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R Inter Interdisc INTERthesis Florianópolis v16 n1 p 3656 JanAbr 2019 ISSN 18071384 DOI httpsdoiorg105007180713842019v16n1p35 Artigo recebido em 16102017 Revisado em 18082018 Aceito em 10092018 Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons CRIME E VIOLÊNCIA NO BRASIL REPRESENTAÇÕES SOCIOCULTURAIS NA PÓSMODERNIDADE Clarice Sohngen1 Marcelli Cipriani2 Resumo Este artigo visa a abordar algumas representações socioculturais sobre o crime e a violência no Brasil contemporâneo Nesse sentido são feitas reflexões acerca do espraiamento do medo coletivo destacandose sua relação com a segregação sócioespacial Analisase então a constituição de sociabilidades diferentes em espaços segregados como elemento que influi nas representações coletivamente produzidas Por fim se investiga algumas das respostas sociais à generalização do medo que perpassam pela produção de discursos reativos à violência que não raro também são violentos Assim se busca abordar aspectos que se imbricam quanto aos fenômenos criminais contemporâneos nas manifestações socioculturais que é articulada no trabalho pelo apontamento de tendências mais amplas do momento histórico representado pela pósmodernidade a partir de como se expressam no contexto brasileiro Palavraschave Representações Socioculturais Violência Crime Pós Modernidade Medo CRIME AND VIOLENCE IN BRAZIL SOCIOCULTURAL REPRESENTATIONS IN POSTMODERNITY Abstract This article aims at approaching some of the possible intersections between sociocultural representations of crime and violence in contemporary Brasil In this sense it is presented reflections about the spreading of collective fear highlighting its relationship with sociospatial segregation Then it analyzes the constitution of different sociabilities in segregated spaces as an element that influences the representations that are collectively produced Finally it investigates some of the social responses to the generalization of fear which are related to the production of discourses that are reactive to violence but are also often violent themselves Thus it intends to address aspects where contemporary criminal phenomena are interwoven in sociocultural manifestations what is articulated by pointing to broader tendencies of the historical moment represented by postmodernity from the way they are expressed in the Brazilian context Keywords Sociocultural Representations Violence Crime Postmodernity Fear 1 Professora Titular da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Decana Associada da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Docente Colaboradora do Programa em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre RS Brasil Email claricesohngenpucrsbr 2 Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil Email marcelliciprianihotmailcom 37 CRIMEN Y VIOLENCIA EN BRASIL REPRESENTACIONES SOCIOCULTURALES EN LA POSTMODERNIDAD Resumen Este artículo apunta a abordar algunas representaciones socioculturales sobre el crimen y la violencia en el Brasil contemporáneo En este sentido son propuestas reflexiones sobre expansión del miedo colectivo destacándose su relación con la segregación socioespacial Se analiza enstonces la constitución de sociabilidades diferentes en espacios segregados como elemento que influye en las representaciones colectivamente producidas Por último se investiga sobre algunas de las respuestas sociales a la generalización del miedo que pasan por la producción de discursos reactivos a la violencia que no raramente también son violentos Así se busca abordar aspectos que se imbrican en cuanto a los fenómenos criminales contemporáneos en las manifestaciones socioculturales que es articulada en este trabajo por el apunte de tendencias más amplias del momento histórico representado por la postmodernidad a partir de su expresión en el contexto brasileño Palabras clave Representaciones Socioculturales Violencia Crimen Posmodernidad Miedo 1 INTRODUÇÃO A expressão da violência é multidimensional pois acomete variados atores sociais e assume formas diferentes desde a física até a psicológica ou a simbólica3 não podendo por isso ser tratada como uma espécie de expressão valise SOUZA 2008 Por sua vez a atividade criminosa violenta sobre a qual se enfoca esse trabalho é fruto da codificação de uma gama de comportamentos indesejados a dada sociedade em certo período histórico4 Portanto também se apresenta como multifatorial na medida em que possui agentes e circunstâncias típicas muito distintas Isso implica reconhecer que o crime ocorre de maneira desagregada sendo influenciado por aspectos plurais de diferentes naturezas SCHABBACH 2007 Além disso tais ocorrências de manifestam pelo espaço urbano heterogeneamente No Brasil o espraiamento da violência se dá em parte como consequência da distribuição social da paz que privilegia classes abastadas e 3 Para Bourdieu 2005 a violência simbólica não se expressa por coações físicas ou atos concretos mas espraiase de forma silenciosa se exercendo através de esquemas de percepção da avaliação e de ação e que fundamentam aquém das decisões da consciência e os controles da vontade 4 De acordo com as abordagens do labeling approach não há nada inerentemente desviante no crime pois ele é resultante de uma construção social que perpassa por assimetrias de poder Becker 2008 um dos adeptos da também chamada teoria do etiquetamento ou rotulação propôs investigar o desvio como algo que transcende motivações individuais ou particularidades comuns a um grupo desviante mas como um processo no qual outros atores sociais também precisam ser investigados como aqueles que formulam as regras e suas sanções e os que são designados para fazêlas ser cumpridas 38 cerca bairros populares com um cordão sanitário repressivo SOARES 2000 Segundo o 12a Anuário de Segurança Pública FBSP 2018 a taxa de letalidade policial brasileira é a mais alta do mundo e os índices de mortes violentas intencionais é mais do que o triplo do considerado endêmico pela Organização Pan americana de Saúde E seja quanto a intervenções policiais ou ao crime comum são as periferias urbanas que atualmente estão em posição mais vulnerável à violência SOUZA 2008 Somandose ao recorte territorial outros elementos influem na probabilidade de ser vitimado por violência no país Quanto aos homicídios 92 da população afetada é masculina IPEA FBSP 2017 54 é jovem entre 15 e 24 anos e 73 é negra FBSP 2016 Segundo Garland 2014 as respostas às violências no âmbito do controle do crime dizem respeito não só a considerações criminológicas mas às forças históricas observadas a partir da segunda metade do século XX Essas mudanças sociais econômicas e culturais são características da pósmodernidade e dos realinhamentos políticos que lhe decorreram tendo sido vivenciadas com maior ou menor intensidade por todas as democracias industriais ocidentais após a Segunda Guerra Mundial e acentuadas a partir da década de 60 Para o autor apesar de diferenças nacionais a chegada da pósmodernidade transformou as condições sociais e políticas sobre as quais se assentava o campo do controle do crime Ainda desafiou a legitimidade das instituições bem como trouxe novos problemas de crime insegurança e medo Apesar da incidência de marcadores sociais sobre a manifestação de qualquer violência o crime e o medo do crime são amplamente vividos como fatos da vida moderna GARLAND 1999 o que faz com que 76 da população brasileira declare ter medo de morrer assassinada FBSP 2016 A sensação de medo coletivo estimulada pelos crescentes índices de violência urbana bem como por sua espetacularização midiática vem se deslocando progressivamente tornando se quase que ubíqua em algumas metrópoles SOUZA 2008 Nesse contexto é que surgem as fobópoles grandes cidades nas quais o medo é generalizado ainda que também matizado de acordo com a classe a raça o gênero a sexualidade e a região de moradia por exemplo modelando os hábitos coletivos de deslocamento e lazer influindo nas formas de habitat de interação social e de formação dos discursospadrão sobre a violência urbana SOUZA 2008 39 Sendo referidos cotidianamente na pósmodernidade o crime e o medo do crime tornaramse riscos que devem a todo tempo ser geridos e estimados GARLAND 2014 Diante disso os atores sociais constituíram suas próprias adaptações à disseminação criminal contemporânea pelo estabelecimento de cuidados rotineiros e de formas de controle social particulares São essas adaptações coletivas que provocam a importância sociocultural da questão do crime nos tempos atuais dado que fornecem a base social para muitas das novas políticas criminais dos últimos anos e moldam a formação cultural o complexo do crime que vem crescendo em torno do crime no final do século XX GARLAND 2014 p 38 Partindose de tal premissa as reflexões desse artigo se dão em torno de representações sustentadas no Brasil em torno do crime e da violência urbana contemporânea Segundo Porto 2002 embora resultem de experiências individuais as representações são condicionadas pelo tipo de inserção social do indivíduo ou do grupo que as produzem expressando visões de mundo que visam a explicar e a dar sentido aos fenômenos e com isso também auxiliando a constitui los Assim são imagens que condensam um conjunto de significados servindo como um sistema de referências que possibilita a interpretação daquilo que ocorre com os atores assim como a concessão de sentido por eles ao inesperado JODELET 1985 No âmbito das representações sociais que circundam a violência e a atividade criminosa propõese ressaltar alguns elementos centrais à sua constituição a segregação sócioespacial5 a constituição de sociabilidades diferentes em espaços segregados e a produção de discursos sobre o crime não raro violentos em resposta à sua tomada como malestar coletivo 2 MEDO DO CRIME E SEGREGAÇÃO SÓCIOESPACIAL Na sociedade brasileira marcada por grandes disparidades a insegurança urbana e os mecanismos de adaptação à violência perpassam pela segregação sócioespacial que junto ao estabelecimento de locais privilegiados constitui vizinhanças estigmatizadas SPOSITO 2016 Os lugares segregados que ocupam 5 Em lugar do termo socioespacial utilizase sócioespacial com base na diferenciação estabelecida por Souza 2007 De acordo com o autor enquanto o primeiro diz respeito à análise do espaço social ou substrato o segundo se ocupa da manifestação das relações sociais no espaço 40 posições inferiores na hierarquia dos espaços metropolitanos são marcados pela precariedade estatal na oferta de serviços equipamentos lazer cultura trabalho acessibilidade a outras partes da cidade etc ALVES 2016 Porém tal ausência costuma ser acompanhada da presença substancial do braço armado do Estado seja pela sujeição privilegiada a patrulhamentos policiais pela atuação de Unidades de Polícia Pacificadora UPPs pelo emprego das Forças Armadas no combate à criminalidade quotidiana ou por outras