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Psicologia ·

Psicanálise

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MARGARETE DOS SANTOS MARQUES A ESCUTA AO ABUSO SEXUAL O psicólogo e o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente sob visão da psicanálise PUCSP 2006 3 MARGARETE DOS SANTOS MARQUES A ESCUTA AO ABUSO SEXUAL O psicólogo e o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente sob visão da psicanálise Trabalho apresentado como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social à Comissão Julgadora do Programa de Psicologia Social PUCSP 2006 PUCSP 2006 4 O LUGAR DO PSICÓLOGO NA ESCUTA AO ABUSO SEXUAL a Psicologia e o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente sob a óptica da psicanálise Margarete dos Santos Marques BANCA EXAMINADORA Defendida e aprovada em 2006 5 Dedico esse trabalho à minha mãe 6 AGRADECIMENTOS À equipe de professores e em especial à coordenadora do Programa de Psicologia Social da PUCSP profdra Mary Jane Spink por me aceitarem como aluna Ao profdr Raul Albino Pacheco Filho pela paciência e dedicação com que me ajudou a conduzir essa dissertação Ao CNPq por financiar essa pesquisa por meio de bolsa estudantil À ilustre Taeco Toma Carinato por ter me ensinado a escrever Aos amigos do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade da PUCSP Á Associação Gaudium et Spes representada por João Clemente de Souza por autorizar o acesso aos prontuários e por me fazer acreditar que era possível À equipe Sentinela Cuidar Sul 2003 em especial Jaqueline e Marco Aurélio À Cristina Sumita pela ajuda no momento mais difícil À Graciela Haidee Barbero pelas frutíferas discussões no grupo de estudo e fora dele À querida amiga Maria Gorete Vasconcelos pelo carinho e cuidado no momento em que quase desisti Às doutoras Maria Cristina Vicentin e Renata Coimbra Libório por terem aceitado não só fazer parte da banca mas por terem se permitido ser tocadas pelo tema Ao Instituto WCF Brasil representado por Ana Maria Drummond Carolina P C Padilha Mônica Santos Isabela Mosconi e Tatiana pelo incentivo e compreensão À equipe do Programa Refazendo Laços de São Jose dos Campos pela confiança e respeito À Maria Aparecida Barbirato pela possibilidade do encontro Ao José Carlos Garcia pelas intervenções assertivas Ao CRAMI ABC em especial à Ligia Maria Caravieri pela confiança e abertura Ao prof drRinaldo Voltoline Afra B Galindo e os companheiros do consultório pela amizade e acolhida de tantos anos Ao Sidnei A Goldberg pela escuta atenta e decisiva Aos tios Guimarinha Araci e Hernandes vozes queridas da minha infância Ao Marcelo pelos cuidados com o nosso pequeno Às queridas sobrinhas Bruna Mariana que mesmo distantes se fazem presentes e em especial à doce Gabriela pelo carinho e paciência nas horas difíceis Aos meus irmãos Eli a Alexandre pelas brincadeiras de infância Ao meu amado pai por ter me dado a possibilidade de ser 7 À minha amada mãe pelo exemplo de coragem e por nos ensinar que a vida sempre vale a pena Ao meu amado filho Matheus por sua infantil sabedoria que me ensinou a ser mãe e por seu profundo respeito à mulher que há em mim Aos pacientes que confiaram e ainda confiam na minha escuta Aos psicólogos que se dispuseram a contribuir com essa pesquisa e à todos aqueles que de certa forma se vêem tocados pelo tema Espero poder com esse trabalho ter sido solidária a algumas das suas questões 8 ABUSO Apareceu A suspeita da devastação da destruição Que ninguém viu que surgiu no silêncio da tarde ou da noite Firmouse na frente do muro Mudo Pela saída do fundo Na ausencia de todos E foi devastando devagar Foi chegando sem parar invadindo cada canto implodindo todo encanto do copo agora violado Como sobreviver à guerra quieta do ser Salvarse do desgosto Posto no rosto Espelharse no pó na sombra De que de quem No cinza da roupa Que veste e reverte vêse a imagem daquele que deveria proteger Mas deixou de fazer Imaginarse seguindo Andando caminhando para o sol para o céu Infinito de toda a alma Esperança que quase espanta Que reencanta Luz de um abraço Acolhedor que crê A importante presença de Alguém que abriga Que a acompanha a cada passo a cada laço refeito Mãos que afagam Ombros que acolhem o ser desiludido desencantado cansado Agora é preciso continuar vivendo É só continuar re fazendo No pósguerra sobreviver é mais que viver É também esconder silenciar o que se viveu Superar e voltar a se encantar Após a guerra é tudo o que resta No resto de mim Sopro sem fim Margarete S Marques 9 SUMÁRIO Resumo Abstract Introdução Método Capítulo 1 Algumas Notas Sobre a Criança 11 A criança na psicanálise erotismo infantil 12 Menino ou menina fases da fantasia 13 Annafreudismo Kleinismo e os independentes 14 A escola francesa Capítulo 2 Do Código de Menores ao Estatuto 21 Da premissa da situação irregular ao artigo 227 22 Da convenção da ONU ao Estatuto 23 O Estatuto implicações ao psicólogo 24 A Proteção especial Capítulo 3 Refletindo sobre Violência Abuso e Incesto 31 Violência 32 Abuso sexual 33 A inclusão do abuso na agenda da Organização Mundial da Saúde 34 O abuso no Brasil 35 Violência Doméstica 36 Violência sexual 37 Escolhendo um termo Capítulo 4 O Caminho da Criança na Rede de Proteção implicações sobre o lugar do psicólogo 11 12 13 21 23 29 32 35 39 42 44 47 48 51 53 54 56 57 59 61 62 64 70 10 41 Relato do caso 42 Relato da dor 43 A notificação 44 A chegada ao atendimento 45 O desenrolar das sessões com a mãe 46 O desenrolar das sessões com Ana 47 A relação da justiça com o psicólogo 48 A audiência 49 O lugar do psicólogo 410 Tabu e incesto 411 A linguagem da ternura Capítulo 5 O Psicólogo e o campo jurídico análise das entrevistas 51 Contextualizando nossa análise 511 As questões de André 512 As questões de Cláudia 513 As questões de Maria 52 Um diálogo possível 53 O que faz o analista Conclusão Bibliografia Anexos 71 71 72 74 74 76 77 79 81 82 85 87 87 88 93 97 100 110 113 116 124 11 RESUMO MARQUES M S A escuta ao abuso sexual o psicólogo e o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente São Paulo 2006 Dissertação de Mestrado Programa de Psicologia Social Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Este trabalho tem como objetivo articular com base no referencial psicanalítico alguns aspectos das vivências e experiências dos profissionais às ambigüidades e contradições relacionadas à função do psicólogo que atua no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente atendendo aos casos de abuso sexual infantil Abordamos o conceito de criança principalmente como ela passou a ser personagem central da cena social carregando o ideal de um futuro promissor Destacamos como a sociedade brasileira se mobilizou para considerar a criança como sujeito de direitos com a promulgação do Estatuto da criança e do Adolescente Refletimos sobre diversos conceitos de violência abuso sexual e incesto escutando as contradições que permeiam esse campo devido as diferentes teorias e posicionamentos políticos e epistemológicos dos autores E observamos a impossibilidade de consenso sobre a utilização dos termos para se nomear o fenômeno do abuso sexual infantil Entrevistamos psicólogos que trabalham nos serviços da rede de proteção integral a fim de investigar como concebiam e vivenciavam o tema seus conflitos angústias e sofrimentos seus juízos de valor e suas formulações éticas morais e religiosas Assim deparamonos com a demanda da justiça para que o psicólogo produza provas para respaldar a decisão judicial na aplicação da pena para o suposto abusador Na análise das entrevistas promovemos levantar diversas questões para criar um movimento que não busca uma verdade absoluta mas ao contrário diluir algumas questões para que se abram outras por meio de um diálogo com autores que discutem a interface entre a PsicologiaPsicanálise e o Direito Concluímos que é preciso promover reflexões no interior dos órgãos de classe e das universidades a fim de que o tratamento psicoterapêutico seja tomado pelo paciente como um direito e não como um dever e que a ética do psicólogo seja considerada durante o diálogo com o campo do Direito 12 ABSTRACT The Listening of sexual abuse the psychologist and the assurance of children and adolescent rights São Paulo 2006 This project intends to articulate based on a psychoanalytic referential some aspects of existence and experiences of professionals with ambiguities and contradictions related to the function of psychologists who work in the system of assurance of children and adolescents rights taking care of cases in child sexual abuse Weve approached the concept of child mainly how this child became a central character in the social scene carrying the ideal of a good future We must point out how Brazilian society has mobilized itself to consider a child as an individual with rights through the promulgation of the Child and Adolescence Act Weve reflected on several concepts of violence sexual abuse incest listening to contradictions that prowl this segment due to different theories and epistemological and political positioning of authors And observing the impossibility of a consensus in the use of terminology to name the child sexual abuse phenomena Weve interviewed psychologists who work in services of protection in order to investigate how they experienced the theme their conflicts anguishes and pains their values as well as ethical moral and religious formulations Thus weve faced a demand of justice for the psychologist to produce proof to support the legal decision in the conviction of the alleged abuser In the interviews analyses weve raised several questions to create a movement not in search of absolute truths but yet to dilute some questions so that other questions can be asked through talks with authors to discuss the interface between PsychologyPsychoanalysis and the Law Weve concluded that its necessary to promote reflections in universities and social classes so that the psychotherapeutic treatment is taken by the patient as a right and not as a duty and that the psychologist ethics be considered in the dialogue with the law 13 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem uma relação inerente com a experiência da pesquisadora Isto significa que foi a ligação entre a pesquisa o pesquisado e o pesquisador que mobilizou esta produção científica Para justificarmos esse lugar de pesquisadora me apresento como psicóloga que atuou e ainda atua em serviços relacionados com a temática da violência sexual que atende escuta acompanha e supervisiona casos de crianças e adolescentes que passaram por essa experiência Dessa forma a nossa experiência sempre esteve articulada com o que pretendi investigar A experiência como coordenadora do Centro de Referência foi o embrião do problema dessa pesquisa No ano de 2002 fui convidada a assumir a coordenação de um Centro de Referência para Crianças Adolescentes e Famílias em Situação de Violência Sexual como proposta e um programa do Governo Federal que repassam verbas para os municípios que por sua vez estruturam centros de atendimento a essa problemática Participei de todo o processo de implantação do Centro que compreendia a criação do nome pois os municípios não precisavam utilizar o nome Sentinela Os Centros eram autorizados a batizar o programa com o nome que julgassem melhor a escolha da instituição que iria ser a sede a contratação da equipe de profissionais o preparo da comunidade para receber o serviço por meio de cursos de sensibilização e reuniões com o conselho tutelar com a vara da infância com a diretoria de ensino e com a secretaria de desenvolvimento social e por fim a inauguração do espaço Ocupando o cargo de coordenadora passei a escutar os profissionais que atuavam no atendimento A modalidade dessa escuta não era aquela proposta por Freud 19241 ou seja atenção uniforme e suspensa em face de tudo o que se escuta mas uma atenção operacional aos profissionais levando em consideração suas dificuldades no cotidiano de sua atuação A tarefa de coordenar exigiu uma interlocução com a equipe de trabalho para que as decisões tomadas tivessem sempre como meta oferecer condições para uma boa qualidade de atendimento aos usuários do serviço Semanalmente a equipe técnica do programa reuniase a fim de organizar os trabalhos e de discutir os casos que estavam sendo atendidos pelo Centro de Referência Dessas 14 reuniões participavam psicólogos assistentes sociais e um educador Com o passar do tempo fui percebendo que algo de errado estava acontecendo com os profissionais dessa equipe e supus que poderia ter ligação com suas atividades no Centro As suposições foram despertadas com o caso de uma menina de um ano e seis meses de idade que atendemos no Programa Ela acabara de receber alta do hospital da região e estava em um abrigo Havia passado por uma cirurgia de reconstituição da genitália devido à dilaceração ocorrida por ter sofrido um abuso sexual do pai O abrigo pediunos ajuda para lidar com a menina Assim o caso foi levado à reunião técnica para que um dos psicólogos pudesse iniciar o atendimento Um psicólogo do grupo dispôsse a atender esse bebê No dia seguinte uma profissional da equipe não a que iria atender a criança relatoume que no caminho de volta para sua casa começou a pensar no bebezinho que sofreu abuso e sentiu enjôo Passadas algumas horas começou a vomitar compulsivamente Disseme que a imagem que vinha à sua mente durante os vômitos era a de sua filhinha quando era bebê Essa psicóloga nos concedeu uma das entrevistas deste trabalho pois considerei importante escutar a sua história Também escutei um outro caso que fiquei muito atenta Um profissional relatounos que havia atendido um menino de seis anos que tinha sido abusado por seu padrinho Chamoume a atenção o fato de ela repetir por várias vezes a fala que o menino dirigiu a ela durante a entrevista de triagem doía muito tia doía muito Após alguns dias a profissional procuroume para dizer que teve pela primeira vez uma crise de hemorróidas Dias depois apareceu com o corpo empipocado e o diagnóstico médico foi de que aquele sintoma era uma espécie de urticária Em outros momentos escutei relatos como passei a olhar diferente para o meu marido pensando se ele seria capaz de abusar de nossa filha de seis anos Essa profissional disse ter chegado a ficar receosa em deixar o pai sozinho com a filha Eu conheci esse lugar estranho quando fui intimada pelo promotor de justiça da vara criminal a prestar depoimento como testemunha de acusação do padrasto de uma criança de sete anos atendida por mim no Centro Esse fato me causou certo malestar e fez com que eu me perguntasse se o posterior desligamento da paciente da psicoterapia poderia ter relação com meu depoimento e se ela e principalmente sua mãe também não se viram tomadas pelo mesmo malestar Percebi então que o fato de um sujeito estar mergulhado diariamente no discurso sobre abuso sexual pode promover alterações nas suas relações sociais familiares conjugais e de amizade e até mesmo interferir na sua possibilidade de acolhimento A escuta a essa 15 problemática pode ainda gerar fantasias na mente desses profissionais Essa observação também foi feita por Cromberg 2001 ao supervisionar psicólogos que trabalhavam escutando crianças abusadas sexualmente Diz O tratamento de tais tragédias psíquicas faz violência também no psiquismo do analista Contudo esse profissional deverá promover um ligamento de sentidos e simbolizações ao sujeito que sofreu a violência CROMBERG 2001 p 9 que vai remeter esse profissional a navegar por extratos de seu inconsciente Essa percepção conduziume a orientar e sensibilizar a equipe da necessidade de entrar no processo de psicoterapia ou análise porém nem todos se dispuseram a fazêlo Comuniquei à instituição sobre minha preocupação com os profissionais e sugeri a contratação de um supervisor Os gestores apesar de serem solidários