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Direito Penal

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Sociologia da violência do crime e da punição Vol 2 Coleção Percursos Criminológicos Gustavo Noronha de Ávila Marcus Alan Gomes Coords Sociologia da violência do crime e da punição Pablo Ornelas Rosa Humberto Ribeiro Junior Carmen Hein de Campos Aknaton Toczek Souza editora Copyright 2017 DPlácido Editora Copyright 2017 Pablo Ornelas Rosa Copyright 2017 Humberto Ribeiro Junior Copyright 2017 Carmen Hein de Campos Copyright 2017 Aknaton Tokzec Souza Editor Chefe Plácido Arraes Produtor Editorial Tales Leon de Marco Capa projeto gráfico Letícia Robini Diagramação Enzo Zaqueu Prates Catalogação na Publicação CIP Ficha catalográfica ROSA Pablo Ornelas JUNIOR Humberto Ribeiro CAMPOS Carmen Hein de SOUZA Aknaton Tokzec Sociologia da violência do crime e da punição Belo Horizonte Editora DPlácido 2017 Bibliografia ISBN 9788584255429 1 Direito 2 Direito Penal I Título II Autor CDU343 CDD3415 Editora DPlácido Av Brasil 1843 Savassi Belo Horizonte MG Tel 31 3261 2801 CEP 30140007 Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por quaisquer meios sem a autorização prévia do Grupo DPlácido W W W E D I T O R A D P L A C I D O C O M B R Sumário Apresentação 9 1 Nascimento da sociologia da violência do crime e da punição 11 11 O crime na história e a história do crime 11 12 O Estado moderno e o evolucionismo 24 13 O crime na sociologia clássica 37 14 Referências 48 2 A Primeira Geração da Escola Sociológica de Chicago Ecologia Criminal e Teoria da Desorganização Social 51 21 A formação da Universidade de Chicago 51 22 Uma sociologia da cidade 54 23 Pesquisas sobre gangues e delinquência juvenil 62 24 Associação diferencial de Sutherland 66 25 O legado da Escola de Chicago 69 26 Referências 71 3 Um Segundo Momento da Escola Sociológica de Chicago Howard Becker e Erving Goffman 73 31 Uma segunda escola de Chicago 73 32 Etnometodologia e Interacionismo 77 33 Howard Becker 81 34 Carreira criminal 87 35 Erving Goffman 93 36 Principais obras 94 37 Referências 102 4 A Criminologia Crítica a partir do olhar de Alessandro Baratta 105 41 Desconstruindo a ideologia da defesa social 105 42 A criminologia crítica e o novo método de aproximação do fenômeno do crime 110 43 Do labeling approach à criminologia crítica a seletividade do sistema de justiça criminal 116 44 Referências 124 5 Gênero e Criminologia Feminista uma revisão das críticas feministas às criminologias 127 51 Ponderações sobre gênero e as criminologias 127 52 Teoria das subculturas criminais 129 53 A teoria das associações diferenciais 134 54 As teorias do controle 136 55 A teoria do controle de Garland 140 56 As teorias do desvio 146 57 A criminologia crítica 148 58 Referências 155 6 Uma Genealogia do Poder em Foucault 159 61 Atravessamentos do poder 159 62 Diferentes contextos e operacionalidades do poder 164 63 Biopolítica e racismo de Estado 174 64 Referências 180 7 O Homo Sacer e o Estado de Exceção em Giorgio Agamben 181 71 Homo Sacer 183 72 O estado de exceção vigência sem significado e força de lei 189 73 Contribuições de Agamben para a análise das políticas de controle dos crimes e das violências no Brasil 201 74 Referências 204 8 Loïc Wacquant Encarceramento em Massa e Criminalização da Pobreza no Neoliberalismo 207 81 As transformações do capitalismo do século XX e a ascensão do neoliberalismo 209 82 Do Estado Providência ao Estado Penitência 216 83 Encarceramento em massa e criminalização da pobreza no Brasil 231 84 Referências 237 9 Abolicionismo Penal Uma Reviravolta no Sistema de Justiça Criminal 239 91 Problematizações acerca da perpetuação de linguagens punitivas 239 92 Hulsman e as penas perdidas 246 93 Christie e um outro abolicionismo penal 253 94 Tendências abolicionistas no Brasil 257 95 Referências 262 9 Temos a alegria de apresentar o segundo volume da coleção Percursos Criminológicos Sociologia da Violência do Crime e da Punição Aliando densidade de análise com uma linguagem direta e objetiva os autores nos trazem uma obra original e que representa a discussão das principais e atuais questões da crítica criminológica Evitando a obviedade das análises meramente histori cistascronológicas osas autoresas se mostram preocu pados com aspecto essencial às sustentações das everyday theories a ideia de permanência Isto é feito através da incomum aproximação de campo fundamental das hu manidades a história das ideias um entrelugar entre a filosofia e a história Recuperando autores clássicos como La Boetié os autores demonstram a continuidade das discussões entre os defensores das teorias do consenso e aqueles preocupados com liberdades não outorgadas regradas quantificadas e medidas É montado verdadeiro caleidoscópio a partir do qual podemos identificar as matrizes que sustentam os castigos diários Temos uma verdadeira obra de referência para quem quer compreender as escolas sociológicas do crime Não apenas por constituir os percursos dos controles sociais bem como por vincular constantemente estes itinerários à realidade brasileira Se há uma certeza em relação ao Apresentação 10 crime como experiência humana é a de que ele não pode ser compreendido em sua vasta amplitude abrangidas também nesse universo as agências formais e informais de controle e sua dinâmica de reação a quem é tomado por desviante sem o suporte teórico fornecido pelo pensa mento sociológico que rompe paradigmas e questiona a lógica legitimadora construída pela dogmática Todas estas características nos proporcionam um texto riquíssimo cuja utilização é recomendada não apenas aos iniciantes nos estudos das criminologias bem como aos pesquisadores mais experientes Compreender o crime também é compreender as estruturas que o sustentam A leitura de Sociologia da Violência do Crime e da Punição auxilia de forma determinante nesta tarefa Uma ótima leitura Gustavo Noronha de Ávila Marcus Alan Gomes 11 1 11 O crime na história e a história do crime A existência de situaçõesproblemas conflitos rela ções de poder violências em suas mais distinta formas ou mesmo as guerras dentre outros aspectos que pressupõe a tentativa de exercício da força de um sujeito ou grupo sobre outro é algo presente em praticamente todas as sociedades existentes Portanto embora ao longo dos anos se tenha buscado tratar de tais inconvenientes que habitam nossas relações cotidianas dificilmente conseguiremos evitar a incidência desse tipo de tortuosidade O que ocorre é que no decorrer das histórias das civilizações cada sociedade passou a se fundar inicialmente de uma determinada forma com suas organizações sociais regras estruturas hierarquias composições políticas admi nistrativas etc inclusive tratando daqueles atos entendidos como violentos por uns e não por outros de maneira distin ta no sentido de contêlos eou minimizálos No entanto foi a partir da constituição das sociedades modernas que passamos a racionalizar de maneira mais precisa e através da compleição de ordenamentos jurídicos sobre quais seriam as condutas aceitas socialmente e quais deveriam ser recusadas uma vez que estas poderiam ofender os inte resses de alguém ou algum grupo As recusadas poderiam Nascimento da sociologia da violência do crime e da punição uma introdução 12 ser entendidas como violência e de acordo com o seu hipotético potencial ofensivo transformadas em crimes na medida em que foram se estabelecendo legalmente diferentes tipos de sanções de acordo com uma escala hierárquica racionalizada visando a repressão contenção e sobretudo a punição daquele sujeito que violou aquilo que foi estabelecido como regra social Há ainda alguns que poderiam argumentar na defesa de pontos de vista menos realistas que adicionariam a essa lista de características a chamada ressocialização A palavra violência assim como nas demais línguas latinas e no inglês por exemplo é oriunda do latim violentia que significava a força que se usa contra o direito e a lei conforme mostrou Misse 2011 Desse modo violento violentus eram aqueles sujeitos que agiam de maneira impetuosa intensa excessiva e exagerada tendo o emprego retórico dessa palavra possibilitado lhe conferir significados cada vez mais amplos que vão desde expressões cunhadas no senso comum ou atribuições a condições naturais como a violência dos ventos até mesmo construções teóricas mais recentes a exemplos da violência simbólica BOURDIEU PASSERON 2010 violência de gênero BUTLER 2008 violência epistêmica SPIVAK 2010 dentre outras É importante destacar que foi somente com o advento da modernidade principalmente a partir da consolidação dos Estados modernos que parte daquelas condutas tidas socialmente como violentas passaram a ser judicializadas e portanto tratadas penalmente como delito através da criação e implementação das leis Assim ao criminalizar o uso da força nas situaçõesproblemas encontradas cotidia namente o Estado moderno passou a exercer a violência de maneira legítima ao mesmo tempo em que os cidadãos foram abandonando o recurso hodierno da força inclusive do uso de armas 13 No entanto antes de darmos início a apresentação dos primeiros autores e escolas que desenvolveram distintos entendimentos sobre o crime e da punição faremos uma espécie de exposição acerca do primeiro processo de racio nalização do tratamento dado aquelas condutas não aceitas socialmente que na tentativa de serem contidas passaram a racionalizar os castigos físicos e mentais sobretudo a partir da emergência dos Estados modernos Também é impor tante destacar que todos os fundamentos utilizados na pro dução das leis nesse contexto seguiam condicionamentos e principalmente determinações daqueles que ocupavam inquestionavelmente as maiores posições na hierarquia como ocorria por exemplo nos soberanos dos Estados absolutistas ou mesmo no próprio período inquisitorial Embora se possa argumentar que é possível localizar outros tipos de tratamento dado aquelas condutas que poderíamos chamar de crime em outros momentos da história que precedem a Inquisição como por exemplo a Lei de Talião encontrado no Código de Hamurabi de 1780 aC localizado no Reino da Babilônia ou mesmo o Código UrNammu que provavelmente tenha vigorado entre os Sumérios da Mesopotâmia de 4000 aC à 1900 aC Anitua 2008 justifica a localização do tratamento dado ao crime no período inquisitorial por entender que foi naquele contexto que surgiram as primeiras agências que passaram a racionalizar a aplicação dos castigos em decorrência da localização de uma suposta verdade visando localizar o ato violador a ordem social dominante Segundo o autor o primeiro modelo integrado de tratamento formal daquilo que paulatinamente passou a se chamar no Ocidente de crime se deu através da Inqui sição Esse sistema penal e processual penal genuíno que emergiu no ano de 1215 no quarto Concílio de Latrão tinha como finalidade a perseguição dos hereges de cáta ros do Languedoe É interessante observar que o poder 14 punitivo hoje existente surgiu a partir da necessidade da Igreja e de certos corpos políticos nascentes de coibir ou reagir a ação de certas interpretações religiosas ANI TUA 2008 p 52 A repressão utilizada pelo tribunal jurídicoteológico da Inquisição contra os hereges possibilitou o aparecimento das primeiras equipes integradas por especialistas em con seguir arrancar a verdade através da imposição deliberada da dor e dos sofrimentos físicos e mentais decorrentes do uso de técnicas de tortura Desse modo não se buscava mais castigar um sujeito com sua expulsão da comunidade em decorrência de uma suposta infração cunhada na prática herege mas visava a integração desse dissidente através da força eclesiástica A Inquisição foi a primeira agência burocratizada dominante destinada à aplicação de castigos e à definição de verdades e por isso a primeira a formular um discurso criminológico ANITUA 2008 p 54 O sistema penal que nasceu nessa época tomou essa como referência do outro como um in ferior e também como um inimigo ideia que existia na Idade Média e ainda lhe adicionou uma maquinaria capaz de tornar esse tratamento extensivo aos habitantes do mesmo solo os quais podem ser mudados convertidos e utili zados Este modelo de usar o poder de aplicar penas e de averiguar verdades é consubstancial igualmente a uma política fundamental e fundamentalista impulsionada desde então e mais uma vez pela Igreja Católica Como objetivo de impedir as lutas entre reinos cris tãos e para poder assim expandir os terrenos necessários para o desenvolvimento capitalista a outras zonas ganharia impulso nesses anos aque le gigantesco movimento chamado Cruzada Esse movimento se mostraria útil para reforçar uma ideia de cristandade unificada mas também se revelaria fundamental para ampliar o merca 15 do nascente com novas conquistas e empresas para realizalas e solidificar os jovens Estados nacionais com a criação da ideia de franceses e de outros grupos organizados para a guerra ANITUA 2008 p 51 Para Anitua 2008 o tribunal jurídicoteológico da Inquisição foi integrado inicialmente por sacerdotes juristas letrados que agiam como fanáticos religiosos e que passa ram a ser paulatinamente substituídos por funcionários que continuaram cumprindo com certa frieza despersonalizada a finalidade repressora de tal organização Todavia tudo isso só foi possível porque houve certo deslocamento das ações desse tribunal que passou da repressão estabelecida na Provença e no Russilhão através da coroa de Aragão em 1238 à luta contra o pecado identificado com o crime de lesamajestade e portanto heresia O processo penal que nascia com a Inquisição se iniciava com a prisão preventiva do acusado de heresia tendo seus bens confiscados e sendo destinado em seguida a um interrogatório que visava a confissão Caso negasse ter cometido o crime do qual era acusado seria tratado como obstinado podendo acarretar consequências mais graves tanto do ponto de vista do sofrimento físico quanto psíquico A utilização da tortura visava averiguar a verdade além de purificar os pecados com a aplicação do tormento que levava a morte significativamente apresentada sob a imagem da fogueira Não obstante esse método de averiguação da verda de presente nas práticas dessa corporação clerical passou a ser incorporado pela justiça real durante todo o período em que vigorou o absolutismo na Europa É importante destacar que o período chamado de Renascimento que precede o momento da Inquisição corroborou a consoli dação do absolutismo monárquico bem como incentivou 16 a unidade centralismo e organização burocrática de al guns Estados nos séculos XV e XVI como por exemplo na Espanha com Fernando o católico em Portugal com Henrique o navegador na Inglaterra com a Henrique VII e a família Tudor na Rússia com Ivan o terrível na Áustria sob os Habsburgo dentre outros Assim embora se buscasse justificar a autoridade não era qualquer tipo de exercício de poder que era validado e exercido nessas relações mas sim um novo tipo monárquico estatal Enfim todos esses monarcas trabalhariam para afirmar os Estados centrais os que teriam mais cotas de poder sobre os nobres os bispos e as comunidades locais Foram estes monarcas absolutistas e não os revolucionários que vie ram depois que fundaram os Estados fortes e centralizados mediante poderosas burocra cias O rei e suas burocracias encarregadas de reprimir e cobrar tributos oscilariam durante todo o período entre a manutenção de dois grupos opostos entre si por seus interesses a nobreza e a burguesia A busca e a satisfação de riqueza de status de uma e de outra às custas dos pobres e dos colonizados seriam a carac terística social do absolutismo monárquico ANITUA 2008 p 90 Foi no final desse período que se convencionou cha mar de Idade Média e início da Idade Moderna que visu alizouse com mais veemência o enfraquecimento do que restava do poder feudal concomitantemente ao crescimento da burguesia comercial A emergência de uma nova for ma de racionalizar a política e sobretudo o poder estatal pode ser encontrada com mais intensidade nas monarquias absolutistas e nas estratégias que visavam naturalizar o exercício do poder do Estado nas mãos de um soberano Todavia as primeiras explicações que apareceram acerca 17 da ordem e do conflito possibilitaram com que houvesse certa governamentalização do Estado1 conforme ponderou Foucault 2007 Desde o século XVIII vivemos na era da gover namentalidade Governamentalização do Estado que é um fenômeno particularmente astucioso pois se efetivamente os problemas da governa mentalidade as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política a governamentalização do Es tado foi o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver Se o Estado é hoje o que é é graças a esta governamentalidade ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado o que é público ou privado o que é ou não estatal etc portanto o Estado em sua sobrevivência e em seus limites deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade FOUCAULT 2007 p 292 A partir do momento em que os Estados modernos passaram a se consolidar surgiu a necessidade de construir 1 Foucault 2007 entende por governamentalidade 1 o conjunto instituído pelas instituições procedimentos análises e reflexões cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante es pecífica e complexa de poder que tem por alvo a população por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança 2 a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente durante muito tempo à preeminência deste tipo de poder que se pode chamar de governo sobre todos os outros soberania disciplina tec e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes 3 o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo foi pouco a pouco governamentalizado FOUCAULT 2007 p 291292 18 estratégias que visassem manter essa suposta ordem social reprimindo quaisquer ações que viessem a questionar o exercício do poder por parte do soberano Nesse contex to era extremamente necessário produzir determinados saberes incorporados a reflexões de cunho teórico que garantisse a perpetuação do poder dos Estados localizados inicialmente na figura do soberano sendo que os conflitos sociais questionadores dessa ordem vigente deveriam ser contidos de alguma forma sobretudo a partir de certa violência estatal Assim a forma mais conveniente para o Estado a ser empregada do ponto de vista da contenção dessas situaçõesproblemas era utilizar aquelas mesma téc nicas de contenção e extermínio dos hereges encontradas no período da Inquisição entretanto desprendendose paulatinamente da tutela da Igreja Talvez se possa assim de maneira global pouco elaborada e portanto inexata reconstruir as grandes formas as grandes economias de po der no Ocidente em primeiro lugar o Estado de justiça nascido em uma territorialidade de tipo feudal e que corresponderia grosso modo a uma sociedade da lei em segundo lugar o Estado administrativo nascido em uma terri torialidade de tipo fronteiriço nos século XV XVI e que corresponderia a uma sociedade de regulamento e de disciplina finalmente um Estado de governo que não é mais essen cialmente definido por sua territorialidade pela superfície ocupada mas pela massa da população com seu volume sua densidade e em que o território que ela ocupa é apenas um componente Este Estado de governo que tem essencialmente como alvo a população e utiliza a instrumentalização do saber econômi co corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança FOUCAULT 2007 p 292293 19 Contudo não foram pouco aqueles que escreveram obras fundamentadas na observação e participação ativa da e na política estatal Certamente um dos pensadores de maior destaque acerca dessas questões foi Nicolau Maquiavel 2007 Considerado por grande parte dos pesquisadores como o fundador de um campo do conhecimento cien tífico chamado de ciência política justamente por propor certa racionalização da política de um ponto de vista real e portanto científico e não conforme faziam os filósofos antigos gregos que pensavam esse campo de um ponto de vista ideal o pensador florentino visava estudar o poder e suas manifestações Embora reconhecesse que a teoria política trata de questões pertinentes a ideia de ordem o que nos levaria considerala como um elemento fundamental no tratamen to do crime Maquiavel 2007 mesmo enquanto teórico do absolutismo acabou produzindo em seus textos ideias que fugiam do dogmatismo e das teorias justificadoras morais ou espirituais conforme mostrou Anitua 2008 No entanto embora tenha escrito O Príncipe propondo ensinamentos acerca de práticas de governo é nesse livro que localizamos a primeira utilização do termo Estado que segundo o autor centralizaria todas as atividades da organização política separada da sociedade no líder político que encarnaria a soberania Ainda que Anitua 2008 argumente que em ou tra grande obra política de Maquiavel 2004 intitulada Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio seja possível encontrar certa inclinação do autor florentino pela forma republicana devido a sua convicção de que nas mãos do povo a liberdade de todos estaria mais segura e estável é importante lembrar que ao tratar da fortuna e principal mente da virtú em sua obra O Príncipe Maquiavel 2007 apresenta aqueles elementos que considera importantes para o indivíduo renascentista inteligência habilidade e 20 capacidade de decisão ou seja características encontradas naqueles príncipes que acreditava serem bem sucedidos No entanto é preciso destacar a controvérsia apresentada por Rousseau acerca da obra de Maquiavel 2004 2007 argumentando que ao fingir dar lições aos príncipes o autor acabou dando grandes lições ao povo sobre técnicas de governo Apesar de ser tratado como um teórico do absolutis mo essas ponderações apresentadas por Rousseau revelam certa imprecisão das intenções de Maquiavel 2004 2007 acerca dos propósitos de sua obra mais célebre ou seja não é possível dizer se o autor escreveu uma obra destinada ao príncipe ou ao povo Não obstante certamente foi o contratualista inglês Thomas Hobbes 2015 quem mais se destacou como representante de certo pensamento político tributário do absolutismo monárquico Segundo o autor a sociedade precisava de um Estado forte necessário para manter a ordem e a segurança Em seus textos mostrava que já não era mais o conflito que explicava a natureza política do Estado mas sim a ordem Hobbes 2015 argumentava que os indivíduos em seu estado de natureza seguiam os seus impulsos e desejos provocando a luta de todos contra todos na medida em que levava a insegurança e ao medo Visando evitar esse inconveniente o autor acreditava na necessidade do estabelecimento de um contrato social que criaria a figura do Estado como um ente artificial chamado por ele de Leviatã título de sua obra mais célebre que protegeria os seus súditos na medida em que eles abrissem mão de sua liberdade em decorrência de uma suposta condição de segurança É importante esclarecer que o fato de Maquiavel 2004 2007 ter se tornado o fundador da ciência políti ca e Hobbes 2015 ser identificado como um dos mais importantes defensores do absolutismo monárquico de sua época só foi possível pelo fato de terem ocupado um 21 espaço fundamental nas sociedades em que viveram tendo a possibilidade de pensar escrever e difundir suas ideias em uma época bastante arriscada já que que não era regi da por elementos legais presentes na contemporaneidade como por exemplo a garantia da liberdade de expressão Isso nos permite argumentar que de alguma forma as suas preleções não apenas eram os discursos da época como certamente contribuíram com a governamentalização do Estado conforme mostrou Foucault 2007 Após termos naturalizado ou melhor governamen talizado o Estado através da produção de certas verdades fundamentadas no estabelecimento dele como algo im prescindível para a nossa existência enquanto sociedade passamos a governamentalizar também a sua própria ra cionalidade e a forma com que trata das relações sociais inclusive daquelas condutas que passamos a tratar como violência e posteriormente como crime Contudo é in teressante questionar o motivo pelo qual uma obra extre mamente crítica tanto a monarquia absolutista quanto ao republicanismo como Discurso da Servidão Voluntária de Étienne de La Boétie 2010 escrito entre os períodos que viveram Maquiavel 2007 e Hobbes 2015 não teve o mesmo impacto que as obras O Príncipe e Leviatã por exemplo Certamente o texto produzido pelo autor francês não potencializou a libertação das amarras de certa verdade amparada no exercício de um tipo de poder centralizado e repressivo encontrado no Estado moderno conforme podemos verificar no trecho abaixo em que La Boétie 2010 questiona a submissão humana ao soberano Por enquanto gostaria somente de entender como tantos homens tantos burgos tantas cida des e tantas nações suportam às vezes um tirano só que não tem mais poder que o que lhe dão que só pode prejudicalos enquanto quiserem 22 suportálo e que só pode fazerlhes mal se eles preferirem tolerálo a contradizêlo Coisa real mente admirável porém tão comum que deve causar mais lástima que espanto ver um milhão de homens servir miseravelmente e dobrar a cabeça sob o jugo não que sejam obrigados a isso por uma força que se imponha mas porque ficam fascinados e por assim dizer enfeitiçados somente pelo nome de um que não deveriam temer pois ele é só um nem amar pois é de sumano e cruel com todos Esta é entretanto a fraqueza dos homens forçados a obedecer obrigados a contemporizar nem sempre podem ser os mais fortes LA BOÉTIE 2010 p 30 Como estamos apresentando inicialmente uma espécie de abordagem historiográfica embora crítica acerca da de finição de crime é imprescindível destacarmos as primeiras escolas que visavam tratar do delito e de suas consequências racionalizáveis de uma forma mais sistematizada e portanto mais próximo daquilo que se convencionou a chamar de ciência Embora o pensamento clássico tenha sido identi ficado de forma acabada somente no século XIX é com Cesare Beccaria 1999 a partir de sua obra Dos Delitos e Das Penas publicado em 1764 que nasce o arcabouço teórico da escola clássica ou classismo conforme mostrou Schecaira 2004 A busca por certa legitimidade encontrada posterior mente naquilo que se convencionou a chamar no campo acadêmico de criminologia sociologia criminal eou an tropologia criminal se deu a partir do nascimento da obra de Beccaria 1999 que propôs à investigação criminal a utilização do conhecimento racional bem fundamentado acerca da verificação das distintas nuances que abarcam essa questão O autor argumentava que a procura do conhe cimento científico acerca do fenômeno criminal é gerida através da ocorrência de três circunstâncias que deveriam 23 acompanhar o processo de investigação Primeiramente haveria certa necessidade racional de se colocar em dúvi da as ideias que dominaram anteriormente a questão do entendimento do crime e o seu consequente tratamento em segundo lugar era necessário o estabelecimento de uma crítica à situação dos sistemas processuais e por fim haveria certa necessidade de se comprovar o nascimento de um novo paradigma da ciência fundamentado na racionalidade Embora tenha produzido uma espécie de síntese das ideias penais iluministas que estavam em curso a concepção filosóficopenal de Beccaria 1999 passou a ser entendida por diversos autores dentre eles Schecaira 2004 como a maior expressão da hegemonia da burguesia no campo das ideias penais Tudo isso motivado pela necessidade de transformações políticas e econômicas uma vez que o autor argumentava que era imperativo a existência de leis simples conhecidas pelo povo e obedecidas por todos Além de argumentar que somente as leis poderiam fixar penas Beccaria 1999 acreditava que não deveria ser permitido ao juiz aplicar sanções de maneira arbitrária Ao propor o término do confisco e das penas infamatórias direcionadas a família do condenado além de sugerir o fim das sanções cruéis dentre elas a morte o autor racionalizou a pena defendendo que o rigor do castigo tem um efeito muito menor acerca do espírito humano do que a duração da pena uma vez que a sensibilidade do julgador pode ser operada de maneira imprecisa potencializando violências desproporcionais advindas do próprio Estado Beccaria 1999 não apenas acreditava que a efetivi dade da lei era mais importante do que o seu rigor como também foi um dos primeiros pensadores a questionar a equivocada dinâmica do sistema de provas que não admitia o testemunho de mulheres nem dava a devida importância as palavras proferidas pelo condenado em sua defesa O seu pensamento esteve marcado pelas mais distintas lutas como 24 por exemplo pelo fim da tortura contra o testemunho secreto e os juízos de Deus ou seja métodos que não per mitiam a obtenção da verdade senão por meio de violências físicas e mentais legitimadas pelo Estado e capitaneadas por representantes daqueles que exercem esse tipo de poder soberano Dos delitos e das penas é a pedra fundamental do direito penal liberal e da própria criminologia clássica razão porque também foi a maior fonte de críticas dos pensadores positivistas SCHECAIRA 2004 p 93 12 O Estado moderno e o evolucionismo Pouco mais de 100 anos após a publicação da obra Dos Delitos e das Penas de Cesare Beccaria Cesare Lom broso 2013 apresenta o seu livro O Homem Delinquente em 1876 inaugurando assim um novo período na crimi nologia que passou a se estabelecer como científico É importante salientar que o pensamento desse autor nasce em um contexto fortemente influenciado pelos escritos de Charles Darwin 2008 naturalista britânico que teve o seu reconhecimento hegemônico no campo científico através da publicação em 1859 de sua obra intitulada A Origem das Espécies em que o autor propõe uma teoria evolucionista amparada na seleção natural e sexual das espécies A influência que a obra de Darwin 2008 exerceu no contexto intelectual europeu e mundial foi tamanha que acabou atingido as mais diversas matizes teóricas abarcando áreas extremamente distintas do campo científico indo desde a biologia até as ciências sociais A criminologia cien tífica ou positivista proposta por Lombroso 2013 assim como a física social que mais tarde passou a se chamar sociologia apresentada por Auguste Comte 1983 em suas obras publicadas a partir da primeira metade do século XIX são dois exemplos de saberes que buscavam certo prestígio decorrente da sua afirmação como uma forma 25 de racionalização específica que se dá pela legitimidade do campo científico Podese dizer que Lombroso foi produto do seu tempo Assim como Beccaria não foi um inova dor enfeixando em sua obra o pensamento do minante da filosofia iluminista aplicada ao direito penal também Lombroso não foi um criador de uma novíssima teoria foi sim alguém que teve a capacidade de recolher o pensamento esparso que vicejava à sua volta para articulálo de forma inteligente e convincente Se para o olhar dos nossos dias seu pensamento pode ser considerado um tanto quanto bizarro suas idéias eram muito aceitas entre os seus contemporâ neos Lombroso emprestou algumas idéias dos fisionomistas para fazer seu próprio retrato do delinquente Examinava profundamente as ca racterísticas fisionômicas com dados estatísticos que verificava desde a estrutura do tórax até o tamanho das mãos e das pernas A quantidade de cabelo estatura peso incidência maior ou menor de barba enfim tudo era circunstancialmente analisado Alguns detalhes eram verdadeiramente precisos SCHECAIRA 2004 p 95 Lombroso 2013 não apenas adotou diversificados parâmetros frenológicos na utilização de exames que visa vam pesar e medir cabeças humanas na busca por elementos que pudessem conferir sentido científico às suas pesquisas sobre o que chamou de criminoso nato como também se utilizou discurso científico dos psiquiatras da época na análise daquilo que era entendido como degeneração dos loucos morais Embora o seu trabalho tenha consistido em verificar a capacidade craniana cerebral sua as medidas de sua circunferência formato diâmetro feição índices nasais detalhes da mandíbula fossa occipital etc tratandose por tanto de elementos de cunho fisiológico o autor também se 26 utilizouse da antropologia evolucionista da época que abar cava os conceitos de atavismo e de espécie não evolucionada Apesar de Lombroso 2013 ter sido questionado posteriormente por meio de críticas apontadas por Gabriel Tarde 1907 2005 acerca do modelo evolutivo organicis ta do século XIX conforme mostraremos adiante o seu genro Enrico Ferri 1900 1996 atuou como seu sucessor na medida em que buscou adaptar a noção de criminoso nato à mais outras quatro categorias de delinquentes que elaborou louco delinquente habitual delinquente ocasional e criminoso passional Além da categoria apresentada por Lombroso 2013 que identificava o criminoso através da verificação de de terminados traços físicos que mostrariam o quão propenso era aquele sujeito para a prática de delitos Ferri 1900 1996 mostrou a especificidade das demais categorias de delinquentes apresentando uma maior complexidade ana lítica se comparado ao seu sogro No entanto sua grande contribuição para o campo da sociologia se deve ao fato de reconhecer que o fenômeno da criminalidade é bastante complexo e atravessado por fatores antropológicos físicos e sociais inaugurando assim uma sociologia criminal A ele Enrico Ferri devem a criminologia e o direito penal se mais não for por ser o criador da chamada sociologia criminal SCHECAIRA 2004 p 99 Assim ao mesmo tempo em que o evolucionismo presente nos estudos de Darwin passou a se afirmar como verdade no campo das ciências biológicas de todo o mundo ocidental a partir do final da primeira metade do século XIX incidindo diretamente nos estudos criminológicos de Lombroso 2013 e seu genro Ferri 1996 1900 naquele mesmo período outros campos científicos fundamentados em uma perspectiva bastante próxima também estavam sendo utilizadas ou passaram a serem usadas no campo social tanto para explicar o desenvolvimento da sociedade 27 europeia em relação às populações indígenas conforme po demos verificar na antropologia evolucionista apresentada no livro Cultura Primitiva de Edward Tylor 1958 publicado em 1871 quanto no incremento da sociologia positivista de Auguste Comte 1983 que passou a publicar suas obras de física social a partir de 1839 alterando posteriormente esse nome para o que o consagrou como fundador do campo científico ou disciplina chamandoa de sociologia A influência de Tylor 1958 foi tamanha que alcançou espaços para além da antropologia evolucionista uma vez que o conceito de cultura ao menos o que é utilizado atualmente por boa parte dos antropólogos advém da junção dos termos germânicos Kultur que simbolizava os aspectos espirituais de certa comunidade e Civilization que se referia principalmente à realização material de de terminado grupo social O trabalho de Tylor 1958 con sistia em mostrar que a cultura pode ser objeto de análises sistemáticas já que se trata de um fenômeno natural que possui supostamente certas causas e regularidades que pro porcionarão uma análise capaz de possibilitar a formulação de leis sobre o processo cultural e a evolução Mais do que preocupado com a diversidade cultu ral Tylor a seu modo preocupase com a igualdade existente na humanidade A diversidade é explicada por ele como o resultado da desigualdade de es tágios existentes no processo de evolução Assim uma das tarefas da antropologia seria a de esta belecer grosso modo uma escala de civilização simplesmente colocando as nações europeias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens dispondo o resto da humanidade entre os dois LARAIA 2003 p 3233 Assim quando estabeleceu uma escala de civilização para pensar de uma maneira supostamente científica a 28 antropologia de sua época justamente por se fundamentar em práticas discursivas amparadas em uma perspectiva evo lucionista que operava historicamente de forma unilinear Tylor 1958 possibilitou que a ciência se direcionasse para uma abordagem etnocêntrica Esse mesmo problema resul tante da influência do evolucionismo pode ser encontrado da sociologia positivista de Comte 1983 quando o autor propõe o princípio dos três estados históricos diferentes teológico metafísico e positivo Comte 1983 ainda argu mentava que no interior do campo científico existia certa hierarquia na qual a matemática se encontrava no nível mais baixo desta escala porém a biologia naquela época chamada de fisiologia e sobretudo a sociologia ocupavam os postos mais altos Embora seja composta por diferentes concepções políticas teóricas e conceituais a sociologia é um campo do conhecimento científico criado recentemente em me ados do século XIX O grande responsável pela atribuição deste nome a este campo do conhecimento foi Auguste Comte 1983 que em sua obra Curso de Filosofia Positiva publicada em 1839 propõe que o termo física social em pregado pelo autor em 1830 mas já utilizado anteriormente por SaintSimon e Thomas Hobbes seja substituído por sociologia No entanto sua grande preocupação ao propor esta nova disciplina se situava na formulação das bases deste campo de saberes sobre a sociedade moderna que emergia se fundamentado na utilização de métodos validados pelo conhecimento científico da época Assim o autor propôs que fossem utilizados às ciências sociais métodos seme lhantes aqueles reconhecidos como validos pelas ciências naturais e exatas daquele período sobretudo amparandose no evolucionismo de Darwin 2008 É interessante observar que ao mesmo tempo em que o evolucionismo de Darwin 2008 influenciou e foi influen ciado pelos pensamentos de Comte 1983 na sociologia 29 positivista Lombroso 2013 na antropologia criminal ou criminologia positivista Tylor 1983 na antropologia evolucionista com cada um desses autores se apropriando de alguns aspectos que já estavam presentes nas diversas práticas discursivas dos campos científicos da época tam bém existiam outros pensadores que questionavam essas concepções que de alguma forma visavam encontrar na realidade social regras que pudessem classificar certo nível de desenvolvimento da sociedade naturalizando a sua con dição como a mais bem dotada de racionalidade enquanto as demais não se encontravam tão evoluídas principalmente por não serem neutras objetivas explicativas dentre outras características presentes na chamada ciência positiva e sua incidência na produção de certo perfil de criminoso No princípio do século XX ganhariam noto riedade os experimentos de polinização cruzada de ervilhas do monge tcheco Gregor Mendel 18221884 e vários biólogos como August Weismann 18431914 e Huig de Vries 1848 1935 fariam observações e melhorias nas teses de Darwin A partir de então seriam nume rosos os trabalhos de árvores genealógicas dos condenados com a finalidade de encontrar o gene da delinquência algo que no entanto já se intuía em trabalhos do positivismo como se exemplificou no de Dugdale O trabalho do já mencionado primo de Darwin o inglês Francis Galton 18221911 teve igualmente grande sucesso no período do apogeu do positivismo Esse autor fundou ou deu nome à eugenia que vem do grego bem nascido A eugenia enquadrada no marco teórico do darwinismo social dominante foi a ciência que aplicaria as leis biológicas de Darwin da seleção natural da herança ao aperfeiçoamento da espécie huma na Isso melhoraria os futuros indivíduos e deste modo forjaria sociedades mais saudáveis 30 e nações mais ricas pois Galton acreditava que a herança seletiva derivaria um Gênio hereditário que afetaria umas e outras este seria o título de sua obra de 1869 ANITUA 2008 p 383 Contudo toda essa atribuição valorativa acerca da sociedade europeia acabou levando essas tradições a ado tarem uma leitura voltada para o consenso na medida em que ele passou a ser associado com a civilidade a ordem o progresso a governamentalização do Estado à naturalização de certas concepções desigualdades segregações etc Tudo isso legitimado não apenas pelo Estado mas pelo campo científico prática discursiva que passou a ser operada como verdade na modernidade Embora todos esses autores tenham construído suas análises fundamentandose no evolucionismo de Darwin 2008 como base para os seus estudos aproximadamente meio século depois desse autor ter escrito sobre a seleção natural mostrando que os animais vão se amoldando pau latinamente a partir da necessidade adaptativa de acordo com o contexto em que estão inseridos o geógrafo russo Piotr Kropoktin 2009 publica Ajuda Mútua Um fator de evolução apresentando uma abordagem bastante crítica e paradigmática acerca dessas perspectivas epistemológica Ao mostrar que a seleção natural não é uma possibilida de evolutiva única e exclusiva Kropoktin 2009 questiona veementemente o determinismo presente no evolucionismo de Darwin 2008 mostrando como a cooperação também foi outro fator chave no processo evolutivo que ocorreu paralelamente à competição Em Ajuda Mútua Um fator de evolução o autor se coloca contrário àquelas ideias evolu cionistas que foram deslocadas das ciências biológicas para as ciências sociais possibilitando a ascensão daquilo que foi chamado darwinismo social a exemplo de certas inter pretações realizadas acerca das obras de Herbert Spencer 31 1864 1907 que ao se fundamentar no evolucionismo de Darwin 2008 e na seleção natural defendeu a necessidade de competição entre indivíduos e grupos sociais para o processo de evolução de uma sociedade Ao reconhecermos que só foi possível Maquiavel 2004 2007 e Hobbes 2015 se tornarem os represen tantes políticos dos discursos de sua época justamente por terem sido de alguma forma protetores de uma ordem fundamentada no Estado moderno ao passo que a crítica ácida da servidão voluntária à estrutura estatal apresentada por La Boétie 2010 permaneceu marginal na literatura política da época e ao ponderarmos sobre os impactos do evolucionismo apresentado por Darwin 2008 em relação ao alcance das críticas assinaladas pertinentemente por Kropoktin 2009 em relação ao determinismo da seleção natural sem levar em consideração a ajuda mútua no processo evolutivo podemos localizar a presença de uma luta por certa legitimidade científica que passa a ser colocada enquanto verdade Nessa explanação foi possível localizar aquilo que Nietzsche 2009 chamou de genealogia uma vez que nos deparamos com forças que operam de maneiras e em situa ções distintas em busca de sua afirmação enquanto verdade Embora na compreensão desse autor não haja começos nem origens exatas já que o que interessa à investigação das descontinuidades de um movimento histórico não li near é procurar aquelas intenções que engendram embates de forças sociais e fluxos de poder a interdição histórica proposta pelo autor rebate veementemente a identificação de um início verdadeiro uma vez que propõe uma sub mersão meticulosa nas reentrâncias do processo histórico apresentando não uma história verdadeira mas uma história efetiva que resiste à metafísica em seu sentido universal buscando sempre analisar os fatos históricos de maneira parcial e localmente 32 No entanto a partir dessas ponderações poderíamos nos perguntar o que o crime tem a ver com tudo isso que foi apresentado até agora acerca das concepções de Estado ciência verdade por exemplo Seguramente essa pergun ta pode ser respondida de uma forma mais complexa se utilizarmos o método genealógico nietzscheano que visa localizar quais as forças que se digladiaram em busca de sua afirmação enquanto verdade de uma época Ao reconhecermos que a primeira forma de racionali zação do crime sistematizada por Beccaria 1999 na segunda metade do século XVIII só foi possível com a precedente criação do Estado moderno na segunda metade do século XV em que Maquiavel 2004 2007 e Hobbes 2015 ainda que de maneiras distintas se apresentaram como os prin cipais representantes e defensores dessa organização social estatal ao averiguarmos que o evolucionismo de Darwin 2008 advindo das ciências biológicas determinou certos condicionamentos sobretudo acerca das ciências sociais na produção de verdades amparadas na seleção natural que passou a incidir na legitimação das mais variados tipos de segregação isso sem falar da governamentalização paulatina de certa natureza humana fundamentada da competitividade principal característica das sociedades capitalistas ao cons tatarmos que não nos constituímos apenas como objetos passivos em meio a produção da realidade social mas também somos sujeitos ativos na medida em que governamentali zamos verdades a partir de práticas discursivas que operam em diferentes épocas construindo necessidades e formas de lidar com várias situaçõesproblemas verificaremos que não apenas o Estado e a ciência enquanto dispositivo de verdade da nossa época mas também a sociologia o crime e a forma de tratalo por meio da punição são construções históricas produzidas a partir de distintos interesses e por meio de forças que se conflitavam em busca de certa consolidação enquanto verdade 33 Assim da mesma forma que crítica de La Boétie se apresentava como oposição à busca por certo consenso em que o Estado moderno se colocava no centro do de bate conforme argumentavam Maquiavel 2004 2007 e Hobbes 2015 da mesma forma que Kropoktin 2009 questionou a seleção natural e o consenso decorrente da naturalização das desigualdades sociais presentes em certas interpretações realizadas a partir da publicação da obra Origem das Espécies de Darwin 2008 principalmente a partir dos escritos de Herbert Spencer 1864 1907 da mesma forma que a antropologia evolucionista de Tylor acreditava que a sociedade se desenvolveria a partir de uma unilinearidade história universal e foi questionado veementemente pela antropologia cultural de Franz Boas 2008 que argumentava que as culturas humanas não percorriam o continuum simplescomplexo presente nas teorias ortogenéticas mostrando justamente que existem diferentes histórias processos fatores acontecimentos cul turais e não culturais dentre outros aspectos que incidem na peculiaridade histórica de cada sociedade tudo isso que apresentamos serviu para mostrarmos como as distintas verdades são produzidas e apresentadas acerca desses jogos de poder que transcorrem a partir daquilo que Nietzsche 2002 chamou de agonística Incessantemente uma qualidade se cinde em si mesma e se divide nos seus contrários perma nentemente esses contrários tendem de novo um para o outro O vulgo é verdade julga re conhecer algo de rígido acabado constante na realidade em cada instante a luz e a sombra o doce e o amargo estão juntos e ligados um ao outro como dois lutadores dos quais ora a um ora a outro cabe a supremacia O mel é segundo Heráclito simultaneamente amargo e doce e o próprio mundo é um jarro cheio de mistura que 34 tem de agitarse constantemente Todo o devir nasce do conflito dos contrários as qualidades definidas que nos parecem duradouras só ex primem a supremacia momentânea de um dos lutadores mas não põem termo à guerra a luta persiste pela eternidade afora Tudo acontece de acordo com essa luta e é esta luta que manifesta a justiça eterna NIETZSCHE 2002 p 42 Em Diferença e Repetição Deleuze 1988 desenvol ve análises influenciadas pelo pensamento de Nietzsche 2002 argumentando que nós apenas buscamos a verdade quando estamos motivados a fazêlo em função de uma situação concreta principalmente quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa procura Desse modo o pensar não é uma tendência natural mas efeito de uma força externa que nos violenta na medida em que se retira certa razão cognitiva Tanto para Nietzsche 2009 quanto para Deleuze 1988 a verdade não é en contrada por semelhança nem boa vontade mas sim por signos involuntários uma vez que o aprender diz respeito essencialmente ao tratamento dado à esses signos que são múltiplos e divergentes Contudo ao verificarmos a complexidade dos mais distintos atravessamentos do evolucionismo nas mais di versificadas áreas do conhecimento científico podemos localizar certa incorporação naturalização ou melhor governamentalização de uma compreensão fundamen tada na ideia de que os escritos de Darwin 2008 acerca da seleção natural pensada não a partir do princípio da adaptabilidade conforme mostrou o autor mas sobretudo a partir da competição e da evolução em decorrência disso potencializou certa verdade acerca de hipotéticos condi cionamentos humanos que talvez pudessem ser entendidos ainda dentro da racionalidade contratualista amparada na existência de uma suposta natureza humana 35 Um fato importante a ser destacado é que a perspec tiva evolucionista apresentada por Darwin 2008 passou a ser utilizada de maneira inadequada em outras áreas do conhecimento científico sendo incorporada como verdade pelas pessoas enquanto senso comum Isso acabou possibi litando certa governamentalização da seleção natural como condicionamento humano fomentando assim os mais diversos tipos de segregação que vão desde perseguições aos hereges no período inquisitorial quanto no tratamento inferiorizado dado em outros momentos da história aos negros escravos estrangeiros mulheres índios dentre ou tros sujeitos entendidos como subhumanos por políticas colonizadoras nos seus mais amplos aspectos e que portanto passaram a ocupar uma condição subalterna nas sociedades não porque são de fato inferiores cognitivamente mas por que foi construída toda uma verdade por essa tradição do pensamento científico que passou a dominar esse campo Ao vislumbrarmos as guerras mundiais na primeira metade do século XX é possível constatarmos os impactos e a perpetuação de certa ordem social fortemente amparada em uma concepção hierárquica sobre o entendimento das distintas condições humanas iniciadas a partir dessa segrega ção iniciada com a governamentalização de certo modelo de Estado de sociabilidade de ciência de ser humano e do entendimento acerca do crime e de como supostamente contêlo através da punição No caso do modelo nazista alemão podemos encon trar nos arianos a reivindicação da superioridade étnica em relação aos demais subalternos pertencentes à outros grupos sociais Da mesma forma podemos encontrar esse mesmo modelo de seletividade e segregação nascido de certa compreensão do evolucionismo de Darwin 2008 nos atuais discursos neoliberais que conseguiram transfor mar uma suposta estratégia de contenção dos conflitos por meio das criminalizações tratadas através das mais distintas 36 formas de punição com a transformação de um sistema de justiça criminal que coloca o preso em uma condição humana subalterna que resulta em ganhos econômicos com a criação de situaçõesproblema conforme mostrou o sociólogo francês Loïc Wacquant 2001 2003 ao tratar da ascensão do que chamou de Estado penal Ao ponderarmos sobre a forma com que o evo lucionismo manifestado na obra de Darwin 2008 foi interpretado na sociedade europeia do século XIX pode ríamos nos questionar se essa produção enquanto verdade fundamentada na governamentalização exclusiva da sele ção natural de maneira universal ao invés da ponderação acerca do princípio da adaptabilidade ou sobre o mutua lismo apresentado por Kropoktin 2009 verificando se a ambição a competição o pensar em termos de ganhos o tirar sempre vantagens em quaisquer relações comerciais o investimento a meritocracia dentre outros aspectos presentes na racionalidade neoliberal estadunidense não teriam suas bases amparadas nesse sujeito que produzimos na contemporaneidade Sendo assim poderíamos questionar se a hodierna eliminação dos menos inadaptados pelas leis do mercado teria seus alicerces no extermínio dos hereges no período inquisitorial por exemplo Isso nos levaria a verificar que enquanto alguns autores defendem a ordem estabelecida benéfica para aqueles que ocupam certos espaços na hierar quia social outros se colocam combatentes a ela mostrando como essa ordem garante melhores condições para uns e as piores sortes para outros A verdade produzida no século XIX se fundamentava veementemente na teoria da seleção natural que passou a ser deslocada das ciências biológicas às ciências sociais pos sibilitando uma compreensão distorcida da obra de Darwin 2008 que nos levou a governamentalizar a segregação como algo praticamente intrínseco à nossa condição hu 37 mana e portanto como verdade da nossa época Entretanto não foi Darwin que inventou o evolucionismo ele apenas expressou um devir uma força uma verdade presente em sua época e que ainda incide sobre nós de forma soberana tanto no senso comum quanto no campo científico e consequentemente na sociologia 13 O crime na sociologia clássica Uma forma bastante corriqueira de se apresentar a sociologia clássica é situála como verdade através da agonística nieztscheana pensada a partir das noções de conflito ou situaçãoproblema e consenso Esse tipo de ponderação pode muito bem ser localizada nos escritos de dois autores contemporâneos que recorrentemente são reivindicados pelos pesquisadores desse campo como precursores da sociologia Auguste Comte e Karl Marx que teve parte de sua obra escrita à quatro mãos com Friedrich Engels Enquanto Comte 1983 ainda na primeira metade do século XIX se colocou contrário às revoluções que ocorriam na França em sua época acreditando que o progresso seria inevitável caso as sociedades estivessem com as suas instituições operando em ordem onde cada sujeito deveria aceitar a condição que lhe foi atribuída na sociedade respeitando portanto as relações estabelecida entre os poderes que chamou temporal e espiritual Karl Marx e Friedrich Engels 1986 1998 ainda nesse mesmo período passaram a questionar as premissas desse e demais autores entendidos por eles como conservadores argu mentando que a sociedade é dividida em classes sociais que se encontram em lutas constantes estabelecidas a partir da propriedade e do Estado que existem para defender os interesses da classe dominante que na sociedades modernas são chamadas de burguesia 38 A história de todas as sociedades até hoje é a história das lutas de classes Homem livre e es cravo patrício e plebeu senhor feudal e servo mestre de corporação e companheiro em suma opressores e oprimidos estiveram em constante antagonismo entre si travando uma luta inin terrupta umas vezes oculta outras aberta uma guerra que sempre terminou ou com uma trans formação revolucionária de toda a sociedade ou com a destruição das classes em luta Nas épocas anteriores da história encontramos quase por toda parte uma completa estruturação da socie dade em estados ou ordens sociais uma múltipla gradação das posições sociais Na Roma antiga temos patrícios cavaleiros plebeus escravos na Idade Média senhores feudais vassalos mestres das corporações aprendizes servos e além disso gradações particulares no interior dessas classes A sociedade burguesa moderna que surgiu do declínio da sociedade feudal não aboliu os an tagonismos de classes Limitouse a estabelecer novas classes novas condições de opressão novas formas de luta em lugar das anteriores A nos sa época a época da burguesia caracterizase