formas de militarização da questão urbana SOUZA 2012 A segregação sócioespacial se soma à auto segregação de elites e com cada vez mais frequência de classes médias que asseguram a fixação de fronteiras através do emprego de mecanismos artificiais como muros altos cercas eletrificadas guaritas e guardas particulares cancelas para fechar logradouros públicos e câmeras de TV SOUZA 2006 p 489 sistemas de controle e vigilância representativos da ideia de que é possível ter alguma segurança em um mundo de imponderabilidade SPOSITO 2016 Portanto a prática corrente de construção de bairros residenciais de expressivo status social também resulta na produção de áreas diferenciadas nas grandes cidades CORREA 2016 Assim a busca por um espaço harmonioso e homogêneo compõe as adaptações ao crime pela sociedade em especial a que está apta a recorrer a mecanismos de controle nãoestatais Essas tendências então impactam as agências de controle do crime como estimulando o serviço de empresas privadas de vigilância e segurança GARLAND 2014 Para Bauman 2003 o processo de isolamento entre diferentes comunidades urbanas teria se iniciado de forma geral nos anos 1960 adquirindo progressivo aprofundamento nas décadas subsequentes No Brasil ele perpassou pela territorialização das periferias por traficantes de ilícitos o que se deu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1970 e mais tarde também passou a ocorrer em outras capitais Até a década de 80 moradores de periferias cariocas podiam visitarse sem esbarrar em maiores mecanismos de controles A partir de então tais periferias viveram um progressivo fechamento decorrente da tutela da interação espacial promovida por coletivos criminais o que intensificou a fragmentação no tecido urbano SOUZA 1998 A esse fenômeno somase o autoenclausuramento da elite e das classes médias que também se aprofunda na década de 70 e prossegue em ritmo febril Proliferam condomínios exclusivos como o Alphaville que já detém uma 41 área equivalente ao principado de Mônaco com uma população fixa de só no Complexo da região metropolitana de São Paulo 30 mil moradores e uma população flutuante funcionários comerciários etc de mais de 100 mil pessoas SOUZA 2006 Nesse tipo de arranjo territorial de cunho profundamente intimista o semelhante de acordo com a presença de determinados marcadores sociais é mais facilmente acolhido enquanto a rejeição do diferente se intensifica desembocando na demonização daqueles que são encarados pelo grupo homogêneo como alguém que parece fazer parte do outro lado SOUZA 1998 Paralelamente as demandas por lei e ordem também atingem sua máxima potência SENNETT 1996 indicando o impacto do anseio social expresso na cultura pela transformação dos mecanismos institucionais especialmente os de segurança e pelo estímulo ao uso de alternativas privadas de proteção à violência Ao encontro dessas adaptações há a expansão da vigilância e do gerenciamento do crime assim como o crescimento da comercialização do controle criminal GARLAND 2014 Segundo Garland 2014 tais elementos comporiam algumas das principais transformações no campo da justiça criminal com o advento da pósmodernidade que passaram a ser observadas especialmente em países ocidentais que seguiram as tendências do capitalismo neoliberal que partilharam suas influências culturais e que acompanharam os processos de globalização à época O medo sistemático de ser vitimado por um crime também assumiu dimensão central nas dinâmicas sociais sendo visto como um problema em si mesmo dissociado do crime e de sua vitimização Assim políticas específicas têm sido desenvolvidas mais com o objetivo de reduzir os níveis de medo de que de reduzir o crime GARLAND 2014 p 54 Porém o sentimento de medo não pode ser deslocado de suas interfaces com dois mercados o da segurança e o da violência No primeiro se insere a fabricação de armas ou de carros blindados e a disposição da vigilância privada bem como os condomínios fechados os shopping centers e outros símbolos de autos segregação de classe SOUZA 2008 Ainda o sistema políticoeleitoral que não raro instrumentaliza o medo coletivo como capital político e os veículos de informação que ao seu turno o exploram e contribuem para a instituição de pânicos morais COHEN 2002 Nesse ínterim o mercado da violência estimula e justifica a expansão do mercado da segurança enquanto esse ainda que 42 indiretamente como pelo desvio e venda ilegal de armas termina por alimentar aquele SOUZA 2008 Em um arranjo territorial sócioespacialmente segregado os mercados da violência e da segurança penetram de forma marcadamente desigual com por exemplo o medo e a insegurança sendo acionados para controlar a acessibilidade a diferentes lugares e a circulação de pessoas SPOSITO 2016 Todavia a intensificação do isolamento tem por consequência a diminuição de vários tipos de interação sócioespacial que tendem a desaparecer ou então tornamse muito mais seletivas O espraiamento do medo e seu impacto na segregação territorial bem como a falta de cidadania como valor universal e de prerrogativas políticas para parte considerável das periferias que por exemplo aprenderam que não podem contar com a polícia para sua proteção e permanecem fora da cena pública e política FELTRAN 2010 podem abrir espaço à construção de sentidos diferenciados à sociabilidade urbana que legitimam deslegitimam institucionalizam eou desinstitucionalizam cursos de ação distintos para um mesmo conteúdo ou cursos de ação semelhantes para conteúdos de sentido contraditório MISSE 1997 p 11 Portanto abarcam a construção de variáveis representações socioculturais sobre o crime e da violência que podem ser dissonantes e até conflitantes entre si 3 A COEXISTÊNCIA DE SOCIABILIDADES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Como colocado a segregação sócioespacial é um dos fatores a demarcar o aparecimento de sociabilidades concomitantes dado o afastamento das interações entre os indivíduos o que reforça a dissonância entre seus padrões normativos de comportamentos MISSE 1997 Ainda que as sociabilidades que coexistem no país tenham se constituído historicamente dentro de processos hierárquicos elas também já estiveram imbuídas de alguns comportamentos normalizados por exemplo com a incorporação da civilidade burguesa pelas camadas sociais excluídas e pela incorporação das classes médias e elites intelectuais da malandragem dos valores da preguiça e da carnavalização da vida MISSE 1997 De acordo com Misse 1997 a partir da década de 70 podese identificar um crescente fechamento da sociabilidade cotidiana entre ricos e classe média e entre esses e a população de pessoas pobres também reforçado pela ausência de áreas comuns para os encontros sociais intercalasses 43 Silva 2004 é um dos autores vem buscando compreender o surgimento recente no Brasil de uma sociabilidade violenta um complexo de práticas sociais que não são coerentes com as rotinas cotidianas estatalmente organizadas SILVA 2004 p 59 Nesse âmbito procura investigar a vivência coletiva como conjunto fragmentado em diferentes formas de vida que podem ser reguladas tanto em torno do Estado quanto fora de suas normas O autor pretende romper com a espécie de etnocentrismo da suposição de que os conteúdos de sentido que organizam as ações de criminosos e nãocriminosos são os mesmos em ambos os casos expressões subjetivas dos contextos normativos regulados pelo Estado SILVA 2004 p 66 Em consonância ao apontado por Misse 1997 Silva 2004 também entende que a integração social no Brasil teria desabado mais fortemente em meados dos anos 1970 uma época em que para além do já apontado as ações coletivas de moradores da periferia quanto à mediação normativa entre a população mais pobre e as instituições públicas começou a se transformar Feltran 2010 destaca que ainda que as posições dessas mediações tenham permanecido iguais nas últimas décadas entre periferia e as instituições elas mudaram de significado Por um lado foram impactadas pela transição do regime militar à democracia que inseriu subalternamente os movimentos sociais periféricos na política institucional por outro sofreram incidência das mudanças ocorridas no perfil da população periférica influenciadas pelas dinâmicas das relações de trabalho após a década de 70 Assim em que pese a relação entre o espaço periférico e o mundo público ter sido tradicionalmente marcada pelo conflito seu percurso e suas formas de contenção ensejaram dispositivos adaptativos diferentes a luta política que remonta a demanda pelas prerrogativas de cidadania dos movimentos sociais das décadas de 80 e 90 o gerenciamento estatal de populações periféricas próprio a programas sociais iniciados nos anos 1990 e a violência como iminência ou ato na repressão policial atual diante das periferias e nas próprias ações de sujeitos envolvidos com o mundo do crime FELTRAN 2010 Essas dinâmicas perpassam pela constituição de diferentes sociabilidades imbricadas em duas dimensões nas questões da informalidade no âmbito econômico da sociabilidade como quanto ao projeto inconcluso do assalariamento brasileiro e nas questões da incivilidade no âmbito sóciopolítico da sociabilidade como quanto aos direitos civis MISSE 1997 44 Na época de ocupação das periferias por migrantes a promessa de mobilidade social operária se traduziu no sucesso de uma pequena elite periférica que apostou no sobretrabalho e na formação escolar de seus filhos como alavancas de ascensão à classe media Porém para a grande maioria dos filhos desses operários a contrapartida social possibilitada pelo assalariamento nunca chegou se em 1970 era relativamente fácil conseguir um emprego fabril formal em 2010 esse emprego era escasso exigia alta escolaridade especialização e flexibilidade Ademais costumava significar a ocupação de postos pouco estáveis e terceirizados FELTRAN 2010 Assim o local da fábrica que sob sindicalização crescente favorecia a construção de identidades e de ações coletivas se transformou e aumentou o índice de jovens moradores de periferia que passou a encontrar trajetórias de inserção ocupacional nos limiares entre o formal o informal e o ilícito FELTRAN 2010 Em paralelo a cidadania como contrapartida da expropriação econômica e do desenvolvimento do capitalismo foi bastante seletiva no país MISSE 1997 e ainda que as últimas décadas tenham sido marcadas por alguns avanços na redução da desigualdade de renda esses se deram consoante colocado por Sousa Santos 2016 através do consumo e não mediante a ampliação do acesso à cidadania Dessa feita o aumento do poder de compra não foi acompanhado do estabelecimento de condições igualitárias no acesso a serviços públicos na participação política e no atendimento ofertado pelas instituições como as policiais e as de justiça considerandose nesse sentido que a cidadania se desdobra em direitos civis políticos e sociais Conforme Carvalho 2002 enquanto os primeiros se referem à vida à liberdade à propriedade