviolável a pessoa do agen te diplomático isto é o chefe da Missão ou membro do pessoal diplomático da Missão e membros da família arts 29 a 37 não podendo sofrer nenhuma forma de detenção ou prisão O agente diplomático goza ainda de imunidade de jurisdição penal civil e administrativa do Estado acreditado Brasil Não é também obrigado a prestar depoi mento como testemunha É irrelevante que se trate de infração penal praticada dentro ou fora dos locais da Missão e que haja ou não relação com as funções diplomáticas Embora o próprio agente diplomático não possa renunciar à imunidade de juris dição porque não atua em nome próprio mas em nome do país acreditante o Esta do estrangeiro por ele representado pode de forma expressa renunciar à imunidade de jurisdição de seus agentes diplomáticos submetendoos à jurisdição penal do país acreditado Dizer que o agente diplomático é imune à jurisdição penal do país acreditado sig nifica mais exatamente o seguinte aque ele não responde por nenhum crime que cometa em território nacional a ação penal não pode ser intentada bque não pode sofrer nenhum constrangimento pessoal ou real resultante de infração penal crime ou contravenção que venha a cometer prisões busca e apreensão etc cque não poderá ser obrigado a depor sobre infração penal quer como autor quer como testemunha Apesar disso a infração penal pode e deve ser apurada pela autoridade brasileira competente mediante inquérito policial ou similar seja para fins de investigação e punição pelo país acreditante seja para fins de adoção das medidas cabíveis no âmbito políticodiplomático pelo país acreditado 5 A imunidade penal do agente diplomático não vale por óbvio para o próprio país acreditante estrangeiro a quem compete investigar e punir o delito praticado por um seu representante em país estrangeiro Diversa é a condição legal dos cônsules visto que a imunidade só alcança os atos de ofício razão pela qual respondem pelos crimes comuns que hajam praticado em território nacional Por gozarem de imunidade apenas quanto aos crimes praticados no 4 Persecução penal e cooperação internacional direta pelo Ministério Público Rio de Janeiro Lumen Juris 2013 p 1 4 1 5 No mesmo sentido Francisco Rezek a imunidade diplomática não impede a polícia local de in vestigar o crime preparado a infmmação sobre a qual se presume que a Justiça do Estado de origem processará o agente beneficiado pelo privilégio diplomático Direito Internacional Público São Paulo Saraiva 2008 p 1 72 149 exercício da função consular ou ao pretexto de exercerla ficam impunes por exemplo a concessão fraudulenta de passaportes a falsidade de guias de exportação entre outros Todo o resto é apurado e punível segundo a jurisdição do país acreditado 8 EXTRADIÇÃO A extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para que aí seja julgado ou cumpra pena pela prática de crime Não existe por conseguinte extradição por ilícito civil nãopenal nem extradição espontânea ou de ofício mas sempre a pedido Como regra só estrangeiros são passíveis de extradição uma vez que a Constituição art 5º LI veda em caráter absoluto a extradição de brasileiro nato embora admitida a de brasileiro naturalizado que responda por crime comum praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento com tráfico de droga e afins É terminantemente proibida a extradição de estrangeiro e por óbvio de brasileiro naturalizado por crime político ou de opinião CF art 5º LII A apreciação do pedido de extradição que se fundará em tratado do acordo de reciprocidade entre os países interessados compete ao Supremo Tribunal Federal CF art 102 I g que apreciará a legalidade formal e material do ato De acordo com o art 77 da Lei nº 681580 a extradição não será concedida quando I se tratar de brasileiro salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificarse após o fato que motivar o pedido II o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente III o Brasil for competente segundo suas leis para julgar o crime imputado ao extraditando IV a lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 um ano V o extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido VI estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente VII o fato constituir crime político VIII o extraditando houver de responder no Estado requerente perante Tribunal ou Juízo de exceção Além disso são condições para a concessão da extradição I ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao extradições expressas das leis penais desse Estado II existir sentença final de privação de liberdade ou estar a prisão autorizada por juiz tribunal ou autoridade competente do Estado requerente A extradição não se confunde com a deportação e a expulsão Com efeito a deportação é a retirada compulsória de estrangeiro do território nacional nos casos de entrada ou estadia irregular se este não se retirar voluntariamente no prazo legalmente fixado E a expulsão é a exclusão de estrangeiro que de qualquer forma atente contra 104 1 A LEI PENAL NO ESPAÇO a segurança nacional a ordem política ou social a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos inte resses nacionais Segundo o art 65 parágrafo único da Lei nº681580 a expulsão é ainda possível quando o estrangeiro a praticar fraude a fim de obter a sua entrada ou permanência no Brasil b havendo entrado no território nacional com infração à lei dele não se retirar no prazo que lhe for determinado para fazêlo não sendo aconselhável a deporta ção c entregarse à vadiagem ou à mendicância d desrespeitar proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro 81 Extradição x entrega A doutrina costuma distinguir extradição e entrega a partir dos seguintes critérios a a extradição é uma cooperação entre dois Estados soberanos enquanto a entrega é uma cooperação entre um Estado e um tribunal penal internacional a cuja jurisdição se submete mediante subscrição de tratado b qualquer pessoa nacional ou estrangeiro é passível de entrega ao TPI Tribunal Penal Internacional diversamente da extradição que só é aplicável como regra a estrangeiro c a entrega não está sujeita às restrições constitucionais e legais da extradição Na verdade a entrega é uma extradição com outro nome Tratase portanto de um instituto criado com o claro propósito de superar os obstáculos constitucionais dos países que subscreveram a criação do TPI e assim submeter também seus nacionais à sua jurisdição 151 Teoria do delito 1 01 1 INTRODUÇÃO GERAL Sumário 1 Conceito e instrumentalidade da teoria do delito 1 1 Crítica da razão téc nicojurídica 2 Funcionalismo sistema racionalfinal teleológico ou funcional 3 Evolução da teoria do delito causalismo finalismo e funcionalismo 3 1 Introdução 32 A teoria causal da ação causalismo ou naturalismo 33 A teoria final da ação finalismo 34 Funcionalismo 4 Responsabilidade penal da pessoa jurídica 4 1 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STJ 42 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STF 1 CONCEITO E INSTRUMENTALIDADE DA TEORIA DO DELITO A teoria do delito ou teoria do crime ou teoria do fato punível ocupase dos pres supostos gerais formais e materiais que devem concorrer para que um determi nado comportamento humano possa ensejar a aplicação de uma sanção penal pena ou medida de segurança Estudála é estudar as categorias sistemáticas de tipicidade ilicitude e culpabilidade bem assim os conceitos e institutos que lhes são inerentes A teoria do delito cuida portanto dos pressupostos jurídicopenais da punibilidade de uma conduta ocupase assim da interpretação sistematização e crítica dos institutos jurídicopenais A dogmática trata pois de subministrar critérios racionais e legítimos pretensa mente de imputação objetiva e subjetiva e responsabilização penal A teoria do delito é portanto uma teoria da responsabilidade penal1 Diversa é a teoria da pena que além do sentido e fins da pena trata no essencial dos critérios de individualização da sanção penal penas e medidas de segurança e sua respectiva execução A dogmática é assim uma espécie de gramática do direito penal que cuida do sig nificado dos institutos e conceitos jurídicopenais bem como das funções conexões e articulações entre esses conceitos E se presta a explicar o que é o crime e quando ele é justificável escusável e punível 1 Como escreve José Miguel Zugaldía Espinar e outros a teoria jurídica do delito é uma teoria da imputa ção isto é um instrumento conceituai que nos permite determinar juridicamente se um detenninado fato tem a consideração de delito e merece em consequência a imposição de uma sanção penal Fundamen tos de derecho penal parte especial Valencia Tirant lo blanch 2010 p 201 O que Francisco Muõoz Conde escreve a propósito da culpabilidade é válido para a teoria geral do delito a culpabilidade não é uma qualidade da ação mas uma característica que se lhe atríbui para poder imputála a alguém como seu autor e fazêlo responder por ela É pois a sociedade ou melhor o Estado representante produto da correção de forças sociais existentes num momento históríco quem define os limites do culpável e do inculpável da liberdade e não nãoliberdade Daí decorre que o conceito de culpabilidade tem um fundamento social antes que psicológico ela não é uma categoria abstrata ou ahistórica à margem ou inclusive como uns acreditam contrária às finalidades preventivas do direito penal mas a culminação de todo um processo de elaboração conceituai destinado a explicar por que e para que em um determi nado momento histórico se recorre a um meio defensivo da sociedade tão grave como a pena e em que medida se deve fazer uso desse meio Teoria Geral do Delito cit p 128 155 PAULO QJEIROZ Mas é importante perceber que ao recorrer à teoria do delito e seus conceitos o juiz não se limita a constatar um crime e aplicarlhe uma pena mas a construílo so cialmente afinal o direito e pois o crime não preexiste à interpretação mas é dela re sultado razão pela qual a interpretação da teoria do crime não é um modo de constatar ou desvelar um direito ou um crime preexistente mas a forma mesma de produção do direito e do crime2 Afinal o sentido das coisas fatos provas textos etc não é dado pelas próprias coisas mas por nós ao atribuirmos um determinado sentido num uni verso de possibilidades aí incluída a falta de sentido inclusive3 Não existem portanto fenômenos jurídicos nem jurídicopenais mas uma inter pretação jurídica e jurídicopenal desses fenômenos Consequentemente não existem fenômenos criminosos nem típicos ilícitos ou culpáveis e sim uma interpretação cri minalizante dos fenômenos e pois uma interpretação tipificante culpabilizante etc Naturalmente que dizer que em direito e em direito penal nada é dado que tudo é construído logo que o crime é um constructo significa que todo conceito a que a teoria do delito se refere também o é tais como dolo culpa nexo causal erro de tipo de proibição autoria participação etc Convém notar ainda que a teoria do delito como toda pretensão de sistematiza ção implica invariavelmente uma esquematização uma classificação de pessoas e coisas e constitui por isso um meio necessário mas insuficiente a serviço de um fim que nem sempre é alcançável ou mesmo desejável tal é o número imprevisível de variáveis que sempre a surpreendem4 Como mostra a leitura dos diversos tratados manuais e cursos de direito penal tratase de sua parte mais exaustivamente estudada e por consequência elaborada Mas esse estudo pelo seu caráter geral foi tradicionalmente marcado por excessiva abstração a ponto de se desvencilhar quase por completo da realidade social a que deveria se destinar e regular como se a dogmática penal constituísse um fim em si mesmo5 Tal excesso teria ainda como efeito colateral o franco desprestígio de tema 2 É o que a criminologia crítica chama de criminalização secundária 3 Como observa Roberto Machado o conhecimento é antropomórfico não provém da essência das coi sas não se pode dizer que corresponda à essência das coisas a verdade é antropomórfica não contém nenhum ponto que seja verdadeiro em si real e válido universalmente independentemente do homem Nietzsche e a verdade S Paulo Graal 2002 p 1 02 De modo semelhante Flávio Kothe todo conhe cimento é subjetivo por mais que se procure tomálo objetivo Ele é tanto mais arbitrário quanto mais ele crê ser o puro fato Interpretações montam os fatos constituem a natureza do fato O modo de enquadrar o fato depende da leitura que se faz do problema Como que se constitui o texto do problema mediante a leitura que dele se faz e essa leitura não é técnica embora o modo de resolver a questão utilize elementos técnicos mas não apenas técnicos As leituras montam o texto que está sendo lido Técnicas são meios não fins e nem começo Ensaios de semiótica da cultura cit 4 Talvez por isso ou também por isso Nietzsche escreveu desconfio de todos os sistematizadores e os evito A vontade de sistema é uma falta de retidão Crepúsculo dos ídolos S Paulo Companhia das Letras 2006 p 13 5 Como assinala Roxin fruto de um ponto de partida positivista chegounos um sistema classificató rio na forma de uma pirâmide conceituai de modo bastante análogo ao sistema de plantas de Lineu a 156 I O J I 1 NTRODUÇÃO GE RAL sumamente importante a teoria da pena Ainda hoje a doutrina lhe dá tratamento cla ramente marginal No entanto é preciso não perder de vista que a teoria do delito tem um papel ins trumental e auxiliar porque existe e se destina a resolver conflitos de interesses tendo declarada vocação pragmática Por conseguinte deve estar sempre orientada para a solução de problemas sociais reais pois o direito penal não é uma ciência de professo res mas uma ciência de casos Mir Puig Além disso o sistema como assinala García Pablos não é um estado final de elaboração dogmática mas um momento desta não um fim mas um meio flexível provisório aberto ao problema que não se justifica por si mesmo nem por sua coerência ou rigor lógico mas por seus resultados e funções6 Determinante portanto há de ser sempre a solução da questão de fato7 O papel fundamental da dogmática não é enfim tornar possível a mais sofisticada resposta jurídicopenal mas sim criar as condições de produção de decisões justas adequadas e constitucionalmente fundadas E é importante notálo porque a doutrina penal brasileira é fortemente influenciada pela sofisticada doutrina penal alemã não raro excessivamente abstrata sutil e pouco pragmática Não por outra razão Kai Am bos assinala enfaticamente que até agora a dogmática e a ciência jurídicopenal de língua alemã não tiveram nenhuma influência prática na configuração de uma Parte Geral de direito penal internacional e em absoluto do direito penal internacional Mais como acertadamente critica Lenckner se ela está caracterizada por uma ex traordinária e em parte interminável diferenciação e refinação do instrumento dog mático então é evidente que o estado da discussão resultará para o observador estran geiro pouco compreensível sobretudo se provém do common law sistema jurídico que forjou tenazmente o direito penal internacional8 Em suma a melhor teoria não é ou não é necessariamente a que oferece a melhor sistematização mas a que conduz a uma solução justa do caso concreto razão pela qual uma boa teoria é aquela capaz de reduzir e solucionar problemas adequadamente e não a que se perde em sutilezas e os multiplica A teoria do delito apesar de ser um exercício lógico de casos hipotéticos9 há de ser julgada segundo os seus resultados e não de acordo com a sua coerência ou rigor sistemático Um sistema que conduz ao absurdo deve ser revisto substituído ou simplesmente abandonado Também por isso não raro o direito tem de recorrer a soluções ad hoc construção erguese da massa dos elementos do crime através de sucessivas abstrações feitas extrato por extrato até chegar ao conceito superior e genérico da ação A causa pela qual um sistema fechado surgido de tal maneira nos afasta da solução de nosso problema ele isola a dogmática por um lado das decisões valorativas políticocriminais e por outro da realidade social ao invés de abrirlhe os caminhos até elas Política criminal e sistema jurídicopenal trad Luis Greco Rio de Janeiro Reno var 2000 p 2223 6 Derecho penal cit p 413 7 Jescheck Tratado cit p 1 76 8 A parte geral do direito penal internacional São Paulo RT 2008 p5960 9 A síntese é de Juarez Tavares 157 PAULO QlJEIROZ Consequentemente a interpretaçãoaplicação dos institutos jurídicopenais isto é interpretação das categorias dogmáticas tipicidade ilicitude e culpabilidade há de ser feita criticamente com vistas à justa solução do caso concreto à luz dos fundamentos objetivos e princípios próprios do modelo constitucional de direito Aliás seria ingê nuo supor que a técnica jurídica fosse bastante para se decidir justamente sim porque a formação técnicojurídica só pode oferecer na melhor das hipóteses isso uma de cisão técnica Mas uma decisão técnica não é uma decisão justa ou ao menos não o é necessariamente em particular aqueles que acompanham mais de perto as decisões do tribunal do júri sabem que os jurados embora leigos em direito não raro decidem com mais justiça do que os juízes togados É que se para o juiz técnico importa pri meiramente a técnica para o juiz leigo interessa primordialmente a justeza das deci sões por vezes valendose inclusive de argumentos insustentáveis do ponto de vista estritamente dogmático Dito de outro modo decisões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas assim como decisões tecnicamente incorretas não são decisões necessariamente injustas Parece inclusive que no fundo os grandes juízes de direito e promotores de justi ça tanto quanto os advogados talentosos diferentemente dos meros burocratas à se melhança dos poetas e músicos virtuosos não se tornam nascem e a técnica para tais pessoas parece constituir apenas um instrumento de aperfeiçoamento de habilidades qualidades inatas preexistentes à formação técnica a qual não é em si mesma garantia de justiça É que uma boa interpretação na arte como no direito mais do que técnica e razão requer talento e sensibilidade Em conclusão a dogmática penal deve ser não um sistema pretensamente neu tro10 e tecnocrata mas pragmática e políticocriminalmente orientado um sistema portanto aberto à realidade social e suas necessidades e não cerrado em si mesmo não podendo a justiça e a eficácia das soluções dos problemas concretos fundamenta remse exclusivamente em deduções lógicas ou silogismos11 de modo que o método da simples subsunção deve ceder lugar ao da ponderação de interesses Semelhante perspectiva está a exigir em consequência uma prudente revalorização do pensamen to aporético ou problemático12 bem como a adoção de um modelo integrado de cri minologia política criminal e direito penal pois representam três momentos incin 1 O Como assinala Mir Puig um dos aspectos mais criticáveis da fundamentação tradicional da te01ia do delito fortemente positivista é a pretensão de apresentar todos os conceitos como não disponíveis va lorativamente mas como exigências sistemáticas puramente Por isso entende que é preciso rechaçar tal perspectiva que encobre autênticas decisões valorativas através de um aparato conceituai aparen temente asséptico e neutro pois a grande maioria dos conceitos que intervêm na teoria do delito são intensamente valorativos O neokantismo chamou a atenção para a dimensão valorativa das ca tegorias da teoria do delito mas não o seu significado político Desde os anos 70 reconhecese que a construção teórica do delito deve partir da função políticocriminal do Direito Penal funcionalismo Porém a Política Criminal depende de cada modelo de Estado Derecho penal cit p 108109 1 1 GarcíaPablos Derecho penal cit 1 2 GarcíaPablos Derecho penal cit p 391 e 414 1 58 IOI I I NTRODUÇÃO G E RAL díveis da resposta social ao problema do crime um momento explicativoempírico a criminologia um decisório a política criminal e um instrumental direito penal13 Mas politizar a dogmática não significa que o juiz não deva obediência à lei e sim que tem de ser interpretada e que toda interpretação é um complexo labor valora tivo dentro do marco dos direitos fundamentais positivos constitucionais e internacio nais14 De todo modo a forma como é estruturada a teoria do delito pressupõe uma de terminada orientação políticocriminal razão pela qual os conceitos e institutos ju rídicopenais v g dolo e culpa autoria e participação etc são em última análise configurações de uma certa perspectiva política inevitavelmente Finalmente ao assinalar à dogmática jurídicopenal um papel instrumental e au xiliar não se pretende ignorar ou rechaçar sem mais a sua importância pois como afirma Gimbernat Ordeig quanto menos desenvolvida é a dogmática penal mais im previsíveis serão as decisões dos tribunais dependendo a absolvição ou a condenação dos réus do azar e de fatores incontroláveis subtraindo o direito penal à irracionalida de à arbitrariedade e à improvisação15 11 Crítica da razão técnicojurídica A tecnicização do direito e por consequência a tecnicização daqueles que operam com o direito visou a atender a uma demanda de segurança jurídica por se pressupor que as questões complexas e difíceis de que cuida a dogmática jurídica contemporânea deveriam competir a especialistas advogados promotores juízes enfim pessoas com formação especializada A técnica do direito e dos seus operadores respondeu assim a uma mesma pretensão de segurança e correção das decisões a evitar a improvisação e o domínio das paixões na administração da justiça16 A tecnicização representou o triunfo da razão no direito De acordo com Welzel a ciência sistemática dá base para uma administração da justiça uniforme e justa pois só o conhecimento das relações internas do direito im pede o acaso e a arbitrariedade É que a renúncia a uma teoria do delito tanto gene ralizadora como diferenciadora em favor de uma valoração individual qualquer são palavras de Claus Roxin faria retroceder a ciência penal a vários séculos ou seja 1 3 GarcíaPablos Derecho penal cit p 406 14 Femández Carrasquilla Concepto Proemio cit 1 5 Tiene futuro la dogmática jurídicopenal Bogotá Ed Temis 1 983 p 2 7 e 1 58 1 6 Segundo Saio de Carvalho o homem teórico forjado na cultura helênica ocidental por Sócrates narcotizado pela busca da verdade atribuiu ao saber científico a capacidade de distinguir o erro de se parar essência e aparência No entanto este otimismo na razão sistematizadora ofuscou a pluralidade dos fenômenos existentes na realidade e as infinitas formas de interpretálo ou seja impediu perceber inúmeras formas de manifestação das verdades de verdades marginais que transpõem os horizontes da moral Antimanual de Criminologia Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 p 1 791 80 1 59 PAU LO QlJEJROZ àquela situação de acaso e arbitrariedade O sistema portanto implica segurança pre visibilidade e certeza conclui GarcíaPablos17 Apesar disso a tecnicização não se deu de forma absoluta porque ainda existem aqui e ali instituições jurídicas cuja composição toca a leigos em direito a exemplo do tribunal do júri a quem compete decidir alguns dos crimes mais importantes os cri mes dolosos contra a vida homicídio doloso etc Mas a tecnicização e profissionalização no direito têm uma série de limitações e pois acarretam vantagens e desvantagens 1 Uma primeira questão diz respeito à própria especialização isto é os juristas são realmente especialistas isto é peritos nos assuntos de que tratam18 Parecenos que em grande parte a especialização dos juristas é um mito Sim porque são chamados a se manifestar sobre praticamente tudo e portanto sobre temas os mais diversos e nos quais é ou pode ser ignorante imprudência técnica de médicos engenheiros etc sistema financeiro etc por vezes assumindo o papel de economistas de administradores ou de todos conjuntamente Não raro a maior especialização do jurista é assim um simples preconceito por que apesar de sua formação técnica numa área específica a lei e o direito tem em tese competência para todo e qualquer assunto dada a onipresença do fenômeno jurí dico medicina psiquiatria finanças etc são paradoxalmente especialistas sem espe cialidade Exatamente por isso certas interpretações jurídicas podem eventualmente parecer ridículas aos olhos de um autêntico especialistaperito Além disso tem razão Feyerabend quando afirma que não especialistas frequente mente sabem mais do que os especialistas e deveriam portanto ser consultados19 2 Outra questão é que decisões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas assim como decisões tecnicamente incorretas não são necessa riamente decisões injustas Imaginese que a esposa queira matar seu marido em virtude dos maustratos que sofre sistematicamente para tanto adiciona veneno na sua refeição a qual por desgraça vem a ser provada pelos filhos que morrem Pois bem de acordo com a técnica fria do Código Penal houve um homicídio doloso consumado contra o marido que está vivo e que voltaria a viver com ela tempos depois Enfim tratase de uma tragédia real lida como ficção São também exemplos de decisão tecnicamente correta mas nem por isso justa a sentença que absolve o réu confesso por questões formais a que decreta a extinção da punibilidade prescrição decadência anistia etc a que impede a rescisão da coisa julgada contra o réu confesso etc 1 7 Derecho Penal Parte general Madrid Universidad Complutense 1995 p 386 As citações anteriores constam do mesmo livro e página 1 8 Uso a expressão jurista no sentido de pessoa versada na lei 19 Contra o Método S Paulo Editora UNESP 2007 p 17 160 IOi l I NTRODUÇÃO GERAL Convém notar ainda que o sistema penal está assentado sobre uma estrutura eco nômica e social profundamente desigual e por isso é arbitrariamente seletivo e assim recruta a sua clientela entre os grupos mais vulneráveis a revelar que a pretensão de justiça está grandemente comprometida desde a sua concepção Em sua majestática igualdade dizia Anatole France a lei proíbe tanto ao rico quanto ao pobre dormir em baixo das pontes esmolar nas ruas e furtar pão 20 E isso sem falar na descontextualiza ção e despolitização dos conflitos que resultam da tecnicização Assim pode ocorrer inclusive de ser aconselhável não apenas ignorar determina da regra por mais racional mas adotar a regra oposta21 É que a questão fundamental não reside em produzir decisões tecnicamente perfeitas mas decisões minimamente justas e razoáveis22 Afinal e conforme assinala Castanheira Neves uma boa inter pretação não é aquela que numa perspectiva hermenêuticoexegética determina cor retamente o sentido textual da norma é antes aquela que numa perspectiva prático normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto23 Quanto às decisões tecnicamente incorretas mas nem por isso injustas bastaria lembrar certas decisões do Júri formado que é por leigos e cujos jurados são chama dos a decidir não segundo a lei mas conforme a consciência e os ditames da justiça CPP art 472 algo um tanto distinto 3 Também por isso distinção entre técnica e justiça seguese que uma boa for mação técnicojurídica não constitui garantia de profissionais Uuízes promoto res advogados etc justos mesmo porque podem ser não obstante a excelência técnica corruptos preguiçosos insensíveis covardes desonestos etc E uma boa interpretação na arte como no direito além de técnica e razão requer talen to e sensibilidade É que tais atividades demandam habilidades que estão mui to além da simples técnica maturidade experiência coragem capacidade de trabalho24 E decidir não é exclusividade dos juízes afinal todos nós decidimos 20 Citado por Gustav Radbruch Introdução à ciência do direito S Paulo Martins Fontes 1 999 p 1 07 2 1 Paul Feyerabend Contra o Método S Paulo Editora UNESP 2007 p 3738 22 Como ensina Castanheira Neves a linha de orientação exata só pode ser pois aquela em que as exigências de sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fecham numa autossuficiên cia a implicar também a autossubsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante e antes se abrem a uma intencionalidade materialmente normativa que na sua concreta e judicativadecisória realização se oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas mas que ao mesmo tempo as pro blematize e as reconstitua pela sua experimentação concretizadora Não é outro o sentido da inter pretação enquanto problema normativo em que portanto também estarão presentes as duas grandes coordenadas da racionalidade jurídica o sistema e o problema Metodologia Jurídica cit p 1 23 23 Metodologia jurídica Coimbra Coimbra editora 1 993 p 84 24 Já Radbruch afirmava que o novo direito penal não poderá vingar sem um juiz totalmente novo Exi ge portanto uma inversão da formação criminalista O que vale para o juiz em geral vale particular mente para o juiz penal para meio centavo de doutrina deveria corresponder um real de conhecimento da natureza humana e da vida Por isso a formação do futuro juiz penal não poderá ser uma formação meramente jurídica deverá estenderse a técnica criminal psicologia criminal teoria carcerária antes de tudo também experiência prática em instituições de todos os tipos Tudo isso é necessário para o 161 PAULO QJEIROZ permanentemente como filhos irmãos pais profissionais membros de órgão de classe etc 4 É certo ainda que as decisões estão de um modo geral predeterminadas ou precondicionadas por nossos preconceitos e portanto na sua origem prescin dem da formação técnicojurídica de sorte que um conhecimento formal do direito parece servir apenas para justificar decisões tomadas a partir de certas experiências e prejuízos que independem da técnica e que lhe precedem neces sariamente Enfim a interpretação é o resultado do seu resultado o meio inter pretativo e pois a forma técnicojurídica só são escolhidos depois do resultado já estabelecido25 decidimos primeiro classificamos depois 5 Não infrequentemente os técnicos do direito a doutrina em especial se põem a criar e sofisticar conceitos e institutos com absoluta independência da realida de sem nenhuma relevância prática ou mesmo teórica ou acadêmica A técnica que deveria ser assim um meio a serviço da justiça convertese em um fim em si mesmo por meio de um diálogo às vezes um monólogo entre diletantes do direito que se ocupam de certas extravagâncias e elegem os temas considerados importantes e lançam por assim dizer a moda no direito 6 Outro problema grave reside no ensino jurídico que ligado a um modelo pe dagógico autoritário no mais das vezes privilegia a memória a repetição e a uniformidade de pensamento em prejuízo da inteligência da imaginação e da diversidade e assim desencoraja a formação crítica e aniquila a individualida de 26 Falta com frequência o essencial a formação de espíritos capazes de pen sar por conta própria mesmo porque ensinar não é só transmitir informação mas criar as condições para produção do conhecimento 27 Não surpreende assim que ensinaraprender direito significa hoje basicamente preparar alguém para ser aprovado em concurso público e pois obter um emprego estável e bem remunerado de modo que o bom aluno o bom profissional é aquele que obtém aprovação em concurso público concurso que em geral se limita a cobrar informação de leis e códigos28 e indiretamente estimula a subserviência e o conser juiz penal mas de modo algum suficiente pois afinal o bom juiz penal o é de nascença O coração bondosamente compreensivo e a mão que conduz com firmeza que não lhe podem faltar não lhe poderão ser dados por nenhuma fonnação Introdução à ciência do direito S Paulo Martins Fontes 1 999 p 123 25 Radbruch Gustav citado por A1ihur Kaufmann Filosofia do Direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2004 p 1 2 1 26 E a ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas não rígidos imitadores de padrões compo1iamentais estabelecidos Feyerabend cit 27 Paulo Freire Pedagogia da Autonomia Paz e Terra S Paulo 2004 Freire chama isso de concepção bancária da educação que consiste em transmitir info1mação sem nenhum senso crítico Pedagogia do oprimido S Paulo Paz e Terra 2004 28 Saio de Carvalho chama a atenção inclusive para o fato de que os cu1Tículos e livros didáticos de di reito penal são pensados e estruturados a partir da disposição dos temas e dos institutos apresentados 162 IO I INTRODUÇÃO G E RAL vadorismo Por consequência o bom juiz o bom promotor é também aquele que se conforma com a orientação dominante ditada pelo tribunal ou instituição a que per tence E o êxito na carreira jurídica é um continuum desse processo de domesticação que precede à formação jurídica inclusive Não é preciso dizer o quanto essa cultura da lei e da ordem favorece a legitimação de estruturas elitizadas de poder instituições tribunais conselhos facilmente criticá veis e eventualmente extinguíveis fosse outro o ambiente 7 Numa confusão mais ou menos consciente entre lei e direito ignorase que o direito assim como justiça ética estética etc seja em última análise um conjunto móvel de metáforas e metonímias associadas ao que julgamos bom e razoável e que por isso tem conteúdo grandemente indeterminado afinal o direito e o torto não preexistem à interpretação mas são dela resultado Pressu põese enfim que a interpretação depende da lei e do direito e não o contrário que é a lei e o direito que dependem da interpretação Exatamente por isso a lei por mais clara pode ser interpretada de formas diversas e portanto conduzir a resultados também diversos 2 FUNCIONALISMO SISTEMA RACIONALFINAL TELEOLÓGICO OU FUNCIONAL Um sistema assim formulado e orientado é claramente teleológico ou funcional visto perseguir por meio da dogmática meio a realização da justiça criminal no caso concreto fim segundo uma dada concepção políticocriminal relativamente aos fins da Iena29 Pois bem semelhante perspectiva de orientar a dogmática políticocriminalmen te devese a Claus Roxin que a propôs pela primeira vez em sua obra Kriminalpolitik und Strafrechtssystem30 Política criminal e sistema de direito penal de 1970 E os defensores dessa orientação estão de acordo são palavras de Roxin em rechaçar o ponto de partida do sistema finalista e consideram que a formulação pelo Código Penal sendo certo que a codificação determina o conteúdo programático dos cursos Antimanual cit p 24 29 Para uma crítica ao funcionalismo Juarez Tavares Teoria do crime culposo Rio Lumen Juris 2009 30 Nela defende Roxin que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas políticocrimi nais introduziremse no sistema do direito penal de tal forma que a fundamentação legal a clareza e previsibilidade as interações harmônicas e as consequências detalhadas desse sistema não fiquem a dever nada à versão formalpositivista de proveniência lisztiana Submissão ao direito e adequação a fins políticocriminais não podem contradizerse mas devem ser unidas numa síntese da mesma for ma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis mas compõem uma unidade dialética uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material e tampouco pode utilizarse da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito afirmando mais adiante que a unidade sistemática en tre política criminal e direito penal também deve ser realizada na construção da teoria do delito é somente o cumprimento de uma tarefa que é colocado a todas as esferas da ordem jurídica Política criminal cit p 20 e 22 163 PAULO QJEIROZ do sistema jurídicopenal não pode vincularse a realidades ontológicas prévias ação causalidade estruturas lógicoreais senão que única e exclusivamente deve guiarse pelas finalidades do direito penal 31 Mas o próprio Roxin reconhece que tal ponto de vista não introduz algo de absolutamente inovador pois parte de postulados neokantianos mas avança no sentido de substituir a algo vaga orientação neokan tiana aos valores culturais por um critério de sistematização especificamente jurí dicopenal as bases políticocriminais da moderna teoria dos fins da pena 32 Em consequência cada categoria do delito tipicidade ilicitude e culpabilidade deve ser observada desenvolvida e sistematizada sob o ângulo de sua função políticocri minal 33 O funcionalismo pretende unir assim a teoria do delito à teoria da pena ou inte grar política criminal e dogmática penal temas tradicionalmente tratados de forma separada como se nenhuma relação mantivessem entre si ao menos para a doutri na 34 De acordo com esse ponto de vista o sistema de direito penal há de estar estru turado teleologicamente atendendo a finalidades valorativas35 é dizer as finalidades que constituem o sistema de direito penal só podem ser de tipo políticocriminal já que os pressupostos de punibilidade devem ser orientados segundo os fins do direito penal motivo pelo qual as categorias básicas do sistema tradicional tipici dade ilicitude e culpabilidade se apresentam como instrumentos de valoração polí tica 36 Mas se é certo que por um lado a perspectiva funcional constitui um avanço em face do pensamento tradicional causalista neokantista finalista ou misto uma vez que junta a teoria do delito à teoria da pena37 por outro incerta é a sua exata reper cussão na estrutura da teoria do delito tantas são as concepções políticocriminais 3 1 Derecho penal cit p 203 32 Roxin Derecho penal cit p 203 33 Política criminal cit p 29 34 Digo ao menos para a doutrina por considerar que o legislador e os juízes em geral notadamente o tribunal do júri diferentemente da doutrina sempre se guiou por motivos pragmáticos buscando sem pre resolver prioritariamente situações concretas e nesse sentido sempre foi funcional sobretudo se se tiverem em conta no que se refere ao legislador as múltiplas causas de extinção de punibilidade CP art 107 35 Roxin Derecho penal cit p 2 1 7 36 Roxin Derecho penal cit p 2 1 721 8 37 Dilo claramente Roxin o direito penal é muito mais a forma através da qual as finalidades político criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica Se a teoria do delito for construída neste sentido teleologicamente cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmáti ca abstrataconceituai herdada dos tempos positivistas Um divórcio entre construção dogmática e acertos políticocriminais é de plano impossível e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmáticopenal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências políticocriminais estas em regras jurídicas da lex lata ou ferenda é um processo em cada uma de suas etapas necessário e importante para a obtenção do socialmente correto Política criminal cit p 82 164 I O J l I NTRODUÇÃO GERAL sobre o papel do direito penal ou tantos são os funcionalismos inclusive porque como observa Mir Puig o problema da função do direito penal constitui um tema inevitavel mente valorativo e opinável38 No particular Roxin entende em conformidade com a sua teoria dialética unificadora da pena que os direitos humanos e os princípios do Es tado Social integram as valorações políticocriminais que devem constituir a espinha dorsal do sistema 39 Em consequência teremos perspectivas funcionais liberais ou conservadoras conforme sejam as funções liberais ou conservadoras cometidas ao direito penal Daí se falar atualmente de um funcionalismo moderado Roxin e seguidores que parte da teoria dialética unificadora e de um funcionalismo radical ou sistêmico adotado por Jakobs e outros que partem da teoria da prevenção geral positiva ou integradora de inspiração sistêmica aquele de corte liberal esta conservador40 Por último a configuração e o papel a ser desempenhado pela dogmática e cada uma de slJrns categorias sistemáticas dependerão por igual do ponto de partida que se adote41 Devese ressaltar finalmente com Sílva Sánchez que a corrente dogmática que hoje é denominada funcionalista ou teleológica não é mais que o produto da acen tuação dos aspectos teleológicos valorativos já presentes na concepção dominante não constituindo algo absolutamente novo e que ameace destruir toda a dogmática tradicional42 O próprio Roxin reconhece que não se deve superdimensionar a diver gência pois apesar das mudanças dialéticas de direção tais sistemas se encontram numa linha de desenvolvimento contínuo as categorias fundamentais se mantiveram desde o naturalismo até hoje apesar de todas as modificações de conteúdo a que fo ram submetidas43 38 Función de la pena y teoria dei delito en e Estado Social y Democrático de Derecho Barcelona Bosch 1 982 p 1 5 39 Roxin Funcionalismo cit p 232 No mesmo sentido Greco em sua Introdução a esta obra p 64 sustenta que a política criminal legítima não pode ser do tipo lei e ordem ou abolicionista mas a po lítica social do Estado Democrático de Direito que adscreve ao Direito Penal uma função de tutela subsidiária de bens jurídicos através da prevenção geral e especial sempre com respeito absoluto aos direitos e garantias constitucionalmente asseguradas 40 Como o reconhece o próprio Jakobs ao se referir a Baratta que tem sua formulação como conserva dora e Smaus que a tem como própria de uma justiça classista Derecho penal cit p 2 122 nota de rodapé 4 1 Sobre a distinção entre o seu sistema e o de Jakobs Roxin assinala que a diferença essencial entre os meus esforços no plano dogmático e sistemático e os objetivos de Jakobs é que eu pretendo converter em categorias dogmáticas e soluções de problemas jurídicos os ideais orientadores de um Estado de Direito liberal e social enquanto que devido ao ponto de partida sistêmicoteorético de Jakobs não constituem dados prévios nenhum conteúdo nenhuma finalidade de política criminal Sobre a evolução da ciência juspenalista alemã no período posterior à guerra Universidade Lusíada 2 1 de março de 2000 42 Aproximación cit p 67 43 Funcionalismo cit p 2 1 1 165 PAU LO QJEIROZ 3 EVOLUÇÃO DA TEORIA DO DELITO CAUSALISMO FINALISMO E FUNCIONALISMO 31 Introdução A forma como se encontra hoje sistematizada a teoria do delito devese funda mentalmente a dois grandes sistemas o causalista ou naturalista e o finalista os quais travaram exaustivo debate sobre o conceito de ação humana considerada por ambos como questão fundamental para a correta sistematização da teoria do delito A partir de 1970 surgiu conforme vimos um novo sistema chamado funcional ou teleo lógico que parece assumir aos poucos status de dominante 32 A teoria causal da ação causalismo ou naturalismo Para a teoria natural da ação ou causalista que como sugere o nome pretendia submeter o direito penal ao método próprio das ciências naturais regidas pela lei da causalidade desenvolvida por Von Liszt44 Beling e também Radbruch a vontade hu mana compreendia duas partes distintas uma parte externa objetiva que corresponde ao processo causal movimento corporal natural mecânico da ação e outra interna subjetiva que corresponde ao conteúdo final da ação A ação parte externa é portanto segundo essa teoria o resultado de um pro cesso puramente causal Nesse sentido Radbruch escreve que há de adotar aquele conceito amplo de ação que exige unicamente a causalidade da vontade e que remete completamente à culpabilidade o problema de qual era o conteúdo do querer45 Mas não quer isso dizer que os causalistas fossem a favor da responsabilidade penal objeti va porque em verdade simplesmente remetem a verificação do conteúdo da ação para outro momento o da culpabilidade a parte interna ou subjetiva Em consequência tipicidade e ilicitude expressariam juízos puramente objetivos causais ao passo que a culpabilidade ao contrário encerraria um juízo subjetivo quando então se examinaria o conteúdo final da ação Também por isso dolo e culpa elementos subjetivos integra riam a culpabilidade que corresponde assim à relação psicológica entre o autor e seu fato concepção psicológica da culpabilidade A base desse sistema é portanto o conceito de ação entendida de maneira total mente naturalística como movimento corporal ação em sentido estrito e modificadora do mundo exterior resultado unidos pelo nexo causal e uma vez verificada a presen ça de uma ação cumpriria examinar a seguir se concorriam os predicados de tipicida de ilicitude e culpabilidade questão que distinguia necessariamente entre elementos objetivos e subjetivos46 44 Para Liszt a ação é mudança do mundo exterior referível à vontade humana isto é causação do re sultado por um ato de vontade entendido como movimento corpóreo voluntá1io isto é com tensão contração dos músculos determinada não por coação mecânica mas por ideias ou representações e efetuada pela intervenção dos nervos Tratado cit p 193 e 1 98 45 Citado por Welzel Derecho penal alemán cit p 46 46 Jescheck Tratado cit p 1 82 166 I O I I I NTRODUÇÃO GERAL O sistema acaba então com a seguinte feição conforme síntese de Luís Greco o tipo compreende os elementos objetivos e descritivos a antijuridicidade o que houver de objetivo e normativo e a culpabilidade o subjetivo e descritivo O tipo é a descrição objetiva de uma modificação no mundo exterior A antijurídicidade é definida formal mente como contrariedade da ação típica a uma norma do direito que se fundamenta simplesmente na ausência de causas de justificação E a culpabilidade é psicologica mente conceituada como a relação psíquica entre o agente e o fato47 Com semelhante formulação chegase então como se vê a um quadro extre mamente formal das características do comportamento humano que devem integrar a estrutura do conceito de crime entendendose a ação naturalisticamente o tipo obje tiva e descritivamente a antijurídicidade objetiva e normativamente e a culpabilidade subjetiva e descritivamente48 33 A teoria final da ação finalismo Já para a teoria final da ação criação de Welzel a ação humana é o exercício de uma atividade final a ação é por isso uma conduta final e não apenas causal49 A finalidade escreveu Welzel ou o caráter final da ação se deve ao fato de que o homem graças ao seu saber causal pode prever dentro de certos limites as conse quências possíveis de sua atividade eleger em consequência fins diversos e dirigir sua ação conforme seu plano Por isso a finalidade é vidente a causalidade cega50 sendo isso que distingue uma ação humana de um evento natural Por conseguinte o conceito de causalidade não foi abandonado com o finalismo mas simplesmente lhe foi acrescentado o elemento finalidade ou seja substituiua como diz Assis Toledo por uma causalidade dirigida51 Assim por exemplo quem se dispõe a matar elege os meios adquire a arma a ser utilizada adota a melhor forma de levar a cabo a empreitada criminosa toma os cuidados para realizála com sucesso etc sendo que a causalidade é apenas uma parte desse complexo processo Em consequência com o finalismo dolo e culpa são deslocados da culpabilidade para a tipicidade já que é a finalidade da ação que dirá por exemplo se estamos diante de um tipo legal de delito ou outro v g se a intenção é matar existe homicídio se é apenas ferir haverá lesão ou ainda se estamos perante um fato típico ou não como regra só são puníveis as ações dolosas uma vez que do ponto de vista puramente causal tais condutas em nada se distinguem A doutrina finalista implica assim con trariamente ao sistema causalista uma nova subjetivação do injusto e uma crescente dessubjetivação e normativização da culpabilidade52 47 Luís Greco Introdução à dogmática funcionalista do delito Revista Jurídica Porto Alegre ano 48 p 36 jul 2000 48 Jescheck Tratado cit p 1 83 49 Welzel Derecho penal alemán cit p 39 50 Derecho penal alemán cit p 3940 5 1 Princípios básicos cit p 95 52 Roxin Funcionalismo cit p 200 167 PAULO QJEIROZ Mas se ação é o exercício da atividade final como explicar a estrutura dos crimes culposos Cláudio Brandão responde a isso dizendo que existe sim nesses crimes uma vontade dirigida a um fim só que o fim será conforme o direito de modo que a reprovação nos crimes culposos não recai na finalidade do agente mas nos meios que o agente elegeu para a consecução de um fim53 No entanto parece que o próprio Welzel não estava suficientemente convencido de semelhante explicação visto que como ob serva Luzón Pefía em sua última etapa Welzel propôs inclusive ainda que de modo fugaz substituir o conceito de ação final por ação cibernética na qual o que conta é o controle da vontade presente tanto nos fatos dolosos quanto nos culposos54 O sistema finalista não pode explicar tampouco a estrutura dos crimes omissivos visto que o omitente não detém o controle causal da ação sendolhe reprovado ao con trário precisamente a não realização de uma conduta no sentido de evitálo De todo modo apesar das diferenças causalistas e finalistas concordam num pon to fundamental partem de um conceito ontológico de ação isto é préjurídico que pertence ao mundo do ser da realidade55 Há quem considere inclusive que no fundo não há diferença alguma entre o conceito causalista e finalista de ação56 34 Funcionalismo Em 1970 surge como assinalado com a obra de Claus Roxin Kriminalpolitik und Strafrechtssystem política criminal e sistema de direito penal o funcionalismo que com uma marcada preocupação pragmática e como reação à excessiva abstração do fi nal ismo em especial ao seu ontologismo estruturas lógicoreais ou materiais da ação isto é prévias ao direito pretende orientar a dogmática penal segundo as funções polí ticocriminais cometidas ao direito penal prevenção geral e especial 53 Teoria jurídica do crime Rio de Janeiro Forense 2000 p 26 54 Curso cit p 253 Este autor afinna ainda que o conceito final de ação responde a um modelo de masiado racionalista da conduta humana limitandose às ações mais perfeitamente elaboradas as planificadas consciente e controladamente para um objetivo sendo pois excessivamente restrito já que deixa fora muitas formas de ação p 254 55 Como observa Greco o sistema finalista tenta superar o dualismo metodológico do neokantismo negando o axioma sobre o qual ele assenta o de que entre ser e dever ser existe um abismo impos sível de ultrapassar A realidade para o finalista já traz em si uma ordem interna possui uma lógica intrínseca a lógica da coisa sachlogik O direito não pode flutuar nas nuvens do dever ser uma vez que o que vai regular é a realidade Deve portanto descer ao chão estudar essa realidade submetêla a uma análise fenomenológica e só após haver descoberto suas estruturas internas passar para a etapa da valoração jurídica Os conceitos científicos não são variadas composições de um material idêntico e avalorado mas reproduções de pedaços de um complexo ser ôntico ao qual são imanen tes estruturas gerais e diferenças valorativas que não foram fruto da criação do cientista Welzel Introdução Revista cit p 39 56 Assim Gimbernat Ordeig ou seja para Welzel existe ação sempre que se persiga um fim sendo indiferente qual o fim que se persegue Apesar de meus esforços não consigo ver diferença alguma entre este conceito de ação e o mantido desde sempre pela doutrina causalista para a qual há ação quando se quer algo sendo indiferente o que seja este algo Estudios de derecho penal Madrid Tecnos 1990 p 1691 70 168 lül I INTRODUÇÃO GERAL De acordo com Roxin sob a bandeira do conceito de ação a dogmática penal penetrou em domínios jurídicos que lhe são estranhos e o conceito de ação tal como formulado por causalistas e finalistas não serve para absolutamente nada fora do direi to penal e mesmo em relação ao direito penal tem importância teórica secundária e carece de qualquer importância prática 57 No sistema funcionalista roxiniano a teoria do delito está assim estruturada o tipo formulado conforme o princípio da legalidade e tendo por função básica a pre venção geral de delitos motivo pelo qual uma ação é considerada punível indepen dentemente da situação concreta e do seu autor salvo situações excepcionais passa a desempenhar o seguinte papel a cada tipo deve ser interpretado segundo o fim da lei teleologicamente isto é de maneira que os comportamentos legalmente proibi dos sejam completamente compreendidos e que o efeito motivador preventivogeral se mostre livre de lacunas b uma prevenção geral eficaz pressupõe a determinação taxatividade da lei com a maior exatidão e fidelidade ao sentido literal possíveis c no âmbito da tipicidade será também analisada a presença dos requisitos que autori zam a imputação objetiva do resultado Em consequência a necessidade abstrata da pena sob o aspecto da prevenção geral e o princípio da culpabilidade são os pontos de vista políticocriminais que regem o tipo excluída nesse contexto a prevenção especial que é estranha ao tipo uma vez que pressupõe um autor concreto que aqui não desempenha papel algum58 De notar ainda que no sistema teleológicofuncional a categoria da tipicidade enriquece cada vez mais com a adoção e agora vasta lite ratura da moderna teoria da imputação objetiva que tem em Roxin e Jakobs seus principais expoentes Já na categoria do injusto fato típico e ilícito a ação típica concreta é analisada segundo o aspecto da autorização ou da proibição levandose em conta todos os ele mentos reais da situação particular que passa a ser moldado políticocriminalmente por três funções a solucionar colisão de interesses de forma relevante para a punição de um ou mais envolvidos no fato b servir como ponto de apoio para as medidas de segurança e outras consequências jurídicas c ligar o direito penal à totalidade do or denamento jurídico integrando as valorações decisivas deste uma vez que não é uma categoria específica do direito penal mas do direito como um todo59 Finalmente na categoria da responsabilidade expressão compreensiva da culpabi lidade e necessidade preventiva interessa saber se o autor individual merece concreta mente punição pelo injusto realizado de sorte que no campo dos pressupostos da pu nição a responsabilidade se apresenta como a realização dogmática da teoria dos fins da pena dirigindose não ao fato mas ao seu autor uma vez que se pergunta a respeito de sua necessidade individual de pena60 57 Problemas fundamentais cit p 9192 58 Roxin Derecho penal cit p 235 59 Roxin Derecho penal cit p 235236 60 Roxin Derecho penal cit p 241242 169 PAU LO QlJEIROZ 4 RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA Reinava absoluto até recentemente o princípio societas deinquere non potest as sociedades não podem delinquir contrário à possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica Diversas legislações porém à vista do aumento da chamada crimi nalidade empresarial e com o propósito de prevenila e reprimila mais eficazmente têmna admitido a exemplo da Inglaterra Estados Unidos Holanda França e Dina marca61 Afirmase assim com Franz von Liszt que quem pode firmar contratos pode também firmálos fraudulentamente62 Entre nós a Constituição à semelhança dessas legislações estabeleceu que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores pessoas físicas ou jurídicas a sanções penais e administrativas independentemen te da obrigação de reparar os danos causados art 225 3º No mesmo sentido dispôs o art 3º caput da Lei nº 960598 Lei Ambiental que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa civil e penalmente conforme o disposto nes ta Lei nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado no interior ou benefício da sua enti dade A adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica é fora de dúvida portanto Apesar disso alguns autores entendem que a Constituição não chegou a admitila63 Mas nada há na Constituição especialmente no dispositivo citado que ampare tal posicionamento Na verdade tudo sugere justamente o contrário da tese sustentada por tais autores pois o que se quis realmente foi submeter todos pessoas físicas e jurídi cas à lei penal e não só à lei administrativa ou civil indistintamente A Lei nº 960598 se limitou pois a regulamentar a Constituição Além do mais o problema da responsabilidade penal da pessoa jurídica é em princípio um problema de direito infraconstitucional seja porque a Constituição não a proibiu nem expressa nem tacitamente seja porque a explícita referência ao crime ambiental não exclui in clusive a possibilidade de ampliação dessa responsabilidade 6 1 Cf Shecaira Responsabilidade penal da pessoa jurídica São Paulo Revista dos Tribunais 1998 62 Tratado cit t l p 1 9 1 63 Nesse sentido René Ariel Dotti Miguel Reale Júnior Sheila Jorge Selim de Sales e Luiz Regis Prado que escreve textualmente embora ambíguo o texto não há falar aqui porém em previsão de responsabilidade criminal das pessoas coletivas Aliás o dispositivo em tela referese claramente a condutaatividade e em sequência a pessoas físicas ou jurídicas Dessa forma vislumbrase que o próprio legislador procurou fazer a devida distinção através da correção significativa mencionada Curso de Direito Penal S Paulo RT 2005 p 302 Também assim Cezar Bitencomi para quem apesar dessa previsão constitucional não houve em verdade pretensão de consagrar a responsabi lidade penal da pessoa jurídica pois a obscura previsão do art 225 3º da Constituição Federal relativamente ao meio ambiente tem levado alguns penalistas a sustentar equivocadamente que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica No entanto a responsabilida de penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual Manual cit v 2 p 21 170 l ü l l I NTRODUÇÃO GERAL E tampouco há aí violação ao princípio da responsabilidade penal subjetiva CF art 5 quer porque não existem normas constitucionais inconstitucionais Bachof64 quer porque a responsabilidade penal da pessoa jurídica é uma exceção à regra quer porque semelhante previsão constitucional não importa inevitavelmente em responsa bilidade objetiva ou sem culpa quer porque como exceção que é constitui um modo à parte especial de imputação e pois sujeita a critérios distintos de responsabilização Além disso a Lei Ambiental condicionou a responsabilidade penal da pessoa ju rídica ao cometimento de uma infração penal por decisão do seu representante e em benefício da empresa afastando em princípio a alegação de responsabilidade penal objetiva ou sem culpa Ainda assim duas objeções poderiam ser feitas contra tal inovação conforme po sição adotada nas edições anteriores e agora revista A primeira de caráter político criminal a segunda de cunho dogmático Políticocriminalmente semelhante dispositivo violaria o princípio da proporcio nalidade pois tendo em vista os fins preventivos gerais e especiais da pena tal res ponsabilidade seria desnecessária e inadequada sobretudo porque as sanções admi nistrativas já existentes seriam bastantes para combater os atos abusivos praticados por empresas se compararmos aliás as sanções previstas nos artigos que tratam das sanções penais e administrativas verificaremos que são essencialmente as mesmas implicando aparentemente bis in idem65 Apesar da coincidência em parte das sanções penais e administrativas não há porém bis in idem em virtude da diversidade de fundamentos da punição no direito administrativo a infração administrativa no direito penal a infração penal crime as quais estão sujeitas a pressupostos e requisitos distintos de apuração E a semelhança de sanções que parece ser cada vez mais frequente no direito contemporâneo não implica por si só dupla apenação pelo mesmo fato Aliás no essencial não é diversa a situação das infrações administrativas penais etc praticadas por funcionários públi cos passíveis igualmente de pena administrativa penal etc de suspensão ou perda do cargo entre outras Poderseia objetar ainda que se com as medidas administrativas já previstas não são atingidos os fins preventivos desejados apesar da menor formalidade e maior 64 Bachof Otto Normas Constitucionais Inconstitucionais Trad José Manuel Cardoso da Costa Reimpressão da Ed de 200 1 Coimbra Livraria Almedina 2008 65 As penas aplicáveis às pessoas juridicas são multa suspensão parcial ou total de atividades interdi ção temporária de estabelecimento obra ou atividade proibição de contratar com o Poder Público bem como dele obter subsídios subvenções e doações além de prestação de serviço à comunidade arts 21 a 23 Já as sanções administrativas art 72 cujo rol é mais extenso são multa simples e diária apreensão de animais destruição ou inutilização do produto suspensão de venda e fabricação do produto embargo de obra ou atividade demolição de obra suspensão parcial ou total de ativida des além de restritivas de direito suspensão eou cancelamento de registro licença ou autorização perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais proibição de contratar com a Administração etc 171 PAULO QlEIROZ presteza que as presidem é improvável que tais finalidades sejam atingidas por meio do processo penal que é em geral mais demorado mais burocrático e cercado de ga rantias mais rigorosas Quanto a isso cabe redarguir que não é rara a omissão ou ineficiência corrup ção inclusive dos órgãos administrativos incumbidos da repressão das infrações ad ministrativas a justificar também por isso a pronta intervenção Uurídicopenal do Ministério Público e do Judiciário no particular ainda que subsidiariamente Enfim a intervenção penal está justificada em virtude do fracasso ou insuficiência dos instru mentos civis e administrativos de prevenção e controle existentes a legitimar essa sua intervenção subsidiária É certo ainda que com alguma frequência crimes ambientais e outros são prati cados por empresas que em virtude de sua complexa estrutura tornam difícil senão impossível a identificação das pessoas físicas responsáveis pela infração Não é pois o caso de violação ao princípio da proporcionalidade em razão da necessidade teórica e prática principalmente do direito penal no particular Já do ponto de vista dogmático poderseia afirmar que estando estruturado e destinado a reger a vontade humana a pessoa física e suas motivações exclusivamen te o direito penal ao menos como ainda hoje o conhecemos seria incompatível com essa responsabilidade de sorte que penalmente a pessoa jurídica não poderia ser sujei to ativo de uma ação que seja típica ilícita e culpável66 Faltarlheia enfim capacidade de ação De acordo com Gracia Martín por carecer de capacidade de ação e portanto de realizar ações típicas o critério de imputação do fato à pessoa jurídica não pode ter caráter jurídicopenal tendo natureza bem diversa como risco objetivo benefício en riquecimento sem causa reafirmação do direito de terceiros de boafé afirmação da validez da aparência jurídica etc critérios que são em todo caso estranhos ao direito penal67 E mais não seria propriamente a pessoa jurídica que celebraria contratos uma vez que simplesmente a eles se vincularia os quais em verdade seriam celebrados pe las pessoas individuais que atuam como seus agentes68 Nesse sentido Gracia Martín distinguindo entre sujeito da ação e sujeito da imputação sustenta que no caso das pessoas jurídicas sujeito da ação e sujeito da imputação são sempre e inevitavelmente 66 De acordo com Gracia Martín rebatendo Tiedemann Brender e Hirsch que defendem a responsabi lidade penal da pessoa jurídica todos os argumentos desenvolvidos em seu favor remetem constan temente à pessoa física e com isso demonstram que só esta a pessoa humana pode ser realmente destinatária da norma penal por ser sujeito de uma infração e de uma sanção La cuestión de la res ponsabilidad penal de las personas jurídicas in Responsabilidade penal da pessoa jurídica em defesa da imputação subjetiva São Paulo Revista dos Tribunais 200 1 p 66 67 La cuestión in Responsabilidade cit p 45 68 Rodriguez Mourullo apud Gracia Martín La cuestión in Responsabilidade cit p 43 172 1 0 1 1 I NTRODUÇÃO G ERAL distintos pois estas só podem atuar por meio de órgãos e representantes é dizer as pessoas físicas sujeitos da ação69 Em consequência não podendo praticar uma ação não podem realizar um fato típico ilícito e culpável Por isso é que todo o aparato de conceitos e institutos jurídi copenais hoje existente seria incompatível com a responsabilidade penal da pessoa jurídica Assim por exemplo a ideia de dolo de descriminantes putativas de legítima defesa de erro de proibição de coação moral etc Finalmente se é função do direito penal motivar seus destinatários a atuarem con forme o direito quer em caráter geral prevenção geral quer em caráter individual prevenção especial seguirseia que só a pessoa humana dotada de capacidade de discernimento e autodeterminação poderia ser sujeito ativo de crime visto que só os seres humanos podem ouvir e entender as normas só eles seriam passíveis de motiva ção e portanto de cometer crimes70 Temos porém que todos os argumentos de caráter dogmático são perfeitamente superáveis Inicialmente porque se a pessoa jurídica é sujeito de direito pouco importando se se trata de ficção ou realidade pode ser ipso facto sujeito de direito penal visto que o direito penal antes de ser penal adjetivo é direito substantivo tendo assim uma estrutura comum Exatamente por isso a distinção entre os modos de responsabilização jurídica pe nal e nãopenal não é qualitativa mas quantitativa Também por isso a diferenciação entre o ilícito civil e o penal entre a sanção civil e penal não preexiste à interpretação mas é dela resultado Por isso que os critérios de imputação penal e nãopenal não são essencialmente mas acidentalmente diversos conforme razões de conveniência políti cocriminal Quanto à objeção relativa aos fins da pena cabe falar de prevenção especial no sentido de evitar a reiteração reincidência de novas infrações pela empresa condena da e de prevenção geral negativa no sentido de a cominaçãoexecução da pena servir de advertência para outros possíveis infratores empresas E mais a função do direito 69 Escreve textualmente Gracia Martín No caso das pessoas jurídicas ao contrário sujeito da impu tação e sujeito da ação têm que ser sempre e irremediavelmente diferentes pois aquelas só podem atuar através de seus órgãos e representantes é dizer as pessoas físicas sujeitos da ação Pois bem a meu juízo aquilo que é imputado imediatamente à pessoa jurídica são em primeiro lugar os efeitos jurídicos produzidos pela ação do órgão ou do representante por exemplo dos efeitos jurídicocivis do contrato celebrado imediatamente pela pessoa física que representa a jurídica o que talvez possa coincidir em seus elementos naturalísticos com a descrição do tipo objetivo do fato punível Porém o elemento portador da possibilidade de imputação jurídicopenal é em qualquer caso só o exercício da vontade em sentido psicológico e no processo de sua formação Se a ação é concebida como eu entendo como exercício da atividade finalista e a omissão como não realização de uma ação finalista então é evidente que a pessoa jurídica carece de capacidade de ação no sentido do Direito Penal La cuestión in Responsabilidade cit p 4 1 42 70 Assis Toledo Princípios básicos cit p 9 1 173 PAULO QLlEIROZ penal é a função de todo o direito que é a proteção subsidiária de bens jurídicos sem pre que as outras formas de prevenção e controle social se revelarem insuficientes E do ponto de vista da prevenção é muito mais razoável e eficaz intervir sobre a empresa fazendo cessar a atividade lesiva do que intervir sobre o indivíduo que eventualmente a representa cuja punição poderá resultar absolutamente inútil prin cipalmente se lhe tocar um papel secundário na empresa ou já houver dela se desliga do Além disso as pessoas físicas são facilmente substituíveis mantendose incólume a empresa criminosa E também não é justo punir penalmente o mais fraco indivíduo isentando de responsabilidade penal o mais forte a empresa legitimando assim a arbitrária seletividade do sistema penal Finalmente não procede a distinção entre sujeito da ação e da imputação porque quem fala pela pessoa jurídica pessoa jurídica é isto é quem a representa pessoa físi ca não atua em nome próprio mas em nome da empresa representada v g quem age em nome do Estado é o próprio Estado Franz von Liszt tinha razão portanto quem pode firmar contratos pode firmálos fraudulentamente e pois firmálos criminosa mente E por ser um modo distinto e autônomo de imputação a responsabilidade penal da pessoa jurídica pode inclusive existir isoladamente independente da responsabili dade da pessoa física eventualmente corresponsável ao contrário do que tem decidido o STJ Ademais a Lei Ambiental não condicionou a responsabilidade penal da pessoa jurídica à da pessoa física apenas ressalvando que as duas formas de imputação não se excluem Com efeito o art 3º parágrafo único da Lei nº 960598 dispõe que a res ponsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas autoras coautoras ou partícipes do mesmo fato Não se trata portanto de concurso necessário mas de concurso eventual de pessoas Em verdade a responsabilidade penal da pessoa jurídica constitui uma forma especial de imputação diversa das pessoas físicas a exigir por isso um tratamento penal próprio eventualmente também uma legislação própria com critérios próprios penais e processuais penais de responsabilização aí incluídos os crimes praticáveis pela pessoa jurídica os critérios especiais de individualização judicial da pena além do rol das pessoas jurídicas possivelmente excluídas desse tratamento penal especial v g determinadas pessoas jurídicas de direito público Precisamente por isso não é suficiente que a lei preveja sem mais a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica É necessário ainda estabelecer os crité rios objetivos e subjetivos de imputação e individualização judicial da pena conforme as peculiaridades da pessoa jurídica inclusive para darlhe conformação constitucional e afastar as críticas políticocriminais e dogmáticas que lhe são ordinariamente feitas Enfim a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica politicamente recomendável e dogmaticamente possível quebrou uma tradição e ao fazêlo o legis lador deixou de estabelecer os conceitos e critérios básicos penal e processual penal de apuração dessa nova forma de responsabilização como se fosse possível aplicar à 174 I O I I NT RODUÇÃO G ERAL empresa conceitos como dolo legítima defesa personalidade do réu etc próprios da pessoa física No essencial a dogmática relativa aos crimes praticáveis pela pessoa ju rídica está ainda por ser construída 41 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STJ No Superior Tribunal de Justiça a admissão da responsabilidade penal da pessoa jurídica está praticamente consolidada relativamente aos crimes previstos na Lei nº 960598 crimes ambientais Mas o STJ só a tem reconhecido quando há dupla imputação à pessoa jurídica e à física simultaneamente não podendo haver imputação isolada isto é somente à em presa Com efeito de acordo com o Ministro Félix Ficher no julgamento do Resp nº 889528SC DJU de 18062007 admitese a responsabilidade penal da pessoa ju rídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício uma vez que não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física que age com elemento subjetivo próprio O precedente abaixo resume bem o estado atual da questão Criminal REsp Crime Ambiental praticado por pessoa jurídica Responsabilização penal do ente coletivo Possibilidade Previsão constitucional regulamentada por lei federal Opção política do legislador Forma de prevenção de danos ao meioam biente Capacidade de ação Existência jurídica Atuação dos administradores em nome e proveito da pessoa jurídica Culpabilidade como responsabilidade social Corresponsabilidade Penas adaptadas à natureza jurídica do ente coletivo Acu sação isolada do ente coletivo Impossibilidade Atuação dos administradores em nome e proveito da pessoa jurídica Demonstração necessária Denúncia Inepta Recurso Desprovido 1 A Lei ambiental regulamentando preceito constitucional passou a prever de forma inequívoca a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meioambiente III A responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambien tais advém de uma escolha política como forma não apenas de punição das con dutas lesivas ao meioambiente mas como forma mesmo de prevenção geral e especial IV A imputação penal às pessoas jurídicas encontra barreiras na suposta inca pacidade de praticarem uma ação de relevância penal de serem culpáveis e de sofrerem penalidades V Se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores poderá vir a pra ticar condutas típicas e portanto ser passível de responsabilização penal VI A culpabilidade no conceito moderno é a responsabilidade social e a culpa bilidade da pessoa jurídica neste contexto limitase à vontade do seu adminis trador ao agir em seu nome e proveito VII A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física que atua em nome e em benefício do ente moral 175 176 PAU LO QJEIROZ VIII De qualquer modo a pessoa jurídica deve ser beneficiária direta ou indire tamente pela conduta praticada por decisão do seu representante legal ou contra tual ou de seu órgão colegiado IX A Lei Ambiental previu para as pessoas jurídicas penas autônomas de multas de prestação de serviços à comunidade restritivas de direitos liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica todas adaptadas à sua natureza jurídica X Não há ofensa ao princípio constitucional de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado pois é incontroversa a existência de duas pessoas distin tas uma física que de qualquer forma contribui para a prática do delito e uma jurídica cada qual recebendo a punição de forma individualizada decorrente de sua atividade lesiva XI Há legitimidade da pessoa jurídica para figurar no polo passivo da relação processualpenal XII Hipótese em que pessoa jurídica de direito privado foi denunciada isolada mente por crime ambiental porque em decorrência de lançamento de elementos residuais nos mananciais dos Rios do Carmo e Mossoró foram constatadas em extensão aproximada de 5 quilômetros a salinização de suas águas bem como a degradação das respectivas faunas e floras aquáticas e silvestres XIII A pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física que atua em nome e em benefício do ente moral XIV A atuação do colegiado em nome e proveito da pessoa jurídica é a própria vontade da empresa XV A ausência de identificação das pessoas físicas que atuando em nome e pro veito da pessoa jurídica participaram do evento delituoso inviabiliza o recebi mento da exordial acusatória XVI Recurso desprovido REsp nº 6 1 0 1 1 4RN Relator o Ministro Gilson Dipp DJU de 1 91122005 Mas a exigência de dupla imputação é infundada porque 1 a lei não a requer expressa ou tacitamente 2 a responsabilidade penal da pessoa jurídica é distinta e autônoma da responsa bilidade de seus agentes 3 quem age em favor da empresa não atua em nome próprio 4 isentar a empresa de responsabilidade penal por crime praticado em seu benefí cio seria exculpar o principal responsável e mais condicionar sua punibilidade à ação acessória pessoa física 5 isentar a empresa de culpa implica legitimar direta ou indiretamente a arbitrá ria seletividade do sistema penal de modo a recrutar sua clientela sempre entre os mais fracos pessoa física com violação ao princípio da isonomiaigualda de 6 quer do ponto de vista da prevenção geral quer do ponto de vista da prevenção especial é mais justo e eficaz intervir sobre a empresa inclusive porque seus membros pessoa física são facilmente substituíveis sem que a situação da empresa sofra alteração relevante l ül I I NTRODUÇÃO G E RAL 42 Responsabilidade penal da pessoa jurídica no STF Já o Supremo Tribunal Federal STF tem que a responsabilidade penal da pessoa jurídica independe da pessoa física que a representa Nesse sentido RE 548181PR rel Min Rosa Weber de 692013 No mesmo sentido decidiu o Tribunal Regional Federal da Primeira Região71 PENAL PROCESSUAL PENAL MANDADO DE SEGURANÇA CRIME AM BIENTAL RESPONSABILIDADE PENAL PESSOA JURÍDICA ISOLADA MENTE POSSIBILIDADE ART 225 3º DA CF ART 3º DA LEI 960598 MANDADO DE SEGURANÇA DENEGADO 1 O legislador constituinte admitiu a responsabilização penal das pessoas jurídicas objetivando proteger o meio ambiente da degradação posto que considerado essen cial à sadia qualidade de vida e merece ser preservado para as presentes e futuras gerações 2 A dicção do art 225 3º da CF88 permite concluir que a responsabilização penal da pessoa jurídica independe da responsabilização da pessoa natural Pode assim a denúncia ser dirigida apenas contra o ente coletivo caso não se descubra autoria ou participação de pessoas físicas ou se dirigida contra ambas física e jurí dica ser recebida apenas quanto a esta uma vez configuradas hipóteses de rejeição contra aquela 3 A lei ambiental não condicionou a responsabilidade penal da pessoa jurídica à da pessoa física apenas ressalvou que as duas formas de imputação não se excluem como se extrai do disposto no art 3º parágrafo único da Lei 960598 4 Recente decisão do STF no julgamento do AgR no RE n 628582RS consignou ser possível a condenação da pessoa jurídica pela prática de crime ambiental ainda que absolvida a física 5 Ofertada denúncia contra pessoa física e jurídica mesmo que absolvida sumaria mente CPP art 397 III aquela há a possibilidade de aditamento para se incluir responsável pessoa fisica pelo delito ambiental imputado fato revelador no míni mo de ser precipitado o trancamento da ação penal contra a pessoa jurídica na via do mandado de segurança 6 Mandado de Segurança denegado 7 1 MANDADO DE SEGURANÇA CRIMINAL N 002 1 154602010401 0000BA Relator Desem bargador Carlos Olavo em 2 1 de março de 201 2 177 Sumário 1 Introdução 11 Posse de droga para consumo pessoal descriminalização ou despenalização 2 Conceito doutrinário de crime 3 Conceito analítico de crime 31 Tipicidade 32 Ilicitude 33 Culpabilidade 34 Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime 1 INTRODUÇÃO O conceito de infração penal varia conforme a perspectiva adotada legal ou doutrinária Do ponto de vista legal a infração penal pode ser um crime um delito ou uma contravenção adotandose uma classificação tri ou bipartida O conceito legal de infração é dado pela Lei de Introdução ao Código Penal Dec lei n 391441 cujo art 1 dispõe considerase crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção quer isoladamente quer alternativa ou cumulativamente com pena de multa contravenção a infração a que a lei comina isoladamente pena de prisão simples ou de multa ou ambas alternativa ou cumulativamente Vêse pois que entre nós foi acolhida uma classificação bipartida a infração penal gênero compreende duas espécies crime e contravenção diversamente de outros países que adotam uma classificação tripartite crime delito e contravenção No Brasil crime e delito são uma só e mesma coisa Mas essa definição legal de infração está grandemente superada primeiro porque a Constituição art 5 XLVI prevê um elenco de pena mais amplo segundo porque há na legislação especial crimes punidos exclusivamente com pena de multa ou pena restritiva de direito terceiro porque é perfeitamente possível admitir novas formas de pena desde que não atentem contra os princípios penais especialmente o princípio da humanidade das penas Naturalmente que a distinção entre crime e contravenção é puramente de grau quantitativa crime é uma infração penal mais grave por isso que punível com reclusão ou detenção etc e a contravenção é uma infração de menor potencial ofensivo logo sancionada com prisão simples ou multa Não é raro aliás transformarse uma contravenção em crime embora o inverso transformarse um crime em contravenção seja de difícil ocorrência visto que como regra o legislador procede à descriminalização pura e simples tornando a ação penalmente irrelevante atípica Já do ponto de vista doutrinário a infração penal pode ser definida sob cinco aspectos ao menos formal material formalmaterial analítico e definitorial conforme se verá mais tarde De todo modo o conceito legal é um desdobramento do conceito formal visto que do ponto de vista formal crime é o que a lei declara como tal sob a ameaça de pena E quando a lei o faz o legislador também pode ou não dar um conceito legal PAULO QJEIROZ 11 Posse de droga para consumo pessoal descriminalização ou despenali zação Discutese se o art 28 da Lei nº 1 13432006 que pune quem adquire guarda etc droga para consumo pessoal operou relativamente à legislação revogada uma descri minalização ou despenalização já que a lei só previu penas restritivas de direito ad vertência prestação de serviço à comunidade e medida educativa sem a possibilidade de aplicação de pena privativa da liberdade Descriminalizar é abolir a criminalização tipificação tornando a ação jurídi copenalmente irrelevante já a despenalização expressão um tanto imprópria é a substituição legislativa ou judicial da pena de prisão por penas de outra natureza restritiva de direito etc Portanto se com a descriminalização o fato deixa de ser infração penal crime ou contravenção com a despenalização a conduta permanece cnmmosa Pois bem para Luiz Flávio Gomes a Lei nº 1 13432006 art 28 de acordo com a nossa opinião aboliu o caráter criminoso da posse de drogas para consumo pessoal Esse fato deixou de ser legalmente considerado crime embora continue sendo um ilíci to sui generis um ato contrário ao direito Houve portanto descriminalização formal mas não legalização da droga ou descriminalização substancial1 Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que o que houve foi uma despenaliza ção cujo traço marcante foi o rompimento antes existente apenas com relação às pes soas jurídicas e ainda assim por uma impossibilidade material de execução CF88 art 225 3º Lei 960598 arts 3º 2124 da tradição da imposição de penas privati vas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal2 Realmente houve simples despenalização Inicialmente percebese que o conceito de infração penal é essencialmente for mal crime é o que o legislador declara como tal independentemente da espécie de pena que lhe é cominada E que o legislador tratou formalmente o uso de droga como crime é fora de dúvida Primeiro porque o art 28 faz parte do Capítulo III que tem como título Dos crimes e das penas segundo porque o conceito legal de crime dado pela Lei de Introdução ao Código Penal art lº está há muito superado seja porque a lei especial pode criar con ceito diverso de infração penal como agora o fez seja porque a Constituição que lhe é posterior previu novas espécies de pena CF art 5 XLVI Notese a propósito que a aludida Lei de Introdução de 1941 foi editada na vigência da Constituição de 1937 1 Lei de Drogas Comentada S Paulo RT 2008 p 1 2 1 2 RE 4301 05 QO Relator a Min SEPÚLVEDAPERTENCE Primeira Turmajulgado em 1 3022007 DJe004 DIVULG 26042007 PUBLIC 27042007 DJ 27042007 PP00069 EMENT VOL0227304 PP00729 RB v 1 9 n 523 2007 p 1 721 RT v 96 n 863 2007 p 5 1 6523 180 1 021 CONCEITO DE CRIME Ademais em tempos em que se prega a falência da pena privativa da liberdade3 e sua gradual abolição v g Ferrajoli4 não faria muito sentido condicionar a definição de crime à previsão inexorável de tal modalidade de pena E mais o que realmente interessa para a definição legal de crime não é propriamente a espécie de pena comi nada mas os seus pressupostos legais formais Exatamente por isso se a uma determinada infração fosse cominada pena de mor te exclusivamente nem por isso deixaria de ser crime o mesmo ocorreria se no futu ro forem cominadas às infrações penais somente penas restritivas de direito ou medi das de segurança com a eventual abolição da pena de prisão Além do mais o rol das penas constitucionais não é taxativo mas meramente exemplificativo motivo pelo qual o legislador poderá inclusive criar outras tantas desde que compatíveis com a dignidade da pessoa humana e o princípio da huma nidade das penas proibitivo de penas cruéis e degradantes entre outras CF art 5º XLVII Por conseguinte ao não cominar pena privativa da liberdade o art 28 não impli coll abolitio criminis mas simples despenalização isto é manteve a criminalização mas optou por vedar a pena privativa da liberdade 2 CONCEITO DOUTRINÁRIO DE CRIME Conforme vimos do ponto de vista doutrinário a infração penal pode ser definida sob cinco aspectos ao menos formal material formalmaterial analítico e definitorial Formalmente infração penal é somente o que a lei disser que é já que não há crime nem pena sem lei que o defina ex vi do princípio da legalidade Justamente por isso é que o homicídio o roubo e o estupro constituem crime a lei assim os define Do ponto de vista formal crime é portanto todo fato que a lei proíbe sob a ameaça de uma pena5 Do ponto de vista material crime é uma conduta individual e socialmente danosa ou gravemente lesiva de bem jurídico visto que por implicar as maiores violências 3 Contrariamente Michel Foucault tem uma explicação originalíssima para a longevidade da prisãope na Para ele a função real oculta da pena ao contrário do que pregam os juristas não é propriamente combater a criminalidade mas produzila Por isso que ao aparentemente fracassar escreve Foucault a prisão não erra seu objetivo ao contrário ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade que ela permite separar pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável porque ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível marcada irredutível a um certo nível e secretamente útil rebelde e dócil ao mesmo tempo ela desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar Por conseguinte se do ponto de vista das suas funções declaradas oficiais a pena é um fracasso manifesto do ponto de vista das funções ocultas a prisão é um grande sucesso daí a sua longevidade Foucault Vigiar e punir História da violência nas prisões Trad Raquel Ramalhete 12 ed Petrópolis Vozes 1 995 4 Derecho y razón Teoria dei garantismo penal Trotta Madrid 1 995 5 Aníbal Bruno Direito Penal Parte Geral Tomo 1 Rio de Janeiro Editora Forense 2003 p 1 73 181 PAULO ÜlJEIRüZ em tese sobre a liberdade do cidadão seguese que só faz sentido definir como delito condutas que não possam ser objeto exclusivamente de outras formas menos lesivas de prevenção e controle social aí incluída inclusive a intervenção do direito público e privado Mas a postulação de um conceito material não significa que é possível pensar um conceito ontológico préjurídico de crime como pretendeu o positivismo criminoló gico especialmente Garofalo que concebeu a ideia de um delito natural que seria a lesão daquela parte do sentido moral que consiste nos sentimentos altruístas funda mentais piedade e probidade segundo a medida média em que se encontram as raças humanas superiores cuja medida é necessária para a adaptação do indivíduo à socie dade6 como se fosse possível pensar o crime para além do tempo do espaça7 Já o conceito formalmaterial que reconhece a insuficiência dos critérios formal e material quando considerados isoladamente fundeos num só para declarar como fez Francesco Carrara que o crime é a infração da lei do Estado promulgada para prote ger a segurança dos cidadãos e que resulta de um ato externo do homem positivo ou negativo moralmente imputável e socialmente danoso8 O aspecto formal está prin cipalmente na expressão infração da lei do Estado e o material no ato socialmente danoso Formalmaterialmente portanto crime é uma infração especialmente lesiva ao or denamento jurídicopenal E do ponto de vista analítico tema que será tratado a seguir mais demoradamen te que é um desdobramento do conceito formal crime é um fato típico ilícito e cul pável Finalmente convém referir o conceito definitorial dado pela teoria do etiqueta mento labeling approach Para essa teoria o delito que não tem consistência material é o resultado não tanto da lei mas dos processos de reação social que constroem a conduta desviada de modo que a conduta não é desviada em si mesma e sim em razão de um controle social de reação e seleção O crime é portanto uma construção social arbitrária resultante dos processos de criminalização primária a lei etc e secundária a cargo do sistema de justiça criminal Polícia etc Com efeito de acordo com Howard Becker os grupos sociais criam os desvios ao fazerem as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicarem essas regras a pessoas particulares e rotulálas como marginais e desviantes Desse ponto de vista o desvio 6 Criminología citado por GarcíaPablos Criminologia cit p 1 24 7 Como assinala GarcíaPablos não existe uma conduta desviada in se ou per se nem se pode elaborar a priori um seu catálogo pois um comportamento é definido como desviado na medida em que se aparta das expectativas sociais cambiantes da maioria social ou seja a desviação não reside na conduta mesma senão nas demais Derecho penal cit p 1 5 8 Programa de derecho criminal Parte general Bogotá Editorial Temis 1 978 2 1 182 1 02 1 CONCEITO DE CRIME não é uma qualidade do ato que a pessoa comete mas uma consequência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um transgressor O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso comportamento desviante é o comporta mento que as pessoas rotulam como tal9 Apesar de reconhecer a importância da teoria do etiquetamento e adotála Gar cíaPablos tem que ela faz depender exclusivamente da seletividade do controle social a noção de delito eficácia construtiva do controle social vício metodológico que im pede qualquer análise teórica sobre a essência do comportamento criminal e fatores etiológicos relevantes deste10 3 CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME A teoria do delito conceito analítico de crime trabalha com três conceitos funda mentais tipicidade ilicitude e culpabilidade a punibilidade não constitui segundo a doutrina majoritária elemento do crime mas sua consequência Analiticamente por tanto o crime é um fato típico ilícito e culpável11 havendo entre tais categorias uma relação lógica de sucessão e prejudicialidade uma vez que a culpabilidade pressupõe a ilicitude e esta a tipicidade Tipicidade ilicitude e culpabilidade são assim predica dos de um substantivo que é a conduta humana definida como crime12 de sorte que a análise do caráter criminoso de um ato demanda a verificação sucessiva do seu caráter típico ilícito e culpável13 O conceito analítico é pois um desdobramento do conceito formal de crime isto é crime como infração à lei penal 9 Outsiders studies in the sociology of deviance cap 1 in Uma teoria da ação coletiva trad Márcia Bandeira de M L Nunes Rio de Janeiro Zahar 1 957 p 53 e s 1 0 Derecho penal cit 1 1 Na doutrina brasileira os autores divergem sobre se a culpabilidade integra ou não a estrutura do delito Damásio de Jesus Direito penal cit v 1 p 451 e s defende a tese de que o crime se compõe de fato típico e antijurídico somente figurando a culpabilidade como mero pressuposto da pena Pensamos em primeiro lugar que semelhante discussão não tem importância teórica e muito menos prática Mas ao se considerar como quer Damásio que a culpabilidade é pressuposto da pena simplesmente esquece se porém que como regra a ausência de culpabilidade dá lugar não à medida de segurança exclusiva de inimputáveis e semiimputáveis mas à absolvição pura e simples assim erro de proibição inven cível coação moral irresistível etc não se aplicando a seus autores imputáveis qualquer medida de segurança ou similar Ora em tais hipóteses se há absolvição sem mais é porque se reconhece que não se está diante de uma conduta criminosa embora tenha o seu autor agido típica e ilicitamente realizado um injusto Portanto a culpabilidade integra sim o conceito de crime já que sem ela não há em princípio qualquer consequência penal Mas ainda que assim não fosse teríamos de convir que não só a culpabilidade como também a tipicidade e a ilicitude são pressupostos da punibilidade pois toda e qualquer consequência jurídicopenal pressupõe tipicidade e antijurídicidade e a seguir culpa bilidade Finalmente ao contrário do que parece supor Damásio Welzel nem Maurach nem qualquer outro finalista jamais defendeu a ideia de que o crime se compõe só de fato típico e antijurídico Para uma crítica à posição de Damásio Cezar Bitencourt Manual cit p 3 1 3 e s 12 Cezar Bitencourt Manual cit p 3 1 7 13 A sistematização da categoria tipicidade devese a Emest v Beling 1 906 a antijurídicidade a Ru dolf v Hiering 1867 Franz v Liszt e Beling a culpabilidade teve em AdolfMerkel o início de um 183 PAU LO QJEIROZ Mas a mencionada relação de sucessão e prejudicialidade nem sempre ocorre por que existe excludente de culpabilidade que inverte essa ordem lógica Assim a me noridade penal que submete o autor do fato à legislação especial ECA afastando a incidência do direito penal propriamente dito Apesar de a doutrina majoritária defender um conceito tripartido de crime há quem adote uma concepção quadripartida crime como fato típico ilícito culpável e punível a exemplo de Francisco Mufioz Conde e Mercedes García Arán14 31 Tipicidade De acordo com a doutrina dizse simplificando um pouco que uma conduta é típica sempre que se ajuste à descrição prevista numa norma penal incriminadora v g matar roubar de modo que tratandose de fato que não encontre ajustamento típico v g aborto culposo a conduta será atípica ficando prejudicada em consequência a análise de tudo mais ilicitude e culpabilidade Declarar pois típica uma ação é declarála jurídicopenalmente relevante ao invés afirmála atípica é afirmála penal mente irrelevante Enfim um comportamento típico é um comportamento proibido pe nalmente É que em razão do princípio da legalidade só pode constituir infração penal cri me ou contravenção o que a lei assim declara A essa descrição legal dos elementos do crime dáse o nome de tipo Típica é pois toda conduta humana ação ou omissão que corresponda ao modelo legal logo tipicidade significa a coincidência entre um dado comportamento humano e a norma penal incriminadora v g homicídio estupro Não é típica mas atípica diversamente a simples violação de contrato que é em princí pio um problema de direito civil O legislador portanto trabalha com tipos e pensa com tipos15 E ao se fazer refe rência à lei penal e sua função de garantia sempre se quer aludir ao tipo penal16 Atualmente cabe falar também de tipicidade e ilicitude em relação à pessoa jurí dica que comete crime ambiental se bem que nem todos os seus conceitos lhe sejam aplicáveis dolo legítima defesa etc A culpabilidade parece em princípio incompatí vel com a natureza jurídica da empresa 311Expansão do conceito de tipicidade É importante notar que o conceito e o conteúdo de tipo e tipicidade penal vêm se expandindo de tal forma que não surpreenderá se no futuro passarem a compreen der os demais elementos do crime ilicitude e culpabilidade que seguem no sentido oposto de gradativa contração Mas se chegarmos a tanto possivelmente o próprio conceito específico cf Jescheck Tratado cit p 1 8 1 14 Deacho Penal Parte General Valencia 2000 4 ed p 223226 1 5 Sauer Derecho penal trad Juan dei Rosal e José Cerezo Barcelona Bosch 1956 p 1 14 1 6 Maurach Derecho penal cit p 348 184 1 021 CONCEITO DE CRIME conceito de tipo se tornará desnecessário pois bastará falar de crime simplesmente sem mais e de seus requisitoselementos e de excludentes de criminalidade Com efeito já não é exato afirmar conforme ensina a doutrina que o tipo é o mo delo legal que descreve a conduta proibida penalmente e que a tipicidade é a relação de subsunção lógica entre um fato da vida e este tipo legal de crime seja porque a rigor não se trata de simples subsunção mas de valoração de interpretação seja porque não se cuida de uma constatação mas de uma atribuição complexa que envolve diversos aspectos problemáticos políticocriminais e dogmáticos Sim porque o juízo sobre a tipicidade de um comportamento encerra em verdade uma valoração que visa entre outras coisas a determinar lo tipo ou tipos penais que incidem no caso isto é dar a exata definição jurídicopenal do fato 2se o tipo penal de que se trata é conforme a Constituição e em que termos o é 3o âmbito de proteção ou de incidência do tipo isto é determinar o que ele de fato proíbe e não proíbe 4se a conduta criou um risco proibido juridicamente relevante e se houve realização desse risco no resultado causalidade e imputação objetiva 5se a conduta é significante ou nãd princípio da insignificância 6a que título o fato é punível se doloso ou culposo imputação subjetiva 7havendo consentimento do ofendido determinar se é válido e quais são suas consequências 8se incidem excludentes de tipicidade erro de tipo etc 9a condição legal do agente autor coautor ou partícipe lüse há um fatotipo consu mado ou tentado 1 1 se é também aplicável à pessoa jurídica 32 Ilicitude Cuidandose de uma ação típica passase a seguir à análise da ilicitude isto é cumpre verificar agora se além de típica tal conduta é também contrária ao ordena mento jurídico como um todo e não apenas em relação ao direito penal Se embora típica não for ilícita isto é for lícita caso fique provado por exemplo que o autor agiu em legítima defesa ficará prejudicada a análise da culpabilidade Dizse assim ilícita ou antijurídica a ação sempre que for praticada contraria mente ao direito isto é sem o amparo de uma causa de exclusão da ilicitude como a legítima defesa o estado de necessidade o estrito cumprimento do dever legal ou o exercício regular de direito CP art 23 Assim não há crime de homicídio mas homi cídio simplesmente quando por exemplo o agente mata outrem em legítima defesa Significa dizer que embora típica a ação visto coincidir com a descrição do art 121 do Código Penal ela não é considerada ilícita uma vez que está autorizada pelo direito 1 de sorte que quem mata em legítima defesa atua legitimamente age pois nos limites da legalidade Mas a conduta típica será também ilícita sempre que não concorra como é co mum uma causa de justificação de exclusão de ilicitude motivo pelo qual o autor de um fato típico atua ordinariamente fora da legalidade portanto ilicitamente Com portamentos típicos são também como regra comportamentos ilícitos Em suma a ilicitudeantijuridicidade é a ausência de justificação legal para a rea lização de uma ação típica 185 PAULO QJEIROZ 33 Culpabilidade Tratandose de uma ação típica e ilícita cumprirá apurar finalmente a culpabi lidade do autor isto é apurar se nas condições dadas ele poderia agir conforme o direito porque se tal não for possível v g agiu sob coação moral irresistível será de clarado inculpável e pois não punível Ao contrário se lhe era perfeitamente possível e exigível uma atuação conforme o direito ficará caracterizada a sua culpabilidade e punibilidade provavelmente A culpabilidade constitui portanto as condições subjetivas que devem concorrer para que seu autor seja merecedor de pena pois do contrário isto é se inculpável não sofrerá pena alguma devendo ser absolvido Excepcionalmente apesar da ausência de culpabilidade o agente sofrerá medida de segurança caso seja inimputável CP art 26 em razão de doença mental ou perturbação da saúde mental A culpabilidade é por conseguinte um juízo de reprovação que incide sobre o au tor de um fato típico e ilícito por lhe ser possível e exigível concreta e razoavelmente um comportamento diverso isto é conforme o direito Culpabilidade é exigibilidade inculpabilidade é inexigibilidade Do ponto de vista analítico um crime é portanto um fato típico ilícito e culpável Já a punibilidade constitui a própria consequência do crime mas não um seu requisito 34 Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime Conforme vimos ao tratar do conceito do direito penal o crime não existe fisica mente uma vez que ele é o resultado das múltiplas interaçõesreaçõesinterpretações relativas ao comportamento definido como infração penal razão pela qual é parte da construção social da realidade ou seja o crime é o que dizemos que ele é dizemos primeiro por meio da lei criminalização primária depois por meio dos processos de reação social criminalização secundária Não existem enfim fenômenos criminosos mas apenas uma interpretação criminalizante dos fenômenos e pois tipificante cul pabilizante etc Assim se sob o aspecto ontológico o delito não existe seguese logicamente que também o seu conceito analítico como fato típico ilícito e culpável não está previa mente dado pois é construído socialmente de sorte que uma determinada conduta será ou não típica ilícita e culpável quando dissermos aceitamos que ela o é mesmo por que tais conceitos remetem necessariamente a diversos outros conceitos dolo culpa significânciainsignificância causalidade legítimailegítima defesa estado de necessi dadedesnecessidade coação físicamoral resistívelirresistível obediência hierárquica erro de proibição vencívelinvencível embriaguez voluntáriainvoluntária etc os quais reenviam por sua vez a outros tantos como vida honra propriedade agressão justa injusta intenção previsão consciênciainconsciência boamáfé confissão prova líci tailícita exigívelinexigível valores princípios etc Enfim a distinção entre tipicidade ilicitude e culpabilidade e pois a distin ção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à 186 1 02 1 CONCEITO DE CRIME interpretação mas é dela resultado Em consequência um mesmo fato ora poderá ser interpretado como excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabilidade e vi ceversa Também por isso o legislador poderá tratar tais situações como julgar mais conveniente do ponto de vista políticocriminal 35Elementos não valorativos do tipo A doutrina distingue elementos normativos e não normativos do tipo isto é va lorativos e não valorativos De acordo com Cézar Bitencourt os elementos objetivos ou descritivos são os identificáveis pela simples constatação sensorial isto é podem facilmente ser compreendidos somente com a percepção dos sentidos17 a exemplo de alguém pessoa coisa etc Já os normativos são os que exigiriam uma apreciação va lorativa vg alheia funcionário público E os subjetivos diriam respeito ao conteúdo da vontade do agente Segundo José Cirilo de Vargas os elementos normativos requerem para sua exa ta compreensão uma atitude especial do intérprete que pode ser de índole estimativa perigo de vida social honestidade probidade ou jurídica sem permissão legal nos limites da lei etc18 Essa tradicional distinção é importante para a compreensão de vários institutos dolo erro de tipo erro de proibição etc Mas é inconsistente Primeiro porque tais elementos são conceitos e conforme vimos o conceito de um conceito é dado por um outro conceito numa relação circular Enfim nenhum con ceito existe ou é compreensível isoladamente quer dizer sem remissão expressa ou tácita a outros tantos vg o conceito de tipicidade remete aos de tipo conduta ação omissão etc Segundo porque o sentido e limites de um conceito não são dados pelo próprio conceito mas por nós ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possi bilidades razão pela qual o seu conteúdo concreto depende do sujeito que o compreen de Logo compreendêlos é interpretálos e valorálos inevitavelmente Por fim já a escolha pelo legislador da forma linguística a ser usada na redação dos tipos constitui em si mesma uma valoração que há de ser a mais criteriosa e técnica possível O mesmo ocorre com o nomen juris dado aos tipos furto estupro calúnia etc Consequentemente se todos os conceitos são valorativos os chamados elementos objetivos e descritivos também o são Afinal mesmo conceitos como homem e mulher são valorativos embora mais facilmente determináveis em tese do que outros como drogafalsamente etc 1 7 Tratado de direito penal São Paulo Saraiva 201 3 p 349350 1 8 Os elementos negativos do tipo penal Rev Fac Direito UFMG Belo Horizonte n 6 1 pp 287 304 juldez2012 187 PAULO QEIROZ Por exemplo é consenso entre os autores que o pronome indefinido alguém constitui elemento descritivo ou objetivo e não normativo Precisamente por isso o tipo de homicídio matar alguém só pode ser praticado contra pessoa humana e não contra coisas ou animais tampouco contra pessoas jurídicas O mesmo consenso já não existe porém quanto ao alguém que aparece em diversos outros delitos como nos crimes contra a honra calúnia difamação e injúria Com efeito se para uns al guém aí é somente a pessoa física para outros compreende também a pessoa jurídi ca Discutese ainda se crianças e mortos seriam caluniáveis difamáveis e injuriáveis Em suma o suposto caráter objetivo descritivo ou normativo dos elementos do tipo são apenas perspectivas do sujeito relativamente às coisas que conhece e nesse sentido todos são subjetivos e pois valorativos normativos Cumpre superar a distinção portanto 188 103 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Sumário 1 Sistema tripartido o tipo como indício de antijuridicidade 2 Sistema bi partido a teoria dos elementos negativos do tipo 3 Posição aqui adotada teoria dos elementos negativos do tipo sistema bipartido 4 Teoria da tipicidade conglobante 5 Para uma configuração monistafuncional da teoria do delito 5 1 Culpabilidade como exigibilidade tendo em vista os fins de prevenção geral e especial 1 SISTEMA TRIPARTIDO O TIPO COMO INDÍCIO DE ANTIJURIDI CIDADE O que hoje chamamos teoria do tipo nasceu com Ernest von Beling que a difundiu por meio da obra Die Lehre vom Verbrechen A teoria do delito de 1906 e por cujo meio o tipo passaria a constituir uma das notas essenciais do conceito de crime soman dose à antijurídicidade e à culpabilidade como exigência infranqueável do princípio da legalidade De acordo com a formulação inicial de Beling1 o tipo penal é a descrição abstrata dos elementos do fato ou suposto de fato Tatbestand previsto na norma pe nal incriminadora descrição que não supõe qualquer valoração razão pela qual o tipo penal constitui assim uma categoria dogmática valorativamente neutra pertencendo a valoração da conduta à antijurídicidade Por conseguinte tipo e ilicitude constituem segundo Beling categorias sistemáticas autônomas mesmo porque o fato embora típi co pode não ser antijurídico sempre e quando praticado sob o amparo de uma causa de justificação Assim por exemplo quem fere alguém em legítima defesa ou em estado de necessidade realiza um fato típico mas não antijurídico porque autorizado pelo direito O tipo portanto é apenas um indício ratio cognoscendi da ilicitude Com o neokantismo que introduz a ideia de valor na teoria do delito semelhante formulação vem a ser criticada M E Mayer Mezger Sauer por seu excessivo forma lismo Primeiro porque não se pode falar de um tipo puramente objetivo pois frequen temente o legislador ao descrever ações típicas recorre a elementos subjetivos v g para si ou para outrem referido no art 155 do CP de sorte que o tipo não está imune a juízos de valor Além disso a redação dos tipos não raro contém elementos normativos assim o conceito de fraude de funcionário público e de coisa alheia supondo quase sempre uma valoração ética jurídica social cultural etc não podendo prevalecer a tese de um tipo penal neutro ou puramente objetivo Nesse sentido Sauer para quem a tipicidade era a antijurídicidade tipificada afirmaria que o tipo é já um sintoma da criminalidade objetiva da lanosidade social e da perigosidade social de um atuar2 1 Digo inicial porque mais tarde Lehre von Tatbestand 1 930 Beling desenvolveria u m conceito ainda mais abstrato de tipo como Leitbild conceito não acolhido pela doutrina que continuaria utilizando o conceito inicial por ele formulado 2 Derecho penal cit p 1 1 1 189 PAULO QJEIROZ Com o advento da doutrina finalista que coerente com o seu conceito final de ação desloca o dolo e a culpa para o tipo penal como elementos subjetivos que antes com o causalismo pertenciam à culpabilidade o tipo seguiria apesar disso como um tipo meramente indiciário da ilicitude3 de modo que o crime sob o aspecto analítico permanece sendo um fato típico ilícito e culpável sistema tripartido 2 SISTEMA BIPARTIDO A TEORIA DOS ELEMENTOS NEGATIVOS DO TIPO Já para a teoria dos elementos negativos do tipo4 cuja formulação inicial devese a Merkel 1889 desenvolvida por Frank e Radbruch e que teve em Baumbarten a sua mais acabada elaboração5 diferentemente todo fato típico é sempre um fato ilícito De acordo com essa teoria com efeito o tipo penal contém já toda matéria proibida e an tijurídica compondose por isso de duas partes a uma parte positiva tipo positivo que corresponde à completa realização dos elementos do tipo tipo no sentido tradi cional b uma parte negativa tipo negativo que corresponde à ausência das causas de justificação Ou seja na formulação do tipo penal estaria implícita a ausência de causas de justificação de modo que por exemplo na norma do art 121 do CP matar alguém estaria subentendido que matar é crime salvo em legítima defesa em es tado de necessidade etc ressalva que não consta do artigo de lei por razões de estilo exclusivamente Daí o nome teoria dos elementos negativos do tipo visto que a presença de tais elementos legítima defesa etc nega o próprio tipo sua ausência ao contrário confir mao totalmente ou seja as causas de justificação constituem elementos que negam o tipo penal Logo todo fato típico é para essa perspectiva totalizadora simultaneamen te um fato ilícito embora nem todo fato ilícito seja típico v g simples violação de contrato em razão de a ilicitude ser um conceito jurídico e não apenas um conceito jurídicopenal 3 Como observa Mir Puig o finalismo adotou um conceito próximo do ideado por Beling o tipo como mero indício ratio cognoscendi da antijuridicidade que não só pode desvirtuarse pelo concurso de causas de justificação nem toda ação típica ê antijurídica senão que tem um significado indepen dente da antijurídicidade Derecho penal cit p 129 4 Entre nós adota posição similar Assis Toledo a tipicidade e a ilicitude implicamse numa relação indissolúvel no interior do injusto mas conceitualmente não se confundem O tipo para não reduzir se a um abstrato Leitbild ou a um princípio formal só pode ser a descrição de condutas proibidas portanto um tipo de injusto Unrechtstypus A expressão do injusto pela incidência de uma norma permissiva causa de justificação ou de exclusão de ilicitude operase no momento mesmo da reali zação do fato justificado não depois quando do desenvolvimento do raciocínio do julgador este sim condicionado a um processo cognoscitivo bifásico O tipo de injusto assim entendido está infiltrado pela ilicitude que lhe dá o verdadeiro conteúdo material Princípios básicos cit p 124 Semelhan temente Reale Júnior Teoria do delito São Paulo Saraiva 1 998 Tambêm Juarez Tavares embora critique a teoria dos elementos negativos chega a uma formulação muito próxima teoria do injusto penal 5 Cf Rodriguez Mourullo Derecho penal cit p 249 190 I 03 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Por vezes as causas de justificação aparecem de forma clara no tipo quando por exemplo a lei se vale de expressões como indevidamente sem justa causa sem auto rização legal etc Afinal sempre que o agente estiver em situação de exercício regular de direito ou de estrito cumprimento do dever legal etc atuar devidamente com justa causa com autorização legal6 Como assinala José Cirilo de Vargas em numerosas situações típicas os cha mados elementos normativos funcionam como negativos do tipo No revogado artigo 219 do CP rapto violento ou mediante fraude a honestidade era elemento do tipo Se a mulher não fosse honesta segundo os padrões então vigentes não haveria tipi cidade nos moldes daquele dispositivo Outros exemplos de elementos negativos do tipo podem ser mencionados sem o consentimento no art 125 sem a observância de disposição legal no art 151 sem licença da autoridade competente no art 166 sem suficiente provisão de fundos no art 171 2 VI etc7 Nesse sentido o tipo é portanto a descrição legal expressa ou tácita de todos os elementos objetivos e subjetivos positivos e negativos que fundamentam a proibição penal de uma conduta e a distingue de outras figuras típicas o que se denomina a ma téria de proibição8 3 POSIÇÃO AQUI ADOTADA TEORIA DOS ELEMENTOS NEGATI VOS DO TIPO SISTEMA BIPARTIDO Com o advento do funcionalismo a orientar politicamente a dogmática jurídicope nal a teoria dos elementos negativos do tipo9 reforçase e parece que acabará por se im por Desse entendimento não diverge Schünemann afirmando que a sistemática fun cional do direito penal unicamente pode conciliarse com a concepção do tipo total do injusto que a dota de uma base mais sólida e suprapositiva A adequada configuração dogmática deste conceito sistemático é desenvolvida pela teoria dos elementos negativos do tipo que experimenta assim de novo um aprofundamento e consolidação1º Roxin por sua vez embora entenda que se deva preservar a autonomia entre tipicidade e ilici tude tem que a estrutura bipartida não só é logicamente praticável como também tem sob o aspecto teleológico muitas vantagens em seu favor visto que da perspectiva do tipo como ratio essendi do injusto não há razão alguma para lhe subtrair uma parte 6 Como escreve Miguel Reale Júnior os verdadeiros elementos normativos são portanto aqueles que revelam a antijuridicidade pelo desvalor jurídico que refletem São os elementos que se referem espe cificamente à antijuridicidade como por exemplo as expressões sem justa causa indevidamente sem autorização Instituições de Direito Penal Rio de Janeiro Editora Forense 2009 p 1 42 7 Os elementos negativos do tipo penal cit 8 Luzón Pefia DiegoManuel Lecciones de Derecho Penal Parte General Valencia Tirant lo Blanch 20 12 p 1 60 9 Sobre a teoria dos elementos negativos do tipo por todos José Cirilo de Vargas Introdução ao estudo dos crimes em espécie Belo Horizonte texto inédito 1 O La función de la delimitación de injusto y culpabilidad in Fundamentos de un sistema europeo dei derecho penal Barcelona Bosch 1 995 p 226 191 PAULO QlJEIROZ dos elementos essenciais para o injusto ademais frequentemente é só uma questão de redação estilística casual da lei o fato de uma circunstância ser prevista já no tipo como fundamentadora do injusto ou só na ilicitude como excludente do injusto11 E de fato os conceitos de tipicidade e ilicitude estão funcionalmente vinculados Com efeito se o fim do direito penal é a prevenção subsidiária de comportamentos le sivos de bens jurídicos seguese que a definição legal de crimes por meio do processo legislativo pressupõe que tais condutas sejam contrárias à ordem jurídica e não por ela autorizadas pela lógica razão de que não se pode prevenir proibindo aquilo que se permite Como afirma Graf zu Dohna uma ação juridicamente permitida não pode ser ao mesmo tempo proibida pelo direito isto é o exercício de um direito nunca é anti jurídico12 Com efeito relativamente às condutas autorizadas pelo direito não pode ter lugar a função motivadora da norma penal precisamente porque a ação de matar em legítima defesa por exemplo prestase à realização dos próprios fins do direito penal que é a proteção de bens jurídicos por meio do rechaço autorizado de ataques a inte resse juridicamente protegido Mais claramente se o Estado por meio do direito penal pretende prevenir crimes tal há de pressupor necessariamente condutas contrárias ao direito e não conforme o direito Gimbernat Ordeig tem razão portanto quando afirma que a problemática quanto ao conteúdo do tipo é a problemática mesma quanto à con duta que o legislador quer motivar ou prevenir13 Afinal o legislador ao permitir por exemplo a legítima defesa para proteção indi vidual persegue simultaneamente um fim de prevenção geral pois considera desejável que o ordenamento jurídico se afirme diante de agressões a bens jurídicos individuais14 Além disso quando se recorre a uma lei penal e se define um dado comporta mento como criminoso pressupõese forçosamente sua contrariedade ao ordenamento jurídico mesmo porque fora daí faltariam os pressupostos materiais da intervenção penal lesividade social etc nem faria sentido intervir penalmente Função primária do tipo é pois declarar dentro de uma multitude de ações antijurídicas aquelas que merecem significação penal Daí dizer Mezger que o ato de criação legislativa do tipo contém já a declaração de antijurídicidade a fundamentação do injusto como injusto especialmente tipificado15 É que as normas proibitivas de um lado e as proposições permissivas de outro formam uma unidade apesar de sua formulação em separado16 1 1 Derecho penal cit p 284285 Em texto anterior Roxin já havia notado que o tipo total é essen cialmente correto visto que todas as ações que se ajustam a este tipo expressam um elemento fundamental comum mereceram a reprovação do legislador e são portanto socialmente danosas e materialmente contrárias ao direito Teoría del tipo penal trad Enrique Bacigalupo Buenos Aires Depalma 1 979 p 274277 12 Citado por Assis Toledo Princípios básicos cit p 1 8 1 13 Estudios cit p 1 72 14 Roxin Derecho penal cit p 608 1 5 Citado por Roxin Derecho penal cit p 282 16 Stratenwerth Derecho penal parte general trad Gladys Romero Madrid Edersa 1982 p 6465 192 1031 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Em resumo um fato típico é um fato proibido jurídicopenalmente logo não é típi co um fato autorizado pelo direito em virtude da presença de uma causa de justificação Parecenos incorreta em consequência a doutrina ainda dominante quando opta por um conceito puramente formal do tipo tipo indiciário afirmando que um fato embora típico não é necessariamente ilícito porque pode estar autorizado pelo direito até porque fato típico é por definição comportamento proibido penalmente sendo um manifesto contrassenso falar que uma conduta apesar de penalmente típica proibida penalmente não é antijurídica autorizada pelo direito É como afirmar que o proi bido está ou pode estar permitido é típico mas não antijurídico Em conclusão e conforme assinala Luzón Pefía a finalidade do tipo não é des crever condutas neutras nem meramente indiciárias de uma proibição mas descrever para conhecimento geral e para cumprir sua missão de norma de determinação das condutas dos cidadãos todos os elementos positivos e negativos que fundamentam a valoração negativa e portanto a proibição geral em face de todos de uma con duta17 tarefa prevenção geral que só pode ser levada a cabo quando não concorram causas de justificação evidentemente Naturalmente que apesar de coimplicados os conceitos de tipicidade e ilicitude não se confundem e devem em princípio ser preservados 4 TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE Para a teoria da tipicidade conglobante o juízo de tipicidade exige além da tipi cidade legal a tipicidade conglobante de conglobar isto é dar a forma de globo acu mular reunir etc consistente na averiguação do alcance proibitivo da norma que não pode ser considerada isoladamente mas conglobada na ordem jurídica Por isso dizem Zaffaroni e Pierangeli que a tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal visto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas como acontece no caso exposto do oficial de justiça que se adequa ao subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel art 155 caput do CP mas que não é alcançada pela proibição do não furtarás18 Essa teoria que se inspira na teoria das normas de Binding e no conceito de anti normatividade de Welzel considera que todo tipo penal pressupõe uma norma que lhe é subjacente anteposta a ele como por exemplo no homicídio a norma não mata rás no furto a norma não furtarás etc Resulta assim que a conduta pelo fato de ser penalmente típica necessariamente deve ser também antinormativa Não obstante não se deve pensar que quando uma conduta se adapta formalmente a uma descrição típica só por essa circunstância seja penalmente típica Que uma conduta seja típi ca não significa necessariamente que seja antinormativa isto é que esteja proibida pela norma pelo não matarás não furtarás etc Sintetizando tipicidade legal e 17 Curso cit p 299 1 8 Manual de direito penal São Paulo RT 2004 p 436 193 PAULO QlEIROZ tipicidade penal não são a mesma coisa a tipicidade penal pressupõe a legal mas não a esgota a tipicidade penal requer além da tipicidade legal a antinormatividade19 A teoria da tipicidade conglobante distingue portanto três níveis sucessivos e complementares de tipicidade tipicidade legal adequação do fato à formulação legal do tipo tipicidade conglobante antinormatividade ou seja violação da norma subjacente ao tipo e tipicidade penal tipicidade legal antinormatividade que é o resultado da conjunção das duas anteriores sendo que a antinormatividade que não se confunde com antijuridicidade20 não é comprovada somente com a adequação da conduta ao tipo legal porque requer uma investigação sobre a afetação do bem jurídico21 Apesar da autoridade daqueles que a defendem temos que tal teoria um tanto confusa e desnecessária não procede Desde logo não é exato dizer que a conduta do oficial de justiça que busca e apreende objetos no exercício regular de suas funções seja típica formalmente à luz do art 155 do Código Penal Com efeito ao assim proceder ele não subtrai coisa alheia móvel nem tampouco subtrai para si ou para outrem nem age dolosamente isto é não tem a intenção de furtar quem quer que seja muito ao contrário se deixar de assim proceder poderá responder em tese por ilícito admi nistrativo ou penal v g desobediência prevaricação Além disso a ação do oficial zeloso de suas funções embora realmente seja atípica à luz do art 155 assim o é por uma outra razão uma razão tautológica quem está no estrito cumprimento do dever legal não atua tipicamente pois é óbvio que ninguém pode a um tempo estar em acor do e em desacordo com o tipo Ademais aquilo que se vem de chamar de tipicidade conglobante é apenas um modo de interpretar o texto a partir do contexto dandolhe interpretação sistematiza da também é evidente que tal ação não implica ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma o patrimônio mesmo porque ao criminalizálo não era evidentemente esse tipo de comportamento autorizado e fomentado pelo direito que o legislador quis pre venir e castigar finalmente ao atuar no estrito cumprimento do dever legal o agente não cria risco proibido mas juridicamente permitido e estimulado Por último a ideia de uma tipicidade formal legal que consistiria num juízo de mera subsunção ló gica do fato ao tipo já deveria estar superada pois o direito não é um saber lógico mas analógico 22 conforme se demonstra desde o seu conceito razão pela qual ou o 1 9 Idem p 433434 20 Com efeito dizem os autores que é precisamente esta a mais importante diferença entre a tipicidade conglobante e a justificação a atipicidade conglobante não surge em função de pe1missões que a ordem jurídica resignadamente concede e sim em razão de mandatos ou fomentos no1mativos ou de indiferença por insignificância da lei penal A ordem jurídica resignase a que um sujeito se apodere de uma joia valiosa pe11encente a seu vizinho e que a venda para custear o tratamento de um filho gravemente enfermo que não tem condições de pagar licitamente mas ordena ao oficial de justiça que apreenda o quadro e lhe impõe uma pena se não o faz fomenta as artes plásticas enquanto se mantém indiferente à subtração de uma folha de papel rabiscada Idem p 438 2 1 Ibidem p 434 22 Como assinala A11hur Kaufmann a analogia comparação que consiste num modo de inferência misto de dedução e indução constitui o próprio critério de detenninação do direito uma vez que 194 l ü3 I EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO fato é típico ou não o é decisão que reclama um juízo inevitavelmente valorativo de ponderação de interesses complexo Não bastasse isso de acordo com o próprio Welzel toda realização do tipo de uma norma proibitiva é certamente antinormativa embora nem sempre seja antijurídi ca 23 de modo que resta por se explicar o porquê de a violação ao tipo legal de crime tipicidade não implicar necessariamente ofensa à alegada norma que lhe é subjacen te antinormatividade 5 PARA UMA CONFIGURAÇÃO MONISTAFUNCIONAL DA TEORIA DO DELITO Apesar de tudo que foi dito até aqui é certo que ainda hoje o sistema tripartido é amplamente majoritário segundo o qual o crime analiticamente compõese de fato típico ilícito e culpável que seriam categorias autônomas De acordo com semelhante formulação dizse típica a conduta que se ajusta ao modelo legal ilícita se contrária ao ordenamento jurídico como um todo e finalmente analisarseá a culpabilidade que é um juízo de reprovação que incide sobre o autor do fato típico e ilícito por lhe ser pos sível e exigível concretamente um comportamento diverso isto é conforme o direito Pois bem com o advento do funcionalismo temse levantado uma discussão nova saber se é possível estabelecer uma delimitação clara entre injusto e culpabilidade sa ber se é possível enfim autonomizar a culpabilidade em face das demais categorias sistemáticas tipicidade e ilicitude Schünemann24 tem que sim Pensamos que não por considerarmos que uma perspectiva funcional conduz a uma configuração monista da teoria do delito conforme se desenvolverá a seguir 51 Culpabilidade como exigibilidade tendo em vista os fins de prevenção geral e especial A culpabilidade constitui essencialmente segundo a doutrina majoritária25 um juízo de reprovação sobre o autor do fato típico e ilícito em face da possibilidade de se nunca existe uma absoluta igualdade ou desigualdade mas semelhanças razão pela qual juízes e legisladores se utilizam invariavelmente da analogia Filosofia do direito p 1 19120 23 Derecho penal cit p 60 24 Segundo Schünemann a norma proibitiva como base do injusto jurídicopenal deve abarcar todos os pressupostos da lesividade social salvo a capacidade do autor de comportarse conforme a norma cuja exclusão do mandato normativo se deve a razões lógicas já que a capacidade de cumprimento só pode formularse e examinarse tomando como referência uma norma que está desvinculada daquele já que se ao contrário a capacidade de cumprimento se formula como pressuposto da norma proi bitiva a negação desta norma faria desaparecer aquela porque acerca duma norma inexistente não cabe imaginar nem constatar capacidade de cumprimento algum Portanto a diferenciação sistemática entre poder atuar de outra maneira e a lesividade social resulta necessária e ostenta pleno sentido La función in Fundamentos cit p 225 25 Comparemse a propósito alguns conceitos de culpabilidade reprochabilidade de um fazer ou de um omitir antijuridicamente desaprovado ou mais brevemente é um reproche fundado sobre o au tor Maurach Derecho penal cit p 582 possibilidade de conhecer a exigência do dever e de 195 PAULO QlJEIROZ lhe exigir concreta e razoavelmente uma atuação conforme o direito de sorte que se o indivíduo por falta de maturidade por defeito psíquico por desconhecer o conteúdo da proibição normativa ou por se encontrar numa situação na qual não lhe era exigível um comportamento diverso não pode ser motivado pela norma ou se a motivação se altera gravemente faltará a culpabilidade e ao autor do fato típico e antijurídico não se poderá atribuíla logo não poderá ser sancionado com uma pena26 Culpabilidade portanto é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade27 Por isso é que são elementos da culpabilidade a imputabilidade ou capacidade de culpabilidade o conhecimento potencial da ilicitude do fato e a exigibilidade de con duta diversa logo excluemna a inimputabilidade em razão de alienação mental ou menoridade o erro de proibição inevitável a coação moral irresistível a obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal etc Claro é o fundamento dessa exclu são de culpabilidade em todas essas hipóteses não se pode exigir do autor do ilícito um comportamento conforme a lei dada a sua impossibilidade ou falta de