porém por ter simplificado os antagonismos de classe Toda a sociedade está se dividindo cada vez mais em dois grandes campos hostis em duas grandes classes em confronto direto a burguesia e o proletariado MARX ENGELS 1986 p 0405 Embora não tivesse a mesma preocupação de Comte 1983 em inaugurar uma disciplina científica que reivin dicasse a sua supremacia em relação não apenas aos demais saberes mas também em relação às outras ciências como a matemática a física a química a astronomia e a biologia por exemplo Marx e Engels 1986 1998 produziram uma ampla teoria social através da utilização de elementos da filosofia história economia política etc Portanto por mais esses 39 autores diferentemente de Comte 1983 não tenham sido sociólogos de profissão reivindicando tal condição Marx e Engels 1986 1998 são exemplos de pensadores que sou beram unificar a teoria com a prática ao propor estratégias de superação da sociedade conflituosa em que viviam pois tanto as suas vidas quanto suas obras estiveram marcadas pelo pensamento voltado para os interesses da classe proletária buscando construir um novo tipo de sociedade O ponto de partida do pensamento de Marx e Engels 1986 foi à crítica radical tanto ao idealismo de Hegel quanto aos filósofos da esquerda hegeliana em particular Feuerbach que partia de uma concepção materialista no entanto não levava tanto em consideração a história Marx e Engels 1986 buscaram situar o pensamento humano sobre novos alicerces rompendo com o pensamento filosófico na medida em que propuseram que estes possuem bases ideológicas tratadas por ele como falsas representações Como estavam influenciados por certa concepção de evolucionismo presente na época Marx e Engels 1986 argumentavam que o primeiro pressuposto básico da histó ria é que os seres humanos precisam estar em condições de viver para fazer história pois a primeira realidade histórica é a produção da vida material o segundo pressuposto é que tão logo a primeira necessidade é satisfeita a ação de satisfazêla e o instrumento já adquirido para essa satisfação produzem novas necessidades E essa produção de necessida des novas é o primeiro ato histórico o terceiro pressuposto existente desde o início da evolução histórica é a de que os indivíduos que renovam diariamente sua própria vida se põem a criar outros a se reproduzirem é a relação entre homem e mulher pais e filhos o quarto pressuposto é de que um modo de produção ou um estágio industrial está sempre ligado a um modo de cooperação Assim a massa das forças produtivas determinaria o estado social o quinto e último pressuposto é que se pode constatar que o 40 indivíduo tem uma consciência que nasce da necessidade e da existência de trocas com outros indivíduos Portanto a consciência é desde o seu início um produto social Segundo Marx e Engels 1986 o ponto de partida em busca da compreensão do real não é mais o pensamento conforme propunha Hegel através do seu idealismo dialé tico mas sim a vida material daí o materialismo dialético Ao apontarem críticas veementes ao método dialético de Hegel os autores buscavam aplicar os seus esquemas de estudo a partir de um viés histórico Também acreditavam que o trabalho era o elemento central para se entender o desenvolvimento da sociedade ou seja seria a expressão da ação do indivíduo sobre a matéria Se a matéria ou seja o mundo natural representa a tese temos o trabalho que representa a antítese da matéria que uma vez alterada pelo ser humano gera a sociedade que é a síntese a sociedade é justamente a síntese do eter no processo dialético pelo qual o indivíduo atua sobre a natureza e a modifica Segundo Marx e Engels 1986 1998 o trabalho é um processo em que o indivíduo com sua própria ação impulsiona regula e controla as trocas materiais com a natureza modificandoa ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza Portanto o trabalho não é apenas uma condição in dispensável da vida social mas também é o elemento de terminante para a formação do ser humano seja como indivíduo seja como ser social Sem trabalho não haveria ser humano nem relações sociais nem sociedade e nem história Desse modo podemos constatar que para Marx e Engels 1986 a categoria trabalho é o conceito fundante e determinante de toda construção teórica marxista também conhecida por materialismo histórico e dialético Não obstante é importante destacar que o méto do dialético permitiu à teoria marxista repensar um dos principais dilemas enfrentados no campo da epistemologia 41 sociológica a relação entre indivíduo e sociedade já que na teoria marxista a relação do indivíduo com a sociedade não é reduzida a um ou outro dos polos como fazia a so ciologia positivista de Comte 1983 ou seja o indivíduo não é fruto exclusivo da sociedade nem esta resulta apenas da ação humana Na perspectiva do materialismo histórico e dialético de Marx e Engels 1986 1998 há uma relação externa existente entre o indivíduo e a sociedade que faz com que ambos se alterem resultando em um processo his tóricosocial no qual os seres humanos fazem a história mas não como querem Mas de acordo com as condições herdadas do passado Deste modo Marx e Engels 1986 1998 deixam bastante claro o peso que as estruturas sociais exercem sobre os indivíduos No entanto mostram que mesmo fazendo parte destas mesmas estruturas podemos recriálas através da ação possível de acordo com as cir cunstâncias dadas Diferentemente de Marx e Engels 1986 1998 para Comte 1983 as revoluções que ocorriam em toda a Europa capitaneadas pelo proletariado a partir de certo entendimento acerca da luta de classes atrasaria o progresso inevitável que se encontrava presente na sua conhecida lei dos três estágios Segundo Comte 1983 a modernidade possibilitou que migrássemos de uma sociedade teológica e militar para uma sociedade industrial e científica em que os indivíduos deveriam aceitar as condições que lhes foram atribuídas na sociedade No entanto para esse autor o crime não era entendido como recusa à arbitrariedade imposta pela hierarquia social mas como o descumpri mento daquelas regras que deveriam incidir sobre todos Por mais que tenham sido influenciados pelo evolu cionismo verdade científica da época tanto Comte quanto Marx e Engels não estudaram o crime diretamente tra tandoo apenas de maneira tangencial conforme também 42 fizeram os outros principais autores clássicos e consagrados da precedente sociologia francesa e alemã respectivamente Émile Durkheim 1974 2010 e Max Weber 1991 No entanto foi Simmel 1983 autor alemão que embora te nha sido consagrado na sociologia alemã sobretudo a partir de sua influência na sociologia estadunidense que nascia com a chamada Escola Sociológica de Chicago acabou não tendo a mesma visibilidade que Max Weber 1991 que ao apresentar a noção de sociação mostrou que tanto as interações quanto como os conflitos estão presentes em quaisquer relações sociais Assim ao evidenciar a matéria subjetiva presente na sociologia Simmel 1983 encontrou certa positividade sociológica do conflito Em princípio a importância sociológica do con flito Kampf nunca foi questionada Admitese que o conflito produza ou modifique grupos de interesse uniões organizações Por outro lado sob um ponto de vista comum pode parecer paradoxal se alguém perguntar desconsiderando qualquer fenômeno que resulte no conflito ou que o acompanhe se ele em si mesmo é uma forma de sociação À primeira vista essa parece uma questão retórica Se toda interação entre os homens é uma sociação o conflito afinal uma das mais vívidas interações e que além disso não pode ser exercida por um indivíduo apenas deve certamente ser uma sociação E de fato os fatores de dissociação ódio inveja necessidade desejo são as causas do conflito este irrompe devido a essas causas O conflito está assim destinado a resolver dualismos diver gentes é um modo de conseguir algum tipo de unidade ainda que através da aniquilação de uma das partes Isso é aproximadamente paralelo ao fato do mais violento sintoma de uma doença ser o que representa o esforço do organismo ara se livrar dos distúrbios e dos estragos causados por eles SIMMEL 1983 p 122123 43 Outro autor clássico embora marginal e possível precursor daquilo que poderíamos chamar de sociologia do crime que precisa ser destacado é Gabriel Tarde 1907 2005 Mencionado anteriormente como uma espécie de opositor aqueles que acreditavam no modelo evolutivo organicista do século XIX do qual Darwin 2008 Comte 1983 Lombroso 2013 Ferri 1900 1996 dentro outros eram tributários Tarde 1907 2005 não teve o mesmo reconhecimento na sociologia de sua época que Émile Durkheim 1974 2010 que ao pressupor que a sociedade funcionaria como um corpo vivo em que cada um e cada instituição ocuparia uma função social nesse organismo que é a sociedade acabou fundando a sociologia funcionalista apresentando uma espécie de sofisticação metodológica em relação a sociologia positivista fortemente influenciada pelo evolucionismo É importante destacar que ao defender a sociologia funcionalista a partir de fortes influências do pensamento de Comte 1983 Durkheim 1974 2010 possibilitou que a sociologia fosse reconhecida e inserida no meio acadê mica como disciplina científica presente nas universidades de todo o mundo No entanto o autor foi um primeiros a constatar que o crime não existe nessa ou naquela socie dades em especial mas em todas também mostrando que o crime opera como regra nas sociedades Durkheim 1974 2010 argumentava que o crime era necessário justamente por estar ligado às condições fundamentais de toda vida social pois a sua utilidade estava relacionada as condições indispensáveis à evolução normal da moral e do direito Ao colocarse de maneira contrárias às idéias correntes acreditava que o criminoso não era um ser radicalmente insociável uma espécie de parasita corpo estranho e não assimilável pela sociedade Para o autor ele era apenas um agente que agia na regulação da vida social Por sua vez o crime não deveria mais ser tratado como 44 um mal que não podia ser evitado dentro de certos limites demasiadamente estreitos o crime não era apenas algo normal e funcional às sociedades como também necessário e útil na medida em que possivelmente poderia constituir uma antecipação da moral futura Embora Durkheim 1974 2010 tenha tido uma maior visibilidade e reconhecimento na sociologia já que foi o responsável por sua inserção no campo acadêmico francês foi com Tarde 1907 2005 que essa área do conhecimento naquele país passou a enfatizar o estudo do crime e da punição Segundo o autor a vida social se fundamenta em dois atos individuais a invenção e a imitação Ao partir da ideia de que as sociedades são sistemas complexos de crenças e de desejos inseridos na vida social através da invenção e da propagação decorrente da imitação Tarde 1907 2005 acaba propondo uma sociologia da opinião que incidiu diretamente em estudos acerca da criminalidade Assim enquanto a invenção possibilitaria que a renovação e a mudança pudessem ocorrer a imitação permitiria a con tinuidade e a estabilidade desse engenho inicial As leis da imitação livro de 1890 que condensa todas as obras anteriores de conteúdo principal mente jurídico e por isso mesmo explicativas de fenômenos sociológicos As três leis da imitação indicam que em primeiro lugar o ser humano imita outro na proporção da proximidade do contato em segundo que o de posição inferior tende a imitar o de posição mais elevada e em terceiro que quando as modas de comportamen to coincidem a mais nova substitui a mais velha Como outros atos sociais os delitos se realizam então por conta destas regras de imitação A imitação seria assim um argumento elaborado por Tarde para combater num debate que o faria famoso por sua redução ao absurdo das teorias lombrosianas a tese do atavismo e também do 45 evolucionismo social e do determinismo posi tivista ANITUA 2008 p 434 É importante conhecer um pouco da trajetória desse autor que teve uma educação jesuíta bastante disciplinadora que o levou a obter um diploma de jurista e atuar como juiz de instrução em sua comunidade no sul da França para depois alcançar certo reconhecimento a partir de suas primeiras obras criminológicas levandoo a chefiar o Departamento de Estatísticas Criminais Ao final de sua vida Tarde 1907 2005 ocupou a cadeira de filosofia moderna em Paris passando a difundir suas concepções sociológicas amparadas em pressupostos que ainda perma neciam situados no campo jurídico sobretudo a partir de relações chamadas de permuta ou resolução de conflitos conforme ponderou Anitua 2008 Ao refletir sobre a questão identitária exercendo uma influência muito maior nos Estados Unidos que na Europa de modo geral Tarde 1907 2005 argumentava que as semelhanças a imitação e os problemas de defini ção individual também estavam diretamente relacionados com a questão do crime Segundo o autor era por meio da imitação e não por qualquer outro motivo que as pessoas cometiam delitos Nos artigos agrupados em sua obra A Opinião e as Massas Tarde 2005 apresentou a conceituação de público e de massas como forma de associação passando a serem retomadas por dois autores que foram precursores na Escola Sociológica de Chicago Dewey e Robert Park uma vez que o autor argumentava que tanto a conversa quanto a imprensa seriam elementos fundamentais dessa forma de organização social Embora tenha exercido forte influência na sociologia estadunidense acerca de suas investigações sobre a imitação Tarde 2005 não se posicionou favorável ao ideário democrático dedicandose a tratar dos aspectos 46 criminológicos ou criminógenos acerca da suposta delin quência organizada no delito anarquista A sociologia criminológica e penal apresentada por Tarde 1907 2005 pode muito bem ser justaposta àqueles escritos conservadores presentes em outros autores da época que se colocavam temerosos às mudanças que a emergência do proletariado ao poder poderia representar Ao deixar claro que quando mencionava a multidão criminosa estava tratando dos trabalhadores e desempregados Tarde 1907 2005 passou a defender que as seitas criminosas eram bastante similares aos sindicatos anarquistas Assim embora tenha questionado veementemente autores como Lombroso e concepção de criminoso nato por exemplo o autor não deixava de atribuir à polícia e ao Estado um papel extremamente importante e fundamental entenden doas como porções fortes e sadias da sociedade Devemos reiterar que Tarde não era um pensa dor democrático e que ademais até mesmo al guns pensadores liberais da época e posteriores como Freud e a seguir parcialmente os membros da Escola de Frankfurt não seriam otimistas em relação ao homem e à sociedade Por isso não é de se estranhar que tarde afirmasse que por regra geral por detrás das multidões criminosas existem públicos ainda mais criminosos e à fren te destes últimos estão os publicistas que ainda são muito mais perigosos No último artigo dessa obra ele faz uma criminalização acabada e que teria efeitos concretos do pacifista e também partidário do abolicionismo Piotr Kropotkin 18421921 da mesma forma que outros pensadores igualitaristas Por esse motivo Tarde não hesitou em recorrer à linguagem dos caçadores de bruxas pois para ele Rousseau seria um íncubo e Robespierre um súcubo dentro da sua crítica às multidões revolucionárias Des sa forma Tarde seria responsável pela possível 47 penalização que se faria no começo do século XX de numerosos educadores sindicalistas e pacíficos propagadores de idéias como o men cionado fuzilamento de Ferrer i Guardia em Barcelona Por isso seu pensamento reacionário é evidentemente detestável Mas o que é real mente novidade e iniciador de uma sociologia criminal é sua consideração do delito como uma obra coletiva ANITUA 2008 p 436437 Embora tenhamos procurado mostrar nesse capítulo inicial algumas das principais nuances que atravessaram a construção tanto da sociologia clássica quanto da sociolo gia do crime e da punição situando os debates a partir de uma perspectiva historiográfica buscaremos apresentar a seguir algumas das escolas sociológicas criminais que partem dessa mesma premissa apresentada inicialmente por Tarde 1907 2005 acerca da condição do crime como uma obra coletiva Apesar das concepções políticas questionáveis acerca da obra desse autor que se apresenta muitos vezes de maneira autoritária não podemos esquecer que a par tir dele foi possível situar o crime como uma construção política conforme veremos presente nas abordagens que serão apresentadas doravante As críticas apresentadas por La Boétie Karl Marx Friedrich Engels Piotr Kropotkin Simmel dentre outros acerca da ideia de conflito perpassada pela desnaturalização das hierarquias sociais e suas consequentes segregações e violências oriundas de produções dos emergentes Estados modernos e sua economia política não tiveram o mesmo impacto que aqueles supostas teorias que visavam conservar a ordem social benéfica para aqueles grupos que ocupam os patamares mais elevados da estrutura social Portanto as verdades que passamos a governamentalizar em meio a essa agonística ainda se fundamentam em uma concepção de mundo baseada na conservação da ordem e não na 48 percepção de que essa ordem é atravessada por inúmeros conflitos nos mais distintos campos da vida social que existem para perpetuar os ganhos e preservar os interesses de alguns grupos em decorrência da segregação eou cri minalização de outros 14 Referências ANITUA Gabriel I Histórias dos Pensamentos Criminológicos Rio de Janeiro Ed Revan 2008 BECCARIA Cesare Dos Delitos e das Penas Bauru Edipro 1999 BOAS Franz Textos de Antropología Madrid Editorial Centro de Estudios Ramón Areces 2008 BOURDIEU Pierre PASSERON Jean Claude A Reprodução Petrópolis E Vozes 2010 BUTLER Judith Problemas de Gênero Rio de Janeiro Ed Civilização Brasileira 2008 COMTE Auguste Obras São Paulo Ed Abril 1983 DARWIN Charles A Origem das Espécies São Paulo Ed Martin Claret 2008 DELEUZE Gilles Diferença e Repetição Rio de Janeiro Ed Graal 1988 DURKHEIM Émile As Regras do Método Sociológico São Paulo Companhia Editora Nacional 1974 Da Divisão do Trabalho Social São Paulo Ed Martins Fontes 2010 FERRI Enrico Sociologia Criminale Torino Fratelli Bocca 1900 Princípios de Direito Criminal Campinas Ed Bookseller 1996 FOUCAULT Michel Microfísica do Poder Rio de Janeiro Ed Graal 2007 HOBBES Thomas Leviatã São Paulo Ed Martins Fontes 2015 49 KROPOTKIN Piotr Ajuda Mútua Um fator de evolução São Sebastião A Senhora Editora 2009 LA BOÉTIE Étienne Discurso da Servidão Voluntária São Paulo Martin Claret 2010 LARAIA Roque de B Cultura Um conceito antropológico Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2003 LOMBROSO Cesare O Homem Delinquente São Paulo Ed Ícone 2013 MAQUIAVEL Nicolau Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio São Paulo Ed Martins Fontes 2004 O Príncipe São Paulo Ed Jardim dos Livros 2007 MARX Karl ENGELS Friedrich A Ideologia Alemã São Paulo Ed Hucitec 1986 Manifesto do Partido Comunista São Paulo Ed Cortez 1998 MISSE Michel Crime e Violência no Brasil Contemporâneo Rio de Janeiro Ed Lumen Juris 2011 NIETZSCHE Friedrich A Filosofia na Idade Trágica dos gregos Lisboa Ed 70 2002 Genealogia da Moral São Paulo Companhia das Letras 2009 ROUSSEAU JeanJaques Obras Rio de Janeiro Ed Globo 1962 SCHECAIRA Sérgio S Criminologia São Paulo Ed Revista dos Tribunais 2004 SPIVAK Gayatri C Pode o subalterno falar Belo Horizonte Ed UFMG 2014 SPENCER Herbert Premiers principes Trad M M Cazelles Paris Félix Alcan 1907 Principles of Biology London Williams and Norgate 1864 SIMMEL Georg A Natureza Sociológica do Conflito In MORAES FILHO Evaristo org Simmel São Paulo Ed Ática 1983 50 TARDE Gabriel Las Leyes de la Imitación Madri La España Moderna 1907 A Opinião e as Massas São Paulo Ed Martins Fontes 2005 TYLOR Edward Primitive Culture New York Harper Torch book 1958 WACQUANT Loïc As Prisões da Miséria Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001 Punir os Pobres Rio de Janeiro Ed Revan 2003 WEBER Max Economia e Sociedade Vol 1 Brasília Ed UnB 1991 51 2 21 A formação da Universidade de Chicago No final do século XIX no embrião das ciências so ciais surge a Universidade de Chicago fundada no mesmo ano em que Durkheim inaugurava o primeiro departa mento de sociologia em Bordeaux na França Em 1892 apenas dois anos após sua fundação abre suas portas para as primeiras turmas e o primeiro departamento de Socio logia e Antropologia de Chicago e dos Estados Unidos da América A Universidade de Chicago contribuiu para o desenvolvimento de diversos campos do saber científico tendo especial contribuição para as ciências sociais A Universidade de Chicago foi fundada a partir de uma grande doação do milionário do ramo petroleiro John D Rockefeller essa generosidade Howard Becker 1996 atribuiu à consciência pesada do milionário contanto com vários departamentos e prédios Diferente de outras a Universidade de Chicago foi organizada através de um complexo plano educacional criado pelo Presidente Willian Harper GOODSPEED 1916 que fora professor na Uni versidade de Yale COULON 1995 O novo plano dividiu a Universidade de Chicago em três grupos Goodspeed 1916 p 134 The University proper responsável pelas divi sões entre os diversos cursos e departamentais criando já A Primeira Geração da Escola Sociológica de Chicago Ecologia Criminal e Teoria da Desorganização Social 52 no início da universidade uma Graduate School dedicada à pesquisa e a formação de estudantes de doutorado COU LON 1995 The University Extension Division responsável por abrir a universidade à vida social exterior ofertando grupos de leitura sobre Chicago e cursos noturnos na uni versidade com assuntos sobre Chicago para pessoas que não poderiam cursar no horário regular correspondências com estudantes em outros países e uma biblioteca de extensão que permitia o empréstimo de livro para estudantes que residiam longe da Universidade Também existiam cursos de leitura científica bíblica em horários que não colidissem com os trabalhos da universidade situação em consonância com o perfil do corpo docente da Universidade composta majoritariamente por protestantes por ultimo The Uni versity Publication Work que tinha a função de imprimir e publicar todos os documentos oficiais da universidade entre eles sua variada produção acadêmica Goodspeed 1916 p 134 135 Essa estrutura física da Universidade de Chicago vol tada à cidade e ao desenvolvimento de pesquisas em uma época em que as universidades americanas privilegiavam o ensino em detrimento da pesquisa que nunca era va lorizada Coulon 1995 p 12 bem como a capacidade de publicação e acesso a produções acadêmicas de outros locais deram as condições para o que ficou conhecido como Escola de Chicago Já no início do século XX a Universidade de Chicago já tinha uma vasta produção acadêmica em sociologia e antropologia E o que se costuma chamar de Escola de Chicago é um conjunto de pesquisas sociológicas reali zados entre 1915 e 1940 por professores e estudantes da Universidade de Chicago COULON 1995 Howard Becker 1996 alerta para a confusão que a palavra Escola pode assumir nesses casos apresentando uma divisão entre Escola de Pensamento e Escola de Atividade situando 53 a Escola de Chicago nessa ultima De fato mais do que ideias e teorias semelhantes o que marcou a Escola de Chicago são as atividades e a forma de realizar pesquisas Nem sempre se trata é claro de uma corrente de pensamento homogênea com uma abordagem teórica comum mas apesar disso a Escola de Chicago apresenta diversas características que sem dúvida lhe conferem uma grande unidade e lhe atribuem um lugar particular e distinto na sociologia americana COULON 1995 p 7 A sociologia produzida em Chicago traz a marca da pesquisa empírica e a insistência na produção de conheci mentos úteis para solução de problemas sociais concretos Até então a sociologia as pesquisas eram marcadas pelo moralismo mais próxima do jornalismo investigativo do que da investigação científica COULON 1995 Os sociólogos de Chicago estavam olhando para a cidade e seus problemas sobretudo a imigração delinquência e a pobreza utilizando um amplo rol de métodos originais de investigação orientados para o que chamamos hoje de pesquisa qualitativa entre eles o trabalho de campo siste mático utilização de fontes documentais fontes pessoais entre outros O professor Albion Small teve papel decisivo no de senvolvimento da Escola de Chicago e na sociologia americana talvez menos pelos seus escritos e desenvolvi mentos teóricos e mais pela organização e administração institucional Também pelas suas influências intelectuais e diálogo com outras áreas do saber Albion Small dirigiu o departamento de sociologia desde sua fundação até 1924 quando se aposentou Foi responsável pela primeira revista de sociologia do mundo em 1985 o American Journal of Sociology um ano antes da famosa revista fundada por 54 Durkheim Lannée sociologique ele também contribuiu para fundação da American Sociological Society As influências intelectuais de Albion Small marcam profundamente as pesquisas desenvolvidas em Chicago O debate com as áreas da filosofia e da psicologia social marcaram mutuamente os três campos de conhecimento O Pragmatismo desenvolvido principalmente por John Dewey sendo uma filosofia da ação mas também pode ser chamado de filosofia da intervenção social COULON 1995 p 18 De fato Albion Small recomendava aos alunos do departamento de sociologia fizessem os cursos de John Dewey ou o de Georg Mead sobre psicologia social este também foi uma grande influência para a Escola de Chi cago através do interacionismo simbólico Georg Simmel que pode ser considerado uma grande influência para a sociologia produzida em Chicago foi colega de Albion Small em Berlim e teve suas obras traduzidas e publicadas pelo American Journal of Sociology antes de 1900 Simmel ainda foi professor de RE Park que veio a ser um dos mais importantes sociólogos de Chicago que por sua vez orientou E Hughes que por fim orientou Howard Becker 1996 22 Uma sociologia da cidade O estimulo para uma sociologia urbana através de pesquisas de campo e observações diretas evitando uma sociologia de poltrona pesquisas nas comunidades em que viviam instigando a analisar esse mosaico de peque nos mundos a insistência sobre a objetividade para qual deveria tender as pesquisas sociológicas a proposta de usar a cidade de Chicago como objeto e como campo de pes quisas foram traços deixados por Albion Small Essas marcas configuravam princípios de pesquisas que continuaram a ser seguidos por outros professores e alunos de forma mais sistemática por RE Park e E Burgess COULON 1995 55 Logo em seus primeiros tempos em Chicago Park escreveu um ensaio sobre a cidade encaran doa como um laboratório para a investigação da vida social Ele tinha uma idéia central sobre a história do mundo naquela época sobre o que estava ocorrendo idéia que resumiu ao dizer hoje o mundo inteiro ou vive na cidade ou está a caminho da cidade então se estudarmos as cidades poderemos compreender o que se passa no mundo BECKER 1996 p 180 Essa sociologia da cidade traz como uma de suas carate rística um laboratório particular que é a cidade de Chicago A capital do Estado de Illinois foi fundada em 1833 próximo da baia do rio Mississipi nessa época contava com apenas 200 habitantes COMMUNICATIONS 2003 em 1840 havia 4470 habitantes e 60 anos depois em 1900 a população era de 1698575 Dado a sua posição geográfica e aos esforços políticos em ampliar a malha de transporte Chicago ainda no século XIX se tornou um dos principais centros de transportes dos Estados Unidos o que propiciou um rápido avanço industrial e comercial Com isso uma explosão popu lacional pela migração a partir da segunda metade do século XIX da população rural vinda do Middle West e forte onda imigratória de estrangeiros das mais diversas localidades como alemães escandinavos irlandeses poloneses italianos lituanos checos judeus entre outros BECKER 1996 BURGESS C NEWCCOMB 1931 COULON 1995 Diante dessa conjuntura a cidade de Chicago tornouse a cidade mais pesquisada do mundo Howard Becker 1977 comenta que os estudantes sempre podiam recorrer ao Local Community Fact Book que possuía todos os tipos de estatísticas das áreas locais de Chicago e da surpresa que encontrou quando se mudou para São Francisco onde não existia tal organização Essas transformações e a supercrescimento popula cional na cidade de Chicago bem como as características 56 da produção acadêmica da Escola de Chicago entre elas a busca por um conhecimento útil para os problemas da cidade fez com que alguns objetos de pesquisa fossem os principais alvos de trabalhos A imigração relações étnicas pobreza criminalidade foram os principais objetos trazendo discussões importantes como atitudes individuais e valores sociais desorganização social desmoralização e assimilação ciclo das relações étnicas aculturação e assimilação dis tância cultural gangues de Chicago o crime organizado a delinquência juvenil o ladrão profissional entre outros A imigração aparece como um dos principais temas e também como um das principais questões políticas dos Estados Unidos no começo do século XX Os professores de Chicago tinham uma postura progressista em relação as imigrações crendo na capacidade da sociedade norte americana em assimilar minorias étnicas de tal modo que os trabalhos desenvolvidos representam o cume da tradição assimilacionista COULON 1995 Um dos responsáveis por esses estudos foi Willian I Thomas um dos primeiros professores da Universidade de Chicago muito famoso pela sua frase sobre a definição de situação peça chave para o estudo da sociedade e da ação social se um homem define uma situação como real ela se torna real em suas consequências Essa noção foi apropriada e utilizada de diversas formas inclusive para pensar a criminalidade e o criminoso através das noções de rotulação e estigmatização social BARATTA 2002 BECKER 2009 Ao lado do polonês Florian Znaniecki realizaram um dos primeiros grandes trabalhos de campo publicados The Polish Peastan in Europe and America reunião um grande número de entrevistas e histórias de vida de pessoas que vivam na Polônia e da que haviam emigrado para os Estados Unidos BECKER 1996 p 179 Os dois assumiam uma que a análise sociológica deve levar em conta os valores coletivos e as atitudes individuais subjetivas assim para 57 eles o fato social seria uma cominação intima desses dois elementos Ao contrário de Durkheim que considerava que só era preciso explicar os fenômenos sociais pela influ ência de outros fenômenos sociais e não pela intervenção do nível individualCOULON 1995 p 31 Os valores sociais seriam elementos culturais objetivos ou seja qualquer dado empírico acessível para algum grupo social sendo ou podendo ser objeto de alguma atividade como um instrumento a moeda uma peça de poesia uma universidade um mito uma teoria científica Para os pes quisadores as coisas naturais quando assumem sentidos se tornam valores sociais e os sentidos desses valores se tornam explícitos quando assumem conexão com atos humanos As atitudes por sua vez são os processos individuais de consciência que determina uma real ou possibilidade de atividade individual com o mundo social por exemplo a decisão de um trabalhador em usar a ferramenta THO MAS ZNANIECKI 1918 O conceito de atitude desenvolvido em The Polish peasant teve um papel particularmente importante no estudo dos fenômenos ligados à imigração na compreensão e na explicação dos problemas dos imigrantes Thomas e Zna niecki contribuíram grandemente para rejeitar esse reducionismo biológico mostrando que o estado mental dos imigrantes não estava ligado a um problema fisiológico e sim diretamente às transformações sociais ocorridas em sua vida cotidiana COULON 1995 p 32 Assim Thomas foi um dos primeiros intelectuais a criticar teorias que explicavam as diferenças intelectuais e mentais pela raça todavia talvez a principal contribuição tenha sido o estudo dos processos sociais de desorganização e reorganização social Para o autor a organização social cor 58 responde a um conjunto de convenções atitudes e valores que se impõem sobre os interesses individuais enquanto a desorganização seria o declínio da influência dos grupos sobre os indivíduos enfraquecendo os valores coletivos e fortalecimento das práticas individuais Dito de outra forma a desorganização existe quando as atitudes individuais não se satisfazem nas instituições A desorganização portanto não provém da imigração mas é a imigração que é um indício do estado de desorganização da sociedade polonesa Em seguida o fato de emigrar para a América provoca uma reorganizaçãoCOULON 1995 p 34 Esse processo entre organização desorganização e reorganização é continuo e tais categorias podem ser tomadas como tipos ideais e portanto abstratos A noção de desorganização ainda pode ser divida em familiar e da comunidade A desorganização familiar seria caracterizada pela mudança nas práticas consumos e valores que modificam os comportamentos econômicos enquanto na desorganização da comunidade é um declínio da solidariedade comunitária Por isso frente a essa desor ganização o grupo social reorganiza suas atitudes uma vez que para os imigrantes se trata de adequar a conduta ao seu novo mundo A noção de desorganização social chegou a ser o conceito principal a partir da qual uma geração de pesquisadores utilizou para investigar a cidade THOMAS ZNANIECKI 1918 As pesquisas realizadas nesse período em Chicago eram essencialmente empíricas com um forte traço etnográfico o que faz com que os conceitos desenvolvidos em uma determinada realidade ou situação precisam ser testados modificados e muitas vezes refutados para analisar outras realidades Por isso muito embora a noção de desorga nização tenha perdurado por gerações de pesquisadores em alguns casos ela foi modificada todavia Willian Foote Whyte ao realizar sua pesquisa sobre uma comunidade 59 italiana em Boston WHYTE 2005 problematiza e refuta a noção de desorganização Para Whyte ao olhar para o imigrantes e suas relações com as instituições da sua socie dade recémestabelecida com o que se esperava de uma sociedade americana certamente o olhar seria relacionado a desorganização todavia em sua pesquisa ele demonstra que as sociedades tidas como desorganizadas possuíam sua própria organização complexa com estruturas relações pessoais hierarquizadas sistema de obrigações recíprocas Assim o que era visto como desorganização para o autor era uma organização social diferente A história de Cornerville é contada aqui em termos de sua organização pois assim parece ser o lugar para as pessoas que lá vivem e atuam Elas concebem a sociedade como uma organização hierárquica de partes intimamente entremeadas na qual são definidas e reconhecidas as posições das pessoas e suas obrigações mutuas O problema das áreas pobres e degradas dizem alguns é que são comunidades desorganizadas No caso de Cornerville esse diagnóstico é extre mamente equivocado É claro que há conflitos no distrito Os rapazes da esquina e os rapazes formados têm diferentes padrões de compor tamento e não se entendem Há um choque de gerações Com o suceder das gerações a sociedade encontrase em estado de fluxo mas até esse fluxo é organizado WHYTE 2005 p 273276 O problema então não é a falta de organização mas sim o fracasso da organização social em se relacionar com a estrutura da sociedade que a rodeia Assim com a in capacidade da organização social se interconectar com algumas comunidades de imigrantes faz como que se desenvolva organizações políticas e mafiosas locais bem 60 como a lealdade e valorização da raça e do local de origem Cornerville era vista como uma comunidade caótica e fora da lei e os italianos eram visto pelas pessoas das classe da classe alta como os imigrantes menos desejáveis situação que se degradou ainda mais com as guerras sendo assim tiveram que construir suas próprias hierarquias de negócios WHYTE 2005 Robert E Park tido por muitos BECKER 1996 COULON 1995 como um dos mais importantes so ciólogos americanos ele e Thomas foram sem dúvida os membros mais influentes e autorizados do grupo que organizou as atividades do Departamento e as manteve de pé BECKER 1996 p179 Uma de suas pesquisas foi referente ao ciclo das relações étnicas onde o processo de desorganizaçãoreorganização conduzia as interações entre os grupos de imigrantes distinguindo o processo de interação em quatro grande etapas A rivalidade conflito adaptação e assimilação PARK BURGESS 1921 A rivalidade para Park é estritamente a interação sem contato Todavia isso não significa que não exista uma in fluência entre os grupos rivais Essa interação em contato social contribui para o surgimento do conflito e das etapas seguintes não é através da rivalidade que a sociedade se organiza pois a rivalidade é o próprio processo que orga niza a sociedade estabelecendo divisão de trabalho divisão geográfica da sociedade Diante da rivalidade o conflito é inevitável ao contato entre populações diferentes arrostam se É preciso lembrar Park foi profundamente influenciado por Georg Simmel2 e a noção de conflito deve ser tomada a partir dele Enquanto a rivalidade e o conflito são formas de inte ração todavia enquanto a rivalidade prescinde de contato social o conflito é uma competição onde o contato é 2 Cf Capítulo anterior 61 indispensável É os processos através do quais o individuo ou grupo ocupam seu lugar na sociedade enquanto a rivalidade é o processo que acompanha os indivíduos na instalação em seu novo ambiente Rivalidade sem ressalvas é incontrolavel como com plantas e na grande impessoal luta da vida do homem com a sua espécie e com toda a natureza animada é inconsciente O conflito é sempre consciente de fato ela evoca as mais profundas emoções e paixões mais fortes e pede a maior concentração de atenção e de esforço Ambas rivalidade e os conflitos são formas de luta Rivalidade no entanto é contínuo e im pessoal o conflito é intermitente e pessoal tra dução livre PARK BURGESS 1921 P 574 A adaptação é o esforço que os grupos fazem para se adequar as situações criadas pela rivalidade e pelo conflito É através da adaptação que a organização social ocorre quando as gangues se tornam clubes organizações de tra balho se tornam classes sociais É um adaptação a cultura hábitos sociais práticas e técnicas utilizadas por um grupo aproximando os grupos conflitantes conseguem coexistir embora rivais em potencial aceitando suas diferenças organizando suas relações sociais com a finalidade de di minuir os conflitos e aumentar a segurança A assimilação seria uma sequencia natural onde as diferenças dos grupos são diminuídas e os valores misturados e fundidos com partilhando histórias mitos sentimentos e atitudes um do outro gerando uma vida cultural em comum Para Park a assimilação não é um processo de aceitação comum e de homogeneidade justamente ao contrário é um processos de interação onde os indivíduos participam do funcionamento da sociedade sem perder suas particu laridades Considerava também que o preconceito racial 62 era originário na desigualdade econômica sobretudo pela obrigação dos imigrantes em aceitarem salários mais baixos gerando uma rivalidade com os grupos locais que temem perder seus empregos pela concorrência desleal Os pre conceitos raciais seriam originários mais do conflito de interesses do que da ignorância que poderia ser corrigida pela educação Parker era professor da Universidade em 1919 quando ocorreram diversos tumultos em Chicago resultando na morte entre centenas de feridos de 28 negros Após os conflitos foi instaurada uma comissão para estudar os con flitos raciais dirigida por um exaluno de Park e Burguess que também acabaram por influenciar e orientar diversos pesquisadores negros COULON 1995 23 Pesquisas sobre gangues e delinquência juvenil Profundamente relacionada as noções e conceitos utilizados para pesquisar a imigração o estudo da crimina lidade desvio e delinquência juvenil aparecem um objetos privilegiados da Escola de Chicago A história da crimi nalidade em Chicago foi marcada pelas sucessivas ondas de imigrantes que ali se instalaram Primeiramente alemã e irlandesa no início do século XIX depois polonesa e italiana nos anos 1920 tornouse hispanoamericana e negra 30 anos depois COULON 1995 p 61 Considerando a história da lei seca norte americana podese ver que Chi cago foi um dos principais alvos dos traficantes de bebida da época justamente pela sua proximidade com o Canada e sua ampla malha de transportes com o florescimento de uma criminalidade organizada gangues e mafiosos As gangues em Chicago em 1920 mobilizavam ao menos 25 mil adolescentes e jovens Park sugeria que a as gangues deveriam ser estudadas como uma sociedade 63 uma sociedade específica e como as demais associações humanas deveriam ser estudadas em seu habitat particular A tese de doutorado de Frederic Thrasher sobre as gangues de Chicago também possui a noção de desorganização social Para Thrasher o espaço das gangues era intersticial não só na geografia mais também no plano social como se fossem fissuras e fraturas na estrutura social ocupando o cinturão de pobreza As gangues seriam elas mesmos ele mentos intersticiais como uma manifestação da fronteira econômica moral e cultural que marca o interstício uma resposta à desorganização social sendo um substituto para aquilo que a sociedade não consegue dar suprindo carências e oferecendo escapatórias COULON 1995 A origem das gangues parece espontânea Ao contrário de um clube ou de um sindicato não existe um projeto bem definido de formar uma gangue Ela nasce dos encontros de uma rua en tre adolescentes desocupados que passam a maior parte do tempo perambulando jogam e bebem juntos são solidários ajudamse mutuamente e estimulamse Mas a característica decisiva que transforma esse grupo em gangue é o fato de que ele se desloca e encontra outros grupos hostis que precipitam o conflito O grupo de organizase toma consciência de si mesmo e batizase como clube no início bem inocente mas que com frequência degenera em grupo delinquente Esses grupos são muito instáveis novos grupos aparecem os antigos desaparecem ou reestruturamse Uma gangue possui um território próprio que conhece bem do qual não se afasta muito COULON 1995 p 64 Não existe uma forma específica de gangue elas são de uma variedade infinita e de certo modo cada gangue é única Estabelecem diversas formas de aliança relações 64 políticas em diversas formas de atuação Todavia nenhuma resiste ao desgaste do tempo A obra Sociedade de Esquina do Whyte faz uma análise da formação dos grupos muitas vezes gangues muito embora a questão da criminalidade não seja o principal foco todavia apresenta muito bem o deslocamento dos agentes através do tempo Em 1924 Chicago estava sofrendo uma guerra entre as gangues aumentando todas as estáticas criminais Diante da situação organizaram uma ampla pesquisa sobre o crime organizado onde se procurou demonstrar que o número de crimes não era consequência da falência do Sistema de Justiça mas sim que há uma ligação entre o crime e a organização da cidade A Escola de Chicago também produziu diversas pesquisas sobre a delinquência juvenil entre elas investigação realizada por Clifford Shaw 1966 sobre o jovem Stanley um ladrão de bêbados jackroller adolescente que ele acompanhou ao longo de seis anos Nessa pesquisa o autor incentivou o jovem delinquen te a escrever um relato autobibliográfico descrevendo sua carreira na delinquência utilizandose assim da história de vida para sua pesquisa que para o autor deveria ser verificado cruzado como outros dados Esse é um ponto importante pois Shaw permite ver a delinquência através do ponto de vista do delinquente e claro certamente não se espera que essa narrativa seja objetiva Porém é justa mente isso que lhe interessava que a história refletisse as experiências interpretações suas racionalizações invenções preconceitos e exageros que podem ser consideradas válidos quanto uma descrição objetiva Em nosso estudo e tratamento de meninos delinquentes em Chicago descobrimos que a própria história revela informações úteis sobre pelo menos três importantes aspectos da conduta delinquente 1 o ponto de vista 65 do delinquente 2 a situação social e cultural a que o delinquente é suscetível e 3 a sequ ência de experiências e situações do passado na vida do marginal Tradução livre SHAW 1966 P 3 Como era recorrente na Universidade de Chicago Shaw considerava necessário adentrar no mundo social do delinquente e para conservar tal objetividade não se deve traduzir para a linguagem acadêmica é por isso que os relatos deveriam ser realizados em primeira pessoa Shaw ainda publica outra pesquisa sobre outro rapaz delinquente nomeado de Sidney e com outros três pesquisadores Frede ric Zorbaugh Henry McKay e Leonard Cottrell publicaram uma obra sobre delinquência urbana onde recensearam milhares de residências na Cidade de Chicago mapeando a criminalidade em diversas localidades Em outra pesquisa importante desenvolvida por Shaw e McKay analisando a delinquência juvenil nas áreas urbanas dos Estados Unidos associa a criminalidade à estrutura física da cidade sendo que a taxa de crimi nalidade era mais alta nas sociedades com a ordem social mais desorganizada Assim a delinquência deveria ser explicada pelos fatores sociais Ele também aponta para o prognóstico que indiciava delinquência apenas por morar em determinadas regiões Com efeito constataram que nessas regiões de delinquência urbana as taxas de desemprego e de suicídio eram mais elevadas a população era mais doente a mortalidade infantil mais frequente as famílias mais dissociadas e a criminalidade adulta muito disseminada O simples fato de morar em certas partes da cidade aliás constituía um indício ou um prognóstico de delinquência COULON 1995 p 75 66 Todavia a delinquência não poderia ser vista apenas pela chave da economia e pela estrutura da sociedade Os valores e as normas sociais variavam conforme a região e aquelas com alta criminalidade a delinquência aparece como uma forma de tradição social inseparável modo de vida da comunidade A delinquência aparece nesses lugares como prestígio pelas vantagens econômicas alcançadas pelos seus autores COULON 1995 24 Associação diferencial de Sutherland Talvez um dos pesquisadores que mais tenham mar cado esse período foi Edwin Sutherland duas de suas pes quisas foram muito importantes para o estudo da criminali dade The Profissional thief e White Collar Crime traduzido recentemente para o português apresentam uma serie de questões que sobre a criminalidade até então ignoradas pela sociologia considerando a criminalidade como um processo social através de um processo de aprendizagem que ele chamou de associação diferencial Ele também revela a criminalidade de colarinho branco cometido por di versas empresas norte americanas situação que o obrigou a censurar parte de sua obra durante décadas Em seu estudo sobre o ladrão profissional publicado em 1937 Sutherland utilizou de um relato autobiográfico de um ladrão que atuará por mais de 20 anos em se ofício Para ele a profissão de ladrão é tão real quanto a língua inglesa e poderia ser estudada como um mínimo de empenho por qualquer aprendiz ou seja não se trata de uma sequencia de atos isolados mas sim de uma vida de grupo uma instituição social com técnica códigos esta tutos tradições e organização Essa tendência de analisar as práticas humanas tidas como ilegais considerando a mesma complexidade que existe em outras atividades profissionais já era apontada por Park que 67 observava que na cidade todos os tipos de trabalho tendem a se tornar uma profissão quer dizer a ser extremamente organizados a incluir posições socialmente definidas a ter regras de conduta que regulam o trabalho nessa ocupa ção Park cita especificamente a mendicância como uma forma de trabalho muito organizada nas cidades resumindo sua posição ao sustentar que é muito importante e interessante co nhecer a maneira como todos os trabalhos são organizados na cidade segundo esse modelo BECKER 1996 p 180181 Sutherland ainda realizou uma síntese dos dados et nográficos apresentado em sua observação e na autobi bliografia acentuando a socialização do ladrão que para ser profissional necessitava do reconhecimento e recebimento pelos outros ladrões profissionais afinal o roubo é uma vida em grupo e para tal para adentrar e permanecer é necessário consentimento do grupo Não apenas o reco nhecimento mas também é necessário aceitar o conjunto de estatutos da profissão e as leis do grupo traçando assim um quadro da ordem social onde essa profissão poderia se desenvolver O autor apontava não só para a repressão que os ladrões eram alvo mas também dos benefícios e favores que tinham como por exemplo as propinas pagas pelos ladrões aos advogados banqueiros policiais e às vezes aos juízes COULON 1995 Para Sutherland a desorganização social em deter minados locais e grupos permitem o criminoso navegar à vontade onde não há trabalho para suprimir o crime pelo contrário os funcionários cooperam com os criminosos para que possam atuar em segurança Essa forma de desor ganização social não se dá necessariamente pela segregação econômica e social sendo esse um dos pontos importan tes da obra mostrar para à burguesia um meio social que 68 ela ignorava onde não só era possível estudar o quadro e caraterísticas do grupo social de ladrões mas também contribuir com a sociologia ao pensar no funcionamento das instituições sociais e no relaxamento moral dessas Ele também aponta para a incapacidade e impotência dos mé todos punitivos e reformas administrativas para acabar com o crime COULON 1995 Dessa pesquisa abriu diversos pontos para pesquisas futuras mais aprofundadas o que foi realizado em outra grande obra SUTHERLAND 2009 sobre os crimes de colarinho branco Sutherland verdadeiro fundador da sociologia da delinquência considerava a criminalidade como antes de mais nada resultado de uma processo social Segundo ele a delinquência não é provocada por um comportamento psicoló gico ou patológico mesmo havendo é claro um componente individual na criminalidade a influência da organização social e da herança cultural sobre o indivíduo são fatores determi nantes COULON 1995 p 79 Esse foi um grande salto ao descartar os determinismos biológicos e a visão psicologista individual que eram as visões dominantes na época mas sobretudo a associação entre crime e pobreza ALLER 2009 A pessoa não nasce criminosa tão pouco a segregação econômica seja um fator determinantes mas se aprende a ser criminoso quando exposto a um meio onde se considerada como natural essa atividade impondo ao indivíduo uma carga de significados sociais E diante desse mundo social o indivíduo se torna desviante não por afinidade mas por filiação situação que Sutherland chamou de associação diferencial Assim o comportamento criminal se aprende e se aprende em um processo de interação mediante comunicação ocorrendo principalmente em contatos pessoais em grupos íntimos 69 A aprendizagem abarca as técnicas para cometer o crime que podem ser complexas ou simples e os motivos tendências razões e atitudes Essas orientações específicas sobre motivos e tendências envolvem desde as definições legais tidas como favoráveis ou desfavoráveis Assim o su jeito filiasse a profissão se converte em delinquente com porte existem excessos de definições favoráveis à violação da lei A intensidade da associação diferencial varia em sua frequência duração prioridade e intensidade mas a apren dizagem do comportamento criminal incluem os mesmos mecanismos que qualquer outra aprendizagem inclusive para comportamentos anticriminais Sendo assim o com portamento criminal é uma expressão de necessidades e valores gerais porém não se explica por essas necessidades e valores uma vez que o comportamento que não é cri minal é uma expressão das mesmas necessidades e valores ALLER 2009 Embora Sutherland utilize a noção de desorganização social procura superála através de seu conceito de asso ciação diferencial pois considera que a criminalidade se produz em função da organização social é uma manifes tação dessa organização Sutherland sofreu críticas por não analisar os fatores individuais dos criminosos ou mesmo de ignorar os aspectos relacionados ao capitalismo e a luta de classes como um elemento gerador da criminalidade Não obstante as críticas suas teorias e pesquisas foram fundamentais para o desenvolvimento das teorias modernas da criminalidade e desvio em particular a labeling approach theory teoria da rotulaçãoetiquetamento que ainda que tenha ultrapassado as orientações iniciais de Sutherland se fundou em seus trabalhos 25 O legado da Escola de Chicago Talvez o principal legado da Escola de Chicago tenha sido a sua forma de fazer pesquisa Claro que as te 70 orias e pesquisas nesse período foram fundamentais para o desenvolvimento da sociologia porém a forma de fazer a pesquisa e olhar para a cidade são as principais heranças para as gerações futuras que alguns chamam de segunda geração da Escola de Chicago Os métodos de pesquisa desenvolvidos nessa época primavam por uma abordagem empírica estudando a ci dade como um conjunto utilizando de um rol de técnicas para pesquisa de campo que atualmente são agrupadas como métodos qualitativos utilizando tanto da análise de documentos pessoais autobiografias correspondências diários entrevistas e outras diversas técnicas para obser vação participativa Porém é necessário reconhecer que a principal preocupação era conhecer a cidade para tal os métodos fixos ou pensados por metodólogos profis sionais não davam conta das complexidades que envol vem as relações humanas portanto mesmo essa divisão atual entre pesquisa qualitativa e quantitativa soa falsa e inútil Pesquisa é pesquisa De tal forma que havia nesse período a utilização de dados estatísticos por exemplo e também houve o desenvolvimento marginal de uma sociologia quantitativa que veio aflorar após a segunda guerra mundial Park também anunciava a possibilidade de utilizar os métodos da etnologia nos estudos das relações urbanas e dava a recomendação explicita para utilizar diversos méto dos passando pesquisa em biblioteca à pesquisa de campo Construindo uma abordagem que se adequasse à comple xidade da vida social moderna que aceitasse as mudanças e a interação que moldam a vida social Os sociólogos de Chicago tinham uma postura metodológica interacionista bem definida por Blumer Em suma a pessoa teria que assumir o papel de ator e ver seu mundo e seu ponto de vista 71 Esta abordagem metodológica está em contraste com a chamada abordagem objetiva hoje tão dominante ou seja que vê o ator e sua ação a partir da perspectiva de um fora observador im parcial É desnecessário acrescentar que as ações em seu mundo tem como base o que ele vê e não baseado em como o mundo aparece para o observador externo Tradução livre BLUMER 1966 p542 Essa supremacia da Escola de Chicago acabou com a rebelião de 1935 na American Sociological Society quando um grupo de