e à igualdade perante a lei os segundos dizem respeito à participação do cidadão no governo da sociedade Os direitos sociais por sua vez dependem da máquina administrativa estatal incluindo o direito à educação ao trabalho ao salário justo à saúde e à aposentadoria CARVALHO 2002 O acesso diferencial à cidadania seja dada a distribuição espacial da violência seja devido às profundas desigualdades na justiça social contribui para que no país convivam referências conscientes ou pelo menos claramente monitoradas a códigos normativos distintos e igualmente legitimados que implicam a adoção de cursos de ação divergentes SILVA 2004 p 73 A articulação de práticas sociais se expressa segundo uma dupla inserção a de ordem Estatal como 45 por projetos individuais e coletivos dotados de diferentes graus de adesão e a de outra ordem que pode se configurar sem subordinação à ordem institucionallegal imersa em um complexo de condutas na qual nem se passa muitas vezes pela referência à ordem pública SILVA 1993 Ambas todavia são legítimas ainda que não necessariamente legais e coexistem disputando âmbitos da vida social lançando mão ou não de violências no interior das normativas que abarcam Um exemplo desses mecanismos pode ser conferido através dos debates promovidos pelo Primeiro Comando da Capital PCC mecanismos de mediação dos homicídios em periferias paulistas reconhecidos e procurados por grande parte dessas populações e segundo os quais só se pode matar através da prévia autorização de membros considerados do grupo FELTRAN 2008 Tais sociabilidades não se tratam todavia de universos sociais separados em absoluto ou em relação aos quais os indivíduos habitam apenas um ou outro Conforme demonstrado por Feltran 2008 a demarcação das fronteiras entre o mundo social e o mundo do crime em periferias é amplamente negociável havendo parte de códigos de conduta que são compartilhados mas também havendo algumas distinções entre eles que podem às vezes se conformar em oposição recíproca De acordo com o autor todavia é a expansão discursiva do crime e não as ações criminais propriamente ditas que faz com que as referências do mundo do crime como representação social e visão de mundo entrem na disputa por legitimidade social nestes territórios FELTRAN 2008 p 194 Por outro lado representações dissonantes são relevantes para a reflexão sobre o papel de diferentes grupos sociais diante de tendências como o endurecimento penal o populismo punitivo a legitimidade da violência policial e a criminalização da pobreza em suma na criação de adaptações institucionais ao complexo do crime GARLAND 2014 4 O MALESTAR COLETIVO E A VIOLÊNCIA COMO DISCURSO LEGÍTIMO Segundo pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública 57 da população do país concorda com a frase bandido bom é bandido morto FBSP 2016 Esse percentual é ligeiramente maior para homens 52 moradores da região sul 54 e pessoas autodeclaradas brancas 53 FBSP 2016 Já entre os indivíduos que discordam dessa afirmação prevalecem mulheres pessoas 46 autodeclaradas negras jovens e moradores da região sudeste FBSP 2016 Elementos como esses se imbricam na própria construção social da figura de bandido que não necessariamente diz respeito ao cometimento de delitos mas ao etiquetamento coletivo diante de determinados atores sociais BECKER 2008 Ilustrando o espaço de disputa exposto pelos dados referidos trazse como exemplo que no ano de 2014 o programa televisivo Fantástico veiculou uma reportagem6 expondo a execução no Rio de Janeiro e por dois policiais militares de um menino de 14 anos e a tentativa de assassinato de outro de 15 anos Na ocasião os agentes durante patrulhamento visavam a encontrar dois jovens suspeitos de cometer furtos na região e após visualizarem indivíduos que entenderam ser suspeitos os perseguiram capturaram e os atingiram com disparos Um deles apesar de ter sido infligido por dois tiros sobreviveu O ocorrido que ficou conhecido como Episódio da Sumaré causou choque em muitos telespectadores mas recebeu aprovação de inúmeros outros Na segundafeira seguinte à exposição dominical da matéria a Secretaria de Segurança Pública do estado fora inundada por mensagens de apoio à ação da polícia que de acordo com essas pessoas teria agido corretamente já que para coibir a atuação de supostos bandidos MENA 2015 Tal situação tem eco na análise de Dunker 2015 sobre a unificação do sentimento de malestar social que seria apreendido por nomes que buscam explicar com perfeição suas causas e origens Consoante defende o autor a tradução coletiva do medo como elemento comum costumaria dar lugar a uma inversão ética entre meios e fins com a intensificação da insegurança sendo demandada em nome da segurança Um fenômeno análogo a esse estaria em curso no Brasil mediante a imperceptibilidade dos indivíduos quanto ao conteúdo violento que também está presente em seus discursos sobre a ascensão da violência DUNKER 2015 O discurso que nomeia e agrega o malestar da população em torno de si que é o que costuma ser veiculado nas mídias tradicionais podendo inclusive ser superexplorado se imbui de uma cosmética da própria violência aquilo que comumente chamamos de sensacionalismo Para Garland 2014 os veículos de comunicação também teriam papel relevante no enraizamento da lógica do crime e 6 Ver httpg1globocomfantasticonoticia201407camerasemcarrodapmincriminampoliciais emmortedemenoresnorjhtml Acesso em 08 out 2017 47 do castigo nas representações populares contribuindo diretamente com a institucionalização da cultura pósmoderna do complexo do crime Diante do sentimento de malestar esses discursos captam narrativas plurais advindas de atores sociais em condições diversas e as agregam em uma mesma resposta da sociedade Entretanto ela mesma pode se calcar na violência imbricandose por exemplo na intolerância contra minorias sociais no medo de quebra da coesão moral e identitária da comunidade BAUMAN 2003 no rechaço à corrupção da lei e na demanda por mais autoridade DUNKER 2015 Nesses casos os discursos assumem faces preventivas e estigmatizantes marcadas pela intolerância e exclusão dos espaços de vivência de quem não se enquadra na noção de harmonia da ordem BAUMAN 2003 A unificação do malestar também pode ser relacionada com a tendência assumida pelo controle do crime na pós modernidade indicada por Garland 2014 quanto ao retorno da vítima ao centro da política criminal A posição da vítima nas representações sociais sobre violência é ambígua e sua conformação igualmente perpassa por marcadores sociais No que tange à violência contra a mulher uma pesquisa feita pelo Ipea 2014 apurou que 58 dos brasileiros concordava total ou parcialmente que se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros O mesmo estudo apontou que 91 concordavam também total ou parcialmente que homens que batem em suas esposas devem ir para a cadeia Assim a culpabilização da vítima pela violência sofrida imbricase com a resposta punitiva a essa violência Ainda o sentimento de culpa e de vergonha das vítimas bem como o medo da revitimização também são elementos relevantes para conformar a baixa notificação de crimes sexuais DATAFOLHA FBSP 2017 Assim a noção de retorno da vítima ao centro da política criminal não significa que ela deixe de ser descreditada em inúmeras circunstâncias no âmbito de relações de poder que abarcam demais fatores como a classe a raça e o gênero Por outro lado em consonância com o apontado por Garland 2014 essa tendência é percebida na pulverização de legislações com o nome de vítimas no Brasil a Lei Maria da Penha a Lei Menino Bernardo e a Lei Carolina Dieckmann indicando uma mudança no tom emocional da política criminal Sua figura diante disso não só seria utilizada para servir como portavoz nos debates sobre crime e insegurança mas também seria engatilhada para a produção de empatia como 48 lembrança de uma tragédia capaz de acometer a qualquer um GARLAND 2014 Um dos problemas disso como demarcado por Garland 2014 é que tal retórica pode servir para forjar um jogo maniqueísta em que qualquer atenção aos direitos do agressor tornase intrinsecamente oposta às medidas de respeito às vítimas No Brasil a importância da vítima no debate público pode ser exemplificada na manifestação da deputada federal Keiko Ota PSB em 2015 durante votação sobre a redução da maioridade penal Apesar de um de seus filhos ter sido assassinado em 1997 por três indivíduos maiores de idade dois deles policiais militares a deputada subiu ao plenário vestindo uma camiseta que estampava sua foto Apelou então como uma sobrevivente da violência pelo urgente fim da suposta impunidade de adolescentes que cometem crimes e solicitou empatia coletiva diante de sua dor Daí podese perceber que a presença das vítimas no espaço público de debate sempre ao lado de políticos ou de autoridades em geral serve para angariar adesão através da solidariedade e da formação de consenso às medidas em sua maioria repressivas pleiteadas por elas NASCIMENTO 2014 p 25 Com isso podese criar como apontado uma falsa polarização entre a falta de compaixão com a vítima e a demanda por respostas sociais retributivas orientadas por uma racionalidade punitiva Apesar da generalização do medo do crime e da produção de respostas violentas que pode lhe seguir não há como ignorar que a criminalidade tem nas últimas décadas crescido no país especialmente no que tange à violência letal De acordo com a séria histórica formulada pelo Ipea7 constituída com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde SIMSM em 1996 o Brasil contou com 2478 homicídios por 100000 habitantes em números absolutos foram 38929 mortes Em 2016 esse índice chegou a 3033 o mais alto de sua história mediante um total de 62517 mortes8 Porém a compreensão desses eventos não se confunde com a produção de seu discurso Como apontado o crime e o medo do crime estão frequentemente dissociados e a tomada de uma palavra na função de nomeação como diagnóstico unicista do malestar cria uma 7Disponível em httpwwwipeagovbratlasviolenciadadosseries Acesso em 02 set 2018 8 Há que se atentar nesses dados ao índice de mortes violentas com causa indeterminada que são aquelas em que o óbito não foi natural mas cuja motivação primeira que desencadeou o processo mórbido não pode ser apurada Assim a qualidade dos sistemas de informação de mortalidade pode ser medida através da proporção entre o total de mortes violentas e aquelas que não foram esclarecidas No ano de 1996 a taxa de mortes violentas por causa indeterminada por 100000 habitantes era no Brasil de 465 Em 2016 havia subido para 50 IPEA FBSP 2018 49 estrutura de ficção convergente entre as diferentes narrativas do sofrimento indexando todas elas em um mesmo fragmento de verdade DUNKER 2015 p 47 Os discursos violentos em resposta à violência não são novos no país Nos últimos sessenta anos mais de um milhão de pessoas foram linchadas no Brasil MARTINS 2015 Além disso o processo de