razoabilida de de semelhante exigência já que nem o legislador nem o juiz podem exigir atos de heroísmo por parte de seus destinatários pois a lei não se dirige a heróis ou santos28 E mais se o fim da norma penal é dissuadir comportamentos lesivos de bens jurídicos seguese que em tais casos a pena carece de capacidade preventiva carecendo portan to de eficácia Pois bem a tese aqui defendida é a seguinte a exigibilidade de uma conduta di versa conforme o direito não é uma análise posterior nem estranha à verificação do comportarse de acordo com ele vale dizer é a possibilidade de uma decisão responsável Straten werth Derecho penal cit p 7 1 culpabilidade é reprochabilidade da formação de vontade Jes check Tratado cit p 364 é uma responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante num comportamento antijurídico Jakobs Derecho penal cit p 566 atua culpavelmente quem pratica um ato antijurídico podendo atuar de modo diverso quer dizer confom1e o direito Muíioz Conde Teoria geral do delito trad Juarez Tavares e Régis Prado Porto Alegre Sérgio A Fabris Editor 1 988 p 1 25 culpabilidade é exigibilidade Silva Sánchez Aproximación cit p 413 26 Mufioz Conde Teoria cit p 1 62 27 A ideia de exigibilidade provém de Henkel que demonstrou que a inexigibilidade é critério regulativo jurídico geral dividindoa em inexigibilidade geral e individual a primeira excluiria a antijuridi cidade a segunda a culpabilidade cf Luzón Pena Curso cit p 649 14 Hungria escreve que Ererhard Schmidt que atualizou o Tratado de VON LISZT ao entrosar o critério da inexigibilidade Unzumutbarkeit no conceito do estado de necessidade como faz o nosso Código volta a insistir em que este não exclui a ilicitude objetiva mas a culpabilidade Ora a inexigibilidade é precisamen te o fundamento central da licitude que na espécie se reconhece e declara Não é preciso referila á culpabilidade cuja existência ficaria tolhida Como acentua Helmut Mayer o que não pode ser razoa velmente exigido a um homem não lhe pode ser imposto pelo direito positivo A inexigibilidade só se apresenta em particulares circunstâncias de fato e portanto entende também com o lado objetivo da conduta O que se dá em tal caso é simplesmente uma ação lícita ou não proibida juridicamente Não se apresenta um crime nem mesmo do ponto de vista abstrato Comentários v l tomo 2 cit p 271272 28 Como afirma Mufioz Conde o direito não pode contudo exigir comportamentos heroicos toda norma jurídica tem um âmbito de exigência fora do qual não pode exigir responsabilidade alguma Curso cit p 1 32 196 I D3 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO injusto penal nem é exclusividade da culpabilidade visto que é contemporânea da pró pria intervenção jurídicopenal por ser uma consequência lógica da natureza instru mental ou funcional ou preventiva do direito penal Mais ainda é a exigibilidade em face da normal motivabilidade que determina em última análise a atipicidade do fato mas não só ela pois contam também critérios de conveniência políticocriminal e a justificação de certos comportamentos causas de exclusão de ilicitude Em síntese a culpabilidade entendida como possibilidade de exigirse a realiza ção ou a abstenção de um dado comportamento é em realidade o pressuposto lógico da existência do direito mesmo e pois pressuposto de aplicabilidade das normas jurí dicopenais as quais se destinam à prevenção geral e especial de condutas social mente lesivas não constituindo por isso uma categoria autônoma da teoria do delito Enfim a ideia de exigibilidade atravessa todo o ordenamento jurídico e não apenas o ordenamento jurídicopenal constituindo um princípio regulador e informador de todo o direito29 Com efeito se função do direito penal é motivar comportamentos função moti vadora no sentido do comando normativo isto é se é finalidade da norma que seus destinatários ajam de forma a não as violar matando alguém estuprando furtando etc prevenção geral negativasubsidiária30 seguese que semelhante tarefa somente pode ser dirigida àquele que se ache em condições físicas psíquicas culturais etc de entender tais normas e de poder agir segundo a pretensão do legislador que as editou Significa dizer portanto que as normas penais não estão dirigidas a quem não esteja em condições de respeitálas seja porque carecem de discernimento assim os incapa zes seja porque atuam sob erro de proibição inevitável seja porque estão sob coação moral irresistível seja enfim porque atuam sob o amparo de quaisquer das causas de exclusão de culpabilidade visto que como assinala Mufioz Conde a comunicação entre o indivíduo e os mandamentos da norma só pode ocorrer se o indivíduo tem capacidade para se sentir motivado pela norma conhece seu conteúdo ou se encontra numa situação na qual não pode ser regido sem grandes esforços por ela31 Em conclusão as normas penais só podem ter logicamente como destinatário quem se encontre em condições de decidir entre acatálas ou violálas já que como afirma Jescheck a culpabilidade tem como pressuposto lógico a liberdade de decisão do homem32 Mas é justamente por essa mesmíssima razão que atos praticados sob por exem plo coação física irresistível ausência de conduta ou sem dolo ou culpa conduta atípica em legítima defesa ação conforme o direito ou sob coação moral irresistí vel conduta inculpável conduzem ao mesmo resultado prático uma sentença penal 29 Mufioz Conde Teoria cit p l 62 30 Apesar de adotar semelhante perspectiva essencialmente nada muda para esse efeito se se entender prevenção como prevenção positiva 3 1 Mufioz Conde Teoria cit p 1 3 1 32 Tratado cit p 367 197 PAULO QEIROZ absolutória33 Logo embora possam ter tratamento legal distinto implicam o mesmo resultado prático isenção de pena É que em todos esses casos a norma penal carece do poder de motivar não sendo exigível de parte do autor de um fato assim praticado uma atitude diversa ou conforme o direito dada a impossibilidade física ou psíquica do seu destinatário Ou porque ainda quando exigível a pena careceria de todo sentido tendo em vista os fins preventivos do direito penal não sendo o agente merecedor de pena Dito mais claramente se é atípica segundo a doutrina hoje dominante a ação pra ticada sem dolo ou sem culpa é porque em tal hipótese a norma carece de eficácia mo tivadora não sendo por isso exigível uma ação diversa já que estamos perante uma situação de caso fortuito ou força maior vale dizer estranha à intervenção da vontade do agente por igual se alguém para não morrer precisa matar e o faz legitimamen te legítima defesa não responde penalmente porque o Estado não pode exigir uma ação distinta digamos no caso de legítima defesa que tolere sem mais a agressão ou que podendo fugir assuma assim uma postura de covarde etc uma vez que não é razoável o sacrifício do bem jurídico lesionado ou ameaçado de lesão relativamente ao ofendido Parece que idêntica é a situação nas hipóteses de exclusão de culpabilidade Com efeito nos casos de coação moral irresistível de obediência hierárquica tampouco é exigível uma atitude diversa do destinatário da norma pelas mesmíssimas razões já assinaladas Conclusão a exigibilidade de conduta diversa está presente não apenas na culpabilidade mas também na tipicidade e na antijuridicidade Em suma o que chamamos culpabilidade é apenas mais um nome para designar os casos em que o legislador considera a partir de premissas políticocriminais desnecessária a pena Por isso é que razão assiste a Mir Puig quando observa a propósito do erro de proibição inevitável que se o Direito Penal se justifica pela função de proteção de bens jurídicos através da motivação da norma o que estimo necessário num Estado social e democrático de Direito só se pode proibir aqueles comportamentos que po dem ser evitados pela motivação Pois bem para que o sujeito possa ser motivado pela norma penal que protege um bem jurídicopenal determinado é preciso que dito sujei to possa saber que se encontra frente a um tal bem protegido pelo Direito Se o sujeito não pode saber que sua ação irá lesionar um bem amparado pelo Direito como poderá sentirse motivado a evitar dita ação pela norma penal se não pode ser motivado por ela E se a norma não pode motiválo não faz sentido que o pretenda proibindo o fato razão pela qual concluirá que o erro de proibição excluirá o terceiro e último nível necessário para que o dolo seja o dolus malus34 Mas semelhante argumentação é pie 33 No júri atual inclusive ao formular os quesitos o juizpresidente indagará aos jurados apenas se o acusado deve ser absolvido incluindose aí toda e qualquer excludente seja de tipicidade seja de ilicitude seja de culpabilidade CPP art 483 III 34 Derecho penal cit p 568569 198 IOJI EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO namente válida para toda e qualquer causa de exclusão de culpabilidade e não apenas para o erro de proibição inevitável35 Não por outra razão é que uma causa de exclusão de culpabilidade pode vir a ser considerada eventualmente como excludente da tipicidade sem produzir outra conse quência senão de ordem sistemática v g dolo e culpa que com o advento da doutrina finalista passaram a fazer parte da tipicidade saindo da culpabilidade o mesmo po dendo ocorrer com as causas de justificação como por exemplo com o consentimento do ofendido que segundo Roxin36 constitui causa de exclusão de tipicidade e não de ilicitude conforme a doutrina tradicional Além disso nada impede ainda que o legis lador transforme uma causa de exclusão de culpabilidade ou de tipicidade em causa de justificação e viceversa já que semelhante distinção atende em última instância a razões políticocriminais E mais a distinção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação mas é dela resultado motivo pelo qual o mesmo com portamento ora pode ser considerado excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabilidade e viceversa Não por acaso juízes e tribunais não raro divergem a esse respeito Não existem portanto fenômenos típicos nem culpáveis mas apenas uma interpretação tipificante e culpabilizante dos fenômenos Ora se assim é resulta que a culpabilidade é como assinalado o pressuposto lógico de efetividade aplicabilidade das normas jurídicopenais que se prestam à pre venção geral e especial de comportamentos socialmente lesivos e que como tal está presente na análise das várias categorias dogmáticas tipicidade ilicitude e culpabili dade não constituindo por isso uma categoria autônoma dentro da teoria do delito Afinal como observa GarcíaPablos um direito penal que pretenda exigir responsabi lidades por fatos que não dependam em absoluto da vontade do indivíduo merece ser qualificado de arbitrário e disfuncional porque precisamente a pena carece de poder motivador e o castigo perderia toda sua justificação37 Apesar disso é certo que a lei faz distinção entre as diversas excludentes de ti picidade de ilicitude e de culpabilidade relativamente aos seus efeitos Com efeito a sentença que declara a presença de uma causa de justificação legítima defesa etc como regra faz coisa julgada no cível38visto implicar o reconhecimento de conforma ção da conduta com o ordenamento jurídico como um todo e não só com o penal Já as demais causas de exclusão de tipicidade e culpabilidade têm em princípio um alcan ce muito menor valendo como regra apenas para o ordenamento jurídicopenal não fazendo coisa julgada no cível 35 Nesse sentido Schünemann La función in Fundamentos cit p 224225 36 Derecho penal cit p 509 e s 37 Derecho penal cit p 287 38 Código de Processo Penal art 65 faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em legítima defesa em estado de necessidade no estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular de direito 199 PAULO QJEIROZ Em resumo as excludentes de ilicitude são causas jurídicas de justificação e as excludentes de tipicidade e culpabilidade são causas jurídicopenais de justificação39 as primeiras valem como regra para todo o ordenamento jurídico as segundas valem em princípio apenas para o ordenamento jurídicopenal De todo o exposto cabe concluir nos seguintes termos o ato de tipificar uma con duta como criminosa isto é a opção política por criminalizar já parte do pressuposto da exigibilidade da conduta conforme a norma razão pela qual em todos os momentos de verificação do injusto penal impõese indagar sobre tal circunstância Logo forçoso é reconhecer que as várias categorias dogmáticas carecem de autonomia pois não pas sam de momentos ou níveis ou graus de apuração do caráter criminoso do fato E se assim é a teoria dos elementos negativos do tipo poderia ser reformulada para compreender a a realização de todos os elementos do tipo b a ausência de cau sas de justificação e c a ausência de causas de exclusão de culpabilidade Mas como justificar num sistema funcional que o direito penal tenha inimputá veis como destinatários se não podem compreender a mensagem normativa e atuar segundo seu comando não matar não roubar etc Basicamente duas são as razões políticocriminais que justificariam semelhante intervenção prevenção geral de pos síveis reações informais arbitrárias contra o inimputável e prevenção especial é dizer impedir que volte a delinquir Só assim se pode compreender a resposta penal no par ticular Naturalmente que à semelhança do que se passa com os menores de dezoito anos tais pessoas poderiam igualmente ficar sujeitas a uma legislação especial Aliás foi exatamente isso que se pretendeu com a edição da Lei nº 102162001 lei de refor ma psiquiátrica Mas não é exato afirmar que a culpabilidade não desempenhe qualquer papel re lativamente aos inimputáveis ao argumento de que a pena pressupõe culpabilidade e a medida de segurança periculosidade É que a medida de segurança como sanção penal que é não pode ser imposta se concorrerem causas excludentes de culpabili dade como erro de proibição inevitável coação moral irresistível etc de sorte que numa perspectiva garantista não há distinção substancial quanto aos pressupostos en tre pena e medida de segurança uma vez que todos os princípios e garantias penais devem ser aplicados ao inimputável que só ficará sujeito a essa sanção penal específica quando for autor de um fato comprovadamente típico ilícito culpável e punível Se ele fica sujeito à medida de segurança e não à pena é porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade pois sentido algum faria castigálo ou enclausurálos numa pe nitenciária40 39 Confo1me Sílva Sánchez que chama as causas de exclusão de culpabilidade de situação de justifi cação incompleta a diferença entre a justificação e a exculpação é de grau e que em teoria o legislador poderia converter uma causa de exculpação em causa de justificação Aproximación cit p 4 1 4 40 Uma formulação semelhante encontrase em Georg Freund Strafrecht Allgemeiner Teil Heidel berg 1 998 p 1 1 21 1 7 Visto desse modo não há necessidade de um princípio geral e autônomo de 200 I 03 1 EVOLUÇÃO DO CONCE ITO DE TIPO Apesar de recusar autonomia às categorias dogmáticas convém tratálas autono mamente seja por razões didáticas seja porque a lei e a doutrina pressupõem a aludida distinção ainda que um tanto ilusória 52Ainda o conceito analítico o que há em comum e distinto entre as várias excludentes De acordo com Welzel a tipicidade a antijurídicidade e a culpabilidade são os três elementos que convertem uma ação em um delito as quais estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior pressupõe o anterior41 Para Roxin típica é a ação que coincide com uma das descrições de delito anti jurídica é a conduta típica não amparada por causa de justificação e culpável é a ação típica e antijurídica praticada de modo reprovável por um sujeito imputável42 Ainda segundo Roxin a diferença entre excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade entre justificação e exculpação consiste em que uma conduta justificada é reconhecida como legal pelo legislador está permitida e há ser suportada por todos enquanto uma conduta exculpada não é aprovada e por isso continua como não permitida e proibida Assim embora não seja punida em geral não tem porque ser tolerada por quem é víti ma de uma conduta antijurídica43 exclusão de culpabilidade Os casos concretos devem ser afastados já no campo da tipicidade ou en tão ser solucionados pelo princípio geral da justificação se considerada a proteção in concreto de interesses maiores próprios ou de terceiros não for possível proferir um juízo de reprovação de determinada conduta não estará configurada a infração à norma de conduta como requisito essen cial da incidência de pena a ideia da inexigibilidade de conduta diversa lícita frequentemente discutida apenas sob o aspecto da culpabilidade já adquire importância também para a questão da tipicidade ou ainda para a questão da justificação uma norma jurídica que exige o inexigível não possui legitimação jurídica Caso se tome aquela ideia como princípio regulativo como por exemplo para a delimitação adequada do alcance dos deveres de cuidado e ação nos delitos culposos e omissivos resta visível que aqui não se trata de mero problema de culpa em relação a uma conduta ilícita típica mas de um problema de delimitação adequada da tipicidade Se uma pessoa é inimputável por exemplo a criança na forma do art 1 9 do Código Penal ou em consequência de doença conforme o art 20 ou se por outra razão está afastada a responsabilidade do indivíduo pelos próprios atos exemplo erro inevitável de proibição art 1 7 lª frase não ocorre a infração da norma de conduta que por motivos axiológicos e de conveniência é o requisito para a punição como consequência jurídica A conduta do inimputável nem sequer representa perigo de dano para a validade da norma Em momento algum o indivíduo fica aquém do que se pode exi gir dele de direito Ele não pratica qualquer injusto pessoal seu comportamento não viola as normas de conduta e nesse sentido não é ilícito Por isso é irrelevante para a punição como consequência jurídica se alguém age com justificação ou meramente sem culpa a exclusão de tipicidade a incidência de justificação a exclusão da culpabilidade e a escusa têm uma consequência comum excluir a punição de tal sorte que a classificação frequentemente controvertida não tem rele vância 4 1 Derecho Penal Aleman parte general Traducción dei alemán por los profesores Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáfiez Perez Santiago Editora Juridica de Chile 1 993 p 57 42 Claus Roxin Derecho Penal Parte General Madrid Civitas 1 997 p 1 95 43 Roxin idem 201 PAULO QJEIROZ Tratase do conceito analítico de crime que apesar de todas as transformações pelas quais a dogmática penal passou e tem passado permanece firme É bem verdade que essa dimensão tripartida do delito não é aceita em princípio pela teoria dos elementos negativos do tipo que trabalha com um conceito bipartido de crime tipicidade e culpabilidade segundo o qual a tipicidade compreende como parte negativa implícita a ausência de excludentes de ilicitude legítima defesa etc O tipo total pressupõe portanto a realização dos elementos explícitos do tipo e a ausên cia de causas de justificação As excludentes de ilicitude são os elementos que negam o tipo visto que a antijuridicidade precede à tipificação Apesar disso a estrutura do delito é substancialmente mantida uma vez que per manece como uma conduta ação ou omissão típica ilícita e culpável O que ocorre é que a antijuridicidade perde autonomia relativamente à tipicidade que passa a com preendêla com um de seus elementos Que importância tem esse conceito analítico hoje É curioso que embora o direito seja um só conforme a doutrina o conceito ana lítico de delito parece constituir uma peculiaridade da dogmática jurídicopenal já que não existe uma abordagem similar no direito civil por exemplo quando é discutido o problema da responsabilidade civil subjetiva tampouco no direito tributário ou admi nistrativo entre outros Notese ainda que o conceito analítico é um desdobramento do conceito legal só é crime o que a lei define como tal sob ameaça de uma pena que por sua vez é um conceito político visto que requer uma decisão de poder que decrete o que é e não é infração penal Consequentemente também o são os seus elementos integrantes tipici dade antijuridicidade e culpabilidade Além disso parece que esse conceito não tem importância fora do direito penal Dirseia talvez que as excludentes de ilicitude diversamente das demais fazem coisa julgada no cível extrapenal impedindo a reparação do dano etc Mas isso não é de todo exato Primeiro porque a responsabilidade civil é apura da segundo critérios próprios sendo inclusive admitida a responsabilidade objetiva e sem culpa ou mesmo por ato lícito vg desapropriação Segundo porque casos há em que apesar da sentença penal absolutória por legítima defesa etc é perfeitamente possível a responsabilidade civil vg erro excesso aberratio ictus Enfim tal como prevê o Código Civil de 2002 art 935 a responsabilidade civil é independente da criminal Exatamente por isso o Código de Processo Penal de 1941 cujo artigo 65 dispõe que faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade em legítima defesa em estrito cum primento de dever legal ou no exercício regular de direito precisa ser interpretado segundo as atuais regras de responsabilidade civil É importante notar que quanto ao estado de necessidade o Código Civil art 929 assegura inclusive o direito à indenização sempre que a pessoa lesada ou o dono da coisa não forem culpados do perigo 202 l ü3 I EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO Finalmente a eventual repercussão civil não justificaria o conceito penal analí tico de crime Resta verificar qual a importância do aludido conceito no próprio direito penal Convém lembrar que a distinção entre as excludentes não preexiste à interpretação mas é dela resultado Justamente por isso juízes e tribunais e a própria doutrina ora classificam uma conduta de uma forma ora de outra Já vimos que a interpretação não é um modo de constatar um direito preexistente mas a própria realização do direito Não é por outra razão aliás que com o advento da teoria final da ação o dolo e a culpa que antes integravam a culpabilidade passaram a fazer parte da tipicidade como seus elementos constitutivos Ademais a exata classificação de cada uma das excludentes depende primeiro de como o legislador tratará o assunto segundo da doutrina e da jurisprudência Assim por exemplo se para alguns autores o consentimento válido do ofendido exclui a tipi cidade para outros afasta a ilicitude A mesma divergência é encontrada na legislação dos países e na respectiva jurisprudência Não bastasse isso a consequência prática de uma excludente de tipicidade de ili citude ou de culpabilidade é em princípio a mesma uma sentença penal absolutória E mais com o nome de excludentes de tipicidade figuram circunstâncias que pou co ou nada têm em comum De fato o que há em comum entre a ausência de tipifica ção de uma conduta e a não atuação dolosa ou culposa do agente O que faz com que a insignificância da ação tenha o mesmo tratamento sistemático da inexistência de nexo causal ou do erro de tipo inevitável Não obstante isso todas essas circunstância são consideradas excludentes de tipicidade O mesmo raciocínio pode ser feito quanto às excludentes de ilicitude De fato que existe em comum entre a legítima defesa o estado de necessidade e o consentimento válido do ofendido se seus requisitos são tão diversos Releva notar inclusive que diversamente do que ocorre com a legítima defesa real é possível estado de necessi dade contra estado de necessidade No que tange às excludentes de culpabilidade cabe perguntar o que faz com que a inimputabilidade decorrente de doença mental o erro de proibição inevitável e a coa ção moral irresistível tenham o mesmo tratamento sistemático E o que justifica que a coação física irresistível seja tratada como excludente de tipicidade e a coação moral irresistível como excludente de culpabilidade Vêse assim quão indeterminados podem ser os conceitos de tipicidade ilicitude e culpabilidade relativamente ao seu possível conteúdo e limites dada a disparidade dos conceitos subjacentes a cada um desses elementos do delito Não é por outra razão aliás que o conceito analítico tripartido de crime tem resistido incólume à evolução da teoria do delito por mais significativa Em verdade a única coisa realmente comum a todas essas circunstâncias é o seu resultado prático todas conduzem a uma sentença penal absolutória a qual resulta 203 PAULO QjEIROZ em última análise de uma decisão política que tem por desnecessária ou inadequada a imposição da pena pública Por tudo isso não é de todo exata a afirmação de Roxin no sentido de que a di ferença entre excludentes de antijuridicidade e de culpabilidade entre justificação e exculpação consiste em que uma conduta justificada é reconhecida como legal pelo legislador está permitida e há ser suportada por todos enquanto uma conduta exculpa da não é aprovada e por isso continua como não permitida e proibida Assim embora não seja punida em geral não tem porque ser tolerada por quem é vítima de uma con duta antijurídica44 Afinal não existe diferença ontológica entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade seja porque conduzem ao mesmo resultado prático absolvição seja porque poderiam em tese ter o mesmo tratamento sistemático seja porque a exa ta classificação depende de critérios políticos seja porque a mesma circunstância ora poderá ser considerada como excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabi lidade a depender da interpretação judicial e doutrinária Basta relembrar como se deu a sistematização do dolo e da culpa JesúsMaria Silva Sánchez tem razão portanto quando assinala que a diferença entre justificação e exculpação é apenas de grau e que em tese o legislador poderia transformar uma causa de exculpação em causa de justificação e viceversa 45 Finalmente os atuais conceitos de tipicidade como juízo de subsunção do fato ao tipo de antijuridicidade como uma relação de contrariedade entre o fato típico e o direito como um todo e de culpabilidade como juízo de reprovação que incide sobre o autor de um fato típico e ilícito por lhe ser exigível uma conduta diversa encerram uma grande simplificação que está longe traduzir o que de fato acontece quando dize mos que uma conduta é típica ilícita e culpável Aliás a própria relação de sucessão lógica entre tais categorias é questionável46 Com efeito quanto à tipicidade não se trata a rigor de um juízo lógico de sub sunção senão de um juízo analógico visto que conforme vimos os casos penais nun ca são absolutamente iguais nem desiguais mas mais ou menos semelhantes O direito penal não é um saber lógico mas analógico47 E mais o juízo sobre a tipicidade de um comportamento encerra uma valoração complexa e problemática que envolve considerações de caráter políticocriminal e dogmático que visa entre outras coisas a determinar lo tipo ou tipos penais que incidem no caso isto é dar a exata definição jurídicopenal do fato aí incluída a 44 Roxin idem 45 Aproximación ai derecho penal contemporâneo Barcelona Bosch 1992 p 4 1 4 46 Basta lembrar com efeito que não discutimos em princípio a tipicidade e ilicitude quanto aos inimputáveis em razão da idade visto que o Código Penal não lhes é aplicável de modo que a inimputabilidade constitui questão prejudicial e anterior à análise das demais categorias do delito 47 Arthur Kaufmann cit 204 103 1 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE TIPO análise sobre se há unidade ou concurso de crimes material formal ou continui dade delitiva 2se o tipo penal de que se trata é conforme a Constituição e em que termos o é 3o âmbito de proteção ou de incidência do tipo isto é determinar o que ele de fato proíbe e não proíbe 4se a conduta criou um risco proibido juridicamente relevante e se houve realização desse risco no resultado causalidade e imputação objetiva 5se a conduta é significativa ou não princípio da insignificância 6a que título o fato é punível se doloso ou culposo imputação subjetiva 7havendo con sentimento do ofendido determinar se é válido e quais são suas consequências 8 se incidem excludentes de tipicidade erro de tipo etc 9a condição legal do agente autor coautor ou partícipe lüse há um fatotipo consumado ou tentado l lse é também aplicável à pessoa jurídica De acordo com a teoria dos elementos negativos a tipicidade exigiria ainda a apreciação da incidência de causas de justificação legítima defesa etc Ademais as excludentes de tipicidade acabam por também excluir a própria cul pabilidade quer por lhe preceder logicamente quer porque também nelas está fre quentemente pressuposto um juízo de exculpação Assim por exemplo tanto no erro de tipo inevitável quanto na coação física irresistível excludentes de tipicidade não é exigível do agente conduta diversa isto é conforme o direito O mesmo deve ser dito mutatis mutandis da complexa valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade conforme vimos Enfim o juízo sobre a tipicidade a ilicitude e a culpabilidade encerra em última instância uma imputação de culpa penal Tratase evidentemente de um juízo com plexo que envolve a ponderação de interesses os limites de incidência da proibição legal a significância da ação a atuação dolosa ou culposa a legitimidade da ação o conhecimento da proibição a exigibilidade de conduta diversa etc Realmente se atendendo a critérios políticocriminais o legislador penal houve por bem isentar o réu de pena nos casos de erro de tipo e de proibição inevitável de legítima defesa de estado de necessidade e de embriaguez involuntária completa é porque entendeu que em todos esses casos a imposição de sanção penal implicaria uma violência inútil e desnecessária quer para fins de prevenção geral quer para fins de prevenção especial Propomos por isso unificar ou substituir a terminologia atual excludentes de ti picidade de ilicitude e de culpabilidade por excludentes de criminalidade48 uma vez que todas implicam a exclusão do crime e a consequente isenção de pena Por conse guinte matar alguém simplesmente tal como consta do art 121 do Código constitui um homicídio mas não um crime de homicídio pois a conduta só configurará um cri me em sentido técnico se não concorrerem excludentes de criminalidade 48 Tratase de expressão um tanto em desuso e que em geral era utilizada para designar as excludentes de ilicitude 205 PAULO QlEI ROZ Quanto às medidas de segurança temos que a sua imposição só será legítima quando não estiver presente alguma excludente de criminalidade exceto a inimputabi lidade mesma Significa dizer que é lícito ao inimputável autor de crime alegar toda e qualquer excludente de tipicidade de ilicitude ou de culpabilidade segundo a termi nologia atual sob pena de violação aos princípios de isonomia e proporcionalidade Afinal a medida de segurança sanção penal que é constitui em última análise uma pena embora com outro nome Consequentemente há de exigir os mesmos pressupos tos de punibilidade válidos para todos Também aqui cabe dizer à maneira de Nietzsche que não existem fenômenos psiquiátricos mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos Tratase pois de uma imputação Em síntese 1 a distinção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação mas é dela resultado 2 essa classificação é determinada por critérios políticocriminais de sistematiza ção 3 o legislador pode em tese darlhes tratamento unitário ou transformar exclu dentes de tipicidade em excludentes de culpabilidade ou em causas de justifica ção e viceversa 4 as excludentes legais conduzem ao mesmo resultado prático uma sentença pe nal absolutória 5 nem sempre as chamadas causas de justificação fazem coisa julgada extrapenal pois os demais ramos do direito trabalham com critérios próprios de imputação e responsabilização 6 não há muito em comum sob o nome de excludente de tipicidade de ilicitude ou de culpabilidade 7 a distinção é perfeitamente superável 8 propomos substituir tais expressões por excludentes de criminalidade 9 os pressupostos das medidas de segurança são em princípio os mesmos da pena à exceção da inimputabilidade mesma lüao inimputável devem ser asseguradas todas as garantias penais e processuais penais aplicáveis ao imputável Consequentemente não é legítima a sua imposi ção sempre que o agente puder alegar com sucesso excludentes de culpabilida de inclusive a exemplo da coação moral irresistível a embriaguez involuntária completa etc 206 Sumário 1 Crimes dolosos culposos e preterdolosos 2 Crimes materiais formais e de mera conduta 3 Crimes comissivos omissivos próprios e omissivos impróprios 4 Crimes comuns e especiais 5 Crimes principais e acessórios 6 Crimes instantâneos permanentes e de estado 7 Crimes simples e compostos ou complexos 8 Crimes de dano e de perigo 81 Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato 9 Crimes unisubjetivos e plurisubjetivos 10 Crimes de ação única e de ação múltipla 11 Crimes habituais 1 CRIMES DOLOSOS CULPOSOS E PRETERDOLOSOS De acordo com o Código art 18 há crime doloso quando o agente quer o resultado dolo direto ou assume o risco de produzilo dolo eventual culposo quando Der causa ao resultado por imprudência negligência ou imperícia e preterintentional é o crime cujo resultado vai além da intenção do agente havendo dolo quanto à ação e culpa quanto ao resultado v g fere a vítima levemente sem pretender causarlhe maior dano mas ela vem a óbito por ser fisicamente muito frágil Já o Código Penal português art 14 mais completo dispõe que 1 age com dolo quem representando um fato que preenche um tipo de crime atua com intenção de o realizar 2 age ainda com dolo quem representar a realização de um fato que preenche um tipo de crime com consequência necessária da sua conduta 3 quando a realização de um fato que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta há dolo se o agente atuar conformandose com aquela realização No item 1 há dolo direto de primeiro grau no item 2 dolo direto de segundo grau e no item 3 dolo eventual E age com negligência art 15 quem por não proceder com o cuidado que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz 1 representar como possível a realização de um fato que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização ou 2 não chega sequer a representar a possibilidade de realização do PAULO QlJEIROZ fato No item 1 há culpa consciente ou com previsão no segundo culpa inconsciente ou sem previsão Também o nosso Código Penal Militar art 33 II prevê expressamente as duas formas de crime culposo culposo quando o agente deixando de empregar a caute la atenção ou diligência ordinária ou especial a que estava obrigado em face das circunstâncias não prevê o resultado que podia prever ou prevendoo supõe leviana mente que não se realizaria ou que poderia evitálo 2 CRIMES MATERIAIS FORMAIS E DE MERA CONDUTA São crimes materiais ou de resultado aqueles em que o tipo penal descreve um comportamento cuja consumação entendida como completa realização dos elemen tos do tipo somente ocorre com a produção do resultado nele previsto Assim por exemplo o homicídio CP art 121 e o aborto art 124 em que a consumação se dá com a morte da pessoa ou do feto não bastando a prática de atos de execução de sorte que não ocorrendo o resultado o crime será simplesmente tentado Crimes formais de consumação antecipada são aqueles cuja consumação ocorre com a realização da ação descrita no tipo pouco importando o resultado que consti tui em consequência mero exaurimento de um crime já perfeitamente consumado Assim por exemplo a concussão CP art 316 ou a extorsão mediante sequestro CP art 159 cuja consumação se dá respectivamente com o fato de o funcionário público exigir ação vantagem indevida e de sequestrar pessoa com o fim de obter qualquer vantagem independentemente da efetiva obtenção da vantagem referida no tipo resul tado Por conseguinte a eventual obtenção da vantagem constituirá mero exaurimento de um crime já plenamente consumado isto é consumado com o só exigir vantagem indevida ou sequestrar pessoa com o fim de obter qualquer vantagem A propósito a Súmula 96 do STJ dispõe que o crime de extorsão consumase independentemente da obtenção da vantagem indevida Por fim nos chamados crimes de mera conduta2 crimes sem resultado o tipo re fere apenas uma ação positiva ou negativa sem aludir a qualquer resultado de modo que a consumação se dá com a prática da ação ou omissão nele previstos Assim o entrar ou permanecer clandestina ou astuciosamente em casa alheia CP art 150 o devassar correspondência alheia CP art 151 etc em que só a realização de tais ações basta para consumar o crime Notese que semelhante classificação decorre de conveniência políticocriminal de modo que se o legislador quisesse transformar um crime material em formal ou um de mera conduta em formal ou material bastaria alterar a redação do tipo As sim por exemplo a extorsão mediante sequestro tornarseia um crime material se em vez de se declarar que constitui crime sequestrar pessoa com o fim de obter 2 Nem todos admitem crimes sem resultado No sentido de que não existe crime sem resultado Hun gria Comentários v II p 1 3 e ss 208 1041 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES qualquer vantagem se dissesse obter mediante sequestro de pessoa qualquer vantagem Por conseguinte é a redação de cada tipo penal especialmente o verbo usado na oração que permitirá inferir se estamos diante de um crime material formal ou de mera conduta Em geral quando o legislador considera que a ação ou omissão já é em si mesma grave antecipa desde logo a consumação da infração caso contrário condi ciona a consumação à produção de um dado resultado razão pela qual se este não se realizar haverá em princípio crime tentado O mesmo deve ser dito quanto às demais classificações referidas a seguir pois o critério determinante é sempre a redação de cada tipo penal Naturalmente que tais classificações não são excludentes razão pela qual um mesmo delito poderá ser simultaneamente classificado de diversas formas Assim por exemplo o homicídio é classificável como doloso ou culposo comissivo ou omissivo de dano unissubjetivo material instantâneo de única ação comum principal sim ples etc 3 CRIMES COMISSIVOS OMISSIVOS PRÓPRIOS E OMISSIVOS IM PRÓPRIOS Comissivos são os crimes é a regra cujos tipos descrevem um comportamento positivo razão pela qual o crime consiste em fazer o que a lei proíbe matar furtar etc Nos omissivos próprios contrariamente o tipo criminaliza a abstenção da condu ta nele prevista isto é tipificase um não fazer algo que a lei impõe motivo pelo qual haverá crime se o agente se abstiver de agir como a lei manda v g omissão de socorro CP art 135 e omissão de notificação de doença CP art 269 Já nos crimes omis sivos impróprios ou comissivos por omissão a lei equipara a omissão à ação razão pela qual quando o agente não fizer o que a lei obriga responderá como se o fizesse ativamente comissivamente a título de dolo ou culpa v g mãe que deixa o filho morrer por inanição Na omissão imprópria portanto a omissão equivale jurídicope nalJ11ente à ação desde que o agentegarante não aja de modo a evitar um resultado concretamente evitável Notese que para a caracterização de um crime omissivo impróprio é necessário que além de um dever legal de agir o agente tenha o dever de evitar o resultado nos temos do art 13 2º do Código por se encontrar na condição legal de garante ou garantidor Assim por exemplo se A salvavidas deixa de socorrer uma criança que se afoga responderá por homicídio e não simples omissão de socorro por ter o dever legal de agir e evitar o resultado morte se porém A não é salvavidas não é garante na forma do art 13 2 do CP responderá apenas por omissão de socorro e não por homicídio por não ter o dever legal de evitar o resultado morte mas um simples dever legal de agir A distinção entre omissão própria e omissão imprópria reside nisso portanto nos crimes omissivos próprios o agente responde pela só pela omissão nos omissivos 209 rAULO QIJEIROZ impróprios o agentegarante responde pelo resultado tratandose de uma omissão qua lificada e por isso mais gravemente punida Na omissão própria há imputação da sim ples omissão já na omissão imprópria existe imputação do próprio resultado visto que a omissão é equiparada jurídicopenalmente à ação Enfim a omissão própria que pressupõe um dever geral de assistência é um cri me comum praticável por qualquer pessoa e a omissão imprópria é um delito especial que só pode ser praticado por quem se encontra na condição legal de garante médico salvavida pais etc Finalmente tipos penais há que admitem as duas formas comissiva e omissiva a exemplo do abandono de incapaz CP art 133 que pode se realizar tanto por ação vg conduzir o incapaz para um determinador lugar e lá deixálo como por omissão vg abandonálo no lugar onde já se encontra O mesmo ocorre com a prevaricação CP art 319 que consiste em retardar ou deixar de praticar omissão indevidamen te ato de ofício omissão bem como praticálo contra a lei ação 4 CRIMES COMUNS E ESPECIAIS Crime comum é a regra é aquele em que o tipo não exige condição especial algu ma do sujeito ativo motivo pelo qual pode ser praticado por qualquer pessoa a exem plo do homicídio do furto etc Já no crime especial ou próprio é a exceção contra riamente o tipo exige uma qualidade especial do agente razão pela qual só pode ser praticado por algumas pessoas em particular a exemplo do peculato CP art 312 e do patrocínio infiel CP art 355 que só podem ser praticados respectivamente por fun cionário público e advogadoprocurador Apesar disso no caso de concurso de agentes coautoria e participação é possível imputar crime especial a quem não tem a qualidade exigida pelo tipo desde que o au tor a detenha hipótese em que haverá comunicação das circunstâncias de caráter pes soal vg responde por peculato quem embora não sendo funcionário público auxilia o servidor público a praticálo A doutrina refere ainda os crimes de mão própria que são aqueles que exigem de parte do autor a realização pessoal do tipo não se admitindo por isso a realização por interposta pessoa autoria mediata como bigamia e falso testemunho Ao contrá rio do que comumente se afirma temos que a participação nos delitos por mão própria é possível visto que o partícipe coopera na ação de outro e em consequência não pre cisa ter a qualidade de autor 5 CRIMES PRINCIPAIS E ACESSÓRIOS Principais é a regra são os crimes cuja configuração não depende da ocorrên cia de qualquer outra infração penal homicídio furto etc uma vez que são criados autonomamente sem remissão expressa ou tácita a nenhum outro delito Acessórios é a exceção ou dependentes são os que pressupõem necessariamente a ocorrência prévia de outro crime de cuja existência dependem Assim a receptação CP art 180 210 que somente se caracteriza a coisa receptada por produto de crime vale dizer por produto de furto roubo etc de modo que se o delito principal pressuposto não restar configurado não cabe cogitar do crime acessório E o acessório segue em princípio a sorte do principal Dizer que um delito é acessório relativamente a outro de cuja existência depende não significa todavia que havendo concurso o tipo principal prevalecerá necessariamente sobre o subsidiário pois pode ocorrer de a lei autonomizar este último e inclusive castigálo mais gravemente Exemplo disso é o crime de financiamento para o tráfico Lei n 113432006 art 36 que embora presuponha a existência do tráfico propriamente dito art 33 predomina sobre ele na hipótese de concurso de tipos 6 CRIMES INSTANTÂNEOS PERMANENTES E DE ESTADO Dizse instantâneo é a regra o crime cuja realização se dá com o cometimento da ação prevista no tipo isto é que se perfaça com a prática da conduta típica matar etc a título consumado ou tentado Nele a lei criminaliza uma açãoomissão que uma vez praticada não admite permanência Como esclarece Ney Fayet Júnior instantâneos são aqueles delitos nos quais a ofensa é imediata consumandose ou tentandose em um determinado momento sem projeção do estado ilícito no tempo Já o permanente é a exceção é o delito cuja consumação por ser passível de diferimento se estende no tempo enquanto persiste a vontade do agente de realizar a conduta típica renovando a violação ao bem jurídico respectivo a exemplo de sequestrar pessoa guardar droga ilícita etc Assim enquanto nos delitos instantâneos a ofensa ao bem jurídico cessa com a produção do resultado ou com a cessação da atividade criminosa os permanentes a ofensa se renova no tempo enquanto não cessa a atividade típica pois persiste a violação ao bem jurídico por decisão do autor do fato Por sua vez os crimes de estado são os que embora criem uma situação ilícita mais ou menos duradoura a consumação ou tentativa ocorre com a realização da ação ou omissão prevista no tipo visto que a lei criminaliza a produção de um estado antijurídico mas não a sua manutenção Exemplo disso é a bigamia CP art 235 uma vez que a lei tipifica unicamente a ação de contrair casamento sendo casado novo casamento mas não a manutenção dessa situação illegal Consequentemente o crime se consumará quando o autor contrai PAULO QEI ROZ um novo casamento Todavia a persistência dessa situação ilegal não implica perma nência mas exaurimento porque a vida conjugal que se segue ao matrimônio não im porta em contrair novo casamento O mesmo ocorre com o furto e a falsificação de documentos visto que a fruição da coisa subtraída e a guarda do documento falsificado não configuram permanência dos mencionados tipos penais Diverso é o sequestro CP art 148 em que se tipifica a conduta de privar alguém de sua liberdade mediante sequestro ou cárcere privado logo enquanto o agente mantiver a situação de sequestro ou cárcere privado o crime estará permanentemente se renovando e se consumando A distinção entre crime permanente e de estado consiste no seguinte nos perma nentes a lei tipifica tanto a realização da ação quanto a eventual manutenção dessa ação a qual importará em dilatação da consumação Diversamente nos delitos de esta do a lei tipifica exclusivamente a realização da açãoomissão mas não a manutenção da ação já realizada No crime de estado por conseguinte a lei pune a realização da ação típica mas não o estado antijurídico que se segue à sua consumação Apesar da duração da situa ção antijurídica os crimes de estado são instantâneos portanto 5 Falase ainda de crimes instantâneos de efeitos permanentes quando embora consumado o delito de forma instantânea seus efeitos permanecem homicídio estu pro etc Mas esse classificação é inútil6 Não se deve confundir porém crime permanente com crime continuado pois na continuação delitiva CP art 71 há em verdade vários crimes praticados em concurso material v g vários furtos mas a lei por motivo de política criminal trataos como se constituíssem um único crime Naturalmente que embora distintos crimes permanentes e continuados não são incompatíveis razão pela qual é perfeitamente possível que um delito permanente seja praticado em situação de continuidade delitiva v g sequestro de membros de uma família em dias seguidos Advirtase que apesar da distinção a Súmula 711 do STF equiparou os crimes continuados aos permanentes para efeito de aplicação da lei penal no tempo ao dispor que a lei penal mais grave aplicase ao crime continuado ou ao crime permanente se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência vide capítulo específico 5 Como escreve Ney Fayet Júnior não se pode confundir o estado consumativo que se estende no tempo elemento configurador dos delitos permanentes com os efeitos naturais de alguns crimes que muitas vezes podem perpetuarse temporária ou permanentemente apesar de os crimes serem instantâneos Do crime continuado Porto Alegre livraria do advogado editora 2012 p 1 1 1 6 Também reconhecendo a inutilidade da mencionada classificação José Frederico Marques Tratado de Direito Penal v II p 366 Campinas Bookseller 1997 Frederico Marques cita ainda Antolisei e Petrocelli 212 Discutese se o estelionato contra a previdência social é um crime permanente ou instantâneo visto que deferido o benefício indivíduo é comum o agente continuar a percebêlo por meses ou anos a fio questionase então se tais benefícios pagos seguidamente constituem exaurimento permanência ou continuidade delitiva Os tribunais ora decidem num sentido ora noutro Parecenos que o caso é de permanência relativamente ao autor que se apropria das contribuições previdenciárias Com efeito e conforme vimos dizse permanente o crime sempre que a consumação se dilata no tempo enquanto se mantêm por decisão do agente a situação ilícita de violação ao bem jurídico como se dá por exemplo com o sequestro pois enquanto se mantiver a vítima em cativeiro privado de liberdade o ato de sequestrar se renova no tempo e portanto a consumação do crime hipótese diversa do furto vg em que a consumação se perfaz com a subtração da coisa e o eventual uso gozo e fruição da res furtiva não constituem permanência mas mero exaurimento de infração penal já consumada Pois bem análogo ao sequestro é o estelionato previdenciário uma vez que ao persistir em receber obter os benefícios subsequentes o agente está a cada percepção a induzir ou a manter em erro a previdência renovando a ofensa ao bem jurídico tutelado jurídicopenalmente Ademais se se entender que o caso não é de permanência mas de simples exaurimento de um crime consumado com o deferimento e percepção do primeiro benefício estarseia a reconhecer indiretamente como atípica ou lícita a conduta do agente de manter o INSS em erro como se lhe assistisse um legítimo direito à percepção dos benefícios Finalmente alicerçado na tese de crime instantâneo a percepção contínua dos benefícios indevidamente pagos a cada mês poderá configurar continuidade delitiva nos termos do art 71 do Código sempre que o agente os obtiver ilicitamente para si ou para outrem mantendo o INSS em erro mediante ardil etc CP art 171 7 CRIMES SIMPLES E COMPOSTOS OU COMPLEXOS Crime simples é aquele em que o tipo penal descreve uma única lesão jurídica homicídio matar alguém furto subtrair coisa alheia móvel Dizemse compostos ou complexos os crimes em que o tipo alude a mais de uma lesão são crimes que resultam enfim da fusão de mais de um tipo penal Exemplo roubo art 157 que deriva da fusão de furto art 155 constrangimento ilegal art 146 e latrocínio que decorre da fusão de roubo homicídio PAULO QJEIROZ A importância dessa classificação decorre sobretudo do disposto no art 101 do CP que dispõe que quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes cabe ação pública em relação àquele desde que em relação a qualquer destes se deva proceder por iniciativa do Ministério Público Exatamente por isso o estupro CP art 213 qualificado por lesão grave ou morte da vítima 1 º e 2º é um crime de ação penal pública in condicionada e não um delito de ação penal pública condicionada à representação como poderia parecer à primeira vista art 225 É que tanto a lesão grave quanto o homicídio são delitos de ação penal pública incondicionada autonomamente consi derados 8 CRIMES DE DANO E DE PERIGO Crimes de dano são os que se consumam com a produção de um dano ao bem jurídico tutelado pelo respectivo tipo e os de perigo são os que se consumam com a simples produção de um perigo juridicamente relevante Crimes de dano são enfim aqueles em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de um bem jurídico de modo que a conduta somente assume relevância jurídicopenal quando se verificar um dano lesão real ou potencial consumação ou tentativa ao in teresse tutelado v g homicídio roubo Nos crimes de dano portanto a consumação pressupõe a produção de uma lesão9 Já nos crimes de perigo o legislador ao descrever o tipo contentase com o perigo que a ação representa relativamente ao bem jurídico O perigo será concreto quando a descrição do tipo aludir a um perigo ocorrido real de lesão devendo ser comprova do E o perigo será abstrato ou presumido quando o legislador tipificar a conduta por julgála perigosa em si mesma independentemente da demonstração de qualquer dano sentido Roxin Os delitos simples protegem só um bem jurídico e os compostos vários Delitos compostos são entre outros o furto 242 que se dirige contra a propriedade e a custódia Derecho Penal Parte Gereral Madrid Editorial Civitas 1 997 p 337 e Jescheck de acordo com o número de bens jurídicos protegidos no preceito penal há delitos simples e compostos Tratado de Derecho Penal Parte General Granada Comares 1 993 p 239 Já na doutrina espanhola Muiíoz Conde e Mercedes Arán definem crimes complexos como aqueles que se caracterizam pela concor rência de duas ou mais ações cada uma constitutiva de um delito autônomo mas de cuja união nasce um complexo delitivo autônomo distinto Derecho Penal Parte General 4 ed Valencia Tirant lo Blanch 2000 p 296 E para Rodriguez Mourullo os tipos complexos se caracterizam porque estão integrados por duas ou mais ações que são em si mesmas delitivas Derecho Penal Parte General Madrid Civitas 1 978 p 274 9 De acordo com Cezar Bitencourt crime de dano é aquele para cuja consumação é necessária a super veniência da lesão efetiva do bem jurídico E crime de perigo é aquele que se consuma com a simples criação de um perigo para o bem jurídico protegido sem produzir dano efetivo cit p 213 Para Hungria perigo abstrato é o que a lei presume juris et de jure inserto em determinado fato pouco importando que não se realize no caso concreto por alguma circunstância excepcional um perigo efetivo já o perigo concreto é o que se verifica realmente dependendo de tal verificação ocorrência a existência do crime Comentários cit 214 1041 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES ou perigo concreto de dano de sorte que a lei presume o perigo juris et de jure Nos crimes de perigo portanto a consumação pressupõe a simples realização de um peri go real ou potencial Exemplo disso é dirigir embriagado e portar arma de fogo sem autorização legal Naturalmente que o dano e o perigo não se excluem mesmo porque o perigo en cerra uma possibilidade ou probabilidade de dano e o dano é por sua vez a consuma ção de um perigo açãoomissão perigosa Mas que diferença há entre crimes de dano e de perigo se ambos admitem o dano e o perigo como possíveis formas de realização do tipo Nisso nos primeiros crimes de dano o dano constitui a principal forma de realização do tipo consumação e o perigo um modo acessório tentativa Nos crimes de dano a lesão é pois essencial à realização do tipo e o perigo é acidental Já nos segundos crimes de perigo o essencial reside na mera exposição do bem jurídico a um perigo de lesão e o eventual dano irrelevante que é para efeito de consu mação configura em princípio exaurimento de um crime já consumado Justamente por isso irrelevância da lesão o crime se consuma independentemente de dano ao bem jurídico E a eventual lesão constituirá ou exaurimento de um crime de perigo ou caracterizará algum delito de dano consumado ou tentado É que como regra os cri mes de perigo são acessórios relativamente aos de dano Dizer que o crime de perigo abstrato se consuma independentemente de um peri go real não significa porém que possam existir tipos penais que criminalizem o não perigo isto é que resultem de um simples capricho do legislador de proibir pelo prazer de proibir mesmo porque a intervenção penal implica inevitavelmente limitação de direitos individuais E mais a pretexto de proteger bens jurídicos a intervenção penal pode eventualmente significar a violação sistemática desses bens Consequentemente se o perigo concreto ou abstrato pressupõe a possibilidade de dano não há crime algum se se verificar a inocuidade de um determinado produto ou substância Justamente por isso é que não há crime de tráfico de droga se a subs tância apreendida já não dispunha de seu princípio ativo visto que a rigor droga não é mais nem há crime de moeda falsa se se tratar de falso grosseiro por carecer de potencialidade lesiva É que embora o tráfico e a moeda falsa sejam classificáveis como crime de perigo eou formal os quais por conseguinte consumamse inde pendentemente de a droga ou a moeda ter sido efetivamente usada ou posta em cir culação prejudicando indivíduos concretos tais infrações não se perfazem sempre que se constatar a ineficácia absoluta do meio ou a absoluta impropriedade do objeto crime impossível CP art 17 Não se deve pois confundir a presunção legal de perigo concreto ou abstrato com a ausência mesma de perigo visto que o não perigo não é passível de criminaliza çãopenalização legítima 215 PAULO Q1lElROZ 81 Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato Discutese a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato visto que a lei aca ba por criminalizar a simples desobediência à norma independentemente da realiza ção de um perigo concreto10 Parecenos porém que há casos em que o perigo de lesão é de tal modo impor tante que a sua tipificação é plenamente justificável razão pela qual não cabe afir mar aprioristicamente a inconstitucionalidade de todo e qualquer delito de perigo abstrato11 O problema fundamental reside portanto no tipo de perigo que se pretende evitar e na forma como se realiza essa proteção E apesar de frequente os crimes de perigo não podem em princípio ser punidos com penas superiores aos correlatos crimes de dano sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade mesmo porque a criminalização do perigo visa a evitar os deli tos de dano razão pela qual constitui uma forma de antecipação da tutela penal 9 CRIMES UNISSUBJETIVOS E PLURISSUBJETIVOS Unissubjetivos é a regra são os crimes que podem ser praticados por uma única pessoa podendo haver concurso eventual de agentes a exemplo do homicídio e do roubo Já os plurissubjetivos ou de concurso necessário exigem necessariamente para a sua caracterização a intervenção de mais de uma pessoa no crime como a associa ção criminosa CP art 288 pode o concurso segundo os interesses dos concorrentes ser paralelo associação criminosa convergente bigamia ou divergente rixa Em suma nos crimes plurissubjetivos é a exceção a participação de várias pes soas no evento imputáveis ou não é essencial ao tipo legal de delito já nos delitos unissubjetivos a participação de vários sujeitos é acidental os quais podem ser pratica dos por única pessoa motivo pelo qual se mais de uma pessoa tomar parte no delito haverá concurso eventual de agentes coautoria ou participação 10 CRIMES DE AÇÃO ÚNICA E DE AÇÃO MÚLTIPLA De única ação é a regra é o crime cujo tipo recorre a um único verbo matar se questrar de múltipla ação ou de conteúdo variado quando apela a vários verbos in criminadores como na receptação adquirir receber transportar ou no tráfico de dro gas importar exportar remeter etc hipótese em que se houver a realização de mais de uma ação v g adquirir a droga transportála e vendêla num mesmo contexto de 1 O No sentido da constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato HC nº 1 06 1 63RJ do STF Ministro Gilmar Mendes Informativo nº 679 2012 1 1 Vide Luís GRECO Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Brasil v 12 n 49 julhoagosto de 2004 216 1041 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES ação configurarseá um só e único delito E se se entendesse que existem vários cri mes violarseiam os princípios de legalidade e ne bis in idem A tentativa nos crimes de múltipla ação é perfeitamente possível mas dificilmente ocorre porque embora em relação a alguns dos verbos a ação possa ser considerada apenas tentada dáse em geral a consumação pura e simples em virtude da realiza ção plena de outros verbos típicos Assim por exemplo o autor que é preso no aeropor to com droga na mala para exportála responde por crime consumado visto que ape sar de a ação de exportar não ter se consumado ele já havia incorrido noutros verbos típicos adquirir guardar transportar etc E o crime é traficar droga formado de múltiplas ações e não exportar simplesmente 11 CRIMES HABITUAIS Dizemse habituais os crimes cuja realização pressupõe forçosamente a prática de um conjunto de atos sucessivos de modo que cada ato isoladamente considerado constitui um indiferente penal ou seja são delitos que reclamam habitualidade por traduzirem em geral um modo de vida do autor Assim por exemplo a casa de prosti tuição art 229 o exercício ilegal da medicina art 282 o curandeirismo art 284 a associação criminosa art 288 etc Em geral a doutrina entende que tais crimes por exigirem habitualidade não ad mitem a forma tentada mas consumada apenas Os crimes habituais não se confundem com os permanentes porque se nos habi tuais a reiteração de atos é um requisito essencial sem o qual o tipo não se perfaz nos permanentes ao contrário a reiteração é acidental motivo pelo qual o crime se realiza independentemente disso a título consumado ou tentado Justamente por isso o ato de sequestrar alguém crime permanente por exemplo já constitui crime consumado ou tentado independentemente de o sequestro se estender no tempo No entanto a asso ciação de três ou mais pessoas para cometer um único crime não configura associação criminosa CP art 288 delito habitual que é Não cabe tampouco confundir crime habitual com crime continuado visto que na continuidade delitiva CP art 71 cada ato isolado constitui crime autônomo diver samente dos habituais em que isso não ocorre Enfim a continuidade delitiva é um concurso material de crimes tratado como constitutivo de crime único Enfim ao contrário do crime continuado as ações repetidas que constituem o cri me habitual quando isoladamente consideradas não configuram infração penal habi tual porque somente a reiteração é que faz surgir um tal delito12 12 Hungria comentários v II p 45 217 1 os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA Sumário 1 Introdução 2 Teoria da equivalência dos antecedentes causais ou da conditio si11e qua 11011 2 1 Alcance 22 Interrupção do processo causal 22 1 Causas absoluta e relativamente independentes 222 Causas absoluta e relativamente inde pendentes irrelevância da distinção 223 Causa superveniente relativamente indepen dente 3 Crítica à teoria da equivalência dos antecedentes causais 4 Relação causal nos crimes omissivos 4 1 Crimes omissivos próprios e omissivos impróprios distinção 42 Causalidade nos crimes omissivos impróprios requisitos 43 Dolo e culpa nos crimes omissivos 44 Inconstitucionalidade dos crimes omissivos impróprios 5 A moderna teoria da imputação objetiva 5 1 Significado e posição sistemática 52 Conceito de risco permitido 53 Crítica á teoria da imputação objetiva 54 Con clusão INTRODUÇÃO Para se fazer uma imputação de crime a alguém é preciso apurar previamente se existe relação de causalidade entre a ação e o resultado porque se não houver ficará prejudicada a análise de tudo o mais A causalidade constitui assim um elemento objetivo prévio dos tipos delitos de resultado Portanto uma questão de imputação objetiva do resultado E fixar critérios precisos de delimitação da causalidade é fundamental para evi tar que o agente responda por resultados de exclusiva responsabilidade de terceiro ou puramente causais estranhos em todo caso à sua vontade Assim por exemplo se A atira contra B com intenção de matar atingindoo em região não letal o qual no en tanto vem a falecer em virtude de erro médico A não pode responder por homicídio consumado mas tentado apenas porque do contrário seria responsabilizado por ato de terceiro imprudência médica violandose os princípios de proporcionalidade pes soalidade da pena e legalidade visto que não se pode dizer a rigor que A matou B nos exatos termos do art 121 do Código Penal E mais o autor acabaria por responder por crime consumado em caso de simples tentativa Convém notar que o nexo causal é um constructo e não simplesmente uma constatação físiconatural porque para afirmarmos ou negarmos uma dada relação causal é preciso considerar sopesar excluir etc diversas possibilidades Assim há em princípio nexo causal entre a ação de um pastor americano que ateia fogo em exemplares do Corão e as mortes de cidadãos americanos em países muçulmanos que se lhe seguem em represália Existe também relação causal entre a ação de um estudante que divulga na internet imagens íntimas de um seu colega de quarto com o amante e o suicídio que sobrevém à indevida violação da privacidade do estudante vitimado 219 PAULO QJ E I ROZ Apesar disso em nenhum desses casos é possível imputar crime de homicídio quer por parte do pastor quer por parte do aluno que violou a privacidade do colega No primeiro caso porque o nexo causal embora necessário não é suficiente à caracte rização da responsabilidade penal E no segundo caso porque não se trata de omissão penalmente relevante visto que o estudante que viola a privacidade alheia não é garan te nos termos da lei A moderna teoria da imputação objetiva tem razão portanto quando prestigia uma construção e compreensão do tipo a partir de elementos essencialmente norma tivos Aliás com alguma frequência também a vítima tem uma papel fundamental no desencadeamento da causalidade e nem por isso negamos o nexo causal exceto em casos extremos vg autocolocação em risco De todo modo o nexo causal embora necessário não é suficiente para a configu raçãoimputação de crime de resultado visto que são indispensáveis outros elementos para tanto dolo culpa etc Finalmente para a verificação do nexo causal importam em princípio as causas imediatas e não as mediatas ou remotas 2 TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES CAUSAIS OU DA CONDITIO SINE QUA NON Da relação causal cuida o art 13 caput do Código Penal dispondo que o resul tado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa Considerase causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido O Código adotou portanto a teoria da conditio sine qua non condição sem a qual não ou teoria da equivalência dos antecedentes causais 1 embora de forma mitigada uma vez que o 1 º do referido artigo a relativiza consideravelmente teoria cuja formulação se deve a Julius Glaser 1858 e em especial a Maximilian von Buri 1873 magistra do do Supremo Tribunal do Reich e segundo o qual causa é toda e qualquer condição que concorra para a produção do resultado não se distinguindo entre causa e concausa ou entre causa e condição já que os antecedentes causais se equivalem daí o nome teoria da equivalência dos antecedentes causais De acordo com essa teoria a questão de quando uma conduta pode ser considera da como causa de um evento há de ser resolvida por meio de uma fórmula heurística de conteúdo hipotético a fórmula da conditio sine qua non 2 é dizer para saber se determinada condição pode ser considerada causa do resultado deverseá utilizar o 1 Apesar disso de acordo com Juarez Tavares o Código Penal tendo em vista a questão das concausas supervenientes e com o propósito de limitar o regresso infinito do processo causal procurou dispor acerca da interrupção da causalidade por meio de uma fórmula que praticamente desnatura a teoria da condição por ela adotada a superveniência de causa relativamente independente exclui a impu tação quando por si só produziu o resultado os fatos anteriores entretanto imputamse a quem os praticou art 1 3 1 º Teoria do injusto penal cit p 2 1 62 1 7 2 Mir Puig Derecho penal cit p 2 1 9 220 1 os 1 CAUSALIDADE E I M PUTAÇÃO OBJ ETIVA chamado método ou procedimento hipotético de eliminação segundo o qual quando eliminada mentalmente a causa eliminarse o efeito haverá nexo causal caso contrá rio isto é se cessada a causa não cessar o efeito a relação causal não estará configu rada e em consequência o resultado não poderá ser imputado ao agente porque tal conduta não constituirá condição sem a qual o resultado não teria ocorrido conditio sine qua non Assim por exemplo se A atira contra B que morre em razão dos ferimentos sofri dos o nexo causal é indiscutível pois suprimindose hipoteticamente os tiros con cluiremos que o resultado não teria ocorrido B estaria vivo No entanto se se provar v g que B já estava morto horas antes em razão de um ataque cardíaco é evidente que o liame causal não se configuraria e a hipótese seria a de crime impossível CP art 17 visto que não existiria nexo causal entre os disparos e a morte eliminada a suposta causa ainda assim o efeito subsistiria Enfim A não causou a morte de B Para bem compreender a teoria em questão devese considerar que o resultado não teria ocorrido como ocorreu isto é do modo e no tempo em que ocorreu Por isso é que o médico responderá por homicídio consumado se desligar os aparelhos e assim antecipar a morte do paciente ainda que se prove que este morreria inevitavelmente 21 Alcance Semelhante questionamento sobre a existência ou não de nexo causal tem impor tância apenas para os crimes materiais de ação e resultado visto que em se tratan do de crimes formais de consumação antecipada de mera conduta sem resultado e omissivos próprios que não dependem de resultado o resultado naturalístico é irrelevante pois a consumação dáse com o só cometimento da ação incriminada an tecipadamente A eventual produção do resultado será exaurimento de um crime já previamente consumado sempre que se tratar de um crime sem resultado ou de consu mação antecipada 22 Interrupção do processo causal 221 Causas absoluta e relativamente independentes O Código art 13 lº dispõe que a superveniência de causa relativamente inde pendente exclui a imputação quando por si só produziu o resultado os fatos anterio res entretanto imputamse a quem os praticou O nexo causal pode ser interrompido pela superveniência de causa absolutamente independente ou pela superveniência de causa relativamente independente hipóteses em que o resultado não será em princípio imputado ao agente haja vista que num e noutro caso estabelecese a partir da causa superveniente um novo curso causal des de que tenha produzido o resultado por si só Assim por exemplo exemplo de causa absolutamente independente se A fere B que morre a seguir não em virtude da ação de A mas em razão de um atropelamento por C que invade a sua casa em razão dessa 221 PAULO QJEIROZ segunda causa exclusivamente não se poderá imputar a A o resultado morte de B devendo A em consequência responder tão só por tentativa de homicídio em razão do quanto dispõe o caput do art 13 É que a causa superveniente se incumbiu sozinha do resultado e não tendo ligação alguma com a ação ou omissão esta passa a ser no tocante ao resultado uma não causa3 Além disso em tal hipótese o resultado teria ocorrido inevitavelmente apesar da atuação criminosa do agente O mesmo ocorreria se B exemplo de causa relativamente independente depois de sofrer um golpe de faca não letal viesse a morrer no caminho para o hospital em ra zão unicamente de uma colisão da ambulância com outro veículo E tal resultado não pode ser imputado ao agente pela simples razão de que não foi A quem causou a morte de B isto é seu comportamento não foi a causa determinante da morte Mas isso não quer dizer que a conduta de A seja impunível e sim que o resultado final morte não lhe é atribuível devendo responder por crime na forma tentada De todo modo o mais importante consiste sempre em apurar se a nova causa in terrompeu ou não o curso causal vale dizer se ela por si só exclusivamente produziu o resultado porque se realmente houve interrupção do nexo causal o resultado não poderá ser imputado ao agente visto que com o advento da causa superveniente são instaurados dois cursos causais distintos e autônomos Caso contrário se as causas anterior e posterior concorrem causam para o resultado este será imputado a quem o causou mesmo porque o Código não faz distinção entre causa e concausa equivalên cia dos antecedentes causais 222 Causas absoluta e relativamente independentes irrelevância da distin ção Como se vê o Código distingue causas absoluta e relativamente independentes Causas absolutamente independentes são aquelas que sob qualquer consideração si tuamse fora do processo causal em que se insere a ação do agente de modo que se pode dizer que mesmo que o agente se esforçasse não poderia intervir nos seus efei tos já as relativamente independentes são as que embora se insiram no processo cau sal posto em marcha pelo agente produzem o resultado sem contar com a interferên cia de sua ação no momento em que esse resultado se verifica4 Dito mais claramente causas absolutamente independentes são as que não mantêm entre si nenhuma relação de interdependência e relativamente independentes são as que dependem umas das outras de sorte que uma é inimaginável sem a outra Pois bem a doutrina tem afirmado com base na forma como se acha disciplinada a matéria que as causas absolutamente independentes estariam afastadas pela cabe ça do artigo enquanto as relativamente independentes são objeto do seu 1º quan do então importará saber se a ação produziu o resultado por si só Por isso dizse a 3 Hungria Comentários cit v 1 t 2 p 67 4 Juarez Tavares Teoria do injusto penal cit p 2 1 7 222 1 os 1 CAUSA LIDADE E I M PUTAÇÃO OBJETIVA superveniência de causa absolutamente independente sempre interrompe o nexo cau sal devendo o autor responder tão só pelos atos anteriores com base no caput do art 13 não se aplicando o seu lº o qual teria a ver exclusivamente com a superveniên cia de causa relativamente independente Mas a questão não é tão simples assim E em verdade é irrelevante saber se a cau sa superveniente é absoluta ou relativamente independente pois em ambos os casos pode não haver interrupção do curso causal cabendo portanto em tese a imputação do resultado ao agente Imaginese por exemplo exemplo de causas absolutamente in dependentes que embora a vítima tenha sido atingida por um raio fique provado que a morte aconteceu em razão do concurso de um anterior esfaqueamento e do próprio raio Em tal caso não se poderia imputar o resultado ao agente Parecenos que apesar de o segundo evento constituir uma causa absolutamente independente já que nenhuma relação tem com o anterior há sim nexo causal relati vamente à morte E por que isso Porque eliminandose o golpe de faca a morte não teria ocorrido isto é as lesões produzidas pela descarga elétrica não constituíram uma causa sem a qual o resultado não teria ocorrido não é conditio sine qua non pois nem a facada nem o raio isoladamente seriam suficientes para matar Apesar disso isto é configuração do nexo causal conforme a teoria adotada pelo Código não parece justo que no exemplo dado o autor respondesse por crime consu mado sob pena de violação aos princípios de pessoalidade da pena e proporcionalida de Além do mais se houver fundada dúvida a esse respeito é cabível a aplicação do princípio in dubio pro reo de modo a prevalecer a imputação por delito tentado De todo modo a questão decisiva em qualquer caso é saber se a nova causa pouco importa se absoluta ou relativamente independente produziu por si só o resul tado pois só assim é que se dará uma autêntica conditio sine qua non 223 Causa superveniente relativamente independente Conforme vimos causa relativamente independente é a que funcionando em face da conduta anterior conduz como se por si só tivesse produzido o resultado5 Assim no exemplo da vítima que morre ao ser conduzida para o hospital onde seria tratada de uma lesão anterior a segunda causa é só relativamente independente já que não fosse o golpe de faca ela não seria levada para o hospital sofrendo a co lisão que a mataria Esclarecido que se trata de causa relativamente independente hipótese em que se imputará em princípio o resultado ao seu autor restará saber finalmente se essa nova causa superveniente produziu por si só o resultado Se produziu o resultado exclusivamente o agente não responderá por ele porque não deu causa àquele resultado caso contrário o seu autor responderá pelo resultado final concausa 5 Damásio de Jesus Direito penal cit p 257 223 PAULO Qv E I ROZ Apesar de o Código se referir unicamente à causa superveniente a interrupção também poderá ocorrer pelas mesmas razões sempre que se tratar de causa preexis tente ou concomitante6 uma vez que como já assinalado é irrelevante saber o momen to da causa ou se é relativa ou absolutamente independente mas se produziu por si só o resultado Exemplo de causa preexistente se A atira contra B que morre não em razão dos disparos mas em virtude de haver ingerido veneno horas antes A responde rá apenas por homicídio tentado já que não deu causa à morte Daí por que não é exato dizer como faz Damásio de Jesus vêse que as causas preexistentes e concomitantes quando relativamente independentes não excluem o re sultado7 Com efeito ainda que se trate de causa preexistente ou concomitante se ela produziu exclusivamente o resultado ao contrário do que afirma Damásio de Jesus não se poderá imputála ao agente simplesmente porque a sua conduta não foi condi ção sem a qual não se produziria o resultado já que este teria ocorrido ainda que ele nada fizesse Por conseguinte é também irrelevante para efeito de estabelecer o nexo causal se a hipótese é de causa preexistente ou concomitante ou mesmo superveniente O importante não é o tempo da causa mas a sua eficiência no caso concreto Finalmente a questão fundamental reside em dar ao caso concreto uma solução justa e conforme os princípios penais a evitar que o agente responda por resultados estranhos à sua intervenção no fato 3 CRÍTICA À TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES CAUSAIS Apesar de adotada pelo Código e de ter sido considerada um meio infalível de descoberta do nexo causal Mezger há muito a teoria da equivalência tem sido justa mente criticada Inicialmente constitui uma tautologia afirmar que causa é toda ação sem a qual o resultado não teria ocorrido Porque se por exemplo A dispara contra B causandolhe a morte vindo a perícia a constatar que B morreu em virtude dos disparos de arma de fogo será desnecessário recorrer à teoria em questão visto que o nexo causal é dado pelo respectivo laudo E se eventualmente a perícia não puder precisar a causa da mor te o método de eliminação não poderá acrescentar absolutamente nada a esse respeito pois a fórmula da exclusão mental pressupõe aquilo que ela deveria descobrir8 6 De modo semelhante Paulo José da Costa Júnior Parecenos entretanto mais coerente a conclusão seguinte embora o 1 º do art 1 3 se refira somente às causas supervenientes acreditamos que tam bém as antecedentes ou intercorrentes que tenham sido por si sós suficientes em sentido relativo para produzir o evento prestamse à exclusão do vínculo causal penalmente relevante Conse qüentemente teria sido preferível que a nova lei penal houvesse contemplado no 1 º do art 1 3 a par da superveniência a preexistência ou a intercorrência de causa relativamente independente Ou então que se abstivesse de vez de regular a relação de causalidade Nexo causal São Paulo Malhei ros 1996 p 1 08109 7 Direito penal cit p 257 8 Roxin Funcionalismo cit p 278 224 05 CAUSA LIDADE E I M PUTAÇÃO OBJ ETIVA A teoria portanto ao dizer que constitui causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido já pressupõe resolvido o nexo causal Exatamente por isso é que Roxin afirma que ela não só é uma teoria inútil como também capaz de conduzir a erros graves9 No mesmo sentido Jakobs considera que a fórmula é supérflua porque o resultado da supressão mental só pode ser determina do se se conhece de antemão se a condição é causal constituindo um círculo vicioso porque o conceito que se pretende definir aparece oculto no material com o qual se define10 Enfim a teoria da conditio sine qua non não capta diretamente o nexo causal antes o pressupõe pois só quando se souber que entre a causa e o resultado existe relação causal será possível dizer que sem essa causa não se produziria o resultado11 Mas além de já pressupor logicamente a resposta a que se pretende chegar com a sua utilização a teoria da equivalência pode conduzir em muitos casos a uma solução equivocada Assim por exemplo nos casos de causalidade hipotética ou alternativa Na causalidade hipotética em que alguém realiza um fuzilamento ilícito numa guerra sendo que no caso de recusa outra pessoa o teria cometido de maneira exatamente idêntica a ação poderia ser excluída mentalmente sem que o resultado desaparecesse A causalidade de seu comportamento por óbvio não deixa de existir se se quisesse questionála então uma vez que tampouco o comportamento hipotético do segundo é causa chegarseia à absurda conclusão de que a morte da vítima não teve causa algu ma O mesmo vale para o exemplo da causalidade alternativa em que A e B de modo independente adicionam veneno ao café mas a quantidade tanto de A como de B já for por si só suficiente para causar a morte exatamente da mesma maneira então se poderia eliminar a ação de qualquer dos dois sem que o resultado desaparecesse Não existiria também aqui qualquer causalidade para a morte ocorrida de modo que A e B só poderiam ser punidos pelo homicídio tentado quando o correto seria se as duas doses tiveram eficácia real considerar que A e B tenham causado a morte devendo ambos responder por crime consumado12 Por fim em muitas situações de concurso de agentes notadamente na participa ção de menor importância CP art 29 lº poderseia objetar que não existe nexo causal pois suprimida essa participação o resultado teria ocorrido como ocorreu a ensejar a absolvição pura e simples do partícipe Apesar disso vários autores ainda a prestigiam como Luzón Pena para quem a fórmula hipotética da conditio sine qua non continua sendo um instrumento auxiliar muito útil para determinar se em concreto há ou não relação causal nos casos duvi dosos13 9 Roxin Funcionalismo cit p 278 10 Derecho penal cit p 227 1 1 Jescheck Tratado cit p 253254 12 Roxin Funcionalismo cit p 278279 1 3 Curso cit p 372 225 PAULO ÜlJ E I ROZ 4 RELAÇÃO CAUSAL NOS CRIMES OMISSIVOS Como regra geral o Código penal criminaliza e penaliza apenas ações de sorte que o crime consiste em fazer algo que a lei proíbe matar roubar etc mas excepcio nalmente criminaliza e penaliza também omissões isto é o não fazer algo que a lei determina razão pela qual o delito consistirá em deixar de praticar a ação que a norma impõe visto que tanto quanto as ações as omissões podem ser socialmente reprová veis e lesivas de bem jurídico Os crimes omissivos podem ser omissivos próprios ou puros e omissivos impró prios ou comissivos por omissão nos primeiros a lei reprime a omissão em si mesma v g omissão de socorro nos segundos nos quais o agente se encontra na condição legal de garante conferindolhe uma especial relação de cuidado proteção ou vigilân cia punese o agente por não evitar um resultado evitável razão pela qual a omissão imprópria equivale à realização ativa de um crime de resultado14 Na omissão própria há pois uma simples omissão na omissão imprópria uma omissão qualificada pois só quem se encontre na condição legal de garante ou garantidor pode responder nes ses termos tratandose de um crime especial porque requer uma qualificação especial do autor Por isso Jescheck prefere a denominação omissão simples e omissão qua lificada a omissão própria e imprópria respectivamente15 Simplificando na omissão o omitente responde por simples omissão na omissão imprópria responde pelo resultado visto que a omissão equivale jurídicopenalmente à ação Nos crimes omissivos impróprios o agentegarante responde portanto por não evitar um resultado evitável concretamente 41 Crimes omissivos próprios e omissivos impróprios distinção Tanto nos crimes omissivos próprios quanto nos omissivos impróprios o legis lador pune a abstenção do comportamento do agente que deixa de praticar uma ação que lhe é determinada por lei Portanto a omissão não significa não fazer nada mas não fazer algo determinado Blei já que todos os crimes omissivos têm em comum a omissão do dever jurídico constituindo infrações de normas preceptivas16 ou corno diz Welzel omissão não significa um mero não fazer mas não fazer uma ação possível subordinada ao poder final de uma pessoa concreta17 No entanto enquanto os omissivos próprios supõem a violação de um dever de agir simplesmente nos comissivos por omissão o agente tem além desse dever legal de agir um dever legal de evitar o resultado motivo pelo qual o omitente respon de como se o tivesse produzido em razão de o legislador considerar nos omissivos 14 José Ramón SerranoPiedecasas El delito de omisión en el Código Penal espafiol Alé Kumá n 2324 eneroagosto de 2005 1 5 Tratado cit p 5 5 1 16 Jescheck Tratado cit p 54 7 1 7 Derecho penal cit p 238 226 1 os 1 CAUSALIDADE E I MPUTAÇÃO OBJ ETIVA impróprios mais grave a inação dado o tipo especial de relação que se estabelece entre o agente e o bem jurídico tutelado Dito mais claramente nos crimes omissivos impróprios o legislador equipara a omissão à ação de sorte que por exemplo respon de por homicídio quem embora não tendo matado a vítima devia agir no sentido de evitarlhe a morte assim policiais bombeiros salvavidas mas não o fez podendo fazêlo Naturalmente que com a ação requerida nos crimes omissivos próprios pretende se também evitar um resultado valorado negativamente pelo ordenamento jurídico no exemplo seguinte morte da criança mas o legislador não obriga o omitente a impedir o resultado18 diferentemente do que ocorre nos crimes omissivos impróprios em que há a obrigação de evitálo Assim por exemplo se A ao passear pela praia percebe que uma criança se afoga e deixa de prestarlhe socorro embora pudesse fazêlo sem risco pessoal responderá por crime de omissão de socorro CP art 135 No entanto se A for o salvavidas que ali atue a ele será atribuído o resultado a morte da criança como se ele mesmo o ti vesse causado Ou seja se na primeira hipótese imputaselhe a só omissão pelo não cumprimento do dever na segunda se lhe atribui o próprio resultado da omissão a morte O Projeto Alcântara Machado 1969 dispunha inclusive que não impedir um evento que se tem o dever jurídico de evitálo equivale a causálo Assim enquanto os omissivos próprios são delitos de mera conduta os omissivos impróprios são crimes materiais ordinariamente À semelhança dos crimes comissivos nos crimes omissivos o agente responderá a título de dolo ou culpa se tiver se omitido dolosamente responderá por crime doloso devendo o dolo compreender todos os elementos do respectivo tipo e se fora do caso anterior tiver se omitido imprudentemente responderá por crime culposo desde que o crime em questão admita a forma culposa 42 Causalidade nos crimes omissivos impróprios requisitos A relação causal nos crimes omissivos impróprios é normativa por excelência uma vez que no exemplo citado a criança afogada não morreu por ação de A mas tragada pelo mar ação da natureza de modo que A responderia pela só omissão de socorro e não por homicídio se não fosse a previsão do 2º do art 13 que equipara a omissão à ação19 Dizemos que o nexo causal é essencialmente normativo porque uma não ação não pode produzir logicamente uma ação ex nihilo nihilfit 1 8 Jescheck Tratado cit p 5 5 1 19 Como diz Tavares a relevância da omissão como violação do dever de agir é que assinala sua própria existência pois ela pertence àquela categoria dos objetos dependentes de que falava Husserl de modo que não possui existência real por si mesma senão quando associada a outro elemento representado pelo dever As conhovérsias em torno dos crimes omissivos Rio de Janeiro Instituto LatinoAmeri cano de Cooperação Penal 1996 p 29 227 PAULO QJ E I ROZ Naturalmente que uma omissão pressupõe logicamente uma ação porque não existe uma omissão em si mas apenas uma omissão de uma ação determinada 20 Consequentemente a imputação do resultado por causa de uma omissão supõe sem pre que o agente se ache em condições concretas de realizar a ação que se lhe exige O primeiro requisito pois da imputação nos crimes omissivos requisito comum aos crimes omissivos próprios e impróprios é a possibilidade efetiva de realização da ação evitando o resultado lesivo de que se trata já que a lei não se destinando a heróis ou santos não pode pretender exigir o inexigível Daí dispor o Código que a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado art 13 2º A possibilidade de agir é a capacidade de o agente atuar no caso concreto e evitar o resultado que lhe é imputado Precisamente por isso não cabe por exemplo imputar a omissão a alguém que por não saber nadar se recusa a prestar socorro a um banhista que se afoga Mas não basta a possibilidade de ação para evitar o resultado é preciso mais que essa ação que é omitida e é exigida legalmente seja realmente capaz de evitar o resul tado pois do contrário isto é ficando demonstrada a inutilidade da possível atuação do sujeito não caberá a imputação do resultado porque em tal caso não existe relação causal entre a omissão que se requer e o resultado que se realiza princípio de propor cionalidadeadequação Finalmente a imputação do resultado nos crimes omissivos impróprios pres supõe que o omitente tenha o dever legal de agir dever que segundo os termos do Código incumbe às pessoas taxativamente indicadas no 2º do art 13 a saber a quem tenha por lei obrigação de cuidado proteção ou vigilância b quem de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado c quem com seu com portamento anterior criou o risco da ocorrência do resultado Tratandose de pessoa que aí não se inclua o agente não responderá pelo resultado sob pena de violação ao princípio de legalidade podendose no máximo imputarlhe crime omissivo próprio v g omissão de socorro Como se trata de um tipo penal em branco que remete parcialmente a sua com plementação a um dever extrapenal de proteção cuidado etc os pressupostos e limites de incidência da omissão imprópria serão dados em última análise pela norma a que o tipo remete expressa ou tacitamente Assim por exemplo o dever de proteção cuida do e vigilância dos pais limitarseá aos filhos menores ou incapazes que se achem sob sua guarda e enquanto essa situação persiste CC arts 1630 e seguintes O mesmo ocorrerá quanto aos demais garantidores previstos em lei A primeira hipótese a justificar a equiparação da omissão à ação devendo o agen te responder como se tivesse ele mesmo produzido o resultado diz respeito àqueles 20 Welzel Derecho penal cit p 238 228 1os1 CAUSALIDADE E I MPUTAÇÃO O BJ ETIVA que tenham o dever legal de proteger cuidar ou vigiar v g policiais bombeiros mé dicos pais tutores Por dever legal devese entender em princípio dever especial decorrente de lei em sentido formal Exemplo disso está no art 229 da Constituição ao dispor que os pais têm o dever de assistir e educar os filhos menores e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice carência ou enfermidade O mesmo ocorre com os agentes responsáveis pela segurança pública CF art 144 desde que no efetivo exercício de suas atribuições legais Também assim são os casos legais de assistência mútua entre os cônjuges decorrente do casamento ou similar A segunda hipótese de equiparação legal da omissão à ação ocorre quando o agen te assume por qualquer outro modo contratual ou não a responsabilidade de impedir o resultado isto é assume o dever de cuidado proteção ou vigilância v g guarda de segurança particular guia de turismo babá Naturalmente que o dever se limita aos termos do respectivo ato em que se funda a condição legal de garante De acordo com Juarez Tavares devese distinguir todavia a violação de dever de garantidor da violação de cláusulas contratuais Assim por exemplo se o médico se obriga a realizar determinado tratamento em um paciente mas resolve viajar e deixa seu encargo nas mãos de um outro médico que assume esse tratamento não pode res ponder penalmente pelas lesões que resultem de erros no diagnóstico de seu colega embora responda civilmente O mesmo deve ser dito do guia de excursão e outros tan tos que não comparece no dia combinado e não impede a morte do excursionista que resolve fazer sozinho a excursão21 Por último a lei refere a hipótese de o agente que com o seu comportamento ante rior criou o risco de ocorrência do resultado v g um exímio nadador que instiga al guém inexperiente a acompanhálo numa perigosa travessia Embora a lei não o diga é de concluir que a condição legal de garante pressupõe que o comportamento anterior seja ilícito pois não seria razoável que condutas legítimas pudessem gerar semelhante dever criando um ônus tão grave para o omitente Sempre e quando configurada a relevância jurídicopenal da omissão nos termos do art 13 2º do CP o agentegarante responderá a título de dolo ou culpa conforme tenha se omitido intencional ou imprudentemente também em respeito ao princípio da legalidade22 A estrutura aliás do dolo e da culpa no crime omissivo impróprio é 2 1 Teoria dos crimes omissivos Madrid 201 2 p 326 22 Por isso não me parece correto dizer como faz Cláudio Brandão que se um sujeito atropela um pedestre em local ermo e deixa de socorrêlo ao notar que a vítima é um seu desafeto abandonan doa a qual vem a morrer teria de responder nesse caso por homicídio doloso e não por omissão de socorro porque com o atropelamento causou um perigo para a vida da vítima Teoria cit p 36 Nesse caso em verdade o agente deverá responder unicamente pelo que fez isto é matar culposamente incorrendo ipso facto nas penas do crime de homicídio culposo qualificado pela não prestação de socorro CP art 1 2 1 3º e 4º É que o só fato de não prestar socorro à vítima 229 PAU LO QljEIROZ basicamente a mesma do delito comissivo23 admitindose a punição a título de culpa tão só quando houver previsão legal expressa 43 Dolo e culpa nos crimes omissivos Uma vez configurada a relevância jurídicopenal da omissão nos termos do art 13 2º do CP o agentegarante responderá a título de dolo ou culpa conforme tenha se omitido intencional ou imprudentemente A estrutura do dolo e da culpa na omissão é basicamente a mesma do delito comissivo24 admitindose a punição a título de culpa tão só quando houver previsão legal expressa Consequentemente haverá omissão dolosa imprópria sempre que o agente poden do atuar concretamente omite voluntária e conscientemente a ação que lhe é possível e exigível permitindo a realização do resultado típico consumado ou tentado O dolo compreende por conseguinte a consciência e vontade de não realização de uma ação que se sabe típica possível e exigível Por isso o dolo é composto pela cons ciência quanto à possibilidade de agir à necessidade da ação e à projeção de que caso não atue o resultado ocorrerá provavelmente25 No que toca à representação sobre os pressupostos da posição de garantidor es creve Juarez Tavares há de fixarse o seguinte anão é necessário que o omitente conheça a norma legal ou contratual que lhe imponha o dever especial de proteção bastando que conheça a relação fática que lhe dá substrato relação de parentesco pro fissional etc bcaso tenha se comprometido faticamente a exercer a a proteção deve ter conhecimento de que a assumiu cse produziu com sua ação anterior o risco de ocorrência do resultado deve igualmente saber que sua atuação era contrário ao dever e portanto arriscada26 Finalmente haverá omissão imprópria culposa quando fora do caso anterior o agente deixar de prestar a assistência que lhe é imposta por imprudência negligência ou imperícia A omissão culposa pressupõe assim a criação de um risco proibido e realização desse risco no resultado precisamente em razão da omissão de um dever legal de agir não pode converter uma ação culposa em dolosa sob pena de violação aos princípios da legalidade e proporcionalidade 23 Nesse sentido Sheilla Bierrenbach para quem o dolo exige consciência e vontade de preencher o tipo normativo sendo compreensivo portanto da situação típica do poder de agir e da posição de garante Crimes omissivos impróprios Belo Horizonte Dei Rey 2002 p 95 24 Nesse sentido Sheilla Bierrenbach para quem o dolo exige consciência e vontade de preencher o tipo normativo sendo compreensivo portanto da situação típica do poder de agir e da posição de garante Crimes omissivos impróprios Belo Horizonte Dei Rey 2002 p 95 25 Juarez Tavares Teoria dos crimes omissivos Madrid 2012 p 394 26 Idem p 397 230 1 os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA 44 Inconstitucionalidade dos crimes omissivos impróprios Distinguese assim distinção que remonta a Luden27 1840 entre crimes omis sivos próprios e impróprios Nos primeiros o legislador tipifica a simples omissão isto é a mera abstenção de fazer algo legalmente determinado a exemplo da omissão de socorro CP art 135 e da omissão de notificação de doença CP art 269 Nos segundos em razão de um dever legal especial de evitar o resultado imposto a certa e determinada pessoa chamada garante imputaselhe o próprio resultado como se ela mesma o tivesse causado É o que se dá com os pais em relação aos filhos os médicos em relação aos pacientes os salvavidas em relação aos banhistas etc Essa equipara ção legal da omissão à ação CP art 13 2º como assinalado pressupõe a posição de garante e pois dever de agir e de evitar o resultado b possibilidade concreta de agir c causação de um resultado imputável ao omitente A omissão imprópria consis te portanto na não evitação do resultado típico por parte de quem tem o dever legal de agir em defesa do bem jurídico em perigo tentando ao menos impedir sua conversão em dano28 Nesse dispositivo o legislador consagra uma cláusula geral aplicável em tese a todos os crimes que põe omissão e ação em pé de igualdade de modo que por exem plo matar por omissão v g deixando de alimentar o filho é tão grave e reprovável jurídicopenalmente quanto matar por ação v g empurrando o filho da escada Por meio do 2º do art 13 o Código eleva enfim à categoria de criminosos comporta mentos que em princípio ou seriam atípicos ou só configuradores de omissão própria Afinal os omitentes respondem pelo resultado não porque tenham causado a conduta típica mas por não terem agido em defesa do bem jurídico a fim de tentar impedir o evento29 Mas semelhante equiparação é criticável em face de três princípios constitucio nais legalidade pessoalidade da pena e proporcionalidade30 27 Cf Jescheck Tratado cit p 550 28 Sheila Bienenbach Crimes omissivos cit p 60 29 Sheila BieITenbach Crimes omissivos cit p 74 30 No sentido do texto Zaffaroni para quem semelhante equiparação é inconstitucional por violação ao princípio da legalidade implicando analogia in malam partem ao emprestar ao ilícito civil caráter penal pois é inadmissível que se pretenda preservar a legalidade penal com o dever que emerge de outras leis como pode ser a lei civil o descumprimento de um contrato não é matéria do Código Penal senão que constitui um injusto civil e nada autoriza a convertelo em penal na ausência de um tipo escrito igualmente a violação de um dever imposto pelo direito de família tem suas sanções reguladas neste mesmo direito e na falta do tipo legal não é admissível a constrnção judicial de um tipo para impor uma pena quando o legal seja um divórcio por injúria com o seu conseqüente efeito patrimonial En tomo de la cuestión penal p 2 1 5228 Posição conciliadora defende Juarez Cirino dos Santos para quem se os tipos de resultado são lidos como descrição simultànea de ações e de omissões de ações produtoras de resultado p ex matar alguém por ação proibida ou por omissão de ação mandada na posição de garantidor do bem jurídico então a produção do resultado por ação e não evitação do resultado por omissão de ação constituem equivalentes lesões de bens jurídicos igualmente compatíveis com o princípio da legalidade a posição de garantidor seria característica 231 PAULO QjEIROZ Com efeito se o princípio da legalidade implica a máxima taxatividade e preci são das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens31 é evidente que o Código ao se utilizar de uma cláusula geral e grandemente vaga que equipara ação a omissão não atende a tal exigência políticocriminal e se revela clara mente antigarantista Porque afinal o legislador limitase a estabelecer os pressupos tos gerais do dever de agir e de impedir o resultado mas nada esclarece quanto ao seu conteúdo remetendo a complementação do seu significado lei penal em branco a uma outra lei a um contrato ou uma situação concreta de criação de risco em geral ainda mais imprecisos e indeterminados de sorte que fixar os limites da posição de garante é especialmente problemático32 Por isso diz Jakobs que a determinação do garante é uma das tarefas mais difíceis da Parte Geral 33 Em consequência os crimes omissivos impróprios à semelhança dos crimes cul posos para bem atenderem ao princípio da legalidade deveriam ter previsão expressa em cada tipo penal com clara e precisa delimitação de seus limites Disso aliás não diverge Juarez Tavares quando afirma que a solução mais coerente com a exigência do princípio da legalidade embora não exaustiva nem perfeita seria a previsão na Parte Especial do Código Penal dos delitos que comportassem a punição por omissão 34 Em não existindo semelhante previsão entende porém segundo o critério da identidade adotado a seu ver pelo nosso Código diferentemente do alemão que adotou o critério da equivalência que a omissão imprópria deve ficar restrita aos crimes contra a vida a integridade corporal e a liberdade cujos objetos jurídicos pela sua natureza e pelas consequências necessitam de uma imediata e oportuna intervenção protetiva que não pode ser postergada para não se tornar inócua 35 Também e aqui reside uma objeção mais radical a omissão imprópria implica ordinariamente violação ao princípio da pessoalidade da pena sobretudo naquelas hipóteses em que se pretende imputar ao omitente uma ação de outrem ou um evento puramente natural a justificar ou a sua abolição pura e simples ou a sua completa reformulação Assim por exemplo quando se pretende que o salvavidas responda pela morte do banhista que se afoga que o médico responda pela morte do paciente típica geral de autoria dos tipos de resultado art 1 3 2º do CP que não depende de repetição nas definições legais respectivas A moderna teoria 4 ed rev e atual Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 p 1 29 3 1 Sílva Sánchez Aproximación cit p 256 32 Mesmo um exemplo tido como inquestionável a mãe que deixa de amamentar o filho causandolhe a morte é questionado por Tavares para quem esta conclusão sempre foi tomada arbitrariamente pela doutrina com base no costume fazendo deste uma fonte de incriminação o que violava o princí pio da legalidade e toda a tradição liberal pois o art 384 do Código Civil ao tratar do pátrio poder não contemplava expressamente essa responsabilidade apenas obrigando à criação e à educação dos filhos sendo que tal previsão somente veio a ocorrer de fato com a Constituição Federal de 1 988 art 229 As controvérsias cit p 6667 33 Derecho penal cit p 968 34 As controvérsias cit p 70 35 Juarez Tavares As controvérsias cit p 8 182 232 1 os 1 CAUSALIDADE E I MPUTAÇÃO OBJ ETIVA que lhe implorava socorro que a mãe responda por maustratos do companheiro con tra filho menor etc estáse em realidade em todos esses casos a imputar ao garante salvavidas médico mãe fato de responsabilidade de terceiro ou puramente causal sendo pois ilegítima a imputação do resultado a pessoa que não o próprio autor da ação Assim a pena com a qual se pretende castigar o omitente é desproporcional e tam bém ofensiva ao princípio da igualdade visto equipararse a simples omissão à ação comportamentos cuja significação social e jurídica é muito distinta em franca contra dição aliás com o caráter subsidiário do direito penal pois mais razoável seria que o garante respondesse por omissão própria qualificada sem prejuízo das consequências extrapenais de seu ato demissão do salvavidas suspensão ou cassação da licença para o exercício da medicina perda do poder familiar por parte da mãe etc conforme o caso Finalmente a eventual irresponsabilidade do legislador que não cuidou de crimi nalizar determinadas condutas de modo específico não pode justificar a irresponsabi lidade dos juízes os quais ao apelarem àquela cláusula geral de equiparação acabam por assumir por meio da analogia in malam partem o papel do legislador conferindo ao ilícito civil caráter penal 5 A MODERNA TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA 51 Significado e posição sistemática 1 A moderna teoria da imputação objetiva36 que procede de Larenz e Honig 1927 1930 tem atualmente em Roxin e Jakobs seus mais destacados representantes teoria cuja pretensão não é propriamente em que pese o nome imputar resultado mas em especial delimitar o alcance do tipo objetivo37 de sorte que a rigor é mais uma teoria da não imputação do que uma teoria da imputação Tratase além disso não só dti um corretivo à relação causal mas de uma exigência geral da realização típica 38 a partir da adoção de critérios essencialmente normativos de modo que sua verificação constitui uma questão de tipicidade e não de ilicitude39 prévia e prejudicial à imputa ção do tipo subjetivo dolo e culpa 36 Entende porém Sancinetti que a teoria da imputação não é propriamente uma teoria no sentido de um corpo hannônico de proposições teóricas mas sim o nome sob o qual aglutinouse um conjunto cile princípios delimitadores e corretivos da tipicidade apud Fábio Roberto D Avila Crime culposo e a teoria da imputação objetiva São Paulo Revista dos Tribunais 200 1 p 1 36 37 Tavares Teoria do injusto penal cit p 222 38 Mir Puig Derecho penal cit p 23 1 39 Em sentido contrário Bustos Ramírez para quem a imputação objetiva constitui uma questão afeta à ilicitude a imputação do resultado não pode ser um aspecto de tipicidade nem conceituai nem sis tematicamente mas só de antijuridicidade enquanto aqui entram em jogo todas as outras valorações que recorrem ao bem jurídico desde o ordenamento em seu conjunto Manual de derecho penal Barcelona Ed Ariel 1 996 p 200 233 PAULO QlJEIROZ Para essa teoria o resultado de uma ação humana só pode ser objetivamente impu tado a seu autor quando sua atuação tenha criado em relação ao bem jurídico protegi do uma situação de risco juridicamente proibido e que tal risco tenha se materializado num resultado típico40 ou seja a imputação do tipo pressupõe que o resultado tenha sido causado pelo risco não permitido criado pelo autor41 Significa dizer enfim que estando o risco produzido dentro do que normalmente é admitido e tolerado social mente não caberá a imputação objetiva do tipo ainda quando se trate de uma ação dolosa e que cause lesão ao bem jurídico em questão Em suma a imputação do tipo objetivo pressupõe um perigo criado pelo autor e não coberto por um risco permitido dentro do alcance do tipo42 É dizer que determina do resultado lesivo só pode ser juridicamente teleológicovalorativamente atribuído a uma ação como obra sua e não como obra do azar43 52 Conceito de risco permitido A teoria da imputação objetiva trabalha assim com um conceitochave o conceito de risco permitido Se permitido o risco socialmente tolerado não caberá a imputa ção se não permitido como regra terá lugar a imputação objetiva do tipo A expressão risco permitido no entanto é utilizada em múltiplos contextos e sobre sua significação e posição sistemática reina como reconhece o próprio Roxin a mais absoluta falta de clareza44 Para Roxin risco permitido deve ser entendido como uma conduta que cria um risco juridicamente relevante mas que de modo geral in dependentemente do caso concreto está permitida e por isso à diferença das causas de justificação exclui a imputação do tipo objetivo45 Assim por exemplo se A apesar de conduzir veículo automotor observando as regras de trânsito vem a atropelar B não haverá malgrado a relação causal a imputação objetiva do tipo de homicídio culposo uma vez que A atuou dentro do risco permitido inerente ao tráfego viário46 O mesmo deve ser dito dos riscos ordinários inerentes riscos permitidos ao tráfego aéreo ferro viário marítimo ao funcionamento das instalações industriais à prática de esportes às intervenções cirúrgicas etc Convém notar que apesar de a ideia de risco permitido ter especialmente a ver com a noção de crimes culposos e materiais a teoria da imputação objetiva também é aplicável aos crimes dolosos e de consumação antecipada formais e de mera con duta 40 Jescheck Tratado cit p 258 4 1 Roxin Derecho penal cit p 373 42 Roxin Derecho penal cit p 364 43 Luzón Pefia Curso cit p 377 44 Roxin Derecho penal cit p 3 7 1 45 Roxin Derecho penal cit p 3 7 1 46 Cf Roxin Derecho penal cit p 371 234 Considerese o seguinte exemplo dois ciclistas trafegam com bicicletas sem iluminação durante a noite por uma rodovia um seguindo o outro O ciclista da frente chocase com um terceiro ciclista que transitava no sentido contrário e não o viu em face da falta de iluminação Certamente se o ciclista que vinha atrás estivesse iluminando o seu caminho o terceiro ciclista teria evitado a colisão Em tal hipótese Roxin afirma que a impossibilidade de imputação se dá em virtude da inexistência da obrigação de iluminar bicicletas alheias e que a norma que impõe o dever de trafegar com faróis acesos tem a finalidade de evitar sinistros com a pessoa do próprio condutor e não de terceiros A não imputação do tipo de lesões ou homicídio decorreria enfim do fato de não se achar o resultado coberto pelo fim de proteção da norma PAULO QjEJ ROZ Já no que diz com a imputação nos crimes dolosos como por exemplo se A que rendo matar ou lesionar B convenceo a praticar esportes violentos ou similar conse guindo seu propósito lesivo tampouco é necessário recorrer a critérios de imputação objetiva É que segundo Gimbernat Ordeig em tais casos a se imputar o resultado lesivo ao autor violarseia a máxima cogitationis poenam nemo patitur proibitiva da punição de simples intenções Com efeito o legislador não pode proibir meros pen samentos nem intenções se estes não se exteriorizam num comportamento com míni ma aparência delitiva porque se tal resultasse proibido tipificado então não se estariam castigando fatos que são absolutamente corretos senão unicamente pen samentos que não se traduziram numa manifestação exterior que ofereça aparência alguma de desvalor O tráfego aéreo a exploração de minas de carvão ou as corridas de Fórmula 1 quando realizadas observando a diligência devida são atividades ex pressamente aprovadas porque nelas não existe um mínimo desvalor objetivo pelo ordenamento jurídico e se o fato realizado constitui uma conduta correta por mais que se realize com más intenções então para um Direito penal regido pelo princípio do fato não existe tampouco uma manifestação externa à qual se possa vincular uma proibição tipificação penal49 O mesmo deve ser dito dos exemplos de que se socorre Damásio de Jesus do fugu assassino peixe que contém veneno mortal e do carrasco frustrado no pri meiro caso a esposa desejando que o marido morra incentivao a consumir o fugu prato que aprecia na esperança de que um descuido do cozinheiro não eliminar o veneno do fugu ao preparálo proporcione a morte do indesejado companheiro no segundo condenado à guilhotina o autor de estupro frações de segundo antes de o carrasco puxar a alavanca o pai da vítima que assistia à execução utilizandose de um revólver dispara um tiro contra a cabeça do condenado matandoo e frus trando a execução Com efeito na primeira hipótese do fugu contrariamente ao que afirma Damásio de Jesus para quem há uma ação dolosa e nexo de causalidade em verdade não existe uma ação nem sequer logo não há tipicidade no sentido jurídicopenal pois a atuação do agente é objetivamente correta e como tal des provida de desvalor social Há isso sim um simples desejo de que tal ato consumir determinado prato ou se fosse o caso praticar esportes violentos ou viajar de avião cause a morte da vítima não sendo a atuação da mulher que matou o marido mas o consumo espontâneo e normal do fugu Por consequência tem toda pertinência no particular a máxima invocada por Gimbernat Ordeig atribuída a Ulpianus cogita tionis poenam nemo patitur Não é preciso maior esforço para chegar a tal conclusão muito menos apelar à teoria da imputação objetiva Já quanto ao segundo caso do carrasco frustrado diferentemente do que preten de Damásio de Jesus existe sim nexo causal entre a ação do autor do disparo pouco importando de quem parta e a morte do condenado sob execução pois embora o re sultado viesse a ocorrer inevitavelmente tal não ocorreria na forma e no tempo em que 49 Gimbemat Estudios cit p 2 1 52 16 236 1 os 1 CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJ ETIVA ocorreu tendo uma causa modal e temporalmente diversa Aliás é o próprio Damá sio de Jesus quem afirma ou afirmava textualmente que o procedimento hipotético de eliminação precisa ser bemcompreendido O importante é fixar que excluindose determinado acontecimento o resultado não teria ocorrido como ocorreu a conduta é causa quando suprimida mentalmente o evento in concreto não teria ocorrido no momento em que ocorreu Suponhase que o agente encontre a vítima mortalmente es faqµeada em local absolutamente solitário e lhe desfira outros golpes de punhal pro duzindose a morte Provase que os últimos ferimentos concorreram para o êxito letal Suprimindose mentalmente os golpes desferidos pelo agente ainda assim a morte teria acontecido em virtude dos acontecimentos anteriores Assim à primeira vista parece que a conduta do sujeito não deve ser considerada causa do resultado Todavia sem ela o evento não teria ocorrido como ocorreu5º Se assim é não é exata a afirmação de Damásio de Jesus de que a conduta do pai não poderia ser considerada causa da morte uma vez que sem ela o evento teria acontecido da mesma maneira51 pois o evento teria acontecido sim mas de maneira diversa isto é na forma e em tempo distintos Por isso é que Gimbernat Ordeig conclui que a teoria da imputação objetiva é uma teoria que não se sabe exatamente o que é nem qual é o seu fundamento52 54 Conclusão Em realidade a teoria da imputação objetiva constitui essencialmente uma pro posta de nova linguagem jurídicopenal para solução de velhos problemas uma vez que do ponto de vista da práxis as coisas continuam tal e qual pois por meio dela chegase na quase totalidade dos casos à mesma decisão judicial a que se chegava antes Portanto tem razão Luís Greco quando reconhece que na verdade e isto a doutrina alemã majoritária ainda custa em reconhecer a imputação objetiva e seus conceitos básicos nada mais são do que a teoria do crime culposo só que com diverso nome e alcance53 Porque de fato aquilo que anteriormente se chamava violação do cuidado objetivo no âmbito da imputação objetiva recebe o nome de criação de um risco desaprovado o nexo de antijuridicidade passa a chamarse realização do risco mas substancialmente tratase da mesma problemática com idênticos fundamentos e idêntica solução54 Apesar disso força é convir com Wolfgang Frisch que as objeções feitas contra a teoria são em boa parte de cunho terminológico como terminológica é a sua própria 50 Direito penal cit p 248249 5 1 Imputação objetiva o fugu assassino e o carrasco frustrado Boletim do IBCCrim São Paulo p 1 3 jan 2000 52 Estudios cit p 2 1 3 53 Introdução à obra Funcionalismo cit p 44 54 Greco Funcionalismo cit p 44 237 PAULO QlEIROZ contribuição e mais os fundamentos da teoria em questão ao menos no que se refere ao crime culposo estão amplamente admitidos 55 Mas o mais importante é que a moderna teoria da imputação objetiva apesar de suas imperfeições pretende responder políticocriminalmente a uma pretensão ga rantista e pois conforme a Constituição em especial conforme os princípios da lega lidade proporcionalidade e pessoalidade da pena uma vez que como assinala Juarez Tavares ela não é uma teoria para atribuir senão para restringir a incidência da proibi ção sobre determinado sujeito56 de sorte que à medida que puder cumprir semelhante função sua adoção é válida e louvável Por último o instrumental teórico hoje existente especialmente no que toca aos crimes culposos não parece melhor nem mais preciso do que o que propõe a teoria em causa 55 La imputación objetiva estado de la questión in Sobre el estado de la teoría do delito Cuademos Civitas Madrid 2000 56 Teoria do injusto penal cit p 222 238 Sumário 1 Introdução 2 Dolo conceito e elementos 3 Espécies 4 Dolo eventual e culpa consciente 41 Dolo eventual e culpa consciente teorias 5 Dolo e consciência da ilicitude dolo normativo versus dolo natural 51 Conceito que adotamos dolo e dolus malus 6 Atualidade do dolo 7 Elementos subjetivos do tipo 8 Crime qualificado pelo resultado preterdoloso ou preterintencionalidade 81 Inconstitucionalidade dos crimes qualificados pelo resultado 9 Ausência de dolo erro de tipo 91 Espécies de erro de tipo erro inevitável e evitável 10 Ausência do conhecimento da ilicitude do fato erro de proibição 101 Conceito 102 Espécies de erro inevitável e evitável 103 Posição sistemática 104 Desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude do fato distinção 105 Objeto da consciência da ilicitude 106 Divisibilidade do erro 11 Erro sobre causas de justificação descriminantes putativas 111 Conceito 112 Espécies erro inevitável e evitável 113 Descriminantes putativas por erro de proibição 114 Posição sistemática 12 Erro de tipo erro de proibição e erro sobre causas de justificação uma distinção a ser superada 13 Erro provocado por terceiro 14 Erro sobre a pessoa error in persona e aberratio ictus 141 Erro sobre a pessoa e processo penal 142 Crítica da teoria da equivalência 15 Resultado diverso do pretendido aberratio delicti PAULO QJEIROZ E só as ações humanas exteriorizadas e lesivas de bem jurídico princípio da le sividade podem ser objeto de repressão penal razão pela qual não são puníveis ações puramente imorais nem a simples cogitação para delinquir cogitationis poenam nemo patitur conforme um direito penal do fato laico e democrático portanto Pois bem apesar de adotarem conceitos distintos de ação causalistas e finalistas e também assim a doutrina atual funcional ou mista estão de acordo quanto às situações consideradas de ausência de conduta a saber coação física irresistível esta dos de inconsciência hipnotismo sonambulismo embriaguez letárgica caso fortuito e força maior movimentos reflexos etc É que não obstante as divergências causalis mo finalismo e funcionalismo concordam em exigir para a existência de uma ação humana uma vontade independentemente do seu conteúdo2 Exatamente por isso dolo e culpa são dois conceitos fundamentais do direito pe nal Primeiro porque as infrações penais só são puníveis a esse título segundo porque todos os crimes são puníveis na forma dolosa e só alguns poucos na forma culposa de modo que o dolo é a regra e a culpa é a exceção terceiro porque a pena varia radi calmente segundo se trate de crime doloso ou culposo quarto porque os critérios de apuração da responsabilidade penal variam muito no particular razão pela qual não seria exagero afirmar que a teoria do crime culposo constitui um sistema à parte quin to porque a maior parte dos delitos é incompatível com a ideia de simples imprudência v g crimes patrimoniais crimes contra liberdade sexual O dolo é ainda importante para diversos efeitos penais como a definição e de limitação do concurso de pessoas conflito aparente de normas concurso de crimes individualização da pena etc Tem igualmente relevância no direito processual penal para fins de fixação de competência decretação e revogação de prisões provisórias entre outros É bem verdade que em tese poderseia tratar e castigar dolo e culpa igualmente visto produzirem em geral os mesmos resultados lesivos v g o homicídio doloso ou culposo implica a morte de alguém Mas o fato é que a sociedade e o legislador consequentemente valora diferentemente as ações dolosas e culposas motivo pelo qual a distinção dogmática responde a uma exigência irrenunciável de política social Ou seja embora o resultado seja o mesmo o desvalor da ação é diverso Parece certo também que dolo e culpa não são a rigor estados mentais do sujeito mas uma imputação a esse título a título de dolo ou culpa a partir da valoração dos elementos de prova aí incluída a própria versão do imputado Dizer que o dolo não é um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título significa mais concretamente o seguinte a que compete a um terceiro nota damente o juiz e não ao imputado decidir se este agiu ou não dolosamente razão pela qual a imputação a esse título não fica na dependência da interpretação que o 2 Mir Puig Derecho penal cit p 1 83 240 1 INTRODUÇÃO Se a finalidade declarada do direito penal é a prevenção geral e especial de comportamentos socialmente lesivos conforme a teoria hoje dominante sua atuação há de pressupor lógica e necessariamente ações e omissões voluntárias e não involuntárias ou naturais simplesmente é dizer a intervenção jurídicopenal começa e termina com o início e fim da vontade humana pois fora daí teria lugar a responsabilização penal objetiva sem culpa isto é responsabilização por fatos estranhos à vontade humana puramente causais ainda que proviessem eventualmente de pessoa humana Stratenwerth tem razão portanto quando assinala que as proibições e mandamentos jurídicos não podem ir além da capacidade do homem de intervir com sua ação no curso dos acontecimentos visto que o imprevisível ou inevitável não pode ser proibido nem exigido de sorte que para o direito penal importam exclusivamente aqueles momentos estruturais do comportamento humano que aparecem como objeto possível de normatização jurídica isto é como um fato que pode ser dominado pelo homem PAULO QlJElROZ No entanto para fins de responsabilidade civil CC art 186 o conceito civil e penal de dolo é em princípio exatamente o mesmo6 apesar de os civilistas mais prag máticos dispensarem em geral e com razão as sutilezas dos penalistas 2 DOLO CONCEITO E ELEMENTOS Há dolo sempre que o agente realiza os elementos do tipo com consciência e von tade ou ainda atua com dolo o agente que dirige sua ação quer direta quer indireta mente no sentido da realização do tipo consciente e voluntariamente Não existe dolo em si mas dolo de realizar um tipo legal determinado dolo de portar arma de lesionar de matar etc Age pois com dolo de porte ilegal de arma quem a tem sem autorização legal de lesões quem fere a vítima com esse fim de ho micídio quem atira contra a vítima com intenção de matála A finalidade dirigida à realização de um tipo legal específico é essencial à afirmação do dolo portanto7 A consciência necessária à configuração do dolo é o conhecimento da lesividade ou potencialidade lesiva de uma ação concreta como por exemplo fazer disparos de arma de fogo e assim produzir a morte de alguém relativamente ao homicídio E fal tará esse conhecimento se o agente ignora que se trata de uma arma de fogo ou que ela não é capaz de disparar e causar dano a outrem v g supõe ser arma de brinquedo ou descarregada O dolo pressupõe por isso o conhecimento do caráter típico de uma ação ou ainda o conhecimento atual das circunstâncias do fato típico8 No homicídio o co nhecimento significa que o agente sabe que causará a morte de alguém com sua ação no furto que subtrai coisa alheia no estupro que constrange alguém à prática de ato libidinoso Assim não há dolo de homicídio se o agente tiver razões para supor que a arma é de brinquedo não há dolo de estupro se acredita fundadamente que a vítima apenas finge resistir ao ato nem dolo de furto se supõe própria a coisa alheia Mas o conhecimento embora necessário não é suficiente para caracterização do dolo9 Exigese mais vontade de realizar a ação que se sabe típica 6 No mesmo sentido Sérgio Cavalieri Filho convém ainda ressaltar que não vemos nenhum fim damento para se dizer como querem alguns que o dolo e a culpa civil são diferentes do dolo e da culpa penal A rigor são substancialmente iguais têm os mesmos elementos se diferença houver será apenas de grau Programa de Responsabilidade Civil São Paulo Atlas 201 0 p3 1 7 Por isso que não faz sentido falar de dolo genérico e dolo específico O conceito de dolo genérico é inútil e de dolo específico tautológico Também por essa razão não há porque restringir o conceito de dolo como ainda faz a doutrina à realização apenas do tipo objetivo 8 Welzel Derecho Penal Aleman cit p 78 9 Naturalmente que nem todos pensam assim Jakobs por exemplo tem que dolo é conhecimento da ação junto com suas conseqüências Tratado cit p 3 1 6 De modo similar Puppe A distinção entre dolo e culpa Tradução e notas de Luís Greco S Paulo Manole 2004 Sílva Sánchez que comparte no essencial da concepção de Frisch acerca do dolo entende que a voluntariedade não é elemento do dolo mas um elemento da ação comum portanto aos delitos dolosos e culposos O específico do dolo em face da culpa é pois que o sujeito que atua dolosamente conhece o significado típico da 242 I 06 1 TEORIA DO DOLO Haverá dolo então se o autor agindo com consciência da tipicidade dirigir sua ação no sentido de realizar os elementos do tipo logo existirá dolo de homicídio se sabendo que dispõe de uma arma de fogo e de seu potencial ofensivo guiar sua ação no sentido de consumar a morte da vítima dolo de furto se sabendo alheia a coisa a sub trair com a finalidade de se apropriar e dolo de estupro se percebendo a resistência da vítima a constranger com violência a fim de consumar o ato libidinoso A vontade de realizar os elementos do tipo que pressupõe o conhecimento é por conseguinte essencial à afirmação do dolo Assim não há dolo de homicídio mas imprudência se embora tendo ciência dos riscos que isso implica o agente dirigir sua ação no sentido de evitar o resultado típico por mais que sua conduta seja perigosa v g atira contra a parede para intimidar a vítima mas acaba por atingila acidentalmen te Nem há dolo de furto se o agente pretende devolver a coisa logo a seguir vontade de uso apenas Consciência e vontade são pois essenciais à configuração do dolo se faltar um desses elementos o caso será em princípio de simples culpa Assim o conceito Wel zelniano de dolo permanece no essencial atualíssimo dolo é o saber e querer a rea lização do tipoº Justamente por isso médicos mágicos e dublês quando praticam ações perigosas e arriscadas causando dano a terceiro atuam em geral impruden temente mas não dolosamente visto que apesar da consciência do perigo que isso implica dirigem suas ações no sentido da realização de um fim lícito e agem de modo a evitar resultados típicos Nos crimes omissivos haverá omissão dolosa sempre que o agente podendo atuar concretamente omite de forma voluntária e consciente a ação que lhe é possível e exigível permitindo a realização do resultado típico consumado ou tentado E existi rá omissão culposa quando fora do caso anterior a omissão resultar de imprudência negligência ou imperícia conduta que realiza voluntariamente e o sujeito imprudente desconhece em toda a sua dimensão esse significado de sorte que o decisivo são os aspectos cognoscitivos e não os volitivos Aproximación cit p 401402 No entanto como assinala Luzón Pena quando se refere à vontade no crime doloso não se quer aludir à vontade genérica da ação comum aos crimes dolosos e culposos mas precisa mente à vontade de realizar a conduta típica isto é o querer realizar todos os elementos do tipo de que se tem conhecimento Curso cit p 4 1 1 Entre nós Luís Greco é também de opinião que psico logicamente