oponentes ao domínio de Chicago conseguiram derrubar os dirigentes e implementar uma sociologia mais quantitativa e positivista estabelecendo um realinhamento da sociologia americana Dois anos depois Talcott Parsons publicaria seu famosos livro The strucure of social action con firmado a nova orientação teórica complemente diferente da sociologia empírica de Chicago mesclando teoria e pesquisa quantitativa A partir de 1940 a sociologia ameri cana assumiu o desenvolvimento de técnicas quantitativas estimulado pelos enormes contratos e financiamentos do exercito americano estabelecendo através dos dirigentes dessas pesquisas um imperialismo teórico e metodológico Na década de 50 quase todos os professores influentes da Escola de Chicago tinham morrido ou se aposentado todavia através de suas lições continuadas por Blumer e Everett Hughes foi possível garantir a transição para uma nova cepa de pesquisadores que deram origem a um se gundo momento uma retomada BECKER 2009 da sociologia feita na Escola de Chicago 26 Referências ALLER G White Collar Crime Edwin Sutherland y el delito de cuello blanco In El delito de cuello blanco Buenos Aires Bdef 2009 72 BARATTA A Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal introdução à sociologia do direito penal Rio de Janeiro Revan Instituto Carioca de Criminologia 2002 BECKER H Uma teoria da ação coletiva Rio de Janeiro Zahar 1977 BECKER H A escola de Chicago Mana v 2 n 2 p 177188 out 1996 BECKER H Outsiders hacia una sociología de la desviación 1a ed Buenos Aires Siglo XXI 2009 BURGESS E C NEWCCOMB Census data of the City of Chicago Chicago University of Chicago Press 1931 COMMUNICATIONS W E F A W TO THE W Chicago City of the Century Disponível em httpwwwpbsorg wgbhamexchicagotimelineindexhtml COULON A A Escola de Chicago Campinas Papirus 1995 GOODSPEED T W A history of University of Chicago The first quartercentury Chicago University of Chicago Press 1916 PARK R E BURGESS E Introduction to the science of sociology 1o ed Chicago University of Chicago Press 1921 SHAW C R The JackRoller A delinquent boys own story 2a ed Chicago University of Chicago Press 1966 SUTHERLAND E H El delito de cuello blanco Buenos Aires Bdef 2009 THOMAS W I ZNANIECKI F The polish peasant in Europe and America 2a ed edBoston Badger 1918 WHYTE W F Sociedade de Esquina A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada Rio de Janeiro Zahar 2005 73 3 31 Uma segunda escola de Chicago A rebelião de 1935 fez a sociologia americana dar uma guinada para pesquisas de caráter mais quantitativo optando por métodos e técnicas que privilegiavam grandes números estatísticas e surveys adotando uma postura ma crossociológica Com o final da segunda guerra mundial a sociologia americana estava mais quantitativa e mais diversa no plano teórico COULON 1995a todavia a sociologia desenvolvida na Escola de Chicago não foi abandonada continuou exercendo influência considerável sobre a so ciologia americana Alguns professores foram os principais responsáveis pela transmissão direta das lições da Escola de Chicago para uma nova geração de pesquisadores que estavam surgindo no pósguerra entre esses professores destacase Everett Hughes que lecionou em Chicago de 1938 até 1961 Hughes fora professor de Howard Becker e Erving Goffman dois expoentes da sociologia americana pósse gunda guerra mundial e principais autores do foi chamado de segunda geração da escola de Chicago Hughes foi aluno de Park e Burgess sendo assim a principal ponte entre a primeira geração da Escola de Chicago e a segun da geração Escola de Chicago Howard Becker 1977 p 16 recorrentemente ressalta a importância de Hughes o Um Segundo Momento da Escola Sociológica de Chicago Howard Becker e Erving Goffman 74 homem com quem trabalhei mais intimamente foi Everett Hughes Ele me ensinou muitas coisas Essencialmente ensinoume a como pensar sociologicamente As pesquisas desenvolvidas em Chicago por essa nova geração traziam as lições sobre o trabalho de campo desen volvido pela Escola de Chicago podendo assim realizar uma verdadeira reflexão metodológica sobre a sociologia qualitativa Essa reflexão marca os trabalhos de Howard Becker 1993 1977a e Aaron Cicourel 1980 primeiro rechaçando a metodologia apartada da pesquisa empírica criticando a precupação na construção de métodos e técni cas de pesquisas por metodólogos e a sua pretensa neutrali dade A metodologia é importante demais para ser deixada aos metodólogos BECKER 1993 p17 Também construiram uma crítica contra as teorias abstratas e descoladas do em pírico Cicourel 1980 produz uma importante reflexão sobre o trabalho de campo a observação participante e a necessidade de se problematizar os constructos do senso comum todavia ao observar deve abandonar a racionali dade científica todavia mantendo uma atitute científica ao descreve as condutas e interações dos atores A produção intelectual dessa segunda geração também negava a utili zação de conceito apenas pelo conceito permitindo que o trabalho de campo apresente novas relações problema tizações e conceitos que permitam compreender aquela realidade Por fim vale a pena ressaltar um das lições que Howard Becker aprendeu com Everett Hughes apontado como uma das qualidades do livro Outsiders Uma delas é que foi escrito de forma um pouco mais clara que os textos academicos habituais Não me atribuo o crédito por isso Tive bons mestres e meu mentor Everett Hughes que supervisionou minha disertação de doutorado e com quem trabalhei com uma estreita co laboração em meus projetos de investigação 75 posteriores era um fanático dos textos claros Ele pensava que era totalmente desnecessário utilizar termos vazios e abstratos quando exis tiam palavras simples para expressar o mesmo BECKER 2009 p 11 tradução livre Essa geração participou de umas das periódicas re voluções da sociologia durante a qual se criticaram e reavaliaram os marcos teóricos vigentes As pesquisas até o começo da década de 60 por exemplo sobre a crimina lidade e outras formas de comportamentos considerados como problemáticos perguntavam por que as pessoas agiam assim violavam as normas de conduta que eram comumente aceitas pelas pessoas normais procurando identificar causas para esses comportamentos Alguns cul pavam a psique dos desobedientes seja para apontar falhas de personalidade outros culpavam a situação que gerava desigualdade social assim os jovens crendo no sonho ame ricano mas sem condições para alcançar a ascensão social desejada podiam voltarse para métodos desviados de as censão social como o crime Os novos pesquisadores não se interessavam por essas teorias e tão pouco acreditavam nas instituições sociais BECKER 2009 As pesquisas sobre as condutas consideradas desviadas foi dominada por pessoas cuja a profissão era resolver pro blemas sociais assim o crime muitas vezes tornouse um problema a ser resolvido mas nem sempre e nem todos os crimes pois muitos eram tolerados As pessoas que inves tigavam normalmente pertenciam a uma organização que se dedicava integralmente ao problema como o sistema de justiça criminal policiais juízes promotores defensores públicos e etc e que como todo grupo de profissionais essas organizações possuem seus próprios interesses e pontos de vistas a defender Davam como certo a responsabilidade do delito ao delinquente não tendo dúvidas sobre quem 76 eram eles as pessoas que haviam sido capturadas e presas por essas instituições Esse ponto de vista fez com o que muitos sociólogos acreditassem cegamente nas estatísticas criminais produzidas por essas mesmas instituições para compreender o delito tendo como índice de criminalidade os delitos reportados pela polícia e não de maneira precisa muitas vezes as pessoas não reportavam o crime e muitas vezes a polícia ajustava as cifras para mostrar à opinião pública às companhias de seguro e aos políticos que estavam fazendo bem seu trabalho H BECKER 2009 p 13 tradução livre Porém essas teorias já não interessavam as novas gerações de sociólogo que eram menos confor mistas e mais críticas das instituições sociais de então e não estavam tão dispostos a crer que o sistema de justiça criminal nunca se equivocava e que todos os delinquentes eram pessoas más que haviam cometido o fato que lhe acusavam e assim sucessivamente Esses jovens sociólogos buscaram o apoio teórico de uma grande varie dade de fontes Muitos encontraram explicações em abordagens marxistas da análise dos efeitos patológicos do capitalismo Outros entre eles eu encontramos uma base firme em antiquadas teorias sociológicas que por uma razão haviam sido renegadas quando os investigadores come çaram a abordar o tema do delito e a até então chamada desorganização social H BECKER 2009 p 13 tradução livre As antiquadas teorias que Becker se refere diz respeito ao trabalho e reflexões produzidas pela Escola de Chica go cuja raiz remonta a famosa frase de Willian Thomas3 ou seja que as pessoas atuam com base na compreensão que tem do mundo e não do que existe nele Utilizando 3 Cf Capítulo 2 desta obra 77 dessa perspectiva nas ciências sociais implica refletir sobre o modo que as coisas são formuladas como problemáticas e isso conduz as pessoas que definem quais são essas condutas e como as definem negando aceitar que todos aqueles que as instituições definam como delinquentes eram realmente Outra consequência dessa tradição sociológica é que todos que estavam envolvidos com a situação contribuíam para ela e a investigação sociológica deve se atentar para a ação de todos envolvidos Desta forma aquele cujo negócio era definir o crime e lidar com ele é parte do problema do delito por isso o pesquisador não pode simplesmente aceitar como válido o que diziam tão pouco basear suas pesquisas nisso Os sociólogos que buscaram explicações nas teorias marxistas seguiram seu próprio caminho através do que no Brasil foi chamado de criminologia crítica4 in fluenciados sobretudo por Rusche Kirchheimer 2004 32 Etnometodologia e Interacionismo Entre as duas principais influências a produção inte lectual da segunda geração da Escola de Chicago estão o interacionismo simbólico e a etnometodologia O intera cionismo simbólico cuja as raízes filosóficas remontam ao pragmatismo de John Dewey foi desenvolvido sobretudo por Georg Mead que exerceu bastante influência na for mação da Escola de Chicago todavia o termo foi cria do e utilizado pela primeira vez por Herbert Blumer em 1937 A etnometodologia é uma corrente de pensamento e de pesquisa desenvolvida na década de 60 e tem Harold Garfinkel como seu principal teórico A etnometodologia não pode ser diretamente associada a Escola de Chica go Garfinkel estudou em Harvard com Talcot Parsons porém ao contrário dele desenvolvia pesquisas com forte 4 Cf Capítulo 4 desta obra 78 cunho empírico e microsociológico A expressão etnome todologia desenvolvida pro Garfinkel não diz respeito aos procedimentos e métodos utilizado pelo pesquisador mas sim para definir o campo de investigação Desta forma a etnometodologia se relaciona com diversas outras corren tes entre ela o interacionismo simbólico que ajudam a compreender a sociedade contemporânea pois tem como objeto os métodos que os sujeitos utilizam para dar sentido as suas práticas cotidianas COULON 1995a A etnometodologia é a pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas ações de todos os dias comunicarse tomar decisões raciocinar Para os etnometodólogos a etnome todologia será portanto o estudo dessas ativi dades cotidianas quer sejam triviais ou eruditas considerando que a própria sociologia deve ser considerada como uma atividade práticaCou lon 1995b p 30 Tanto o interacionismo simbólico quanto a etnometo dologia trazem um ponto de vista contrário as concepções durkheimiana de sujeito Ambas assumem a capacidade de reflexividade e racionalidade onde os fatos sociais não são objetivos mas construções dos próprios indivíduos fenômenos produzidos pela interação entre os sujeitos A concepção que o agente do mundo e de suas ações práticas e rotineiras constitui o objeto essencial da sociologia ou seja analisar os processos pelos quais os agentes determi nam suas condutas com base em suas interpretações do mundo que os rodeia COULON 1995a p 20 Na realidade através do interacionismo simbólico é quando o agente social assume pela primeira vez na história da sociologia um lugar teórico como interprete do mundo que o cerca pondo em prática métodos que favoreçam o 79 ponto de vista do agente A relação com o sensocomum e as prénoções assumem outra forma pois aqui a pesquisa deve se esforçarse para não des naturalizar o mundo social nem escamotear as interações sobre as quais se apoia toda avida so cial É preciso preservar a integridade do mundo social para poder estudalo e levar em conta o ponto de vista dos agentes sociais pois é através do sentido que atribuem a objetos indivíduos e símbolos que os rodeiam que eles fabricam seu mundo social COULON 1995a p 22 A influência do interacionismo simbólico é visível nas obras de Howard Becker e Erving Goffman e embora não assumissem o título de interacionistas suas pesquisas são marcadas pela preocupação com a posição e fala dos atores sociais e com a interação entre eles Os sentidos práticas atuações e representações são construídas dentro de um processo de interação entre sujeitos que definem e são definidos Tamanha a preocupação com o processo de interação que ele se torna objeto de pesquisa ou seja o próprio processo de interação face à face foi alvo de pes quisa GOFFMAN 2011 Por outro lado é possível ver a influência da etnometodologia em suas investigações que por diversas vezes trazem situações rotineiras como objeto de estudo mas não só trazem a racionalidade e reflexivi dade dos atores sociais e seus métodos para dar conta de suas práticas cotidianas Seja na representação do eu no cotidiano GOFFMAN 1985 ou na análise processual do uso de maconha entre os músicos de jazz BECKER 2009 existe sempre o elemento dos sentidos atribuídos pelos atores sociais suas práticas cotidianas e como eles atribuem e dão sentido a suas ações Seria uma injustiça limitar a segunda geração da Es cola de Chicago a apenas esses autores existiram muitos 80 outros amplamente reconhecidos pelas suas produções intelectuais Após a segunda guerra mundial havia cerca de 200 estudantes de pósgraduação em sociologia na faculdade de Chicago por isso é importante reforçar o caráter coletivo da produção científica BECKER 1977a Muito embora a autoria das obras seja individualizado não se pode esquecer e menosprezar o clima acadêmico como um dos elementos determinantes para a produção científica Howard Becker em diversos textos posiciona e faz uma análise da vida acadêmica e dos pesquisadores com quem conviveu e demonstra muito bem a situação acadêmica da época Não posso nem começar a lhe dizer todas as pessoas da minha turma Erving Goffman David Gold Bill Kornhauser Eliot Freidson Jim Short pois passaria metade de um dia re citando seus nomes Estávamos todos excitados com a Sociologia e conversávamos sobre ela muito seriamente de tal forma que se aprendia muito entre os próprios estudantes Era um bom grupo profissional também e alguns deles me impressionavam mais que outros BECKER 1977ª p 16 Não obstante Howard Becker e Erving Goffman fo ram os pesquisadores dessa geração que mais contribuíram com o estudo da violência criminalidade e desvio social muitos de seus conceitos são utilizados até os dias de hoje bem como suas pesquisas são referencias no estudo do crime Por isso vamos concentrar análise nesses autores que também foram os que mais influenciaram a sociologia americana após a segunda guerra mundial e acabaram in fluenciando diversos sociólogos em outros países No Brasil um dos mais influenciados por esse geração foi Gilberto Ve lho que chega a estudar com Howard Becker construindo 81 uma relação de amizade que ambos reconhecem em suas obras BECKER 2009 VELHO 1976 2002 A análise interacionista agregada aos objetos de estudo valorizados pela Universidade de Chicago foi responsável pela famosa teoria do labeling approach conhecido também como teoria do etiquetamento ou da rotulagem Esta teoria insistiria mais nos processos pelos quais os desviantes são definidos pelo resto da sociedade do que na natureza do próprio ato desviante COULON 1995a p 124 Passando a observar o desvio como um processo de interação entre atores onde um é capaz de acusar e de fazer tal acusação ser aceita pelos de mais outro A violação da norma o desvio e o crime não são coisas ontológicas são sentidos simbólicos atribuídos em um processo interacional entre os atores e disso resulta toda uma imensa gama de acontecimentos sociais influen ciados por aqueles que podem impor a classificação entre eles fazer com que as pessoas assumam seus rótulos o que ficou conhecido como selffulfilling prophecy profecia autocumprível tornamonos tais como nos descrevem COU LON 1995a p 125 Talvez a principal contribuição para essas teorias tenha sido a obra Outsider BECKER 2009 33 Howard Becker Nascido em Chicago Howard Becker tem uma longa e produtiva carreira acadêmica tendo começado a estudar sociologia em 1946 na Universidade de Chicago onde concluiu o mestrado pesquisando músicos profissionais Becker não tinha a intenção de continuar sua carreira como sociólogo casou logo após o mestrado e pensou e abando nar a universidade para ganhar a vida todavia conduzido pelo seu mentor Everett Hughes passou a pesquisar escolas públicas e seus professores Hughes pagava ao Becker um dólar para cada professor entrevistado o que acabou se tornando sua tese de doutorado BECKER 1977a 82 Passei pela pósgraduação muito rapidamente Atribuo isso ao fato de ter continuado na música ou seja como eu realmente não me preocupava em fazer carreira na Sociologia não a levava muito a sério Estudava sociologia como um pas satempo e tinha muito pouca ansiedade Tinha muitas ansiedades em relação a tocar piano por que isso era sério era o trabalho da minha vida Estudava muito e trabalhava no piano muito intensamente BECKER 1977a p 14 Musico de jazz o pianista Howard Becker sonhava em seguir a carreira de músico acabou indo fazer faculdade por incentivo do seu pai e com o apoio de seu mentor passou rapidamente pela pósgraduação e aos 23 anos de idade obteve o doutorado porém pela jovialidade teve dificuldade de arrumar empregos condizentes com a sua formação permaneceu trabalhando como músico em Chicago foi quando começou seu estudo sobre a maconha o que mais tarde resultou na obra Outsiders por uma sociologia do desvio Nessa obra é possível ver um processo uma construção processual e relacional de etiquetas que naturaliza sujeitos e grupos dentro de categorias entre elas a de anormais Ao considerar os sujeitos tidos como desviados loucos e criminosos não como um resultado de suas ações mas como resultado de um processo de interação que resulta na construção de símbolos Essas etiquetas ajudam a classificar o mundo segundo os critérios daqueles que tem o poder de classificação Com isso a obra Outsiders traz consequências políticas e sociológicas importantes entre eles a desnatu ralização dos desviados loucos e criminosos tendo como efeito a retirada do debate sobre a criminalização questões como a anomia desorganização social e a atitudes inatas Ao pensar o processo de criminalização como algo interacional e simbólico não guardando relação direta com determinada ação que desvie da norma social estabelecida 83 permite por um lado compreender as convenções e as etiquetas como algo relacional entre grupos que possuem status social distinto e por outro o efeito processual da car reira criminal De tal modo que não cabe compreender o desvio como algo que se deve moralizar ou lamentar a falta de integração social mas sim compreender que as regras morais e as formas de classificação social são mobilizada por criadores e promotores de norma o que ele chama de empreendedores morais e que a autoidentificação se constrói através de uma socialização progressiva que com o tempo e a frequência força a criatividade da ação individual BENZECRY 2009 De fato todos os grupos sociais estabelecem regras que procuram definir situações e comportamentos consi derados como adequados e corretas diferenciando daquelas tidas como equivocadas e proibidas Quando alguém viola alguma norma social e a regra deve ser aplicada sobre o infrator que passa a ter uma classificação diferente negativa passando a ser considerado um marginal um outsider Cer tamente tal sujeito pode ter uma ideia bem diferente sobre esse tema podendo não aceitar as regras nem tão pouco as normas sociais impostas pode desacreditar os julgadores e aplicadores das leis considerando eles como os outsiders Assim Howard Becker sugere duas situações distintas uma é a situações de infração e aplicação da regra e outra são os mecanismos que fazem com que alguns rompam as regras e outros a imponham A infração o desviante foram abordas por diversas teorias e estudos científicos que normalmente aceitavam a premissa que existe algo de inato no desvio Os cientistas não tem o costume de questiona a etiqueta de desviado quando se aplica a ações ou a pessoas em particular senão que as aceitam como algo dado Ao fazer isso adotam os valores do grupo que estabeleceu esse juízo BECKER 2009 p 23 É possível ver durante toda a obra uma crítica severa a forma de se 84 pesquisa criminalidade procurando definir o desvio através de um conceito que permita lidar com situações ambíguas ou não O desvio não pode ser tido como a infração de uma norma acordada pela sociedade pois isso levaria a questões como quem rompe as regras Como vivem como é sua personalidade e situação de vida por que razão se desviou O que implica considerar que aqueles que violam as normas são uma categoria homogênea pois cometeram o mesmo ato Todavia essa visão esquece algo fundamental esclarecido por Becker 2009 que o desvio é criado pela sociedade O desvio surge dos grupos sociais que criam as nor mas cujo a infração corresponde a um desvio e ao aplicar a norma passa a etiquetar pessoas como marginais Assim o desvio não é uma qualidade do ato que uma pessoa comete mas sim a aplicação da regra sobre o sujeito que passa a ser etiquetado como uma marginal veja que o desviado o marginal é aquele que conseguiu ser etiquetado como tal O pesquisador não pode supor que todas as pessoas que cometeram alguma infração a uma norma social sejam rotulado como desviado tão pouco que todos que foram rotulados como desviados cometeram o ato que lhe acu sam pois o processo de acusação não é infalível Um ato ser considerado desviado ou não depende da forma que os outros de relacionam com ele pois o fato de alguém ter cometido alguma infração não implica necessariamente na aplicação da regra Assim como alguém que não tenha feito infração alguma não possa ser tratado pelos demais como se tivesse feito A reação diante de um ato considerado desviado varia muito mas basicamente depende de quem cometeu e quem se sentiu prejudicado A aplicação legal não é homogênea sendo aplicado com mais peso sobre grupos sociais que possuem determinadas características assim como a aplica ção da pena e processo penal Diversas pesquisas ao longo 85 do século XX deixam clara essa seletividade do sistema de justiça criminal Os processo legais contra jovens de classe media não vão tão longe como os processo contra jovens de bairros pobres Quando é detido é menos provável que o jovem de classe media seja levado até a estação de polícia se é levado a estão de polícia é menos provável que seja fichado e finalmente é extremamente improvável que seja condenado e sentenciado Do mesmo modo que a lei é aplicada de forma diferente a negros e brancos Este é por suposto um dos argumentos principais da análise de Su therland sobre o delito de colarinho branco os ilícitos cometidos pelas corporações quase sempre são julgados como casos civis quando os delitos cometidos por um indivíduo são no geral tratados como delitos penais BECKER 2009 p 32 Tradução livre Se o objeto de análise é os comportamentos que rece bem o rótulo de desviado este só poderá ser caracterizado como desviante após se produzir a resposta dos outros O desvio não é uma qualidade intrínseca ao comportamento em si mas sim a interação entre a pessoa que atua e aqueles que res pondem a sua ação BECKER 2009 p 34 tradução livre Essa interação ocorre segundo um processo de acusação VELHO 1976 onde o rótulo de marginal passa a referir as pessoas que são julgadas como desviadas a margem do circulo de pessoas normais todavia retomando a reflexão de Becker pode ser que aos olhos daqueles que estão sendo julgados os marginais sejam as pessoas que ditam as regras É importante destacar o caráter político e simbólico das regras sociais pois elas são uma construção social criada por grupos sociais específicos E certamente em socieda des modernas com seu alto nível de complexidade não há 86 um consenso em torno de quais regras devem existir As sociedades atuais são altamente diferenciadas em diversos níveis em classes grupos étnicos ocupações cultura e esses grupos podem não compartilhar das mesmas regras Os usuários de maconha e de outras substâncias consideradas ilícitas certamente se opõem a política proibicionista assim como os imigrantes italianos durante a lei seca nos Estados Unidos seguiram produzindo vinho Os grupos que conseguem criar e impor regras aos demais e ainda mais fazer isso com êxito garantem seu sucesso pelo poder político e econômico que possuem Essa diferença de poder é o que permite a capacidade de impor e criar as regras sociais e as diferenças de idade sexo etnia e classe social estão relacionadas com a diferença de poder e explicam esse processo de interação através da acusação Além de reconhecer que o desvio é um produto da resposta das pessoas a certos tipos de conduta que tem a etiqueta de desviadas tão pouco devemos perder de vista que as regras que esses rótulos geram e sustentam não respondem a opinião de todos Pelo contrário são objeto de conflitos e desacordos são parte do processo político da sociedade BECKER 2009 p 37 Tradução livre A reflexão de Becker é condizente com a tradição que herdou da Escola de Chicago que desde a fun dação possui uma grande influência do Georg Simmel primeiro através de Albion Small que fora seu colega posteriormente R E Park que fora seu aluno e professor de Everett Hughes Como um dos principais responsáveis pelo surgimento de uma visão microsociológica Simmel 1983 tem uma visão do conflito como um elemento fundamental no processo sociabilização inerente a socie dade Por isso a divergência de ideias e opiniões é algo 87 muito mais frequente que o consenso que em ultimo caso a sua tentativa pertence apenas que podem estabelecer as regras sobre os outros 34 Carreira criminal Entre outras rupturas presente nas análises de Howard Becker é a reflexão sobre a carreira do usuário de drogas que segundo ele não pode ser explicado suficientemente através da psicologia Assim afasta as explicações que jus tificam o consumo através de uma psique desviada com necessidade de fantasia ou ainda para fugir da realidade que o sujeito não é capaz de aguentar Becker identificou naquela época que a forma de consumo mais frequente era o recreativo sem elementos ligados a uma psique anor mal Para refletir sobre a gênese do consumo de maconha Becker realizou cinquenta entrevistas com consumidores aproveitando sua carreira de musico para facilitar o contato com o campo e a partir dai trabalhando com um efeito bola de neve para entrevistar outros usuários Com isso Becker estabelece um processo para se converter em um usuário de maconha que envolve aprender a técnica de fumar perceber os efeitos e aprender a desfrutar eles Ele ainda analisa o controle social sobre o consumo de maconha que o usuário vai ultrapassando progressivamente Entre os consumidores principiantes ocasionais e habituais existe limitadores referentes aos provedores de maconha é necessário uma fonte de abastecimento pe rene para manter um consumo regular Outro limitador é o segredo a etiqueta social sobre o usuário como um sujeito desviado faz com que o consumo deseja ministrado conforme a capacidade dele manter em segredo seu con sumo Desta forma o usuário desenvolve estratégias para manter o consumo diante de não fumantes apreendendo por exemplo a controlar os efeitos 88 Resumindo as pessoas limitam seu consumo de maconha de maneira proporcional ao seu temor seja realista ou não de ser descoberta pelos não consumidores a quem consideram importantes e que descobrir seu segredo poderiam castigar lhes de alguma maneira BECKER 2009 p 92 Tradução livre Por fim temos a questão da moralidade é muito pre sente no controle do consumo onde o usuário diante das noções da moral convencional procura controlar o uso de maconha reagindo ao estereotipo do usuário como um sujeito incontrolável Assim se o usuário leva a sério os estereótipos presentes no consumo de drogas será um obstáculo para o consumo porém com o aumento na participação dos grupos de usuário é provável que ele assuma uma postura mais emancipada das visões comuns a respeito do usuário A medida que sua participação em grupos de consumidores aumenta sua experiência o novato incorpora uma série de racionalizações e justi ficações que permitem responder as objeções que podem surgir se ele decide converterse em um fumador ocasional BECKER 2009 p 94 Tradução livre A questão que envolve a moralidade é realmente interessante se compreendermos as leis como iniciativa morais ou seja atrás de uma conduta considerada como desviada está um empreendedor moral em uma cruzada contra o mal Para tal estabelece todo um rol de argumen tos e noções moralizantes sobre os comportamentos tidos como desviados e que acabam servindo como justificativa de seu desejo de proibir É possível encontrar ao longo da proibição das drogas toda uma construção do usuário como 89 um sujeito criminoso ou louco quase sempre atrelado a elementos étnicos e raciais Assim por exemplo no Brasil a maconha era associada a população negra e tida como a vingança dos derrotados referindose a população negra escravizada MACRAE SIMÕES sd O empreendedor moral aquele que cria as normas tem um sentimento de que se não corrigir o mundo esta mos perdidos Sente que nada estará bem no mundo até que haja normas que corrijam esse mal BECKER 2009 p 166 Tradução livre Trata com uma ética absoluta em sua cruzada contra o mal que é absolutamente e totalmente mal que dever ser eliminado a qualquer custo sentese moralmente superior Possuem um sentimento humanitário procura salvar os outros muitas vezes de si mesmos Esse sentimento de agir em defesa da sociedade é o que move o empreendedor moral os que agiam em nome do proi bicionismo por exemplo não sentiam que simplesmente estavam impondo sua própria moral aos outros mas sim que tentavam geram melhores condições de vida para as pessoas a quem a bebida poderia impedir de levar uma boa vida BECKER 2009 p 168 Tradução livre Para Becker 2009 entre os empreendedores morais é possível destacar duas modalidades os criadores de re gras e os aplicadores das regras O criador de regras é o empreendedor moral por excelência aquele que não vai descansar até que uma regra que proibia o comportamento visto como mal Muitas vezes atuam com uma ética ab soluta todavia em muitos casos atuam hipocritamente É possível hoje relacionar essa análise de Becker com atores sociais que lutam para emplacar novas regras claro que não podemos limitar isso ao campo legislativo quem de fato cria as regras mas sim todos aqueles que mobilizam seus capitais nessa cruzada Assim os diversos apresentadores de telejornais policiais que exaltam a necessidade maior severidade mais direito penal prisão e outras formas de 90 penas que violam os direitos humanos atuam como em preendedores morais Mas podemos enquadrar professores atores músicos políticos no fim qualquer um que lute arduamente em defesa da sociedade e dos homens de bens acaba atuando como um empreendedor moral Com a ampla utilização das redes sociais e a facilidade de proferir verdades através delas faz como que esse empreendedoris mo cresça muitas vezes apoiado por aqueles que de fato acreditam estar atuando em uma causa nobre entre eles os aplicadores das regras Os aplicadores das regras são aqueles que para Becker 2009 tem pouco interesse no conteúdo da regra está preocupado em aplicala essa é sua função O aplicador vive em função da regra pois a consequência esperada pelo cruzado moral é a criação de uma nova lei todavia em conjunto com esse novo arcabouço legal temos um novo conjunto de agencias instituições e funcionários para sua aplicação Assim ao se estabelecer um novo fronte de bata lha agora assumido legalmente pelo Estado é necessário criar aqueles que lutarão a guerra os inimigos já estavam definidos na cruzada moral desta forma por exemplo a Lei Harrison responsável pela lei seca nos Estados Unidos necessitou da criação do escritório federal de narcóticos Finalmente a cruzada moral está institucionalizada con tando com um corpo de funcionários e agências específicas para assegurar o seu cumprimento E agora temos também o outsiders institucionalizado Ainda que muitos aplicadores de regras atuem apai xonadamente no combate do mal agindo como também como empreendedores morais SOUZA 2015 situação vista com frequência as redes sociais existem aqueles que veem de forma objetiva e neutra sua atividade não se interessando com a causa mas apenas com seu oficio de aplicador de regras SOUZA ROSA MORAES 2016 Esses se interessam apenas com a existência da norma pois 91 é a sua existência que garante seu trabalho sua profissão e sua razão de ser A eles não importa o castigo aplicado a uma conduta antes considerada normal ou deixar de apli car o castigo a uma conduta que até então era considerada desviada o que importa é a existência de uma norma que lhe de sentido de vida Esses sujeitos típicos burocratas exi mem protegem sua consciência pelo fato de apenas aplicar a regra como um juiz ou desembargador que prende um jovem mesmo sabendo das condições da prisão por tráfico de drogas por apenas poucas gramas afinal não responsabilidade dele cuidar da prisão tão pouco da lei a ele interessa apenas aplicala É impossível não comparar esses aplicadores ao Adolf Eichmann Cf ROSA 2012 oficial nazista responsável pelo extermínio de judeus no que ficou conhecido como a solução final após preso e julgado em Jerusalém defendiase de seus atos afirmando apenas estar obedecendo regras Uma cruzada moral possui êxito máximo com a cria ção de um novo conjunto de normas e complementando as reflexões de Becker com a visão foucaultiana 1999 do campo jurídico como veículos permanentes de rela ções de dominação e de técnicas de sujeição polimorfas esses saberes que assumem o status de norma jurídica fundamentando formas específicas de controle social são empreendimento de indivíduos o que Howard Becker 2009 chamou de empreendedorismo moral SOUZA ROSA MORAES 2016 Howard Becker diferentemente de Michel Foucault enfatiza os indivíduos e suas interações procurando com preender o sentido simbólico atribuído a essas interações Desta forma Foucault estaria mais preocupado com a identificação dos jogos de poder e técnicas utilizadas para regulamentar as ações dos indivíduos por meio de práticas classificatórias que estabeleceriam normas saudáveis aos demais enquanto que Becker 2009 nos possibilita pen 92 sarmos sobre quem determina os tipos de comportamentos que são considerados anormais eou problemáticos ou seja quem acusa quem De que estão acusando E em que circunstâncias essas acusações tem êxito SOUZA ROSA MORAES 2016 Por exemplo a política antidrogas que após a alteração da lei 1134306 passa a tratar o usuário com menos rigor não podendo ser preso em nenhuma hipótese Todavia ao pensar quais critérios utilizados para diferenciar traficantes de usuários vêse que são todos critérios subjetivos não havendo critério objetivo SOUZA MORAES 2014 Para determinar se a droga destinavase a con sumo pessoal o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida ao local e às condições em que se desenvolveu a ação às circunstâncias sociais e pessoais bem como à conduta e aos antecedentes do agente Lei 1134306 Artigo 28 2º A quantidade e a natureza da droga são elementos avaliados entretanto não determinantes mas sim o local e as condições em que se desenvolveu a ação as circuns tâncias sociais e pessoais bem como a conduta e aos ante cedentes do agente Assim da intervenção policial sobre um indivíduo portando drogas é difícil prever o resultado todavia basicamente vai depender de como é construído o processo de interação que na falta de elementos mais profundos para construção das representações sociais acaba sendo formado pelos elementos externos características visíveis GOFFMAN 1985 que nos casos analisados pode ser resumidas em onde quem e o que A abordagem de um policial a um grupo de usuários de drogas segue essa lógica o trato sacolejo violência e abuso ou vistas grossas aconselhamento apreensão da droga e liberação dos usuários ao usuário vai depender de onde foi feita 93 abordagem em quem foi feita e qual a droga encontrada SOUZA ROSA MORAES 2016 Desta forma o determinante para configuração do uso de drogas e o tráfico de drogas são as características socioeconômicas do agente baseandose em estigmas os estereótipos que os policiais têm do crimi noso ou do infrator contumaz das leis constituem referencias importantes para sua atuação e como os indivíduos de status socioeconômico baixo são aqueles que mais se ajustam a tais estereótipos são eles que constituem os alvos por excelência da repressão policial COELHO 2005 p 276 Esse processo de representação e fachada nas interações humanas foi explorado com profundidade por Erving Gof fman que compartilhava com Becker o conceito de desvio que não se limitava apenas as condutas delitivas Goffman se apoiou no estudo das interações na vida cotidiana ex plorando espaços como conventos prisões manicômios e hospitais mas também rituais de interação face a face em diversos espaços sociais 35 Erving Goffman A história de Erving Goffman na academia é semelhante em certo sentido à de seu colega Howard Becker pois ambos filhos de imigrantes judeus de origem modesta ascenden do socialmente através do trabalho intelectual alcançando grande prestígio e notoriedade na academia Ambos sofreram diversos embaraços e dificuldades na carreira e nenhum dos dois começou na Sociologia Goffman começou estudando química no Canadá seu país de origem mas logo mudando de interesse passando a estudar sociologia em Toronto e em seguida seguindo para Universidade de Chicago realizar a pósgraduação VELHO 2002 94 Goffman era apontado por seus colegas como um exímio observador que sempre permanecia aguçado ana lisando e registrando Goffman era tão sensível aos mais rotineiros tipos de interação social que muitas vezes deixa atônitos seus amigos e conhecidos com suas observações perspicazes e imparciais sobre a estrutura de sua interação BERGER 2012 p 15 Ganhou reputação no início da carreira observando e ouvindo o que os outros diziam e faziam relatando suas reflexões em diversos ensaios foca do nas microestruturas dos significados gerados nas ações rotineiras Suas descrições feitas sempre de modo seco e inexpressivo compreendia mesmo as ações rotineiras que permitem ao sujeito um desempenho competente e irrefletido foram obtidos através de processos complexos BERGER 2012 Como um grande observador em sua visita ao Brasil manteve uma postura cordial e um tanto excêntrica ficando impressionado com a atuação gestual dos brasileiros que comparou com a dos italianos preocu pandose com as etiquetas e rituais de interação para não cometer gafes e impropriedades VELHO 2002 36 Principais obras Duas obras marcaram e informaram toda a carreira de Goffman uma pesquisa sobre as interações sociais realizada nas Ilhas Shetland que resultou no livro as representações do Eu na vida cotidiana 1985 e o estudo que realizou em um hospital psiquiátrico que dentre outras análises gerou o livro Manicômios Prisões e Conventos 2005 e ainda Estigma 2008 Essas obras passaram a ser conhecidas no Brasil no final dos anos 60 época em que o país passava por violenta repressão política e com isso a radicalização teórica nas ciências sociais profundamente influenciada pelo estruturalismo e marxismo que apenas eram aliviadas com a sociologia norteamericana especificamente da Escola de Chicago VELHO 2002 95 O primeiro livro de Goffman resultado de sua tese de doutorado foi um sucesso de vendas traduzido no Brasil como a representação do Eu na vida cotidiana o que gera um certo embaraço GASTALDO 2008 pois ocultou e modificou dois sentidos importantes para a sociologia de Chicago que é a noção de Self que vem sendo veio sendo desenvolvida a partir de Georg Mead 1934 e presentation apresentação que foi traduzida como representação A análise de Georg Mead o self o eu é constituído em um processo de interação entre os diversos sujeitos sendo assim um objeto do estudo sociológico que deveria con siderar o mundo que vivemos ao mesmo tempo simbólico e físico Desta forma o processo pelos quais os sujeitos determinam suas condutas é composta pelo mundo físico e pelas construções de significações do mundo de nossas ações dentro de uma cultura comum com um conjunto de valores e sentidos orientam a maior parte de nossas ações e em certa medida permitem prever o comportamento de outros indivíduos COULON 1995a Ainda nesta obra Goffman trata da noção de defi nição de situação noção originaria da obra de Willian Thomas onde se analisa o processo do qual atribuise sentido ao contexto vivido da resposta que cada um dá à seguinte pergunta o que está acontecendo aqui agora GASTALDO 2008 p 150 Um exemplo atual dessa tradição pode ser en contrado em algumas doutrinas da psicologia social e no dito de WI Thomas se as pessoas definem as situações como reais elas são reais em suas consequências Esta afirmação é verdadeira em sua formulação literal mas falsa na maneira como é interpretada Definir situações como reais tem certamente consequência mas estas só podem ter incidência muito marginal sobre os acontecimentos em curso em alguns casos 96 apenas um ligeiro constrangimento sobrevoa o cenário como expressão de uma moderada inquietação para os que tentaram definir a si tuação erroneamente Presumivelmente devese quase sempre buscar uma definição de situa ção mas normalmente os que estão envolvidos na situação não criam esta definição embora frequentemente se possa dizer que a sociedade a que pertencem o faz ordinariamente tudo que eles fazem é avaliar corretamente o que a situação deveria ser para eles e então agir de acordo GOFFMAN 2012 p 23 Definir a situação que está passando é fundamental para vida em sociedade a definição equivocada da situação pode gerar entre outras coisas constrangimento para os envolvidos de tal modo que cada situação esperase um comportamento Diante de uma situação de velório um comportamento jocoso e festivo será visto como inade quada Todavia existem diferentes maneiras de definir uma mesma situação por isso ela permeada por relações de poder ou seja quem tem o poder definir qual é a situação Por exemplo a venda e consumo de maconha pode ser tratada e definida de diversos modos pelos diversos sujeitos envolvidos nessa prática os médicos podem definir de um modo o sistema de justiça criminal de outro o policial diante da situação particular de outro A forma legitima da definição da situação dependerá de uma luta pelo poder de definição no caso em concreto pois diante de uma roda de usuários de maconha a fala moralista de um médico seria vista como um comportamento inadequado A ordem interacional possuía uma substância real e concreta uma vez que situase empiricamente entre a invisível vida mental dos indivíduos e os padrões abstratos da estrutura social A vida social para Goffman possui uma rotina cotidiana na 97 qual os indivíduos se encontram constantemente expostos uns diante dos outros propiciando a partir dos encontros de copresença situações de amizade cortesia animosidade conflito atração repulsão formação de impressão sobre os outros e constante controle do próprio comportamento nas situações interacionais MARTINS 2011 p 234 Essa perspectiva interacional ressaltando a natureza simbólica da vida social está presente em toda a obra de Goffman dedicada a observar as pequenas relações que ocorrem no cotidiano com seus interlocutores produzindo significações sociais dessas interações enfim os métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido a sua vida Go ffman utilizou criativamente diversos autores das ciências sociais GASTALDO 2008 como o resgate e aprimora mento noção de coerção social categoria fundamental de Durkheim especialmente na ideia de punição indireta para pensar o constrangimento Quando por exemplo o sujeito comete uma gafe perder a face GOFFMAN 2011 que nas categorias de Goffman significa perder a fachada que sustenta os indivíduos em cada situação Essa criatividade é o que permite o amplo uso de suas catego rias e análises pois como veremos ela não desconsidera os aspectos estruturais todavia lhe interessa refletir através do olhar etnometodológico tratando as situações rotinei ras como verdadeiros universos sociais de análise Com isso permitem informar elementos e relações estruturais pois ao atribuir os sentidos das interações face a face em situações definidas por exemplo abordagem policial ou audiência criminal ou ainda pensando a subjetivação e as diversas transformações e apresentações do eu em processos interacionais institucionalizados instituições totais GOFFMAN 2005 com estigma GOFFMAN 2008 ou no cotidiano GOFFMAN 1985 98 Assim Goffman 1985 p11 ao estudar as represen tações do eu na vida cotidiana afirma A informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar Aí incide um dos elementos a serem analisados na chamada seletivi dade do sistema de justiça criminal e de seus operadores aplicadores de regras BECKER 2009 pois as regras a serem aplicadas fundadas em moralidades empreendidas por diversos interesses são recorrentemente associadas a populações especifica Por isso que se o indivíduo for desconhecido os elementos utilizados para informar sobre o sujeito poderão ser obtidos pela conduta e aparência Os sujeitos rotulados como outsiders são desconheci dos no nível físico todavia não no nível simbólico pois os operadores dessas regras podem a partir de diversas indi cações de periculosidade estabelecidas pelas demandas empreendidas por uma determinada ordem e moralidade Assim por exemplo no processo de proibição das drogas os alvos dos empreendedores morais para a proteção da vida e proteção bons costumes eram sempre grupos étni cos minoritários relação de poder Assim a maconha vista como a vingança da África no Brasil e de forma muito semelhante em relação aos mexicanos nos Estados Unidos ou ainda em relação aos chineses e negros com o ópio e a heroína MACRAE SIMÕES sd ROSA 2012 SOUZA MORAES 2014 E a partir da observação de comportamentos e estereótipos baseado nas experiências simbólicas anteriores que permitam a aplicação da norma através de um processo automático fundado no estigma Se o indivíduo lhe for desconhecido os obser vadores podem obter a partir da sua conduta e aparência indicações que lhes permitam utilizar a experiência anterior que tenham tido com 99 indivíduos aproximadamente parecidos com este que está diante deles ou o que é mais impor tante aplicarlhe estereótipos não comprovados GOFFMAN 1985 p11 Através dessa reflexão estabelecendo a abordagem policial como uma situação definida por um processo de interação constituído por diversos elementos e fachadas específicas para os sujeitos que ali estão A forma de abor dagem dependendo exatamente desse processo que se tem uma previsão da atuação e dos sujeitos envolvidos e assim como ao entrar em um velório estabelecerá uma série de comportamentos específicos ao abordar jovens consumindo maconha em uma praça será surpreendido se entre os jo vens estiver o filho de Coronel situação que gerará uma quebra de fachada e constrangimento pela má definição da situação mas também estratégias e práticas para recuperar a fachada e terminar adequadamente essa interação As formas de identificação e classificação das pessoas em uma sociedade passam por um processo de saber e exercício de poder que estabelece um padronização do que é o normal e o indesejado problemático o outsider Neles o desvio apontado se torna um traço principal e ao confrontar o normal ou seja aqueles que não frustram negativamente as expectativas que estão em discussão com essa pessoa que possui um estigma podem ocorrer diversas formas de discriminação São bem conhecidas as atitudes que nós os nor mais adotamos para uma pessoa que possuí algum estigma Cremos por definição desde logo que a pessoa que tem um estigma não é totalmente humana Valendonos desta suposição praticamos diversos tipos de discriminação que reduzimos na prática ainda que um pouco sem pensar suas possibilidades de vida Construímos uma teoria do 100 estigma uma ideologia para explicar sua inferio ridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa racionalizando as vezes uma animosidade que baseia outras diferenças como por exemplo a classe social Em nosso discurso cotidiano utiliza mos como fonte de metáforas e imagens definições especificamente referidos ao estigma tal como inválido bastardo e tarado sem notar em geral do seu significado real GOFFMAN 2008 p17 Para a pessoa estigmatizada existe uma insegurança acerca do modo como os outros vão identificalos e re cebêlos assim o estigma que gera a insegurança relativa ao status social somado a insegurança laboral acaba por prevalecer sobre uma grande variedade de interações sociais A incerteza do estigmatizado existe não só porque desco nhece em que categoria ele será classificado mas também porque desconhece a reação ao seu estigma deste modo pode definilo em função de seu estigma Assim embora estigmatizado possa em uma interação não ser discriminado pelo estigma este ainda pode acompanhalo pois ele ainda pode sentir em seu foro íntimo que no fundo os outros o veem pelo estigma Deste modo o estigmatizado pode exi larse da sociedade passando a ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo que não o aceita GOFFMAN 2008 Como o mesmo olhar aguçado Goffman olha para as situações de desvios em locais fechadas em instituições como hospitais prisões e conventos que ele define como instituições totais Instituições muradas que possuem como característica que parte das obrigações do indiví duo é participar visivelmente nos momentos adequados da atividade da organização o que exige uma mobilização da atenção e de esforço muscular certa submissão do eu à atividade considerada GOFFMAN 1987 p 150 Com suas análises Goffman permite pensar diversas instituições não só as que nomeiam o livro mas também 101 o exercito polícia militar e as atuais clinicas de recupera ção de usuários de drogas Essa imersão nas atividades de organização são tidas como um símbolo do compromisso produzindo sujeitos por meio de coerção o poder age sobre o corpo e subjetividade do indivíduoBENELLI COSTAROSA 2003 usar a atividade de seus participantes tam bém delineia quais devem ser os padrões oficiais de bemestar valores conjuntos incentivos e castigos Tais concepções ampliam um simples contrato de participação numa definição da natureza ou do ser social do participante Portanto nas disposições sociais de uma orga nização se inclui uma concepção completa do participante e não apenas uma concepção dele como e enquanto participante mas além disso uma concepção dele como ser humano GOFFMAN1987 p 152153 Assim as instituições totais formam os indivíduos pela concepção que criam sobre as suas identidades colabo rar motivados por prêmios ou castigos independente de identificarem ou não com os objetivos da instituição Da mesma forma que alguns aplicadores de regras que inde pendente da sua opinião sobre a norma vai defendela pois é a sua existência que garante o sentido de sua atividade E fará isso muitas vezes incorporando uma razão de Estado FOUCAULT 2008 naturalizando suas visões do que é correto e aceitável a ponto de se tornarem imperceptíveis invisíveis todavia reais e efetivas BENELLI COSTA ROSA 2003 podendo observar nos pequenos atos da vida GOFFMAN 1987 p 153 no nível microfísico FOUCAULT 2013 que podemos verificar sua incidência Isso que faz a Escola de Chicago perdurar os autores compartilhando de uma agenda de pesquisa caracterizan 102 dose por uma escola de atividade BECKER 1996 ainda que com teorias diferentes atuaram sobre objetos semelhantes o que possibilita uma reflexão em conjunto de suas pesquisas Esse segundo momento da Escola de Chicago ofereceu um passo importante para o estudo do crime em seus diversos âmbitos principalmente pela qualidade das análises e pesquisas que possibilitam pensar situações contraditórias naturalizadas e imperceptíveis o que permitiu dialogar com diversos outros autores das ciências sociais sendo até hoje suas pesquisas e conceitos uteis para se pensar a sociedade processos de acusação ro tulação estigmatização desvio as instituições e operadores do sistema de justiça criminal 37 Referências BECKER H Uma teoria da ação coletiva Rio de Janeiro Zahar 1977a De que Lado Estamos In Uma teoria da ação coletiva Rio de Janeiro Zahar 1977b A escola de Chicago Mana v 2 n 2 p 177188 out 1996 Outsiders hacia una sociología de la desviación 1a ed Buenos Aires Siglo XXI 2009 Métodos de pesquisa em ciências Sociais São Paulo Hucitec 1993 BENELLI S J COSTAROSA A DA Geografia do poder em Goffman vigilância e resistência dominação e produção de subjetividade no hospital psiquiátrico Estudos de Psicologia Campinas v 20 n 2 ago 2003 BENZECRY C E Actualidade de Howard Becker In Outsiders una sociología de la desviación Buenos Aires Siglo XXI 2009 p 256 BERGER B M Prefácio In Os quadros da experiência social uma perspectiva de análise Petrópolis Vozes 2012 103 CICOUREL A Teoria e método em pesquisa de campo In Desvendando Mascaras Sociais 2a ed Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves Editora 1980 COELHO E C A Oficina do Diabo e outros estudos sobre criminalidade Rio de Janeiro Record 2005 COULON A A Escola de Chicago Campinas Papirus 1995a Etnomedologia Petrópolis Vozes 1995b FOUCAULT M Em defesa da sociedade Curso no Collège de France 19751976 São Paulo Martins Fontes 1999 Microfísica do Poder 27 ed São Paulo Graal 2013 Nascimento da Bioplítica curso dado no Collège de France 19781979 São Paulo Martins Fontes 2008 GASTALDO É Goffman e as relações de poder na vida cotidiana Revista Brasileira de Ciências Sociais v 23 n 68 out 2008 GOFFMAN E A representação do eu na vida cotidiana Petrópolis Vozes 1985 Estigma la identidad deteriorada 2a ed BUenos Aires Amorrortu 2008 Manicômios prisões e conventos São Paulo Perspectiva 1987 Os quadros da experiência social uma perspectiva de análise Petrópolis Vozes 2012 