redemocratização não tem sido eficaz na eliminação de vícios do regime ditatorial e as esperanças produzidas pela transição para a democracia também não se plasmaram BAQUERO 2008 Na transição incompleta para a cultura democrática se imiscui a crescente desconfiança dos cidadãos nas instituições que se enraíza tanto no contexto social que dá origem a tal sentimento como na própria avaliação feita a partir da experiência quanto ao desempenho institucional MOISÉS 2005 Diante do acesso desigual aos sistemas de justiça e de sua morosidade MARTINS 2015 por exemplo emerge a aceitação populacional da vingança privada emaranhada na demanda pelo armamento civil Em adição há a defesa de pautas como a redução da maioridade penal e até a pena de morte para crimes graves que chegam a ser aprovadas por respectivamente 879 e 4310 da população brasileira Representando esses anseios há conglomerados políticos como a Bancada da Bala frente parlamentar composta por políticos ligados à indústria de armas expoliciais e militares de modo geral e envolvida com a articulação de medidas punitivas Sua presença como instância de elaboração de projetos de lei na área da segurança se aproxima do que Garland 2014 chamou de politização e o novo populismo punitivo O processo de formulação das políticas se tornou profundamente politizado e populista As medidas políticas são tomadas de maneira tal que aparentam valorizar a vantagem política e a opinião pública em detrimento da opinião de especialistas e dos resultados de pesquisas GARLAND 2014 p 57 O cenário que clama pelo aniquilamento dos tomados como responsáveis pelo malestar coletivo e pela corporificação da insegurança comunitária remete à construção da ideia de inimigo interno que se consolidou nas décadas de ditadura militar em que a figura do comunista e a lógica do combate militarizado ganharam indiscutível força no discurso da segurança pública NASCIMENTO 2014 Naquele 9 Disponível em httpdatafolhafolhauolcombropiniaopublica201506164620087aprovam reducaodamaioridadeshtml Acesso em 08 out 2017 10 Disponível em httpdatafolhafolhauolcombreleicoes2014091512693direitasuperaesquerda nobrasilshtml Acesso em 08 out 2017 50 momento o país trabalhava com uma concepção belicista do processo social orientando a política nacional em função da segurança pública Essa mentalidade que preconizava o uso da guerra interna ou a eliminação de certos indivíduos como imperativos da segurança nacional abriu espaço para vertentes diversas de combate que passaram por desde o extermínio físico até pela demonização psicológica visando à segregação Esse processo pode ser aproximado da desumanização que atualmente é perpetuada no Brasil com pessoas envolvidas com o crime a quem é atribuído o estigma do Outro que não raro é também o indivíduo segregado territorialmente que compartilha de sociabilidades produzidas em espaços excluídos e que é vulnerabilizado no contexto do capitalismo contemporâneo 5 CONCLUSÃO Buscouse apontar com esse trabalho que tendências comuns típicas ao desenvolvimento histórico de sociedades pósmodernas e à representação cultural que lhes dá vida podem ocorrer em lugares diferentes apesar de existirem importantes particularidades a distinguir seus ambientes político e suas trajetórias sociais GARLAND 2014 Esse contexto mais amplo aprofundou um processo de isolamento entre diferentes grupos sociais que no Brasil se manifestou pela segregação sócioespacial e autos segregação de classes o que implica a redução das interações sociais entre moradores de diferentes áreas urbana bem como reforça a desigualdade da atuação estatal SOUZA 2006 impactando na distribuição heterogênea da violência no espaço urbano SOUZA 2008 A distribuição hierárquica e estigmatizante da moradia e da mobilidade a ausência de convívio entre diferentes grupos sociais e a ânsia pela busca de mecanismos de proteção enseja o espraiamento do medo generalizado impulsionado pela construção do Outro aquele que encarna a sensação de imprevisibilidade e insegurança SOUZA 2008 Tal fenômeno condiciona a coexistência de diferentes representações socioculturais que podem perpassar ou não pela legalidade e pelos padrões incutidos pela ordem pública e pelo Estado Assim as sociabilidades constituídas no tecido urbano se vinculam à produção de cidades segregadas imersas nas assimétricas oportunidades de acesso a bens e serviços o que faz com que uma 51 parte dos atores sociais participe precariamente da vida coletiva e da sociedade de consumo de fato no plano econômico político e social ou participe de forma qualitativamente diferente porque incompleta e não apenas quantitativamente desigual SPOSITO 2016 p 129 Ainda se estabelecem no caráter diferencial do funcionamento das instituições que pode transitar entre ser igualitário ou seletivo eficaz ou ineficaz violento ou não violento CARVALHO 2002 Esses processos portanto são marcados por iniquidades de direitos que estabelecem novas condições ou redimensionam condições já existentes para que parcelas expressivas da população segregada tenha sua vida social imersa no mundo da informalidade ou das ilegalidades ADORNO SALLA 2007 Como resposta às adaptações que se refletem em sociabilidades não normativas destacouse a produção de discursos eventualmente violentos como reação à insegurança realçandose a nomeação do malestar coletivo através de sua essencialização e homogeneização a despeito das variações e das assimetrias que perpassam os fenômenos criminais e sua incidência Apontouse que desconstruir a nomeação do malestar como violência não significa desconsiderar sua existência na realidade concreta mas atentar à sua multiplicidade de sentidos buscando entender por que e sob quais circunstâncias uma rede de narrativas sobre o sofrimento se torna convergente produzindo uma espécie de grandemal que será a partir de então impensado e autojustificado DUNKER 2015 p 48 Assim demarcouse a relevância de perceber que as violências se expressam no plural apesar de matizadas por elementos territoriais de gênero idade e raça ou etnia Pensar abordagens possíveis às intersecções colocadas é enfim uma maneira de refutar à padronização da violência e do crime na sociedade como algo uníssono destacando as assimetrias sociais que perpassam seu desvelamento cotidiano e fragilizando as representações socioculturais que orientadas em sentido contrário lançam mão da reprodução da própria violência 52 REFERÊNCIAS ADORNO Sérgio SALLA Fernando Criminalidade organizada nas prisoes e os ataques do PCC Estudos Avancados São Paulo v 21 n 61 p 0729 dez 2007 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0103 40142007000300002lngennrmiso Acesso em 03 set 2018 ALVES Glória de Anunciação A mobilidadeimobilidade na produção do espaço metropolitano In SOUZA Marcelo Lopes de CARLOS Ana Fani Alessandri SPOSITO Maria Encarnação Beltrão A produção do espaço urbano agentes e processos escalas e desafios São Paulo Contexto 2016 BAQUERO Marcello Democracia formal cultura política informal e capital social no Brasil Opinião Pública Campinas vol 14 n 2 p 380413 nov 2008 Disponível em httpwwwscielobrpdfopv14n205pdf Acesso em 10 0ut 2017 BAUMAN Zigmund Comunidade a busca por segurança no mundo atual Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 BECKER Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 BOURDIEU Pierre A dominacao masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005 CARVALHO José Murilo Cidadania no Brasil o longo caminho 3 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 COHEN Stanley Folk Devils and Moral Panics The Creation of the Mods and Rockers London Routledge 2002 CORRÊA Roberto Lobato Sobre agentes sociais escalas e produção do espaço um texto para discussão In SOUZA Marcelo Lopes de CARLOS Ana Fani Alessandri SPOSITO Maria Encarnação Beltrão A produção do espaço urbano agentes e processos escalas e desafios São Paulo Contexto 2016 DATAFOLHA FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA Visível e invisível a vitimização de mulheres no Brasil mar 2017 53 DUNKER Christian A violência como nome para o malestar In KUCINSKI Bernardo et al Bala Perdida a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação São Paulo Boitempo 2015 p 1926 FELTRAN Gabriel de Santis Fronteiras de tensão um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo 2008 363f Tese Doutorado em Ciências Sociais Programa de PósGraduação em Ciencias Sociais Universidade Estadual de Campinas 2008 Margens da política fronteiras da violência uma ação coletiva das periferias de São Paulo Lua Nova São Paulo n 79 p 201233 2010 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 64452010000100009lngennrmiso Acesso em 11 out 2017 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA FBSP Anuário brasileiro de segurança pública Edição X São Paulo 2016 Anuário brasileiro de segurança pública Edição XII São Paulo 2018 GARLAND David A cultura do controle crime e ordem na sociedade contemporânea Rio de Janeiro Revan 2014 As contradiçoes da sociedade punitiva o caso britânico Revista de Sociologia e Política Curitiba v 13 p 5880 1999 Disponível em httpwwwscielobrpdfrsocpn13a06n13pdf Acesso em 8 out 2017 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA Sistema de indicadores de percepção social Tolerância social à violência contra as mulheres 2014 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA IPEA FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA FBSP Atlas da Violência 2017 Rio de Janeiro 2017 Atlas da Violência 2018 Rio de Janeiro 2018 JODELET Denise La representación social Fenómenos concepto y teoría In MOSCOVICI Sergei org Psicologia Social Barcelona Paidós 1985 p 469474 MARTINS José de Souza Linchamentos a justiça popular no Brasil São Paulo 54 Contexto 2015 MENA Fernanda Um modelo violento e eficaz de polícia In KUCINSKI Bernardo et al Bala Perdida a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação São Paulo Boitempo 2015 p 1926 MISSE Michel Crime Urbano Sociabilidade violenta e Ordem legítima comentários sobre as hipóteses de Machado da Silva Rio de Janeiro 1997 Disponível em httpswww2mppampbrsistemasgcsubsitesupload60Crimeurbanopdf Último acesso em 11 out 2017 MOISÉS José Álvaro A desconfiança nas instituições democráticas Opinião Pública Campinas vol 11 nº1 mar 2005 Disponível em httpwwwscielobrpdfopv11n123694pdf Último acesso em 08 out 2017 NASCIMENTO André Apresentação à edição brasileira In GARLAND David A cultura do controle crime e ordem na sociedade contemporânea Rio de Janeiro Revan 2014 p 0731 PORTO Maria Stela Grossi Violência a meios de comunicação de massa na sociedade contemporânea São Paulo em Perspectiva ano 4 n 8 p 152171 juldez 2002 Disponível em httpwwwscielobrpdfsocn8n8a07pdf Acesso em 01 set 2018 SCHABBACH Letícia Maria Tendências e preditores da criminalidade violenta no Rio Grande do Sul 2007 333f Tese Doutorado em Sociologia Programa de PósGraduação em Sociologia Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2007 