disseram que a verba recebida do poder público não previa gastos para esse fim mas se dispuseram a financiar pois reconheciam que precisavam cuidar da equipe técnica Além das dificuldades encontradas na escuta ao abuso sexual em si depareime com outra dificuldade a relação com a instância jurídica que por sua vez é um dos braços do sistema de garantia de direitos O Estatuto da criança e do Adolescente ECA foi uma conquista da sociedade brasileira e por meio dele muitas ações de proteção encontram respaldo legal o Programa Sentinela foi uma dessas ações que abriu campo de trabalho para o psicólogo e possibilidade de acolhimento e tratamento psicoterápico às crianças que vivenciaram a experiência do abuso Entretanto a maneira com que o sistema judiciário está fundamentado às vezes impõe aos psicólogos uma tarefa que vai além da sua função terapêutica e é bastante difícil de ser equacionada de produzir provas para respaldar as decisões judiciais com relação à pena a ser aplicada a um possível abusador O abuso sexual infantil passou a ser considerado fenômeno relevante após a estruturação do conceito de criança como um ser em etapa peculiar de desenvolvimento Esse fato somado à luta pelos direitos humanos e o surgimento do feminismo foram os pilares de sustentação dos movimentos sociais que se mobilizaram a fim de consolidar em forma de legislação tanto os direitos da criança como as penalidades e sanções para aqueles que descumprissem as leis Uma pesquisa feita por Pimentel 2006 que avaliou publicações sobre o abuso sexual infantil revelou há poucos autores brasileiros trabalhando com o tema e prevalecendo uma postura a de incentivar a mobilização da população para identificar essas situações no interior da família e denunciálas à polícia ou autoridade competente Revelou também que existe 16 um movimento bem articulado no Brasil na cidade de São Paulo mais especificamente na USP cuja maneira de atuação e argumentação versavam basicamente sobre a mesma temática critérios de classificação exames vigilância e punição às situação de abuso sexual infantil PIMENTEL 2006 p 44 A forma com que nossa sociedade escolheu para lidar com este fenômeno acaba expondo a família a diferentes intervenções públicas de vários profissionais Dessa maneira o Estado toma para si o cuidado com as crianças policiando as famílias PIMENTEL 2006 p 51 Assim podemos inferir que o monitoramento das práticas sexuais no interior das famílias faz com que o abuso infantil esteja estritamente relacionado à sexualidade Para o entendimento e a compreensão da nossa questão busquei a abordagem e metodologia psicanalítica Onde o sujeito não é resultado do desenvolvimento biológico nem o psiquismo é originário somente das sinapses neuronais Sua emergência se dá a partir do encontro com o Outro representante da cultura a mãe ou quem cuida e desde a mais tenra idade é portador de um erotismo despertado por esse encontro Contudo o momento dessa emergência é esquecido e temos acesso a ela somente por meio das formações do inconsciente como os sonhos atos falhos chistes e etc Essa instância psíquica o inconsciente é atemporal alógico regido pelo princípio do prazer e portanto infantil tanto para o adulto quanto para a criança De acordo com Silva 2006 o autor esclarece que a sexualidade infantil nos remete à lógica da construção da fantasia Dessa forma Freud substitui a compreensão da sexualidade infantil a partir de uma visão desenvolvimentista ou educacional por outra que enfatiza a fantasia PRATES SILVA 2006 p 56 Freud 1908 com a análise do pequeno Hans logo se confrontou com a concepção de criança de sua época que era vista como um ser inocente e despossuído de qualquer sexualidade A cura de Hans se deu por meio da análise de questões ligadas ao erotismo infantil na relação com seus pais ou seja o complexo de Édipo Assim Freud sofreu as conseqüências de ter desvelado a sexualidade infantil contrapondose com a concepção de criança inocente que dominava à época e abriu caminho para novas pesquisas sobre a infância em psicanálise Considerando a teoria freudiana a qual em um dado momento pesquisou o abuso infantil incestuoso e o percurso da pesquisadora de ter trabalhado na rede de proteção atendendo estes casos surgiu o interesse em investigar como outros psicólogos se confrontavam com a violência sexual a crianças e adolescentes e como exerciam sua prática Quis saber como concebiam e vivenciavam o tema incluindo seus pensamentos suas 17 reflexões teóricas e profissionais bem como suas concepções e opiniões pessoais seus pontos de vista oriundos do senso comum compartilhados por setores ou agrupamentos sociais seus conflitos angústias e sofrimentos seus juízos de valor e suas formulações éticas morais e religiosas Delimitamos então nosso objetivo nossa questão articular com base no referencial psicanalítico alguns aspectos das vivências e experiências dos profissionais às ambigüidades e contradições relacionadas à função do psicólogo que atua no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente atendendo aos casos de abuso sexual infantil Para o material dessa questão procuramos entrevistar psicólogos homem ou mulher que tivessem um percurso no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual em um serviço da rede de proteção Deveriam ter formação em psicologia sem a necessidade de constar em seu currículo especialização no tema violência sexual Eles ainda poderiam ou não estar em processo de análise ou psicoterapia Ao escutar nossos entrevistados observamos que a maioria dos profissionais dedicam número constante de horas semanais a esse trabalho Estão inseridos em um serviço com a missão de prestar atendimento a crianças adolescentes e famílias em situação de violência sexual Fazem parte de uma equipe formada por diferentes profissionais tais como assistentes sociais médicos educadores e estagiários com a proposta de interdisciplinaridade ou seja de discussão e acompanhamento dos casos por toda a equipe respeitando a especificidade de cada área As instituições nas quais eles trabalham posicionamse diferentemente frente ao relacionamento com os vários campos do saber em especial com o campo jurídico A escolha de profissionais que exercem sua função em diferentes instituições foi proposital Acreditamos que assim ilustraríamos as diferentes concepções que as instituições bem como os psicólogos podem ter com relação ao atendimento aos casos de abuso sexual Com o auxílio do método de investigação psicanalítico colhemos material que foi analisado de maneira que pudéssemos mapear as tensões entre as diferentes disciplinas e campos do saber que se ocupam em trabalhar com o tema destacando especialmente a Psicologia a Psicanálise e o Direito Delimitamos os pontos de tensão e pensamos em um diálogo possível entre ambos Selecionamos algumas das questões levantadas pelos psicólogos entrevistados priorizando aquelas que dizem respeito à interface do seu trabalho com a justiça tais como a 18 obrigatoriedade da denúncia nos casos de suspeita de abuso sexual infantil e a sua relação com o Código de Ética do Psicólogo que em seu artigo 9º dá ao paciente o direito ao sigilo profissional o fornecimento de laudos pareceres relatórios e depoimentos que respaldam as decisões judiciais para afastamento do lar ou aplicação de pena ao suposto agressor que na maioria das vezes é alguém com fortes laços afetivos com a criança No desenvolvimento do trabalho percebemos a necessidade de esclarecer melhor sobre o que entendemos pelo termo criança e o que a psicanálise define como infância Com auxílio de Ariès 1981 descrevemos como foi se construindo historicamente esse conceito a fim de nos afastarmos da crença de que a infância é algo natural Para complementar delineamos como a criança foi se consolidando como centro das atenções em algumas sociedades ocidentais a partir de alguns fatores sociais e históricos Acrescentamos como as instituições onde os sujeitos de nossa pesquisa trabalham seguem a doutrina da proteção integral No capítulo 2 buscamos descrever historicamente o percurso trilhado pela sociedade por meio de movimentos sociais como o feminismo para materializar o seu ideal de proteção à criança que culminou no Brasil na promulgação do ECA No capítulo 3 discorreremos sobre os termos utilizados para nomear os fenômenos violência sexual abuso e incesto Consideramos a opinião de alguns autores como Costa 2003 que acredita sabermos pouco sobre a violência devido à escassez de investimentos em pesquisa sobre o tema pelas diversas ciências incluindo a psicanálise e Minayo 1998 que também sustenta a idéia de que o fenômeno seja enfrentado de forma multiprofissional e seja motivo de amplo debate entre as diferentes áreas do conhecimento em especial a psicologia social No capítulo 4 descrevemos detalhadamente o caso da menina em que fui intimada a depor em juízo E pronunciamos os equipamentos da rede do sistema de proteção integral que a acolheram delegacia hospital conselho tutelar e vara da infância Refletimos sobre o que é esperado do trabalho do psicólogo pela área jurídica e sobre qual a função do tratamento psicológico No quinto e último capítulos recortamos os pontos principais levantados por nossos entrevistados e os analisamos a partir da opinião de alguns autores que se depararam com a questão Na intenção de fomentar ainda mais a discussão recorremos a autores que têm visões diferentes sobre a atuação do psicólogo no campo jurídico 19 Freud 1931 contrapôsse ao resultado dos exames periciais de um médico que utilizou a teoria do complexo de Édipo e o conceito psicanalítico de repressão para incriminar o jovem judeu Philipp Halsmann por crime de parricídio na Áustria Citamos a posição de Lacan 1950 sobre a contribuição da psicanálise à criminologia em que sustenta a idéia de que são as questões sociais que definem um criminoso Caffé 2003 acredita que o trabalho da perícia psicológica psicanalítica pode auxiliar uma família em litígio a se implicar em seu sintoma Assim a psicanálise surge no lugar de um saber que faltou ao juiz Um lugar sobre outro lugar GUIRADO apud CAFFÉ 2003 p 99 pois é o direito que convida a psicanálise para os domínios de sua casa Para essa autora é a partir desse lugar faltante não só para o juiz mas também para a família que procura a justiça e seus agentes para institucionalizar o conflito no qual está mergulhada que pode haver alguma possibilidade de interlocução entre a Psicologia a Psicanálise e o Direito Já Arantes 2004 baseada no filósofo da ciência Canguilhem promove uma reflexão sobre a instrumentalização da psicologia e defende a idéia de que não é vocação dessa ciência ser apenas um instrumento da administração da sociedade Dolke 2001 promotora de justiça de uma cidade do sul do País tece várias críticas à forma com que o poder judiciário lida com os casos de suspeita de abuso sexual a crianças e adolescentes principalmente no que diz respeito à inquirição das crianças no momento da audiência Propõe um incessante diálogo com outras áreas do conhecimento em especial com a psicologia a fim de que sejam criadas novas maneiras de abordagem das crianças em situação de violência sexual pelos juristas bem como a reformulação da maioria das leis e práticas dos juristas sobre o abuso sexual infantil Moraes 1998 psicanalista do Rio Grande do Sul relata um caso em que foi procurada em seu consultório pela mãe de um menino de dois anos O pedido era para que ela tomasse o menino em análise para elaborar um relatório que afirmasse que o pai havia abusado do menino para ser entregue para o juiz Nesse caso refletimos sobre o quê faz um psicanalista frente a um pedido como esse Não foi tarefa fácil concluir essa pesquisa visto que a cada capítulo escrito se abriam mais questões a respeito desse tema que nos desperta horror mas ao mesmo tempo curiosidade No entanto foi possível estabelecer uma correlação entre os dados fornecidos pelos entrevistados e a necessidade de um diálogo constante entre campos tão independentes do saber mas que são constantemente chamados a dialogar sobre o fenômeno 20 Concluímos que é preciso criar inventar uma rede de proteção e cuidados também para os psicólogos Não uma rede que promova reivindicações apenas monetárias mas que abra espaços para a reflexão sobre a necessidade de formação permanente da supervisão e do acesso à terapia ou à psicanálise por parte desses cuidadores Uma rede que promova a implicação das pessoas em seu trabalho para que este não esteja submetido à égide da instrumentalização e da submissão ao campo do Direito 21 O MÉTODO Segundo Freud psicanálise é o nome de um procedimento para investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo um método baseado nessa investigação para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica Com essa frase Freud 1923 enfatizou o caráter científico da psicanálise destacando a existência de uma teoria uma metodologia de investigação dos processos mentais e um método para tratamento Freud 1896 começou a construir a teoria da sedução ao escutar suas pacientes utilizando inicialmente o método criado por Charcot a hipnose e posteriormente a associação livre Cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de perversão por parte do sedutor e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai FREUD 1996 p 286 Mais tarde Freud 1897 entrou em conflito com os alicerces de sua teoria da etiologia das neuroses pois descobriu que estava incompleta e em carta escrita a Fliess declara Não acredito mais em minha neurótica teoria das neuroses veio a surpresa diante do fato de que em todos os casos o pai não excluindo o meu tinha de ser apontado como pervertido FREUD 1996 p 309 310 Assim concluiu que o caminho teórico que estava percorrendo era absurdo repensou seus conceitos e promoveu várias reformulações Essa capacidade em promover sucessivas reelaborações ajustes e modificações necessárias ao desenvolvimento da teoria é característico da obra freudiana Essa crescente rearticulação da teoria e aperfeiçoamento dos conceitos com uma progressiva interação com os dados da experiência é inegavelmente a marca do trabalho de Freud PACHECO FILHO 1999 p 19 O pai da psicanálise não desistiu das suas investigações sobre o desvelamento da psique humana e durante a continuidade da escuta a seus pacientes passou a considerar a dimensão da fantasia como instância necessária à constituição e do sujeito Assim a delimita que a realidade psíquica aquela que faz parte do mundo mental do sujeito nem sempre condiz com a realidade dos fatos No intuito de comprovar ou refutar a nossa hipótese norteadora a de que existem tensões fundamentais na interlocução dos campos da Psicologia e do Direito e estas podem 22 influenciar os psicólogos que trabalham em serviços da rede de proteção integral escutando casos de abuso sexual infantil entrevistamos alguns desses profissionais O método psicanalítico inclui o pesquisador num processo de elaboração conceitual que nasce no interior de uma reflexão e vai se construindo pelos relatos colhidos No caso dessa pesquisa as informações dadas pelos sujeitos passaram pela subjetividade da pesquisadora que a não foi desprezada mas sim considerada e reelaborada abrindo novas fendas discursivas e proporcionando um diálogo fértil e incessante 23 Capítulo 1 ALGUMAS NOTAS SOBRE A CRIANÇA e a gente canta e a gente dança e a gente não se cansa de ser criança da gente brincar da nossa velha infância Arnaldo Antunes Neste capítulo faremos alguns apontamentos sobre o que se entende do termo criança Para isso é essencial que façamos um pequeno recorte na história para entendermos o surgimento desse conceito Não devemos supor que no mundo contemporâneo a palavra criança tenha o mesmo sentido que o empregado em outras épocas Dessa forma não estaremos falando de algo da ordem da natureza e sim de um conceito construído socialmente Também refletiremos sobre a contribuição