dolo é conhecimento e não conhecimento e vontade Se todo dolo é conhecimento e a vontade não tem relevância alguma não há mais qualquer razão para diferenciar dolo direto em suas duas formas de primeiro ou de segundo grau e dolo eventual Há apenas uma forma de dolo Dolo é conhecimento de que a oconência do resultado é algo provável Dolo sem vontade in Silva Dias et ali coords Liber Amicorum de José de Sousa e Brito Coimbra Almedina 2009 p 885905 No mesmo sentido José Carlos Neto citando Silva Sánchez afirma que dolo é conhecimento por parte do autor do significado típico de sua ação Não é necessário que perguntemos adicionalmente por um querer porque quando alguém realiza uma ação com consciência de seu significado típico podemos dizer que esta pessoa quer com sua ação expressar este significado típico La exteriori zación de lo interno tesis doctoral Barcelona 2012 p 423 1 0 Welzel Hans Derecho Penal Aleman cit p 77 243 PAULO QlEIROZ Voltaremos a esses assuntos 3 ESPÉCIES De acordo com o Código Penal brasileiro CP art 18 1 há dolo quando o agente quer o resultado ou assume o risco de produzilo No primeiro caso há dolo direto no segundo dolo eventual11 Dolo direto simplificando um pouco é pois a realização in tencional de um delito é a prática proposital de um crime E há dolo eventual quando fora do caso anterior o agente conta seriamente com a possibilidade de realização do tipo e apesar disso segue atuando para alcançar o fim perseguido resignandose com o eventual cometimento de um crime12 Já o Código Penal português art 14 mais completo dispõe que lage com dolo quem representando um fato que preenche um tipo de crime atuar com intenção de o realizar 2 age ainda com dolo quem representar a realização de um fato que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta 3quando a realização de um fato que preenche um tipo de crime for representada como consequência possí vel da conduta há dolo se o agente atuar conformandose com aquela realização No item 1 há dolo direto de primeiro grau no item 2 dolo direto de segundo grau e no item 3 dolo eventual O dolo direto de primeiro grau ou intenção ou propósito compreende o resultado típico que o agente persegue diretamente com a sua ação v g matar um desafeto e o dolo direto de segundo grau compreende todos os prováveis e inevitáveis resultados da ação criminosa v g a morte de nacionais decorrente da explosão de uma bomba co locada numa embaixada para atingir apenas autoridades diplomáticas estrangeiras13 1 1 Estão superadas outras classificações tais como dolo genérico dolo específico etc Nesse sentido Juarez Tavares para quem não há mesmo razão científica alguma na apreciação da terminologia de dolo de ímpeto dolo alternativo dolo determinado dolo indireto dolo específico ou genérico que pode trazer confusão à matéria e que se enquadra ou entre os elementos subjetivos do tipo ou nas duas espécies mencionadas Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo Revista de Direito Penal Rio de Janeiro Borsoi n 6 p 22 1972 12 Roxin Claus Derecho Penal cit p 437 De modo similar Jescheck Tratado cit p 269 dolo eventual significa que o autor considera como seriamente possível a realização do tipo legal e se conforma com isso E Muiioz Conde no dolo eventual o sujeito representa o resultado como de produção provável e embora não queira produzilo continua agindo e admitindo a sua eventual pro dução O sujeito não quer o resultado mas conta com ele admite sua produção assume o risco etc Com todas essas expressões pretendese descrever um complexo processo psicológico no qual se mesclam elementos intelectivos e volitivos conscientes ou inconscientes de difícil redução a um conceito unitário de dolo ou culpaTeoria Geral do Delito cit p 60 1 3 De acordo com Roxin cit p 4 1 5 o dolo direto de primeiro grau diz respeito ao resultado que o agen te persegue e o dolo direto de segundo grau compreende todas as consequências que ainda que não perseguidas o agente prevê sua produção com segurança De modo similar Mir Puig Derecho Penal cit p 244 para quem no dolo direto de primeiro grau o autor persegue a realização do delito e no dolo direto de segundo grau o autor não persegue a realização do tipo mas sabe e tem como seguro que sua atuação dará lugar ao delito E Francisco Muiioz Conde e Mercedez Arán no chamado dolo de primeiro grau o autor quer precisamente o resultado nos delitos de resultado ou a ação típica nos 244 lü6I TEORIA DO DOLO Dolo direto e dolo eventual têm em geral o mesmo tratamento jurídicopenal e sujeitam o infrator à mesma pena mas casos há em que o tipo penal exige dolo direto forçosamente Além disso algumas formas qualificadas ou majoradas de crime são em princí pio incompatíveis com o dolo eventual como por exemplo o homicídio qualificado por motivo torpe ou fútil por emboscada emprego de veneno etc que pressupõem dolo direto 4 DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE De acordo com o Código há dolo eventual quando o agente assume o risco de produzir o resultado CP art 18 1 segunda parte Não há referência à culpa conscien te que é uma criação doutrinária Existe culpa consciente sempre que o autor prevê a realização do resultado típico e dirige sua ação no sentido de evitálo mas lhe dá causa por imprudência negligência ou imperícia Ou como diz o Código Penal português art 15 a há culpa consciente se o agente representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização A distinção entre dolo eventual e culpa consciente é conforme reconheceu Wel zel um dos problemas mais difíceis e discutidos do direito penal14 É importante notar inicialmente que dolo eventual e culpa consciente têm em co mum o fato de o autor praticar uma ação que sabe capaz de produzir resultados típicos embora não queridos diretamente razão pela qual a diferença deve ser feita a partir de critérios volitivos15 Mas a expressão legal assumir o risco de produzir o resultado não resolve o pro blema porque também na culpa consciente o agente em geral assume o risco de pro duzir um resultado típico Assim por exemplo o cirurgião que sabe que intervenções delitos de simples atividade o autor queria matar e mata queria causar dano e destrói a coisa etc Dentro do dolo direto são incluídos também os casos em que o autor não quer diretamente uma das consequências que vão ser produzidas mas admite como necessariamente unidas ao resultado princi pal que persegue Não basta que seja prevista a consequência acessória é preciso que prevista como necessária ou certa a sua produção esteja incluída na vontade do autor Derecho Penal cit p 307 14 Derecho Penal p 83 15 Como observa Mir Puig Derecho Penal cit p 245 dolo eventual e culpa consciente têm uma es trutura comum que toma muito difícil uma diferenciação visto que em ambos os casos o agente tem conhecimento da possibilidade da produção de um resultado típico e não o quer De modo similar Hungria afirmava que existe entre dolo eventual e culpa consciente um traço comum a previsão do resultado antijurídico mas enquanto no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado preferindo arriscarse a produzilo em vez de renunciar à ação na culpa consciente ao contrário o agente repele embora inconsideradamente a hipótese de superveniência do resultado e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá pois assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco é consentir previamente no resultado caso venha este a ocorrer realmente Comentários cit p 1 161 1 7 e 122 245 PAU LO QlJEI ROZ cirúrgicas implicam grandes riscos cirurgia de alto risco ao realizálas assume e não raro também o paciente e sua família o risco de causar a morte do paciente O mesmo ocorre com mágicos dublês militares em treinamento etc sempre que reali zam manobras e truques especialmente perigosos E nem por isso agem forçosamente com dolo Assumir o risco de produzir o resultado não é suficiente portanto Afinal assumir o risco de produzir um resultado típico não significa atuar no sentido de realizálo tampouco querer inevitavelmente esse resultado direta ou indiretamente No particular parecenos que o mais importante consiste no seguinte na culpa consciente o autor normalmente dirige sua ação no sentido da realização de um fim lícito e age de modo a evitar um resultado típico 16Já no dolo eventual o autor dirige sua ação no sentido da realização de um fim ilícito e geralmente não age de modo a evitar um resultado típico Exatamente por isso o cirurgião que mata o paciente responde em princípio por culpa consciente ou não responde penalmente se não houver culpa alguma e não dolo eventual porque dirige a sua ação desde sempre no sentido da realização de um fim lícito salvar a vida do paciente etc e age de modo a evitar um resultado típico morte O mesmo ocorre ordinariamente com mágicos dublês motoristas etc Haverá ainda culpa consciente culpa especialmente grave em regra quando o autor agir no sentido da realização de um fim lícito mas não atuar de modo a evitar o resultado típico Assim por exemplo o motorista embriagado que confiando em sua experiência e perícia dirige perigosamente O mesmo ocorre com a esteticista que aplica hidrogel na paciente e informada de seu malestar recomenda repouso apenas ao invés de levála ao hospital Contrariamente haverá dolo eventual e não simples imprudência sempre que o autor dirigir sua ação no sentido da realização de um fim ilícito e não agir de modo a evitar um resultado típico Assim responde por dolo eventual relativamente ao homi cídio o agente que depois de consumado o estupro dolo direto abandona a vítima viva em lugar deserto presa no portamalas do carro causandolhe a morte ainda que não quisesse o evento letal ou até o lamentasse O mesmo ocorre com o ladrão de ban co quanto ao homicídio que usa explosivos para explodir caixas eletrônicos mesmo sabendo que tal poderá eventualmente causar a morte de algum cliente funcionário ou passante 16 A posição aqui defendida coincide em parte com a de Armín Kaufmann para quem se a vontade de realização se dirige precisamente à evitação do resultado delitivo falta o dolo e o tipo proibitivo não se cumpre El dolo eventual en la estructura dei delito Anuario de derecho penal y ciencias penales Tomo 1 3 Fase 2 1 960 p 1 85206 De modo similar escrevia Finger citado por Armín Kaufmann cit p 1 95 se o autor considera como possível ou provável juízo problemático a produção de seu resultado então se considera doloso o resultado se o autor atua precisamente por amor a esse resulta do ou se realiza sua ação em atenção a outro resultado porém não faz nada para evitar esse resultado previsto ao mesmo tempo como possível dolo eventual 246 I 061 TEORIA DO DOLO Também no rumoroso caso do índio Galdino morto em Brasília em 1997 por cin co rapazes que de posse de lum litro de álcool atearamlhe fogo houve realmente dolo eventual apesar de os acusados alegarem que não pretendiam matálo mas ape nas fazer uma brincadeira ou assustálo O caso seria porém de culpa conscien te e não de dolo eventual se num eventual filme sobre esse crime o atordublê que representasse o índio fosse ferido ou morresse durante a produção dessa cena fatídica por imprudênciaimperícia de seus produtores Nos casos agora citados à exceção do filme que visava a uma finalidade lícita produzir arte há dolo eventual porque os autores dirigiram suas ações desde sempre no sentido da realização de um fim ilícito ferir ou matar e não agiram de modo a evi tar um resultado típico homicídio18 Se no obstante a ilicitude do fim o autor agir de modo a evitar o resultado típico a conduta permanecer dolosa consumada ou tentada Em havendo desistência volun taria ou arrependimento eficaz incidir o art 15 do CP O que aqui se propõe não afeta a distinção entre dolo eventual e preterdolo fusão de dolo e culpa Com efeito a diferença entre um e outro reside no seguinte no preter dolo o agente quer um dado evento doloso mas sua ação acaba por produzir resultado diverso mais grave e não querido direta ou eventualmente vg dá um empurrão na vítima que escorrega bate a cabeça contra uma pedra e vai a óbito Haveria aí dolo eventual se o autor admitisse a morte como possível ou provável e apesar disso reali zasse a ação Quanto à hipótese de racha o Supremo Tribunal Federal reconheceu recente mente a ocorrência de dolo eventual relativamente à morte que resultara da disputa havida entre os envolvidos fato constitutivo de crime autônomo inclusive Código de Trânsito art 30819 A decisão está correta porque o autor dirige sua ação no sentido da realização de um fim ilícito competir ilegalmente ainda que eventualmente agisse de modo a evitar um resultado típico morte etc O mesmo não ocorreria não seria dolo 17 Na madrugada de 20 de abril de 1997 cinco rapazes de classe médiaalta de Brasília de posse de 1 um litro de álcool atearam fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos 45 anos que dormia sob um cobertor numa parada de ônibus confundindoo com um mendigo Galdino donnia num ponto da Quadra 703 Sul após ter participado de uma manifestação por ocasião do Dia do Índio e morreu horas depois O crime causou protestos em todo o país inclusive dos próprios índios Em sua defesa os acusados disseram que o objetivo era dar um susto em Galdino e fazer uma brincadeira para que ele levantasse e corresse atrás deles e que chegaram a jogar fora na grama parte do álcool adquirido no posto de gasolina por não ser necessária toda a quantidade comprada para dar o alegado susto Em 2001 os quatro acusados maiores de idade foram condenados a 14 anos de reclusão por homicídio qualificado A juíza entendeu que o caso era de crime preterdoloso dolo de ferir e não matar com resultado culposo 18 Age ainda com dolo eventual quem aceita participar de roleta russa quanto à possível imputação de homicídio ou auxílio ao suicídio vez que o agente atua no sentido da realização de um fato típico e age no sentido não de evitálo mas de realizálo apostando na sorte ainda que o resultado não seja querido diretamente 19 HC nº 1 0 1698RJ relator Ministro Luiz Fux 1 810201 1 247 PAU LO QJ E I ROZ mas culpa se se tratasse de uma competição legal que atendesse às regras mínimas de segurança e prevenção de acidentes etc Ademais é justo tratar tais casos como dolosos Como se vê a diferença entre as diversas formas de imputação subjetiva não diz respeito tanto aos meios utilizados que são os mesmos arma veículo etc mas aos fins lícitos ou não e ao modo como o sujeito se comporta relativamente a esses fins No fundo portanto os critérios de distinção entre culpa consciente e dolo eventual são exatamente os mesmos que fundamentam a distinção entre dolo e não dolo culpa Com efeito se no dolo o autor dirige sua conduta no sentido da realização de um fim ilícito matar roubar etc na culpa ao contrário o agente guia sua ação no sentido da realização de um fim lícito dirigir veículo fazer uma cirurgia etc dando causa a um resultado típico por imprudência negligência ou imperícia E um maior grau de imprudência não converte uma ação culposa em dolosa embora justifique uma maior apenação e eventualmente um tratamento penal diferenciado Naturalmente que nada disso exclui a possibilidade de se recorrer a outros tantos critérios legais ou doutrinários necessários à diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente tais como a indiferença em relação ao resultado probabilidade de produção de um resultado típico consentir no resultado aprovar o resultado etc E nenhum critério é infalível o aqui propomos inclusive e todos têm caráter essen cialmente indiciário Afinal e conforme vimos conceitos são metáforas20 nascem da postulação de identidade de coisas não idênticas logo todo conceito é uma simplificação uma redu ção e mais pretendem valer para o futuro mas são pensados e construídos a partir de experiências passadas por isso que de algum modo implicam legislar sobre o desco nhecido 41 Dolo eventual e culpa consciente teorias O conceito de dolo e pois a distinção entre dolo eventual e culpa consciente de pende da teoria que se adote volitivas ou cognitivas As primeiras consideram que a vontade é essencial ao dolo e as segundas têm que o dolo é só conhecimento motivo pelo qual a vontade é prescindível A seguir farseá breve resumo das teorias cogniti vas da representação ou da possibilidade da probabilidade da evitabilidade e do risco Finalmente faremos referência às teorias volitivas do consentimento e da indiferença Para a teoria da representação Schrõder e Schimdhãuser que só admite a culpa inconsciente negando a existência da culpa consciente haverá dolo eventual sempre que o agente admitir conscientemente a possibilidade da ocorrência do resultado razão 20 Dolo é um conceito que remete a tipos que pouco ou nada têm em comum Assim o dolo que se exige para o homicídio não é o mesmo que se requer para a lesão seguida de morte nem é o mesmo do furto da calúnia etc razão pela qual sua apuração constitui também por isso essencialmente um problema de especialistas e não de quem sofre a imputação 248 I061 TEORIA DO DOLO pela qual a distinção entre dolo e culpa reside no conhecimento ou desconhecimento do autor quanto aos elementos do tipo objetivo de modo que se houver conhecimento haverá dolo se não haverá culpa 21 Já para a teoria da probabilidade que é uma variante da anterior haverá dolo eventual sempre que o autor tiver considerado como provável a lesão ao bem jurídico Adepto dessa corrente Jakobs considera que há dolo eventual quando no momento da ação o autor julgar que a realização do tipo não é improvável como consequência de sua ação mas não basta o simples pensar na possibilidade do resultado pois é ne cessário ainda um conhecimento que se apresente ao autor como capaz de produzir o resultado segundo a experiência não se tratando de mera especulação de sorte que para configuração do dolo eventual exigese um juízo reflexivo válido sobre o poder concreto de lesão de sua ação22 Assim por exemplo quem para ganhar uma aposta atira na direção de uma bola de cristal que uma pessoa sustenta na mão atua com dolo eventual de lesões não o descaracterizando o seu esforço para só acertar o alvo e não a pessoa23 De modo similar Puppe entende que um perigo será um perigo doloso que fun damenta o dolo quando ele representar em si um meio idôneo para a provocação do resultado sendo que os critérios com base nos quais se deve valorar se um perigo é ou não idôneo não são entregues à disposição do autor mas determinados normativamen te como critérios objetivos24 Assim de acordo com Puppe que trabalha com o critério do conhecimento sobre um perigo qualificado haverá dolo eventual quando o peri go produzido conscientemente pelo agente for de tal quantidade e qualidade que uma pessoa sensata ou cuidadosa só o aceitaria sob a condição de que o resultado deveria ocorrer25 De acordo com a teoria da evitabilidade Armín Kaufmann sempre que o agente representar como possível o resultado haverá dolo eventual exceto se agir concreta mente de modo a evitálo caso em que haverá culpa consciente Já segundo a teoria do risco formulada por Frisch para a configuração do dolus eventualis é suficiente o conhecimento do risco não permitido não sendo necessária a presença de elementos volitivos de nenhuma espécie motivo pelo qual haverá dolo eventual sempre que o autor tiver conhecimento desse risco que não é qualquer risco mas o risco tipificado como ação proibida26 Já para as teorias da vontade o conhecimento embora necessário não é suficiente para a caracterização do dolo visto que a vontade dirigida à realização do tipo é abso lutamente imprescindível Assim para a teoria do consentimento é necessário que o 2 1 Juarez Tavares Teoria do injusto penal p 335 22 Derecho penal p 327 23 Derecho penal p 327 24 A distinção entre dolo e culpa cit p 79 e s 25 Juarez Tavares cit p 336 26 Cf Roxin Derecho penal p 439440 249 PAULO Ql E I ROZ autor se ponha de acordo com o resultado lesivo que previu concretamente existindo dolo sempre que ele aceitar o evento aproválo ou consentilo Essa é a teoria adotada pelo Código Penal brasileiro relativamente ao dolo eventual ao referir a expressão assumir o risco de produzir o resultado27 Finalmente para a teoria da indiferença Exner Engisch a distinção entre dolo e culpa reside no alto grau de indiferença do autor para com o bem jurídico Haverá então dolo eventual sempre que o agente representar como possível a produção do re sultado típico e for indiferente a isso Partidário de uma perspectiva volitiva Juarez Tavares assinala com razão que em virtude da equiparação legal dolo direto e dolo eventual devem ter uma base nor mativa comum que justifique sua inclusão no âmbito volitivo do sujeito28 motivo pelo qual é indispensável conhecer o conteúdo da vontade do agente concretamente mani festada 5 DOLO E CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE DOLO NORMATIVO VER SUS DOLO NATURAL Discutese se o dolo compreende a consciência da ilicitude isto é se atua dolo samente o agente que ao praticar uma determinada ação supõe que age conforme o direito Mais concretamente atua com dolo o inexperiente estudante que à semelhan ça de seus colegas de escola extrai cópia de livro ignorando que constitui violação de direito autoral CP art 184 Atualmente o entendimento amplamente majoritário adotado inclusive pelo Código Penal é no sentido de que o dolo não exige conhecimento da ilicitude do fato dolo natural razão pela qual no exemplo citado o agente atuaria dolosamente Para a corrente minoritária ao contrário se faltar a consciência da ilicitude faltará o dolo dolus malus ou normativo logo o estudante não agiria com dolo Com efeito para a doutrina causalista naturalista o dolo principal forma de expressão da culpabilidade significava consciência e vontade de realizar uma con duta antijurídica dolus malus ou normativo de modo que compreenderia necessaria mente a consciência da ilicitude Nesse sentido Binding entendia dolo como vontade conscientemente contrária ao direito 29 à semelhança de Carrara para quem dolo era a 27 Nesse sentido Hungria vêse que o legislador de 40 ao fixar a noção de dolo não se ateve à cha mada teoria da representação para a existência do dolo basta a representação subjetiva ou previsão do resultado como certo ou provàvel que aliás na sua pureza está inteiramente desacreditada e com acerto preferiu a teoria da vontade dolo é vontade dirigida ao resultado completada pela teo ria do consentimento é também dolo a vontade que embora não dirigida diretamente ao resultado previsto como provável consente no advento deste ou o que vem a ser o mesmo assume o risco de produzilo Comentários cit p 1 14 Notese que a redação original do CP não mudou com a reforma de 84 que dispunha art 1 5 1 que havia crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzilo Comentários cit 28 Teoria do injusto p 346 29 Binding Die Nonnen citado por Von Liszt Tratado cit p 285 No sentido de que o dolo com preendia a consciência da ilicih1de escrevia Hungria que o dolo não é só representação e vontade do 250 1061 TEORIA DO DOLO intenção mais ou menos perfeita de praticar um ato que se sabe contrário à lei30 Entre nós Magalhães Noronha afirmava que age dolosamente quem atua com conhecimen to ou ciência de agir no sentido do ilícito ou antijurídico ou numa palavra com conhe cimento da antijuridicidade do fato31 por isso que se a consciência da ilicitude falta não há dolo e sem dolo não há crime32 Com o advento da teoria final da ação passouse a adotar um conceito mais restri to de dolo porque embora o deslocasse da culpabilidade para a tipicidade o destacaria da consciência da ilicitude adotando em consequência um conceito natural neutro de dolo razão pela qual o conhecimento do caráter ilícito do comportamento perma nece pertencendo com o finalismo à culpabilidade Por isso o dolo dolo de tipo escreveu Welzel é só a vontade de ação orientada à realização do tipo de delito motivo pelo qual a consciência da antijuridicidade da ação não pertence ao dolo de tipo senão que é um momento da culpabilidade33 De acordo com esse entendimento age com dolo por exemplo o estrangeiro v g um holandês que traga de seu país de origem pequena quantidade de droga adqui rida licitamente em seu país para uso pessoal ainda quando convencido de boafé de que tal seja permitido entre nós à semelhança de seu país de origem Sim porque segundo o finalismo o dolo compreende apenas o conhecimento do tipo objetivo mas não o conhecimento da sua proibição que pertence à culpabilidade Esse é ainda hoje o conceito majoritário na doutrina seguido mesmo por autores que adotam a teoria dos elementos negativos do tipo34 Também é o conceito adotado pelo Código Penal brasi leiro CP arts 18 e 21 resultado antijurídico é também consciência de que se age contrariamente ao direito ou mais con cisamente consciência da injuridicidade Comentários cit p 143 Nem todos os causalistas assim pensavam porém Von Liszt por exemplo era de opinião de que o dolo não compreendia a consciên cia da ilegalidade pois a se exigir tal coisa paralisarseia a administração da justiça impondolhe o encargo de provar em cada caso oconente que o agente conhecia o preceito violado 30 Programa do Curso de Direito Criminal Parte Geral v LZN editora Campinas 2002 69 p 88 3 1 Direito penal São Paulo Saraiva 1 984 v 1 p 145 No mesmo sentido Hungria dolo não é só re presentação e vontade do resultado antijurídico é também consciência de que se age contrariamente ao direito ou mais concisamente consciência da injuridicidade Sem o entendimento de oposição ao dever jurídico ou de que se incide no juízo de reprovação que infotma o preceito incriminador não há falar de dolo Comentários cit p 1 43 Também Frederico Marques a concepção do dolo sem essa consciência da ilicitude além de estreita e limitada é contrária aos fundamentos éticos do direito penal Quem atua de boafé crendo não estar em oposição à ordem jurídica nada apresenta de repro vável em sua conduta diz Beling só se lhe pode censurar a inadvertência o que não conesponde ao comportamento doloso expressão máxima da culpabilidade E acrescenta o mestre germânico a intenção só tem sentido dirigindose ao tipo de ilicitude e não apenas ao extemamento típico pres cindindo do conteúdo ilícito Tratado cit p 258 32 Magalhães Noronha Direito Penal cit p 1 60 33 Welzel Derecho penal alemán cit p 92 34 Assim por exemplo Luzón Pena o conceito de dolo que aqui se mantém é conhecimento e von tade de realizar todos os elementos objetivos do tipo total de injusto tanto os de sua parte positiva ou tipo indiciário como os de sua parte negativa do tipo é dizer a ausência dos elementos de causas de 251 PAULO QJ E I ROZ Assim o dolo é só a realização do tipo objetivo que por isso não compreen deria o conhecimento da ilicitude entendida como valoração paralela na esfera do profano Mezger já que não se exige para tanto conhecimento de especialista Mir Puig Em síntese de acordo com essa perspectiva finalista no exemplo inicialmente ci tado o aluno agiu com dolo pois realizou os elementos do tipo objetivo mesmo tendo atuado de boafé Mas isso não quer dizer que fosse necessariamente punível porque caso fosse reconhecido o erro de proibição inevitável que é uma excludente de culpa bilidade seria absolvido E se se entendesse evitável o erro de proibição a hipótese seria de punição a título de dolo mas com pena reduzida É que o erro de proibição quando inevitável exclui a culpabilidade não o dolo quando evitável nada exclui apenas atenua a culpabilidade e a pena consequentemente CP art 21 51 Conceito que adotamos dolo é dolus malus Pois bem apesar de o conceito finalista ser absolutamente dominante na atualida de parecenos que dolo sem conhecimento da ilicitude do fato é uma pura ficção Com efeito não é possível um conhecimento profano do fato se não tomarmos em consideração o grau de socialização do sujeito ativo do crime sob pena de não existir conhecimento algum de sorte que o agente necessariamente haverá de ter uma ideia mais ou menos clara do significado social do que seja matar do que seja fur tar ou do que seja estuprar até porque se tal conhecimento é relativamente fácil quanto aos crimes clássicos homicídio furto estupro não o é porém para as novas formas não raro artificiais de criminalidade Por isso que atualmente Roxin afirma que o dolo supõe o conhecimento do sen tido social mas não o da proibição jurídica35 Também Sílva Sánchez considera que não basta para a configuração do dolo um conhecimento naturalístico senão que deve darse um conhecimento do conteúdo do sentido social do fato36 Mir Puig vai além para entender o dolo como dolus malus37 é dizer compreensivo da consciência atipicidade e causas de justificação uns e outros são os pressupostos da antijuridicidade ou proibição penal Em contrapartida o dolo não requer conhecimento ou consciência da própria antijuridicidade ou proibição nem geral nem penal da conduta Curso cit p 405 Apesar disso Luzón Peiia de fende cit p 4 1 0 um dolo objetivamente mau 35 Derecho penal cit p 463 36 Aproximación cit p 402 37 Derecho penal cit p 240 Escreve o citado autor textualmente a nosso juízo o dolo completo exige a consciência da antijuridicidade porém é conveniente distinguir três graus ou níveis de dolo o dolo típico que só exige o conhecimento e vontade do fato típico o dolo referido ao fato típico sem os pressupostos típicos de uma causa de justificação e o dolo completo que ademais supõe o conhecimento da antijuridicidade dolus malus Ao estudar o tipo doloso importa unicamente o pri meiro nível de dolo típico que corresponde ao conceito de dolo natural usado pelo finalismo Nesse contexto e por motivos de brevidade em princípio utilizaremos o termo dolo no sentido de dolo típico Quando nos ocuparmos das causas de justificação veremos que então o dolo exige o segundo 252 I 06I TEORIA DO DOLO da ilicitude E também Jakobs afirma atualmente que dolo de tipo e consciência do injusto são uma só e mesma coisa38 Com efeito sabemos por exemplo que nalgumas comunidades indígenas brasi leiras é comum o acasalamento antes de 14 anos Ora dizer para um índio de seme lhante tribo que ele comete um crime de estupro de vulnerável parecerlheá absoluta mente incompreensível pois tal prática faz parte de suas tradições e costumes Dizer enfim com o finalismo que ele age com dolo embora não atue culpavelmente é algo um tanto artificial visto constituir um juízo ahistórico e arbitrário Dito de outra forma nem sequer tem o índio o conhecimento profano pois só poderia ser diferente se tivesse um conhecimento de especialista em costumes e tradições brancas e mais tivesse compromisso com outra tradição cultural que não a sua Em relação à imputa ção do tipo do art 217A todos os implicados poderiam justificadamente questionar estupro de quem Já não bastasse isso o índio atuando dentro do que lhe é constitucionalmente as segurado CF art 231 atua legitimamente não praticando sequer um fato típico Ver capítulo sobre direito penal indígena Ademais se o dolo é saber e querer a realização do tipo objetivo como afirmar nessas circunstâncias que tais pessoas queiram e saibam que realizam o tipo de estu pro se carecem do conhecimento mínimo do significado negativodesvalor social da conduta Definitivamente afirmar a presença de dolo neste e noutros tantos casos só é possível se descontextualizarmos e abstrairmos o sujeito do seu contextoambiente so ciocultural ou seja a ideia de um dolo natural universal só é possível à margem da realiidade é pois uma pura ficção Por isso é que semelhante conceito valeria indistin tamente para a criança e o adulto nacionais e estrangeiros apesar das diferenças que os separam E não existe um conceito de dolo nenhum conceito aliás válido para além do tempo e do espaço Consideremos um outro exemplo suponha que uma pessoa habitante da zona rural dos confins do Brasil que tenha por hábito caçarpescar nos finais de semana como faz a maioria das pessoas que habita aquele lugar coisa que lhe parece absolu tamente normal e legítima venha a ser presa em flagrante delito contra o meio am biente e porte ilegal de arma Ora como sustentar que em tal caso o agente atua com nível de dolo correspondente Finalmente o dolo completo será necessário para a imputação pessoal da antijurídicidade penal 38 Dolus malus Barcelona octubre de 2009 Disponível no InDret wwwindretcom Jakobs escreve ainda que todos os tipos penais do StGB compreendem uma hipótese de injusto uma perturbação social e por isso em nenhum caso resulta decisiva unicamente uma modificação dos fatos naturais do mesmo modo que uma modificação de fatos sociais só resulta decisiva naquelas hipóteses em que a mesma em lugar contra a estrutura normativa da sociedade Um conhecimento dos elementos de conduta típicos sem o conhecimento de que estes formam parte da estrutura normativa da sociedade se encontra per se tão vazio de sentido como o conhecimento de que ocorre algo em algum momento com uma coisa qualquer tratase efetivamente de um conhecimento mas este não contribui à orien tação jurídica 253 PAULO QJEIROZ conhecimento e vontade de realizar o tipo de caçapesca proibida ou de porte ilegal de arma se ele não tem a menor ideia do que isso signifique ou seja não tem a menor noção do desvalor social e portanto jurídicopenal da ação Dizer enfim que age dolosamente ainda que eventualmente sem culpabilidade não faz sentido algum exceto do ponto de vista da coerência que se pretende emprestar ao sistema adotado sistema finalista clássico Notese por fim que em nenhum desses casos se está a exigir conhecimento de especialista vale dizer conhecimento da existência da norma penal proibitiva mas tão só consciência do caráter socialmente reprovável do comportamento isto é conheci mento profano Parece certo ainda que semelhante conceito dolo natural parte de uma rigorosa e ilusória separação entre fato e valoração do fato contrariamente à perspectiva aqui adotada qual seja a de que não existem fenômenos jurídicos nem jurídicopenais mas apenas uma interpretação jurídica e jurídicopenal desses fenômenos Também por isso o dolo não é a rigor um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título Cobo dei Rosal e Vives Antón têm razão portanto quando dizem que o conheci mento do significado antijurídico da conduta é elemento imprescindível do dolo visto que os tipos não descrevem meros acontecimentos físicos mas sociais inevitavelmen te valorativos39 Em síntese o conceito causalista de dolo dolus malus entendido como consciên cia e vontade de praticar um fato que se sabe juridicamente proibido readquire plena atualidade não bastando por conseguinte um conhecimento naturalneutro apenas teorizado e construído à margem da realidade Além disso um conceito de dolo como aqui proposto dolo mau é o que parece mais condizente com uma perspectiva funcional da teoria do delito já que se a função declarada da norma penal é motivar pessoas a agirem segundo o seu comando impõe se que os seus destinatários tenham consciência da proibição que recai sobre a conduta em face de seu desvalor social e pois jurídico podendo compreender a mensagem normativa e agir segundo o seu comando E mais um dolus malus está mais conforme o caráter garantista que deve informar os conceitos e institutos jurídicopenais Além disso a adequação dos resultados do sistema importa muito mais do que o próprio sis tema e sua pretendida coerência Em suma se dolo é consciência e vontade dirigidas à realização de um tipo legal de crime seguese inevitavelmente que dolo é a realização de um fato que se sabe proibido pelo direito inclusive porque o tipo de acordo com a teoria dos elementos negativos do tipo já contém toda a proibição fato típico é um fato proibido jurídico penalmente 39 Derecho penal cit p 558 254 I 061 TEORIA DO DOLO Que fique claro não é esse dolus malus o conceito adotado pelo Código Penal que se filiou à teoria finalista no particular 6 ATUALIDADE DO DOLO A consciência e a vontade exigidas para a configuração do dolo devem coexistir no momento da açãoomissão típica nem antes nem depois O dolo portanto é neces sariamente contemporâneo da prática da conduta típica de modo que se lhe for poste rior ou anterior dolo rigorosamente não há Assim por exemplo se após comprar um veículo em condições normais e de boafé o agente vier a saber que se trata de coisa roubada não existe em princípio dolo de receptação CP art 180 porque quando da ação supunha realizar um negócio legal Assim se restituir o veículo ao legítimo pro prietário não sofrerá nenhuma consequência de ordem jurídicopenal Também por isso quem mata alguém culposamente e logo a seguir oculta o corpo dolosamente responde por homicídio culposo e ocultação dolosa de cadáver Por conseguinte o dolo deve existir ao tempo da execução do crime e não antes ou depois de consumado mas isso não quer dizer que o dolo deva necessariamente persistir durante toda a fase de execução Sim porque mesmo que o agente desista ou se arrependa inutilmente do delito cuja execução iniciara responderá por crime doloso consumado ou tentado conforme o caso Assim se o autor de um atentado depois de colocar a bomba arrependese e tenta por rádio conseguir uma aterrissagem prematura do avião e assim salvar os passageiros responderá a título de dolo se não tiver êxito40 Também não basta a existência de dolo antecedente à execução só na fase de co gitação ou preparação motivo pelo qual quem persegue a vítima apontalhe a arma e desiste de fazêlo mas ainda assim dispara acidentalmente não responde a título de dolo mas de culpa O dolo é pois consciência e vontade de realizar o tipo no momento da sua reali zação mesma Não é exceção a isso a hipótese de embriaguez preordenada que ocorre quando o agente se embriaga com o fim de praticar crime uma vez que embora a decisão de cometer delito preceda à realização da ação típica o dolo de delinquir persiste quando da respectiva execução 7 ELEMENTOS SUBJETIVOS DO TIPO A doutrina distinguia distinção atualmente superada entre dolo genérico e dolo específico O dolo genérico escrevia Magalhães Noronha reside na vontade de realizar o tipo descrito na lei enquanto o dolo específico é considerado como um fim especial e próprio do delito41 De acordo com tal formulação o dolo compreendia 40 Roxin Derecho Penal cit p 454 41 Direito Penal v 1 cit 255 PAULO QlEIROZ todos os elementos do tipo mas haveria um dolo genérico compreensivo do tipo ob jetivo e eventualmente um dolo específico compreensivo dos elementos subjetivos especiais referidos no tipo Uma vez superada tal distinção por se entender que o dolo é um só permaneceu se adotando porém um conceito restritivo de dolo isto é dolo como realização do tipo objetivo unicamente razão pela qual a doutrina atual fala de elementos subjetivos do tipo ou elementos subjetivos do injusto para assim designar todos aqueles requisitos de caráter subjetivo distintos do dolo que o tipo exige para sua realização Numa palavra o que antes se chamava dolo específico chamase atualmente elementos subjetivos do tipo ou elementos subjetivos do injusto Assim por exemplo o para si ou para ou trem no furto CP art 155 e o intuito de obter vantagem econômica na extorsão CP art 158 não fariam parte do conceito de dolo Os elementos subjetivos do injusto seriam enfim conforme definição de Danie la Marques elementos do campo psíquicoespiritual do agente traduzidos em espe ciais tendências intenções ou propósitos fim especial de agir que condicionam ou que fundamentam o juízo de ilicitude do comportamento42 Deuse portanto uma nova denominação ao antigo dolo específico E de acordo com Mufíoz Conde esses elemen tos subjetivos específicos não coincidem com o dolo pois são tendências especiais ou motivos que o legislador exige nalguns casos além do dolo para constituir o tipo de algum delito como por exemplo o ânimo de injuriar no crime de injúria43 Não estamos de acordo com isso porém Sim porque se dolo é a realização do tipo penal consciente e voluntariamente e se não existe dolo em si mas dolo de reali zar um tipo legal determinado o dolo há de compreender forçosamente todos os ele mentos referidos tipo não fazendo sentido algum excluir os assim chamados elementos subjetivos do injusto Além do mais quer porque a linguagem é estruturalmente aberta quer porque não existe conhecimento sem mediação do sujeito quer porque a interpretação consti tui o ser do direito a pretendida distinção entre elementos objetivos subjetivos e nor mativos do tipo não é mais sustentável Como assinala Rosa Maria Cardoso da Cunha é arbitrária a distinção feita pelo pensamento dogmático entre elementos descritivos e normativos com o fim de situar apenas estes últimos como objeto valorativo do juí zo porque tal distinção desconsidera a circunstância de que nenhum elemento do tipo pode ser conhecido pela simples verificação sensorial Com efeito mesmo expressões como homem casa membro etc apontam para objetos que reclamam um juízo histó rico e valorativo44 42 Elementos subjetivos do injusto cit p 1 1 9 43 Teoria Geral do Delito cit p 65 No mesmo sentido Cezar Bitencourt o especial fim de agir ou motivo de agir embora amplie o aspecto subjetivo do tipo não integra o dolo nem com ele se confun de uma vez que o dolo esgotase com a consciência e a vontade de realizar a ação com finalidade de obter o resultado delituoso Manual cit p 2 1 6 44 O caráter retórico do princípio da legalidade Porto Alegre 1 979 p 64 256 06 TEORIA DO DOLO O dolo portanto entendido como realização dos elementos do tipo deve com preender tudo que o tipo legal de crime contiver expressa ou tacitamente inclusive porque o dolo não é um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título a título de dolo Conforme vimos dizer que o dolo não é um estado mental do sujeito mas uma imputação a esse título significa basicamente o seguinte a que compete a um tercei ro notadamente o juiz e não ao imputado decidir se este agiu ou não dolosamente razão pela qual a imputação a esse título não fica na dependência da interpretação que o próprio sujeito faz de seu ato bque se trata essencialmente de uma valoração a partir da prova produzida nos respectivos autos cque esse juízo de valor poderá eventualmente contrariar a própria versão do imputado por mais verossímil sobretudo nos crimes contra a honra calúnia etc dque para a apuração do dolo é essencial a consideração do contexto em que os fatos se passaram e que o dolo não preexiste à interpretação mas é dela resultado o dolo não é previamente dado mas construído motivo pelo qual juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto ora afirmando ora negando a existência de dolo fque o dolo é um conceito logo uma metáfora razão pela qual pode designar e compreender casos bastante díspares vide capítulo 12 sobre os limites de um conceito gpor encerrar uma imputação é possível falar em tese de dolo mesmo em relação a adolescentes ébrios e portadores de deficiência mental 8 CRIME QUALIFICADO PELO RESULTADO PRETERDOLO OU PRETERINTENCIONALIDADE Dizse preterdoloso de praeter dolus isto é além do dolo ou preterintencional um crime quando num mesmo tipo penal conjugamse dolo e culpa de modo que o delito consiste na fusão de ambos havendo dolo no ato antecedente e culpa no con sequente Tratase portanto de um comportamento doloso cujo resultado é punido a título de culpa Assim por exemplo o crime do art 129 3º do CP em que se pune a lesão corporal a título de dolo e a morte a título de culpa desde que as circunstâncias evidenciem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzilo ou seja o agente quis simplesmente causar lesão v g por meio de um soco vindo porém a matar a vítima tal foi a violência do impacto No preterdolo o resultado vai além da intenção do agente portanto O crime preterdoloso pressupõe por conseguinte que o autor não tenha agido relativamente ao resultado de sua ação com dolo nem mesmo eventual mas com culpa porque do contrário ou responderá por crime doloso homicídio no exemplo dado ou somente por crime de lesão corporal também dolosa caso fique provado neste último caso que a morte era imprevisível e inevitável logo não imputável nem mesmo a título de culpa sob pena de violação ao princípio de pessoalidade da pena O Código é claro no particular ao dispor que pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposa mente art 19 257 258 PAULO QlJEI ROZ O precedente abaixo do STJ ilustra bem essa questão LESÃO COPORAL MORTE NEXO CAUSALIDADE Segundo consta dos autos o recorrente foi denunciado pela prática do cri me de lesão corporal qualificada pelo resultado morte art 1 29 3º do CP porque durante um baile de carnaval sob efeito de álcool e por mo tivo de ciúmes de sua namorada agrediu a vítima com chutes e joelhadas na região abdominal ocasionando sua queda contra o meiofio da calçada onde bateu a cabeça vindo à óbito Ocorre que segundo o laudo pericial a causa da morte foi hemorragia encefálica decorrente da ruptura de um aneurisma cerebral congênito situação clínica desconhecida pela vítima e seus familiares O juízo singular reconheceu que houve crime de lesão corporal simples visto que restou dúvida sobre a existência do nexo de causalidade entre a lesão corporal e o falecimento da vítima O tribunal a quo por sua vez entendeu ter ocorrido lesão corporal seguida de morte art 129 3 ele o art 61 II a e e do CP sob o argumento de que a agressão perpetrada pelo recorrente contra a vítima deu causa ao óbito Assim a questão diz respeito a aferir a existência de nexo de causalidade entre a conduta do recorrente e o resultado morte art 13 do CP Nesse contexto a Turma prosseguindo o julgamento por maioria deu provi mento ao agravo regimental e ao recurso especial determinando o res tabelecimento da sentença Conforme observou a Min Maria Thereza de Assis Moura em seu votovista estáse a tratar dos crimes preterdolosos nos quais como cediço há dolo no comportamento do agente que vem a ser notabilizado por resultado punível a título de culpa Ademais salien tou que nesse tipo penal a conduta precedente que constitui o delitobase e o resultado mais grave devem estar em uma relação de causalidade de modo que o resultado mais grave decorra sempre da ação precedente e não de outras circunstâncias Entretanto asseverou que o tratamento da causalidade estabelecido no art 1 3 do CP deve ser emoldurado pelas dis posições do art 18 do mesmo codex a determinar que a responsabilidade somente se cristalize quando o resultado puder ser atribuível ao menos culposamente Ressaltou que embora alguém que desfira golpes contra uma vítima bêbada que venha a cair e bater a cabeça no meiofio pudesse ter a previsibilidade objetiva do advento da morte na hipótese o próprio laudo afasta a vinculação da causa mortis do choque craniano porquanto não aponta haver liame entre o choque da cabeça contra o meiofio e o evento letal ln casu a causa da morte foi hemorragia encefálica decor rente da ruptura de um aneurisma cerebral congênito situação clínica de que sequer a vítima tinha conhecimento Ademais não houve golpes per petrados pelo recorrente na região do crânio da vítima Portanto não se mostra razoável reconhecer como típico o resultado morte imantandoo de caráter culposo Dessa forma restabeleceuse a sentença de primeiro grau que desvinculou o resultado do comportamento do agente que não tinha ciência da particular e determinante condição fisiológica da vítima AgRg no REsp 1 094758RS Rei originário Min Sebastião Reis Júnior Rei para acórdão Min Vasco Della Giustina Desembargador convocado do TJRS julgado em lº32012 l ü6I TEORIA DO DOLO Não se deve confundir finalmente crime preterdoloso com crime qualificado pelo resultado pois o primeiro é espécie do segundo seu gênero ou seja todo crime pre terdoloso é um crime qualificado pelo resultado mas nem todo crime qualificado pelo resultado é um crime preterdoloso É que há crimes qualificados pelo resultado cuja circunstância qualificadora resulta não de culpa como ocorre no crime preterdoloso mas de dolo tratandose em consequência de um crime doloso apenado mais grave mente em razão do resultado Assim por exemplo as lesões corporais graves previs tas no art 129 lº e 2 Existem ainda além dessa combinação de dolo e dolo delitos qualificados que resultam da fusão de culpa e culpa a exemplo do desastre ferroviário culposo com resultado lesão ou morte culposa CP arts 260 2º e 263 81 Inconstitucionalidade dos crimes qualificados pelo resultado Há quem afirme que os crimes qualificados pelo resultado são inconstitucionais uma vez que atentam contra os princípios de proporcionalidade e isonomia Nesse sentido Juarez Cirino assinala que os crimes qualificados pelo resultado especialmente os tipos com lesão corporal ou roubo com resultado morte imprudente por exemplo A golpeia o rosto de B com um revólver carregado que dispara e aci dentalmente mata B são incompatíveis com o princípio da culpabilidade porque a gravidade da pena é desproporcional em relação às punições independentes do tipo fundamental e do homicídio imprudente o que transforma a responsabilidade penal por tais crimes numa versão moderna do velho versari in re illicita do direito canônico originando propostas desde a redução corretiva da pena como quer Jakobs até a abo lição de lege ferenda dos crimes qualificados pelo resultado como sugere Jescheck45 Posição semelhante adota Juarez Tavares para quem os delitos qualificados pelo resultado só poderiam ser admitidos se constituídos com o mesmo conteúdo de injusto dos delitos que resultassem de uma relação de concurso formal pois do contrário vio lam o sistema de fundamentação do injusto penal porque não representam maior gra vidade na lesão ou perigo de lesão ou no perigo de lesão de bem jurídico46 Considera ainda que no que toca à pena cominada por exemplo aos crimes de lesão seguida de morte e latrocínio pela disparidade das sanções possíveis acrescidas no máximo de agravação do concurso formal podese afirmar que se viola o princípio da proporcio nalidade segundo o qual para resultados danosos idênticos devese seguir a mesma consequência penal47 Já Roxin entende que as objeções embora procedentes em parte não justificam a abolição dos crimes qualificados pelo resultado mas sugerem uma ampla restrição dos mesmos à provocação temerária do resultado mais grave48 45 A moderna teoria cit p 127 46 Teoria do injusto penal cit p 1 99 47 Teoria do injusto penal cit p 198 48 Derecho penal cit p 3 3 1 259 PAULO QvEIROZ De todo modo enquanto existirem tipos qualificados pelo resultado convém evi tar a aplicação de penas desproporcionais isto é penas que excedam àquelas que se riam cabíveis para o concurso de crimes especialmente o concurso material de crimes 9 AUSÊNCIA DE DOLO ERRO DE TIPO Se como vimos o dolo é a realização dos elementos do tipo consciente e vo luntariamente seguese que o autor não poderá responder a esse título quando lhe faltar o conhecimento essencial à sua configuração Haverá portanto erro de tipo sempre que o agente carecer do conhecimento dos elementos do tipo ou tiver um co nhecimento falso ou inexato desses elementos Assim se o autor contrair casamento ignorando a condição de casado do cônjuge não responde como partícipe do crime de bigamia e não responde tampouco por furto se supuser abandona sem dono coi sa alheia 49 A rigor era pois desnecessária previsão legal expressa sobre o erro de tipo visto que a teoria do erro de tipo não é outra coisa senão a própria teoria do dolo embora com outro nome sim porque o erro de tipo é a negação mesma da representação exi gida para o dolo motivo pelo qual haverá tal erro sempre que o autor desconhecer os elementos do dolo segundo o tipo correspondente 50 Justamente por isso quanto ao conteúdo o dolo pode consistir tanto em uma representação falsa da realidade como na sua falta de representação já que o erro é a discrepância entre consciência e reali dade51 E como veremos a seguir pouco importa se o erro incide sobre elementos descri tivos ou normativos do tipo porque o dolo compreende segundo pensamos tudo que nele se contém E mais em razão do caráter estruturalmente aberto da linguagem é infundada a distinção entre elementos valorativos e não valorativos do tipo visto que não existe conhecimento sem mediação do sujeito não existe conhecimento sem valo ração portanto Com efeito matar alguém subtrair coisa alheia móvel constran ger alguém etc pressupõem juízos de valor inevitavelmente O erro de tipo poderá incidir portanto sobre os assim chamados elementos des critivos ou normativos Assim por exemplo em relação ao tipo de homicídio haverá erro quando numa caatinga fechada o agente atirar contra o que supõe ser um ani mal vindo a matar uma pessoa caso em que erra sobre o alguém a que se refere o art 121 do Código o mesmo ocorrerá se quanto ao furto o agente supuser própria coisa alheia hipótese em que erra sobre o alheia previsto no art 155 ou ainda quando no estupro contra vulnerável acreditar que a vítima é maior de catorze anos ou desco nhecer sua condição de deficiente mental 49 Exemplos de Antônio José da Costa e Silva Código Penal dos Estados Unidos do Brasil Commenta do Brasília Senado Federal 2004 50 Jescheck Tratado cit p 275 5 1 Jescheck Tratado cit p 275 260 I061 TEORIA DO DOLO Em todos esses exemplos faltará ao autor o conhecimento essencial à configuração do dolo a impedir a imputação de crime a esse título O erro de tipo consiste portanto na ausência de conhecimento ou no falso conhe cimento dos seus elementos constitutivos motivo pelo qual uma vez provado o enga no excluirseá o dolo devendo o agente responder a título de culpa exclusivamente se houver imprudência e se o crime for punível a esse título Do erro de tipo cuida o art 20 caput do Código Penal que dispõe o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo mas permite a punição por crime culposo se previsto em lei A consequência invariável do erro de tipo é pois a exclusão do dolo afastando em princípio a própria tipicidade penal exceto se o autor tiver agido com imprudência e o tipo legal de crime admitir a punição na forma culposa Eventualmente o erro de tipo poderá resultar de erro sobre a pessoa Assim por exemplo se num baile de máscaras o agente pratica atos libidinosos com vítima vul nerável supondo tratarse de sua companheira não vulnerável incidirá em erro de tipo afastando a imputação de estupro de vulnerável CP art 217A A hipótese não se confunde porém com o erro sobre a pessoa de que ainda vamos tratar item 14 pois aqui o autor não quer cometer delito algum contra a vítima visada ou real O erro de tipo pode ainda acarretar outros efeitos que não a exclusão do dolo ou da cui1pa como a desclassificação do delito Assim por exemplo se o autor desacatar funcionário público desconhecendo essa sua qualidade poderá responder não por de sacato CP art 331 mas por crime contra a honra v g injúria 24 e quem mantiver relações sexuais violentas com vulnerável ignorando essa circunstância responderá por estupro violento e não por estupro de vulnerável O erro pode também incidir sobre circunstâncias agravantes ou qualificadoras Exemplo quem induz a própria filha a satisfazer a lascívia de outrem ignorando a relação de parentesco não responde pela qualificadora prevista no art 227 1 º do Código52 embora responda pelo crime na forma simples Finalmente além do erro de tipo de que estamos tratando erro de tipo essencial haverá erro de tipo acidental nos seguintes casos erro sobre a pessoa errar in per sona erro na execução aberratio ictus resultado diverso do pretendido aberratio criminis etc dos quais se tratará mais adiante 91Erro de tipo ou erro de proibição Nem sempre é fácil ou possível distinguir erro de tipo de erro de proibição espe cialmente em se tratando de tipos penais que referem expressamente os assim chama dos elementos normativos do tipo tais como sem justa causa indevidamente etc 52 Damásio de Jesus Direito penal cit p 30 1 261 PAULO QEIROZ Para uns tratase de erro de tipo para outros erro de proibição E há ainda quem entenda que ora é um ora é outro Parecenos que esses tipos penais demonstram em verdade a inconsistência da mencionada distinção Porque no fundo erro de tipo e erro de proibição são uma só e mesma coisa variações de um erro de interpretação Afinal errar sobre o tipo é errar sobre a proibição que o tipo encerra e viceversa De todo modo temos que haverá erro de tipo sempre que faltar ao agente a repre sentação exata do fato relativamente a um tipo penal determinado E para esse fim é irrelevante se se trata de elementos valorativos ou não valorativos do tipo Já vimos ademais que é infundada a pretendida distinção entre elementos des critivos objetivos e normativos visto que todos são inevitavelmente valorativos uns mais outros menos E mais com a normativização levada a efeito pela moderna teoria da imputação objetiva no âmbito da própria tipicidade já não faz muito sentido falar de elementos não normativos do tipo Em suma se o erro recai sobre os elementos do tipo explícitos ou implícitos pouco importando o quão precisos ou imprecisos sejam cuidarseá de erro de tipo Assim por exemplo quanto ao art 154 do Código violação de segredo profissional que define como crime o ato de revelar alguém sem justa causa segredo de que tem ciência em razão de função ministério ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem faltará o dolo quer o agente acredite que é devida a revelação quer ignore o caráter de segredo quer faça a revelação com o fim de bene ficiar o ofendido 53 E haverá erro de proibição quando fora do caso anterior o autor acreditar que pratica uma conduta conforme o direito mas que em verdade constitui infração pe nal O erro de proibição tem pois natureza residual relativamente ao erro de tipo O mesmo raciocínio vale mutatis mutandis para os tipos penais em branco que são aqueles que por serem incompletos remetem parcialmente a complementação do preceito principal para uma outra norma ora de mesmo grau hierárquico tipos homo gêneos 9ra de grau hierárquico inferior tipos heterogêneos 53 De modo diverso Cézar Bitencourt escreve textualmente se o profissional médico por exemplo revela segredo do paciente mas sinceramente acreditando que não lhe causará nenhum dano pelo contrário até lhe trará algum benefício numa reunião científica em um congresso de medicina revela a doença de que o paciente é portador esperando obter benefício dessa revelação nem imaginando que isso possa de algum modo por alguma circunstância que ele desconhece trazer prejuízo para o paciente nesse caso esse erro se refere a uma condição do tipo Se ao contrário imaginar que a divulgação que faz realiza com justa causa então o erro será sobre a ilicitude desca racterizandoa da culpabilidade Por exemplo o médico está pleiteando o pagamento de honorários que o paciente está lhe recusando e imagina que para fundamentar o pagamento de honorários tem de explicitar o tipo de tratamento que realizou e o tipo de enfe1midade do paciente Por isso nem pensa que está quebrando o sigilo com justa causa Aqui não seria na realidade um erro sobre a constituição do tipo sem justa causa mas sobre a ilicitude da conduta Tratado de direito penal São Paulo Saraiva 2 1 03 p 5 1 6 262 1061 TEORIA DO DOLO 92 Espécies de erro de tipo erro inevitável e evitável O erro de tipo pode ser portanto inevitável invencível logo escusável ou evitável vencível inescusável pois Quando inevitável há exclusão do dolo e da cul pa exclusão da própria tipicidade se evitável excluise somente o dolo subsistindo a culpa se o crime for punível a título de imprudência negligência ou imperícia Dirseá inevitável sempre que o agente for levado a erro de forma absolutamente insuperável segundo as circunstâncias do caso e será evitável quando tiver incorrido em erro por imprudência negligência ou imperícia Assim conforme exemplo antes referido se se verificar que o caçador podia darse conta de que mirava uma pessoa e não um animal caso agisse com prudência ordiná ria e adotasse as cautelas mínimas como aproximarse mais da vítima etc a hipótese será a de erro de tipo evitável caso contrário se foram comprovadamente adotados os cuidados indispensáveis e ainda assim o resultado lesivo veio a consumarse a situa ção será a de erro de tipo inevitável Naturalmente que a imputação a título de imprudência para a hipótese de erro evitável somente ocorrerá se o respectivo crime admitir a forma culposa porque do contrário não haverá punição alguma ou seja mesmo em se tratando de erro evitável poderá ocorrer a exclusão da tipicidade Assim por exemplo na hipótese de mulher grávida que aborta culposamente v g tomando um remédio para úlcera mas que sem que o saiba cause o aborto já que semelhante crime só é punido na forma dolosa não existindo crime de aborto culposo 1 E que de acordo com o art 18 parágrafo único do Código salvo os casos ex pressos em lei ninguém pode ser punido por fato previsto como crime senão quando o praticar dolosamente de sorte que a punição a título de culpa só é cabível quando o respectivo tipo penal previr a forma culposa expressamente Aliás o próprio art 20 refere que o erro de tipo exclui o dolo mas permite a punição por crime culposo se previsto em lei 10 AUSÊNCIADO CONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO ERRO DE PROIBIÇÃO 101 Conceito Dáse o erro sobre a ilicitude do fato ou erro de proibição direto sempre que o agente supõe praticar uma conduta legal ou legítima mas que em verdade configura ilícito penal Enfim há erro de proibição sempre que o autor carecer da consciência da ilicitude do fato Ou como diz Francisco de Assis Toledo há erro de proibição quando o agente realiza uma conduta proibida seja por desconhecer a norma proibitiva seja por conhecêla mal seja por não compreender o seu verdadeiro âmbito de incidência54 54 Princípios básicos de direito penal cit 270 263 PAULO QJEIROZ No erro de proibição portanto o agente erra quanto ao caráter proibido de sua conduta ao supor lícita uma ação ilícita Assim um estrangeiro v g cidadão holan dês que desembarcasse na Bahia com pequena quantidade de droga licitamente ad quirida para consumo pessoal acreditando que tal fosse permitido entre nós tal como no seu país de origem O erro de proibição não se confunde pois com o erro de tipo porque se no erro de tipo o agente não sabe o que faz no erro de proibição ao contrário ele sabe exa tamente o que faz mas acredita que age licitamente tal como o matuto que tendo por hábito comum na sua região caçar aos domingos vem a ser preso por crime contra o meio ambiente e porte ilegal de arma ao trazer no alforje algumas perdizes que abate ra naquele dia festivo E mais de acordo com o Código o errn de tipo inevitável exclui a tipicidade dolo e culpa e o erro de tipo evitável exclui o dolo apenas subsistindo a culpa Já o erro de proibição inevitável exclui a culpabilidade não o dolo nem a culpa e o erro de proi bição evitável nada exclui apenas atenua a pena É que o erro de tipo tem a ver com a tipicidade e o erro de proibição tem a ver com a culpabilidade sistema finalista Distinguindo por meio de mais um exemplo se o autor tem em casa cocaína su pondo ser outra substância inócua tratase de erro de tipo mas se a tem pensando que o depósito não é proibido o tema é de erro de proibição55 São também possíveis exemplos de erro de proibição tirar cópia de livro baixar músicas via internet etc caso se entenda que algumas dessas práticas configuram violação de direitos autorais CP art 184 bem como adquirir produtos estrangeiros introduzidos no país clandes tinamente receptação Do erro sobre a ilicitude do fato cuida o art 21 caput segunda parte do Código o erro sobre a ilicitude do fato se inevitável isenta de pena se evitável poderá dimi nuíla de um sexto a um terço A distinção entre erro de tipo e erro de proibição pressupõe uma outra distinção entre fato e valoração do fato E conforme vimos se o Código adotasse uma concep ção de dolo como dolus malus o erro de proibição o excluiria visto que a consciência da ilicitude faria parte do conceito de dolo Enfim consideramos que o erro de tipo e o erro de proibição deveriam ser tratados exatamente da mesma forma Dizse por fim que há erro de proibição indireto quando o agente erra sobre a existência ou sobre os limites de uma causa de justificação isto é sabe que pratica um fato em princípio proibido mas supõe que nas circunstâncias milita a seu favor urna norma permissiva56 55 Exemplo de Finger citado por Sebastian Soler Derecho Penal Argentino II Buenos Aires TEA 1 992 p 102 56 Francisco de Assis Toledo princípios básicos cit p 271 264 1061 TEORIA DO DOLO 102 Espécies de erro inevitável e evitável Também o erro de proibição pode ser inevitável invencível ou evitável vencível Se inevitável haverá isenção de pena se evitável a pena será diminuída de um sexto a um terço Dirseá evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato quando lhe era possível nas circunstâncias ter ou atingir essa consciência CP art 21 parágrafo único Vale dizer somente terá lugar a isenção de pena por erro inevitável quando o agente não puder com um esforço mínimo obter concretamente o conhecimento do caráter ilícito do fato Portanto o conhecimento que se exige não é atual mas potencial possibilidade de atingir a consciência da ilicitude Do contrário não poderá sem mais valerse da isenção de pena beneficiandose ape nas da redução da pena por erro evitável 103 Posição sistemática O tratamento legal dado ao erro de tipo e ao erro de proibição é diverso portanto Com efeito se o erro de tipo inevitável exclui o dolo o erro de proibição inevi tável isenta o réu de pena Significa dizer que o erro de tipo inevitável ao excluir o dolo exclui a própria tipicidade e o erro de proibição inevitável ao isentar o réu de pena mantém incólume a tipicidade do fato o dolo e a culpa embora exclua a culpa bilidade Se se tratar de erro evitável dáse o seguinte o erro de tipo exclui o dolo mas per siste a possibilidade legal de punição da conduta a título de culpa já no erro de proibi ção evitável o agente responde por crime doloso ou culposo conforme o caso embora com pena diminuída de um sexto a um terço Enfim o erro de tipo tem a ver com a tipicidade e o erro de proibição com a cul pabilidade visto que o Código aderiu ao finalismo entendendo dolo como dolo natural neutro dissociado da consciência da ilicitude por considerar que o potencial conhe cimento da ilicitude é uma questão de culpabilidade e não de tipicidade Convém repetir que segundo o conceito de dolo aqui proposto dolus malus a distinção entre erro de tipo e erro de proibição carece de sentido porque a falta de consciência da ilicitude implicaria a exclusão do dolo motivo pelo qual o erro de tipo e o erro de proibição deveriam ter o mesmo tratamento jurídicopenal 104 Desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude do fato distin 1 ção A doutrina distingue conhecimentodesconhecimento da lei de conhecimentodes conhecimento da proibição do fato O desconhecimento da lei é em princípio inescu sável já o desconhecimento da proibição do fato importa em erro de proibição inevitá vel ou evitável logo é escusável total ou parcialmente Noutras palavras o conhecimentodesconhecimento da lei é em princípio penal mente irrelevante e o conhecimentodesconhecimento da proibição que a lei encerra é 265 PAULO QJ E I ROZ penalmente relevante tendo implicações quanto à culpabilidade seja para isentar o réu de pena seja para atenuála O conhecimento da lei é obtido por meio de informações meios de comunicação família escola etc sobre a existência formal e principais proibições que a lei encerra Já o conhecimento da proibição do fato é adquirido por meio dos processos de socia lização e inserção do indivíduo numa determinada tradição moral religiosa jurídica etc quando são internalizados certos mandamentos como os de não matar não roubar etc Justamente por isso o indivíduo pode errar sobre a ilicitude do fato independen temente do conhecimento formal da lei57visto que a consciência da ilicitude é ou não adquirida com os processos de socialização Também por isso é que sabemos o que é um automóvel sem conhecermos mecânica ou o que é pneumonia sem conhecer medi cina e o que é ilícito sem conhecer a lei formalmente Asúa Em síntese é possível conhecer a proibição sem conhecer a lei como ordinaria mente ocorre aliás assim como é possível conhecer a lei e desconhecer a proibição havendo erro de proibição sempre que o agente conhecendo ou não a lei desconhecer a proibição do fato Normalmente quem conhece a lei conhece a proibição e em geral quem desconhece a proibição desconhece também a própria lei Naturalmente que nem sempre é possível distinguir o conhecimentodesconheci mento da lei e o conhecimentodesconhecimento da proibição do fato podendo even tualmente significar a mesma coisa Como assinala Juarez Cirino separar como faz a lei conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir relevância ao primeiro e irrelevância ao segundo é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei 58 E se no direito penal comum é relativamente fácil ter ou atingir o conhecimento do injusto o mesmo não se pode dizer quanto ao direito penal especial em que frequentemente tal pressupõe o conhecimento do próprio texto legal e seus artigos Consequentemente hoje não se pode mais pretender emprestar caráter absoluto à ideia de que o desco nhecimento da lei é inescusável de sorte que o brocardo ignorantia legis non nemi nem excusar perdeu boa parte de seu prestígio em face do princípio da culpabilidade 57 Como diz Paulo José da Costa Júnior é possível ignorar a lei e conhecer a proibição ou conhecer a lei e ignorar a proibição da conduta Curso cit p 89 58 A moderna teoria cit p 245 Escreve o citado autor textualmente separar conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir relevância ao desconhecimento do injusto e irrelevância ao desco nhecimento da lei penal é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei hoje generalizado sob o conceito de tipo de injusto que por força do princípio da legalidade aparece na lei penal sob a forma de tipo legal ou tipo penal como descrição do comportamento proibido precisamente porque injusto penal e lei penal representam respectivamente as dimensões concreta e abstrata das proibições ou comandos do direito penal é possível no direito penal comum ter ou atingir o conhecimento da lei através do conhecimento do injusto mas no direito penal especial é frequen temente impossível ter ou atingir o conhecimento do injusto exceto através do conhecimento da lei penal p 245 266 I061 TEORIA DO DOLO Afinal quem poderá saber por exemplo que é crime ter em depósito ou guardar ma deira lenha carvão e outros produtos de origem vegetal sem licença da autoridade competente Lei nº 960598 art 46 parágrafo único59 O desconhecimento da lei por conseguinte poderá e deverá conduzir eventual mente à absolvição mesma pela ausência de culpabilidade por encerrar um autêntico erro de proibição inevitável ou apenas atenuar a pena se evitável o erro60 105 Objeto da consciência da ilicitude Para a configuração do erro de proibição não basta a consciência da lesividade so cial ou a só consciência da imoralidade da conduta uma vez que as valorações sociais e morais são tão variáveis em uma sociedade pluralista que o direito não poderia exigir a orientação incondicional a tais valores de modo que o sujeito somente pode ser con siderado culpável quando desatenda conscientemente a proibições e mandamentos ju rídicos61 Numa palavra tem consciência do injusto quem sabe que seu comportamento é proibido pelo direito Logo incorre em erro de proibição quem fundada e concreta mente julga atuar conforme o direito supondo juridicamente permitida sua atuação Para o conhecimento do injusto é pois suficiente a consciência de infringir uma norma jurídica formalmente válida porque em tal caso o sujeito sabe que atua con trariamente ao direito mas não se exige conhecimento do preceito jurídico lesionado ou da punibilidade62 Em conclusão atuará culpavelmente quem pratica determinado comportamento sabendoo contrário ao direito 106 Divisibilidade do erro A consciência da ilicitude é divisível não só em relação aos distintos tipos mas também quanto ao mesmo tipo quando este protege bens jurídicos distintos63 Assim por exemplo no roubo art 1 57 se o autor subtrai com violência coisa do devedor em mora com conhecimento do injusto quanto à violência mas podendo errar quanto à subtração que julgava lícita diante da ilegal resistência ao seu direito Pela mesma ra zão o erro pode também recair sobre circunstâncias qualificadoras do tipo 59 Juarez Cirino A moderna teoria cit p 244245 60 No mesmo sentido Mestieri Assim de nenhum modo o sistema jurídico admite a alegação do des conhecimento da lei todavia essa posição está em franca oposição ao moderno princípio da culpabi llidade o que exige obviamente a capacidade concreta de agir poder na qual se insere induvidosa mente não apenas o conhecimento da regra como a estruturação da vontade de maneira reprovável Manual de derecho penal Rio de Janeiro Forense 1 999 p 1 82 6 1 Roxin Derecho penal cit p 866 62 Jescheck Tratado cit p 41 O De modo diferente Juarez Cirino que seguindo Otto entende que conhecimento do injusto significa conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma forma legal penal positiva ou seja consciência do injusto significa conhecimento de infringir uma prescrição penal embora não se exija conhecimento preciso dos parágrafos da lei infringidos A mo derna teoria cit p 232233 63 Roxin Derecho penal cit p 870 267 PAULO QEIROZ É ainda possível que o agente incida em duplo erro de proibição desconhece a proibição específica do tipo mas o considera proibido por outra razão quando v g um tio seduz uma sobrinha menor de catorze anos sem saber que tal constitua estupro de vulnerável mas imaginando que seja punido como incesto Nesse caso tem uma falsa consciência da ilicitude pois supõe uma proibição que não existe bem como ignora a que realmente existe incorrendo em erro de proibição porque lhe falta a cons ciência do injusto específico do tipo64 11 ERRO SOBRE CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO DESCRIMINANTES PUTATIVAS 111 Conceito Dáse o erro sobre causa de justificação descriminante putativa por erro de tipo ou erro de tipo permissivo sempre que o autor imaginarse amparado por uma exclu dente de ilicitude que de fato não existe legítima defesa estado de necessidade estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito putativos Tratase enfim de um erro que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação Exemplo jurado de morte por um inimigo o agente o encontra em lugar ermo à noite e vendoo retirar um volume do bolso que supõe ser um revólver é em realidade um aparelho celular dispara contra ele e o fere gravemente Há ainda descriminante putativa quando o policial confundindo um fugitivo com um perigoso terrorista que supostamente implodira uma estação de metrô fereo mortalmente ca sos em que o agente poderá valerse da legítima defesa putativa Com efeito o art 20 1 º do CP dispõe que é isento de pena quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que se existisse tornaria a ação legítima Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punido como crime culposo Assim as excludentes de ilicitude tanto podem dizer respeito a situações reais como podem referirse a situações putativas Naturalmente que o agente só pode se valer da descriminante putativa quando além do próprio erro estiverem presentes todos os requisitos legais relativos à causa de justificação de que se trata No caso de legítima defesa putativa por exemplo tal só é cabível se houver repulsa necessária e moderada a uma agressão injusta atual ou iminente a direito próprio ou alheio CP art 25 Justamente por isso o autor de roubo que mata a sua vítima por supor que ela estava armada e que reagiria ao assalto não pode invocála porque a sua agressão é criminosa injusta portanto Há quem entenda65 inclusive que o erro pode também recair sobre excludentes de culpabilidade sempre que o autor imaginarse numa situação de isenção de culpa v g coação moral irresistível que de fato não existe se estiverem presentes seus requisitos 64 Roxin Derecho penal p 870 65 Damásio de Jesus cit p 3 1 7 268 I 06 1 TEORIA DO DOLO legais Assim por exemplo o policial que acredita cumprir uma ordem hierárquica superior não manifestamente ilegal que não existe ou se existiu deixou de existir 112 Espécies erro inevitável e evitável O erro de que estamos tratando pode ser inevitável e evitável se inevitável o autor ficará isento de pena sendo absolvido se evitável responderá por crime culposo se o delito for punível a título de culpa visto que de acordo com o Código não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punido como crime culposo 113 Descriminantes putativas por erro de proibição Além do erro que acabamos de ver descriminante putativa por erro de tipo isto é erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação a doutrina costuma referir o erro sobre os limites ou a própria existência de uma causa de justificação o qual constituíra em verdade uma modalidade de erro de proibição indireto66 Como o próprio nome está a sugerir tratase de um espécie de erro de proibição importando portanto em exclusão da culpabilidade quando inevitável e em redução da pena se evitável Pois bem haveria erro sobre a existência de causa de justificação sempre que o agente se supusesse amparado por uma excludente de ilicitude não admitida pelo or denamento jurídico v g supor que é lícito ferir a esposa flagrada em adultério em razão de legítima defesa da honra E ocorreria erro sobre os limites de uma causa de justificação quando o agente inicialmente amparado por uma excludente de ilicitude fosse além do necessário por julgar lícito fazêlo v g depois de ferir e algemar o seu agressor em legítima defesa a vítima resolve torturálo supondo legítimo fazêlo Vêse pois que a diferença entre essas duas possibilidades de erro e aquele ante riormente tratado reside no fato de que aqui o agente não erra sobre a situação de fato que tornaria sua ação legítima mas sim sobre os limites de uma causa de justificação ou sobre a sua existência mesma O erro inicialmente referido descriminante putativa por erro de tipo teria a ver com a tipicidade e esses dois últimos descriminantes pu tativas por erro de proibição indireto diriam respeito à culpabilidade isto é constitui riam modalidades de erro de proibição indireto 114 Posição sistemática Discutese a natureza jurídica das descriminantes putativas se constituem um problema de tipicidade ou de culpabilidade já que não são autênticas causas de justifi cação logo não excluem a ilicitude 1 66 1 Nesse sentido Francisco de Assis Toledo Considerese que o erro sobre uma causa de justificação pode recair sobre os pressupostos fáticos dessa mesma causa supor situação de fato mas pode também isso é inegável e aceito em doutrina recair não sobre tais pressupostos fálicos mas sobre os limites ou a própria existência da causa de justificação supor estar autorizado Princípios Bási cos cit p 273 269 PAULO QJEIROZ Inicialmente é de ver que o seu tratamento legal é muito semelhante ao do erro de tipo visto que em ambos quando evitável o erro terá lugar a punição a título de culpa e quando inevitável o agente será absolvido Mas há uma diferença sutil enquanto no erro de tipo o Código diz claramente que exclui o dolo mas permite a punição por crime culposo no erro sobre descrimi nante dizse que o agente é isento de pena e que não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa ou seja não se afirma ao menos expressamente que o dolo é excluído com a descriminante putativa Justamente por isso a doutrina diverge quanto à exata posição sistemática do erro de que estamos tratando Com efeito Assis Toledo considerao um erro de tipo67 Al cides Munhoz Neto68 um erro de proibição Luiz Flávio Gomes um erro de proibição sui generis 69 É bem verdade que as expressões isentar de pena e excluir o dolo não se equi valem Mas se isso é certo não é menos verdadeiro que ocorrendo erro evitável não haverá isenção de pena exatamente porque o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo art 20 1 º Se assim é força é convir que apesar da expressão isenção de pena o erro vencí vel ao ensejar a punição só a título de culpa implica tacitamente a exclusão do dolo 67 Escreve Assis Toledo textualmente embora a sede das descriminantes putativas seja o l º do art 20 quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que se exis tisse tornaria a sua ação legítima pensamos que tal preceito não é exaustivo não esgota as hipóteses das descriminantes imaginárias Percebese com efeito claramente que esse preceito completado pela parte final do parágrafo não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo aplicase apenas ao erro de tipo permissivo excludente do dolo não ao eno excludente da censura de culpabilidade tanto que se permite a punição a título de culpa stricto sensu esta é aliás a posição da teoria limitada da culpabilidade que adotamos Princípios básicos cit p 272273 No mesmo sentido Damásio de Jesus Direito penal cit p 309 68 Afirma esse autor literalmente no direito brasileiro cabe afirmar que o erro nas descriminan tes putativas é erro de proibição Como o conhecimento da antijuridicidade não integra o dolo mas pertence à culpabilidade seguese que se age na errônea crença de ser legítimo o seu comportamento procede dolosamente A ignorância da antijuridicidade em matéria penal Rio de Janeiro Forense 1 978 p 1 12 69 Eno de tipo e erro de proibição São Paulo Revista dos Tribunais 1992 p 1 44 No mesmo sentido 270 Cezar Bitencourt Manual cit p 392393 o art 20 caput do Código Penal determina expres samente que o erro sobre o tipo exclui o dolo enquanto o seu 1 º que trata do erro que incide sobre os pressupostos fálicos das descriminantes putativas isenta de pena Como se percebe o nosso Código Penal ao regular o erro de tipo permissivo art 20 1 º não estabelece que a sua conseqüência é a exclusão do dolo como faz em relação ao erro do tipo incriminador prevendo simplesmente a isenção de pena E como é sabido de todos no Direito brasileiro excluir o dolo e isentar de pena não significam a mesma coisa Na realidade não seria exagero afirmar que o erro de tipo permissivo constitui uma terceira espécie de eno Seria um misto de erro de tipo e de etTO de proibição indireto Em síntese tratase de um erro sui generis que estruturalmente se parece mais com o erro de tipo do que com o erro de proibição mas que também se assemelha com o erro de proibição porque a causa de justificação exclui a antijurídicidade sua conseqüência e não a tipicidade do fato l ü6 I TEORIA DO DOLO pois do contrário o legislador teria de dispor semelhantemente ao erro de proibição quando consignou que se evitável o erro poderá diminuíla a pena de um sexto a um terço Parece enfim que segundo o Código se o erro evitável permite a punição por crime culposo está implícito que as descriminantes putativas excluem o dolo subsis tindo a culpa quando se tratar de erro evitável se inevitável excluemse o dolo e a culpa Por conseguinte em face da disciplina do Código o erro inevitável sobre causas de justificação importa na exclusão da tipicidade à semelhança do que se passa com o erro de tipo inevitável e não exclusão da ilicitude ou culpabilidade Semelhante interpretação está aliás conforme a teoria dos elementos negativos do tipo pois como diz Luzón Pefia se as causas de justificação são elementos negati vos do tipo porque tal como os elementos positivos são pressupostos negativos da proibição a crença errônea de que concorrem em dada situação os pressupostos de uma causa de justificação constitui um erro de tipo com todas as suas consequências70 12 UNIFICAÇÃO DOS ERROS Como vimos a doutrina distingue com base no Código arts 20 e 21 erro de tipo de erro de proibição pressupondo uma outra distinção entre representação do fato e representação da ilicitude do fato No primeiro caso há erro de tipo v g portar droga ilícita supondo substância inócua no segundo existe erro de proibição v g portar droga ilícita supondo droga lícita No erro de tipo diz a doutrina o autor não sabe o que faz e se soubesse não o faria Já no erro de proibição o agente sabe o que faz mas acredita que aquilo que faz é lícito Tratase de distinção que remonta ao direito romano que diferenciava erro de fato e erro de direito o que não quer dizer porém que o atual erro de tipo coincida preci samente com o errar facti e que o erro de proibição corresponda ao errar iuris Temos que tais erros deveriam ter o mesmo tratamento jurídicopenal por diver sas razões Em primeiro lugar porque todo erro de tipo implica um erro de proibição pois quem não tem a exata representação do fato tampouco terá ideia da dimensão jurídico penal que recai sobre esse fato No exemplo citado o agente ao supor que trazia subs tância inócua julgava exercer um direito inerente à propriedade ou à posse legitimas O inverso é igualmente verdadeiro todo erro de proibição é um erro de tipo visto que errar sobre a ilicitude do fato é enganarse sobre a proibição contida no tipo legal de crime já que este encerra logicamente proibições de não matar de não furtar etc Assim realizar os elementos do tipo significa saber e querer praticar um fato proibido pelo direito uma vez que do contrário não haveria dolo dalus malus Sim porque 70 Curso cit p 473 271 PAULO ÜJEIROZ conhecer e realizar o tipo é conhecer e realizar consciente e voluntariamente a proibi ção que ele contém É que os tipos penais não descrevem acontecimentos físicos mas proibições de condutas humanas que remetem a elementos inevitavelmente valorativos afinal não existem fatos puros nem fatos simples só existem interpretações e isso não é mera interpretação que possa ser apagada como retorno científico aos fatos um exame de sangue não é o sangue Flávio Kothe Notese que o conhecimento ou desconhecimento do fato só assume relevância jurídicopenal quando associado a um determinado tipo legal de crime Justamente por isso não existe um dolo simplesmente mas dolo de cometer um crime específico Consequentemente quer se trate de erro de tipo quer de erro de proibição inven cíveis o autor não sabe o que faz porque desconhece o significado jurídicopenal do seu ato Em segundo lugar porque segundo vimos há tipos em que esta pressuposta dis tinção entre representação do fato e representação da ilicitude do fato é impossível em virtude de a norma penal incriminadora remeter explicitamente aos chamados elementos normativos Soler tinha razão portanto quando argumentava que diferença essencial existe entre um sujeito que entra ilicitamente em um escritório porque crê que é um lugar público pretendido erro de fato e aquele que o faz porque acredita que os escritórios não são domicílio no sentido da lei pretendido erro de direito Em realidade as duas possibilidades são erros de direito e isso não devemos estranhar porque efetivamente como o disse Finger o direito ao se referir aos fatos transformaos em conceitos ju rídicos Eu posso ter cocaína sem autorização seja porque ignoro que seja necessária seja porque desconheça que a substância é cocaína Em ambos os casos ignoro que a substância que tenho está juridicamente considerada e submetida a determinada regu lamentação71 Enfim todo erro de tipo é um erro de proibição e viceversa porque o tipo con tém expressa ou tacitamente a matéria objeto da proibição jurídicopenal E também porque de acordo com a mencionada teoria dos elementos negativos do tipo todo fato típico é necessariamente um fato ilícito embora nem todo fato ilícito seja típico Aliás a polêmica a respeito da natureza jurídica das descriminantes putativas é consequência direta da imprecisão dos conceitos hoje utilizados pela doutrina sobre erro de tipo e erro de proibição pois em verdade o erro sobre causas de justificação pode ser considerado em face dessa inexatidão tanto um quanto outro Erro de proi bição porque quando o sujeito atua v g em legítima defesa putativa toma segundo sua representação como lícita uma ação ilícita é dizer supõe agir legitimamente E 7 1 Sebastián Soler Derecho Penal Argentino v 2 Tipografia Editora Argentina Buenos Aires 1 989 p 1 02 272 I 061 TEORIA DO DOLO também um erro de tipo porque dentre outras razões assim o Código tratou o assun to segundo pensamos Além disso é comum a todas essas possibilidades de erro a suposição pelo agen te de atuar conforme o direito Nos exemplos inicialmente citados tanto o agente que não sabe que traz droga quanto o que supõe que se trata de droga legal acreditam agir segundo a lei legitimamente Exatamente por isso se entendermos o dolo como com preensivo da consciência da ilicitude isto é compreensivo do conhecimento de agir contrariamente ao direito dolus malus conforme entendia a doutrina causalista não existirá dolo em nenhum dos casos Releva notar ainda que o erro de tipo e o erro de proibição inevitáveis produzem a mesma consequência prática uma sentença penal absolutória E mais do ponto de vista sistemático implicam igualmente a exclusão da criminalidade do comportamen to apesar de segundo a doutrina adotada pelo Código o erro de tipo excluir o dolo e pois a tipicidade e o erro de proibição isentar o réu de pena e portanto afastar a culpabilidade E como dizia M E Mayer o que de fato importa não é o conteúdo do erro mas a sua consequência a impossibilidade da consciência de violação de um dever72 Quanto ao erro de tipo e de proibição evitáveis cumpre também equiparálos a fim de que o agente responda em ambos os casos por crime culposo quando punível a esse título inclusive porque o grau de reprovabilidade da conduta é o mesmo Com efeito a censurabilidade por exemplo do agente que mantém relações sexuais com uma menor de 14 anos ignorando essa circunstância erro de tipo não é essencial mente diversa daquele que embora sabendo que se trata de vulnerável acredita que sua conduta é legítima em razão do consentimento espontâneo da vítima erro de proibição Em suma erro de tipo erro de tipo permissivo e erro sobre a ilicitude do fato como possíveis erros penalmente relevantes de interpretação são em última análise variações do erro sobre o próprio tipo e a proibição que ele encerra razão pela qual cumpre superar a distinção legal e tratálos unitariamente Afinal não existe razão política ou dogmática relevantes a justificar tamanha dis paridade de tratamento Cabe frisar por fim que a proposta de unificação dos erros não é nova visto que parte importante da doutrina clássica já o postulava relativamente ao erro de fato e o erro de direito Nesse sentido K Binding M E Mayer Finger Asúa73 Soler etc De 72 Apud Sebastián Soler cit p 1 O 1 73 Luis Jiménez de Asúa que refere vários autores no mesmo sentido escreveu que se trata de uma distinção carente de todo valor científico para nós que postulamos a equivalência entre o error facti e o error iurisReflexiones sobre el error de derecho en materia penal Buenos Aires Libreria EI Ateneo Editorial 1 942 p2 1 273 PAULO QJ E I ROZ modo semelhante Shünemann informa que a ideia de equiparar tais erros quanto aos seus efeitos é amplamente difundida na Alemanha74 No Brasil José Cirilo de Vargas foi um dos primeiros a defender a unificação dos erros por considerar com razão que do ponto de vista científico nenhuma diferença existe entre o erro de tipo e o de proibição75 Também Paulo Busato tem que padece de artificialismo a diferenciação entre erro de tipo e erro de proibição razão pela qual propõe unificálos76 13 ERRO PROVOCADO POR TERCEIRO Dispõe o art 20 2º do Código que responde pelo crime o terceiro que deter mina o erro Ao adotar tal dispositivo o legislador pretende responder a situações em que o agente é induzido por outrem a praticar um crime dolosa ou culposamente Exemplo A entrega um revólver a B que supondoo descarregado aponta em direção a C acionando o gatilho e causandolhe a morte Distinguese provocação dolosa e culposa Se A tinha a intenção de matar C indu zindo B a erro responderá por homicídio doloso autoria mediata Caso contrário isto é se agiu com imprudência apenas A responderá por homicídio culposo ou não res ponderá por crime algum se a conduta não lhe for imputável sequer a título de culpa Por sua vez B responderá em ambos os casos por crime culposo se ficar provado que atuou com imprudência Naturalmente que se na mesma hipótese B tiver percebido que se tratava de arma de fogo carregada disparando ainda assim já não incidirá a norma em questão simplesmente porque erro provocado não houve E não existindo erro provocado B responderá por crime doloso ou culposo conforme o caso Finalmente se A e B agirem com dolo o caso será de coautoria em crime doloso não havendo cogitar de erro algum 74 Afirma o citado autor E finalmente considero recomendável sem que aqui possa estenderme mais a respeito de acordo com uma concepção hoje como ontem amplamente difundida na Alemanha que o legislador equipare erro de proibição e elTo de tipo e trate ambos os enos de acordo com o disposto na p 1 6 no âmbito do Direito penal especial La función in Fundamentos cit p 238 Sobre o assunto já se pronunciara Everardo Luna Uma vez que os fatos e valores são incindíveis porque gravitam dentro da realidade jurídica que é a um tempo direito e realidade concluise que a distinção entre elTo de fato e eno de direito não era uma distinção substancial existindo apenas para o atendimento de certas finalidades práticas E afirmouse que assim como em todos os enos de fato está ínsito um elTo de direito assim também em todos os enos de direito inserese inapelavel mente um elTo de fato Desse modo o clássico exemplo de Finger que via elTo de direito tanto no fato de conduzir cocaína sem autorização quanto no fato de conduzila sem conhecêla Sucede porém que mesmo considerandose que a distinção entre elTo de fato e eno de direito não ataca subs tancialmente a realidade mesmo assim é inegável a dificuldade para unificar o eno e tratálo com a obediência que a justiça material exige Direito penal São Paulo Saraiva 1985 p 245256 75 Instituições de direito penal Parte geral Tomo I Belo Horizonte Livraria Dei Rey editora 1997 76 Direito penal São Paulo Atlas 20 13 p635 e ss 274 I 061 TEORIA DO DOLO 14 ERRO SOBRE A PESSOA ERROR IN PERSONA E ABERRATIO ICTUS Dáse o erro sobre a pessoa errar in persona em sentido estrito sempre que o agente se equivoca quanto à identidade de sua vítima e por isso ofende pessoa diversa v g gêmeo e há aberratio ictus quando fora do caso anterior o agente erra na exe cução do delito e acaba por atingir pessoa diversa alguém que está próximo da vítima Apesar de distintos não são incompatíveis razão pela qual nada impede que as duas formas de erro possam acontecer simultânea ou sucessivamente O Código dálhes em princípio idêntico tratamento legal Com efeito o agente pode pretender praticar um crime contra alguém e atingir ou trem por erro caso em que segundo o Código responderá como se tivesse atingido a vítima virtual e não a real Assim se querendo matar o próprio pai mata um estranho responde como se matasse o pai razão pela qual incidirá a agravante do art 61 II e do CP crime contra ascendente se ao contrário querendo ofender um estranho fere o próprio pai responde como se ferisse aquele não se aplicando a citada agravante É que de acordo com a teoria da equivalência adotada pelo Código não se con sideram as condições ou qualidades da vítima senão as da pessoa contra quem o agen te queria praticar o crime CP art 20 3º A solução seria diferente se o Código tivesse adotado a teoria da concretização hipótese em que o agente responderia pelo que de fato aconteceu se querendo matar o pai matou um estranho responderia por matar um estranho O erro sobre a pessoa tanto pode resultar de erro de representação ou errar in persona v g matar gêmeo como de erro na execução do crime ou aberratio ictus v g A atira contra B vindo porém a matar C que estava próximo A distinção entre o erro sobre a pessoa e a aberratio reside em que no primeiro o agente erra subjetiva mente tomando uma pessoa por outra no segundo tal não ocorre mas o agente erra na execução do delito atingindo pessoa diversa errase objetivamente portanto A aberratio ictus é pois uma espécie do gênero erro sobre a pessoa em sentido amplo Exatamente por isso o tratamento jurídicopenal para ambas as formas de erro é essencialmente o mesmo o autor responde como se tivesse cometido o crime con tra a vítima visada e não a real Consequentemente além de eventuais excludentes de criminalidade e motivações do crime relativamente à vítima visada ao autor do delito serão imputadas todas as qualificadoras causas de aumento de pena ou ate nuantes relativas à vítima que quis atingir virtual770 Código Penal Militar art 37 dispõe inclusive mais claramente que quando o agente por erro de percepção ou no uso dos meios de execução ou outro acidente atinge uma pessoa em vez de outra 77 Cristiano Rodrigues Teorias da culpabilidade e teoria do erro Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 p 164 275 PAULO QEIROZ responde como se tivesse praticado o crime contra aquela que realmente pretendia atingir Devem terse em conta não as condições e qualidades da vítima mas as da outra pessoa para configuração qualificação ou exclusão do crime e agravação ou atenuação da pena E mais o tratamento penal dos erros em questão tem também implicações de or dem processual penal a exemplo de firmar a competência da justiça federal se preten dendo atingir funcionário público federal no exercício de suas funções o agente vier a lesionar pessoa comum conforme veremos a seguir Quando houver mais de um resultado lesivo se no exemplo citado A atingisse B e C ainda assim o agente responderá mas já agora em concurso formal por um crime único o crime mais grave mas com pena aumentada de um sexto até a me tade CP art 73 Se no exemplo dado o disparo de A atingisse B e C matando um e ferindo o outro aplicarseia a pena do crime de homicídio o crime mais grave com o referido aumento Mas em caso algum a pena poderá exceder àquela que se ria cabível para o concurso material de crimes quando então as penas são aplicadas cumulativamente78 Se o autor agir com desígnios autônomos isto é se sua intenção for atingir as várias vítimas não haverá erro algum mas concurso formal impróprio motivo pelo qual as penas serão aplicadas cumulativamente CP art 70 aplicandose a regra do concurso material CP art 6979 Não há aberratio ictus tampouco quando o au tor querendo atingir determinada pessoa admite como possível ou provável ofen der pessoa diversa e não obstante segue adiante Neste caso haverá dolo eventual relativamente à pessoa que não se quis atingir diretamente mas que acabou por ser também alvejada Desnecessário dizer que o erro de que estamos tratando é uma espécie de erro contra pessoa humana e não contra coisas ou animais motivo pelo qual se o agente por exemplo pretendendo se defender de ataque de animal fere por erro pessoa hu mana a hipótese será a de aberratio delicti CP art 74 141 Erro sobre a pessoa e processo penal O tratamento penal do erro sobre a pessoa tem também implicações de ordem pro cessual penal a exemplo de firmar a competência da justiça federal CF art 109 IV se por exemplo o agente pretendendo atingir funcionário público federal no exercício de suas funções atinge pessoa diversacomum Ademais há evidente ofensa a interesse da União a atrair a competência federal Existe porém decisão do STJ proferida em conflito de competência em sentido contrário nº 27368SP 78 Fernando Galvão Imputação objetiva Belo Horizonte Ed Mandamentos 2000 p 1 22 79 Fernando Galvão Imputação objetiva cit p 123 276 I 061 TEORIA DO DOLO Também José Osterno de Campos Araújo considera que o tratamento penal confe rido ao erro sobre a pessoa e à aberratio ictus não tem qualquer repercussão no âmbito do processo penal por traduzir um problema específico de aplicação da pena 80 Não estamos de acordo com isso É que o tratamento legal resultante da adoção da teoria da equivalência relativa mente ao erro sobre a pessoa e a aberratio ictus importa em verdade em mudança da própria imputação jurídicopenal repercutindo sobre a estrutura do crime e pois produzindo efeitos para além da individualização da pena Com efeito havendo erro sobre a pessoa em sentido amplo o agente responde penalmente não por ofender quem de fato quis mas por ferir quem pretendeu ferir embora sem sucesso razão pela qual não são consideradas as condições pessoais da vítima real mas da vítima potencial Exatamente por isso o autor poderá nesse contexto alegar eventualmente ex cludentes legais de tipicidade de ilicitude ou de culpabilidade relativamente à vítima potencial O mesmo ocorrerá com a acusação que poderá a partir dessas mesmas cir cunstâncias rechaçar as alegações do réu Assim se A atira contra B mas atinge C por erro na execução poderá suscitar apesar disso legítima defesa contra B vítima potencial e não contra c estranho ao conflito Não se trata portanto de um simples problema de individualização da pena mas de uma típica questão de teoria do delito ligada à estrutura do crime e ao processo de imputação que dela resulta com consequências obviamente também sobre a teoria da pena Além disso não faria sentido algum que o direito penal e o processo penal tratas sem diversamente esse assunto ora afirmando uma coisa ora outra mesmo porque um e outro formam um continuum conforme vimos 142 Crítica da teoria da equivalência CASO A residente no interior da Bahia decidiu em razão dos maustratos so fridos e constantes ameaças de morte matar seu companheiro B Para tanto deulhe uma refeição acondicionada em vasilha plástica composta de farinha e carne sendo que ao preparála adicionou uma colher de chá do veneno conhecido por chumbi nho Posteriormente B encontrou os seus filhos C 7 anos e D 12 anos aos quais entregou a marmita a fim de que a levassem para casa em razão de não haver servi ço naquele dia Ocorreu que os menores antes de chegarem à residência comeram a refeição e em consequência agonizaram até a morte Presa A foi denunciada pelo Ministério Público Estadual pelo crime do art 121 2 III cc os arts 61 IIf e 73 80 Direito penal na literatura Porto Alegre Nuria Fabris editora 201 2 277 PAU LO QJEIROZ todos do Código Penal homicídio doloso consumado qualificado e agravado contra o marido81 Conforme vimos o Código Penal de 1940 consagrou no particular a teoria da equivalência82 segundo a qual é irrelevante que o dolo se concretize em pessoa di versa da pretendida uma vez que sendo tipicamente equivalentes os resultados ma tar o companheiro ou matar os filhos o autor deve responder por crime contra a vítima virtual e não a real83 Com efeito quando por acidente ou erro no uso dos meios de execução o agente em vez de atingir a pessoa que pretendia ofender atin ge pessoa diversa responde como se tivesse praticado o crime contra aquela CP art 73 motivo pelo qual não se consideram nesse caso as condições ou qualida des da vítima senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime art 20 3 De acordo com o Código Penal portanto que se utiliza claramente de uma ficção A responderá por crime de homicídio consumado contra B qualificado e hediondo em razão do emprego de veneno dolosamente ainda que de fato tivesse matado seus pró prios filhos culposamente Mas semelhante tratamento é claramente injusto 8 1 Propondo uma solução idêntica à aqui proposta Eugênio Pacelli de Oliveira Direito Penal Contem porâneo São Paulo Saraiva 20 1 1 82 Essa teoria considera que o dolo só deve abranger o resultado típico quanto aos elementos determi nantes de sua espécie A quis matar uma pessoa B e realmente matou uma pessoa C de sorte que o desvio do curso causal não tem influência no dolo devido à equivalência típica dos objetos havendo assim homicídio consumado Já para a teoria da concreção ou concretização o dolo pressupõe sua concretização num determinado objeto motivo pelo qual se o agente atinge pessoa diversa da preten dida não age com dolo quanto à pessoa realmente atingida Logo se pretendia matar B vem a atingir C responde segundo essa teoria por homicídio tentado contra B e homicídio culposo contra C cf Roxin Derecho penal cit p 492 83 A Exposição de Motivos do Código de 1 940 dispunha que no art 53 é disciplinada a abenatio ictus seu actus que eventualmente pode redundar em concurso de crimes O projeto vê na abenatio uma unidade substancial de crimes ou seja um só crime doloso absorvida por este a tentativa contra a pessoa visada pelo agente ou no caso de ser também atingida a pessoa visada um con curso formal de crimes Na primeira hipótese o eno sobre o objeto material e não sobre o objeto jurídico é acidental e portanto inelevante Na segunda hipótese a solução dada se justifica pela unidade da atividade criminosa Vêse desta maneira que o Código abraçou a orientação dos que entendem que deve ser dado idêntico tratamento penal quer ao enor in persona quer à abenatio ictus A Nova Parte Geral manteve no essencial a disciplina do Código de 40 prevendo apenas que a pena nunca poderá exceder àquela que seria cabível no caso de concurso material Declara expressamente item 57 que a inovação contida no parágrafo único do art 70 visa a tomar ex plícito que a regra do concurso formal não poderá acarretar punição superior à que nas mesmas circunstâncias seria cabível pela aplicação do cúmulo material Impedese assim que na hipótese de abenatio ictus homicídio doloso mais lesões culposas se aplique ao agente pena mais severa em razão do concurso material Quem comete mais de um crime mediante uma única ação não pode sofrer pena mais grave do que a imposta ao agente que reiteradamente com mais de uma ação comete os mesmos crimes 278 1061 TEORIA DO DOLO Em primeiro lugar a teoria da equivalência consagra resquício próprio de um di reito penal do autor84 devendo ser repudiada Sim porque para ela não importa ou só importa secundariamente o fato efetivamente praticado pelo autor mas aquele que pensou em ou pretendeu praticar Não interessa por conseguinte que A tenha matado os próprios filhos que presumese amava mas o companheiro que por certo odiava Numa palavra para a lei não importa que tenha matado os filhos culposamente mas que tenha pretendido matar seu companheiro dolosamente Privilegiase pois uma fic ção em prejuízo da trágica realidade Em segundo lugar tal solução é claramente desproporcional Sim porque não é razoável que alguém que tenha se envolvido em semelhante tragédia que possivelmen te mais necessita do perdão do que do castigo responda por um crime de homicídio doloso consumado e qualificado CP art 121 2º III logo hediondo sujeito a uma pena de doze a trinta anos de reclusão Notese que a solução adotada é bastante gravosa para o agente uma vez que a pena do homicídio consumado é superior inclu sive à pena que resultaria do concurso material da tentativa de homicídio contra B e do homicídio culposo contra os filhos E claro é também pior do que a pena que resultaria do concurso formal de crimes hipótese em que o agente responderia por um só crime o mais grave com pena aumentada É bem verdade que na hipótese de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender o agente responde em concurso formal CP art 73 final com o respectivo aumento de um sexto até metade art 70 e que a pena não poderá exceder à que seria cabível pela regra do concurso material art 70 parágrafo único mas des graçadamente nada disso tem o poder de corrigir a injustiça do tratamento legal dado à aberratio Mais razoável portanto seria que adotada a teoria da concretização ou concre ção A respondesse unicamente pelo que de fato fez e não pelo que pretendeu fazer matar culposamente seus próprios filhos com a possibilidade de concessão do perdão judicial CP art 121 5º inclusive e homicídio tentado contra seu companheiro E aplicada a regra do concurso formal de crimes já que mediante uma única ação foi praticado mais de um delito CP art 70 a autora responderia pelo crime mais grave homicídio doloso tentado contra o marido sendo que a pena aplicável não poderia exceder àquela cabível para o concurso material Finalmente outra deveria ser a disciplina legal a respeito também porque a aber ratio ictus não é uma figura jurídica autônoma mas um caso especial de desvio do curso causal e que por isso há de ser tratada conforme as regras deste 85 Parecenos ainda que apesar da solução consagrada pelo legislador o juiz pode ria adotar o entendimento aqui proposto no sentido de que o agente responda ou por 84 No sentido de que se trata de previsão legal de responsabilidade objetiva Guilherme de Souza Nucci Código Penal comentado cit p 274275 85 Roxin Derecho penal cit p 495 279 PAU LO Qlj E I ROZ um único crime em concurso formal ou até mesmo dois crimes em concurso material homicídio culposo contra os filhos e homicídio doloso tentado contra o companheiro porque ao legislador não é dado transformar em prejuízo do réu em doloso um crime culposo nem em consumado um crime tentado Aliás o próprio Código Penal art 70 parágrafo único ao determinar que a pena do concurso formal não poderá exceder a que seria cabível pela regra do art 69 exige essa leiturainterpretação pois não seria justo nem razoável num tal caso que a autora sofresse castigo superior àquele previsto para o concurso material Com efeito se fosse aplicada a regra do concurso material e fixadas as penas no mínimo legal a autora poderia ser punida em tese por duplo homicídio culposo a pena de 02 dois anos de detenção CP art 121 3º passível de perdão judicial 5º e homicídio doloso tentado contra o marido com a pena de 4 quatro anos de reclusão CP art 121 2º III cc o art 14 parágrafo único com redução de 23 sobre a pena mínima E se aplicada a regra do concurso formal de crimes a autora responderia por um só crime de homicídio doloso tentado contra o marido CP art 70 segundo a teoria da concretização Uma última observação a adoção da teoria da equivalência pode também con duzir a perplexidades Porque se para o direito penal a vítima a ser considerada é a virtual e não a real caberá questionar vindo esta vítima potencial a ser posteriormente morta pelo mesmo agente se haveria ou não crime a punir Pois bem a ser coerente com a referida teoria a rigor não haveria crime punível mesmo porque do contrário ocorreria bis in idem isto é dupla punição do autor pelo mesmo fato razão pela qual para resolver esse dilema teríamos de abandonar a teoria da equivalência e adotar a teoria da concretização já agora em prejuízo do réu Outro problema diz respeito à possibilidade de a vítima virtual já se encontrar morta quando do crime Imaginese que A que acabara de ter um filho que morre logo a seguir sob influência do estado puerperal vai ao berçário e mata criança diversa por erro Neste caso em tese seria possível invocar até o instituto do crime impossível de infanticídio 86 15 RESULTADO DIVERSO DO PRETENDIDO ABERRATIO DELICT O Código prevê que quando por acidente ou erro na execução do crime sobre vém resultado diverso do pretendido o agente responde por culpa art 74 Exemplo quis quebrar a vitrine da loja vindo a produzir porém exclusivamente lesões no bal conista Nesse caso o autor responde por culpa se punível a título de culpa isto é por lesões contra o balconista Na hipótese de além de lesionar o balconista quebrar 86 Vide Cristiano Rodrigues Teorias da culpabilidade e teoria do erro Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 280 I 061 TEORIA DO DOLO também a vitrine haverá concurso formal de crimes art 70 impondose em conse quência a pena do crime mais grave com o aumento decorrente do concurso A redação defeituosa do dispositivo pode conduzir todavia a soluções absurdas porque conforme o exemplo dado inicialmente se ocorresse o contrário o agente ati rasse contra o balconista com a intenção de matar e acertasse a vitrine ficaria em tese isento de pena visto que lhe seria imputado resultado diverso do pretendido a título culposo isto é dano que sequer constitui crime o dano só é punível a título do loso Para evitálo é preciso interpretar o dispositivo de forma sistemática Efetivamente como lembra Fernando Galvão muito mais precisa era a redação do art 22 lº do Código Penal de 1969 ao dispor que se por erro ou outro acidente na execução é atingido bem jurídico diverso do visado pelo agente responde este por dolo se assumiu o risco de causar este resultado ou por culpa se o previu ou podia prever e o fato é punível como crime culposo87 Parecenos porém que semelhante previsão legal era absolutamente desnecessá ria em virtude do tratamento legal relativo ao dolo e à culpa 87 Teoria da imputação cit p 1 30 281 1 071 TEORIA DO CRIME CULPOSO Sumário 1 Introdução 2 Excepcionalidade do crime culposo 3 Conceito de culpa requisitos 4 Princípio da confiança 5 Estrutura do crime culposo 5 1 Estrntura do crime culposo excludentes de ilicitude e culpabilidade 6 Espécies culpa consciente e culpa inconsciente 7 Imprudência negligência e imperícia 8 Auto e heterocolocação em pengo 1 INTRODUÇÃ01 À semelhança dos dolosos também os tipos culposos podem lesionar bens jurídi cos a justificar a intervenção penal justificação que cresce de importância à medida que o avanço tecnológico parece aumentar2os riscos a que nos sujeitamos diariamen te sociedade de risco conforme a expressão de Ulrich Beck3 Do ponto de vista do resultado tais delitos não diferem inclusive dos dolosos porque v g tanto quanto o doloso o homicídio culposo produz a morte de alguém A distinção reside pois no desvalor da ação que é maior nos crimes dolosos Apesar disso nem todos os tipos penais admitem a punição a título de culpa pois só em caráter de exceção condutas culposas são penalmente relevantes E isso por duas razões básicas ou porque a natureza do crime é incompatível com a culpa pare cem inimagináveis roubo ou extorsão mediante sequestro culposos ou porque sendo compatível v g o aborto ou o dano culposos tal comportamento carece de dignidade penal em razão do caráter subsidiário do direito penal devendo por isso ser objeto de outras instâncias de controle social Ademais já vimos que a valoração social de uma 1 Para uma análise exaustiva do tema Juarez Tavares Teoria do crime culposo Rio de Janeiro Lumen Juris 2009 2 Nem todos estão de acordo com a ideia de uma sociedade de risco seja porque riscos sempre existi ram seja porque o avanço tecnológico implicou a redução de riscos nas mais diversas áreas No entan to Beck pretende ressaltar que embora os riscos não sejam uma invenção moderna tínhamos antes riscos pessoais e não situações de ameaça global como as que surgem para toda a humanidade com a fissão nuclear ou com o acúmulo de lixo nuclear A palavra risco escreve Beck tinha no contexto da época um tom de ousadia e aventura e não o da possível autodestruição da vida na Tena Os riscos e ameaças atuais diferenciamse portanto de seus equivalentes medievais com frequência semelhantes por fora fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance ser humano fauna flora Sociedade de Risco p 25 e 26 3 Sociedade de Risco Rumo a uma outra modernidade São Paulo Editora 34 2010 Como escreve Juarez Cirino do ponto de vista de sua frequência real crimes de homicídio e de lesões corporais imprudentes representam a maioria absoluta dos fatos puníveis e do ponto de vista dos bens lesio nados integram a criminalidade mais relevante de modo que se pode dizer que a antiga exceção é atualmente a regra da criminalidade razão pela qual a teoria dos crimes imprudentes se transformou de enteada em filha predileta do trabalho científico do direito penal A moderna teoria cit p 9798 283 PAULO QJEIROZ e outra é diversa razão pela qual os crimes culposos menos reprováveis são punidos mais suavemente4 Os acidentes de trânsito configuram em geral crimes culposos porque no mais das vezes o autor age imprudentemente por mais que sua ação seja temerária e pe rigosa Mas diante da grande ocorrência de mortes no trânsito os tribunais tendem atualmente a tratálos como dolosos dolo eventual sobretudo quando o condutor está embriagado De todo modo cumpre apreciar cada caso judiciosamente sob pena de se criar presunções infundadas de atuação dolosa em ação culposa com violação aos princípios de legalidade e proporcionalidade Afinal e como vimos diferentemente do dolo na culpa consciente o autor nor malmente dirige sua ação no sentido da realização de um fim lícito e age de modo a evitar resultados típicos 2 EXCEPCIONALIDADE DO CRIME CULPOSO Diversamente dos dolosos os delitos culposos só são puníveis quando há previsão legal expressa nesse sentido pois do contrário a imputação somente poderá ocorrer na forma dolosa necessariamente Neste exato sentido dispõe o Código art 18 parágrafo único salvo os casos expressos em lei ninguém pode ser punido por fato previsto como crime senão quando o pratica dolosamente O crime culposo constitui por conseguinte uma forma excepcional de crime por que a punição de alguém a esse título só é admissível quando o tipo penal previr ex plicitamente essa possibilidade vg homicídio motivo pelo qual não existe à falta de previsão legal expressa o crime de infanticídio ou aborto culposos O dolo é pois a regra e a culpa é a exceção Tratandose de tipos preterdolosos que resultam da fusão de dolo e culpa a sua imputação só se dará quando o resultado não querido pelo agente decorrer de impru dência negligência ou imperícia Dizse que os tipos culposos são abertos porque a lei não descreve exatamente em que consiste a ação delituosa recorrendose em geral a fórmulas um tanto vagas como imprudência violação de dever de cuidado etc 3 CONCEITO DE CULPA REQUISITOS O Código art 18 11 define em termos simples o que vem a ser crime culposo ao prescrever que há culpa quando o agente dá causa ao resultado por imprudência negli gência ou imperícia ver item 7 4 Convém notar com Cobo dei Rosal e Vives Antón que toda definição de culpa há de conter uma re ferência ao dolo Certo é que a culpa não representa em face do dolo simplesmente um minus senão um aliud A culpa é distinta do dolo porém a presença do dolo exclui a culpa Derecho penal cit p 570 284 I 071 TEORIA DO CRIME CU LPOSO Parece no entanto que a tendência atual é definilo nos termos da moderna teoria da imputação objetiva para dizerse que o crime culposo requer a realização de um perigo criado pelo autor não coberto pelo risco permitido dentro do alcance do tipo5 Pressuposto da imputação objetiva do tipo culposo é portanto a criação de um risco proibido lesivo de bem jurídico e a realização desse risco no resultado6 Como regra só haverá assim imputação de crime culposo quando o autor violan do um dever de cuidado criar um risco juridicamente proibido7 Assim por exemplo o Código de Trânsito Lei nº 950397 depois de instituir um dever geral de atenção na direção de veículo art 28 em nome da segurança do tráfego e da proteção da integridade física das pessoas estabelece as normas de cuidado a que os condutores de veículos automotores estão submetidos arts 29 a 55 sob pena de com a violação criaremse riscos proibidos e pois passíveis de imputação de crimes culposos tais como circulação pelo lado direito manter determinada distância de segurança lateral e frontal entre veículos prioridade e preferência de passagem ultrapassagem pela es querda respeito à sinalização etc Assim se o condutor do veículo desatender a tais comandos e nessa condição causar lesões responderá como regra por crime culposo uma vez que criou e reali zou risco proibido não permitido A imputação de crime culposo está por conseguin te diretamente ligada à inobservância de norma de cuidado não necessariamente es crita disciplinadora de arte ofício ou profissão Significa dizer que em geral quem respeitando as regras de trânsito vier a causar lesões não responderá penalmente v g atropelar pedestre embora respeitando o limite de velocidade e a sinalização por que estará atuando dentro do risco inerente à circulação de veículos e pois socialmen te tolerado Ao invés responderá por crime culposo quando violando as normas de trânsito produzir danos a terceiro v g ultrapassando o limite de velocidade vier a atropelar pedestre Mas semelhante critério não tem caráter absoluto pois o que é proibido por tais normas constitui apenas indício da natureza não permitida de um risco8 Não fosse assim aliás confundirseiam as instâncias administrativa e penal igualando modos 5 Roxin Funcionalismo cit p 3 1 O 6 Cumpre precisar com Jakobs porém que o risco permitido não limita o conceito de imprudência senão só a relevância jurídica da imprudência Derecho penal cit p 385 7 Para Roxin em realidade por trás da infração do dever de cuidado ocultamse distintos elementos de imputação que caracterizam os pressupostos da imprudência sendo em consequência um conceito vago e prescindível Funcionalismo cit p 1 000 Também Jakobs considera que sobretudo no crime comissivo dizer que o autor deixou de observar o cuidado prescrito é falso do ponto de vista da lógica das normas pois em tais crimes o autor não deve atuar cuidadosamente mas omitir o com portamento descuidado Derecho penal cit p 384 8 Jakobs Derecho penal cit p 249 No mesmo sentido Fábio D Ávila assinala que as regras regu lamentadoras de atividades perigosas propiciam um padrão de análise para circunstâncias ideais não podendo ser admitidas como limites absolutos para toda e qualquer conduta A imensa variedade de circunstâncias concomitantes que podem concorrer para a criação do perigo de lesão ou da própria lesão acarretam necessariamente a admissão de um risco não permitido variável flutuante a ser 285 PAULO QJEIROZ distintos de apuração da responsabilidade penal e não penal Daí dizer Roxin que embora a infração da norma de cuidado seja efetivamente um indício para a consta tação da imprudência tal não impede um exame judicial autônomo do risco criado9 Assim como o só fato de ter habilitação para dirigir veículo não significa necessaria mente que o condutor seja realmente hábil tampouco a circunstância de não dispor dela significa que seja sempre inábil ou inexperiente Assim excepcionalmente o resultado poderá ser imputado ao autor a título de cul pa não obstante observe as normas de trânsito uma vez que a culpa ou mesmo o dolo eventual deve ser apurada em concreto v g condutor que embora dentro do limite de velocidade podendo diminuíla ou mesmo parar o veículo atropela uma criança que avança o sinal vermelho não bastando critérios exclusivamente abstratos para a verificação da imprudência A recíproca é também verdadeira o resultado poderá não ser imputável embora haja violação de norma de cuidado v g se se provar que mesmo que respeitasse o limite de velocidade o agente teria atropelado a vítima que avançou contra o veículo pois não se pode pretender absolutizar o que é relativo por natureza isto é as regras de cuidado as quais têm caráter instrumental uma vez que visam a preservar a segurança do tráfego e a integridade física das pessoas em condi ções normais E tanto a observância quanto a inobservância das regras técnicas podem ser in concreto comprovadamente irrelevantes para a realização do evento10 O deci sivo é apurar concretamente se houve criação de risco não permitido e se o resultado decorreu desse risco proibido Pode acontecer por conseguinte de apesar da criação de risco proibido não ocor rer a realização desse risco no resultado É que a imputação do crime culposo pres supõe que o resultado se apresente como realização justamente do risco que o autor criou razão pela qual haverá exclusão da imputação quando mesmo tendo o autor avaliado em face das peculiaridades do caso concreto Crime culposo e a teoria da imputação obje tiva São Paulo Revista dos Tribunais 2001 p 5 1 9 Derecho penal cit p 1 003 1 0 O mesmo exclusão da imputação pela não realização do risco proibido ocorre no exemplo citado por Roxin do gerente da fábrica de pincéis que entrega aos trabalhadores pelos de cabras chinesas sem tomar as devidas medidas de desinfecção Quatro trabalhadores são infectados pelo bacilo an trácico e falecem Uma investigação posterior conclui que os meios de desinfecção prescritos seriam ineficazes contra o bacilo até então desconhecido na Europa Entende então Roxin que o autor ao deixar de proceder à desinfecção criou um grande perigo segundo um juízo ex ante perigo esse que como pôde verificarse posteriormente não se realizou Se lhe imputássemos ainda assim o re sultado ele estaria sendo punido pela violação de um dever cujo cumprimento seria inútil Isso viola o princípio da igualdade pois o curso causal corresponde exatamente àquilo que ocorreria se o autor se mantivesse dentro dos limites do risco permitido não se justificando um tratamento diverso Se o fabricante tivesse dolo de homicídio ele poderia ser punido unicamente por tentativa Na hipótese mais frequente de simples culpa ele estaria isento de pena Funcionalismo cit p 332 Referin dose a esse exemplo Fernando Galvão escreve que nos termos da legislação brasileira a omissão não é considerada causa do resultado pois este não seria evitado com a desinfecção Contudo o fornecimento do pelo de cabra caracteriza crime comissivo o que significaria homicídio consumado Imputação objetiva cit p 65 286 I071 TEORIA DO CRIME CULPOSO criado um risco para o bem jurídico protegido o resultado não for consequência desse perigo mas fruto do acaso11 4 PRINCÍPIO DA CONFIANÇA Como o dever de cuidado e pois de não criar riscos proibidos é comum a todos indistintamente seguese que para a apuração da culpa é preciso considerar sobretu do no trânsito o comportamento dos demais sujeitos a vítima especialmente porque também lhes compete agir prudentemente O princípio da confiança constitui assim um elemento de apuração da respon sabilidade penal por crime culposo Em sua forma mais geral afirmase que quem se comporta devidamente pode confiar em que outros também o façam sempre e quando não existam indícios concretos para supor o contrário12 ou seja não se poderá dizer imprudente o autor de uma lesão quando tal resultar de uma quebra da relação de con fiança por parte da vítima Assim por exemplo se o condutor de veículo respeitando o limite de velocidade permitida vier a atropelar pedestre que ignorando o sinal vermelho surpreendente mente avança no sentido de atravessar a rua não responde em princípio por lesão culposa uma vez que tinha razões para confiar que a vítima atendesse à sinalização Naturalmente que sempre que houver motivo não para confiar mas para desconfiar v g crianças idosos etc o princípio não incide Em suma do ponto de vista penal relevante é só a previsibilidade e pois a evi tabilidade daquele risco que ultrapassa o risco permitido e que é assim objetivamente imputável13 5 ESTRUTURA DO CRIME CULPOSO A doutrina majoritária considera que o crime culposo constitui infração de um de ver objetivo de cuidado de sorte que para a verificação da tipicidade penal basta que se constate a violação de um cuidado genérico exigível de qualquer pessoa homo medius em dada situação como no caso de crime de trânsito ter habilitação para dirigir atender às regras de trânsito etc não importando para tanto as condições in dividuais concretas do autor do fato v g idade experiência aptidão que constituem uma questão de culpabilidade Nesse sentido Cezar Bitencourt afirma que culpa é a inobservância do dever ob jetivo de cuidado manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido objetivamente previsível