SENNETT Richard The Uses of Disorder Personal Indentity and City Life Londres Faber 1996 SILVA Luiz Antônio Machado da Brasil Urbano Cenários da Ordem e da Desordem Rio de Janeiro Notrya 1993 Sociabilidade Violenta por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano Sociedade e Estado Brasília v 19 n 1 p 53 84 janjun 2004 Disponível em httpwwwscielobrpdfsev19n1v19n1a04pdf Acesso em 11 out 2017 55 SOARES Luiz Eduardo Meu casaco de general 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro São Paulo Companhia das Letras 2000 SOUSA SANTOS Boaventura Brasil a democracia à beira do caos e os perigos da desordem jurídica Porto Alegre Sul21 22 mar 2016 Disponível em httpswwwsul21combropiniaopublica201603brasilademocraciaabeirado caoseosperigosdadesordemjuridicaporboaventuradesousasantos Acesso em 01 set 2018 SOUZA Marcelo Lopes de A prisão e a ágora reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2006 Fobópole o medo generalizado e a militarização da questão urbana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2008 Da diferenciação de áreas à diferenciação socioespacial a visão apenas de sobrevoo como uma tradição epistemológica e metodológica limitante Cidades Presidente Prudente v 4 n 6 p 101114 jandez 2007 Disponível em httprevistafctunespbrindexphprevistacidadesarticleview573604 Último acesso em 16 out 2017 Militarização da questão urbana Lutas Sociais São Paulo v 29 p 117 129 juldez 2012 Disponível em httpwwwpucspbrneilsdownloadsneilsrevista 29portmarcelolopezdesouzapdf Acesso em 12 out 2017 Tráfico de Drogas e Fragmentação do Tecido SociopolíticoEspacial no Rio de Janeiro 22º Encontro Anual da ANPOCS Minas Gerais Caxambu 1998 SPOSITO Maria Encarnação Beltrão A produção do espaço urbano escalas diferenças e desigualdades socioespaciais In SOUZA Marcelo Lopes de CARLOS Ana Fani Alessandri SPOSITO Maria Encarnação Beltrão A produção do espaço urbano agentes e processos escalas e desafios São Paulo Contexto 2016
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R Inter Interdisc INTERthesis Florianópolis v16 n1 p 3656 JanAbr 2019 ISSN 18071384 DOI httpsdoiorg105007180713842019v16n1p35 Artigo recebido em 16102017 Revisado em 18082018 Aceito em 10092018 Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons CRIME E VIOLÊNCIA NO BRASIL REPRESENTAÇÕES SOCIOCULTURAIS NA PÓSMODERNIDADE Clarice Sohngen1 Marcelli Cipriani2 Resumo Este artigo visa a abordar algumas representações socioculturais sobre o crime e a violência no Brasil contemporâneo Nesse sentido são feitas reflexões acerca do espraiamento do medo coletivo destacandose sua relação com a segregação sócioespacial Analisase então a constituição de sociabilidades diferentes em espaços segregados como elemento que influi nas representações coletivamente produzidas Por fim se investiga algumas das respostas sociais à generalização do medo que perpassam pela produção de discursos reativos à violência que não raro também são violentos Assim se busca abordar aspectos que se imbricam quanto aos fenômenos criminais contemporâneos nas manifestações socioculturais que é articulada no trabalho pelo apontamento de tendências mais amplas do momento histórico representado pela pósmodernidade a partir de como se expressam no contexto brasileiro Palavraschave Representações Socioculturais Violência Crime Pós Modernidade Medo CRIME AND VIOLENCE IN BRAZIL SOCIOCULTURAL REPRESENTATIONS IN POSTMODERNITY Abstract This article aims at approaching some of the possible intersections between sociocultural representations of crime and violence in contemporary Brasil In this sense it is presented reflections about the spreading of collective fear highlighting its relationship with sociospatial segregation Then it analyzes the constitution of different sociabilities in segregated spaces as an element that influences the representations that are collectively produced Finally it investigates some of the social responses to the generalization of fear which are related to the production of discourses that are reactive to violence but are also often violent themselves Thus it intends to address aspects where contemporary criminal phenomena are interwoven in sociocultural manifestations what is articulated by pointing to broader tendencies of the historical moment represented by postmodernity from the way they are expressed in the Brazilian context Keywords Sociocultural Representations Violence Crime Postmodernity Fear 1 Professora Titular da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Decana Associada da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Docente Colaboradora do Programa em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre RS Brasil Email claricesohngenpucrsbr 2 Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil Email marcelliciprianihotmailcom 37 CRIMEN Y VIOLENCIA EN BRASIL REPRESENTACIONES SOCIOCULTURALES EN LA POSTMODERNIDAD Resumen Este artículo apunta a abordar algunas representaciones socioculturales sobre el crimen y la violencia en el Brasil contemporáneo En este sentido son propuestas reflexiones sobre expansión del miedo colectivo destacándose su relación con la segregación socioespacial Se analiza enstonces la constitución de sociabilidades diferentes en espacios segregados como elemento que influye en las representaciones colectivamente producidas Por último se investiga sobre algunas de las respuestas sociales a la generalización del miedo que pasan por la producción de discursos reactivos a la violencia que no raramente también son violentos Así se busca abordar aspectos que se imbrican en cuanto a los fenómenos criminales contemporáneos en las manifestaciones socioculturales que es articulada en este trabajo por el apunte de tendencias más amplias del momento histórico representado por la postmodernidad a partir de su expresión en el contexto brasileño Palabras clave Representaciones Socioculturales Violencia Crimen Posmodernidad Miedo 1 INTRODUÇÃO A expressão da violência é multidimensional pois acomete variados atores sociais e assume formas diferentes desde a física até a psicológica ou a simbólica3 não podendo por isso ser tratada como uma espécie de expressão valise SOUZA 2008 Por sua vez a atividade criminosa violenta sobre a qual se enfoca esse trabalho é fruto da codificação de uma gama de comportamentos indesejados a dada sociedade em certo período histórico4 Portanto também se apresenta como multifatorial na medida em que possui agentes e circunstâncias típicas muito distintas Isso implica reconhecer que o crime ocorre de maneira desagregada sendo influenciado por aspectos plurais de diferentes naturezas SCHABBACH 2007 Além disso tais ocorrências de manifestam pelo espaço urbano heterogeneamente No Brasil o espraiamento da violência se dá em parte como consequência da distribuição social da paz que privilegia classes abastadas e 3 Para Bourdieu 2005 a violência simbólica não se expressa por coações físicas ou atos concretos mas espraiase de forma silenciosa se exercendo através de esquemas de percepção da avaliação e de ação e que fundamentam aquém das decisões da consciência e os controles da vontade 4 De acordo com as abordagens do labeling approach não há nada inerentemente desviante no crime pois ele é resultante de uma construção social que perpassa por assimetrias de poder Becker 2008 um dos adeptos da também chamada teoria do etiquetamento ou rotulação propôs investigar o desvio como algo que transcende motivações individuais ou particularidades comuns a um grupo desviante mas como um processo no qual outros atores sociais também precisam ser investigados como aqueles que formulam as regras e suas sanções e os que são designados para fazêlas ser cumpridas 38 cerca bairros populares com um cordão sanitário repressivo SOARES 2000 Segundo o 12a Anuário de Segurança Pública FBSP 2018 a taxa de letalidade policial brasileira é a mais alta do mundo e os índices de mortes violentas intencionais é mais do que o triplo do considerado endêmico pela Organização Pan americana de Saúde E seja quanto a intervenções policiais ou ao crime comum são as periferias urbanas que atualmente estão em posição mais vulnerável à violência SOUZA 2008 Somandose ao recorte territorial outros elementos influem na probabilidade de ser vitimado por violência no país Quanto aos homicídios 92 da população afetada é masculina IPEA FBSP 2017 54 é jovem entre 15 e 24 anos e 73 é negra FBSP 2016 Segundo Garland 2014 as respostas às violências no âmbito do controle do crime dizem respeito não só a considerações criminológicas mas às forças históricas observadas a partir da segunda metade do século XX Essas mudanças sociais econômicas e culturais são características da pósmodernidade e dos realinhamentos políticos que lhe decorreram tendo sido vivenciadas com maior ou menor intensidade por todas as democracias industriais ocidentais após a Segunda Guerra Mundial e acentuadas a partir da década de 60 Para o autor apesar de diferenças nacionais a chegada da pósmodernidade transformou as condições sociais e políticas sobre as quais se assentava o campo do controle do crime Ainda desafiou a legitimidade das instituições bem como trouxe novos problemas de crime insegurança e medo Apesar da incidência de marcadores sociais sobre a manifestação de qualquer violência o crime e o medo do crime são amplamente vividos como fatos da vida moderna GARLAND 1999 o que faz com que 76 da população brasileira declare ter medo de morrer assassinada FBSP 2016 A sensação de medo coletivo estimulada pelos crescentes índices de violência urbana bem como por sua espetacularização midiática vem se deslocando progressivamente tornando se quase que ubíqua em algumas metrópoles SOUZA 2008 Nesse contexto é que surgem as fobópoles grandes cidades nas quais o medo é generalizado ainda que também matizado de acordo com a classe a raça o gênero a sexualidade e a região de moradia por exemplo modelando os hábitos coletivos de deslocamento e lazer influindo nas formas de habitat de interação social e de formação dos discursospadrão sobre a violência urbana SOUZA 2008 39 Sendo referidos cotidianamente na pósmodernidade o crime e o medo do crime tornaramse riscos que devem a todo tempo ser geridos e estimados GARLAND 2014 Diante disso os atores sociais constituíram suas próprias adaptações à disseminação criminal contemporânea pelo estabelecimento de cuidados rotineiros e de formas de controle social particulares São essas adaptações coletivas que provocam a importância sociocultural da questão do crime nos tempos atuais dado que fornecem a base social para muitas das novas políticas criminais dos últimos anos e moldam a formação cultural o complexo do crime que vem crescendo em torno do crime no final do século XX GARLAND 2014 p 38 Partindose de tal premissa as reflexões desse artigo se dão em torno de representações sustentadas no Brasil em torno do crime e da violência urbana contemporânea Segundo Porto 2002 embora