da psicanálise para entendermos o que vem a ser o infantil termo que supõe a instância da fantasia de infância Atualmente é oferecido à criança ocupar um lugar de destaque na cena social o que não ocorria em outras épocas Esse lugar concedido a ela vai depender da estrutura econômica social política e também dos valores religiosos Ariès em seu livro História social da criança e da família utilizase da observação de obras de arte e da historiografia para captar algumas nuances de como as sociedades antigas se relacionavam com suas crianças Apesar dos limites de seu método o autor consegue elucidar algumas questões essenciais que nos serão úteis para traçarmos o percurso histórico de como o sentimento da infância foi aparecendo Esse autor desvenda que nas sociedades tradicionais portanto antes da industrialização não se reservava à criança uma atenção especial Os cuidados lhe eram atribuídos apenas durante os anos de fragilidade tal como a um filhote de animal não sendo dado a ela sequer um nome Na opinião de Ariès nessa época o afeto no interior das famílias não era algo tão relevante O que importava era a cooperação mútua Assim o grupo conservava seus bens e garantia a sobrevivência A duração da infância era reduzida pois assim que a criança adquiria maturidade motora era incluída no mundo adulto A aprendizagem ocorria por meio da convivência com 24 os adultos que lhe atribuíam a tarefa de auxiliálos na produção artesanal Quase sempre as crianças ajudantes pertenciam a outro grupo familiar Era comum morarem por um período com outras famílias a fim de aprender boas maneiras ou um ofício Contudo um sentimento superficial da criança o que chamei paparicação era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha As pessoas só se divertiam com a criança pequena como um animalzinho um macaquinho impudico Se ela morresse então como muitas vezes acontecia alguns podiam ficar desolados mas a regra geral era não fazer muito caso pois uma outra criança logo a substituiria A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato ARIÈS 1981 p 10 No entanto o mundo dos adultos era permeado por festas brincadeiras e jogos populares como forma de estreitar laços coletivos Assim era tranqüila a adaptação da criança A música e a dança as representações dramáticas reuniam toda a coletividade e misturavam as idades tanto dos atores como dos espectadores ARIÈS 1981 p 104 Algo bastante relevante para o nosso trabalho é o fato de que as crianças eram facilmente incluídas às brincadeiras sexuais dos adultos Nos documentos escritos pelo médico do Rei Luís XIII há relatos de jogos entre o rei e sua ama que talvez hoje pudéssemos chamar de abuso sexual Luís XIII ainda não tem um ano Ele dá gargalhadas quando sua ama sacode o pênis com a ponta dos dedos Ele chama a pajem com um Ei e levanta a túnica mostrandolhes o pênis ARIÈS 1981 p 125126 Em algumas culturas ainda se conserva o hábito de brincar com o sexo das crianças como por exemplo a muçulmana Em uma passagem de um romance do judeu tunísio Alberto Memmi há um diálogo entre um djerbiano e um menino de dois anos e meio que está no colo do seu pai1 Você quer me vender seu pintinho Não disse o menino com raiva O menino olhou para o pai o pai sorria era uma brincadeira permitida Nossos vizinhos se interessavam pela cena tradicional com uma aprovação complacente Eu lhe dou 10 francos propôs o djerbiano Não disse o menino Vou lhe dar tudo o que posso 1 Romance La Statute de Sel de 1953 25 e mais um saco de balas Não não Repita pela última vez disse fingindo raiva Não Então bruscamente o adulto pulou em cima da criança com uma expressão terrível no rosto e a mão brutal remexendo dentro de sua braguilha O menino se defendeu com socos O pai ria a gargalhadas o djerbiano e os vizinhos também ARIÈS 1981 p 130 Pode nos parecer absurdo imaginar essa ausência de reserva diante da criança mas temos de lembrar que as mudanças na estrutura social advindas com a moral religiosa e com o capitalismo ocorreram predominantemente no Ocidente Em algumas sociedades orientais tais transformações nem aconteceram mantiveram suas tradições não tendo sido influenciadas portanto por esse sentimento de infância que o autor procura identificar Foucault em História da sexualidade nos esclarece sobre as incursões e as mudanças sociais com relação à sexualidade ressaltando que em um determinado momento histórico há uma drástica mudança nos comportamentos sexuais Dizse que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza As práticas não procuravam o segredo as palavras eram ditas sem reticência excessiva e as coisas sem demasiado disfarce tinhase com o ilícito uma tolerante familiaridade Gestos diretos discursos sem vergonha transgressões visíveis anatomias mostradas e facilmente misturadas crianças astutas vagando sem incômodo nem escândalo entre os risos dos adultos os corpos pavoneavam Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana até as noites monótonas da burguesia vitoriana A sexualidade é então cuidadosamente encerrada Mudase para dentro de casa A família conjugal a confisca E absorvea inteiramente na seriedade da função de reproduzir Em torno do sexo se cala um único lugar de sexualidade reconhecida mas utilitário e fecundo o quarto dos pais FOUCAULT 1985 p 9 Não se trata de dizer que nesta ou naquela época as pessoas lidavam melhor ou pior com as crianças ou mesmo com a sexualidade mesmo porque Foucault considerou somente a 26 questão da repressão e desconsiderou a idéia de recalque2 Queremos demonstrar que nem sempre a criança ocupou um lugar central no cenário social pelo contrário na antiguidade ela era mera coadjuvante nas relações sociais e quando indesejada era facilmente eliminada O infanticídio era prática comum apesar de condenado e severamente punido quando desvelado Mesmo assim as pessoas o praticavam em segredo camuflado sob forma de acidente e em geral ocorria por asfixia na cama dos pais onde a criança dormia O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado mas tão pouco era considerado com vergonha Fazia parte das coisas moralmente neutras ARIÈS 1981 p 17 Ao longo do século XVI houve um grande movimento de moralização dos homens promovido pelas reformas católica e protestante Esse movimento daria início a um longo processo de enclausuramento das crianças como dos loucos dos pobres e das prostitutas que se estenderia até nossos dias e ao qual se dá o nome de escolarização ARIÈS 1981 p 11 Surge desse movimento uma elite educadora preocupada em preservar a moral da criança proibindolhe os jogos então classificados como maus e recomendandolhes os jogos bons Devemos ressaltar que o novo testamento do cristianismo trouxe uma nova visão de homem principalmente no que diz respeito às suas franquezas e deficiências diferentemente dos preceitos anteriores que pregavam os castigos e a exclusão dos pecadores Um dos dogmas cristãos é a solidariedade para com os fracos e o acolhimento dos doentes fatos que ajudaram a fortalecer essa nova religião que se tornou oficial no início do século IV Assim as práticas cristãs começaram a ser controladas pelos governantes e pouco a pouco os valores de perdão e de solidariedade para com os excluídos sociais foram enfraquecidos LIBÓRIO e SILVA 2005 p 86 O domínio da moral fez com que as pessoas buscassem no cristianismo o motivo para a santificação da criança que passa a ser vista como criatura sem nenhum pecado carnal despojada de sentimentos impuros Esse fato faz surgir uma época de grande repressão com relação à sexualidade Nesse período a criança antes profana passa a ser vista como sagrada A força do laço familiar se estabelece como algo relevante bem como a escolarização É conveniente então que as crianças sejam mantidas na escola enquanto os pais saem para trabalhar Esse é 2 Freud 1898 em O mecanismo psíquico do esquecimento esclarece que recalque são fluxos de representações que a despeito da intensidade do interesse nelas depositado deparassem com uma resistência que os impedisse de serem elaborados por uma dada instância psíquica e portanto de se tornarem conscientes 1996 p 279 27 um momento de transição de uma sociedade rural e de produtos manufaturados destinados à autosubsistência para uma sociedade industrializada Assim a cultura começa a oferecer um outro lugar social à criança Apoiada no cristianismo e nos ideais da burguesia de um capitalismo ainda incipiente família estado e sociedade nossa cultura inventa cria a infância A criança agora tem a responsabilidade de conservar a linhagem a integridade e o patrimônio da família Instaurase a necessidade da intimidade no núcleo familiar A família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças mas uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos Ela correspondeu a uma necessidade de intimidade e também de identidade os membros da família se unem pelo sentimento o costume e o gênero de vida As promiscuidades impostas pela antiga sociabilidade lhes repugnam Compreendese que essa ascendência moral da família tenha sido originariamente um fenômeno burguês a alta nobreza e o povo situados nas duas extremidades da escala social conservaram por mais tempo as boas maneiras tradicionais Existe portanto uma relação entre o sentimento da família e o sentimento de classe ARIÈS 1981 p 278 Durante o surgimento do que Ariès chamou de sentimento de infância o interesse pela produção de conhecimentos sobre a criança pelas várias áreas como a pediatria a pedagogia e até mesmo a psicanálise provocou a consolidação de um ideal social sobre o que uma comunidade deve oferecer às suas crianças e como deve ser vivida essa etapa da vida ou seja a infância O conceito de infância está para além das questões biológicas e cronológicas Nele estão os ideais de uma sociedade os sonhos desejos e fantasias de uma comunidade sobre as melhores formas de educar suas crianças Alguns cientistas sociais desde a década de 1930 já utilizavam a expressão sociologia da infância para se referir aos fenômenos relacionados a esta categoria porém a análise da infância como categoria sociológica iniciouse na década de 1990 Segundo Sarmento 2006 a sociologia desde sua origem já considerava fundamental o fato de a infância ser vista como a geração sobre a qual os adultos realizam uma ação de transmissão 28 cultural A consideração da infância como período de vida onde acontece a socialização constituiuse como uma das mais importantes obras do início do pensamento sociológico o da teoria da socialização de Emile Durkheim SARMENTO 2006 p 2 A sociologia da infância é uma nova ciência que tem contribuído para acirrar o questionamento sobre o fato de algumas ciências como a pedagogia a psicologia ou medicina ter considerado por determinado tempo as crianças como adultos em miniaturas discordando das conceituações baseadas na biologia para a definição da infância Ela questiona também o fato de atualmente as crianças estarem confinadas ao espaço privado como asilos creches e reformatórios ou ao cuidado da família Procura rever a produção pericial da infância pelas ciências do indivíduo questionando algumas intervenções que incluem a dos psicólogos A sociologia da infância parte do pensamento sóciohistórico o qual considera a criança como um ser autônomo e constituído sóciohistoricamente Faz um corte com o adultocentrismo ou seja estudos da criança a partir dos adultos face às crianças ou da experiência do adulto face à sua própria infância SARMENTO 2006 p 20 Dessa forma essa disciplina se contrapõe à teoria psicanalítica a qual inclui a dimensão inconsciente da constituição do sujeito humano e o encara como um ser essencialmente dividido e completamente dependente do outro durante seu processo de constituição Mesmo assim não podemos deixar de acenar para a relevância deste novo campo do conhecimento científico que tenderá a desenvolverse e a contribuir para novas teorizações para toda ciência sociológica proclamando segundo Sarmento 2006 um novo paradigma da sociologia da infância e também envolverse no processo de reconstrução da infância na sociedade PRONT JAMES Apud SARMENTO 2006 p 9 Já o termo criança considera aspectos biológicos do desenvolvimento corporal e aspectos temporais ou seja idade cronológica ser humano de pouca idade menino ou menina FERREIRA 2000 p 193 Conforme a legislação brasileira criança é pessoa de até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade PMSBC 2003 p 25 Diferentemente da Convenção Internacional dos Direitos da Criança que considera criança pessoa menor de 18 anos a menos que a lei do país estabeleça uma idade menor para a maior idade 29 11 A criança na psicanálise erotismo infantil Em sua clínica Freud nunca atendeu diretamente crianças Sua teoria sobre a sexualidade infantil foi fundamentada por meio da escuta de pessoas adultas Entretanto por volta do ano de 1909 recebeu a queixa por parte de uma pessoa conhecida de que o filho tinha adoecido psiquicamente Assim Freud aceitou intervir no sintoma do menino a partir do atendimento ao pai de Hans Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniram numa só pessoa e porque nela se combinavam o carinho afetivo com o interesse científico é que se pôde nesse único exemplo aplicar o método FREUD 1986 1909 p 15 Não vamos nos ater ao sintoma do pequeno Hans vamos citar a fase em que seu desenvolvimento estava indo bem Vamos nos debruçar no material exposto pelo pai durante as sessões de análise em que conta fatos do cotidiano da vida do filho a fim de ilustrar as hipóteses criadas por uma criança sobre a sexualidade Os pais de Hans usavam somente a coerção necessária deixando o menino livre para se desenvolver A criança se tornara um menino alegre e vivaz Assim como era esperado por volta dos três anos de idade inicia sua investigação com a pergunta à mãe Hans Mãe você também tem pipi Mãe Claro Por quê Hans Nada eu só estava pensando FREUD 1986 p 16 Nessa fase sempre fazia perguntas sobre a questão do pipi Quando viu ordenharem uma vaca disse olha está saindo leite do pipi dela e durante uma visita no zoológico disse em frente à jaula de um animal vi o pipi do leão e um dia disse ao pai que o achava que o pipi dele era tão grande quanto o de um cavalo Aos três anos sua mãe o viu tocar com a mão no pênis Ameaçandoo disse Mãe Se fizer isso de novo vou chamar o Dr A para cortar fora seu pipi Aí com o que você vai fazer pipi Hans Com meu traseiro FREUD 1986 p 17 Com três anos e nove meses pergunta ao pai se ele também tem pipi e o pai responde que sim Não satisfeito Hans pronuncia Mas eu nunca vi quando você tirava a roupa 30 Fica claro portanto que a investigação da criança é incessante sua curiosidade em resolver essa primeira dúvida da existência humana é o que lhe movimenta para prosseguir Hans ainda acha que a mãe é onipotente e sentese seguro mantendo essa fantasia Porém com a chegada de uma irmãzinha cai doente e em seu delírio febril ouviramno dizer Mas eu não quero uma irmãzinha FREUD 1986 p 20 Com a chegada do novo bebê percebe que a mãe vai amar também a outra criança e o adoecimento advém do medo de perder o amor da mãe essa completude mãebebê é ameaçada Contudo prossegue suas investigações Hans tem três anos e nove meses e ao observar o banho da irmã diz o pipi dela ainda é bem pequenininho quando ela crescer vai ficar bem maior FREUD 1986 p 20 Nessa época os pais de Hans permitiam que o menino eventualmente dormisse na cama com eles Isso era para Hans uma fonte de sentimentos eróticos do mesmo modo que para qualquer outra criança FREUD 1986 p 25 Aos quatro anos conta seu primeiro sonho ao pai Este envolvia a figura de Mariedl uma moça de quatorze anos ligada à família Dias depois diz ao pai quero que Mariedl venha dormir comigo Quando lhe foi dito que não podia pediu para dormir com a menina na casa dela e quando negado também esse pedido Hans com efeito pegou suas roupas e se dirigiu para a escada para ir dormir com Mariedl