Ritual de interação ensaios sobre o comportamento face a face Petrópolis Vozes 2011 MACRAE E SIMÕES J A A subcultura da maconha seus valores e rituais entre setores socialmente integrados NEIP sd MARTINS C B A contemporaneidade de Erving Goffman no contexto das ciências sociais Revista Brasileira de Ciências Sociais v 26 n 77 p 231240 out 2011 MEAD G H Mind Self and Society from the Standpoint of a Social Behaviorist Chicago University of Chicago 1934 104 ROSA P O Drogas e Biopolítica uma genalogia da redução de danos sl Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2012 RUSCHE G KIRCHHEIMER O Pena y Estructura Social Bogotá Temis 2004 SIMMEL G A natureza sociológica do conflito In Simmel São Paulo Ática 1983 SOUZA A T Perigo à ordem pública um estudo sobre controle social perverso e segregação sl Universidade Federal do Paraná 2015 MORAES P R B DE Os perigosos uma análise da construção do usuário de drogas como inimigos da ordem pública 29a Reunião Brasileira de Antropologia AnaisNatal Associação Brasileira de Antropologia 2014 Disponível em httpwww29rbaabantorgbrresources anais11401736445ARQUIVOOsperigososRBA29pdf ROSA P O MORAES P R B DE Empreendedorismo de si e Empreendedorismo Moral na Magistratura as representações dos juízes de Direito de Ponta Grossa sobre os usuários de drogas In Perspectivas em Segurança Pública Florianópolis Insular 2016 VELHO G Family Mobility and Deviant Behavior Social Problems v 23 n 3 p 2680275 1976 Becker Goffman e a Antropologia no Brasil Sociologia Problemas e Práticas n 38 p 917 2002 105 4 41 Desconstruindo a ideologia da defesa social Ainda hoje o sistema penal é construído e legitimado em grande medida tendo como base os argumentos da ideologia da defesa social Este ainda é o sistema de ideias dominante não apenas na ciência jurídica contemporânea como nas opiniões comuns Ela parte da compreensão de que a criminologia é uma ciência causalexplicativa da criminalidade assumindo como tarefas a explicação das causas da criminalidade e a necessidade de prever os remédios para combatêla segundo um método científico experi mental e com o auxílio das estatísticas criminais oficiais ANDRADE 2003 p 35 Neste sentido o desvio criminal seria um mal a ser evitado por meio de uma reação legítima da sociedade a política criminal Portanto a ideologia da defesa social compreende a criminalidade como uma realidade onto lógica e anterior ao Direito Penal cabendo a este apenas identificála e positivála princípio do delito natural sendo possível descobrir as causas do crime e colocar a ciência a serviço do seu combate em defesa da sociedade ANDRADE 2003 p 35 Historicamente este sistema de pensamento serviu para justificar e racionalizar o sistema de controle social em A Criminologia Crítica a partir do olhar de Alessandro Baratta 106 geral e o repressivo em particular concedendo a eles seu status de cientificidade e de legitimidade na medida em que serviria para proteger os interesses sociais gerais contra a violência perpetrada por uma minoria criminosa e patologicamente orientada PAVARINI 2002 p 50 Ainda que a filosofia política liberal clássica na Europa no século XVIII e até meados do século XIX tenha con tribuído para a fundação principiológica do direito penal e portanto da ideologia da defesa social o ápice desta se deu com a emergência da criminologia positivista como um discurso científico autônomo dotado de um objeto o indivíduo delinquente e um método experimentalin dutivo próprios Desta maneira a criminologia positivista se dedicou a investigar as causas da delinquência por meio de extensivas pesquisas realizadas em indivíduos recolhidos em institui ções de reclusão como prisões manicômios judiciários e delegacias de polícia Cesare Lombroso foi o primeiro cientista de uma longa linhagem de criminólogos positivistas Partindo de métodos de observação e experimentação que envolviam a comparação entre características bioantropológicas tais como dimensões e formato do crânio rosto olhos orelhas dentre outros órgãos e membros presentes em grupos de pessoas consideradas criminosas e grupos de pessoas con sideradas não criminosas ele chegou ao resultado de que as causas da criminalidade estariam na natureza biológica do próprio ser humano O avanço deste modelo teórico permitiu que a ideo logia da defesa social se desenvolvesse solucionando dois de seus possíveis impasses ao mesmo tempo primeiro conferir racionalidade e cientificidade a seu discurso e segundo garantir legitimidade ao sistema de repressão criminal Isso porque para que o sistema repressivo fosse legi timado era necessário que a ação criminal fosse valorada 107 como uma ação social moralmente negativa No momento em que a criminologia positivista por meio de seu método científico afirma o caráter patológico do crime ela retira desta conduta qualquer racionalidade que ela possa ter5 O autor de crime não é mais visto como um ser dotado de vontade racional mas sim como portador de um dese quilíbrio uma doença que o torna socialmente perigoso PAVARINI 2002 p 5051 Deste modo a ideologia da defesa social assume o papel de justificar e racionalizar o sistema normativo e dogmático do direito penal moderno criando a imagem de que este sistema de ideias representaria um grande pro gresso frente às concepções mistificantes e teologizantes que dominavam o direito penal pretérito Todavia ainda que esta imagem não seja falsa ela esconde o fato de que a defesa social nasceu contemporaneamente à revolução liberal e se sustentou como correlativo ideológico do sis tema jurídicopenal burguês Isto se verifica claramente com a análise dos princí pios que orientam e sustentam o conteúdo da ideologia da defesa social Estes princípios foram sumariados por Alessandro Baratta 2002 p 42 da seguinte maneira 1 princípio da legitimidade segundo o qual o Estado como expressão da sociedade por meio de suas instâncias oficiais de controle social é o ente legitimado para reprimir a criminalidade defender a sociedade 2 princípio do bem e do mal que toma o desvio criminal crime e criminoso como o mal enquanto a sociedade constituída é o bem figura do cidadão de bem por exemplo 3 princípio da 5 Por exemplo até mesmo delitos que envolvam uma ação política como aqueles atribuídos a grupos anarquistas sindicalistas movi mentos sociais etc passam a ser vistos pela criminologia positivista como desprovidos de qualquer natureza racional ou intencionali dade política sendo apenas fruto da ação de um indivíduo louco ou desequilibrado PAVARINI 2002 p 50 108 culpabilidade para o qual o delito é expressão de uma atitude interior reprovável contrária a valores sociais mesmo que ainda não transformados em lei 4 princípio da finalidade ou prevenção que trata a pena como tendo não apenas uma função retributiva mas também uma função de preven ção de outros crimes seja pela contramotivação da norma penal em abstrato prevenção geral seja pelo processo de ressocialização prevenção especial 5 princípio do interesse social e do delito natural segundo o qual os interesses prote gidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos e condições essenciais à existência da sociedade são uma realidade ontológica anterior ao direito penal que nada mais faz que positivála Um último princípio que ainda deve ser destacado é o da igualdade A ideologia da defesa social propõe que o direito penal protege igualmente todos os cidadãos contra as ofensas aos interesses sociais e que a aplicação do direi to penal é igual para todos na medida em que quaisquer violadores das normas jurídicas teriam a mesma chance de se tornarem sujeitos dos processos de criminalização BARATTA 2002 p 42 162 Isso significaria dizer por exemplo que ricos e pobres são igualmente atingidos pelo direito penal e que criminosos de colarinho branco e pequenos delinquentes de rua têm as mesmas chances de serem submetidos aos rigores da lei penal processual penal e de execução penal Estes princípios ou mitos são aqueles que expres sam o núcleo central da ideologia da defesa social e que embalam uma parcela considerável dos discursos oficiais e extraoficiais sobre políticas criminais6 A crença na capaci 6 Esse paradigma com a qual nasceu a Criminologia como ciência no final do século XIX libertase assim se suas condições originárias de nascimento para se transnacionalizar em grande escala perma necendo não apenas na Europa na base de posteriores desenvolvi mentos da disciplina inclusive os mais modernos que à indagação 109 dade atual ou futura de punir igualmente todos os crimes a crença na capacidade preventiva da pena na naturalidade do direito penal na maldade intrínseca aos violadores das leis penais dentre outras são peças chave para os discursos punitivistas que ainda ecoam na sociedade Todavia há alguns anos surgiu no âmbito da sociolo gia jurídica um novo paradigma criminológico orientado pelo método materialista que procurava uma resposta diferenciada aos modelos liberais tais como o da defesa social Talvez o principal representante desta mudança sejam as teses da chamada criminologia crítica iniciadas a partir de estudos publicados nos Estados Unidos e Inglaterra desde a década de 19607 sobre as causas da criminalidade forneceram respostas diferentes das antropológicas e sociológicas do positivismo originário e que nasceram em parte da polêmica com ele teorias explicativas de ordem psicanalítica psiquiátrica multifatoriais etc ANDRADE 2003 p 39 7 Como bem resumido por Shecaira 2014 p 284285 A teoria crítica também denominada por muitos como radical tem sua origem mediata no livro Punição e estrutura social de Georg Rusche e Otto Kichheimer O livro veio a lume em Nova York já que seus autores tinham sido obrigados a emigrar em função da perseguição nazista Em 1967 o livro de Rusche e Kirchheimer é republicado nos Estados Unidos servindo de referência para os autores que o mencionariam em seus estudos nos anos 1970 A partir daí con comitantemente nos Estados Unidos e na Inglaterra muitos autores começam a reescrever a criminologia de matiz etiológica criando aquilo que também seria denominado de nova criminologia O movimento angloamericano irradiase quase de imediato por toda Europa Os dois primeiros movimentos dessa retomada do livro de Rusche e Kirchheimer que nasceram foram o da Universidade de Berkeley Califórnia EUA surgido precipumenteentre professores e alunos da sua escola de criminologia e que se denominou Union of Radical Criminologists URC com grande influência de H E J Schwendinger e T Platt e o movimento inglês organizado em torno da National Deviance Conference NDC encabeçados por I Taylor P Walton e J Young autores dos mais conhecidos livros sobre o assunto The new criminology for a social theory of deviance de 1973 e Critical criminology de 1975 110 42 A criminologia crítica e o novo método de aproximação do fenômeno do crime A principal transformação proposta pela criminologia crítica foi a mudança de olhar que o método materialista permitiu todo sistema penal é fruto de uma estrutura eco nômicosocial correspondente Em outras palavras nem o crime nem os processos de criminalização e de punição devem ser vistos fora do modo de produção determinado no qual estão inseridos no caso do direito penal liberal do modo de produção capitalista Contudo como alerta Baratta 2002 p 159 isso não significa uma recepção direta e acrítica do enfoque materialista que se resuma a uma interpretação direta dos textos marxianos sobre o tema O trabalho da criminologia crítica envolve um profundo trabalho de observação empí rica que consiga ao mesmo tempo perceber construção e operacionalização do sistema penal no interior do sistema econômico capitalista Em suas palavras Quando falamos de criminologia crítica e dentro deste movimento tudo menos que ho mogêneo do pensamento criminológico con temporâneo colocamos o trabalho que se está fazendo para a construção de uma teoria mate rialista ou seja econômicopolítica do desvio dos comportamentos socialmente negativos e da cri minalização um trabalho que leva em conta ins trumentos conceituais e hipóteses elaboradas no âmbito do marxismo não só estamos conscientes da relação problemática que subsiste entre crimi nologia e marxismo mas consideramos também que uma semelhante construção teórica não pode certamente ser derivada somente de uma interpretação dos textos marxianos por outro lado muito fragmentários sobre o argumento 111 específico mas requer um vasto trabalho de observação empírica na qual já se podem dizer adquiridos dados assaz importantes muitos dos quais foram colhidos e elaborados em contextos diversos do marxismo p 159 Mais do que isso o aporte materialista não signi ficaria também ignorar o desenvolvimento que teve a sociologia criminal burguesa ao longo do século XX Pelo contrário muitas hipóteses e instrumentos teóricos da teoria marxista foram empregados pela criminologia crítica para ultrapassar os limites teóricos de determinadas abordagens reinterpretando seus resultados BARATTA 2002 p 160 Neste sentido merecem destaque dois deslocamentos teóricos incorporados pela criminologia crítica por meio desta leitura materialista da sociologia criminal dos anos 1930 em diante quais sejam 1 em vez da tradicional abordagem visando o indivíduo criminoso o enfoque nas condições objetivas estruturais e funcionais que estão na origem do desvio 2 o deslocamento do interesse nas causas do desvio para o debate em torno dos mecanismos por meio dos quais são criadas as definições de desvio e de crime bem são operacionalizados os processos de criminalização BARATTA 2002 p 160 A criminologia crítica deste modo constrói seu mo delo analítico não buscando as causas da criminalidade e suas respostas mas sim compreender os chamados processos de criminalização ou seja os processos a partir dos quais de terminadas condutas são definidas como criminosas e outras não e determinados sujeitos são criminalizados enquanto outros não o enfoque ou paradigma da reação social Esta abordagem devese em grande parte às con tribuições recebidas pelas teses do labeling approach ou enfoque do etiquetamento Esta teoria modelada a partir 112 do interacionismo simbólico e pela etnometodologia8 não centra suas análises no comportamento desviante mas sim no comportamento rotulado como desviante O labeling approach demonstra que importa menos a ação que o status atribuído à ela Em suma o desvio não é uma qualidade intrínseca da conduta mas uma etiqueta atribuída a determinados sujeitos através de complexos pro cessos de interação social Portanto tratase de uma teoria que se preocupa mais com os processos de definição dos desviantes do que pela própria natureza do ato desviante Nas palavras de Becker 2008 p 2122 Grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulálas como outsiders Desse ponto de vista o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete mas uma consequên cia da aplicação por outros de regras e sanções a um infrator O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal Assim por exemplo ao considerarmos lado a lado uma pessoa que praticou um furto e uma que praticou um crime contra a ordem financeira o primeiro é rotulado como criminoso ao passo que o segundo não Do mesmo modo em dois casos idênticos de furto praticados por pes soas de classes sociais diferentes poderíamos ter o indivíduo de classe mais baixa rotulado como delinquente enquanto o de classe mais alta como cleptomaníaco Os tratamentos conferidos pela legislação penal e pelo sistema de justiça criminal são completamente distintos nos dois casos Outro exemplo mais significativo é percebido na pesquisa de Laura Frade 2007 sobre as representações do 8 Cf Capítulo 3 desta obra 113 legislativo federal brasileiro acerca do crime e criminalidade Segundo os dados analisados a visão dos congressistas é a de que crime está relacionado com baixa escolaridade sujeira inferioridade indisciplina desocupação doença desordem etc Deste modo verificase que quando pensam em crime eles não pensam em crimes de colarinho branco corrupção enfim crimes praticados pela elite ainda que esteja previsto em lei Nas palavras da pesquisadora A baixa instrução figurou como o principal atributo dos criminosos Considerandose que 1 os elaboradores da lei objeto da amostra possuem em sua maioria uma alta instrução 2 que apenas dois projetos de lei sobre os crimes do colarinho branco foram apresentados duran te a legislatura sob exame e que nesses crimes prevalece a atuação de profissionais graduados e que 3 praticamente nenhuma referência foi feita nas entrevistas sobre os crimes praticados dentro do próprio Congresso Nacional é razo ável supor que os parlamentares não vinculem a eles próprios a ideia de criminalidade Parece haver uma correlação indireta do crime com as ca madas menos favorecidas não com a elite com a qual os parlamentares parecem se identificar Ou seja crime é coisa de pobre 2007 p 101102 grifos nossos Fica evidente portanto que a caracterização do que seja considerado crime ou criminalidade depende de uma rotulação um etiquetamento daquele que passa a ser um cliente constante do sistema penal Por isso a teoria do la beling approach é classificada como uma teoria da reação social por buscar compreender as razões pelas quais a sociedade reage negativamente diante de determinadas condutas e especialmente pessoas 114 Neste sentido Baratta afirma que esta direção de pesquisa labeling approach parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal que a define e reage contra ela começando pelas normas abstratas até a noção de instâncias oficiais polícia juízes instituições penitenciárias que as aplicam e que por isso o status social de delinquente pressupõe necessariamente o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência enquanto não adquire esse status aquele que apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível não é alcançado todavia pela ação daquelas mesmas instâncias 2002 p 86 Desta maneira o labeling approach ultrapassa os ques tionamentos acerca das causas do crime e dos mecanismos para seu controle e prevenção defesa social para chegar a um debate acerca do modo pelo qual o sistema penal reage de maneira diferente conforme o status daquele rotulado como criminoso reação social Como sintetiza Andrade Desta forma ao invés de indagar como a cri minologia tradicional quem é criminoso por que é que o criminoso comete crime o labeling approach passa a indagar quem é defi nido como desviante por que determinados indivíduos são definidos como tais em que condições um indivíduo pode se tornar objeto de uma definição que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo quem define quem e enfim com base em que leis sociais se distribui e concentra o poder de definição 2015 p 207208 Diante desta completa ruptura epistemológica e me todológica com a criminologia tradicional os estudos do 115 labeling approach se desenvolveram em dois níveis de inves tigação um relativo ao impacto da atribuição do status de criminoso na identidade desviante ou seja o efeito da aplicação da etiqueta de criminoso sobre a identidade do indivíduo etiquetado e o segundo com vistas a inves tigar o processo de atribuição da qualidade de criminoso a determinados tipos de comportamentos bem como da distribuição do poder social de definição da conduta des viada BARATTA 2002 p 89 Especialmente a partir deste segundo nível de inves tigação que se estabelece a conexão entre as análises do labeling approach e as propostas da criminologia crítica Neste âmbito são debatidos os processos de definição de determi nada conduta como criminosa criminalização primária bem como os processos de definição de uma pessoa cujo comportamento corresponda à conduta tida como crimi nosa como desviante criminalização secundária Ambos fazem parte de um processo amplo de interpretação social da conduta desviante e do indivíduo considerado desviante um tipo de análise que deixa claro que estes processos de interpretação são muito mais decisivos para a produção da delinquência que a própria conduta individual em si Como demonstra Andrade A criminalidade se revela principalmente como um status atribuído a determinados indiví duos mediante uma dupla seleção em primeiro lugar pela seleção dos bens jurídicos penalmente protegidos e dos comportamentos ofensivos a estes bens descritos nos tipos penais em segundo lugar pela seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que praticam tais compor tamentos 2015 p 218 Todavia o ponto central que promoveria a virada entre o enfoque do etiquetamento para uma criminologia crítica 116 seria a sua incapacidade de teorizar a reação social a partir do estudo das razões estruturais que sustentam o processo de defi nição e rotulação em meio a uma sociedade de classes Assim a utilização do paradigma da reação social mesmo sendo uma condição necessária não é suficiente para qualificar como crítica uma criminologia ANDRADE 2002 p 4748 Entretanto reconhecer os limites das teorias do labeling approach não conduziu à sua negação pela criminologia crítica mas à reafirmação de seus resultados e à sua comple mentação na direção de suprir os déficits da compreensão acerca dos condicionamentos estruturais dos crimes e das punições ANDRADE 2015 p 216 43 Do labeling approach à criminologia crítica a seletividade do sistema de justiça criminal Nesta direção um dos enfoques centrais da crimino logia crítica foi a negação radical do princípio mito de igualdade que rege o direito penal liberal e a ideologia da defesa social Se vivemos em uma sociedade de classes na qual vigora uma desigualdade estrutural como imaginar um direito igualitário que proteja todos os cidadãos sem distinção e que trate todos os violadores de normas da mesma maneira e com as mesmas chances De fato o que irá afirmar a criminologia crítica nota damente a partir da releitura de pesquisas empíricas sobre o sistema de justiça criminal a partir de pressupostos ma terialistas é que a lei penal não é igual para todos e nem atinge a todos igualmente Muito menos os bens jurídicos tutelados seriam representações dos interesses sociais co muns a todos os indivíduos O sistema penal de controle do desvio revela assim como todo o direito burguês a contradi 117 ção fundamental entre a igualdade formal dos sujeitos de direito e a desigualdade substancial dos indivíduos que neste caso se manifesta em relação às chances de serem definidos e controla dos como desviantes Em relação a este setor do direito a ideologia jurídica da igualdade é ainda mais radicada na opinião pública e também na classe operária do que ocorre com outros setores do direito BARATTA 2002 p 164 Inicialmente algumas pesquisas realizadas sob o en foque da reação social9 já demonstravam dois pontos que dizem muito sobre o sistema penal burguês a investigação sobre a chamada cifra oculta da criminalidade e as pesquisas sobre a criminalidade de colarinho branco No primeiro caso demonstrouse que a criminalidade real é muito maior que a oficialmente registrada Ou seja para cada crime registrado existem possivelmente centenas de outros que não o são e que fazem parte do cotidiano das sociedades ocidentais Desta forma o crime não pode ser mais visto como um fenômeno de uma minoria patológica e violenta mas sim algo que faz parte do comportamento das maiorias Com relação aos crimes de colarinho branco perce beuse que na maior parte das vezes estes não são subme tidos a um processo de criminalização deixando impunes aqueles que os praticam São crimes que em larga escala fazem parte da cifra oculta da criminalidade10 Estes dois exemplos dizem muito sobre a lógica de operação sistemática do direito penal capitalista A partir destas noções a criminologia crítica percebe que o sistema penal criminaliza seletivamente determinados grupos so 9 Cf BARATTA 2002 P 101 e segs 10 Para uma análise mais aprofundada deste tema cf Capítulo 2 desta obra e SUTHERLAND 2015 118 ciais Assim não é possível considerálo como um sistema que atua de maneira isonômica sobre todas as pessoas e delitos ao contrário ele protege os interesses sociais das classes dominantes e também contribui para a reprodução dessa relação constituindose esta sua verdadeira finali dade ainda que não declarada BATISTA 2002 p 116 Neste sentido Baratta 2002 p 162 afirma que o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos e conclui que contrariamente a toda aparência o direito penal é o direito desigual por excelência Diante disso fica evidente que existe um elemento estrutural mais profundo que afeta os processos de cri minalização ou seja de interpretação de uma conduta como criminosa e de um indivíduo como praticante desta conduta descritos pelo labeling approach Estes processos operam por meio de uma seleção desigual de indivíduos tendo como referência o seu status social Andrade 2003 p 51 destaca que esta seletividade do sistema penal que mantém uma maioria criminal regu larmente impune especialmente das classes altas enquanto garante regular criminalização para a minoria criminal po bre se deve fundamentalmente a duas variáveis estruturais Em primeiro lugar à incapacidade estrutural de o sistema operacionalizar por meio das agências do sistema de justiça criminal toda a programação da Lei penal dada a extensão de sua abrangência atrelada à possível catástrofe social11 que seria caso o sistema penal concretizasse todo o seu poder criminalizante Deste ponto de vista a impuni dade e não a criminalização é a regra no funcionamento do sistema penal ANDRADE 2003 p 51 11 Se todos os furtos todos os adultérios todos os abortos todas as defraudações todas as falsidades todos os subornos todas as lesões todas as ameaças etc fossem concretamente criminalizados prati camente não haveria habitante que não fosse por diversas vezes criminalizado ZAFFARONI 2001 p 26 119 se o sistema penal tivesse realmente o poder criminalizante programado provocaria uma ca tástrofe social Diante da absurda suposição não desejada por ninguém de criminalizar reiteradamente toda a população tornase óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e sim para que exerça seu poder com um altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida natural mente aos setores vulneráveis ZAFFARONI 2001 p 27 A segunda variável estrutural da seletividade diz res peito ao fato de que se os processos de impunidade e criminalização não são orientadas pela incriminação igua litária de condutas objetiva e subjetivamente consideradas em relação ao fato crime são na verdade orientadas pela seleção desigual de pessoas de acordo com seu status social Como afirma Andrade Enquanto a intervenção do sistema geralmente subestima e imuniza as condutas às quais se rela cionam com a produção dos mais altos embora mais difusos danos sociais delitos econômicos ecológicos ações da criminalidade organizada graves desvios dos órgãos estatais superestima infrações relativamente menos danosidade so cial embora de maior visibilidade como delitos contra o patrimônio especialmente os que têm como autor indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais débeis e marginalizados 2003 p 52 Este processo de intervenção seletiva do direito penal manifestase primordialmente me dois momento 1 pri meiramente no momento em que o legislador define quais os bens que serão tutelados pelo direito penal seletividade da criminalização primária ou seletividade primária 2 no mo 120 mento em que as agências de controle social formal polícia ministério público e judiciário selecionam por meio de estereótipos sociais12 os indivíduos que serão submetidos a um inquérito policial a um processo penal e a uma con denação criminal seletividade da criminalização secundária ou seletividade secundária SANCHES 2002 p 16 Este processo atua nos campos da quantidade e da qualidade A seletividade quantitativa diz respeito ao número de condutas rotuladas como criminosas e ao de autores em relação aos quais é atribuída a condição de criminoso Já a seletividade qualitativa relacionase com a não inclusão de todas as condutas socialmente nocivas como criminosas e com a não classificação rotulação de todos os sujeitos que praticam atos delituosos como pessoas criminosas BISSOLI FILHO 2002 p 7879 Portanto ao contrário do que propunham os teóri cos do positivismo criminológico a clientela do sistema penal é constituída principalmente de pobres não porque tenham uma maior tendência a delinquir mas porque possuem as maiores chances de serem criminalizados e rotulados como delinquentes ANDRADE 2003 p 54 Algo que para a criminologia crítica possui um nexo direto com o sistema 12 A regularidade a que obedece a distribuição seletiva da crimina lidade tem sido atribuída à leis de um código social second code basic rules latente e integrado por mecanismos de seleção dentre os quais tem se destacado a importância central dos estereótipos de autores e vítimas além de teorias de todos os dias teorias do senso comum dos quais são portadores os agentes do controle social formal e informal a opinião pública além de processos derivados da estrutura organizacional e comunicativa do sistema penal E sem dúvida um mecanismo fundamental dessa distribuição desigual da criminalidade são os estereótipos de autores e vítimas que tecidos por variáveis geralmente associadas aos pobres baixo status social cor etc tornaos mais vulneráveis à criminalização é o mesmo esteriótipo epidemiológico do crime que aponta a um delinquente as celas da prisão e poupa a outro de seus custos ANDRADE 2003 p 53 121 de dominação de classes e com a desigualdade estrutural das sociedades capitalistas As maiores chances de ser selecionado para fa zer parte da população criminosa aparecem de fato concentradas nos níveis mais baixos da escala social subproletariado e grupos margi nais A posição precária no mercado de trabalho desocupação subocupação falta de qualificação profissional e defeitos de socialização familiar e escolar que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos e que na criminologia positivista e em boa parte da cri minologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade revelam ser antes conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído BARATTA 2002 p 165 Diante disso devese estabelecer a crítica a todos os princípios basilares à ideologia da defesa social em especial os do delito natural e da igualdade A criminologia crítica tenta em primeiro lugar desnaturalizar a noção de crime demonstrando que o modo pelo qual determinadas con dutas são definidas como crime dependem de interesses concretos de classe e não são simplesmente afrontas a in teresses e valores sociais majoritários Estes são na verdade interesses das classes dominantes com vistas a operar um controle sobre as classes dominadas Ademais a definição dos crimes a aplicação e a exe cução do direito penal são orientadas por um critério de seleção desigual dos sujeitos de acordo com seu status social e não por um princípio de igualdade A lei penal não é igual para todos e a qualidade de criminoso não é distribuída igualmente A principal variável determinante para a atribuição ou não do rótulo de delinquente passa a ser a posição ocupada pelo acusado na escala social 122 O sistema penal portanto não funciona para reprimir a criminalidade não visa punir atitudes socialmente prejudiciais não previne a prática de novos crimes nem protege bens jurídicos tidos como importantes para toda a sociedade e muito menos protege ou atinge a todos igualmente BARATTA 2002 p 162 Antes este sistema funciona seletivamente como um instrumento de proteção e reprodução das relações de dominação de classe Portanto por meio de uma análise mais detida deste fe nômeno percebese que uma vez operando seletivamente a conclusão inevitável é que o sistema penal não apenas viola todos os princípios do Estado de Direito liberal como ele está estruturalmente preparado e programado para fazêlo Todavia se isso é verdade para que serve então o direito penal Quais as funções que ele cumpre Para compreender a funcionalidade do sistema penal tal como colocado na ordem capitalista é necessário dife renciar as suas funções declaradas das funções latentes ou não declaradas Com base no que já foi demonstrado há atualmente uma crise de legitimidade do sistema penal resultante do déficit do cumprimento das promessas ofi cialmente declaradas no seu discurso oficial No entanto na prática este sistema cumpre funções latentes ou não declaradas inversas às declaradas Por esta razão é possível afirmar que o sistema penal se caracteriza por uma eficá cia instrumental invertida à qual uma eficácia simbólica confere sustentação ANDRADE 2012 p 135 Enquanto suas funções declaradas ou promessas apresentam uma eficácia meramente simbólica reprodução ideológica do sistema porque não são e não podem ser cumpridas o sistema penal cumpre de modo latente outras funções reais não apenas diversas mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial que in cidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade ANDRADE 2012 p 135 123 Todavia é precisamente a sua reprodução ideológica que confere sustentação e justifica socialmente a importância da existência de um sistema penal que oculta suas reais e inverti das funções quais sejam em vez de combater a criminalidade gerila e controlála seletivamente em vez de proteger bens jurídicos universais proteger de forma seletiva alguns bens jurídicos essenciais ao controle de classe e neste processo reproduzir material e ideologicamente as assimetrias sociais de classe gênero raça etc ANDRADE 2003 p 8991 Diante destas proposições um dos papeis que a cri minologia crítica assume é o de construir um discurso de deslegitimação do sistema penal tendo em vista que não apenas ele não consegue cumprir as funções e objetivos que declara mas acaba sendo extremamente eficiente ao cumprir objetivos não declarados que imunizam comportamentos nocivos praticados por membros dos altos estratos sociais ao mesmo tempo em que violam direitos estigmatizam e encarceram grandes parcelas das camadas mais populares No caso da América Latina como bem sustentou Za ffaroni tal processo de eficácia invertida ainda possui tons mais radicais pois os órgão do sistema de justiça criminal à margem do que a racionalidade do discurso jurídicope nal propõe opera sob o signo do extermínio em massa Tratase de uma deslegitimação que está além dos limites teóricos porque atinge diretamente a consciência ética não requerendo qualquer demonstração científica porque é perceptível ninguém seria tolo de negar que os mortos estão mortos 2001 p 3813 Portanto a partir da função desveladora da crítica e da constatação indiscutível da crise de legitimidade que atinge o sistema penal necessário se faz discutir quais caminhos 13 Ressaltese que a primeira edição desta obra é de 1989 distante mais de um quarto de século dos dias atuais Este intervalo de tempo entretanto serviu para reafirmar a cada chacina a cada morte a cada auto de resistência a força do argumento de Zaffaroni 124 podem ser trilhados como substituição ao estado atual de coisas Os debates contemporâneos sugerem dois eixos um de continuidade e um de descontinuidade No eixo de continuidade surgem propostas de eficien tismo penal que entende a crise do sistema penal como uma crise de eficiência propondo uma ampliação ainda maior do direito penal tendo em vista que para esta linha de interpretação estaríamos diante de um déficit quantita tivo de controle do crime ANDRADE 2012 p 288 São representantes desta linha as propostas de Lei e Ordem e Tolerância Zero bastante em voga atualmente e que serão tematizadas no capítulo 8 De outro lado surge um eixo de descontinuidade que realmente vê esta crise como uma crise estrutural de legitimidade que demandaria no mínimo um processo de relegitimação ou no máximo uma ruptura total com o sis tema penal vigente Neste caso temos como exemplos tanto as posturas minimalistas quanto as abolicionistas ambas sob diferentes roupagens Algumas posturas abolicionistas serão discutidas no capítulo final desta obra 44 Referências ANDRADE Vera Regina P de A ilusão da segurança jurídica do controle penal da violência à violência do controle penal 3 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2015 Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan 2012 Sistema penal máximo x cidadania mínima códigos da violência na era da globalização Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal 3 ed Rio de Janeiro Revan 2002 BATISTA Nilo Introdução crítica ao direito penal brasileiro 8 ed Rio de Janeiro Revan 2002 125 BECKER Howard S Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 BISSOLI FILHO Francisco Punição e divisão social do mito da igualdade à realidade do apartheid social in ANDRADEVera Regina Pereira de Org Verso e Reverso do Controle Penal DesAprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva Florianópolis Fundação Boiteux 2002 p7879 FRADE Laura O que o congresso brasileiro pensa sobre a criminalidade 2007 Tese Doutorado em Sociologia Departamento de Sociologia Universidade de Brasília 2007 PAVARINI Massimo Control y dominación teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico Buenos Aires Siglo XXI Editores 2002 SANCHES Samyra Haydêe Dal Farra N Os direitos humanos como fundamento do minimalismo penal de Alessandro Baratta in ANDRADE Vera Regina Pereira de Org Verso e Reverso do Controle Penal Des Aprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva Florianópolis Fundação Boiteux 2002 p16 SHECAIRA Sérgio Salomão Criminologia 6 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2014 SUTHERLAND Edwin H Crime de colarinho branco Rio de Janeiro Revan 2015 ZAFFARONI Eugenio Raúl Em busca das penas perdidas a perda de legitimidade do sistema penal Rio de Janeiro Revan 2001 127 5 51 Ponderações sobre gênero e as criminologias A discussão sobre gênero e criminologias particular mente crítica e póscrítica tem ganhando atenção cres cente especialmente pela força das teorias feministas e dos impactos dos estudos de gênero em diversos cam pos incluindo as criminologias e o direito Contudo é importante destacar que a categoria gênero nasce com o feminismo ganhando popularidade na medida em que passou a repercutir em diversos estudos amparados em perspectivas críticas Não obstante a utilização dos estudos feministas nem sempre valoriza a produção feminista Teresa de Lauretis 1994 em seu artigo A tecnologia de Gênero referese a uma nova onda da crítica feminista feita por homens Filósofos escrevendo no feminino críti cos lendo no feminino o homem no feminismo E o que seria isso Obviamente é uma homemnagem trocadilho feito pela autora mas com que finalidade Utilizar o fe minismo valorizar e legitimar certas posições dentro do feminismo acadêmico que acomodam os interesses pessoais do crítico ou as preocupações teóricas androcêntricas ou ambas já que na maioria das vezes há pequenas menções ou trabalhos ocasionais que não apoiam ou valorizam o projeto feminista dentro da academia LAURETIS 1994 Gênero e Criminologia Feminista uma revisão das críticas feministas às criminologias 128 Isso também pode ser observado em várias críticas não feministas e antifeministas sobre a relação entre a cri minologia e o feminismo Neste capítulo discutiremos a inversão que o discurso criminológico crítico hegemônico malestream14 promoveu acerca da relação entre o feminismo e a criminologia através de uma breve revisão das principias críticas feministas às criminologias É incontestável que a entrada do feminismo na cri minologia foi responsável por uma das maiores contribui ções teóricas contemporâneas à criminologia conforme argumentou Larrauri 1991 Assim a forte crítica femi nista iniciada na década de 1970 documentou a repetida omissão a falsa representação das meninas adolescentes e mulheres na pesquisa criminológica e nas tradicionais metodologias masculinas conforme mostrou Messers chmidt 1995 No entanto apesar disso o pensamento feminista con tinuou silente nos discursos criminológicos A ausência da crítica feminista às criminologias pode ser exemplificada nas publicações da área o clássico livro de Carol Smart Women Crime and Criminology a feminist critique 1976 onde a au tora critica a criminologia positivista vigente na Inglaterra nos anos 1970 e ainda propõe uma criminologia feminista que dialogue com a criminologia da classe trabalhadora que nascia naquele país nessa mesma década até hoje não possui tradução para o português Sequer o livro de Rosa del Olmo Criminalidad y criminalización de la mujer na região andina 1998 foi traduzido em contraste com as diversas publicações de livros clássicos de criminologia crítica da mesma autora Ou seja o discurso criminológico crítico no Brasil ainda é fortemente masculino e a ausência de publicações feministas é uma forma de apagamento dessa crítica 14 A expressão é de Carol Smart e referese à hegemonia masculina no campo criminológico na Inglaterra nos anos setenta e oitenta 129 São inúmeras as criminólogas feministas que fizeram significativas contribuições às teorias criminológicas a exemplo de Carol Smart Ngaire Naffine Eileen Leonard Meda ChesneyLind Loraine Gelsthorpe Katheelyn Daly Maureen Cain apenas para citar algumas delas Mas em geral não há menção sobre a existência dessas e outras feministas cuja ausência nos textos e discursos criminoló gicos do malestream revela o androcentrismo que ainda permeia o pensamento e a literatura criminológica Nesse sentido o discurso criminológico é também um discur so de poder de uma fala masculina E como as feministas demonstraram que todas as correntes críticas dos anos 1950 aos anos 1980 reforçaram estereótipos de gênero destacaremos aqui algumas das principais teorias criminológicas e as correspondentes críticas feministas 52 Teoria das subculturas criminais As teorias das subculturas criminais foi pensada a partir dos estudos sobre as gangues de jovens pobres ou de classes trabalhadoras mais pobres Conforme a teoria das subculturas de Cohen 1955 os jovens trabalhadores pobres sofrem de um status de frustração porque eles não conseguem atingir os padrões de sucesso dos jovens de classe média Mal equipados para competir na escola com seus companheiros de classe média eles rejeitam os valores da classe média e desenvolvem uma subcultura da delinquência que enfatiza o não utilitarismo a malícia e o negativismo Estes valores alternativos justificam sua agressão e hostilidade e são a base para a solidariedade do grupo JOE CHESNEYLIND 1998 No entanto esses valores estão associados ao modo de vida estadunidense de sucesso masculino não feminino Autonomia racio nalidade ambição e contenção das emoções são atributos de uma pessoa que constrói a américa mas essa pessoa 130 é o homem conforme afirma Naffine 1987 Assim a delinquência dos membros da gangue é celebrada como uma afirmação da masculinidade da cultura dominante Portanto a subcultura da delinquência é uma solução masculina exclusivamente para um problema masculino NAFFINE 1987 p11 As mulheres não são nem pressionadas para realizar os objetivos de sucesso da sociedade e nem a delinquência é uma saída para as suas frustrações Na visão de Cohen 1955 a criminalidade feminina é insignificante porque as mulheres estão preocupadas apenas em conseguir um casamento ou seja seu stress está dirigido às relações afetivas e não às pressões por trabalho ou independência econômica Por outro lado Walter Miller 1958 que também dirigiu seus estudos para os grupos de jovens pobres adolescente street corner groups entende que os valores de resistência esperteza astúcia e emoção atribuídos às subculturas ju venis de classes economicamente mais pobres podem estar relacionados a sua luta para manter sua autonomia em casas dominadas por mulheres Segundo Joe e ChesneyLind 1998 como a lower class estruturase sobre a mulher o lar está baseado exa tamente nela femalebased household já que esse grupo unissexual onesex peer group seria uma forma estrutural e altamente prevalente nas comunidades de classe baixa Assim haveria uma forte probabilidade de prevalência e de estabilidade deste tipo de unidade na educação infantil devido a casamentos poucos duradouros pois nessa unida de nuclear o progenitor masculino estaria ausente do lar ou esporadicamente presente ou quando presente estaria minimamente ou inconsistentemente envolvido no apoio à família e criação de filhos Essa ausência masculina não ofereceria aos filhos uma imagem consistente de homem a ser seguida ocasionando problemas de identidade sexu al Com isso os jovens teriam uma obsessão por valores 131 próprios da masculinidade com a correspondente procura dos grupos unissexuais que afirmariam os seus valores MILLER 1958 DIAS e ANDRADE 1992 Já para Cloward and Ohlin 1960 a cultura da po breza deve ser entendida dentro de uma análise estrutural Os jovens de classes mais baixas lowerclass são impedidos de legitimamente alcançarem oportunidades e como re sultado racionalmente escolhem dentre limitadas opções participarem em alguns tipos de crime JOE CHESNEY LIND 1998 Nesse sentido a sociedade estadunidense não apenas fornece diferentes oportunidades para homens de diferentes classes realizarem o sucesso material sendo que os jovens de classes mais baixas estão na posição menos privilegiadas como também fornece diferentes níveis de acessibilidade a soluções delinquentes Portanto há uma oportunidade diferencial para os jovens Assim essas análises acabam se apresentando de maneira problemática na medida em que todos estes pesquisadores presumem que as gangues são unicamente respostas de jovens do sexo masculino que respondem à pressão e à tensão da pobreza em que vivem JOE CHESNEYLIND 1998 e reforçam a visão masculina do suposto sucesso americano Essas análises desconstroem as perspectivas de uma cultura da pobreza ou de uma reação rebelde contra a mulher chefe de família já que adotam uma perspectiva estrutural onde os atos de virilidade situamse em um contexto econômico e social mais amplo e de disputa com a masculinidade hegemônica de domínio controle e independência conforme mostrou Messerschmidt 1995 No entanto as análises de masculinidades tomam como pressuposto a delinquência masculina e não ex plicam a experiência das garotas que vivem na mesma situação que os garotos delinquentes compartilhando portanto da mesma comunidade e das mesmas restrições econômicas 132 A ausência de pesquisas envolvendo gangues de garotas levou a uma simplificação do entendimento da participação feminina na criminalidade juvenil Em geral as meninas são retratadas como auxiliares ou satélites dos garotos conforme argumentaram Jo e ChesneyLind 1998 Ou seja elas são entendidas a partir do papel masculino o que demonstra nitidamente o androcentrismo das análises das subculturas criminais Estudos etnográficos feministas demonstraram que as garotas que participam em gangues vivem igualmente em comunidades onde as possibilidades de inclusão em empregos melhores não apenas como trabalhadoras do mésticas particularmente para jovens negras são bastante reduzidas Muitas jovens são oriundas de famílias com muitas dificuldades econômicas e têm que ajudar suas mães na subsistência familiar Outras tiveram que abandonar os estudos e não estão preparadas para o mercado de trabalho A situação dessas garotas é agravada pela estrutura patriarcal das comunidades onde os homens mesmo não sendo provedores ainda representam uma oportunidade para elas Em geral elas tornamse mães muito jovens muitas em virtude do abuso sexual que sofreram vivem sem companheiro abandonam as famílias vivem nas ruas e são novamente vitimizadas sexualmente Outras apesar de viverem com a família são agredidas com maior frequ ência que os meninos Assim segundo Joe e ChesneyLind 1998 estes fatores revelam que a participação feminina nas gangues envolve as relações de gênero raçaetnia e classe além de ser muito mais complexa do uma simples rebeldia contra a noção tradicional de feminilidade Isto é há uma natureza multifacetada no envolvimento das garotas em gangues e diferenciada das razões masculinas Nesse sentido a pesquisa realizada por Joe e Chesney Lind 1998 com garotos e garotas envolvidas em gangues no Havai revelou que ambos encontram nesses grupos um 133 apoio para lidar com os problemas da vida diária de suas comunidades marginalizadas Ou seja diferentemente do entendimento de Cohen 1955 de que as subculturas juvenis representam a resposta não adaptada dos jovens das classes trabalhadoras aos valores das classes médias o racismo a falta de oportunidades de emprego as relações de gênero permeiam as implicadas razões para o ingresso feminino e masculino em gangues Além disso a gangue é também uma saída social para as jovens e os jovens contra a chatice da vida de poucos recursos econômicos que os impede de usufruir dos bens sociais tendo em vista que ela fornece amigos e para as garotas constrói uma espécie de proteção contra o abuso físico e sexual dentro das suas casas No entanto há diferenças de gênero interessantes pois para os garotos a violência brigas é parte da vida da gangue mas para as garotas não necessariamente A venda de drogas é mais frequente em gangues masculinas para ganhar dinheiro do que em femininas CHESNEYLIND 1995 p 102103 Desta forma as análises devem ter em conta as relações estruturais de gênero classe etnia para um entendimento mais complexo das razões pelas quais garotos e garotas ingressam em gangues Por outro lado as delinquências masculina e fe minina foram consideradas idênticas em violar o toque de recolher ficar bêbado e fumar maconha ou ainda vadiar dentro de casa ou em lugar deserto embora a frequência com que os atos são cometidos possa variar entre garotos e garotas Outro aspecto desenvolvido pelas análises feministas está relacionado ao envolvimento em brigas pois a briga entre os jovens ajudaria a construir uma imagem de virilidade dos homens em relação às mulheres Ser o mais forte também é um atrativo sexual para as meninas que quando saem com o mais forte afirmam essa masculinidade 134 53 A teoria das associações diferenciais A teoria das associações diferenciais de Edwin Su therland 1940 rompeu com o padrão de pesquisar as classes mais pobres e dirigiu seus estudos para o crime do colarinho branco e sua relação com a política No entanto apesar de inovar e romper com as perspectivas das pato logias individuais e sociais as feministas não pouparam críticas ao autor Sutherland 1940 afirma que os indivíduos aprendem a definir os códigos legais como favoráveis e desfavoráveis e que a sociedade estadunidense possui normas conflitivas possibilitando aos indivíduos cumprirem ou não cumpri rem a lei Conforme o princípio da associação diferencial a pessoa se torna delinquente em virtude da maior expo sição a comportamentos criminais em oposição aos não criminais Desse modo as mulheres seriam mais expostas a normas definições e padrões desfavoráveis à violação da lei O autor afirma que provavelmente a maior diferença é que as meninas são supervisionadas mais cuidadosamente e se comportam de acordo com padrões de comportamento anticriminal anticriminal behaviour patterns ensinados a elas com mais cuidado e consistência que no caso dos meninos NAFFINE 1987 Assim enquanto que as meninas são ensinadas a se rem boas os meninos são construídos para serem rudes e resistentes Sutherland 1940 ainda sugere que essas diferenças podem ter nascido do fato de que as mulheres ficam grávidas e requerem mais cuidado LEONARD 1982 No entanto parece ser difícil sustentar que a grande diferença comportamental entre homens e mulheres possa ter essa origem A associação criminal e não criminal varia em frequ ência duração prioridade e intensidade enquanto que as 135 estatísticas criminais entre homens e mulheres variam ainda que pertençam a mesma comunidade casa ou vizinhança Já a posição social altera determinando a frequência e a inten sidade dos padrões de delinquência e de não delinquência ou a frequência de oportunidades para cometerem crimes Sendo assim as meninas seriam mais isoladas de padrões criminais e controladas por um período mais longo que os meninos No entanto a crítica feminista aponta que as mulheres tendem a cometer crimes em idade mais tardia que os homens quando se sentem mais livres da supervisão que costuma prevalecer NAFFINE 1987 Ou seja a tardia criminalidade feminina não seria explicada pela associação diferencial Por isso Naffine 1987 afirma que Sutherland is neither general nor genderneutral in his depiction of crime and society Conforme argumenta Eileen Leonard 1982 a pers pectiva da teoria da associação diferencial considera que a criminalidade feminina decorre da socialização das mu lheres para o casamento homogeneizando as mulheres em contrapartida à diversidade de oportunidade masculinas Se a criminalidade é aprendida com um grupo pessoal íntimo a família é o grupo mais próximo das mulheres mesmo durante a adolescência Assim segundo Sutherland 1940 a socialização comum das mulheres em um único papel que demanda delas atributos opostos aos valores da sociedade em geral revela a hegemonização cultural feminina pois desde a infância as meninas são ensinadas que elas devem ser boas enquanto os meninos são ensinados que devem ser rudes e duros A homogeneidade feminina contrasta com a diversi dade da cultura geral masculina O altruísmo feminino ou ser boa diverge do egoísmo masculino As restrições da experiência feminina contrastam com a persecução ili mitada dos ganhos do resto da sociedade masculina Isto é a perspectiva de Sutherland 1940 reforçaria as noções 136 estereotipadas do masculino e feminino pois as mulheres pelo seu comportamento conformista aprendido desde a infância não participariam da vida criminal devido às diferenças na socialização de gênero A teoria criminológica oferecida por Sutherland 1940 para explicar o diferente comportamento dos sexos implica a simples afirmação de que sempre que o indivíduo é do sexo feminino a diversidade cultural é extinta e os padrões anticriminais são incentivados Isso sem falar da liberdade de movimento que também é reduzida quando o sujeito é do sexo feminino Assim quando o indivíduo é do sexo masculino uma vasta gama de padrões criminais e anticriminais estão disponíveis para o aprendizado mas as mulheres são banidas das culturas masculina e do crime pois o seu lugar é na família NAFFINE 1987 No entanto independentemente do sexo as pesquisas feministas tem demonstrado que seria a proximidade com amigos delinquentes que conduziria a um comportamento ilegal conforme mostrou Nafinne 1987 Da mesma for ma as variáveis de cor raçaetnia condição social também podem influenciar diretamente no comportamento delin quente razão pela qual a socialização diferenciada não pode explicar a diferenciação do desvio entre as próprias mulheres segundo as argumentações proferidas por Leonard 1982 Desse modo podemos verificar que tanto as perspectivas teóricas apresentadas tanto por Cohen 1955 quanto por Sutherland 1940 reforçariam os estereótipos de gênero 54 As teorias do controle As teorias do controle também foram objeto da crítica fe minista