resultem de experiências individuais as representações são condicionadas pelo tipo de inserção social do indivíduo ou do grupo que as produzem expressando visões de mundo que visam a explicar e a dar sentido aos fenômenos e com isso também auxiliando a constitui los Assim são imagens que condensam um conjunto de significados servindo como um sistema de referências que possibilita a interpretação daquilo que ocorre com os atores assim como a concessão de sentido por eles ao inesperado JODELET 1985 No âmbito das representações sociais que circundam a violência e a atividade criminosa propõese ressaltar alguns elementos centrais à sua constituição a segregação sócioespacial5 a constituição de sociabilidades diferentes em espaços segregados e a produção de discursos sobre o crime não raro violentos em resposta à sua tomada como malestar coletivo 2 MEDO DO CRIME E SEGREGAÇÃO SÓCIOESPACIAL Na sociedade brasileira marcada por grandes disparidades a insegurança urbana e os mecanismos de adaptação à violência perpassam pela segregação sócioespacial que junto ao estabelecimento de locais privilegiados constitui vizinhanças estigmatizadas SPOSITO 2016 Os lugares segregados que ocupam 5 Em lugar do termo socioespacial utilizase sócioespacial com base na diferenciação estabelecida por Souza 2007 De acordo com o autor enquanto o primeiro diz respeito à análise do espaço social ou substrato o segundo se ocupa da manifestação das relações sociais no espaço 40 posições inferiores na hierarquia dos espaços metropolitanos são marcados pela precariedade estatal na oferta de serviços equipamentos lazer cultura trabalho acessibilidade a outras partes da cidade etc ALVES 2016 Porém tal ausência costuma ser acompanhada da presença substancial do braço armado do Estado seja pela sujeição privilegiada a patrulhamentos policiais pela atuação de Unidades de Polícia Pacificadora UPPs pelo emprego das Forças Armadas no combate à criminalidade quotidiana ou por outras formas de militarização da questão urbana SOUZA 2012 A segregação sócioespacial se soma à auto segregação de elites e com cada vez mais frequência de classes médias que asseguram a fixação de fronteiras através do emprego de mecanismos artificiais como muros altos cercas eletrificadas guaritas e guardas particulares cancelas para fechar logradouros públicos e câmeras de TV SOUZA 2006 p 489 sistemas de controle e vigilância representativos da ideia de que é possível ter alguma segurança em um mundo de imponderabilidade SPOSITO 2016 Portanto a prática corrente de construção de bairros residenciais de expressivo status social também resulta na produção de áreas diferenciadas nas grandes cidades CORREA 2016 Assim a busca por um espaço harmonioso e homogêneo compõe as adaptações ao crime pela sociedade em especial a que está apta a recorrer a mecanismos de controle nãoestatais Essas tendências então impactam as agências de controle do crime como estimulando o serviço de empresas privadas de vigilância e segurança GARLAND 2014 Para Bauman 2003 o processo de isolamento entre diferentes comunidades urbanas teria se iniciado de forma geral nos anos 1960 adquirindo progressivo aprofundamento nas décadas subsequentes No Brasil ele perpassou pela territorialização das periferias por traficantes de ilícitos o que se deu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1970 e mais tarde também passou a ocorrer em outras capitais Até a década de 80 moradores de periferias cariocas podiam visitarse sem esbarrar em maiores mecanismos de controles A partir de então tais periferias viveram um progressivo fechamento decorrente da tutela da interação espacial promovida por coletivos criminais o que intensificou a fragmentação no tecido urbano SOUZA 1998 A esse fenômeno somase o autoenclausuramento da elite e das classes médias que também se aprofunda na década de 70 e prossegue em ritmo febril Proliferam condomínios exclusivos como o Alphaville que já detém uma 41 área equivalente ao principado de Mônaco com uma população fixa de só no Complexo da região metropolitana de São Paulo 30 mil moradores e uma população flutuante funcionários comerciários etc de mais de 100 mil pessoas SOUZA 2006 Nesse tipo de arranjo territorial de cunho profundamente intimista o semelhante de acordo com a presença de determinados marcadores sociais é mais facilmente acolhido enquanto a rejeição do diferente se intensifica desembocando na demonização daqueles que são encarados pelo grupo homogêneo como alguém que parece fazer parte do outro lado SOUZA 1998 Paralelamente as demandas por lei e ordem também atingem sua máxima potência SENNETT 1996 indicando o impacto do anseio social expresso na cultura pela transformação dos mecanismos institucionais especialmente os de segurança e pelo estímulo ao uso de alternativas privadas de proteção à violência Ao encontro dessas adaptações há a expansão da vigilância e do gerenciamento do crime assim como o crescimento da comercialização do controle criminal GARLAND 2014 Segundo Garland 2014 tais elementos comporiam algumas das principais transformações no campo da justiça criminal com o advento da pósmodernidade que passaram a ser observadas especialmente em países ocidentais que seguiram as tendências do capitalismo neoliberal que partilharam suas influências culturais e que acompanharam os processos de globalização à época O medo sistemático de ser vitimado por um crime também assumiu dimensão central nas dinâmicas sociais sendo visto como um problema em si mesmo dissociado do crime e de sua vitimização Assim políticas específicas têm sido desenvolvidas mais com o objetivo de reduzir os níveis de medo de que de reduzir o crime GARLAND 2014 p 54 Porém o sentimento de medo não pode ser deslocado de suas interfaces com dois mercados o da segurança e o da violência No primeiro se insere a fabricação de armas ou de carros blindados e a disposição da vigilância privada bem como os condomínios fechados os shopping centers e outros símbolos de autos segregação de classe SOUZA 2008 Ainda o sistema políticoeleitoral que não raro instrumentaliza o medo coletivo como capital político e os veículos de informação que ao seu turno o exploram e contribuem para a instituição de pânicos morais COHEN 2002 Nesse ínterim o mercado da violência estimula e justifica a expansão do mercado da segurança enquanto esse ainda que 42 indiretamente como pelo desvio e venda ilegal de armas termina por alimentar aquele SOUZA 2008 Em um arranjo territorial sócioespacialmente segregado os mercados da violência e da segurança penetram de forma marcadamente desigual com por exemplo o medo e a insegurança sendo acionados para controlar a acessibilidade a diferentes lugares e a circulação de pessoas SPOSITO 2016 Todavia a intensificação do isolamento tem por consequência a diminuição de vários tipos de interação sócioespacial que tendem a desaparecer ou então tornamse muito mais seletivas O espraiamento do medo e seu impacto na segregação territorial bem como a falta de cidadania como valor universal e de prerrogativas políticas para parte considerável das periferias que por exemplo aprenderam que não podem contar com a polícia para sua proteção e permanecem fora da cena pública e política FELTRAN 2010 podem abrir espaço à construção de sentidos diferenciados à sociabilidade urbana que legitimam deslegitimam institucionalizam eou desinstitucionalizam cursos de ação distintos para um mesmo conteúdo ou cursos de ação semelhantes para conteúdos de sentido contraditório MISSE 1997 p 11 Portanto abarcam a construção de variáveis representações socioculturais sobre o crime e da violência que podem ser dissonantes e até conflitantes entre si 3 A COEXISTÊNCIA DE SOCIABILIDADES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Como colocado a segregação sócioespacial é um dos fatores a demarcar o aparecimento de sociabilidades concomitantes dado o afastamento das interações entre os indivíduos o que reforça a dissonância entre seus padrões normativos de comportamentos MISSE 1997 Ainda que as sociabilidades que coexistem no país tenham se constituído historicamente dentro de processos hierárquicos elas também já estiveram imbuídas de alguns comportamentos normalizados por exemplo com a incorporação da civilidade burguesa pelas camadas sociais excluídas e pela incorporação das classes médias e elites intelectuais da malandragem dos valores da preguiça e da carnavalização da vida MISSE 1997 De acordo com Misse 1997 a partir da década de 70 podese identificar um crescente fechamento da sociabilidade cotidiana entre ricos e classe média e entre esses e a população de pessoas pobres também reforçado pela ausência de áreas comuns para os encontros sociais intercalasses 43 Silva 2004 é um dos autores vem buscando compreender o surgimento recente no Brasil de uma sociabilidade violenta um complexo de práticas sociais que não são coerentes com as rotinas cotidianas estatalmente organizadas SILVA 2004 p 59 Nesse âmbito procura investigar a vivência coletiva como conjunto fragmentado em diferentes formas de vida que podem ser reguladas tanto em torno do Estado quanto fora de suas normas O autor pretende romper com a espécie de etnocentrismo da suposição de que os conteúdos de sentido que organizam as ações de criminosos e nãocriminosos são os mesmos em ambos os casos expressões subjetivas dos contextos normativos regulados pelo Estado SILVA 2004 p 66 Em consonância ao apontado por Misse 1997 Silva 2004 também entende que a integração social no Brasil teria desabado mais fortemente em meados dos anos 1970 uma época em que para além do já apontado as ações coletivas de moradores da periferia quanto à mediação normativa entre a população mais pobre e as instituições públicas começou a se transformar Feltran 2010 destaca que ainda que as posições dessas mediações tenham permanecido iguais nas últimas décadas entre periferia e as instituições elas mudaram de significado Por um lado foram impactadas pela transição do regime militar à democracia que inseriu subalternamente os movimentos sociais periféricos na política institucional por outro sofreram incidência das mudanças ocorridas no perfil da população periférica influenciadas pelas dinâmicas das relações de trabalho após a década de 70 Assim em que pese a relação entre o espaço periférico e o mundo público ter sido tradicionalmente marcada pelo conflito seu percurso e suas formas de contenção ensejaram dispositivos adaptativos diferentes a luta política que remonta a demanda pelas prerrogativas de cidadania dos movimentos sociais das décadas de 80 e 90 o gerenciamento estatal de populações periféricas próprio a programas sociais iniciados nos anos 1990 e a violência como iminência ou ato na repressão policial atual diante das periferias e nas próprias ações de sujeitos envolvidos com o mundo do crime FELTRAN 2010 Essas dinâmicas perpassam pela constituição de diferentes sociabilidades imbricadas em duas dimensões nas questões da