FREUD 1986 p 25 Apesar da pouca idade Hans tomou uma atitude de um verdadeiro homem frente ao impedimento de sua mãe Dias depois passa a esperar todas as tardes uma linda menina de 8 anos que ia ao restaurante com os pais A mãe nota que o menino ficava inquieto com a ida da menina ao restaurante então Não desejando deixar Hans naquele estado extenuado ao qual fora levado por sua paixão pela menina providenciei que se conhecessem e convidei a menina para vir vêlo no jardim depois que ele tivesse terminado sua sesta à tarde Hans estava tão excitado com a expectativa da vinda da menina que pela primeira vez não conseguiu dormir de tarde e ficou se revirando na cama inquieto Quando sua mãe perguntou Por que você não está dormindo Você está pensando na menina ele disse Sim como uma expressão de felicidade E quando chegou em casa vindo do restaurante disse para todo o mundo de casa Sabe a minha menina vem verme hoje FREUD 1986 p 26 31 Em uma manhã dos seus quatro anos e três meses a mãe de Hans após darlhe o banho diário secao e aplicalhe talco em volta de seu pênis e toma cuidado para não tocalo o menino diz Hans Por que é que você não põe o seu dedo aí Mãe Por que isso seria porcaria Hans Que é isso Porcaria Por quê Mãe Porque não é correto Hans rindo disse Mas é muito divertido FREUD 1986 p 26 grifo nosso Aos quatro anos e meio Hans se refere ao órgão sexual de sua irmã dizendo alegremente que seu pipi é bonito Essa é a primeira vez que ele reconhece a diferença entre os genitais masculinos e femininos em vez de negar sua existência FREUD 1986 p 28 No relato dessa experiência fica evidente a posição contrária da psicanálise frente às idéias de que a criança é um ser sacralizado e desprovido de sexualidade como a época vitoriana insistia em divulgar Muito pelo contrário o caso do pequeno Hans mostra que a sexualidade está desde sempre fazendo seus efeitos no sujeito humano Demonstra também que a criança interpela o adulto na busca dos prazeres oferecidos por algumas zonas de seu corpo Os pais de Hans encararam a situação com tranqüilidade e impuseram os limites necessários aos impulsos do menino O autor também revelou a importância de observar diretamente crianças sem o intermédio dos adultos para abstrair em primeira mão e em todo o frescor da vida os impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos dentre seus próprios escombros FREUD 1986 p16 Encoraja outros colegas a pesquisar sobre a vida sexual das crianças cuja existência via de regra tem sido argutamente desprezada ou deliberadamente negada FREUD 1986 p16 Seu incentivo ao desenvolvimento de pesquisas sobre a o erotismo infantil foi frutífero Outros psicanalistas prosseguiram as pesquisas com crianças e revelaram que a intervenção analítica precoce incluindo ou não os pais poderia ajudar e muito a remissão de sintomas em crianças pequenas 32 12 Menino e menina fases da fantasia Uma das grandes contribuições da psicanálise para o entendimento do que é o infantil está no fato de considerar que a diferença de anatomia entre os sexos é fundamental para a primeira etapa da constituição psíquica do bebê humano Apesar de ir se afastando gradativamente das questões biológicas e incluindo a dimensão da linguagem para a explicação dos sintomas humanos no primeiro momento da estruturação psíquica o que a criança vai fazer com a questão anatômica dito de outro modo que posicionamentos irá tomar a partir da descoberta dessa diferença é essencial Ao contrário do movimento incipiente de liberação das mulheres Freud coloca que não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negociações dos feministas que estão ansiosos por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente iguais em posição e valor FREUD 1986 1925 p 286 Esta foi uma das falas freudianas que fez com que o movimento feminista passasse a considerálo machista e a discordar de suas idéias Entretanto no mesmo texto o autor demonstra uma posição imparcial do ponto de vista ideológico reforçando sua posição de cientista e investigador dizendo concordamos de boa vontade que a maioria dos homens está muito aquém do ideal masculino e que todos os indivíduos humanos em resultado de sua posição bissexual e da herança cruzada combinam entre si características tanto masculinas quanto femininas de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdos incertos FREUD 1986 p 286 Freud por meio de sua escuta clínica observou que a menina quando descobre que seus órgãos genitais são insatisfatórios ou seja que ela não tem pênis começa a demonstrar ciúmes de outras crianças porque passa a crer que sua mãe gosta mais dessa outra criança do que dela A criança preferida pela mãe se torna o primeiro objeto da fantasia de espancamento Depois transforma o pai em seu objeto de amor e a mãe tornase objeto de seu ciúme A menina transformase em uma pequena mulher FREUD 1986 1925 p 286 grifo nosso Essa fantasia ocorre no período entre 3 e 5 anos de idade O autor se intrigou com a freqüência com que as pessoas que procuravam um tratamento analítico relatavam lembranças de espancamento na infância Sua surpresa advinha 33 do fato de que aqueles que descreviam tais cenas não haviam sido educados com atitudes violentas Assim prosseguiu com suas investigações Descobriu que a fantasia é formada por três fases tanto para o menino quando para a menina Contudo para sua surpresa não há uma analogia completa entre elas Percebeu que a forma com que as fases da fantasia apareciam no processo de rememoração de pacientes mulheres e homens eram diferentes Para a menina na primeira fase lembrase de uma cena de espancamento em que a criança é conhecida um irmão irmã ou coleguinha e a identidade do espancador é obscura Logo a seguir reconhece o pai como aquele que bate na criança Na segunda fase a pessoa que bate continua sendo o pai mas a criança que apanha tornase aquela que produz a fantasia Estou sendo espancada pelo meu pai FREUD 1986 1919 p201 Freud ressalta que essa segunda fase é inconsciente e resultado de uma construção em análise e que provavelmente não aconteceu na realidade Na terceira e última fase a pessoa que espanca volta a se tornar desconhecida às vezes o pai é substituído por um professor e a criança que relata volta a assistir a cena FREUD 1986 p 201 Essa cena retrata invariavelmente imagens de meninos desconhecidos que estão sendo espancados Quanto à menina fantasiar meninos sendo espancados isso se deve a uma certa raiva do pai por têla separado de sua mãe e se identifica com a figura masculina Assim as meninas deixam de lado sua feminilidade querendo ser meninos por isso fantasiam que eles estão apanhando A provável função da fantasia da primeira fase consciente é a de gratificar o ciúme e o egoísmo da criança papai só ama a mim e não a outra criança pois está batendo nela Contém assim certa dose de sadismo Logo depois surge uma fantasia de conteúdos masoquistas inconsciente provocados pelo sentimento de culpa não ele não ama você porque está batendo em você ainda com a função de realizar o amor incestuoso pois podemos pensar que ato de bater substitui a relação genital Na última fase consciente já sob o efeito do componente repressivo a fantasia re encobre a segunda lembrança obscurecendo a identidade dos personagens No caso dos meninos a primeira fase é rememorada com a mãe espancando uma criança qualquer Na segunda fase o menino que produz a fantasia passa a ser a criança espancada pela mãe porém esse fato é lembrado conscientemente pelo menino Na terceira fase a figura do menino se mantém como sofrendo espancamento embora logo tenha substituído a própria mãe pela mãe dos colegas ou outras mulheres FREUD 1986 p 205 Na lembrança dos meninos o que está recalcado é um estágio anterior ao da primeira cena 34 que se constitui no seguinte Estou sendo espancado pelo meu pai Na menina essa lembrança corresponde ao segundo estágio Então no menino a fantasia de estar sendo espancado pela mãe toma o lugar da terceira fase da menina quando meninos estranhos estão sendo surrados O que permanece inconsciente e só é rememorado num processo de análise é o espancamento pelo pai que simboliza sou amado pelo meu pai A fantasia de espancamento do menino deriva de uma atitude passiva em relação ao pai tal como na menina Ele modifica a figura do sexo de quem bate colocando a mãe no lugar do pai e mantém sua própria figura A pessoa que está batendo e a que está apanhando são de sexos opostos O que é recalcado é sua homossexualidade Assim sentese como uma mulher em suas fantasias conscientes e dota as mulheres que o espancam de atributos e características masculinas FREUD 1986 p 214 Para a psicanálise a conseqüência psíquica da diferença anatômica entre os sexos é a determinação da construção da feminilidade em que a castração foi executada e masculinidade em que a castração foi apenas ameaçada levando em consideração a singularidade de cada sujeito no atravessamento dessa fase da vida psíquica Mesmo assim em ambos os sexos a fantasia masoquista de ser espancado pelo pai ainda que não a fantasia de ser amado por ele continua a viver no inconsciente depois que ocorreu a repressão FREUD 1986 p 214 O autor ainda ressalta a importância da segunda fase da fantasia nas meninas que mesmo inconscientes podem interferir diretamente do cotidiano de suas vidas pois pessoas que abrigam fantasiam dessa espécie desenvolvem uma sensibilidade e uma irritabilidade especial contra quem quer que possam incluir na categoria de pai São facilmente ofendidas por uma pessoa assim e desse modo para sua própria tristeza efetuam a realização da situação imaginada de serem espancadas pelo pai FREUD 1986 p 210 Prates Silva nos esclarece que a sexualidade infantil deve nos remeter necessariamente à lógica da construção da fantasia Dessa forma Freud substitui a compreensão da sexualidade infantil a partir de uma visão desenvolvimentista ou educacional por outra que enfatiza a fantasia PRATES SILVA 2006 p 56 Para a psicanálise a angústia da castração faz com que o sujeito se defenda se inicie na linguagem e construa suas primeiras hipóteses infantis Porém o que constrói fica no 35 âmbito do conhecimento pois é um desdobramento fantasioso do desejo incestuoso Assim nenhum saber transmitido aplacará a solidão e a certeza de sua concepção só há um sexo e a mãe não é castrada Esta luta irreal esta mentira de todos os dias irriga o verde paraíso da infância POMMIER 1998 p 30 Logo a amnésia infantil apagará da consciência as angústias advindas do fracasso das teorias sexuais infantis Este é o fim da fase de latência dando lugar à neurose infantil adulta 13 Annafreudismo Kleinismo e os independentes Anna Freud nasceu em Viena em 1895 Foi a sexta e última filha de Sigmund e Martha Freud Tornouse professora primária e seu primeiro contato com o movimento psicanalítico ocorreu em 1913 por meio de Ernest Jones em uma viagem a Londres Interessouse pelo campo da psicanálise com crianças a partir dos incentivos por parte de Freud aos colegas para desenvolverem pesquisas nessa área Em 1922 apresentou seu primeiro trabalho à Wiener Psychoanalytiche Vereinigung WPV Fantasias e devaneios diurnos de uma criança espancada e em 1927 publica sua principal obra O tratamento psicanalítico das crianças Suas concepções seguiam o caminho do pai que após a análise do pequeno Hans considerava que a criança era frágil demais para ser submetida ao verdadeiro processo de análise Defendia o princípio de tratamento sob a responsabilidade da família e dos parentes e a tutela das instituições educativas Segundo ela na criança havia uma falta de maturidade do supereu Nesse campo a abordagem analítica deveria ser integrada à ação educativa ROUDINESCO PLON 1998 p 259 Em 1926 afirma que as crianças não se mostram inclinadas a exercitar a associação livre e assim sendo nos obrigam a procurar um substitutivo deste instrumento ANNA FREUD apud SILVA 2006 p 82 Segundo a autora por serem seres imaturos e dependentes não são capazes de contar a própria história por isso o analista deve buscar as informações com os pais Assim lidava com os pais da realidade como fez Freud na análise do pequeno Hans Sua vocação para educadora fez com que abrisse uma escola especial que depois passou a ser freqüentada por crianças filhos de pais simpatizantes à psicanálise e em 1937 fundou um pensionato para crianças pobres Jacson Nursey inspirado no abrigo de Maria 36 Montessori Criou o Kindersoeminar seminário de crianças que formava terapeutas capazes de aplicar os princípios da psicanálise à educação fomentando a invenção de uma pedagogia psicanalítica Dessa forma o analista deveria exercer o duplo papel de analisar e educar Segundo Roudinesco a ausência de teorização sobre os laços do filho com a mãe era o ponto fraco da doutrina annafreudiana Aos olhos de Anna só contava a relação com o pai Daí a prioridade dada à pedagogia do eu em detrimento da exploração inconsciente ROUDINESCO PLON 1998 p 259 Entretanto seu pensamento foi bem aceito nos Estados Unidos principalmente pela importância que dava aos mecanismos de defesa o que marcou o surgimento do annafreudismo Ana Freud faleceu em Londres em 1982 Melanie Klein nascida em Viena em 1882 filha de pai judeu polonês foi primeiramente analisada por Ferenczi e posteriormente por Karl Abrahan Relata a presença de uma mãe bastante tirana que na juventude foi marcada por uma série de lutos morte de dois irmãos e desaparecimento do pai doente quando tinha 18 anos A psicanalista contribuiu ao alavancar as pesquisas psicanalíticas com crianças contrapondose às teorias de Anna Freud Em 1919 Klein entrou para a Sociedade de Psicanálise de Budapeste após se encantar com a apresentação de Freud no V Congresso Internacional Psychoanalytical Association IPA que aconteceu nesta cidade considerada por ele como o centro do movimento psicanalítico da época ROUDINESCO PLON 1998 p 431 Na apresentação do seu trabalho intitulado Linhas de progresso da terapêutica analítica Freud resume o que consiste o método psicanalítico Aponta para a importância de sua disseminação entre as classes mais pobres e constata que há poucos psicanalistas para atender a tantos espalhados pelo mundo que precisam de ajuda Diz Os senhores sabem que as nossas atividades terapêuticas não têm um alcance muito vasto Somos apenas um pequeno grupo e mesmo trabalhando muito cada um pode dedicarse num ano somente a um pequeno número de pacientes Comparada à enorme quantidade de miséria neurótica que existe no mundo FREUD 1986 1919 p 180 Assim Klein passou a dedicarse ao progresso dessa ciência e em abril de 1924 apresenta suas idéias no VIII congresso da IPA em Saltzburgo com o apoio de Ernest Jones e seu analista Karl Abrahan Em dezembro do mesmo ano a psicanalista vai a Viena para falar sobre seu trabalho na Winer Psychoanalytische Vereinigung WPV e confrontase com Anna 37 Freud O debate estava então aberto e trataria do que devia ser a psicanálise de crianças uma forma nova e aperfeiçoada de pedagogia posição definida por Anna Freud ou a oportunidade de uma exploração psicanalítica do funcionamento psíquico desde o nascimento como queria Melanie Klein ROUDINESCO PLON 1998 p 432 Em 1926 Klein estabeleceuse em Londres e apoiada por Jones tenta sem êxito o apoio de Freud Assim desenvolve a escola inglesa de psicanálise em contraposição com a escola vienense Defendia que a análise poderia ser aplicada a qualquer criança enquanto Anna acreditava que essa só era possível quando a neurose da criança se manifestasse com o mal estar parental Klein valoriza a relação da criança com a mãe e modifica a teoria freudiana freudiana sobre o lugar do pai sobre o complexo de Édipo e sobre a gênese da neurose e da sexualidade numa elucidação da relação arcaica com a mãe numa evidenciação do ódio primitivo inveja próprio da relação de objeto ROUDINESCO PLON 1998 p 434 A psicanalista acreditava ainda que a transferência na análise de crianças só