em especial as formuladas por Travis Hirschi 1969 e John Haggan 1979 Hirschi 1969 inverte a questão até então perguntada pelos criminólogos de porque as pessoas os homens cometem crimes para porque elas 137 não cometem O que é problemático e problematizado é portanto aquilo que passou a ser chamado de compor tamento normal DIAS ANDRADE 1992 Para as criminólogas feministas a inversão da pergunta deveria tomar como base o comportamento feminino já que as mulheres são tidas como mais cumpridoras das normas pois quanto mais a pessoa está comprometida e envolvida em comportamentos e instituições convencionais emprego estudos carreira mais irá calcular os custosbe nefícios de viver em sociedade e usufruir das gratificações esperadas No entanto esse comportamento tradicional mente feminino é agora visto como racional e inteligente para os homens enquanto que as mulheres continuam a ser vistas como passivas A tarefa dos criminólogos supracitados era explicar o comportamento em conformidade com a lei isto é a natureza e a força dos vínculos que ligam o indivíduo à sociedade convencional e as resistências interiores e ex teriores que os levam a refrear os impulsos e obedecer a lei Por conseguinte explicar o desvio significa explicar as hipóteses de ruptura do vínculo social ou das resistências que asseguram o controle da força dos instintos conforme argumentaram Dias e Andrade 1992 Para Hirschi 1969 a sociedade desenvolve várias maneiras de controlar seus membros e impedir sua ten dência natural ao desvio Estas formas de controle são de quatro tipos apego attachment compromisso commitment envolvimento involvement e crença belif Neste sentido quanto mais uma pessoa está vinculada apegada a pessoas convencionais pais amigos professoras mais sensível às suas opiniões e expectativas e menos provável a conduta desviante Quanto mais comprometida e envolvida em comportamentos e instituições convencionais emprego estudos carreira mais irá calcular os custosbenefícios de viver em sociedade e usufruir das gratificações esperadas 138 E se a pessoa acreditar e validar as regras da sociedade con vencional sua escolha será não cometer crimes Conforme as teorias anteriores tanto de Cohen 1955 quanto de Sutherland 1940 as mulheres são mais adaptadas obe decem mais às regras sociais e não cometem crimes Desta forma a teoria de Hirschi 1969 sendo uma teoria da conformidade às regras levaria como consequ ência a estudar a conformidade feminina para explicar a masculina No entanto essa não foi a perspectiva seguida pelo autor que assim como os demais criminólogos ten tou provar sua tese através do estudo da conformidade masculina Segundo Hirschi 1969 a obediência às regras implica em um cálculo racional e sensível para não colocar em risco os ganhos de uma carreira ao ser considerado criminoso Por conseguinte a conformidade aparece com um admirável traço de caráter masculino na medida em que o homem passa a ser tratado como um ser racional inteligente e enérgico conforme ponderou Naffine 1987 Nas perspectivas dos criminólogos a mulher é o ser conformista A conformidade feminina é considerada passi va não criativa dependente e ausente de faculdades críticas Todavia como Hirschi 1969 muda o campo do estudo do homem criminoso para o homem conformista transmutam também as qualidades masculinas agora identificadas com a convencionalidade só que de maneira positiva Desse modo o comportamento criminoso passa a ser tratado como um sintoma de imaturidade emocional conforme argumentou Naffine 1987 uma vez que a conformidade feminina passou a ser vista como ausência de realização e iniciativa e portanto uma clara expressão da passividade feminina Já para Haggan 1979 a conformidade será compre endida na perspectiva do maior controle informal familiar sobre as mulheres enquanto que os meninos estão sujeitos a um controle formal legal Na teoria do controle do poder powercontrol theory apresentado pelo autor as mães 139 são os primeiros agentes de socialização que ocorrem na instituição familiar Assim nas famílias com um equilíbrio maior de poder no trabalho entre mãe e pai famílias equi libradas as mães exercerão um controle maior sobre as filhas O maior controle exercido sobre as mulheres deriva da estrutura patriarcal da família que diferencia o controle sobre meninos e meninas quanto mais patriarcal a família maior o controle sobre as meninas e menor a possibilidade de um comportamento desviante Desta forma há maior diferença de gênero na delin quência quanto mais patriarcal a família conforme ponde raram Bates Bade e Mencken 2003 O problema é que a perspectiva de Haggan 1979 considera apenas a família tradicional formada por esposa e esposo para concluir que onde há um equilíbrio de poder há menor diferença de gênero em comportamentos desviantes Além disso também coloca sobre as mulheres mães o peso da responsabilidade da socialização Diferentemente de Hirschi 1969 para Haggan 1979 a delinquência envolve um espírito de liberação ou seja presume a oportunidade de arriscar diante de uma pos sibilidade assim como a chance de buscar publicamente alguns dos prazeres que são símbolo do macho adulto fora da família NAFFINE 1987 Segundo Haggan 1979 a delinquência passa a ser sinônimo de independência e afirmação enquanto que a conformidade feminina é tra tada como passividade queixa dependência e obediência O cumprimento da lei por parte das mulheres é visto como obediência e não como responsabilidade Nessa linha a obediência das mulheres é fruto da maior socialização e do maior controle a que estão sujeitas No entanto pesquisas que tentaram associar os vínculos sociais mais fortes das meninas com a sua conformidade e vínculos sociais frágeis dos meninos à criminalidade não apresentaram resultados conclusivos Por isso Naffine 1987 afirma que primeiro 140 tornarse mais masculino não enfraquece os laços sociais das meninas ou conduz à delinquência Ao contrário a masculinidade parece fortalecer os compromissos conven cionais das garotas e militam contra a criminalidade Uma forte feminilidade entretanto parece não estar relacionada a fortes vínculos sociais e à maior conformidade Em segundo lugar Naffine 1987 afirma que garotas que não são nem particularmente femininas nem masculi nas em suas expectativas têm os mais frágeis laços sociais e estão entre as mais delinquentes Em resumo as garotas não se enquadram nas expectativas femininas e tampouco nas masculinas Isto parece dizer que as expectativas femininas respondem parcialmente para a conformidade feminina na medida em que estão associadas à tendência de maior compromisso e apego aos outros Isto indica que as pes quisas que tentam associar à conformidade das mulheres a menor criminalidade não produziram resultados satisfató rios Por isso Naffine 1987 afirma que although there is a considerable evidence of the greater bonding of females to society this has yet to be linked consistently with either femininity as conventionally conceived or to conformity15 55 A teoria do controle de Garland Mais recentemente a teoria do controle na moderni dade tardia ou à análise de Garland 2008 foi escrutinada por Gelsthorpe 2004 A autora chama a atenção para o fato de Garland 2008 não incorporar a contribuição feminista para entender o tratamento das mulheres que cometem e que são vítimas de crimes Como o gênero entra nesta nova abordagem da cultura do controle 15 Embora haja uma evidência considerável do maior vínculo das mulheres com a sociedade isso ainda deve ser ligado de forma con sistente ou com a feminilidade como convencionalmente concebido ou à conformidade Tradução livre 141 O livro intitulado A cultura do controle de David Garland16 2008 oferece uma detalhada análise históri cocultural do desenvolvimento do controle do crime no final do século XX quando ocorreu a substituição do estado do bem estar penal previndenciarismo penal pelo moderno controle penal criminologia cotidiana every day criminology e gestão de risco dentre outras características presentes na modernidade tardia No entanto o tratamento das mulheres dentro do sistema de justiça criminal está relacionado a uma noção familista de justiça que tanto tem persistido como retro cedido ilustrando as políticas penais dualistas e polarizadas do chamado punitivismo populista descrito por Garland 2008 O tratamento convencional das mulheres ao lado do tratamento convencional de jovens resume as ideologias de bemestar penais que foram amplamente deslocadas por estratégias de controle da criminalidade Além disso os recentes aumentos no número de mulheres condenadas à prisão são inexplicáveis e apontam para um paradoxo conforme avaliou Gelsthorpe 2008 A segunda onda do feminismo emergiu no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 coincidindo com a crise da modernidade e o estabelecimento do previdenciarismo penal e da penalogia progressista Contudo na metade da década de 1970 o apoio ao previdenciarismo começa a ruir em virtude de forte pressão contra suas premissas e práticas conforme ponderou Garland 2008 Esse processo de mudança foi precedido pela crítica ao correcionalismo e pelo ataque às penas indeterminadas e ao tratamento individualizado Isso levou a alterações importantes nas leis relativas ao julgamento nas práticas prisionais no livramen to condicional na liberdade vigiada e no discurso político 16 A publicação original do autor na língua inglesa é de 2002 Neste artigo utilizase a versão em língua portuguesa publicada em 2008 142 e acadêmico sobre o crime uma vez que as críticas contra o correcionalismo nos Estados Unidos na década de 1970 tinham por objeto o uso discriminatório do poder punitivo pelo sistema de justiça criminal particularmente através do encarceramento de negros pobres jovens e minorias cul turais o que era escamoteado pelo modelo do tratamento individualizado conforme descreveu Garland 2008 em seu livro intitulado A cultura do controle No final dos anos 1970 a criminologia positivista nos EUA e GrãBretanha sofreu um forte ataque da crítica acadêmica oriunda tanto da teoria rotulacionista e da etnometolodologia como do marxismo e da filosofia da ciência GARLAND 2004 E é exatamente neste período que começam as críticas feministas à criminologia atacando seu caráter androcêntrico e as explicações positivistas para a criminalidade das mulheres Esse é o ponto acentuado por Gelsthorpe 2008 que leva a autora a perguntar Por que Garland não apresentou as análises feministas na ca racterização da crítica ao positivismo Por que não foram consideradas como parte da crítica radical ou mesmo de forma independente Ao que tudo indica a inclusão pode ria alterar fundamentalmente a crítica da criminologia feita por Garland 2008 da transição do previdenciarismopenal para uma cultura de controle GELSTHORPE 2004 O tratamento que as mulheres recebem do sistema de justiça criminal é ilustrativo pois segundo Garland o axioma básico do previdenciarismo penal se fundamenta na seguinte afirmação medidas penais devem sempre que possível se materializar mais em intervenções reabi litadoras do que na punição retributiva incluindo leis que permitiam a condenação a penas indeterminadas vinculada à liberda de antecipada e à liberdade vigiada varas de crianças e adolescentes informadas pela filosofia 143 do bemestar infantil o uso da investigação social e de relatórios psiquiátricos a individu alização de tratamento baseada na avaliação e classificação específica pesquisa criminológica focada em questões de fundo etiológico e na efetividade do tratamento trabalho social com os condenados e suas famílias e regimes de custodia que ressaltavam o aspecto socializador do encarceramento e após a soltura a impor tância do amparo no processo de reintegração GARLAND 2008 p 104 Gelsthorpe 2004 alerta que discurso patológico so bre o comportamento das mulheres criminosas existente na década de 1970 serviu ao previdenciarismo penal já que a diferenciação no tratamento dos delinquentes mas culinos e femininos acarretou em uma série de mudanças significativas no século XIX que vão desde as disposi ções especiais para o serviço das mulheres na polícia para tomar depoimentos de mulheres e crianças aos planos para a reforma do sistema prisional feminino de modo a acomodar as suas necessidades especiais GELSTHORPE 2004 p84 Desse modo os arranjos institucionais para as mulheres a condenação de mulheres e o conteúdo dos regimes institucionais previstos para mulheres e meninas refletem o conteúdo do previdenciarismo penal descrito por Garland 2008 As pesquisas feministas têm demonstrado que o trata mento penal dado às mulheres assentavase na patologia na domesticidade e na respeitabilidade Essas características do tratamento feminino não eram observadas no tratamento dado aos homens pois a criminalidade masculina inseriase no discurso da normalidade e da racionalidade Portanto o tratamento dado às mulheres nas prisões durante o previ denciarimo penal evidenciava a disciplina a infantilização a medicalização a feminização e a domesticidade 144 Essas caracterizações que informam o tratamento dado às mulheres nas prisões não fazem parte do relato de Garland 2008 Se as políticas penais de reabilitação do previdenciarismo penal deram lugar a práticas mais puniti vas parece que isto não ocorreu com as mulheres Segundo Gelsthorpe 2004 as duas estratégias reabilitação e práticas punitivas mais severas particularmente nas sentenças de mulheres à prisão coexistiram Assim como o aumento da punitividade sobre as mulheres contraditoriamente ao risco que elas oferecem é reflexo da cultura do controle que estaria omitida na análise de Garland 2008 Outro aspecto importante do novo controle social se dá a partir do ressurgimento da vítima ou o victimological turn Segundo Garland 2008 até a década de 1970 o papel das vítimas no sistema de justiça criminal limitavase a ser denunciante e testemunha em vez de ser parte ativa do processo Desta forma os danos sofridos pelas vítimas passavam despercebidos ou não eram ressarcidos Até re centemente a resposta padrão do sistema era de que os in teresses das vítimas se confundiam com o interesse público e que a longo prazo as políticas correcionalistas estatais atenderiam tanto o interesse público quanto o do ofensor Segundo Garland 2008 essa resposta viria a ser con siderada lacônica e de credibilidade duvidosa tendo em vista que nos anos 1980 e 1990 as vítimas passam a ter outro tra tamento das agências policiais e do sistema de justiça crimi nal incentivadas pelos movimentos organizados das vítimas Assim desde os anos 1980 as agências policiais acusatórias e judiciais incorporaram às suas políticas a prestação de infor mações às vítimas o tratamento mais sensível o oferecimento de apoio e a recompensa pelos danos sofridos possibilitando o surgimento de novas formas de justiça restaurativa media ção entre o criminoso e a vítima e programas de tratamento às vítimas foram conferidos direitos e a participação ativa no processo GARLAND 2008 145 Os estudos e preocupações feministas deram uma nova atenção às vítimas e estabeleceram uma nova agenda voltada para as características das vítimas de crimes as atitudes da sociedade para o crime bem como os efeitos da crimina lidade na comunidade Na década de 1960 e 1970 durante a segunda onda do movimento feminista foram criados os Movimento de Mulheres Refugiadas Womens Refuge Movement e os Centros de Crise de Estupro Rape Crisis cujo objetivo era atender as mulheres sobreviventes Contudo conforme ponderou Gelsthope 2004 Garland faz silêncio a respeito desse assunto O feminismo tem uma importante contribuição no aparecimento da vítima e consequentemente no diferen ciado entendimento das agências do sistema penal Desta forma talvez as respostas à cultura do controle descritas por Garland 2008 tenham sido forjadas de outra maneira conforme sustenta Gelsthorpe 2004 Ao justapor a discussão das vítimas com o medo do crime Garland 2008 parece sugerir que por trás do au mento da preocupação com as vítimas está o medo do crime pelo menos refletido pelos políticos e pelas mídias corporati vas De fato o medo do crime é um problema político assim como a própria sensação desse medo que é perceptível pelo aumento do número de grades nas casas pelos sistemas de segurança privados etc Ou seja o medo de estranhos No entanto essa preocupação não é a mesma quando se trata do reconhecimento do medo privado das vítimas de violência doméstica e crianças vítimas de abuso sexual O perigo maior para as mulheres e crianças não é externo mas vem do interior de suas casas é de homens da família ou familiares homens Todavia algumas medidas próprisão proarrest uni dades de polícia especializadas depoimentos em vídeo ou depoimento sem dano para crianças e o trabalho das feministas com a polícia no desenvolvimento dessas 146 políticas contradizem um pouco a noção predominante do controle do crime e deveriam ser melhor analisadas por Garland 2008 já que o autor sustenta que há uma redefinição na responsabilidade do controle do crime pois com o reconhecimento da capacidade limitada do estado a comunidade aparece como uma solução para os problemas do controle do crime conforme ponderou Gelsthope 2004 Nesse sentido as iniciativas de parcerias público privadas e de policiamento comunitário com agências e organizações não estatais formam uma rede informal de controle do crime que atuaria em parceria com o sistema estatal redefinindo uma estratégia de responsabilização No entanto quando se analisa se essas estratégias atingem as mu lheres vítimas de violência dentro de suas casas verificase que não estão desenhadas para tal Em decorrência disso a análise de Garland 2008 diz respeito ao controle dos homens estranhos já que a análise do controle produzida pelo autor não supera a dicotomia público x privado há muito denunciada pelas feministas e mantém tanto o olhar quanto as investigações sobre os processos que envolvem homens em atuação pública reificando a tradicional visão da criminologia 56 As teorias do desvio As teorias do desvio em especial a teoria do labeling appro ach etiquetamento também não ficou imune à crítica feminista Desenvolvida por Howard Becker a perspectiva do labeling consiste no reconhecimento do processo de aplicação e recepção da etiqueta desviante aplicada pelos empreendedores morais a certos grupos sociais que de modo geral se submetem ou exercem menos poder nos mais distintos contextos da sociedade A etiqueta é inter nalizada eficazmente a ponto de os etiquetados recons 147 truírem sua imagem recorrentemente se comportando de acordo com a expectativa atribuída pelo rótulo recebido Em seu livro Outsiders Becker 2008 analisa os mú sicos de jazz etiquetados como desviantes embora nada em sua vida pudesse levar a esse rótulo Mas como não se enquadram na cultura convencional são considerados diferentes pelos outros e também se consideram diferente dos outros A crítica feminista centrouse na visão que Becker tem das mulheres dos músicos ao retratálas como esposas quadradas sem nenhum atrativo As mulheres são con vencionais e por isso podem ameaçar a carreira do mú sico Mesmo as mulheres músicas não são consideradas na análise de Becker 2008 Como observa Naffine the voice or perspective of the women as musician or as wife of musician is entirely absent17 E como esposa ela é invariavelmente sem colorido e conformista NAFFINE 1987 Segundo Naffine 1987 a aplicação da teoria do labeling às mulheres abriu duas perspectivas em crimino logia a primeira seria empregar a observação de perto participante utilizada por Becker 2008 na sua análise dos músicos masculinos para o desenvolvimento de relatos da vida das mulheres A segunda seria adotar a atitude do autor ao descrevêlas como apegadas à sociedade convencional isto é inertes sem colorido e não atraentes Para a autora os poucos esforços da criminologia em aplicar a teoria do labeling às mulheres tomaram a segunda opção Por isso Naffine 1987 aponta como maior pro blema da teoria do labeling approach na sua aplicação às mulheres o modo como tem sido usada para estereotipar e desvalorizar seu sujeito Uma abordagem ao comporta mento social explicitamente concebida para impregnar o 17 A voz ou perspectiva da mulher como música ou como esposa de músicos é inteiramente ausente Tradução livre 148 indivíduo com a racionalidade com um sentido de pro pósito e intenção subjetiva que perversamente expurgou o agenciamento feminino Segundo a autora na versão feminina da teoria do labeling as mulheres não são autoras de críticas sociais como são os músicos de jazz na investigação de Becker 2008 Não há interesse em analisar os relatos das mulheres pois elas não são interessantes ou não tem capacidade de desa fiar ou questionar sua própria posição na sociedade sendo concebidas como objeto ao invés de sujeitos 57 A criminologia crítica E por fim a criminologia crítica18 cuja preocupação inicial com a classe trabalhadora ou com as classes subalternas ex cluiu as mulheres trabalhadoras O recorte dado pela incorpo ração do marxismo entendeu o crime como materialmente construído cujos elementos produtores no capitalismo con temporâneo estariam ligados às inequidades e às divisões na produção material e na propriedade Nesse sentido o direito asseguraria o privilégio das classes favorecidas na medida em que impediria que os subalternos mudem de posição A lógica que permeia a criminologia é a sua preocu pação com o processo estrutural da definição do crime A criminalidade feminina com o ingresso feminino tardio na força de trabalho feminina era considera complementar Assim as mulheres só secundariamente interessariam às análises da nova criminologia Por outro lado o exame a partir de uma perspectiva de classe deveria ser mais refinada para incluir as mulheres Leonard 1982 argumenta que o sexismo tem um papel diferenciado sobre o processo de criminalização Ho mens e mulheres têm diferentes posições sociais dentro do 18 Sob a denominação de criminologia crítica reúno diversas pers pectivas críticas que tiveram o marxismo como base teórica 149 capitalismo e a opressão sexual é suportada pelas mulheres em todas as classes ao contrário da opressão econômica de homens e mulheres e isto deveria figurar em uma compreensão da criminalidade Quando analisado o entendimento do crime de rua como um acerto com as relações capitalistas as mulheres encontravam dificuldade para aparecer em cena pois não acertam as contas com o capitalismo Mesmo os pequenos furtos femininos não poderiam ser diagnosticados como rebeldia feminina ao capitalismo pois elas não eram a força motriz da produção conforme ponderou Leonard 1982 As formulações iniciais de Baratta também não incor poraram a perspectiva das mulheres conforme podemos lo calizar na crítica de Marcelo Aebi 2004 que paralelamente aponta que essa criminologia crítica apresentada ignora por completo as vítimas No entanto esse autor também se conduz pelo padrão masculino pois ao criticar Baratta afirma que este não identificou que as primeiras vítimas da delinquência são as da própria classe trabalhadora porque moram em bairros perigosos e não podem receber medidas de proteção adequadas Nesse sentido as vítimas são para Aebi 2004 os homens da classe trabalhadora embora o esquecimento das vítimas não seja apenas da criminologia crítica mas de todas as criminologias conforme afirma Larrauri 2006 A análise marxista da nova criminologia ignora que as estruturas econômicas também são erigidas e sustenta das por relações de gênero A sua redefinição do crime que reconhece as divisões de poder e privilégio está intimamente ligada ao modo como a sociedade define e controla a ex ploração Portanto tratar da exploração sexual do aborto e do comportamento sexual das jovens como crime permite a sociedade manter o controle sobre as mulheres As perspectivas radicais iniciais da nova criminologia tanto em Taylor Walter e Young quanto em Quinney tam 150 bém foram cegas às mulheres e não conseguiram distinguir entre as condições de homens e mulheres na sociedade capitalista Contudo foi em decorrência dessa constatação que Leonard 1982 argumentou sobre a impossibilidade de aplicação da criminologia crítica a qualquer entendimento sobre as mulheres e o crime As perspectivas latinoamericana também foram pou co abertas à criminologia feminista embora não haja dúvida de que há em andamento um genocídio contra jovens na América Latina conforme apontou Zaffaroni 2012 ao argumentar que a criminologia está cercada de cadáveres Mas atrás de cada cadáver há uma mãe em sofrimento e em luta por justiça em que a criminologia ou ignora ou analisa perifericamente O impacto da violência genocida na vida dessas mu lheres e o seu papel na busca de justiça também deve ser objeto de análise da criminologia O genocídio em massa deixa atrás de si não apenas os corpos dos jovens mas cor pos em luta e luto de mulheres negras pobres e faveladas em sofrimento eterno na busca pela justiça Todavia essas mulheres são pouco vistas pela criminologia crítica Mesmo a tentativa de Alessandro Baratta 1999 de incorporar o gênero no direito penal e na criminologia pode ser questionada tendo em vista que o autor argu menta que o paradigma da definição ou da reação social foi introduzido cronologicamente na criminologia antes do paradigma do gênero portanto uma criminologia feminista só pode desenvolverse científica e adequadamente dentro do paradigma da criminologia crítica Para Baratta estáse diante de uma criminologia crítica quando a consideração dos processos de defi nição e de reação social vem acompanhada da desigual distribuição do poder de definição e de reação e paralelamente os sistemas da justiça 151 penal interpretados no contexto dos relaciona mentos sociais de iniquidade e em conflito po demos dizer segundo os critérios de classificação por mim utilizados que estamos diante de uma criminologia crítica BARATTA 1999 p 41 Na criminologia crítica esses processos operam dentro de uma relação social de poder materialmente dada onde o sistema de justiça criminal é um sotosistema que contri bui para a produção material e ideológica da desigualdade Assim a construção social da criminalização depende de variáveis gerais tais como as posições de vantagem e des vantagem de força e vulnerabilidade dominação e explo ração que influenciam na repartição desigual dos recursos do sistema criminal diante da proteção de bens e interesses bem como na divisão dos riscos e das imunidades face ao processo de criminalização BARATTA 1999 As variáveis são representadas no plano material pelas posições sociais e no plano simbólico pelos papéis interpretados e são variáveis independentes que condi cionam a seletividade do sistema e variáveis dependentes condicionadas pela seletividade do sistema O sistema de justiça criminal reflete a realidade social e concorre para a sua reprodução Esta interdependência entre o sistema pu nitivo e a estrutura social constitui uma relação complexa Essa complexidade é expressa pela dimensão material e simbólica de cada um dos elementos da relação sistema punitivo e estrutura social que se entrecruzam e se con dicionam mutuamente A complexidade ainda é constatada na localização das variáveis posições sociais gênero etnias instrução etc que entrecruzamse nas mais distintas formas fragmentando as lutas específicas dos grupos avantajados tanto no campo da justiça criminal como no do poder social Por fim a complexidade dessa relação também é revelada pela hetero 152 geneidade dos grupos em desvantagem tanto em relação à sua posição social quanto ao seu papel social Ressaltase que segundo Baratta 1999 essa perspectiva se desenvolve dentro de uma teoria científica da sociedade que entende ser a teoria materialistahistória e dialética marxista razão pela qual insiste que a questão da mulher no sistema de justiça criminal ou da criminologia feminista só pode ser desenvolvida de modo cientificamente correto dentro desta teoria da sociedade Baratta 1999 posicionase contra a proposta des construtivista do conceito de criminalidade e da crimi nologia propugnado por Carol Smart 1976 e Maureen Cain 1990 pois se estas tivessem utilizado o paradigma da reação social entenderiam o conceito de criminalidade da criminologia e não tentariam corrigir a criminalidade etiológica tradicional Para Baratta 1999 o que falta na perspectiva destas teóricas é o questionamento do direito penal em si pois é este o tema central da criminologia Por isso o autor afirma que Somente uma teoria sociológica do direito pe nal como a fornecida pela criminologia crítica aliada ao uso correto do paradigma de gênero neste contexto podem permitir a compreensão das vantagens e das desvantagens das mulheres enquanto objeto de controle e de proteção por parte do sistema de justiça criminal BARATTA 1999 p 45 grifo nosso As afirmações de Baratta 1999 são problemáticas por que se uma criminologia feminista só pode se desenvolver corretamente dentro do paradigma da criminologia crítica significa dizer que ela não pode questionar este paradigma ou ainda que se desenvolver uma perspectiva de gênero fora dele não será cientificamente correta Nesse sentido o paradigma de gênero deve integrarse ao paradigma da 153 reação social e não o contrário conforme sugeriram Carol Smart 1976 e Maureen Cain 1990 O gênero é uma categoria instável conforme argu menta Harding 1993 porque é ele mesmo um conceito em desconstrução por várias perspectivas feministas Portan to não há um conceito correto de gênero mas diferentes perspectivas que podem ser úteis em um momento e não serem aplicáveis em outros Ou ainda o uso da categoria depende da perspectiva adotada teoricamente No obstante há ainda outro problema que encontramos na proposta de Baratta 1999 que se dá a partir do entendimento de que o direito penal é um instrumento de controle do desvio masculino enquanto que o controle informal dirigese às mulheres conforme afirma o autor O direito penal é um sistema de controle es pecífico das relações de trabalho produtivo e portanto das relações de propriedade da moral do trabalho bem como da ordem pública que o garante O direito penal como supraanali sado é dirigido especificamente aos homens en quanto operadores de papéis na esfera pública da produção material O seu gênero do ponto de vista simbólico é masculino Mas também o sistema de controle informal especificamente dirigido às mulheres enquanto possuidoras de papéis no âmbito privado da reprodução natu ral é de gênero masculino sob o ponto de vista simbólico BARATTA 1999 p 4546 O problema desta análise trazida por Baratta 199 é que ela reifica a distinção público controle formal e pri vado controle informal Isto é a análise não sai dos limites da casa patriarcal para usar a expressão de Lauretis 1994 No entanto essas fronteiras já foram desconstruídas pelas feministas uma vez que o controle informal explica apenas em parte a menor criminalidade das mulheres 154 Baratta 1999 ainda afirma que a criminologia pode sim desconstruir a noção de crime sem renunciar a ela própria enquanto disciplina isto é é possível sair do re ducionismo criminológico e estudar a posição da mulher no sistema de controle penal em uma perspectiva multidis ciplinar e desconstruir o conceito de criminalidade sem renunciar à função crítica da criminologia e incorporando o paradigma de gênero Contudo ao incorporar o gênero a criminologia como sociologia crítica do direito penal pode caminhar além da criminologia concebida enquanto ciência dos comportamentos problemáticos isto é sem negar a possibi lidade de comportamentos que possam colocar em perigo bens e direitos No entanto admitindo uma pluralidade de construções sociais desses comportamentos sob a ótica da interdisciplinaridade e da multidisciplinariedade parece estar concordando com Smart 1976 Em primeiro lugar porque a criminologia passaria a ser uma sociologia do direito penal isto é não seria mais uma criminologia Se gundo porque se instruiria de saberes de outras disciplinas o que já faz parte de sua natureza multidisciplinar e assim o fazendo suas preocupações poderiam deslocarse para esses outros campos de saber No entanto a concordância é aparente porque na proposta de Baratta 1999 a sociologia do direito penal tem a centralidade na sua relação com poder punitivo enquanto que para Smart 1976 os problemas com as mulheres incluindo as violências podem ser pensados a partir de outras disciplinas ou seja para Smart 1976 o feminismo não necessita da criminologia Como se observa em quase todas as teorias analisadas as mulheres e as questões postas pelo feminismo estão au sentes Desse modo como responder ao questionamento sobre a violência doméstica da violência sexual das mortes de mulheres feminicídio e mesmo do aborto O aborto 155 diz Smart 1976 era crime em 1962 na Inglaterra e nem por isso foi preocupação dos criminólogos radicais Notase então que o pensamento criminológico dos autores aqui estudados não reconheceu a existência das mulheres e da especificidade da violência de gênero desde a sua fundação e só o fez recentemente e por pressão femi nista Por isso afirma Smart 1976 a pergunta que deve ser feita é o que a criminologia tem a oferecer ao feminismo e não o contrário pois a criminologia necessita mais do feminismo do que o reverso Assim observase que a crítica que alguns criminó logos e criminólogas tem feito ao feminismo de não in corporar a perspectiva da criminológica é falsa pois quem de fato esqueceu as mulheres foi a criminologia em sua vertente tradicional A criminologia feminista há muito entendeu os limites do direito penal na proteção das mulheres ao mesmo tempo em que denunciou as consequências e efeitos da ausência do direito penal A criminologia feminista póscrítica ou pósmo derna oferece perspectivas teóricas para discutir a relação entre as mulheres e o direito penal que prescindem da criminologia a exemplo dos estudos de gênero dos feminismos negro e queer Assim apropriandonos de Smart 1976 talvez seja possível repetir que a mulher pósmoderna o feminismo possa abandonar o homem atávico a criminologia sem comprometer a crítica à utilização do sistema penal 58 Referências AEBI MF Crítica à criminologia crítica uma leitura esceptica de Baratta In PEREZALVAREZ F Ed Serta in Memoriam Alessandri Baratta Salamanca Ediciones Universidad de Salamanca 2004 BARATTA A O paradigma de gênero da questão criminal à questão humana In CAMPOS CH Org Criminologia e Feminismo 1999 p 1980 156 BATES K BADE MENCKEN F Family Structure Power Control Theory and Deviance Extending Powercontrol Theory to Include Alternate Family Forms Western Criminology Review 4 sl n 3 p170190 2003 BECKER Howard S Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 CAMPOS CH Ciências Criminais um campo ainda masculine Boletim de Ciências Criminais São Paulo IBCCRIM ano 24 no280 março2016 p2 Teoria Crítica Feminista e Crítica às Criminologias estudo para uma perspectiva feminista em criminologia no Brasil Tese de Doutorado Porto Alegre PUCRS 2013 CAIN M Towards a transgression new directions in feminist criminology Michigan International Journal of Sociology of Laws 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David Garlands analysis of The Culture of Control Critical Review of International Social and Political Philosophy v 7 n 2 p 76103 Summer 2004 HAGGAN John The stratification of social control a gender based perspective on crime and delinquency British Journal of Sociology London n 19 v 2 1979 HARDING S A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista Revista Estudos Feministas Rio de Janeiro v 1 n 1 p 0732 1993 HIRSHI Trevis Causes of delinquency Berkeley University California Press 1969 JOE K CHESNEYLIND M Just every mothers angel an analysis of gender and ethnic variations of youth gang membership In DALY K MAHER L Eds Criminology at the crossroads feminist readings in crime and justice Oxford Oxford University Press 1998 LARRAURI E Una defensa de la herencia de la criminologia crítica a propósito del artículo de Marcelo Aebi Crítica de la Criminologia Crítica una crítica esceptica de Baratta Madrid Revista de Derecho Penal y Criminología 2006 LARRAURI Elena La herencia 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poder uma vez que a acepção dos efeitos do poder através da repressão resulta de uma concepção meramente jurídica deste mesmo poder que era aceito por todos Uma das principais características da nossa atual so ciedade ocidental chamada por Foucault ora de sociedade de normalização19 ora de sociedade de segurança20 funda 19 Ao manter seu foco nos dispositivos de poder que centram suas análises nas especificidades estratégicas e nas diferentes táticas utili zadas como tecnologias de poder jurídica disciplinar e biopolítica de segurança Foucault propôs que as articulações constituídas em cada sociedade são dadas por suas épocas históricas particulares Deste modo o autor constatou que os dispositivos de segurança funcionam sob suas próprias táticas configurando em sua con temporaneidade aquilo que ele denominou de uma sociedade de segurança FOUCAULT 2008a p15 20 Segundo Foucault 2000 existe um elemento comum que transita entre o poder disciplinar e o biopoder entre a disciplina e a regu lamentação possibilitando o exercício do poder através da ação de Uma Genealogia do Poder em Foucault 160 mentase no fato de que só conseguimos exercer o poder através da produção da verdade constituída sobretudo a partir de dispositivos tecnologias e mecanismos abalizados em conflitos permeados por relações entre saber e poder Todos nós somos coagidos a produzir verdade pelo poder pois ele a exige e necessita dela para poder funcionar Como temos que dizer a verdade somos não apenas violentados mas condenados a encontrála e confessála Sendo assim o poder não para de questionar de in quirir de registrar ele institucionaliza a busca pela verdade ele a profissionaliza e a recompensa Determina que se pro duza a verdade da mesma maneira com que se produzem riquezas Ele aconselha que se produzam verdades para se produzir riquezas Portanto não apenas verificase que população vive sob a égide da verdade justamente porque ela é a norma como também é o discurso verdadeiro que ao menos em parte delibera e a propaga propulsando efeitos de poder Em resumo ele julga condena classifica obriga a tarefas destinadas a não apenas viver mas também a morrer de determinada forma em função de discursos verdadeiros que apresentam consigo efeitos específicos do poder FOUCAULT 2000 p 2829 A estrutura estatal do direito e seu campo jurídico são entendidos na perspectiva foucaultiana como constantes veículos das relações de dominação e das técnicas de su jeição polimorfas Para compreender a operacionalidade dessas relações é necessário examinar o direito não sob certa ordem disciplinar do corpo que culmina com a ordem de toda a população Esse elemento é chamado de norma uma vez que ele pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar Portanto a norma da disciplina e a norma da regulação dão origem ao que Foucault chama de sociedade de normalização uma sociedade regida pela norma ambivalente na qual coexistem indivíduo e população corpo e vida individualização e massificação disciplina e regulamentação 161 o aspecto de uma legitimidade a ser afixada mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática É somente dessa forma que seria possível evitar o problema central do direito e da obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania fazendo com que apareça em seu lugar o problema da dominação e da sujeição A abordagem apresentada pela analítica foucaultiana não procura analisar necessariamente as formas regula mentadas e legitimadas pelo poder em seu centro e no que podem ser seus mecanismos gerais ou seus efeitos conjuntos Ao contrário versa sobre a apreensão do entendimento acerca do funcionamento do poder em suas extremidades em seus últimos esboços onde ele se torna capilar ou seja tomar o poder em suas formas e instituições mais locais e portanto para além das regras do direito que o organizam e o delimitam Foucault 2000 não tratou do poder como um fenô meno de dominação espesso e homogêneo compreendido como o exercício da superioridade de um indivíduo de um grupo ou de uma classe sobre outra O autor o analisou como algo que circula trabalhando em cadeia como algo que jamais estará circunscrito nas mãos de alguns e jamais será confiscado como riqueza ou bem Para ele o poder funciona e se exerce em rede Nela os indivíduos não somente o circundam como também podem se submeter a esse poder além de exercêlo ocasionalmente Portanto os indivíduos que são concomitantemente os efeitos e os intermediários do poder jamais são o alvo inerte que con sente o poder são sempre os seus mediadores na medida em que o poder não se aplica a eles mas transita por eles A análise foucaultiana sobre a dominação global que se intensifica e repercute até embaixo mostra como esses pro cessos se deslocam se estendem se modificam e sobretudo como são investidos e anexados por fenômenos globais No entanto ao invés de orientar sua pesquisa genealógica 162 sobre o poder por meio de análises exclusivamente situadas no âmbito jurídico da soberania dos aparelhos do Estado e das ideologias que o seguem Foucault 2000 buscou construir sua investigação para além das margens do direito na medida em que passou a orientar seus trabalhos para o nível da dominação que ultrapassa a soberania ou seja para o plano das formas de sujeições resultantes dos operadores materiais e imateriais das conexões e utilizações locais permeadas pelos dispositivos de saber Segundo o autor era de fundamental importância que nos desvencilhássemos da exclusividade do modelo Leviatã de Hobbes envolvido por um modelo de homem artificial autômato fabricado e unitário igualmente que trata dos indivíduos reais que tem o corpo como cidadãos e a alma como soberania era preciso estudar o poder fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado tratase de analisálo a partir das técnicas e táticas de dominação FOUCAULT 2000 p 40 Embora o poder seja exercido nas sociedades moder nas por meio de um jogo de heterogeneidade perpassado não apenas pela disciplina mas pela soberania mecânica e polimorfa presente no direito público não é possível com provar sua atuação através destes dois elementos de maneira isolada Ele não é exercido nem por um direito soberano explícito e nem por disciplinas obscuras que agem de ma neira discreta e profunda Para Foucault 2000 a mecânica do poder é resultado da atuação concomitante de distintas forças que são equalizadas dependendo das conjunturas posições e necessidades particulares de seu exercício As disciplinas não somente têm o seu discurso próprio como também criam aparelhos de saber de saberes e de campos múltiplos de conhecimento na medida em que levam consigo discursos que transpõem o campo jurídico já que o discurso da disciplina muitas vezes é estranho ao da lei ou seja é alheio ao da regra que opera como efeito 163 da vontade soberana As disciplinas apresentam um discur so que não trata daquele usado na letra da regra jurídica derivada da soberania mas o de regras móveis efêmeras e fluidas decorrentes da incorporação à norma Assim elas demarcam um código que não é necessariamente ampa rado na lei mas na normalização aludindo a um edifício teórico que não será o edifício do direito mas o campo das ciências humanas fundamentadas principalmente em um saber clínico não foi através de um progresso da racio nalidade das ciências exatas que se foram cons tituindo aos poucos as ciências humanas Eu creio que o processo que tornou possível o discurso das ciências humanas foi a justaposição o enfrentamento de dois mecanismos e de dois tipos de discursos absolutamente heterogêneos de um lado a organização do direito em torno da soberania do outro a mecânica das coerções exercidas pelas disciplinas Que atualmente o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas que essas técnicas da disciplina que esses discursos nascidos da disci plina invadam o direito que os procedimentos de normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei é isso acho eu que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma sociedade da normalização FOUCAULT 2000 p 4546 Ao constatar que nas sociedades de normalização e de segurança o poder atua concomitantemente através do direito e das técnicas de disciplina promovendo pro cedimentos de normalização que cada vez mais incidem sobre as leis é possível verificar que ele não foi tratado por Foucault 2010 meramente como o sentido do discurso uma vez que o discurso está perpassado por uma série de 164 elementos que atuam no interior dos mecanismos gerais do poder No entanto é imprescindível considerálo como uma sequência de acontecimentos também políticos atra vés dos quais o poder é vinculado e orientado todos estes elementos pertencem a um sistema de poder no qual o discurso não é senão um componente que se relaciona a outros ou seja elementos de um conjunto FOUCAULT 2010 p 254 62 Diferentes contextos e operacionalidades do poder Foucault 2010 não somente foi o primeiro a apontar de forma sistematizada à estreita relação entre o cristianis mo e a obediência integral como também discutiu sobre o conhecimento de si mesmo e da verbalização alocados em circulação através da introdução das técnicas de exame disciplina controle de consciência e confissão conforme expôs em seu texto de 1979 intitulado Omnes et Singu latim Uma Crítica da Razão Política FOUCAULT 2010 Além disso o autor ainda mostrou que as técnicas introdu zidas e difundidas pelo cristianismo tinham como objetivo fazer com que os indivíduos renunciassem ao mundo e a si mesmos através da busca pela vida eterna resultando na produção de certa ética constitutiva dessa identidade cris tã Deste modo a alteração das práticas cristãs em antigos pastorados somente se tornou possível em decorrência do desenvolvimento das tecnologias de poder que passaram a incidir intimamente na vida dos indivíduos que interiori zavam certas verdades em suas relações sociais O enfatizar a existência de outras diferentes técnicas políticas e práticas pastorais usadas na história da criação desenvolvimento e aperfeiçoamento das relações de poder que resultaram na produção do Estado Moderno Foucault realizou uma espécie de deslocamento das perspectivas que 165 tratavam da questão do governo analisando não apenas as formas de exercício do poder político e gestão do Estado como também outros demais importantes assuntos que implicavam no governo dos outros e de si Enquanto o governo dos outros foi apresentado pelo autor a partir da conduta dos indivíduos e sobretudo das populações o governo de si foi compreendido como uma relação ética estabelecida com e a partir dos próprios indivíduos e não pressupunha necessariamente a reflexão a autonomia e a liberdade destes contudo implicava o reconhecimento de si mesmos como sujeitos morais produzidos por técnicas modernas de sujeições decorrentes do governo de si pela verdade Em decorrência da busca pela identificação dos jogos de poder e das técnicas utilizadas para regulamentar as ações dos indivíduos por meio do estabelecimento de quais práticas seriam consideradas normais e saudáveis pelas sociedades ocidentais objetivando garantir a manutenção da ordem social já instaurada Foucault constatou a existência de processos de normalização essenciais para a compreensão das relações sociais e das tecnologias de poder existentes na contemporaneidade que passaram a ser utilizadas como procedimentos de separação comparação e classificação dos indivíduos em relação à população a que pertencem Essas tecnologias de identificação social que certa mente têm seus alicerces situados tanto nas remotas prá ticas cristãs quanto nos antigos pastorados sucedendo por transformações fundamentais nos séculos XVII e XVIII decorreram por todos esses anos e ainda hodiernamen te contam com o pleno apoio dos próprios indivíduos que incorporam e reproduzem essas tecnologias de poder geradas por meticulosos e sutis processos de subjetivação que atingem todas às práticas sociais fazendo com que estes não somente aceitem e incorporem as identidades que lhes foram e ainda lhes são atribuídas socialmente 166 como também se inspirem e se reconheçam moralmente nelas na medida em que vivenciam socialmente distintas e diferentes relações As principais ponderações realizadas por Foucault 2000 acerca da política contemporânea estão situadas em suas investigações sobre os mecanismos procedimen tos técnicas e tecnologias de poder individualizantes e totalizantes circunscritas não apenas pelo aparelho estatal mas também por outras relações de poder que ultrapassam os limites jurídicos apresentados pelo Estado Segundo o autor a sobrevivência política dos Estados só foi possível devido conservação e propagação de técnicas cotidianas de poder concomitantemente totalizantes e individualizantes garantidos pela verdade Como julgava que a questão da soberania era apenas o resultado extremo do agenciamento antepassado de domínios capilares dos poderes disseminados pelas redes sociais Foucault 2000 acabou ampliando as suas investigações acerca da política partindo de análises sobre as relações de poder que ultrapassavam as barreiras interpretativas fundamentadas no poder soberano e em sua razão de Estado O conceito de sociedade disciplinar elaborado de forma mais sofisticada e precisa em Vigiar e Punir A História das Prisões apareceu primeiramente na quarta conferência de A Verdade e as Formas Jurídicas Para Foucault 2005 a formação da sociedade disciplinar começou a ocorrer no final do século XVIII e princípio do século XIX marcada por dois importantes aspectos reforma e reorganização do sistema judiciário Já o panóptico de Bentham elemento característico da sociedade disciplinar foi apresentado ini cialmente na quinta e última conferência proferida na Pon tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRJ Para Foucault 2005 o panoptismo era tratado como uma forma de poder que incidia sobre os indivíduos como certa forma de vigilância individual e contínua controlan 167 do punindo recompensando e corrigindoos na medida em que constituía e modificava os indivíduos em função de determinadas normas Portanto vigilância controle e correção apresentadas como elementos fundamentais do tríplice aspecto do panoptismo eram dimensões essenciais e características primordiais das relações de poder presentes naquelas sociedades em que operavam Uma característica do panoptismo que merece ser destacada referese a percepção da vigilância sobre os indi víduos que não se exercia ao nível do que se fazia mas do que se era e do que se poderia fazer A vigilância pretendia possibilitar a individualização do autor do ato deixando de classificar a natureza jurídica e a qualificação penal do próprio ato colocandose de maneira oposta à antecessora teoria legalista Com o surgimento do panoptismo ocorreu um deslocamento de forças a partir do século XVII obs curecendo certo ponto da teoria do direito penal Na época atual todas essas instituições fábri ca escola hospital psiquiátrico hospital pri são têm por finalidade não excluir mas ao contrário fixar os indivíduos A Fábrica não exclui os indivíduos ligaos a um aparelho de produção A escola não exclui os indivíduos mesmo fechandoos ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos ligaos a um aparelho de correção a um aparelho de normalização dos indivíduos O mesmo acontece com a casa de correção ou a prisão Mesmo se os efeitos dessas instituições são exclusão do indivíduo elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em um aparelho de normalização dos homens A fábrica a escola a prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduo a um processo de produção de formação ou de correção dos produtores Tratase de garantir a produção ou 168 produtores em função de determinada norma FOUCAULT 2005 p 114 No entanto para Foucault 2005 era importante esclarecer a oposição entre a reclusão do século XVIII que excluía os indivíduos do círculo social à reclusão que aparece no século XIX tendo por finalidade a ligação dos indivíduos a certos aparelhos de produção formação refor mação ou correção dos produtores apresentandose como uma inclusão decorrente da exclusão Segundo o autor a sociedade industrial só pôde se formar porque o tempo dos indivíduos foi sendo disponibilizado no mercado e ofertado aos que quisessem comprálo em troca de salário sendo o tempo transformado em tempo de trabalho Um importante exemplo desse caso decorre do surgimento das cidades operárias que visavam fixar a população operária no mesmo corpo do aparelho de produção Além disso Foucault 2005 também constatou que a reclusão do século XIX seria resultado de uma combinação de controle moral e social de origem inglesa com a insti tuição propriamente francesa e estatal da reclusão em um local específico edifício instituição com certa arquitetura No sistema inglês do século XVIII o controle era exerci do pelo grupo sobre um indivíduo ou sobre indivíduos pertencentes a um grupo Já no modelo francês quando alguém era internado tratavase sempre de um indivíduo marginalizado em relação à família ao grupo social à co munidade local a que pertencia justamente descumprir as regras estabelecidas através de condutas marginais resultan do em irregularidades e desordens sociais Desse modo o internamento seria uma espécie de resposta aos processos de marginalização que procuravam se humanizar Foi em seu livro Vigiar e Punir A História das Pri sões que Foucault 1997 demonstrou o deslocamento das repressões penais abalizadas nos suplícios em que o corpo 169 supliciado era esquartejado amputado e muitas vezes marcado simbolicamente no rosto ou ombro exposto vivo ou morto para a sociedade para aplicação das emergentes e contemporâneas penas privativas de liberdade A marca a ferro quente foi abolida na Inglaterra 1834 e na França 1832 o grande suplício dos traidores já a Inglaterra não ousava aplicálo ple namente em 1820 Thistlewood não foi esquar tejado Unicamente o chicote ainda permanecia em alguns sistemas penais Rússia Inglaterra Prússia Mas de modo geral as práticas punitivas se tornaram pudicas Não tocar mais no corpo ou o mínimo possível e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente Dirseá a prisão reclusão os trabalhos forçados a servidão de forçados a interdição de domicílio a depor tação que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos são penas físicas com exceção da multa se referem diretamente ao corpo Mas a relação castigocorpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios O corpo encontrase aí em posição de instrumento ou de intermediário qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento pelo trabalho obri gatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem Segundo essa penalidade o corpo é colocado num sistema de coação e de privação de obrigações e de interdições O sofrimento físico a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos FOU CAULT 1997 p 14 Para Foucault 1997 o