motivo pelo qual no plano da tipicidade tratase apenas de analisar se o agente agiu com o cuidado necessário e normalmente exigível de 1 1 Roxin Funcionalismo cit p 327 12 Roxin Derecho penal cit p 1 004 1 3 Jakobs Derecho penal cit p 385 287 PAULO QiEIROZ modo que a indagação sobre se o agente tinha as condições isto é se podia no caso concreto ter adotado as cautelas devidas somente deverá ser analisada no plano da culpabilidade14 De acordo com esse ponto de vista sempre que o autor tiver atuado dentro do que se pode normalmente exigir de alguém em tais condições ficará excluída a tipicidade da conduta uma vez que não violou o dever objetivo de cuidado ainda que pudesse segundo as suas condições pessoais especiais acima do padrão médio evitar o re sultado v g piloto de Fórmula 1 Se ao contrário tiver violado o dever objetivo de cuidado abaixo do padrão médio motorista de idade avançada p ex poderá no máximo ser exculpado se provar que em razão de suas condições pessoais idade experiência aptidão etc não lhe era possível atuação diversa Não estamos de acordo com isso15 Em primeiro lugar porque como assinala Jakobs a ideia mesma de previsibili dade objetiva ou dever objetivo de cuidado além de ser incompatível com o con ceito individual de ação não desempenha nenhuma função que já não desempenhe a de risco permitido sendo por isso tão supérflua quanto seria a ideia de um dolo objetivo16 de modo que a tipicidade nos crimes culposos deve ser analisada sim subjetiva e concretamente não tendo qualquer importância a vaga ideia de um homo medius17 Aliás seguindo o que dispõe o nosso Código Penal outra não pode ser a posição a adotar pois só em face das condições pessoais concretas do agente é que se poderá dizer que se está diante de alguém imprudente negligente ou imperito não sendo possível tal julgamento senão em face de alguém concretamente considerado Dito mais claramente se A atropela alguém matandoo só será possível concluir pela existência de um crime culposo sopesando dentre outras variáveis as circunstâncias em que A dirigia a velocidade que imprimia as condições da estrada a experiência e a aptidão do condutor o comportamento da vítima etc Não havendo assim um dever puramente objetivo de cuidado a apuração da culpa deverá ser feita conforme a capacidade do autor in concreto Daí não se compreender por exemplo por que razão um cirurgião com especiais capacidades estaria obrigado a 14 Manual cit p 259260 15 Defendendo uma posição conciliadora Roxin entende que se deve levar em conta a capacidade indi vidual do agente apenas na hipótese de ser superior ao padrão objetivo sendo inferior mantémse o padrão objetivo ficando a análise no âmbito da culpabilidade Aduz textualmente o citado autor que a impossibilidade individual de atuar de outro modo é ao menos nos crimes comissivos sempre um problema de culpabilidade enquanto a imputação do tipo objetivo se vincula a baremos da cria ção do perigo e ao fim de proteção que são independentes da individualidade do sujeito Se se fizer depender a realização do tipo de baremos individualizadores então se anulará em parte a separação entre injusto e culpabilidade Derecho penal cit p 1 0 1 5 16 Derecho penal cit p 386388 17 Criticamente Fábio D Ávila Crime culposo p 92 e s 288 utilizar em uma operação arriscada unicamente aquelas técnicas que constituem um standard mínimo de todos que exercem a cirurgia Em segundo lugar como assinala Stratenwerth ao se considerar que a evitabilidade individual do agente é um problema de culpabilidade e não de tipicidade resulta necessário contemplar os pressupostos da culpabilidade com as exigências subjetivas da lesão do dever de cuidado apesar de não afetarem diretamente a liberdade de determinarse segundo o dever jurídico o que ocasiona clara ruptura da unidade sistemática dos requisitos da culpabilidade No entanto se a possibilidade individual de ação ao contrário é analisada já na tipicidade não haverá em relação à culpabilidade diferença estrutural alguma entre os crimes culposos e dolosos já que em ambos se requererá imputabilidade conhecimento potencial da proibição e exigibilidade 51 Estrutura do crime culposo excluentes de ilicitude e culpabilidade O essencial dos crimes culposos resolvese portanto no plano da tipicidade quanto então serão analisados os critérios de imputação da ação típica culposa Se o agente tiver criado concretamente um risco proibido e realizado esse risco no resultado dirseá típica a ação imprudente Já no plano da ilicitude cumpre analisar a possível ocorrência de causas de justificação que em princípio são as mesmas dos crimes dolosos Haverá legítima defesa em delito culposo portanto sempre que o agente repelir injusta agressão atual ou iminente a direito seu ou de outrem por meio de uma ação culposa Assim por exemplo age em legítima defesa quem dispara um tiro de advertência contra o seu agressor atingindoo porém por falta de atenção se dada a situação fática o disparo com esse fim esteja também justificado igualmente atua em estado de necessidade o médico que para prestar socorro a um paciente imprime velocidade excessiva ao veículo vindo a atropelar alguém causandolhe lesões O mesmo vale para a culpabilidade quando deverão concorrer a imputabilidade a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa Quanto ao erro de proibição Fábio DÁvila entende com razão que só é possível na hipótese de culpa consciente ou seja quando o autor acreditar ser lícita a sua ação descuidada em virtude de circunstâncias especiais não cabendo portanto sua arguição no caso de culpa inconsciente uma vez que se o agente não tem consciência do caráter ilícito da ação tampouco terá consciência da ilicitude de seu ato de modo que sempre que houver culpa inconsciente haverá também ignorância quanto a ilicitude ou ilicitude PAULO QV E I ROZ da conduta 22 Se por exemplo o condutor de veículo em razão da precariedade da sinalização supõe fundadamente dirigir pela preferencial estando em realidade a trafegar pela contramão causando lesões a terceiros não será o caso de invocar erro de proibição mas erro de tipo Afinal no erro de proibição o agente sabe exatamente o que faz mas supõe lícito um comportamento ilícito ao passo que no erro de tipo temse uma falsa representação da realidade isto é o autor não sabe o que faz como no exemplo citado Em suma haverá uma conduta ilícita e culpável sempre que não concorrerem cau sas de justificação ou de exculpação em favor do autor imprudente 6 ESPÉCIES CULPA CONSCIENTE E CULPA INCONSCIENTE A doutrina distingue culpa consciente culpa com previsão de culpa inconscien te culpa sem previsão Na primeira o autor cria conscientemente risco juridica mente desaprovado acreditando porém que tal não causará lesão a bem jurídico ou seja o agente prevê a realização de um tipo mas confia em sua não realização 23 Na segunda ao contrário o agente não prevê embora lhe fosse concretamente pre visível a realização do tipo24 A distinção reside então nisto na culpa consciente há previsão do resultado na inconsciente imprevisão do resultado Mas em ambos os casos o autor não quer direta ou eventualmente o resultado pois do contrário haveria dolo direto ou eventual Se por exemplo durante uma caçada o agente em bora percebendo que atirando na caça poderá também acertar o companheiro mas 22 Crime culposo cit p 1 3 1 23 Como assinala Jescheck na culpa inconsciente o autor embora infrinja dever de cuidado não pensa na possibilidade da realização do tipo legal por sua parte enquanto na culpa consciente percebe a pre sença do perigo concreto para o objeto protegido da ação porém por infravaloração do grau daquele pela sobrevaloração de suas forças ou por simples confiança na sua sorte confia indevidamente em que não se realizará o tipo legal Tratado cit p 5 1 6 Para Juarez Tavares há culpa consciente não apenas quando o agente prevê o resultado e espera que ele não ocorra mas sobretudo e basicamente quando o agente está ciente de que com sua atividade lesa um dever de cuidado E há culpa incons ciente quando o agente não pensa poder realizar o tipo mediante a lesão ao dever de cuidado pois isto lhe é desconhecido concretamente apesar de conhecível A característica básica dessa forma de culpa reside exatamente no fato de que o agente atua sem saber que sua atividade desatente ao cuidado obje tivamente necessário a evitar o perigo ou a lesão de perigo ao bem jurídico Teoria do Crime Culposo Lumen Juris Rio 2009 p 4 1 641 7 24 Para Tavares no entanto há culpa consciente negligência consciente não só quando o agente prevê o resultado e espera que não ocorra mas sobretudo quando o agente está ciente isto é sabe que com sua atividade lesa ou está lesando um dever de cuidado de modo que a previsão do resul tado por si só não basta para dizerse consciente a culpa motivo pelo qual a denominação culpa com previsão é imprópria Já na culpa inconsciente negligência inconsciente o agente não pensa poder realizar o tipo mediante a lesão ao dever de cuidado pois isso lhe é desconhecido concre tamente apesar de conhecível de modo que a característica básica dessa forma de culpa reside exatamente no fato de que atua o agente sem saber que sua atividade desatende ao cuidado objeti vamente necessário a evitar o perigo ou lesão ao bem jurídico Direito penal da negligência cit p 1 72 290 J ü7 1 TEORIA DO CRIME CULPOSO acreditando em sua pontaria atira contra o animal atingindo seu parceiro haverá culpa consciente25 Normalmente há culpa consciente por parte de profissionais artistas etc que pra ticam no exercício de suas atividades ações especialmente perigosas advertidos dos resultados lesivos que podem causar médicos dublês mágicos etc O tratamento legal nos dois casos é o mesmo o autor responderá por crime cul poso O Código Penal português art 15 prevê ambas as formas de culpa expressamen te ao dispor que age com negligência quem por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz arepresentar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização ou b Não chegar sequer a representar a possibilidade de realiza ção do facto No item a há culpa consciente no item b culpa inconsciente Finalmente a doutrina fala de culpa imprópria que é aquela resultante do erro evitável sobre causa de justificação quando afastado do dolo o agente responde por crime culposo se previsto em lei CP art 20 1 º Quanto à distinção entre culpa consciente e dolo eventual vide capítulo sobre dolo 7 IMPRUDÊNCIA NEGLIGÊNCIA E IMPERÍCIA Como vimos segundo o Código art 18 II há crime culposo quando o agente dá causa ao resultado mediante imprudência negligência ou imperícia Imprudência negligência e imperícia são por conseguinte modalidades de culpa em sentido estrito Em verdade o substantivo imprudência é de tal modo amplo que abrange tanto a negligência quanto a imperícia26 Não por acaso a doutrina estrangeira em especial a espanhola27 prefere chamar o crime culposo de crime imprudente e a culpa de imprudência Imprudência porém tomada em sentido estrito significa a prática de uma ação arriscada ou perigosa tendo caráter eminentemente comissivo ativo como por exemplo dirigir em alta velocidade embriagado trafegar na contra mão etc 25 Exemplo de Damásio de Jesus Direito penal cit p 295 26 Pensa o mesmo Basileu Garcia quanto ao termo negligência a rigor a palavra negligência seria suficiente para ministrar todo o substrato da culpa Mas costumase aludir também à imprudência e à imperícia Essas duas ideias poderiam caber dentro da negligência O médico que se revela imperito em uma intervenção cirúrgica e mata o seu cliente não deixa de ser negligente no sentido de que ou não tomou as cautelas necessárias ou sabendose inábil se abalançou a uma tarefa superior à sua aptidão Instituições cit v 1 p 287 27 Mir Puig por exemplo afirma que o termo imprudência equivale ao de culpa e o imprudente ao de culposo Embora todos eles sejam amplamente utilizados na doutrina a palavra imprudência tem vantagens como a de resultar mais facilmente compreensível ao profano e a de facilitar a distinção quanto ao termo culpabilidade de uso muito distinto Por isso propus substituir o adjetivo culpo sas que utilizava o Projeto de CP de 1 980 e que introduz a reforma de 1983 no art 1 º do anterior CP pelo atual imprudentes Derecho penal cit p 269 291 PAULO QJEIROZ Já a negligência supõe uma atuação passiva isto é desleixo falta de precaução como trafegar com veículo com pneus excessivamente desgastados etc Finalmente a imperícia que é em última análise uma forma especial de impru dência ou negligência é a inobservância por despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos técnicos das cautelas específicas no exercício de uma arte ofício ou profissão 28 8 AUTOCOLOCAÇÃO EM PERIGO Em princípio não há crime culposo se o indivíduo conscientemente se puser em situação de perigo autocolocação em perigo vindo a sofrer lesões pois do contrário o autor responderia em última análise por ato de exclusiva responsabilidade da própria vítima sobretudo naqueles casos em que sequer se deu conta do perigo criado Assim por exemplo não responderá penalmente o maquinistamotorista tremônibus quanto às lesões sofridas por pessoa que embora advertida insiste em viajar por sobre o teto do veículo fazendo surf ferroviáriorodoviário Naturalmente que se nesses mesmos casos o agora irritado maquinistamotoris ta querendo se vingar freia bruscamente o veículo ou o acelera consideravelmente deverá responder penalmente a título de dolo inclusive ainda que eventual Outro exemplo dessa autocolocação em perigo apta a afastar a culpa é o caso de ciclistas que tomam carona no fundo da carroceria de caminhões enquanto estes estão impri mindo normalmente em subidas baixa velocidade Mas também aqui o caminhoneiro responderá penalmente a título de dolo ou de culpa conforme o caso sempre que querendo dar uma lição frear bruscamente ou praticar ação capaz de desequilibrar o ciclista e lesionálo Nesse sentido a jurisprudência alemã apreciando caso em que o autor fez a en trega de heroína à vítima para consumo a qual veio a falecer após injetar a droga decidiu que autocolocações em perigo realizadas e queridas de modo responsável não se enquadram no tipo do delito de lesões corporais ou homicídio ainda que o risco que conscientemente se corre realizese em um resultado Aquele que provoca possibilita ou facilita uma tal autocolocação em perigo não é punível pelo delito de lesões corpo rais ou homicídio29 Descaberá também a imputação do resultado sempre que a vítima de uma lesão recusar a ajuda ainda possível na plena consciência do risco Assim por exemplo se A fere B em acidente de trânsito e B falece por se opor à transfusão de sangue por motivos religiosos não se deve punir A por homicídio culposo mas unicamente por lesões corporais já que B se expôs por decisão própria à certeza ou ao grande perigo de morte30 28 Hungria Comentários cit p 203204 29 Apud Roxin Funcionalismo cit p 3578 30 Roxin idem p 365 292 IOI TEORIA DO CRIME CULPOSO Por último há heterocolocação em risco quando é a vítima que move o autor a praticar uma ação perigosa assumindo conscientemente os riscos da ação provocada v g o empregador determina a seu motorista que siga viagem apesar da resistência deste em virtude das condições da estrada e do tempo dando ensejo a um acidente que fere ou mata o primeiro Ou seja a heterocolocação em perigo consentida compreende um grupo de casos em que não é a própria pessoa quem se coloca dolosamente em pe rigo mas se deixa colocar em perigo por outrem tendo consciência do risco31 A solução para tais casos é em princípio semelhante à autocolocação 31 Roxin Funcionalismo cit p 367 293 1 08 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Sumário 1 Introdução 2 Crime consumado significado 2 1 Consumação nos cri mes materiais fonnais de mera conduta e outros 3 Consumação e exaurimento 4 Tentativa conceito e requisitos 4 1 Tentativa e dolo eventual incompatibilidade 42 Preparação e tentativa distinção 43 Crimes que não admitem tentativa 44 Punição da tentativa fundamento políticocriminal 45 Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade 5 Desistência voluntária 6 AJTependimento eficaz 6 1 Posição sistemática 7 Tentativa inidônea ou crime impossível 8 Crime impossível em razão de Provocação de flagrante Interpretação da Súmula 145 do STF 8 1 Provocação do flagrante 82 Impossibilidade de consumação 83 Flagrante retardado 9 AJTependi mento posterior 1 INTRODUÇÃO Se o direito penal traduz a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dos indivíduos tal intervenção há de ter lugar diante de ações especialmente lesivas de bens jurídicos isto é ações particularmente graves Assim como regra só assumem relevância jurídicopenal os crimes consumados ou tentados visto que a só vontade de delinquir ou a mera preparação de um crime não justificam em princípio semelhante intervenção razão pela qual seus autores não são puníveis Exatamente por isso são penalmente irrelevantes a contrafação da chave ou a aquisição da arma quanto aos crimes de furto e homicídio respectivamente sempre que o agente se limitar a isso E assim deve ser porque na vigência de um modelo de Estado que confere à liber dade uma proteção formal amplíssima CF art 5º não faria sentido definir como cri me a só vontade de realização típica nem atos meramente preparatórios de um delito Excepcionalmente a lei criminaliza atos meramente preparatórios como é o caso do art 288 do Código Penal que trata da quadrilha ou bando e do art 291 do CP que tipifica a posse de petrechos para falsificação de moeda entre outros É que o legisla dor considera de tal modo graves tais ações que as criminaliza desde logo Em conclusão dos atos que integram o processo executivo da infração penal do losa iter criminis quais sejam cogitação preparação execução e consumação or dinariamente só assumem relevância penal os atos tentados e consumados em virtude da especial lesividade que encerram1 2 CRIME CONSUMADO SIGNIFICADO A consumação é a completa realização do tipo penal ou ainda dáse a consuma ção sempre que o agente realiza o tipo legal de crime integralmente isto é realizao 1 No sentido de que também o exaurimento faz parte do iter criminis Rogério Greco cit 295 PAULO QlJEIROZ objetiva e subjetivamente A noção de consumação expressa portanto como diz Da másio de Jesus a total conformidade do fato praticado pelo agente com a hipótese abs trata descrita pela norma penal incriminadora2 Fora daí em princípio a hipótese será a de crime tentado ou de ato simplesmente preparatório Com efeito o Código art 14 1 considera consumado o crime quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal significando dizer que só é possível saber se um crime está consumado tipo consumado apurando se o comportamento de que se trate perfaz todos os requisitos que compõem o tipo penal ou seja somen te é possível saber se há ou não consumação confrontandose o fato praticado com a redação especialmente o verbo empregado do delito em questão Daí se dizer que a tentativa é um tipo dependente pois não existe uma tentativa em si mesma mas ten tativa de um determinado crime isto é tentativa de homicídio de furto etc3 Assim a consumação do aborto dáse com a morte do feto art 124 provocar aborto a do sequestro com a privação da liberdade de alguém art 148 privar alguém de sua liber dade mediante sequestro ou cárcere privado a do furto com a efetiva subtração da coisa alheia móvel art 155 subtrair coisa alheia móvel etc Por essa razão é incorreta a Súmula 610 do Supremo Tribunal Federal4 que consi dera consumado o crime de roubo seguido de morte ou latrocínio CP art 157 3º se gunda parte quando o agente mata a vítima mas não consegue subtrair a coisa É que em tal caso não se reúnem tod9s os elementos de sua definição legal CP art 14 11 mas apenas uma parte importante desses elementos já que o tipo se compõe de morte e subtração Além disso tratandose de crime contra o patrimônio não se pode consi derálo consumado quando embora realizado o crimemeio homicídio não se realize o crimefim roubo razão pela qual só se pode falar de latrocínio consumado quando a morte e a subtração se consumarem pois fora daí morte tentada ou subtração tentada indiferentemente a hipótese será a de crime tentado apenas Também não cabe falar de concurso de crimes v g homicídio em concurso com roubo visto que tal implica ria quebra da unidade concebida pelo Código dando margem a um casuísmo ofensivo ao princípio da legalidade 5 2 Direito penal cit v 1 p 321 3 No mesmo sentido Fragoso de notar que a determinação do início da execução só é possível fazer em face de cada tipo de crime tomandose em conta a ação que o configura expressa por um verbo Tratase de saber quando se inicia a execução do homicídio do furto do estelionato da sedução etc Lições de direito penal Rio de Janeiro Forense 1 994 p 241 4 Dispõe a referida súmula há crime de latrocínio quando o homicídio se consuma ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima 5 Nesse sentido Hungria Comentários cit v VII se se admitisse tentativa de latrocínio quando se consuma o homicídio crimemeio e é apenas tentada a subtração patrimonial crimefim ou ao contrário quando é tentado o homicídio consumandose a subtração o agente inco1Teria no primeiro caso em pena inferior à do homicídio simples e no segundo em pena superior à da tentativa de homicídio qualificado pela conexão de meio a fim com outro crime ainda que este outro crime seja de muito maior gravidade que o roubo A solução que sugiro nas hipóteses formuladas como menos subversivas dos princípios é a seguinte ou o agente responderá e tão somente por consumado ou 296 1081 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA 21 Consumação nos crimes materiais formais de mera conduta e outros Nos crimes materiais a consumação ocorre com a realização do resultado típico Assim o homicídio consumase com a morte da vítima o furto com a efetiva subtra ção da coisa Já nos formais de consumação antecipada a consumação dáse com a realização da ação típica pouco importando o resultado Assim a concussão CP art 316 cuja consumação ocorre com o só fato de o funcionário público exigir vantagem indevida independentemente da efetiva obtenção dessa vantagem Nos crimes de mera conduta ou de simples atividade em que o tipo penal não alude a nenhum resultado crimes sem resultado a consumação se dá com a realização da conduta incriminada tal como ocorre com a violação de domicílio CP art 150 Nos crimes culposos a con sumação dáse com o resultado naturalístico nos omissivos próprios com a respectiva omissão do dever legal nos omissivos impróprios crime material com a produção do resultado lesivo nos permanentes a consumação se estende no tempo enquanto se mantém a violação ao bem jurídico por decisão do agente e nos habituais quando houver reiteração de atos capazes de configurar a habitualidade já que atos isolados ou eventuais não são suficientes à consumação e por fim nos continuados em princípio cada crime se consuma autonomamente mesmo porque constitui um concurso mate rial de crimes tratado como se constituísse crime único CP art 71 3 CONSUMAÇÃO E EXAURIMENTO A doutrina distingue consumação de exaurimento isto é consumação formal de consumação material A consumação é um conceito formal pois é a completa reali zação do tipo Mas nem sempre essa consumação formal do tipo coincide exatamente com o plano último do autor E o exaurimento que pressupõe a consumação do tipo penal é a total realização do projeto do autor e que por isso está normalmente além dos limites do dolo do respectivo tipo Há exaurimento de um crime portanto sempre que consumado formalmente o tipo o agente conseguir realizar o projeto de crime que o movia suceder à vítima que matou ascender na carreira eliminar a concorrência obter determinada vantagem ilí cita lucrar com a coisa subtraída etc 6 Assim por exemplo a concussão e a corrupção passiva CP arts 316 e 317 consu mamse com o só ato de exigir ou solicitar vantagem indevida razão pela qual a even tual obtenção dessa vantagem constituirá mero exaurimento de crimes já consumados Normalmente o exaurimento constitui um fato penalmente irrelevante mas casos há em que ora configura delito autônomo ora circunstância qualificadora ou similar a exemplo da corrupção passiva CP art 317 lº hipótese em que se o funcionário tentado o homicídio qualificado dada a relação de meio a fim entre o homicídio consumado e a ten tativa de crime patrimonial ou entre homicídio tentado e a consumada lesão patrimonial 6 Mufíoz Conde Francisco Teoria Geral do Delito cit p 1 79 De modo similar Berdugo Gomes cit e Sheila Bierrenbach Teoria do crime cit 297 PAULO QJdEIROZ público retarda ou deixa de praticar ato de ofício a pena é aumentada e da resistência CP art 329 1 º quando a inexecução do ato legal torna o crime qualificado Eventualmente o exaurimento pode ser também importante para efeito de indivi dualização da pena prescrição participação etc7 4 TENTATIVA CONCEITO E REQUISITOS Existe tentativa sempre que o agente tendo iniciado a execução do crime não lograr consumálo por circunstâncias alheias à sua vontade A tentativa é portanto a realização incompleta da infração penal porque embora haja a realização completa da parte subjetiva do tipo dolo a parte objetiva não se perfaz plenamente em virtude ela interrupção não voluntária do iter criminis Do ponto de vista subjetivo portanto não há distinguir entre tentativa e consumação visto ser o dolo dolo de consumar rigoro samente o mesmo num e noutro caso Se a consumação é pois a completa realização dos elementos do tipo penal obje tiva e subjetivamente a tentativa constitui a sua realização incompleta vale dizer é a não consumação do delito por circunstância alheia à vontade do agente Nesse exato sentido dispõe o Código art 14 II que há tentativa quando inicia da a execução o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agen te razão pela qual é só em referência à descrição específica de um tipo legal de crime que se poderá distinguir a consumação da tentativa e também assim entre esta e os atos preparatórios São por conseguinte requisitos da tentativa a início de atos de execu ção de um crime b não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente Poderseia também incluir o dolo de consumar entre os requisitos mas tal já está im plícito no item b além de dizer respeito também à consumação E mais a tentativa só é possível nos crimes dolosos Não existe tentativa de crime culposo Inicialmente só cabe falar de tentativa quando o autor tiver dado início à execução do crime com dolo de consumálo Assim o processo de execução do homicídio tem início com os disparos de arma de fogo ainda que erre o alvo o roubo com a violên cia ou ameaça exercida contra a vítima e o estupro com o emprego de violência ou ameaça destinada à consumação da conjunção carnal ou outro ato libidinoso É que em todas essas situações há início do matar alguém art 121 do subtrair coisa alheia móvel art 157 e do constranger alguém mediante violência ou grave ameaça à con junção carnal ou a praticar outro ato libidinoso art 213 Mas não basta que se dê início à execução do crime é necessário ainda que haja interrupção do iter criminis por fato independente da vontade do autor exigese con sumação completa do tipo subjetivo ou seja é preciso que a consumação não ocorra por circunstâncias alheias estranhas à sua vontade tais como reaçãoresistência da vítima intervenção de terceiro etc pois do contrário isto é se a consumação não 7 Muíioz Conde idem 298 1 o s 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA ocorrer em razão de desistência voluntária do próprio agente ou de arrependimento eficaz seu circunstâncias dependentes não alheias da sua própria vontade já não se poderá falar de crime tentado por ausência de requisito essencial não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente Não há tentativa portanto embora iniciada a execução do crime quando o agente depois de dar o primeiro disparo desiste de prosseguir ou mesmo após realizar todos os disparos arrependese e presta socorro à vítima evitandolhe a morte ausência do dolo de consumar É que a tentativa à semelhança da consumação exige o tipo subje tivo dolo completo8 Finalmente só se pode falar de tentativa considerandose para tanto o conteúdo da vontade do agente isto é o dolo Assim se A agride B ferindoo gravemente tal situação tanto poderá configurar crime consumado quanto tentado a depender da sua intenção se a vontade de A era matar B a hipótese é de homicídio tentado se era sua intenção causarlhe lesão corporal simplesmente responderá por lesão corporal consu mada Daí aludir o Código alemão9 ao definir a tentativa à representação do autor pois o critério para verificação da tentativa ou consumação não é puramente objetivo é também subjetivo 41 Tentativa e dolo eventual incompatibilidade Há quem afirme que a tentativa de crime é incompatível com o dolo eventual sob a alegação de que este tem estrutura de uma imprudência sendo tratado como tipo do loso por razões de política criminal1º O equívoco é manifesto11 É que tanto na consumação quanto na tentativa existe dolo de consumar o delito de que se trata razão pela qual existe distinção apenas no que concerne ao resultado típico Assim o fato de o crime não se consumar por circunstância alheia à vontade do agente v g intervenção de terceiro não modifica em absolutamente nada o dolo do autor que permanece inalterado e que necessariamente precede ao resultado pouco im portando o efetivo sucesso da conduta dolosamente concretizada Consequentemente 8 Welzel Derecho penal alemán cit p 224 9 Dispõe o Código alemão 2 1 que há tentativa quando o autor dá início diretamente à realização do tipo segundo a sua representação do fato 1 O Nesse sentido Rogério Greco e Mirabete entre outros 1 1 No sentido do texto Zaffaroni e Pierangelli a tentativa requer sempre o dolo isto é o querer do resultado Não há razão alguma para excluir o dolo eventual da tentativa há tentativa de homicídio quando se joga uma granada de mão sobre alguém e não se consegue matálo mas também quando se lança uma granada de mão contra um prédio sem preocupação com a possível morte do morador que dorme próximo à janela Há tentativa de fraude quando se usa um ardil mas ela também ocone quando se usa uma publicidade que pode ter esta mesma eficácia em relação a um certo número de pessoas não importando que elas efetivamente se deixem enganar Manual de Direito Penal Brasi leiro V 1 Parte Geral São Paulo RT 2008 7 ed p 600 Idem Hungria cit 299 PAULO QlEIROZ a tentativa de crime com dolo eventual é possível pela mesma razão que o é no dolo direto Assim se o agente atira contra a vítima com dolo eventual atingindoa mortal mente responderá por homicídio doloso consumado e se o ofendido sobreviver ao disparo haverá homicídio doloso tentado Se existindo mais de uma vítima o agente agir com dolo direto quanto a uma e dolo eventual quanto a outra a resposta é exata mente a mesma que se daria para a consumação se ambas sobreviverem haverá duplo homicídio doloso tentado Finalmente a alegada incompatibilidade entre tentativa de crime e dolo eventual acabaria por eliminar a distinção entre dolo eventual e culpa conferindolhes trata mento unitário próprio dos crimes culposos numa clara ofensa aos princípios de lega lidade e proporcionalidade 42 Preparação e tentativa distinção Para distinguir consumação e tentativa a doutrina costuma mencionar três teo rias a saber a teoria objetiva b teoria subjetiva c teoria mista objetivasubjetiva Para a teoria objetiva por ser o dolo absolutamente o mesmo nas várias fases do iter criminis cogitação preparação execução o critério para distinguir a tentativa de crime da simples preparação deve ser necessariamente objetivo Exatamente por isso para distinguir atos preparatórios e tentativa é preciso ter em conta o grau de perigo representado concretamente pela conduta do agente motivo pelo qual é o quanto de lesividade da ação que determinará a diferenciação entre uma coisa e outra Enfim a tentativa é punível em razão da elevada probabilidade de reali zação do resultado típico12 Visto que a relevância jurídicopenal da ação começa com a prática de atos de execução a teoria objetiva tem então as seguintes implicações13 a necessidade de tratar políticocriminalmente preparação e tentativa de forma distinta segundo crité rios objetivos b impossibilidade de punição da tentativa absolutamente inidônea c necessidade de atenuação obrigatória da pena em virtude da não produção do resulta do típico É comum classificar a teoria objetiva em objetivoformal e objetivomaterial De acordo com a primeira há tentativa de crime sempre que o agente der início à execu ção de atos típicos como atirar contra a vítima no homicídio constranger a vítima no estupro apoderarse da coisa no furto etc Segundo a teoria objetivomaterial existe tentativa sempre que o agente praticar a ação imediatamente anterior à realização do tipo legal não necessariamente típica como o apontar a arma contra a vítima em vir tude do perigo concreto de lesão que encerra 12 Jescheck cit p 464 1 3 C f Jescheck cit p 464 300 1os1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Já para a teoria subjetiva o decisivo não seria propriamente o perigo de lesão relativamente ao resultado típico mas a manifestação de uma vontade contrária ao direito dolo ou seja o mais importante é o desvalor da ação e não o desvalor do re sultado Por isso a teoria acaba por ampliar o âmbito de punição das ações tendo em princípio as seguintes implicações14 a a equiparação entre preparação e tentativa b a punibilidade da tentativa absolutamente inidônea c a equiparação da pena da tenta tiva e da consumação já que a vontade de violar a norma dolo é a mesma em ambos os casos Para a teoria mista que confunde os critérios anteriores objetivo e subjetivo o critério objetivo é insuficiente visto que sem consideração do dolo não é possível se quer apurar a tipicidade de cada conduta e sua exata capitulação jurídicopenal v g sem a consideração do dolo não é possível distinguir entre homicídio doloso e culposo entre homicídio e lesão corporal Por isso para distinguir preparação de tentativa é preciso recorrer necessariamente a critérios tanto objetivos quanto subjetivos pois nenhum critério é por si só suficiente para delimitar com precisão tentativa de crime de atos meramente preparatórios Portanto importam igualmente o desvalor de ação e de resultado De todo modo o mais importante é que independentemente da teoria adotada os critérios tomados em consideração conduzam a uma solução prática conforme o prin cípio da legalidade Pois bem basicamente há dois critérios para distinguir entre atos preparatórios e atos executórias material e formal O primeiro toma em consideração a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido critério porém que não satisfaz já que mesmo nos atos meramente preparatórios há no mínimo perigo de lesão Além disso e mais importante sua adoção poderia resultar em última análise em violação ao princípio da legalidade Já para o segundo os atos executórias começam com o iní cio da realização do tipo penal ou como diz o Código início da execução do crime Assim a execução do homicídio começa com o ato de matar alguém o furto com o ato de subtrair o estupro com o constranger Mas a expressão início da execução do crime não coincide necessariamente com início de realização do tipo15 Exemplo A é preso no quintal de uma residência antes de penetrar no seu interior para furtar B fingindose cliente de um banco é preso mi nutos antes de anunciar o roubo No primeiro caso há um fato punível furto tentado no segundo não Por quê Porque na primeira hipótese o ato de transpor os muros do quintal quando A já atuava ilegalmente saltara o muro já constitui sem dúvida o início de execução de um crime embora não constitua um início de realização do tipo penal de furto isto é não se iniciara o subtrair Já na segunda hipótese B ainda operando dentro da legalidade entrar em lugar de acesso público não iniciara 14 Cf Jescheck cit p 465 15 Executar um delito escrevem Cobo dei Rosal e Vives Antón é dar início à realização do tipo De recho penal cit p 642 301 PAU LO ÜlJEIROZ crime algum tampouco começara a realização do tipo de roubo de sorte que somente se poderia falar de tentativa a partir do momento em que B anunciasse o assalto Dáse a tentativa portanto com o início da execução do crime o que supõe uma atuação ilegal imediatamente anterior à realização do tipo ainda quando tal não signifique começo da realização do tipo Por conseguinte as ações que caracterizam a tentativa são os atos que se encontram situados imediatamente antes da realização do tipo Cobo dei Rosal e Vives Antón têm razão portanto quando assinalam que o iní cio da execução há de ser delimitado a partir dos aspectos constitutivos da infração a materialidade do fato o conteúdo do injusto e o conjunto dos dados típicoformais que a individualizam16 Enfim o conceito de execução como o de consumação é de natureza formal e como tal referese ao tipo delitivo de cuja execução se trate17 sob pena de partindo de critérios outros como o plano do autor ou a ofensividade da ação exclusivamente vio larse o princípio da legalidade Assim ainda que do ponto de vista do plano do autor decidido a matar seja já ato executivo procurar a vítima para matála atalaiála sacar a arma do coldre etc do ponto de vista do princípio da legalidade tais ações não po dem ser consideradas por um observador imparcial como início da execução da ação de matar que é a ação típica do homicídio e portanto não constituem tentativa desse delito mas atos preparatórios18 Por conseguinte o problema da determinação do início da execução do crime como afirma Aníbal Bruno há de ser resolvido em relação a cada tipo de crime to mandose em consideração sobretudo a expressão que a lei emprega para designar a ação típica matar subtrair constranger uma vez que é em referência ao tipo penal considerado que se pode decidir se estamos diante de simples preparação ou já da exe cução iniciada sendo necessário para tanto ter presente o fim visado pelo agente pois embora a linha diferencial seja fundamentalmente de natureza objetiva há nela sempre a influência do elemento subjetivo do agente do fato punível a que verdadeira mente se dirige a sua resolução Exatamente por isso apontar uma arma de fogo para alguém tanto pode caracteri zar atos preparatórios quanto atos de execução de um crime a depender especialmen te do dolo do agente e da imputação que lhe é feita uma vez que se para o tipo de ameaça há consumação ameaçar alguém há tentativa para o crime de estupro cons tranger alguém e simples preparação relativamente ao homicídio matar alguém Quatro variáveis são pois essenciais o dolo do agente a imputação que lhe é feita o verbo ou verbos usado no respectivo tipo imputado e a legalidade da atuação do agente visto que se para um estranho flagrálo no interior de uma casa que seria furtada e cujo domicílio violara já constitui início da execução de um furto o mesmo 1 6 Derecho penal cit p 646647 17 Muíioz Conde Teoría cit p 1 83 1 8 Muíioz Conde Teoría p 1 84 1 85 302 1 os 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA não ocorre mas ato de mera cogitação ou preparação quanto ao caseiro que também furtaria que tem autorização para circular pelo interior do imóvel E quem atua legal mente não inicia em princípio a realização de um tipo penal E se persistir a dúvida sobre se o caso é de preparação ou de tentativa cabe invo car o princípio da dúvida in dubio pro reo 43 Crimes que não admitem tentativa Nem todos os crimes admitem tentativa Assim por exemplo os crimes culposos pois são sempre consumados se v g o agente atropelou e não matou responde por lesões culposas se matou por homicídio culposo vale dizer só se pode cogitar de tentativa em face de crimes dolosos Não comportam tentativa igualmente os crimes omissivos próprios pois ou bem o agente deixa de realizar a ação esperada e o crime estará consumado ou bem é ainda possível a sua realização e em consequência não terá havido início de violação da norma mandamental19os habituais visto que se configurada a habitualidade haverá consumação caso contrário não existirá crime habitual algum os preterdolosos por que ou o fato consequente culposo ocorre quando então estará consumado o crime ou não ocorre hipótese em que haverá crime doloso consumado ou tentado conforme o caso Finalmente as contravenções penais não admitem tentativa por força de expressa disposição legal LCP art 4º Não há falar tampouco de tentativa naqueles casos em que a lei equipara a ação tentada à própria consumação delito de empreendimento a exemplo do art 352 do Código evadirse ou tentar evadirse o preso Nos crimes de mera conduta ou simples atividade é admissível a tentativa que se produz no momento em que o agente dá início à ação mas ainda não consegue conduzila de conformidade com a descrição típica Assim por exemplo no crime de violação de domicílio art 150 haverá tentativa quando o agente tiver já um pé dentro da residência alheia mas não haver transporto integralmente a soleira da sua porta20 44 Punição da tentativa fundamento políticocriminal Salvo disposição em contrário a tentativa é punida com a pena do crime consuma do mas com uma diminuição de um a dois terços CP art 14 parágrafo único O quanto a ser reduzido será fixado proporcionalmente segundo a gravidade e lesividade concretas da ação tentada Ou seja quanto mais próxima a consumação menor será a diminuição logo maior será a pena Quanto mais distante a consumação maior a diminuição portanto menor a pena Assim por exemplo o agente que atira 1 9 Não admitindo a tentativa nos crimes omissivos impróprios Juarez Cirino cit 20 Juarez Tavares Apontamentos cit p 28 303 PAULO QJ E I ROZ contra a vítima sem acertála será punido com pena menor do que aquele que a atinge e a fere O Código adotou por conseguinte um critério objetivo para a apenação da ten tativa já que subjetivamente não há diferença entre tentativa e consumação pois o autor age em ambos os casos com dolo de consumar o delito Em caráter excepcional o Código castiga a tentativa com a mesma pena da con sumação Assim por exemplo o art 352 do CP que pune igualmente o evadirse ou tentar evadirse o preso bem como o art 309 do Código Eleitoral que tipifica o votar ou tentar votar duas vezes Também o Código Penal Militar art 30 parágrafo único admite a possibilidade de punirse a tentativa com a mesma pena do crime consumado para o caso de excep cional gravidade Apesar de parte da doutrina buscar uma justificação especial para o crime tentado Mufioz Conde tem razão quando assinala que o fundamento da punição de todos os atos de execução do delito idôneos ou não deve ser necessariamente unitário e cor responder à mesma finalidade políticocriminal e preventiva que preside todo o direito penal uma vez que as formas imperfeitas de execução são causas de extensão da pena que correspondem a uma mesma necessidade estender a ameaça ou a cominação penal às condutas que embora não consumativas de crime estão muito próximas disso e que importam em grave ofensa ou perigo concreto de ofensa a bem jurídico21 45 Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade Ao distinguir preparação tentativa e consumação o legislador atende a razões de políticacriminal mesmo porque o fundamento da punição de todos os atos de execu ção idôneos ou não tem de ser necessariamente unitário e responder à mesma finali dade políticocriminal e preventiva que preside todo o direito penal A questão a formular e responder é a seguinte será que de fato a tentativa de crime constitui do ponto de vista políticocriminal uma ofensa suficientemente gra ve a justificar a intervenção jurídicopenal Noutras palavras é razoável à luz dos princípios da ofensividade e proporcionalidade a punição da tentativa de forma ir restrita Pensamos que não Em primeiro lugar porque como já assinalado subjetivamente diferença alguma há entre preparar e tentar um crime pois idêntico é o dolo de quem v g prepara a morte de alguém ou tenta matálo A distinção portanto dáse no plano puramente objetivo a tentativa implicaria lesão ao bem jurídico tutelado enquanto na mera pre paração tal não ocorreria o acionar o gatilho é mais grave que o só apontar a arma na direção da vítima 2 1 Teoría cit p 1 841 85 304 l ü8 I CONSUMAÇÃO E TENTATI VA A distinção entre preparar e tentar frequentemente problemática reside por tanto não propriamente no desvalor da ação v g no dolo de matar que é o mesmo mas no desvalor do resultado lesão ao bem jurídico mesmo porque se o conceito de injusto se baseasse apenas no desvalor da ação não seria necessário diferençar sequer entre tentativa e consumação a autorizar tratamento legal idêntico Pois bem uma tal distinção só é válida em termos abstratos É que em concreto o desvalor do resultado do ato preparatório pode ser essencialmente o mesmo do crime tentado Assim por exemplo não há diferença relevante entre surpreender um ladrão de joias escalando uma joalheria e encontrálo já no seu interior a ponto de justificar que no segundo haja crime tentado e no primeiro não preparação Ambas as ações distinguíveis apenas temporalmente momento da prisão têm em realidade a mesma significação não se justificando que uma seja punível e a outra não É também no plano concreto que se poderá identificar com precisão o maior des valor da tentativa em relação à preparação Assim v g atirar contra alguém com intenção de matar atingindoo gravemente em região não letal é mais censurável que simplesmente comprar a arma preparar a emboscada etc Em conclusão a gravidade de um ato preparado tentado ou consumado há de ser sempre aferida concretamen te não bastando a só previsão da punibilidade da tentativa e impunibilidade dos atos preparatórios Releva notar que em muitas situações de desistência e arrependimento eficazes o desvalor do resultado poderá ser maior do que em hipóteses de crimes tentados Não há dúvida que por exemplo disparar contra alguém errando o alvo por imperícia é menos reprovável que acertar a vítima e desistir ou se arrepender eficazmente logo a seguir No entanto no primeiro caso há tentativa branca no segundo não respon dendo o agente unicamente pelos atos já praticados O critério pois do maior desvalor do resultado nos crimes tentados ou mesmo consumados não tem caráter absoluto devendo ser sempre apurado concretamente não basta portanto a mera presunção legal abstrata de maior gravidade no crime tentado e menor gravidade nos atos que não o constituem Enfim razoável seria a que o legislador à semelhança do que fez quanto às contravenções LCP art 4 previsse a impunidade da tentativa de crime sempre que praticado sem vio lência ou grave ameaça à pessoa b nos crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa não havendo distinção relevante entre a preparação e a tentativa parecenos possível em tese inter pretação para considerar atípicas tais condutas com base nos princípios de proporcionalidade e ofensividade inclusive porque se se admite nos crimes consumados até a adoção do princípio da insignificância com maior razão se há de admitir a impunibilidade quando o dano nem sequer se concretize mera tentativa de crime 305 PAULO QllE I ROZ A ressalva quanto aos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa justificase pelo maior desvalor da ação destes que não é o mesmo dos crimes não vio lentos tentar roubar constrangendo a vítima com um revólver apontado contra a sua cabeça não é o mesmo que tentar furtar ausente o dono da coisa O Código Penal português art 23 dispõe a propósito que salvo disposição em contrário a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão razão pela qual a tentativa não é punível de forma irrestrita 5 DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA O agente que desiste voluntariamente de consumar um delito cuja execução inicia ra embora pudesse livremente prosseguir não responde por tentativa É que faltará re quisito essencial da tentativa a não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente respondendo este em consequência somente pelos atos já praticados v g lesão corporal na hipótese de iniciada a execução de um homicídio Com efeito dispõe o Código art 1 5 1ª parte que o agente que voluntariamente desiste de prosseguir na execução somente responde pelos atos já praticados As sim por exemplo se depois de dar um primeiro golpe ferindo a vítima o autor em bora podendo prosseguir golpeando desiste livremente não responderá por homicídio tentado mas pelos atos já praticados isto é responderá por lesões ou não responderá por crime algum caso não resulte nenhuma lesão Mas se não houver desistência alguma ou se houver desistência involuntária forçada existirá tentativa punível As circunstâncias impeditivas da voluntariedade podem dizer respeito aos meios quando ao agente não lhe restam mais recursos para continuar v g acaba a munição como às próprias condições do agente v g acaba ferido22 Haverá pois tentativa nos seguintes casos a suposição de que houve con sumação do crime v g o agente acredita que a vítima está morta ou que morrerá inevitavelmente breação eficiente da própria vítima c intervenção eficiente de ter ceiro em favor da vítima E haverá consumação de crime nas seguintes hipóteses a desistência voluntária ineficaz porque incapaz de evitar a consumação do crime b desistência em verdade arrependimento posterior depois de consumado o crime v g consumado o furto o agente restitui a coisa subtraída à vítima Enfim só há autêntica desistência voluntária se o autor podendo livremente pros seguir na execução de um crime desiste porque quer desistir e não porque haja algum obstáculo concreto impeditivo da consumação do delito já em execução E mais para o reconhecimento da voluntariedade são irrelevantes as razões pessoais que motivaram o autor a tanto piedade remorso etc Daí dizer a doutrina que o essencial é a volunta riedade e não a espontaneidade da desistência 22 Juarez Tavares Apontamentos de aula UERJ 2009 Disponível em Juareztavarescom 306 I OB I CONSUMAÇÃO E TENTATIVA A distinção entre desistência voluntária e involuntária não reside por conseguinte nos motivos pessoais que levam o agente à desistência mas na existência ou não de obstáculos concretos à consumação É que na desistência voluntária o agente muda de propósito já não quer o crime na involuntária forçada mantém o propósito mas recua diante da dificuldade de prosseguir23 Como assinala Juarez Tavares os motivos da desistência são irrelevantes quer se refiram a uma reflexão moral positiva o agente se convence de que deve agir corretamente quer digam respeito a alguma vantagem o indutor lhe oferece dinheiro para desistir24 E a desistência tem a ver com a tentativa imperfeita 25 isto é quando iniciada a execução do crime o autor não exaure todos os meios de que dispõe para consumar o delito Fora daí isto é já havendo exaurido os meios de que dispõe para a consumação tentativa perfeita a hipótese será de arrependimento eficaz que produz o mesmo efeito jurídicopenal 6 ARREPENDIMENTO EFICAZ Também o arrependimento eficaz afasta a imputação de crime tentado visto faltar requisito essencial da tentativa não consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente De acordo com o Código ocorre o arrependimento eficaz quando o agente impe de que o resultado se produza art 15 2ª parte O arrependimento tem a ver pois com a chamada tentativa perfeita ou acabada hipótese em que há segundo o plano do autor exaurimento dos meios de execução do resultado Dáse o arrependimento portanto sempre que o agente tendo já exaurido os meios de execução do crime mas sem consumálo ainda desenvolve nova atividade impedindo a produção do resultado Diferentemente da desistência que tem caráter essencialmente negativo o arrependimento tem uma natureza positiva 26 Assim por exemplo se após ministrar veneno à vítima o autor lhe dá um antídoto salvandolhe a vida ou quando depois de disparar todos os tiros de que dispõe leva a vítima ao hospital impedindo a morte Mutatis mutandis vale aqui tudo o que se disse sobre a desistência voluntária Assim se não houver arrependimento ou se se pretender como arrependimento ato não voluntário forçado existirá tentativa punível E se o arrependimento for ineficaz sobrevindo o resultado típico haverá crime consumado 23 Aníbal Bruno Direito penal cit p 246 24 Apontamentos de Aula UERJ 2009 Disponível em Juareztavarescom 25 A distinção entre tentativa perfeita e imperfeita como observa Jescheck só pode ser delimitada po rém segundo um critério subjetivo porque a questão de saber se o autor exauriu ou não os meios de execução depende do seu plano de fato e de sua representação Tratado cit p 490 26 Damásio de Jesus Direito penal cit p 336 307 PAULO QlJ E I ROZ Naturalmente que uma vez consumado o crime não cabe falar de arrependimen to eficaz mas ineficaz É que tanto a desistência voluntária quanto o arrependimento eficaz pressupõem a não consumação do delito isto é uma intervenção voluntária e eficiente ainda na fase de execução do crime Assim por exemplo o agente responde por homicídio consumado se não obstante a atuação no sentido de evitar o resultado a vítima vier a falecer Apesar disso parece razoável reconhecerse para certa classe de delitos o ar rependimento eficaz mesmo quando sobrevenha a consumação do crime Assim por exemplo no crime de furto se o autor procede à restituição da coisa imediatamente à consumação sem que a vítima sequer tenha se dado conta do fato27 61 Posição sistemática Discutese a posição sistemática da desistência voluntária e do arrependimento eficaz Hungria é de opinião que se trata de causa de exclusão de punibilidade por entender que o Estado por motivos de oportunidade renuncia ao direito de punir Já Damásio de Jesus28 tem que se trata de uma causa que exclui a própria tipicidade uma vez que há exclusão do tipo tentado relativamente ao crime de que se desistiu ou se arrependeu eficazmente Temos que não se trata de exclusão de tipicidade porque a desistência e o arrepen dimento pressupõem o início de atos de execução do tipo A ação ou omissão objeto da desistênciaarrependimento são em princípio típicas portanto Afinal quem lesiona outrem com o propósito de matála mas desiste voluntariamente pratica uma ação típica de homicídio tentado embora responda por lesões consumadas A desistênciaarrependimento implica por conseguinte uma mudança da imputa ção jurídicopenal mas não a atípicidade dessa ação que nasce típica e assim perma nece Não é tampouco o caso de exclusão de punibilidade visto que apesar da mudança da imputação a conduta típica é como regra também punível Cuidase mais precisamente de uma causa especial de isenção de pena relativa mente ao crime objeto da desistência ou arrependimento Justamente por isso a de sistência ou arrependimento somente aproveita ao próprio agente que desistiu ou se arrependeu eficazmente não se comunicando aos eventuais coautores ou partícipes que não desistiram ou não se arrependeram 7 TENTATIVA INIDÔNEA OU CRIME IMPOSSÍVEL A tentativa de um crime é considerada inidônea quando em razão da ineficácia dos meios de execução ou da impropriedade do objeto a que a ação se dirige a consu mação for absolutamente impossível 27 Cf Juarez Tavares Apontamentos cit 28 Direito penal cit p 334 308 1081 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA Com efeito dispõe o Código art 17 que não se pune a tentativa quando por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto é impossível con sumarse o crime Assim conforme exemplos clássicos quando o agente com dolo de homicídio ministra açúcar no café da vítima supondo arsênico aciona o gatilho de arma descarregada exemplos de ineficácia absoluta do meio ou quando atira contra um cadáver pratica manobras abortivas supondo estar grávida exemplos de impro priedade absoluta do objeto A impossibilidade pode resultar tanto de meio ineficaz revólver sem munição como de impropriedade do objeto matar um cadáver ou da conjugação de ambos Portanto o crime impossível ou tentativa inidônea ocorre sempre que se apurar concretamente que era absolutamente impossível a consumação do crime Por isso não basta a só impossibilidade abstrata da ação pois um instrumento pode ser inofen sivo em abstrato mas ser ofensivo em concreto v g açúcar relativamente ao paciente diabético assim como o meio lesivo abstratamente pode ser inofensivo no caso v g arma com defeito de fabricação que a inutiliza A possibilidade ou impossibilidade do crime deve assim ser apurada concretamente de modo a verificar o grau de ofensivida de que a ação representa para o bem jurídico tutelado avaliada a partir das múltiplas variáveis do caso Tratandose porém de tentativa só relativamente inidônea isto é meio ou objeto que só acidentalmente é ineficaz ou impróprio haverá tentativa punível v g dispara contra a vítima mas a arma nega fogo Não se deve confundir a tentativa inidônea com delito putativo espécie de erro de proibição às avessas porque neste o agente supõe praticar um fato criminoso que não o é v g incesto O delito putativo só existe portanto na imaginação do próprio agente 8 CRIME IMPOSSÍVEL EM RAZÃO DE PROVOCAÇÃO DE FLA GRANTE INTERPRETAÇÃO DA SÚMULA 145 DO STF De acordo com a súmula 145 do Supremo Tribunal Federal não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação ou seja não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimento direto ou por concurso de autoridade que o faz para fim de aprontar ou arranjar o flagrante STF RTJ 98136 A súmula incide portanto sempre que a polícia instigar alguém a praticar um cri me e assim surpreendêlo em flagrante Se isso ocorrer o flagrante é nulo e o crime é considerado impossível em razão da impossibilidade concreta de consumação decor rente da provocação Como assinala Hungria no caso de provocação crime de ensaio só na aparên cia é que ocorre um crime exteriormente perfeito porque em verdade o seu autor é protagonista inconsciente de uma comédia E se sob o aspecto subjetivo existe crime o mesmo não ocorre do ponto de vista objetivo visto que não há violação à lei 309 PAULO QlJEIROZ penal mas uma inconsciente cooperação para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores ou uma simulação embora ignorada pelo agente da exterioridade do crime29 A aplicação da súmula exige o concurso simultâneo de dois requisitos 1 provo cação de flagrante pela polícia 2 impossibilidade absoluta de consumação do crime 81 Provocação do flagrante Inicialmente é necessário que a polícia tome a iniciativa de provocar instigar etc o agente a cometer o crime para com tal expediente oportunizar a prisão v g poli cial que fingindo ser usuário convence o supqsto traficante a venderlhe droga ilícita prendendoo no ato de venda Há pois provocação sempre que a polícia intervier direta ou indiretamente no próprio iter criminis praticando uma ação que leve o suspeito a cometer um determi nado crime que não cometeria não fosse a atuação policial Mas não se deve confundir o flagrante provocado do qual se ocupa a súmula com o simplesmente esperado que é aquele em que a polícia previamente informada do crime que não provocou simplesmente aguarda o momento de sua execução a fim de proceder à prisão em flagrante No caso de flagrante esperado a súmula não é aplicá vel a atuação policial é legítima e por isso há crime punível A distinção entre flagrante esperado e provocado reside no seguinte no primeiro a polícia não intervém no iter criminis isto é não instiga de modo algum o agente a praticar o crime Já no flagrante provocado ao contrário o agente só comete o crime porque a polícia o induz a tanto motivandoo a praticálo A súmula 145 é aplicável por conseguinte exclusivamente ao flagrante provoca do não incidindo sobre o esperado O flagrante esperado é legal enquanto o flagrante provocado é ilegal razão pela 9ual o fato praticado pelo agente que atua sob provoca ção policial não é como regra punível Apesar de a súmula se referir ao flagrante provocado pela polícia parecenos que é ela também aplicável à provocação feita por não policiais segurança privada etc fazendose analogia in banam partem Finalmente a nulidade do flagrante provocado limitase àqueles fatos objeto da provocação pois relativamente a outros que independam da provocação há sim cri me punível não incidindo a súmula Exemplo o agente é preso por vender droga a um policial que se passara por usuário mas em seguida se descobre que sua casa servia de depósito para carros roubados Nesse caso a nulidade do flagrante limitarseá ao crime de tráfico não atingindo o crime contra o patrimônio para o qual não concorreu a provocação policial se bem que no âmbito processual sempre se poderá questionar a licitude da prova 29 Comentários cit p 107 310 1 os 1 CONSUMAÇÃO E TENTATI VA Convém notar que há precedentes do Supremo Tribunal Federal entendendo que no caso de tráfico de droga embora o agente não possa ser licitamente preso por ven da da droga em virtude da provocação crime impossível tal não impediria que pu desse responder pela guarda ilícita da droga posteriormente encontrada em depósito uma vez que constituiriam ações distintas e autônomas vender e guardar em depósito igualmente proibidas por lei E antes da provocação policial já havia um crime consu mado de tráfico na modalidade guardar etc Ocorre que o tráfico de droga embora de múltipla ação exportar importar etc constitui crime único motivo pelo qual o agente caso pratique várias ações responde rá em princípio por uma só infração penal Exatamente por isso é um tanto discutível a interpretação no sentido de considerar impossível o delito quanto a uma ação ven der e possível quanto a outra guardar em depósito como se não houvesse crime de múltipla ação mas múltiplos crimes em concurso material 82 Impossibilidade de consumação Para a aplicação da súmula além da provocação é necessário que o crime não chegue a consumarse Com efeito se não obstante a ação policial no sentido de evitar a consumação o delito se consumar haverá crime punível visto que a incidência da súmula pressupõe a impossibilidade de consumação em razão da provocação policial Em tese é possível inclusive que também o policial provocador responda por crime a título doloso ou culposo conforme o caso A súmula também não incide quando a provocação tiver lugar após a consumação do crime isto é já na fase de exaurimento Exemplo um funcionário público que exi gira vantagem indevida de alguém vem a ser preso dias depois pela polícia que foi previamente avisada pela vítima que fingira concordar com a exigência feita sobre o ocorrido e quando faria o respectivo pagamento É que por se tratar de crime formal concussão CP art 316 cuja consumação ocorre com a só exigência da vantagem indevida tal já havia acontecido previamente com ou sem concordância da vítima independentemente da intervenção policial ra zão pela qual o recebimento do dinheiro constitui simples exaurimento Neste caso o crime não só é possível como já havia se consumado antes de a policia intervir Enfim a súmula não incide sempre que houver consumação do crime quer porque a polícia não conseguiu evitála quer porque a consumação ocorreu antes da interven ção policial Releva notar por fim que a súmula 145 vem sendo duramente criticada havendo quem proponha a sua abolição pura e simples30 30 Vide entre outros Eugênio Pacelli de Oliveira Curso de Processo Penal cit e Andrey Borges de Mendonça Prisões e outras medidas cautelares pessoais S Paulo Editora Método 201 1 3 1 1 PAULO QlJ E I ROZ 83 Flagrante retardado É preciso não confundir o flagrante provocado com o simplesmente retardado ou prorrogado previstos nalgumas leis especiais como a Lei nº 113432006 pois neste último não há nem pode haver nenhum tipo de induzimento instigação ou auxílio por parte da polícia sob pena de também se converter em flagrante provocado tornando impossível o delito Com efeito só há realmente flagrante retardado quando a polícia ou autoridade competente ao invés de proceder à prisão desde logo prorroga tal ato para um mo mento mais adequado do ponto de vista das investigações em curso a fim de conferir lhes o maior êxito possível como por exemplo identificar os principais criminosos desbaratar uma grande quadrilha reunir o máximo de elementos de prova etc Tratase como se vê de uma espécie do gênero flagrante esperado logo flagrante legítimo 9 ARREPENDIMENTO POSTERIOR O arrependimento posterior instituto aplicável aos delitos dolosos e culposos consumados ou tentados é uma causa de redução de pena relativa aos crimes prati cados sem violência ou grave ameaça à pessoa sempre que o autor reparar o dano ou restituir a coisa antes do recebimento da denúncia conforme dispõe o art 16 do Códi go nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa reparado o dano ou restituída a coisa até o recebimento da denúncia ou da queixa por ato voluntário do agente a pena será reduzida de um a dois terços O arrependimento posterior requer por conseguinte o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa b reparação ou restituição anterior ao recebimento da denúncia ou queixa c voluntarie dade do ato Somente os crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa e portan to dolosos impedem o reconhecimento da causa de redução de pena No caso de cri me doloso praticado com violência à coisa e não à pessoa v g furto qualificado com rompimento de obstáculo é perfeitamente possível o arrependimento E também o é nos crimes culposos como homicídio e lesões corporais visto que ao aludir à violên cia ou grave ameaça à pessoa parece claro que o legislador quis se referir aos crimes dolosos exclusivamente A reparação ou restituição poderá ser total ou parcial sendo que o quanto da re dução de pena variará em princípio conforme se trate de reparaçãorestituição total ou parcial se total procederseá à redução máxima 23 caso contrário farseá a redução mínima 1331 Para a fixação do quanto a ser reduzido de pena é também 3 1 Nesse exato sentido HC nº 98658 do Paraná em 091120 1 1 do STF Relatora Ministra Cármen Lúcia 312 1 o s 1 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA relevante a presteza com que o autor age no sentido de reparar o dano ou restituir a coisa Mas a doutrina majoritária considera contrariamente a isso que só a restituição reparação total é que pode ensejar o arrependimento posterior De todo modo não in tegra a reparação do dano aquilo que poderia ser cogitado em termos de dano moral porque o dano moral não faz parte dos elementos que compõe a lesão do bem jurídico Nem se pode exigir do autor o pagamento de quantia além daquela que resulte do dano real e dos juros ou lucros cessantes efetivamente comprovados32 A doutrina em geral tem que só a reparação feita pelo próprio autor e não por terceiro pode ensejar a redução de pena No entanto se como diz a Exposição de Mo tivos do Código a reparaçãorestituição constitui uma providência de política criminal instituída menos em favor do agente do que da vítima item 15 parece razoável admi tila também quando um terceiro o fizer em favor do autor do crime Também por isso no caso de concurso de agentes a reparaçãorestituição por um deles a todos aproveita A reparação ou restituição poderá ser feita até o despacho de recebimento da de núncia quando a ação penal é formalmente instaurada se o arrependimento tiver lu gar posteriormente ao recebimento da denúncia a reparação ou restituição funcionará como circunstância atenuante CP art 65 III b Na Parte Especial do Código e também na legislação especial há vários crimes que preveem especificadamente o arrependimento posterior ainda que com nome di verso Assim sempre que a reparação ou a restituição já figurar como causa de ex tinção de pena como ocorre no peculato culposo CP art 312 3º a aplicação do art 16 ficará prejudicada prevalecendo a norma mais favorável ao réu em virtude do princípio da especialidade E o arrependimento deve ser voluntário não forçado isto é livremente manifes tado sem nenhum tipo de coação física ou moral Finalmente a Súmula 554 do STF prevê que o pagamento do cheque antes do re cebimento da denúncia extingue a punibilidade do crime de estelionato previsto no art 171 2º VI do Código Penal 32 Juarez Tavares Apontamentos cit p 2425 313 Sumário 1 Introdução 2 Conceito e iter criminis 3 Requisito adesão subjetiva ou nexo psicológico 31 Desistência voluntária e arrependimento eficaz 4 Autoria e participação distinção 41 Teoria unitária ou monista 42 Teoria objetivoformal 43 Teoria subjetiva 44 A teoria do domínio do fato 45 A teoria do domínio do fato segundo Roxin 5 Formas de autoria 51 Coautoria 511 Coautoria em crimes culposos 52 Autoria mediata ou indireta 53 Autoria mediata por domínio de aparato organizado de poder 6 Participação em sentido estrito acessoriedade 61 Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação 7 Formas de participação instigação e cumplicidade 8 Coautoria e participação nos crimes omissivos 9 Participação de menor importância 10 Participação dolosamente diversa ou desvio subjetivo de conduta 11 Comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal 1 INTRODUÇÃO Um crime sempre pode ser praticado por uma ou mais pessoas Quanto praticado por mais de uma concurso eventual cumpre saber como e quando a participação de cada um dos envolvidos assumirá relevância jurídicopenal a fim de se estabelecer e precisar a respectiva responsabilidade e promover a individualização da pena O estudo do concurso de agentes visa aos seguintes fins portanto a saber se uma determinada conduta açãoomissão constitui uma participação penalmente relevante b havendo participação penalmente relevante individualizála identificando os autores coautores e participantes bem como seus respectivos delitos c saber se determinadas circunstâncias são ou não comunicáveis d individualizar a pena Tratase de problema específico dos chamados crimes unissubjetivos os quais podem ser praticados por uma ou mais pessoas já que nos crimes plurisubjetivos ou de concurso necessário a participação de mais de um agente faz parte da própria descrição típica associação criminosa etc sendo inerente à realização do tipo legal de crime 2 CONCEITO E ITER CRIMINIS O concurso de agentes instituto compreensivo da coautoria e da participação em sentido estrito é a intervenção de mais de um agente num mesmo delito O concurso pressupõe portanto convergência de vontade para um fim comum que é a realização do tipo penal embora seja dispensável acordo prévio entre os intervenientes Nos crimes dolosos o concurso pode ocorrer desde a fase de cogitação do crime até a sua consumação durante o iter criminis não depois na fase de exaurimento relativamente ao delito exaurido pois já plenamente realizado o tipo Assim quem simplesmente oculta cadáver não responde por homicídio se a participação tiver lugar PAULO Q1JEI ROZ de fato somente após a consumação do crime Semelhante intervenção ou é punida au tonomamente vg ocultação de cadáver CP art 211 ou não constitui delito algum Consequentemente a chamada coautoria sucessiva quer dizer cooperação num crime já iniciado pressupõe intervenção dolosa durante a sua execução isto é antes de consumado Nos crimes permanentes e habituais a participação poderá darse en quanto não cessar a permanência ou habitualidade ou seja enquanto a consumação for renovada por decisão do autor do fato Assim responderá por sequestro quem nele intervier em qualquer fase de sua execução E nos crimes culposos assunto dos mais controvertidos o concurso pressupõe que duas ou mais pessoas decidam praticar uma ação imprudente conjuntamente dan do causa a um resultado típico culposo Enfim é essencial que o agente adira com sua ação imprudente à ação também imprudente de outrem 3 REQUISITO ADESÃO SUBJETIVA OU NEXO PSICOLÓGICO Para a caracterização do concurso de agentes é indispensável que o coautor ou partícipe tenha voluntariamente a título de dolo ou culpa concorrido para o crime pois do contrário haverá autoria colateral que não constitui concurso de crimes mas crime autônomo Aderir subjetivamente significa no crime doloso intervir dolosamente no crime doloso de que se trata e nos culposos significa aderir com a sua atuação imprudente à ação também imprudente de outrem se um dos intervenientes agir dolosamente e o outro culposamente não haverá concurso de agentes mas ações autônomas típicas ou não conforme o caso Consequentemente não é possível coautoria ou participação do losa em crime culposo nem coautoria ou participação culposa em crime doloso1 É necessário que haja a vontade consciente de concorrer com a própria ação para a ação de outrem 2 Não obstante o concurso de pessoas comumente se realize nos crimes dolosos mediante acordo prévio entre aqueles que nele intervêm como na hi pótese de roubo a banco por exemplo em que os coautores se reúnem para discutir o modus operandi eleger a vítima combinar a repartição do produto do crime etc tal acerto não é essencial à configuração do concurso bastando que o agente saiba que está cooperando para um crime nexo subjetivo É suficiente pois a voluntária adesão de uma atividade à outra não importando que seja ignorada ou até mesmo recusada por quem a recebe3 Assim por exemplo se A após agredido por B vem a ter logo a seguir bens subtraídos por C que simula pres Nesse sentido Hungria Dado o indeclinável requisito de homogeneidade do elemento subjetivo à parte os motivos determinantes que podem ser diversos é bem de ver que se não pode falar de participação culposa em crime doloso ou participação dolosa em crime culposo pois em tais casos é radical o dissídio de vontades Comentários cit p 4 1 6 2 Hungria Comentários cit p 414 3 Hungria Comentários cit p 414 316 j09j CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO tarlhe socorro não há cogitar de concurso entre B e C mas de crimes autonomamente praticados O mesmo ocorreria se ambos furtassem simultânea e independentemente determinada joalheria Naturalmente que não constitui concurso de pessoas o simples ato de assistir ao delito com ou sem o prévio conhecimento nem o mero desejo de que o delito se reali ze ou a só omissão exceto se o omitente tiver o dever legal de agir e de evitar o resulta do garantidor Não basta portanto a mera cogitação ou simples desejo de participar do crime nem a só aprovação dos atos criminosos4 Também por isso a decisão de cometer crime não se confunde com a simples co nivência Assim por exemplo a estagiária de medicina que presencia a prática de um aborto por médico não é coautora nem partícipe do que crime que testemunha ainda que o faça para aprender a técnica abortiva 5 Tampouco responde penalmente a esposa que sabe que o marido pratica tráfico de droga e não o denuncia à autoridade compe tente Quanto à chamada cumplicidade por meio de ações neutras tema dos mais con trovertidos vale dizer contribuições para crime de outrem que à primeira vista pareçam completamente normais6 como v g o empréstimo ou a venda de ferramenta para alguém que sabidamente a utilizará para cometer crime temos que tais ações se forem realmente neutras isto é não constituírem algo mais grave como aderir ao cri me motiválo etc são em princípio jurídicopenalmente irrelevantes e pois atípicas Ademais tivesse o pretendido cúmplice de responder penalmente imputaríamos em última análise conduta de exclusiva responsabilidade de terceiro em clara ofensa ao princípio da pessoalidade da pena Tampouco haverá em tais casos autêntico concurso de agentes visto não existir em tese adesão ao crime Finalmente não seria conforme o princípio da proporcionalidade que o agente que se limitasse a emprestar ou a vender ferramenta respondesse por homicídio e outros delitos graves É preciso reconhecer porém que a cumplicidade por ações neutras admite uma tal variação e combinação de hipóteses que dificilmente poderíamos fixar normas ge rais e precisas de imputação A doutrina brasileira costuma considerar ainda como requisitos do concurso além dessa indispensável adesão subjetiva a pluralidade de condutas a identidade da infração penal e o nexo causal Entretanto em verdade a pluralidade de condutas é pressuposto do próprio concurso de agentes já que só se pode imaginála quando concorram para um mesmo evento diversas pessoas e não uma única A unidade da infração tampouco constitui requisito do concurso mas consequência lógica da teoria unitária adotada pelo Código que inclusive admite em caráter excepcional imputação por crime diverso v g participação dolosamente diversa Finalmente o nexo causal 4 Frederico Marques Tratado cit p 406 5 Juarez Tavares Apontamentos de Aula cit p 1 6 6 Luís Greco Cumplicidade através de ações neutras Rio de Janeiro Renovar 2004 317 PAULO QlJ E I ROZ não é imprescindível à caracterização do concurso pois em muitos casos a participa ção se perfaz por meio de atos secundários sem os quais o resultado final teria ocorri do inevitavelmente 31 Desistência voluntária e arrependimento eficaz Vimos que o agente que voluntariamente desiste de prosseguir na execução de sistência voluntária ou impede a produção do resultado arrependimento eficaz só responde pelos atos já praticados ficando afastada a tentativa visto que esta pressupõe a não consumação por circunstâncias alheias à vontade Pois bem no caso de coautoria discutese se essa desistência ou arrependimento se comunica aos coautores Imaginese que A e B ajustem a morte de alguém ambos atiram contra a vítima mas A desiste e também impede que B consuma o delito B não desiste Nesse caso temos que só B responderá por crime tentado enquanto A respon derá apenas por lesões corporais atos já praticados E assim deve ser porque a embo ra iniciada a execução o crime não se consumou por circunstância alheia à vontade de B desistência e intervenção de A ba desistênciaarrependimento é uma circunstância pessoal que diz respeito exclusivamente à pessoa do desistente A não podendo alcan çar pessoa estranha à própria ação Naturalmente que se no exemplo dado ambos desistirem ou se arrependerem eficazmente a desistênciaarrependimento aproveitará a todos No caso de participação a solução há de ser diversa por se tratar de uma inter venção secundária no crime do autor razão pela qual a desistência ou arrependimento eficaz do autor se comunicará ao partícipe conforme prevê o art 31 do CP inclusive o ajuste a determinação ou instigação e o auxílio salvo disposição expressa em con trário não são puníveis se o crime não chega pelo menos a ser tentado Se em razão da desistênciaarrependimento não tiver início a execução do delito não haverá infração penal a punir E quando a desistênciaarrependimento for inútil ineficaz sobrevindo a consumação todos responderão por crime consumado Em conclusão 1 se os coautores desistem ou se arrependem eficazmente não res pondem por tentativa embora iniciados os atos de execução 2 se os coautores desis tem ou se arrependem de forma ineficaz respondem por crime consumado 3 se o coautor desiste ou se arrepende eficazmente contra a vontade dos demais só ele não responde por tentativa 4 se não houver início dos atos de execução não há crime a punir consumado ou tentado 5no caso de participação a desistência ou o arrependi mento eficaz do autor aproveitará ao partícipe Em suma a desistênciaarrependimento só aproveita como regra ao próprio de sistentearrependido 4 AUTORIA E PARTICIPAÇÃO DISTINÇÃO O nosso Código atual não distingue ou não distingue expressamente autoria coautoria e participação uma vez que simplificou bastante o assunto limitandose a 318 lü9I CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PA RTICI PAÇÃO consignar no principal artigo dedicado ao concurso de pessoas o artigo 29 o seguinte quem de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este cominadas na medida de sua culpabilidade Adotouse no essencial portanto a teoria unitária ou monista rompendo com uma tradição que remontava ao Código Criminal de 1830 que distinguia autores e cúmplices7 Atualmente a maioria dos códigos penais segue outra linha e distingue expressa mente autoria coautoria e participação a exemplo do espanhol que declara que são responsáveis criminalmente dos delitos e faltas os autores e os cúmplices art 27 sendo autores aqueles que realizam o fato por si só conjuntamente ou por meio de ou tro de que se serve como instrumento art 28 E são considerados cúmplices os que não estando compreendidos no artigo anterior cooperam na execução do fato com atos anteriores ou simultâneos art 29 No mesmo sentido o Código Penal português8 Não obstante adote em princípio um conceito unitário de autor o Código prevê os institutos da participação de menor importância e da participação dolosamente di versa CP art 29 1 º e 2º os quais pressupõem a distinção entre autoria e participa ção A teoria monista sofreu importantes ajustes portanto Apesar de adotada a teoria unitária nada obsta a que se recorra eventualmente a outros critérios que distingam autoria e participação desde que compatíveis com os princípios penais Assim convém referir dentre outras a teoria objetivoformal a teoria subjetiva e a teoria do domínio do fato além da própria teoria unitária Cabe frisar que a melhor teoria não é ou não é necessariamente a que oferece a melhor sistematização mas a que conduz a uma solução justa do caso concreto Uma boa teoria é em suma aquela capaz de reduzir e solucionar problemas adequadamen te e não a que se perde em sutilezas e os multiplica 7 Eis o que dispunham os artigos principais do Código imperial de l 830Art 4º São criminosos como autores os que cometerem constrangerem ou mandarem alguém cometer crimes Art 5º São criminosos como cúmplices todos os mais que diretamente concorrerem para se cometer crimes Art 6 Serão também considerados cúmplices 1 Os que receberem ocultarem ou comprarem coisas obtidas por meios criminosos sabendo que o foram ou devendo sabêlo em razão da qualidade ou condição das pessoas de quem as receberam ou compraram 2º Os que derem asilo ou prestarem sua casa para reunião de assassinos ou roubadores tendo conhe cimento de que cometem ou pretendem cometer tais crimes 8 O Código Penal português dispõe A11igo 26º Autoria É punível como autor quem executar o facto por si mesmo ou por intermédio de outrem ou tomar parte directa na sua execução por acordo ou juntamente com outro ou outros e ainda quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto desde que haja execução ou começo de execução A11igo 27 Cumplicidade l É punível como cúmplice quem dolosamente e por qualquer forma prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso 2 É aplicável ao cúmplice a pena fixada para o autor especialmente atenuada 319 PAULO QJEI ROZ 41 Teoria unitária ou monista De acordo com a teoria unitária ou monista não é possível ou conveniente distin guir autoria e participação razão pela qual todos aqueles que participam de um crime são autores9 Tratase da mais antiga teoria autor é quem produz qualquer contribuição causal para a realização do crime10 pois são assim considerados todos que interve nham no processo causal de realização do tipo independentemente da relevância da participação de cada um questão que só importa para fins de aplicação da pena11 As sim o nexo causal constitui em princípio o único critério de relevância jurídicopenal de um comportamento tornando irrelevante o conceito de participação12 A teoria unitária é pois um continuum da teoria da equivalência dos antecedentes causais ou teoria da conditio sine qua non segundo a qual considerase causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido CP art 1313 razão pela qual autor é quem dá causa a um resultado por ação ou por omissão Ou ainda é quem de qualquer modo concorre para o crime e assim incide nas penas a ele cominadas CP art 29 Em suma toda pessoa que concorra para a produção do crime causao em sua totalidade devendo por isso ser imputado a cada um dos partícipes totalmente14 Apesar disso os autores responderão na medida de sua culpabilidade CP art 29 caput de modo que a imputação dos delitos e a aplicação das penas deverão ser indi vidualizadas considerandose dentre outras variáveis a importância da participação Além disso o juiz pode invocando o princípio da insignificância por exemplo decretar a absolvição do acusado sempre e quando se convencer da irrelevância jurídi copenal da intervenção no fato É comum dizerse que se por um lado a teoria unitária tem a vantagem de sim plificar o tratamento legal dos múltiplos problemas relacionados à autoria e à partici pação por outro tem a desvantagem de ampliar consideravelmente a punibilidade e por isso seria dificilmente compatível com o Estado Constitucional de Direito15 Mas a crítica só será procedente se primeiro a teoria for adotada sem os devidos ajustes 9 Mir Puig cit p 360 1 O Juarez Cirino A moderna teoria cit p 275 1 1 Jescheck Tratado cit p 587 12 Jescheck Tratado cit p 587 13 A lei brasileira enfim como escreve Fragoso resolveu em termos simples a questão da codelinquên cia partindo da teoria da equivalência dos antecedentes adotada quanto à relação de causalidade Assim comd não distingue entre os vários antecedentes causais do delito não distingue também entre os vários partícipes na empresa delituosa comum todos são coautores e responderão pelo crime se gundo a mesma escala penal Somente se distingue entre os diversos partícipes na aplicação da pena que dependerá da culpabilidade maior ou menor de cada um Lições cit p 25 1 14 Antolisei apud Cézar Bitencourt cit 15 Nesse sentido Roxin Autoría y dominio dei hecho en el derecho penal cit p 489 Paul Bockelmann chegou a afirmar inclusive com evidente exagero que o conceito unitário de autor é inutizável no 320 I091 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO segundo se o intérprete não tiver a preocupação que deve existir sempre de presti giai a interpretação mais conforme os princípios penais independentemente da teoria 1 adotada 42 Teoria objetivoformal Para a teoria objetivoformal que trabalha com um conceito restritivo de autor o qlfle importa é a realização de todos ou alguns dos atos executivos previstos no tipo legal de crime razão pela qual autor é quem pratica a ação típica16total ou parcialmen te vale dizer autor é aquele que no homicídio realiza a ação de matar no furto a de subtrair no estupro a ação de constranger Haverá coautoria quando a ação típica for realjizada conjuntamente E existirá participação quando fora do caso anterior o agen te cbncorrer para a realização da ação típica 1 Apesar de aceito em geral o mencionado conceito de autor a teoria em questão é criticada sobretudo por não explicar consequentemente a autoria mediata hipótese em que é autor autor mediato quem embora não realize os elementos do tipo pessoal mente utilizase de um terceiro como instrumento autor imediato para a sua realiza ção1vg médico que mata o paciente dolosamente valendose de uma enfermeira que desconhece o plano do autor17 43 Teoria subjetiva 1 A teoria subjetiva que trabalha com um conceito extensivo de autor distingue autÓria de participação a partir da vontade dos concorrentes é autor quem atua com ânimo de autor animus auctoris qualquer que seja sua contribuição material para o fato ou seja independentemente de realizar uma ação típica é partícipe quem toma parte em fato alheio atuando com ânimo de partícipe animus socii ainda que realize a ação típica Decisivo pois para a distinção será sempre a vontade do agente A teoria subjetiva parte portanto do pressuposto de que não é possível distinguir objetivamente autoria de participação visto que ambas são igualmente causas de um resultado típico motivo pelo qual a distinção deve ser feita subjetivamente segundo o plano do agente 1 De acordo com Juarez Tavares existem duas correntes subjetivas uma moderada que pondera subjetivamente em torno do papel principal ou secundário na execução do fato e outra extrema que se funda exclusivamente na consideração de o autor tomar o fato como próprio ou como alheio18 direito penal e conduziria a uma expansão ilimitada do poder punitivo Direito Penal Parte Geral Belo Horizonte DelRey 2007 p 2 1 5 1 6 Magalhães Noronha Direito penal cit p 2 1 7 1 7 Nesse sentido Roxin autoria cit p 5458 1 8 Apontamentos de aula cit 321 PAULO QlJEIROZ 44 A teoria do domínio do fato Para a teoria do domínio do fato uma teoria mista que combina critérios objeti vos e subjetivos especialmente impulsionada por Welzel e Roxin autor como sugere a denominação é a pessoa que detém o domínio da conduta delituosa isto é decide em linhas gerais o se e o como de sua realização19 ou como diz Welzel autor é o senhor da realização do tipo o qual por meio do domínio final da ação distingue se assim do mero partícipe que é quem o auxilia num ato dominado finalmente pelo autor ou que o incita à decisão de delinquir 20 A teoria do domínio do fato tem as seguintes implicações21a é autor quem execu ta por sua própria mão todos os elementos do tipo mata estupra etc b é autor quem executa o fato utilizando outro como instrumento autoria mediata c é autorcoautor quem realiza uma parte necessária da execução do plano global domínio funcional do fato ainda que não seja um fato típico em sentido estrito mas participando da resolu ção criminosa Nos demais casos haverá participação Discutese a aplicabilidade da teoria aos crimes omissivos Roxin que os insere na categoria dos delitos de infração de dever entende que não seja porque o omiten te não é autor por seu eventual domínio do fato mas por infringir um dever de evitar o resultado seja porque o domínio do fato pressupõe uma atuação ativa por parte do autor o que não existe nos crimes omissivos22 seJa porque a se admitir a simples omissão como uma forma de domínio então não seria possível distinguir autoria de participação pois qualquer contribuição a omissão inclusive para o fato poderia ser considerada domínio do fato23 razão pela qual a teoria seria aplicável aos crimes com1ss1vos Apesar de amplamente adotada na atualidade a teoria do domínio do fato tem sido criticada por vários autores 24 ressaltandose dentre outras coisas a imprecisão 19 Muiioz Conde Teoría cit p 196 20 Derecho penal alemán cit p 1 19 21 Cf Jescheck Tratado cit p 593 22 Ibidem p 50 l 504 23 De acordo com Roxin uma fo1mação de conceitos segundo a qual o domínio do fato do omitente se baseia na possibilidade de intervir e evitar o resultado é incorreto e inviável na prática por isso não existe domínio do fato nos casos de omissão e se houvesse com sua ajuda não seria possível fazer uma delimitação das formas de participação ibidem p 504 24 Nesse sentido Mir Puig em que consiste realmente o domínio do fato Temse acusado esta fórmula de carecer de um conteúdo preciso para servir para resolver com nitidez a questão da delimitação entre autoria e paiiicipação Uma possibilidade de concreção do conceito de domínio do fato é entender que concorre no sujeito que tem o poder de inteITomper a realização do tipo Poderseia dizer então que o executor material tem o domínio do fato e é autor porque todas as contribuições anteriores por exemplo do indutor dependem de que aquele culmine a execução e não a deixe inacabada Mas a doutrina tem adve11ido que o poder de interrupção não pode bastar para autoria pois tal possibilidade pode acharse em mãos do indutor do cúmplice e até de terceiros entendendo em consequência que se deve adicionar a ideia de relação de pertinência por isso só são autores aqueles que causam o fato imputável a quem se pode atribuir a pertinência exclusiva ou compa1iida do delito Derecho 322 I091 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO do que pode vir a ser domínio do fato bem como a circunstância de que o controle material do fato não é suficiente à distinção pois tal controle domínio pode acharse eventualmente em mãos do partícipe ou de terceiro 45A teoria do domínio do fato segundo Roxin Rigorosamente não existe uma teoria do domínio do fato e sim diversas mas uma das mais importantes contribuições dadas à teoria coube a Claus Roxin que assim a sintetizou25 1 El autor es la figura central del suceso concreto de la acción 2 La figura central se caracteriza por los elementos dei dominio dei hecho del quebrantamiento de um deber especial o de la comisión de propia mano 1 3 El domínio dei hecho que en los delitos dolosos de comisión determina el con cepto general de autor presenta las manifestaciones dei domínio de la acción dei domínio de la voluntad y dei domínio funcional de hecho 4 E dominio de la acción consiste en la realización dei tipo final y de propia mano 5 El dominio de la voluntad que corresponde a la autoría mediata se classifica en las formas de configuración dei domínio de la voluntad em virtud de coacción que se ajusta ai principio de responsabilidad dei dominio de la voluntad de cuatro gradas em virtud de error y dei domínio de la voluntad de maquinarias de poder organizadas 1 6 El domínio dei hecho funcional que expresa e contenido de la línea directriz de la coautoría se presenta como cooperación en división del trabajo en la fase ejecutiva 1 7 El criterio dei quebrantamiento dei deber especial es determinante para la auto ría en los delitos de infracción de deber por comisión en los delitos omisivos y en los imprudentes 8 La autoría mediata en los delitos de infracción de deber se caracteriza por que el obligado produce e resultado típico por medio de un no obligado 9 La coautoría en los delitos de infracción de deber aparece como quebrantamien to conjunto de um deber especial conjunto penal cit p 366367 De modo similar Cobo dei Rosal e Vives Antón os quais consideram que a teoria do domínio do fato é mais uma imagem do que um autêntico conceito e é em todo caso uma fó1mula imprecisa interpretada rigorosamente resulta inaplicável pois um homem nunca chega a dominar por inteiro o curso dos acontecimentos e ao contrário entendida em sentido amplo poderia predicarse de qualquer classe de ação voluntária pois todas elas supõem certo domínio do fato De recho penal cit p 669 25 Autoría y domínio dei hecho cit p 569570 323 PAULO QJ E I ROZ 10 Los delitos de mano propria se encuentran em el Derecho vigente como delitos de autor jurídicopenal y como delitos vinculados a comportamiento sin lesión de bien jurídico 1 1 La participación es um concepto secundario con respecto al de la autoría Por eso ha de caracterizarse como cooperación sin dominio sin deber especial y sin ser de propia mano 12 La participación en um hecho principal cometido sin finalidade típica por prin cipio está excluida en los delitos de propia mano es posible en los delitos de infración de deber y en los delitos de dominio de circunscribe a la suposición errónea de circunstancias fundamentadoras de dominio del hecho en la perso na del ejecutor directo Como se vê para Roxin o conceito de domínio do fato não é aplicável a todos os crimes mas unicamente aos comuns comissivos e dolosos Neles autor é quem rea liza a ação diretamente autoria direta isto é pessoalmente ou mediatamente auto ria mediata valendose de um terceiro como instrumento bem como quem a realiza conjuntamente coautoria Autor é pois quem domina o fato total ou parcialmente é coautor aquele que presta uma colaboração funcionalmente significativa na fase de execução do delito domínio funcional do fato e é partícipe quem sem dominar o fato concorre para a sua realização Não cabe falar todavia de domínio do fato quanto aos delitos de infração de de ver categoria que compreende entre outros os tipos especiais omissivos e culposos 26 Também os delitos de mão própria constituiriam uma classe especial não explicável segundo a teoria do domínio do fato Aqui portanto o domínio do fato é irrelevante devendo a autoria ser definida segundo outros critérios27 Precisamente por isso nos delitos de infração de dever por exemplo autor não é quem eventualmente domina o fato total ou parcialmente mas quem pratica a ação tí pica isto é nos crimes especiais detém a condição especial prevista em lei e a realiza e nos omissivos aquele que se abstém de praticar a ação exigida pelo respectivo tipo Haverá coautoria se duas ou mais pessoas detiverem a condição legal exigida por lei e praticarem o comportamento típico conjuntamente e será partícipe todo aquele que fora do caso anterior induzirinstigar o autor a realizar a conduta típica pouco impor tando para tanto se domina o fato no todo ou em parte Finalmente para Roxin só existe coautoria quando houver cooperação na efetiva execução do crime razão pela qual não é coautor mas partícipe ou dependendo do 26 Textualmente se se afirma assim que o domínio do fato não basta nos delitos de infração de dever para fundamentar a autoria a questão de colocarse de modo mais radical é necessário o domínio do fato conjunto do curso do fato ao menos junto à infração do dever ou não faz falta A meu juízo há de descartarse completamente a ideia de domínio do fato Autoría y domínio dei hecho cit p 388 27 De acordo com Roxin nos crimes especiais ou próprios vg peculato nem o funcionário precisa ter o domínio do fato nem quem o domina precisa ser funcionário Autoría cit p370 324 I 09 1 CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO caso autor mediato por domínio de aparato organizado de poder o agente que só participe da sua cogitação e preparação Não é coautor por conseguinte o chefe de bando que dirige a ação dos demais nem quem que mediante pagamento contrata a morte de outrem ou o furto de uma obra de arte sem participar diretamente da execução dos crimes Em suma o domínio sobre a preparação não pode fundamentar o domínio sobre o fato pois só há coautoria relativamente aos agentes que tomam parte na execução do delito28 Temos porém que um conceito tão restritivo de autor que praticamente o con diciona à realização dos elementos do tipo não satisfaz seja por considerar como simples partícipe quem pratica uma conduta relevantíssima seja por ampliar excessi vamente o conceito de autoria mediata Convém lembrar inclusive que a pena é agra vada em relação ao agente que promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes CP art 62 I de sorte que também por isso é mais razoável considerar tais indivíduos como autores intelectuais e não simples partícipes Ademais é perfeitamente legítimo falar de domínio comum do fato relativamente ao autor intelectual e o executor 29 Como assinala Juarez Tavares é coautor quem executa diretamente o fato mas também o é aquele que dirige ou planeja a ação uma vez que integra o plano global de sua execução funcional não sendo necessário que esteja presente no local e momento de sua concreta execução 30 5 FORMAS DE AUTORIA A autoria pode ser direta ou de mão própria e indireta ou mediata É autor dire to quem comete o delito pessoalmente ou seja é aquele que no homicídio dispara o revólver no furto subtrai a coisa É autor mediato quem pratica um crime valendose um terceiro como instrumento É autor intelectual quem sem participar diretamente da execução de um crime determina ou contrata a sua execução31 Por sua vez o coautor é um autor direto ou indireto Haverá coautoria por con seguinte sempre que duas ou mais pessoas praticarem uma ação típica conjuntamen te Ou segundo a teoria do domínio do fato há coautoria sempre e quando o domínio do fato pertencer a mais de uma pessoa domínio funcional no todo ou em parte 28 Autoria cit p 325 e ss 29 No mesmo sentido Damásio de Jesus Na autoria intelectual o sujeito planeja a ação delituosa cons tituindo o crime produto de sua criatividade É o caso do chefe de quadrilha que sem efetuar compor tamento típico planeja e decide a ação conjunta Direito penal cit p 40941 0 E mais adiante p 412 O mandante é autor intelectual e não partícipe uma vez que detém o domínio do fato 30 Apontamentos de aula cit 3 1 Tratase de um conceito um tanto em desuso Antônio José da Costa e Silva Código Penal dos Es tados Unídos do Brasil v 1 Brasília Senado 2004 p93 definiao como a dolosa provocação ou determinação por um dos meios indicados na lei de outra pessoa à execução de um crime 325 PAULO QlJEIROZ 51 Coautoria A coautoria é pois a realização conjunta de um delito por duas ou mais pessoas O decisivo portanto na coautoria é que o domínio do fato pertença a várias pessoas que em virtude do princípio da divisão de trabalho assumam igual responsabilidade por sua realização de modo que as distintas contribuições devem ser consideradas como um todo e o resultado total deve ser atribuído a cada coautor independentemente da valoração material de sua intervenção32 Naturalmente para a configuração da coautoria não é necessário que os coautores realizem condutas idênticas v g que todos atirem ou que todos subtraiam valores visto que a divisão funcional do trabalho na coautoria como em qualquer outro em preendimento coletivo implica contribuição mais ou menos diferenciada para a obra comum33 Por fim discutese a possibilidade de coautoria e participação em crimes cul posos 34 51 1 Coautoria em crimes culposos A doutrina alemã35 em geral não admite nem a coautoria nem a participação em crimes culposos diversamente da espanhola36 Já a doutrina brasileira está dividida no particular havendo posicionamento em ambos os sentidos37 Juarez Tavares entende que nem a coautoria nem a participação são possíveis nos crimes culposos É que diferentemente do crime doloso em que o agente atua desde o início contrariamente à norma lesando ou pondo em perigo de lesão o bem jurí dico para a configuração do delito culposo é preciso primeiro que o agente realize uma ação perigosa segundo que essa ação perigosa contravenha a norma de cuidado que se destina a regular aquela espécie de atividade que está sendo desenvolvida e por fim que a execução dessa atividade descuidada tenha se realizado no resultado 32 Muiioz Conde Teoría cit p 1981 99 33 Juarez Cirino A moderna teoria cit p 286 34 De acordo com Welzel quem pratica um fato culposamente mediante uma ação que não observa o dever de cuidado é autor do respectivo crime culposo motivo pelo qual não existe no âmbito dos cri mes culposos diferença entre autoria e participação Derecho penal alemán cit p l 19 No sentido contrário porém de entender cabível a coautoria em crime culposo não obstante falem da necessi dade do requisito subjetivo entre os concorrentes Damásio de Jesus Direito penal cit e Mirabete Manual cit 35 Assim Welzel Jescheck e Roxin 36 Assim Mir Puig e outros 37 Admitindo o concurso de agentes em crime culposo Hungria escreveu O concursus delinquentium é plenamente admissível nos crimes culposos Para que se reconheça o elemento psicológico da par ticipação criminosa é suficiente como já vimos a vontade consciente referida à ação comum Se o resultado é também querido dáse a participação em crime doloso se o resultado não foi querido nem previsto embora previsível ou se foi previsto mas não querido dáse a participação em crime culposo Comentários cit p 420 326 I091 CONCURSO DE AGE NTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO proibido38 Portanto em virtude dessa estrutura complexa do crime culposo se duas ou mais pessoas têm um dever de cuidado e atuam negligentemente de modo a causarem lesão jurídicopenalmente relevante a bem jurídico então cada uma haverá de respon der por seu próprio crime autonomamente autoria colateral e não em coautoria v g equipe médica que decide em conjunto levar adiante cirurgia de risco causando a morte do paciente por imperícia ou imprudência Ainda de acordo com Juarez Tavares também não é possível falar pela mesma razão de participação dolosa ou culposa em crime culposo Assim por exemplo o carona que instiga o motorista a correr mais do que o legalmente permitido não pode responder por crime culposo porque não há relativamente a ele um dever de cuidado e pois infração a um tal dever Em verdade estáse num impasse não pode o insti gador ser autor porque não tem dolo de autor não pode ser partícipe porque se seu dolo se estender à ação descuidada será então autor e não mais partícipe não pode igualmente ser partícipe porque para tanto deveria executar a ação perigosa e se o fizesse seria autor bem como não a executando está desobrigado ao cuidado ne cessário 39 Consequentemente a participação é logicamente inadmissível nos crimes culposos devendo cada um dos participantes responder como autor pela sua respectiva ação dolosa ou culposa40 No mesmo sentido Juarez Cirino dos Santos tem que do ponto de vista concei tuai o concurso no crime culposo é impossível e do ponto de vista prático é desne cessário porque na hipótese de comportamentos imprudentes simultâneos cada lesão do dever de cuidado ou do risco permitido estaria ligada ao resultado motivo pelo qual seriaimputável a cada um dos agentes a título de autoria colateral41 Não estamos de acordo com isso Com efeito temos que tanto a coautoria quanto a participação são perfeitamente compatíveis com os crimes culposos Inicialmente porque o Código ao adotar a teoria monista não fez distinção expres sa entre autoria e participação de modo que quem de qualquer modo concorre para o crime a título culposo inclusive responde penalmente na medida de sua culpabilidade desde que adira à ação também imprudente de outrem Assim por exemplo se duas 1 pessoas ajustam entre si a realização de um pega ou racha Código de Trânsito art 308 1 e um deles vem a colidir com um terceiro causandolhe a morte o causador do evento letal responderá como autor de crime culposo abstraída a discussão sobre a possibilidade de dolo eventual enquanto o outro responderá por participação culposa e se este even tualmente tiver também colidido com o terceiro haverá coautoria culposa Além disso no caso de crime culposo a coautoria e a participação não dizem res peito à produção de um resultado não querido e geralmente não previsto mas à ação 38 Juarez Tavares Direito Penal da Negligência Rio de Janeiro Lumen Juris 2003 p 4 1 641 7 39 Juarez Tavares idem 40 Juarez Tavares ibidem 4 1 Direito Penal cit 327 PAULO QlJEIROZ negligente tomada conjuntamente Enfim se duas ou mais pessoas de comum acordo decidem praticar ações perigosas que produzem resultados imprudentes devem res ponder penalmente como coautores ou partícipes pelas mesmas razões que responde riam caso fossem autores de crimes dolosos Finalmente se assim não for frequentemente o coautor eou partícipe ficarão im punes pois negada a possibilidade de coautoria ou participação em crime culposo dificilmente poderão ser considerados como autores apesar da relevância causal da conduta Notese que nos crimes culposos a adesão subjetiva necessária ao concurso não se refere ao resultado obviamente mas à vontade no sentido de atuar imprudentemen te v g dirigir embriagado competir em alta velocidade etc Obviamente que se não existir nenhum tipo de adesão subjetiva entre os agentes haverá autoria colateral em crime culposo sempre que derem causa a um mesmo resul tado por meio de ações imprudentes autônomas Já vimos que não é possível participação dolosa em crime culposo tampouco par ticipação culposa em crime doloso 52 Autoria mediata A autoria mediata dáse quando o autor se utiliza dolosamente de um terceiro como instrumento para a prática de um crime coação etc hipótese em que em prin cípio só o autor mediato responde penalmente A autoria mediata é pois uma forma de autoria cujo domínio do fato pertence ao homem de trás que controla a ação do executor Naturalmente que a autoria mediata não é de aplicação irrestrita razão pela qual ela deixa de existir quando o sujeito utilizado como instrumento é um autor plenamen te responsável visto que só cabe falar de domínio do fato por parte do autor mediato quando o executor se encontre em sitµação de autêntica subordinação em virtude de coação erro inimputabilidade etc42 É autor mediato por exemplo quem coage física ou moralmente outrem a praticar um delito ou o induz a erro ou instiga portador de transtorno mental a delinquir Mas não bastam tais circunstâncias para qualificar alguém como autor media to pois é necessário que a violência ou erro sejam de tal natureza que convertam em instrumento aquele que atua sob sua influência43 porque do contrário haverá em tese coautoria Não há falar por isso de autoria mediata em relação a adolescentes 42 Jescheck Tratado cit p 605 43 Cobo dei Rosal e Vives Antón Derecho penal cit p 678 Entendem esses autores que para falar se de autoria mediata o instrumento há de atuar se não realiza uma ação como sucede com a hipó tese de vis absoluta então a autoria do homem de trás hitermann não é mediata senão imediata idem 328 1 09 1 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E PA RTICI PAÇÃO ou mesmo crianças que participem de crime juntamente com criminosos adultos se e quando o fizerem livremente sem nenhum tipo de coação ou erro Em suma nem sempre a criança ou adolescente que participe de crime sob o co mando de outrem será instrumento porque pode ocorrer inclusive de ser o seu mentor e ter ascendência sobre os demais44 Além disso quem pode ser autor de fato definido como crime adolescente etc pode ser também seu coautor ou partícipe independen temente de ser punível no caso concreto Por fim convém notar que em geral não é admitida a autoria mediata nos crimes culposos especialmente por faltar o domínio do fato Não é aceita tampouco nos cri mes de mão própria por exigirem atuação pessoal do autor vg bigamia45 53 Autoria mediata por domínio de aparato organizado de poder Apesar de a autoria mediata pressupor em princípio a atuação de um executor autor imediato não culpável pois do contrário haverá coautoria possivelmente Ro xin propôs uma nova modalidade de autoria mediata a autoria mediata por domínio de organização ou por domínio de aparato organizado de poder Aliás essa não é a única hipótese de autoria mediata proposta por Roxin em que autor mediato e imediato são penalmente responsáveis visto que ele a admite inclusive quando o homem de trás induz o executor a errar sobre a pessoa errar in persona 1 Tratase de uma espécie diversa de autoria porque aqui autor mediato e imedia to homem de trás e executor são igualmente culpáveis e puníveis Além disso não seriilj o caso de coautoria quer porque o executor é um figura anônima e substituível fungível quer porque não há em geral acordo prévio e preciso entre mandantes e mandatários que com frequência sequer se conhecem vg os chefes de uma orga nização criminosa relativamente a certos membros que dela participam habitual ou eventualmente Roxin escreve textualmente Neste terceiro grupo de casos que é o que aqui nos interessa não falta pois nem a liberdade nem a responsabilidade do executor direto que há de responder como autor culpável e de mão própria Mas essas circunstâncias são irrelevantes para o domínio 44 No sentido do texto Welzel para quem a criança ou o enfermo mental pode desenvolver vontade própria motivo pelo qual no caso de participação de terceiro nesses fatos haverá instigação ou cum plicidade Derecho Penal cit p 124 também Jescheck Tratado cit p 609 e Jakobs que afirma que se contrariando a presunção legal a criança é já capaz de conhecer e observar a norma haverá participação ou coautoria Derecho Penal cit p 779 Criticando Welzel e defendendo posição di versa Roxin assinala que quando houver uso de crianças o sujeito que está por detrás que determina a ação é sempre autor mediato Não obstante entende que quando a criança por sua conta e risco decidir cometer o crime e alguém o auxilia haverá cumplicidade Autoría y domínio dei hecho en Derecho Penal 7ª ed Madrid Marcial Pons p 266267 45 Assim Jescheck Tratado cit No sentido contrário de entender que também os crimes culposos ad mitem a autoria mediata Cobo dei Rosal e Vives Antón Derecho penal cit p 679 329 PAULO QlJEIROZ por parte do sujeito de trás porque o agente não pode ser visto como pessoa individual livre e responsável senão como figura anônima e substituível O executor apesar de participar do domínio da ação é uma engrenagem a qualquer tempo substituível na maquinaria do poder e esta dupla perspectiva impulsa o sujeito de trás junto a ele ao centro do acontecimento46 Cabe afirmar pois em geral que quem é é empregado numa maquinaria organi zativa em qualquer lugar de uma maneira tal que pode impor ordens a subordinados é autor mediato em virtude do domínio da vontade que lhe corresponde se fizer uso de suas competências para que se cometam ações puníveis47 No mesmo sentido Kai Ambos tem que quanto à macrocriminalidade isto é massiva e sistemática planejada e organizada por altos mandatários do Estado ou por um grupo não estatal os autores diretos frequentemente atuam com plena respon sabilidade penal motivo pelo qual a teoria tradicional da autoria mediata é inaplicá vel48 Assinala ainda que para configuração da autoria mediata não interessa tanto o como da execução da ordem quando o se está assegurado Em todo caso o homem de trás poderá confiar que alguma outra pessoa cumprirá suas ordens criminosas A automação do aparato fundamenta o domínio do fato sobre a execução direta do ato e assim parece também sobre executores diretos49 Pois bem temos que definir o domínio de aparato organizado de poder como au toria mediata ou coautoria constitui uma questão secundária O que de fato importa é estruturar juridicamente uma resposta conforme os princípios penais em especial os princípios de culpabilidade e proporcionalidade a evitar a responsabilização penal sem culpa ou por ato de exclusiva responsabilidade de terceiro De todo modo não faz sentido falar neste caso de autoria mediata seja porque esta pressupõe um autor imediato não responsável instrumento seja porque uma vez cessada a irresponsabilidade penal do autor imediato cessa logicamente a autoria me diata que se converte em coautoria dolosa seja porque não cabe cogitar de autoria mediata relativamente a executores plenamente responsáveis e puníveis Em suma a proposta de ampliarse o conceito de autoria mediata para também alcançar agentes pe nalmente responsáveis tornao supérfluo e desnecessário além de não guardar relação alguma com os casos clássicos Como escreve Jakobs referindose à condenação do expresidente peruano Al berto Fujimori que foi considerado autor mediato de diversos crimes praticados du rante sua gestão tratase em verdade de um autor intelectual figura perfeitamente 46 Autoria e domínio dei hecho en derecho penal Madrid Marcial Pons 2000 p273 47 Idem p 275 48 Transfondos políticos y jurídicos dela sentencia contra el ex presidente peruano Alberto Fujimori in autoría mediata cit p74 49 A Parte Geral do Direito Penal Internacional São Paulo RT 2008 p225 330 I091 CONCURSO DE AGENTES AUTORIA E lARTICI AÇÃO conhecida desde a doutrina mais antiga razão pela qual o caso é de coautoria ou ao menos de indutores equiparáveis a autores50 Com efeito os executores de um aparato organizado de poder justamente por atuarem de modo responsável não constituem instrumento algum e portanto quem dá a ordem não é autor mediato mas autor intelectual ou coautor51 Ademais os problemas de legitimação de imputação objetivasubjetiva e valora ção da prova da intervenção penal no particular são exatamente os mesmos quer se trate de autoria mediata quer de coautoria Ou seja independentemente do nome que se dê a esse fenômeno a questão fundamental consiste em punir os culpados e proteger os inocentes enfim decidir justamente 6 PARTICIPAÇÃO EM SENTIDO ESTRITO ACESSORIEDADE A participação é a cooperação no crime do autor participar é colaborar material ou moralmente A participação é pois acessória relativamente à autoria Em razão desse caráter acessório da participação só se pode dela cogitar em con sequência quando o autor tiver praticado um fato típico e ilícito ao menos52 já que não há sentido em pretender punir alguém que se limite a participar de um fato penalmente irrelevante atípico ou conforme o direito lícito A relevância da participação pressu põe portanto a prática pelo autor de no mínimo um fato típico e ilícito Assim não é punível o partícipe se o autor for absolvido por erro de tipo inevitável legítima defesa etc excludentes de tipicidade e de ilicitude Justamente por isso não sé punível a participação quando o crime não chega a ser tentado ao menos pois como regra os atos meramente preparatórios não são pu níveis são atípicos segundo dispõe o Código o ajuste a determinação ou instigação e o auxílio salvo disposição expressa em contrário não são puníveis se o crime não chega pelo menos a ser tentado art 31 Pela mesma razão se iniciada a execução do crime o autor desistir voluntariamente ou se arrepender eficazmente o partícipe não responderá pelo crime objeto da desistência ou arrependimento embora responda pelos atos já praticados na forma do art 1 5 do Código cf Item 31 Contrariamente se a desistência ou o arrependimento forem ineficazes consumar seá o delito cabendo então a punição de todos aqueles que tenham tomado parte no crime a título consumado 50 Sobre la autoria dei acusado Alberto Fujimori Fujimori in La autoría mediata Lima Ara Editores 2010 p 1 06 5 1 Jakobs idem p 108 52 A dependência da participação em face do fato principal como escreve Juarez Cirino referese ao conteúdo do injusto respectivo a participação não tem conteúdo de injusto próprio e por isso assu me conteúdo de injusto do fato principal por outro lado a dependência da participação é limitada à tipicidade e antijuridicidade do fato principal ou seja ao tipo de injusto do fato principal A moderna teoria cit p 291292 331 PAULO QJEIROZ Mas não é necessário para ter lugar a punição do partícipe que o autor seja im putável uma vez que a imputabilidade é uma questão de caráter pessoal e passível de medida de segurança razão pela qual não é comunicável ao partícipe Também não há necessidade de o fato ser punível porque mesmo que o autor seja isento de pena por qualquer motivo v g furto contra ascendente CP art 181 ainda assim o partícipe responderá penalmente 61 Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação Como vimos a participação pressupõe logicamente a autoria por ser uma inter venção secundária no crime do autor Mas esse caráter acessório da participação comporta graus e é ordinariamente as sim classificado53 a acessoriedade mínima a punição do partícipe depende da simples conduta típi ca do autor b acessoriedade limitada a punição do partícipe exige conduta típica e ilícita do autor c acessoriedade máxima ou extremada54 a punição do partícipe exige além da conduta típica e ilícita a culpabilidade do autor d hiperacessoriedade a punição do partícipe depende também da punibilidade do autor Pois bem apesar de a teoria da acessoriedade limitada item b ser amplamente majoritária55 pensamos que a razão está em princípio com a teoria da acessoriedade extremada motivo pelo qual sempre que o autor for absolvido por inculpabilidade v g erro de proibição inevitável tal deverá também beneficiar o partícipe em virtude do caráter acessório da participação Em primeiro lugar porque a inculpabilidade do autor implica o reconhecimento do caráter não criminoso do fato principal logo não faria sentido que se tivesse por criminosa a participação acessória que é É que a participação em fato não crimino so criminosa logicamente não é Em segundo lugar porque a teoria da acessoriedade limitada acaba por autonomizar a participação relativamente à autoria negandolhe 53 Tratase de uma velha classificação que procede de Max Ernst Mayer mas que contrariamente ao que afirma Juarez Tavares Apontamentos cit permanece atual 54 No sentido de admitir a acessoriedade máxima José Cirilo de Vargas Instituições de Direito Penal parte geral tomo Belo Horizonte 1997 p 440 55 Como esclarece Juarez Tavares a teoria da acessoriedade limitada depois da reestruturação do tipo de injusto pelo finalismo passou a ser a teoria dominante porque exige apenas que o autor principal tenha realizado um fato típico e ilícito De acordo com o mesmo autor a teoria da acessoriedade ex trema era própria do sistema causalnaturalista do delito que incluía o dolo e a culpa na culpabilidade Apontamentos cit Apesar disso temos que a teoria da extremada permanece válida embora com fundamentos diversos 332 a pressuposta acessoriedade Em terceiro lugar porque não parece compatível com o princípio da proporcionalidade que embora absolvido o autor se possa castigar o participe Em quarto lugar porque nem sempre é fácil estabelecer uma diferenciação clara entre excluintes de ilicitude e de culpabilidade v g coação moral irresistível e legítima defesa de terceiro e pois saber se o participe é ou não penalmente responsável Quanto à objeção de que o participe seria beneficiado por circunstância pessoal que não lhe diz respeito tal é perfeitamente aplicável às excluentes de tipicidade v g erro de tipo e ilicitude v g legítima defesa e pois não procede Mas nada disso é aplicável à hipótese de inimputabilidade por alienação mental ou menoridade porque diversamente dos demais casos de exclusão de culpabilidade o inimputável sofrerá uma sanção adequada à sua situação medida de segurança e medida socieducativa respectivamente Exatamente por isso o participe ao tomar parte numa ação típica ilícita e culposa logo punível será castigado na forma da lei Aqui sim a circunstância de caráter pessoal do autor não se comunica ao participe E mesmo que pudesse aproveitálo não seria para deixálo imune mas para lhe impôr por medida de segurança ou medida socieducativa sanções legitimamente incompatíveis com a sua condição de imputável Finalmente não parece correto dizer que o Código Penal adotou a teoria da acessoriedade limitada por conta do disposto nos arts 29 2 30 31 e 62 todos do CP Sim porque embora tais artigos afirmem a acessoriedade da participação nada dizem sobre o seu grau que é assim uma questão doutrinária E mais dizem respeito essencialmente à punibilidade e à individualização da pena e só acidentalmente à teoria do crime Releva notar que nada disso teorias sobre os graus de acessoriedade é aplicável à coautoria já que é uma forma de autoria razão pela qual não há cogitar de acessoriedade de nenhuma espécie Enfim o coautor é como regra punível independentemente do que ocorra com os demais 7 FORMAS DE PARTICIPAÇÃO INSTIGAÇÃO E CUMPLICIDADE A doutrina refere duas formas de participação a instigação e a cumplicidade A primeira ocorre quando o instigador persuade o autor por meio de conselhos etc a praticar um crime E a cumplicidade é o auxílio material prestado ao autor Participa será enfim todo aquele que prestar uma colaboração juridicamente relevante para a execução do crime quer persuadindo quer auxiliando o autor Assim é participe de crime de homicídio a mulher que convence o amante a matar a esposa tanto quanto o motoboy que conduz dolosamente ao local do crime PAULO QJEIROZ Quanto ao agente que contrata pistoleiro a doutrina considerao em geral sim ples partícipe instigador Nesse sentido Juarez Tavares quem por exemplo aconse lha alguém a matar seu desafeto é instigador assim também aquele que contrata um pistoleiro para fazêlo58 Também assim Paul Bockelmann É mero partícipe insti gador e não autor quem ao invés de matar apenas paga o assassino mesmo que o interesse na execução do fato exista apenas para ele e não para aquele que aceitou o serviço59 Parecenos porém que o mais correto é considerálo autor autor intelectual seja porque detém o controle do fato decidindo sobre quem como e quando deva consu marse o delito seja porque sua conduta é tão ou mais relevante que a do executor ma terial tanto que sua pena é agravada 8 COAUTORIA E PARTICIPAÇÃO NOS CRIMES OMISSIVOS Discutese a possibilidade de coautoria e participação em crime omissivo haven do quem como Armín Kaufmann responda negativamente porque v g se cinquenta pessoas que sabem nadar assistem passivamente a uma criança se afogar cada um é autor de uma omissão punível60 Parecenos todavia que tanto a coautoria quan to a participação são perfeitamente possíveis nos crimes omissivos próprios e impró prios 61 Com efeito haverá coautoria por omissão própria ou imprópria sempre que os coautores deixarem de cumprir um dever legal de agir que lhes compete conjunta mente62 v g diretores de uma empresa desde que assim procedam de comum acordo nexo subjetivo pois do contrário ambos responderão individual e autonomamente como autores de uma omissão tal como no exemplo dos nadadores O princípio por tanto é o mesmo dos crimes comissivos houve consciência e vontade de realizar um empreendimento comum ou melhor de não realizálo conjuntamente63 logo respon dem em coautoria No caso de omissão imprópria só ocorrerá a coautoria se os coautores ostentarem simultaneamente o status de garante já que como assinalado a coautoria é uma forma de autoria E se alguém não for garante será partícipe se concorrer instigar induzir etc para a omissão criminosa A participação também é possível tanto nos crimes omissivos próprios quanto nos impróprios por parte de quem não tendo o dever legal de agir não sendo autor por tanto tenha concorrido para o não agir criminoso Notese que a participação pressu põe que o partícipe instigue ou induza o autor a se omitir participação por comissão 58 Apontamentos cit 59 Direito Penal cit p 21 9 60 Dogmática de los delitos de omisión Madrid Marcial Pons 2006 p 202 61 No sentido do texto Roxin Autoria y participación cit p 50751 O 62 Jescheck Tratado cit p 582 63 Cezar Bitencourt Manual cit p 396 334 I091 CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO em crime omissivo porque se houver simples omissão a sua conduta será jurídico penalmente irrelevante de modo que nos crimes omissivos próprios não é possível portanto participação por simples omissão Tratandose de crime comissivo e à exceção da situação do garante também a simples omissão é atípica No caso do garante poderá ocorrer inclusive a chamada participação omissiva em crime comissivo v g o agente da segurança deixa de fechar o cofre a fim de um furto Finalmente quanto à possibilidade de autoria mediata em crimes om1ss1vos a doutrina majoritária responde quase sempre negativamente 9 PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA O Código art 29 1º dispõe que se a participação for de menor importância a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço A participação de menor importância é uma causa de redução de pena em virtude da menor culpabilidade do agente Naturalmente que a participação de que estamos tratando não é a que pela sua absoluta irrelevância admite a aplicação do princípio da insignificância mas aquela que confrontada com a a participação dos demais seja de mínima importância embo ra penalmente relevante É o caso da faxineira que intervém numa extorsão mediante sequestro limitandose a alimentar a vítima em cativeiro etc A causa de redução de pena só é aplicável em princípio à participação propria mente dita em sentido estrito e não à coautoria pois dificilmente se poderá conside rar a cooperação de um coautor como de menor importância Reconhecida a participação de menor importância o juiz deverá reduzir a pena de um sexto a um terço fundamentadamente não se trata por conseguinte de mera faculdade apesar de o Código utilizar a expressão pode 10 PARTICIPAÇÃO DOLOSAMENTE DIVERSA OU DESVIO SUBJE Tryo DE CONDUTA Dáse o desvio subjetivo de conduta ou participação dolosamente diversa sem pre que o autor de um crime doloso vai além do ajustado com os demais coautores ou partícipes e comete delito mais grave do que havia sido acordado Apesar do nome