era possível quando separada da sua vida familiar com o mínimo de contato do analista com seus pais Diz constitui sempre parte da minha técnica não exercer influência educativa ou moral mas unicamente o procedimento psicanalítico o qual sucintamente consiste em compreender a mente do paciente e em comunicarlhe o que se passa nela KLEIN apud PRATES SILVA 2006 p 88 Inovou o campo criando a técnica com brinquedos atribuindolhe importância fundamental no tratamento de crianças Para a autora o deslocamento das brincadeiras infantis no processo de análise corresponderia à associação livre que o adulto expressa verbalmente Klein incluiu também no campo da psicanálise o tratamento das psicoses No atendimento de Dick uma criança autista de quatro anos percebeu que ele apresentava sintomas jamais encontrados não expressava nenhuma emoção nenhum apego e não se interessava pelos brinquedos A história desse caso se tornaria célebre ROUDINESCO PLON 1998 p 433 Essa análise atravessou toda a adolescência do menino que consegui redimir muitos de seus sintomas Devido a sua constituição como um sistema próprio de pensamento a criação de novos conceitos efetivação de uma prática original em análise e uma formação didática diferente do freudismo clássico a teoria de Klein provocou uma ruptura da Brytish Psychoanalytical Society BPS em três tendências somente oficializada em 1946 38 Annafreudismo Kleinismo e os independentes Essa última contou com a colaboração de Donald Woods Winnicott A psicanalista faleceu em Londres em 1970 Winnicott nasceu em Plymouth em abril de 1896 terceiro filhoe único menino do Sr Frederick Winnicott rico comerciante e político da cidade Formouse em pediatria e fundou a psicanálise de crianças na GrãBretanha antes da chegada de Melanie Klein em Londres Não se posicionou nem a favor do annafreudismo nem do kleinismo Auxiliou Jones no acolhimento de Klein logo que ela chegou à Inglaterra e sempre expressou grande admiração pela psicanalista que foi sua supervisora e analista de sua segunda esposa porém não cedeu a nenhuma das suas exigências Assim mantendose independente das brigas e cisões ocasionadas pela diferença de posição das colegas elaborou uma teoria original sobre a relação de objeto do self si e do brincar Segundo o autor era o bom funcionamento do laço entre a mãe que permitiria à criança organizar seu eu de maneira sadia e estável estando atribuída à psicose o fracasso dessa relação O ambiente que circunda a criança é fundamental para sua estruturação psíquica Construiu conceitos e desenvolveu técnicas como o da mãe devotada comum a mãe suficientemente boa o jogo da espátula ou do rabisco o falso self e o verdadeiro e o objeto transicional O conceito de objeto transicional despertou interesse na comunidade analítica em geral inclusive em Lacan Continha a idéia de que no psiquismo humano havia uma área intermediária entre a realidade interna e a externa ocupada por imagens que tendem a se expandir por todo o campo cultural e está associado à idéia de mãe suficientemente boa que segundo o autor inicia se adaptando a quase todas as necessidade do bebê e com o passar do tempo e o desenvolvimento do bebê adaptase cada vez menos de modo gradativo segundo a crescente capacidade de o bebê lidar com o fracasso dela WINNICOTT apud PRATES SILVA 2006 p 93 Segundo Silva 2006 Winnicott fez questão de diferenciar o objeto transicional do objeto interno kleiniano já que o primeiro supõe o contrário do segundo a idéia de uma indistinção entre interno e externo p 92 Acreditava que a criança poderia ser atendida pelos próprios pais quando esses tivessem condições emocionais de sustentar o tratamento porém quando tratada pelo psicanalista deveria ser deixada livre entre os brinquedos e o ato de brincar poderia ser considerado como associação livre concordando assim com a tese kleiniana Contudo o brincar para o pediatra deveria ser incentivado sempre pois demonstrava a capacidade criativa de todo ser humano em qualquer idade 39 O psicanalista carregava ainda uma ausência de ortodoxia aos preceitos da BPS não respeitando por exemplo o tempo de sessão de uma hora Em determinado momento chegou a denunciar a hipocrisia das duas chefes da escola inglesa em carta escrita em 1954 é de importância vital para a sociedade a BPS que ambas destruam seus grupos em seu aspecto oficial Não tenho razões para pensar que viverei mais tempo que as srs mas ter de lidar com agrupamentos rígidos que com a sua morte se tornariam automaticamente instituições de Estado é uma perspectiva que me apavora WINNICOTT apud ROUDINESCO PLON 1998 p 785 Segundo Roudinesco Winnicott foi transgressor em sua prática rigoroso em sua doutrina e sempre apoiou os rebeldes e os dissidentes Na ocasião de sua morte em 1971 Pontallis escreveu na revista LArc e a Nouvelle Revue de Psychanalyse a qual lhe prestou homenagem Talvez não haja nenhum seguidor E é melhor assim Com mestres a psicanálise pode sobreviver durante algum tempo Sem juízes nem mestres ela tem a possibilidade de viver indefinidamente PONTALIS apud ROUDINESCO PLON 1998 p 785 14 A escola francesa Dolto e Mannoni são duas das representantes da psicanálise inspirada na teoria lacaniana Influenciadas pela teoria da primazia do significante de Lacan ambas priorizavam os desenhos e a fala da criança e não tanto a utilização de brinquedos A diferença da escola inglesa está na inclusão dos pais no tratamento de forma bastante ativa Françoise Dolto considerava que a criança é sujeita de si mesma desde a mais tenra idade Ao fazer isso ela as retirava do status social de infantes etimologicamente os que não têm direito à palavra Descobriu que uma palavra dirigida a um recémnascido que ainda não fala pode ter efeitos terapêuticos Foi por isso que sempre sugeriu aos pais que falassem com a criança de tudo o que lhes dissesse respeito falar a verdade desde o seu nascimento Porque o pior para um ser humano é o que fica privado de sentido o que não passou pela linguagem Acreditava que as crianças são tomadas pelo discurso dos pais e respondem sintomaticamente por esses discurso Assim para a autora o trabalho do analista deve 40 caminhar no sentido de falar com as crianças ainda que bem pequenas sobre os aspectos que normalmente ficam na ordem do nãodito para que elas possam ter acesso à possibilidade de simbolizar os capítulos censurados da história familiar PRATES SILVA 2006 p 100 Talvez devido a sua formação em pediatria se dedicou a trabalhos profiláticos em programas de rádio na década de 1970 em Paris os quais respondia dúvidas dos pais em relação ao relacionamento com seus filhos Em sua obra descreve o desenvolvimento da criança como uma série de castrações umbilical com o nascimento oral com o desmame anal quando começa a andar e aprender a usar o banheiro A cada vez a criança deve separarse de um mundo para se abrir a um mundo novo Cada uma dessas castrações é uma espécie de provação da qual a criança sai mais crescida e humanizada A responsabilidade dos pais é ajudála a superálas com sucesso Dolto era a favor do diálogo sempre não somente entre os membros da família mas também com as instâncias jurídicas quando os pais estavam em litígio Possui um uma opinião curiosa sobre o relacionamento das crianças com os juizes da vara de infância Diz A partir dos oito anos toda criança deveria poder comunicarse com o juiz todas as vezes que o desejasse O nome do juiz de menores deveria ser afixado em todas as escolas DOLTO 1991 p 130 Maud Mannoni interlocutora de Dolto e Lacan também priorizava a palavra ao brinquedo na análise de crianças e incluía a família no tratamento Considera que o jogo da criança deveria ser tomado como um texto a ser decifrado Trabalhou com crianças autistas psicóticas e portadoras de lesões orgânicas Discutiu a relevância do diagnóstico orgânico da doença já que o que importa para a constituição do sujeito é o lugar que ele ocupa no desejo e na fantasia dos pais Ressalta o papel fundamental do discurso parental reservandolhe um espaço de destaque no tratamento da criança Diz A criança que nos é trazida não está só já que ocupa um lugar determinado no fantasma de cada um dos pais É necessário de início contar com os pais e com a resistência deles e nossa MANONI 1999 p73 Se tomarmos o pensamento de Dolto e Mannoni vemos a relevância de suas teorias pois procuram captar o lugar da criança no contexto fantasmático familiar Assim suas intervenções caminham na direção não só de responsabilizar os pais frente ao sintoma da criança mas também de implicar a criança no sintoma que produz Assim o analista se torna um facilitador para que toda a família apropriese desse sintoma e a partir dessa apropriação 41 pais e criança juntos buscam as possibilidades de sua dissolução por meio da escuta do analista 42 Capítulo 2 DO CÓDIGO DE MENORES1 AO ESTATUTO Como os pais se colocam frente aos filhos E como os filhos se colocam frente aos pais É a questão mais difícil e central segundo Pierre Legendre 1992 que todos os sistemas institucionais do planeta devem resolver histórica política e juridicamente pois é aí que o princípio da vida está ancorado Ou seja como ordenar o poder genealógico Qual a relação entre o Direito e a vida BRANDÃO 2004 p 21 No presente capítulo trataremos dos motivos que levaram a sociedade a se preocupar em construir leis específicas para a infância e a adolescência Contextualizaremos o momento em que os direitos fundamentais da criança e do adolescente foram recepcionados pelo texto constitucional e em seguida na legislação ordinária Destacaremos o período entre a instauração dos Tribunais de Menores regidos pelo Código de Menores e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente A partir do momento em que a nossa sociedade começa a distinguir a criança do adulto o que ocorreu no final do século XVII e no início do século XVIII a categoria infância começa a ser identificada pelo tecido social Surgem as escolas lugar onde essa parte do tecido social deveria estar a maior parte do tempo Segundo Machado em meados do século XX o pósguerra gerou uma imensa massa de crianças e adolescentes que não tinham acesso à nova instituição escola Este grupo de criança nãoescola em sua grande maioria inserida muito precocemente no mercado de trabalho em condições subumanas de exploração viveu por séculos em completa marginalização em situação de fome de elevadíssimas taxas de mortalidade em suma de profunda miséria MACHADO 2003 p 29 1 A terminologia menor ainda está sendo empregada pelo próprio processo histórico mas já é uma questão superada no segmento criança e adolescente mesmo que alguns espaços ainda utilizem esta terminologia 43 O cenário de exclusão social levou ao aumento da criminalidade infantojuvenil cometida por aqueles provenientes de classes sociais mais pobres Na Europa esse fato passou a incomodar toda a sociedade A preocupação com o suposto1 aumento da criminalidade infantojuvenil fez com que toda infância proveniente de classes sociais menos abastadas fosse considerada delinqüente E assim historicamente se construiu a categoria criança nãoescola não família criança desviante criança em situação irregular enfim carentedelinqüente que passa a receber um mesmo tratamento e a se distinguir de nossos filhos que sempre foram vistos simplesmente como crianças e jovens compondo uma nova categoria os menores MACHADO 2003 p 33 É com fundamento nesses pressupostos filosóficos e sociológicos de infância carentedelinqüente que a sociedade vai construir as leis específicas para a infância Essa concepção sobre o menor que já porta a marca da exclusão vai subsidiar o que virá a ser chamado de Direito especial encampado no Código Civil dos diversos países Foi nos Estados Unidos que o Direito do menor teve sua origem De acordo com a tradição jurídica desse país essa nova modalidade do Direito teve como objetivo os aspectos operacionais e não uma preocupação com a consolidação das linhas e princípios de atuação dessa nova área Assim a ação principal foi de criar os Tribunais de Menores O primeiro foi implantado na cidade de Íllinois em 1899 Em junho de 1911 foi realizado em Paris o primeiro Congresso Internacional de Menores o qual estimulou a criação dos juízos de menores por toda a Europa e América Latina Influenciados pela experiência americana outros países aderiram à concepção criando seus próprios juízos especiais Inglaterra em 1905 Alemanha em 1908 Portugal e Hungria em 1911 França em 1912 Argentina em 1921 Japão em 1922 Brasil em 1923 Espanha em 1924 México em 1927 e Chile em 1928 MACHADO 2003 p 34 1 A autora ressalta a palavra suposto porque os autores não apresentam estatísticas anteriores nem dados comparativos confiáveis com a criminalidade dos adultos que possam autorizar a certeza de que a criminalidade juvenil estava crescendo de maneira diversa da criminalidade em geral MACHADO 2003 p 31 nota de rodapé 12 44 O primeiro tribunal de menores brasileiro foi inaugurado em 24 de dezembro de 1923 no município do Rio de Janeiro que na época era a capital da República seguido de São Paulo que o implantou em dezembro do ano seguinte Segundo Mendes 2003 essas instâncias jurídicas tinham como função salvaguardar crianças desassistidas socialmente às exigências da defesa social criandose assim um controle social da infância marginalizada socialmente apud MACHADO 2003 p 35 De acordo com Porto 1999 até o século passado o mesmo sistema penal era aplicado a adultos e crianças no máximo prescreviase uma pena menor em um terço Mesmo com os tribunais de menores funcionando o Código de Menores brasileiro foi sancionado somente em 1979 Lei federal n 66971979 e o papel do juiz de menores era como o de um bom pai de família que deve decidir levando em conta o princípio da livre convicção Até então havia um sistema social e penal de controle da infância socialmente desassistida como meio de defesa social em face da criminalidade juvenil que somente se revelou possível em razão da identificação jurídica e ideológica entre infância carente e infância delinqüente MACHADO 2003 p 42 Machado compartilha da idéia de que o Código de Menores teve sua base na doutrina da situação irregular ou seja somente aqueles sem assistência social sem família ou de origem pobre seriam abarcados por esse sistema 21 Da premissa da situação irregular ao artigo 227 Art 227 É dever da família da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade o direito à vida à saúde à alimentação à educação ao lazer à profissionalização à cultura à dignidade ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária além de colocálos a salvo de toda forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opressão BRASIL 1988 1994 Situação irregular foi o termo encontrado para as situações que fugiam ao padrão normal da sociedade saudável em que se pensava viver PORTO 1999 p 78 Nessa situação estavam os miseráveis abandonados aqueles que sofriam maustratos e também os infratores 45 Para que o menor fosse preso não era necessário que cometesse algum ato ilegal O Código de Menores dava poderes ao juiz de menores para internar por um período sempre superior a dois anos todos aqueles que se enquadrassem na chamada situação irregular sob a justificativa de que esta era uma medida de proteção àquele menor O menor não era julgado por seu ato o que se levava em consideração era se esse menor se enquadrava ou não na situação irregular Foi assim que surgiu a famosa Fundação do Bemestar do Menor Febem lugar em que os menores infratores eram misturados com os que estavam em situação irregular Aqueles que completavam 18 anos e o juiz julgasse que deveriam continuar internados eram recambiados para uma entidade correcional de adultos e não tinham o direito de defesa Não é necessário dizer aqui os reflexos da aplicação do Código de menores na vida de nossas crianças e adolescentes A situação em que muitas se encontravam sobretudo as privadas de liberdade