informalidade no âmbito econômico da sociabilidade como quanto ao projeto inconcluso do assalariamento brasileiro e nas questões da incivilidade no âmbito sóciopolítico da sociabilidade como quanto aos direitos civis MISSE 1997 44 Na época de ocupação das periferias por migrantes a promessa de mobilidade social operária se traduziu no sucesso de uma pequena elite periférica que apostou no sobretrabalho e na formação escolar de seus filhos como alavancas de ascensão à classe media Porém para a grande maioria dos filhos desses operários a contrapartida social possibilitada pelo assalariamento nunca chegou se em 1970 era relativamente fácil conseguir um emprego fabril formal em 2010 esse emprego era escasso exigia alta escolaridade especialização e flexibilidade Ademais costumava significar a ocupação de postos pouco estáveis e terceirizados FELTRAN 2010 Assim o local da fábrica que sob sindicalização crescente favorecia a construção de identidades e de ações coletivas se transformou e aumentou o índice de jovens moradores de periferia que passou a encontrar trajetórias de inserção ocupacional nos limiares entre o formal o informal e o ilícito FELTRAN 2010 Em paralelo a cidadania como contrapartida da expropriação econômica e do desenvolvimento do capitalismo foi bastante seletiva no país MISSE 1997 e ainda que as últimas décadas tenham sido marcadas por alguns avanços na redução da desigualdade de renda esses se deram consoante colocado por Sousa Santos 2016 através do consumo e não mediante a ampliação do acesso à cidadania Dessa feita o aumento do poder de compra não foi acompanhado do estabelecimento de condições igualitárias no acesso a serviços públicos na participação política e no atendimento ofertado pelas instituições como as policiais e as de justiça considerandose nesse sentido que a cidadania se desdobra em direitos civis políticos e sociais Conforme Carvalho 2002 enquanto os primeiros se referem à vida à liberdade à propriedade e à igualdade perante a lei os segundos dizem respeito à participação do cidadão no governo da sociedade Os direitos sociais por sua vez dependem da máquina administrativa estatal incluindo o direito à educação ao trabalho ao salário justo à saúde e à aposentadoria CARVALHO 2002 O acesso diferencial à cidadania seja dada a distribuição espacial da violência seja devido às profundas desigualdades na justiça social contribui para que no país convivam referências conscientes ou pelo menos claramente monitoradas a códigos normativos distintos e igualmente legitimados que implicam a adoção de cursos de ação divergentes SILVA 2004 p 73 A articulação de práticas sociais se expressa segundo uma dupla inserção a de ordem Estatal como 45 por projetos individuais e coletivos dotados de diferentes graus de adesão e a de outra ordem que pode se configurar sem subordinação à ordem institucionallegal imersa em um complexo de condutas na qual nem se passa muitas vezes pela referência à ordem pública SILVA 1993 Ambas todavia são legítimas ainda que não necessariamente legais e coexistem disputando âmbitos da vida social lançando mão ou não de violências no interior das normativas que abarcam Um exemplo desses mecanismos pode ser conferido através dos debates promovidos pelo Primeiro Comando da Capital PCC mecanismos de mediação dos homicídios em periferias paulistas reconhecidos e procurados por grande parte dessas populações e segundo os quais só se pode matar através da prévia autorização de membros considerados do grupo FELTRAN 2008 Tais sociabilidades não se tratam todavia de universos sociais separados em absoluto ou em relação aos quais os indivíduos habitam apenas um ou outro Conforme demonstrado por Feltran 2008 a demarcação das fronteiras entre o mundo social e o mundo do crime em periferias é amplamente negociável havendo parte de códigos de conduta que são compartilhados mas também havendo algumas distinções entre eles que podem às vezes se conformar em oposição recíproca De acordo com o autor todavia é a expansão discursiva do crime e não as ações criminais propriamente ditas que faz com que as referências do mundo do crime como representação social e visão de mundo entrem na disputa por legitimidade social nestes territórios FELTRAN 2008 p 194 Por outro lado representações dissonantes são relevantes para a reflexão sobre o papel de diferentes grupos sociais diante de tendências como o endurecimento penal o populismo punitivo a legitimidade da violência policial e a criminalização da pobreza em suma na criação de adaptações institucionais ao complexo do crime GARLAND 2014 4 O MALESTAR COLETIVO E A VIOLÊNCIA COMO DISCURSO LEGÍTIMO Segundo pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública 57 da população do país concorda com a frase bandido bom é bandido morto FBSP 2016 Esse percentual é ligeiramente maior para homens 52 moradores da região sul 54 e pessoas autodeclaradas brancas 53 FBSP 2016 Já entre os indivíduos que discordam dessa afirmação prevalecem mulheres pessoas 46 autodeclaradas negras jovens e moradores da região sudeste FBSP 2016 Elementos como esses se imbricam na própria construção social da figura de bandido que não necessariamente diz respeito ao cometimento de delitos mas ao etiquetamento coletivo diante de determinados atores sociais BECKER 2008 Ilustrando o espaço de disputa exposto pelos dados referidos trazse como exemplo que no ano de 2014 o programa televisivo Fantástico veiculou uma reportagem6 expondo a execução no Rio de Janeiro e por dois policiais militares de um menino de 14 anos e a tentativa de assassinato de outro de 15 anos Na ocasião os agentes durante patrulhamento visavam a encontrar dois jovens suspeitos de cometer furtos na região e após visualizarem indivíduos que entenderam ser suspeitos os perseguiram capturaram e os atingiram com disparos Um deles apesar de ter sido infligido por dois tiros sobreviveu O ocorrido que ficou conhecido como Episódio da Sumaré causou choque em muitos telespectadores mas recebeu aprovação de inúmeros outros Na segundafeira seguinte à exposição dominical da matéria a Secretaria de Segurança Pública do estado fora inundada por mensagens de apoio à ação da polícia que de acordo com essas pessoas teria agido corretamente já que para coibir a atuação de supostos bandidos MENA 2015 Tal situação tem eco na análise de Dunker 2015 sobre a unificação do sentimento de malestar social que seria apreendido por nomes que buscam explicar com perfeição suas causas e origens Consoante defende o autor a tradução coletiva do medo como elemento comum costumaria dar lugar a uma inversão ética entre meios e fins com a intensificação da insegurança sendo demandada em nome da segurança Um fenômeno análogo a esse estaria em curso no Brasil mediante a imperceptibilidade dos indivíduos quanto ao conteúdo violento que também está presente em seus discursos sobre a ascensão da violência DUNKER 2015 O discurso que nomeia e agrega o malestar da população em torno de si que é o que costuma ser veiculado nas mídias tradicionais podendo inclusive ser superexplorado se imbui de uma cosmética da própria violência aquilo que comumente chamamos de sensacionalismo Para Garland 2014 os veículos de comunicação também teriam papel relevante no enraizamento da lógica do crime e 6 Ver httpg1globocomfantasticonoticia201407camerasemcarrodapmincriminampoliciais emmortedemenoresnorjhtml Acesso em 08 out 2017 47 do castigo nas representações populares contribuindo diretamente com a institucionalização da cultura pósmoderna do complexo do crime Diante do sentimento de malestar esses discursos captam narrativas plurais advindas de atores sociais em condições diversas e as agregam em uma mesma resposta da sociedade Entretanto ela mesma pode se calcar na violência imbricandose por exemplo na intolerância contra minorias sociais no medo de quebra da coesão moral e identitária da comunidade BAUMAN 2003 no rechaço à corrupção da lei e na demanda por mais autoridade DUNKER 2015 Nesses casos os discursos assumem faces preventivas e estigmatizantes marcadas pela intolerância e exclusão dos espaços de vivência de quem não se enquadra na noção de harmonia da ordem BAUMAN 2003 A unificação do malestar também pode ser relacionada com a tendência assumida pelo controle do crime na pós modernidade indicada por Garland 2014 quanto ao retorno da vítima ao centro da política criminal A posição da vítima nas representações sociais sobre violência é ambígua e sua conformação igualmente perpassa por marcadores sociais No que tange à violência contra a mulher uma pesquisa feita pelo Ipea 2014 apurou que 58 dos brasileiros concordava total ou parcialmente que se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros O mesmo estudo apontou que 91 concordavam também total ou parcialmente que homens que batem em suas esposas devem ir para a cadeia Assim a culpabilização da vítima pela violência sofrida imbricase com a resposta punitiva a essa violência Ainda o sentimento de culpa e de vergonha das vítimas bem como o medo da revitimização também são elementos relevantes para conformar a baixa notificação de crimes sexuais DATAFOLHA FBSP 2017 Assim a noção de retorno da vítima ao centro da política criminal não significa que ela deixe de ser descreditada em inúmeras circunstâncias no âmbito de relações de poder que abarcam demais fatores como a classe a raça e o gênero Por outro lado em consonância com o apontado por Garland 2014 essa tendência é percebida na pulverização de legislações com o nome de vítimas no Brasil a Lei Maria da Penha a Lei Menino Bernardo e a Lei Carolina Dieckmann indicando uma mudança no tom emocional da política criminal Sua figura diante disso não só seria utilizada para servir como portavoz nos debates sobre crime e insegurança mas também seria engatilhada para a produção de empatia como 48 lembrança de uma tragédia capaz de acometer a qualquer um GARLAND 2014 Um dos problemas disso como demarcado por Garland 2014 é que tal retórica pode servir para forjar um jogo maniqueísta em que qualquer atenção aos direitos do agressor tornase intrinsecamente oposta às medidas de respeito às vítimas No Brasil a importância da vítima no debate público pode ser exemplificada na manifestação da deputada federal Keiko Ota PSB em 2015 durante votação sobre a redução da maioridade penal Apesar de um de seus filhos ter sido assassinado em 1997 por três indivíduos maiores de idade dois deles policiais militares a deputada subiu ao plenário vestindo uma camiseta que estampava sua foto Apelou então como uma sobrevivente da violência pelo urgente fim da suposta impunidade de adolescentes que cometem crimes e solicitou empatia coletiva diante de sua dor Daí podese perceber que a presença das vítimas no espaço público de debate sempre ao lado de políticos ou de autoridades em geral serve para angariar adesão através da solidariedade e da formação de consenso às medidas em sua maioria repressivas pleiteadas por elas NASCIMENTO 