o instituto é também aplicável à coautoria de modo a afastála quando ficar claramente configurado o excesso64 Exemplo A encomenda a B a morte de C B porém se exce de e mata C D e E seguranças de C que o acompanhavam hipótese em que A em princípio responderá por um único homicídio diversamente de B que responderá por 64 Como escreve Roxin não cabe falar de coautoria no excesso doloso de um coautor porque quem vai além do acordado sem que os demais cooperem se desvincula da dependência funcional passando a atuar como autor único direto ou quanto ao comparsa que nada sabe como autor mediato Autoría cit p 3 1 7 335 PAULO QJ E I ROZ triplo homicídio Com efeito o art 29 2º do CP dispõe se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave serlheá aplicada a pena deste essa pena será aumentada até a metade na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave E assim deve ser porque se o dolo pressupõe consciência e vontade de realização dos elementos do tipo seguese então que quando o resultado mais grave estiver além do conhecimento e vontade necessários à sua configuração a rigor dolo não há direto ou eventual relativamente ao coautorpartícipe que ajustara o cometimento de crime menos grave Além de evitar a imputação de resultado mais grave sem dolo ou sem culpa o dis positivo legal pretende impedir que o coautor ou partícipe que havia decidido praticar infração menos grave responda por crime de exclusiva responsabilidade de terceiro princípio da pessoalidade da pena De acordo com o Código portanto cada um responde somente até onde alcança o acordo recíproco65 devendo o concorrente responder segundo o seu dolo e não confor me o dolo do autor do crime mais grave66 Assim no exemplo citado A responderá por um único homicídio e não por três e se previsível o resultado mais grave continuará a responder por um só crime mas já agora com pena aumentada até a metade Evidentemente que se o resultado mais grave for imputável a título de dolo dire to ou eventual não haverá participação dolosamente diversa mas participação idênti ca ou similar motivo pelo qual os agentes deverão responder por todos os delitos em coautoria ou participação conforme o caso O artigo agora comentado deve pois ser entendido nos seguintes termos relati vamente ao agente que ajustou a prática de crime menos grave 1 se o resultado mais grave for imprevisível responderá nos limites do ajuste se o ajustado foi um homicí dio responderá por um único e não por vários 2 se o resultado mais grave for pre visível e portanto imputável a título de culpa continuará a responder nos limites do ajuste mas já agora com pena aumentada até a metade 3 se o resultado mais grave for imputável a título de dolo direto ou eventual não existe participação dolosamente diversa mas idêntica ou similar Exatamente por isso é que quem toma parte em crime de roubo com emprego de arma de fogo responde em princípio por latrocínio consu mado ou tentado a título de dolo eventual ao menos quanto ao resultado mais grave morte ainda que não tenha efetivamente atirado contra a vítima 11 COMUNICABILIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DE CARÁTER PESSOAL O art 30 do Código dispõe não se comunicam as condições e circunstâncias de caráter pessoal salvo quando elementares do crime A contrario sensu são comunicá veis como regra as circunstâncias de caráter impessoal objetivas 65 Welzel Derecho penal alemán cit 66 Cezar Bitencourt Manual cit p 450 336 I091 CONCU RSO DE AGENTES AUTORIA E PARTICI PAÇÃO As circunstâncias no sentido amplo como o vocábulo é aqui empregado não são apenas as que excedem a configuração do tipo penal isto é as agravantes e atenuantes genéricas e especiais mas também as que constituem elementos essenciais do crime ou que de qualquer modo alteram excluem ou extinguem a punibilidade67 São pessoais as circunstâncias de natureza subjetiva isto é as condições ou qua lidades que só dizem com a pessoa de tal ou qual concorrente sem qualquer reflexo sobte a execução material do crime como a reincidência o motivo torpe a embriaguez prerdenada etc e são reais ou objetivas as que afetam a execução material do crime isto é que dizem respeito à natureza espécie meios objeto tempo lugar etc a exem plo da emboscada do emprego de veneno etc 68 Pois bem a finalidade da norma em questão é preservar em especial o princípio da pessoalidade da pena impedindo que o coautor ou partícipe responda por uma con dição ou circunstância que não lhe diz respeito dado o seu caráter pessoal Imaginese por exemplo que A venha a cometer homicídio contra seu pai contando com o apoio de B um estranho Em tal hipótese aplicarseá a A a agravante do art 61 e do CP crime contra ascendente B porém não terá sua pena agravada por isso em razão do caráter pessoal da agravante em causa ser filho da vítima É que se fosse aplicada a aludida agravante também a B violarseia o princípio da pessoalidade da pena visto que ele sofreria a incidência de circunstância relativa a terceiro A Justamente por isso vigora como regra geral o princípio da incomunicabilidade das circunstâncias ou condições de caráter pessoal que não se estendem aos coautores e partícipes Assim não são comunicáveis a reincidência o motivo fútil ou torpe a embriaguez preordenada o parentesco art 61 a menoridade o motivo de relevante valor moral art 65 etc seja para agravar a pena seja para atenuála Mas em caráter de exceção as circunstâncias pessoais quando elevadas à condi ção ide elementares do crime isto é quando passem a integrar a definição do tipo penal crimes próprios ou especiais comunicarseão aos coautores e partícipes Assim por exemplo aquele que concorre para o peculato CP art 312 ou para a concussão CP art 316 crimes que só podem ser praticados por funcionário público responderá por esses crimes e não por outro crime comum ainda que não seja funcionário público Também por isso responde por infanticídio CP art 123 quem ajuda a mãe a praticá lo No particular incide o salvo quando elementares do crime que consta do art 30 Naturalmente que tais circunstâncias não se comunicarão se o coautor ou participe as desconhecer isto é agir sem dolo Finalmente as circunstâncias objetivas materiais ou reais em razão do seu ca ráter impessoal comunicamse como regra aos partícipes v g emprego de veneno meio cruel etc Mas não é de todo exato afirmar como Hungria que são sempre 67 Hungria Comentários v 1 cit p 436 68 Hungria idem p 436437 337 PAULO QJ E I ROZ comunicáveis porque quem se mete numa empresa criminosa aceitalhe de antemão os riscos69 Sim porque também aqui é preciso não perder de vista os princípios de legalida de e pessoalidade da pena que orientam essa discussão a fim de evitar que o sujeito responda por uma circunstância que não lhe diz respeito quer porque a desconhecia quer porque não aprovou o uso do meio mais gravoso Exemplo se A encomenda a B a morte de alguém de uma determinada forma digamos com o uso de revólver que lhe é dado não parece razoável que se B por sua conta e risco o fizer por meio de veneno etc sem que A tenha prévio conhecimento disso ou anuído para tanto tenha ele A de responder também por essa qualificadora que deve ser imputada ao seu autor exclusi vamente B A não ser assim haveria responsabilidade penal objetiva ou presumida relativa mente à incidência da circunstância qualificadora Notese que o homicídio simples é punido com pena de 6 a 20 anos de reclusão CP art 121 caput e o qualificado com pena de 12 a 30 anos de reclusão CP art 121 2º 69 Hungria ibidem cit p 436 338 A ilicitude ou antijuridicidade é a relação de contrariedade entre um fato e o ordenamento jurídico como um todo motivo pelo qual a conduta será considerada ilícita sempre que praticada sem o amparo de uma causa de justificação como ordinariamente ocorre alhures Assim quem atua amparado por uma excludente v g legítima defesa atua conforme o direito caso contrário agirá ilicitamente Em suma a ilicitudeantijuridicidade é a ausência de justificação legal para a realização de uma ação típica Conforme vimos do ponto de vista analítico o crime é um fato típico ilícito e culposo distinção que não preexiste à interpretação mas é dela resultada motivo pelo qual uma mesma conduta ora poderá ser considerada excludente de tipicidade ora de ilicitude ora de culpabilidade e viceversa A interpretação é o ser do direito e o ser do direito é um dever já o dissemos De acordo com a já referida teoria dos elementos negativos do tipo aqui adotada um fato típico é necessariamente um fato ilícito mas nem todo fato ilícito é típico v g simples violação de contrato A ilicitude portanto é um momento da própria realização do tipo que se compõe de duas partes a a parte positiva do tipo que é a realização de todos os seus elementos e b a parte negativa do tipo que é a ausência de causas de justificação Exatamente por isso a ausência de causas de justificação confirma o tipo tipo total enquanto sua presença nega o tipo por isso o nome teoria dos elementos negativos do tipo Os elementos que negam o tipo são as excludentes de ilicitude legítima defesa etc Pois bem diversamente dos conceitos de tipicidade e culpabilidade que são conceitos propriamente jurídicopenais a ilicitude é um conceito jurídico e por isso válido para todo o direito e não só para o direito penal Justamente por isso a sentença que reconhece a presença de uma causa de justificação faz em princípio coisa julgada nCivil valendo para todo o direito e não só para o direito penal O Código prevê art 23 quatro excludentes de ilicitude ou causas de justificação a legítima defesa o estado de necessidade o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito No Código Penal português também o consentimento do ofendido figura como causa de justificação art 31 PAULO ÜlJEI ROZ Apesar disso a doutrina discute conforme se verá mais tarde a correta posição sistemática de algumas excludentes 2 REQUISITO SUBJETIVO NAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO Discutese se para reconhecerse uma causa de justificação é necessário que o agente além da presença dos requisitos legais objetivos saiba que atua sob o seu am paro isto é que na legítima defesa por exemplo aja com animus defendendi Parecenos que para a configuração de uma causa de justificação não é suficiente a presença dos requisitos objetivos exigindose ainda que o autor tenha ciência de que está amparado por uma excludente de ilicitude Assim não pode se valer da le gítima defesa quem mata por vingança embora venha a se provar que se encontrava objetivamente em situação de legítima defesa se desconhecia completamente o estado justificante em que se encontrava É que ao atuar movido por vingança e não com a finalidade de autodefesa o au tor de acordo com sua representação pratica um crime não podendo assim valerse de uma causa de justificação visto que não pode ser considerada conforme o direito uma conduta que subjetivamente constitui um delito1 Além disso e como diz Roxin do ponto de vista da concepção do injusto hoje do minante uma conduta só pode ser conforme o direito se desaparecer tanto o desvalor da ação como o desvalor do resultado o que não ocorre em tal situação já que subsiste ao menos o desvalor da ação em toda a sua extensão 2 Em todas as causas de justificação portanto o sujeito que a invoca além de aten der aos requisitos de ordem objetiva deve também agir com o conhecimento da situa ção justificante Por isso é que subsistindo o desvalor da ação não pode haver legítima defesa sem vontade de defenderse estado de necessidade sem intenção de salvar bem em perigo nem estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito sem consciência de agir em tais condições3 Mas o assunto é dos mais controvertidos havendo autores como Juarez Tavares que consideram que o juízo de ilicitude à semelhança do juízo de tipicidade por fazer parte de um processo de imputação deve ser sempre aferido objetivamente bastando que o sujeito tenha tomado como possível a verificação de uma situação justificante4 1 Roxin Derecho penal cit p 597 2 Derecho penal cit p 597 3 Fragoso Lições cit p 1 85 4 Teoria do injusto penal cit p 308 e ss No mesmo sentido são em geral autores causalistas coe rentes com o conceito objetivo de antijuridicidade a exemplo de Hungria a legítima defesa por isso mesmo é uma causa objetiva de exclusão de injuridicidade só pode existir objetivamente isto é quando ocorrem efetivamente os seus pressupostos objetivos Nada têm estes a ver com opinião ou crença do agredido ou do agressor Devem ser reconhecidos de um ponto de vista estritamente objeti vo Assim se Tício ao voltar à noite para casa percebe que dois indivíduos procuram barrarlhe o passo em atitude hostil e os abate a tiros supondoos policiais que o vão prender por um crime 340 I J O CAUSAS DE J USTIFICAÇÃO OU EXCLUD ENTES DE I LICITUDE Convém notar porém que nada disso se aplica ao crime culposo visto que nestes o desvalor da ação já é analisado praticamente no tipo de injusto por meio do questio namento da lesão ao dever de cuidado razão pela qual carece de importância a apura ção do elemento subjetivo para o reconhecimento de uma causa de justificação 5 3 EXCESSO NAS CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO O Código art 23 parágrafo único dispõe que o agente responderá em quaisquer das causas de justificação por excesso doloso ou culposo Apesar de aplicável a todas as excludentes o excesso é mais frequente na legítima defesa Naturalmente que o excesso de que estamos tratando não é aquele que pela abso luta desnecessidade ou desproporção dos meios afasta a própria descriminante v g mjtar uma criança que subtrai frutas pois se assim for o caso será de ausência pura e simples da excludente por ser absolutamente desnecessária uma vez que a autodefe sa e a proteção da ordem jurídica encontram a sua limitação conjunta no princípio da proporcionalidade que atravessando a ordem jurídica como um todo faz com que se negue por exemplo a legítima defesa quando houver total desproporção entre os bens jurídicos em conflito6 O excesso em questão pressupõe logicamente portanto o reconhecimento da cau sa ide justificação Existe pois excesso sempre que o autor achandose inicialmente amparado por uma causa de justificação for além de seus limites legais razão pela qual para ser admitido é indispensável que a situação caracterize a presença de uma excludente cujo exercício em um segundo momento mostrase excessivü7 Exemplo A depois de imobilizar B que tentava agredilo com uma faca decide castigálo com outros golpes desnecessários causandolhe lesões hipótese em que responderá pelas lesões subsequentes à situação justificante se eventualmente der causa à morte res ponderá por homicídio doloso ou culposo conforme o caso E há excesso no estado de necessidade se depois de saciar a fome o autor de furto famélico resolve estocar mercadoria furtada para revendêla posteriormente Em conclusão existe excesso na legítima defesa quando o agente embora ini cialmente amparado por uma causa de justificação e mesmo depois de fazer cessar a agressão que sofrera prossegue lesionando seu agressor desnecessariamente que anteriormente praticado quando na verdade são ladrões que o querem despojar não se pode negar a legítima defesa Comentários cit p 289 5 Cf Juarez Tavares Teoria do crime culposo Rio Lumen Juris 2009 p 393394 6 Roxin Política criminal cit p 54 7 Cezar Bitencourt Manual cit p 252 Por isso não é exato dizer como faz Assis Toledo que ocorre excesso quando o agente ao se defender de uma injusta agressão emprega meio desproporcionada mente desnecessário exemplo para defenderse de um tapa mata a tiros o agressor Princípios básicos cit p 208 Com efeito sendo o recurso desnecessário como o é revidar um tapa com o tiro o agente não poderá invocar legítima defesa ante a evidente ausência de um seu requisito fundamen tal necessidade dos meios empregados 341 PAULO QJ E I ROZ agora passa à condição de vítima Enfim havendo excesso o agente que se defendia passa da legalidade à ilegalidade devendo responder penalmente a título de dolo ou culpa E assim é porque cessada a agressão injusta cessa também a autorização legal para a defesa que embora inicialmente legítima convertese em ilegítima Existindo excesso na legítima defesa poderá eventualmente ocorrer a chamada legítima defesa sucessiva inclusive o agressor convertese em vítima podendo reagir legitimamente v g autor de crime que depois de legalmente preso é submetido à tortura Reconhecido o excesso o agente responderá a título de dolo ou culpa conforme seja intencional ou imprudente a sua atuação excessiva Obviamente que a punição do excesso culposo só ocorrerá quando se tratar de fato punível a esse título e tal não for exculpável Justamente por isso é que o Código Penal português art 33 dispõe que o agente não é punível se o excesso resultar de perturbação medo ou susto não censurá veis Semelhantemente dispõe o nosso Código Penal Militar art 45 parágrafo único não é punível o excesso quando resulta de escusável surpresa ou perturbação de âni mo em face da situação 4 EFEITOS A ilicitude é a relação de contrariedade entre a conduta e o ordenamento jurídico como um todo e não só em relação ao direito penal Precisamente por isso a sentença penal que reconhece uma causa de justificação produz como regra os seguintes efei tos penais e não penais8 1 faz coisa julgada no cível impedindo eventual ação de reparação de dano pela vítima ou seus sucessores excluindo assim a responsabilidade extrapenal civil administrativa 2 impede a aplicação de qualquer outra consequên cia penal a exemplo das medidas de segurança 3 em razão do caráter acessório da participação os partícipes não respondem penalmente uma vez que o autor atua legi timamente9 8 Em sentido contrário Larrauri Justificación cit p 66 para quem nem sempre há essa exclusão da responsabilidade penal a persistência da responsabilidade civil ou administrativa não é em minha opinião um critério válido para afirmar ou negar a presença de uma causa de justificação Expressan do em outros termos o fato de que uma causa de justificação não elimina todo efeito jurídico ulterior seja uma responsabilidade civil ou sanção administrativa é porque a pena sanção ou responsabi lidade civil têm distinto fundamento Cita como exemplo a declaração judicial de que um guarda municipal tenha atuado no cumprimento do dever o que não impediria que um terceiro acionasse a Administração Pública para obter indenização com base na responsabilidade objetiva p 6668 Apesar disso afirma em síntese em minha opinião é correto afirmar que as causas de justificação marcam o âmbito dos comportamentos autorizados que estas têm como função delimitar o justo do injusto Roxin 1 987234 1994496 que representam o deverser sollen frente ao poder kõn nen próprio da culpabilidade Welzel 1976200 Hassemer 1 987 194 porém disso não deriva que eliminem toda consequência jurídica ou que devem ter um paralelo direito ou dever noutros setores do ordenamento jurídico p 7374 9 Luzón Pefía Curso cit p 577578 342 I IO I CAUSAS DE J USTIFICAÇÃO OU EXCLU DENTES DE I LICITUDE Mas a sentença penal que reconhece uma excludente de ilicitude não fará coisa julgada no cível admitindose por isso a ação de reparação de danos nos seguintes casos excepcionais 1 descriminante putativa erro por não constituir uma excludente legal de ilicitude mas de tipicidade ou de culpabilidade conforme a respectiva orienta ção 2 aberratio ictus por vitimar terceiro inocente 3 excesso visto que o agente vai além do necessário respondendo a título doloso ou culposo Quanto ao estado de necessidade o Código Civil arts 188 929 e 930 assegura dineito à indenização à pessoa lesada ou ao dono da coisa sempre que não for o culpado pela situação de perigo cabendo inclusive ação regressiva do autor do dano contra o terceiro responsável 5 ERRO SOBRE CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO Conforme vimos pode ocorrer de o agente se supor equivocadamente amparado por uma causa de justificação e assim violar bem jurídico alheio Dessa modalidade de 1 erro cuida o art 20 1 º do Código com o nome de descriminante puta tiva que dispõe é isento de pena quem por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que se existisse tornaria a ação legítima Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo Existe pois erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação sem pre que o autor supuser que age amparado por uma excludente de ilicitude sempre en fim que tiver razões para acreditar que atua numa situação justificante isto é que atua em legítima defesa estado de necessidade etc embora nada disso ocorra efetivamente Assim por exemplo se o autor fere um seu desafeto por supor fundadamente que este iria matálo ficará isento de pena exceto se tiver agido com imprudência e o crime for punível a esse título caso em que responderá por crime culposo Naturalmente que o autor só poderá se valer da descriminante putativa quando além do próprio erro estiverem presentes todos os requisitos legais relativos à exclu dente legal de que se trata No caso de legítima defesa putativa por exemplo tal só é ca9ível se houver repulsa necessária e moderada a uma agressão injusta atual ou imi nente a direito próprio ou alheio Exatamente por isso o autor de roubo que mata a sua 1 vítima por supor que esta estava armada e que reagiria ao assalto não pode invocála pois a sua agressão é criminosa injusta portanto Enfim a distinção entre por exem plo uma legítima defesa real e uma putativa reside apenas no caráter imaginário dessa última O erro de que estamos tratando isto é o erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação pode ser inevitável e evitável se inevitável o autor fica isento de pena se evitável o agente responde por crime culposo se se tratar de infração punida a esse título Apesar de a doutrina divergir quanto à natureza jurídica da descriminante putati va parece claro que o Código a tratou como uma modalidade de erro de tipo conforme vimos 343 PAULO QJElROZ 6 CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO EM ESPÉCIE 61 Legítima defesa Se o fim do direito penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos ante os ataques mais intoleráveis nada mais razoável que reconhecerse àquele que sofra uma lesão jurídica ou se ache sob ameaça de sofrêla o direito de autodefenderse sempre e quando a proteção jurídica que o Estado se predispõe a prestar não puder ser pronta mente realizada Daí se reconhecer a todo indivíduo o direito à legítima defesa diante de ataques ilícitos a bem jurídico seu ou de outrem O indivíduo assim ao se valer da legítima defesa não apenas exerce um direito seu como também concorre para a realização daquela tarefa primária do direito penal que é a proteção de bens jurídicos por meio da autodefesa necessária à preservação de direito seu ou de terceiro injustamente violado ou sob séria e grave ameaça de vio lação Portanto além da proteção individual a legítima defesa tem outro fundamento a afirmação do próprio direito Daí se dizer que o legislador ao permitir a legítima defesa para proteção individual persegue simultaneamente um fim de prevenção geral pois considera desejável que o ordenamento jurídico seja afirmado em face de agres sões a bens jurídicos individuais10 611 Requisitos A legítima defesa CP art 25 exige o concurso simultâneo dos seguintes requi sitos legais a agressão injusta b atualidade ou iminência da agressão c defesa de direito próprio ou de terceiro d necessidade e moderação dos meios empregados A Agressão injusta Atual ou iminente Em primeiro lugar se é de defesa que se trata tal há de pressupor um ataque proveniente de terceiro logo não pode haver legítima defesa senão em face de uma agressão necessariamente agressão humana isto é ato de terceiro ação ou omissão que lese ou ameace de lesão bem jurídico próprio ou alheio Tratandose de ataque de animais a hipótese será a de estado de necessidade sal vo se se tratar de um ataque dirigido por uma pessoa caso em que o animal v g um cão constituirá apenas o instrumento de realização de uma agressão humana Não é possível pela mesma razão legítima defesa para repelir ato de pessoa jurídica ou do Estado embora seja plenamente válida contra aquele que a represente e atue antijuri dicamente Assim o autor de crime que vier a ser preso legalmente poderá empregar eventualmente violência contra o policial que lhe impuser ilegal constrangimento v g 1 O Roxin Derecho penal cit p 608 No mesmo sentido Hungria a defesa privada não é contrária ao direito pois coincide com o próprio fim do direito que é a incolumidade dos bens ou interesses que coloca sob tutela Realiza vontade primária da lei colabora na manutenção da ordem jurídica E assim não pode deixar de ser autorizada ou facultada ou declarada pela própria lei objetivamente lícita Comentários cit p 286 344 l l ü l CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO OU EXCLU DENTES DE I LICITUDE torttura De modo similar não comportam legítima defesa atos puramente causais isto é atos que não sejam propriamente ações humanas como ataque convulsivo epiléptico ou durante o sono etc os quais podem ensejar estado de necessidade11 Também as ações culposas autorizam a invocação da legítima defesa como a ameaça com emprego de arma inclusive exercida contra motorista que dirige em alta velocidade imprudentemente pondo em risco a vida dos passageiros12 Por igual a omissão própria ou imprópria pode constituir agressão passível de legítima defesa v 1g delegado que se recuse a cumprir alvará de soltura médico que deixe de conce der alta ao paciente 1 No caso de omissão imprópria a legítima defesa diante de uma agressão omissiva pode ser realizada ou obrigando o garante a efetuar a atividade que evite o resultado v g obrigar a mãe mediante ameaça a alimentar o filho que pretendia matar por inani ção ou sendo o próprio terceiro defensor que o faça13 Quanto à omissão própria em bora parte da doutrina entenda que não pode ensejar a legítima defesa14 nada impede que tal como na situação anterior se obrigue por exemplo alguém a prestar socorro quando for possível fazêlo sem risco pessoal CP art 135 bem como se constranja o médico a notificar doença CP art 268 A agressão para poder ensejar a defesa legítima deverá ser também injusta isto é pão autorizada pelo direito ilícita não precisando configurar necessariamente in fração penal crime ou contravenção podendo ser exercitada por exemplo para pro teÇão da posse nos termos do Código Civil pouco importando se tal fato constitui ou não crime Sendo justa lícita a agressão evidentemente que não será admitida a de fesa como v g a reação contra prisão legal em flagrante delito ou no cumprimento de mandado judicial Por essa razão não pode haver legítima defesa contra legítima defesa contra estado de necessidade estrito cumprimento do dever legal exercício regular de direito ou consentimento do ofendido exceto se um dos contendores estiver em situação putativa pois obrigatoriamente alguém terá de atuar ilicitamente A agressão embora injusta não precisa ser culpável 15 podendo partir tanto de imfutável quanto de inimputável bem como de inculpáveis de um modo geral mesmo porque não pode a ordem jurídica impor a ninguém um sacrifício de direito seu diante de ataque de pessoa inculpável por qualquer motivo v g agressor que age sob coação moral 1 1 Nesse sentido Roxin Derecho penal cit p 6 1 2 12 Em sentido contrário ZaffaroniPierangeli Manual cit 13 Roxin Derecho penal cit p 612 14 Assim Roxin que considera não ser possível por exemplo que o motorista que se recuse a levar ao hospital vítima de um acidente de trânsito não possa ser coagido a tanto uma vez que se a omis são própria não é punível como lesão ao bem jurídico homicídio lesão corporal tampouco pode fundamentar a agressão ao bem jurídico Derecho penal cit p 614 No sentido do texto Jescheck Tratado cit 1 5 De modo diverso Jakobs Derecho penal cit 345 PAULO QlEROZ Mas nesse caso tendose em conta a especial vulnerabilidade do agressor sobre tudo quando se tratar de crianças alienados mentais e ébrios sem sentido é de convir com Roxin16 que o recurso à legítima defesa somente deve ocorrer em último caso porque do contrário não haverá necessidade da reação a justificála motivo pelo qual a o agredido tem de se esquivar sempre que for possível fazêlo sem risco pessoal b devese buscar auxílio alheio se possível assim repelir menos duramente a agressão17 Não afasta a legítima defesa a eventual provocação do agredido v g se havia an tes injuriado o agressor isto é não elimina a injustiça da agressão exceto se tal cons tituir um expediente para simular uma situação de legítima defesa que jamais existiu Também não pode invocar a excludente o agente que aceita desafio ou duelo motivo pelo qual o vencedor responderá por crime Quanto ao chamado agente infiltrado cuja atuação requer autorização judicial que estabelecerá precisamente os poderes e limites de sua atuação a Lei nº 128502013 prevê que não é punível no âmbito da infiltração a prática de crime no curso da inves tigação quando inexigível conduta diversa art 13 parágrafo único Significa então que se praticar crime o agente infiltrado responderá penalmente exceto se o fizer nos limites da autorização judicial legítima E quando atuar nos limites legais não agirá culpavelmente inexigibilidade de conduta diversa Naturalmente que nada impedirá que se possa eventualmente invocar outras ex cludentes de criminalidade a exemplo da legítima defesa desde que presentes os seus requisitos Convém notar por fim os limites da infiltração é assunto dos mais controvertidos seja porque a lei não define expressamente quais são esses limites seja porque pare cem de fato indefiníveis seja porque ao se permitir a prática de crimes pelo agente infiltrado o Estado se coloca no mesmo nível dos criminosos B Atualidade ou iminência da agressão Não é qualquer agressão ilícita que pode ensejar a legítima defesa devendo ser atual isto é que está se consumando ou iminente que está por se consumar Tratan dose por conseguinte de agressão passada não se configurará a defesa legítima si tuação em que haverá vingança pura e simples não amparada pelo direito Por igual se se cuidar de agressão futura logo nem atual nem iminente incerta enfim não será admitida a excludente pois como dizia Magalhães Noronha a legítima defesa não se 1 6 Derecho penal cit p 638 1 7 No mesmo sentido Jescheck frente a crianças jovens ébrios enfermos mentais pessoas sujeitas a etTo e pessoas que atuam imprudentemente ou em estado de necessidade 35 não se precisa de nenhuma afirmação do ordenamento jurídico pois sua vigência ou não é questionada pela agressão ou só o é de modo acidental Por isso em tais casos a razão do direito de legítima defesa consiste unicamente na faculdade de autodefesa Isso significa que o agredido deve limitarse à proteção dos bens jurídicos e só se acha autorizado para lesionar o agressor quando não possa defenderse sem abandonar o interesse protegido Tratado cit p 3 1 O 346 I IO I CAUSAS DE JUSTI FICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE I LICITUDE funda no temor de ser agredido nem no revide de quem já o foi18 A reação é portanto em qualquer caso preventiva preventiva no começo de ofensa ou preventiva de maior ofensa não sendo cabível contra agressão que já cessou ou contra simples ameaça de sacompanhada de perigo concreto e imediato19 É que não sendo a agressão nem atual nem iminente não existirá propriamente uma reação tampouco necessidade de defesa Tratandose de agressão criminosa a atualidade ou iminência pode darse ainda na fase de exaurimento do crime e não apenas durante a fase de execução tentativa e consumação e excepcionalmente até na preparação imediatamente anterior ao início da execução Assim em qualquer fase da extorsão mediante sequestro já consumada com a exigência de vantagem como condição ou preço do resgate CP art 159 poderá a vítima defenderse legitimamente inclusive depois de iniciada a fuga do cativeiro C Defesa de direito próprio ou de terceiro A legítima defesa poderá amparar tanto direito próprio como de terceiro E qual quer direito vida integridade física honra patrimônio etc é passível de proteção por meio da legítima defesa Sim porque se a finalidade da legítima defesa é assegurar a integridade de um bem jurídico ela deve ser admitida para a proteção de qualquer interesse digno de tutela penal A expressão direito assim é empregada em sentido amplo de modo a compreen der qualquer interesse passível de proteção jurídica motivo pelo qual mesmo a vida em formação pode e deve ser protegida legitimamente por isso que o nascituro é tutelável não só contra agressão de terceiro como também contra agressão da própria gestante Tafubém maustratos e tortura contra animais são passíveis de legítima intervenção Mas não o é em princípio a mera violação de contrato pois do contrário qualquer credor poderia fazer prevalecer seu direito violentamente o qual deverá recorrer aos meios jurídicos postos à sua disposição sob pena de incorrer inclusive no crime de exercício arbitrário ou abuso de poder CP art 350 A honra como qualquer outro bem jurídico tem proteção penal podendo haver legítima defesa em seu favor O que sempre se poderá discutir é a necessidademode ração da reação Assim por exemplo não pode dizerse em legítima defesa quem a pretexto de defender a sua honra de marido traído pretenda matar sua companheira como ocorria em passado recente Com efeito tais comportamentos são claramente criminosos e plenamente puníveis podendo invocarse no máximo o privilégio do art 121 1º do CP com redução da pena de 16 a 13 crime praticado por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima Também é perfeitamente admissível a legítima defesa de bens jurídicos do Estado ou de pessoa jurídica quando se tratar de bens jurídicos individuais v g a propriedade 1 8 1 Direito penal cit 19 Hungria Comentários cit p 291 347 PAULO QlJ E I ROZ de bens públicos contra furtos e roubos bem assim para defesa de bens jurídicos da comunidade sempre que uma pessoa individual resultar diretamente afetada pela agressão 20 Tratandose porém da preservação de direito de terceiro o exercício da legítima defesa há de ser relativizado de modo a ser admitido só quando o titular do direito ofendido tiver interesse real ou presumido na proteção jurídica que se lhe quer em prestar pois se não há concretamente um bem jurídico individual necessitado de pro teção não se pode pretender defendêlo legitimamente21 Assim não pode em princí pio o caseiro arguir legítima defesa se embora terminantemente orientado no sentido de não reagir a pequenos furtos ou se limitar a dar tiros de advertência ou chamar a polícia venha a atirar contra o ladrão mortalmente É que em tal caso não há a juízo do titular do direito necessidade de uma tal defesa Pela mesma razão se houver con sentimento do titular do direito ofendido não se justifica a defesa em seu favor v g não pode invocála quem a pretexto de proteger uma mulher vítima de estupro que em verdade consentira o ato claramente agride o suposto estuprador Cuidandose de defesa de bem jurídico indisponível v g a vida é irrelevante a vontade do agredido não importando eventual consentimento D Uso moderado dos meios necessários É preciso ainda que haja proporção entre a ação a agressão injusta e a reação defesa sob pena de a defesa carecer de legitimidade em virtude do arbítrio de que se reveste Nem poderia ser diferente já que conforme vimos ao realizar a legítima defesa o agente realiza a própria finalidade de prevenção de condutas lesivas de bens jurídicos a exigir necessidade e moderação proporção enfim Os meios empregados para a repulsa da agressão injusta devem ser necessários São necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão 22 Sãono quando segundo as circunstâncias concretas do caso e não segundo uma pura abstração estritamente adequados para a defesa que se pretenda exercer conforme a natureza e intensidade do ataque Assim não cabe reconhecêla na ação de quem para proteger o seu pomar atira contra uma criança matandoa porque os meios emprega dos são evidentemente desproporcionais em face da pouca significação do bem que se quis proteger o pomar e da dimensão da lesão produzida morte A necessidade da defesa a ser aferida concreta e contextualizadamente deve cons tituir por conseguinte o meio mais brando possível entre os disponíveis quem pode rechaçar o agressor com seus punhos não pode recorrer sem mais a uma arma de fogo quem pode intimidar seu agressor com simples ameaças ou mediante um disparo 20 Jescheck Tratado cit p 305 2 1 Nesse sentido Roxin o direito à defesa de u m terceiro s ó é aplicável na medida em que o agredido quiser ser defendido fato que deriva do princípio da proteção individual se não há um bem jurídico individual necessitado de proteção o cidadão não tem direito de defesa Derecho penal cit p 661 22 Assis Toledo Princípios básicos cit p 201 348 j IO j CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE I LI CITUDE de advertência não pode invocála por evidente desnecessidade23 Aliás a agressão à vida somente pode ser tolerada em face de ofensas especialmente graves porque o Es tado não pode condescender com penas de morte formais ou informais Naturalmente que a apuração da necessidade e da moderação como ressalta Hun gria deve ser feita sempre de caso em caso segundo um critério de relatividade ou cálculo aproximativo Não se trata pois de pesagem em balança de farmácia mas de aferição ajustada às condições de fato do caso vertente Não se pode exigir uma per feita equação entre o quantum da reação e a intensidade da agressão desde que o meio necessário empregado tinha de acarretar por si mesmo inevitavelmente o rompimen to de tal equação24 Os ofendículos isto é dispositivos predispostos para a defesa da propriedade v g cerca de arame ou eletrificada mecanismos de disparo automático cães ferozes etc podem também ensejar a legítima defesa porque apesar de alguns autores con siderem que se trata de exercício regular de direito 25 força é convir que quem predis põe o ojfendiculum não se encontra em situação diversa por exemplo daquele que se arma de um revólver prevendo a eventualidade de um assalto não importando que a instalação do aparelho insidioso preceda ao momento da agressão desde que só en tre em funcionamento na ocasião em que o perigo se fizer atual 26 Mas os riscos que tais instrumentos implicam correm a cargo de quem se defende de tal modo27 motivo pelo qual o autor poderá responder penalmente a título de culpa ou dolo inclusive especialmente quando atingir pessoas inocentes Ademais os dispositivos perigosos para a vida quase nunca são necessários não são legitimáveis disparos automáticos ou minas explosivas quando bastem dispositivos de alarme descargas elétricas ligei ras etc28 Finalmente cumpre saber se ocorrendo lesão a terceiro estranho ao conflito ha vido entre os contendores aberratio ictus se o agredido poderá invocar a proteção legal Roxin tem que se o prevalecimento do direito junto à proteção individual é carac terística de toda legítima defesa tal só tem sentido em face do agressor e não em face de terceiro circunstância que não excluiria contudo eventual estado de necessidade exculpante motivo pelo qual quem por exemplo dispara contra autor de roubo admi tindo a possibilidade de atingir um transeunte deverá responder em princípio pelas lesões que lhe causar29 a título de dolo ou culpa 23 Roxin Derecho penal cit p 629 24 Comentários cit p 302 25 Assim Régis Prado Curso cit p 33 1 26 Hungria Comentários cit p 294295 27 Jescheck Tratado cit p 307 28 Roxin Derecho penal cit p 634635 29 Derecho penal cit p 664 349 PAULO OJjEIROZ Mas semelhante posicionamento não é sustentável ao menos em face da legislação penal brasileira porque tal importará em erro de execução aberratio ictus razão pela qual na forma do art 73 do Código o agredido responderá como se tivesse atingido o agressor Valerseá da legítima defesa portanto30 Apesar disso responderá civilmente pelos danos causados ao terceiro inocente conforme vimos inicialmente 62 Estado de necessidade 62J Significado e posição sistemática O estado de necessidade constitui no direito penal brasileiro autêntica causa de justificação CP arts 23 1 e 24 de modo que entre nós não cabe distinguir em prin cípio como faz a doutrina estrangeira entre estado de necessidade justificante e es tado de necessidade exculpante teoria diferenciadora uma vez que o Código Penal adotando a teoria unitária31 conferiulhe tratamento único o estado de necessidade exclui sempre a ilicitude do comportamento estado de necessidade justificante Em consequência caso não seja reconhecido o estado de necessidade a hipótese poderá no máximo dar lugar à exclusão da culpabilidade em razão da inexigibilidade de conduta diversa32 estado de necessidade exculpante segundo a doutrina estrangeira Exceção à teoria unitária é o Código Penal Militar que prevê o estado de necessi dade nas duas formas como excludente de ilicitude e de culpabilidade respectivamen te arts 39 e 4033 30 No mesmo sentido Assis Toledo em tais hipóteses não se desfigura a causa de justificação em exame pois a teor do art 73 Tício responderá pelo fato como se tivesse atingido o agressor Caio ou seja a pessoa que pretendia atingir P1incípios básicos cit p 198 3 1 De modo diverso Fragoso A legislação vigente adotando a fórmula unitária para o estado de neces sidade e aludindo apenas ao sacrificio de um bem que nas circunstâncias não era razoável exigirse compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor é o caso do náufrago que para re ter a única tábua de salvamento sacrifica o outro Em tais casos subsiste a ilicitude e o que realmente ocorre é o estado de necessidade excludente da culpa inexigibilidade de outra conduta Lições cit p 1 89 32 Nesse sentido Assis Toledo para quem não é possível invocar estado de necessidade sacrificando bem de maior valor para proteção de bem de menor valor tendose aí uma ação típica e antijurídica No entanto tal não impede que eventualmente seja reconhecida a falta de culpabilidade de modo que admitimos pois com as ressalvas expostas o estado de necessidade exculpante como causa extralegal de exclusão da culpabilidade por ser isso resultado de simples desdobramento do princípio da culpabilidade Princípios básicos cit p 1 8 1 33 Com efeito dispõe o art 39 do CPM Não é igualmente culpado quem para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição contra perigo certo e atual que não provocou nem podia de outro modo evitar sacrifica direito alheio ainda quando su perior ao direito protegido desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa Art 42 Não há crime quando o agente pratica o fato 1 em estado de necessidade II em legítima defesa III em estrito cumprimento do dever legal IV em exercício regular de direito Art 43 Considerase em estado de necessidade quem pratica o fato para preservar direito seu ou alheio de perigo certo e atual que não provocou nem podia de outro modo evitar desde que o mal causado por sua natureza 350 No estado de necessidade diversamente da legítima defesa dáse uma colisão de interesses entre titulares de bens jurídicos reconhecendose o direito de qualquer deles sacrificar interesse alheio de forma a preservar interesse próprio quando tal sacrifício seja inevitável razão pela qual é perfeitamente possível estado de necessidade contra estado de necessidade real ou putativo Assim por exemplo o sacrifício de cão para preservar a incolumidade física a violação de domicílio e dano à propriedade para socorrer vítimas de inundação ou incêndio a subtração de alimentos para evitar a morte por inanição furto famélico o aborto para salvar a vida da gestante aborto necessário CP art 128 I etc Tais perigos tanto podem resultar de ação da natureza como de ação humana Mas se houver uma agressão injusta e atual a direito próprio ou alheio o caso será de legítima defesa Do estado de necessidade cuida o art 24 caput do Código Penal que dispõe Considerase em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual que não provocou por sua vontade nem podia de outro modo evitar direito próprio ou alheio cujo sacrifício nas circunstâncias não era razoável exigirse 1 Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo 2 Embora seja razoável exigirse o sacrifício do direito ameaçado a pena poderá ser reduzida de um a dois terços O estado de necessidade exige portanto o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a a existência de perigo atual e inevitável b perigo não provocado pelo agente c inexistência de dever legal de enfrentar o perigo d inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado e ameaça a direito próprio ou alheio A situação de perigo de que trata o dispositivo pode resultar tanto de ação da natureza incêndio inundação etc como de condutas humanas incêndio provocado acidentes etc Mas diversamente da legítima defesa que pressupõe um ataque ilegal de outrem agressão injusta os agentes quando em estado de necessidade estão igualmente amparados pela excludente de modo que há em geral colisão de interesses entre titulares de bens jurídicos Justamente por isso é possível estado de necessidade real diversamente do que se passa com a legítima defesa É que por se tratar de perigo e não de dano a expressão injusta agressão da legítima defesa pressupõe um dano atual ou iminente seguese que somente diante de um perigo atual probabilidade de dano e não suposto incerto será admitida a adoção da excludente Por isso afirma Frederico Marques que não se inclui aqui o perigo iminente porque a atualidade se refere ao perigo e não ao dano Daí se dizer que embora o Código preveja para o estado de necessidade o perigo atual aceita a iminência do dano Devese ter presente contudo que o perigo é também considerado atual mesmo quando não seja iminente a produção do dano protelar a intervenção implique aumento considerável e não recomendável dos riscos de dano como pode ocorrer com a interrupção da gravidez por médico Haverá ainda atualidade do perigo sempre que se tratar de perigo permanente isto é perigo que se renove no tempo podendo produzir dano a qualquer momento a exemplo de imóveis em ruína etc Naturalmente que nem o perigo que já cessou passado nem o futuro admitem a invocação da excludente Além disso o perigo para autorizar o estado de necessidade deverá ser inevitável ou seja é necessário que o agente não disponha de outros meios de evitálo motivo pelo qual só é legítima a ação menos lesiva entre as concretamente disponíveis A inexigibilidade significa que o recurso utilizado pelo agente para afrontar o perigo seja insubsistível que não podia de outro modo evitar e idôneo idoneidade que deve ser apurada in abstracto posto importando que no caso concreto não tenha sido suficiente para salvar o bem jurídico ameaçado Do contrário o estado de necessidade não se configurará visto que o sacrifício do bem jurídico não é realmente necessário Daí dizer Hungria que o estado de necessidade é eminentemente subsidiário não existe se o agente podia conjurar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem l IO CAUSAS DE I USTI FICAÇÃO OU EXCLUDENTES D E 1 LICITUDE a doutrina majoritária40 tem que somente a provocação dolosa afasta a dirimente de modo que ainda quando o perigo resulte de provocação culposa admitirseá o estado de necessidade como no exemplo dado se o incêndio resultasse não de uma ação premeditada mas imprudente E de fato não seria razoável que o agente que por imprudência negligência ou imperícia causasse um situação de perigo fosse impedido de invocar a dirimente ra zão pela qual a ação voluntária de que trata o dispositivo deve ser entendida como ação dolosa seja dolo direto seja dolo eventual C Inexistência de dever legal de enfrentar o perigo Não pode alegar estado de necessidade quem tem o dever legal de agir e evitar o resultado garante O dever que impede a invocação do estado de necessidade há de ser legal decorrente de lei decreto etc de sorte que o simples dever social religioso ou cbntratual não obsta o reconhecimento da excludente Não podem porém invo cálo o policial por temor do agente de crime em perseguição nem o bombeiro por receio de sofrer queimaduras etc haja vista que têm o dever legal de enfrentar o peri go Naturalmente que tais deveres de proteção estão limitados aos perigos próprios de cada profissão como o policial em relação à perseguição de autor de crime o médico em relação ao atendimento do paciente etc Mas o dever de enfrentar o perigo não tem caráter absoluto motivo pelo qual por não se dirigir a heróis ou santos não é exigível do agente atitude que importe no sacrifício da própria vida por exemplo Em consequência também àquele que tenha o dever legal de afrontar perigo é dado valerse do estado de necessidade não cabendo exigirlhe ações extraordinariamente danosas à vida à saúde ou à integridade física41 D Inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado O estado de necessidade para constituir autêntica causa de justificação deve orientarse pelo princípio da proporcionalidade de modo que não se configurará quan do houver manifesta desproporção entre o perigo que se quer evitar e o dano que se 40 Em sentido contrário Assis Toledo Daí porém não se conclua como fazem alguns autores que só o ato doloso não o culposo afasta o estado de necessidade Esses autores confundem provo cação do perigo com provocação do resultado duas situações bastante diversas Quem provoca conscientemente um perigo engenheiro que na explosão de minas faz explodir dinamites devi damente autorizado para tanto age por sua vontade e em princípio atua licitamente mas pode causar por não ter aplicado a diligência ou o cuidado devidos resultados danosos ferimentos ou mortes e culposos Princípios básicos cit p 1 85 Também Magalhães Noronha Direito penal cit Na Alemanha segundo Roxin atualmente é unânime a opinião no sentido de que a provocação culposa da situação de necessidade não exclui a possibilidade de invocar o estado de necessidade Derecho penal cit p 697 4 1 No mesmo sentido Cezar Bitencourt este dever não tem caráter absoluto a ponto de negarse qualquer possibilidade de ser invocado o estado de necessidade A exigência de sacrificio no exercício dessas atividades perigosas não pode atingir o nível de heroísmo O princípio do razoável também vige aqui embora em sentido diverso para se salvar um bem patrimonial é inadmissível que se exija o sacrificio de uma vida Manual cit p 261 353 PAULO Qj E I ROZ quer justificar Por isso não é lícito sacrificar um bem jurídico de valor superior para proteção de bem jurídico de menor valor Não pode invocála por isso quem para proteger o patrimônio pretenda causar lesões graves ou a morte de alguém porque o sacrifício era razoável exigirse Mas a análise da razoabilidade do sacrifício do inte resse deve ser sempre feita concretamente conforme as circunstâncias do caso Finalmente embora seja razoável exigirse o sacrifício do direito ameaçado a pena poderá ser reduzida de um a dois terços CP art 24 2º E Ameaça a direito próprio ou alheio À semelhança da legítima defesa o estado de necessidade poderá darse tanto para preservação de direito próprio como alheio vida integridade física honra etc Por direito deve ser entendido qualquer interesse digno de proteção jurídica motivo pelo qual se um dos interesses em conflito for ilícito não cabe a proteção legal Tratando se porém de intervenção para proteção de direito disponível de terceiro é indispen sável que essa intervenção esteja autorizada pelo titular do direito Também aqui se não é concebível a ação necessitada por parte da pessoa jurídica de direito público ou privado é perfeitamente admissível que uma pessoa física intervenha para resguardar de lesão seus direitos em perigo42 63 Estrito cumprimento do dever LEGAL Evidentemente que também crime algum haverá sequer será típica a conduta conforme a perspectiva aqui adotada quando o agente praticar o fato no estrito cum primento do dever legal CP art 23 III lª parte Ao contrário haverá ilícito adminis trativo ou mesmo crime contra a Administração Pública v g prevaricação CP art 319 se o funcionário público deixar de praticar o que a lei lhe impõe Daí entendermos que independentemente da adoção da teoria dos elementos negativos do tipo a atipi cidade da conduta praticada no estrito cumprimento decorre de uma razão tautológica quem cumpre um dever legal estritamente não pode ao mesmo tempo realizar tipo penal algum Assim por exemplo o policial que prende em flagrante delito ou o oficial de justiça que cumpre mandado judicial de busca e apreensão não responde por crime ainda quando faça emprego de violência para tanto moderadamente Como é de dever estrito que se trata seguese que só estará legitimada a ação realizada rigorosamente dentro do que a lei autoriza sob pena de descaracterizálo v g prisão fora dos casos legais O dever legal a ser cumprido deve provir de norma de direito positivo lei decreto etc não valendo dever simplesmente social moral reli gioso nem meramente contratual Quanto a policiais que ferem suspeitos de crime para proteção da própria vida o caso é em princípio de legítima defesa 43 se atendidos os requisitos legais e não de es 42 Hungria Comentários cit p 276 43 De modo diverso entende Jakobs que o policial quando do exercício do seu dever funcional não pode invocar legítima defesa podendo fazêlo apenas na condição de particular Derecho penal cit 354 trito cumprimento do dever legal seja porque a pena de morte está constitucionalmente vedada seja porque não existe um dever legal de ferir ou matar seja porque é dever do Estado proteger a vida de todos criminosos ou não E mais no caso de legitima defesa por policial maior deve ser o rigor para reconhecêla por ser em tese um período no uso de arma competirlhe o dever de preservar a vida e proteger a segurança dos cidadãos Também por isso não se deve tolerar sem mais ações arbitrárias da polícia que eventualmente a pretexto de combater o crime promova a execução sumária de sujeitos criminosos Embora o estrito cumprimento do dever legal pressuponha ordinariamente que seu executor seja agente do poder público também o particular poderá invocálo sem que se encontre no exercício de função pública jurado perito etc É certo ainda que o estrito cumprimento do dever legal não é incompatível com outras causas de justificação Assim por exemplo o policial que fere autor de crime preso em flagrante atua a um tempo no estrito cumprimento do dever legal e em legitima defesa se houver reação necessária e moderada a uma injusta agressão do agente 64 Exercício regular de direito Exclui a ilicitude o exercício regular de direito CP art 23 III 2ª parte porque em tal caso o autor simplesmente faz valer um poder ou uma faculdade legal Assim a prisão em flagrante delito feita por particular o penhor forçado o castigo moderado aplicado aos filhos lesões esportivas etc Também aqui só é legítima a ação que se realizar regularmente é dizer dentro dos limites tolerados pelo direito Por isso lesões esportivas por exemplo só são admissíveis dentro das regras de cada esporte pois fora delas haverá crime Assim ainda que o agente v g lutador de boxe lute com a intenção de ferir ou matar seu oponente se o fizer dentro das regras do esporte específico não poderá responder por crime por não ser o fato objetivamente imputável já que atuou conforme as normas de um esporte violento cuja prática pode produzir lesões ou morte A imputação objetiva do resultado pressupõe portanto a não observância das regras do respectivo esporte v g no caso do boxe pontapé ou golpear o oponente já fora de combate PAULO ÜlJEIROZ Haverá crime igualmente se se tratar de lesões produzidas durante lutas torneios etc clandestinasilegais 65 Consentimento válido do ofendido Nos tipos que protegem bens jurídicos individuais crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa etc e cuja configuração exige expressa ou taticamente o dissentimento do titular do direito o consentimento do ofendido é pe nalmente relevante Não o é porém nos delitos que violam bens jurídicos coletivos ou indisponíveis Quando juridicamente relevante a validade do consentimento do ofendido pres supõe o atendimento dos seguintes requisitos a consentimento por agente capaz b disponibilidade do bem jurídico objeto do consentimento c ausência de vício de con sentimento Como regra não podem consentir validamente os menores de dezoito anos nem incapazes de um modo geral portador de doença mental etc motivo pelo qual se o fizerem o consentimento será inválido Mas crimes há como o estupro de vulnerável CP art 2 17A em que o consentimento poderá ser dado por pessoa maior de quatorze anos visto que a condição legal de vulnerável cessa com essa idade Além disso é preciso que o agente ao consentir esteja em condições físicas e psíquicas de fazêlo não valendo o consentimento dado sob o efeito de droga lícita ou ilícita por exemplo Mas não é suficiente que o consentimento proceda de agente capaz É necessário ainda que o bem jurídico objeto do consentimento seja disponível a exemplo do patri mônio Exatamente por isso há crime de homicídio na hipótese de o paciente autorizar o desligamento dos aparelhos que o mantêm vivo antecipandolhe a morte visto que o consentimento recai sobre um bem jurídico indisponível a vida Não existem porém bens jurídicos absolutamente indisponíveis porque absoluto nenhum direito é Em realidade o que há são graus de disponibilidade porque mesmo a integridade física a liberdade e a própria vida são passíveis de relativização a de pender do contexto e dos interesses em causa Assim em princípio é perfeitamente válido o consentimento quanto a lesões leves entre casais sadomasoquistas a esterilização laqueadura a extração de órgãos para transplante a mudança de sexo etc motivo pelo qual seus autores não respondem pe nalmente por tais lesões ou intervenções46 exceto se o consentimento partir de incapaz ou se houver vício do consentimento coação erro etc Quanto à vida cabe lembrar que além de já se admitir a sua supressão nalguns casos excepcionais v g aborto necessário e aborto no caso de gravidez resultante de estupro CP art 128 1 e II alguns países já admitem ou pretendem admitir a eutaná sia e similares 46 Nesse sentido Roxin Derecho penal cit p 53053 1 356 l lO I CAUSAS DE J USTIFICAÇÃO OU EXCLUDENTES DE I LICITUDE Finalmente é necessário que não tenha havido vício algum de consentimento como coação fraude erro etc Discutese a posição sistemática do consentimento válido do ofendido se exclui a tipicidade ou a ilicitude De acordo com a doutrina tradicional o consentimento válido do ofendido ora funciona como excludente de tipicidade ora como excludente supralegal de ilicitu de Excluiria a tipicidade sempre que o dissenso da vítima fizer parte do tipo penal expressa ou tacitamente Assim por exemplo a violação de domicílio art 1 50 exige para a realização do tipo que o fato se dê contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito o crime do art 164 supõe que a introdução de animais ocorra sem o con sentimento de quem de direito e o estupro art 213 pressupõe que haja resistência da vítima pois do contrário não haverá constrangimento ilegal Em todos esses casos para a configuração do crime é indispensável que exista dissentimento da vítima mo tivo pelo qual o fato será jurídicopenalmente irrelevante quando houver consentimen to válido do titular do direito Nos demais casos em que o dissentimento não fizer parte do tipo a hipótese cons tituiria causa excludente de ilicitude desde que emanasse de pessoa capaz de dispor Assim por exemplo o consentimento quanto ao crime de dano art 163 e à lesão cor poral art 1 29 Cremos porém como Roxin que o consentimento do ofendido sempre exclui a própria tipicidade47 e isso independentemente da adoção da teoria dos elementos nega tivos do tipo Com efeito se os bens jurídicos servem para o livre desenvolvimento do indivíduo não pode existir lesão quando a ação se funda em disposição válida do titular do bem jurídico que não deprecia seu desenvolvimento mas ao contrário constitui sua expres sào48 Assim se o proprietário em virtude de decisão livre consente que se destrua coisa sua não existe lesão ao bem jurídico e sim cooperação para seu exercício livremente tolerado o mesmo ocorrendo quanto ao cirurgião plástico que não viola a liberdade do seu paciente no trato do seu corpo mas o ajuda na realização de sua imagem corporal49 Bem jurídico e poder de disposição sobre o bem jurídico formam portanto como assinala Rudolphi uma unidade porque objeto de disposição e faculdade de disposi ção constituem em sua relação mútua o próprio bem jurídico protegido no tipo 50 47 No sentido do texto Juarez Cirino A moderna teoria cit p 1 94 do ponto de vista teórico os argumentos favoráveis à concepção do consentimento real como excludente do tipo parecem convin centes o consentimento real exclui o desvalor de ação e o desvalor de resultado e por consequência descaracteriza o próprio tipo de crime o consentimento real exprime desinteresse na proteção do bem jurídico e portanto indica situação de ausência de conflito ao contrário da situação de conflito do sistema de justificações 48 Derecho penal cit p 5 17 49 Roxin Derecho penal cit p 5 1 7 50 Citado por Roxin Derecho penal cit p 5 1 8 357 1 INTRODUÇÃO Conforme vimos do ponto de vista analítico o crime é um fato típico ilícito e culpável a culpabilidade é pois o terceiro e último requisito do fato punível Justamente por isso quando inculpável o agente ficará isento de pena ou em caráter excepcional será submetido a uma medida de segurança A culpabilidade é em síntese uma imputação de culpa ao autor de um fato típico e ilícito Mas a palavra culpabilidade é utilizada em múltiplos sentidos e contextos tais como a princípio da culpabilidade b princípio de não culpabilidade c crime culposo d culpabilidade como circunstância judicial e culpabilidade como elemento do conceito analítico de crime E mais recentemente alguns autores falam de coculpabilidade No sentido de princípio de culpabilidade o conceito é empregado como sinônimo de princípio da responsabilidade penal pessoalsubjetiva significando que nenhuma pena passará da pessoa do agente do crime motivo pelo qual só deve responder pela infração penal o seu respectivo autor coautor ou partícipe constitui portanto um postulado políticocriminal que visa a impedir a responsabilidade penal objetiva eou presumida compreendendo o dolo e a culpa inclusive No sentido de princípio da não culpabilidade ou princípio da presunção de inocência significa que ninguém poderá ser considerado juridicamente culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória constitui assim um princípio de caráter processual até prova em sentido contrário e de se ter o agente como inocente de modo que se a inocência é presumida a culpa requer prova por parte de quem formular a acusação Ministério Público ou querelante PAULO QlJEIROZ Já quando empregada impropriamente como sinônimo de crime culposo culpa em sentido estrito corresponde ao crime praticado com imprudência negligência ou imperícia isto é com infração de um dever de cuidado ou ainda mediante a criação de um risco proibido e realização desse risco no resultado A culpabilidade também constitui circunstância judicial CP art 59 a ser con siderada no momento da individualização judicial da pena significa então que ao proceder à fixação da pena o juiz deverá tomar em conta o grau de reprovabilidade exigibilidade da conduta quanto mais exigível um comportamento diversoconfor me o direito mais reprovável será a infração penal quanto menos exigível menor a censurabilidade e pois menor o castigo Enfim a culpabilidade corresponde aqui à ideia mesma de proporcionálidade em sentido estrito a ser apurada segundo múlti plas circunstâncias Mais recentemente alguns autores falam ainda de coculpabilidade como circuns tância supralegal de atenuação da pena 2 É que há casos em que as condições socioeco nômicas do agente são de tal modo adversas que o juiz ao proceder à individualização da pena não pode ignorálas devendo atenuarlhe o castigo por isso desde que haja relação casual entre tais condições e o delito cometido motivo pelo qual a sua aplica ção ocorrerá principalmente mas não exclusivamente nos crimes contra o patrimônio Alguns códigos penais a referem expressamente embora sem recorrer em geral a essa denominação como o Código colombiano ao dispor que a pena será atenuada se o autor praticar a infração penal sob a influência de profunda situação de marginalida de ignorância ou pobreza extrema que hajam influenciado diretamente o cometimento do crime e não sejam suficientes para excluir a própria responsabilidade jurídicopenal art 56 Tratase portanto de um conceito que se aproxima muito do estado de necessida de e da inexigibilidade de conduta diversa e em relação aos quais tem caráter residual subsidiário pois a adoção da atenuante da coculpabilidade pressupõe logicamente a rejeição ou o não reconhecimento da causa de justificação estado de necessidade ou da excludente supralegal de culpabilidade inexigibilidade de conduta diversa com as quais guarda semelhança É que tais excludentes conduzem à absolvição pura e sim ples a coculpabilidade ao contrário pressupõe a condenação Parecenos porém que em verdade a chamada coculpabilidade não é senão uma dimensão do próprio conceito de culpabilidade enquanto circunstância legal a atenuar ou agravar a pena3 conforme o caso uma vez que se culpabilidade é exigibilidade maior ou menor a ser apurada segundo as circunstâncias do caso concreto tal há de ser menor quanto àquele que comete delito premido por condições socioeconômicas especialmente adversas Em suma parecenos que coculpabilidade é um nome novo para designar coisa velha a própria culpabilidade 2 Assim Grégore Moura Do princípio da coculpabilidade NiteróiRio Impetus 2006 3 Tanto é assim que se fala também de coculpabilidade às avessas situação que agravaria a pena 360 1 1 1 1 TEORIA DA CULPA B I LI DADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE Finalmente quando se afirma que um crime é do ponto de vista analítico um fato típico ilícito e culpável querse dizer que além da tipicidade e ilicitude a punibilidade de um comportamento reclama a comprovação de que no caso concreto era perfeita e razoavelmente possível e exigível do seu autor um comportamento diverso isto é conforme o direito o agente não atuará por isso culpavelmente mas inculpavelmente sempre que lhe faltar a imputabilidade a potencial consciência da ilicitude ou a exi gibilidade de conduta diversa É neste exato sentido que o conceito nos interessa no presente capítulo 11 Conceito e elementos Do ponto de vista analítico o crime é um fato típico ilícito e culpável constituin do a culpabilidade o último dos requisitos do fato punível A culpabilidade é assim um juízo de reprovação que recai sobre o autor de um fato típico e ilícito em razão de lhe ser possível e exigível concreta e razoavelmente um comportamento diverso isto é confdrme o direito motivo pelo qual podese dizer que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade4 De acordo com a doutrina a culpabilidade pressu põe a imputabilidade ou capacidade de culpabilidade b conhecimento potencial da ilicitude do fato c exigibilidade de conduta diversa Com efeito se a norma jurídicopenal por meio de mandados e proibições pre tende prevenir em caráter geral e especial infrações penais seguese que para tanto seus destinatários devem se encontrar em condições físicopsíquicas maturidade sa nidade etc de entender o conteúdo de suas mensagens e pois de agirem de acordo com elas pressupondo portanto imputabilidade Assim a culpabilidade não é um pensamento nem um simples aspecto interno da pessoa mas um elemento do fato isto é uma condição sine qua non do mesmo fundada mais que em razões éticas ou utilitárias na estrutura lógica da proibição que impliFa a possibilidade material da realização ou não realização da ação imputáveis à atuação de um sujeito5 4 Eis alguns conceitos de culpabilidade reprochabilidade de um fazer ou de um omitir antijuridica mente desaprovado ou mais brevemente é um reproche fundado sobre o autor Maurach Derecho penal cit p 582 possibilidade de conhecer a exigência do dever e de comportarse de acordo com ele vale dizer é a possibilidade de uma decisão responsável Stratenwerth Derecho penal cit p 7 1 culpabilidade é reprochabilidade da formação de vontade Jescheck Tratado cit p 364 é uma responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante num comportamento antiju rídico Jakobs Derecho penal cit p 566 atua culpavelmente quem pratica um ato antijurídico podendo atuar de modo diverso quer dizer conforme o direito Mufioz Conde Teoria geral do delito trad Juarez Tavares e Régis Prado Porto Alegre Sérgio A Fabris Editor 1988 p 125 culpabilida de é exigibilidade Sílva Sánchez Aproximación cit p 41 3 5 Ferrajoli Luigi Derecho y razón cit p 501 361 PAULO QlJEIROZ A relação entre prevenção e culpabilidade é assim evidente só se pode ex1g1r proibir uma ação quando a omissão for possível e portanto só se pode exigir uma omissão quando a ação for possível Do contrário a norma implicaria uma violência inútil pois estaria a exigir o inexigível abstrata ou concretamente Também faltará a culpabilidade sempre que o agente embora imputável desco nhecer o conteúdo da proibição mesmo porque num sistema democrático a regra é a liberdade a não liberdade a exceção É que também aqui a norma não é passível de motivar seus destinatários razão pela qual a culpabilidade requer conforme a doutrina majoritária conhecimento potencial da ilicitude do fato E especialmente nos dias atuais em que há uma crescente criminalização de condutas sem dignidade penal Normalmente o direito penal exige a realização de comportamentos mais ou me nos incômodos mais ou menos difíceis mas não impossíveis De todo modo não pode exigir comportamentos heroicos pois toda norma tem um âmbito de vigência fora do qual não se pode exigir responsabilidade alguma6 Enfim só se pode falar de culpabili dade quando for possível e exigível um comportamento diverso 12 N eurociência e culpabilidade A neurociência promete uma autêntica revolução para os próximos anos que im plicará uma mudança radical da imagem que o homem faz de si mesmo com reper cussão direta sobre o direito penal mas não só sobre ele especialmente no que diz respeito à culpabilidade Com efeito segundo manifesto publicado na Alemanha em 2004 por 1 1 onze neurocientistas num período de tempo previsível nos próximos vinte ou trinta anos a investigação cerebral poderá alcançar a conexão entre os processos neuroelétricos e neuroquímicos assim como funções perceptivas cognoscitivas psíquicas e motoras até o ponto que será possível fazer predições bastante certeiras sobre estas conexões em ambas direções E isso significa que devemos contemplar a mente a consciência os sentimentos os atos voluntários e a liberdade de ação como processos naturais pois todos se baseiam em processos biológicos7 A anunciada revolução pretende demonstrar possivelmente entre outras coi sas que o homem não é livre isto é que a liberdade de agir ou livre arbítrio é uma ilusão criada pela mente consciente uma vez que todas as nossas decisões procedem de processos neuronais complexos inconscientes sobre os quais o nosso conscien te ou não tem poder algum ou o tem minimamente Pretendese provar assim que aquilo que se nos apresenta como ações refletidas conscientes prudentes etc é em 6 Mufioz Conde e Mercedes García Arán Derecho Penal Parte General Valencia Tirant lo Blanch 2000 p 40 7 Dível em El fantasma de la libertad datos de la revolución neurocietífica de Francisco J Rubia Barcelona Crítica 2009 362 l l I I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE verdade uma ilusão criada pela consciência8 inclusive porque o cérebro é um órgão como qualquer outro e por essa razão é tão determinista em seu funcionamento quanto o coração ou o fígado9 E ninguém pode atuar de modo distinto do que de fato é escreve Wolf Singer1º Como assinala Francisco Rubia para Gerhard Roth as decisões para nossos atos procedem do inconsciente o que quer dizer que temos a impressão de que sa bemos o que fazemos mas em realidade o que o consciente faz é atribuirse algo que não é obra sua11 Daí concluir Rubia que se literariamente em nosso século de Ouro Calderón 16001681 afirmou que a vida é um sonho alguns neurocientistas modernos sustentam que realmente toda vida é uma ilusão motivo pelo qual o li vre arbítrio é provavelmente uma ilusão mais uma ilusão entre muitas que o cérebro inventa12 rambém por isso nossas decisões teriam um insuperável fundo emocional por que a racionalidade não domina nossas ações o que significa que a interação entre o consciente e o inconsciente entre os centros límbicos e os centros motores executivos garante que as ações voluntárias ocorram dentro do âmbito dos sentimentos emocionas incofscientes e da parte racional cognitiva consciente de cada pessoa13 Que semelhante perspectiva importa numa reviravolta no nosso modo de pensar e ver o mundo é evidente já que concretamente isso significa por exemplo que os de linquentes não sabem a rigor porque delinquem que os advogados não sabem porque advogam que os promotores não sabem porque acusam e nem os juízes sabem porque julgam E mais importante nenhum deles poderia agir diversamente Daí não fazer sentido a ideia de culpabilidade mas não só ela visto que não seria razoável exigirse do agente dito culpável um comportamento diverso isto é conforme o direito Estar seia a exigir algo neurocientificamente inexigível 8 De acordo com Gerhard Roth o homem é livre no sentido de que pode atuar em função de sua vontade consciente e inconsciente Apesar disso esta vontade está completamente determinada por fatores neurobiológicos genéticos e do entorno assim como pelas experiências psicológicas e sociais positivas e negativas em particular as que são produzidas em etapas iniciais da vida que dão lugar a mudanças estruturais e fisiológicas no cérebro Isso significa que todas as influências psicológicas e sociais devem produzir mudanças estruturais e funcionais Do contrário não pode riam atuar sobre nosso sistema motor Por último isso supõe que não existe livre arbítrio em sentido firme mas somente em sentido débil e compatibilista E também significa que ninguém nem os filósofos nem os psicólogos nem os neurobiólogos podem explicar como funciona o livre arbítrio em sentido forte La relación entre razón e la emoción y su impacto sobre el concepto de libre al bedrío p 1 14 ln El cérebro Avances recientes en neurociência Madrid Editorial Complutense 2009 9 John R Searle Liberdade e neurobiologia S Paulo Editora UNESP 2007 p 59 1 0 Experiencia própria y descripción neurobiológica ajena p30 Revista electrónica de ciencia penal y criminologia 201 0 revista 12 Criminetugres 1 1 FRubia cit p 15 12 El fantasma cit p 9 1 3 GRoth L a relación entre la razón y l a emoción y su impcto sobre e l concepto de libre albedrío p 1 14 363 lAULO QVEROZ Tampouco faria sentido a distinção entre condutas voluntárias e involuntárias entre ações dolosas e não dolosas imprudentes ou inconscientes entre imputáveis e inimputáveis uma vez que o agente careceria inevitavelmente de liberdade conscien te de agir Afinal as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência Freud Embora talvez fosse mais prudente esperar o que de fato significará essa anuncia da revolução neurocientífica parece claro que a perspectiva neurocientífica ou ao me nos parte importante de neurocientistas tende a reduzir o homem ao cérebro a seguir o cérebro ao cérebro inconsciente e por fim o cérebro consciente a uma espécie de ventríloquo do cérebro inconsciente tal é a superestimação deste último em detrimen to do primeiro14 De todo modo ainda que se prove futuramente que o homem é um escravo de suas pulsões e desejos inconscientes que ele é o que é e não o que ele quer ou pre tende ser é improvável que isso implique a extinção do controle social e tampouco a abolição do controle penal embora possa desencadear uma reformulação radical do direito penal que conhecemos hoje15 Tanto é assim que mesmo os inimputáveis em razão de doença mental ou similar estão sujeitos à intervenção do direito penal medidas de segurança 14 GRoth a consciência entre outras coisas sempre está relacionada com o processamento de informação nova importante e complicada Assim sempre que enfrentamos decisões novas e importantes devemos fazêlo de forma consciente mas em nossa memória inconsciente é guardada tudo que experimentamos em nossas vidas La relación entre la razón y la emoción y su impcto sobre el concepto de libre albedrío p 1 15 De acordo com Freud o inconsciente é a esfera mais ampla que inclui em si a esfera menor do consciente Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e não obstante reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica em sua natureza mais íntima ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais Ainda as mais complexas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência A interpretação dos sonhos segunda parte capítulo VII a psicologia dos processos oníricos Em Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Vol XV Rio de Janeiro Imago 1 ª edição Mais o inconsciente designa não apenas as ideias latentes em geral mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico ideias que se mantêm à parte da consciência apesar de sua intensidade e ativida de a inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica todo ato psíquico começa com um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência segundo encontra resistência ou não Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise Em Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Vol XII Rio de Janeiro Imago lª edição 1 5 Para Michel Pauen não há nenhuma revolução à vista porque não existe uma refutação científica da liberdade e responsabilidade A liberdade e a determinação não são incompatíveis de modo que ainda que tenhamos demonstrado que o nosso cérebro é um sistema determinista ainda não demonstramos que não sejamos capazes de atuar livremente Autocompreensión humana neuro ciencia y libre albedrío In EI Cerebro Avances recientes en neurociencia Madrid Editorial Com plutense 2009 364 1 1 1 1 TEORIA DA CULPABI LI DADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE Ademais o direito penal não se funda em dados puramente biológicos mas em sistemas socialmente construídos de responsabilidade16 E se o homem é ou não livre isso depende do conceito de liberdade de que se parte que não é em princípio um conceito biológico mas político17 Enfim a investigação que procede da neurociência embora necessária e importante não é suficiente para a implosão do edifício jurídico penal que certamente resistirá à anunciada revolução neurocientífica se bem que a partir de novos fundamentos Finalmente de acordo com Libet a vontade consciente influi o resultado do pro cesso de vontade ainda que este último tenha sido introduzido por processos cerebrais inconscientes razão pela qual conclui que tanto o determinismo quanto o indetermi nismo são indemonstráveis18 13 Direito penal indígena 131 Jurisdição penal indígena De acordo com a visão tradicional ainda hoje dominante o índio responde penal mente quando culpável nos termos da legislação penal em vigor19 1 A tendência atual no entanto é reconhecerse em prejuízo do direito oficial a autonomia e a validade do direito penal indígena20 DPI isto é o direito traduzido nos usos costumes e tradições dos povos indígenas Com efeito e conforme dispõe a Constituição art 231 caput são reconhecidos aos índios sua organização social costumes línguas crenças e tradições e os direitos origil1ários sobre as terras que tradicionalmente ocupam competindo à União demarcá las proteger e fazer respeitar todos os seus bens 16 No mesmo sentido Hassemer responsabilidade e imputação não descansam em conhecimentos da biologia humana mas em razões sociais Não sobrevivem por ignorância e irracionalidade mas por conhecimento e experiência Neurociências y culpabilidad em Derecho penal Disponível em INDRETCOM Barcelona abril 201 1 1 7 Nesse exato sentido escreve Michel S Gazzaniga a neurociência tem pouco que aportar à com preensão da responsabilidade A responsabilidade é um constructo humano que existe só no mundo social onde há mais de uma pessoa É uma regra construída socialmente que existe só no contexto da interação humana Nenhum pixel de uma imagem cerebral poderá manifestar culpabilidade ou rcutpabilidade Os neurocientistas não podem falar sobre a culpabilidade do cérebro como tampouco pode culpar o relojoeiro o relógio Não se nega a responsabilidade só está ausente a des lrição neurocientífica da conduta humana A neurociência nunca encontrará o correlato cerebral da responsabilidade porque é algo que atribuímos aos humanos as pessoas e não aos cérebros E férebro ético Barcelona Paidós 2006 p 1 101 1 1 1 8 Çf Luzón Pefía Libertad culpabilidad y neurociencias Barcelona indretcom julio de 2012 19 O conceito de índio é dado pelo art 3º 1 da Lei nº 6001173 Índio ou Silvícola É todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional 20 Rigorosamente falando não existe um direito penal indígena ou civil etc mas violações mais ou menos graves e puníveis segundo as tradições e costumes de determinada etnia 365 PAULO QlJEJ ROZ Se tomarmos como devemos o dispositivo à sério teremos então de reconhecer 1 A autonomia do DPI consequentemente são válidos os julgamentos feitos pe los povos e tribos indígenas relativamente às infrações cometidas no seu terri tório envolvendo seus membros 2 Não obstante isso é possível recorrerse à justiça comum nos termos do art 5 XXXV da CF princípio da inafastabilidade da jurisdição quer por iniciativa da tribo quer do próprio imputado quer por órgão competente FUNAI MP etc 3 O DPI não é aplicável a conflito envolvendo nãoíndio ainda que ocorrido den tro de território indígena 4 O DPI não incide em princípio sobre conflito ocorrido fora do território indí gena ainda que envolvendo índios 5 O direito penal oficial é acessórioresidual relativamente ao DPI e não o con trário pois há de pressupor a impossibilidade de sua aplicação E assim deve ser porque em primeiro lugar o direito indígena constitui um dos elementos essenciais de sua organização social costumes crenças e tradições razão pela qual reconhecêlo é assegurar o poder de autodeterminaçãoautogoverno dos po vos indígenas e em segundo lugar porque negar validade às práticas jurídicas indíge nas violaria claramente o art 231 da Constituição Diversas constituições preveem expressamente a jurisdição indígena a exemplo da colombiana art 246 da peruana art 149 da boliviana arts 179 e 190 da vene zuelana art 260 da paraguaia art 63 e da equatoriana art 171 A Constituição do Equador art 76 7 i veda inclusive de modo explícito a possibilidade de duplo jul gamento ne bis in idem Ninguém poderá ser julgado mais de uma vez pela mesma causa e matéria Os casos decididos pela jurisdição indígena deverão ser considerados para este efeito Por sua vez o art 9º da Convenção 169 da OIT 2004 dispõe Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos inter nacionalmente reconhecidos deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros Mais recentemente 2007 a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas asseguroulhes entre outros o direito à autodeterminação aí incluí das a conservação e o reforço de suas instituições jurídicas 366 Artigo 4 Os povos indígenas no exercício do seu direito à autodetermi nação têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relaciona das a seus assuntos internos e locais assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas Artigo 5 Os povos indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas jurídicas econômicas sociais e culturais mantendo ao mesmo tempo seu direito de participar plenamente caso o deseje na vida política econômica social e cultural do Estado Aliás já o art 57 da Lei nº 600173 Estatuto do Índio disponha que será tolerada a aplicação pelos grupos tribais de acordo com as instituições próprias de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros desde que não revistam caráter cruel ou infamante proibida em qualquer caso a pena de morte Efetivamente ninguém está em melhor condição de julgar o índio do que a própria comunidade indígena em que se deu o conflito E mais legitimamente Tolerar que o índio continue a ser julgado segundo o direito oficial é tão injusto e inadequado quanto o contrário permitir que os nãoíndios fossem julgados de acordo com o direito indígena Ofendese assim o princípio da igualdade ao negar o direito à diferença e ao tratar como iguais os desiguais Afinal castigar índios que atuam segundo seus usos e costumes é criminalizar sua cultura e tradições A intervenção do direito penal estatal mínima subsidiária e excepcional deve por conseguinte ficar limitada àquelas hipóteses em que o DPI impuser condenações que violem manifestamente direito fundamental vg aplicação de pena de morte Para concluir convém citar exemplo de pena aplicada ao índio Denilson Trindade Douglas por lideranças indígenas tuxuás de várias comunidades Anauá Manoá Wai Wai pena que foi convalidada na ação penal nº 0090100003020RR relativa a homicídio qualificado CP art 121 2º II cometido em 26062009 em que foi vítima o também índio e irmão Alanderson Trindade Douglas fato ocorrido na comunidade indígena de Manoá terra indígena ManoáPium Região Serra da Lua Município de BonfimRR Inicialmente o autor do homicídio foi condenado a construir uma casa para a esposa da vítima e ficou proibido de ausentarse da comunidade de Manoá sem permissão dos tuxuás Posteriormente as lideranças indígenas aplicaramlhe as seguintes sanções 1 O índio Denilson deverá sair da Comunidade de Manoá e cumprir pena na Região Wai Wai por mais 5 cinco anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento 2 Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai respeitando a convivência o costume a tradição e moradia junto ao povo Wai Wai 3 Participar de trabalho comunitário 4 Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade 5 Não comercializar nenhum tipo de produto peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com tuxuá 6 Não desautorizor o tuxuá cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxuá 7 Ter terra para trabalhar sempre com conhecimento e na companhia do tuxuá PAULO QEIROZ 8 Aprender a cultura e a língua Wai Wai 9 Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar outra de cisão Em suma o direito penal indígena é em princípio um problema indígena 132 Responsabilidade penal do índio Quando fora das hipóteses inicialmente indicadas houver de incidir o direito pe nal oficial o índio responderá nos termos da Constituição dos tratados e acordos in ternacionais e da legislação penal em vigor que lhe dão tratamento jurídico especial Como é óbvio a responsabilidade penal do índio pressupõe o cometimento de in fração penal crime ou contravenção com todos os seus elementos constitutivos tipici dade ilicitude e culpabilidade Tratase porém de um processo de imputação objetiva e subjetiva que além de considerar a singularidade da cultura indígena terá de levar em conta a especificidade do tratamento constitucional e legal notadamente o estatuto do índio Justamente por isso não há em princípio fato típico quando o agente pratica con duta de acordo com suas tradições costumes e crenças Assim por exemplo não exis te estupro de vulnerável CP art 217A no âmbito de certas comunidades indígenas onde o acasalamento ocorre antes de 14 anos de idade Cuidase de fato atípico Nem é típica a pesca ou caça entre outras atividades inerentes à tradição indígena que pode riam em tese configurar crime ambiental A atipicidade decorre da circunstância de o índio não poder figurar como sujeito ativopassivo desses delitos por força do tratamento jurídico especial que lhe é dado Mas outras soluções dogmáticas são igualmente admissíveis ausência de dolo etc até porque conduzem em princípio ao mesmo resultado prático a absolvição pura e simples Naturalmente que essa relação entre proteção de direitos fundamentais e respeito à diversidade étnica e cultural a refletir diretamente sobre a definição social e legal de crime é das mais tensas e problemáticas razão pela qual suscitará com alguma frequência questões de constitucionalidade Basta lembrar que a prática do infanticí dio ou homicídio21 objeto do PL 10572007 ou Lei Muwaji motivado pelas mais di 21 Augusto Silva Dias ao tratar de casos semelhantes ocorridos em GuinéBissau considera que o fato é atípico por ausência de dolo Diz textualmente O agente ou agentes que colocam o ucó ou o ser sob suspeita junto da água do rio ou do mar tendo em vista respectivamente afastálo da família ou obter a prova decisiva realizam objectivamente o tipo de ilícito do homicídio artºl 07 do CP na forma tentada ou consumada consoante o processo causal se quedar no perigo concreto para a vida ou desembocar no resultado morte Sendo o homicídio um crime de forma livre no tipo cabe perfeitamente a exposição ao perigo daquele modo praticadaTodavia em minha opinião o tipo subjectivo do homicídio não se encontra realizado Com efeito as mulheres da família da mãe que pretendem afastar o mau espírito não querem desde o início causar a morte de uma pessoa Como tivemos oportunidade de compreender através das inquirições realizadas e tenho vindo a assinalar ao 368 l 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILI DADE versas razões deficiência física ou mental gêmeo filho de mãe solteira etc tem sido registrada em diversas etnias22 O mesmo vale mutatis mutandis para a verificação da ilicitude e da culpabilida de as quais além de exigirem a presença de todos os pressupostos e requisitos legais devem ser valoradas de acordo com as peculiaridades da cultura indígena No entanto ao contrário do que pretende a doutrina a imputabilidade penal do ín dio não depende do grau de integração à cultura dominante Como escrevem Ela Wiec ko de Castilho e Paula Bajer Costa no paradigma da plurietnicidade o grau maior de integração do indígena à sociedade nacional não o descaracteriza com indígena tam pouco exclui a imputabilidade penal23 Também Augusto Silva Dias tem que aparentemente mais favorável e aberta às pequliaridades das formas de vida esta solução assenta numa visão racista e pater nalista que não respeita a diferença de culturas e uma perspectiva multicultural de abordagem dos problemas baseada no valor do pluralismo Hierarquizando as culturas em civilizadas e selvagens a concepção que criticamos eleva as primeiras a padrão de vida boa Consequentemente os membros das culturas selvagens são rotulados de débeis mentais detentores de um desenvolvimento mental incompleto incapazes de entender as virtudes ínsitas naquele padrão24 Com efeito independentemente do grau de socialização o índio é sim imputável imputabilidade que há de ser apreciada segundo a sua tradição e não conforme os valores eurocêntricos da cultura dominante Logo não é incapaz de autodeterminação em razão de desenvolvimento mental incompleto ou retardado mas plenamente capaz longo da exposição as agentes não querem matar ou por qualquer outra forma hostilizar outrem mas tão só afastar um ser que de humano apenas guarda a aparência A partir do momento em que segundo as crenças partilhadas as pessoas implicadas estão convictas de que se trata de uma pessoa e não de um ucó recolhemna imediatamente e levamna consigo de volta como vimos O que as agentes representam é um ente sobrenatural e não um ser humano Não há pois dolo em qualquer das suas modalidades SILVA DIAS Augusto Problemas do direito penal numa sociedade multicutural o chamado infanticídio ritual na GuinéBissau Coimbra Coimbra Editora Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 6 nº 2 abrljun 1996 22 Semelhante prática tem sido observada por exemplo entre os tapirapés suruwahas e yanomamis 23 O projeto de Lei do Senado nº 1 56 de 2009 que institui novo Código de Processo penal e os crimes praticados contra indígenas ou por indígenas Brasília a 46 nºl 83 julhoset 2009 24 Augusto Silva Dias Augusto Problemas do direito penal numa sociedade multicutural o chamado infanticídio ritual na GuinéBissau Coimbra Coimbra Editora Revista Portuguesa de Ciência Crimi nal ano 6 nº 2 abrljun 1 996 De modo similar Luiz Fernando Villares considerar o índio deficiente mental ou similar é profundamente equivocado pois o índio mesmo os de pouco contato com a sociedade brasileira sempre teve o desenvolvimento mental absoluto de suas faculdades mentais e condições de entender o mundo que o cerca Pertencer a uma cultura de valores diversos dos nossos não produz um indivíduo de incompleto desenvolvimento Para aquelas atividades necessárias à sua vida o índio se adaptou com eficiência o que lhe garantiu a sobrevivência até os dias atuais Direitos e povos indígenas Curitiba Juruá 2009 p 299 369 PAULO QJEIROZ O índio será inimputável apenas quando portador de transtorno mental grave CP art 26 ou menor de 18 anos O que poderá ocorrer eventualmente é a falta de conhecimento da proibição jurídi copenal de que se trata a ensejar o erro sobre a ilicitude do fato CP art 21 vencível ou invencível conforme o caso a ser aferida mediante laudo antropológico O Código Penal do Peru trata dessa hipótese sob o título de erro de compreensão culturalmente condicionado Artigo 15 Erro de compreensão culturalmente condicionado Quem que por sua cultura ou costumes comete um fato punível sem po der compreender o caráter delituoso de seu ato ou determinarse de acordo com essa compreensão é isento de responsabilidade penal Quando por igual razão essa possibilidade tiver diminuído a pena será atenuada Mas o neologismo é desnecessário haverá ou não simplesmente erro de proibi ção por carecer o autor índio que é do conhecimento da proibição Evidentemente que o índio poderá também invocar e com maior razão outras excludentes legais ou supralegais de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade sempre que presentes seus elementos constitutivos 25 O mesmo ocorrerá quanto às causas espe ciais de isenção de pena ou extintivas da punibilidade prescrição etc 2 CULPABILIDADE SEGUNDO A DOUTRINA CAUSALISTA CON CEPÇÃO PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE Para a doutrina causal da ação ou naturalista a culpabilidade consistia na relação psicológica entre o autor e seu fato ou para expressálo com Franz von Liszt culpa bilidade é a ligação subjetiva entre o ato e o autor26 conceito que se mantém coerente com a sua concepção naturalista da ação Com efeito se como pregavam os causalis tas a conduta se dividia em duas partes uma externa a ilicitude de caráter objetivo e outra interna a culpabilidade de natureza subjetiva resulta que nesta última devia residir todo o subjetivismo ou psiquismo do delito vale dizer o dolo e a culpa Nesse sentido Franz von Liszt afirmava que não basta que o resultado possa ser ob jetivamente referido ao de vontade do agente é também necessário que se encontre na culpa a ligação subjetiva Culpa é a responsabilidade pelo resultado produzido27 25 Como observa Márcio Andrade Torres em nome de um Estado de direito democrático e do princípio da culpabilidade na sua vertente limitativa do poder punitivo estatal o condicionamento cultural é fator que deve ser considerado na apreciação de qualquer conduta podendo descaracterizar ora a tipi cidade ora a ilicitude e por fim a culpa onde encontra campo mais abe110 a um freio no direito penal em razão do alcance e natureza dos elementos que a compõem O lugar da cultura na culpabilidade dos índios texto inédito 26 Von Liszt Tratado cit p 249 Igual conceito é adotado pela doutrina penal brasileira menos recente Assim por exemplo Basileu Garcia a culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao seu au tor Instituições cit p 273 27 Tratado cit p 249 370 l 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE Por conseguinte dolo e culpa constituíam as possíveis formas dessa conexão psí quica subjetiva entre o autor e seu fato28 ou seja age culpavelmente quem atua com dolo ou culpa culpa em sentido estrito Em consequência o delito segundo a pers pectiva causalista apresentase como dupla vinculação causal a relação de causali dade material que dá lugar à antijuridicidade e a conexão de causalidade psíquica que é a culpabilidade29 Dentro de tal construção o dolo e a culpa não só eram as duas espécies de culpabilidade como também a totalidade da culpabilidade admitindose porém como pressuposto jurídicopenal a imputabilidade entendida como capacida de de ser culpável 30 Semelhante formulação sofreria diversas críticas sobretudo por não explicar a contento tal conexão psicológica nos crimes culposos salvo na culpa consciente nos quais tal não existe Como assinala Damásio de Jesus se o dolo é caracterizado por um querer a culpa por um não querer conceitos positivo e negativo tais conceitos não podem em consequência ser espécies de um denominador comum qual seja a cul pabilidade mesmo porque na culpa sobretudo na culpa inconsciente não existe essa pretendida relação psíquica31 Além disso com o advento da doutrina finalista o dolo e a culpa viriam a ser deslocados da culpabilidade para a tipicidade Mas nem por isso a culpabilidade deixaria de existir como categoria sistemática da teoria do delito mesmo porque apesar de o autor agir com dolo ou culpa a culpabilidade pode ser excluída por outras razões como por exemplo se o agente tiver atuado sob coação moral irresistí vel ou erro de proibição inevitável Sintetizando a culpabilidade segundo a formulação causalista clássica compu nhase de a imputabilidade e b dolo e culpa em sentido estrito 3 CONCEPÇÃO NORMATIVA DA CULPABILIDADE As críticas que se seguiram à concepção causalista clássica dariam lugar à sua reformulação para lhe acrescer um elemento novo de caráter normativo um juízo negativo de valor qual seja a reprovabilidade ou censurabilidade para se entender culpabilidade como um juízo de reprovação sobre o autor por ter atuado ilicitamente quando lhe era possível e exigível uma atuação conforme o direito Com semelhante folimulação o dolo e a culpa embora permanecessem integrando a culpabilidade dei xariam de constituir suas espécies convertendose em seus elementos Tal concepção que se deve em especial a Frank Goldschmidt e Freudenthal exatamente por ser acrescida desse elemento normativo valorativo ficou conhecida como normativa ou psicológiconormativa De acordo com isso para ser culpável não basta como explica Assis Toledo que o fato seja doloso ou culposo é preciso que além disso seja censurável o autor O dolo 28 Mir Puig Derecho penal cit p 540 29 Mir Puig Derecho penal cit p 541 30 Assis Toledo Princípios básicos cit p 220 3 1 Direito penal cit p 456 371 e a culpa stricto sensu deixam de ser espécies de culpabilidade e passam a ser elementos dela A culpabilidade se enriquece pois com novos elementos o juízo de censura que se faz ao autor do fato e como pressuposto deste a exigibilidade de conduta conforme à norma Assim há culpabilidade ainda quando não haja relação psicológica entre o autor e seu fato como ocorre na culpa inconsciente culpa sem previsão em razão de o agente atuar reprovavelmente violando um dever de cuidado Segundo a concepção normativa a culpabilidade constituise em consequência dos seguintes elementos a imputabilidade b dolo e culpa c exigibilidade de conduta diversaconforme ao direito 4 Culpabilidade segundo a doutrina finalista concepção normativa pura Com o advento do finalismo que deslocaria o dolo e a culpa para a tipicidade e assim abandonaria o critério psicológico a culpabilidade passou a ter um conteúdo puramente normativo Em consequência o juízo de reprovação da culpabilidade de acordo com Welzel criador da doutrina finalista pressupõe que o autor possa atuar de acordo com a norma e isso não tem sentido abstrato de algum homem em vez do autor mas que concretamente este homem poderia em tal situação estruturar sua vontade segundo a norma A culpabilidade conforme a perspectiva finalista significa portanto a possibilidade de o agente atuar concretamente conforme o direito possibilidade que deixaria de existir sempre que o autor não fosse imputável lhe faltasse o conhecimento da ilicitude do fato ou não lhe fosse exigível conduta diversa Assim de acordo com a concepção normativa pura a culpabilidade requer a imputabilidade b potencial consciência da ilicitude e c exigibilidade de conduta diversa E o dolo e a culpa passam a integrar conforme vimos a própria tipicidade O dolo porém com o finalismo é desvinculado da consciência da ilicitude que permanece na culpabilidade potencial consciência da ilicitude l 1 1 I TEORIA DA CULlABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE imposição da pena Assim o autor de um fato antijurídico escreve Jakobs tem culpa bilidade quando tal atuação antijurídica não só indica uma falta de motivação jurídica dominante por isso é antijurídica senão quando o autor é responsável por essa falta Essa responsabilidade ocorre quando falta a disposição de motivarse conforme a norma correspondente Essa responsabilidade por um déficit de motivação jurídica doninante num comportamento antijurídico é a culpabilidade34 Ao adotar semelhante perspectiva Jakobs parece substituir em verdade o concei to de culpabilidade pelo de prevenção geral35 Já para Roxin que se opõe à formulação de Jakobs36 por conduzir a seu ver à instrumentalização do homem em favor do sistema social violando o princípio da dig nidade humana passa a ter papel central o conceito de responsabilidade penal que dete ser entendido a partir dos conceitos de culpabilidade e necessidade de prevenção seus pressupostos pois segundo Roxin só mediante o reconhecimento de culpabili dade e necessidade preventiva como pressupostos da responsabilidade jurídicopenal pode a dogmática conseguir conectarse com a teoria dos fins da pena de modo que só culpabilidade e necessidade preventiva conjuntamente podem dar lugar a uma sanção penal37 Portanto culpabilidade e necessidades preventivas limitamse reciprocamente necessidades preventivas jamais podem autorizar a punição quando inexista culpabili dade nem a culpabilidade basta por si só para legitimar a pena que deve ser indispen sável do ponto de vista preventivo38 Por consequência a pena há de pressupor sempre culpabilidade de sorte que ne nhuma necessidade preventiva de punição por maior que seja pode justificar uma san ção penal que contradiga o princípio da culpabilidade 39 Por isso a exigência do re cohhecimento da necessidade preventiva como pressuposto adicional da punibilidade significa unicamente ulterior proteção ante a intervenção do direito penal enquanto não só se limita o preventivamente admissível mediante o princípio de culpabilidade 34 Derecho penal cit p 566 35 Cf Schünemann Resta por questionar se acaso não devem ser extraídas consequências mais radicais da transfonnação de um direito penal retributivo em direito penal preventivo e em consequência não se deve substituir de modo completo a categoria como pressuposto da punibilidade pela necessidade preventivogeral da pena tal como exige Jakobs e alguma vez insinuou Roxin la función in Fundamentos cit p 160 36 Com efeito afirma Roxin referindose a Jakobs a esta concepção se opõe sobretudo o fato de que abandona a função restritiva da culpabilidade em atenção à prevenção geral A punibilidade do parti cular não depende já de circunstâncias que radicam em sua pessoa senão do que seja presumivelmen te necessário para o exercício dos cidadãos na finalidade ao Direito para a estabilização da confiança no ordenamento Uma instrumentalização tal do indivíduo que só serve já como instrumento dos interesses sociais de estabilização foi criticada por Kant como violação da dignidade humana Derecho penal cit p 806 37 Derecho penal cit p 793 38 Roxin Política criminal cit 39 Roxin Derecho penal cit p 793 373 PAULO ÜlJ E I ROZ mas também se restringe a possibilidade de punição da conduta culpável à exigência de que esta seja preventivamente imprescindível40 Para Roxin portanto a culpabilidade como pressuposto fundamental da res ponsabilidade penal tem papel ambivalente se por um lado só pode ser declarado culpável quem pode ser motivado pela norma isto é alcançado pela prevenção por outro a culpabilidade funciona também como limite à própria prevenção Com efeito carecendo a norma do poder de motivar prevenir a aplicação do direito penal é des necessária e inadequada quando a suposição de que uma pessoa era motivável pelo direito resulte infundada pelo seu estado mental ou anímico ou pelas circunstâncias da situação como ocorre com os enfermos mentais por exemplo de quem não se espera que observem as normas os quais quando infringem a lei não defraudam expectativa social alguma e a consciência social não se comove logo ninguém resulta motivado a imitálos porque a vigência da norma aos olhos da opinião pública não resta diminuí da por esses fatos41 Decisivo porém segundo a formulação roxiniana no que se distingue de Jakobs é o caráter limitador garantista da culpabilidade ao fim de prevenção geral positi va e negativa conforme sua teoria dialética unificadora visto que como ressalta a mui citada expressão de Kohlrausch de que a culpabilidade como poder individual seria uma ficção necessária para o Estado há de ser corrigida Um Direito penal da culpabilidade não é de modo algum necessário para o Estado pois os fins preventivos do Estado podem ser perseguidos muito mais livremente mediante um puro Direito de medidas de segurança A culpabilidade é ao contrário uma garantia da liberdade dirigida contra os excessos punitivos do Estado O princípio de culpabilidade não pre judica o cidadão porque as necessidades preventivas se imporiam com total indepen dência da vinculação à culpabilidade senão que o protege Ao manter a persecução dos fins preventivos nos limites próprios do Estado de Direito serve por sua vez a uma política criminal razoável42 Semelhantemente Schünemann considera que de fato a pena necessita para a sua justificação além de sua utilidade preventiva de um princípio autônomo de 40 Roxin Derecho penal cit p 793 41 Roxin Derecho penal cit p 8 1 08 1 1 42 Roxin Derecho penal cit p 8 1 1812 Adota idêntico posicionamento Figueiredo Dias A verdadei ra função da culpabilidade no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso a culpabilidade não é fundamento da pena mas constitui o seu limite inultrapassável o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou neutralização A função da culpabilidade deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito é por outras palavras a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático E a de por esta via estabelecer uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e o veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar Questões fundamentais cit p 1 34 374 l 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXC LUSÃO DE CULPABILIDADE legitimação para o qual só se pode tomar em conta a culpabilidade de modo que se a necessidade da pena surge exclusivamente de considerações preventivas a culpabilida de constitui a base complementar de legitimação vale dizer a finalidade preventiva fundamenta a necessidade da pena o princípio de culpabilidade limita sua admissibi lidade 43 Uma concepção também funcional adota Francisco Mufíoz Conde que partindo da função motivadora da norma penal como fundamento material da culpabilidade observa que a correlação entre culpabilidade e prevenção geral quer dizer a defesa de determinados interesses legítimos ou ilegítimos é pois evidente Se em dado mo mento histórico se considerou que o alienado ou o menor ficavam isentos de respon sabilidade criminal isso não se fez para debilitar a prevenção geral ou a defesa dos interesses da sociedade frente a essas pessoas mas pelo contrário porque o efeito in timidatório geral e a defesa social se fortaleceriam ao se declararem isentas de respon sabilidade criminal quer dizer de culpabilidade a umas poucas pessoas que como a experiência ensina não se pode esperar que cumpram as expectativas de condutas con tidas nas normas penais confirmando assim a necessidade de seu cumprimento para as outras pessoas que não se encontram nessa situação44 Portanto para o funcionalismo exceção feita a Jakobs sobretudo agora em que defende um direito penal do inimigo a culpabilidade tem papel eminentemente ga rantista ou limitativo do poder punitivo do Estado pois só pode ser declarado culpável 1 quem ao praticar um fato antijurídico tinha condições razoáveis de atuar motivado pela norma agindo conforme o direito não o fazendo embora pudesse fazêlo sem sacrifícios extraordinários É correto dizer ainda com Sílva Sánchez que o conceito de culpabilidade pode e deve ser contemplado desde a perspectiva da exigibilidade podendose afirmar que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade Atua culpavelmente aqvele de quem se pode exigir uma atuação conforme o direito sendo que o grau con creto de exigibilidade resultará do conflito posto em relação por um lado das necessi dades preventivas que abonariam o estabelecimento de maiores níveis de exigência e por outro dos argumentos utilitaristas de intervenção mínima assim como de critérios humanitários garantistas enfim que apoiariam sua redução45 Convém notar finalmente que o princípio de culpabilidade opera como limite do jus puniendi não só quanto à determinação dos pressupostos da pena como também no âmbito da individualização judicial significando dizer que a pena não deve exceder ao limite do que seja adequado à gravidade da culpabilidade do autor por mais que possa ser necessária no caso concreto por motivos de prevenção geral e especial46 É que a 43 La función in Fundamentos cit p 1 62172 44 Teoria cit p 1 29 45 Aproximación cit p 413 46 GarcíaPablos Derecho penal cit p 286 375 PAULO QJEIROZ culpabilidade além de fazer parte do conceito analítico de crime também constitui uma circunstância judicial a ser considerada no momento da fixação da pena 6 CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE EM ESPÉCIE De acordo com a doutrina majoritária são excludentes de culpabilidade a inim putabilidade em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado b inimputabilidade do menor de dezoito anos c embriaguez involuntária completa d erro de proibição inevitável e obediência hierárquica a ordem não mani festamente ilegal f coação moral irresistível Nem todos estão de acordo com essa classificação Parecenos inclusive que o erro de proibição inevitável conforme vimos implica em verdade a exclusão do pró prio dolo por entendermos dolo como dolus malus isto é compreensivo da consciên cia da ilicitude do fato logo constitui uma forma de exclusão da tipicidade e não de culpabilidade Discutese se não se poderia cogitar à semelhança das causas de justificação de causas supralegais de exculpação por inexigibilidade de conduta diversa Roxin afirma que se se permitisse que a políticacriminal do juiz decidisse sobre a punibilidade de uma conduta atentarseia contra a divisão dos poderes assim como contra o princípio constitucional de precisão e concreção sendo em consequência inadmissível habilitar o juiz em caráter geral para eximir de pena sem base na lei com ajuda de uma fórmula vazia como a da inexigibilidade47 Mas tal posição não adotada pela doutrina brasileira majoritária48 tampouco pela jurisprudência peca pelo excessivo formalismo Primeiro porque por mais imaginoso que seja o legislador não pode ele evidentemente contemplar todos os fatos passíveis de legítima exculpação em face da dinâmica social e da consequente multiplicidade de situações que podem surgir na prática Segundo porque a possibilidade de reco nhecimento de uma causa geral de exculpação por inexigibilidade de conduta diversa está plenamente conforme o caráter garantidor do princípio de culpabilidade Terceiro porque admitir que só por meio de lei se possa reconhecêla é votar reverência des medida ao legislador expressando uma desconfiança também desmedida à atuação do juiz ignorando que interpretar é criar direito inevitavelmente dada a irredutível margem de livre apreciação judicial Larenz de sorte que se confunde em última análise lei e direito 47 Derecho penal cit p 961 48 Nesse sentido Damásio de Jesus a aplicação da teoria da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade encontra apoio na integração da lei penal Vimos que o Direito Penal positivo possui lacunas Havendo omissão legislativa no conjunto das normas penais não incriminadoras e não havendo o obstáculo do princípio da reserva legal a falha pode ser suprida pelos processos detenninados pelo art 4º da LICC a analogia os costumes e os princípios gerais de direito Se o caso é de inexigibilidade de conduta diversa e não encontrando o juiz norma a respeito no direito positivo pode lançar mão da analogia para absolver o agente Direito penal cit p 480 376 Finalmente o princípio da divisão de poderes que não é um fim em si mesmo nem absoluto há de estar a serviço da realização dos valores constitucionais fundamentais em especial a dignidade da pessoa humana CF art 1º III Parecenos por conseguinte absolutamente legítima a admissão de outras excludentes de culpabilidade excludentes supralegais inclusive porque conforme vimos a distinção entre excludentes de tipicidade de ilicitude e de culpabilidade não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual não existem a rigor fenômenos típicos ou culpáveis mas apenas uma interpretação tipificante e culpabilizante dos fenômenos 61 Inimputabilidade decorrente de alienação mental 611 Significado e pressupostos Dispõe o art 26 caput do Código que é isento de pena o agente que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento A declaração de inimputabilidade exige pois o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a que o agente seja portador de doença mental ou similar b incapacidade resultante dessa condição c que a incapacidade seja contemporânea do crime e não anterior ou posterior a ele E assim deve ser porque se o direito penal por meio da dominação e da execução de penas pretende em caráter geral e especial motivar seus destinatários a não delinear seguese que semelhante finalidade não pode ser perseguida por meio da punição de alienados mentais porque privados de discernimento são incapazes de tomar a norma jurídicopenal como referência para seus comportamentos Castigar alienados mentais seria enfim castigar inutilmente qualquer que seja o fim que se assinale à pena contrariando o princípio da proporcionalidade adequação inclusive Mas a inimputabilidade não é exclusivamente determinada pela condição de alienado mental porque o Código acrescentou a esse critério dito biológico outro de natureza psicológica o chamado critério biopsicológico a incapacidade de em razão da doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado entender o caráter ilícito do fato Por conseguinte não basta que o agente seja mentalmente enfermo é preciso mais que tal estado de perturbação da saúde mental seja capaz de priválo do discernimento não podendo por isso distinguir entre o legal e o ilegal entre o proibido e o permitido Ademais embora portador de algum transtorno mental importante o indivíduo pode levar uma vida absolutamente normal sobretudo quando adequadamente tratadomedicado Mas há quem considere que entender o caráter ilícito do fato e poder atuar conforme esse entendimento é algo que não admite uma resposta empírica Além dos mais PAULO Ql E I ROZ doença mental e incapacidade são coisas distintas e a primeira não implica a segunda necessariamente É de convir inclusive quanto à impropriedade da expressão método biopsico lógico porque em realidade nem o estado é biológico se nalguns casos o fato está biologicamente fundamentado nem a capacidade é psicológica mas uma cons trução normativa de sorte que se trata mais exatamente de um método psíquico normativo ou psicológiconormativo o psicológico se refere aos estados psíquicos capazes de comprometerem a capacidade de compreensão enquanto o normativo diz respeito à capacidade que não é um estado psíquico mas uma atribuição 50 Além disso muitos transtornos de consciência v g estado passional intenso oligofrenia normal psicológica anomalia psíquica grave que compreende todas as psicopatias graves as neuroses e as anomalias dos instintos não são manifestações de deficiên cias corporais orgânicas biológicas tampouco a constatação da capacidade de atuar de outro modo é um dado psicológico mas essencialmente normativo ou seja uma imputação que se faz51 A expressão doença mental52 deve ser entendida em sentido amplo a fim de com preender toda e qualquer alteração mórbida da saúde mental apta a comprometer total ou parcialmente a capacidade de entendimento do seu portador como esquizofrenia psicose maníacodepressiva psicose alcoólica paranoia epilepsia demência senil pa ralisia progressiva sífilis cerebral arteriosclerose cerebral histeria etc53 pouco im portando a causa geradora de semelhante estado se natural ou tóxica v g uso de droga lícita ou ilícita por exemplo De acordo com a classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID10 Organização Mundial de Saúde OMS a inimputabilidade total ou par cial pode resultar dentre outros dos seguintes transtornos demência na doença de Alzheimer demência vascular transtornos mentais decorrentes de lesão e disfunção 50 Jakobs Derecho penal cit p 630 51 ROXTN Claus Derecho Penal Parte General Tomo 1 Tradución de DiegoManuel Luzón Pena Miguel Díaz y Garcia Conlledo Javier de Vicente Remesal Madrid Civitas 1997 p 823 Tradicio nalmente se habla aquí de un método biológicopsicológico de constatación de la inimputabilidad La base dei mismo es la idea de que primero habrían de se constatados determinados estados orgánicos biológicos y que a continuación se habría de examinar si estaba excluída por ellos la capacidad psicológica de comprensión o de inhibición Sin embargo de esse modo no se caracte1izan correc tamente los datos pues muchos trastomos de conciencia v gr el estado pasional intenso la oligofre nia no1malpsicológica y la anomalia psíquica grave que comprende sobre todo las psicopatias las deficiencias corporalesorgánicas biológicas Tampoco la constatación de la capacidad de actuar de otro modo es como se expuso supra 19 nm 3539 un dato psicológico sino que se basa sustan cialmente también em usa aserción normativa Por eso em la literatura científica se habla hoy com frecuencia de un método psíquiconormativo o psicológiconormativo 52 Segundo Goodwin nem os advogados nem os médicos conseguiram desenvolver seja separada seja conjuntamente uma definição rígida de insanidade pela simples razão de que não existe nenhuma apud Mestieri Manual cit p 169 53 Mirabete Manual cit p 2 1 1 378 cerebrais transtornos mentais decorrentes de uso de substância psicoativa esquizofrenia transtornos do humor afetivos transtorno afetivo bipolar transtorno depressivo recorrente transtornos neuróticos relacionados ao estresse transtornos alimentares transtornos mentais e de comportamentos associados ao puerpério transtornos específicos de personalidade transtorno de personalidade paranoide esquizoide antissocial retardo mental leve moderado grave profundo etc Como transtornos de hábitos e impulsos são citados o jogo patológico o comportamento incendiário patológico piromania roubo patológico cleptomania como transtornos de identidade sexual e preferência sexual transexualismo fetichismo travestismo exibicionismo voyeurismo pedofilia sadomasoquismo etc Já o desenvolvimento mental incompleto referido no dispositivo não atinge em primeiro lugar os menores de dezoito anos já que o art 27 os declara de forma absoluta penalmente inimputáveis independentemente do nível de maturidade que alcancem Restam assim todos aqueles que por qualquer razão não tenham atingido após completar dezoito anos desenvolvimento mental completo desde que nessa condição não tenham de fato adquirido discernimento pleno Vale dizer a inimputabilidade de tais sujeitos deverá ser aferida caso a caso conforme o grau maior ou menor de maturidade e socialização Repitase o Código adotou método psíquiconormativo E o desenvolvimento mental retardado é o estado de pessoas portadoras de algum distúrbio ou transtorno mental privados total ou parcialmente da capacidade de autodeterminação No caso de prática de crime definido na Lei de Drogas Lei nº 113432006 se a inimputabilidade decorrer do uso de droga ilícita o agente ficará isento de pena podendo o juiz submetêlo a tratamento médico adequado art 45 se semiimputável reduzirseá a pena de um terço a dois terços art 46 Finalmente parecenos que não existem a rigor fenômenos psiquiátricos mas apenas uma interpretação psiquiátrica dos fenômenos Nietzsche motivo pelo qual a imputabilidade mais do que um estado mental do sujeito é uma atribuição a esse título Exatamente por isso os laudos psiquiátricos não raro se contradizem ora afirmando ora negando a inimputabilidade PAULO QJ E I ROZ A medida de segurança não poderá ser aplicada se o crime já tiver sido atingido por qualquer causa de extinção de punibilidade CP art 107 cc o art 96 parágrafo único a exemplo da prescrição Enfim a imposição de medida de segurança exige à semelhança da pena em nome do princípio da igualdade principalmente a presença de todos os pressupostos da punibilidade fato típico ilícito culpável e punível com exceção da própria imputa bilidade exclusivamente 613 Redução de pena no caso de imputabilidade diminuída Verificandose que o agente em virtude de perturbação da saúde mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento CP art 26 parágrafo único o juiz poderá optar CP art 98 conforme seja mais recomendável ao caso entre aplicar pena ou medida de segurança sistema vicariante não podendo aplicar ambas cumulativamente siste ma binário abolido pela reforma de 1984 A imputabilidade ou capacidade de culpa bilidade diminuída não é todavia uma forma de semiimputabilidade pois o sujeito é ainda capaz de compreender o caráter iajusto do fato e de atuar conforme essa compreensão54 Na hipótese de decidir pela aplicação da pena o juiz deverá reduzila de um a dois terços obrigatoriamente Também no caso de superveniência de doença mental ao cometimento do crime o agente será submetido à medida de segurança 62 Menoridade penal Por expressa determinação constitucional são penalmente inimputáveis os meno res de 18 anos sujeitos às normas da legislação especial CF art 228 CP art 27 Lei nº 806990 art 104 A legislação especial a que se refere o texto é a Lei nº 806990 mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente ECA Talvez mais do que em qualquer outro lugar fica aqui evidente o caráter mar cadamente político do direito penal capítulo que é da anatomia política55 uma vez que atualmente menores de dezoito anos 15 16 17 têm em geral à semelhança dos maiores 18 19 20 plena capacidade de discernir entre o lícito e o ilícito de sorte que ao se adotar um tal critério objetivo de imputabilidade mais do que à maturidade do sujeito atendese a uma questão de conveniência políticocriminal O decisivo não é portanto saber se o menor de dezoito anos é ou não capaz de autodeterminação mas se é socialmente útil e politicamente recomendável castigar penalmente antes dessa idade ou só a partir dela 54 Roxin Derecho penal cit p 839 55 A expressão é de Foucault 380 I I I I TEORIA DA CU LPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CU LPABILIDADE Ao estabelecer a maioridade penal somente a partir dos dezoito anos o legislador adotou um critério puramente etário pouco importando se o agente era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento CP art 26 Importa saber exclu sivamente se ao tempo do crime ação ou omissão e não ao tempo da consumação resultado ou do julgamento o agente já tinha dezoito anos Tratandose portanto de presunção legal absoluta de inimputabilidade não im porta se o autor adquiriu a maioridade civil na forma da lei v g casamento ou se é superdotado multirreincidente etc Para efeitos penais a capacidade civil é irrelevante Se o autor for menor de dezoito anos à época do crime responderá então por ato infracional ECA art 103 conduta descrita como crime ou contravenção ficando sujeito às medidas socioeducativas previstas no art 1 12 do ECA cuja forma mais dura a internação sujeitase entre outros aos princípios de excepcionalidade e brevidade não podendo em nenhuma hipótese exceder a três anos sendo compul sória a liberação aos vinte e um anos de idade conforme dispõe o ECA art 121 e parágrafos No caso de crime permanente isto é crime cuja consumação se renova no tempo enquanto se mantém a violação ao bem jurídico por decisão do agente este responderá segundo o Código Penal sempre que atingir a maioridade durante a permanênciacon sumação 63 Coação moral irresistível CP art 22 A culpabilidade é também excluída sempre que houver coação moral irresistível já a coação física irresistível exclui a própria tipicidade relativamente ao agente que a sofre se resistível a coação física ou moral o fato é punível com pena atenuada A coação física é exercida sobre o corpo do coagido v g constrangendoo a assinar um documento e a coação moral consiste na ameaça de causarlhe mal grave v g matar um filho Com efeito embora por coação se deva entender o emprego de violência física vis absoluta ou moral vis compulsiva para constranger alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa somente a coação moral irresistível constitui autêntica causa de exclu são de culpabilidade uma vez que quem atua sob coação física irresistível não pratica sequer uma ação típica seja por ausência de açãovontade seja por não existir relação causal entre o fato praticado e a atuação do coagido que assim é mero instrumento do autor da coação autor mediato Portanto enquanto o coagido físico pratica uma não ação isto é um comporta mento atípico o coagido moral comete fato típico ilícito mas inculpável em virtude da inexigibilidade de conduta diversa Em ambos os casos porém o autor da coação responderá pelo ato pois nos termos do art 22 segunda parte do Código Penal só é punível o autor da coação autor mediato E no caso de coação resistível física ou moral o fato é punível com pena atenuada 381 PAULO Qlj E I ROZ Na coação moral irresistível exercitável por meio de intimidação grave como ameaça de revelar segredo ou de causar mal grave a alguém o coagido é efetivamente o autor de uma ação típica e antijurídica mas inculpável uma vez que não atua livre mente devendo em consequência responder pelo crime o autor da coação unicamen te que também sofrerá a incidência da agravante prevista no art 62 II do Código De notar que ameaças vagas e imprecisas não podem ser consideradas graves para configurar coação irresistível e justificar a isenção de pena devendo tratarse de mal efetivamente grave e iminente sendo indiferente que se dirija ao próprio coagido ou a alguém de suas ligações afetivas56 Naturalmente que a verificação da gravidade da coação e de sua resistibilidade há de ser feita concretamente segundo a natureza e a importância dos interesses em jogo conforme o princípio da proporcionalidade bem