poder sobre os corpos existiu até meados do século XIX momento quem que o suplício deixou de ser a técnica exclusiva de sofrimento Ao pres 170 supor que os castigos como os trabalhos forçados eou as prisões operavam apenas se estivessem somados a outros complementos punitivos aplicados sobre os corpos tais como a redução alimentar a privação sexual a expiação física e a masmorra etc o autor verificou que a história do encarceramento sempre esteve associado ao fundamento do suplício uma vez que as aplicações de medidas baseadas nos sofrimentos físicos jamais deixaram de existir perpe tuandose nos modernos mecanismos de justiça criminal Esse tipo de conduta amparada no suposto afrouxamento da severidade penal ocorrido nos últimos séculos acabou sendo compreendido pelas sociedades ao longo da história como um fenômeno quantitativo que considerava certa minimização e humanização da pena proveniente da am pliação de discursos sobre a redução do sofrimento e da dor Todavia essas alterações só puderam ocorrer no sé culo XVIII momento em que houve certo investimento na docialização dos corpos por meio da disciplina Ao reconhecer que o corpo humano estava entrando em uma maquinaria de poder que o esquadrinhava desarticulava e o recompunha Foucault 1997 constatou a emergência de uma anatomia política resultante de uma mecânica do poder motivada por minuciosas técnicas disciplinadoras que produziam corpos submissos exercitados e dóceis Essa disciplina suscitava a incidência das forças do corpo em termos de utilidade econômica na medida em que reduzia essas mesmas forças em termos políticos de obediência Assim se a exploração provocada pela economia capitalista separou a força e o produto do trabalho possivelmente a coerção disciplinar instalou no corpo um elo coercitivo entre a competência ampliada e um controle exacerbado Em Vigiar e Punir A História das Prisões Foucault 1997 demonstrou que não estava em busca de fazer uma história das instituições disciplinares e suas especificida des mas de encontrar uma série de exemplos de técnicas 171 essenciais que ao longo dos anos foram se generalizando prontamente Essas por sua vez agiam intimamente e de maneira meticulosa por meio do investimento político e delineado do corpo promovendo uma microfísica do poder que desde o século XVII não cessou de ganhar espaço com a tendência de acobertar plenamente o corpo social Foram essas penetrações portadoras de um poder de propagação que obedecia à economia capitalista através de certas coerções que possibilitaram a mutação de certa racionalidade punitiva na contemporaneidade O poder disciplinar é com efeito um poder que em vez de se apropriar e de retirar tem como função maior adestrar ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor Ele não amarra as forças para reduzilas procura ligálas para multiplicálas e utilizálas num todo Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido separa analisa diferencia leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes Adestra as multidões confusas móveis inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais pequenas células sepa radas autonomias orgânicas identidades e con tinuidades genéticas segmentos combinatórios A disciplina fabrica indivíduos ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e instrumentos de seu exercício FOUCAULT 1997 p 143 A difusão bem sucedida do poder disciplinar implicou na utilização de instrumentos como o olhar hierárquico a sanção normalizadora e suas combinações fundamenta das em um procedimento bastante peculiar chamado de exame Embora tenha situado as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX procedentes à organização dos 172 grandes meios de confinamento Foucault 1997 averi guou que o seu auge foi alcançado somente no início do século XX no momento em que os indivíduos passaram a transitar por diferentes espaços fechados detentores de regras bastante peculiares da família a escola a caserna a fábrica o hospital e em alguns momentos a prisão meio de confinamento por excelência No entanto foi em A História da Sexualidade 1 Vontade de Saber que Foucault 1999 apresentou o desen volvimento dessas tecnologias de sujeições reconhecendo que o poder do discurso de medicalização da vida coti diana desde a reflexão sobre o processo de histerização da mulher da pedagogização do sexo da criança até a psquiatrização do prazer perverso possibilitou a instau ração de práticas discursivas que se constituíram em pa tologizações iniciadas a partir dos séculos XVIII e XIX Nesta obra o autor evidencia as bases do que chamou biopoder mostrando não apenas que o poder pode operar como uma espécie de teia através de ramificações e de forma muito mais horizontal que vertical mas também introduzindo um conceito fundamental em suas investi gações a biopolítica Durante séculos uma das principais prerrogativas constitutivas do poder soberano era o direito de vida e de morte derivada da remota patria potestas que conferia ao pai de família romana a capacidade de dispor da vida de seus filhos e de seus escravos pois como suas vidas eram provenientes dele ele poderia extraílas Segundo Foucault 1999 o direito de vida e de morte estabelecido pelos teóricos políticos clássicos se baseava em um modelo bem definido de poder onde já não se permitia que ele fosse exercido entre o soberano e o súdito de maneira plena e incondicional exceto naqueles casos em que o soberano se encontrava sujeitado em sua própria existência através de um tipo de direito de réplica 173 Para o autor foi a partir da época clássica que o oci dente conheceu a transformação destes mecanismos de poder onde o confisco deixou de ser sua forma prin cipal tornandose somente uma dentre outras que se fundamentavam na incitação no reforço no controle na vigilância na majoração e na organização de forças que lhes eram submetidas O direito de morte acabou se des locando e passando a se sustentar nas reivindicações de um poder gerador de vida e a se organizar a partir de seus reclamos A morte que se amparava no direito do soberano de se resguardar ou de convocar seus súditos para que o defendessem insurgiu como um simples avesso do direito do corpo social que buscava assegurar sua própria vida mantêla ou desenvolvêla Ao ponderar sob o fato de que as guerras nunca ha viam sido tão sangrentas quanto àquelas nascidas a partir do século XIX já que os Estados existentes até aquele momento jamais haviam praticado tamanhas violências físicas e simbólicas com suas próprias populações Foucault 1999 constatou que o poder de morte que começava a aparecer em sua época se apresentava como o complemento de um poder que se exercia sobre a vida empreendendo sua gestão difusão exercício e controles precisos bem como suas regulações Desse modo as guerras acabaram deixando de serem travadas em nome do soberano prote gido na medida em que passaram a ser tomadas em nome das populações Para o autor os regimes só puderam travar esta quantidade de guerras que provocou a morte de tantos indivíduos através da gestão da vida e da sobrevivência dos corpos e das raças o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida O princípio poder de matar para poder viver que sustentava a tática 174 dos combates tornouse princípio de estratégia entre Estados mas a existência em questão já não é aquela jurídica da soberania é outra biológica de uma população Se o genocídio é de fato o sonho dos poderes modernos não é por uma volta atualmente ao velho direito de matar mas é porque o poder e situa e se exerce ao nível da vida da espécie da raça e dos fenô menos maciços da população FOUCAULT 1999 p 149150 A pena de morte bem como a guerra durante certo tempo foram os pressupostos constituintes da resposta do soberano aqueles sujeitos que atacavam sua vontade sua lei ou sua pessoa propriamente Entretanto foi somente a partir do momento em que o poder começou a gerir a vida através de sua razão de ser e da lógica de seu exercí cio que a aplicação da pena de morte passou a se tornar cada vez mais difícil de ser aceita uma vez que ela era ao mesmo tempo o limite o escândalo e a contradição con forme avaliou Foucault 1999 Para o autor a pena capital não seria possível se não houvesse a exposição da eventual monstruosidade do criminoso visto como uma espécie de perigo biológico e sua incorrigibilidade que colocava em risco toda a sociedade Podese dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte FOUCAULT 1999 p 150 63 Biopolítica e racismo de Estado Segundo Foucault 1999 o poder começou a cons tituir seus alvos de demarcação sobre a vida uma vez que a morte passou a ser o limite o limiar que a escapava Esse poder sobre a vida se iniciou no século XVII sob dois pólos de crescimento interligados por todo um feixe in termediário de relações O primeiro se focalizou no corpo 175 como máquina em seu adestramento na intensificação de suas aptidões na extorsão e extração de suas forças na ampliação de sua utilidade e docilidade e principalmente na sua integração em sistemas de controle eficazes e econô micos garantidos por mecanismos de poder que assinalam as disciplinas anátomopolítica do corpo humano o segundo criado posteriormente a partir da metade do século XVIII enfatizou o corpoespécie ou seja um corpo atravessado pela mecânica do ser vivo que tinha como suporte para seus processos biológico a proliferação os nascimentos as mortalidades os níveis de saúde a duração da vida a longevidade e suas demais condições cambiantes onde tais técnicas eram construídas através de uma série de in tervenções e controles reguladores uma biopolítica da população Foi a partir destes dois pólos constituídos de um lado das disciplinas do corpo e de outro das regulações da população que a organização do poder sobre a vida pôde se tornar possível A disposição da anatômica e biológica individualizante e específica destas tecnologias de poder durante a época clássica voltadas para os desempenhos dos corpos caracterizou um poder cuja principal função não era mais extrair a vida mas investila e capturála de cima para baixo Portanto o velho direito de matar simbolizado pelo poder soberano passou a ser paulatinamente substituído pela gestão dos corpos e pela administração cada vez mais árdua e calculada da vida conforme ponderou Foucault 1999 A constatação de que o capitalismo utilizou métodos de poder capazes de elevar as forças aptidões e a vida em geral sem tornálas mais difíceis de sujeitar fez com que este biopoder se tornasse um fator imprescindível para o desenvolvimento deste modo de produção que só conse guiu garantir seu espaço por meio do controle dos corpos nos aparelhos de produção decorrentes de ajustamentos da população aos processos econômicos Ou seja para que o capitalismo pudesse se desenvolver de maneira tão 176 veemente foi necessária a intensificação de certo tipo de poder sobre os corpos fundamentado tanto no seu reforço quanto na sua utilização e docilidade Por mais que o desenvolvimento dos aparelhos estatais como instituições de poder tenham garantido a manutenção das relações de produção no capitalismo foram os rudi mentos de anátomo e de biopolítica iniciados no século XVIII como tecnologias de poder presentes em todas as instâncias do corpo social na medida em que operava por meio de diversas instituições família Exército escola polícia medicina administração das coletividades que possibilitaram a ação em nível dos processos econômicos e de seus desdobramentos Os mecanismos de poder que resultavam destas relações de produção também operavam como fatores de segregação e de hierarquização social inci dindo sobre determinadas forças estabelecidas por relações de dominação a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro foram em parte tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos FOUCAULT 1999 p 154 Segundo Foucault 1999 os acontecimentos asso ciados ao capitalismo a partir do século XVIII em deter minados países ocidentais resultam da entrada da vida na história ou seja do aparecimento dos fenômenos pró prios da vida da espécie humana nos campos do saber e do poder que jaziam circunscritos por técnicas políticas O desenvolvimento de conhecimentos acerca da vida a melhora na utilização das técnicas agrícolas as observações e as medidas visando à sobrevivência dos seres humanos acabaram possibilitando a intensificação deste domínio sobre a vida que afastava algumas das iminências de morte Progressivamente os ocidentais foram reconhecendo e atribuindo importância ao que era ser uma espécie viva em um mundo vivo tendo o corpo as condições de existências 177 as probabilidades de vida as saúdes individuais e coletivas através de forças modificáveis que poderiam ser repartidas em determinados espaços Pela primeira vez na história sem dúvida o biológico refletese no político o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos no acaso da mor te e de sua fatalidade cai em parte no campo de controle de saber e de intervenção do poder Este não estará mais somente a voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte porém com seres vivos e o império que poderá exercer sobre eles deverá situarse no nível da própria vida é o fato do poder encar regarse da vida mais do que a ameaça de mor te que lhe dá acesso ao corpo Se pudéssemos chamar de biohistória as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem em si deveríamos falar de biopolítica para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do podersaber um agente de transformação da vida humana não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem ela lhes escapa continuamente FOUCAULT 1999 p 157158 Foucault 1999 ainda nos alerta sobre os outros efeitos do desenvolvimento do biopoder baseado na relevância cada vez maior da atuação da norma sobretudo a par tir do sistema jurídico amparado na lei Àqueles que a transgrediam poderiam ter como resposta um conjunto de mecanismos ou armas tendo a possibilidade de morte como uma de suas ferramentas Como não se tratava mais de colocar a morte no campo da soberania mas sim de distribuir a vida dos seres humanos em um domínio de 178 valor e utilidade o emergente biopoder passou a ter como objetivo a missão de tratar da vida através de mecanismos contínuos reguladores e corretivos Este poder ascendente procurava qualificar medir avaliar hierarquizar não distin guindo necessariamente os súditos obedientes dos inimigos do soberano conforme ocorria em outras épocas Conforme mostramos anteriormente ROSA 2014 é importante destacar que Foucault 1999 não propõe que a lei ou as instituições de justiça desaparecerão pro gressivamente na medida em que intensificam a captura dos indivíduos por meio do controle sobre suas vidas mas sim que ela tem funcionado cada vez mais como norma fazendo com que as instituições jurídicas passem a se integrar num contínuo de aparelhos médicos administra tivos políticos etc cujas atribuições fundamentamse na regulação Para ele a sociedade normalizadora é um efeito histórico das tecnologias de poder fundamentadas na vida que por mais que ainda operem em todo o mundo por meio de Constituições e Códigos desenvolvidos a partir da Revolução Francesa não conseguem atuar efetivamente sem a presença de um poder normalizar Entre a publicação de Vigiar e Punir A História das Prisões em 1975 e A História da Sexualidade 1 Vontade de Saber em 1976 Foucault 2000 ministrou no Còllege de France o curso intitulado Em Defesa da Sociedade onde também tratou do biopoder como a aplicação do poder à população à vida e aos vivos de forma global mostrando que era possível analisar concretamente essas relações por meio do abandono dos modelos jurídicos de soberania passando a investigálas através dos processos de sujeição pela verdade Já as noções de biopolítica e governamentalidade foram tratadas de forma mais intensa em dois de seus pos teriores cursos no Còllege de France intitulados Segurança Território População ministrado em 1978 e Nascimento da 179 Biopolítica proferido em 1979 No primeiro deles Foucault 2008a ampliou a compreensão da biopolítica inscreven doa a partir do que chamou de arte de governar tratando mais especificamente daquilo que designou de governa mentalidade Entretanto foi somente no segundo que o autor Foucault 2008b desenvolveu de forma ainda mais aprofundada a noção de biopolítica entendendoa não como ideologia21 ou representação social mas como uma tecnologia de governo dos corpos situada no pensamento liberal e no neoliberalismo tratando da governamentalidade liberal a partir de suas versões alemãs e estadunidenses Essas noções são sintetizadas a partir do momento em que o autor afirma que o Estado além de não possuir essência não é ele próprio fonte autônoma de seu poder sendo nada mais que a sua perpétua estatização Portanto a existência do Estado está fundamentada em uma espé cie de governamentalização de sua própria necessidade Certamente uma das grandes contribuições trazidas pela analítica foucaultiana acerca do entendimento do crime e de suas estratégias de contenção se dá através da utilização das noções de governamentalidade e biopolítica pois através delas é possível analisar não apenas as formas com que são elaborados os discursos políticoinstitucionais decorrentes 21 Foucault verificou que a ideologia é uma noção que não se pode utilizar sem precaução por três motivos Em primeiro lugar porque ela está sempre em oposição a algo que seria a verdade pois para o autor o problema não é fazer a divisão entre o que em um discur so provém da cientificidade e da verdade e aquilo que provém de outra coisa mas sim ver historicamente como se produzem efeitos de verdade dentro do discurso que não são em si mesmos nem verdadeiros nem falsos em segundo porque ele se refere necessa riamente a algo assim como o sujeito e em terceiro porque ela está em uma posição secundária em relação a algo que funciona para ela como infraestrutura ou determinante econômico e material Em decorrência disso que a história do saber ou das formas de exercício do poder tal como concebe Foucault é uma história de práticas e não de ideologia CASTRO 2009 p 223 180 de certa razão de Estado mas também compreender como certas técnicas de sujeição atuam sobre a população por meio de uma razão governamental que faz com que os indivíduos assimilem e reproduzam verdades dentre elas a crença de que a única forma de se conter as violências presentes no nosso cotidiano é por meio de práticas re pressivas presentes na linguagem da punição da dor e do sofrimento 64 Referências CASTRO Edgardo Vocabulário de Foucault Belo Horizonte Ed Autêntica 2009 FOUCAULT Michel A Verdade e as Formas Jurídicas Rio de Janeiro Ed Nau 2005 Estratégia PoderSaber Ditos e Escritos IV Rio de Janeiro Ed Forense Universitária 2010 Em Defesa da Sociedade São Paulo Ed Martins Fontes 2000 História da Sexualidade I A Vontade de Saber Rio de Janeiro Ed Graal 1999 Nascimento da Biopolítica São Paulo Ed Martins Fontes 2008b Segurança Território População São Paulo Ed Martins Fontes 2008a Vigiar e Punir Petrópolis Ed Vozes 1997 ROSA Pablo O Drogas e a Governamentalidade Neoliberal Florianópolis Ed Insular 2014 181 7 A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral Precisamos construir um conceito de história que cor responda a essa verdade Nesse momento perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção com isso nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso considerado como uma norma histórica O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis não é um assombro filosófico Ele não gera nenhum conhecimento a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável Walter Benjamin 8ª tese sobre o conceito de história Giorgio Agamben 1942 é um filósofo contempo râneo responsável por uma obra extensa não apenas em volume mas também na variedade de temas que ela aborda Como afirma Alex Murray 2010 O volumoso corpo da obra de Agamben cobre variados campos como a filosofia continental con temporânea poesia literatura do holocausto crítica bíblica estudos de cinema literatura medieval filo sofia do direito antiga e moderna filosofia da linguagem comentários sobre a política italiana e O Homo Sacer e o Estado de Exceção em Giorgio Agamben 182 mundial teorias da amizade arte e estética história da filosofia bem como escritos especulativos críti cos que utilizam a forma de fragmentosTradução livre MURRAY 2010 p 01 No entanto em meio a toda essa vastidão teórica a partir de 1995 ele deu início a publicação de um imenso projeto com profundas reflexões sobre o Estado contempo râneo Nelas a teoria política tradicional é reinterpretada a partir da noção de que o estado de exceção e não o Estado de direito é o verdadeiro paradigma da política que po tencializa um novo olhar sobre não apenas o crime mas as demais condutas violentas resultantes de ações do Estado Esta que ficou conhecida como a série Homo Sacer apesar de não possuir uma cronologia correspondente à estrutura pensada pelo autor até o momento é composta pelas obras Homo Sacer o poder soberano e a vida nua 1995 Estado de Exceção homo sacer II 1 2003 O Reino e a Glória uma genealogia teológica da economia e do governo homo sacer II 2 2007 Stasis A guerra civil como paradigma político homo sacer II 2 201522 O Sa cramento da Linguagem homo sacer II 3 2008 Opus Dei arqueologia do ofício homo sacer II 5 2012 O que resta de Auschwitz homo sacer III 1998 Altíssima Pobreza regra e forma de vida no monaquismo homo sacer IV I 2011 O Uso dos Corpos homo sacer IV II 201423 Esta 22 Este foi o último livro da serie homo sacer publicado até o momento ainda sem versão em português Em sua edição original italiana ele foi anunciado como homo sacer II 2 lugar antes ocupado por O Reino e a Glória Discutese assim se este último passará a ocupar a posição do homo sacer II 4 ou se a sequencia de Agamben passará a ter outra estrutura Todavia o fato de o autor têlo designado como homo sacer II 2 pode indicar sua proximidade com os debates propostos em Estado de Exceção 23 Apesar da maior parte destes livros já terem sido traduzidos para o português as datas mencionadas se referem à publicação de suas 183 série parte do pressuposto foucaultiano de que ao longo da era moderna a vida o corpo biológico do ser humano tornouse o objeto central dos dispositivos de poder Da ideia de que a vida e a morte deixam de ser eventos naturais exteriores ao universo político para se tornarem a própria centralidade das racionalidades governamentais24 Neste sentido o projeto de Agamben se inicia com a investigação de uma figura jurídica do direito romano arcaico conhecida como homo sacer Para ele este instituto seria o paradigma25 a partir do qual poderseia compre ender a relação originária entre vida nua e o poder so berano Assim a implicação da vida nua na esfera política constituiria o próprio núcleo originário do poder sobe rano e neste ponto estaria a intersecção entre o modelo jurídicoinstitucional e o modelo biopolítico do poder AGAMBEN 2002 p 14 Todavia mais do que isso para Agamben a análise do homo sacer como estrutura política originária permitiria trazer a lume a zona de indiscernibilidade na qual a presença desta vida nua como vida desprovida de proteção jurídica é possível o estado de exceção Portanto neste capítulo transitaremos por entre estes dois conceitos que podem ser tomados como os dois eixos centrais a partir do qual a obra política deste autor se desenvolve de um lado o homo sacer e de outro o estado de exceção 71 Homo Sacer Agamben inicia sua análise acerca da figura do homo sacer citando o gramático romano do século II dC Sex versões originais em italiano 24 Cf Capítulo 6 desta obra 25 Para uma visão mais profunda de como Agamben compreende e utiliza o conceito paradigma ver Signatura rerum sobre o método 2009 184 to Pompeu Festo que resume seu conceito da seguinte maneira Homem sacro é portanto aquele que o povo julgou por um delito e não é lícito sacrificálo mas quem o mata não será condenado por ho micídio na verdade na primeira lei tribunícia se adverte que se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro não será considerado homici da Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro AGAM BEN 2002 p 196 Esta que para alguns teria sido a mais antiga pena do direito romano apresenta um aparente paradoxo interno que provocou muitas discussões entre os historiadores e linguis tas ao longo do tempo Afinal como a sacralidade de uma pessoa autoriza seu homicídio e ao mesmo tempo proíbe seu sacrifício De fato o indivíduo sobre o qual se imputava a condição de homo sacer tornavase naquele momento um ser matável na medida em que a sua morte não constituiria crime de homicídio e insacrificável já que também a ela não poderia ser dada a forma ritual do sacrifício Desta forma o homo sacer estava ao mesmo tempo fora da proteção do ordenamento jurídico já que ele poderia ser morto impunemente bem como do ordenamento re ligioso uma vez que sua morte não poderia ser oferecida em sacrifício Uma vida sem proteção e uma morte signi ficado Assim diante desta dupla exclusão Agamben 2002 se distancia dos interpretes clássicos e busca reconhecer a figura da sacratio não em sua dimensão religiosa tentando comparála ao tabu ou ao sagrado e por isso em sua intocabilidade mas sim como uma estrutura política originária que precede as distinções entre sacro e profano ou entre religioso e político e que traz em si a própria concretização da exceção 185 Na medida em que a estrutura da sacratio suspende a aplicação da norma que proíbe o homicídio ela se confi gura como uma exceção ao direito dos homens do mesmo modo como configura também uma exceção ao direito divino em virtude da igual proibição do sacrifício e de qualquer outra forma de morte ritual26 Assim o homo sacer é colocado para fora da jurisdição humana sem ultrapassar os limites da barreira divina Se isto é verdadeiro a sacratio configura uma dupla exceção tanto do ius humanum quanto do ius divinum tanto do âmbito religioso quanto do profano A estrutura topológica que esta dupla exceção desenha é aquela de uma dúplice exclusão e uma dúplice captura que apresenta mais do que uma simples analogia com a es trutura da exceção soberana Assim como na exceção soberana a lei se aplica de fato ao caso excepcional desaplicandose retirandose deste do mesmo modo o homo sacer pertence a Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade A vida insacrificável e todavia matável é a vida sacra AGAMBEN 2002 p 90 26 Neste sentido Agamben 2004 demonstra que mesmo as execuções antigas eram muito mais próximas dos ritos de purificação que do mero ato de retirar a vida de um condenado Em suas palavras As formas mais antigas de execução capital de que temos notícia a terrível poena cullei na qual o condenado com a cabeça coberta por uma pele de lobo era encerrado em um saco com serpentes um cão e um galo e jogado nágua ou a defenestração da Rupe Tarpea são na realidade antes ritos de purificação que penas de morte no sentido moderno o neque fas est eum immolari não é lícito sacrificálo serviria justamente para distinguir a matança do homo sacer das purificações rituais e excluiria decididamente a sacratio do âmbito religioso em sentido próprio AGAMBEN 2004 p 89 186 O retorno à figura arquetípica do homo sacer serve para Agamben como uma forma de perceber a inclusão da vida sem proteção nenhuma da pura vida biológica a vida nua na ordem jurídicopolítica como uma relação política originária a partir da qual soberania e exceção se tornam intimamente relacionadas O espaço político da soberania se constitui nesta zona de indiferença entre sacrifício e homicídio AGAMBEN 2002 p 91 Portanto para Agamben 2002 a gênese política da soberania exprime a sujeição da vida do homo sacer a um poder de morte que está fora da ordem jurídica Tratase da inclusão na ordem jurídica de uma vida que por defi nição está excepcionada à proteção jurídica é a captura pelo poder soberano de uma vida sem qualquer proteção jurídica matável e insacrificável Deste modo a hipótese de Agamben 2002 p 92 construída em diálogo com a tese de Carl Schmitt 2006 sobre a soberania é a de que se soberano é aquele quem decide sobre o estado de exceção e se o homo sacer é aquele que se situa nesta esfera então o soberano e o homo sacer se apresentam como duas figuras simétricas e correlatas soberano será aquele em relação ao qual todos os seres são potenciais hominis sacri e homo sacer aquele perante o qual todos são soberanos Isso significa que ao mesmo tempo em que abaixo do soberano todos podem ser considerados hominis sacri por estarem submetidos ao seu poder de vida e de morte acima do homo sacer todos são soberanos na medida em que todos têm o poder de decidir sobre sua morte Por estas razões Agamben rejeita a interpretação re ligiosa dada à sacratio para pensála em sua função como estrutura política embrionária em sua relação simbiótica com o próprio conceito de soberania régia desde a anti guidade Neste sentido a gênese da biopolítica ocidental já estaria presente desde este período sendo visível pelo 187 modo a partir do qual a vida nua do homo sacer é incluída pelo soberano na ordem jurídica através de uma forma amparada na matabilidade27 De fato o homo sacer apesar de ter suspensa a prote ção jurídica sobre sua vida que deixa de ser portanto politicamente relevante não perde de modo algum sua relação com o direito e com a cidade Paradoxalmente ele habita os dois mundos do direito e da exceção sem pertencer a nenhum Ele não é cidadão mas também não é o estrangeiro o inimigo não goza de proteção jurídica mas também não é submetido ao ritual da pena de morte Portanto é a partir disso Agamben constata a permanên cia desta vida sem nenhuma proteção vida nua em vários outros institutos ao longo da história ocidental tais como o wargus homemlobo e o friedlos sem paz do antigo direito germânico 2002 p 111 e segs até mesmo os refugiados contemporâneos e os prisioneiros dos campos de concentração nazistas 2002 133 e segs ou dos campos de detenção de Guantánamo 2004 p 14 e segs O elo que une todos estes exemplos é fundamentado justamente na presença de uma vida que será classificada como ausente de proteção jurídica matabilidade mas sem que com isso ela seja sancionada pelo ritual da pena de morte insacrificabilidade Assim o sem paz era ba nido da comunidade e podia ser morto sem que isso fosse homicídio o refugiado vê desconectada a relação entre humanidade e cidadania28 o prisioneiro do campo de con 27 Neste ponto Agamben se distancia de Foucault que além de romper com a própria lógica da soberania e do contrato enxerga na ascensão do Estado Moderno o nascimento dos dispositivos de segurança que visam o controle biopolítico da população 28 Processo que chega ao máximo com a criação de campos de re fugiados que concentra os indivíduos que não são protegidos pela ordem jurídica do Estado que os recebe mas que também não são reconhecidos como cidadãos pelo Estado que os expulsou ou do 188 centração tem despojado todo o seu estatuto político de cidadania e o acusado de terrorismo se torna um detainee que não é nem um prisioneiro civil submetido às leis na cionais dos Estados Unidos nem um prisioneiro de guerra protegido pelos regramentos internacionais Esses são alguns dos exemplos da permanência da vida nua do homo sacer Ao recuperar a penalidade do direito romano Agam ben 2002 mostrou como ela continuou sendo uma reali dade presente inclusive nos supostos estados democráticos contemporâneos Desta forma na medida em que a política atual permaneceu uma política sobre a vida aquele con tingente incontável de pessoas que são classificadas como vidas que não merece viver AGAMBEN 2002 p 143 e segs ou como vidas desperdiçadas lixo humano da sociedade de consumo BAUMAN 2005 continuaram sendo tratadas como os homines sacri matáveis e extermináveis sem que isso seja considerado homicídio mas também não sujeitas à forma ritual das penas de morte29 Entretanto em cada um desses casos apresentados é possível verificar a existência de uma estrutura uma certa racionalidade que permanece de um lado apresentase uma situação entendida como crítica caótica seja ela a qual eles fugiram Como afirma Agamben um local aparentemente anódino delimita na realidade um espaço no qual o ordenamento normal é de fato suspenso e que aí se cometam ou não atrocidades não depende do direito mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana 2002 p 181 29 Exemplos variados disso poderiam ser citados como a política de segurança dos Estado do Rio de Janeiro e de São Paulo em sua política de extermínio de indivíduos suspeitos de envolvimento com o tráfico MISSE et al 2013 ZACONNE 2015 e a po lítica internacional de combate ao terrorismo que sob as mesmas justificativas mantém centenas de detentos em Guantánamo e executou sem direito a julgamento um sem número de indivíduos que vão desde o brasileiro anônimo Jean Charles de Menezes até tão perseguido Osama Bin Laden 189 possibilidade de um atentado terrorista do golpe comu nista a insegurança generalizada a invasão do território etc e de outro a aceitação e implementação de uma solução drástica emergencial que normalmente suspende os direitos fundamentais como os campos de concentração Guantánamo o AI5 ou os planos de segurança no Brasil Assim mesmo em supostas democracias o poder soberano continua se manifestando pela decisão sobre o caso excep cional tal qual na soberania régia romana e não sobre a vontade geral democrática como quiseram alguns Por isso a necessidade de retomarmos a intuição de Benjamin quando disse que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral 1994 p 226 Atualmente temos presenciado permanentes operações de suspensão dos direitos básicos que constituem o estado de direito deixando no lugar um vazio ou uma zona de indeterminação unicamente pautada pela decisão sobera na no caso emergencial As constituições viraram palavras vazias ou como diz Agamben vigência sem significa do ao passo que as nãoleis as normas ilegais ou os atos executivos concretos passaram a assumir força de lei Esta é a figura do estado de exceção em que vivemos por isso ele virou regra As normas legais as liberdades básicas que formavam a base do estado de direito na me dida em que elas poderiam ser sempre oponíveis contra o Estado tornaramse obsoletas frente a força de lei que a ilegalidade oficial possui Por isso tornase necessário nos aprofundarmos no segundo eixo básico de análise da série do homo sacer o estado de exceção 72 O estado de exceção vigência sem significado e força de lei Na obra Estado de Exceção 2004 o autor mostrou a partir da experiência dos judeus exterminados durante a 190 Segunda Guerra e a dos prisioneiros de Guantánamo como a técnica de governo que orientará as práticas políticas con temporâneas se fundamenta na exceção Segundo o autor O totalitarismo moderno poder ser definido nesse sentido como a instauração por meio do estado de exceção de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversá rios políticos mas também de categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão pareçam não integráveis ao sistema político Desde então a criação voluntária de um estado de emergên cia permanente ainda que eventualmente não declarado no sentido técnico tornouse uma das práticas essenciais dos Estados contempo râneos inclusive dos chamados democráticos AGAMBEN 2004 p 13 Todavia para que seja possível verificar como Agam ben compreende o problema da exceção iniciaremos por um dos fios condutores de sua série do Homo Sacer qual seja a discussão iniciada pelo pensador alemão Carl Schmitt sobre as relações entre soberania direito e exceção30 Para o autor Schmitt foi um dos poucos juristas que verdadeira mente se preocupou com a questão da exceção no âmbito da teoria do direito31 30 Ressaltese que não pretendemos elaborar uma análise exausti va ou uma interpretação direta dos textos de Carl Schmitt mas simplesmente recuperar o modo como Agamben trabalha com o pensamento deste autor 31 Segundo a interpretação tradicional a exceção não poderia ter forma jurídica e consequentemente não poderia ser pensada pelo direito uma vez que a situação de necessidade sobre a qual ela se baseia seria algo da esfera política ou que no máximo estaria no limite entre a política e o direito Agamben acredita no entanto que mesmo com as contribuições de Schmitt até hoje não existe uma verdadeira teoria do estado de exceção no direito público uma vez que os juristas tendem a considerar este problema mais como uma questão 191 Agamben 2004 parte inicialmente da pergunta schmittiana sobre o lugar que a exceção ocupa em relação ao direito Ou seja o estado de exceção pertenceria ao universo jurídico ou ao domínio dos fatos Ele seria um elemento interno ao direito ou pertenceria ao âmbito da política Afinal se a exceção é o momento em que o direito normal não se aplica mas que ainda assim mantém uma determinada ordem ela poderia ser vista como algo que ainda possui um caráter jurídico ou uma forma legal32 Tentando oferecer sua resposta a estes problemas Schmitt anuncia logo na abertura de sua Teologia política 2006 p 07 que soberano é quem decide sobre o estado de exceção Em sua visão o fundamento da ordem jurídica não pode ser encontrado em seu interior mas está locali zado nesta decisão soberana sobre o estado de exceção Por isso ele afirma que a ordem jurídica como toda ordem repousa em uma decisão não em uma norma SCHMITT 2006 p 11 Sendo assim a decisão soberana é aquilo que mesmo estando fora do direito cria as condições concretas para a vigência do mesmo Ela cria uma situação normal com certo grau de estabilidade e previsibilidade na qual o direito pode existir É a decisão que define um determinado sentido de ordem em detrimento de outras possibilidades alternativas33 Segundo o jurista alemão de fato do que como um genuíno problema jurídico AGAMBEN 2004 p 11 Talvez essa seja uma das razões pelas quais a epígrafe deste livro seja em tradução livre Por que vocês juristas silenciam sobre aquilo que lhes diz respeito 32 Sendo o estado de exceção algo diferente da anarquia e do caos subsiste em sentido jurídico uma ordem mesmo que não uma or dem jurídica A existência do Estado mantém aqui uma supremacia indubitável sobre a validade da norma jurídica SCHMITT 2006 p 13 33 Conforme a leitura de Bernardo Ferreira 2004 p 276277 No nada normativo do estado de exceção o estabelecimento de uma situação normal está associado à exclusão das decisões alternativas e 192 Não existe norma que seja aplicada ao caos A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha sentido Deve ser criada uma si tuação normal e soberano é aquele que decide definitivamente sobre se tal situação normal é realmente dominante O estado de exceção revela o mais claramente possível a essência da autoridade estatal Nisso a decisão distinguese da norma jurídica e para formular parado xalmente a autoridade comprova que para criar o direito ela não precisa ter razãodireito SCHMITT 2006 p 1314 Desta maneira Schmitt apresenta certo paradoxo ao mostrar que a decisão soberana sobre a exceção está ao mesmo tempo dentro e fora do ordenamento jurídico na medida em que ela funda o ordenamento ao suspendêlo e ignora o direito para poder realizálo34 A exceção não só confirma a regra mas esta vive da exceção SCHMITT 2006 p 15 Por isso a simples oposição topográfica dentrofora não seria suficiente para dar conta da complexidade deste fenômeno Mesmo que o estado de exceção represente a suspensão total ou parcial do ordenamento jurídico isso não significa que o que é excluído esteja absolutamente fora de relação com a norma Pelo contrário o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está por cau portanto das possibilidades conflitantes de ordem A constituição da normalidade implica a determinação de um sentido para o interesse público e portanto a conformação da realidade a partir de uma determinada ideia de ordem 34 Na interpretação de Agamben 2002 p 23 A especificação ao mesmo tempo não é trivial o soberano tendo o poder legal de suspender a validade da lei colocase legalmente fora da lei Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo a lei está fora dela mesma ou então eu o soberano que estou fora da lei declaro que não há um fora da lei 193 sa disto absolutamente fora de relação com a norma ao contrário esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão A norma se aplica à exceção desaplicandose retirandose desta AGAMBEN 2002 p 25 Neste sentido com o resgate de Schmitt Agamben 2004 demonstra que estamos diante de uma relação topoló gica complexa em que a decisão soberana está fora da ordem jurídica ao mesmo tempo em que pertence a ela É uma situação em que a separação entre interno e externo deixa de existir e por isso o próprio limite do ordenamento jurídico é colocado em questão Na verdade o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar ou a uma zona de indiferença em que dentro e fora não se excluem mas se indetermi nam A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é ou pelo menos não pretende ser destituída de qualquer relação com a ordem jurídica Donde o interesse das teorias que como a de Schmitt transformam a oposição topográfica em uma relação topológica mais complexa em que está em questão o próprio limite do ordena mento jurídico Em todo caso a compreensão do problema do estado de exceção pressupõe uma correta determinação de sua localização ou de sua deslocalização grifo nosso AGAMBEN 2004 p 39 Por isso a exceção não pode ser definida nem como uma situação de fato já que é criada pela suspensão da norma nem tampouco como uma situação de direito já que convive com esta suspensão mas ela institui entre estas duas um paradoxal limiar de indiferença que não apenas 194 não distingue a situação normal do caos dentro e fora fato e direito mas ao contrário faz com que ambos entrem em complexas relações topológicas que tornam possível a pró pria validade do ordenamento AGAMBEN 2002 p 26 Porém neste momento a interpretação agambeniana do estado de exceção se torna particularmente incisiva Se para ele o ordenamento normal só se constitui como tal por meio de sua relação com a exceção e se isto é in clusive o que permite a validade do ordenamento estáse afirmando que o Estado de direito e o estado de exceção coincidem em absoluta indistinção e mais do que isso que a exceção é a forma originária do direito AGAMBEN 2002 p 34 e 44 Assim um dos paradoxos do estado de exceção quer que nele seja impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução de modo que o que está de acordo com a norma e o que a viola coincidem nele sem resíduos AGAMBEN 2002 p 65 Por este motivo é possível constatar que a suspensão da norma não significa sua abolição Ao demonstrar que é na exceção que a norma suspensa se mantém em estado de latência como pura forma na sua própria privação que Agamben 2004 constata que ela só existe com referência à norma suspensa que se aplica desaplicandose possibi litando que o Estado de direito e o estado de exceção se tornem um todo indissolúvel Todavia o autor sugere que devíamos nos questionar sobre como a situação normal po deria conviver com a situação excepcional Como direito e exceção coincidem nesta zona de indiscernibilidade Para compreender esse fenômeno Agamben recorreu a dois conceitos complementares a vigência sem significado a força de lei sem lei ou na forma proposta pelo autor a força de lei Em primeiro lugar é importante ressaltar que segundo o autor a lei não é abolida no estado de exceção mas sim suspensa Ela se mantém íntegra em sua forma existe como referência mas não possui capacidade de se concretizar Nas 195 palavras de Agamben 2004 é uma norma que vigora mas não significa É uma lei que só possui forma que existe na sua própria inexequibilidade Mas com isso ele não quer dizer simplesmente que se trata de uma lei que não possui eficácia Ao contrário este conceito jurídico é insuficiente e inadequado para compreender a exceção No momento em que a norma é suspensa ela jamais poderia ter eficácia na medida em que se constitui como forma pura como uma referência abstrata sem nenhuma significação real AGAMBEN 2002 p 5859 O filósofo italiano chegou a esta compreensão a partir da análise de algumas interpretações do conto Diante da lei que Franz Kafka descreve no final de sua famosa obra O processo 2005 p 214215 feitas por Jaques Derrida Massimo Ciacciari e Gershom Scholem A ideia de um camponês que passa a vida impedido de adentar a porta da lei aberta só para ele demonstra claramente esta lei que vigora apenas como forma mas que não significa De acordo com Agamben 2002 Vista sob esta perspectiva a lenda kafkaniana expõe a forma pura da lei em que ela se afirma com mais força justamente no ponto em que não prescreve mais nada ou seja como puro bando O camponês é entregue à potência da lei porque esta não exige mais nada dele não lhe impõe nada além da própria abertura Segundo o esquema da exceção soberana a lei aplicase lhe desaplicandose o mantém em seu bando abandonandoo fora de si A porta aberta que é destinada só para ele o inclui excluindoo e o exclui incluindoo E este é precisamente o fastígio supremo e a raiz primeira de toda a lei Quando o padre no Processo compendia a essência do tribunal na forma O tribunal não quer nada de ti Te acolhe quando vens te deixa ir quando te vais é a estrutura original do nómos 196 que ele enuncia com estas palavras AGAMBEN 2002 p 58 Diante desta lei que vigora sem significar temos por tanto a vida submetida ao estado de exceção a vida sem nenhuma proteção jurídica aquela na qual o menor gesto o mais inocente esquecimento a sua própria aparência ou o simples ato de estar no lugar errado na hora errada podem desencadear reações das mais extremas como se tornou frequente nos Estados totalitários contemporâneos AGAMBEN 2002 p 60 A lei permanece em vigor mas sua aplicação é suspensa Uma fratura entre a vigência e o significado que é preenchida pelo estado de exceção Por outro lado o espaço aberto por esta forma sem conteúdo que a lei se torna não fica vazio de ordem Ele é preenchido por uma ordem pautada unicamente pela decisão soberana que apesar de não demandar nenhum fundamento normativo já que ela é em si fundante atua como se o possuísse Abrese o espaço para uma força de lei sem lei Este conceito se relaciona com a figura jurídica da força de lei que se refere especialmente àqueles decretos do executivo que possuem força de lei ainda que não sejam leis em sentido formal É o caso por exemplo na Itália dos famosos decretoslei assim como no Brasil das medidas provisórias35 ou na situação limite do regime nazista das próprias palavras do Führer Todos apesar de não serem leis em seu sentido estrito por não atenderem os requisitos do processo legislativo possuem força de lei Porém em um sentido mais profundo o estado de exceção nos mostra em uma forma pura o isolamento da força de lei com relação à lei Cada vez mais estes atos 35 Sobre as quais o texto constitucional de 1988 dispõe que Art 62 Em caso de relevância e urgência o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias com força de lei devendo submetêlas de imediato ao Congresso Nacional grifos nossos 197 que não possuem valor de lei e nem são leis em sentido estrito adquirem sua força e ocupam o espaço aberto pela norma que vigora mas não significa Sendo assim o estado de exceção se apresenta como um espaço anômico em que temos de um lado a vigência sem significado e de outro a força de lei sem lei Assim o direito continua existindo na forma de sua inaplicabilidade ao passo que a realidade é regida pela força de lei O estado de exceção é nesse sentido a abertura de um espaço em que aplicação e norma mos tram sua separação e em que uma pura força de lei realiza isto é aplica desaplicando uma norma cuja aplicação foi suspensa Desse modo a união impossível entre norma e realidade e a consequente constituição do âmbito da norma é operada sob a forma da exceção isto é pelo pressuposto de sua relação Isso significa que para aplicar uma norma é necessário em última análise suspender sua aplicação produzir uma exceção Em todos os casos o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se inde terminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real AGAMBEN 2004 p 63 Diante disso importa conhecer o significado imedia tamente biopolítico que esta relação de exceção coloca pois na medida em que o direito se encontra em estado de permanente suspensão o poder exercido sobre a vida se dá como uma pura dominação de fato sem nenhuma limitação jurídica ainda que se apresente como possuindo força de lei Perante a suspensão da norma a vida é exposta a esta relação de força absoluta36 36 Esta estrutura a partir da qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão Agamben chama de relação de 198 Conforme argumentamos anteriormente um dos exemplos disto da exposição da vida à relação de força sem limites seria a situação dos prisioneiros de Guantá namo acusados de terrorismo pelos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001 Desde essa data as forças estadunidenses e suas aliadas vêm capturando indivíduos suspeitos de envolvimento com terrorismo majoritariamente em países estrangeiros e transferindoos para os campos de detenção de Guantánamo sem qualquer acusação formal e sem qualquer direito de defesa AGAM BEN 2002 p 14 Porém muito além das frequentes denúncias de que muitos destes prisioneiros foram vendidos em troca das grandes compensações financeiras mesmo sem nenhuma prova de seu envolvimento com atividades criminosas37 bando Em suas palavras Retomando a sugestão de JeanLuc Nancy chamemos bando do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do sobera no a esta potência no sentido próprio da dynamis aristotélica que é também sempre dynamis mè energeîn potência de não passar ao ato da lei de manterse na própria privação de aplicarse desaplicandose A relação de exceção é uma relação de bando Aquele que foi banido não é na verdade simplesmente posto para fora da lei e indiferente a esta mas é abandonado por ela ou seja exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito externo e interno se confundem Dele não é literalmente possível dizer que esteja fora ou dentro do ordenamento por isso sua origem in bando a bandono significam em italiano tanto à mercê de quanto a seu talante livremente como na expressão correre a bandono e bandito quer dizer tanto excluído posto de lado quanto aberto a todos livre como em mensa bandita e a redina bandita É neste sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma não existe um fora da lei A relação originária da lei com a vida não é a aplicação mas o Abandono A potência insuperável do nómos a sua originária força de lei é que ele mantém a vida em seu bando abandonandoa E é esta estrutura do bando que trataremos de compreender aqui para podermos eventualmente reinvocála à questão grifos conforme o original AGAMBEN 2002 p 36 37 Como demonstra o livro escrito pela advogada Mahvish Rukhsana Khan 2008 a partir de seu contato com os detentos de Guantánamo 199 o que Agamben procura mostrar é que eles constituem hoje um grupo que está fora de qualquer classificação ju rídica seja do direito pátrio estadunidense seja do direito internacional38 A maior parte dos presos nos campos de detenção de Guantánamo nunca foram ouvidos por Cortes de Justiça ou por um Tribunais Militares mas apenas pelas military commissions comissões militares que não possuem estatuto jurídico formal em lugar nenhum do mundo Contra muitos deles nunca existiram provas concretas ou quando muito apenas testemunhos obtidos a partir de tortura KHAN 2008 Esta situação exemplifica de maneira ímpar a estrutura da exceção descrita por Agamben De um lado existe um sistema jurídico de garantias fundamentais que deveriam ser asseguradas aos cidadãos estadunidenses e aos estrangeiros seja com base no direito pátrio ou no direito internacional que simplesmente vigoram mas não significam encontrandose assim em um estado de permanente suspensão De outro existe uma força de lei sem lei representada por essas military commissions e pelos outros órgãos repressivos dos Estados Unidos que não possuem base constitucional mas que exercem uma relação de poder ilimitada sobre a vida daqueles detentos Esta é a representação pura do estado de exceção contemporâneo As normas legais as liberdades básicas que formavam a base do Estado de direito tornaramse obsoletas frente a força de lei que a ilegalidade oficial possui Neste sentido 38 Por exemplo o USA Patriot Act promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001 permite ao Attorney general manter preso o estrangeiro alien suspeito de atividades que ponham em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos mas no prazo de sete dias o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei sobre imigração ou de algum outro delito A novidade da ordem do presidente Bush está em anular radicalmente o estatuto jurídi co do indivíduo produzindo dessa forma um ser juridicamente inominável e inclassificável AGAMBEN 2004 p 14 200 Podemos então definir o estado de exceção na dou trina schmittiana como o lugar em que a oposição entre a norma e a sua realização atinge a máxima intensidade Temse aí um campo de tensões jurídi cas em que o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e viceversa Mas também nessa zona extrema ou melhor exatamente em virtude dela os dois elementos do direito mos tram sua íntima coesão AGAMBEN 2004 p 58 Diante disso é importante destacar que uma das gran des preocupações de Agamben 2004 ao reconstruir o de bate sobre o estado de exceção e sua relação com o direito é justamente a de permitirnos pensar nele não só como um estado de coisas mas acima de tudo como sendo o para digma de governo dos Estados contemporâneos Agamben 2004 em sua obra Estado de exceção remonta a origem do estado de exceção moderno à tradição revolucionária francesa e não à absolutista ressaltese que instituiu na Constituição de 22 de frimário a possibilidade de sus pender o império da constituição em casos de revoltas ou desordens que ameaçassem a segurança do Estado 2004 p16 Evidentemente essa possibilidade de suspensão da constituição foi incorporada pela legislação do Império Napoleônico e mesmo com todas as reviravoltas políticas que ocorreram após seu fim ela foi mantida até hoje Ao longo deste período destacamse ao menos dois momentos em que ela foi utilizada o primeiro que compre ende os anos de 1914 a 1919 em que o presidente Poincaré emitiu um decreto que colocou toda a França em estado de sítio durante a Primeira Guerra Mundial e posteriormente quando De Gaulle recorreu à suspensão da constituição em 1961 em virtude da crise argelina AGAMBEN 2004 p 2526 Contudo em nossa história recente a mais mar cante utilização do mecanismo do estado de exceção foi na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial 201 Naquele país o instituto da exceção remonta à sua unificação com a Constituição bismarkiana Entretanto seria com o art 48 da Constituição de Weimar que