as constantes violações de direitos por parte de órgãos do próprio Estado como a polícia a visão estreita preconceituosa discriminadora que a sociedade possuía dos menores foi fruto em grande parte dos erros cometidos na elaboração do Código PORTO 1999 p 82 A criança em situação regular era aquela criada no seio família que podia ou não freqüentar escola e que tinha suas necessidades básicas de saúde educação e moradia supridas por seus responsáveis Não importava a qualidade das relações familiares e se os adultos que exerciam a função paterna ou materna se excediam ao aplicar castigos ou até mesmo se cometiam abuso sexual a suas crianças As atitudes de um pai padrasto ou responsável não eram questionadas pelo menos de maneira explícita Um pai tinha o poder absoluto sobre a educação dos filhos Basta ouvirmos as histórias contadas por nossos pais tios ou avós Vejamos um pequeno depoimento de uma senhora de 69 anos nascida no interior do Rio de Janeiro no ano de 1936 Quando escutávamos o barulho do carro de meu pai todos os filhos já de banho tomado e arrumados corriam e sentavamse no banco da varanda Assim que ele chegava olhava nos olhos de cada um e por último da minha mãe Era um momento de expectativa para nós pois se ele achasse que algo estava errado tirava a cinta da cintura e ali mesmo aplicava o castigo surras e xingamento e todos tinham de assistir sem poder ajudar 46 Este era um ritual que terminou só quando meu pai faleceu Eu ia fazer sete anos2 A época a que se refere esse relato é por volta do ano de 1942 dezenove anos depois da implantação dos tribunais de menores Essa senhora nos diz que não havia como interferir em uma situação de maustratos quando diz e todos tinham de assistir sem poder ajudar Isso demonstra que os tribunais não intervinham no âmbito das relações familiares Outro movimento internacional que pautava o tema da infância e juventude ocorreu em 1924 quando uma declaração foi adotada pela Liga das Nações antecessora da Organização das Nações Unidas ONU cujo texto serviu de base para a Declaração Universal dos Direitos da Criança3 em 1959 Esses movimentos fizeram com que a proteção a seus direitos começasse a ganhar força Logo se desvelou um processo de mudança de paradigma em relação ao lugar da criança na nossa cultura não somente no interior do sistema de justiça mas também em toda a sociedade Ela já não era considerada como adulto em miniatura mas como ser humano completo em situação peculiar de desenvolvimento no plano sóciojurídico portanto como cidadão Mesmo após a Declaração Universal dos Direitos da Criança levou um tempo para que começassem a ocorrer mudanças efetivas propostas por parte do sistema de justiça O próprio Código de Menores criado 20 anos depois da promulgação da Declaração ainda não abarcava as mudanças apontadas pela nova maneira de encarar a infância e a adolescência Contudo o processo de adaptação da sociedade ao novo modelo proposto pela assembléia da ONU da qual o Brasil foi e ainda é signatário não havia sido encerrado pelo contrário estava apenas começando A sociedade foi percebendo cada vez mais que as leis vigentes e os pressupostos que as embasavam não eram suficientes para responder por toda complexidade de demandas oriundas desse mais novo tecido social chamado infância e juventude Em contraposição à concepção do direito do menor nasceu o paradigma da proteção integral que parte do pressuposto de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito em relação a todas as instâncias da sociedade família escola Estado e justiça 2 Depoimento da avó de uma criança atendida em um Centro de Referência para atendimento a vítimas de violência sexual na cidade de São Paulo 3 Em 1948 a ONU havia sancionado a Declaração Universal dos Direitos do Homem 47 Setores da sociedade brasileira que compartilhavam dessa idéia movimentaramse para alinhar o sistema de justiça brasileiro à nova concepção da criança como sujeito de direitos Esse movimento tomou grande força protagonizando uma das primeiras histórias no cenário brasileiro sobre a participação da sociedade civil na construção do Estado Democrático de Direito no campo legislativo quando foi entregue à Assembléia Constituinte um manifesto em favor da redação do artigo 227 da Constituição Federal com cerca de cinco milhões de assinaturas COSTA 2004 p 11 22 Da convenção da ONU ao Estatuto Em 20 de novembro de 1989 a Assembléia Geral das Nações Unidas reuniuse em Genebra e subscreveu a Convenção sobre o Direito da Criança4 Os países signatários se comprometeram a ajustar seu sistema de justiça aos preceitos da Convenção Assumiram a responsabilidade de garantir os direitos das crianças e de vigiar para que isso fosse cumprido A sociedade solicitava um salto no entendimento das questões da criança e do adolescente5 em relação à legislação vigente visto que todos os estudos apontavam para a criança como sujeitos em momento peculiar de vida pois estão em processo de desenvolvimento físico e mental e a qualidade dessa formação dependerá do futuro do país PORTO 1999 p 28 Depois de assumido o compromisso internacionalmente o Brasil que vivenciava a renovação de seu Estado democrático empenhouse por meio do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente CONANDA para que a Convenção fosse transformada em lei Como já mencionamos foram mais de cinco milhões de assinaturas reivindicando a redação pelo senado e aprovação pela câmara do artigo 227 da Constituição Federal Assim no clima de um país que aproveitava para modernizar seu sistema de justiça com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e no calor dos movimentos populares que reestruturavam os espaços democráticos da nação em 13 de julho de 1990 foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente 4 O artigo 1º da Convenção reza Art 1º Entendese por criança todo ser humano menor de 18 anos de idade 5 O artigo 2 do ECA reza Art 2º Considerase criança para os efeitos desta Lei a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 doze e 18 dezoito anos de idade 48 Após esse fato houve uma intensa mobilização nacional para responder às mudanças ocorridas na legislação sobre a infância no país No rastro da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente sob intensa mobilização social e política visando o conhecimento e implementação dos direitos postos surgem os Centros de Defesa PAVAN 2003 p 3276 Acompanhados de vários movimentos da sociedade civil em defesa da criança muitos desses movimentos se transformaram em ONGs7 Assim foi implantado no Brasil o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e Adolescentes em consonância com o Estatuto Segundo Porto com a nova legislação vigente o poder sobre a criança pode ser usado somente em sua defesa considerando o pátrio poder como um poderdever e acrescenta aos pais é atribuída uma carga de obrigações que deverão realizar em benefício dos filhos só podendo usar seu poder para a realização de tais deveres Um exemplo o poder de fazer o filho obedecer só pode ser utilizado para educálo e protegêlo nos limites que permitam não se enxergar abuso ou constrangimento desnecessário PORTO 1999 p 27 Podemos dizer que houve uma mudança de paradigma no sistema de justiça sobre a concepção da infância e juventude Foi uma mudança radical no entendimento do que é uma criança ou adolescente para a sociedade A criança passou a ocupar um lugar de sujeito de direito A seguir apresentamos como a justiça se estruturou para atender às demandas da infância e juventude brasileira 23 A estrutura do Estatuto implicações ao psicólogo O ECA é composto por 267 artigos e dividido em duas grandes partes Livro I composto por 85 artigos que dão um panorama geral da lei e Livro II composto por 182 artigos que vão detalhar melhor os artigos da primeira parte Logo nas Disposições Preliminares o Estatuto delimita a idade cronológica em que esta lei será aplicada Criança com até 12 anos incompletos e adolescentes com até 18 anos de Diferente da Convenção de Genebra e do sistema de justiça de outros países que consideram criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade 6 Rui Pavan chefe de escritório da United Nations childrens fund Unicef na Bahia e Sergipe 7 Organizações Não Governamentais 49 idade diferentemente da convenção da ONU que considera criança todos os menores de 18 anos Essa diferença na categorização da idade da criança demonstra que a lei brasileira contempla a existência da adolescência no corpo de seu texto Na parte que desenha a filosofia geral do Estatuto destacaremos o artigo 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opressão punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais PMSB 2003 p 288 O ECA considera seis os direitos fundamentais ou seja condições a serem garantidas a todas as crianças e adolescentes brasileiros São eles o direito à vida à saúde à educação à cultura ao esporte e ao lazer Enquadra como violação dos direitos fundamentais os maus tratos Art 13 Os casos de suspeita ou confirmação de maustratos contra crianças e adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade sem prejuízo de outras providências legais PMSBC 2003 p 26 grifo nosso A obrigatoriedade da notificação é motivo de muitos conflitos para os psicólogos que escutam crianças e adolescentes em situação de violência Esse assunto desperta muitas dúvidas nos psicólogos que trabalham na área A gente tem que esperar o momento certo de denunciar acho que é uma visão de saúde mental o Direito não entende André vide anexo O texto ressalta que toda comunidade é responsável pela proteção Art 70 É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente Envolve especialmente os profissionais da área de educação na prevenção aos maus tratos na infância Art 56 Os dirigentes dos estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de I maustratos envolvendo seus alunos Adiante prevê a responsabilização daqueles que se omitirem Art 73 A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade da pessoa física ou jurídica nos termos desta lei PMSBC 2003 p 374041 Há previsão de penalidade para o crime da omissão por parte dos profissionais ela é tratada como uma infração administrativa Art 245 Deixar o médico professor ou responsável pelo estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental préescola ou creche de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento envolvendo suspeita ou confirmação de maustratos contra a criança ou 50 adolescente Pena multa de 3 três a 20 vinte salários de referência aplicandose o dobro em caso de reincidência PMSBC 2003 p 8990 Logo o psicólogo também está obrigado a efetuar notificação ao Conselho Tutelar caso saiba de alguma criança com a suspeita de estar em situação de violência No que se refere à política de atendimento essa é melhor detalhada no Livro II Art 86 A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente farseá através de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios E continua no inciso III do artigo 87 III serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência maustratos exploração abuso crueldade e opressão PMSBC 2003 p 43 Quanto às medidas aplicadas aos pais ou responsáveis quando enquadrados nos casos de maus tratos o inciso III do artigo 129 reza I encaminhamento para programa oficial ou comunitário de promoção à família III encaminhamento para tratamento psicológico ou psiquiátrico e ainda menciona Art 130 Verificada a hipótese de maustratos opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável a autoridade judiciária poderá determinar como medida cautelar o afastamento do agressor da moradia comum PMSBC 2003 p 5859 Ambos os artigos citados 129 e 130 são essenciais para nossa pesquisa pois há pais que são obrigados a freqüentar os programas de atendimento como medida de proteção à criança aplicada pelo Conselho ou juiz da infância e juventude Às vezes o juiz ou conselheiro pedem relatórios ao psicólogo demandando sobre sua opinião em casos de suspeita de maustratos Com os laudos ou pareceres o juiz pode de acordo com seu entendimento promover o afastamento do agressor do lar Art 151 Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local fornecer subsídios por escrito mediante laudos ou verbalmente na audiência e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento orientação encaminhamento prevenção e outros tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico BRASIL Lei nº 80691990 8 Embora tenha sido mencionado no parágrafo o Estatuto a fonte de pesquisa foi a publicação feita pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente CMDCA em parceria com a Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo PMSB 51 Fica claro que nosso sujeito será convocado pela instância jurídica para confirmar a suspeita de maustratos sofridos pela criança ou adolescente O seu posicionamento fundado em laudos e relatórios pode ser decisivo para o afastamento ou não do suposto agressor A lei fala também sobre a elaboração a implantação a implementação e o financiamento das políticas de prevenção e atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência Segue o preceito da descentralização o que dá aos Estados e Municípios poderes de dizer qual direção a política local vai seguir nas diferentes áreas inclusive com relação ao enfrentamento do fenômeno da violência contra crianças e adolescentes As decisões tomadas nesses órgãos vão influenciar direta ou indiretamente as condições de trabalho de nosso sujeito Uma considerável parte das verbas destinadas a pagamentos de salário manutenção de infraestrutura pagamento de supervisão sairá das deliberações dessas instâncias Nesses artigos fica claro que a sociedade deve ter equipamentos sociais com a missão de prestar atendimento a crianças e adolescentes em situação de maustratos Assim a comunidade se mobilizou para cumprilos criando equipamentos específicos para receber esse público Nesses equipamentos estão inseridos os sujeitos da nossa pesquisa os psicólogos que escuta esse fenômeno 24 A Proteção especial Uma das medidas de proteção especial prevista pelo ECA é a possibilidade de que a criança em situação de violência tenha um acompanhamento psicossocial Citaremos duas formas de promoção do atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual Uma oriunda da mobilização da sociedade civil o Centro Regional de Atenção aos Maustratos na Infância CRAMI que funciona em três cidades do ABC paulista e outra advinda de iniciativa governamental o Sentinela Programa do Governo Federal implantado em mais de 300 municípios brasileiros entre os anos de 2002 e 2004 O CRAMIABCD foi fundado em 1988 por profissionais da área médica e social da cidade de Santo André que Na prática profissional percebiam que muitas vezes as crianças que chegavam machucadas geralmente por supostas quedas ou outros 52 acidentes tinham na verdade sido vítimas da violência de seus pais O abuso sexual doméstico também era observado quando recebiam crianças com doenças sexualmente transmissíveis ou com lacerações nos órgãos genitais entre outros quadros clínicos MAGALHÃES 2003 p 61 Essa entidade tem a peculiaridade de ter sido criada anteriormente à promulgação do ECA e portanto sua fundação é anterior à criação dos Conselhos Tutelares órgãos regulamentados somente após a promulgação do Estatuto Assim a entidade tinha a função tanto de receber as notificações como de prestar atendimento psicossocial ao público em questão Sua missão foi definida assim registro tratamento e reabilitação das situações de violência doméstica contra crianças e adolescentes CRAMIABCD 2000 apud MAGALHÃES 2003 p 63 Mesmo após a criação dos Conselhos Tutelares a entidade continuou recebendo notificações Essa dupla função de registro ou seja recebimento de notificação e conseqüente encaminhamento dos casos para tratamento na mesma instituição onde foi feita a denúncia pode causar certa confusão em relação ao