assim a capacidade de resis tência do coagido em especial sua sensibilidade não bastando tomar como referên cia para tanto ao contrário do que sustenta Hungria57 o homo medius sob pena de se punir alguém com base e a partir de uma simples ficção passando a pena a ter caráter puramente exemplificador em prejuízo da dignidade da pessoa humana cul pando um inculpável Necessariamente a coação irresistível exige três protagonistas autor da coação coator coagido quem sofre a coação e vítima terceiro que sofre as consequências da ação do coagido uma vez que se o coagido for a própria vítima haverá simples mente um crime contra esta e se o coagido eventualmente opuser resistência contra o coator poderá ocorrer legítima defesa inclusive Damásio de Jesus considera que além de o coator responder pelo crime com a agravante do art 62 II deverá também responder por constrangimento ilegal con tra o coagido CP art 146 de sorte que se por exemplo A sob ameaça de morte constrange B a lesionar a integridade física de C A responderá pelos crimes de lesão corporal e constrangimento ilegal em concurso formal art 70 com a incidência da agravante referida58 Mas semelhante interpretação não procede porque importa em bis in idem devendo A no exemplo dado responder unicamente pelo crime de lesão corporal com a agravante genérica do art 62 II Pela mesma razão também não pode incidir o art lº 1 b da Lei nº 945597 constranger alguém com emprego de violên cia ou grave ameaça causandolhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa Tratandose de coação resistível física ou moral porque superável sem sacrifí cios extraordinários haverá concurso de agentes coautoria ou participação punível podendose invocar em favor do coagido a atenuante do art 65 III c primeira parte do CP exclusivamente 56 Cezar Bitencourt Manual cit p 3 13 57 Comentários cit p 258 58 Direito penal cit p 490 382 Por fim em tese é possível que o coagido se encontre em uma situação de erro ocorrendo coação moral putativa se tomar como real uma ameaça que de fato não existe ou deixou de existir 64 Obediência hierárquica CP art 22 Exclui a culpabilidade a estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico entendendose por ordem hierárquica a manifestação de vontade do titular de uma função estatal a um funcionário que lhe é subordinado para que realize determinada ação ou omissão Somente haverá a exclusão de culpabilidade quando o subordinado atuar rigorosamente dentro dos limites da ordem determinada pois do contrário responderá pelo excesso Exatamente por isso não é de todo exato o provérbio soldado mandado não tem crime A natureza jurídica do instituto é ambígua porque embora a doutrina o tenha como uma forma especial de erro de proibição pois quem obedece a uma ordem hierárquica não manifestamente ilegal supõe praticar fato autorizado pela lei carecendo assim da consciência do injusto não se pode ignorar que o subordinado em tais casos encontrase também no estrito cumprimento putativo de dever legal uma vez que imagina que ao obedecer à ordem está cumprindo seu dever legal de funcionário subordinado Assim por exemplo pode invocar a excluente de culpabilidade o diferente policial que a mando de Delegado de Polícia realiza prisões ilegais A obediência hierárquica para ensejar a excluente exige o concurso simultâneo dos seguintes requisitos a proceder de autoridade competente b dispor do subordinado de atribuição legal para a prática do ato c não ser a ordem manifestamente ilegal Cuidandose de ordem manifestamente claramente ilegal não haverá exclusão de culpabilidade uma vez que o seu executor atua com plena consciência do caráter ilícito do ato cuja execução se promove Assim não pode invocar a estrita obediência à ordem não manifestamente ilegal o policial que a mando de seu superior pratica homicídio extorsão roubo etc embora possa em tese invocar coação moral se for o caso Tratandose de servidor militar cumpre esclarecer que embora não lhe seja dado questionar a legalidade da ordem visto ter o dever de obediência podendo a desobediência configurar insubordinação CPM art 163 inclusive não está ele obrigado a cumprir ordens manifestamente criminosas art 38 2º Só a hierarquia decorrente de relação de direito público entre superior e inferior pode ensejar a excluente prevista no art 22 não se compreendendo aí a derivada de relações privadas como relações de trabalho religiosas etc que podem isentar ou atenuar a culpa por motivo diverso coação moral inexigibilidade de conduta diversa etc PAULO QlEIROZ Se for reconhecida a inculpabilidade do subordinado hierárquico responderá pelo ato o superior hierárquico autor da ordem não manifestamente ilegal autoria mediata E no caso de obediência a ordem manifestamente ilegal o fato é punível a título de coautoria ou participação relativamente ao autor da ordem e seu executor Por fim também aqui é possível que o inferior hierárquico se encontre numa situa ção de erro podendo ocorrer obediência hierárquica putativa 65 Embriaguez A embriaguez é a perda total ou parcial da capacidade de autodeterminação em razão do uso de droga lícita ou ilícita De acordo com o Código somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade Nos demais casos o agente é em princí pio culpável e punível Com efeito a embriaguez pode ser voluntária dolosa ou culposa ou involuntária acidental Dizse voluntária quando o agente faz livre uso de droga lícita ou ilícita e perde assim total ou parcialmente a capacidade de discernimento Será dolosa ou voluntária segundo o Código quando o autor fizer uso da substância com a intenção de embriagarse e culposa quando fora do caso anterior embriagarse por imode ração ou imprudência E é preordenada quando o agente se embriaga com o fim de cometer crime Diversamente considerarseá involuntária a embriaguez quando resultar de caso fortuito v g desconhece que determinada substância produz embriaguez ou força maior v g é constrangido à embriaguez Se se tratar de embriaguez involuntária completa excluirseá a culpabilidade do agente que praticar um fato típico e ilícito E se for o caso de embriaguez involuntária incompleta hipótese em que não obstante isso preservase uma certa capacidade de autodeterminação o agente responderá por crime mas com pena reduzida de 13 a 23 CP art 28 II 2º 651 Embriaguez involuntária Conforme vimos somente a embriaguez involuntária completa isto é que resul ta de caso fortuito ou força maior acarreta a exclusão da culpabilidade Nesse exato sentido dispõe o art 28 1 º do CP é isento de pena o agente que por embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior era ao tempo da ação ou da omissão inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento Assim somente é excluída a culpabilidade quando se provar que o agente estava ao tempo da ação inteiramente privado de discernimento em razão de embriaguez acidental isto é que não resultou de decisão própria Se se tratar de embriaguez involuntária incompleta que ocorre quando o autor mantém certa capacidade de autodeterminação a culpabilidade subsistirá mas o agen te fará jus à diminuição da pena de um a dois terços CP art 28 2 A pena pode ser reduzida de um a dois terços se o agente por embriaguez proveniente de caso for tuito ou força maior não possuía ao tempo da ação ou da omissão a plena capacidade 384 l 1 1 I TEORIA DA CU LPABI LIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILI DADE de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendi mento Enfim a embriaguez involuntária completa é excludente de culpabilidade razão pela qual isenta o autor de pena já a embriaguez involuntária incompleta é apenas ate nuante de culpabilidade importando na diminuição da pena 65f Embriaguez voluntária No caso de embriaguez voluntária dolosa ou culposa completa ou incompleta o agente responderá por crime ainda que ao tempo da ação fosse inteiramente incapaz de autodeterminação uma vez que de acordo com o Código não exclui a imputabili dade penal a embriaguez voluntária ou culposa pelo álcool ou substância de efeitos 1 análogos art 28 II Enfim a embriaguez voluntária é em princípio penalmente 1 irrelevante uma vez que não isenta o réu de pena nem a atenua 1 Mas isso não quer dizer que sempre que o agente se embriagar dolosamente res ponderá por crime doloso nem que o imprudente sempre responderá por crime culpo so pois em realidade responderá por crime doloso ou culposo conforme tenha agido com dolo ou culpa podendo ocorrer inclusive como é comum v g crimes de trânsi to de embora embriagado dolosamente praticar crime culposo bem como embria gadq culposamente cometer crime doloso61 Não se deve confundir portanto a vontade de embriagarse com a vontade de delinquir Mas não só A embriaguez voluntária não importa necessariamente em respon sabilidade penal Com efeito na hipótese de imprevisibilidadeinevitabilidade do fato o autor não responderá penalmente mesmo que se encontre em estado de embriaguez voluntária dolosa ou culposa completa ou não sob pena de responsabilização penal objetiva situação incompatível com os princípios constitucionais penais Assim por exemplo não responde penalmente o agente que vem a atropelar um pedestre imprudente que avarice o sinal vermelho se se provar a inevitabilidade do acidente ainda que o condu tor do veículo estivesse sóbrio É que inexistirá nexo causal entre o estado de embria guez e o acidente provocado E mais os crimes culposos pressupõem a criação de um risco proibido e a realização desse risco no resultado 61 Convém evitar assim como assinala Mir Puig o equívoco consistente em pensar que o delito cometi do sob o efeito de embriaguez voluntária sempre tenha sido provocado voluntariamente dolosamen te ou que a embriaguez culposa supõe que o delito que se comete nesse estado haja podido preverse e se deva atribuir à imprudência A embriaguez voluntária não preordenada pode dar lugar a um fato não só não querido previamente como sequer previsto ou previsível e do mesmo modo a embriaguez culposa também pode motivar um fato imprevisível Em suma que o sujeito se tenha embriagado voluntariamente ou por imprudência não significa que se pratica delito em tal estado haja querido o fato nem que este era previsível pois se pode querer ou prever a embriaguez sem querer nem ser previsível que se vai produzir a lesão de um bem jurídico Derecho penal cit p 605 385 Enfim a só condição de embriagado não implica responsabilidade penal necessariamente razão pela qual o decisivo é apurar em cada caso se o agente se houve com dolo ou culpa Além disso nada impede que o autor possa eventualmente invocar excludentes de ilicitude legítima defesa etc ou de culpabilidade erro de proibição inevitável etc Em síntese de acordo com o Código somente a embriaguez involuntária completa exclui a culpabilidade nos demais casos o autor é em princípio culpável e punível Mas isso não significa que sempre que o agente se encontrar em estado de embriaguez voluntária será forçosamente culpável visto que poderá se valer em tese de excludentes de tipicidade e de ilicitude e inclusive de excludentes de culpabilidade Consequentemente o art 28 II do Código Penal deve ser assim interpretado a fim de evitar responsabilidade penal objetiva ou sem culpa apesar da embriaguez voluntária não excluir a culpabilidade a imputação de crime ao agente embriagado pressupõe inevitavelmente a comprovação de todos os seus requisitos tipicidade ilicitude e culpabilidade Afinal a embriaguez prova em princípio a embriaguez mesma mas não a puniabilidade inexorável da conduta Finalmente dizse preordenada a embriaguez espécie de embriaguez voluntária dolosa em que tem plena aplicação a teoria da actio libera in causa quando o sujeito se embriaga propositadamente com dolo de cometer determinado delito Uma vez provada a embriaguez preordenada o agente além de responder por crime doloso terá a pena agravada CP art 61 II I visto que a preordenação constituirá uma circunstância agravante E a embriaguez reconhecidamente patológica é equiparada à doença mental aplicandose ao inimputável a norma do art 26 do CP 66 Emoção e paixão De acordo com o Código art 28 I não excluem a imputabilidade penal a emoção e a paixão amor ódio medo prazer cólera previsão aliás absolutamente necessária mesmo porque são inimagináveis crimes sem alguma emoção ou paixão 1 1 1 I TEORIA DA CULPABILIDADE CAUSAS DE EXCLUSÃO DE CULPABILIDADE mais ou menos reprovável64 No entanto a influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima constitui circunstância atenuante CP art 65 III c última parte Nalguns crimes específicos v g homicídio lesão corporal pode ainda ocorrer diminuição de pena como no homicídio privilegiado CP art 121 1º sempre que for cometido sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação da vítima Emoção é a agitação de sentimento abalo afetivo ou moral turbação comoção paixão é sentimento gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão grande entu siasmo por alguma coisa65 A doutrina as distingue dizendo que a emoção é um estado afetivo de momentânea perturbação da personalidade ao passo que a paixão é uma emoçãosentimento isto é um processo afetivo duradouro66 Eventualmente a emoção e a paixão poderão assumir caráter mórbido apto a com prometer total ou parcialmente a capacidade de autodeterminação do autor hipótese em que incidirá o art 26 do Código 64 Critica a disciplina do Código entendendo que o legislador deveria ser mais sensível aos problemas que podem derivar da emoção e da paixão Mestieri Manual cit p 1 78179 Idem Juarez Cirino para quem a emoção como gênero e a paixão como espécie do gênero ou seja emoção extrema da são forças primárias das ações humanas determinantes menos ou mais inconscientes das ações individuais cuja inevitável influência nos atos psíquicos e sociais do ser humano precisa ser com patibilizada com o princípio da culpabilidade em futuros projetos políticocriminais brasileiros A moderna teoria cit p 222 65 Dicionário Houaiss Rio de Janeiro Ed ObjetivaInstituto Antônio Houaiss 2001 66 Fragoso Lições cit p 202 387 Sumário 1 Concurso material ou real pluralidade de ações e crimes 2 Concurso formal ou ideal unidade de ação e pluralidade de crimes 3 Crime continuado pluralidade de ações e unidade de crime 31 Requisitos 32 Estupro e atentado violento ao pudor na Lei nº 120152009 33 Pena 34 Crime continuado específico 341 Pena O Código prevê três formas de concurso de crimes concurso formal material e continuidade delitiva instituto que não se confunde com o chamado conflito aparente de normas já referido aqui há em princípio vários crimes lá crime único Naturalmente que a distinção entre uma coisa e outra não preexiste à interpretação mas é dela resultado razão pela qual juízes e tribunais não raro divergem sobre o assunto ora reconhecendo a unidade ora a pluralidade de crimes E tampouco há incompatibilidade entre concurso aparente e concurso de crimes que podem coexistir eventualmente 1 CONCURSO MATERIAL OU REAL PLURALIDADE DE AÇÕES E CRIMES Dáse o concurso material quando o agente mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes idênticos ou não situação em que as penas são aplicadas cumulativamente art 69 Na primeira hipótese de prática de crimes idênticos falase de concurso homogêneo vg vários furtos na segunda de concurso heterogêneo porque diversos os crimes vg furto e homicídio A expressão ação ou omissão deve ser tomada no sentido de conduta de sorte que se o agente subtrai objetos diversos num mesmo apartamento pratica uma única ação de subtrair isto é um único crime de furto não existindo concurso de delitos É que uma conduta criminosa é normalmente composta de vários atos que formam um todo Naturalmente que o número de crimes nem sempre coincide com o número de ações visto que assim como ações diversas podem constituir um só crime vg crime habitual uma única ação poderá eventualmente configurar vários delitos vg concurso formal Havendo concurso material as penas dos vários crimes são somadas critério do cúmulo material não podendo sua duração exceder a trinta anos CP art 75 PAU LO Q1EIROZ 2 CONCURSO FORMAL OU IDEAL UNIDADE DE AÇÃO E PLURA LIDADE DE CRIMES Já no concurso formal CP art 70 menos frequente o agente pratica uma única ação ou omissão causando no entanto dois ou mais crimes Exemplo A atira contra B vindo a ofender porém B e C ou dirigindo imprudentemente colide com um outro veículo e causa a morte culposa de várias pessoas Havendo concurso formal de crime o agente responde em princípio por um só crime com pena aumentada Consequentemente aplicase ao agente a mais grave das penas cabíveis ou se iguais somente uma delas mas aumentada em qualquer caso de um sexto até a metade critério da exasperação devendo o respectivo aumento va riar conforme o número de vítimas Assim se no exemplo dado inicialmente B morre e C sofre lesões corporais aplicarseá a pena do homicídio doloso com aumento de corrente do concurso que variará de um sexto até a metade Dito de outro modo dife rentemente do concurso material no concurso formal as penas dos vários crimes não são somadas devendo ser aplicada uma única pena acrescida do aumento decorrente do concurso Excepcionalmente será aplicada ao concurso formal a regra do concurso mate rial Tal ocorrerá quando os vários crimes embora decorrentes de uma ação única resultarem de desígnios autônomos concurso formal imperfeito isto é sempre que o agente quiser praticar dolosamente os vários crimes mediante uma única ação v g se o agente querendo matar um grupo de pessoas aciona uma bomba É o que dispõe o art 70 final as penas aplicamse entretanto cumulativamente se a ação ou a omis são é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos consoante o disposto no artigo anterior Nalgumas hipóteses a aplicação da regra do concurso formal poderá resultar numa apenação mais severa do que aquela que seria cabível para o concurso material con curso material benéfico Assim se conforme o exemplo referido inicialmente resul tando homicídio de B e lesão corporal leve de C se aplicasse a pena do homicí dio doloso digamos 1 2 anos de reclusão com aumento de metade chegarseia a uma pena de dezoito anos de reclusão ao passo que se se aplicasse a regra do concurso material resultaria uma pena de treze anos já que a lesão leve art 129 é punida com pena máxima de um ano de detenção situação mais favorável ao agente não obstante a aplicação cumulativa de penas É para evitar tal incoerência que o Código determina em respeito ao princípio da proporcionalidade que a pena do concurso formal não poderá exceder àquela que seria cabível para o concurso material art 70 parágrafo único 390 1 1 2 1 CONCURSO DE CRIMES 3 CRIME CONTINUADO PLURALIDADE DE AÇÕES E UNIDADE DE CRIME Diz o Código art 71 ao dispor sobre o crime continuado3 que quando o agente mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e pelas condições de tempo lugar maneira de execução e outras semelhantes devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro aplicaselhe a pena de um só dos crimes se idênticas ou a mais grave se diversas aumentada em qualquer caso de um sexto a dois terços O chamado crime continuado constitui assim uma forma de concurso material o agente mediante mais de uma ação ou omissão pratica dois ou mais crimes mas o le gislador por motivos de conveniência políticocriminal tratouo como se constituísse um úhico crime cuidandose de uma ficção legal unidade jurídica de ação Semelhante equiparação tem por objetivo preservar o princípio de proporciona lidade pois reconhecido o concurso material puramente o agente poderia sofrer em muitos casos pena absolutamente incompatível com a lesividade dos crimes praticados Assim por exemplo o falsário que de posse de 10 dez cédulas falsas colocasse em circulação uma nota a cada dia a fim de evitar suspeitas poderia ser castigado por dez orimes autônomos em concurso material sofrendo ao final pena de 30 anos de prisão se aplicada a pena mínima 3 anos de reclusão para cada infração cometida E é para evitar tais excessos que o Código consagra o instituto da continuidade delitiva Ainda hoje muitas são as críticas feitas ao instituto da continuidade delitiva As sim Jescheck assinala que se trata de uma concessão imprópria propugnando inclu sive 1por sua abolição4 Também Stratenwerth afirma que carece de todo fundamento legal constituindo do ponto de vista políticocriminal um fenômeno altamente pro blemático 5 De acordo com Eduardo Novoa Monreal não existe conceito penal mais conf1so e anárquico Grandes diferenças nas legislações penais enormes discrepân cias de parte dos tratadistas e uma apreciação muito instável de parte da jurisprudência de quase todos os países são as notas dominantes a seu respeito6 No entanto o instituto é uma realidade que se impôs e se consolidou histórica e juridicamente Apesar disso força é convir que os critérios para sua delimitação são ainda bastante vagos e incertos sendo mui larga a margem de discricionariedade para o seu reconhecimento Conforme se verá atualmente a continuação delitiva é possível inclusive quando se tratar de crimes violentos contra vítimas diversas estando revogada portanto a 3 Para uma análise exaustiva do tema vide Ney Fayet Júnior Do Crime Continuado Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2012 4 Tratado cit p 652653 5 Derecho penal cit p 353 6 Apud Ney Fayet Júnior Prescrição Penal Temas atuais e controve11idos V 1 Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2007 391 PAULO QJ E I ROZ Súmula 605 do STF anterior à reforma da nova Parte Geral de 1984 que não admitia a continuidade nos crimes contra a vida7 E a continuidade delitiva poderá ser reconhecida tanto no processo de conheci mento quanto depois de proferida a sentença condenatória pelo juiz da execução sem pre que presentes os seus requisitos legais e respeitados os limites da coisa julgada 31 Requisitos À semelhança do concurso material só se pode cogitar de crime continuado diante de várias condutas e não de uma única ainda que composta de uma plura lidade de atos Também por isso não deve ser confundido com o crime habitual v g associação criminosa em que há uma só conduta composta de vários atos não constituindo nenhum deles isoladamente crime algum tampouco deve ser confun dido com o crime permanente v g sequestro em que há um único delito mas cuja consumação se renova no tempo enquanto se mantém a violação ao bem jurídico por decisão do agente Naturalmente que não se pode equiparar à categoria de crime continuado a simples reiteração de crimes pois para a sua configuração os crimes praticados devem guardar entre si uma relação de interdependência ou de necessária sucessão de modo que os subsequentes possam ser havidos realmente como continuação do primeiro cuidandose por conseguinte de situação excepcional a ser apreciada com muita prudência Para o reconhecimento da continuidade delitiva é necessário que haja homoge neidade entre as várias infrações homogeneidade que deve ser apurada segundo as condições de tempo lugar maneira de execução e outras semelhantes Os critérios para apreciação da continuidade são pois de ordem objetiva logo objetivamente ava liáveis mas há quem exija unidade subjetiva como condição para o seu reconhecimen to8 E tais circunstâncias devem ser apreciadas conjuntamente já que formam um todo não tendo qualquer delas por si só valor decisivo seja para afirmar o concurso seja para negálo Quanto ao tempo que deve decorrer entre os delitos o assunto é controvertido na jurisprudência principalmente havendo julgados que admitem a continuidade quan do entre as infrações medeia um lapso de tempo de até um mês e outros mais liberais que a admitem até o limite de três meses entre um delito e outro 7 Súmula 605 Não se admite a continuidade delitiva nos crimes contra a vida 8 De acordo com Ney Fayet Júnior parece certo que o nosso CP adotou a concepção puramente ob jetiva do crime continuado para a qual a unificação das diferentes condutas se realiza por meio de elementos e circunstâncias de índole essencialmente objetiva O delito continuado se perfaz assim a partir de condutas homogêneas que são realizadas de modo subsequente as quais a norma penal estabelece ao invés da soma de penas a unificação das penalidades O ordenamento ju rídico do Brasil silenciou em relação à necessidade de um elemento subjetivo unificante a presidir a configuração da continuidade delitiva em face do que a homogeneização das ações se materializa em dados inteiramente objetivos Do crime continuado Porto Alegre Livraria do Advogado edi tora 2013 p l 96 392 1 1 2 1 CONCURSO DE CRIMES Exigese além disso que os crimes cometidos sejam da mesma espécie Discu tese o que são crimes da mesma espécie havendo posicionamento mais restrito no sentido de que são exclusivamente os delitos previstos no mesmo tipo penal v g só furto assim como no sentido de que são crimes da mesma espécie todos os que ofen dem o mesmo bem jurídico idênticos ou não v g furto e roubo De acordo com este segundo posicionamento mais amplo e mais razoável em tese é possível por exemplo o reconhecimento da continuidade delitiva entre o roubo e a extorsão crimes contra o patrimônio ou entre o homicídio e o aborto crimes contra a vida em razão da semelhança jurídicopenal que há entre eles visto implicarem violação ao mesmo bem jurídico E assim deve ser porque se para a configuração do crime continuado faria sentido exigir a identidade de tipos penais na vigência do Có digo de 1940 a partir da reforma da Parte Geral em 1984 tal não mais se justifica uma vez que o legislador passou a admitir a continuidade delitiva inclusive para os crimes dolosos praticados com violência ou grave ameaça à pessoa contra vítimas diferentes razãoi pela qual o seu conceito foi sensivelmente ampliado Nesse exato sentido o Código Penal português art 302 dispõe que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente Aliás conforme vimos ao tratar do concurso aparente de normas nem mesmo a diversidade de bens jurídicos pode impedir absolutamente a continuidade porque semeihante critério identidade de bem jurídico embora importante e indiciário da ocorrência ou não do crime continuado não pode ser levado a extremos sob pena de inviabilizálo em casos em que seria perfeitamente possível Com efeito se a diversidade de bens jurídicos for levada às últimas consequên cias então não se poderia por exemplo admitir a continuidade entre o sequestro e a extorsão mediante sequestro entre a violação de domicílio e o furto pois na extorsão e no furto se protege o patrimônio enquanto no sequestro e na violação de domicílio o bem jurídico protegido é a liberdade individual hipóteses em que há inclusive a pos sibilidade de reconhecimento de unidade de crime concurso aparente de normas por força da incidência do princípio da consunçãoabsorção 32 Estupro e atentado violento ao pudor na Lei nº 120152009 Be acordo com a Lei nº 120152009 o crime de estupro passa a ter a seguinte redação Constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso Vêse pois que comparada à anterior constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça a atual redação é mais ampla a ponto de com preender por inteiro o tipo de atentado violento ao pudor previsto no art 214 do CP constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal 393 Enfim o atual crime de estupro compreende além do estupro propriamente dito o antigo atentado violento ao pudor razão pela qual é evidente que o art 214 acabou por ser revogado expressamente inclusive art 7º É que o legislador fundiu num só tipo os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor Apesar de revogado o art 214 não houve abolição do crime de atentado violento ao pudor que agora passa a fazer parte do crime de estupro Não há cuidar pois de abolitio criminis mas de simples mudança do nomen juris da infração como convinha aliás visto que realmente não fazia sentido a velha distinção entre estupro e atentado violento ao pudor No essencial tudo continua portanto como antes Não obstante a expressa revogação do art 214 tem importantes consequências práticas Com efeito se antes da reforma parte da jurisprudência relatava em admitir a continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor ao argumento de que não eram crimes da mesma espécie CP art 71 já agora semelhantemente alegação restou superada em virtude da fusão dos tipos dos arts 213 e 214 Exatamente por isso caberá inclusive habeas corpusrevisão criminal em favor dos réus condenados por concurso material desses crimes para o fim de reconhecida a continuidade procederse ao recalculo da pena se o próprio juiz da execução não o fizer Está claro que o reconhecimento da continuidade delitiva só será possível se o único obstáculo para tanto tiver sido a alegação de não se tratar de crimes da mesma espécie Tratase como se vê de um caso de retroatividade da lei penal em razão de nova titio legis in melius Além disso não existe mais concurso formal ou material de crimes mas crime único pois sempre que o agente praticar num mesmo contexto atos libidinosos e conjunção carnal mesmo porque a lei tratou claramente a conjunção como espécie do gênero atos libidinosos além de tais atos fazerem agora parte do mesmo tipo penal Também por isso os réus eventualmente condenados em concurso formal ou material de estupro e atentado violento por praticarem num mesmo contexto tais atos libidinosos farão jus à revisão da pena Novatio legis in melius novamente 33 Pena Reconhecida a continuidade aplicarseá à semelhança do concurso formal uma só das penas necessariamente a mais grave das penas cabíveis se diversas aumentada de um sexto a dois terços Não poderia ser outra a solução legal visto que não continuação delitiva vários crimes formam um só fictivamente É um concurso material que recebe tratamento legal análogo ao concurso formal relativamente à pena Nesse sentido a doutrina e a jurisprudência propõem o seguinte critério 1 1 2 1 CONCU RSO DE CRI M ES Crime continuado ou continuidade delitiva regra de exasperação 16 até 23 2 dois crimes aumento 16 um sexto 3 três crimes aumento de 15 um quinto 4 quatro crimes aumento de 14 um quarto 5 cinco crimes aumento de 13 um terço 6 seis crimes aumento de Yi metade 7 sete ou mais crimes aumento de 23 dois terços O respectivo aumento de um sexto a dois terços variará conforme o número de infrações praticadas em continuidade proporcionalmente portanto 34 Crime continuado específico O Código prevê ainda que nos crimes dolosos contra vítimas diferentes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa o juiz poderá considerando a culpabilidade os antecedentes a conduta social e a personalidade do agente bem como os motivos e circunstâncias aumentar a pena de um só dos crimes se idênticas ou a mais grave se diversas até o triplo CP art 71 parágrafo único Tratase portanto de uma forma mais severa de apenação do crime continuado visto atentar contra bens jurídicos especialmente importantes vida liberdade etc Portanto além dos requisitos gerais já referidos a continuidade específica reclama os seguintes a crimes dolosos ficando excluídos em consequência os culposos b contra vítimas diferentes c com violência ou grave ameaça à pessoa entendendose como tal a ameaça violência contra a pessoa não bastando contra a coisa apenas d circunstâncias judiciais favoráveis Obviamente que todos os requisitos devem estar presentes sem exceção pois do contrário isto é ausente qualquer um a hipótese será a de não ocorrência da continui dade ou de aplicação do caput do art 71 que a pune menos severamente Admitida assim a continuação delitiva nos crimes dolosos com violência ou gra ve ameaça à pessoa contra vítimas diferentes restou revogada a Súmula 605 do Supre mo Tribunal Federal anterior à reforma da nova Parte Geral de 1984 que não permitia a continuidade nos crimes contra a vida Com efeito a Súmula 605 dispunha não se admite a continuidade delitiva nos crimes contra a vida 341 Pena Reconhecida a continuidade específica a pena será aumentada até o triplo aten dendo ao disposto no art 59 quanto à dosimetria da pena não podendo exceder logi camente àquela que seria cabível na hipótese de concurso material Por isso a remissão do art 71 ao parágrafo único do art 70 395 Parte III Consequências jurídicopenais 01Consequências JurídicoPena is do Crime Funções do Direito Penal teorias da pena Sumário 1 Introdução 1 INTRODUÇÃO A discussão sobre os fins e limites da pena ou mais amplamente a discussão sobre as funções do direito penal constituiu tema dos mais controversidos e tema político por excelência uma vez que o direito penal é ao menos na perspectiva do Estado uma forma de gestão política de conflitos nem a única nem a mais importante Daí dizer Tobias Barreto que quem procura o fundamento jurídico da pena deve procurar também o fundamento jurídico da guerra¹ O Direito Penal é a forma da guerra em tempos de paz Há quem entenda inclusive ser impossível saber por que realmente se castiga² ou simplesmente negue qualquer fim racional à pena a exemplo de Eugênio Raúl Zaffaroni para quem a pena é um exercício de poder que está deslegitimado mas que existe como um dado da realidade como um fato político como um fato de poder³ Algumas Constituições assinalam expressamente uma determinada finalidade à pena a exemplo da italiana espanhola e portuguesa A italiana art 27 dispõe que as penas não podem consistir em tratamentos contraditórios ao senso de humanidade e devem tender à redenção do condenado A espanhola art 25 2º prevê que as penas privativas de liberdade estão orientadas para a reeducação e reinserção social e não podem consistir em trabalhos forçados E a portuguesa art 40 1 diz que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade PAULO QlJ E I ROZ A Constituição brasileira nada diz a esse respeito explicitamente havendo quem defenda por isso a plausibilidade de uma teoria agnóstica da pena a partir dela4 que deve consistir numa política de redução de danos A Lei de Execução Penal art lº prescreve que a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado Naturalmente que os fins da sanção penal penas e medidas de segurança de vem pressupor uma sentença penal condenatória motivo pelo qual não é lícito em princípio pretender realizálos por meio de prisões provisórias porque do contrá rio já não haverá distinção entre processo de conhecimento e processo de execução É que prevenir novos crimes seja em caráter geral seja em caráter especial não constitui a rigor fim da prisão provisória mas fim da pena mesma a exigir ao me nos no Estado Democrático de Direito trânsito em julgado de sentença penal conde natória Também não é possível falar de fins do direito penal para além do tempo e do es paço mesmo porque os fins e limites do direito penal são em última análise os fins e limites do próprio Estado motivo pelo qual cada modelo de Estado pede um modelo de direito penal Convém assim não perder de vista o contexto econômico social e político em que a discussão se passa mesmo porque cada sociedade tem sempre suas próprias razões para castigar ou não castigar Atualmente duas principais correntes políticocriminais devem ser consideradas quanto à análise das funções da pena ou mais amplamente do direito penal a saber as teorias legitimadoras e as teorias deslegitimadoras As primeiras tradicionais re conhecem sob os mais diversos fundamentos absolutos relativos ou mistos legitimi dade ao Estado para intervir na liberdade dos cidadãos por meio do direito penal seja como retribuição seja como prevenção As segundas ao contrário negam semelhante legitimidade por considerar a intervenção penal desnecessária imediata perspectiva abolicionista ou mediatamente perspectiva minimalista radical Conforme se perceberá há várias teorias da pena umas legitimadoras outras des legitimadoras outras a um tempo legitimadoras e deslegitimadoras do poder de pu nir Verseá também que apesar de assim classificáveis não raro divergem quanto aos fundamentos do direito de punir Exatamente por isso não existe a rigor uma teoria preventiva especial mas diversas cujos argumentos e postulados nem sempre coincidem entre seus partidários Com efeito ora falam de ressocialização ora de não dessocialização ora propõem a ressocialização como uma finalidade a ser perseguida contra a vontade do condenado inclusive ora como um direito seu que não pode lhe ser imposto sob nenhum pretexto Semelhantemente a prevenção geral negativa pro posta por Ferrajoli não é a mesma que propõe Roxin que não é a mesma que propunha Feuerbach 4 Nesse sentido Saio de Carvalho Antimanual de criminologia Rio de Janeiro Lumen Juris 2008 400 01Consequências JurídicoPenais do Crime Funções do Direito Penal teorias da pena Enfim como toda classificação as teorias da pena encerram uma redução uma simplificação podendo compreender sob o mesmo título propostas políticocriminais um tanto dispares É que as mesmas palavras e conceitos não designam sempre as mesmas coisas nem o seu uso conduz necessariamente aos mesmos resultados De todo modo parecenos que contrariamente ao que pretendem em geral as diversas teorias não existe uma razão universal para castigar ou não castigar isto é aplicável a todo e qualquer caso e pois válida para além do tempo e do espaço motivo pelo qual cada caso pede uma legitimaçãodeslegitimação particular É que o direito penal como todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e por isso constitui uma universalização do não universal do singular um conceito nasce portanto da postulação de identidade do não idêntico⁵ O conceito de crime por exemplo referese a um semnúmero de condutas que a rigor nada têm em comum à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas matar alguém subtrair coisa alheia móvel emitir cheque sem provisão de fundos portar droga para consumo pessoal abater espécime de fauna silvestre etc espécime que pode variar de uma minhoça ou uma borboleta a uma onça pintada conceitos que por sua vez unificam coisas dispares Com efeito não existe um homicídio absolutamente igual a outro homicídio nem um furto absolutamente igual a outro furto nem um crime ambiental absolutamente igual a outro pois as múltiplas variáveis que sempre envolvem tais atos tornam cada ação humana única irrepetível Enfim um conceito é formado pela eliminação do que há de singular em cada ato e quanto mais exato mais abstrato e mais vazio de conteúdo se torna⁶ Em razão dessa estrutura analógica do direito seguese inclusive que nem todos os comportamentos de que se ocupa o direito penal merecem pena necessariamente nem tampouco a mesma pena ainda que se trate do mesmo tipo de infração v g furto praticado contra ascendente ou descendente não é punível nos termos do art 181 II do CP Além disso parte considerável das infrações penais poderia ser simplesmente abolida Além disso as leis penais presumem de parte de seus destinatários potenciais criminosos uma regularidade de expectativas emoções instintos e interesses que simplesmente não existem É que no fundo praticamos crimes pelas mesmas razões que não os praticamos isto é porque temos ou não motivações para tanto e essas motivações variam de pessoa para pessoa e são sempre novas Talvez por isso tivesse razão Nietzsche quando dizia que é impossível saber por que realmente se castiga e principalmente quando assinalava que o que chamamos justiça não é outra coisa senão uma transformação do ressentimento e pois uma forma de vingança com outro nome PAULO Q E I ROZ O presente capítulo pretende ser uma introdução a este tema sempre atual e con trovertido que é a crítica da razão punitiva e que encerra uma tríplice discussão por que punir o que punir e como fazêlo 402 metafisica a psicologia a representação histórica mas sobretudo a moral Também enquanto apenas pensou o homem arrastou para as coisas o bacilo da vingança Vontade de poder cit p 3803 8 1 02 TEORIAS LEGITIMADORAS Sumário 1 Teorias absolutas 11 Crítica 2 Teorias relativas prevenção geral e prevenção especial ou preventivas 21 Introdução 22 Prevenção geral negativa 221 Crítica 23 Prevenção geral positiva 231 Crítica 24 Prevenção especial ou individual 241 Crítica 3 Teorias ecléticas ou unitárias ou mistas 31 Introdução 32 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin 33 O garantismo de Luigi Ferrajoli 1 TEORIAS ABSOLUTAS Absolutas são todas as teorias que veem o direito penal como um fim em si mesmo independentemente de razões utilitárias ou preventivas de modo que a rigor conforme diz Roxin a pena não serve para nenhum fim¹ uma vez que sua legitimidade decorre do só fato de haver sido cometido um delito Nesse sentido são as teorias de Kant e Hegel Para Kant teoria da retribuição moral a pena se justificava pelo simples fato de retribuir justamente um crime praticado A pena constituía então uma reação estatal legítima à ação ilegítima do indivíduo independentemente de considerações de caráter utilitário razão pela qual era irrelevante investigar se a pena seria ou não capaz de motivar ou dissuadir delinquentes e assim prevenir em caráter geral ou especial novos delitos Enfim a pena se justifica quia peccatum est Com efeito de acordo com Kant as penas são em um mundo regido por princípios morais por Deus categoricamente necessárias² Justamente por isso ainda que uma sociedade se dissolvesse por consenso de todos os seus membros v g se o povo que habitasse uma ilha decidisse separarse e dispersarse pelo mundo então o último assassino deveria ser executado³ Para isso a lei de talião dente por dente olho por olho seria o paradigma da verdadeira justiça pois só a lei de talião proclamada por um tribunal pode determinar a qualidade e a quantidade da punição⁴ já que o mal imerecido que tu fazes a outrem tu fazes a ti mesmo se tu o ultrajas ultrajas a ti mesmo se tu o roubas roubas a ti mesmo se tu o matas matas a ti mesmo⁵ Consequentemente todos os criminosos que cometeram um assassinato ou ainda os que ordenaram ou nele estiveram implicados PAULO ÜJjEIROZ hão de sofrer também a morte assim o quer a justiça enquanto ideia do poder judicial segundo leis universais fundamentadas a priori 6 Se déssemos razão a Kant não faria sentido algum a previsão entre outras situa ções de causas de extinção de punibilidade prescrição etc nem de causas especiais de isenção de pena v g alguns crimes patrimoniais praticados contra ascendentes e descendentes por implicarem a renúncia à punição do autor em tese culpado de crime E uma teoria que veja a pena como uma retribuição jurídica pura e simples não tem como explicar tais casos É que as citadas hipóteses de isenção de pena s6 fazem sentido se tivermos em conta que o direito penal e os conceitos com os quais trabalha crime pena etc são dimensões do poder político razão pela qual antes de tudo cumpre saber o que pode e deve o Estado num dado momento histórico criminalizardescriminalizar e como fazêlo E uma teoria retributiva simplesmente não tem como responder a questões dessa ordem visto pressupor já decidido o problema de saber o que pode e deve ser punido e como punir E tampouco pode dar resposta às críticas das teorias que partindo do pressuposto de que o sistema penal é estruturalmente injusto pretendem deslegitimá lo e abolilo total ou parcialmente7 Apesar disso seja qual for a finalidade declarada assinalada à pena ela sempre deverá ter como pressuposto irrenunciável o cometimento de uma infração penal logo é nesse sentido uma retribuição Quanto a isso estamos todos de acordo Ferrajoli tem razão portanto quando assinala que as teorias retribucionistas con fundem razão legal por que castigar que se refere à legitimação externa da inter venção penal com razão judicial quando castigar que tem a ver com a legitimação interna e que consiste precisamente na retribuição8E Kant só se ocupou em verdade desse segundo problema Já para Hegel teoria da retribuição jurídica a pena que não responde a um man dado absoluto de justiça como em Kant9 é uma exigência da razão que se explica e se justifica a partir de um processo dialético inerente à ideia e ao conceito mesmo de direito 6 Kant Metafisica dos Costumes Parte Lisboa Edições 70 p 149 7 No mesmo sentido ferrajoli Derecho y razón Madrid Trotta editorial 1 995 p 256258 8 Derecho y razón Madrid Trotta editorial 1 995 p 256 9 Apesar disso Ferrajoli considera que só aparentemente se distinguem as concepções de Hegel e Kant uma vez que ao menos em Hegel que concebe o Estado como um espírito ético ou substância ética também a ideia de retribuição jurídica se baseia de fato em última análise no valor moral associado se não a cada imperativo penal à ordem jurídica lesionada Derecho y razón cit p 254 Já Eugênio Pacelli observa não ser exato considerar Hegel defensor de uma teoria retributiva da pena ainda que se possa reconhecer nele um partidário de uma teoria absoluta Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais Belo Horizonte Dei Rey 2004 p 3 1 404 1 02 1 TEORIAS LEGITIM ADORAS Com efeito o delito é uma violência contra o direito e a pena é uma segunda vio lência que anula aquela primeira logo a pena é a negação da negação do direito ou seja é a sua afirmação segundo a regra a negação da negação é a sua afirmação Ou como escreveu Basileu Garcia para Hegel o direito é uma manifestação da vontade racional e a pena é a reafirmação da vontade racional sobre a vontade irracional ser vindo para restaurar uma ideia precisamente para restaurar a razão do direito anulan do la razão do delito10 A legitimidade da pena é indiscutível portanto a pena com que se aflige o cri minoso não é apenas justa em si justa que é é também o ser em si da vontade do cri minoso uma maneira da sua liberdade existir o seu direito11 E em relação ao agente do delito a pena constitui um direito seu uma maneira de sua liberdade existir que o dignifica como ser racional pois está implicada na sua própria vontade no seu ato Porque vem de um ser de razão este ato implica a universalidade que por si mesma o crifiinoso reconheceu e à qual se deve submeter como ao seu próprio direito12 1l Crítica Tais teorias parecem de todo incompatíveis com o perfil dos Estados contempo râneos Estados funcionais ou instrumentais que encontram limites constitucionais intransponíveis em especial a dignidade da pessoa humana razão pela qual todo poder há Ide emanar do povo que o exerce por meio de seus representantes CF art 1 º pará grafo único não podendo o direito penal responder a nenhum propósito transcenden tal ou metafísico Além disso tal formulação parece absolutizar na pena todo controle social sendo inconciliável com a crescente relativização dos modos de atuação dos sistemas penais contemporâneos penas alternativas transação descriminalização despenalização Por fim ignora a própria injustiça ligada ao funcionamento ordinário doisistema penal até porque não raro a maior violência não consiste propriamente em contrariar a norma mas em preservála mantendose a proibição de algo que poderia seli permitido ou prevenido por outros meios mais adequados 2 TEORIAS RELATIVAS PREVENÇÃO GERAL E PREVENÇÃO ES PECIAL OU PREVENCIONISTAS 1 21 Introdução Em oposição às absolutas as teorias relativas são marcadamente teorias finalis tas 13 já que veem a pena não como fim em si mesmo mas como meio a serviço de deter minados fins considerandoa utilitariamente portanto Fim da pena é principalmente 1 0 Basileu Garcia Instituições de direito penal São Paulo Max Limonad 1980 p 73 1 1 Hegel Princípios de filosofia do direito São Paulo Martins Fontes 1 997 p 89 12 Hegel Princípios cit p 89 13 Maurach Derecho penal cit p 87 405 PAULO Q1 E I ROZ a prevenção de novos delitos daí porque são também conhecidas como teorias da pre venção ou prevencionistas Dividemse em teorias da prevenção geral positiva ou negativa e teorias da prevenção especial No primeiro caso de prevenção geral posi tiva a finalidade da pena é fortalecer os valores éticosociais veiculados pela norma estabilizar o sistema social ou semelhante no segundo de prevenção geral negativa a norma tem por objetivo motivar os seus destinatários a se absterem da prática de novos delitos finalmente para as teorias da prevenção especial o fim da norma é evitar a reincidência por meio da ressocialização do condenado ou similar 22 Prevenção geral negativa A principal versão da teoria da prevenção geral negativa devese a Paul Anselm Ritter von Feuerbach Para Feuerbach todos os crimes têm por causa ou motivação psicológica a sen sualidade na medida em que a concupiscência do homem é o que o impulsiona por prazer a cometer a ação A esse impulso da sensualidade opõese um contraimpulso que é a certeza da aplicação da pena Portanto fim da pena é a prevenção geral de no vos delitos por meio de uma coação psicológica exercida sobre seus destinatários dis tinguindose dois momentos da pena o da cominação e o da sua aplicação No primei ro o objetivo da pena é a intimidação de todos como possíveis protagonistas de lesões jurídicas no segundo o fim da norma é dar fundamento efetivo à cominação legal dado que sem a aplicação da cominação tal seria ineficaz14 Em ambos os momentos a direito penal tem por fim a prevenção geral negativa de futuros delitos 221 Crítica De acordo com Roxin nessa teoria permanece em aberto a questão de se saber em face de que comportamentos possui o Estado a faculdade de intimidar ou seja a doutrina da prevenção geral partilha com as doutrinas da retribuição a mesma debili dade isto é fica por esclarecer o âmbito do criminalmente punível15 E desde que se aceite que o fim de intimidação geral justifica a intervenção penal e desde que não lhe delimite o âmbito de atuação tal doutrina tende claramente para um Estado de máxima intervenção16 que se valerá da pena sempre que isso lhe parecer politicamente conveniente Apesar disso Mir Puig entende que quase todas as críticas atacam a prevenção geral porque esta não oferece limites ao poder punitivo do Estado admissíveis num Estado Democrático isto é criticase a prevenção geral porque conduz a prevenção excessivamente longe mas não se demonstra que a prevenção geral dentro de certos limites não constitua uma das possíveis bases de justificação da pena17 14 Feuerbach Tratado de derecho penal trad E R Zaffaroni Buenos Aires Ed Hamrnurabi 1 989 1 3 e s 15 Problemas fundamentais cit p 23 1 6 Roxin Problemas fundamentais cit p 23 1 7 Introducción a las bases dei derecho penal Barcelona Bosch 1976 p 67 406 23 Prevenção geral positiva Entre as atuais teorias da prevenção geral positiva merece especial referência a formulação de Günther Jakobs que inspirada na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann parte da funcionalidade do direito penal para o sistema social Para ele a norma penal constituiu uma necessidade funcionalsistêmica de estabilização de expectativas sociais por meio da aplicação de penas ante as frustrações que decorrem da violação das normas Esse novo enfoque utiliza assim a concepção luhmanniana do direito como instrumento de estabilização social de orientação das ações e de institucionalização das expectativas De acordo com Jakobs os contatos e interações sociais geram expectativas as mais diversas as quais devem ser asseguradas como condição de preservação do sistema social Essas expectativas que podem ser desestabilizadas em face da decepção ou do conflito entre os que participam da interação social são normalizadas e asseguram a confiança e a fidelidade das interações interindividuais ou sistêmicas A pena por sua vez protege as condições de tal interação e tem portanto função preventiva por que assegura a validade da norma razão pela qual a reação punitiva a pena tem como função principal restabelecer a confiança e reparar ou prevenir os efeitos negativos que a violação da norma implica para a estabilidade do sistema e para a integração social Diz Jakobs textualemente a pena é uma demonstração da vigência da norma à custa de um responsável em fim de assegurar a estabilização da norma lesionada como réplica que tem lugar frente ao questionamento da norma Portanto o fundamento da pena não é a prevenção geral negativa para proteção de bens jurídicos nem a prevenção especial mesmo porque de acordo com Jakobs destinatários da norma não são primariamente algumas pessoas enquanto autoras potenciais mas todas visto que ninguém pode passar sem interações sociais e que por isso devem saber o que delas podem esperar Para isso o fim último da pena consiste na manutenção da norma enquanto modelo de orientação de condutas para os contatos sociais Em conclusão o delito é uma ameaça à integridade e à estabilidade social enquanto constitui a expressão simbólica da falta de fidelidade ao direito essa expressão faz estremercer a confiança institucional e a pena é por sua vez uma expressão simbólica oposta à representada pelo crime Recentemente Jakobs passou a defender inclusive ao lado do direito penal do cidadão um direito penal do inimigo modelos políticocriminais cujas notas distintivas essenciais residem especialmente no seguinte a o inimigo não é pessoa mas inimigo não pessoa logo a relação que com ele se estabelece não é de direito mas de coação de guerra b o direito penal do cidadão tem por finalidade manter a vigência da norma o direito penal do inimigo o combate de perigos c o direito penal do cidadão reage por meio de penas o direito penal do inimigo por meio de medidas de segurança d o direito penal do cidadão trabalha com um direito penal do fato o direito penal inimigo com um direito penal do autor e por isso o direito penal do cidadão pune fatos criminosos o direito penal do inimigo a periculosidade do agente f o direito penal do cidadão é essencialmente repressivo o direito penal do inimigo essencialmente preventivo g por essa razão o direito penal do cidadão deve se ocupar como regra de condutas consumadas ou tentadas direito penal do dano ao passo que o direito penal do inimigo deve anteparar a tutela penal para punir atos preparatórios direito penal do perigo h o direito penal do cidadão é um direito de garantias o direito penal do inimigo um direito antiterrorista E assim há de ser porque de acordo com Jakobs aquele que não oferece um mínimo de segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser ainda tratado como pessoa como também o Estado não deve tratálo como pessoa já que o contrário violaria o direito à segurança das demais pessoas os cidadãos Com efeito aquele que por princípio se conduz de modo desviado e não oferece garantia de um comportamento pessoal vg aqueles que tomam parte em terrorismo e criminalidade organizada não pode consequentemente ser tratado como cidadão devendo ser combatido como inimigo e esta guerra se presta a preservar a segurança dos cidadãos Há muita semelhança entre a teoria de Jakobs e as teorias absolutas razão pela qual parte do que se disse sobre tais teorias vale também aqui semelhança reconhecida pelo próprio Jakobs ao confessar que em Hegel a teoria absoluta recebe uma configuração que em pouco se diferencia da prevenção geral aqui representada A crítica mais corrente à teoria de Jakobs consiste em afirmar que não se trata de uma perspectiva instrumental mas simbólica uma vez que o direito já não serve primordialmente ao homem que se reduz a um subsistema físicopsíquico mas ao sistema pois o direito não se presta assim à solução de conflitos nem à proteção de bens jurídicos Daí dizer Zaffaroni que o discurso jurídicopenal sistêmico se afasta do homem perdendo todos os limites e garantias liberais admitindose a possibilidade de punir ações meramente imorais que não lesionam ninguém a emprestar relevância e primazia aos dados subjetivos de ânimo e a sustentar um critério de pena puramente utilitário ou instrumental para o sistema Por isso constituiu uma descrição asséptica e tecnocrata do modo de funcionamento do sistema mas não uma valoração e muito menos uma crítica ao sistema ou como diz Baratta a teoria sistêmica conduz a uma concepção preventiva integradora em que o centro de gravidade da norma jurídica penal passa da subjetividade do indivíduo e do mundo axiológico ao sistema e às expectativas institucionais afastando qualquer reflexão crítica alheia à funcionalidade do castigo para o sistema Nesse modelo tecnojurídico o direito penal já não resolve conflitos sociais o problema do crime senão que integra no sistema intervindo onde e quando aqueles se exteriorizam sintomatologicamente não onde e quando são gerados etiologicamente Por fim para a teoria da prevenção positiva é determinado nível de visibilidade social do desvio de alarme social e não as cifras ocultas da criminalidade que provoca uma resposta penal baseada na teoria da prevenção positiva esta por consequência legitima o princípio da seletividade do sistema e os processos de imunização da resposta penal que dependem estritamente do grau de visibilidade social dos conflitos existentes numa sociedade Quanto ao direito penal do inimigo que parece colocar o homem numa condição inferior à de plantas e animais os quais têm proteção legal diferentemente deste que passam a ser tratados como não pessoas pois não sujeitos do direito mas simplesmente objeto do direito razão assiste a Muñoz Conde quando assinala que os direitos e garantias fundamentalmente próprios do Estado de Direito sobretudo os de caráter penal material princípios de legalidade intervenção mínima e culpabilidade e processual penal direito à presunção de inocência à tutela jurisdicional a não depor contra si mesmo etc são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do Estado de Direito Se se admite sua derrogação ainda que seja em casos pontuais extremos e mui graves temse que admitir também o desmantelamento do Estado de Direito cujo ordenamento jurídico se converte em um ordenamento ou sem nenhuma referência a um sistema de valores ou o que é pior referido a qualquer sistema ainda que seja injusto sempre que seus defensores tenham o poder ou a força suficiente para impôlo O Direito assim PAULO QjEIROZ entendido se converte em um puro Direito de Estado em que o direito se submete aos interesses que em cada momento determine o Estado ou as forças que controlem ou monopolizem seu poder O Direito é então simplesmente o que em cada momento convém ao Estado que é ao mesmo tempo o que prejudica e faz o maior dano possível a seus inimigos34 Parece também evidente que direito penal do cidadão é um pleonasmo e direito penal do inimigo uma contradição em seus termos 35 24 Prevenção especial ou individual Para essa corrente a finalidade do direito penal é prevenir novos crimes resso cializando os seus autores reeducandoos etc ou seja o sentido do castigo é evitar a reincidência razão pela qual a prevenção não se dirige a todos mas a algumas pessoas em particular os criminosos O direito penal pretende em última análise a conversão do delinquente num homem de bem36 Diversas correntes de pensamento advogaram ou ainda advogam essa forma de justificação do direito de punir o correcionalismo espanhol Dorado Montero Con cepción Arena o positivismo italiano Lombroso Ferri Garofalo a chamada mo derna escola alemã de Von Liszt e mais recentemente o movimento de defesa social de Filippo Gramatica Marc Ancel e outros Em sua versão mais radical a teoria da prevenção especial pretende a substituição da justiça penal por uma espécie de medicina social a fim de promover um saneamen to social seja pela aplicação de medidas terapêuticas seja pela segregação por tempo indeterminado seja pela submissão a um tratamento ressocializador apto a inibir as tendências criminosas Representante dessa tendência foi Dorado Montero com seu direito protetor dos criminosos que defendia como missão da administração da justiça penal o sanea mento social uma função de higienização e profilaxia razão pela qual os atuais juízes em vez de julgarem conflitos de interesse passariam a ser novos médicos sociais visando a promover e dirigir o tratamento mais adequado à situação de cada delinquente O juiz severo adusto e temível profetizou Dorado Montero deve de saparecer para passar o posto ao médico carinhoso e entendido37 O processo penal deveria por isso ceder lugar à administração unilateral de tais interesses pelo Esta do pois para a implantação desse novo sistema cumpria suprimirse todo o apa rato de juízes magistrados tribunais hierárquicos ministério público advogados 34 De Nuevo Sobre el Derecho Penal dei Enemigo ln Novos Rumos do Direito Penal Contemporâneo Livro em Homenagem ao Prof Dr Cezar Roberto Bitencourt Rio de Janeiro Lumen Juris 2006 p 76 35 Manuel Cancio Meliá Derecho Penal dei inimigo cit 36 Basileu Garcia Instituições cit p 72 37 Bases de un nuevo derecho penal Buenos Aires Depalma 1973 p 66 410 I02 1 TEORIAS LEGITIMADORAS defensores etc38 o que implicaria necessariamente abolir ou relativizar as garantias do direito e processo penal uma vez que constituem um obstáculo a esse fim superior Outro postulado daí resultante é a indeterminação da pena ou das medidas de se gurança enquanto durasse a necessidade de tratamento A Ferri autor de um ambicioso sistema de substitutivos penais pareceu que a experiência secular tem demonstrado o absurdo teórico e a deficiência prática da pena em medida fixa que é consequência lógica do conceito de retribuição da culpa mediante um castigo proporcionado39 mo tivo pelo qual a defesa social contra a criminalidade deveria realizarse ou com o se questro indefinido dos delinquentes não readaptáveis à vida livre ou com a reeducação para a vida social dos delinquentes readaptáveis4º Mas coube especialmente a Franz von Liszt universalizar a teoria da prevenção especial Para Von Liszt fim da pena ou das medidas de segurança era prevenir eficaz mente a prática de futuros delitos conforme as peculiaridades de cada infrator Assim missão da pena para os delinquentes ocasionais que não precisam de correção é a ad vertência função de advertência ou de intimidação para os que precisam de correção é ressocializálos com a educação durante a execução penal função ressocializadora para o delinquente incorrigível ou habitual fim da pena é tornálo inócuo por tempo indeterminado função de inocuização enquanto dure a necessidade inocuizadora Para Von Liszt função da pena e do direito penal era portanto a proteção de bens jurídicos por meio da incidência da pena sobre a personalidade do delinquente com a finalidade de evitar futuros delitos41 241 Crítica Em verdade tais teorias não podem operar como a geral no momento da comi nação mas só na execução da pena42 motivo pelo qual não constituem a rigor uma teoria do direito penal mas uma teoria da execução penal Além disso nada dizem sobre os limites da atuação estatal ou sobre os critérios e razões políticocriminais que devem orientar a intervenção do Estado no particular omitindose sobre o conteúdo do poder punitivo É de convir com Ferrajoli que ao supor uma concepção do poder punitivo como bem metajurídico o Estado pedagogo ou terapeuta e simetricamente do delito como mal moral ou enfermidade natural ou social tais doutrinas se revelam as mais antili berais e antigarantistas a justificarem modelos de direito penal máximo e tendencial mente ilimitado43 38 Dorado Montem Bases cit p 94 39 Princípios de direito criminal trad Paolo Capitania Campinas Bookseller 1 996 p 3 1 1 40 Ferri Princípios cit p 3 13 41 Mir Puig Introducción cit p 70 42 Mir Puig Introducción cit p 68 43 Ferrajoli Derecho y razón cit p 270 4 1 1 PAULO OJjEI ROZ Além disso educar para a liberdade em condições de não liberdade é como afir ma Mufíoz Conde não só de difícil realização como constitui uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida nas prisões44 cujos nocivos efeitos são amplamente co nhecidos Por fim a ressocialização ou a reintegração social do preso tal como prevê a nossa Lei de Execução Penal art 1º pode no máximo constituir um direito do condenado mas jamais um fim legítimo a ser perseguido por meio da violência da pena sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana fundamento declarado do Estado Democrá tico de Direito Não é preciso lembrar que a prisão longe de ressocializar em geral dessocializa corrompe embrutece e pior não tem impedido os criminosos de continuarem a delin quir mesmo quando encarcerados em presídios ditos de segurança máxima 3 TEORIAS ECLÉTICAS OU UNITÁRIAS OU MISTAS 31 Introdução Dizemse unitárias ou mistas ou ecléticas todas as teorias majoritárias na atua lidade que almejando superar as antinomias entre as diversas formulações teóricas apresentadas pretendem combinálas ou unificálas ordenadamente45 Ambicionam sem compromisso com a pureza ou monismo de modelos característicos das teorias absolutas e relativas explicar o fenômeno punitivo em toda a sua complexidade e plu ridimensionalidade46 As teorias unitárias intentam assim conforme observa Jescheck mediar entre as teorias absolutas e relativas não naturalmente somando sem mais suas contraditó rias ideias básicas mas mediante a reflexão prática de que a pena na realidade de sua aplicação pode desenvolver a totalidade de suas funções em face da pessoa afetada e seu mundo circundante de sorte que o que importa realmente é conseguir uma relação equilibrada entre todos os fins da pena método dialético47 servindo de ponte entre umas e outras48 44 Derecho penal y control social cit p 124 45 Para Roxin as teorias monistas quer atendam à culpa quer à prevenção geral quer à especial são necessariamente falsas porque quando se trata da relação do particular com a comunidade e com o Estado a realização estrita de um princípio ordenador tem forçosamente como consequência a arbi trariedade e a falta de verdade Problemas fundamentais cit p 43 De modo similar Figueiredo Dias Desta concepção básica resulta como consequência que não se justifica nem é conveniente nem eficaz assinalar à pena ou só finalidades de prevenção geral ou só de prevenção especial Umas e outras devem coexistir e combinarse da melhor forma e até o limite possíveis porque umas e outras se encontram num propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros Questões fundamentais do direito penal revisitadas São Paulo Revista dos Tribunais 1 999 p 1 29 46 Como observa GarcíaPablos metodologicamente quem propugna por essa solução ou tese seme lhante procura ressaltar os graves inconvenientes dos monismos e da denominada pureza de mode los Derecho penal cit p 1 05 47 Tratado cit p 66 48 Baumann Derecho penal cit 412 Para essa teoria a justificativa da pena depende a um tempo da justiça de seus preceitos e da sua necessidade para a preservação das condições essenciais da vida em sociedade proteção de bens jurídicos Buscase assim unir justiça e utilidade razão pela qual a pena será legítima somente quando for ao mesmo tempo justa e útil Por conseguinte a pena ainda que justa não será legítima se for desnecessária inútil tanto quanto se embora necessária útil não for justa Semelhante perspectiva se caracteriza pois por um conceito pluridimensional da pena que apesar de orientado pela ideia de retribuição a ela não se limita Entre as teorias mistas atuais merecem destaque a teoria dialética unificadora de Claus Roxin e o garantismo de Luigi Ferrajoli 32 A teoria dialética unificadora de Claus Roxin De acordo com Roxin é preciso considerar na justificação do direito de punir três momentos distintos a a ameaça cominação b a imposição aplicação e c a execução da pena Inicialmente o papel da pena dependerá dos fins cometidos constitucionalmente ao Estado titular do poder punitivo visto que os limites do direito penal são em última análise os limites do próprio Estado Exatamente por isso ao menos na vigência do Estado de Direito em que todo poder emana do povo já não se pode perseguir a realização de fins divinos ou transcendentais de qualquer outro tipo Nem é tampouco finalidade da pena corrigir moralmente o indivíduo Em síntese a finalidade do direito penal é criar e garantir um grupo reunido interior e externamente no Estado as condições de uma existência que satisfaça às suas necessidades vitais Roxin conclui então que a o direito penal tem natureza subsidiária motivo pelo qual a sua intervenção só é legítima se for indispensável para uma vida em comum ordenada pois quando bastem os meios do direito civil ou do direito público o direito penal deve se retirar b o direito penal não pode se ocupar de condutas meramente imorais ou não lesivas de bem jurídico A finalidade precípua do direito penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos prevenção geral subsidiária portanto já quando da sua individualização judicial a finalidade da pena consiste essencialmente mas não exclusivamente em resocializar o condenado prevenção especial limitada pela culpabilidade isto é não para fundamental a pena mas para evitar possíveis excessos que poderiam resultar da prevenção geral passando aquela a funcionar como limite da prevenção geral motivo pelo qual a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade Textualmente o fim de prevenção geral da punição apenas PAULO QJ E I ROZ se pode conseguir na culpa individual pois se vai além e portanto se pretende que o autor expie as tendências criminosas de outros atentase realmente contra a dignidade humana53 A culpabilidade serve assim à limitação do direito de punir razão pela qual não se poderia em nome da prevenção geral ou especial pretender transformar por exem plo mediante vários anos de trabalho reeducativo um mendigo notório num diligente guardalivros pois o escasso conteúdo da culpa proíbe o direito penal de levar a cabo tal tarefa 54 A conclusão de Roxin é pois no sentido de que a pena tem por finalidade a prote ção subsidiária e preventiva tanto geral como individual de bens jurídicos e de presta ções estatais por meio de um processo que salvaguarde a autonomia da personalidade e que esteja limitado pela medida da culpa Finalmente quando da execução a pena tem por fim a reintegração social do delinquente na comunidade Mas em respeito à garantia constitucional da autonomia da pessoa é proibido um tratamento coercitivo que interfira com a estrutura da personalidade mesmo que de eficácia ressocializante razão pela qual seria inadmissível por exemplo a castração de delinquentes sexuais como também a operação cerebral que transforme um desordeiro num manso e obe diente sonhador pois o Estado deve proteger o indivíduo através do direito penal e contra o direito penal Em suma a finalidade essencial da pena é proteger por meio da prevenção geral e especial e subsidiariamente bens jurídicos especialmente importantes 33 O garantismo de Luigi Ferrajoli Para Ferrajoli a única finalidade capaz de legitimar a intervenção penal é a pre venção geral negativa exclusivamente mas não apenas prevenção de futuros delitos mas sobretudo prevenção de reações informais públicas ou privadas arbitrárias fim fundamental da pena a seu ver pois a pena não serve só para prevenir os injustos delitos senão também os castigos injustos que não se ameaça com ela e se a impõe só ne peccetur senão também ne punietur que não tutela só a pessoa ofendida pelo delito e sim também o delinquente frente às reações informais públicas ou privadas arbitrá rias Ferrajoli concebe o direito penal assim como um sistema de garantias conforme a tradição liberal iluminista do cidadão perante o arbítrio realizável pelo Estado ou pelos próprios indivíduos E defende um direito penal mínimo isto é que se limite às hipóteses de absoluta necessidade segundo os princípios de um direito penal e proces sual garantista legalidade lesividade proporcionalidade ampla defesa entre outros Assinala que o direito penal nasce precisamente no momento em que a relação bilateral parte ofendidaofensor é substituída por uma relação trilateral em que uma autoridade judicial se situa numa posição de terceiro ou imparcial 53 Problemas fundamentais de direito penal cit p 35 e ss 54 Problemas fundamentais idem 414 O direito penal concebido como instrumento de defesa dos direitos fundamentais e orientado para tutela desses direitos contra a violência arbitrária do mais forte serviria assim a proteção dos mais fracos Seria o código ou a lei do mais débil Seria um mal menor diante do mal do delito um mal menor diante de reações públicas ou privadas arbitrárias Daí justificar a intervenção do sistema penal por meio de uma equação um sistema penal está justificado só se a soma das violências delitos vinganças e castigos arbitrários que está em condições de prevenir é superior às violências constituídas por delitos não prevenidos e pelas penas estabelecidas para estas Naturalmente um cálculo deste tipo é impossível Podese dizer porém que a pena está justificada como mal menor o que é tanto como dizer só que é menor ou seja menos aflitivo e menos arbitrário face a outras reações não jurídicas que é lícito supor que se produziriam em sua ausência e que em geral o monopólio estatal da potestade punitiva está tanto mais justificado quanto mais baixos sejam os custos do direito penal frente aos custos da anarquia punitiva Finalmente Ferrajoli que propugna pela abolição gradual das penas privativas da liberdade por lhe parecerem excessiva e inútilmente aflitivas assim como propõe a adoção de penas máximas de dez anos de prisão opõese à prevenção especial ao menos nos moldes tradicionais Porque o Estado escreve Ferrajoli que não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados senão só o de impedir que se danem entre si tampouco tem o direito de alterar reduzir redimir recuperar ressocializar ou outras ideias semelhantes a personalidade dos réus E o cidadão embora tenha o dever jurídico de não cometer fatos delitivos tem o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é As penas por conseguinte não devem perseguir fins pedagógicos ou correccionais senão que devem consistir em sanções taxativamente predeterminadas e não agraváveis com tratamentos diferenciados e personalizados do tipo ético ou terapêutico Coerente com sua proposta de direito penal mínimo que exige o máximo de certeza da intervenção jurídicopenal Ferrajoli critica inclusive a flexibilização da pena na fase executiva seja para agravála seja para atenuála razão pela qual ou bem se deve extinguir os atuais benefícios da execução livramento condicional pressão remição etc ou bem se deve convertêlos em direitos do preso já ao tempo da sentença condenatória pois a pena quantitativamente flexível e qualitativamente diferenciada na fase executiva não é menos despótica que as penas arbitrárias prémodernas Considera ainda que o abolicionismo penal para além de suas intenções libertárias e humanitárias é uma utopia regressiva que sob pressupostos ilusórios de uma PAULO QlEIROZ sociedade boa ou de um estado bom pretende legitimar modelos desregulados ou au torregulados de vigilância eou castigo e em relação aos quais o direito penal com seu complexo difícil e precário sistema de garantias constitui histórica e axiologicamen te uma alternativa progressista 58 Tem que a defesa do direito penal equivale em ltima anlise a uma defesa da li berdade fsica de transgresso visto que embora a proba normativamente no a impede materialmente razo pela qual o direito penal no garante apenas a liberdade fsica ou objetiva de delinquir e de no delinquir mas tambm a liberdade moral ou subjetiva de transgresso diversamente de um modelo de sociedade ou estado disciplinrio incompa tvel com a ideia mesma de liberdade 59 Autores há porém que apesar de partidários de um modelo de direito penal míni mo ao menos como trânsito para a abolição do sistema penal assim Baratta Zaffa roni insurgemse contra semelhante forma de justificação Zaffaroni considera que o argumento iluminista da necessidade do sistema penal para prevenir a vingança pública ou privada jamais se confirmou pois no plano real ou social a experiência indicaria que já parece estar bem demonstrada a desnecessidade do exercício do poder do sistema penal para evitar a generalização da vingança porque o sistema penal só atua em reduzidíssimo número de casos e a imensa maioria de cri mes impunes não generaliza vinganças ilimitadas Ademais na América Latina foram cometidos cruéis genocídios que ficaram praticamente impunes sem que tenham ocor rido episódios de vingança massiva Contrariamente ao argumento iluminista ou utilitarismo reformado proposto por Ferrajoli Zaffaroni pretende justificálo diferentemente o direito penal como progra mação da operatividade da agência judicial deve permanecer e inclusive ampliar o seu âmbito na medida em que a sua intervenção resulte menos violenta que as outras formas ou modelos efetivamente disponíveis de decisão de conflitos Diz ser um absurdo prossegue Zaffaroni pretender que os sistemas penais respeitem o princípio de legalidade de culpabilidade humanidade e sobretudo o de igualdade já que estão estruturalmente armados para violálos a todos Considera por isso que o direito penal deve servir à programação da minimização da violência e da arbitrariedade do sistema penal ante a evidente carência do poder da agência judi cial para abolir o sistema penal e substituílo por mecanismos de solução de conflitos análoga à falta de poder da Cruz Vermelha Internacional para suprimir os conflitos bélicos as agências judiciais como objetivo imediato devem proceder conforme a um discurso que trace os limites máximos da irracionalidade tolerável na seleção crimina lizante do sistema penal60 58 Derecho y razón cit p 341 59 Derecho y razón cit p 339 60 En busca de las penas perdidas cit p 190 416 I 02 1 TEORIAS LEGITIMADORAS Mas semelhante perspectiva tem sido igualmente criticada assim Smaus61 ao argumento de que a pena é manifestação de violência em defesa e reprodução de um sistema razão pela qual não faria sentido invocála para outros fins 6 1 Apud Martínez Sánchez Maurício Que pasa en la criminologia moderna Bogotá Temis 1990 p 3640 417 1 03 1 TEORIAS DESLEGITIMADORAS ABOLICIONISMO E MINIMALISMO RADICAL Sumário 1 Introdução 1 1 O crime não existe caráter definitorial do delito 1 2 Inido neidade preventiva ou motivadora 1 3 Excepcionalidade da intervenção penal as cifras ocultas da criminalidade 1 4 Igualdade formal versus desigualdade material seletividade arbitrária do sistema penal 1 5 Caráter consequencial sintomatológico e não causal etiológico da intervenção penal 1 6 Caráter criminógeno do sistema penal 1 7 Reifi cação do conflito do delito neutralização da vítima pelo sistema penal 1 8 O sistema penal intervém sobre pessoas e não sobre situações 2 Conclusão 1 INTRODUÇÃO As teorias deslegitimadoras representadas basicamente pelo abolicionismo penal Hulsman e outros e pelo minimalismo radical Baratta Zaffaroni e outros têm em comum o fato de se insurgirem contra a existência mesma do direito penal Recusam legitimidade ao Estado para exercer o poder punitivo ressaltando principalmente a disparidade entre o discurso e a prática penais bem como a circunstância de o direito penai criar mais problemas do que resolve sendo criminógeno arbitrariamente seleti vo e causador de sofrimentos inúteis Além disso o direito penal a pretexto de cumprir finalidades declaradas de pro teção de bens jurídicos prevenção geral e especial etc jamais comprovadas ou passí veis de comprovação em verdade cumpriria funções latentes não declaradas que o deslegitimam e pois autorizam a sua abolição A seguir alguns dos argumentos mais correntes dessa perspectiva deslegitimado ra comuns ao abolicionismo e ao minimalismo radical2 11 O crime não existe caráter definitorial do delito Adotando postulado do labeling approach teoria do etiquetamento ressaltase que sob a etiqueta de delito reúnese toda uma série de comportamentos que nada têm em comum exceto quanto ao fato de estarem igualmente criminalizados Significa 1 Hulsman e Scheerer são alguns dos poucos autores que ainda podem ser considerados realmente abo licionistas visto que Christie reviu sua posição inicial à semelhança de Matthiesen para declararse minimalista conforme entrevista concedida a Ana Sofia S Oliveira e André Isola Fonseca Revista do IBCCrim São Paulo Revista dos Tribunais ano 6 n 2 1 janmar 1998 2 Empregase a expressão radical para distinguir do chamado minimalismo moderado defendido den tre outros por Ferrajoli GarcíaPablos Larrauri Hassemer e Naucke 419 PAULO QlJ E I ROZ ainda que o crime não é um objeto do sistema penal mas o resultado mesmo do seu funcionamento razão pela qual a criminalidade não existe por natureza pois é mais exatamente uma realidade socialmente construída mediante processos de definição e interação3 Adotase o teorema Thomas segundo o qual se se definem situações como reais são reais em suas consequências4 Por isso que nada haveria na natureza do fato na sua formação intrínseca que permitisse reconhecer se se trata ou não de um crime exceto a competência formal do sistema para intervir em determinadas situações O conceito de crime observa Huls man não é operacional porque é a lei que cria o crime e pois o criminoso 5 Christie assinala que o delito não é uma coisa É antes um conceito aplicado em certas situa ções sociais onde é possível cometêlo e quando a uma ou a várias partes interessa que assim se defina Podese criálo diz ele criando sistemas que requeiram essa palavra podendose extinguilo criando os tipos opostos de sistemas6 1 2 lnidoneidade preventiva ou motivadora A norma penal embora pretenda dissuadir comportamentos delituosos função de prevenção geral ou especial em verdade não se presta a esse fim pois provavel mente ninguém se abstém de praticar crimes em atenção à possibilidade de sofrer a incidência do aparato repressivo vale dizer a norma penal não intervém no processo motivacional de formação da vontade de delinquir já que quando alguém se abstém de praticar crime assim o faz por motivos de outra ordem moral religiosa cultural etc que não o sistema penal Já a prevenção especial é um mito uma vez que a prisão a principal arma dos sistemas penais contemporâneos não ressocializa o criminoso antes o dessocializa o embrutece o estigmatiza De todo modo não está provado que o direito penal tenha de fato capacidade preventiva Argumentase que para além disso em realidade o verdadeiro e real poder elo sistema penal não é o repressivo poder negativo e sim o configurador disciplinário 3 Baratta Criminología crítica cit p 1 09 4 Expressivas no particular são as investigações de Fritz Sack l Os mecanismos de distribuição da qualidade negativa criminalidade são um produto de ajustes sociais como os que regulam a dis tribuição dos bens positivos em uma sociedade 2 A distribuição do bem negativo criminalidade acontece da mesma maneira em que ocorre a distribuição de bens positivos Para a análise dela se utilizam conceitos que geralmente têm dado bom resultado em sociologia como o status modelos de recrutamento carreira critérios de atribuição etc 3 A criminalidade e ele maneira absolutamente geral o comportamento desviado deve ser compreendida como um processo no qual os partners por uma parte aquele que se comporta de modo desviado e por outra quem define o comportamento como desviado são postos um frente ao outro 4 Neste sentido comportamento desviado é aquele que outros definem como desviado Não é uma qualidade ou uma característica que concerne ao com portamento como tal senão que é atribuída ao comportamento cf Baratta Criminología crítica cit p 1 081 09 5 Hulsman et ai Penas perdidas o sistema penal em questão trad Maria Lúcia Karam Niterói Ed Luam 1993 p 64 6 Los límites dei dolor México Fondo de Cultura Económica 1 984 p 1 0 1 420 positivo arbitrário e seletivo uma vez que renunciando à legalidade penal confiase às agências do sistema penal um controle social militarizado e verticalizado de uso cotidiano e exercício sobre a maioria da população que vai muito além do alcance meramente repressivo por ser substancialmente configurador da vida social 13 Excepcionalidade da intervenção penal as cifras ocultas da criminalidade Alegase que a diferença entre o número de crimes praticados e o número de delitos submetidos à efetiva atuação do sistema penal é abismal contrapõemse cifras ocultas a cifras oficiais significativa da desnecessidade do sistema penal porquanto a maior parte dos casos passíveis de intervenção penal passa ao largo do conhecimento da atuação do sistema E se só excepcionalmente se verifica a resolução dos casos por meio do recurso à pena o direito penal não é necessário já que as vítimas ou quem as representa ordinariamente prescindem dele Arguise que se se tiver em conta os números da criminalidade oculta não registrada ou seja a soma de crimes diariamente praticados e que não obstante passa ao largo do conhecimento ou da atuação do sistema penal por que desconhecida quer porque não identificados os seus autores quer porque alcançados pela prescrição quer porque objeto de composição extrajudicial quer porque não provados etc verificarseá que a criminalidade registrada investigada processada e objeto de condenação e execução penais é irrisória desprezível É pois a imunidade e não a penalização a regra no modo de funcionamento do sistema penal Por que achar normal questionase esse respeito Hulsman um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal estatisticamente tão desprezível E um sistema que somente rege casos esporádicos é desnecessário por isso pode e deve ser abolido 14 Igualdade formal versus desigualdade material seletividade arbitrária do sistema penal O sistema penal quer quando da edição das leis criminalização primária quer quando da sua aplicação e execução criminalização secundária seleciona sua clientela sempre e arbitrariamente entre os setores mais vulneráveis da sociedade entre os miseráveis enfim reproduzindo desigualdades sociais materiais Por consequência o fato de as prisões se acharem superlotadas de pessoas pobres não é acidental porque inerente à lógica funcional do modelo capitalista de produção em cujo sistema o acesso aos bens e à riqueza se dá de modo inevitavelmente desigual Assinalase assim que o direito e o direito penal em particular reflete uma contradição fundamental entre igualdade dos sujeitos de direito e desigualdade substancial PAULO ÜlJ E I ROZ dos indivíduos A igualdade formal dos sujeitos de direito serve em realidade de ins trumento de legitimação de profundas desigualdades materiais10 Porque há conforme assinala Baratta um nexo funcional entre os mecanismos seletivos do processo de cri minalização e a lei de desenvolvimento de formação econômica11 Afirmase ainda que a realidade operativa dos sistemas penais jamais poderá se ajustar à planificação do discurso jurídicopenal já que todos os sistemas penais quaisquer que sejam apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder e que anulam o discurso jurídicopenal Porque a seletividade escreve Za ffaroni a reprodução da violência o condicionamento de maiores condutas lesivas a corrupção institucional a concentração de poder a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais mas es truturais ao exercício do poder de todos os sistemas penais12 De fato ainda que o pró prio Deus ditasse as leis ainda que os juízes fossem santos ainda que promotores de justiça fossem superhomens ainda que delegados e policiais formassem um exército de querubins ainda assim o direito e o direito penal em particular seria um instru mento de desigualdade porque a igualdade formal ou jurídica não anula a desigualda de material que lhe subjaz13 Portanto o sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona conforme este reótipos fabricados pelos meios massivos de comunicação14 cria e reforça as desigual dades sociais15 é contrariamente a toda aparência um sistema injusto por excelência16 A propósito São Basílio Magno citado pelo Padre Antônio Vieira que pergun tava que são os grandes reinos senão grandes latrocínios escreveu Não são só ladrões os que cortam bolsas ou espreitam os que vão banhar para lhes colher a roupa os ladrões que mais própria e dignamente merecem esse título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões ou o governo das províncias ou a administra ção das cidades aos quais já com manha já com força roubam e despojam os povos 10 Baratta Criminología crítica cit 1 1 Criminología crítica cit p 1 7 1 Entre nós Vera Regina Pereira de Andrade chega a conclusões semelhantes ao dizer que para além das intervenções contingentes há uma lógica estrutural de operacionalização do sistema penal nas sociedades capitalistas que implicando a violação encoberta seletividade e aberta arbitrariedade dos direitos humanos não apenas viola a sua programação normativa mas é num plano mais profundo oposta a ambas caracterizandose por uma eficácia ins trumental invertida à qual uma eficácia simbólica confere sustentação Mais adiante após consignar que os limites do sistema são os limites da própria sociedade afirma ser irreversível essa lógica e impossibilidade de operacionalização dos sistemas penais adequaremse à sua programação já que constitui uma marca estrutural do exercício do poder que não pode ser eliminada sem a própria su pressão dos sistemas penais A ilusão cit p 3 1 13 19 12 En busca de las penas perdidas cit p 6 1 13 Paulo Queiroz Do caráter subsidiário cit p 30 14 Zaffaroni En busca de las penas perdidas cit 15 Hulsman Penas perdidas cit p 75 16 Baratta Criminología crítica cit p 169 422 1031 TEORIAS DESLEGITI MADORAS ABOLICION ISMO E MINIMALISMO RADICAL Os outros ladrões roubam um homem estes roubam cidades e reinos os outros fur tam debaixo do seu risco estes sem temer nem perigo os outros se furtam são enfor cados estes furtam e enforcam17 15 Caráter consequencial sintomatológico e não causal etiológico da intervenção penal Argumentase que o direito penal constitui uma resposta aos sintomas ou con sequências do crime e não às suas causas Logo pouco ou nada se pode esperar de semelhante intervenção pois mais leis mais policiais mais juízes mais prisões sig nifica mais presos mas não necessariamente menos delitos Jeffery De acordo com ess enfoque a eficácia preventiva do direito penal se é que existe é bastante limitada uma vez que intervém demasiadamente tarde no conflito social não quando este se produz mas quando e onde se manifesta e intervém mal já que não traduz uma res posta etiológica adequada às causas do problema mas meramente sintomatológica18 O sistema penal tecniciza conflitos humanos e ao fazêlo os despolitiza os descontex tualiza e os desumaniza 16 Caráter criminógeno do sistema penal Também é corrente a afirmação de que a atuação do sistema penal é criminógena em muitos casos visto que em vez de coibir determinadas condutas em verdade cria um1clima propício não só para que tais condutas proliferem como também para que outras atividades criminosas vicejem Exemplo disso é a política de repressão à con travenção do jogo do bicho e ao tráfico ilícito de drogas porque o direito penal além de não inibir tais comportamentos ao condenálos à clandestinidade tornaos extre mamente atraentes do ponto de vista econômicofinanceiro gerando entre os seus ex ploradores uma concorrência violenta e sanguinária Com efeito se por um lado esse comércio persiste e persistirá inevitavelmente por outro a proibição acaba por estimu lar uma série de outros males e crimes contrabando de armas extermínio de grupos rivais frequentes confrontos violentos com a Polícia lavagem de capitais e evasão de divisas sonegação tributária corrupção policial criação de preços artificiais da dro ga falta de controle sobre a qualidade da droga consumida etc Apesar disso drogas ilícitas são facilmente encontradas em qualquer Estado da Federação Assim o direito penal não evita a criminalidade ao contrário fomentaa tornandose criminógeno 17 Reificação do conflito do delito neutralização da vítima pelo sistema penal 1 Assinalase que definir fatos ou situações como delituosos significa limitar ex traordinariamente as possibilidades de compreendêlos e apresentar uma resposta 1 7 Se1mões v III São Paulo Editora das Américas 1 8 García Pablos Derecho penal cit p 274 423 PAULO QlEIROZ minimamente racional Daí se preferir a expressão situações problemáticas ou se melhantes ao tradicional crime ou delito num modelo alternativo de justiça que para fazer face a tais situações tenha em conta todas essas opções e possibilidades no sen tido de melhor resolvêlas19 É justamente o que pretende fazer o atual movimento por uma justiça restaurativa 20 Além disso acreditase que a intervenção estereotipada do sistema penal tanto age sobre a vítima como sobre o delinquente Porque todos são tratados da mesma manei ra como se todas as vítimas tivessem as mesmas reações e as mesmas necessidades afinal o sistema não leva em conta as pessoas em sua singularidade e operando em abstrato causa danos inclusive àqueles que diz proteger21 escreve Hulsman22 Nesse sentido também Christie afirma que a vítima no processo penal é em geral um perde dor duplamente em primeiro lugar em relação ao infrator e depois em relação ao Es tado porque está excluído de qualquer participação em seu próprio conflito E o Estado lhe rouba o conflito um todo que lhe é levado a cabo por profissionais23 18 O sistema penal intervém sobre pessoas e não sobre situações Argumentase que todo o sistema penal gira em torno da ideia de culpabilidade individual pessoal desprezando por completo o ambiente ou o sistema social em que se insere Culpamse os indivíduos ignoramse os sistemas as estruturas sociais De acordo com Christie o fato decisivo é o delito não os desejos da vítima não as carac terísticas individuais do culpado não as circunstâncias particulares da sociedade local sendo que ao excluir todos esses fatores o sistema se converte em uma negação de toda uma série de opções e possibilidades que deveriam ser tomadas em consideração E um sistema diz o criminólogo norueguês que permite a si mesmo ser dirigido uni camente pela gravidade do ato em nada contribui para se ter um conjunto satisfatório de modelos para os valores da sociedade24 19 Como exemplo das várias reações possíveis em dada situação conflitiva punitiva reação penal típi ca compensatória terapêutica curativa e conciliadora Hulsman figura hipótese bastante ilustrati va cinco estudantes moram juntos e em determinado momento um deles se arremessa contra a tele visão e a danifica quebrando também alguns pratos Como reagem seus companheiros É evidente responde que nenhum deles vai ficar contente Mas cada um analisando o acontecido à sua maneira poderá adotar uma atitude diferente O estudante número 2 furioso dirá que não quer morar com o primeiro e fala em expulsálo da casa o terceiro declarará o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague O quarto estudante traumatizado com o que acabou de presenciar grita ele está evidentemente doente é preciso procurar um médico leválo a um psi quiatra etc O último ainda sussurra a gente achava que se entendia bem mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade para permitir um gesto como esse Vamos juntos fazer um exame de consciência Penas perdidas cit p 1 00 20 Sobre o assunto Leonardo Sica Justiça Restaurativa Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 2 1 Penas perdidas cit p 8384 22 Penas perdidas cit 23 Límites dei dolor cit p 126 24 Límites dei dolor cit p 6061 424 PAULO QEIROZ não desapareceriam as estruturas do Estado que lhe dão vigência e pior sem nenhu ma garantia29 E seria de fato uma utopia regressiva conforme assinala Ferrajoli o abolicionismo para além de suas intenções libertárias e humanitárias configurase como uma utopia regressiva que sob os pressupostos ilusórios de uma sociedade boa e um Estado bom apresenta modelos em realidade desregulados ou autorregulados de vigilância eou castigo em relação aos quais é o direito penal com seu complexo difícil e precário sistema de garantais que constitui histórica e axiologicamente uma alternativa progressista 30 Parece certo também que apesar da divergência tanto os autores que pregam um direito penal máximo quanto os que defendem a sua pronta abolição alimentam uma mesma ilusão os primeiros supõem que mais leis mais repressão significa mais proteção e os segundos que abolir o sistema penal significará mais liberda de e menos violência necessariamente atribuindo ambos um certo caráter mágico à lei 31 Assim abolicionismo e direito penal do inimigo são em última análise dois ex tremos que de algum modo se tocam em seus excessos e dogmatismo ao conferirem ao sistema penal uma importância que ele simplesmente não tem quer como meio de produção de violência função latente quer como instrumento de prevenção e controle social função declarada Mais razoável é portanto propugnar por um direito penal conforme a Constitui ção é dizer um direito penal mínimo que se limite a disciplinar situações de absoluta necessidade para segurança dos cidadãos Naturalmente que um direito penal mínimo não é em si uma solução mas parte da solução pois o decisivo para o controle racional da criminalidade além da eficientiza ção do controle social não penal particularmente a eficientização do controle adminis trativo é privilegiar intervenções estruturais etiológicas e não apenas individualiza das e localizadas sintomatológicas em especial com vistas a criar as condições que evitem o processo de marginalização social do homem por meio de políticas sociais de integração social deste Um direito penal assim residual não é só portanto o programa de um direito penal mais justo e mais eficaz é também parte de um grande programa de justiça social e de pacificação dos conflitos 32 Assim postas as coisas terá o direito penal um papel bastante modesto e subsidiário de uma política social de largo alcance 29 Introducción al derecho penal Bogotá Ed Temis 1994 p 1951 96 30 Derecho y razón cit p 341 3 1 Como assinalam Zaffaroni e Pierangeli o sistema penal é somente uma forma de controle social institucionalizado e como é lógico o controle social não desaparecerá porque não desaparecerá a estrutura de poder dentro da sociedade O lógico será que se o sistema penal cede muita margem de controle social este será igualmente exercido com outras formas que nem sempre serão melhores quanto ao respeito à dignidade humana Manual cit p 309 32 Baratta La política criminal y el derecho penal de la Constitución nuevas reflexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales Revista Brasileira de Ciências Criminais ano 8 janmar 2000 426 1031 TEORIAS DESLEGITI MADORAS ABOLICIONISMO E M I N I MALISMO RADICAL mas nem por isso menos importante Uma boa política social ainda é enfim a melhor política criminal 33 Porque no fundo e como se vem de demonstrar segurança e proteção têm pouco a ver com proteção penal ou com o aumento da repressão isto é o controle real da cri minalidade tem em verdade pouco a ver com o controle penal34 polícia juízes etc E mais importante a necessidade de segurança dos cidadãos não é somente como assinala Baratta uma necessidade de proteção da criminalidade e de processo de cri minalização pois a segurança dos cidadãos corresponde também à necessidade de estarem e sentiremse garantidos no exercício de todos os seus próprios direitos direito à vida à liberdade ao livre desenvolvimento da personalidade e de suas próprias ca pacidades direito de expressarse de comunicarse direito à qualidade de vida assim como direito de controlar e influir sobre as condições das quais depende em concreto a existência de cada um Enfim a relação entre garantismo negativo limites ao poder punitivo e garantismo positivo assegurar as condições de poder viver condignamente realização dos direitos sociais equivale à relação que existe entre a política de direito penal e a política integral de proteção dos direitos35 Convém notar ainda que enquanto o direito penal existir e nada sugere o contrá rio e independentemente da comprovação da sua incapacidade preventiva investigar as suas funções latentes e manifestas constituirá questão permanentemente nova e re novável e sobre a qual o jurista consequente jamais poderá descuidar seja para denun ciar as injustiças ligadas ao seu funcionamento seja para apontar novos caminhos no sentlido de um direito penal menos injusto mais democrático e fraterno Finalmente e conforme vimos ao tratar do conceito de direito se o direito é uma prática social discursiva é evidente que abolir as normas e instituições jurídicopenais não significaria abolir o direito penal ou as práticas tipicamente penais mas apenas o sistema formal de repressão de modo que se quisermos abolir o direito penal realmen te teremos de começar por abolilo de nós mesmos isto é abolir nossos microssiste mas punitivos 33 A expressão é de Franz von Liszt 34 A pena como assinala GarcíaPablos que não convence só atemoriza reflete mais a impotência o fracasso e a ausência de soluções que a convicção e a energia necessárias para abordar os problemas sociais Por isso uma verdadeira e eficaz prevenção há de ser programada a médio e longo prazos e não deve ser entendida em sua estrita e negativa acepção intimidatória quase policial senão po sitivamente como prevenção social e comunitária El principio de intervención mínima cit www direitocriminalcombr 1º62001 35 Baratta La política criminal Revista cit 427 1 04 1 DA PENA Sumário 1 Conceito fins e limites 1 CONCEITO FINS E LIMITES A pena é a privação ou a restrição de um bem jurídico imposta por uma auto ridade judiciária ao autor de uma infração penal crime ou contravenção a pena constitui portanto a principal consequência do fato punível isto é um fato típico ilícito e culpável Do ponto de vista formal a pena se distingue de outras sanções nãopenais quanto aos pressupostos porque diversamente da sanção administrativa interdição demis são etc por exemplo a penal pressupõe o cometimento de um fato definido como crime ou contravenção E é também quanto aos pressupostos que a pena se distingue da medida de se gurança visto que a pena pressupõe imputabilidade e a medida de segurança requer inimputabilidade Apesar disso não é exato afirmar como pretende a doutrina majori tária que a pena requer culpabilidade e a medida de segurança periculosidade confor me se demonstrará mais tarde Ao pressupor o cometimento de um mal ou algo que assim se interpreta qual seja o crime a pena constitui na essência uma retribuição um castigo1 Mas distinta é a finalidade declarada da pena que é em princípio prevenir em caráter geral e especial novos cnmes E conforme vimos pensar o sentido e os fins da pena é pensar o sentido e os fins do próprio direito penal porque como disse Maurach a história das teorias da pena é uma história universal do próprio direito penal2 Mais os fins e limites do direito penal são os fins e limites do próprio Estado 1 Assim considera a doutrina Nesse sentido Maurach para quem a pena é um mal que se impõe ao delinquente cuja essência é a retribuição Derecho penal cit p 85 e ss GarcíaPablos que entende a pena como um mal de natureza retributiva e para quem segue sendo válido o conceito de Grocio de que poena est malus passionis quod injlingitur propter maum actionis Derecho penal cit p 6465 CoboNives que conceituam a pena como castigo consistente na privação de um bem jurídico Derecho penal cit p 723 Cumpre dizer porém com Roxin que as instituições jurídicas não têm uma essência independente de seus fins senão que essa essência se determina mediante o fim que com ela se quer alcançar Derecho penal cit p 9899 2 Derecho penal cit p 86 429 PAULO QljEJROZ Concluise assim que o problema da prisão é a própria prisão que apresenta um custo social demasiadamente elevado 5 Dizse ainda que educar para a liberdade em condições de não liberdade não só é de difícil realização como constitui uma utopia irrealizável nas atuais condições de vida nas prisões6 Por isso o cárcere ordinariamente longe de reeducar ou ressociali zar em realidade corrompe embrutece dessocializa Aliás com alguma frequência o réu continua a delinquir mesmo no período em que está privado de liberdade Mas se a pena privativa da liberdade faliu há tanto tempo o que em grande parte traduz a falência do próprio sistema penal como explicar sua extraordinária longe vidade Michel Foucault tem uma explicação originalíssima para isso Para ele a função real oculta da pena ao contrário do que pregam os juristas não é propriamente com bater a criminalidade mas produzila Por isso que ao aparentemente fracassar es creve Foucault a prisão não erra seu objetivo ao contrário ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade que ela per mite separar pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrável porque ela contribui para estabelecer uma ilegalidade visível marcada irredutível a um certo nível e secretamente útil rebelde e dócil ao mesmo tempo ela desenha isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar7 Por isso se do ponto de vista das suas funções declaradas oficiais a pena é um fracasso manifesto do ponto de vista das funções ocultas a prisão seria um grande sucesso daí a sua longevidade 5 Lições cit p 288 6 Muiioz Conde Derecho penal cit p 1 24 7 Vigiar e punir cit p 243244 Lêse a propósito no romance Ressurreição de Tolstoi a objeção comum de indagar o que se devia fazer com os ladrões e assassinos há muito tempo não tinha para ele o menor sentido Com efeito tal objeção teria um sentido se os castigos tivessem diminuído o nú mero de crimes ou corrigido os criminosos mas a experiência lhe provava que acontecia justamente o contrário Depois de tantos séculos de encarniçada perseguição ao crime conseguiram os homens suprimilo ou mesmo atenuálo Longe de suprimir longe de atenuar contribuíram ativamente para o desenvolver tanto depravando os prisioneiros pelas condenações como acrescentando à soma dos crimes dos condenados crimes de ladrões e assassinos os seus próprios crimes os crimes desses criminosos que são os conselheiros do tribunal procuradores carrascos juízes de instrução policiais e comitres Tecnoprint Cap VI III p 294 432 PAULO Q1JEIROZ Nesse sentido a fixação da pena constitui um desdobramento do princípio da iso nomia que exige que crimes e criminosos distintos sejam distintamente castigados Ademais nem todos os crimes e criminosos merecem pena e os que a merecem rara mente merecem a mesma pena E podem merecêla por razões mui diversas A determinação da pena não compreende apenas como o nome pode sugerir a fixação da pena mesma mas também o reconhecimento de causas especiais de isenção de pena concessão de perdão etc bem assim a aplicação de medidas de segurança e dos efeitos secundários da condenação Individualizar a pena significa assim tornar individual uma situação algo ou alguém isto é particularizar o que antes era geral a evitar a estandardização2 Junto com a apreciação da prova e a aplicação do preceito jurídicopenal aos fa tos provados a individualização representa o ápice da atividade decisória devendo o juiz ao fazêlo livrarse tanto quanto possível de preconceitos simpatias e emoções e orientar sua decisão por critérios objetivos de valoração 3 Apesar de merecer tratamento constitucional e penal autônomos dada a impor tância que assumiu histórica e politicamente a individualização da pena constitui em verdade uma dimensão capital do princípio da proporcionalidade em sentido amplo que conforme vimos tem uma tríplice dimensão necessidade adequação e proporcio nalidade em sentido estrito que por sua vez compreende proporcionalidade abstrata judicial individualização da pena e executória É importante notar que no caso de concurso de agentes por mais diversas as cir cunstâncias pessoais de cada réu as penas aplicadas não podem divergir exagerada mente sobretudo quando sofram a mesma imputação jurídicopenal É que responder pelo mesmo crime constitui a mais relevante das circunstâncias Não fossem os erros frequentes na aplicação da pena seria desnecessário dizer que a individualização da pena pressupõe como é óbvio uma condenação por crime e eventualmente por contravenção que requer fato típico ilícito e culpável conceito analítico de crime significando que tais pressupostos não podem ser novamente con siderados no momento da dosimetria da pena sob pena de ofensa ao princípio ne bis in idem também ele um momento do princípio da proporcionalidade 11 Individualização da pena e pessoa jurídica O art 59 como de resto todo o Código está essencialmente estruturado para a responsabilidade penal da pessoa física motivo pelo qual as circunstâncias judiciais e legais nada têm a ver em princípio com a apenação da pessoa jurídica uma vez que coisa que pertença realmente a essas diferentes percepções e que as una umas às outras é apenas qualidade que lhes atribuímos quando refletimos sobre elas em virtude da união de suas ideias na imaginação Tratado da Natureza Humana São Paulo UNESP 2000 p 292 2 Guilherme de Souza Nucci Individualização da pena S Paulo RT 2004 p 3 1 3 Jescheck Tratado cit p 787 434 PAULO QlJEIROZ suficiente para a reprovação e prevenção do crime o termo prevenção tanto quanto reprovação deve ser tomado no sentido de prevenção individualespecial É que a não ser assim o juiz não estará a individualizar a pena mas a desindividualizar ou generalizar7 Apesar de a Constituição adotar no essencial um direito penal de garantias CF art 5 o Código que lhe é anterior ao estabelecer as circunstâncias que devem ser consideradas para a fixação da pena ainda se utiliza de critérios dificilmente compa tíveis com o Estado Constitucional de Direito que outorgando à liberdade uma pro teção formal amplíssima reconhece à pessoa humana o mais largo direito à diferença particularmente art 3º IV sendo por isso compatível unicamente com um direito penal do fato segundo o qual o sujeito só pode ser responsabilizado penalmente pelo que faz crime comissivo ou excepcionalmente pelo que deixa de fazer crime omis sivo mas jamais pelo que é ou deixa de ser Exemplo desse resíduo de direito penal do autor herança do positivismo criminológico é a referência aos maus antecedentes à conduta social à personalidade do agente e à própria reincidência como critério de fixação da pena No particular Salo de Carvalho tem razão quando assinala que apesar de os ter mos referidos maus antecedentes reincidência etc servirem de pretexto para maior quantificação da pena ou para dificultar ou impedir o exercício de certos direitos são eles incompatíveis com a perspectiva de um direito penal do fato uma vez que substi tuem a avaliação objetiva e cognoscitiva pelo julgamento moral da interioridade da pessoa e de suas tendências acabandose por castigála não propriamente pelo que fez mas pelo que é8 E o Estado conforme escreve Ferrajoli não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados mas só o de impedir que se danem entre si razão pela qual tampouco tem o direito de alterar reeducar ressocializar etc a personalidade dos réus E o cidadão embora tenha o dever jurídico de não cometer fatos delitivos tem o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é9 Por isso que o juiz cujo compromisso fundamental é com a Constituição deve esforçarse por aplicar uma pena justa ou minimamente injusta e conforme os prin cípios constitucionais Parecenos também que a individualização das medidas de segurança deve seguir o mesmo procedimento para a individualização da pena sobretudo por considerarmos não pode perseguir finalidades de prevenção geral que fariam de cada uma de suas condenações uma sentença exemplar Derecho y razón cit p 406 De modo diverso Jescheck Tratado cit p 79 1 7 No mesmo sentido Zugaldía Espinar para quem se prescindirmos das concretas exigências preven tivas especiais e operarmos apenas com critérios de prevenção geral o autor do crime deixaria de ser um fim em si mesmo para se converter num meio para obter efeitos sobre outros o que implicaria instrumentalizálo e violar a dignidade da pessoa humana cit p 1 741 75 8 Pena e garantias uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil Rio de Janeiro Lumen Juris 200 1 p 1 54 9 Derecho y razón cit p 223224 436 PAULO QlEIROZ 22 Emendatio e mutatio libelli Decidindo pela condenação o juiz dará a definição jurídica dos fatos podendo di vergir daquela pretendida pelo Ministério Público ou querelante Assim poderá enten der que houve estelionato e não peculato furto e não roubo difamação e não calúnia e viceversa Em havendo simples erro na classificação jurídica não obstante a denún cia ou a queixa tenha narrado corretamente os fatos o juiz dará a definição jurídica exata emendatio libelli CPP art 383 uma vez que de acordo com a doutrina o acu sado se defende dos fatos articulados pela acusação e não da capitulação jurídicopenal dada aos fatos No entanto verificando o juiz que essa redefinição jurídica decorre de circunstância não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa a exigir por isso a mudança dos termos da petição inicial mutatio libelli CPP art 384 terá de previamente ouvir a acusação a fim de aditála e a defesa para falar a respeito de sorte a preservar o contraditório e a ampla defesa podendo ser reaberta a instrução com novo interrogatório do acusado inclusive 23 Sistema acusatório e emendatio libelli Parte da doutrina vem defendendo nos últimos anos a inconstitucionalidade da emenda e mudança do libela11 CPP arts 383 e 384 argumentando fundamentalmen te que o juiz ao condenar o réu por crime diverso do capitulado na denúncia estaria fazendo as vezes de acusador violando o sistema acusatório e pois agindo sem um mínimo de isenção Isso significaria em termos práticos o seguinte ou o juiz absolve o réu ou o condena como o órgão da acusação quer e propõe12 A crítica ao art 384 restou superada com a redação que lhe deu a Lei nº 11719 de 20 junho de 2008 pois a partir de agora se o Ministério Público não fizer o aditamento na forma da lei o juiz só poderá julgar nos termos da denúncia em respeito ao princí pio acusatório 1 1 Nesse sentido Fauzi Hassan Choukr Código de processo penal comentários consolidados e crítica jurisprudencial Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 Aramis Nassif Sentença penal o desvendar de Themis Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 2005 entre outros Criticamente sobre a mutatio libelli Eugênio Pacelli Curso de Processo Penal Belo Horizonte Dei Rey 2004 12 Na verdade a tese principal de violação do sistema acusatório e comprometimento total ou parcial da isenção teria diversas outras implicações tais como 1 impossibilidade de prosseguir no pro cesso do juiz que decretou medida constritiva contra o réu v g busca e apreensão prisões etc 2 impossibilidade de o juiz decretar qualquer medida constritiva de oficio 3 impossibilidade de o juiz proceder ao interrogatório e inquirição de testemunhas diretamente tarefa que deverá ser conferida ao órgão da acusação exclusivamente 4 impossibilidade de o juiz recorrer de ofício de certas decisões 5 impossibilidade de o juiz condenar quando o Ministério Público pedir a absol vição em alegações finais 6 impossibilidade de o juiz rejeitar pedidos de arquivamento mas se o fizer não poderá atuar na eventual ação penal 7 impossibilidade de o juiz que proferiu sentença voltar a atuar no processo posteriormente anulado 8 impossibilidade de o juiz que recebeu a denúncia prosseguir na ação penal 9 impossibilidade de o juiz requisitar inquérito de oficio 1 O impossibilidade de o Ministério Público recorrer nos casos em que pediu a absolvição por falta de interesse de agir etc 438 PAULO QJ E I ROZ Finalmente a pretexto de evitar que o juiz se converta em acusador na verdade se converte o acusador em juiz ditando a este como pode interpretarjulgarcondenar exatamente apequenando o papel do magistrado No fundo se está a transformar por tanto o juiz numa espécie de ventríloquo a serviço do órgão da acusação por meio de uma divisão de funções excessivamente rígida em que o Ministério Público além de dono da ação penal passa a ser também senhor da interpretação Mas isso não quer dizer que no caso de emendatio libelli o processo não possa ser eventualmente anulado por ofensa ao contraditório e à ampla defesa a ser analisa do caso a caso É que haverá situações em que a emenda é de tal modo radical ou sur preendente que a falta ou deficiência da defesa será inevitável a justificar a anulação especialmente em virtude da superprodução de leis penais muitas das quais desconhe cidas total ou parcialmente Aqui a anulação ocorrerá sempre que houver manifesto prejuízo para a defesa Exatamente por isso seria conveniente nalguns casos especiais que o juiz abrisse às partes prazo para se manifestarem a respeito possibilitando ao Ministério Público o aditamento da denúncia inclusive 3 PODE O JUIZ FIXAR PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL Devendo o juiz fixar a pena com base nos limites legais previstos máximo e mí nimo cabe perguntar pode o juiz aplicar pena abaixo do mínimo legal quando existi rem circunstâncias atenuantes em favor do réu De acordo com a doutrina e a jurisprudência majoritárias o juiz não poderia fixar pena abaixo do mínimo legal porque se o fizesse violarseia o princípio da le galidade das penas Nesse exato sentido dispõe a Súmula 231 do STJ A incidência de circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal Não estamos de acordo com isso E mais temos que mesmo não existindo cir cunstâncias atenuantes em favor do réu o juiz pode em casos excepcionais fixar pena abaixo do mínimo legal Primeiro porque a possibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal não implica violação ao princípio da legalidade13 segundo porque aplicar a pena justa não importando se no mínimo legal aquém ou além dele é uma exigência de propor cionalidade14 terceiro porque o compromisso fundamental do juiz não é com a pena mínima mas com a pena proporcional15 13 Este é o argumento principal aliás daqueles que como Damásio de Jesus O juiz pode em face das circunstâncias atenuantes genéricas fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato in Boletim do IBCCrim n 73 São Paulo 2003 são contrários à possibilidade de as circunstâncias atenuantes reduzirem a pena abaixo do mínimo legal 14 Não sem razão temse proposto a abolição da pena mínima Nesse sentido Ferrajoli Derecho y razón cit p 400 Edson ODwyer Se eu fosse juiz criminal in Boletim do IBCCrim n 86 São Paulo jan 2000 e Saio de Carvalho Pena e garantias cit 15 No sentido do texto Andrei Schmidt O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2001 p 301 307 440 PAULO QJEIROZ Convém notar ainda que não obstante a vedação sumular juízes e tribunais vêm admitindo relativamente ao crime do art 273 do Código que comina pena de prisão de 10 a 15 anos a aplicação da Lei de Drogas que prevê reclusão de 5 a 15 anos obje tivando aplicar uma pena proporcional à gravidade do caso 4 ERROS FREQUENTES NA APLICAÇÃO DA PENA Talvez por ser a aplicação da pena tema ordinariamente relegado a plano secundá rio frequentes são os erros quando da sua fixação consistentes sobretudo em revalorar elementos inerentes à estrutura do crime tipicidade ilicitude e culpabilidade toman do como circunstâncias judiciais os próprios pressupostos da condenação incorrendo se em bis in idem Quanto à tipicidade não é incomum que ao dosar a pena o juiz tome como crité rio de aferição da culpa dados ou circunstâncias que já fazem parte da própria figura típica Assim por exemplo ao condenar funcionário público por crime contra a Ad ministração Pública v g peculato corrupção passiva afirmar que o réu praticou ação das mais reprováveis visto que violou a confiança inerente ao exercício da função pública como se o fato de ser servidor público já não tivesse orientado a decisão po líticocriminal do legislador de autonomizarcriminalizar tais condutas punindoas de forma mais dura precisamente em razão dos deveres inerentes ao cargofunção Além disso ao considerar os motivos do crime aptos a agravar a pena frequen temente são tomadas em consideração motivações inerentes à própria infração penal e pois já valoradas por ocasião da tipificação como v g a libido exacerbada ou a falta de pudor nos crimes sexuais a ganância a ambição ou o ganho fácil nos crimes patrimoniais ou tráfico de droga o desprezo à pessoa humana nos crimes con tra a vida etc Também é comum elevar à condição de circunstância judicial aspectos jurídicopenalmente irrelevantes ferindo o princípio da legalidade tais como a não confissão o não arrependimento a fuga do distrito da culpa a inadequação da conduta etc Por vezes ao valorar negativamente as consequências do crime recorrese aos resultados próprios da conduta criminosa como em caso de homicídio dizerse que as consequências do crime foram danosas pois uma vida foi ceifada como se fosse possível homicídio consumado sem a morte da vítima Erro frequente também ocorre na avaliação da culpabilidade Sinteticamente po dese dizer que a culpabilidade é um juízo de reprovação sobre o autor do injusto penal em razão da possibilidade de se lhe exigir concreta e razoavelmente um comporta mento conforme o direito de sorte que culpabilidade é exigibilidade e inculpabilidade é inexigibilidade Acontece que a culpabilidade tem uma dupla função pois tanto é requisito do fato punível quanto é critério de apuração da pena justa No primeiro caso 442 por latrocínio a aplicação da pena abaixo do mínimo legal fazendo inclusive uma interessante com paração das penas mínimas do estupro com morte atualmente 1 2 anos com o latrocínio atualmente 20 anos lü6I I N DIVI DUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA fazse um juízo qualitativo de constatação o réu é culpável logo o condeno no segundo um juízo quantitativo de aferição do grau de culpa que é mínima média ou máxima E se culpabilidade é exigibilidade e se há diferentes graus de exigência maior ou menor não há problema algum em tomála em conta novamente não como pressuposto da condenação mas como circunstância judicial de sorte que quanto maior for a culpabilidade maior exigibilidade maior a pena cabível quanto menor menor o castigo Tratase enfim de concretizar o princípio da proporcionalidade que informa todo o ordenamento jurídico segundo o qual de quem se pode exigir mais se deve castigar mais de quem se pode exigir menos se deve castigar menos Imaginese por exemplo que A B e C tomem parte num crime de extorsão me diante sequestro A arrependido vem a facilitar a fuga da vítima dias depois enquan to B se limita a atender ligações telefônicas observar a vítima e alimentála diferen temente de C que tudo arquiteta comanda a operação e trata a todos com violência e supordinação Parece evidente que não obstante a culpabilidade de todos Uuízo de constatação a ensejar a condenação ela a culpabilidade como juízo de aferição a en sejar penas distintas não é a mesma para todos uma vez que o grau de reprovabilidade de A que merece pena menor não é o mesmo de B que merece pena intermediária que não é o mesmo de C que merece pena maior devendo o castigo ser distribuído desigualmente Eventualmente as condutas de A e B poderão ser consideradas inclusi ve como participação de menor importância a autorizar a redução da pena Essa maior ou menor reprovabilidade constitutiva da culpabilidade pode ser afe rida a partir de diferentes critérios motivos circunstâncias consequências compor tamento da vítima etc razão pela qual ela compreende também todos aqueles ele mentos que o legislador já houve por bem autonomizar Se isso não tiver ocorrido a culp11bilidade passa a ser um critério subsidiário de verificação daqueles dados que podiam eventualmente ser previstos pelo legislador mas não o foram reprovando para mais ou para menos a infração penal Pois bem no particular o equívoco na aplicação da pena consiste em tomar no vamente em conta a culpabilidade não como critério de valoração do grau de culpa juízo quantitativo mas como pressuposto da condenação Uuízo qualitativo Não é infrequente por exemplo afirmarse que o réu é culpável pois tinha plena consciên cia da ilicitude do fato sabia exatamente o que fazia ou ainda agiu livremente Ora não fosse o réu culpável por quaisquer desses motivos e seria o caso de absolvêlo ou diminuirlhe a pena seja por erro de proibição inevitável ou evitável seja por coa ção física ou moral irresistível ou resistível É que conforme vimos são elementos da culpabilidade a imputabilidade a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa Por fim é recorrente a valoração de circunstâncias próprias de um direito próprio do autor se bem que com algum apoio no Código que prevê como circunstância ju dicial a personalidade do agente No particular não é raro assinalar que o réu tem personalidade agressiva personalidade voltada para o crime etc esquecendose primeiro que nada disso autoriza a condenação de quem quer que seja razão pela 443 PAULO QlJ E I ROZ qual tampouco pode justificar a majoração da pena castigandose pela via indireta o que não o é pela via direta segundo porque a permitir que o Estado possa coagir os cidadãos a não serem agressivos malvados etc estarseia a confundir direito e moral punindo o autor não exatamente pelo que fez mas pelo que é Não cabe tampouco agravarse a pena sob a alegação de que o condenado tem ní vel universitário ou similar e por isso sua conduta seria particularmente reprovável Primeiro porque importa em castigar alguém pelo que se é direito penal do autor se gundo porque como ninguém é punível diretamente por um ato legal tampouco pode sêlo indiretamente terceiro porque frequentemente não existe relação alguma entre o delito praticado e a condição de universitário quarto porque não está em discussão no mais das vezes o grau de consciência da reprovabilidade da conduta e por último porque se trata de uma circunstância juridicamente irrelevante Amiúde procurase ainda dar à sentença caráter exemplificador pretendendo em prestarlhe efeitos universais com fins de prevenção geral principalmente em casos de tráfico de drogas em que se alude a expressões como o tráfico é um mal que assola toda a humanidade e que precisa por isso ser exemplarmente punido para que possa mos dar um fim a isso aplicandose a partir de tal argumento penas altas em dema sia que não retratam o caso concreto e transcendem o merecimento do autor pois não se está a rigor a julgar o traficante mas o tráfico Não há aí individualização da pena mas desindividualização generalização No caso de tráfico droga e afins os erros mais comuns consistem em considerar como circunstâncias judiciais ou legais ao objetivo de lucro como se o tráfico já não fosse um comércio criminoso b a paga ou promessa de recompensa que é inerente à própria atividade de tráfico ilícito c a ofensa à saúde pública que constitui a pró pria lesão ao bem jurídico e o resultado inerente ao tipo consumado d que o tráfico provoca malefícios a toda sociedade e às gerações futuras aplicandose uma pena de caráter exemplificador que não retrata o caso concreto e o motivo torpe geralmente o fim de lucro também inerente ao tipo f a falta de fiscalização nas fronteiras como se o condenado fosse de algum modo corresponsável pela segurança nos territórios por onde passou 41 Modelo de sentença Abaixo modelo de sentença com comentário tráfico de droga que comete tais erros Modelo de sentença 1 Comentários Vistos etc Passo à individualização da pena e apreciação das circunstâncias judiciais do art 59 do Código Pe nal 444 lü6I I N D IV IDUALIZAÇÃO JUDICIAL DA PENA 1 Modelo de sentença Comentários O réu é imputável detinha consciência da ilicitu A imputabilidade a potencial consciência da ilici de e lhe era exigível conduta diversa razão pela tude e a exigibilidade de conduta diversa são ele qual sua culpabilidade é