ele ganharia notoriedade já que foi a partir dele que em 1932 foi de cretado o estado de exceção que só teria fim após a queda do nazismo AGAMBEN 2004 p 2829 Todavia o mais relevante é que a utilização da exceção como prática de governo justificada como forma de defender a democracia e o Estado não se encerrou com os horrores do nazismo Pelo contrário ela permaneceu como técnica concreta cons tantemente reeditada ainda que não em sua forma clássica Agamben 2004 demonstra que o dispositivo da exceção não demanda mais necessariamente de uma de claração formal para ser utilizado as técnicas usadas na guerra contra o terror ou na guerra às drogas são exemplos disso Nas democracias ocidentais esta necessidade foi sen do gradativamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo que em nome da defesa da sociedade suspen de a todo o tempo as garantias jurídicoconstitucionais dos indivíduos AGAMBEN 2004 p 2728 Assim na medida em que os grandes perigos contemporâneos vão sendo reeditados a exceção passa a ser a principal técnica de governo Em suma o estado de exceção se tornou na perspectiva de Agamben um verdadeiro paradigma de governo dominante na política contemporânea e neste sentido a regra geral tal como antecipava Walter Benjamin 1994 73 Contribuições de Agamben para a análise das políticas de controle dos crimes e das violências no Brasil O modo como Giorgio Agamben produz suas refle xões a profundidade e o rigor filosófico presentes em suas análises podem por vezes nos distanciar do elemento mais 202 importante que este autor traz a demonstração de que nem o estado de exceção nem o homo sacer são institutos que fazem parte apenas de nossa história pretérita de um passado que pretendemos não repetir em virtude de sua violência extrema e de suas consequências nefastas para a humanidade Ao contrário é provável que a maior contri buição deste autor se dê ao demonstrar que o homo sacer e o estado de exceção estão desde o início internalizados na gestão biopolítica dos corpos presente na governamentali dade moderna E além disso não seria demais dizer que a matabilidade e a constante suspensão da ordem jurídica são instrumentalizados por discursos que circulam livremente e que fazem parte do nosso atual vocabulário comum A demanda pelo extermínio é constante e perceptí vel por meio de expressões enunciadas a todo momento tais como bandido bom é bandido morto O que mais significa isso senão a demanda pelo extermínio de pesso as consideradas indesejáveis Se o ordenamento jurídico brasileiro não prevê a pena de morte o que é isso senão a enunciação do fato de que o suspeito pela prática de um crime tornase matável e assim que sua morte não pode ser considerada homicídio O trágico é que esta demanda pelo extermínio en contra eco nas políticas de segurança pública e pode ser verificada por exemplo através dos dados apresentados pela Anistia Internacional que colocam a polícia brasileira como aquela que mais mata civis no mundo39 ou mais precisamente no fato de que somente a polícia militar do Estado do Rio de Janeiro matou mais de 10 mil civis em confronto entre 2001 e 2011 justificandoas como autos de resistência MISSE et al 2013 39 Site httpg1globocomglobonewsnoticia201509forcapo licialbrasileiraequemaismatanomundodizrelatoriohtml acessado no dia 21 de fevereiro de 2016 203 Diante disso quanto mais aumenta esta contagem de corpos e quanto mais se demanda a permanência desta políti ca40 mais evidente fica a hipótese de Agamben 2004 de que no interior dos chamados Estados Democráticos de Direito como deveria ser o caso brasileiro mais se torna visível a presença da lógica da exceção e da vida nua do homo sacer Estas conclusões já vem sendo alcançadas por diversos sociólogos e juristas brasileiros a exemplo dos dois impor tantes estudos sobre os autos de resistência feitos por Michel Misse 2013 e Orlando Zaccone 2015 o primeiro com uma análise minuciosa dos procedimentos apuratórios e dos julgamentos dos casos identificados como autos de resistên cia na cidade do Rio de Janeiro e o segundo com um foco maior nos pedidos de arquivamento de inquéritos policiais realizados pelo Ministério Público também na cidade do Rio de Janeiro No entanto não é só nos autos de resistência que podemos verificar as políticas de exceção no contexto brasileiro O populismo punitivo que se consolida diante de uma parcela da população mantida atemorizada pelo sen sacionalismo midiático tem se afirmado em uma constante demanda por um direito penal mais rigoroso por leis penais mais severas e até mesmo da possibilidade de se flexibilizar direitos fundamentais em favor da segurança pública Nesta esteira diversas alterações legais foram intro duzidas no ordenamento jurídico pátrio mesmo quando em total desrespeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição e em Tratados Internacionais tais como o Regime Disciplinar Diferenciado na execução penal a criminalização de movimentos sociais a tipificação do crime de terrorismo a aprovação da lei das organi 40 Vera Malaguti Batista 2012 consegue demonstrar com clareza esta demanda popular pela violência homicida contra os suspeitos de envolvimento em tráfico de drogas no texto O Alemão é muito mais complexo redigido a propósito da chamada ocupação do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro em 2010 204 zações criminosas e até mesmo a política de tolerância zero relacionada aos crimes de trânsito São inúmeras a situações em que há a suspensão da ordem jurídica a vigência sem significado para a execução de medidas que possuem apenas uma suposta aparência de legalidade mesmo quando em total violação à ordem jurídica a força de lei Tratamse da execução pura e simples da força soberana sob a égide da qual indivíduos podem se tornar no limite seres matáveis Retomando o argumento inicial é possível verificar a presença de um espaço da exceção no qual de nada vale qualquer regulamento ou limite normativo uma vez que estes se encontram em permanente suspensão Assim aqueles que estão submetidos a este espaço como hominis sacri são expostos à possibilidade limite do extermínio pelo poder soberano Afinal um dos paradoxos do estado de exceção quer que nele seja impossível distinguir a trans gressão da lei e a sua execução de modo que o que está de acordo com a norma e o que a viola coincidem nele sem resíduos AGAMBEN 2002 p 65 Desta forma as hipóteses de Agamben parecem en contrar eco na instrumentalização da biopolítica contem porânea notadamente quando o que está em jogo são as políticas de controle dos crimes e das violências Assim uma investigação cada vez mais ampla destes mecanismos em tudo aquilo que eles buscam esconder por detrás da máscara da defesa da sociedade se torna fortemente necessária a fim de que se possam localizar as estratégias muitas vezes sutis que nos ocultam certa verdade histórica no sentido benjaminiano de que o estado de exceção em que vivemos se tornou regra geral 74 Referências AGAMBEN Giorgio Estado de Exceção São Paulo Ed Boitempo 2004 205 Homo Sacer o poder soberano e a vida nua Belo Horizonte Ed UFMG 2002 Signatura rerum sobre el método Buenos Aires Adriana Hidalgo Ed 2009 BATISTA Vera Malaguti org Paz armada Rio de Janeiro Ed Revan 2012 BAUMAN Zygmunt Vidas Desperdiçadas Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2005 BENJAMIN Walter Magia e técnica arte e política ensaios sobre literatura e história da cultura São Paulo Ed Brasiliense 1994 FERREIRA Bernardo O risco do político crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt Belo Horizonte Ed UFMG 2004 KAFKA Franz O processo São Paulo Ed Companhia das Letras 2005 KHAN Mahvish Rukhsana Diário de Guantánamo os detentos e as histórias que eles me contaram São Paulo Ed Larousse do Brasil 2008 MISSE Michel et al Quando a polícia mata homicídios por autos de resistência no Rio de Janeiro 20012011 Rio de Janeiro NECVU Ed Booklink 2013 MURRAY Alex Giorgio Agamben Routledge critical thinkers New York Routledge 2010 SCHMITT Carl Teologia Política Belo Horizonte Ed Del Rey 2006 ZACCONE Orlando Indignos de vida a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ed Revan 2015 207 8 A pena privativa de liberdade sempre esteve desde o seu nascimento atrelada às demandas impostas pelo siste ma capitalista em suas constantes transformações Serviu como forma de impor a disciplina do trabalho assalariado em camponeses como controle do exército de reserva de trabalhadores e da precificação da mão de obra como dispositivo de adestramento da força de trabalho enfim esteve continuamente apta a manter o controle da classe proletária da maneira necessária para atender aos interesses do sistema produtivo A prisão figura assim como institui ção auxiliar da fábrica Isto deixa claro como a prisão não é uma instituição estanque que se organiza da mesma maneira desde sua criação muito menos possuiu as mesmas funções como o pensamento liberal faz crer Seus mecanismos táticas instrumentos possuem uma grande capacidade de se me tamorfosear de acordo com as necessidades do sistema econômico vigente Neste sentido por exemplo a ausência percebida em larga escala de programas que visam a chamada ressociali zação nas prisões contemporâneas deve ser entendido mais como um sintoma destas transformações que de um mero déficit de gestão Afinal será que a disciplinarização da mão de obra que se apresenta na forma de ressocialização é a principal necessidade do capitalismo neoliberal atual Loïc Wacquant Encarceramento em Massa e Criminalização da Pobreza no Neoliberalismo 208 Em um período em que há excedente de mão de obra qualificada com altas taxas de desemprego um enorme exército de reserva para que a prisão deveria se ocupar do adestramento do proletariado Este tipo de pergunta traz a necessidade de trilhar dois caminhos o primeiro visando compreender de fato as principais mudanças recentes no capitalismo notadamente a transição do Estado de Bemestar Social Welfare State para o neoliberalismo e o segundo com vistas a verificar quais impactos destas transformações sobre os sistemas penais Contemporaneamente o sociólogo Loïc Wacquant desponta como um dos principais pesquisadores a inves tigar o modo como se organizam as políticas criminais e de segurança pública no neoliberalismo Professor na Universidade da Califórnia em Berkeley e pesquisador do Centree Europeen de Sociologie et de Science Politique em Paris teve o seu livro As prisões da miséria 2001 traduzido para mais de 20 idiomas com ampla circulação pelo mundo Cf WACQUANT 2012c Segundo este autor o mundo vem sendo de fato assolado por uma tempestade de lei e ordem que trans formou o debate público e a política sobre crime e punição de maneiras que nenhum observador da cena penal poderia ter previsto 12 anos atrás WACQUANT 2012c p 10 Uma parte importante do trabalho de Wacquant foi dedicada à análise da ascensão de determinadas práticas punitivas nos Estados Unidos e Europa que se fortaleciam na medida em que a desregulamentação econômica de corrente do neoliberalismo expandia Sua tese desenvol vida principalmente nas obras As prisões da miséria 2001 e Punir os pobres 2007 é a de que existe uma correlação direta entre a retração do Estado de Bemestar e de seus mecanismos de seguridade social e a dilatação desenfreada do controle punitivo do Estado que se manifesta pelo consenso formado em torno da lei e ordem e da neces 209 sidade de ampliação do encarceramento Entretanto antes de passar a análise desta tese resgataremos brevemente a história das transformações do capitalismo no último século 81 As transformações do capitalismo do século XX e a ascensão do neoliberalismo O século XX foi marcado por ao menos duas trans formações radicais no curso sistema econômico capitalista o surgimento do Estado de Bemestar Social ou Inter vencionista entre as décadas de 1930 e 1950 e as reformas neoliberais ocorridas após a década de 1970 Entre 1900 e 1929 os Estados Unidos da América experimentaram uma onda incomparável de crescimento econômico fazendo com que o país se tornasse a maior potência industrial do mundo Porém uma década após o fim da Primeira Guerra Mundial com a gradativa retomada econômica dos países da Europa esta onda de crescimento se tornou insusten tável culminando em uma das maiores crises econômicas do capitalismo a Grande Depressão Segundo os dados do período Entre 1929 e 1932 registraramse 85000 falên cias de empresas mais de 5000 bancos suspen deram suas operações o valor das ações da Bolsa de Nova Iorque caiu de 87 bilhões de dólares para 19 bilhões de dólares 12 milhões de pessoas ficaram desempregadas e cerca de um quarto da população se viu privada dos meios para garantir a própria subsistência a renda agrícola redu ziuse a menos da metade o produto industrial diminuiu cerca de 50 HUNT SHERMAN 2008 p 165 A resposta para a Grande Depressão viria do econo mista inglês John Maynard Keynes que não compartilhava 210 da crença do liberalismo clássico de que o equilíbrio econô mico seria atingido espontaneamente Para ele é papel do Estado intervir diretamente na economia a fim de corrigir suas falhas e principalmente assegurar o pleno emprego O modelo keynesiano do Estado Intervencionista em pouco tempo se tornou a política institucional do governo de Franklin D Roosevelt nos Estados Unidos da América como também foi abraçado pelos países europeus que estavam em colapso após a Segunda Guerra Mundial Esta nova política econômica não apenas foi responsável pela retomada dos países devastados pela crise e pela guerra como também elevou os índices de emprego e ampliou a rede de políticas de bemestar social fazendo com que o sistema capitalista mais uma vez representasse uma alter nativa eficaz ao socialismo real Do mesmo modo o Estado Intervencionista foi res ponsável por um aumento considerável do poder e da participação da classe trabalhadora sobre as políticas relativas a salário emprego investimentos e lucros empresariais Em outras palavras os trabalhadores por meio dos sindicatos e dos partidos operários estavam modificando profunda mente as relações entre capital e trabalho No final da década de 1960 e ao longo da década de 1970 as reformas trabalhistas construíram uma legislação que intervinha diretamente 1 na regulamentação do processo do trabalho através de legislação em previdência e assistência médica e regulamentação do meio ambiente e na divisão de responsabilidades no local de trabalho entre o capital e o trabalho e 2 no poder de investimento do capital NA VARRO 2002 p 93 No entanto justamente a partir deste momento é o Estado Social que começa a entrar em colapso Dentre as razões para tanto a mais comumente aceita é a de que houve uma crise fiscal ou seja para realizar sua política econômica e social o Estado teve de gastar muito além de um orçamento nãoinflacionário TOLEDO 2002 p76 211 Todavia outra explicação gira em torno do crescimen to das demandas e da participação popular bem como da proteção dos trabalhadores Esses fatores limitavam a livre atuação dos empresários e com isso reduziam seus lucros TOLEDO 2002 p76 Esse crescimento contínuo do movimento ope rário nos âmbitos da produção e do Estado converteuse numa clara ameaça para a classe capitalista o que explica as mudanças ocorridas em fins dos anos 70 e princípio da década de 80 Claramente foi a força da classe trabalhadora que determinou essas mudanças NAVARRO 2002 p 98 Assim a resposta do capital foi de um lado a redução dos investimentos e de outro a pressão para as reformas no sistema econômico Desta forma estariam construí das as bases sobre as quais seriam legitimadas as reformas neoliberais Efetivamente as primeiras experiências des sas reformas se deram com a implantação das Ditaduras Militares na América Latina com especial atenção para o Chile comandado por Pinochet Nos países desenvolvidos isso só ocorreria no final dos anos 1970 dentre os quais são exemplos o governo Thatcher na Inglaterra em 1979 o governo Reagan nos Estados Unidos da América em 1980 o governo Khol na Alemanha em 1982 e o governo Schluter na Dinamarca em 198341 Devese considerar contudo que as teses neoliberais já vinham sendo construídas ao menos desde 1944 quando foi 41 Apesar de haver certo consenso entre os estudiosos do neoliberalismo ao situar a ascensão desde sistema econômico no período citado autores como Foucault 2008 identificam as primeiras experiências de implementação da lógica neoliberal nas reformas implementa das por Ludwig Erhard na Alemanha ao fim da Segunda Guerra Mundial 212 publicada a obra O Caminho da Servidão de Friedrich A von Hayek e principalmente após 1947 com a constituição da Sociedade de Mont Pèlerin42 Ou seja se para alguns o fim da guerra significava a necessidade de políticas intervencionistas para outros esta crise seria o momento ideal para implemen tar reformas de livre mercado Esta corrente de pensamento econômico gira em torno de dois aspectos complementares a superioridade do livre mercado como uma ordem social espontânea e o individualismo metodológico Isto significa que os interesses egoístas dos indivíduos se ajustam dentro de uma ordem social de mercado que ninguém é capaz de prever ou de compreender em sua totalidade43 Como consequência o neoliberalismo se orienta por um forte antiestatismo44 Na medida em que para ele o Estado não tem capacidade de prever todos os movimentos do mercado qualquer intervenção sua na economia será prejudicial e por isso este assume a responsabilidade de todos os resultados negativos é o causador de crise cobra altos impostos é inflacionário alimenta uma burocracia ineficiente etc TOLEDO 2002 p 81 Em um nível mais amplo o pensamento neoliberal se caracteriza como uma visão de mundo que no entender de Toledo temse disposto a conformar um ethos sem raízes tradicionais precisas o mito da mobilidade pelo esforço pessoal as generosidades da livre empresa 42 A Sociedade de Mont Pèlerin como ficou conhecida era composta por um grupo de teóricos contrários ao Estado Intervencionista que se reuniam anualmente em uma estação de esqui em Mont Pèlerin na Suíça Dentre seus membros destacamse Milton Friedman Ludwig Von Mises Karl Popper Michael Polanyi dentre outros ANDERSON 2008 p 910 43 Posteriormente veremos que o neoliberalismo como prática ainda demanda a desestruturação das políticas do Estado de Bemestar Social e a expansão do aparato penal 44 No âmbito econômico mas não no âmbito punitivo 213 somos todos empresários o direito à diferen ciação a liberdade como valor máximo embora com autodisciplina e uma solidariedade não problemática para aqueles que não são beneficia dos pelo mercado são um custo necessário dos ajustes não causam dor são uma percentagem que é preciso diminuir TOLEDO 2002 p 81 Assim apesar de teoricamente estar orientado pela ideia de liberdade de ação individual sendo contra qual quer tipo de coerção a implementação prática do modelo neoliberal nunca foi pacífica nem abriu mão de um Estado forte Afinal como nos ensina Perry Anderson para superar a crise do Estado Social O remédio então era claro manter um Estado forte sim em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro mas parco em todos os gastos sociais e nas inter venções econômicas A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo Para isso seria necessária uma disciplina orça mentária com a contenção dos gastos com o bemestar e a restauração da taxa natural de desemprego ou seja a criação de um exército de reserva de trabalhadores para quebrar os sin dicatos ANDERSON 2008 p 11 Neste sentido é interessante notar quanto o processo de consolidação do capitalismo neoliberal é acompanhado de medidas antidemocráticas e violentas Como recorda Naomi Klein 2008 p19 a reforma econômica do Chi le ao longo da ditadura militar orientada pela chamada Escola Econômica de Chicago veio acompanhada do desaparecimento forçado de milhares de pessoas especial mente ativistas de esquerda torturas mortes perseguição a sindicatos etc Do mesmo modo a Guerra das Malvinas 214 serviu como elemento que permitiu à Margaret Thatcher derrotar os mineiros em greve na Inglaterra e deslanchar a primeira onda de privatizações Em 1989 o massacre da Praça da Paz Celestial na China com a subsequente pri são de inúmeros manifestantes também serviu ao Partido Comunista para implantar seu capitalismo com feições chinesas HARVEY 2005 No entender de Klein Algumas das violações mais infames dos di reitos humanos de nossa era que tenderam a ser encaradas como atos sádicos perpetrados por regimes antidemocráticos foram cometidas com a intenção clara de aterrorizar o público ou ativamente empregadas a fim de preparar o terreno para a introdução das reformas radicais de livre mercado KLEIN 2008 p 19 Estes últimos exemplos servem para demonstrar um ponto crucial para as análises que serão construídas por Wacquant o neoliberalismo não se resume apenas à sua dimensão econômica Como ele afirma O neoliberalismo é uma noção escorregadia e contestada um termo híbrido estranhamente suspenso entre o linguajar simplório do debate político e a terminologia técnica das ciências sociais e que além do mais é quase sempre invocado sem um referencial claro Singular ou polimorfa evolucionária ou revolucioná ria a noção predominante de neoliberalismo é essencialmente econômica enfatiza um arranjo de políticas favoráveis ao mercado tais como a desregulamentação do trabalho a mobilidade do capital a privatização a agenda monetarista da deflação e autonomia financeira a liberação do comércio concorrência entre as zonas e a redu ção da taxação e dos gastos públicos Mas essa concepção é estreita e incompleta bem como 215 excessivamente associada ao discurso moralista dos defensores do neoliberalismo Precisamos ir além desse núcleo econômico e elaborar uma noção mais sólida que identifique o mecanismo institucional e os limites simbólicos através dos quais os princípios neoliberais estão sendo atu alizados WACQUANT 2012b p 31 Neste sentido para Wacquant o neoliberalismo é um projeto político transnacional que visa refazer o nexo entre mercado estado e cidadania a partir de cima 2012b p31 e que é articulado intimamente a quatro lógicas institucio nais quais sejam 1 a desregulamentação econômica 2 a delegação retração e recomposição do Estado de BemEstar social 3 um aparato penal em expansão invasivo e proa tivo individual e 4 a alegoria cultural da responsabilidade WACQUANT 2012b p 32 Em suma a dimensão de desregulamentação da economia pela promoção do chama do Estado mínimo é apenas uma das quatro identificadas pelo sociólogo francês Mesmo que estas quatro lógicas sejam interdependen tes foi seguindo a trilha da terceira a expansão do aparato penal que as pesquisas de Wacquant se centraram Para ele é necessário perceber como o Estado mínimo econômico em defesa do qual alardeiam os apologistas do neoliberalis mo vem em conjunto com um Estado máximo punitivo sem o qual o primeiro não sobrevive Uma formação que ele dá o nome de Estadocentauro uma cabeça liberal e um corpo autoritário45 45 O princípio ideológico central do neoliberalismo é que ele inclui a implantação do governo mínimo ou seja o encolhimento do supostamente flácido e inflado estado do bemestar keynesiano e sua transformação em um estado social seco e ágil que investe em capital humano e ativa fontes comunais e apetites individuais em relação ao trabalho e à participação cívica através de parcerias que enfatizam a autossuficiência o comprometimento com o 216 82 Do Estado Providência ao Estado Penitência Não é difícil compreender como nos últimos 20 anos os discursos sobre crime punição e segurança vêm adquirindo cada vez mais centralidade na gestão da coisa pública Debates sobre o medo da criminalidade sensação de insegurança acompanhados de demandas por incremen to de leis penais aumento dos gastos públicos e privados com segurança reforço do aparato policial dentre outros são a base a partir da qual se edifica toda uma racionalidade punitiva operacionalizada pela produção da grande mídia corporativa pela burocracia estatal e pela opinião pública Na esteira e como correlativo deste fenômeno segue um crescimento avassalador das populações carcerá rias ao redor do globo Nos Estados Unidos por exemplo segundo os dados do Bureau of Justice Statistics em 1980 havia 503600 encarcerados em 1989 este numero ul trapassou a marca de um milhão de pessoas em 2002 já eram 2033100 chegando a 2013 com 2220300 Um aumento de mais de 300 em três décadas No Brasil tal realidade não é diferente pois de acordo com o Ministério da Justiça em 1990 a população carcerária estava na marca de 90000 pessoas em 2000 eram 232800 chegando a 607700 em 2014 Ou seja houve um aumento de 575 em duas décadas e meia trabalho remunerado e o gerencialismo Punir os pobres Onda punitiva demonstra que na realidade o estado neoliberal se revela muito diferente enquanto no topo abraça o laisserfaire liberando o capital de restrições e ampliando as oportunidades de vida para os detentores de capital econômico e cultural nos estratos inferiores ele é tudo menos laisserfaire Na verdade quando tem que lidar com a turbulência social gerada pela desregulamentação e de im por a disciplina do trabalho precarizado o novo Leviatã mostrase ferozmente intervencionista autoritário e caro WACQUANT 2012b p 33 217 Atento a este tipo de fenômeno Loïc Wacquant ini ciou uma série de pesquisas com vistas a identificar o que teria provocado ao contrário do que as análises da década de 1970 apontavam46 o uso tão massivo do encarceramento nas sociedades contemporâneas A sua hipótese era a de que existe um nexo direto entre a crise do Estado Social e a ascensão do neoliberalismo com a ampliação do apetite punitivo do Estado O autor verificou pelo menos desde a administração de Richard Nixon 1969197447 como houve nos Estados Unidos um atrofiamento gradual das redes de seguridade social que haviam sido instaladas nos anos que sucederam a Grande Depressão Deste modo seguindo a orientação neoliberal de redução das intervenções das atividades e dos gastos estatais cada vez mais o Estado diminuía seus orçamentos destinados ao bemestar social e com isso gradativamente ampliavamse as desigualdades sociais e a insegurança econômica WACQUANT 2007 p 8996 Os indivíduos foram intimados a assumir a respon sabilidade por suas próprias vidas e a assistência social passava a ser vista como algo que estimula a preguiça e o vício o argumento era o de que seus beneficiários se tornavam dependentes dela assim como os toxicômanos dependem de suas drogas razão pela qual a assistência pre cisava ser eliminada WACQUANT 2007 p 97 e 263 O benefício conhecido como Aid to Families with Dependent Children AFDC48 por exemplo destinava para uma família 46 Cf nota 50 47 Nixon foi o primeiro presidente aconselhado diretamente pelo economista neoliberal Milton Friedman No entanto este criticou o presidente por entender que ele abriu mão de fazer todas as re formas neoliberais por receio de serem impopulares FRIEDMAN FRIEDMAN 1998 p 375396 48 Benefício destinado à assistência de crianças filhas de pais solteiros ou de famílias com baixa renda 218 de quatro pessoas sem nenhuma fonte de renda US 221 por mês em 1970 ao passo que em 1980 o valor era US 350 porém levando em conta a inflação do período em valores constantes isso seria equivalente a US 165 Em 1990 benefício era de US 128 em valores constantes e em 1995 de US 110 uma queda real de mais de 50 em 25 anos Finalmente o AFDC foi extinto por definitivo em 1996 WACQUANT 2007 p 9749 Além disso o recuo dos instrumentos de bemestar se deram em várias outras frentes como o segurodesemprego e o auxílio para a invalidez ocupacional No primeiro caso a cobertura caiu de 76 dos assalariados que perderam seus empregos em 1935 para cerca de 30 em 1995 No segundo a taxa de cobertura caiu de 71 trabalhadores em cada mil no ano de 1975 para 45 em mil em 1995 WA CQUANT 2007 p 101 Segundo as estatísticas oficiais em 1991 uma em cada três famílias estadunidenses era incapaz de dar conta ao mesmo tempo de suas necessidades básicas e dos custos de moradia No final de 1994 o número de pobres nos Estados Unidos ultrapassava 40 milhões de pessoas o equivalen te a 15 da população da época Isso sem contar com o aumento significativo do desemprego entre 1980 e 1990 decorrente da política de enxugamento downsize que se tornou o instrumento privilegiado de gestão financeira das empresas WACQUANT 2007 p 102103 Todavia conjuntamente a essas medidas de redução dos papéis sociais 49 Isso sem contar a técnica administrativa utilizada ao longo desse período para dificultar o acesso este benefício Segundo Wacquant diversos empecilhos burocráticos foram criados com o objetivo declarado de identificar os abusos e os fraudadores do sistema Deste modo os formulários a serem preenchidos os documentos exigidos e a frequência das reavaliações aumentaram consideravel mente fazendo com que entre 1972 e 1984 as recusas administrativas aumentassem em um milhão WACQUANT 2007 p 9899 219 do Estado e do aumento da insegurança social em geral outra série de fenômenos chamou a atenção de Wacquant neste mesmo período o incremento considerável da ca pacidade e da extensão da punição nos Estados Unidos Segundo ele ao longo de toda a década de 1960 até o início da década de 1970 a população prisional diminuía regularmente a ponto dos especialistas da época dizerem que após ter ocupado um papel central no capitalismo in dustrial nas sociedades avançadas a prisão estaria destinada a desempenhar uma função menor50 Em 1973 o número de encarcerados chegou ao seu nível mais baixo desde o final da Segunda Guerra WACQUANT 2007 p 206 Contudo contra todas as avaliações possíveis após 1973 houve uma reviravolta brutal na demografia carcerária nos Estados Unidos sua população dobrou em dez anos e quadruplicou em vinte como demonstramos acima Mesmo levando em consideração o aumento populacional este crescimento ainda é assustador em 1970 eram 96 presos por 100 mil habitantes já em 2000 eram 478 chegando a 698 por 100 mil em 2013 mais de sete vezes mais WA CQUANT 2007 p 207 Mesmo com o grau de independência que cada unida de da federação possui no âmbito penal nos Estados Unidos 50 Como afirma Wacquant Vale lembrar que por volta de meados dos anos 1970 a população carcerária dos EUA estava declinando de forma acelerada há aproximadamente duas décadas atingindo um total de aproximadamente 360000 detentos em 1973 Os principais analistas da questão penal de David Rothman a Michel Foucault e a Alfred Blumstein foram então unânimes em prever a iminente marginalização da prisão como instituição de controle social ou no pior dos cenários a estabilidade a longo prazo do confinamento penal num nível his toricamente moderado Ninguém previa a iminente quadruplicação da população prisional estadunidense nos 20 anos seguintes que faria com que a marca de dois milhões de presos fosse atingida em 2000 mesmo tendo a taxa de crimes estagnado e depois regredido durante esse período WACQUANT 2007 p 344 nota vi 220 Wacquant demonstra que essa foi uma tendência nacional de fundo que independia das características individuais de cada Estado do seu nível de criminalidade e da orien tação política do executivo local WACQUANT 2007 p 213 Porém outro dado ainda mais surpreendente é que este aumento vertiginoso da população carcerária se deu durante um período de estagnação e depois de recuo da criminalidade Entre 1975 e 1995 os níveis de homicídio roubos qualificados lesões corporais e delitos de proprie dade permaneceram praticamente os mesmos quando não diminuíram WACQUANT 2007 p 222 Portanto como demonstra Wacquant este hiperencar ceramento visto nos EUA não se explica por uma escalada da criminalidade violenta mas especialmente pela extensão do recurso ao aprisionamento para uma série de delitos de rua que até então não acarretavam a privação de liberdade tais como algumas infrações relativas aos entorpecentes e comportamentos tidos como atentatórios à ordem pública Sem contar é claro a guerra à drogas iniciada na década de 1970 e intensificada a partir de 1983 Em resumo um conjunto cada vez maior de autores de atos infracionais fossem eles criminosos profissionais e violentos ou de oca sião e nãoviolentos eram agora submetidos a penas cada vez mais intensas Portanto o encarceramento não surge como uma resposta ao aumento da insegurança criminal mas da insegurança social imposta pelo sistema neoliberal WACQUANT 2007 p 222 Além disso outros dois fatores foram determinantes para o aumento da população carcerária o alongamento das detenções e o volume de aprisionados Em primeiro lugar o maior recurso ao aprisionamento com penas cada vez maiores traduz o endurecimento da política criminal e judiciária nos Estados Unidos Afinal no conjunto houve a multiplicação das infrações que acarretam o aprisionamento o aumento das penas impostas tanto aos delitos violentos como aos sem 221 gravidade instauração de penas irredutíveis para certas causas como tráfico de entorpecentes e atentados aos costumes perpetuidade automática do terceiro crime three strikes and youre out endurecimento generalizado das sanções em caso de reincidência aplicação do Código Penal adulto aos menores de 16 anos redução ou supressão da liberdade condicional dentre outros WACQUANT 2007 p 226 Por outro lado ademais do aumento do tempo de encarceramento a estrutura policial e judiciária ampliou sua persecução aos supostos criminosos No início da década de 1980 a polícia nos Estados Unidos efetuava em torno de 104 milhões de detenções das quais cerca de 69 foram seguidas de condenação e aprisionamento Por volta de 1995 o número de detenções já chegava a 152 milhões das quais cerca de 94 resultaram em aprisionamento WA CQUANT 2007 p 227 Para Wacquant tudo isso indica na verdade que a penalização antes de tudo visa conter as desordens urbanas alimentadas pela desregulamentação econômica e disciplinar de frações precarizadas da classe trabalhadora pósindustrial pobre e negra Em suas palavras O que mudou durante este período não foi a natu reza e a frequência da atividade criminosa mas sim a atitude dos poderes públicos e da classe média branca que constitui o grosso dos contingentes eleitorais para com o proletariado e o subprole tariado negro escolhidos para se constituírem no principal alvo e junto aos quais o Estado penal se encarrega de reafirmar os imperativos cívicos do trabalho e da moralidade com tão mais vigor que a precarização do emprego e a contração da caridade do Estado os colocam cada vez mais vulneráveis WACQUANT 2007 p 225 A este processo Wacquant deu o nome de criminalização da pobreza uma vez que o que está em questão era o fato de 222 a punição ser direcionada a determinados indivíduos pelo simples fato de serem pobres Tratamse de medidas que se destinam a transformar em crime as formas de vida e as estratégias de sobrevivência das camadas inferiores do proletariado notadamente seus integrantes negros e hispânicos Deste modo segundo o autor O recurso sistemático às instituições policial e judiciária para conter as desordens da vida co tidiana nas famílias e nos bairros pobres explica por que as prisões estadunidenses estão hoje cheias não de predadores violentos como alardeiam os partidários do tudo pelo carce rário mas sim por criminosos não violentos e delinquentes vulgares do direito comum os quais como já se destacou anteriormente são essencialmente egressos das frações precarizadas da classe operária WACQUANT 2007 p 228 Isso se confirma com a forma seletiva como este rigor penal é distribuído sobre os diferentes grupos sociais Assim são ampliadas as táticas legais de coação destinadas exclusi vamente aos distritos decadentes das classes pobres como o policiamento para a manutenção da ordem conhecido também como tolerância zero a partir das experiências ocorridas em Nova York a partir dos anos 1990 batidas policiais intensivas em conjuntos habitacionais ou escolas públicas normas destinadas a coibir ações de gangues e até mesmo toques de recolher para jovens em guetos e bairros pobres WACQUANT 2007 p 123 Por outro lado não foram detectadas mudanças expressivas nos mecanismos para coibir por exemplo os crimes de colarinho branco Toda essa racionalidade punitiva de lei e ordem tiveram seu ápice na experiência da cidade de Nova York durante a gestão de Rudolph Giuliani 19942002 por meio da política de tolerância zero cujo fundamento se encontrava na 223 teoria das janelas quebradas Este modelo foi posteriormente exportado para diversos cantos do globo como um dos melhores instrumentos de combate ao crime51 A política de tolerância zero se destina a penalizar os pequenos delitos tomando como premissa que sua mera existência é aquilo que estimula a ocorrência de delitos maiores Desta maneira como foi o caso em Nova York a política de penalização é destinada aos sem teto que acossam os motoristas em sinais de trânsito em troca de dinheiro o que para Rudolph Giuliani era o símbolo amaldiçoado da decadência social e moral da cidade aos pequenos passadores de drogas aos moradores de rua profissionais do sexo grafiteiros pichadores etc Em resumo é uma criminalização destinada aos estratos sociais mais baixos que sujam e ameaçam a qualidade de vida das classes média e alta das cidades WACQUANT 2001 p 2627 A base teórica desta política é a chamada teoria das janelas quebradas formulada por James Q Wilson e George Kelling em 1982 segundo a qual seria lutando contra os pequenos distúrbios cotidianos que se evitariam as grandes patologias criminais O título se inspira na máxima de que imaginando um edifício com janelas quebradas se elas não forem consertadas rapidamente a tendência é a de que vândalos partam mais janelas podendo eventualmen te entrar no edifício e se ele estiver desabitado ocupálo definitivamente Neste sentido como demonstra Wacquant Essa teoria jamais comprovada empiricamente serve de álibi criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William Bratton responsável pela segurança do metrô de Nova York promovido a chefe da polícia mu 51 Sobre a exportação da política de tolerância zero cf WACQUANT 2012c 224 nicipal O objetivo dessa reorganização refrear o medo das classes médias superiores as que votam por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos ruas parques estações ferroviárias ônibus e metrô etc Usam para isso três meios aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas res tituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quan titativa de resultados e um sistema de radar informatizado com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças de ordem desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez a jogatina a mendicância os atentados aos costumes simples ameaças e outros comportamentos antisociais associados aos semteto WACQUANT 2001 p26 Por esta razão podese dizer que se o modelo do Estado de bemestar social empreendia uma guerra contra a pobreza por meio de políticas caritativas o modelo neoliberal empreende uma verdadeira guerra contra os pobres por meio de suas políticas criminais e de segurança pública WACQUANT 2007 p 275 Mais do que isso podese dizer que esta é a característica chave do processo de retração do Estado social e ascensão do neoliberalismo um governo mínimo no campo econômico e um governo máximo no campo punitivo o Estadocentauro52 Por isso que a galope este centauro trouxe uma consequência 52 Esse Estadocentauro guiado por uma cabeça liberal montada num corpo autoritário aplica a doutrina do laissezfaire et laissezpasser a montante com relação às desigualdades sociais aos mecanismos que as geram o livre jogo do capital desrespeito do direito do trabalho e desregulamentação do emprego retração ou remoção das proteções coletivas mas mostrase brutalmente paternalista e 225 devastadora para o sistema carcerário dos Estados neoliberais o encarceramento em massa ou hiperencarceramento53 das frações negras e pobres do subproletariado Em suma em suas investigações Wacquant constata que nos EUA o centro pulsante das reformas neoliberais a taxa de encarceramento por 100 mil habitantes no final da década de 1990 já era de seis a doze vezes maior que a registrada nos países da União Europeia uma diferença que por volta do ano de 1970 não chegava a três vezes Como ele demonstra mesmo a África do Sul ao final da guerra civil contra o apartheid prendia duas vezes menos que os Estados Unidos WACQUANT 2007 p 213214 A consequência mais visível desta hiperinflação carce rária está na superlotação carcerária O apetite devorador do Estado penal não consegue encontrar resposta tão ágil na expansão das vagas em presídios O resultado inevitável é a superlotação Segundo o autor a degradação carcerá ria nos EUA foi tão grande que em 1999 33 Estados da União foram colocados sob tutela dos tribunais sendo que 9 tiveram o conjunto do seu sistema carcerário declarado contrário à Constituição por se equipararem a castigos cruéis e não habituais 2007 p 214 No entanto para dar resposta a taxas de ocupação que chegaram a 150 em alguns Estados estratégias cada vez mais absurdas foram sendo utilizadas Em Nova York uti punitivo a jusante quando se trata de administrar suas consequências no nível cotidiano WACQUANT 2007 p 8889 53 Por conta do sentido dúbio da expressão mass incarceration em inglês que pode significar encarceramento em massa ou encarceramento de massa Wacquant tenta evitar esta segunda acepção do termo que leva ria a uma interpretação equivocada já que não há um encarceramento de toda a massa mas apenas de suas parcelas negras e pobres utilizando hiperencarceramento Todavia como em português há a possibilidade de distinguir o encarceramento de massa do encarceramento em massa utilizaremos tanto esta última expressão como hiperencarceramento sem distinções Cf WACQUANT 2012a p 25 226 lizaram prisões flutuantes no rio Hudson em Los Angeles foram ônibus de transportes de presos que serviram como dormitórios para os detentos em Nashville utilizaram um túnel subterrâneo que liga a cadeia local ao tribunal em Phoenix instalaram no deserto tendas militares cercadas de arame farpado em Arpaio retomaram o uso das bolas de ferro presas aos pés dos detentos e criaram um dormitório ao ar livre WACQUANT 2007 p 217218 Todavia devese destacar que se o aumento dos nú meros e taxas de encarceramento cresceram drasticamente os outros meios indiretos de controle e vigilância judi cial encontraram um crescimento ainda mais alarmante Segundo o Bureau of Justice Statistics em 1980 1338500 pessoas estavam cumprindo medidas de suspensão con dicional da pena probation ou liberdade condicional parole Dez anos depois já eram 3201600 Em 2007 atingiuse o pico com 5199300 pessoas submetidas a estas medidas Portanto somandose o número de deten tos com aqueles cumprindo parole ou probation chegase ao extremo de em 2007 os EUA contar com 7415700 pessoas submetidas ao seu sistema penal cerca de 25 de toda a população do país uma em cada 40 pessoas estava sob o jugo do sistema penal Por outro lado sem levar em consideração o recorte racial do aprisionamento estadunidense não é possível mesmo diante destes números alarmantes ter em vista toda a extensão do que significa o hiperencarceramento neste país Inicialmente ao contrário do que geralmente se pensa a predominância de negros na composição étni ca do sistema carcerário estadunidense não é um padrão observável há muito tempo Nas décadas de 1940 e 1950 os brancos correspondiam a cerca de 70 dos presos Ao longo do tempo houve uma verdadeira inversão destas estatísticas sendo que atualmente menos de 30 da po pulação carcerária é composta por brancos mesmo que os 227 negros representem apenas 12 da população total do país WACQUANT 2007 p 333 O ponto de virada se deu em 1989 quando a popu lação negra pela primeira vez ultrapassou a marca de 50 dos detentos Desde então as diferenças proporcionais não pararam de crescer atualmente um em cada 21 negros nos Estados Unidos está preso contra um branco em cada 138 Com relação às taxas de encarceramento em 2010 entre a população branca havia 678 presos para cada 100 mil habitantes ao passo que entre a população negra eram 4347 presos para cada 100 mil habitantes54 Estes dados apontam para o caráter profundamente discriminatório das práticas policiais e judiciais imple mentadas no contexto do Estado punitivo neoliberal As políticas de lei e ordem e a tolerância zero possuem como alvo preferencial as parcelas negras do subproletariado dos EUA a ponto de Wacquant falar em uma política de ação afirmativa carcerária WACQUANT 2001 p 93 Segundo o autor a prisão funciona hoje como o principal dispositivo de controle e confinamento da população negra posição que já fora antes ocupada pelos guetos pelo sistema Jim Crow55 e pela escravidão Todavia como alerta o autor O que torna a intercessão racial do sistema car cerário diferente nos dias de hoje é que ao contrário da escravidão do sistema de Jim Crow 54 Dados do Bureau of Justice Statistics 55 O sistema Jim Crow consistia em um conjunto de lei que obrigavam a segregação racial em todas as instituições públicas como escolas espaços públicos transporte bem como restaurantes banheiros bebedouros etc Estas leis também condenavam o casamento in terracial coabitação ou relaxes sexuais entre brancos e negros Este sistema por óbvio também impunha uma forte precarização das condições de trabalho e ascensão social Cf WACQUANT 2007 p 335349 228 e do gueto de meados do século XX ela não desempenha nenhuma missão econômica po sitiva de recrutamento e disciplinamento de uma mãodeobra ativa Serve sobretudo para armazenar as frações precarizadas e desploreta rizadas da classe operária negra seja porque elas não encontram trabalho devido a uma combi nação de déficit de qualificação discriminação do empregador e concorrência dos imigrantes seja porque se recusam a submeterse à indigni dade dos empregos de baixo padrão dos setores periféricos da economia de serviços que os moradores do gueto qualificam comumente de trabalho escravo slave jobs WACQUANT 2007 p 349 Com isso destacase outro efeito desta política de encarceramento em massa e criminalização da pobreza qual seja a falência do ideal ressocializador Ao promover este encarceramento massivo do subproletariado pobre e negro constatase que aprisionamento cada vez menos se dedica à lógica disciplinar mas serve apenas como instrumento de armazenamento e neutralização dos grupos sociais mais vitimados pelo processo precarização da vida e do trabalho Esta conclusão pode ser comprovada nos Estados Uni dos com os debates relacionados à necessidade de redução custos do aprisionamento Somente nos Estados Unidos este big government carcerário fez com que as despesas em estabelecimentos penais saltassem de US 69 bilhões em 1980 para US 462 bilhões em 1995 um gasto que os eleitores estadunidenses não estavam dispostos a assumir WACQUANT 2007 p 274 Sendo assim assumindo a lógica mercantil a primeira etapa do processo de redução de gastos foi a restauração da possibilidade exploração deste mercado pela iniciativa privada com o objetivo de lucro A partir disso isso surgiram figuras como a exploração do 229 trabalho dos presos e até mesmo a cobrança de aluguéis dos presos e de suas famílias56 Todavia uma das principais estratégias de redução dos custos foi a de abaixar o nível de vida e dos serviços oferecidos aos presos no interior das casas de detenção até os mínimos tolerados Desta forma estruturas caras des tinadas à reabilitação disciplinarização como o acesso à educação às bibliotecas à saúde e a diversos outros direitos dos detentos foram sistematicamente suprimidas Porém muito além disso para Wacquant esse corte de gastos foi fácil de justificar pelo fato de que a própria racionalidade penal em voga nos Estados Unidos nova mente pensa o encarceramento como algo que objetiva a neutralização dos internos e a expiação de suas faltas por meio do sofrimento Uma racionalidade que orienta dos discursos políticos às demandas da mídia majoritária chegando às práticas dos diretores de presídios Desta for ma fica evidente como esta lógica de encarceramento em massa não desempenha nenhuma função de recrutamento ou disciplinamento de uma mão de obra ativa mas busca fundamentalmente armazenar e segregar as frações preca rizadas da classe operária negra 56 os detentos da penitenciária de alta segurança de Fort Madison em Iowa que apodrecem 23 horas por dia num cubículo de concreto de dois metros por três têm que pagar um aluguel de US 5 por mês Além disso desde 1996 e sempre em Iowa uma visita ao den tista da prisão custa US 3 Essas quantias não têm nada de modestas se comparados com os rendimentos irrisórios dos interessados Os detentos que têm a oportunidade de trabalhar dentro da peniten ciária nas cozinhas na lavanderia ou na manutenção recebem salários que variam de US 10 a US 60 por mês E seus ganhos já são amputados por diversas retenções a título de restituição às vítimas por suas más ações e de apoio alimentar a seus filhos se eles os tiverem WACQUANT 2007 p 274 Wacquant relata em seguida que já existem empresas especializadas na cobrança desses débitos dos presos 230 Diante disso as pesquisas de Wacquant conseguem demonstrar com clareza que para a racionalidade neoli beral a exigência de um governo mínimo less government sobre a economia é plenamente compatível com um governo máximo big government sobre a sociedade Mais do que isso que o governo econômico mínimo demanda um governo punitivo e autoritário máximo que busca gerir a pobreza por meio da exclusão e do confinamento Em suas palavras com o advento do governo neoliberal da insegurança social que junta o trabalho restri tivo com a prisão expansiva não são apenas as políticas do estado que não são liberais mas sua própria arquitetura Analisar o surgimento e o funcionamento da política punitiva da pobreza nos Estados Unidos após a dissolução da ordem fordistakeynesiana e a implosão do gueto negro revela que o neoliberalismo ocasiona não o en colhimento do governo mas a formação de um estadocentauro liberal no topo e paternalista na base que apresenta faces radicalmente diferentes nas duas extremidades da hierarquia social um rosto simpático e gentil para as classes média e alta e uma cara medonha e carrancuda para a classe baixa WACQUANT 2012b 37 Portanto Wacquant consegue desnudar com precisão as consequências sociais da implementação das reformas neoliberais A redução das vantagens e dos direitos sociais do estado Providência longe de produzirem um ambiente de liberdade de produção e de desinchaço da máquina pública que sonham os defensores do neoliberalismo na verdade abrem espaço para o surgimento de um verdadeiro Leviatã punitivo pesado e caro que visa conter as parcelas da população atingidas pela precariedade dos empregos pobreza em massa e insegurança social 231 83 Encarceramento em massa e criminalização da pobreza no Brasil Pensar no contexto brasileiro a partir dos argumentos de Wacquant exige alguns cuidados O principal deles é o de que nunca tivemos aqui implantado um verdadeiro Estado Social nos moldes europeus Por mais que a Constituição da República de 1988 tenha sido fortemente inspirada pelo ideal da social democracia ela sempre encontrou dificuldades para ser efetivada uma vez que o caminho trilhado pela política e pela economia do país após a sua promulgação foi bastante diverso daquele que o texto previa Sendo assim a Constituição nasce influenciada por um ideário que naquele momento já rumava para a sua derrocada nos países ocidentais e que por consequência nunca seria implementado no Brasil É certo também que o neoliberalismo chega ao país com um pouco de atraso em comparação com outros países ocidentais mas a partir do governo de Fernando Collor de Melo em 1990 ele começa a dar seus primeiros passos um processo que se consolidaria a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso entre 1994 e 2003 No entanto os dados mostram que independente da ausência de consolidação de um Estado Social prévio os efeitos do neoliberalismo foram tão ou mais fortes no Brasil que nos Estados Unidos ou Eu ropa A penalidade neoliberal já encontrou campo fértil em uma sociedade extremamente desigual sem uma democracia consolidada após anos de ditadura civilmilitar e com um sistema penal herdeiro direto do estatuto escravista57 Em sua Nota aos leitores brasileiros rumo a uma ditadura sobre os pobres que serve de introdução para a tradução brasileira de As Prisões da Miséria Wacquant afirma 57 Com relação à história do racismo institucional sedimentado no campo penal brasileiro recomendase a leitura da obra Corpo negro caído no chão FLAUZINA 2008 232 a penalidade neoliberal é ainda mais seduto ra e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e des providos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século WACQUANT 2001 p 07 De fato após décadas de enraizamento da ideologia de mercado nas instituições os resultados das políticas de encarceramento em massa saltam aos olhos Conforme os dados do Ministério da Justiça 2015 em 2014 o Brasil tinha uma população prisional de 607731 presos a quarta maior do mundo perdendo apenas para Estados Unidos China e Rússia No entanto tendo em vista o ritmo ace lerado de encarceramento no Brasil diante de um leve decréscimo do número de encarcerados nos últimos anos nos três países que lideram a contagem estimase que em 2018 a nossa população carcerária ultrapasse numerica mente a da Rússia58 Acrescentese a isso o fato de nossa taxa de ocupação dos presídios ser de 161 o que significa que há um déficit de 231062 vagas nas instituições Entre os 20 países com maior número de presos no mundo nossa taxa de ocupa ção só é menor que das Filipinas 316 Peru 223 e Paquistão 1774 Ficamos em quarto lugar empatados com o Irã Com relação aos presos sem condenação figu ramos em sexto lugar com 41 dos presos nesta situação MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 2015 No entanto são as variações das taxas de aprisiona mento por 100 mil e do número de encarcerados que 58 De acordo com o Conselho Nacional de Justiça nós já ocuparía mos a terceira posição no ranking se as estatísticas considerassem os presos em regime de prisão domiciliar 233 podem ajudar a compreender como as políticas neolibe rais implementadas a partir do início da década de 1990 transformaram a lógica do encarceramento Entre 1995 e 2010 o Brasil foi o segundo país dentre os 50 com maior população carcerária com a maior varia ção da taxa de aprisionamento com 136 de crescimento perdendo apenas para a Indonésia com 14559 Neste pe ríodo como já havia passado a parte mais incisiva do boom carcerário dos EUA este país ficou em 21 lugar com 23 de variação positiva Ressaltese que entre os dez primeiros colocados sete são países latinoamericanos Com relação à população prisional como dissemos anteriormente o aumento foi de 575 entre 1990 e 2014 saindo de 90 mil para 6077 mil presos O número de pessoas privadas de liberdade em 2014 é 67 vezes maior que em 1990 Apenas entre 2000 e 2014 o crescimento da população carcerária foi de 