lugar do psicólogo na condução do tratamento gerando assim certo malestar O Programa Sentinela criado pelo Governo Federal em 2002 tendo como inspiração as experiências bemsucedidas que há tempos vêm sendo operadas pelo CEDECABahia CRAMI e CEARAS em São Paulo SENAIDF 2002 p 3 Funciona da seguinte forma o governo federal repassa a verba para os municípios selecionados a partir de critérios previamente estabelecidos com o compromisso de implantar ou implementar o Conselho Tutelar apresentação de um plano de ação integrada de enfrentamento à violência sexual infantojuvenil aprovada pelos conselhos municipais de assistência social e dos direitos da criança e do adolescente SENAI 2002 p 8 Cabe ao município selecionado fazer o credenciamento das entidades sociais ou secretarias municipais que receberão a verba As entidades beneficiadas devem utilizar o recurso para contratação de profissionais como psicólogo assistente social educador médico entre outros É vetado o gasto com infra estrutura como pagamento de aluguéis ou compra de equipamentos Há uma pequena soma destinada à compra de material psicopedagógico Para o Programa Sentinela o Governo Federal destinou recursos públicos para pagamento dos recursos humanos necessários ao atendimento especializado a crianças e adolescentes em situação de violência sexual abrindo assim campo de trabalho para nosso sujeito 53 Capítulo 3 REFLETINDO SOBRE VIOLÊNCIA ABUSO E INCESTO Toda forma de abuso sexual tem a ver com o incesto na minha visão André sujeito dessa pesquisa vide anexo Neste capítulo refletiremos sobre as diferentes nomenclaturas que vieram sendo utilizadas pelos especialistas ao longo do tempo para se referir aos fenômenos violência sexual abuso sexual de crianças e adolescentes e incesto Embora por trás de um termo haja um conceito e por trás deste um contexto social histórico e político que o sustenta no presente trabalho procuraremos apenas desvendar algumas das expressões entendendo o contexto em que foram produzidas principalmente no caso do termo incesto que tem sido desconsiderado nos últimos tempos São diversas as abordagens sobre esses fenômenos sendo que muitas vezes se contradizem porque algumas priorizam a denúncia e a responsabilização do agressor enquanto outras enfatizam o acolhimento e o tratamento da criança e do adolescente em situação de violência Há ainda abordagens que defendem o tratamento do agressor em vez da mera punição mantendo porém a responsabilização pelo ato Há também diferenças quanto aos campos teóricos de abordagens dessa temática Alguns autores como Maria Cristina Minayo 1998 postulam que apesar do fenômeno ter raízes no social ele deve ser considerado uma questão de Saúde Pública área que prioriza as questões epidemiológicas com vistas à prevenção Contudo ela também defende a articulação dos vários setores do conhecimento Mostraremos como o abuso sexual é um campo antigo de investigação que vem atravessando gerações e como foi incluído na agenda da Organização Mundial de Saúde a partir dos desdobramentos das discussões do movimento feminista sobre violência doméstica que por sua vez criou deliberações que favoreceram a criação dos programas sociais de atenção a essa problemática Pensaremos também em como o tema foi introduzido no Brasil e como a mobilização da sociedade levou à criação de diversos Programas e Centros de atenção ao abuso sexual infantil 54 Traremos a opinião de outros autores ligados ao campo da Justiça que construíram os conceitos interligados ao sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente Assim suas definições procuram facilitar a produção de provas para auxiliar a atuação do sistema de defesa e responsabilização Lembraremos a opinião de Jurandir Freire Costa que considera que apesar da multiplicidade de áreas do conhecimento discursar sobre o tema ainda sabemos pouco sobre o fenômeno da violência em geral Compararemos sua opinião com Lucia Alves Mees que diz ser necessário uma certa resistência do psicanalista em incorporar alguns modernos conceitos que excluem o incesto da discussão bem como a questão do tratamento tanto para a criança e adolescente quanto para o agressor Vamos então tomar as expressões associadas ao fenômeno e tecer alguns comentários frente a elas 31 Violência O conceito de violência é bastante difícil de ser apreendido devido à sua complexidade e quando associado ao sexual se sobrepõem a esse de forma que obscurece as questões da sexualidade infantil Assim primeiramente faremos algumas considerações sobre a violência Recorrendo ao dicionário de língua portuguesa encontramos as seguintes definições Violência Do latim violentia Qualidade de violento ato violento ato de violentar jur Constrangimento físico ou moral uso da força coação Violento do latim violentu Que age com ímpeto que se excede com força intenso em que se faz uso de força bruta Violentar exercer violência sobre forçar coagir constranger estuprar violar FERREIRA A B H 2000 p 783 A definição do dicionário representa a convenção que uma cultura chegou sobre um termo Contudo os questionamentos dos teóricos transcendem as convenções Por estar atualmente no discurso social de maneira intensiva podemos considerar que a violência é de fácil entendimento porém as diferenças existentes em relação à sua compreensão dos autores que pesquisam a questão são grandes pois vão além do simples significado da palavra Qualquer reflexão teóricometodológica sobre a violência pressupõe o reconhecimento da 55 complexidade polissemia e controvérsia do objeto Por isso mesmo geram muitas teorias todas parciais MINAYO e SOUZA 1998 p 513 Há aqueles que consideram a violência como um fenômeno proveniente de causalidade apenas social tendo sua raiz na dissolução da ordem pela vingança dos oprimidos ou pela falta de condições do Estado para lidar com a questão Explicam o fenômeno como resultante dos efeitos disruptivos dos acelerados processos de mudança social provocados sobretudo pela industrialização e urbanização MINAYO e SOUZA 1998 516 Outros explicam a violência como resultado de necessidades biológicas psicológicas ou sociais porém essa última está subordinada às determinações da natureza Enfocam a sociedade como campo natural de luta Tendem a substituir o processo social e histórico pelo conceito de agressão que provém da biologia etologia genética e medicina MINAYO e SOUZA 1998 p 514 Baseado nas contradições do capitalismo há um grupo de teorias que entendem a violência como estratégia de sobrevivência das camadas populares Essa linha de pensamento considera somente o aspecto exterior da violência ou seja deixam de lado outros aspectos da violência social e cultural que têm raízes estruturais profundas e internalizadas nos sujeitos e que atingem a todos nós independentemente de classe cor raça sexo ou idade MINAYO e SOUZA 1998 p 517 Para as autoras as explicações de natureza econômica não bastam para abarcar as questões sociais que determinam o fenômeno entretanto concordam que são elemento fundamental de uma violência maior que é o próprio modo organizativocultural de determinado povo Ao escolher os que são e os que não são a partir das leis de propriedade a sociedade revela sua violência fundamental como na dialética hegeliana do escravo e do senhor MINAYO e SOUZA 1998 p 518 Um último grupo atribui à falta de autoridade do Estado e da incompetência de seus poderes repressivos jurídicos e policiais Essa concepção omite a discussão sobre o domínio econômico e político das classes dominantes e perpetua a crença de um Estado neutro As idéias desses intelectuais combinam com o senso comum que advoga a força repressiva como condição de ordem e progresso MINAYO e SOUZA 1998 p 518 Minayo e Sousa procuram entender o caráter relacional sempre presente nos fenômenos violentos que faz de todos os indivíduos ora vítimas ora algozes Elas chamam a atenção para o processo de naturalização da violência e da criação de ideologia que repele ou justifica o limite da tolerância social frente à questão Defendem a idéia de que quanto mais o fenômeno se agrava mais é necessária a articulação de várias disciplinas científicas e 56 diversos campos profissionais para o desenvolvimento de ações públicas para o enfrentamento do problema Essas ações devem contemplar ainda um diálogo com a psicologia social e um investimento para pesquisas nessa área 32 O abuso sexual Lembremos que a questão do abuso sexual não é um campo de investigação recente Vem atravessando gerações e provocando uma larga e extensa produção científica Mesmo assim não deixa de ser um tema árido principalmente para os profissionais da área de psicologia psiquiatria direito e medicina causando certo malestar associado ao fato de que a situação de abuso sexual coloca em pauta de maneira particularmente conflitante o lugar do psiquiatra perante a lei ou ainda o problema intrincado dos planos individual e coletivo MAZET apud GABEL 1997 p 204 O primeiro registro de estudos sobre abuso sexual de crianças foi feito por Auguste Ambroise Tardieu1 professor de medicina legal em Paris que em 1860 fez a primeira descrição clínica da criança brutalizada Ele estudou 339 casos de tentativas de estupro impingidos a crianças menores de 12 anos de idade Aí observou que os laços de sangue longe de opor uma barreira a essas culpáveis seduções em geral só as favorecem os pais abusam das filhas os irmãos abusam das irmãs Alguns anos depois é interessante notar que Th Bourniville em Le progrés medical escreve um artigo no qual evoca sobretudo as falsas acusações de crianças referentes a pretensas sevícias ou abusos sexuais cometidos por adultos MAZET apud GABEL 1997 p 203 Além do Dr Tardieu contemporaneamente a Freud havia outros cientistas pesquisando a questão do incesto O próprio Charcot que buscava explicações hereditárias para as doenças mentais influenciou o sucessor do Dr Tardieu Paul Brouardel que também buscava explicações hereditárias na patologia daqueles que cometiam infrações sexuais Por esse motivo foi acusado de defensor dos abusadores 1 Étude médicolégale sur linfanticide Paris 1868 57 Binet renomado psiquiatra da época se contrapôs a esta questão da hereditariedade em relação aos desvios sexuais Lembra que no livro Confissões escrito por Rousseau em 1764 o filósofo relata que aos oito anos de idade foi forçado a dormir com sua professora atribuindo a esse fato a causa de sua timidez celibato até os 30 anos e sua necessidade de humilhar as mulheres para poder obter satisfação sexual Assim Binet sustenta a hipótese de que a experiência do abuso sexual na infância traz conseqüências nefastas na vida adulta Dessa forma afastase das explicações biológicas para o fenômeno Freud ao tentar descobrir a etiologia da histeria deparouse com a dimensão desse tema entre suas pacientes A partir dessa escuta construiu sua primeira hipótese a teoria da sedução Assim afirmou que o incesto era mais comum do que se suspeitava e acontecia em famílias respeitáveis Pouco depois Freud reformulou sua teoria e incluiu a dimensão da fantasia Contudo nunca abandonou completamente a possibilidade de ocorrer de fato a sedução a uma criança por parte de um adulto O que Freud rejeitou foi a teoria da sedução como explicação geral da origem das neuroses GAY 1989 p 101 Mesmo assim foi acusado de favorecer o encobrimento do abuso sexual retardando em profissionais e na população em geral a consciência desse problema 33 A inclusão do abuso na agenda da Organização Mundial de Saúde Como já mencionamos os primeiros estudos considerados científicos sobre crueldade em crianças cometida por pais ou responsáveis foi publicado na França em 1857 pelo Dr Tardieu presidente da Academia de Medicina de Paris Seu enfoque estava nas lesões físicas porém seu estudo já apontava para o abuso sexual Assim na França no final do século XIX começaram a se multiplicar as sociedades preocupadas com o que Donzelot chamou de infância em perigo MELLO 2006 p 134 Nesse momento a nomenclatura comum era maus tratos De 1910 até meados do século XX a comunidade passou a se preocupar com a mortalidade infantil e a delinqüência juvenil Foi na cidade de Denver EUA que a noção moderna de abuso infantil emerge Na publicação de artigos apoiados pela American Medical Association pediatras observam com o auxílio do raio X considerado prova objetiva fraturas em crianças pequenas e nomearam de síndrome da criança espancada encarada pelos americanos como uma nova calamidade com ampla divulgação da imprensa 58 Mesmo o diagnóstico do abuso sendo caracterizado por meio de exames físicos desde o início foi caracterizado como agressão motivada por problemas psíquicos MELLO 2006 p 137 encontrados em todas as camadas da sociedade Dessa forma os pediatras liderados pelo Dr Kempe defendem a idéia da separação dos bebês de seus pais como medida para evitar a continuidade do abuso MELLO 2006 p 139 Ainda sobre a liderança de Kempe articulada a médicos de vários países nasceu em 1977 a International Society for Prevention and Treatment of Child Abuse and Neglect ISPCAN a maior e mais conhecida organização com o objetivo de prevenir e tratar o abuso infantil Essa sociedade possui uma revista científica chamada Child Abuse Neglect The international Journal que se tornou a publicação de maior circulação mundial específica sobre esse tema Inicialmente relacionado aos maus tratos violência física e com a indicação de que pais e professores deveriam ser vigiados para que isso fosse evitado o abuso foi sendo gradativamente também associado à violência sexual MELLO 2006 p 142 O autor diz que a gradual relação do abuso à violência sexual tem sua raiz no movimento feminista Hancking destaca dois eventos fundamentais que explicam a relação feminismo e abuso sexual infantil Um deles é a palestra de Florence Rush sobre o tema abuso sexual na New York Radical Femenist Conference em 1971 e outro a publicação de um artigo na revista MS com o título e Incest Child Abuse Begins at Home em maio de 1977 Desse modo a ISPCAN que já possuía notório saber sobre o assunto incluiu as reivindicações feministas na definição de abuso sexual infantil e este passa a transcender as relações sexuais em seu sentido genital mas também carícias exposições de crianças a intimidade de casais jogos sexuais com irmãos MELLO 2006 p 142 A sociedade moderna significou toques corporais ocorridos no interior das famílias como possíveis sinais de abuso de crianças e adolescentes Dessa forma permitiu que homens e mulheres passassem a recordar e a revelar experiências sexuais vividas com parentes consideradas abusivas HACKING apud MELLO 2006 p 142 A década de 1980 foi importante para a caracterização do abuso sexual como um evento psicologicamente traumático Com o domínio da ciência médica nas pesquisas sobre o fenômeno houve o enquadramento tanto do abuso sexual infantil como do incesto num mesmo quadro epidêmico no qual se indicam vários sintomas vividos por adultos que podem ser caracterizados como abuso sofrido na infância como pânico depressão disfunções sexuais e etc O abuso se constitui em uma doença com as seguintes características é 59 endêmico a repressão é feroz é possível recordar a terapia pode ajudar LOFTUS KETCHAN apud MELLO 2006 p 142 O movimento mundial em torno do abuso é de ordem médica e aos poucos em suas conseqüências foram incluindo os fatores emocionais Os psicólogos mesmo sendo os profissionais por excelência para contribuir na pesquisa sobre o tema ainda não conquistaram lugar de liderança no cenário internacional na discussão sobre esses fatores A partir da década de 1990 o abuso sexual infantil é consolidado como um problema de proporções mundiais e por isso encarado como um campo de trabalho específico da saúde A Organização Mundial da Saúde em 09 de abril de 1999 por meio de um comunicado intitulado WHO Recognizes Child Abuse as a Major Public Health Problem oficializa que o abuso sexual é um problema de saúde