máxima mentos constitutivos da culpabilidade logo são pressupostos da condenação Consequentemente considerálos na fixação da pena importa em bis in idem A conduta social do réu não é boa pois não tra Ninguém é obrigado a trabalhar Ademais o só balha e responde a vários inquéritos e processos fato de não trabalhar não implica má conduta so eia A referência aos processo em andamento vio la nos termos da Súmula 444 do STJ o princípio da presunção de inocência Por conseguinte se não importa em maus antecedentes tampouco signifi ca má conduta social O réu tem personalidade voltada para o crime Aqui a decisão repete o argumento anterior sen tanto é assim que responde a vários inquéritos e do criticável pelas mesmas razões já assinaladas processos Além disso o juiz não dispõe ordinariamente de elementos para avaliar a personalidade quer posi tiva quer negativamente Os motivos do crime a cobiça e a ambição exage Novamente bis in idem Com efeito se os motivos radas são injustificáveis fossem justificáveis incidiriam possivelmente causas de justificação estado de necessidade etc Além disso tais motivos são inerentes ao crime de tráfico de droga por se tratar de um comércio proibido Os resultados do crime são gravíssimos pois o Aqui a sentença assume caráter exemplificador em tráfico produz um número indefinido de vítimas desacordo com o princípio da individualização em todo o país e fomenta diversas outras práticas uma vez que ignora o caso concreto e passa a fa criminosas zer considerações genéricas que o transcendem A sentença desindividualiza As circunstâncias do delito lhe são de todo des No particular decisão ofende o princípio da pes favoráveis pois o réu se valeu da ausência de soalidade da pena visto que imputa ao réu conduta fiscalização das fronteiras para praticar a infração do Estado que se omitiu no dever de fiscalizar suas penal fronteiras Assim como necessário e suficiente à reprovação Os erros apontados impediriam a fixação de pena e prevenção do crime CP art 59 fixo a penaba base acima do mínimo legal 5 anos de reclusão se em 8 oito anos de reclusão 445 PAULO Q E I ROZ 8 fundamentação dos efeitos da condenação referidos no art 92 do Código 1 PRIMEIRA FASE FIXAÇÃO DA PENABASE Para a fixação da penabase o juiz tomará em consideração as diversas circuns tâncias judiciais do art 59 do Código umas de caráter subjetivo como a culpabilidade os antecedentes a conduta social a personalidade do réu os motivos do crime outras de cunho objetivo as circunstâncias e consequências do crime bem assim o comporta mento da vítima as quais tanto podem servir para agravar quanto para atenuar a pena inicial Naturalmente que tais circunstâncias jamais poderão servir para sopesar a pena mais de uma vez nas várias fases de fixação ne bis in idem Nesse sentido dispõe a Súmula 241 do STJ A reincidência penal não pode ser considerada como circunstân cia agravante e simultaneamente como circunstância judicial Apesar de a súmula em questão se referir à reincidência ela é perfeitamente aplicável a toda e qualquer circunstância judicial ou legal agravante ou atenuante Naturalmente que o juiz não precisa necessariamente referir cada uma das cir cunstâncias judiciais do art 59 só deve fazêlo quando for importante para a fixação da pena Quando determinada circunstância for irrelevante para o caso deve dizer ex pressamente que deixa de considerála ou não fazer referência alguma 2 SEGUNDA FASE FIXAÇÃO DA PENA PROVISÓRIA 21 Concurso de agravantes e atenuantes No caso de só incidirem agravantes ou só atenuantes o juiz em princípio as aplica rá cumulativamente Em ambos os casos o Código não estabeleceu qualquer limite seja para mais seja para menos mas uma coisa é certa as agravantes jamais poderão fazer a pena exceder ao máximo legal mas as atenuantes podem justificar contrariamente à Súmula 231 do STJ a fixação de pena abaixo do mínimo legal Quanto aos limites má ximos da apenação alguns autores têm proposto à falta de critério legal que o percen tual para mais ou para menos não exceda o teto de um sexto da penabase aplicada2 Se concorrerem agravantes e atenuantes o Código determina que a pena deve aproximarse do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes entendendose como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime da personalidade do agente e da reincidência CP art 67 Parte da doutrina e da jurisprudência admite in clusive que se declare a neutralização ou compensação de uma ou mais agravantes ou de uma ou mais atenuantes Havendo concurso entre circunstâncias igualmente preponderantes é perfeita mente possível a compensação entre elas Mas como é impossível determinar a priori a importância da circunstância preponderante ou não o mais razoável é sempre valo rálas concretamente para se admitir ou não a compensação e em que termos 2 Nesse sentido Paganella Boschi Penas e seus critérios cit p 277278 448 PAULO ÜlJEIROZ 3 TERCEIRA FASE FIXAÇÃO DA PENA DEFINITIVA 31 Causas de aumento de pena e qualificadoras distinção Não há distinção ontológica entre qualificadora e causa de aumento de pena tam pouco há distinção essencial entre causa de diminuição de pena e atenuantes genéricas tanto que determinadas circunstâncias v g motivo torpe motivo fútil etc ora apare cem como qualificadora ora como causa de aumento outras tantas circunstâncias v g motivo de relevante valor social ou moral que ora figuram como simples atenuante genérica ora como causa de diminuição de pena Semelhante tratamento um tanto casuístico atende a critério de conveniência política puramente Com efeito quando o legislador pretende reprimir mais duramente uma determinada circunstância trataa como qualificadora se não tão severamente como causa de aumento se mais branda mente como circunstância agravante No entanto a distinção é relevante para efeito de aplicação da pena Sim porque as qualificadoras que implicam a fixação de novos limites mínimo e máximo de pena v g o homicídio qualificado por motivo fútil CP art 121 2º II cuja pena é de doze a trinta anos de reclusão e não seis a vinte anos de reclusão devem ser levadas em conta já no momento mesmo da aplicação da penabase primeira fase Diferente mente as causas de aumento ou de diminuição serão consideradas somente na terceira fase Naturalmente que a mesma circunstância não poderá ser tomada em conta mais de uma vez na mesma sentença sob pena de bis in idem Assim se a mesma circunstância já figurar como qualificadora deverá ser ignorada como causa de aumento ou agra vante se já figurar como causa de diminuição deverá ser desprezada como atenuante genérica No particular vigora o seguinte princípio as qualificadoras prevalecem so bre as causas de aumento de pena que prevalecem sobre as circunstâncias agravantes As agravantes só têm aplicação portanto quando não constituírem nem qualificadora nem causa de aumento O mesmo deve ser dito quanto às causas de diminuição de pena que prevalecem sobre as circunstâncias atenuantes 32 Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento e dimi nuição A doutrina considera que diferentemente do que ocorre com circunstâncias agra vantes e atenuantes as causas de aumento podem elevar a pena além do máximo e as de diminuição reduzila aquém do mínimo legal cominado Nesse sentido Paganella Boschi embora reconheça que as causas especiais de aumento ou diminuição diferem das agravantes e atenuantes sob a perspectiva meramente topográfica pois as primei ras estão espalhadas pelo Código ao passo que as últimas aparecem definidas só na Parte Geral entende acompanhando a doutrina que as agravantes não autorizam à luz do sistema legal vigente individualização da penabase além dos limites definidos em abstrato mas tal restrição não se aplica às causas especiais de aumento uma vez que a possibilidade de extrapolação da margem superior cominada no tipo não ofende 450 I071 MÉTODO DE FIXAÇÃO DA PENA o princípio constitucional da legalidade art 5º inc XXXIX pois decorre da funcio nalidade do sistema adotado pelo nosso Código art 68 do CP4 Mas semelhante interpretação no que toca à possibilidade de fixação da pena além do máximo legal por força de causa de aumento é um tanto discutível Sim porque se o legislador cominou um máximo legal de pena v g no furto cuja pena varia de 1 a 4 anos de reclusão parece que o mais razoável seria concluir que o juiz não poderia estabelecer novos parâmetros legais máximos Em suma em nome da garantia consti tucional de legalidade da pena deveria darse tratamento unitário a todas as situações quer se trate de circunstância agravante quer de causa de aumento a pena não poderia ser fixada além do máximo legal cominado Mas o contrário não está vedado tanto as circunstâncias atenuantes quanto as causas de diminuição podem justificar a aplicação da pena aquém do mínimo legal previsto 33 Concurso de causas de aumento e diminuição de pena possibilidades Nessa terceira fase o juiz poderá deparar com as seguintes hipóteses a incide mais de uma causa de aumento de pena b incide mais de uma causa de diminuição de pena c incide simultaneamente mais de uma causa de aumento e de diminuição de pena Pois bem para as duas primeiras hipóteses o Código prevê a mesma solução o juiz pode limitarse a um só aumento ou a uma só diminuição prevalecendo todavia a causa que mais aumente ou mais diminua CP art 68 parágrafo único Significa dizer portanto que o legislador entendeu de à vista da incidência si multânea de várias causas de aumento ou de diminuição privilegiar uma única a que mais aumenta ou a que mais diminui em prejuízo das demais de modo a evitar que a consideração de múltiplas causas de aumento ou de diminuição conduzisse o juiz a fixar uma pena desproporcional alta demais no primeiro caso ou baixa demais no se gundo podendo chegar teoricamente à pena zero inclusive Apesar de não existir previsão semelhante quanto às circunstâncias agravantes talvez pudesse o juiz recorrer analogicamente a tanto visto que a razão políticocri minal é a mesma ou seja havendo concurso de agravantes ou atenuantes sobre um mesmo crime em tese seria possível que o juiz preferisse uma a mais importante em prejuízo das demais Discutese se tal possibilidade constitui uma faculdade ou um dever do juiz Te mos que a despeito de opiniões em contrário tratase de um dever e não de simples faculdade Outra questão relevante é a seguinte o Código fala expressamente de con curso de causas previstas só na Parte Especial De acordo portanto com a literali dade da norma tal regra não se aplicaria aos casos de concurso entre causas da Parte Especial e da Geral ou só da Parte Geral Esse aliás é o entendimento majoritário na 4 Penas e seus critérios cit p 296 451 PAULO Q1JEIROZ doutrina se o concurso se der entre causas previstas só na Parte Geral ou previstas na Parte Especial e na Geral não cabe invocar a regra do art 68 parágrafo único No entanto não parece justificada a restrição nem um tal apego à letra da lei Além disso em princípio é irrelevante o lugar onde se acha localizado no Código a causa de au mento ou de diminuição devendo darse tratamento unitário a tais situações Finalmente na terceira hipótese em que incidem ao mesmo tempo causas de au mento e de diminuição de pena a solução é diferente o juiz apreciará sucessivamente todas as causas presentes de aumento e de diminuição não podendo invocar a regra do art 68 452 PAULO QV E I ROZ entanto se adotado o método isolado ambos os aumentos incidiriam sobre a pena pro visória de 4 anos resultando numa pena final de 8 anos segundo a operação seguinte 4 2 12 6 6 2 112 de 4 8 O método isolado poderá ser também desfavorável em algumas situações como por exemplo incidirem uma causa de diminuição e outra de aumento como ocorre no furto tentado praticado durante o repouso noturno2 Com efeito definida a pena provisória em 3 anos havendo uma redução de 23 e um aumento de 13 e aplicado o método sucessivo obterseia uma pena final de 1 ano e quatro meses conforme a ope ração seguinte 3 2 23 l 1 4 meses 13 de 1 ano 1 ano e quatro meses Já a aplicação do método isolado ensejaria uma pena final de 2 anos a operação seria 3 2 1 1 1 13 de 3 2 Em conclusão3 1 no concurso entre causas de aumento o método sucessivo prejudica o réu 2 no concurso entre causas de diminuição o método isolado é impraticável ilógi co 3 no concurso entre causas de aumento e de diminuição o critério isolado preju dica o réu Por isso temos que como regra o método a ser aplicado é o sucessi vo e só excepcionalmente o isolado sempre que for mais favorável ao réu 2 Cf Fernando Galvão idem p 618 3 Cf Gilberto Ferreira cit p 160 456 PAULO QJEJROZ Por isso diz GarcíaPablos que o princípio de culpabilidade funciona como limite do poder de punir não só quanto à determinação dos pressupostos da pena mas tam bém quanto à sua individualização judicial significando dizer que não pode exceder ao que seja adequado e conforme a gravidade da culpa do autor por mais que seja neces sária no caso concreto por motivos de prevenção geral ou especial a aplicação de pena mais severa 3 Superada a análise da culpabilidade enquanto pressuposto da condenação juízo qualitativo de culpabilidade o juiz agora a tomará em consideração para efeito de afe rição do grau de culpa do réu juízo quantitativo vale dizer considerálaá para fixar uma reprimenda compatível com o grau máximo médio ou mínimo de reprovabilida de Há quem defenda4 que para a aferição da culpabilidade há de ser considerada tam bém a intensidade do dolo apesar de este ter migrado para a tipicidade com o advento da teoria final da ação Mas isso não parece correto visto que sendo o dolo requisito dos tipos dolosos e pois pressuposto da própria condenação considerálo para efeito de majorar ou atenuar a pena constitui bis in idem até porque frequentemente a maior intensidade do dolo já figura como agravante genérica causa de aumento de pena ou qualificadora como no homicídio CP art 121 2º em que ela pode atender pelo nome de motivo fútil torpe meio cruel etc O mesmo deve ser dito da sua menor inten sidade que pode aparecer no caso específico do homicídio com a roupagem de motivo de relevante valor moral ou social e semelhantes Portanto a culpabilidade funciona como limite máximo de fixação da pena mo tivo pelo qual não é exato dizer como dizia Cezar Bitencourt que ela funcionando como limite impede que seja imposta uma pena aquém ou além da medida prevista pela própria ideia de culpabilidade5 É que embora não se possa realmente aplicar pena além da culpabilidade do réu nada impede que a sanção seja imposta aquém dela uma vez que como assinala Roxin o princípio da culpabilidade ditado em nome da dignidade humana é um meio imprescindível para limitar o poder penal estatal num Estado de Direito motivo pelo qual é perfeitamente admissível aplicar uma pena in ferior à culpa6 Mas a culpabilidade é analisada não só aí como também durante todo o processo de individualização da pena a exemplo do que ocorre quando do reconhecimento da participação de menor importância do erro de proibição evitável da semiimputabili dade etc fundamento da pena isto é característica negativa da conduta proibida e que já deve ter sido objeto de análise juntamente com a tipicidade e a antijurídicidade concluindose pela condenação e presumese que esse juízo tenha sido positivo porque do contrário nem se teria chegado à condenação Manual cit p 55 1 3 Derecho penal cit p 286 4 Cezar Bitencourt Manual cit p 5 5 1 5 Cezar Bitencourt Manual cit p 5 5 1 6 Problemas fundamentais cit p 3839 458 l l ü l C I RCUNSTÂNCIAS UDICIAIS EM ESPÉCIE Não é preciso dizer que na prática forense há frequentes erros na aplicação da pena quando se analisa a culpabilidade como por exemplo afirmarse que o réu é culpável pois tinha plena consciência da ilicitude do fato sabia exatamente o que fazia ou ainda agiu livremente Ora não fosse o réu culpável por quaisquer desses motivos seria o caso de absolvêlo ou diminuirlhe a pena seja por erro de proibição inevitável ou evitável seja por coação física ou moral irresistível ou resistível visto que as excludentes de culpabilidade constituem pressupostos da condenação mesma vide erros frequentes na aplicação da pena 2 ANTECEDENTES DO RÉU Antecedentes são fatos passado da conduta do condenado dignos de nota e pois merecedores de apreciação na sentença seja para aprovála seja para reprovála Por óbvio que fatos posteriores ou consequentes ao crime não podem ser tidos como ante cedentes simplesmente porque não o são É que os antecedentes a que se refere a lei são os antecedentes ao crime e não à sentença Somente os episódios que direta ou indiretamente ou que de alguma forma te nham relação com o fato devem ser levados em consideração seja porque tenham influenciado ainda que remotamente a prática do crime seja porque revelam maior periculosidade do agente7 Convém notar que a Constituição considera que ninguém será considerado cul pado senão após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória art 5 LVII motivo pelo qual inquéritos policiais e processos penais em curso ou arquivados bem como condenações ainda em grau de recurso não podem implicar maus antecedentes sob pena de violação ao princípio pois do contrário será imposta uma condenação reflexa permitindose pela via indireta o que a lei proíbe diretamente conforme tem decidido o Supremo Tribunal Federal8 Não por outra razão foi editada a Súmula 444 do STJ dispondo que é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a penabase Também por isso se os maus antecedentes não servem como tal não servem tam poucp para valorar negativamente a conduta social a personalidade do réu etc9 Consequentemente se os maus antecedentes fundados em inquérito ou ação pe nal em curso não podem agravar a penabase não podem tampouco implicar outras 7 Gilberto Ferreira cit p 8384 8 Presunção constitucional de não culpabilidade cf art 5º LVII Mera existência de inquéritos poli ciais em curso ou arquivados ou de processos penais em andamento ou de sentença condenatória ainda suscetível de impugnação recursai Ausência em tais situações de título penal condenatório ir recorrível Consequente impossibilidade de formulação contra o réu com base em episódios proces suais ainda não concluídos de juízo de maus antecedentes Pretendida cassação da ordem de habeas corpus Postulação recursai inacolhível Recurso extraordinário improvido STF RE nº 464947 Rei Min Celso de Mello 9 Nesse sentido HC nº 1 564 77 AM Relatora Ministra Laurita Vaz do STJ julgado em 221 120 1 1 459 PAULO QEIROZ restrições legais a exemplo de impedir o reconhecimento da causa de redução do art 33 4º da Lei nº 1 134320061º É que o fundamento jurídicoconstitucional para a edição da Súmula nº 444 tem plena aplicação também aqui qual seja violação ao prin cípio da presunção de inocência Não se trata portanto de um argumento válido espe cífica e exclusivamente para a fixação da penabase mas para toda e qualquer restrição legal que tenha por pressuposto os maus antecedentes Parece razoável por conseguinte que uma vez afastados os maus antecedentes para fixação da penabase deve ser também removido o obstáculo legal para a admis são da citada causa de redução de pena Com maior razão não podem ser considerados a título de maus antecedentes fatos desabonadores e mesmo criminosos que sequer foram objeto de investigação po licial Conforme vimos a reincidência perde seus efeitos legais depois de decorridos mais 05 cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e o cometimen to de nova infração penal CP art 64 1 Apesar disso a doutrina e a jurisprudência têm como possível e legítimo que ela seja considerada como maus antecedentes Temos porém que essa utilização da reincidência como maus antecedentes é abu siva pois se não vale como reincidência mesma não há de valer tampouco como maus antecedentes sob pena de violação ao princípio da legalidade Ademais se não é juri dicamente possível o mais agravamento da pena provisória pela reincidência não há de ser possível o menos aumento da penabase por maus antecedentes E mais aquilo que o ordenamento jurídicopenal veda diretamente efeitos da re incidência como reincidência não pode ser tolerado indiretamente efeitos da reinci dência como maus antecedentes sob pena de fraude à lei Além disso se não for assim estarseia a perpetuar o possível aumento da pena a título de maus antecedentes Convém lembrar a propósito que a reincidência é uma espécie a mais importan te inclusive do gênero maus antecedentes Consequentemente uma vez extintos os efeitos da reincidência diretos e indire tos o réu retoma a condição legal de primário não podendo ipso facto lhe serem negados direitos a pretexto de existirem maus antecedentes em seu desfavor11 Também não podem ser reconsideradas as circunstâncias que já foram tomadas em conta na própria sentença ne bis in idem Que restará então a título de maus antecedentes Unicamente as condenações com trânsito em julgado que apesar disso não importem em reincidência na forma da lei E 1 0 O art 33 4 da Lei nº 1 1 3432006 prevê uma causa de redução de pena de 16 a 23 nos delitos definidos no caput e no 1 º deste artigo as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços vedada a conversão em penas restritivas de direitos desde que o agente seja primário de bons ante cedentes não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa 1 1 No sentido do texto Paganella Boschi cit 460 I JOI CI RCUNSTÂNCIAS J UDICIAIS EM ESPECIE mais é necessário que não incida nenhuma das hipóteses do art 64 do Código a saber decurso do prazo de cinco anos a contar da extinção da pena pelo crime anterior12 e condenação por crimes militares próprios e políticos pois não geram reincidência 3 CONDUTA SOCIAL A conduta social que praticamente se confunde com os antecedentes diz respeito às relações do acusado com a família e sua adaptação ao trabalho ao estilo de vida honesto ou desonesto13 De acordo com Guilherme de Souza Nucci o magistrado pre cisa conhecer a vida pessoal de quem está julgando a fim de saber se merece uma reprimenda maior ou menor daí a importância das perguntas que devem ser feitas ao acusado no interrogatório e às testemunhas durante a instrução Assim por exemplo um péssimo pai e marido violento em caso de condenação por lesões corporais graves menice pena mais severa do que o pai terno e esposo dedicado14 De todo modo difícil é compatibilizar o exame da conduta social do apenado com a perspectiva de um direito penal do fato já que o condenado deve responder penal mente pelo que faz e não pelo que é Para avaliar a conduta social do condenado o juiz não poderá por óbvio ignorar o contexto social em que está inserido e as possibilidades reais de se comportar na sociedade e interagir com o meio sob pena de se julgar não propriamente um homem mas lum estereótipo 4 PERSONALIDADE DO RÉU Mais difícil ainda será como assinala Paganella Boschi a avaliação da persona lidade do réu seja porque como regra o juiz não domina conteúdos de psicologia an tropologia ou psiquiatria seja porque possui como todo indivíduo atributos próprios de personalidade por isso que a valoração que se faz nas sentenças criminais é quase sempre precária superficial e não raro preconceituosa limitada a afirmações genéri cas do tipo personalidade ajustada desajustada agressiva impulsiva boa má que nada dizem tecnicamente15 Já não bastassem tais dificuldades aliada a sua irrelevância mesma semelhante avaliação não parece legítima no contexto de um direito penal do fato pois além de possibilitar ao julgador invadir arbitrariamente âmbito da liberdade onde não lhe é lícito opinar interioridade da pessoa estabelece uma verdadeira porta aberta para a perversão do princípio da culpabilidade pelo fato16 Logo e de acordo com um direito 1 2 N o mesmo sentido Paganella Boschi Penas e seus critérios de aplicação Porto Alegre Livraria do Advogado Ed 2000 p 208 13 Fragoso Lições cit p 322 14 Individualização da pena cit p 201 1 5 Paganella Boschi Penas cit p 2 1 1 1 6 Saio de Carvalho Aplicação da pena e garantismo Rio de Janeiro Lumen Juris 200 1 p 5 1 52 461 PAULO QJEIROZ penal garantista são admissíveis apenas normas que proíbam e previnam fatos e não normas que proíbam ou desmoralizem identidade apenas juízos que acertem a prova de uma ação e não valorações sobre a personalidade do réu apenas tratamentos puniti vos relacionados ao fato previsto como crime e resolvido mediante provas e não trata mentos individualizados e modelados sobre a personalidade do imputado ou recluso17 em geral argumentos potestativos e por isso dificilmente refutáveis 5 MOTIVOS DO CRIME Para a fixação da penabase o juiz deve também sopesar os motivos do crime isto é as razões próximas e remotas que levaram o agente a praticar o delito Nesse sentido são mais reprováveis por exemplo os crimes que tenham como motivação a inveja o ódio gratuito a ambição desmedida a lascívia etc Contrariamente são me nos censuráveis os crimes que tenham uma motivação nobre como a defesa da própria honra injustamente ofendida o amor etc Naturalmente que tais motivos não deverão ser considerados como circunstâncias judiciais quando já fizerem parte da definição do próprio tipo penal ou já constituírem circunstância atenuante agravante ou qualifica dora ne bis in idem Exatamente por isso não podem ser tomadas em consideração as motivações ine rentes à própria infração penal e pois já valoradas por ocasião da tipificação como v g a libido exacerbada ou a falta de pudor nos crimes sexuais a ganância a ambição ou o ganho fácil nos crimes patrimoniais ou tráfico de droga o desprezo à pessoa humana nos crimes contra a vida etc 6 CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME As circunstâncias são dados ou fatos lugar modo de execução etc que estão em derredor do crime e que devem ser levados em consideração para efeito de individua lização da pena Já as consequências do crime são os efeitos principais e secundários decorrentes da infração cujo grau maior ou menor de lesividade social e individual deve ser considerado de modo a ensejar a aplicação de uma pena justa Mas ao contrário do que por vezes se afirma18 tanto nos crimes dolosos quanto nos culposos tais consequências devem influir na dosagem da pena mesmo porque a lei não faz distinção alguma no particular Como assinala Paganella Boschi as consequências do crime a que se refere o art 59 são evidentemente aquelas que se projetam para além do fato típico porque se as sim não fosse poderiam acarretar a quebra da regra do ne bis in idem especialmente naqueles casos em que aparecem compondo a figura penal Daí por que é inviável na 1 7 Ferrajoli apud Saio de Carvalho Aplicação da pena cit p 53 18 Assim Delmanto Código Penal Comentado 6 ed Rio de Janeiro Renovar 2002 para quem tra tandose de crimes culposos as consequências não devem influir 462 j IOj C I RCUNSTÀNCIAS J U DICIAIS EM ESPÉCIE dosimetria da penabase do homicídio valoração negativa das consequências porque a morte da vítima é condição para que o tipo se realize a incapacidade para o trabalho não pode ser considerada como circunstância judicial no crime de lesões corporais gra víssimas porque integra o tipo no infanticídio o estar a vítima à mercê da ré é circuns tância conatural ao delito Já o desamparo da prole e os inconvenientes dos reiterados tratamentos médicos para a correção ou eliminação da grave perturbação emocional da vítima podem ser perfeitamente considerados19 7 COMPORTAMENTO DA VÍTIMA Também é relevante para a aplicação de uma pena justa saber sobre o compor tamento da vítima no desenrolar do episódio criminoso vale dizer a forma como a conduta da vítima pôde favorecer ou motivar a atuação criminosa do agente Cumpre notar porém que o comportamento do ofendido deve ser apreciado de modo amplo no contexto da censurabilidade do autor do crime não só podendo diminuir como au mentar eventualmente a pena20 Naturalmente que o comportamento de que estamos tratando não é aquele que faz incidir a legítima defesa por exemplo nem o privilégio de alguns crimes assim o homicídio CP art 121 lº mas condutas que em nada afetam a tipicidade ou a ilicitude do fato 19 Das penas e seus critérios de aplicação Porto Alegre Livr do Advogado Ed 2002 p 2 12 20 Delmanto Código Penal Comentado cit p 95 463 1 1 21 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCIE A prova da reincidência deverá ser feita mediante certidão do cartório competen te não bastando a simples exibição de folha de antecedentes nem sempre exata nem sempre atualizada Tampouco pode ser provada pela simples confissão do réu Alguns autores entendem que se a reincidência decorrer de duas ou mais conde nações o juiz poderá considerar uma delas como maus antecedentes para aplicação da penabase e a outra como agravante para fixação da pena provisória Mas um tal aproveitamento do instituto ofende o princípio da legalidade e implica bis in idem uma vez que embora com nome diverso estarseá ainda a elevar a pena com base na mes ma circunstância a reincidência Além disso não se pode ignorar que a reincidência é espécie do gênero maus antecedentes sua máxima expressão motivo pelo qual não pode ensejar múltiplos aumentos ora com o nome de maus antecedentes ora com o nome de reincidência b Crimes que não geram reincidência Nem todos os crimes geram reincidência O Código excepciona os crimes milita res próprios e os crimes políticos art 64 11 Crimes militares próprios são os defini dos exclusivamente no Código Penal Militar e que somente podem ser cometidos por mifüar v g deserção abandono de posto insubordinação etc e não o civil Não se confundem portanto com crimes militares impróprios que podem ser praticados por qualquer pessoa militar ou civil Já os crimes políticos são os praticados contra a segurança interna e externa do Estado sendo puramente políticos os crimes que atentam exclusivamente contra inte resses políticos da nação v g incitação ou propaganda subversiva e relativamente políticos são os crimes que se referem a fatos puníveis segundo a lei penal comum praticados com finalidade políticosubversiva v g roubo ou sequestro com fins políti cos1 Somente os puramente políticos não geram reincidência e Extinção da reincidência A reincidência não é perpétua haja vista que se entre a data do cumprimento ou extinção da pena anterior e a prática da infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos extinguirseão todos os seus efeitos isto é o sentenciado voltará à condição de primário CP art 64 II Estando o réu no gozo de livramento condicional computarseá também no prazo legal de cinco anos o tempo em que o condenado esteve sob livramento desde que não tenha havido revogação Assim se condenado a seis anos de prisão após quatro anos cumpriu o restante dois anos em livramento condicional os efeitos da reincidência extinguirseão em três anos a con tar da audiência admonitória e não da sentença que declara extinta a pena por força do cumprimento das condições legais do benefício O mesmo ocorrerá se estiver em gozo de suspensão condicional da pena sursis 1 Fragoso Lições cit p 330 469 PAULO ÜlJEIROZ Conforme vimos autores há que entendem que retomando a condição de primá rio em razão do decurso do prazo de cinco anos sem praticar novo delito poderseá usar tal condenação como maus antecedentes Também aqui no entanto há clara ofen sa ao princípio da legalidade pois se com o decurso do prazo cessa a reincidência principal forma de maus antecedentes ela não pode ser aproveitada para outros fins frustrando a finalidade da lei até porque o acessório maus antecedentes deve seguir a sorte do principal a reincidência Mais os maus antecedentes reincidência acaba riam assumindo caráter perpétuo d Constitucionalidade da reincidência Apesar de consagrada pela maioria dos Códigos a reincidência que encerra uma presunção absoluta de maior perigosidade do réu é dificilmente compatível com os princípios penais especialmente ne bis idem vide capítulo específico Inicialmente é de ver que com a relativização determinada pelo princípio da pre sunção de inocência o instituto perdeu grandemente o seu sentido uma vez que nem sempre o réu reincidente é mais perigoso do que o não reincidente Afinal o agente pode ser primário não obstante ter praticado diversos delitos assim como pode ser reincidente mas em crimes de menor potencial ofensivo2 É de reconhecer portanto que a reincidência já não constitui uma prova segura de maior perigosidade não se justificando também por essa razão sua existência Por isso não é exato dizer que a reincidência é um sinal de periculosidade como a febre é sinal de infecção como a putrefação é sinal de morte Hungria Além disso a reincidência não passa como assinala Mufíoz Conde de uma pena tarifada na medida em que ela atua como causa de agravamento da pena fundada em fato diverso gerador de culpabilidade e de responsabilidade próprias de modo que o plus de gravidade decorrente da reincidência equivale à pena sem culpabilidade es tranho ao fato e que importa em dupla valoração da mesma causa constituindo bis in idem3 2 Sem razão portanto Mirabete quando afirmava que a exacerbação da pena justificase plenamen te para aquele que punido anteriormente voltou a delinquir demonstrando com sua conduta crimi nosa que a sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimidálo ou recuperálo Há inclusive um índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide Manual cit p 30 1 3 Apud Paganella Boschi Penas cit No mesmo sentido André Copetti para quem ao aumentar a pena do delito posterior pela existência da circunstância agravante da reincidência em realidade se está punindo novamente a situação já sentenciada Direito penal cit p 1 94 Idem Saio de Carvalho Aplicação da pena cit e Lênio Streck Tribunal do Júri símbolos e rituais Porto Alegre Livraria do Advogado Ed 2001 Com razão Paganella Boschi assinala que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justificada como imperiosa punição ao condenado que por máformação desvio de conduta tendência ao crime insiste em continuar violando a lei como tradicionalmente se afirma mas isto sim deve ser compreendida também como expressão final do processo de perversão e de estigmatização do homem pela prisão ou pela absoluta falta de políticas oficiais de amparo ao egresso criadoras de novas oportunidades para a harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho Penas 470 1 12 1 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCI E Por isso é que Cobo del Rosal e Vives Antón propõem a abolição pura e simples do instituto porque além de incompatível com um direito penal da culpabilidade pelo fato está evidenciada sua total ineficácia4 Efetivamente a reincidência importa em bis in idem porque ao se punir mais gra vemente um crime tomandose por fundamento um delito anterior estáse em ver dade a valorar e castigar por mais uma vez a infração anteriormente praticada em relação à qual o autor já foi sentenciado chegandose por vezes a absurdos como por exemplo estabelecer o juiz depois de fixar a penabase em vinte anos de prisão por latrocínio aumentála de metade em razão da reincidência mais dez anos Nota o crime anterior um furto fora apenado com dois anos de prisão A rigor portanto o condenado estará a cumprir a mesma pena por mais cinco vezes Apesar disso o Supremo Tribunal Federal decidiu que a agravante da reincidência é constitucional legítima portanto De todo modo temos que o acréscimo de pena que resulta da reincidência não poderá acarretar aumento igual ou superior mas sempre inferior proporcionalmente à pena ou penas aplicada na sentença anterior que a gerou sob pena de o acréscimo exceder à própria pena antes imposta desproporcionalmente Assim no exemplo antes mencionado o aumento de pena deveria ser inferior a dois anos de prisão Finalmente autores há que propõem que a reincidência em vez de ensejar o agra vamento da pena deve ao contrário justificar sua atenuação Nesse sentido Juarez Cirino dos Santos para quem é necessário reconhecer a se o novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema formal de controle social com efetivo cum primento da pena criminal o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reincidência real entre as circunstâncias atenuantes como produto específico da atuação deficiente e predatória do Estado sobre sujeitos criminalizados b se o novo crime é cometido após a simples formalidade do trânsito em julgado de condenação anterior a reincidência ficta não indica qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar circunstância agra vante Conclui então que no caso de reincidência real o condenado cumpriu de fato a p1ena passando pela experiência carcerária deve ela ensejar a atenuação da pena na hipótese de reincidência ficta o condenado não chegou a cumprir pena alguma por cit p 269 Por isso entende Juarez Cirino que em verdade a reincidência ou deveria ser atenuante quando houvesse o cumprimento da pena em virtude da dessocialização decorrente da experiência carcerária ou deveria ser penalmente indiferente quando não tivesse havido o cumprimento da pena Direito penal Rio de Janeiro Forense 1985 p 245 4 Derecho penal cit p 815 Escrevem os citados autores textualmente a reincidência pois não nos deve situar em outro Direito Penal De um Direito Penal distinto ao da mera e única repressão por meio da pena de um Direito Penal preventivo e de medidas de segurança que conhece e concede maior relevância não tanto ao delito mas ao estado perigoso entendido como pressuposto da aplica ção daquelas E dentro deste marco seguimos apesar de tudo propugnando o desaparecimento do instituto da reincidência em suas distintas manifestações assim como em sua consideração como agravante da pena pois está evidenciada a sua total inoperatividade 471 PAULO QJEIROZ qualquer motivo como fuga por exemplo tal circunstância é irrelevante devendo ser ignorada5 2 MOTIVO FÚTIL OU TORPE O Código prevê como agravante genérica o motivo fútil ou torpe Torpe é motivo que mais vivamente ofende a moral média ou o sentimento éticosocial comum É o motivo abjeto ignóbil repugnante que imprime ao crime um caráter de extrema vile za ou imoralidade a exemplo do fim de lucro ou cupidez o prazer do mal o desenfreio da lascívia a vaidade criminal o despeito da imoralidade contrariada etc6 É preciso porém não perder de vista que para alguns crimes tal motivo pode simplesmente constituir um estado normal de quem se determina a praticálo e em consequência deve ser desprezado sob pena de dupla valoração do fato bis in idem Assim não cabe tomar em conta a motivação lasciva para os crimes sexuais o motivo de lucro para os delitos contra o patrimônio extorsão mediante sequestro receptação estelionato etc Fútil é o motivo frívolo insignificante absolutamente desproporcionado que ex prime total indiferença do sujeito para com o bem jurídico tutelado Apesar isso não pode ser considerada fútil a simples falta de motivo nem a só injustiça do motivo Assim se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade o motivo fútil tra duz egoísmo intolerante prepotente mesquinho que vai até a insensibilidade moral7 Também aqui é preciso estar atento para a possibilidade de ocorrência de bis in idem já que o caráter fútil do crime pode já integrar a própria tipificação sendo inerente à sua estrutura Discutese se o ciúme pode ser considerado motivo fútil Parecenos que sobretu do quando se tratar de ciúme havido entre casais tal não pode ser tomado à conta de fútil especialmente em virtude da tradição moral cristã que atribui à fidelidade conju gal extraordinária relevância e mais ainda quando se tratar de ciúme fundado Finalmente de acordo com a jurisprudência o motivo fútil é como regra incom patível com a embriaguez exceto a embriaguez preordenada 3 PARA FACILITAR OU ASSEGURARA EXECUÇÃO A OCULTAÇÃO A IMPUNIDADE OU A VANTAGEM DE OUTRO CRIME O crime é também agravado sempre que for praticado para facilitar ou assegurar a execução a ocultação a impunidade ou a vantagem de outro crime Na primeira hi pótese o que agrava não é prática efetiva do crime mas o fim de cometer outro crime Assim por exemplo o indivíduo que ao tentar uma extorsão mediante sequestro mata a pessoa que se interpõe para evitálo não deixa de responder por homicídio qualifica do ainda quando a seguir desista de consumar a extorsão mediante sequestro Também 5 Direito Penal cit 6 Hungria Comentários cit v 5 p 163 7 Hungria cit p 164 472 I I 2 1 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉC I E nas outras hipóteses a agravante não depende da real consecução do fim a que se pro põe o agente Nas segunda e terceira hipóteses o escopo do agente é destruir a prova de outro crime ou evitar as consequências processuais ou penais dele decorrentes v g executando testemunha do crime Na última hipótese o propósito do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem patrimonial ou não direta ou indireta resultante de outro crime não importando em nenhum desses casos se o agente atua em favor pró prio ou de outrem8 Também aqui é discutível se não há bis in idem haja vista que o agente poderá também responder pelo crime que pretendeu facilitar assegurar a execução a oculta ção ou a impunidade 4 TRAIÇÃO EMBOSCADA DISSIMULAÇÃO OU QUALQUER RE CURSO QUE DIFICULTE OU TORNE IMPOSSÍVEL A DEFESA DO OFENDIDO Também agravam a pena a traição a emboscada a dissimulação ou qualquer ou tro fecurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido A traição é o crime cometido mediante ataque súbito e sorrateiro atingindo a vítima descuidada ou confiante antes de perceber o gesto criminoso Emboscada é a dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar é a tocaia enfim Nela o criminoso escon dido aguarda a passagem da vítima desprevenida que fica à sua mercê Dissimulação é a ocultação da intenção hostil para acometer a vítima de surpresa O criminoso age com falsas amostras de amizade ou de tal modo que a vítima iludida não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa9 Finalmente constitui agravante genérica o uso de qualquer recurso que à semelhança da traição da embos cada e da dissimulação dificulte ou torne impossível a defesa da vítima como o uso de algemas imobilização surpresa etc Em síntese tais circunstâncias ocorrem quando o agente quebra deliberadamente o dever de lealdade e ataca pelas costas traição monta previamente uma cilada ou tocaia para apanhar a vítima emboscada ou sorrateiramente dela se aproxima com ares de amigo para colocarse em vantagem dissimulação sendo que em todas essas situações em que o ofendido é colhido repentinamente sem condições de defesa efi caz justificase a exasperação da pena porque o agente que tinha tempo para refletir e desistir do intento optou por prosseguir10 5 EMPREGO DE VENENO EXPLOSIVO ETC O emprego de veneno fogo explosivo tortura ou outro meio insidioso ou cruel e o meio de que poderia resultar perigo comum também agravarão a pena Veneno 8 Hungria idem p 1 7 1 9 Hungria cit p 1 681 69 1 O Paganella Boschi Penas cit p 273 473 PAULO QJ E I ROZ é toda substância que introduzida no organismo é capaz de mediante ação química ou biológica lesar a saúde ou destruir a vida explosivo é qualquer corpo capaz de se transformar rapidamente em gás à temperatura elevada a exemplo dos derivados da nitroglicerina dinamite da nitrobenzina belite do nitrocresol cresolite da ni tronaftalina do nitrotolueno etc a tortura é o suplício inflição de tormentos meio insidioso é o meio dissimulado na sua influência maléfica meio cruel é todo aquele que causa um sofrimento físico inútil ou mais grave do que o necessário e suficiente para a consumação do crime meio de que possa resultar perigo comum é o que além de atingir a vítima escolhida pode criar uma situação de perigo extensivo a número indeterminado de pessoas11 6 EMBRIAGUEZ PREORDENADA Conforme vimos a pena será igualmente agravada quando o crime resultar de em briaguez preordenada actio libera in causa que ocorre quando o agente fazendo uso de droga lícita ou ilícita se coloca dolosamente nessa condição a fim de delinquir seja para encorajarse seja para simular uma excludente da culpabilidade seja por qualquer outro motivo tratase de uma espécie de embriaguez dolosa portanto As demais formas de embriaguez dolosa culposa ou acidental não têm rele vância no particular isto é para o fim de agravamento da pena 7 ASCENDENTE DESCENDENTE IRMÃO OU CÔNJUGE A pena será também exasperada quando se tratar de crime praticado contra ascen dente descendente irmão ou cônjuge A propósito Paganella Boschi afirma que os deveres de auxílio mútuo de fraternidade e de respeito próprio de pessoas que man têm laços de parentesco próximo justificam moral e juridicamente a mais intensa rea ção do direito penal quando são violados12 Mas isso não é de todo exato porque da relação de parentesco não decorre necessariamente o dever de manter relações frater nais pois não raro parentes próximos convivem e se relacionam entre si como autênti cos inimigos de modo que não há aí motivo algum para se auxiliarem mutuamente Na verdade a incidência ou não dessa agravante deve ser avaliada concretamente porque do contrário se estará conferindo caráter absoluto a uma presunção legal além de con fundir direito e moral até porque por vezes a única coisa em comum entre parentes é o vínculo de sangue Já Antônio José da Costa e Silva assinalava que o caráter absoluto da circuns tância agravante atribuída ao parentesco a certas relações de família ou dependên cia não se justifica porque vivem os parentes muita vez como inimigos Alguns pais tratam desamorosamente os filhos perdendo por culpa própria a amizade 1 1 Hungria Comentários cit p 1 661 67 12 Penas cit p 277 474 1 1 2 1 C I RCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES EM ESPÉCIE destes Há cônjuges que não habitam sob o mesmo teto e que se odeiam E assim por diante 13 Também a agravante não poderá incidir naquelas hipóteses em que o crime for praticado em represália a abusos sexuais ou semelhantes por parte de parente próximo até porque tais motivos podem eventualmente ensejar a invocação da legítima defesa inclusive Ney Moura Teles entende com razão que se é justa a agravação em face da maior censurabilidade do comportamento praticado contra pessoas íntimas estimadas não se pode aplicála se o crime é cometido contra cônjuge do qual o outro já se encontrava separado ainda que tão somente de fato porquanto entre eles já não existiam relações cuja agressão autorizava a majoração da reprimenda14 Mas ao contrário do que sus tenta este autor tal rol não pode ser ampliado para incluir outras pessoas pelas quais o autor do crime tenha especial estima ou relação de intimidade concubina etc sob pena de violação ao princípiogarantia da legalidade da pena15 Tampouco incidirá a agravante se o réu desconhecer o parentesco por algum motivo a evitar a responsabili dade penal presumida ou objetiva Naturalmente que sempre que o parentesco já fizer parte da descrição legal do tipo ou já o qualificar ou aumentar a pena a agravante não incidirá como v g lesão corporal no âmbito doméstico art 129 9º omissão de socorro CP art 135 biga mia art 235 abandono material CP art 244 abandono intelectual CP art 246 etc Não é preciso dizer que a prova do parentesco deverá ser feita mediante documento hábil como certidão de casamento ou nascimento conforme o caso 8 CONTRA CRIANÇA MAIOR DE SESSENTA ANOS ENFERMO E MULHER GRÁVIDA O sentido da maior agravação do crime praticado contra criança pessoa menor de doze anos conforme dispõe o ECA maior de sessenta anos enfermo ou mulher grávida é precisamente a inferioridade e menor capacidade de resistência destes em relação ao agente16 de modo que todos esses casos partem da mesma presunção a de que tais pessoas são mais vulneráveis e portanto não têm como esboçar uma reação minimamente proporcional 13 Código Penal dos Estados Unidos do Brasil Comentado cit p 329 14 Direito Penal Parte Geral São Paulo Atlas 2006 p 383 15 No sentido do texto Gilberto Ferreira se o casal está separado não incide a agravante uma vez que os deveres de respeito fidelidade e ajuda mútua se romperam com a dissolução da convivência comum Se vive amancebado a agravação não poderá ocorrer já que a lei fala em cônjuge termo que designa as pessoas civilmente casadas não sendo possível fazer interpretação analógica ou ex 1tensiva por ser in malam partem Entretanto a agravante poderá incidir com fundamento na alínea f se o delito foi cometido com prevalecimento de relações domésticas ou de coabitação Aplicação da pena cit p 240 16 Paganella Boschi Penas cit p 279 475 PAULO Q1J E I ROZ Mas por se tratar de uma presunção cumpre verificar se no caso concreto há de fato essa maior vulnerabilidade pois descaberá sua incidência se tal não existir Assim não poderá incidir quando a vítima apesar de se achar nessas hipóteses v g maior de sessenta anos em excelente estado físico por ser exímio conhecedor de artes marciais tiver inclusive em situação de igualdade ou superioridade física relativamente ao agente do crime Tampouco poderá incidir se o agente desconhecer esta condição da vítima v g mulher grávida cujos sinais de gravidez ainda não apareceram sob pena de incorrerse em responsabilidade penal objetiva Por últi mo não cabe a agravante se não houver relação alguma nexo causal entre o fato praticado e essa especial condição da vítima irrelevante que é para o caso como por exemplo o furto do automóvel pertencente a tais pessoas No entanto se se tra tar de crime de roubo praticado que é com violência ou grave ameaça à pessoa a agravante incidirá 9 ABUSO DE PODER OU VIOLAÇÃO INERENTE A CARGO OFÍCIO MINISTÉRIO OU PROFISSÃO Cargo é o posto criado por lei na estrutura da Administração Pública função um conjunto de atribuições pertinentes ao serviço público que pode ser exercida também por quem não ocupe cargo ministério o exercício de atividade religiosa profissão uma atividade especializada legalmente regulamentada17 O legislador parte do pressuposto de que em tais casos maior é a reprovabilida de moralsocial do crime cometido em virtude da confiança inerente ao cargo ofí cio ministério ou profissão que se exerce mesmo porque em geral as suas vítimas clientes pacientes etc se acham em situação mais vulnerável às vezes de desamparo em comparação com as vítimas comuns frequentemente sem poder esboçar mínima reação Assim por exemplo os crimes praticados por advogados contra seus clientes os abusos cometidos por profissionais de saúde médicos dentistas etc e autoridades religiosas padres pastores contra pacientes e crentes as fraudes levadas a cabo por funcionários públicos etc Naturalmente que a agravante em questão não incidirá sempre que se tratar da prática de delito em que o abuso de poder ou a violação do dever inerente ao cargo ministério profissão etc já integrar a própria figura típica ne bis in idem Assim não incide ordinariamente nos crimes de abuso de autoridade peculato corrupção passiva patrocínio infiel entre outros uma vez que a traição a um tal dever é inerente à tipificação penal da conduta 10 OFENDIDO SOB PROTEÇÃO DE AUTORIDADE A pena é também agravada quando a vítima do crime se achar sob a proteção da autoridade pessoa detida ou presa testemunha sob proteção etc em virtude de o 1 7 Guilherme de Souza Nucci Individualização da pena cit p 255257 476 I I 2 1 CRCUNSTÀNCIAS AGRAVANTES EM ESPECIE autor do crime colher a vítima de surpresa demonstrando inclusive ousadia e maior periculosidade a exemplo do arrebatamento de preso para execução Notese que autor do crime no caso é o particular e não a autoridade pública a quem se confiou a prote ção pois se o for o caso será de incidência da agravante de abuso de poder ou viola ção de dever inerente a cargo ou função 11 OCASIÃO DE INCÊNDIO NAUFRÁGIO INUNDAÇÃO OU QUAL QUER CALAMIDADE PÚBLICA OU DE DESGRAÇA PARTICULAR DO OFENDIDO Também nessas hipóteses em que a vítima se encontra em situação de maior vul nerabilidade o legislador determina que a pena seja agravada em razão de o autor do crime além de revelar especial insensibilidade valerse de desgraça alheia para cometer crime v g em vez de prestar socorro à vítima de acidente aproveita para lhe subtrair valores 12 ABUSO DE AUTORIDADE OU PREVALECIMENTO DE RELA ÇÕES DOMÉSTICAS DE COABITAÇÃO OU DE HOSPITALIDADE OU COM VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA FORMA DA LEI ES PECÍFICA Também nas relações privadas poder familiar tutela curatela organizações re ligiosas e civis relações de trabalho pode existir relação de autoridade caso em que havendo abuso isto é uso ilegítimo excessivo ou indevido por parte de quem a exerce a pena será agravada Também aqui o legislador considera que em razão do poder que exercem tais pessoas merecem uma mais grave censura até porque em geral suas víti mas estão em situação de maior vulnerabilidade O mesmo ocorrerá se o agente se valer de relações domésticas de coabitação ou de hospitalidade domésticas são aquelas existentes no meio familiar entre pais e fi lhos irmãos empregados domésticos e amigos que convivam em ambiente de famí lia18 coabitação significa a convivência em um mesmo espaço físico e pressupõe uma relaÇão mais restrita e próxima do que as relações domésticas sendo um estado de fato em que duas ou mais pessoas achamse reunidas para a vida em comum no mesmo lugar por qualquer tempo19 a agravante que resulta de relações de hospitalidade que é incompatível com o ingresso clandestino ou violento em casa alheia 20 incidirá sempre que o hóspede ou hospedante valendose dessa condição praticar delito quebrando a confiança que aí houver Finalmente a pena será também agravada quando se tratar de violência contra a mulher na forma da lei específica conforme redação dada pela Lei nº 1 13402006 1 8 Ney Moura Teles Direito Penal Parte Geral São Paulo Atlas 2006 p 384 19 Fernando Galvão Direito Penal p 728 20 Fernando Galvão idem 477 PAULO QJEIROZ 13 AGRAVANTES EM CONCURSO DE PESSOAS Apesar de o Código se referir à agravante no caso de concurso de pessoas nem todas as situações aí previstas o são realmente já que algumas hipóteses constituem autoria mediata e não concurso de agentes propriamente 131 Agente que promove organiza a cooperação ou dirige a atividade dos demais agentes O legislador entendeu inicialmente que o sujeito que promove dirige a atividade de outros agentes ou organiza a cooperação no crime vale dizer a pessoa que exerce função de liderança o assim chamado autor intelectual merece maior censura deven do sofrer pena agravada afinal sua ação é essencial para o êxito da empreitada crimi nosa cabendolhe em geral definir como e quando se dará a ação delituosa Para que tenha lugar a agravante é necessário que haja de fato comando do agente relativamente à ação dos demais criminosos porque do contrário isto é se os corréus decidirem praticar o crime sem que haja prevalência da decisão de uns sobre os outros a agra vante em questão não incidirá Enfim a agravante só é cabível quando ficar claramente caracterizada a situação de liderança promoção direção ou organização para um agir cnmmoso 132 Agente que coage ou induz outrem à execução material do crime A pena também será agravante em relação ao agente que para a execução mate rial do crime tiver usado de coação física ou moral resistível ou irresistível Natu ralmente que o coagido no caso de coação física ou moral irresistível será absolvi do no primeiro caso por ausência de ação fato atípico no segundo por ausência de culpabilidade Se resistível a coação física ou moral coautoria o coagido será pu nido mas fará jus à atenuante a que já nos referimos No entanto o autor da coação além de responder pelo crime cometido por meio do coagido sofrerá a incidência da agravante de que estamos tratando Se se entender eventualmente que a coação cons titui por si só crime autônomo v g constrangimento ilegal a agravante não poderá ser aplicada ne bis in idem motivo pelo qual a sua incidência pressupõe a não con figuração de crime autônomo É certo ainda que não poderá ser aplicada se a coação embora exercida sobre o coagido não tiver nenhuma influência sobre sua decisão de tomar parte no crime 21 Também responderá pela agravante o agente que induzir isto é instigar persua dir incitar outrem a praticar o delito desde que o induzido não queira ou não tenha pensado em praticálo ou ainda não esteja decididodeterminado a tanto uma vez que se já tiver claramente formada a sua intenção de levar adiante uma empreitada criminosa a agravante não incidirá É que não existe aí indução jurídicopenalmente relevante ao menos para esse efeito específico 2 J Fernando Galvão Direito Penal Parte Geral Rio Impetus 2004 p 743 478 1 1 2 1 C I RCUNSTÂNCIAS AGRAVA NTES EM ESPÉCIE 133 Agente que instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal Também aqui o Código quer apenar mais gravemente pessoas que exerçam algum tipo de influência importante sobre o autor coautor ou partícipe do crime instigandoo de algum modo isto é estimulandoo motivandoo a tanto A expressão autoridade aí empregada deve ser entendida em sentido amplo para alcançar toda e qualquer pessoa que tenha de fato algum tipo de poder sobre a outra a exemplo dos pais em relação aos filhos tutores em relação aos tutelados professores em relação aos alunos etc A agra vante também incidirá quando o instigador se valer para cometer o delito de pessoa não punível em razão de sua condição ou qualidade pessoal menores alienados men tais e incapazes de um modo geral 134 Paga ou promessa de recompensa Por fim a pena será agravada sempre que o crime for motivado pelo pagamento ou promessa de recompensa ainda que não cumprida Para que tenha lugar a agravante não é preciso que a vantagem prometida seja necessariamente patrimonial podendo consistir em outros meios como promessa de emprego favores sexuais etc No entan to o assunto é controvertido havendo quem entenda como Fragoso que a promessa de recompensa deve ter caráter econômico obrigatoriamente22 Discutese se a agravante é também aplicável ao mandante Parecenos que de fato só o executor deva responder por ela uma vez que a lei quis atingir diretamente o sujeito que não tendo motivo algum para cometer o delito nele intervém por dinhei ro aceitandoo ou até se dedicando profissionalmente ou não à atividade crimino sa Aliás quanto ao mandante é irrelevante do ponto de vista da censurabilidade da conduta se ele comete o crime pessoalmente ou se vale de terceiro para tanto já que a culpabilidade é a mesma em ambos os casos Além disso em geral o mandante atua com motivação diversa do executor podendo inclusive agir por motivo de relevante valor social ou moral Como assinala Fragoso a qualificação do crime mercenário se justifica pela ausência de razões pessoais por parte do executor e pelo motivo torpe que o leva ao delito algo que não ocorre em princípio com o mandante que busca a impu nidade e a segurança servindose de um terceiro23 Desnecessário dizer que mandatos gratuitos não ensejam a incidência da agravante Naturalmente que a agravante não incidirá quando a vantagem econômica ou de outra natureza for inerente ao tipo legal de crime ne bis in idem Assim por exemplo não tem aplicação nos crimes patrimoniais apropriação ou desvio de dinheiro público peculato corrupção tráfico de droga etc 22 Lições de direito penal Parte Especial V 1 1 1 ª ed Rio Forense 1995 p 40 23 Lições de direito penal Parte Especial V 1 1 1 ª ed Rio Forense 1995 p 40 479 PAULO QJEIROZ Não estamos de acordo com isso Primeiro porque a Constituição e o estatuto nada previram nesse sentido específico motivo pelo qual compete ao legislador or dinário decidir a esse respeito Aliás temos que por se tratar de típica matéria infra constitucional o legislador poderá inclusive modificar no futuro e eventualmente abolir as disposições jurídicopenais que favorecem o idoso autor de delito Segundo porque a distinção entre idoso autor e vítima de crime não é arbitrária visto que cabe à lei em princípio protegêlos de modo especial contra as infrações de que são vítimas independentemente da idade do agente idoso ou não e não das que vier a cometer Terceiro porque os argumentos de política criminal invocados v g ser o idoso mais vulnerável em comparação com o agente não idoso em favor de um tratamento legal mais favorável justificam a discriminação positiva mas não necessariamente no senti do proposto Por fim sempre que o Estatuto quis modificar o Código Penal fez expres samente como ocorreu em muitos casos Por conseguinte tanto a redução da maioridade civil para dezoito anos novo Có digo Civil como a definição de idoso como pessoa maior de sessenta anos não têm qualquer repercussão no particular Conforme se verá mais adiante a idade do agente é também importante para efeito de prescrição quando os prazos são reduzidos de metade CP art 115 3 DESCONHECIMENTO DA LEI A previsão do desconhecimento da lei como atenuante genérica já não faz sentido algum pois ou bem se trata de algo juridicamente irrelevante uma vez que a ignoràn cia da lei é em princípio inescusável CP art 21 ou bem é algo sério e a ser tomado em conta razão pela qual será o caso de excluir ou atenuar a culpabilidade por erro ele proibição inevitável ou evitável Na verdade a norma em causa é como diz Juarez Cirino dos Santos um remanescente esclerosado do sistema causal do Código Penal de 1940 ainda fundado na dicotomia entre erro de fatoerro de direito e regido pelo princípio ignorantia legis neminem excusat se o erro de direito é irrelevante então o desconhecimento é atenuante2 devendo a atenuante ser abolida portanto 4 MOTIVO DE RELEVANTE VALOR SOCIAL OU MORAL A motivação do crime implicará a atenuação da pena sempre que for importante digno de consideração e que importe assim em menor grau de reprovabilidade Motivo ele relevante valor moral diz respeito a interesse particular do agente motivo de rele vante valor social referese a interesse público coletivo É que embora possa parecer uma contradição crimes há que podem ser cometidos por um motivo não reprovável ou até nobre como registrar como próprio filho alheio para protegêlo fato consti tutivo de crime CP art 242 Apesar de criminoso o fato a pena deve ser atenuada em razão do motivo de relevante valor moral ou social Eventualmente o motivo de 2 Teoria da pena Rio de Janeiro Lumen Juris 2005 p 1 33 482 PAULO Ql E I ROZ em tese com a negativa de autoria como por exemplo a reparação do dano causado pelo delito Tampouco importa em confissão o silêncio do acusado CPP art 198 Embora espontânea não cabe exigir como pretendem alguns autores que a con fissão resulte de um reclamo de consciência moral em que a confissão da prática delitiva seja desprovida de outra causa que não a satisfação íntima de lealdade consigo mesmo e em relação aos outros3pois se assim fosse estarseia a confundir direito e moral além de condicionar a aplicação da atenuante a uma prova dificílima senão impossível Tampouco é necessário que a autoria do crime seja desconhecida bastanto que comparecendo perante a autoridade competente o agente confesse a prática do delito É irrelevante apurar enfim se a confissão facilitou ou não a apuração do crime Como a lei fala de espontaneidade a confissão há de ser feita sem nenhum tipo de constrangimento legal ou ilegal motivo pelo qual raramente é compatível com a prisão em flagrante por exemplo Mas ainda que se pretenda equiparar como quer parte da doutrina a confissão espontânea à confissão pura e simples sua importância deve ser avaliada caso a caso Confessar a autoria do crime não significa porém admitir a prática de um fato típico ilícito e culpável mas sua materialidade e autoria Justamente por isso se o agente embora confessando a prática do fato alega excludentes de criminalidade v g legítima defesa fará jus à atenuante É igualmente razoável reconhecerse a confissão ainda que o réu se retrate poste riormente Finalmente a confissão espontânea não se confunde com a colaboração premiada prevista na Lei nº 128502013 art 4º visto que ali o colaborador vai além da simples confissão e delata seus comparsas etc implicando o perdão judicial extinção da puni bilidade ou a redução da pena Conforme dispõe o Código de Processo Penal arts 197 a 200 o valor da con fissão será aferido pelos critérios adotados para os outros elementos de prova e para a sua apreciação o juiz deverá confrontála com as demais provas do processo veri ficando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância Será divisível e retratável sem prejuízo do livre convencimento do juiz fundado no exame das provas em conjunto 8 INFLUÊNCIA DE MULTIDÃO EM TUMULTO SE NÃO O PROVO COU Por entender que a influência de multidão em tumulto implica menor grau de cen surabilidade da conduta o Código a eleva à condição de circunstância atenuante É que sob a influência de multidão em tumulto o agente é em geral mais propenso a fazer 3 Fernando Galvão Direito Penal Parte Geral Rio de Janeiro 2004 p 763 citando Pedro Vergara 484 1 13 1 C I RCUNSTÂNCIAS ATENUANTES EM ESPÉCIE coisas que não faria não fosse aquele estado em que se viu envolvido como participar de dano a bens públicos briga entre grupos rivais tomar parte em linchamento de autor de crime etc havendo menor grau de culpabilidade Naturalmente que o próprio sujeito que organizou ou provocou o tumulto não fará jus à atenuante Fixada a pena definitiva ao juiz caberá especificar o regime prisional a que ficará sujeito o condenado fundamentadamente 485 PAULO QJEIROZ No regime fechado o condenado será submetido no início do cumprimento da pena a exame criminológico de classificação para individualização da execução fi cando sujeito a trabalho durante o período diurno internamente de acordo com suas aptidões e a isolamento durante o repouso noturno O trabalho externo é admissível em serviços ou obras públicas Já no regime semiaberto o condenado ficará sujeito a trabalho interno durante o período diurno sendo admitido o trabalho externo bem como frequência a cursos supletivos profissionalizantes de instrução de segundo grau ou superior Finalmente no regime aberto baseado na autodisciplina e senso de responsabilidade o condenado deverá fora do estabelecimento e sem vigilân cia trabalhar frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada permanecen do recolhido durante o período noturno e nos dias de folga Excepcionalmente o cumprimento do regime aberto LEP art 1 17 poderá darse em residência particu lar prisão domiciliar quando se tratar de a condenado maior de setenta anos b condenado acometido de doença grave c condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental d condenada gestante Como se vê a prisão domiciliar constitui um modo especial de cumprimento do regime aberto Apesar disso alguns autores propõem que mesmo quando se tratar de condenação a regime fechado ou semiaber to seria razoável que o condenado também fizesse jus ao benefício se se encontrasse nessas mesmas condições1 A progressão para regime mais brando de execução consequência natural da de terminação da pena e admitida como forma de possibilitar a reinserção gradual do preso à comunidade exige o cumprimento de ao menos um sexto da pena no regime anterior e comportamento prisional satisfatório LEP art 112 Para tanto o juiz que decidirá fundamentadamente ouvirá previamente o Ministério Público e o defensor Tratandose de nova progressão o cálculo deverá ser feito com base na pena que resta va por cumprir e não com base no total da pena aplicada Tratandose de condenação por crime hediondo e assemelhados o condenado po derá progredir depois de cumprir 25 da pena se primário e 35 se reincidente con forme redação dada pela Lei nº 1 14642007 Esse limite só é aplicável aos crimes hediondos cometidos posteriormente à en trada em vigor da nova lei princípio da irretroatividade porque apesar de ser mais favorável se comparada à Lei nº 807290 por admitir a progressão a declaração de in constitucionalidade pelo STF atinge todos aqueles que praticaram delito antes da nova lei É que embora proferida em caráter incidental semelhante decisão deve produzir efeitos para além do caso concreto erga omnes conforme vem decidindo o próprio Supremo Tribunal Federal Assim os crimes hediondos praticados anteriormente à nova lei além de admitirem a progressão regerseão pelo Código Penal e Lei de Exe cução Penal por serem mais favoráveis do que a nova lei quanto ao limite mínimo de pena para progressão Nesse sentido Alberto Silva Franco Crimes hediondos cit 488 PAULO QJEIROZ semiaberto de execução exceto como é óbvio quando sobrevier nova condenação a regime fechado de execução Fora dessa hipótese deverá o preso regredir para o regi me semiaberto não podendo darse a regressão direta para o fechado Finalmente convém referir o enunciado da Súmula 493 do STJ é inadmissível a fixação de pena substitutiva art 44 do CP como condição especial ao regime aberto 11 Regime disciplinar diferenciado Além dos regimes fechado semiaberto e aberto há agora o regime disciplinar diferenciado LEP art 52 fechadíssimo espécie de prisão no interior da prisão apli cável àquele que se achar preso provisória ou definitivamente sempre que a cometer crime doloso que ocasione subversão da ordem ou disciplina internas b apresentar alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade e houver fundada suspeita de envolvimento ou participação a qualquer título em orga nizações criminosas quadrilha ou bando O RDD tem as seguintes características a duração máxima de trezentos e sessenta dias sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie até o limite de um sexto da pena aplicada b reco lhimento em cela individual c visitas semanais de duas pessoas sem contar crianças com duração de duas horas d o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol Para decretálo o juiz competente que deverá previamente ouvir o Ministério Público e a defesa considerará a natureza os motivos as circunstâncias e as consequências do fato bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão Conforme assinalamos tratase de pena cruel e degradante que atenta contra a dignidade da pessoa humana logo inconstitucional além de não ter finalidade edu cativa alguma que assim frustra os fins a que se propõe a Lei de Execução Penal art 1 º por vedar em caráter quase absoluto todo e qualquer contato com o mundo exterior e interior inclusive bem como impedir o exercício de direitos básicos previstos na LEP como o direito ao lazer praticar atividades desportivas etc Não bastasse isso a circunstância de o preso apresentar alto risco para a ordem e segurança do estabe lecimento penal ou da sociedade constitui a razão mesma da privação da liberdade em presídio de segurança máxima ou média normalmente então submetêlo a novas restrições no seu interior constitui manifesto bis in idem próprio de um direito penal do inimigo castigandoo duplamente pelo crime já objeto da prisão cautelar ou defini tiva Ademais se determinado preso for realmente capaz de representar alto risco para a segurança do estabelecimento prisional não será com um tal castigo que se resolverá o problema que a rigor a ele não pode ser imputado mas à própria administração que deverá encontrar meios de resolver eventuais conflitos legalmente e sem abusos E mais como falar de alto risco para a sociedade se o réu já se encontra encarcerado O mesmo deve ser dito da fundada suspeita de envolvimento ou participação em organizações criminosas ou quadrilha ou bando No mais a lei ofende os princípios da legalidade e presunção de inocência entre outros5 5 No sentido do texto Juarez Cirino dos Santos Teorias da pena p 7677 490 PAULO QiJEROZ Em suma atualmente é perfeitamente possível a progressão nos crimes hedion dos e mais o regime inicial de cumprimento poderá ser o semiaberto ou aberto 3 EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA SENTENÇA Como regra a execução penal só deve ter lugar após transitar em julgado a sen tença condenatória sob pena de violação ao princípio da presunção legal de inocência CF art 5 LVII isto é só depois de exauridos os recursos legalmente admitidos é lí cito fazer expedir mandado de prisão contra o réu para cumprimento da pena imposta vindo ele a gozar dos direitos inerentes à execução como a progressão de regime etc sempre que tiver atendido os requisitos legais para tanto A doutrina e a jurisprudência admitem porém a execução provisória em favor do condenado preso provisoriamente prisão preventiva etc sempre que houver trânsito em julgado para a acusação mas pender ainda de julgamento recurso da defesa8 ad missão absolutamente legítima uma vez que em nada ofende o princípio da presunção de inocência instituído que é histórica e constitucionalmente em favor do indivíduo Assim se o réu condenado à pena de seis anos de prisão já se achar preso há três anos não seria justo que tendo a sentença passado em julgado para o Ministério Pú blico que se conformara com a decisão fosse o réu prejudicado pela demora na apre ciação de recurso que ele mesmo interpôs e lhe fosse negado por exemplo o direito ao livramento condicional embora já tivesse cumprido mais de metade da pena quando lhe bastava cumprir mais de um terço Ademais havendo exclusivamente recurso da defesa não há a possibilidade legal de reforma da decisão em seu desfavor reformatio in pejus Não seria razoável enfim que o réu condenado provisoriamente não pudesse fazer jus a benefícios que são reconhecidos ao condenado definitivo Em suma o preso provisório pode em princípio postular todos os direitos legiti mamente postuláveis pelo réu já definitivamente condenado A jurisprudência vinha também admitido a execução provisória em prejuízo do réu que embora condenado aguardava o julgamento do processo em liberdade e havia interposto recurso especial ou extraordinário por não terem efeito suspensivo Súmula 267 do STJ9 Assim o réu que sempre esteve em liberdade e ainda aguardasse o jul gamento de seu recurso especial STJ ou extraordinário STF poderia ter contra si expedido mandado de prisão Mas uma tal possibilidade execução provisória contra o réu que aguardava o julgamento em liberdade ofendia claramente o princípio da presunção legal de 8 Nesse sentido a Súmula 7 1 6 do STF Admitese a progressão de regime de cumprimento de pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória Também assim a Súmula 7 1 7 Não impede a progressão de regime de exe cução de pena fixada na sentença não transitada em julgado o fato de o réu se encontrar em prisão especial 9 A Súmula 267 do STJ dispunha A interposição de recurso sem efeito suspensivo contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão 492 l 14 I REGIMES PRISIONAIS inocência razão pela qual a expedição de mandado de prisão deveria aguardar o trân sito em julgado da sentença condenatória salvo se a prisão fosse justificável cautelar mente Exatamente por isso o Supremo Tribunal Federal contrariando a Súmula 267 do STJ decidiu que ofende o princípio da nãoculpabilidade a execução da pena priva tiva de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art 312 do CPP HC 84078MG Rel Min Eros Grau 522009 Atual mente a matéria está pacificada no sentido de não admitir a execução provisória da sentença contra o réu que aguarda o julgamento definitivo da ação penal em liberdade E essa proibição de execução provisória contra o réu é também aplicável às medi das de segurança sanção penal que é Nesse sentido HC 226014SP Rel Min Laurita Vaz julgado em 19042012 do STJ Apesar disso ainda não se admite a execução provisória da sentença em favor do preso provisório se houver recurso da acusação sobretudo se visar a agravarlhe a pena ou similar Temos porém que é perfeitamente cabível a execução provisória ainda quando isso ocorra sempre que o réu estiver preso provisoriamente e o recurso não objetivar o aumento de pena quando v g insurgirse apenas contra a parte da sentença que haja absolvido em caso de concurso de agentes um dos corréus ou quando só objetive a absolvição ou atenuação da pena do condenado Dito de outro modo até no caso de a sentença condenatória pender de recurso da acusação será legítima a execução provi sória desde que o recurso que se haja interposto não almeje a majoração da sanção uma vez que a sua interposição não é incompatível com a execução provisóriaw To davia isso só poderá ser tolerado quando estiver preso o condenado pois do contrário deverá permanecer livre enquanto não passar em julgado a sentença afinal numa pers pectiva garantista a execução provisória somente é admissível em seu favor nunca em seu prejuízo Mas mais importante mesmo na presença de recurso da acusação que objetive majorar a pena temos ser possível excepcionalmente a execução provisória quando se verificar que o eventual provimento do recurso não tiver qualquer repercussão sobre o direito que se pretende ver reconhecido direito à progressão etc Assim por exem plo se o Ministério Público recorrer para obter a aplicação de uma causa de aumento de pena de um terço sobre uma condenação de seis anos caso em que a aumentaria para oito anos tal circunstância em nada afetará o direito à obtenção de livramento condicional se o réu primário e sem antecedentes criminais já houver cumprido mais de metade da pena quando lhe bastava o cumprimento de mais de um terço CP art 83 I Sim porque ainda que provido o recurso da acusação e aumentada a pena para oito anos o sentenciado já teria atingido mais de 13 dessa nova pena fazendo jus 1 O No sentido do texto Sídio Rosa de Mesquita Júnior Execução criminal São Paulo Atlas 2005 493 PAULO QJ E I ROZ portanto ao livramento condicional Numa palavra somente o recurso que possa al terar a situação do sentenciado prejudicando o reconhecimento do direito que postula especificamente pode ter o condão de inviabilizar a execução provisória não o impe dindo aquele que em nada modifique tal situação Em suma pensamos que a execução provisória deverá ser admitida sempre em favor do réu preso jamais contra ele quando houver trânsito em julgado da sentença para a acusação mas pender de julgamento recurso da defesa ou havendo recurso da acusação a este visar à melhora da situação do réu b o recurso da acusação objetivar a majoração da pena mas o seu possível resultado não tiver qualquer repercussão so bre o direito especificamente postulado pelo condenado na execução Contrariamente em hipótese alguma a execução provisória deverá ser admitida em prejuízo do acusado v g se aguardava o julgamento solto Semelhante tratamento preserva a um tempo os princípios da presunção legal de inocência e isonomia conferindo aos condenados provisórios os benefícios já assegurados àqueles definitivamente sentenciados Admitida a execução provisória da sentença LEP art 2º parágrafo único sem pre em favor do condenado não em seu desfavor sob pena de violação ao princípio da presunção legal de inocência fará ele jus a todos os direitos previstos na Lei de Execu ção Penal desde que atenda aos requisitos legais específicos Naturalmente que se no curso da execução sobrevier acórdão que provendo o recurso absolva o acusado será ele imediatamente posto em liberdade 494 PAULO ÜJEIROZ Além da prisão provisória deve ser também considerado para efeito de detração o tempo de medida cautelar diversa da prisão a que o réu ficou submetido durante a ação penal CPP art 319 Finalmente há quem entenda que a detração deve ser levada em conta inclusive para efeito de prescrição abatendose do total da pena cominada ou aplicada na sen tença o período de prisão em que esteve preso2 Mas esse é um tema controvertido tanto na doutrina quanto na jurisprudência Atualmente e conforme vimos a detração deve ser também considerada para fins de fixação do regime inicial de cumprimento de pena E será considerada já pelo pró prio juiz ou tribunal que proferir a condenação CPP art 387 2º 2 CONEXÃO PROCESSUAL Em passado recente muito se discutiu sobre a necessidade de conexão entre os processos para ter lugar a detração Mas semelhante discussão ficou grandemente su perada com a Lei de Execução Penal que admitiu a detração no mesmo processo ou em processos distintos art 11 1 de modo que ela é cabível independentemente da existência de nexo processual3 Sobrevindo condenação nos vários processos procedese à unificação das penas impostas e à detração cabível Na hipótese de absolvição ou decretação da extinção da punibilidade em processo no qual esteve o réu preso provisoriamente e condenação noutro questionase se seria possível a detração Mirabete informava que numa posição liberal temse admitido tanto na doutrina como na jurisprudência a detração por prisão ocorrida em outro processo de que o crime pelo qual o sentenciado cumpre pena tenha sido praticado anteriormente à pri são pois seria uma hipótese de fungibilidade da prisão Considera no entanto que evidentemente não se pode admitir a contagem do tempo de recolhimento quando o crime é praticado posteriormente a ele Admitirse outro entendimento conduziria a estabelecer uma espécie de conta corrente com o criminoso4 Parecenos porém que se a detração é cabível quanto aos processos que resul taram numa condenação o mesmo deve ocorrer com maior razão naqueles em que o réu foi absolvido ou teve extinta a punibilidade e não obstante isso ficou provisória e ilegalmente preso mesmo porque a Constituição assegura que o Estado indenizará o condenado por erro judiciário assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença art 5º LXXV5 E certamente a detração é uma das formas mais adequadas e prontas de se lhe atenuar ao menos em parte o ilegal constrangimento 2 Nesse sentido Fernando Galvão Direito Penal p 524 3 No mesmo sentido Delmanto Código Penal comentado cit Contra Damásio de Jesus Direito penal cit 4 Manual cit p 264265 5 Recentemente decidiu o STF de modo contrário HC 93979RS Rei Min Carmen Lúcia 2242008 496 1 1 5 1 DETRAÇÃO Não vemos pois porque repudiar a priori a alegada conta corrente com o con denado que tendo ficado ilegalmente preso venha a postular a detração relativamente àquele inquérito ou processo que resultou em arquivamento absolvição ou similar 497 PAULO QJEROZ imposto mas livremente exercido seguese que nem mesmo ao preso poderá sêlo Em consequência também não podem subsistir as exigências legais que constam dos arts 83 III e 36 1 º primeira parte ambos do CP bem como aquela do art 1 14 1 da LEP1 Mas há outros tantos exemplos de violação à legalidade constitucional a perda dos dias remidos por falta grave ofende a intangibilidade da coisa julgada CF art 5º XXXVI2 a admissão da execução provisória da sentença em desfavor do condenado o princípio da presunção de inocência3 o pagamento de salário inferior ao mínimo a previsão do art 7º IV da CF o dever de indenizar a vítima na execução a vedação de prisões por dívida CF art LXVII a ausência de defesa técnica por advogado na execução a norma do art 133 da CF Aliás tantas são as violações ao princípio da legalidade que se pode dizer com Andrei Schmidt que no particular foi adotada uma espécie de legalidade atenuada onde a elasticidade e a indeterminação das faltas disciplinares por exemplo fazem com que o sistema de definição da desviação fundamentese numa epistemologia an tigarantista de sancionamento quia peccatum e não quia prohibitum4 Porque de fato há uma infinidade de disposições na lei de tal modo vagas que acabam por dissolver a pretensão de certeza inerente ao princípio da legalidade por cujo meio se pretende proteger o mais débil o condenado contra reações arbitrárias por parte do mais forte o Estado Assim por exemplo constitui falta grave o incitar ou participar de movi mento para subverter a ordem ou a disciplina LEP art 50 1 razão pela qual já se reconheceu como casos de falta grave a impedir o gozo de certos direitos greve de fome em protesto contra a morosidade da justiça recusarse a cortar o cabelo apresen tar sinais de embriaguez etc5 Como exemplo de violação ao princípio da proporcionalidade podese citar o art 49 parágrafo único da LEP que equipara a tentativa de falta à falta consumada Afi nal se a prática de um crime sujeita o infrator como regra à pena do crime consumado A11 36 1 º do CP O condenado deverá fora do estabelecimento e sem vigilância trabalhar frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga Art 83 O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 dois anos desde que III comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto Art 1 14 I da LEP Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que l estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazêlo imediatamente 2 Nesse sentido Luiz Antônio Bogo Chies Prisão Tempo Trabalho e Remição Reflexões Motivadas pela Inconstitucionalidade do Artigo 127 da LEP Crítica à execução penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 3 Nesse sentido Alexandre Wunderlich Muito além do bem e do mal Considerações sobre a Execução Penal Antecipada Crítica à execução penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 4 Andrei Schmidt A crise da legalidade na execução penal Crítica à execução penal Rio de Janeiro Lumen Juris 2002 p 66 5 Andrei Schmidt idem p 6465 500 1 16 1 D I REITOS E DEVERES DO CONDENADO com redução de 13 a 23 CP art 14 II algo similar deve ocorrer relativamente às faltas disciplinares Também é frequente ocorrer de o condenado que praticou falta grave sofrer a in cidência de múltiplas punições disciplinares indiretas como por exemplo após de cretada a regressão de regime serlhe negado o direito a livramento condicional e sucessivamente pela mesma falta o direito a indulto comutação de pena perda dos dias remidos etc em flagrante bis in idem O mesmo ocorre quando se nega ao con denado o direito ao livramento condicional em virtude de possuir maus antecedentes os quais já foram tomados em conta na sentença penal condenatória razão pela qual considerálos novamente na fase de execução constitui dupla valoração da mesma cir cunstância Nesse sentido Súmula 444 do STJ Exemplo de violação ao princípio da pessoalidade reside no dever do preso de se opor a movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina situação em que a lei está a lhe imputar um insólito dever de garante como se autoridade fosse e pudesse ele agir sem riscos pessoais hipótese em que o condena do acaba por responder por ato de exclusiva responsabilidade de terceiro Ademais e conforme assinala Andrei Schmidt ao estabelecer um dever de conduta oposta está o legislador a bem da verdade proibindo a própria inércia do preso em relação a des vios verificados no estabelecimento prisional ao mesmo tempo em que o simples fato de não estar ele participando do movimento de subversão à ordem e à disciplina já constitui um seu mérito6 Finalmente todos os deveres previstos no art 39 da LEP que não impliquem lesão concreta a bem jurídico alheio v g higiene pessoal são de todo ilegítimos uma vez que dizem respeito exclusivamente à pessoa do próprio condenado 6 Direitos Deveres e Disciplina na Execução Penal ln Crítica à Execução Penal Rio Lumen Juris 2002 p 287 501 1 171 REMIÇÃO A remição é a contagem como tempo de pena efetivamente cumprido do período de trabalho ou estudo por parte do condenado A remição é aplicável ao preso provisó rio ou definitivo que se encontre como regra no regime fechado ou semiaberto Atual mente é possível em caráter excepcional a remição somente por estudo em regime aberto e em liberdade condicional A remição é por conseguinte uma forma de abreviar a pena e facilitar a reinser ção social do condenado constituindo por isso um direito seu1 Mas não há a rigor abatimento do total da pena porque o tempo remido é em verdade contado corno de efe9va execução da pena privativa da liberdade2 A contagem do tempo de remição será feita à razão de 1 um dia de pena para cada 03 três dias de trabalho externo ou interno Já a contagem do tempo de remição por estudo será feita à razão de 1 um dia de pena para cada 12 doze horas de fre quência escolar atividade de ensino fundamental médio profissionalizante superior ou de requalificação profissional No caso de conclusão do ensino fundamental médio ou superior durante o cumprimento da pena o tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 13 O preso que eventualmente ficar impossibilitado de prosseguir na atividade em razão de acidente continuará a fazer jus à remição Também o preso provisório que trabalhe ou estude na forma da lei LEP art 126 7 terá direito ao benefício Enfim é também passível de remição o tempo de traba lho ou estudo ocorrido durante o período em que o réu esteve provisoriamente preso prisão preventiva etc O tempo remido que deve assim ser considerado como tempo de pena privativa da liberdade cumprida pelo condenado e não simplesmente abatido do total da sanção será computado para todos os efeitos legais a exemplo de progressão de regime indul to etc Em caso de falta grave LEP arts 50 a 52 o juiz poderá revogar até 13 um ter ço do tempo remido recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar LEP art 127 Parecenos porém que semelhante castigo importa em bis in idem visto que já ensejará outras sanções disciplinares regressão etc E mais se a remição constitui um direito do sentenciado uma vez declarado na sentença o tempo remido se incorpora ao seu patrimônio jurídico passando a constituir direito adquirido e intangí vel CF art 5º XXXVl3 1 Gamil Fõppel Remição versus fuga ln Boletim do IBCCrim ano 9 n 102 2 Mirabete Execução penal São Paulo Atlas 2000 p 426 3 Gamil Fõppel Remição Boletim cit Em sentido contrário Mirabete Execução penal cit p 437 503 PAULO QiJEIROZ Advirtase porém que não é esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal cuja Súmula vinculante nº 9 anterior à recente reforma dispõe O disposto no artigo 127 da Lei nº 72101984 Lei de Execução Penal foi recebido pela ordem constitucio nal vigente e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58 O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que esteja em liberdade condicional poderão remir pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional parte do tempo de execução da pena ou do período de prova Especificamente quanto ao trabalho prestado em regime aberto de execução o Supremo Tribunal Federal tem decidido que tal não implica direito à remição exceto para o caso mencionado acima remição por estudo Nesse sentido HC nº 98261RS rel Min Cezar Peluso de 232010 Autores há que defendem que a omissão do Estado em disponibilizar trabalho nal guns presídios gera um direito à remição remição ficta Mas a tese favorável à remi ção ficta não procede Primeiro porque a omissão do Estado em disponibilizar traba lho apesar de ilegal não conduz necessariamente ao reconhecimento de um direito à remição que pressupõe trabalho efetivo Enfim a omissão cria em princípio apenas um dever legalestatal de ação e não um direito automático à remição Além disso a ser admitida a remição ficta violarseia o princípio da isonomia visto que equiparar seiam presos que estão em situação de desigualdade os que realmente trabalham e os que nada fazem ainda que a omissão estatal concorra para tanto Finalmente é evidente que a Lei nº 124332011 por ser mais favorável ao réu em comparação com a legislação anterior deve retroagir novatio legis in mellius4 4 Nesse exato sentido decidiu o STF HC nº 1 0985 1RS relator Ministro Gil mar Mendes 1 81020 1 1 504 PAULO QEIROZ 2 ALCANCE Discutese se a contagem do prazo dos benefícios legais durante a execução da pena deve ter por base a soma das penas aplicadas ou a pena unificada em trinta anos De acordo com a Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento determinado pelo art 75 do Código Penal não é considerada para a concessão de outros benefícios como o livra mento condicional ou regime mais favorável de execução de modo que a contagem dos prazos deve ter como parâmetro não a pena unificada em trinta anos mas a soma das penas aplicadas3 Assim o réu que para fazer jus ao livramento condicional tivesse de cumprir mais de 23 da pena de 60 sessenta anos haveria de cumprir no mínimo 40 quaren ta anos tempo superior à pena unificada Não estamos de acordo com isso Em primeiro lugar porque se considerarmos que para efeito de livramento condi cional por exemplo seja tomado em conta a soma das penas aplicadas submeterseá o condenado a cumprir indiretamente pena superior a trinta anos inclusive por ser o aludido benefício é um modo legal de execução da pena Enfim sujeitarseá o réu a cumprir pela via oblíqua o que é lhe vedado pela via direta em afronta ao princípio da legalidade Em segundo lugar porque ao contrário do que afirma Rogério Greco4a interpre tação aqui proposta não ofende o princípio da isonomia pois ao fixarse o limite má ximo de trinta anos o legislador equiparou todos aqueles se encontrem nessa situação pouco importando se condenados a trinta sessenta ou noventa anos razão pela qual terão de cumprir indistintamente tão só o limite máximo de trinta anos Assim se houvesse violação ao princípio da isonomia a própria unificação estaria irremediavelmente comprometida visto igualar situações desiguais 3 No mesmo sentido Damásio de Jesus Cezar Bitencourt Rogério Greco entre outros Em sentido con trário entre outros Mirabete Delmanto e Alberto Silva Franco et ai que escrevem textualmente Não há assim cogitar de dois parâmetros autônomos um para estabelecer o máximo de tempo de duração das penas privativas de liberdade pena unificada e outro para o cálculo do prazo dos benefícios legais total de penas não unificadas Se o intento do legislador fosse o de exclusivamente fixar o limite máxi mo de cumprimento das penas privativas da liberdade constituiria um verdadeiro contrassenso unificar penas p1ivativas da liberdade para um só fim e ao mesmo tempo manter uma dualidade de penas para os demais fins Unificar como observa Julio Fabbrini Mirabete quer dizer transformar várias penas em uma só Código Penal e sua interpretação jurisprudencial cit v 1 t 1 4 Curso cit p 689 Assinala este autor textualmente A nosso ver entendemos que a razão se en contra com a nossa Corte Maior se adotássemos a unificação como regra geral para todos os cálculos além de ser o teto máximo de cumprimento da pena estaríamos ofendendo o princípio da isonomia que determina simplificadamente que os iguais sejam tratados igualmente bem como que os desiguais tenham tratamento desigual Não podemos comparar aquele condenado a duzentos e cin quenta anos de reclusão com aquele que praticou um número bem menor de crimes e fora condenado a trinta anos 506 j 1 8 j LIMITE MÁX I MO DA PENA DE PRISÃO Em terceiro lugar porque como a lei não faz qualquer ressalva no particular a Sú mula 715 ao desprezar o limite de trinta anos faz analogia in malam partem violando o princípio da legalidade Finalmente porque o entendimento prestigiado pela súmula pode inviabilizar em muitos casos a individualização na execução da pena uma vez que nenhuma utilidade terá por exemplo o trabalho para efeito de remição nem a excelência do comportamento para efeito de progressão para condenados a penas muito altas O mesmo deve ser dito do livramento condicional pois se exigirmos que o cálculo seja feito com base na pena aplicada a sua concessão ficará impossibilitada em muitos casos E tão ilógico é o entendimento sumular que o condenado a 60 anos que tivesse de cumprir para obter livramento condicional no mínimo 23 da pena haveria de cum prir tempo superior à pena unificada isto é mais de quarenta anos Em conclusão o mais razoável é que o legislador previsse regra específica para so lucionar o problema Mas à falta de um tal norma a unificação há de servir também de parâmetro para o cálculo dos benefícios legais diversamente do que dispõe a referida súmula Releva notar por fim que com a decisão do STF declarando a inconstituciona lidade da não progressão em crimes hediondos é possível que a Súmula 715 venha a ser questionada e eventualmente revista já que em muitos casos sua adoção acaba por impedir a progressão o livramento condicional etc 3 SUPERVENIÊNCIA DE NOVA CONDENAÇÃO Iniciado o cumprimento da pena unificada em trinta anos poderão ocorrer duas hipóteses a superveniência de nova condenação por crime anterior à unificação b superveniência de nova condenação por crime posterior à unificação Pois bem somente na segunda hipótese de cometimento de novo crime durante a execução isto é por fato posterior ao início do cumprimento da pena na qual o sentenciado revela a juízo do legislador maior periculosidade e por isso deve merecer tratamento mais severo haverá nova unificação de pena desprezandose o período de tempo já cumprido conforme dispõe o art 75 2º do CP Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena farseá nova unificação despre zandose para esse fim o período de pena já cumprido Fazer uma nova unificação significa somar a nova pena àquela que restava por cumprir e se o total exceder ao limite de trinta anos o réu voltará a cumprir esse li mite reunificado Não é preciso dizer que a desconsideração nessa nova unificação da pena já efetivamente cumprida visa a evitar bis in idem isto é que o réu cumpra uma segunda vez a mesma pena Assim por exemplo se o réu condenado a sessenta anos de prisão cuja pena fora unificada em trinta anos vem a sofrer nova condenação a mais cinco anos depois de 507 PAULO WEIROZ cumprir vinte anos deverá cumprir quinze anos pena que resulta da soma da nova pena cinco anos com a pena que restava por cumprir dez anos Finalmente a superveniência de nova condenação por crime anterior à unificação não tem qualquer repercussão no particular mantendose sem mais a unificação rea lizada mesmo porque já ao tempo da unificação em trinta anos tal condenação seria absolutamente irrelevante 508 PAU LO QJEIROZ Atendidos os requisitos legais para a aplicação da pena restritiva o sentenciado fará jus à substituição devendo o juiz decidir a respeito sempre que o condenar por crime culposo ou impuser pena privativa da liberdade não superior a quatro anos por crime doloso quer para conceder quer para negar a substituição Para tanto é irrele vante prévia manifestação de interesse ou consentimento do réu Tratandose de condenação à pena de prisão igual ou inferior a um ano a substi tuição pode ser feita por uma pena de multa ou por uma pena restritiva de direito se superior a um ano a pena privativa da liberdade poderá ser substituída por duas penas restritivas de direito ou por uma restritiva e uma de multa cumulativamente conforme seja mais adequado A pena restritiva de direito deverá ter a mesma duração da pena de prisão subs tituída ressalvado o disposto no art 46 4º CP art 55 que prevê a possibilidade de prestação de serviço à comunidade por prazo inferior à pena de prisão imposta É evidente que o prazo da pena restritiva de direito jamais poderá exceder àquele da pena de prisão substituída Convém notar que há exemplos na legislação especial de vedação total ou parcial de penas restritivas de direito Nesse sentido Lei nº 1 1 3402006 violência doméstica e familiar e Lei nº 1 1 3432006 Lei de Drogas Finalmente as penas restritivas de direito notadamente as pecuniárias e a perda de bens e valores não são passíveis de estenderem aos herdeiros do condenado sob pena de violação ao princípio da pessoalidade da pena que não permite que a sanção penal possa atingir pessoa diversa do autor coautor ou partícipes do crime CF art XLV Mas o tema é controvertido 2 REQUISITOS PARA A SUBSTITUIÇÃO A substituição da pena privativa da liberdade por pena restritiva de direito requer o concurso simultâneo dos seguintes requisitos CP art 44 1 que a pena aplicada não seja superior a quatro anos 2 que não se trate de crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa 3 que o réu não seja reincidente em crime doloso 4 que circunstâncias judiciais sejam favoráveis isto é que a culpabilidade os antecedentes a conduta social a personalidade do condenado os motivos e circunstâncias indiquem a substituição como suficiente Em se tratando de concurso formal material ou continuado de crimes a substitui ção terá em conta o total das penas aplicadas 510 a Limite de quatro anos Inicialmente o Código exige que a pena aplicada e não a pena cominada não exceda a quatro anos Tratandose de crime culposo cabe rá a substituição ainda quando a pena ultrapasse esse limite situação um tanto rara embora perfeitamente possível pois em geral tais delitos são punidos com pena inferior a quatro anos Se houver concurso de crimes formal material j 19j lENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS crime continuado considerarseá para tanto o total das penas aplicadas e não cada pena isoladamente imposta No caso de concurso material de crimes se houver aplicação de mais de uma pena restritiva de direito o condenado cumprirá simultaneamente as penas que forem com patíveis entre si e sucessivamente as demais CP art 69 2º b Crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa A substituição não será admitida quando se tratar de condenação por crime praticado com vio lência ou grave ameaça à pessoa a exemplo do roubo da extorsão mediante sequestro etc Quanto à violência ficta ou presumida temos que ela é também impeditiva da substituição visto que a lei a equipara à violência real a exemplo do que ocorre com o estupro de vulnerável Tratandose de crime praticado com violência contra a coisa apenas v g furto com rompimento de obstáculo a substituição é perfeitamente possível2 Desnecessário dizer que crimes culposos apesar de eventualmente violentos não estão sujeitos à ve dação quer porque a violência não é intencional quer porque a lei admitiu a substitui ção ainda quando a pena exceda ao limite de quatro anos Há quem entenda que todos aqueles crimes praticados por meio não violento es tariam excluídos da vedação legal a exemplo do homicídio cometido com emprego de Vf neno roubo com uso de narcótico etc pois não seriam delitos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa3 Mas tal não procede visto implicar uma simpli ficação grosseira do conceito de violência contra a pessoa a qual pode realizarse das mais variadas formas Existe também quem considere que a vedação não compreenderia as infrações penais em que a grave ameaça ou a violência não fossem meio para cometimento do ilícito mas constitutivas do próprio crime v g lesão corporal e ameaça Luiz Flávio Gomes observa ainda que a rigidez do critério em questão pode dar margem à injustiça pois crimes como o constrangimento ilegal e a ameaça que em virtude da pena cominada permitem as soluções consensuais da Lei dos Juizados Es peciais Criminais Lei nº 909995 não admitiriam a substituição Por isso propõe interpretar o dispositivo sistematicamente para admitir a substituição em tais casos apesar da violência ou grave ameaça à pessoa4 o mesmo devendo ocorrer quanto à lesão corporal leve CP art 129 caput Quanto aos crimes hediondos e afins não há em princípio impedimento legal à substituição desde que se trate de delito praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa 2 De modo diverso Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit p 168 3 iNesse sentido Mirabete cit 4 Penas e medidas alternativas à prisão São Paulo Revista dos Tribunais 2000 p 1 15 Em sentido contrário Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit p 1 69 5 1 1 PAULO QEIROZ A não ser assim violarseia o princípio da legalidade fazendose analogia in ma lam partem5 No particular é irrelevante portanto o argumento de que de acordo com a Lei nº 807290 a pena será cumprida em regime integralmente fechado6 mesmo porque na hipótese discutese questão distinta e prévia à execução da sentença a sa ber a individualização da pena e a possibilidade de substituição por pena restritiva de direito Exatamente por isso é que o Supremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de o réu condenado por tráfico ilícito de droga fazer jus à substituição por pena restritiva de direito por se tratar de crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa7 Quanto à expressa vedação legal da substituição prevista na nova Lei de Drogas Lei nº 1 1 3432006 art 33 4 o STF reconheceulhe a inconstitucionalidade HC 97256 relator Ministro Carlos Aires de Brito em 01092010 razão pela qual a subs tituição é atualmente perfeitamente possível desde que o condenado atenda aos requi sitos legais Justamente por isso o Senado editou a Resolução nº 5 de 15022012 sus pendendo a expressão vedada a conversão em penas restritivas de direitos prevista no art 33 4 e Reincidência em crime doloso O Código em princípio não admite a substitui ção quando o condenado for reincidente em crime doloso Referindose à rein cidência em crime doloso admitese a aplicação ao reincidente sempre que um dos crimes objeto da condenação anterior ou posterior ou ambos os crimes for culposo Também não obsta a substituição a circunstância de o réu reincidir em contravenção Portanto o só fato de ser reincidente não impede a aplicação de pena restritiva só o impedindo a reincidência em crime doloso Mas mesmo essa vedação não tem caráter absoluto pois o 3º do art 44 abre uma exceção ao dispor que se o condenado for reincidente o juiz poderá aplicar a substituição desde que em face de condenação anterior a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime A substituição é pois possível mesmo havendo reincidência em crime doloso desde que socialmente recomendável Na verdade o legislador atento ao fato de que a 5 No sentido do texto entre outros Luiz Flávio Gomes Penas e medidas alternativas cit Damásio de Jesus Penas alternativas São Paulo Saraiva 1 999 Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit Guilherme de Souza Nucci Código Penal comentado cit 6 Nesse sentido de entender inadmissível a substituição Mirabete Manual cit 2001 p 278 7 HC 849288Minas Gerais Rei Min Cezar Peluso l ª Tmma v de 2792005 que tem a seguinte ementa SENTENÇA PENAL Condenação Tráfico de entorpecente Crime hediondo Pena pri vativa de liberdade Substituição por restritiva de direitos Admissibilidade Previsão legal de cum primento em regime integralmente fechado Irrelevância Distinção entre aplicação e cumprimento de pena HC deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau Interpretação dos arts 1 2 e 44 do CP e das Leis nos 636876 807290 e 971498 Precedentes A previsão legal de regime integralmente fechado em caso de crime hediondo para cumprimento de pena privativa da liberdade não impede seja esta substituída por restritiva de direitos 5 1 2 PAULO QhJ E I ROZ Presumese que semelhante vedação pretendeu realmente inviabilizar orientação do Supremo Tribunal Federal que se consolidava no sentido de admitir na vigência da lei revogada a possibilidade de substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito Que o legislador ordinário podia estabelecer novos parâmetros de pena bem como vedar a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito parece fora de dú vida Com efeito se podia o mais criminalizardescriminalizar penalizardespenalizar podia o menos proibir a admissão de pena não privativa da liberdade para os crimes mais gravemente punidos em especial o tráfico por se tratar de crime assemelhado a hediondo se bem que os argumentos utilizados pelo STF para declarar a inconstituciona lidade da não progressão em crimes hediondos parecem valer também aqui Mas isso não impede o juiz senhor que é da individualização da pena de dar à nova lei interpretação conforme a Constituição tomando como parâmetro a legislação infraconstitucional inclusive especialmente o Código Penal Com efeito não parece razoável que sentenciados por crimes de tráfico e similar não tenham direito à substituição enquanto outros condenados por delitos tão ou mais graves v g peculato concussão corrupção passiva crime contra o sistema financei ro possam fazer jus ao benefício Notese aliás que o condenado por este e outros crimes de dano e não de simples perigo como é o tráfico a exemplo do homicídio culposo tem em tese direito à substituição apesar de se tratar de crime contra a vida e pois mais grave desde que a pena não seja superior a quatro anos diversamente do condenado por tráfico à mesma pena ou à pena inferior a quatro anos que não faria jus ao benefício Ora é evidente que semelhante tratamento ofende o princípio da isono mia sobretudo porque o critério de aferição da maior gravidade do crime desvalor de ação e resultado e portanto da condenação é essencialmente formal objetivamente a pena cominada ou imposta subjetivamente a existência ou não de antecedentes Logo não faz sentido por exemplo que duas pessoas igualmente primárias e sem antecedentes que cometam crime sem violência ou grave ameaça à pessoa sofram a mesma pena digamos dois anos de prisão mas tenham tratamento sensivelmente de sigual uma fará jus à substituição e a outra não só por ser tráfico de droga o seu crime e pois existir vedação legal no particular Notese que o crime do beneficiado pela substituição poderá ser eventualmente hediondo inclusive v g falsificação de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais a demonstrar ainda mais contundente mente a violação ao sistema de valores e princípios constitucionais Portanto não parece conforme os princípios de proporcionalidade individualiza ção da pena e isonomia que o juiz ao condenar o réu por crime de tráfico à pena não superior a quatro anos não possa substituíla em virtude da só vedação legal mesmo porque a missão do juiz já não é mais como no velho paradigma positivista sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado mas sujeição à lei enquanto válida isto é coerente com a Constituição9 9 Ferrajoli Derechos y garantías cit p 26 5 1 4 PAULO Q1JEIROZ limitação de final de semana etc Mas todas essas hipóteses nada têm de especiais são apenas as formas possíveis de descumprimento das condições impostas na sentença condenatória Nem todas as penas são passíveis de conversão Com efeito as penas de prestação pecuniária e a perda de bens e valores em face de sua natureza pecuniária a exemplo da pena de multa não podem ser convertidas em pena de prisão pela falta de paga mento porque a conversão implicaria violação ao princípio constitucional que veda a prisão por dívida CF art 5º LXVII12 Sempre que ocorrer a conversão o juiz obrigatoriamente deduzirá o tempo cum prido da pena restritiva de direitos art 44 4º de modo que na hipótese de ter cumprido quatro meses de uma pena de dez meses de prisão o sentenciado precisará cumprir o restante apenas seis meses de prisão Desnecessário dizer que qualquer período de pena eventualmente cumprido de verá ser deduzido no caso de conversão mas na melhor das hipóteses o réu terá de cumprir no mínimo trinta dias de prisão ainda que faltassem apenas alguns dias para o integral cumprimento da pena restritiva É que a lei prevê expressamente que no cál culo da pena a ser deduzida deverá ser respeitado o saldo mínimo de 30 trinta dias de detenção ou reclusão Parece evidente porém que essa ressalva que visaria a de sestimular o descumprimento injustificado nos últimos dias da substituição 13 constitui manifesto bis in idem já que o sentenciado terá de cumprir pena além da que restava efetivamente 4 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITO EM ESPÉCIE 41 Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas somente aplicável às condenações superiores a seis meses de prisão14 consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado a serem prestadas em entidades assistenciais hospitais esco las orfanatos e outros estabelecimentos congêneres em programas comunitários ou estatais CP art 46 lº e 2º os quais devem ser credenciados ou convencionados LEP art 149 1 incumbindolhes encaminhar ao juiz da execução relatório mensal das atividades do condenado e comunicar eventuais faltas LEP art 150 Não é pois possível a prestação de serviço numa entidade privada que não cum pra nenhum programa comunitário porque nesse caso haveria apropriação indevida de 12 No mesmo sentido Luiz Flávio Gomes e Cezar Bitencourt 1 3 Cezar Bitencourt cit p 507 14 Não se admite assim em absoluto que penas inferiores a este limite possam ser substituídas por prestação de serviços Quis o legislador assim segundo observa Luiz Flávio Gomes destinar essa sanção para penas mais elevadas certamente por considerar que sanção até esse limite só justifica em princípio a imposição da multa substitutiva Penas e medidas alternativas cit p 1 50 516 PAULO ÜlEIROZ é aplicável independentemente da sanção cabível no âmbito civil ou administrativo motivo pelo qual a atuação disciplinar dos órgãos administrativos competentes é per feitamente compatível com a intervenção penal não havendo cogitar de bis in idem no particular dada a diversidade de fundamento da punição Cinco são as penas de interdição temporária de direitos CP art 47 a proibição do exercício de cargo função ou atividade pública bem como de mandato eletivo b proibição do exercício de profissão atividade ou ofício que dependam de habilitação especial de licença ou autorização do poder público c suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo d proibição de frequentar determinados lugares b Primeira interdição A interdição do exercício de cargo função ou atividade pública cujos conceitos constam do art 327 do Código importa na incapacida de e não a perda do exercício de tais funções durante determinado período de tempo findo o qual o apenado as retomará normalmente exceto se tiver havi do afastamento definitivo da função no âmbito administrativo pela autoridade competente Tratase de uma pena específica haja vista que só é aplicável aos crimes come tidos no exercício de cargo função ou atividade sempre que houver violação dos de veres que lhe são inerentes art 56 ou seja a sua aplicação exige nexo entre o crime cometido e o exercício da atividade que é interditada temporariamente é pois indis pensável que o delito praticado esteja diretamente relacionado com o mau uso do direi to interditado16 Fora dessa hipótese é incabível Mas isso não quer dizer que a infração deva necessariamente constituir crime con tra a Administração Pública corrupção peculato prevaricação bastando que seu co metimento tenha relação direta ou indireta com o exercício funcional Quanto à interdição temporária do exercício de mandato eletivo Delmanto enten de que o dispositivo é inconstitucional pois os parlamentares só podem ser impedidos de exercer mandato eletivo na forma da Constituição17 Convém também lembrar que a condenação criminal transitada em julgado acarreta a suspensão dos direitos políticos enquanto durarem seus efeitos CF art 15 III Notificada da interdição judicial decretada a autoridade administrativa compe tente deverá vinte e quatro horas depois baixar ato administrativo a partir do qual a execução terá início LEP art 154 1 º e Segunda interdição A proibição temporária do exercício de profissão ati vidade ou ofício que dependam de habilitação especial de licença ou auto rização do poder público atinge toda e qualquer atividade profissional que exija para seu exercício especial habilitação do Estado médico advogado 16 Jescheck apud Cezar Bitencourt Manual cit p 474 1 7 Código Penal comentado cit p 96 De modo similar Luiz Flávio Gomes para quem o juiz não pode proibir deputados federais e senadores de exercício do mandato Penas e medidas alternativas cit p 1 56 518 j 19 PENAS RESTRITIVAS DE DIRE ITOS dentista ou autorização despachante etc Também aqui tratandose de pena específica é indispensável a existência de nexo entre a atividade que se proíbe e o crime que se comete exigindose violação dos deveres inerentes à função art 56 Assim pode ser aplicada para o autor dos crimes de violação de segredo médicos advogados de fraude processual e patrocínio infiel advogados de omissão de socor ro e aborto médicos enfermeiros de desabamento culposo engenheiros de maus tratos professores de falsidade de atestado médicos ou de qualquer crime ainda que não próprio desde que haja violação dos deveres inerentes a profissão ou atividade cujo exercício dependa de habilitação ou autorização18 1Se eventualmente o condenado exercer múltiplas profissões atividades ou ofícios a pena cingirseá àquela que tiver relação concreta com a infração penal cometida isto é àquelas em cujo exercício se deu o abuso ld Terceira interdição A suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo que não deve ser confundida com a inabilitação para dirigir veículo do art 92 III do CP é uma pena somente aplicável aos crimes culposos de trânsito CP art 57 restrição aliás injustificável já que é possível o cometi mento de crime de trânsito com dolo eventual por exemplo a recomendar com maior razão a aplicação dessa pena sobretudo quando não couber a incidência do art 92 III No entanto tal pena dificilmente será aplicada diante do art 292 do Código de Trânsito Lei nº 950397 que prevê para os delitos de trânsito A suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor pode ser imposta como penalidade principal isolada ou cumulativamente com outras penalidades Luiz Flávio Gomes entende inclusive que a parte do art 47 II que fala pe suspensão da habilitação resultou afetada pelo Código de Trânsito estando derrbgada19 1 e Quarta interdição O juiz poderá também proibir o condenado de frequentar determinados lugares pena que tem como finalidade precípua evitar a rein cidência Naturalmente que haverá de existir adequação entre o crime que se cometeu e a proibição de frequência que se impõe pois do contrário a pena será inteiramente arbitrária princípio da proporcionalidade Além disso o juiz de verá fixar precisamente quais os lugares que não poderão ser frequentados pelo sentenciado Cezar Bitencourt que a critica duramente entende que essa proibição pressupõe que o lugar determinado exerceu ou possa exercer alguma influência criminógena so bre o infrator motivo pelo qual não será qualquer lugar em que a infração foi cometida 1 8 Mirabete Manual cit p 273 19 Penas e medidas alternativas cit p 1 58 519 PAULO QlEJ ROZ que poderá ser objeto dessa sanção proibitiva sendo fundamental que esse local não tenha sido meramente acidental na ocorrência do delito20 f Quinta interdição Finalmente o juiz poderá proibir o condenado de inscrever se em concurso avaliação ou exame públicos Também aqui é necessário que haja relação entre a infração penal praticada e a interdição que é imposta a exemplo de fraudar concurso público porque do contrário faltarlheá perti nênciaadequação 43 Limitação de final de semana A limitação de final de semana uma espécie de prisão de fim de semana uma vez que o condenado fica privado da liberdade durante a sua execução21 consiste na obrigação de permanecer aos sábados e domingos preferencialmente por cinco horas diárias num total de 10 horas de pena em casa de albergado ou em outro estabeleci mento adequado CP art 48 LEP art 1 52 sendo que durante a permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuídas atividades educativas Na prática tal pena temse revelado um grande fracasso porque poucos foram os Es tados que se dignaram a criar as tais casas de albergado impossibilitando grandemente a sua execução Ao juiz da execução compete determinar a intimação do condenado informan doo do local dias e horário em que deverá cumprir a pena que terá início a partir da data do primeiro comparecimento LEP art 151 devendo o estabelecimento designa do encaminhar relatório mensal sobre o cumprimento da pena art 1 53 44 Perda de bens e valores O Código prevê ainda a perda de bens e valores pertencentes ao condenado perda que se dará não em favor da vítima mas em favor do Fundo Penitenciário Nacional dispondo que o valor terá como teto máximo o montante do prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou terceiro em consequência da prática do crime CP art 45 3 Mas uma tal pena ou é inconstitucional por importar em confisco não autorizado constitucionalmente ou é desnecessária22 Inconstitucional porque o confisco somente é tolerável tal como já o prevê o art 91 do Código relativamente aos instrumentos do crime instrumentas sceleris e pro dutos do crime produtas sceleris ou do proveito obtido com ele de sorte que o perdi mento de bens referido no art 5º XLV e XLVI da Constituição deve ser assim enten dido restritivamente para só incidir sobre bens ilicitamente adquiridos 20 Manual cit p 479 2 1 Luiz Flávio Gomes Penas e medidas alternativas cit p 1 59 22 No mesmo sentido Régis Prado Curso cit p 485 Contrariamente Luiz Flávio Gomes Penas e medidas alternativas cit 520 f 19 PENAS RESTRITIVAS DE 01 REI TOS Além disso caso se considere como faz Luiz Flávio Gomes que a perda constitui uma antecipação da reparação dos danos força é convir que essa civilização do direito penal é indevida uma vez que semelhante reparação deverá ser feita em favor das víti mas do crime não em favor do Fundo Penitenciário Nacional E mais se constitui uma indenização já prevista civilmente ainda que contemplando destinatários diversos ha verá bis in idem em prejuízo do condenado Cumpre também dizer que os eventuais prejuízos causados à vítima serão objeto de reparação no juízo cível que se valerá da sentença penal condenatória como título executivo para tanto Finalmente se se entender como aqui entendemos que o perdimento só com preende os bens e valores ilicitamente obtidos com a infração penal concluirseá pela sua fbsoluta desnecessidade pois tal já constitui um efeito da condenação CP art 91 45 Prestação pecuniária A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima a seus de pendentes ou a entidade pública ou privada com destinação social de importância fi xada pelo juiz não inferior a um saláriomínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos CP art 45 l º havendo quem questione a constitucionalidade da fixação não em diasmulta mas em saláriomínimo 23 Tratase como se vê de mais uma típica sanção civil transportada acríticamente para o direito penal e que em realidade tem caráter de multa reparatória24 tanto que o valor pago deverá ser deduzido do montante de eventual condenação em ação de repa ração civil se coincidentes os beneficiários Por isso é que cuidandose de autêntica multa reparatória e apesar de fazer parte do rol das penas restritivas de direito não se pode tolerar que diante do seu descum primento tenha lugar a conversão em pena de prisão sob pena de violação ao princí pio constitucional proibitivo de prisão por dívida CF art 5 Preferencialmente a prestação pecuniária deverá ser feita em favor da vítima do crime ou de seus dependentes Mas excepcionalmente seja porque não houve dano a reparar seja porque não houve vítima direta ou imediata o montante da condenação será destinado a entidade pública ou privada com destinação social Como assinala Ce zar Bitencourt a excepcionalidade dessa possível destinação secundária prendese ao caráter indenizatório que a referida sanção traz em sua finalidade25 Convém notar que a pena de prestação pecuniária está expressamente vedada para os crimes previstos na Lei nº 1 1 3402006 violência doméstica 23 Cezar Bitencourt cit 24 Nesse sentido Cezar Bitencourt Manual cit 25 Manual cit p 460 521 PAULO Q1JEI ROZ 451 Substituição por prestação de outra natureza O Código prevê ainda que se houver concordância do beneficiário a pena de pres tação pecuniária poderá ser substituída por prestação de outra natureza art 45 2º pena que tem sido duramente criticada por violar o princípio da certeza e determinação das penas26 legalidade Semelhante substituição está condicionada à prévia aceitação e concordância do beneficiário isto é a vítima seus dependentes ou instituição beneficiada sendo desca bida sempre que houver recusa 46 Multa substitutiva Ainda que não haja previsão legal expressa isolada alternativa ou cumulativa mente o juiz também poderá substituir a pena de prisão por pena de multa sempre que a condenação for igual ou inferior a lum ano se superior a 1 um ano a pena privativa da liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direito e multa ou por duas restritivas de direito CP art 44 2º Aqui a pena de multa seguirá os princípios e regras que lhe são próprios dos quais se tratará a seguir O art 60 2º está revogado 26 Assim Cezar Bitencourt Manual cit 522 1 20 1 PENA DE MULTA Sumário 1 Significado e crítica 2 Individualização da pena limites máximo e mínimo 3 Pagamento e execução da multa 1 SIGNIFICADO E CRÍTICA A terceira modalidade de pena adotada pelo Código é a multa que consiste no pagamento ao Fundo Penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias multa CP art 49 Tratase em realidade de um tipo de pena que parece ser tão criticável quanto a própria prisão que na prática tem se revelado grandemente inócua haja vista que a maior parte dos condenados é formada por miseráveis que ordinariamente não dis põem de recursos para pagála De mais a mais a pena de multa é em geral fixada em valores tão irrisórios que a sanção não cumpre qualquer finalidade preventiva Não bastasse isso a Lei nº 105222002 art 201 ao prever o arquivamento das exe cuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R 1000000 atual mente o valor é R 2000000 veio demonstrar ainda mais claramente quão inúteis são as penas de multa decorrentes de sentença penal condenatória pois dificilmente excederão a esse teto razão pela qual não poderão ser objeto de execução forçada Não é necessário dizer que embora a lei em causa que é federal se refira à execução fiscal da Fazenda Nacional tem ela de ser aplicada a todos os Estados da Federação e Dis trito Federal em respeito ao princípio federativo à competência da União para legislar sobre matéria penal e também ao princípio da isonomia É bem verdade que a Lei nº 105222002 excepciona a multa penal mas o fato é que soa no mínimo estranho que créditos civis de valores tão mais vultosos ordina riamente não sejam passíveis de execução forçada enquanto multas penais de valores normalmente irrisórios possam sêlo Por isso Ferrajoli propõe a abolição pura e simples de toda sorte de penas pecu niárias por ser impessoal podendo ser paga por qualquer pessoa e por ser desigual incidindo de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio sendo fonte de in toleráveis discriminações2 Mas a abolição deve ocorrer principalmente porque a pena 1 Dispõe o art 20 textualmente Serão arquivados sem baixa na distribuição mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela ProcuradoriaGeral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados de valor consoli dado igual ou inferior a R 1 000000 dez mil reais Redação dada pela Lei nº 1 1 033 de 2004 2 Derecho y razón cit p 4 1 6 523 PAULO QJ E I ROZ pecuniária é incompatível com um modelo de direito penal mínimo3 e regido pelos princípios de proporcionalidade e subsidiariedade pois a justiça penal com o caráter inevitavelmente desonroso de suas intervenções não pode ser incomodada e sobretudo não pode incomodar os cidadãos por fatos de mínima importância como são os crimes punidos com multa unicamente4 Parece ter razão Ferrajoli portanto quando conclui que ou a pena pecuniária é considerada suficiente e nesse caso a infração deverá ser descriminalizada para consti tuir ilícito administrativo ou é insuficiente devendo ser substituída por pena mais se vera ou quando cominada alternativa ou cumuladamente ser simplesmente abolida5 2 INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO Como pena que é a multa deve ser também objeto de individualização judicial de acordo com as circunstâncias judiciais legais e causas de aumento e diminuição de pena Além disso o juiz inicialmente fixará a quantidade de diasmulta a