161 o que corresponde a dez vezes o crescimento da população total no período Este crescimento abrupto do número de presos foi acompanhado como consequência de uma grave crise o déficit de vagas em 2014 já representa quase o número total de presos no ano de 2000 Enquanto nesta data o Brasil contava com 232755 presos e com um déficit de 97045 vagas em 2014 a população carcerária chegou a 607731 presos alcançando um déficit de 231062 vagas MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 2015 Considerando a relação entre ingressos e saídas do sis tema prisional tudo leva a crer que estes números têm uma forte tendência a piorar Apenas no primeiro semestre de 2014 quando entraram 155821 pessoas no sistema apenas 59 Devese considerar entretanto que a taxa de aprisionamento na Indonésia é de 66 pessoas por cada 100 mil habitantes contra 2997 no Brasil e sua população carcerária é de 167163 pessoas MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 2015 234 118282 foram liberadas o que significa que para cada 100 ingressantes apenas 75 pessoas saem do sistema Quando analisado este dado por tipo de unidade os resultados ficam ainda piores nas unidades destinadas a presos provisórios para cada ingresso de 100 pessoas 68 são liberadas ao passo que no regime semiaberto para cada 2 pessoas que saem apenas uma entra MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 201560 Outro elemento que demonstra o crescimento vertiginoso do recurso ao aprisionamento nas duas últimas décadas é a idade dos estabelecimentos prisionais brasileiros 21 deles possui até 5 anos de idade 18 entre 5 e 9 e 20 entre 10 e 19 anos MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 2015 Ou seja 59 dos estabelecimentos prisionais existentes no Brasil atualmente foram construídos após 1995 ano em que se iniciava o governo de Fernando Henrique Cardoso Estes dados demonstram como após a implementação da racionalidade neoliberal no Brasil o encarceramento em massa tem atingido índices difíceis de serem acompanhados mesmo pelos países que compartilham o encargo de serem os maiores encarceradores do mundo Mais do que isso o Brasil supera em muito os países que foram os pioneiros na implementação das políticas punitivas neoliberais61 Assim parece que neste ponto invertendo lógica universalmente aceita do colonial e da periferia como prédesenvolvimento a extensão da violência do neoliberalismo parece aqui ser mais realizada que nos chamados países de centro É o Ocidente realizado somos mais europeus que a Europa e mais estadunidenses que os EUA BRITO JUNIOR 2001 p 160 60 Isso demonstra a preferencia clara de nosso sistema pelas medidas de privação de liberdade mais drásticas Enquanto a população carcerária em geral aumenta há uma redução do aprisionamento em regime semiaberto 61 A título de comparação a variação da taxa de encarceramento entre 1995 e 2010 foi de 53 no Reino Unido 21 dos Estados Unidos 10 na França e 9 na Alemanha 235 Como constatouse ser impossível dar conta do apetite devorador da penalidade neoliberal no Brasil assim como nos Estados Unidos cenas bárbaras e surreais de violações de direitos insistem em se repetir Desde o massacre do Carandiru SP em 1992 passando pelos casos dos presídios de Urso Branco RO Pedrinhas MA Presídio Central de Porto Alegre RS Anísio Jobim AM Monte Cristo RR Alcaçuz RN repetemse os mesmos problemas de super lotação estrutura física deficitária graves déficits de gestão descaso com as garantias básicas dos detentos dentre outros Por lembrar os absurdos do encarceramento em massa citados anteriormente tais como as prisões flutuantes de Nova York as celasônibus de Los Angeles os túneis de Nashville ou os acampamentos militares de Phoenix um caso merece destaque no Brasil O Espírito Santo chegou a utilizar contêineres de carga para o aprisionamento de indivíduos como forma de tentar resolver rapidamente o problema da superlotação de seus presídios Em virtude das altas temperaturas desta unidade da federação e do rápido e contínuo preenchimento de tais carceragens elas ficaram conhecidos como celas microondas e foram responsá veis dentre outras coisas por um pedido de intervenção federal no Estado feito pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNPCP em 2009 RIBEIRO JUNIOR 2012 Por fim devese ressaltar como o fenômeno da crimi nalização da pobreza também pode ser identificado no con texto do hiperencarceramento brasileiro Os destinatários do sistema penal também são aqui as parcelas mais atingidas pela precarização imposta pelas reformas neoliberais o subproletariado pobre e negro Esta afirmação pode ser demonstrada ao analisarmos o perfil da população carcerária em comparação com o perfil da população geral Assim temos que 55 da população carcerária é composta por jovens entre 18 e 29 anos e 67 por ne 236 gros62 Com relação à escolaridade 6 são analfabetos 9 alfabetizados sem cursos regulares 53 com ensino fundamental incompleto e 12 com ensino fundamental completo Apenas 1 possui ensino superior incompleto e o número de presos com ensino superior completo é tão irrisório que ele chega a marca estatística de 0 MINIS TÉRIO DA JUSTIÇA 2015 Com relação a estes dados convém recordar que se nossa população geral é composta por 48 de brancos e 51 de negros de 49 sem instrução ou ensino fun damental incompleto e 113 de pessoas com o ensino superior completo e por 26 de jovens entre 15 e 29 anos63 restando evidente que as políticas prisionais são dirigidas seletivamente para um determinado grupo da sociedade como pode ser visto na tabela abaixo Tabela 1 Comparativo entre as estatísticas da população geral e da população encarcerada População geral População encarcerada População negra 51 67 População jovem 26 1529 anos 55 1829 anos Sem instrução ou ensino fundamental incompleto 49 68 Ensino médio completo e ensino superior incompleto 246 8 Ensino superior completo 113 0 Fonte INFOPEN e IBGE 62 Se considerarmos que esta é justamente a população que aparece como vítima preferencial dos crimes de homicídio 5253 das vítimas de homicídio em 2012 eram jovens entre 15 e 29 anos sendo que destes 77 eram negros e 933 homens não é absurdo inferir que o destino de boa parte da população jovem e negra do Brasil são ou a prisão ou o óbito 63 Dados do Censo de 2010 do IBGE Disponível em httpwww ibgegovbrappssnigv1indexhtmlloc0 Acesso em agosto de 2015 237 Estes dados nos dão a ideia de como a racionalidade neoliberal consegue estender seus tentáculos também para a gestão da miséria nos países em desenvolvimento como o Brasil Vendidos como projetos bemsucedidos tanto as reformas econômicas neoliberais quanto os programas de lei e ordem e tolerância zero são vistos como pertencentes a universos completamente distintos quando eles fazem parte de um projeto transnacional comum que visa a redução das garantias do Estado de Bemestar Social sem deixarnos perceber como isso corresponde a um necessário Estado máximo punitivo Da redução da pobreza por meio de direitos sociais passase à gestão dos pobres por meio da instituição carcerária 84 Referências ANDERSON Perry Balanço do neoliberalismo In SADER Emir GENTILI Pablo orgs PósNeoliberalismo políticas sociais e o Estado democrático São Paulo Paz e Terra 2008 BRITO JUNIOR Bajonas Teixeira de Lógica do Disparate Vitória Edufes 2001 FOUCAULT Michel Nascimento da Biopolítica São Paulo Martins Fontes 2008 FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro Corpo negro caído no chão sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro Rio de Janeiro Contraponto 2008 FRIEDMAN Milton FRIEDMAN Rose D Two lucky people memoirs Chicago University of Chicago Press 1998 HARVEY David Brief history of neoliberalism Nova York Oxford University Press 2005 HUNT E K SHERMAN Howard J História do pensamento econômico Petrópolis Vozes 2008 KLEIN Naomi A doutrina do choque a ascensão do capitalismo de desastre Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 238 NAVARRO Vicente Produção e Estado do bemestar o contexto das reformas In LAURELL Asa Cristina org Estado e políticas sociais no neoliberalismo São Paulo Cortez 2002 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Levantamento nacional de informações penitenciárias Brasília 2015 Disponível em httpwwwjusticagovbrnoticiasmjdivulgaranovo relatoriodoinfopennestatercafeirarelatoriodepenversao webpdf Acesso em agosto de 2016 RIBEIRO JUNIOR Humberto Encarceramento em massa e criminalização da pobreza no Espírito Santo as políticas penitenciárias e de segurança pública do governo de Paulo Hartung 20032010 Vitória Editora Cousa 2012 TOLEDO Enrique de la Garza Neoliberalismo e Estado In LAURELL Asa Cristina org Estado e políticas sociais no neoliberalismo São Paulo Cortez 2002 WACQUANT Loïc A política punitiva da marginalidade revisitando a fusão entre workfare e prisionfare Revista EPOS Rio de Janeiro vol 03 p 0128 janjun 2012a Disponível em httpgooglaLT68 Acesso em fevereiro de 2016 As prisões da miséria Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 Forjando o estado neoliberal trabalho social regime prisional e insegurança social In BATISTA Vera Malaguti org Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal Rio de Janeiro Revan 2012b Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Unidos a onda punitiva Rio de Janeiro Revan 2007 239 9 91 Problematizações acerca da perpetuação de linguagens punitivas A relação entre uma simples ação e o seu entendimento enquanto violência entre esse ato qualquer entendido como violência e a sua transformação em crime entre essa conduta transformada em crime e a responsabilização de seu autor entre a responsabilização de seu causador e a punição dada a ele entre a punição dada e o seu entendimento enquanto castigo entre a aplicação de um castigo e o seu entendimento enquanto aspecto pedagógico entre a educação e a moral a moral e o direito dentre outras possibilidades relacionais que existem em nossa realidade interacional são apenas constru ções sociais em que atribuímos significados e valores distintos a determinadas condutas articuladas por certos indivíduos em exatos contextos épocas e lugares Partindo dessa perspectiva é possível reconhecer que o crime e o tratamento dado a ele são meras criações sociais e políticas conforme apontam os mais diversos autores disso que para alguns seria uma nova tradição da criminologia ou da sociologia do crime e para outros uma espécie de anticriminologia comumente chamada de abolicionismo penal64 64 Sobre esse debate acerca dos distintos entendimentos e alcances do abolicionismo penal sobretudo na américa latina sugerimos não Abolicionismo Penal Uma Reviravolta no Sistema de Justiça Criminal 240 Não são poucos os exemplos que podemos dar acerca da tipificação de determinadas condutas como crimes em certos lugares e épocas que deixaram de ser tratados como delitos em outras ocasiões Como exemplo desse fenômeno podemos citar as políticas de controle sobre as drogas que passaram a criminalizar a produção o comércio e o consumo de determinadas substâncias psicoativas com a justificativa de que esses produtos selecionados fazem mal a saúde Dentre as substâncias selecionadas pelas po líticas proibicionistas podemos citar a cannabis um dos alimentos mais proteicos do mundo e também utilizado há alguns milênios para o tratamento de determinadas enfermidades conforme mostraram MalcherLopes e Ribeiro 2007 Não obstante outras dessas mercadorias reconhecidamente mais prejudiciais segundo a comuni dade científica como por exemplo o álcool e o tabaco são permitidas Em pesquisas anteriores ROSA 2014 verificamos que consumo daquelas substâncias que de alguma forma atuam no sistema nervoso proporcionando certa alteração da capacidade cognitiva sempre estiveram presentes nas práticas cotidianas de toda a humanidade existindo uma literatura bastante variada e extensa que revela as diversas formas com que estes produtos passaram a ser elaborados utilizados e representados socialmente pelas mais distintas civilizações Ao constatarmos que a seleção restritiva de certas substâncias psicoativas não está relacionada direta mente com questões referentes à saúde humana uma vez que as políticas proibicionistas selecionaram certos produ tos independente dos seus impactos em nossos corpos e mentes conseguimos verificar que a proibição da produção do comércio e do consumo de drogas se fundamenta em apenas o oportuno livro El abolicionismo penal em América Latina imaginación no punitiva y militância organizado por Max Postay 2012 mas a resenha precisa apresentada de Salete Oliveira 2015 241 questões de cunho moral tratandose portanto de uma governamentalização das drogas As plantas que hoje possuem sua produção comércio e consumo marginalizados ou criminalizados como a can nabis65 e da folha de coca66 dentre outras durante muito tempo fizeram parte do patrimônio histórico e cultural de diversas populações minoritárias que hoje são socialmente marginalizadas e culturalmente discriminadas por grupos dominantes que consideram arcaicos os seus consumos tanto rituais quanto terapêuticos e nutricionais No en tanto foi a partir da segunda metade do século XIX que a Europa presenciou uma expansão farmacológica criada 65 A cannabis não somente era considerada uma planta importante para a cultura popular do nordeste brasileiro entre os séculos XIX e XX como também era uma mercadoria extremamente lucrativa nos agronegócios estadunidenses tendo os presidentes Benjamin Franklin e Thomas Jefferson como dois de seus principais produ tores Como o consumo da maconha no Brasil era constantemente associado à cultura oculta os seus estigmas acabaram orientando as políticas proibicionistas que ultrapassaram todos os governos deste país O óleo de cânhamo derivado da cannabis que não possui o potencial psicoativo presente na cannabis sativa conhecida popu larmente como maconha era extraído daquela planta e utilizado como combustível na produção da luz elétrica que chegava às ruas de algumas das grandes cidades dos Estados Unidos da América DÓRIA 1986 66 A incidência da cultura da coca na identidade dos autóctones que viviam nos planaltos andinos por exemplo se iniciou há pelo menos 5 mil anos Contudo o encorajamento da produção desta planta por parte dos colonizadores espanhóis que tratavam da folha sagrada dos incas como talismã do diabo só se tornou possível após a cons tatação de suas propriedades estimulantes que poderiam contribuir com a intensificação do trabalho tanto dos camponeses quanto dos mineiros na Bolívia e no Perú pois parte daqueles trabalhadores braçais as consumia buscando aliviar o cansaço e a dor física Na Colômbia ao contrário destes países as culturas de coca estiveram reservadas até os anos 1970 para o consumo da população indígena que representa atualmente 3 de sua população LABROUSSE 2010 242 e legitimada pelo cientificismo médico que buscava so lucionar os problemas referentes tanto à saúde biológica quanto à saúde psíquica elegendo os opiáceos e a cocaína como substâncias essenciais para o tratamento de uma infinidade de males Foi no século XX que presenciamos a intensificação da medicalização da sociedade potencializada pelo modelo médico fortemente marcado pelos conhecimentos psicoló gicos que impuseram através de definições e tratamentos de outros numerosos problemas sociais e públicos con temporâneos Essa questão pode muito bem ser localizada nas pesquisas de Conrad e Schneider 1985 que demons traram como as condutas consideradas desviantes como por exemplo o chamada alcoolismo homossexualidade doenças mentais abusos de crianças drogas dentre outras foram contemporizadas ao longo do tempo de condena ções religiosas ou criminais para os registros médicos Foi desse modo que o que era considerado um ato condenável badness passou ser tratando como uma doença sickness Assim como as relações homossexuais que ainda em meados do século XX eram criminalizadas em diversos países europeus sendo esses sujeitos considerados des viantes muitas das drogas antes lícitas em determinados lugares tornaramse ilícitas e aquelas que eram lícitas tornaramse ilícitas KARAM 2004 p 73 Assim como hoje ao contrário advogase a criminalização de condutas de quem pratique discriminação motivada pela rejeição a tal orientação sexual Portanto o que é crime ou o que se considera desviante em certo lugar pode não ser em outro o que é crime ou o que é tratado uma atitude desviante amanhã pode deixar de ser Em se tratando de substâncias psicoativas é possível verificar que algumas passaram a ser classificadas como lí citas e outras ilícitas entretanto durante todo esse processo não houve nenhum critério preciso e objetivo na escolha 243 destes O que vimos emergir foi uma arbitrariedade que em nome da saúde pública expressa pelo corporativismo médico e legitimada pelo direito passou a matar aprisionar e desgraçar a vida das pessoas de uma forma jamais vista na história A história das políticas criminais que tratam do con trole sobre as drogas não apenas no Brasil mas em toda a América Latina a partir das direcionamentos diplomáticos estadunidenses pode ser utilizada como um excelente exemplo na compreensão dos processos de criação tanto de inimigos internos quanto externos Foi a partir da promul gação da chamada Lei Seca ou 18 Emenda Constitucional dos Estados Unidos em 1919 que localizamos os primeiros indícios do proibicionismo moderno da produção consumo e comércio de substâncias psicoativas em que o Estado daquele país passou a criminalizar determinadas práticas culturais associando diretamente grupos etnicos à certos habitos e condutas No entanto é importante salientar que mesmo antes da elaboração das primeiras leis proibicionistas estadunidenses o moralismo organizado e não organizado já associava o uso de substâncias psicoativas que alteravam os estados de consciência a certos hábitos de minorias estigmatizadas os negros eram recorrentemente associados ao consumo de cocaína os chineses eram tratados como dependentes do ópio os irlandeses tidos como crônicos bebedores de álcool os mexicanos assim como os demais povos colonizados por espanhóis sobretudo a população latinoamericana eram tratados como lascivos fumadores de maconha Portanto em nome da garantia da saúde de toda a população os Es tados ao redor do planeta passaram a criar arbitrariamente leis que visavam prender isolar e até mesmo matar aqueles indivíduos que produziam comercializavam ou consumiam aquelas substâncias psicoativas estabelecidas como ilícitas Ou seja em nome da prevenção criamos um genocídio 244 étnico jamais visto na história amparando na contenção de práticas culturais Será a partir de argumentos como estes que mostram como o crime é fabricado que os tributários do abolicio nismo penal partirão não apenas mostrando que o enten dimento acerca do delito é uma produção social67 como também a forma de contêlo ou tratar daqueles que violam certas regras sociais também é construído socialmente e governamentalizado pela população O abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na ruína da cultura punitiva da vingan ça do ressentimento do julgamento e da prisão Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sóciopolítica do sistema penal moderno os efeitos da naturalização do castigo a universalidade do 67 Em nossa sociedade a população mais abastada e excluída da seletividade penal permanence desfrutando a mesma boa sorte produzindo por meio de politicos e funcionários competentes as leis universais atreladas às práticas ilegais que sustentam interesses particulares Este universalismo particularista da lei e do direito penal se robustece e se perpetua pela capacidade de penalizar de vez em quando e por diversos motivos um indivíduo privilegiado Quando isso acontece aumentam as agitações em favor da série punitiva propiciando ao indivíduo midiatizado satisfazer sua ânsia por participar e se sentir vigiado Sob este conforto efêmero ele rei tera a crença na moral da pena fundada em sua aplicação universal e igualitária incluindo o poderoso Contudo cedo ou tarde vem a decepção quando ele constatar que o castigos imposto ao outro e que o regozijou foi minimizado ou suprimido mediante a revisão processsual Perturbado ou conformado assimila o fato e surpre endentemente legítima a prática da seletividade consolandose na utopia do fim da impunidade e da corrupção refugiandose na esperança de uma verdadeira reforma penal e na doutrina do castigos apocalíptico advindo do julgamento de Deus Por omissão esperan ça crença no sobrenatural ou desejo de garantir a universalização da punição cada indivíduo midiático ao clamar por mais castigos colabora para a continuidade das penas e ampliação da corrupção PASSETTI 2006 p 92 245 direito penal e a ineficácia das prisões Refuta a natureza ontológica do crime ao mostralo como criação histórica na qual a criminalização de com portamentos em maior ou menor quantidade de pende das épocas e das forças sociais em confronto O abolicionismo revira o consenso a respeito da naturalização do castigo que fundamenta o princí pio da punição no direito penal O abolicionismo penal opera fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação geral das penas para lidar com a infração como situaçãoproblema considerando cada caso como uma singularidade Propõe novas práticas relacionando as partes envolvidas e a justiça pública com base na continuidade da vida livre de punições ao visar de um lado reduzir e anular a reincidência e de outro obter do Estado uma inde nização para a vítima Atua pela via da conciliação entre as partes como ocorre no direito civil Re aliza uma reviravolta no atual sistema penal e abre possibilidades para um percurso experimental de respostas à situaçãoproblema Desta maneira abole a concepção criminológica de indivíduo perigoso norte do direito penal contemporâneo e propicia a expansão da educação livre do castigo Diante do velho repetitivo fracassado e inoperante itinerário punitivo de sentenciamentos consolidados pelo direito penal o abolicionismo propõe percursos experimentais para lidar com cada infrator em liberdade PASSETTI 2006 p 8384 Antes de dar continuidade a esta apresentação ressalta mos que o abolicionismo penal resulta de desdobramentos e escolas criminológicas que se colocaram distintamente contrários ao modelo de tratamento dado a situaçõespro blemas68 estabelecidos pelo sistema de justiça criminal criado 68 A introdução da noção situaçãoproblema como maneira de se afastar das definições que estabelecem um comportamento cri minoso ou criminalizável não está direcionada para soluções mas 246 na modernidade Em decorrência disso podemos encontrar diferentes perspectivas teóricas de autores que muitas vezes apresentam distintos pensamentos acerca da punição No en tanto é a inconformidade com um sistema que trata de certas condutas estabelecidas como indevidas por meio das punições aplicadas sob a forma de privação de liberdade que os autores abolicionistas direcionarão suas ponderações e críticas Os diferentes abolicionistas mencionam resumi damente que o sistema penal opera na ilegalidade atua a partir da seleção de seus clientes atribuin dolhes rótulos estigmatizantes dificilmente des cartáveis após o primeiro contato com o sistema afasta os envolvidos no conflito e os substitui por técnicos jurídicos para que busquem uma solução legal para a situação problemáticas produz mais problemas do que soluções dissemina uma cultura punitiva que propaga a ideia de que com um castigo pena de prisão é possível fazer justiça em eventos considerados oficialmente como crime ACHUTTI 2015 p 94 92 Hulsman e as penas perdidas Certamente Louk Hulsman figura como o nome mais importante do abolicionismo penal Como professor por um interesse em levanter questões acerca de um evento que no âmbito da justice criminal seria apenas enquadrado na lei para o estabelecimento de uma vítima e de um criminoso passível de punição Nesse sentido o desfecho de uma situaçãoproblema busca sempre uma conciliação das vontades e interesses dos diretamente envolvidos num evento Acontece sem a necessidade de se buscar um agressor e uma vítima que tem sempre sua vontades sequestrada pela justice criminal mesmo porque a noção não é substitutive do que a lei define como crime Tal desfecho em direção a uma conciliação pode lancer mão segundo cada caso específico de um estilo punitivo que aparece apenas como uma das possibilidades ao lado de outros modelos como o conciliatório o compensatório o terapêuticos e o educacional AUGUSTO 2012 p 160 247 de direito penal na Universidade de Erasmus na cidade de Roterdã na Holanda Hulsman defendia a abolição plena do sistema penal sem nenhuma exceção A sua obra mais significativa do ponto de vista do seu impacto no campo acadêmico Penas Perdidas foi escrita com Jacqueline Bernat de Celis HULSMAN CELIS 1997 A questão que mais motivava Hulsman e Celis 1997 nessa obra era descontruir a linguagem jurídica convencional acerca do sistema de justiça criminal visando uma nova forma de compreender e tratar daqueles eventos tipificados como delito Hulsman critica a sedução das instituições e seus símbolos sobre as pessoas desviando a atenção dos elementos do mundo para o exercício do poder pelo discurso e pela prática dessas instituições ÁVILA GUILHERME 2015 p 77 Ao acreditar que não bastava buscar uma solução in terna aos conflitos ou melhor situaçãoproblema Hulsman e Celis 1997 argumentavam acerca da necessidade de questionar veementemente tanto a noção de crime quanto de autor Segundo os autores não conseguiremos superar a lógica da sistema penal se não rejeitarmos o vocábulo que a sustenta As palavras crime criminoso criminalidade política criminal etc pertencem ao dialeto penal refle tindo os a priori do sistema punitivo estatal HULSMAN CELIS 1997 9596 A grande reviravolta apresentada por Hulsman e Ce lis 1997 sobre o sistema penal se deu sobretudo pelo entendimento de que o delito não seria o objeto mas o produto dessa linguagem que emerge de um sistema de política criminal que tem a pretensão de justificar a criação e permanência do exercício do poder punitivo de incidir severamente sobre a liberdade daqueles sujeitos que prati caram uma conduta tipificada como crime69 Assim com a 69 No passado foi pelo jogo politico das reformas que o sistema pe nal alimentou sua burocracia e fortaleceu a prisão Consolidoua 248 adoção de uma nova linguagem no tratamento das situa çõesproblemas poderíamos potencializar a emergência de maiores possibilidades de tratar de condutas inconvenientes à sociedade através de formas que escapam a racionalidade punitiva Segundo estudiosos do assunto a expansão dos costumes abolicionistas levaria a uma drástica redução de gastos governamentais com o sis tema penal e também dos lucros da indústria do controle do crime Este duplo movimento antireformista estabelece um novo e diferente âmbito do querer político e explicita que o abolicionismo penal com o fim da punição da prisão e do direito penal não desconhece o aparecimento de novos problemas que exigirão das partes envolvidas inventivas maneiras de lidar com cada evento PASSETTI 2006 p 84 Além de argumentarem que a simples substituição da linguagem penal não seria suficiente na mudança das formas de lidar com as situaçõesproblemas caso as antigas categorias e tratamentos permanecessem independente das alterações com os vocábulos Hulsman e Celis 1997 questionavam o fato de que os envolvidos nos conflitos não participavam como protagonistas do processo de sua suposta resolução decorrente da via institucionalizada pelo Estado através do sistema de justiça criminal Portanto não bastava abolir os conceitos era necessário inserir outra gramática como local para onde devia ir o imoral o desordeiro o repugnante refazendo no cidadão obediente e responsável a crença na justiça pelo medo da prisão local onde cabiam todos os ilegalismos e seu complemento as rebeliões por liberdade e demolição da prisão Foi assim que todo sentenciado pelo sistema penal acabava sendo tratado com um preso politico um perigo para a ordem pois deixava de haver a distinção entre infração material e ideológica PASSETTI 2006 p 9697 249 que se iniciaria com a própria abolição da justiça criminal em cada um de nós em cada uma de nossas percepções e comportamentos extraindo os sentimentos de vingança penalidade punição além de ultrapassar o atual modelo pedagógico fundamentado na relação castigorecompensa Hulsman em mais de um escrito alertava para o fato de que o abolicionismo penal começa antes de qualquer coisa em cada um é um estilo de vida Retomar essa afirmação é uma maneira de lembrar aos reformadores da sociedade mes mo os revolucionários que a política começa em cada um Uma política abolicionista é uma atitude pessoal que ocorre no presente como convite aberto a outros interessados em poten cializar liberdades sem esperar pela redenção futura ou por uma situação política favorável AUGUSTO 2012 p 167 Ao estabelecermos e rotularmos uma conduta como crime é possível verificarmos certa limitação da percepção que se apropria da situação impedindo plenamente que ou tras formas de compreensão do contexto sejam percebidas reconhecidas e possivelmente interpretadas levando em consideração aspectos advindos de cada caso em especial Para Hulsman e Celis 1997 as interpretações simplistas abstratas e redutores em que se fundamenta o sistema penal deveriam ser substituídas por compreensões mais amplas e principalmente fundamentadas nas interpretações dos próprios indivíduos que participaram daquela situação problema ou seja o tratamento não deveria se dar por meio da estrutura estatal punitiva uma vez que deveríamos evitar o modelo jurídico penal mas através de ações que escapariam à racionalidade punitiva Hulsman e Celis 1997 argumentavam que as análises acerca das situaçõesproblemas deveriam se apresentar como 250 o princípio do encontro de uma solução efetiva para cada caso No entanto isso se tornaria possível por exemplo caso houvesse um encontro cara a cara daqueles que estivessem envolvidos em determinado acontecimento Ao acreditarem que cada situação sempre se apresenta de maneira singular e única os autores acreditavam que esses casos precisavam ser interpretados através das mais distintas formas pois o certo porém é que a opção crime jamais será fecunda HULSMAN CELIS 1997 103 Hulsman e Celis 1997 acreditavam que a partir do momento em que a situaçãoproblema passa a ser deslocada do cotidiano comunitário para administração estatal através de seu sistema penal os seus protagonistas ou seja aqueles únicos sujeitos a quem interessa a resolução do conflito deixariam de fazer parte do processo que visa tratalo No entanto é a partir da aplicação de certa linguagem jurídica punitiva que opera no sistema penal que se atribuirá certa condição a um sujeito por ter cometido um ato inaceitável do ponto de vista legal consagrandolhe a qualidade de criminoso enquanto que o indivíduo que sofreu essa suposta agressão passa a ser tratado como vítima Ao questionarem a existência de uma natureza ontoló gica do crime mostrando que o conceito de crime é uma construção social Hulsman e Celis 1997 apresentaram uma proposta que se tornou uma legítima reviravolta no tratamento dado pelo sistema de justiça criminal as situ açõesproblemas Argumentavam que a forma com que a justiça criminal trata dos conflitos é somente uma dentre outras possíveis formas não punitivas que poderiam ser aceitadas nas resoluções desses casos Hulsman e Celis 1997 partiam da premissa de que a adoção de outros mecanismos de controle social que operariam para além de uma racionalidade punitiva seriam possíveis através da incorporação de um novo vocabulário que contribuiria com a desconstrução das atuais catego 251 rias que vigoram a exemplo de delito Acreditavam que a atual linguagem jurídica que se ampara na punição para tratar de suas situaçõesproblemas delimita o sistema inviabilizando qualquer tentativa de utilização de outros mecanismos além daqueles estabelecidos oficialmente pelo Estado Outra questão extremamente relevante apontada por ambos autores trata da definição dos conflitos que não são abordados através das perspectiva dos envolvidos mas a partir de sua estruturação legal previamente estabelecida pelo Estado através de suas leis Ao argumentarem que a estruturação legal que passou a tratar das situaçõesproblemas como crimes não conseguem alcançar nitidamente a resolução dos desses casos de manei ra satisfatória a todos os envolvidos uma vez que a justiça penal recorrentemente age de acordo com uma realidade que muitas vezes existe somente dentro sistema sendo raros os casos que considera o mundo exterior Hulsman e Celis 1997 questionaram a operacionalidade de toda uma racio nalização do conflito que tem na punição sua força motriz Assim se por um lado o Estado pode tratar de certas situaçõesproblemas como ofensas à ordem pública ou à segurança violações às regras que vigoram etc trans formandoas em crime na medida em buscará localizar e punir o seu causador pelo outro as partes envolvidas podem atribuir a essas condutas significados bastante dis tintos daqueles estabelecidos pelo rigor da lei Nesse caso a aplicação da punição pela via jurídica não condiz com a tentativa de resolver o conflito de uma maneira em que a parte ofendida se sentirá contemplada com a resolução do caso mas sim mostrará sua face fundamentada na racionali zação do conflito e de seu tratamento pela vida do castigo A partir de tais críticas Hulsman busca demonstrar que ao contrário do que parece a racionalidade do sistema de justiça criminal apresenta incoerências e 252 que por tal razão não permite que os eventos que lhe são encaminhados sejam efetivamente resolvidos mas que recebem apenas uma resposta jurídicopenal sem qualquer relação com a percepção que os prin cipais envolvidos possuem sobre o que aconteceu A resposta jurídica por sua vez além de não incluir as considerações das partes ainda determina que a pessoa considerada culpada deve ser afastada do seu ambiente e relegada a um outro lugar cadeia para que isolado do resto da sociedade possa aprender paradoxalmente a viver em sociedade O paradig ma punitivo conforme ainda Hulsman além de irracional e contraproducente produz sempre mais violência ao aplicar uma forma de punição que não apenas atenta contra a dignidade do acusado mas cujo resultado final não apresentará qualquer efeito positivo social e individualmente Novas formas de perceber interpretar e lidar com os conflitos essa a proposta de Hulsman ACHUTTI 2014 p 103 Embora não tenham apresentado uma proposta ela borada detalhada e completa acerca da abolição plena do sistema de justiça criminal Hulsman e Celis 1997 mostra ram alguns importantes caminhos a serem trilhados Dentre os percursos a serem percorridos os autores apontam que devemos iniciar com os eventos não criminalizados evi tando assim a emergência de novas criminalizações Além disso não apenas apontaram para a necessidade de criação de estratégias que visem reduzir a aplicação do sistema penal visando descriminalizar o maior número de condutas possível como também destacaram a necessidade de elabo ração de táticas que operem como alternativas ao sistema de justiça criminal no tratamento de situaçõesproblemas Contudo tudo isso somente se tornará possível para os autores caso ocorra uma mudança do meio simbólico dos eventos criminalizados decorrentes da inserção de novas técnicas de prevenção do delito resultantes da substituição 253 do atual sistema de justiça criminal por outras formas de controle social como por exemplo a partir da incorporação de práticas fundamentadas nos modelos compensatórios terapêuticos ou conciliatórios 93 Christie e um outro abolicionismo penal Como acreditamos que talvez seja melhor falarmos em abolicionismos penais no plural ao invés de abolicio nismo penal no singular uma vez que estamos tratando de uma corrente do pensamento criminológico que possui distintos autores que recorrentemente apresentam diferen tes perspectivas achamos necessário apresentarmos outro autor de extrema importância para essa vertente uma vez que foi através dele que algumas das práticas abolicionistas passaram a ser experimentadas Nils Christie que atuou como professor do departamento de criminologia e de sociologia do direito na Universidade de Oslo na Noruega foi autor de obras de extrema relevância para esse campo70 tendo o artigo Conflitos como propriedade publicado em 1977 CHRISTIE 1977 consagrado como o mais importante desde a década de 1960 até 2000 segundo o corpo editorial da Revista Britânica de Criminologia ACHUTTI 2014 O fato de Nils Christie não advogar a abolição plena do sistema penal acreditando que em certos casos excepcio nais não há o que fazer a não ser afastar o agressor do meio 70 Christie opõe o modelo tradicional de justiça criminal uma forma diversa de trabalhar os conflitos com estruturas descentralizada e cujos protagonistas não seria terceiras pessoas ou profissionais da administração de conflitos mas as próprias partes direta ou indire tamente envolvidas no conflito Elas deveriam buscar soluções possíveis para os problemas em que estiveram envolvidas com o objetivo de buscar reparar o dano causado àqueles que se sentirem de uma forma ou de outra afetados pela situação ACHUTTI 2014 p 105 254 social em que se encontra fez com que certos abolicionistas tributários de uma crítica estrutural do sistema de justiça criminal entendessem como reformismo às perspectivas apresentadas pelo autor norueguês Como acreditava que em momentos de dúvida a conduta correta seria não pu nir e quando o fizesse que fosse da forma menos dolorosa possível questionando portanto o que chamou de imposição intencional da dor Christie 1981 acabou defendendo a in serção de práticas abolicionistas sem alterar a estrutura e a linguagem com que o poder punitivo opera o que acabou o levando a receber críticas por sua conduta supostamente reformista diferentemente da perspectiva apresentada por Hulsman e Celis 1997 O abolicionismo penal é um discurso que emer ge da sociedade de controle e é neste senti do que Louk Hulsman aparece como o seu instaurador apartandose dos desdobramentos herdados da crítica marxista revolucionária ou reformista da sociedade capitalista expressa em pensadores como Nils Christie e Thomas Ma thiesen O abolicionismo penal de Hulsman é diferente dos marxistas relembrando não só sua aversão ao intelectual condutor de cons ciências como também sua preocupação em demolir incondicionalmente o direito penal sem direito a negociações de aprisionamentos transitórios mas também por não condicionar a sua situaçãoproblema a uma determinação sócioeconômica O abolicionismo penal de Hulsman responde às inquietações provocadas pela sociedade de controle está apartado da centralidade do tribunal da aplicação universal da lei do domínio acadêmico do direito penal da baboseira fétida daqueles que dizem ser o abolicionismo penal uma belíssima utopia e daqueles que o combatem descabelandose e ba bando ensandecidos em qualquer rodinha que 255 o abolicionismo penal dissemina impunidades e anomias bradando o surrado jargão burguês que associa anarquia a baderna O abolicionis mo penal como amplificador de resistências na sociedade de controle atua em fluxos incorpo radores mas não uniformizadores e é assim que reconhece e convive com os vieses marxistas em seu interior PASSETTI 2006 p 100101 Embora tenha inserido práticas abolicionistas dentro do atual sistema de justiça criminal que opera por meio de mecanismos punitivos não alterando estruturalmente a linguagem do castigo alvo de Hulsman e Celis 1997 Christie 1977 acreditava que a resolução dos conflitos não viria com o seu o foco no agressor mas na vítima e em suas necessidades resultantes daquela situaçãoproblema inicial Ao argumentar que as conflitos foram substituídos das partes e entregues ao Estado para que esse pudesse averiguar o caso de maneira simplória responsabilizando e punindo o suposto agressor Christie 1977 acabou pro pondo um modelo de justiça comunitária caracterizado por uma orientação voltada parava vítima na medida em que respeitaria um procedimento constituído em quatro etapas Primeiramente averiguariase a possibilidade da acu sação no intuito de evitar que certas pessoas sejam res ponsabilizadas pelas condutas de outras além de impedir que sejam violados os direitos do acusado em segundo lugar seria necessário a confecção de um relatório com pleto referente as efetivas necessidades da vítima tendo ela presente na formulação de suas próprias demandas considerando os prejuízos causados assim como as formas como ele pode ser reparado ou minimizado em terceiro os tribunais comunitários realizariam uma análise precisa acerca da possibilidade de punição do suposto agressor em quarto e último lugar seria necessário um debate acerca da situação pessoal e social do ofensor realizado pelos mesmos 256 participantes das etapas anteriores visando verificar suas necessidades contingentes Tal perspectiva que abrange os propósitos de reduzir o sofrimento e aumentar as respostas positivas foi considerada por alguns como a concretização de ideias abolicionistas e por outras como iniciativas de descarcerização ou descriminalização de condutas ACHUTTI 2014 p 111 Apesar do debate sobre a condição atribuída à Chris tie 1977 1981 como reformista entendendo que suas propostas não desconstroem a linguagem punitiva mostrada por Hulsman e Celis 1997 ou como potencializador de práticas abolicionistas já que estas possibilitariam a mini mização da dor proveniente das criminalizações e castigos71 o autor norueguês potencializou a emergência de ações fundamentadas na minimização de conflitos através daquilo que passou a se chamar de justiça restaurativa72 conforme mostramos em outras ocasiões ROSA 2013 2015 71 Ruggiero 2011 p 100 argumentou que os abolicionistas penais propõem a inserção de novas formas de tratar daqueles compor tamentos indesejados e ao agir dessa maneira se colocam em uma posição inédita acerca do debate sobre a justiça restaurativa 72 Segundo o site do Conselho Nacional de Justiça CNJ que há cerca de 10 anos no Brasil a prática da Justiça Restaurativa tem se expandido pelo país Conhecida como uma técnica de solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores a prática tem iniciativas cada vez mais diversificadas e já coleciona resultados positivos Contudo ainda de acordo com o Conselho Nacional de Justiça CNJ Justiça Res taurativa é uma prática que está buscando um conceito Em linhas gerais poderíamos dizer que se trata de um processo colaborativo voltado para resolução de um conflito caracterizado como crime que envolve a participação maior do infrator e da vítima Surgiu no exterior na cultura anglosaxã As primeiras experiências vieram do Canadá e da Nova Zelândia e ganharam relevância em várias partes do mundo Aqui no Brasil ainda estamos em caráter experimental mas já está em prática há dez anos Na prática existem algumas metodologias voltadas para esse processo A mediação vítimaofen sor consiste basicamente em colocálos em um mesmo ambiente 257 Considerando que a justiça restaurativa propõe minimizar a dor das partes envolvidas no delito vítima e réu torna possível ponderar que tam bém contribuirá para a saúde de ambas as partes envolvidas Apesar de não trazerem mudanças estruturais do ponto de vista jurídico trazendo somente do ponto de vista da saúde ambas as propostas redução de danos e justiça restau rativa possibilitam a ampliação de discussões acerca da possibilidade tanto do abolicionismo penal quanto do antiproibicionismo ROSA 2013 p 166 Embora ainda não se tenha experimentando o abo licionismo de forma plena conforme sugeriu Hulsman e Celis 1997 ao propor uma alteração na linguagem jurídica punitiva do sistema de justiça criminal tendo apenas sido possível a utilização de elementos práticos extraídos de experiências oriundas do modelo de justiça comunitária apresentado por Christie 1977 1981 estamos vendo emergir tanto no Brasil quando nos demais países do globo experiências que visam a minimização dos conflitos através de ações descriminalizantes assim como nas aplicações de medidas privativas de liberdade somente em casos de suposta necessidade 94 Tendências abolicionistas no Brasil Certamente a relevância dos abolicionismos penais para a compreensão do crime do castigo da violência e da punição se dá principalmente porque algumas das práticas guardado de segurança jurídica e física com o objetivo de que se busque ali acordo que implique a resolução de outras dimensões do problema que não apenas a punição como por exemplo a re paração de danos emocionais site httpwwwcnjjusbrnoticias cnj62272justicarestaurativaoqueeecomofunciona acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 258 que nasceram com os autores tributários dessa tradição como a justiça restaurativa por exemplo passaram a serem incorporadas não apenas por agências internacionais a exemplo da Organização das Nações Unidas ONU73 como também passaram a estar presente na agenda de asso ciações de profissionais da área jurídica como a Associação dos Magistrados Brasileiros AMB74 Segundo o site da Associação dos Magistrados Brasilei ros AMB75 o coordenador da campanha favorável à justiça restaurativa Leoberto Brancher representou o Brasil no II Encontro IberoAmericano de Justiça Juvenil Restaurativa que ocorreu nos dias 21 e 22 de novembro de 2014 no centro de formação da Agência Espanhola de Coopera ção Internacional AECID No documento apresentado naquela ocasião consta sugestões normas e diretrizes para o funcionamento do sistema de justiça e das execuções de medidas referentes ao tratamento dado aos jovens em conflito com a lei76 Além disso estão incluídos princípios normas e regras que já se encontram contemplados nos documentos internacionais relativos aos padrões mínimos de qualidade de serviço A novidade apresentada nesse congresso se deu a par tir do enfoque restaurativo que introduziu o conceito de 73 Site httpwwwjustica21orgbrj21phpid366pg0Vrhw QjYrLsE acessado no dia 07 de fevereiro d 2016 74 Site httpwwwambcombrnovop18828 acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 75 Não obstante é importante destacar que em novembro de 2015 a Associação dos Magistrados Brasileiros AMB trouxe para o Brasil Howard Zehr provavelmente um dos maiores estudiosos das experiências de justiça restaurativa com o propósito de ministrar uma vídeo conferência para mais de 100 salas de todo o Brasil site httpwwwambcombrnovop24508 acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 76 Site httpwwwambcombrnovop18828 acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 259 justiça restaurativa como conteúdo que possivelmente melhoraria a estrutura de funcionamento do sistema de justiça juvenil Todavia é importante destacar que as práticas restaurativas apresentadas à área da justiça juvenil se fun damentariam em quatro dimensões evitar a judicialização dos conflitos envolvendo adolescentes em conflito com a lei evitar a privação de liberdade favorecendo as medidas penais alternativas reduzir o tempo de cumprimento da privação de liberdade apoiar a reintegração quando os jovens saem da prisão Ao enfatizar que apesar da justiça restaurativa também ser tratada como uma espécie de desdobramento de práticas abolicionistas uma vez que opera a partir de estratégias bas tante próximas a elas embora mantenhase fundamentada no modelo punitivo só que reduzido é nítida a sua ascensão como possibilidade de minimização dos conflitos e dos so frimentos decorrentes de situaçõesproblemas No entanto embora os princípios do programa de justiça restaurativa promovido pela Organização das Nações Unidas ONU e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimen to BID apresentado na Resolução 2002201277 tenham operado na minimização de eventuais castigos aplicados à jovens em conflito com a lei ainda assim ela reconhece a superioridade de uma autoridade que passou a ser deslocada do campo judicial para o comunitário78 Todavia o abolicio 77 Site httpwwwjustica21orgbrj21phpid366pg0Vrhw QjYrLsE acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 78 Os princípios do programa de Justiça Restaurativa promovido pela ONU e financiado pelo BID procuram privilegiar a conciliação restauração ou a cura prescindindo em muitos casos das autoridades judiciais em favor das comunidades dos locais em que ocorreram as infrações Os valores que parametram a Justiça Restaurativa dividemse entre os direitos como o diálogo respeitoso o republicano e o de não dominação e os indiretos como o perdão a clemência e o remorso A aplicação da justiça restaurativa no Brasil delineiase com o objetivo de formação de um domínio que seja 260 nismo penal apresentado inicialmente por Hulsman e Celis 1997 visa suprimir a autoridade superior abolindo certa linguagem jurídica amparada na punição e não construir reformas que darão continuidade à práticas amparadas no castigo ainda que de maneira reduzida O reconhecimento da importância de exemplos de ações extraídas a partir dos escritos de autores abolicionistas penais está se intensificando cada vez mais na medida em que passou a ser difundido por todo o planeta É bastante provável que o recente fenômeno do fechamento de pri sões que ocorreu na Holanda79 tenha se dado não apenas pela inserção de novas técnicas de controle decorrentes da utilização de tornozeleiras eletrônicas e demais tecnologias do poder presentes naquilo que Deleuze 2008 chamou de sociedade de controle como também pela própria con tenção da criminalidade resultante da descriminalização da produção comércio e consumo de drogas e da inserção de políticas de redução de danos80 O impacto dos escritos acerca do abolicionismo penal e sua potencia não apenas enquanto estratégia minimiza dora da cultura do castigo mas enquanto possibilidade de mudança de uma linguagem jurídica que opera motivada simultaneamente preventivo do ponto de vista penal e instrumen talizado de programas acoplados à reforma do sistema judiciário Fica uma questão como é possível suprimir modelos punitivos se a justiça restaurativa pressupõe modelo alternativo que de antemão reconhece a superioridade de alguém Então suprimese em parte as autoridades judiciais para pôr em seu lugar a comunidade Deslocase o risco da exceção para o do fascismo O Abolicionismo penal pretende suprimir a autoridade superior PASSETTI 2006 p 104 79 Site httpg1globocomplanetabizarronoticia201306go vernoholandesestudafecharprisoesdevidofaltadecriminosos html acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 80 As políticas de redução de danos visam sobretudo executar ações destinadas à prevenção das possíveis consequências danosas à saúde decorrentes do consumo de substâncias psicoativas sem necessaria mente interferir na redução da oferta e da demanda Brasil 2001 261 pela punição é tamanho que em 2015 um dos maiores prêmios da literatura brasileira consagrou o livro Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal de Daniel Achutti 2014 com o segundo lugar na área do direito81 Isso nos revela que embora possamos vislumbrar a ascensão de um Estado penal e toda a sua racionalidade econômica que coloca o crime e o criminoso como objetos de ganhos financeiros conforme mostrou Wacquant 2003 há também uma emergente potencia contrária à essa cultura do castigo e da punição que propõe uma reviravolta na forma com que tratamos seletivamente os indivíduos em sociedade é essa tradição que chamamos de abolicionismos penais O grande questionamento apresentado pelos abolicio nistas penais tributários das perspectivas de Hulsman e Celis 1997 se dá sobretudo acerca da impossibilidade de uma efetiva mudança estrutural do sistema penal na medida em que a linguagem punitiva permanece com as atuais incor porações de práticas advindas de construções de pensadores dessa matriz teórica a exemplo da justiça restaurativa No entanto o processo de descriminalização bem como as prá ticas entendidas como reformistas por parte dos defensores dessa tradição genuína tem contribuído fortemente para com a redução dos índices de encarceramento assim como passa ram a fomentar a diminuição de condutas criminalizáveis a exemplo das movimentos pela legalização de determinadas substâncias psicoativas estabelecidas como ilícitas Esse é um debate bastante atual e em decorrência disso necessita de reflexões ponderações e avaliações enquanto projeto para novas possibilidades de se pensar o crime e a punição bem como alternativas que visem abolilos enquanto linguagem técnica visando minimizar os impactos decorrentes de quais quer situaçõesproblemas 81 Site httppremiojabuticombrvencedores2015todascatego rias3 acessado no dia 07 de fevereiro de 2016 262 95 Referências ACHUTTI Daniel Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal São Paulo Ed Saraiva 2014 AUGUSTO Acácio Abolicionismo penal como ação direta Verve Revista Semestral do Núcleo de Sociabilidade Libertária NUSOL Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais PEPGCS Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP N 21 Maio de 2012 ÁVILA Gustavo N GUILHERME Vera M Abolicionismos Penais Rio de Janeiro Ed Lumen Juris 2015 BRASIL Manual de Redução de Danos Saúde e Cidadania Brasília Ministério da Saúde Coordenação Nacional de DST e AIDS 2001 CHRISTIE Nils Conflicts as Property The British Journal of Criminology V 17 N 01 1977 Limits to Pain Eugene Wipf and Stock Publishers 1981 CONRAD Peter SCHNEIDER Joseph W Deviance and Medicalization From badness to sickness Columbus Merril Publishing 1985 DELEUZE Gilles Conversações São Paulo Ed 34 2008 DÓRIA Rodrigues Os Fumadores de Maconha Efeitos e males do vício In HENMAN Anthony PESSOA JUNIOR Osvaldo org Diamba Sarabamba coletânea de textos brasileiros sobre a maconha São Paulo Ed Ground 1986 HULSMAN Louk CELIS Jacqueline B Penas Perdidas Niterói Ed Luam 1997 KARAM Maria L Pela Abolição do Sistema Penal In PASSETTI Edson org Curso Livre de Abolicionismo Penal Rio de Janeiro Ed Revan 2004 LABROUSSE Alain Geopolítica das Drogas São Paulo Ed Desatino 2010 MALCHERLOPES Renato RIBEIRO Sidarta Maconha Cérebro e Saúde Rio de Janeiro Ed Vieira Lent 2007 263 PASSETTI Edson Ensaio sobre um abolicionismo penal Verve Revista Semestral do Núcleo de Sociabilidade Libertária NUSOL Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais PEPGCS Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP N 09 Maio de 2006 POSTAY Maximiliano E org El abolicionismo penal em América Latina imaginación no punitiva y militância Ciudad Autónoma de Buenos Aires Del Puerto 2012 256 pp ROSA Pablo O Juventude Criminalizada Florianópolis Ed Insular 2013 Drogas e a Governamentalidade Neoliberal Florianópolis Ed Insular 2014 OLIVEIRA Salete O abolicionismo na América espanhola e a perspectiva abolicionista mais ao sul na América do Sul Revista Ecopolítica São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP N 13 2015 WACQUANT Loïc Punir os Pobres Rio de Janeiro Ed Revan 2003 Este livro foi impresso em papel OffSet 75g com tipografia Bembo Std 1214 editora