2014 p 25 Com isso podese criar como apontado uma falsa polarização entre a falta de compaixão com a vítima e a demanda por respostas sociais retributivas orientadas por uma racionalidade punitiva Apesar da generalização do medo do crime e da produção de respostas violentas que pode lhe seguir não há como ignorar que a criminalidade tem nas últimas décadas crescido no país especialmente no que tange à violência letal De acordo com a séria histórica formulada pelo Ipea7 constituída com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde SIMSM em 1996 o Brasil contou com 2478 homicídios por 100000 habitantes em números absolutos foram 38929 mortes Em 2016 esse índice chegou a 3033 o mais alto de sua história mediante um total de 62517 mortes8 Porém a compreensão desses eventos não se confunde com a produção de seu discurso Como apontado o crime e o medo do crime estão frequentemente dissociados e a tomada de uma palavra na função de nomeação como diagnóstico unicista do malestar cria uma 7Disponível em httpwwwipeagovbratlasviolenciadadosseries Acesso em 02 set 2018 8 Há que se atentar nesses dados ao índice de mortes violentas com causa indeterminada que são aquelas em que o óbito não foi natural mas cuja motivação primeira que desencadeou o processo mórbido não pode ser apurada Assim a qualidade dos sistemas de informação de mortalidade pode ser medida através da proporção entre o total de mortes violentas e aquelas que não foram esclarecidas No ano de 1996 a taxa de mortes violentas por causa indeterminada por 100000 habitantes era no Brasil de 465 Em 2016 havia subido para 50 IPEA FBSP 2018 49 estrutura de ficção convergente entre as diferentes narrativas do sofrimento indexando todas elas em um mesmo fragmento de verdade DUNKER 2015 p 47 Os discursos violentos em resposta à violência não são novos no país Nos últimos sessenta anos mais de um milhão de pessoas foram linchadas no Brasil MARTINS 2015 Além disso o processo de redemocratização não tem sido eficaz na eliminação de vícios do regime ditatorial e as esperanças produzidas pela transição para a democracia também não se plasmaram BAQUERO 2008 Na transição incompleta para a cultura democrática se imiscui a crescente desconfiança dos cidadãos nas instituições que se enraíza tanto no contexto social que dá origem a tal sentimento como na própria avaliação feita a partir da experiência quanto ao desempenho institucional MOISÉS 2005 Diante do acesso desigual aos sistemas de justiça e de sua morosidade MARTINS 2015 por exemplo emerge a aceitação populacional da vingança privada emaranhada na demanda pelo armamento civil Em adição há a defesa de pautas como a redução da maioridade penal e até a pena de morte para crimes graves que chegam a ser aprovadas por respectivamente 879 e 4310 da população brasileira Representando esses anseios há conglomerados políticos como a Bancada da Bala frente parlamentar composta por políticos ligados à indústria de armas expoliciais e militares de modo geral e envolvida com a articulação de medidas punitivas Sua presença como instância de elaboração de projetos de lei na área da segurança se aproxima do que Garland 2014 chamou de politização e o novo populismo punitivo O processo de formulação das políticas se tornou profundamente politizado e populista As medidas políticas são tomadas de maneira tal que aparentam valorizar a vantagem política e a opinião pública em detrimento da opinião de especialistas e dos resultados de pesquisas GARLAND 2014 p 57 O cenário que clama pelo aniquilamento dos tomados como responsáveis pelo malestar coletivo e pela corporificação da insegurança comunitária remete à construção da ideia de inimigo interno que se consolidou nas décadas de ditadura militar em que a figura do comunista e a lógica do combate militarizado ganharam indiscutível força no discurso da segurança pública NASCIMENTO 2014 Naquele 9 Disponível em httpdatafolhafolhauolcombropiniaopublica201506164620087aprovam reducaodamaioridadeshtml Acesso em 08 out 2017 10 Disponível em httpdatafolhafolhauolcombreleicoes2014091512693direitasuperaesquerda nobrasilshtml Acesso em 08 out 2017 50 momento o país trabalhava com uma concepção belicista do processo social orientando a política nacional em função da segurança pública Essa mentalidade que preconizava o uso da guerra interna ou a eliminação de certos indivíduos como imperativos da segurança nacional abriu espaço para vertentes diversas de combate que passaram por desde o extermínio físico até pela demonização psicológica visando à segregação Esse processo pode ser aproximado da desumanização que atualmente é perpetuada no Brasil com pessoas envolvidas com o crime a quem é atribuído o estigma do Outro que não raro é também o indivíduo segregado territorialmente que compartilha de sociabilidades produzidas em espaços excluídos e que é vulnerabilizado no contexto do capitalismo contemporâneo 5 CONCLUSÃO Buscouse apontar com esse trabalho que tendências comuns típicas ao desenvolvimento histórico de sociedades pósmodernas e à representação cultural que lhes dá vida podem ocorrer em lugares diferentes apesar de existirem importantes particularidades a distinguir seus ambientes político e suas trajetórias sociais GARLAND 2014 Esse contexto mais amplo aprofundou um processo de isolamento entre diferentes grupos sociais que no Brasil se manifestou pela segregação sócioespacial e autos segregação de classes o que implica a redução das interações sociais entre moradores de diferentes áreas urbana bem como reforça a desigualdade da atuação estatal SOUZA 2006 impactando na distribuição heterogênea da violência no espaço urbano SOUZA 2008 A distribuição hierárquica e estigmatizante da moradia e da mobilidade a ausência de convívio entre diferentes grupos sociais e a ânsia pela busca de mecanismos de proteção enseja o espraiamento do medo generalizado impulsionado pela construção do Outro aquele que encarna a sensação de imprevisibilidade e insegurança SOUZA 2008 Tal fenômeno condiciona a coexistência de diferentes representações socioculturais que podem perpassar ou não pela legalidade e pelos padrões incutidos pela ordem pública e pelo Estado Assim as sociabilidades constituídas no tecido urbano se vinculam à produção de cidades segregadas imersas nas assimétricas oportunidades de acesso a bens e serviços o que faz com que uma 51 parte dos atores sociais participe precariamente da vida coletiva e da sociedade de consumo de fato no plano econômico político e social ou participe de forma qualitativamente diferente porque incompleta e não apenas quantitativamente desigual SPOSITO 2016 p 129 Ainda se estabelecem no caráter diferencial do funcionamento das instituições que pode transitar entre ser igualitário ou seletivo eficaz ou ineficaz violento ou não violento CARVALHO 2002 Esses processos portanto são marcados por iniquidades de direitos que estabelecem novas condições ou redimensionam condições já existentes para que parcelas expressivas da população segregada tenha sua vida social imersa no mundo da informalidade ou das ilegalidades ADORNO SALLA 2007 Como resposta às adaptações que se refletem em sociabilidades não normativas destacouse a produção de discursos eventualmente violentos como reação à insegurança realçandose a nomeação do malestar coletivo através de sua essencialização e homogeneização a despeito das variações e das assimetrias que perpassam os fenômenos criminais e sua incidência Apontouse que desconstruir a nomeação do malestar como violência não significa desconsiderar sua existência na realidade concreta mas atentar à sua multiplicidade de sentidos buscando entender por que e sob quais circunstâncias uma rede de narrativas sobre o sofrimento se torna convergente produzindo uma espécie de grandemal que será a partir de então impensado e autojustificado DUNKER 2015 p 48 Assim demarcouse a relevância de perceber que as violências se expressam no plural apesar de matizadas por elementos territoriais de gênero idade e raça ou etnia Pensar abordagens possíveis às intersecções colocadas é enfim uma maneira de refutar à padronização da violência e do crime na sociedade como algo uníssono destacando as assimetrias sociais que perpassam seu desvelamento cotidiano e fragilizando as representações socioculturais que orientadas em sentido contrário lançam mão da reprodução da própria violência 52 REFERÊNCIAS ADORNO Sérgio SALLA Fernando Criminalidade organizada nas prisoes e os ataques do PCC Estudos Avancados São Paulo v 21 n 61 p 0729 dez 2007 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0103 40142007000300002lngennrmiso Acesso em 03 set 2018 ALVES Glória de Anunciação A mobilidadeimobilidade na produção do espaço metropolitano In SOUZA Marcelo Lopes de CARLOS Ana Fani Alessandri SPOSITO Maria Encarnação Beltrão A produção do espaço urbano agentes e processos escalas e desafios São Paulo Contexto 2016 BAQUERO Marcello Democracia formal cultura política informal e capital social no Brasil Opinião Pública Campinas vol 14 n 2 p 380413 nov 2008 Disponível em httpwwwscielobrpdfopv14n205pdf Acesso em 10 0ut 2017 BAUMAN Zigmund Comunidade a busca por segurança no mundo atual Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 BECKER Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 BOURDIEU Pierre A dominacao masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005 CARVALHO José Murilo Cidadania no Brasil o longo caminho 3 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 COHEN Stanley Folk Devils and Moral Panics The Creation of the Mods and Rockers London Routledge 2002 CORRÊA Roberto Lobato Sobre agentes sociais escalas e produção do espaço um texto para discussão In SOUZA Marcelo Lopes de CARLOS Ana Fani Alessandri SPOSITO Maria Encarnação Beltrão A produção do espaço urbano agentes e processos escalas e desafios São Paulo Contexto 2016 DATAFOLHA FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA Visível e invisível a vitimização de mulheres no Brasil mar 2017 53 DUNKER Christian A violência como nome para o malestar In KUCINSKI Bernardo et al Bala Perdida a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação São Paulo Boitempo 2015 p 1926 FELTRAN Gabriel de Santis Fronteiras de tensão um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo 2008 363f Tese Doutorado em Ciências Sociais Programa de PósGraduação em Ciencias Sociais Universidade Estadual de Campinas 2008 Margens da política fronteiras da violência uma ação coletiva das periferias de São Paulo Lua Nova São Paulo n 79 p 201233 2010 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 64452010000100009lngennrmiso Acesso em 11 out 2017 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA FBSP Anuário brasileiro de segurança pública Edição X São Paulo 2016 Anuário brasileiro de segurança pública Edição XII São Paulo 2018 GARLAND David A cultura do controle crime e ordem na sociedade 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Contexto 2016