seguir esta belecerá o valor de cada diamulta6 O limite mínimo da pena de multa é de dez diasmulta sendo o máximo em prin cípio de trezentos e sessenta diasmulta valor que será atualizado quando da execução pelos índices de correção monetária art 49 2º Mas esse quantum máximo poderá ser aumentado até o triplo se o juiz considerar que é ineficaz em virtude da situação econômica do réu embora aplicada no máximo art 60 lº Fixada a pena pecuniária em diasmulta a seguir o juiz determinará o valor de cada diamulta Porém esse valor não poderá ser inferior a um trigésimo do maior sa lário mínimo mensal vigente à época do fato nem superior a cinco vezes esse salário art 49 1 º Para a aplicação da pena de multa que deverá atender como dissemos aos cri térios legais de individualização o juiz tomará em consideração principalmente a si tuação econômica do réu art 60 A aplicação realizarseá assim em duas fases na primeira o juiz fixará com base nas circunstâncias dos arts 59 e 68 a quantidade de diasmulta na segunda estabelecerá com base principalmente mas não exclusiva mente pois também importa na ofensividade da conduta na situação econômica do réu Convém notar que a legislação especial não raro prevê parâmetros diversos para a fixação da pena de multa Assim por exemplo a Lei nº 113432006 Lei de Droga 3 Como assinala Ferrajoli se quisermos ser coerentes com um modelo de direito penal mínimo que proíba unicamente infrações graves nenhuma pena pecuniária pode ser considerada suficiente para sancionálas de modo adequado mesmo porque ao sancionar condutas irrelevantes jurídicopenal mente tal pena só contribui para a inflação penal Derecho y razón cit p 4 1 7 4 Ferrajoli Derecho penal cit p 4 1 7 5 Derecho penal cit p 4 1 7 Em sentido similar André Copetti Direito penal cit 6 No sentido do texto Rogério Greco Direito Penal cit 524 1201 PENA DE MULTA comina multa de 500 quinhentos a 1500 mil e quinhentos diasmulta para o crime de tráfico art 33 podendo ser aumentada até o décuplo quando houver concurso de pessoas e a situação econômica do acusado justificálo Também é certo que há leis que a vedam expressamente v g Lei nº 1 13402006 Discutese a possibilidade de aplicação cumulativa de pena de multa uma como pena substitutiva de pena privativa da liberdade e outra como pena autônoma A Sú mula 171 do STJ prevê que cominadas cumulativamente em lei especial penas pri vativas de liberdade e pecuniária é defesa a substituição da prisão por multa 3 PAGAMENTO E EXECUÇÃO DA MULTA A multa deverá ser paga dentro de dez dias depois de transitada em julgado a sen tença podendo o pagamento ser parcelado a requerimento do condenado art 50 Se não houver pagamento da multa não poderá como no passado ser convertida em pena privativa da liberdade mesmo porque isso importaria na prisão por dívida CF art 5 LXVII Nesse caso a multa será convertida em dívida de valor aplicando selhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública atualmente Lei nº 683080 inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição Por isso a execução da pena de multa convertida em dívida de valor com petirá à Fazenda Pública 525 PAU LO QlJEIROZ Em suma não é possível aplicarse medida de segurança ao inimputável sempre que incidirem excludentes de criminalidade em seu favor Assim todos os pressupostos jurídicopenais necessários para a imposição de uma pena hão de ser também exigidos para as medidas de segurança com exceção ape nas da imputabilidade pois do contrário tratarseá o inimputável injusta e desigual mente com manifesta violação aos princípios penais os quais devem incidir aqui com mais razão em virtude do maior grau de vulnerabilidade em que se encontram a lei penal como a lei do mais débil relativamente aos demais criminosos É infundada portanto a afirmação corrente na doutrina de que a pena pressupõe culpabilidade e que a medida de segurança requer perigosidade Nesse sentido não cabe dizer mais que a diferença fundamental entre pena e medida de segurança re side na circunstância de ser pressuposto irrenunciável da aplicação de qualquer pena a estrita observância do princípio da culpabilidade princípio que não exerce papel de nenhuma espécie no âmbito das medidas de segurança3 Com efeito se todos os pressupostos de punibilidade hão de ser exigidos para a aplicação de medida de segurança nenhuma constrangimento poderá ser imposto ao inimputável quando incidir em seu favor causa excludente de culpabilidade Logo não sendo o agente culpável embora inimputável nenhum medida de segurança pode rá ser imposta Apesar disso a posição que ora defendemos está longe de ser majoritária4 pois mesmo um autor como Juarez Cirino dos Santos de posições sempre críticas afirma que se o inimputável em razão de doença mental ou perturbação da saúde mental é incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinarse de acordo com esse en tendimento tampouco poderá ter conhecimento da proibição ou de poder determinar se pelo conhecimento da proibição razão pela qual não poderia logicamente invocar erro de proibição Não poderia alegar outras excludentes de culpabilidade porque a inexigibilidade de conduta diversa pressuporia a exigibilidade de conduta conforme o direito o que não é possível em se tratando de inimputável5 Não estamos de acordo com isso evidentemente Em primeiro lugar porque como demonstra Quintem Olivares6 uma rígida separação entre inimputáveis e imputáveis 3 Figueiredo Dias Questões fundamentais cit p 1 55 4 Exceção a isso é Saio de Carvalho Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal brasileiro São Paulo Saraiva 2013 5 Direito Penal cit p 643 6 Locos y Culpables Pamplona Aranzadi Editorial 1 999 Como assinala Quintero de acordo com um conceito atual de enfermidade mental não é possível afirmar que uma de suas características seja a impossibilidade de poder distinguir entre o bem e o mal entre o permitido e o proibido motivo pelo qual um indivíduo clinicamente enfermo mental pode ter uma capacidade intelectual suficiente para atingir a compreensão que os juristas consideram necessária para o conhecimento da ilicitude cit p 1 03104 O referido autor propõe um sistema unitário de apuração da responsabilidade penal unidade que significará tanto um processo uno com todas as garantias penais e processuais inerentes 528 1 2 1 1 MEDIDAS DE S EGURANÇA constitui uma ficção desacreditada pela psiquiatria mais recente e pela própria realida de segundo porque alienação mental e inimputabilidade não são equivalentes haven do diversos graus de inimputabilidade conforme a respectiva causa terceiro porque a loucura e pois a inimputabilidade são socialmente construídas variando no tempo e no espaço os comportamentos assim etiquetados tanto que os laudos psiquiátricos não raro se contradizem razão pela qual se poderia dizer à maneira de Nietzsçhe que a rigor não existem fenômenos psiquiátricos mas apenas uma interpretação psiquiátri ca dos fenômenos7 quarto porque ainda que assim não fosse o inimputável poderia alegar excludentes de culpabilidade sempre que se achasse numa situação em que o imputável pudesse fazêlo por força do princípio da isonomia inclusive quinto porque tal entendimento implicaria tratar o inimputável não como sujeito de direito como é conium aliás mas como objeto da intervenção jurídicopenal Imaginese que A e B ambos residentes na zona rural dos confins do Brasil estando a pescar ou a caçar como é comum naquela região sejam presos por porte ilegal de arma e crime ambien tal A plenamente imputável é absolvido invocando erro de proibição inevitável mas B ibimputável apesar de se encontrar na mesma situação seria submetido a medida de segurança implicando grave restrição à liberdade do agente Parece claro ainda que se A pode alegar erro de proibição B mais vulnerável poderá fazêlo com maior razão sob pena de se consagrar uma manifesta injustiça Ademais quando o agente atua sob o amparo de excludente de culpabilidade a medida de segurança tornase absolutamente desnecessária seja para fins de preven ção geral seja para fins de prevenção especial já que não representa perigo algum Em suma o inimputável pode alegar excludentes de culpabilidade pela mesma razão que poderia invocar excludentes de tipicidade e de ilicitude inclusive porque como vimos a distinção entre tais categorias além de inconsistente não preexiste à interpretação mas é dela resultado ao devido processo legal inclusive no que toca à individualização da sanção penal quanto à reação preventivarepressiva em cuja execução é necessário adotar os meios adequados para a separação e classificação dos condenados de acordo com a sua saúde mental cit p 1 6 1 7 De acordo com Thomas Szasz estritamente falando a doença ou a enfermidade só podem afetar o corpo motivo pelo qual não pode haver nenhuma doença mental A doença mental é uma metáfora pois as mentes podem estar doentes apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as eco nomias estão doentes O mito da doença mental Rio de Janeiro Zahar 1 979 p 234 Ainda conforme o autor o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com relação às superstições e práticas das caças às bruxas segundo a interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contemporânea nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do Iluminismo tal como pensam os românticos tradicionalistas Na realidade a Psiquiatria Institucional é uma continuação da inquisição O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social O vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época é um jargão pseu docientífico que parodia os conceitos da ciência O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época é um movimento social pseudo liberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade A fabricação da loucura Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de saúde mental Rio de Janeiro Zahar Editores 1976 p 56 529 PAULO QJEIROZ Já vimos também que a inimputabilidade como o próprio nome sugere não é um estado mental do sujeito mas uma atribuição ou mais precisamente uma nãoatribui ção Uma última observação se a culpabilidade é requisito do crime e não simples pressuposto da pena o alienado mental e o menor de dezoito anos cometeriam crime já que são inculpáveis Bem se o conceito analítico de crime é um desdobramento do conceito formal seguese que o menor não comete crime mas ato infracional conforme consta da pró pria lei Lei nº 806990 logo não está sujeito à pena mas à medida socioeducativa que consistirá em internação nos casos mais graves Já o alienado mental comete cri me sim desde que a conduta por ele praticada seja típica ilícita e culpável porque se for atípica ou lícita ou inculpável por qualquer motivo que não a própria inimputabili dade nenhuma sanção poderá sofrer Se diversamente do imputável ele não fica sujei to à pena mas à medida de segurança é porque a imposição de uma pena em sentido estrito seria um castigo inútil Mais a distinção entre pena e medida de segurança é puramente formal materialmente a medida de segurança pode ser mais lesiva à liber dade inclusive Além dos pressupostos ordinários de punibilidade a aplicação da medida de se gurança exige a comprovação mediante perícia da perigosidade do agente que é pre sumida quando se tratar de inimputável art 26 e real quando se cuidar de semiim putável art 26 parágrafo único A perícia médica será realizada ao final do prazo mínimo fixado e deverá ser re petida anualmente ou a qualquer tempo se o juiz da execução assim determinar art 97 2º Por último é possível aplicarse medida de segurança também ao autor de con travenção LCP art 13 Mas tal previsão parecenos incompatível com o requisito da periculosidade necessária à sua aplicação 8 O mesmo vale para os crimes culposos e de menor potencial ofensivo 11 A Lei de Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial A Lei de Reforma Psiquiátrica Lei nº 102162001 que é expressamente aplicável às medidas de segurança que as chama de internação compulsória arts 6 III e 9º 8 Haroldo Caetano defende que a nova Parte Geral Lei nº 720984 revogou o art 13 da LCP pois ela só refere à aplicação de medida de segurança para as infrações crimes punidas com reclusão e detenção motivo pelo qual estaria vedada nas contravenções punidas que são com prisão simples Execução Penal cit p 297 Ocorre porém que o CP só define crimes os quais de acordo com o seu conceito legal são punidos com reclusão ou detenção não faria sentido portanto que também fizesse referência às contravenções e à prisão simples objeto que é de lei especial Não há falar assim de violação ao princípio da legalidade ao menos com base em semelhante argumento Além disso em princípio a lei especial LCP prevalece sobre a lei geral CP e não o contrário ex specialis derogat legi generali 530 j21 j MEDIDAS DE SEGURANÇA trouxe importantes modificações a exigir uma releitura do Código Penal e da Lei de Execução Penal havendo inclusive quem defenda a revogação da LEP no particular e de parte do Código Penal e Processual Penal9 Eis as mais importantes 1 Finalidade preventiva especial A lei considera como finalidade permanente do tratamento a reinserção social do paciente em seu meio art 4 º 1 º reforçando assim a finalidade já prevista na LEP preventiva individual das medidas de segurança Portanto toda e qualquer disposição que tiver subjacente a ideia de castigo restará revogada 2 Excepcionalidade da medida de segurança detentiva internação Exatamente por isso a internação só poderá acontecer quando for absolutamente necessá ria isto é quando o tratamento ambulatorial não for comprovadamente o mais adequado É que de acordo com a lei a internação só é indicada quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes devendo ser prioriza dos os meios de tratamento menos invasivos possíveis arts 4º e 2º parágrafo único VIII Por isso que independentemente da gravidade da infração penal cometida preferirseá o tratamento menos lesivo à liberdade do paciente razão pela qual independentemente da pena cominada se reclusão ou detenção o tratamento ambulatorial extrahospitalar passa a ser a regra e a internação a exceção apesar de o Código dispor em sentido diverso10 Também por isso é vedada a internação de pacientes em instituições com características asilares art 4º 3º 3 Revogação dos prazos mínimos da medida de segurança Parece certo tam bém que a fixação de prazos mínimos restou revogada pois são incompatíveis com o princípio da utilidade terapêutica do internamento art 4 lº ou com o princípio da desinternação progressiva dos pacientes cronificados art 5º Além disso a presunção de periculosidade do inimputável e o seu tratamento em função do tipo de delito que cometeu se punido com reclusão ou detenção baseado em prazos fixos e rígidos são incompatíveis com as normas sanitárias que visam à reinserção social do paciente11 4 Alta planejada e reabilitação psicossocial assistida No caso de paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional decorrente de quadro clínico ou de ausência de su porte social será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida sob responsabilidade da autoridade sanitária compe tente art 5º 9 Assim Paulo Jacobina Direito Penal da Loucura Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica ln Boletim dos Procuradores da República nº 70 ano VI maio2006 O autor também defende a inconstitucionalidade das medidas de segurança 1 O No sentido do texto Haroldo Caetano Execução Penal Porto Alegre Magister Editora 2006 p 295 1 1 No sentido do texto Paulo Jacobina cit 531 PAULO QJEIROZ 5 O paciente tem direito ao melhor tratamento do sistema de saúde de acordo com as suas necessidades garantindoselhe entre outras coisas livre acesso aos meios de comunicação disponíveis art 2º parágrafo único Como se vê o fim precípuo da lei é em nome da dignidade humana proteger o portador de transtorno mental de todo e qualquer abuso estatal e emprestarlhe o melhor tratamento possível para além de todos os rótulos preferencialmente fora do ambiente manicomial carcerário asilar Releva notar que o CNJ Conselho Nacional de Justiça editou Resolução nº 1 13 de 20 de abril de 2010 e recomendação nº 35 de 12 de julho de 2011 determinando o cumprimento da mencionada lei relativamente à execução das medidas de segurança 2 FINALIDADE As medidas de segurança como sanção penal que são têm à semelhança das pe nas uma finalidade essencialmente preventiva e sobretudo preventiva especial visto que por meio delas pretendese evitar que o inimputável autor de infração penal volte a cometêla12 Sua finalidade principal é evitar a reiteração de crimes portanto Secundariamente as medidas de segurança têm uma finalidade de prevenção ge ral negativa no sentido de prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra o inimputável haja vista que por meio delas não apenas se previnem atos de vingança por parte de particulares v g linchamento do inimputável que tenha cometido ho micídio como também se evitam reações abusivas do próprio Estado que poderia por exemplo por meio de uma intervenção pretensamente terapêutica internálos inde finidamente ainda quando não tivessem cometido um crime e sem garantir os meios e recursos inerentes ao devido processo legal ampla defesa etc Mas tais medidas não perseguem em princípio a prevenção geral negativa de futuros delitos tampouco a prevenção geral positiva13porque como assinala Roxin os inimputáveis quando infringem a lei não defraudam nenhuma expectativa a consciên cia social não se comove e ninguém resulta motivado a imitálo porque a vigência da norma aos olhos da opinião pública não é alterada com tais fatos14 3 PRAZOS MÁXIMO E MÍNIMO O Código estabelece que o tempo mínimo das medidas de segurança é de um a três anos período em que o inimputável será submetido a tratamento e terá avaliada a 12 No mesmo sentido Roxin para quem pena e medida de segurança não se diferenciam quanto ao fim mas quanto à limitação exclusivamente Derecho penal cit p 1 05 13 Em sentido contrário entendendo que a medida de segurança tem finalidade preventiva geral positi va Figueiredo Dias Questões fundamentais cit e Eduardo Reale Ferrari Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito São Paulo Revista dos Tribunais 2001 No sentido porém de entender que nenhuma teoria é capaz de justificar suficientemente as medidas de seguran ça as quais pretenderiam legitimar o ilegitimável Gamil Fõppel A função da pena cit 14 Derecho penal cit p 8 1 1 532 1 2 1 1 MEDIDAS DE SEGU RANÇA sua perigosidade sendo que a sentença fixará o prazo mínimo exato necessariamente Mas isso somente se se entender que não houve a revogação desses prazos pela Lei de Reforma Psiquiátrica conforme vimos Mas que fazer se antes de transcorrer o prazo mínimo restar clara a sua desne cessidade em virtude de cessação da perigosidade do agente É evidente que nesse caso a medida de segurança perde sua razão de ser parecendonos que o constrangi mento deva cessar prontamente em nome dos princípios de humanidade e proporcio nal idade das penas especialmente Aliás e conforme observa Roxin a medida de segurança sequer pode ser imposta ou mantida se não guardar proporção com a infração penal cometida razão pela qual os danos e perigos que partem do autor devem ser suportados pela sociedade apesar do interesse preventivo em evitálos quando forem menores que a privação da liberda de que a medida de segurança encerra15 Difícil é justificar por exemplo a aplicação de medida de segurança quando o inimputável responder por crime culposo ou contraven ção notadamente se não tiver antecedentes nesse sentido Quanto à duração máxima o Código dispõe que a internação ou tratamento am bulatorial será por tempo indeterminado perdurando enquanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação de periculosidade art 97 lº de modo que sua duração máxima é indeterminada diversamente de outros Códigos estrangeiros que preveem prazo máximo de duração Mas uma tal indeterminação do prazo máximo é francamente abusiva visto ofen der os princípios de proporcionalidade de não perpetuação da pena e igualdade Com efeito não é razoável por exemplo que alguém que responda por lesão corporal leve CP art 129 caput cuja pena máxima é um ano de detenção possa ficar sujeito à me dida de segurança superior a esse prazo indefinidamente Também se viola o princípio da não perpetuação das penas haja vista que embora as medidas de segurança não sejam penas em sentido estrito formalmente constituem um gravíssimo constrangi mento à liberdade de quem as suporta Finalmente ao fixar penas determinadas apesar de eventualmente persistir a pe riculosidade do réu imputável e mesmo a probabilidade de reincidência o Código ao dispor diferentemente quanto às medidas de segurança fere o princípio da igualdade pois dispensa ao inimputável tratamento injustificadamente diferenciado os imputá veis perigosos ou não ao final da pena serão postos em liberdade os inimputáveis ao contrário a pretexto de não ter cessado a perigosidade permanecerão em tratamen to indefinidamente não raro privados de liberdade No particular Ferrajoli tem razão quando assinala que a duração indeterminada das medidas de segurança traduz uma espécie de segregação da vida dos internados 1 5 Assim o Código espanhol art 1 O1 prevê que o internamento não poderá exceder ao tempo de pena que seria cabível se fosse imputável o sujeito devendo o juiz ou tribunal fixar na sentença esse limite máximo 533 PAU LO ÜlJEIROZ em hospitais psiquiátricos cárcereshospitais ou hospitaiscárceres por cujo meio se consuma uma dupla violência institucional cárcere e manicômio16 Consequentemente as medidas de segurança não devem exceder ao tempo de pena que seria cabível na mesma hipótese sendo mesmo recomendável que o juiz pro ceda à individualização da pena substituindoa a seguir pela medida de segurança pelo mesmo prazo conforme precedentes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Cabe frisar que há precedente do STF no sentido de que o prazo máximo da medi da de segurança não poderá exceder ao limite de trinta anos17 Naturalmente que tais considerações são também aplicáveis ao tempo mínimo da medida de segurança e não só ao tempo máximo porque não faz sentido por exemplo que o inimputável que tenha cometido um crime ou contravenção punido com pena de seis meses de prisão tenha fixada a duração da medida em um ano pra zo mínimo No caso de superveniência de alienação mental no curso da execução de pena CP art 41 LEP art 183 o réu será tratado em local apropriado e se recuperar a saúde mental voltará a cumprir a pena regularmente No entanto se não o recuperar a pena será substituída por medida de segurança pelo tempo de pena que restava por cumprir Porque se assim não for violarseão os princípios de legalidade da pena e intangibili dade da coisa julgada 4 PENAS E MEDIDAS DE SEGURANÇA SE DISTINGUEM REAL MENTE A doutrina costuma distinguir penas e medidas de segurança recorrendo aos se guintes critérios18 1 6 Derecho y razón cit p 782 1 7 HC nº 8421 9SP lª Turma Rei Ministro Marco Aurélio julgado em 1 682005 publicado no DJ em 2392005 p 1 6 1 8 Conforme Damásio de Jesus Direito penal V 1 São Paulo Saraiva 2003 p 545 Idem Flávio Augusto Monteiro de Barros para quem a ausência de culpabilidade não impede a aplicação da medida de segurança pois o juízo de culpabilidade é substituído pelo de periculosidade Poderseia obtemperar que esse tratamento díspar viola o princípio da isonomia Ledo engano pois a ausência de imputabilidade toma inadmissível o questionamento da culpabilidade Direito penal Parte Geral V 1 São Paulo Saraiva 2003 p 479 De modo similar Cezar Roberto Bitencourt Tratado de direito penal São Paulo Saraiva 2004 p 681 A despeito disso Cezar Bitencourt reconhece que a medida de segurança pressupõe prática de fato típico punível pois é indispensável que o sujeito tenha pra ticado um ilícito típico Assim deixará de existir esse primeiro requisito se houver por exemplo ex cludentes de criminalidade excludente de culpabilidade erro de proibição invencível coação moral irresistível e obediência a ordem hierárquica embriaguez completa fortuita ou por força maior com exceção da inimputabilidade ou ainda se não houver prova do crime ou da autoria etc Resumindo a presença de excludentes de criminalidade ou de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança p 682 534 1 2 1 I MEDIDAS DE SEGURANÇA 1 a pena pressupõe culpabilidade e as medidas de segurança requerem periculo sidade razão pela qual a ausência de culpabilidade não impede a aplicação de medida de segurança pois ela é substituída pelo juízo de periculosidade19 2 as penas têm natureza retributivapreventiva e as medidas de segurança são preventivas 3 as penas são proporcionais à gravidade da infração e a proporcionalidade das medidas de segurança fundamentase na periculosidade do agente 4 as penas são por tempo determinado e as medidas de segurança são por tempo indeterminado 5 as penas são aplicáveis aos imputáveis e as medidas de segurança aos inimpu táveis Não estamos de acordo com isso Inicialmente não é exato que quanto aos inimputáveis o juízo de culpabilidade é substituído pelo juízo de periculosidade Sim porque como vimos em favor do inim putável também militam além das excludentes de tipicidade e ilicitude todas as causas de exclusão de culpabilidade bem como causas extintivas de punibilidade conforme prevê o art 96 parágrafo único do Código Penal inclusive Ora se isso é certo segue se que a periculosidade embora necessária não é suficiente para justificar a aplicação de medida de segurança pois devem concorrer todos os pressupostos da punibilidade já que são inadmissíveis medidas predelituais Se no entanto os inimputáveis ficam sujeitos não à pena mas à medida de segurança é porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade necessidadeadequação pois sentido algum faria enclausurálos numa penitenciária Afinal se o juiz constatar que o réu agiu sob o amparo de excludentes de culpa bilidade será de todo ilegal a aplicação de medida de segurança impondose a absol vição pura e simples CPP art 386 III e V visto que se nas mesmas circunstâncias se puder invocálas em favor do imputável o mesmo deverá ocorrer com maior razão quanto ao inimputável pois num sistema Democrático de Direito as garantias devem ser proporcionais ao grau de vulnerabilidade de quem delas necessita os mais débeis Tampouco cabe dizer que as penas têm natureza retributivopreventiva e as me didas de segurança têm natureza só preventiva Primeiro porque conforme vimos tanto as penas quanto as medidas de segurança pressupõem a prática de crime puní vel de modo que desse ponto de vista também as medidas de segurança constituem uma iretribuição Segundo porque no essencial as medidas de segurança perseguem os mesmos fins assinalados à pena prevenir reações públicas ou privadas arbitrá rias contra o inimputável prevenção geral negativa e evitar a reiteração de crimes20 1 9 Damásio de Jesus cit p 545 20 Çomo assinala Fragoso a propósito ainda da medida de segurança aplicável ao imputável pena e medida de segurança têm o mesmo fundamento Ambos servem à proteção de bens jurídicos e se 535 PAULO QlJ E I ROZ prevenção especial Finalidade da intervenção penal é pois a proteção subsidiária de bens jurídicos No que tange à indeterminação do prazo máximo das medidas de segurança he rança do positivismo criminológico cabe redarguir que em homenagem aos princípios da igualdade proporcionalidade e não perpetuação das penas não se justifica numa perspectiva garantista que tais sanções diferentemente das penas possam durar in definidamente enquanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação da periculosidade CP art 97 lº razão pela qual jamais deverão exceder ao tempo de pena que seria cabível na espécie Ademais devem ser minimamente aflitivas para o criminoso inimputável pois encerram dupla violência hospital e cárcere Cumpre notar ainda que se analiticamente crime é conforme a perspectiva aqui adotada fato típico ilícito e culpável seguese que faltando a culpabilidade em razão de o réu se achar numa situação de exclusão da culpabilidade faltará o crime motivo pelo qual também por essa razão não se justificaria a aplicação de uma medida de se gurança Assim diferença ontológica nenhuma há entre penas e medidas de segurança pois ambas perseguem os mesmos fins e reclamam o concurso de idênticos pressupostos de punibilidade fato típico ilícito culpável e punível A distinção reside portanto unicamente nas consequências os imputáveis estão sujeitos à pena os inimputáveis à medida de segurança atendendose a critério de pura conveniência políticocriminal ou de adequação Desnecessário dizer que todas as garantias processuais contraditório etc militam em favor do inimputável Não sem razão o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem nos casos de inimputabilidade procedido inicialmente à individualização da pena como se o réu fosse imputável para só em seguida a substituir pela medida de segurança cujo prazo máximo é aquele da pena fixada sem prejuízo de ser liberado antes quando verificada a cessação da periculosidade estabelecendo ainda o limite máximo de um ano para a sua averiguação21 destinam a prevenir a prática de crimes Na execução ambas tendem à reintrodução do agente na sociedade sem que venha a cometer novos crimes É certo que a pena em sua natureza jurídica é em essência retributiva porque é perda de bens jurídicos imposta ao transgressor Mas a medida de segu rança detentiva para imputáveis que o condenado recebe e sofre como uma pena também é perda de bens jurídicos tendo natureza aflitiva por vezes mais grave do que a pena Lições de direito penal Rio de Janeiro Forense 1 994 p 387 Também no sentido de que a medida de segurança persegue fins de prevenção geral positiva e especial Figueiredo Dias Questões fundamentais do direito penal revisitadas São Paulo Revista dos Tribunais 1 999 Para uma crítica à prevenção geral ou especial no que toca a medidas de segurança Gamil Fõppel A função da pena na visão de Claus Roxin Rio de Janeiro Forense 2004 2 1 PROCESSUAL PENAL MEDIDA D E SEGURANÇA PRAZO INDETERMINADO INCONSTI TUCIONALIDADE PROIBIÇÃO DE PENAS PERPÉTUAS OU DE OUTRO MODO ABUSIVAS NECESSIDADE DE READEQUAÇÃO DOS LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO É inconstitucional a indeterminação de limite máximo bem como abusivo prolongado e excessivo o prazo mínimo para 536 PAULO Q1JEIROZ e Tratamento psiquiátrico HCT ou à falta em estabelecimento adequado e que importa na privação da liberdade do paciente destinase aos crimes mais graves punidos com reclusão a segunda cujo tratamento ocorrerá nos mesmos locais diri gese aos delitos menos graves punidos com detenção O elenco das medidas de se gurança é pois bastante limitado diversamente do Código espanhol por exemplo que prevê um extenso número de medidas privativas e não privativas da liberdade art 96 Como se vê a medida prioriza a gravidade e resultado do crime em detrimento dos distúrbios mentais diagnosticados pelos peritos sendo que a modalidade de terapia decorre mais do desvalor do resultado do que do grau de perigosidade do agente o que é um contrassenso Portanto não é o médico que sugere a internação ou o tratamento ambulatorial de acordo com as necessidades do agente mas a lei que preestabelece a medida23 Mas conforme vimos essa situação mudou radicalmente com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica que privilegiou a saúde mental do inimputável em detri mento da infração penal por ele praticada Convém notar que apesar de existirem precedentes tolerando a custódia do inter no em cadeias públicas por exemplo o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que configura constrangimento ilegal a prisão do inimputável em regime fechado pela ausência de vaga em estabelecimento adequado para o cumprimento da medida de se gurança 24 devendo o juiz da execução à falta de estabelecimento adequado substituir a internação por tratamento ambulatorial Notese ainda que a internação passou a ser medida excepcional a partir da reforma psiquiátrica 51 Conversão regressiva e progressiva A LEP art 184 prevê a possibilidade de conversão de tratamento ambulatorial em internação se o agente revelar incompatibilidade com a medida caso em que o prazo mínimo será de um ano não prevê o contrário porém conversão progressiva conversão da internação em tratamento ambulatorial Mas tal é perfeitamente possível seja porque a finalidade declarada da medida é a recuperação do sentenciado seja por que não há proibição alguma no particular 25 23 SMANIOTO Edson Alfredo Martins Da Medida de Segurança ln Revista Brasileira de Ciências Criminais n 6 2001 24 EXECUÇÃO PENAL HABEAS CORPUS APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA DE IN TERNAÇÃO FALTA DE VAGA EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO I Sendo aplicada ao paciente a medida de segurança de internação constitui constrangimento ilegal sua manutenção em prisão comum ainda que o motivo seja a alegada inexistência de vaga para o cumprimento da medida apli cada II A manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança de internação é de responsabilidade do Estado não podendo o paciente ser penalizado pela insuficiência de vagas Habeas corpus concedido STJ HC nº 3 1 902 Rei Min Félix Fischer DJ l º072004 No mesmo sentido STJ RHC nº 1 3346SP e HC n 22916MG 25 No sentido do texto Haroldo Caetano Execução penal Po1io Alegre Magister Editora 2006 p 303 538 1 2 1 1 MEDIDAS DE SEGURANÇA 6 EXTINÇÃO A medida de segurança decretada será extinta somente quando for averiguada me diante perícia a cessação da periculosidade art 97 Antes porém o agente será desinternado ou liberado condicionalmente durante o prazo de um ano Se ao final desse período não praticar fato indicativo de persistência da periculosidade decretarseá a extinção da medida definitivamente Caso contrário isto é se durante esse prazo de provação ou liberdade condicional vier a cometer fato indicativo de perigosidade será restabelecida a situação anterior reinternação ou tratamento ambulatorial Convém lembrar que quando no curso da execução da pena privativa da liberda de sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental o juiz de ofício ou a re querimento do Ministério Público ou da autoridade administrativa poderá determinar a substituição da pena por medida de segurança CP art 41 LEP art 183 hipótese em que o prazo não poderá exceder ao tempo de pena que restava por cumprir É que a não ser assim violarseia o princípio da legalidade da pena já que o réu fora con denado a uma pena por tempo determinado e o princípio da intangibilidade da coisa julgada 539 PAULO QlEIROZ a sursis comum b sursis especial c sursis etário d sursis por motivo de saúde Ordinariamente deferido o sursis sursis comum o condenado prestará no primei ro ano serviço à comunidade ou sofrerá a limitação de final de semana a critério do juiz No entanto se houver reparação do dano salvo impossibilidade de fazêlo e forem inteiramente favoráveis as circunstâncias judiciais o juiz poderá sursis especial substi tuir as exigências antes referidas pelas seguintes aplicadas cumulativamente a proibição de frequentar determinados lugares b proibição de ausentarse da comarca onde reside sem autorização dojuiz c comparecimento pessoal e obrigatório em juízo mensalmente para informar e justificar suas atividades Tratandose de réu maior de setenta anos sursis etário condenado à pena não superior a quatro anos a execução da pena privativa da liberdade poderá ser suspensa por quatro a seis anos CP art 77 2º O mesmo ocorrerá quando independentemen te da idade razões de saúde justificarem a concessão da suspensão sursis por motivo da saúde No caso de condenação por contravenção penal LCP art 1 1 a suspensão da pena de prisão simples será por tempo não inferior a 1 um ano nem superior a 3 três anos Além das condições legalmente previstas condições legais a sentença poderá condições judiciais especificar outras desde que adequadas ao caso e à situação pes soal do condenado princípio da proporcionalidade A suspensão será necessariamente revogada revogação obrigatória sempre que o réu a for condenado irrecorrivelmente por crime doloso b descumprir a pena de prestação de serviço à comunidade ou limitação de fim de semana que lhe foi imposta c não reparar o dano sem motivo justificado A lei também refere como causa revocatória obrigatória a circunstância de o con denado frustrar embora solvente a execução da pena de multa No entanto tal dispo sitivo ofende o princípio proibitivo de prisão por dívida Além disso já não existe mais a possibilidade legal de o descumprimento da multa converterse em prisão uma vez que transitada em julgado a sentença a multa será considerada dívida de valor apli candoselhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública CP art 5 1 Nos demais casos como superveniência de condenação irrecorrível por crime cul poso ou por contravenção descumprimento das condições judiciais etc a revogação 542 1 2 2 1 SUSPENSÃO CONDICIONAL DA EXECUÇÃO DA PENA SURSIS ficará a critério do juiz revogação facultativa Todavia somente a condenação à pena privativa da liberdade ou à restritiva de direito implicará a revogação facultativa moti vo pelo qual a condenação à pena de multa não tem o condão de revogar o sursis nem obrigatória nem facultativamente CP art 81 1 Quando facultativa a revogação o juiz poderá em vez de decretála prorrogar o período de prova até o máximo se este não tiver sido o fixado CP art 81 3º Se eventualmente o condenado estiver respondendo a outro processo por crime ou contravenção praticado antes ou durante o sursis o juiz não poderá decretar a revoga ção em razão do princípio da presunção de inocência Apesar disso o prazo da sus pensão ficará prorrogado até o julgamento definitivo do processo que ensejar a prorro gação CP art 81 2º Cumpridas regularmente as condições da suspensão a pena será extinta 543 PAULO QlJEIROZ para o trabalho b comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação c não mudar de residência sem prévia autorização do juízo da execução Poderão ser ainda impostas condições facultativas a não mudar de residência sem comunicação ao juiz compe tente b recolherse à habitação em hora fixada c não frequentar determinados luga res Desnecessário dizer que o prazo do livramento corresponderá ao tempo de pena que restava por cumprir de modo que se por exemplo o réu vem a ser condenado a doze anos de reclusão obtendoo depois de seis anos ficará em período de provação pelos seis anos restantes O instituto é também aplicável às contravenções penais LCP art 1 1 Para deferilo o juiz que decidirá de modo fundamentado ouvirá previamente o Ministério Público e o defensor do interessado já não mais se exige parecer do Con selho Penitenciário nem exame criminológico para tanto Apesar disso foi editada a Súmula Vinculante nº 26 pelo STF3 11 Pena igual ou superior a dois anos A lei prevê inicialmente que somente as condenações iguais ou superiores a dois anos possam ser objeto de livramento condicional Consequentemente as condenações inferiores a dois anos as quais em geral já serão alcançadas por outros institutos a exemplo da suspensão condicional do processo e da substituição por penas restritivas de direito ficam excluídas do livramento condicional Nesse sentido também se posiciona a doutrina majoritária entendendo que se a pena não atingir o mínimo de dois anos e não couber a substituição por penas restriti vas de direito o condenado não fará jus ao livramento condicional devendo cumprir a pena na prisão4 Mas semelhante exclusão é inteiramente despropositada afinal crimes mais gra ves terão tratamento mais brando do que crimes menos graves numa clara violação ao princípio da proporcionalidade tal limite há de ser ignorado portanto E de lege ferenda deve ser abolido 12 Cumprimento de parte da pena O condenado não reincidente em crime doloso e que tiver bons antecedentes de verá cumprir mais de um terço da pena de modo que por exemplo condenado a seis anos de prisão deverá ter cumprido mais de dois anos ficando o restante do período 3 A súmula citada dispõe para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo ou equiparado o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art 2º da Lei n 8072 de 25 de julho de 1 999 sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche ou não os requisitos objetivos e subjetivos do beneficio podendo determinar para tal fim de modo fundamentado a rea lização de exame criminológico 4 Cezar Bitencourt Código Penal comentado cit p 279 546 PAULO QJElROZ injustificadamente descumprir quaisquer das condições constantes da decisão concessiva do livramento A revogação só acontecerá em ultima ratio quando inevitável 23 Efeitos da revogação Para verificação dos efeitos da revogação é preciso distinguir três hipóteses 1 condenação irrecorrível por infração crime ou contravenção praticada antes do livramento 2 condenação irrecorrível por infração praticada durante o livramento 3 descumprimento das condições impostas Na primeira hipótese como a revogação do livramento resultou de fato alheio à vontade do condenado superveniência de nova condenação por infração penal ante rior ao benefício os efeitos da revogação são mais brandos quais sejam a o condenado terá direito a novo livramento mesmo em relação à pena que estava cumprindo desde que somadas a condenação atual e a anterior o condenado atenda ao requisito temporal b o tempo em que esteve solto será considerado como de efetivo cumprimento da pena7 Na segunda situação por se julgar que o liberado ao cometer novo crime durante o período de provação demonstra que em verdade não fazia jus ao livramento confe reselhe o mais severo dos tratamentos a saber a não poderá obter novo livramento em relação à mesma pena permitindose porém que obtenha o benefício quanto à nova condenação b não se computa o período de tempo em que esteve em liberdade condicional tendo de cumprir a pena integralmente LEP art 142 No caso de descumprimento das condições impostas na sentença havendo uma única pena a ser cumprida o condenado terá à semelhança da hipótese anterior de cumprila integralmente não podendo obter novo livramento bem como não será computado o período em que esteve solto Mas tais efeitos podem e devem ser revistos em face dos princípios penais espe cialmente o princípio ne bis in idem pois não parece razoável que decretada nova con denação seja desconsiderado todo o período de regular cumprimento das condições do livramento não raro longos e árduos anos de cumprimento acabando por conduzir o condenado a cumprir a mesma pena uma segunda vez 7 Art 1 4 1 da LEP Se a revogação for motivada por infração penal anterior à vigência do livramento computarseá corno tempo de cumprimento da pena o período de prova sendo permitida parn a concessão de novo livramento a soma do tempo das duas penas A11 1 42 No caso de revogação por outro motivo não se computará na pena o tempo em que esteve solto o liberado e tampouco se concederá em relação à mesma pena novo livramento 550 1231 LIVRAMENTO CONDICIONAL 3 EXTINÇÃO DA PENA Cumpridas as condições do livramento regularmente o juiz declarará a extinção da pena CP art 90 No entanto não poderá fazêlo enquanto não passar em julgado a sentença em processo a que responde o liberado por crime cometido na vigência do livramento CP art 89 Nada impede portanto fora dessa hipótese crime cometido na vigência do livramento a decretação da extinção da pena Com efeito se eventualmente o condenado responder à ação penal por crime co metido durante o livramento o juiz não poderá declarar extinta a pena pois se sobre vier nova condenação o benefício será revogado perdendo o liberando como vimos o período de pena já cumprido O mesmo não ocorrerá perda do tempo cumprido e prorrogação porém se se tratar de crime cometido antes do livramento Portanto a prorrogação do livramento só acontecerá se ao final do período de pro va o réu ainda responder a uma ação penal por crime praticado no curso do benefício razão pela qual se disser respeito a crime anterior deverseá decretar a extinção da pena sem mais Como a lei refere apenas processo a simples existência de inquérito policial não impedirá o juiz de decretar a extinção da pena tão logo expire o período de prova Pela mesma razão processo por contravenção não tem o condão de fazer prorro gar o livramento pois a lei alude a crime tão só 551 PAULO QJEIROZ 11 Ação penal no atual crime de estupro qualificado De acordo com a Lei nº 120152009 a ação penal no crime de estupro é agora pública condicionada à representação do ofendido CP art 225 e não mais de ação penal privada à exceção do estupro de menor de 18 dezoito anos ou vulnerável de ação penal pública incondicionada Em razão disso alguns autores2 vêm defendendo que mesmo no caso de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte a instau ração da ação penal dependeria de representação O equívoco é manifesto Em primeiro lugar porque incide no caso o art 101 do Código Penal sobre crime complexo que tem a seguinte redação Quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes cabe ação pública em relação àquele desde que em relação a qualquer destes se deva proceder por iniciativa do Ministério Público É bem verdade que o estupro simples não é complexo ou composto visto que embora o constrangimento ilegal constitua crime autônomo o ato sexual por si só não o é E o crime complexo como é sabido é aquele resultante da fusão de dois ou mais tipos3 Mas se o crime de estupro na forma simples não é complexo o é na forma qualificada por lesão grave ou morte visto resultar da fusão de dois tipos penais autô nomos estupro simples ou constrangimento ilegal e lesão grave ou homicídio Incide pois o art 101 do Código Penal porque tanto a lesão grave quanto a morte são condutas que a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que por si mesmos constituem crimes Exatamente por isso não fosse a previsão legal expressa das circunstâncias qualificadoras nos 1 º e 2º do art 213 do Código Penal o agente responderia em concurso formal ou material por estupro e lesão cor poral grave ou estupro e homicídio por serem infrações autônomas 2 Nesse sentido Rómulo de Andrade Moreira A Ação Penal nos Crimes Contra a Liberdade Sexual em Face da Lei nº 1201 509 Disponível em jusvicom E Artur de Brito Gueiros Souza Incons titucionalidade da Lei nº 1201 509 Disponível em lfgcombr Existe inclusive uma ADin no STF questionando a constitucionalidade da lei no particular 3 É de ver no entanto que na doutrina alemã é comum considerar como complexo o delito que ofende mais de um bem jurídico não necessariamente resultante da fusão de dois ou mais tipos Nesse sen tido Roxin Os delitos simples protegem só um bem jurídico e os compostos vários Delitos compostos são entre outros o furto 242 que se dirige contra a propriedade e a custódia Derecho Penal Parte Gereral Madrid Editorial Civitas 1 997 p 337 e Jescheck de acordo com o número de bens jurídicos protegidos no preceito penal há delitos simples e compostos Tratado de Derecho Penal Parte General Granada Comares 1993 p 239 Já na doutrina espanhola Mufioz Conde e Mercedes Arán definem crimes complexos como aqueles que se caracterizam pela concor rência de duas ou mais ações cada uma constitutiva de um delito autônomo mas de cuja união nasce um complexo delitivo autônomo distinto Derecho Penal Parte General 4 ed Valencia Tirant lo Blanch 2000 p 296 E para Rodriguez Mourullo os tipos complexos se caracterizam porque estão integrados por duas ou mais ações que são em si mesmas delitivas Derecho Penal Parte General Madrid Civitas 1 978 p 274 554 1 24 1 DA AÇÃO PENAL Em segundo lugar não faria sentido algum que para crime menos grave estupro de vulnerável ou menor de 18 anos punido com pena de 8 a 15 anos de reclusão fosse admitida a ação penal pública incondicionada e para um mais grave punido com pena de até 30 anos de reclusão a ação penal dependesse de representação Notese mais que também para o estupro de vulnerável CP art 217A 3º e 4 a lei prevê as formas qualificadas da lesão grave e morte da vítima Sistematicamente portanto a pretensão de se exigir representação para o estupro qualificado é infundada inclusive porque violaria os princípios de isonomia e proporcionalidade proibição de proteção deficiente Finalmente não se compreenderia que uma lei que aboliu a ação penal privada e pretendeu castigar mais duramente seus destinatários tratasse de modo mais brando justamente os autores dos delitos mais graves até com resultado morte ao condicio nar supostamente a ação penal à representação da vítima que poderá estar morta inclusive Em síntese a jurisprudência Súmula 608 do STF4 que se consolidara sobre o tema permanece absolutamente inalterada a ação penal no crime de estupro com le são grave ou morte é de ação penal pública incondicionada porque tanto a lesão grave quanto o homicídio são delitos de ação penal pública incondicionada 2 AÇÃO PENAL PÚBLICA A ação penal pública subdividese em pública incondicionada e pública condicio nada A primeira independe do implemento de qualquer condição vale dizer a inicia tiva de apuração do crime pela autoridade competente e o ajuizamento da denúncia devem ocorrer independentemente e mesmo contrariamente do interesse das partes direta ou indiretamente afetadas pelo crime autor vítima etc Também por isso a au toridade policial deverá proceder à apuração do fato prontamente de ofício CPP art 5º I Já na segunda hipótese de ação penal pública condicionada a investigação da infrkção penal pela autoridade policial e a propositura da ação penal pelo Ministério Público dependem do implemento de uma condição indispensável a iniciativa do ofen dido ou de seu representante legal que deverá manifestar claramente seu interesse em ver apurado o fato e processado o seu autor por meio de uma representação ou requisi ção do Ministro da Justiça Se eventualmente o ofendido for incapaz e não dispuser de representante legal o juiz nomeará curador especial para representálo O mesmo ocorrerá se houver confli to entre o interesse do incapaz e seu representante legal Já as pessoas jurídicas serão representadas por quem o respectivo estatuto designar e à falta por seus diretores ou sóciogerentes 4 A Súmula 608 dispõe No crime de estupro praticado mediante violência real a ação penal é pública incondicionada 555 PAULO ÜlJEI ROZ Como regra a ação penal é pública incondicionada isto é sempre que o tipo pe nal nada disser a respeito da legitimidade da ação tratarseá de crime dessa natureza art 100 lº Quando se tratar de ação penal pública condicionada o Código ou lei faz expressa menção referindo a necessidade de representação do ofendido ou de re quisição do Ministro da Justiça Assim por exemplo o art 147 crime de ameaça ao dispor parágrafo único que somente se procede mediante representação Por igual quando for o caso de ação penal privada a lei dirá expressamente que somente se pro cederá mediante queixa v g crimes contra a honra 21 Princípios que a regem A ação penal pública em virtude do interesse coletivo predominante que a move é obrigatória Isto quer dizer que não é dado ao seu titular o Ministério Pú blico decidir sobre a conveniência oportunidade etc da ação devendo intentála sempre que dispuser de prova da materialidade e autoria de crime Naturalmente que à falta de tais elementos de prova que amparem a acusação deverá propor o arquivamento do procedimento inquérito representação etc ou requerer novas di ligências quando necessário Caberlheá também requerer a transação penal quando se tratar de crime de menor potencial ofensivo pena máxima não superior a dois anos de prisão ou a suspensão condicional do processo nos crimes de médio poten cial ofensivo pena mínima não superior a um ano nos casos em que couber Lei nº 909995 Consequentemente a ação penal é também indisponível haja vista que o seu titu lar não pode propor acordos sugerir perdão etc exceto nos casos legalmente admiti dos Por igual não poderá desistir da ação que tenha iniciado ou do recurso que haja interposto Finalmente a ação penal é indivisível já que deve ser proposta contra todos os autores conhecidos não se lhe permitindo escolher uns em prejuízo de outros sempre que dispuser de prova da participação de todos Mas a indivisibilidade da ação penal pública é controvertida havendo precedentes inclusive do STF admitindo a sua divi sibilidade 5 22 Irretratabilidade da representação A representação como condição de procedibilidade da ação penal pública condi cionada pode ser objeto de retratação do ofendido que venha a se arrepender ou dela desistir Antes de oferecida a denúncia pelo Ministério Público a retratação é perfeita mente possível Mas uma vez oferecida a denúncia pelo Ministério Público a representação torna se irretratável CP art 102 O oferecimento pelo titular da ação que não se confunde 5 Sobre o tema Humberto Fernandes Princípios constitucionais do processo penal brasileiro Brasília Brasília Jurídica 2006 556 1 241 DA AÇÃO PENAL com o despacho judicial de recebimento da denúncia dáse com a sua formalização perante o juiz competente 1Referindose o Código somente à representação a doutrina diverge sobre a possi bilidade de retratação da requisição do Ministro da Justiça6 Não se pode ignorar todavia que à semelhança da representação a requisição constitui condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada e cujos fun damentos e fins são os mesmos Por isso é de convir que apesar de a lei se referir à representação a retratação deve também alcançar a requisição do Ministro da Justiça A representação que pode ser oral ou escrita e que não exige formalidades espe ciais pode ser feita à autoridade policial ao Ministério Público ou ao próprio juiz Se feita oralmente será reduzida a termo 3 AÇÃO PENAL PRIVADA O direito de propor a ação penal privada é exclusivo do próprio ofendido ou do seu representante legal que se fará representar por meio de advogado A Súmula 714 do STF estabeleceu ainda que é concorrente a legitimidade do ofendido mediante queixa e do Ministério Público condicionada à representação do ofendido para a ação penal por crime contra a honra do servidor público em razão do exercício de suas fun ções Na ação penal privada diferentemente da ação penal pública vigora o princípio da dísponibilidade de modo que ao seu titular é dado a qualquer tempo renunciar per doar1 desistir da queixa etc Também é regida pelo princípio da indivisibilidade devendo o querelante intentar a ação contra todos os autores conhecidos não podendo preferir uns a outros 31 Renúncia do ofendido Em razão da disponibilidade da ação penal privada o ofendido pode renunciar ao direito de queixa expressa ou tacitamente ensejando a extinção da punibilidade CP arts 104 e 107 V A renúncia que ocorre antes de proposta a ação penal pois depois dela será o 1 caso de perdão pode ser expressa ou tácita A renúncia expressa constará de decla ração assinada pelo ofendido seu representante legal ou procurador com poderes especiais CPP art 50 A tácita ocorrerá quando houver prática de ato manifesta mente incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa não se conside rando como tal o fato de o ofendido receber a indenização do dano causado pelo crime CP art 104 parágrafo único e CPP art 57 Exemplo de renúncia tácita é o casamento do autor do crime com a sua vítima que embora não constitua mais uma 6 Admitindo a retratação da requisição Delmanto Código Penal comentado cit contrariamente Ce zar Bitencourt Código Penal comentado cit 557 PAULO QJEI ROZ causa expressa de extinção de punibilidade implica em princípio a renúncia de que estamos tratando No caso de concurso de agentes coautoria e participação a renúncia se comunica a todos os coautores e partícipes CPP art 49 em razão da indivisibilidade da ação penal privada 32 Perdão do ofendido O perdão que poderá ocorrer até o trânsito em julgado da sentença condenatória CP art 106 2º é a desistência do direito de dar prosseguimento à ação penal pri vada já iniciada ensejando a extinção da punibilidade CP arts 105 e 107 V À semelhança da renúncia o perdão poderá ser tácito ou expresso Também aqui o perdão concedido a um dos coautores ou partícipes aproveita a todos Sendo um ato bilateral diferentemente da renúncia unilateral o perdão não pro duz efeito se o querelado o recusar CP art 106 III No caso de existir mais de um ofendidoquerelante o perdão concedido por um não prejudica o direito dos outros 4 AÇÃO PENAL PRIVADA SUBSIDIÁRIA A ação penal privada subsidiária CF art 5º LIX tem por finalidade suprir even tual inércia do titular da ação penal pública Ministério Público que embora dispon do de elementos de prova para oferecer denúncia deixa de fazêlo no prazo legal CP art 100 3º Reconhecese assim ao ofendido ou a quem o represente cônjuge ascendente descendente ou irmão o direito de oferecer queixa de sorte a suprir a omissão ministerial Mas não implica inércia e em consequência não será admitida a ação privada subsidiária o requerimento de novas diligências ou o pedido de arquivamento do in quérito pelo Ministério Público E a ação penal subsidiária que é originariamente pública não se converte em ação privada preservando a sua natureza pública e por essa razão o querelante não pode dela desistir renunciar perdoar ou ensejar a perempção7 razão pela qual o Ministé rio Público pode aditar a queixa oferecer denúncia substitutiva requerer diligências produzir provas recorrer e a qualquer momento retomar o prosseguimento da ação se houver negligência do querelante CPP art 29 5 DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA E DE REPRESENTAÇÃO Nos crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada o ofen dido dispõe do prazo de seis meses para oferecer a queixa ou exercer o direito de 7 Cezar Bitencourt Manual cit p 690 558 1241 DA AÇÃO PENAL representação a contar do dia em que veio a saber quem é o autor do crime de sorte que decairá desse direito CP art 103 se não o fizer tempestivamente Tratase de prazo penal CP art 10 motivo pelo qual se inclui o dia do começo no seu cômputo Quanto à ação penal privada subsidiária da pública o prazo de seis meses contase do dia em que se esgota o prazo para o Ministério Público oferecer a denúncia CPP arts 38 e 46 Também aqui o Código fala de decadência do direito de representação omitindo se quanto à requisição motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência entendem que a decadência não atinge a requisição No entanto o que se disse a respeito da retratação é perfeitamente válido para a decadência de modo a admitila também quanto à requisição 559 125 1 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE Sumário 1 Introdução 2 Causas de extinção em espécie 2 1 Morte do agente 22 Anistia graça e indulto 23 Perempção 24 Retratação 25 Perdão judicial 26 Abolitio criminis e outras 27 Prescrição 27 1 Conceito e fundamento 272 Espécies de prescri ção 273 Prazos 274 Causas de aumento e de diminuição de pena 275 Reincidência 276 Concurso de crimes 277 Prescrição ordinária da pretensão punitiva 278 Pres crição extraordinária retroativa e superveniente 279 Prescrição retroativa antecipada 27 10 Termo inicial da prescrição 27 1 1 Termo inicial da prescrição da pretensão puniti va 27 1 2 Termo inicial da prescrição da pretensão executória 27 1 3 Causas impeditivas ou suspensivas da prescrição 27 1 4 Causas interruptivas da prescrição 1 INTRODUÇÃO Conforme vimos o crime do ponto de vista analítico é um fato típico ilícito e culpável A punibilidade portanto não é uma nota essencial do conceito de crime mas sua consequência jurídica A punibilidade é assim a possibilidade de se aplicar uma sanção penal pena ou medida de segurança ao autor de um injusto penal culpável 1 Mas quando criminoso o fato não se segue necessariamente a aplicação de uma penf haja vista que o direito de punir pode ser atingido por uma causa de extinção de punibilidade fazendo desaparecer a punição in concreto Apesar de a expressão extinção de punibilidade sugerir que tal somente é apli cável aos casos passíveis de pena as causas de que trata o Código Penal são também aplicáveis às situações passíveis de medida de segurança em razão de inimputabilidade decorrente de doença mental ou perturbação da saúde mental do autor CP art 26 Com efeito também não é possível a aplicação de medida de segurança se a infração penal já tiver sido atingida por uma causa de extinção de punibilidade No particular o CócVgo é expresso ao dispor que extinta a punibilidade não se impõe medida de se gurança nem subsiste a que tenha sido imposta art 96 parágrafo único Se não fosse assim violarseiam os princípios de igualdade e proporcionalidade 1 As causas de extinção de punibilidade não se confundem com certas causas es peciais de isenção de pena previstas na Parte Especial do Código conhecidas como causas especiais de isenção de pena ou escusas absolutórias que embora produzam os mesmos efeitos são concedidas em caráter personalíssimo e só são aplicáveis a de terminados crimes a exemplo do crime de furto praticado em prejuízo do cônjuge ascendente ou descendente CP art 181 Das causas de extinção da punibilidade cuida o art 107 do Código Mas tal elenco não é taxativo pois outras existem no próprio Código e fora dele a exemplo do ressar cimento no peculato culposo CP art 312 3º ia parte e da colaboração premiada Lei nº 128502013 art 4 561 PAULO QEIROZ De acordo com Heleno Cláudio Fragoso no rol das causas extintivas de punibili dade previstas no Código figuram também situações que extinguem não a pena mas o próprio crime como ocorre com a anistia que faz desaparecer o delito e a abolitio criminis que faz o agente retomar a condição de primário1 Por fim o art 108 do Código dispõe que a extinção da punibilidade de crime que é pressuposto elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não se es tende a este Nos crimes conexos a extinção da punibilidade de um deles não impede quanto aos outros a agravação da pena resultante da conexão disposição que tem as seguintes implicações a a extinção da punibilidade de crime que é pressuposto de outro não se estende a este Essa norma é aplicável aos crimes acessórios cuja configuração pressupõe um outro principal assim a receptação em relação ao furto sendo que a extin ção da punibilidade do principal no caso o furto não se comunica ao acessório no caso a receptação b a extinção da punibilidade de crime que é elemento de outro não se estende a este Essa norma é aplicável aos crimes complexos assim a extorsão mediante sequestro caso em que a extinção da punibilidade do sequestro Uá contido na extorsão CP art 148 não se estende à extorsão mediante sequestro CP art 159 c a extinção da punibilidade de crime que é circunstância agravante ou qualifica dora de outro não se estende a este Essa norma é também aplicável aos crimes complexos como v g ao furto qualificado pela destruição de obstáculo CP art 155 4º I lª parte em que a extinção da punibilidade do dano CP art 163 que qualifica o furto não o atinge d nos crimes conexos a extinção da punibilidade de um deles não impede quan to aos outros a agravação da pena resultante da conexão v g o agente que para estuprar uma mulher mata pessoa que testemunha o crime terá a pena do homicídio qualificada pela conexão CP art 121 2º V ainda que venha a ocorrer a extinção da punibilidade do estupro por qualquer motivo prescrição decadência etc 2 Parecenos todavia quanto à última hipótese agravação da pena resultante da conexão entre os delitos que nem sempre é razoável ou legítimo o aumento com base em crime já atingido pela extinção da punibilidade Assim por exemplo se o agente acusado de duplo homicídio culposo em conexão é beneficiado pelo perdão judicial relativamente a um deles não faz sentido agravarse a pena daquela infra ção que motivou a condenação visto que a agravante fundarseia num nãocastigo numa nãopena decisão absolutória Enfim uma sentença absolutória não pode em Lições cit p 399 2 Damásio de Jesus Direito penal cit p 681 562 PAULO QlEIROZ 22 Anistia graça e indulto Anistia graça e indulto são manifestações de indulgência clemência do Estado em favor de autor de crime Distinguemse pela competência alcance e motivação A anistia normalmente concedida em crime político e que poderá darse antes ou depois da sentença penal passada em julgado é de atribuição do Congresso Nacional sujeita à sanção do Presidente da República CF art 48 VIII Já a graça também conhecida como indulto individual e o indulto de compe tência privativa do Presidente da República CF art 84 XII geralmente concedidos a quem se acha no cumprimento de pena embora extingam a punibilidade mantêm inal terados os demais efeitos da condenação reincidência etc diferentemente da anistia que faz cessar todos os efeitos penais É importante notar que o Presidente da República poderá delegar a concessão de indulto e a comutação de penas aos Ministros de Estado ao ProcuradorGeral da Re pública ou ao AdvogadoGeral da União CF art 84 parágrafo único Na prática os decretos de indulto anualmente editados já preveem os casos que comportariam a graça mas a doutrina os distingue dizendo que a graça é individual e solicitada enquanto o indulto é coletivo e espontâneo Em princípio todos os crimes são passíveis de anistia graça e indulto Mas a Constituição fez uma ressalva para declarar insusceptíveis de anistia e graça os crimes hediondos e assemelhados CF art 5º XLIII Nesse sentido também dispõe a Lei nº 945597 que proíbe a graça e a anistia para os condenados por crime de tortura Já a Lei nº 807290 art 2º Lei de Crimes Hediondos foi aparentemente além da Cons tituição e referiu também o indulto a cujo respeito o texto constitucional fora omisso motivo pelo qual a doutrina diverge sobre a constitucionalidade da lei no particular Alberto Silva Franco defensor da posição minoritária tem que se a Constituição incluiu a concessão de indulto e a comutação de penas entre as atribuições privativas do Presidente da República CF art 84 XII e se ela própria não excepcionou o exer cício dessa competência não poderia fazêlo o legislador ordinário motivo pelo qual o inciso 1 do art 2º da Lei nº 807290 é inconstitucional5 Historicamente o indulto era concedido somente ao réu condenado a pena corpo ral prisão etc Mas os últimos decretos têm previsto expressamente a possibilidade de concessão de indulto ao réu em cumprimento de pena restritiva de direito presta ção de serviço à comunidade etc mesmo que jamais tenha passado pela experiência carcerária E é de todo razoável que seja assim seja porque quem pode o mais indultar cri mes mais graves pode em princípio o menos indultar crimes menos graves seja por que se delitos e penais mais graves são indultáveis é imperioso que os menos graves também o sejam 5 Crimes hediondos 5 ed São Paulo RT 2005 p 1 7 1 564 12s 1 CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE ruNJBILIDADE 27 Prescrição 2 71 Conceito e fundamento A prescrição penal é a extinção do direito de punir em virtude do decurso do pra zo legal para o exercício da ação penal ou para promover a execução da sentença penal condenatória No primeiro caso haverá prescrição da pretensão punitiva ou prescrição da ação no segundo prescrição da pretensão executória ou prescrição da condenação Tratase da causa mais importante de extinção da punibilidade uma vez que é a mais frequente podendo atingir tanto a pretensão punitiva quanto a pretensão executó ria Não poderia ser diferente a extraordinária frequência da prescrição haja vista que diante do excesso de leis penais aliado à tradicional lentidão do sistema penal não poderia o Estado pretender ter o controle de coisa alguma tudo a concorrer para o descrédito dos órgãos e agentes incumbidos da repressão penal A prescrição constitui assim prova de que contrariamente ao provérbio a justiça tarda e falha Cuidandose de matéria de ordem pública a prescrição deve ser decretada inde pendentemente de provocação do interessado de ofício portanto e a qualquer tem po constituindo questão prejudicial ao conhecimento do mérito da causa razão pela qual eventual recurso da defesa não terá seguimento se a prescrição for previamente reconhecida por falta de interesse de agir A razão para não se admitir a apreciação do mérito em tais casos reside nisso quem não pode condenar tampouco pode absolver Consequentemente a decretação da prescrição prejudica todo e qualquer julgamento de mérito contra ou a favor do réu Além disso tolerar recurso visando a decretar a absolvição não obstante a prescrição da pretensão punitiva tornaria o instituto grandemente inútil Apesar disso parece razoável admitirse em casos extremos recurso do réu que pretenda provar sua inocência e só neste caso visto que a decisão que decreta a prescrição sempre deixa em suspense a culpabilidade podendo macularlhe a reputa ção gravemente Como regra vigora o princípio da prescritibilidade de todos os crimes de ação penal pública ou privada hediondos ou não Mas a Constituição previu uma exceção ao declarar imprescritíveis a prática do racismo e a aÇão de grupos armados civis ou niilitares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático art 5 XLII e XLIV exceção injustificável uma vez que crimes tão ou mais graves são passíveis de prescrição latrocínio homicídio etc Também são imprescritíveis em geral os chamados crimes internacionais de competência dos tribunais internacionais a exem plo dos crimes de genocídio contra a humanidade de guerra e de agressão art 29 previstos no Estatuto de Roma art 5º que criou o Tribunal Penal Internacional TPI Discutese se a lei ordinária poderia ampliar o rol dos crimes ditos imprescrití veis parecendonos que sim por se tratar de típica matéria infraconstitucional além de existir na legislação ordinária infrações mais graves Enfim o rol constitucional dos crimes imprescritíveis é meramente exemplificativo motivo pelo qual o legislador 567 PAULO QJ E I ROZ ordinário poderá eventualmente dispor a esse respeito ampliando ou restringindo o elenco das infrações imprescritíveis inclusive porque a afirmação constitucional de imprescritibilidade de certos delitos implica apenas a imprescritibilidade mesma e não a prescritibilidade de todos os demais crimes8 Apesar de consagrada histórica e constitucionalmente autores importantes a ela se opuseram como Beccaria para quem tratandose de crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens se os mesmos forem provados não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga Não é todavia o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis é mister fixar um tempo após o qual o acusado bastante punido pelo exílio voluntário possa reaparecer sem recear novos castigos9 Sobre a razão de ser do instituto há muita divergência10 Mas é erro dissociálo dos fins assinalados ao direito penal mesmo uma vez que sua justificação tem caráter marcadamente políticocriminal É que como disse Carrara a prescrição constitui um modo político de extinção da ação 11 Com efeito ao estabelecer determinado prazo para o exercício da ação penal ou para a execução da pena o Estado julga segundo critério de política criminal que excedido aquele período de tempo a pena tornarseá desnecessária por não mais servir à prevenção geral e especial de delitos ou outros fins políticos que sejam assinalados Daí dizer Manzini que se o poder de punir se jus tifica exclusivamente pelo critério da necessidade todo o exercício do poder repressivo será injustificado quando não pareça necessário12 Enfim tal qual as demais causas de extinção de punibilidade anistia etc a pres critibilidade ou não do crime encerra uma decisão política mesmo porque o próprio direito penal é um fenômeno político com fins e limites também políticos Recentemente em 5 de maio de 2010 entrou em vigor a Lei nº 12234 que modi ficou a prescrição quanto ao seguinte a aumentou o prazo mínimo de prescrição de 2 dois anos para 3 três anos se o máximo da pena cominada for inferior a 1 um ano b vedou a contagem da prescrição retroativa entre a data do fato e a data do recebi mento da denúncia E por se tratar de lei prejudicial ao réu só poderá ser aplicada às infrações penais cometidas posteriormente à sua entrada em vigor por força do princí pio da irretroatividade da lei Não houve porém extinção da prescrição retroativa que subsistiu mas já agora somente é possível entre o despacho de recebimento da denúncia e a sentença 8 No mesmo sentido Ney Fayet Júnior Prescrição Penal v 3 Porto Alegre Livraria do Advogado editora 201 1 p 60 9 Dos delitos e das penas cit XIII p 77 1 0 Sobre o assunto vejase Da prescrição penal de Antônio Rodrigues Porto São Paulo Revista dos Tribunais 1 983 1 1 Apud Rodrigues Porto Da prescrição penal cit p 8 12 Tratado de derecho penal Trad Santiago Sentís Melendo Buenos Aires Ediar 1950 v 5 p 147 568 1 25 1 CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE PUNIBI LI DADE Não cabe mais falar enfim de prescrição retroativa entre a data da consumação do crime e o despacho de recebimento da denúncia ou queixa Entre um marco e outro só é possível atualmente prescrição da pretensão punitiva ordinária regulada com base na pena máxima cominada 2 72 Espécies de prescrição 1 Duas são as espécies de prescrição prescnçao da pretensão pumtlva ou da açã9 e prescrição da pretensão executória ou da condenação A primeira ocorre an tes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória a segunda após o trânsito em julgado No primeiro caso a prescrição será regulada pelo máximo da pena cominada ao crime conforme parâmetro do art 109 do CP que estabelece prazos proporcionais à gravidade da infração Assim por exemplo a lesão corporal leve CP art 109 caput cuja pena máxima é de um ano de detenção prescreverá em quatro anos o furto sim ples CP art 155 caput cuja pena máxima é de quatro anos de reclusão prescreverá em oito anos o homicídio simples CP art 121 caput cuja pena máxima é de vinte anos prescreverá em vinte anos etc No segundo caso prescrição da condenação a prescrição regularseá pela pena aplicada na sentença não mais importando a pena cominada O motivo a autorizar semelhante distinção para a verificação da prescrição é sim ples no primeiro caso o legislador por não saber qual a pena justa a ser aplicada ao réu optou ante a incerteza por tomar como referência o máximo da pena aplicável à espécie No segundo caso já se sabendo qual a pena justa cujo quantum não é mais modificável não faria sentido insistir em regular a prescrição com base no máximo da pena cominada estando assim justificado o abandono daquele critério inicialmente adotado Exemplificando se A pratica em 20 de maio de 2010 crime de violação de corres pondência CP art 151 vindo o inquérito a ser concluído somente em 20 de junho de 20B o Ministério Público em vez de oferecer denúncia terá de requerer o arquiva merito do inquérito em face da prescrição que é de três anos uma vez que a pena má xim1a cominada ao crime é inferior a um ano isto é seis meses de detenção Na mesma hipótese ocorreria prescrição da condenação se não tendo havido prescrição da ação fosse o réu condenado a quatro meses de prisão vindo a se iniciar por qualquer razão fuga desleixo etc a execução da pena mais de três anos após o trânsito em julgado da sentença A prescrição da pretensão punitiva compreende além da prescrição antes refe rida que poderíamos chamar ordinária a prescrição extraordinária retroativa e superveniente a qual diferentemente da primeira é regulada com base no mesmo critério da prescrição da pretensão executória a pena aplicada e não a pena comi nada Em ambos os casos só se poderá cogitar de prescrição retroativa ou super veniente quando houver trânsito em julgado da sentença para a acusação ou se o evelltual provimento do recurso da acusação não tiver qualquer repercussão sobre o 569 PAULO QljEI ROZ prazo prescricional Exemplo se o Ministério Público inconformado com uma sen tença condenatória a um ano de reclusão apelar da sentença para obter um aumento em virtude de continuidade delitiva o provimento desse recurso não modificará em nada o prazo prescricional que continuará sendo de quatro anos CP art 109 V Como veremos o acréscimo de pena decorrente de concurso de crimes é irrelevante para fins prescricionais Notese que todas essas modalidades de prescrição retroativa superveniente e prescrição da pretensão executória são formas residuais de prescrição vale dizer so mente serão apreciadas e decretadas caso já não tenha ocorrido a prescrição da preten são punitiva ordinária Portanto entre essas modalidades de prescrição há relação de sucessão e prejudicialidade uma vez que a prescrição extraordinária pressupõe a não ocorrência da prescrição ordinária e a prescrição da pretensão executória pressupõe a não verificação das demais Não obstante é possível que diante de desatenção das partes ou do juiz todas elas venham a ocorrer num mesmo processo 2 73 Prazos Os prazos prescricionais variam conforme a pena de prisão cominada ao crime Seu prazo mínimo é em princípio de três anos e o máximo de vinte anos Estão pre vistos no art 109 que fixa os seguintes prazos 1 vinte anos se o máximo da pena é superior a doze 2 dezesseis anos se o máximo da pena é superior a oito anos e não ex cede a doze 3 doze anos se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito 4 oito anos se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro 5 quatro anos se o máximo da pena é igual a um ano ou sendo superior não excede a dois 6 três anos se o máximo da pena é inferior a um ano conforme redação dada pela Lei nº 122342010 Tratandose de pena de multa é preciso distinguir No caso de ser a única pena cominada ou a única pena aplicada a multa prescreverá no prazo de dois anos CP art 1 14 I Mas se a multa for alternativa ou cumulativamente cominada ou cumulati vamente aplicada com pena privativa da liberdade prescreverá no mesmo prazo desta última CP art 1 14 II até porque as penas mais leves prescrevem com as mais graves CP art 1 18 Não faz sentido algum porém que na hipótese de ser a multa alternati vamente cominada prescreva ela como manda o Código no prazo da pena de prisão É que num tal caso não havendo a possibilidade de o juiz aplicála cumulativamente com a pena de prisão mais razoável seria que prescrevesse também no prazo de dois anos à semelhança da multa como única pena cominada Há quem entenda13 que por força da nova redação do art 51 do Código dada pela Lei nº 971498 prevendo que transitada em julgado a sentença condenatória a mul ta será considerada dívida de valor aplicandolhe a legislação relativa à dívida ativa 1 3 Fernando Capez Direito Penal Parte Geral São Paulo Saraiva 2006 p 580 No mesmo sentido Cezar Bitencourt Tratado de direito penal 1 1 ed São Paulo Saraiva 2007 p 73 1 570 1 25 1 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE da Fazenda Pública o prazo de prescrição da pretensão executória da pena de multa passou a ser de cinco anos Temos porém que a só conversão da multa em dívida de valor não lhe retira o caráter penal motivo pelo qual o prazo prescricional permanece rigorosamente o mesmo dois anos A não ser assim violarseiam os princípios de legalidade da pena e de intangibilidade da coisa julgada Salvo disposição em contrário a pena restritiva de direito prescreverá no prazo da pena privativa da liberdade substituída CP art 109 parágrafo único e art 1 18 Quan do a pena restritiva de direito for cominada autonomamente tal como ocorre nalgumas leis especiais v g Código de Trânsito a prescrição da pretensão punitiva será calcu lad1 com base na pena máxima respectiva v g se a lei prevê suspensão de habilitação de 2 a 5 anos a prescrição ocorrerá em 12 anos E a prescrição retroativasupervenien te e da pretensão executória serão calculadas com base na pena aplicada Os prazos prescricionais serão reduzidos de metade sempre que o agente for ao tempo do crime menor de vinte e um anos O mesmo ocorrerá se à época da sentença for maior de setenta anos CP art 115 O termo sentença deve compreender também aléqi das decisões condenatórias de primeiro grau o acórdão condenatório proferido em ação penal originária e em grau recursa seja quando condena pela primeira vez seja quando confirma condenação anterior Evidentemente a redução da maioridade civil para dezoito anos e a definição de idoso como pessoa de sessenta anos não têm qualquer repercussão jurídicopenal no particular14 Quanto às contravenções a prescrição à falta de previsão legal expressa segue os mesmos critérios e prazos do Código Penal CP art 12 No que tange às medidas socioeducativas a Lei nº 806990 Estatuto da Criança e do 1dolescente nada previu a respeito da prescrição Mas a Súmula 338 do STJ dispõe que lhe são aplicáveis as normas do Código inclusive quanto aos prazos mínimos e máximos Finalmente leis há que preveem prazos próprios e diversos de prescrição a exem plo da Lei nº 1 13432006 cujo art 30 dispõe que quanto ao crime do art 28 porte de droga para consumo pessoal o prescrição ocorrerá em dois anos 2 7 3 1 Prescrição da Medida de Segurança No que tange à prescrição das medidas de segurança o Código não prevê norma específica razão pela qual os prazos são em princípio os mesmos previstos para a pres crição da pena adotados os mesmos critérios Enfim a prescrição seria regulada com base na pena máxima cominada Entretanto há quem entenda que a prescrição da me dida de segurança por ser em tese uma sanção penal mais branda deve ser regulaclz não com base na pena máxima cominada mas na pena mínima15 O mesmo ocorrerá 14 No sentido do texto STF HC nº 89969 Min Marco Aurélio decisão de 1 3 03 2007 1 5 Nesse sentido Sídio Rosa d e Mesquita Júnior Prescrição Penal 3 ed S PaLtlo Atlas 2003 p 1 35 1 36 Também assim Capez que invoca precedente do STJ Direito Penal Parte Geral S Paulo 5 7 1 PAULO QJ E I ROZ quanto à prescrição da pretensão executória exceto se o juiz eventualmente proceder à prévia individualização da pena e a substituir pela medida de segurança caso em que o prazo prescricional seria regulado com base na pena substituída Quanto a saber se a sentença que a impõe interrompe ou não o prazo de prescri ção tudo depende da natureza jurídica conferida à decisão De fato se se entender conforme a doutrina e jurisprudência majoritárias que a aludida sentença é absolutória imprópria é evidente que não há interrupção Ao contrário caso se tenha a decisão como condenatória ou mista conforme entendemos o prazo interromperá com a sua publicação Por fim no caso de conversão da pena de prisão em medida de segurança em ra zão de superveniência de doença mental a prescrição será regulada com base na pena aplicada na sentença condenatória porque a não ser assim violarseia a coisa julgada 2 74 Causas de aumento e de diminuição de pena À exceção do aumento decorrente de concurso de crimes material formal e crime continuado as causas de aumento e de diminuição de pena devem ser consideradas para efeito de prescrição Se houver causas de aumento de pena é preciso distinguir quando se tratar de limite fixo v g aumento de metade a prescrição regularseá pelo máximo da pena cominada ao crime com o aumento decorrente da incidência da causa de aumento quando se tratar de limite variável v g aumento de 13 a 23 a prescrição regular seá pelo máximo da pena cominada ao crime acrescentado do aumento máximo pre visto no caso 23 Tratandose de causa de diminuição de pena darseá o contrário isto é abater seá do máximo da pena cominada ao crime o mínimo previsto de diminuição Assim na hipótese de crime tentado CP art 14 II parágrafo único em que se prevê dimi nuição de um terço a dois terços de pena reduzirseá da pena máxima o mínimo de um terço Se se cuidar de limite fixo não há dificuldade uma vez que será diminuído esse quantum Como se vê prevalece sempre para todos os casos o prazo máximo de prescrição possível regulado que é segundo o critério da mais alta pena cabível Já as circunstâncias judiciais CP art 59 e legais agravantes e atenuantes são ir relevantes para efeito de prescrição da pretensão punitiva ordinária uma vez que já é regulada com base na pena máxima cominada a qual não pode ser majorada para além do máximo ainda que presentes tais circunstâncias No entanto no caso de prescrição extraordinária ou executória que são reguladas com base na pena aplicada deve ser tomada em conta a pena definitiva e não a penabase ou provisória e portanto já ago ra as circunstâncias judiciais e legais contam para esse efeito Saraiva 2006 p 574 572 1251 CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE PUNIBILIDADE 2 75 Reincidência Em se verificando que o sentenciado é reincidente o prazo de prescrição aumenta rá de um terço relativamente à infração que a acarretar mas esse aumento só é aplicá vel à prescrição da pretensão executória Nesse sentido a Súmula 220 do STJ dispõe A reincidência não influi no prazo da prescrição da pretensão punitiva Nos demais casos prescrição retroativa e superveniente o aumento da reincidência não incidirá haja vista que tais modalidades de prescrição ao atingirem a pretensão punitiva des constituem a própria sentença Além de aumentar o prazo prescricional a reincidência também interrompe a prescrição figurando entre as causas de interrupção da prescrição da pretensão exe cutória CP art 1 17 VI motivo pelo qual a sentença que a reconhecer importará no surgimento de um novo termo inicial de prescrição 2 7 6 Concurso de crimes Havendo concurso de crimes formal material ou continuidade delitiva as pe nas não serão somadas para efeito de prescrição de modo que cada crime prescreverá isoladamente CP art 119 É que ao regular o instituto da prescrição o Código des prezou a disciplina do concurso de crimes Poderseia mesmo dizer para efeito de prescrição não existe concurso de crimes Assim se o agente cometeu em concurso material crimes de homicídio e ocultação de cadáver as penas dos dois delitos não serão somadas devendose verificar a prescrição de cada um deles autonomamente conforme o máximo da pena cominada ou aplicada Quanto à continuidade delitiva a Súmula 497 do STF dispõe que quando se tra tar de crime continuado a prescrição regulase pela pena imposta na sentença não se computando o acréscimo decorrente da continuidade delitiva O mesmo deve ser dito do aumento decorrente do concurso formal 2 7 7 Prescrição ordinária da pretensão punitiva A prescrição da pretensão punitiva ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória tendo como parâmetro o máximo da pena cominada já que não se sabe qual pena será aplicada finalmente ao respectivo delito Nesse caso a prescrição será contada da data do fato à data do despacho de recebimento da denúncia ou queixa ato judicial que interrompe o curso da prescrição Também poderá ocorrer entre o dia em que se deu o aludido despacho e a respectiva sentença penal Exemplificando a segunda hipótese já que exemplo da primeira foi anteriormente referido o Ministério Público oferece denúncia por crime de ameaça CP art 147 dentro do prazo legal de três anos Recebida a denúncia em 20062010 a instrução processual e demais atos encerram somente em 25062013 Nesse caso o juiz ao in vés de julgar o réu deverá decretar a prescrição haja vista que entre a data do despa cho de recebimento da denúncia e o dia em que deveria ser julgada a ação decorreu tempo superior ao prazo prescricional que é de três anos 573 PAULO QJEIROZ 2 78 Prescrição extraordinária retroativa e superveniente O Código admite que a prescrição da pretensão punitiva seja regulada não com base na pena máxima cominada mas com base na pena aplicada ou seja pode ser adotado excepcionalmente o mesmo critério válido para a prescrição da pretensão executória Tal possibilidade somente é possível quando já houver uma sentença penal condenatória que tenha transitado em julgado para a acusação ainda que dela a defesa tenha eventualmente recorrido Aliás mesmo havendo recurso da acusação visando a aumentar a pena também será possível decretála se o eventual provimento do recurso da acusação não tiver qualquer repercussão sobre o prazo prescricional Exemplo se o Ministério Público inconformado com uma sentença condenatória a um ano de re clusão apelar da sentença para obter um aumento de até o dobro da pena dois anos de prisão o provimento desse recurso não modificará em nada o prazo prescricional que continuará sendo de quatro anos CP art 109 V Essa prescrição extraordinária pode ser contada retroativamente à sentença prescrição retroativa e supervenientemente a esta prescrição superveniente Em am bos os casos tal é admitido por já se conhecer a pena justa e este ser em verdade o critério que deveria desde o princípio regular a prescrição desprezandose o máximo da pena cominada A prescrição retroativa pressupõe a impossibilidade de reforma da sentença em prejuízo do réu vale dizer exigese o trânsito em julgado para a acusação sendo ir relevante o trânsito em julgado para a defesa É que na hipótese de só existir recurso da defesa a pena não poderá ser majorada em prejuízo do réu reformatio in pejus e aumentar o prazo prescricional Exemplificando o agente é condenado em 06072013 pelo crime de lesão cor poral leve CP art 1 29 caput cuja denúncia foi recebida em 06062010 a onze me ses de detenção ocorrendo o transitado em julgado da sentença para a acusação Pois bem embora não tenha havido prescrição ordinária da pretensão punitiva que ocor reria em quatro anos houve prescrição extraordinária retroativa uma vez que entre a data do despacho de recebimento da denúncia e a sentença transcorreram mais de três anos que é o prazo prescricional com base na pena concreta 11 meses Mutatis mutandis ocorreria prescrição superveniente se tendo sido publicada a sentença condenatória em 06062010 com trânsito em julgado logo a seguir para a acusação o tribunal viesse a se reunir para julgar eventual apelação da defesa so mente em 06102013 Em tal caso deverseia decretar a prescrição superveniente entre a data da publicação da sentença e a respectiva sessão de julgamento do recur so da defesa Enfim a prescrição retroativa como o próprio nome diz retroage à data da sen tença contase para trás e a superveniente sobrevém à sentença contase para fren te adotandose os mesmos critérios pena em concreto trânsito em julgado da senten ça para a acusação etc 574 l25j CAUSAS DE EXTI NÇÃO DE PUN I B I L I DADE Já vimos que em 5 de maio de 2010 entrou em vigor a Lei nº 12234 que modificou a prescrição quanto ao seguinte aaumentou o prazo mínimo de prescrição de 2 dois anos para 3 três anos se o máximo da pena cominada for inferior a 1 um ano bve dou a contagem da prescrição retroativa entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia E por se tratar de lei prejudicial ao réu só poderá ser aplicada às infra ções penais cometidas posteriormente à sua entrada em vigor por força do princípio da irretroatividade da lei 1 Não houve portanto extinção da prescrição retroativa que subsistiu mas já ago ra somente é possível entre o despacho de recebimento da denúncia e a sentença Não cabe mais falar enfim de prescrição retroativa entre a data da consumação do crime e o despacho de recebimento da denúncia ou queixa Entre um marco e outro só é possível atualmente prescrição da pretensão punitiva ordinária regulada com base na pena máxima cominada 2 7 9 Prescrição retroativa antecipada Discutese se seria cabível a decretação da prescrição antes de sua efetiva ocorrên cia ante a sua provável consumação em virtude das múltiplas circunstâncias do caso tempo decorrido ausência de antecedentes do réu e possível pena a ser aplicada Então indagase o seguinte diante da provável ocorrência da prescrição não seria razoável que o juiz a reconhecesse desde logo evitando um processo que se sabe de antemão inútil De acordo com a jurisprudência tal não é possível Nesse exato sentido dispõe a Súmula 438 do STJ é inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pre tenso punitiva com fundamento em pena hipotética independentemente da existência ou sorte do processo penal Já a doutrina está dividida no particular Contra essa modalidade prescritiva a doutrina e a jurisprudência alegam em ge ral o seguinte falta de previsão legal violação ao princípio do estado de inocência fundkmentação em dado aleatório possibilidade de mudança do libelo etc A argumentação não convence porém Primeiro porque o fato de não existir pre visão legal argumento próprio de quem confunde a lei com o direito e supõe um sistema jurídico hermético e sem lacunas não impede que se reconheça por analogia 1 analogia in banam partem tal possibilidade desde que compatível com as garan tias inerentes ao direito e processo penal Segundo porque interessando a prescrição pouco importando se antecipada ou não ao próprio agente não há falar de violação à garantia da presunção de inocência que é instituída em favor do indivíduo e não do Estado a quem não interessa ao menos em tese o reconhecimento da prescrição Terceiro porque o juiz deveria reconhecêla fundamentadamente valendose de fatos dados e circunstâncias que dessem como certa a inevitabilidade da prescrição não se baseando em dado aleatório Finalmente porque a possibilidade de mudança do libelo é aplicável a toda e qualquer modalidade de prescrição 575 PAULO QlJEIROZ Não seria pois irrazoável decretarse a prescrição antecipadamente quando ine vitável uma vez que em tais casos o titular da ação careceria de interesse de agir haja vista que a intervenção penal como ultima ratio do controle social formal somente deve ter lugar em casos de absoluta necessidade para segurança dos cidadãos o que não se verifica em semelhante contexto por se estar diante de uma persecução penal natimorta inteiramente inútil16 A prescrição retroativa antecipada ou simplesmente prescrição antecipada ou em perspectiva consistiria assim no reconhecimento da prescrição retroativa com base numa pena hipotética sob o argumento de que a eventual pena a ser aplicada em caso de condenação ensejaria inevitavelmente ou com grande margem de probabilidade a prescrição retroativa da pretensão punitiva17 De todo modo semelhante discussão restou grandemente prejudicada com o ad vento da citada Súmula 438 do STJ que a inadmitiu 2 71 O Termo inicial da prescrição O termo inicial da prescrição varia conforme se trate de prescrição da pretensão punitiva ou de prescrição da pretensão executória 2 711 Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva A prescrição começa a correr do dia em que o crime se consumou Diferentemente da disciplina conferida ao tempo do crime art 4º quando se filiou à teoria da ação o Código adotou no particular a teoria do resultado segundo a qual para efeito de prescrição não importa o momento da ação mas o momento do resultado Assim por exemplo se A desfere golpes contra B que falece meses após é a partir da morte con sumação que terá início o prazo prescricional Tratandose de crimes materiais a consumação dáse com a produção do resulta do formais e de mera conduta com a realização da atividade visto que é irrelevante o resultado naturalístico para efeito de consumação omissivos impróprios com o ad vento do resultado omissivo próprio com a abstenção da conduta legalmente exigida permanentes e habituais com a cessação da permanência ou da habitualidade Nesse sentido de considerar que o prazo da prescrição no crime habitual iniciase da data da última das ações que constituem o fato típico HC 87987RS do STF Rei Min Se púlveda Pertence 95200618 1 6 No sentido do texto dentre outros Celso Delmanto Código Penal comentado cit Idem Paula Ma chado Prescrição penal Prescrição funcionalista São Paulo Revista dos Tribunais 2000 Lozano Jr Presctição Penal Saraiva 2002 Eugênio Pacelli Curso de processo penal Belo Horizonte Dei Rey 2003 1 7 Lozano Jr Prescrição penal São Paulo Saraiva 2002 p 1 8 1 1 8 De modo diverso Ney Fayet Júnior para quem nos crimes habituais a prescrição antes de transi tar em julgado a sentença final deve começar a correr com a consumação delitiva e não a partir da 576 PAULO QJ E I ROZ Nesse caso o termo inicial da prescrição é aquele em que houve preclusão do di reito de a acusação apelar em primeiro grau 20052005 ou a data em que a sentença passou em julgado para acusação em segundo grau 30052013 Se considerarmos o primeiro termo inicial haverá prescrição se consideramos o segundo não Temos que nesse caso não houve prescrição da pretensão executória É que a prescrição da pretensão executória há de pressupor forçosamente o trân sito em julgado da decisão para a acusação e defesa em última instância e não em pri meiro grau exceto se não houver recurso algum motivo pelo qual somente a partir do momento em que a condenação fizer coisa julgada passar a constituir título executivo judicial e pois autorizar o imediato cumprimento da pena é que se poderá cogitar de prescrição da pretensão executória Em suma a prescrição em causa que pressupõe o trânsito em julgado da decisão para ambas as partes tem por termo inicial o dia do trânsito em julgado para a acusa ção em última instância Primeiro porque por força do princípio da presunção de inocência CF art 5 LVII ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória Logo o cumprimento da pena não pode darse antes disso embora o processo possa eventualmente comportar prisão provisóriacautelar Naturalmente que o trânsito em julgado pressupõe o exaurimento de todos os re cursos possíveis da acusação e da defesa Antes disso não cabe falar por conseguinte de prescrição da pretensão executória que pressupõe logicamente a constituição defi nitiva da sentença como título executivo judicial contra o respectivo condenado Além disso não faria sentido algum que embora vedada a execução provisória da pena contra o réu o prazo prescricional da pretensão executória pudesse fluir de forma antecipada e normalmente E mais não sendo juridicamente possível a execução provisória da sentença passível ou pendente de recurso não há cogitar de inércia da acusação e consequentemente de prescrição a qual constitui em última análise uma forma de punição da negligência no exercício do poder punitivo Ademais como falar de prescrição relativamente a uma sentença ainda passível de ser reformada e anulada total ou parcialmente Enfim se não é juridicamente possível o ato principal execução da sentença con denatória não o é tampouco o acessório fluência do prazo prescricional que o pres supõe Segundo porque a não ser assim a lei penal estaria a fomentar a interposição de recursos com fins meramente procrastinatórios visando à consumação da prescrição Terceiro porque a doutrina contrária ao que aqui defendemos confunde clara mente o trânsito em julgado da sentença coisa julgada com a simples preclusão do direito de apelarrecorrer Em síntese o termo inicial da prescrição da pretensão executória é realmente o dia do trânsito em julgado da sentença para a acusação 578 1251 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE Mas isso não quer dizer evidentemente preclusão do direito de apelar pois ainda que tal ocorra há sempre a possibilidade de interposição de múltiplos recursos da acu sação e da defesa nas instâncias superiores tribunal de justiça etc motivo pelo qual só depois do julgamento definitivo de todos os recursos interpostos é que se poderá cogitar de prescrição da pretensão executória visto que só aí a sentença terá definitivamente transitado em julgado e se constituído em título executivo judicial em favor do Estado Não se pode pois confundir trânsito em julgado da sentença com preclusão do direito de apelar da sentença em primeiro grau visto que a prescrição da pretensão executória pressupõe coisa julgada formal e material e a consequente constituição do título executivo judicial além da inércia estatal Afinal a prescrição da pretensão exe cutória tem por pressuposto a possibilidade legal da execução penal e a sua inexecução por desídia dos órgãos competentes Obviamente que a expressão sentença a que se refere o art 112 do CP não pode ser interpretada literalmente pois do contrário excluiria toda e qualquer decisão acór dão proferida nos tribunais inclusive o acórdão condenatório em ação penal originá ria O termo sentença deve ser entendido por isso como toda e qualquer decisão que importe em condenação total ou parcial Em conclusão 1 a prescrição da pretensão executória é uma forma residual de prescrição pois pressupõe a não ocorrência de prescrição da pretensão punitiva em quaisquer de suas formas 2 pressupõe o trânsito em julgado para ambas as partes 3 logo não corre enquanto não fizer coisa julgada para acusação e defesa 4 apesar disso o termo inicial é o dia do trânsito em julgado para a acusação sendo irrelevante quando se deu o trânsito para a defesa 5 o termo inicial não é o dia em que precluiu o direito de apelar exceto se não houve recurso algum das partes 6 o termo inicial é o dia em que a decisão sentença eou acordão passou em julgado para a acusação na última instância juízo ou último tribunal a apreciar recurso das partes b Revogação de livramento condicional No caso de o condenado se achar no gozo de livramento condicional poderá eventualmente ocorrer a revogação voltando à prisão Em isso ocorrendo a prescrição começará a correr do dia da sentença que revogou o benefício c Dia de interrupção da execução A execução da pena poderá ser interrompida por duas razões fuga do condenado ou internação em hospital psiquiátrico CP art 41 No primeiro caso a prescrição correrá a partir da data da evasão do condenado E mais importante será regulada não com base na pena imposta na sentença mas com fundamento na pena que restava por cumprir art 1 1 3 de sorte que se condenado a seis anos de prisão vem a empreender fuga após o cumprimento de quatro anos a prescrição será calculada com base no tempo restante de pena dois anos Há inclusive quem entenda que a detração deve ser considerada para esse efeito20 20 Assim Delmanto Código Penal comentado cit 579 PAULO QjEIROZ No segundo caso de internação em hospital psiquiátrico em virtude da super veniência de doença mental ou perturbação da saúde mental no curso da execução o tempo de internamento será computado na pena 2 713 Causas impeditivas ou suspensivas da prescrição Causas há que impedem ou suspendem a prescrição de modo que com o seu ad vento o prazo de prescrição não corre ficando suspenso e na dependência daquela causa que a determina Nesse caso e diferentemente do que ocorre com as causas in terruptivas da prescrição o tempo transcorrido antes da suspensão será contado para efeito de verificação da extinção da punibilidade Assim antes de passar em julgado a sentença final a prescrição não corre CP art 116 a enquanto não resolvida em outro processo questão de que dependa o reconhe cimento da existência do crime b enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro Na primeira hipótese o Código cuida das chamadas questões prejudiciais previs tas nos arts 92 a 94 do Código de Processo Penal Na segunda se o agente estiver cumprindo pena no exterior aguardarseá o seu cumprimento período em que o prazo prescricional não fluirá Diversas outras causas de suspensão do prazo prescricional estão previstas fora do Código Assim a suspensão condicional do processo Lei nº 909995 art 89 6º a citação por edital do réu que não constitui advogado CPP art 366 a inclusão no REFIS Lei nº 99642000 art 15 etc 2 714 Causas interruptivas da prescrição Já as causas interruptivas da prescrição como o nome diz simplesmente inter rompem o prazo prescricional fazendo começar um novo prazo a partir da causa inter ruptiva desprezandose o tempo anteriormente transcorrido Vejamos cada uma sepa radamente CP art 1 17 a Despacho de recebimento da denúncia ou da queixa O primeiro ato a interromper a prescrição é o despacho de recebimento da denún cia ou da queixa que não deve ser confundido com o mero oferecimento da denúncia ou da queixa Obviamente não a interrompe o despacho que a rejeitar na forma da lei CPP art 43 Quando se tratar de concurso de agentes coautoria ou participação diz o Código art 1 17 1 º primeira parte que a interrupção da prescrição produz efeitos relativa mente a todos os autores do crime Como interpretar esse artigo Parecenos que a comunicabilidade de que trata o dispositivo somente é legítima quando se cuidar de coautores ou partícipes assim reconhecidos no despacho de rece bimento da denúncia ou da queixa Consequentemente a prescrição não é interrom pida quanto àqueles que embora formalmente denunciados foram beneficiados por despacho judicial de rejeição da denúncia ou da queixa Assim por exemplo se o juiz 580 PAULO QJEIROZ palavra o despacho de recebimento eou aditamento da denúnciaqueixa devem ter o mesmo tratamento pois implicam a admissão formal de uma acusação mas exclusiva mente quanto a quem tiver contra si admitida A interrupção ocorrerá com a publicação da decisão em cartório Quando se tratar de ação penal da competência originária dos tribunais ou de apreciação de recurso a interrupção ocorrerá no dia da respectiva sessão de julgamen to e não quando da publicação do seu resultado no diário oficial quer porque a sessão é pública quer porque a publicação no diário visa a fins processuais em especial dar ciência ao réu da decisão oportunizandolhe a interposição de recurso b Decisão de pronúncia Nos crimes de competência do crimes dolosos contra a vida interrompe o prazo prescricional a decisão que pronuncia o réu submetendoo a julgamento perante aque le tribunal em virtude de prova da materialidade do crime e de indícios suficientes da autoria Contrariamente o despacho de impronúncia do réu de absolvição sumária ou de desclassificação são irrelevantes para esse fim Na hipótese de o desclassificar o cri me incide a Súmula 191 do STJ A pronúncia é causa interruptiva da prescrição ainda que o venha a desclassificar o crime Também a decisão do tribunal que confirma a decisão de pronúncia interromperá a prescrição c Sentença ou acórdão condenatórios recorríveis Interrompe a prescrição a sentença que condena o réu a contar da publicação A contrario sensu não produz o mesmo efeito a sentença que o absolver ainda que apli cando medida de segurança caso se trate de inimputável ou semiimputável Na hipótese de condenação por um crime e absolvição por outro a interrupção limitarseá ao delito objeto da condenação idem se havendo concurso de agentes ocorrer condenação de uns e absolvição de outros devendo a interrupção alcançar so mente os condenados Também não a interrompe a sentença concessiva de perdão ju dicial visto ter caráter absolutório havendo mais de um réu a sentença somente inter romperá a prescrição quanto aos condenados não atingindo os corréus absolvidos A interrupção ocorrerá com a publicação da sentença em cartório CPP art 389 Nas mesmas circunstâncias interromperá a prescrição o acórdão do tribunal que condenar o réu absolvido em primeiro grau ou confirmar a sentença condenatória a quo De acordo com o art 1 17 IV do Código Penal interrompe a prescrição a sentença condenatória recorrível Apesar de o Código se omitir quanto ao acórdão condenatório a doutrina entendia que também este interrompe a prescrição em duas hipóteses a condenação pelo tribunal em ação penal originária b condenação em grau de recurso reformando sentença absolutória É que não obstante o nome acórdão a decisão do tribunal equivaleria a uma autêntica sentença condenatória No entanto distinguiase este acórdão condenatório daquele que confirmava a sentença condenatória de primeiro grau diziase então que este acórdão confirmatório 582 1251 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUNI BI LIDADE da condenação não interrompia a prescrição A interpretação fundavase em dois ar gunjlentos básicos a quando o Código quis referir a decisão confirmatória como causa interruptiva fez expressamente a exemplo da decisão confirmatória da pronúncia in ciso III b não se pode considerar como sentença condenatória recorrível acórdão confirmatório de sentença condenatória recorrível por serem atos judiciais distintos o primeiro é pressuposto do segundo inclusive Do contrário haveria analogia in malam par4em em prejuízo do acusado Exatamente por isso a prescrição era por esta e outras razões bastante frequente já que novos recursos eram interpostos contra o acórdão confirmatório da sentença condenatória recorrível por vezes meramente procrastinatórios a ensejar a decretação de prescrição tendo por termo inicial a sentença condenatória de primeiro grau A Lei nº 1 159607 foi editada justamente com a finalidade de dar efeito interrup tivo também ao acórdão confirmatório da sentença penal recorrível conforme consta expressamente da justificação do Projeto nº 401200322 suprindo a omissão do Código dispondo que a prescrição é interrompida pela publicação da sentença ou acórdão condenatório recorríveis Apesar disso alguns autores23 ainda afirmam que a omissão persiste o acórdão confirmatório da sentença condenatória recorrível não interrompe a prescrição Dizem que ia lei se limitou a dispor sobre tema já pacificado na jurisprudência o acórdão que provendo recurso da acusação condenar o réu interrompe a prescrição idem acórdão que condenar em ação penal originária O equívoco é manifesto Primeiro porque esta lei não faz distinção entre acórdão condenatório e confirma tóriÓ da sentença condenatória distinção que é própria da decisão de pronúncia por outras razões no particular a distinção é arbitrária portanto Segundo porque o acór dão que confirma a sentença condenatória a substitui Terceiro porque este acórdão é tão condenatório quanto qualquer outro Quarto porque a distinção implicaria conferir a este acórdão efeito próprio de absolvição Quinto porque não faria sentido algum que I º acórdão que condenasse pela primeira vez interrompesse o prazo prescricional e o acordão que mantivesse a condenção anteriormente decretada não dispusesse desse mesrio poder 22 1Diz a justificação Senador Magno Malta que sabemos que no âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido o entendimento de que o acórdão confirmatório da condenação de primeira instância não é causa interruptiva da prescrição justamente por conta da ausência de expressão previ são legal A presente proposição nesse sentido contribuirá para dirimir os conflitos de interpretação consolidando a posição mais razoável de que o acórdão confirmatório da sentença recorrivel também interrompe a prescrição 23 Nesse sentido Fábio Machado Delmanto e outros Lei nº 1 1 596 Alterações ao art 1 1 7 do Código 1Penal ln Boletim do IBCCrim S Paulo ano 15 nº 1 82 janeiro2008 p 7 Idem Robson Antônio Galvão da Silva e Daniel Laufer Prescrição alteração trazida pela Lei nº 1 1 5962007 ln Boletim do IBCCrim nº 1 83 fevereiro de 2008 583 PAULO QlJ E I RDZ Finalmente se os argumentos no sentido de distinguir acórdão condenatório e confirmatório faziam sentido antes da reforma já agora não fazem mais A interpre tação parte assim de um panorama legislativo e pois doutrinário e jurisprudencial superado Notese mais que rigorosamente falando não existe acórdão confirmatório de condenação seja porque em tese o tribunal reexamina a prova os fundamentos fáti cos e jurídicos da decisão impugnada seja porque não raro procede à revisão da pena altera a capitulação jurídica dos fatos ou absolve total ou parcialmente alguns dos réus Também por isso o assim chamado acórdão confirmatório é em verdade um acórdão condenatório formal e materialmente É evidente que a lei poderia ser mais explícita consignando por exemplo que interromperá a prescrição a sentença o acórdão condenatório ou confirmatório da condenação mas tal referência seria absolutamente desnecessária por tudo que já se disse muito especialmente acórdão confirmatório de condenação é acórdão condena tório e não absolutório ou similar a pressupor e exigir assim tratamento uno Assim doravante todo e qualquer acórdão que importar em condenação quer em ação penal originária quer em grau de recurso sempre interromperá a prescrição24 d Início ou continuação do cumprimento da pena Cuidandose de prescrição da pretensão executória a interrupção ocorrerá com o início do cumprimento da pena ou no caso de fuga ou suspensão da execução com a sua continuação e Reincidência A reincidência interrompe a prescnçao da pretensão executiva exclusivamen te não se aplicando à prescrição da pretensão punitiva em quaisquer de suas formas 24 Nesse sentido decidiu o STF A Lei l 1 5962007 ao alterar a redação do inciso IV do art 1 17 do CP Art 1 17 O curso da prescrição interrompese IV pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis apenas confirmara pacífico posicionamento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que o acórdão condenatório revestese de eficácia interruptiva da prescrição penal Com base nesse entendimento a Turma indeferiu habeas corpus em que pleiteada a declaração de extinção da punibilidade do paciente que inicialmente condenado por abuso de autoridade Lei 489865 art 4º a tivera sua sentença reformada pelo tribunal de justiça local para a prática do crime de extorsão sendo este acórdão anulado pelo STJ no tocante à causa especial de aumento de pena Inicialmente aduziuse ser juridicamente relevante a existência de dois lapsos temporais a saber a entre a data do recebimento da denúncia e a sentença condenatória e b entre esta última e o acórdão que reformara em definitivo a condenação já que o acórdão que modifica substancialmente decisão monocrática representa novo julgamento e assume assim caráter de marco interruptivo da prescrição Tendo em conta a pena máxima cominada em abstrato para o delito de extorsão simples ou a sanção concreta mente aplicada constatouse que no caso a prescrição não se materializara O Min Marco Aurélio ressaltou em seu voto que a mencionada Lei 1 1 5962007 inse1ira mais um fator de intenupção pouco importando a existência de sentença condenatória anterior sendo bastante que o acórdão ao confir mar essa sentença também por isso mesmo mostrese condenatório HC 92340SC Rei Min Ricardo Lewandowski 1 832008 HC92340 584 125 1 CAUSAS DE EXTINÇÃO DE PUN I BI L I DADE ordinária retroativa superveniente Quanto aos réus reincidentes portanto além da própria sentença penal condenatória que implica a reincidência o trânsito em julgado dessa nova sentença passará a interromper o prazo prescricional já que não basta o simples cometimento de novo crime após o trânsito em julgado em razão do princípio da presunção de inocência A reincidência como se pode notar pode produzir dois distintos efeitos importa em aumento do prazo prescricional art 1 10 e interrupção do prazo da prescrição da pretensão executória 585 PAULO QEIROZ mínimo para reparação dos danos causados pela infração considerando os préjuízos sofridos pelo ofendido Transitada em julgado a sentença penal promoverseá no juízo cível unicamente a liquidação por ser um título judicial em parte incompleto CPP art 63 a fim de apurar o quantum a ser indenizado ficando assim prejudicada toda discussão sobre a prova da materialidade autoria e ilicitude do fato Naturalmente que a sentença condenatória só pode ser executada no juízo cível contra quem foi réu na ação penal pois para acionar o responsável civil que nela não tenha figurado como acusado será necessária a ação cível específica servindo a con denação penal como elemento de prova e não como título executivo1 Como a lei menciona a sentença penal condenatória fica por consequência ex cluída toda e qualquer decisão que tenha caráter absolutório a exemplo da que reco nhece excludentes de ilicitude ou de culpabilidade Também não fazem coisa julgada no cível por não terem natureza condenatória a a sentença que concede perdão judicial Súmula 1 8 do STJ b a sentença que reconhece a prescrição da pretensão punitiva ordinária e extraordinária de modo que só a prescrição da pretensão exe cutória não impede a execução no cível c a sentença que homologa a composição e a transação penal Lei nº 909995 Quanto à sentença que declara a inimputabilidade do agente por doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado CP art 26 a doutrina majoritária entende que não faz coisa julgada no cível por se tratar de decisão absolutória exceção feita à hipótese do parágrafo único do art 26 semiimputabilidade ainda que a pena seja substituída por medida de segurança Parecenos porém que a sentença que aplica a medida de segurança há de pressu por todos os requisitos do crime fato típico ilícito e culpável motivo pelo qual há de também fazer coisa julgada logo a sentença tem natureza mista é a um tempo conde natória e absolutória porque assim trata o Código de Processo Penal Se eventualmente o condenado for absolvido em revisão criminal hipótese em que a sentença será desconstituída perderá o caráter de título executivo judicial Conforme vimos quando aplicada pena de prestação pecuniária CP arts 43 I e 45 1 º o valor pago será deduzido do montante da eventual condenação em ação de reparação civil ou em execução de sentença penal condenatória se coincidentes os be neficiários A mesma dedução deve ser feita quando o juiz criminal houver fixado valor mínimo da indenização 22 Confisco em favor da União dos instrumentos e produtos do crime Outro efeito automático decorrente da condenação é a perda em favor da União ressalvado o direito do ofendido ou terceiro de boafé a dos instrumentos do crime 1 Cezar Bitencourt Manual cit p 664 588 1261 Dos EFEITOS DA CONDENAÇÃO desde que consistam em coisas cujo fabrico alienação uso porte ou detenção cons titua fato ilícito b do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito obtido pelo agente com a prática do fato criminoso art 91 II a e b Como a lei fala de condenação por crime ficariam excluídas as contravenções mas há posicio namento em sentido contrário com base no art 1 º da LCP A primeira hipótese compreende as instrumenta sceleris que são os objetos utili zados pelo agente no cometimento do crime revólver faca moeda falsa etc Todavia nem todos os instrumentos são passíveis de confisco Com efeito a lei exige que sejam coisas cujo fabrico alienação uso porte ou detenção constituam fato ilícito Assim o automóvel ou a aeronave eventualmente utilizados no roubo no contrabando ou desca minho etc não podem ser confiscados por esse motivo pois não são coisas de fabrica ção porte ou uso ilícitos A segunda hipótese compreende as coisas adquiridas diretamente com o crime assim como toda e qualquer vantagem dele resultante como bens móveis ou imóveis adquiridos com contrabando ou descaminho extorsão mediante sequestro etc Já ago ra diferentemente da hipótese anterior são confiscáveis automóveis aeronaves etc que tenham sido adquiridos com o produto do crime Já o tráfico ilícito de drogas tem tratamento constitucionallegal específico e par ticularmente drástico uma vez que a Constituição art 243 previu expressamente a expropriação confisco de glebas utilizadas para cultura de plantas psicotrópicas bem como de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfi co ilícito de entorpecentes e drogas afins Mas tal confisco só pode ocorrer segundo os princípios que a própria Constituição consagra notadamente os princípios do devido processo legal e proporcionalidade Tratandose de crime ambiental Lei nº 960598 art 25 serão confiscados os ins trumentos utilizados na prática da infração independentemente de serem coisas cujo fabrico posse ou uso seja produto de crime v g moto serra ferramentas Desnecessário dizer que o confisco não se confunde com a simples apreensão dos bens que é seu pressuposto Além do mais a apreensão poderá compreender não só os bens confiscáveis mas todos os objetos que tiverem relação com o crime e não podem ser restituídos quando interessarem ao processo CPP art 118 Pode ocorrer de tramitar simultaneamente junto à Administração processo ad ministrativo visando ao perdimento do bem caso em que competirá à Administração deliberar a esse respeito independentemente do que o juízo cível decida Convém notar por fim que o Decreto nº 56872006 que promulga a convenção das Nações Unidas contra a corrupção prevê art 31 embargo preventivo apreensão e confisco a do produto de delito qualificado de acordo com a aludida convenção ou de bens cujo valor corresponda ao de tal produto b dos bens equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados utilizados na prática de delitos qualificados con forme a convenção 589 PAULO QJ E I ROZ 3 EFEITOS ESPECÍFICOS Os chamados efeitos específicos da condenação diferentemente dos efeitos ge néricos não sendo automáticos devem ser declarados na sentença expressa e funda mentadamente art 92 parágrafo único São específicos porque somente podem ser aplicados a determinadas infrações e desde que haja nexo entre o crime que se comete e o efeito que se impõe a saber 1 perda de cargo função pública ou mandato eletivo 2 incapacidade para o exercício de poder familiar tutela ou curatela 3 inabilitação para dirigir veículo 31 Perda de cargo função pública ou mandato eletivo A aplicação de tal efeito requer o concurso de dois requisitos a aplicação de pena de prisão igual ou superior a um ano b abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública Semelhante possibilidade não se confunde com a pena similar de interdição tem porária de direitos por duas razões primeiro porque tecnicamente pena não é mas um efeito reflexo da condenação segundo porque aqui há a perda de cargo função pública ou mandato eletivo enquanto lá há a só interdição temporária Não é possível a aplicação simultânea de ambas pena e efeito da condenação pois isso implicaria bis in idem Aliás dáse uma impossibilidade lógica visto que decretada a perda frustrase a possibilidade de interdição temporária consequente mente Nos crimes comuns em que não há relação com a Administração Pública idênti co efeito poderá ser emprestado à sentença condenatória desde que seja imposta pena superior a quatro anos Convém lembrar que a Constituição CF arts 15 III e 55 VI prevê que a con denação criminal transitada em julgado implicará a perda ou suspensão de direitos políticos enquanto durarem seus efeitos Exatamente por isso a Súmula 9 do Tribunal Superior Eleitoral TSE dispõe que a suspensão dos direitos políticos decorrentes de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena independendo de reabilitação ou prova de reparação dos danos No caso de condenação de membro do Congresso Nacional Câmara e Senado compete à respectiva casa legislativa decidir sobre a perda do mandato CF art 55 2 32 Incapacidade para o exercício do poder familiar tutela ou curatela Também constitui efeito específico da condenação a incapacidade para o exercício do poder familiar tutela ou curatela sempre que se trate de crime doloso punido com pena de reclusão praticado contra filho tutelado ou curatelado Para decretálo não se exige ao menos em princípio abuso ou violação dos de veres inerentes a tais múnus pois a lei presume iuris et de iure a incompatibilidade quando o agente for condenado por crime doloso ao qual se imponha pena de reclusão 590 1261 Dos EFEITOS DA CONDENAÇÃO Devendo tal efeito ser expressamente declarado a sentença deverá justificar sua necessidadeadequação fundamentadamente Também o Código Civil art 1637 parágrafo único prevê a suspensão do exercí cio do poder familiar ao pai ou mãe condenados por sentença irrecorrível em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão Naturalmente que tal suspensão não se dará automaticamente mas somente nos casos em que houver conexão entre a in fração penal praticada e o exercício do poder familiar princípio da adequação como abusos sexuais assédio sexual estupro ou materiais abandono material maustratos lesões corporais contra os filhos pois sentido algum faria decretar a suspensão em ca sos de condenação por crimes que nenhuma relação guardem com o exercício do poder familiar sonegação fiscal crime eleitoral etc 33 Inabilitação para dirigir veículo Por fim poderseá decretar a inabilitação para dirigir veículo quando utilizado como meio para a prática de crime doloso Consequentemente no caso de crime culpo so só caberá a aplicação da pena restritiva de direito similar 591 PAULO QIJEIROZ prova inquéritos arquivados etc motivo pelo qual no particular o instituto é útil principalmente para afastar o uso de tais registros como maus antecedentes3 O argumento não procede porém Primeiro porque a reabilitação tem por finali dade suspender exclusivamente alguns efeitos específicos da condenação não se apli cando aos casos de absolvição etc uma vez que o inocente ou pessoa que se presume como tal nada tem do que se reabilitar nem teria interesse de agir para tanto segundo porque se pudéssemos dar à reabilitação interpretação tão ampla o mesmo poderia também ocorrer quanto ao art 202 da LEP que no essencial tem a mesma redação terceiro porque ainda que comum na prática forense o uso de processos ou inquéritos arquivados como maus antecedentes ofende o princípio da presunção de inocência Sú mula 444 do STJ E pretender reabilitar inocentes é um absoluto contrassenso Nenhum outro efeito pode resultar da sentença concessiva da reabilitação visto que o condenado reabilitado continua reincidente para todos os efeitos legais tem o dever legal de indenizar eventuais vítimas do crime subsiste o confisco decretado na sentença condenatória etc Parecenos portanto que a reabilitação tal como se encontra hoje disciplinada é grandemente inútil a justificar a sua abolição pura e simples ou a sua total reformu lação porque incapaz de efetivamente reabilitar o condenado É também evidente que não se pode falar de recuperação do status quo ante decorrente da reabilitação até porque tal seria impossível A reabilitação só poderá ser requerida depois de decorrido o prazo de dois anos do dia em que foi cumprida ou extinta a pena por qualquer modo computandose para esse efeito o período de prova da suspensão condicional da pena ou do livramento condicional se não ocorrer revogação Além disso o requerente deverá atender aos seguintes requisitos a ter domiciliado no país nesse prazo de dois anos b ter demonstrado bom comportamento público e privado durante esse período c ter reparado o dano salvo impossibilidade de fazêlo Deferida a reabilitação poderá ser eventualmente revogada de ofício ou a reque rimento do Ministério Público se o reabilitado for condenado como reincidente por decisão definitiva à pena que não seja de multa Portanto a revogação só ocorrerá se a nova condenação for a pena de prisão ainda que eventualmente substituída por pena restritiva de direito e dentro do prazo legal de cinco anos porque se expirado esse prazo cessará a reincidência Também se a nova condenação não implicar reincidên cia por não ser a hipótese de prática de novo crime após o trânsito em julgado de sen tença penal condenatória ou for por crime militar ou político próprios a reabilitação subsistirá Quando revogada a reabilitação o reabilitando votará à situação anterior à sentença concessiva 3 Direito Penal cit p 87087 1 594 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO Nicola Dicionário de filosofia São Paulo Martins Fontes 2003 ABEL Gunter Verdade e interpretação in Nietzsche na Alemanha São Paulo Discurso editorial 2005 ALEXY Robert Teoria da argumentação jurídica Trad Zilda Silva São Paulo Landy 200 1 AMBOS Kai A Parte Geral do Direito Penal Internacional São Paulo RT 2008 ANCEL Marc A nova defesa 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