pública mundial A solução proposta nesse documento é intervir no espaço privado da família e treinar os pais para cuidarem dos seus filhos Essa intervenção fundamentase nos direitos da criança e do adolescente A posição da OMS solidifica e amplia a projeção internacional de um assunto que começou como sendo privado e finda como sendo de ordem pública MELLO 2006 p 172 34 O abuso no Brasil Diferentemente dos EUA e da Inglaterra no Brasil o movimento contra o abuso sexual de crianças e adolescentes foi e ainda é liderado por profissionais da área das chamadas ciências humanas psicólogos assistentes sociais e advogados Uma peculiaridade no nosso idioma é que a palavra abusado não se refere a alguém que tenha sofrido maus tratos ou que foi submetido a práticas sexuais violentas O dicionário diz que excede o permitido briguento provocador intrometido FERREIRA 2001 p 6 Por isso a preferência de alguns autores na utilização do termo criança ou adolescente vitimizado De acordo com o dicionário de língua portuguesa a palavra abuso significa Mau uso ou uso errado excessivo ou injusto excesso exorbitância de atribuição ou poderes aquilo que contraria as boas normas os bons costumes ultrajem de pudor violação FERREIRA A B H 2000 60 Etimologicamente abuso sexual indica a separação o afastamento do uso us normal O abuso é ao mesmo tempo um uso errado e um uso excessivo É a ultrapassagem de limites Mesmo o campo sendo dominado por trabalhadores das áreas de ciências humanas os primeiros trabalhos científicos foram produzidos por profissionais da área médica A primeira publicação no Brasil que data do ano de 1924 foi um trabalho de conclusão de curso de um aluno de medicina O texto está cadastrado no CESPI Centro de Estudos e Pesquisas sobre a Infância da Universidade Santa Úrsula Bahia sob o título Esboço médicojurídico de delinqüências sexuais e o autor chamase Nelson Guilherme dALMEIDA Notemos que não há no título a referência ao abuso sexual Há um outro trabalho produzido por professores da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo datado de 1973 que trata de um caso de espancamento de uma criança de aproximadamente um ano e três meses Mello acredita que as evidências de sinais clínicos facilitaram o pioneirismo da área médica nas pesquisas sobre o tema contudo o aspecto psicológico atualmente é considerado relevante no atendimento aos casos de abuso Um dos trabalhos que revelam essa preocupação é um estudo de crianças com histórias de abuso publicado em 1985 na revista de Psiquiatria de Rio Grande do Sul pelos psiquiatras Zaslavsky Nunes Breve estudo de crianças com abuso sexual Concluem que as mães são imaturas infantis e incapazes de manter vínculo afetivo com os filhos revivem as próprias experiências infantis de abandono e carência de cuidados Os pais são infantis e as crianças apresentam um padrão de comportamento caracterizado por agressividade hiperatividade impulsividade e baixa tolerância a frustrações MELLO 2006 p 186 A Universidade de São Paulo possui três organizações de destaque que produzem pesquisas e cursos de formação nesse campo São eles O LACRI Laboratório de Estudos da Criança no Instituto de Psicologia fundado em 1985 o CEARAS Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual fundado em 1993 e o PAVAS Programa de Atendimento à Vítima de Violência fundado em 1996 O Sedes Sapientiae possui o CNRVV Centro de Referência às Vítimas de Violência fundado em 1988 apesar de não atender exclusivamente violência sexual mas o priorizando 61 Outras regiões brasileiras se estruturaram no sentido de atender à violência contra a criança e o adolescente Não nos cabe aqui citar todos aqueles que contribuíram para esse a organização da sociedade no sentido de enfrentar o fenômeno apenas ressaltamos que essa proliferação de programas e centros de atenção a sujeitos vítima de abuso sexual foi promovendo várias mudanças no entendimento do que vem a ser considerado abuso infantil 35 Violência doméstica Todos os desdobramentos da violência que culminam nos estudos sobre violência sexual contra crianças e adolescentes partem da violência intrafamiliar A partir do momento em que as mulheres apoiadas pelos movimentos feministas passaram a denunciar a violência praticada por homens particularmente por seus maridos as questões relativas à violência doméstica saíram do âmbito privado ganhando espaço nos debates públicos A denúncia de violências contra a mulher que nos primórdios dos movimentos feministas era restrita a espancamentos ganhou o caráter sexual Daí o aparecimento de denúncias de assédio sexual que evoluíram para as de estupros e outras categorias de violência O desvelamento das violências contra a mulher passa ao desvelamento das violências contra crianças e adolescentes Segundo Azevedo e Guerra a violência doméstica contra a criança e adolescente Representa todo ato ou omissão praticado por pais parentes ou responsáveis contra crianças eou adolescentes que sendo capaz de causar dano físico sexual eou psicológico à vítima implica de um lado uma transgressão do poderdever de proteção do adulto e de outro uma coisificação da infância isto é uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento Azevedo e Guerra 1998 p 32 grifo nosso Para essas autoras tanto o ato quanto o conhecimento do fato sem denúncia são consideradas violências domésticas Dito de outro modo se um pai bate no filho e a mãe não o denuncia ela é considerada cúmplice por omissão e está sujeita às penalidades propostas pelo ECA 63 Compartilha da idéia de que não chegamos ainda a um consenso sobre o que vem a ser violência dada a multiplicidade das áreas do conhecimento que se debruçam sobre o tema Acrescenta que mesmo no meio psicanalítico estamos longe de chegar a um consenso A dificuldade que encontramos na sistematização da violência devese em boa parte à precária atenção que a própria teoria psicanalítica em geral e não só entre nós dedica ao assunto COSTA F J 2003 12 O autor ainda faz uma crítica quando a violência é definida como agressividade e equiparada a um impulso instintivo Dois pais que batem nos seus filhos um foi ou está sendo violento e o outro não COSTA J F 2003 p 44 Assim podemos dizer que não está somente no ato a violência mas também no que porta o desejo daquele que comete a ação Parafraseando Costa podemos ser altamente violentos agindo de maneira civilizada como bem manda a boa educação Violência é o emprego desejado da agressividade com fins destrutivos Esse desejo pode ser voluntário deliberado racional e consciente ou pode ser inconsciente involuntário e irracional COSTA J F 2003 p 39 Generalizando uma definição sobre o que vem a ser uma ação violenta o autor coloca que Violenta é toda circunstância de vida em que o sujeito é colocado na posição de não poder obter prazer ou de buscálo como defesa contra o medo da morte COSTA J F 2003 p 228 Costa procura separar os conceitos de violência e de sexualidade Recorre a Freud para dizer que a sexualidade que envolve o psiquismo infantil é sexualidade para o adulto mas não para a criança COSTA JF2003 p 230 A criança experimenta estímulos prazerosos no contado com o adulto e não o simboliza como sexual devido a sua imaturidade biológica Somente depois é que o sujeito infantil tem condições de simbolizar esse nãosexual primordial como sendo sexual A sexualidade não existe para o sujeito que sofre as ações estimulantes por parte do adulto como o toque na hora do banho a amamentação e outros contatos inerentes aos cuidados com o bebê Contudo ela está presente no desejo daquele que o estimula ou seja o cuidador Assim a gênese da sexualidade é não sexual dito de outro modo A sexualidade surgiria como um prêmio de prazer necessário ao investimento libidinal nas funções orgânicas que asseguram a sobrevida material COSTA JF 2003 p 231 Com o desenvolvimento de suas funções simbólicas a criança apropriase da sexualidade ligase libidinalmente ao objeto fonte da excitação que se traduz como investimento amoroso dos pais Despertar para a sexualidade e unirse ao representante 64 psíquico da excitação são uma só e mesma coisa COSTA JF 2003 p 232 A sexualidade infantil é sempre dirigida a um objeto que abre os primeiros canais de identificação e estruturação do ego No caso da violência sexual essa impede o surgimento da sexualidade objetal pois o sujeito violentado ao invés de fazer o investimento libidinal na figura de um outro etapa necessária a sua constituição tenderá a repugnálo Costa também nos lembra que para Laplanche a liberação dessa energia nãoligada seja a angústia equivalente psíquico da dor física A sexualidade na violência sexual é instrumento e não a fonte da violência Em caso de estupros curras sadismo ou manipulação perversa de crianças por adulto o sujeito violentado adulto ou criança é invadido e desestruturado não por um desejo sexual do objeto violentador mas por um desejo de morte O abuso sexual sádico ou perverso é vivido pelo Ego como ameaça de aniquilamento COSTA J F 2003 p 229 É de se esperar que toda criança viva uma certa angústia devido à ameaça de castração durante o período de sua constituição subjetiva Contudo segundo o autor no caso da violência sexual o risco é de que o núcleo do ego do sujeito desagregue frente a uma angústia que se refere ao perigo de morte psíquica O fato de Costa utilizar o termo violência para se referir ao fenômeno do abuso ou incesto demonstra seu questionamento aos próprios psicanalistas que procuram resistir a incluir o campo da violência sexual contra a criança e ao adolescente nas pesquisas psicanalíticas Sua posição difere de Lucia Alves Mees que acredita que a psicanálise deva pesquisar sim o tema porém deve resistir a utilizar nomenclaturas atravessadas por ideologias que derrogam a psicanálise A seguir veremos o que pensa Mees e outros autores e depois escolheremos um termo 37 Escolhendo um termo A Exploração sexual comercial é a última invenção para nomear o abuso sexual Emerge oficialmente em 1996 no 1 Congresso Mundial sobre a Exploração Sexual de 65 Crianças com Finalidades Comerciais realizado em Estocolmo que tornou público o drama das crianças violentadas e assassinadas na Bélgica espaço em que jovens e adultos apresentaram denúncias e numerosas redes de pedofilia foram desmanteladas GABEL 1997 p 13 Nesse Congresso além de ter sido dada maior visibilidade ao fenômeno tentou se organizar uma norma para a utilização das nomenclaturas e a preferência foi dada ao termo exploração sexual Um dos grandes patrocinadores desse Congresso foi End Child Prostitutionin Asian Tourism E C P A T uma entidade preocupada com o turismo sexual de crianças e adolescentes no mundo Apoiada nas conclusões do Congresso a Organização Mundial de Saúde definiu abuso sexual da seguinte maneira A exploração sexual de uma criança implica que esta seja vítima de um adulto ou de uma pessoa sensivelmente mais idosa do que ela com a finalidade de satisfação sexual desta O crime pode assumir diversas formas ligações telefônicas obscenas ofensas ao pudor voyeurismo imagens pornográficas relações ou tentativas de relações sexuais incesto ou prostituição de menores GABEL 1997 p 11 Assim ampliouse a gama de ações de um adulto em relação a uma criança que podem ser consideradas abusivas ou melhor exploratórias O Dicionário de Língua Portuguesa traz a seguinte definição exploração ato ou efeito de explorar pesquisa sondagem desenvolvimento de uma indústria de um negócio com fins especulativos FERREIRA A B H 2000 Eva Faleiros 2000 p 10 especialista da área do Direito escreveu um livro na tentativa de contribuir para a utilização mais adequada dos termos A autora acredita que a utilização de diferentes termos como sinônimos e como se eles se correspondessem a um mesmo conceito não é apenas uma questão de terminologia mas uma questão de epistemologia ou seja revela falta de uma rigorosa e clara conceituação da problemática Pesquisou os conceitos de violência abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes e analisou o material bibliográfico Para sustentar sua opinião sobre a falta de precisão terminológica explica O fenômeno do abuso sexual é designado por diferentes termos como violência sexual agressão sexual vitimização sexual exploração sexual 66 maustratos sevícia sexual ultraje sexual injúria sexual crime sexual Para designar a violência sexual intrafamiliar encontramse os termos abuso sexual doméstico violência sexual doméstica incesto abuso sexual incestuoso O uso sexual de menores de idade com fins lucrativos é nomeado ora como prostituição infantojuvenil ora como abuso sexual ora como exploração sexual comercial FALEIROS 2000 p 9 Gabel menciona que antes mesmo de ser definido o abuso sexual deve ser claramente situado no quadro dos maustratos infligidos à infância Gabel 1997 p 10 A autora assinala que o termo maustratos já é uma evolução da expressão criança espancada para o qual se considerava somente a integridade corporal Ao termo maus tratos se acrescentam também os sofrimentos morais e psicológicos e a partir da década de 1990 há um alargamento do conceito incluindo o abuso sexual Faleiros afirma ser possível um consenso sobre a utilização das terminologias e atribui as confusões a seu recente desvelamento pois foi a partir dos anos 90 que essa problemática começou a preocupar os defensores dos direitos humanos FALEIROS 2000 10 Entretanto não acreditamos que seja apenas essa a causa da confusão do uso dos termos Além de haver diversas áreas do conhecimento interessadas em entender a questão a abordagem desse fenômeno depende de questões culturais e do lugar oferecido socialmente à criança e à família em cada cultura e época A abordagem que uma sociedade faz dos abusos sexuais está necessariamente ligada às mudanças nas relações entre os interesses do Estado da família e em particular ao papel atribuído a criança numa perspectiva histórica de uma sociedade determinada GABEL 1997 p 12 Alguns especialistas chegaram ao consenso de utilizar a expressão violência sexual contra crianças e adolescentes como no caso de Jurandir Freire Costa em vez de abuso sexual Entretanto outros preferem classificar o abuso sexual como uma categoria de maus tratos como Azevedo e Guerra E outros ainda preferem o termo incesto quando se trata do abuso intrafamiliar como menciona Mees abuso sexual é uma noção mais abrangente do que incesto na qual esta última está incluída MEES 2001 17 O abuso sexual é definido pela exposição de uma criança à estimulação sexual não somente a relações heterossexuais ou homossexuais 67 completas mas também jogos sexuais tendo por objetivo estimular sexualmente a criança ou utilizála para obter estimulação sexual GAUTHIER SAUCIER apud MEES 2001 17 Incesto é a infração do tabu que pesa sobre as relações sexuais entre dois membros da família nuclear exceto marido e mulher O tabu pode se estender a outros parentes ou graus de parentesco cujos vínculos podem ser biológicos de afinidade de classificação ou imaginários MEAD apud MEES 2001 17 A autora compartilha da idéia assim como Melo citado anteriormente que a ideologia feminista moderna provocou propositalmente a mudança na utilização dos termos com a intenção de derrogar a posição masculina na família e conseqüentemente na sociedade O que antes era um estudo sobre o incesto na atualidade foi interceptado pela intrigante repetição nas pesquisas contemporâneas de um cunho prólibertação das mulheres e crianças sendo este aspecto freqüentemente acompanhado por um discurso antipsicanálise MEES 2001 p 7 Apesar de seu livro apresentar conclusões questionáveis a respeito do conceito de função paterna a autora nos dá uma grande contribuição pois não se furta de encaminhar um raciocínio crítico às questões ideológicas modernas Assim finaliza seu livro deixando clara sua crítica O próprio termo abuso sexual veicula o desprendimento àquilo que já foi estudado ao longo da história sobre o tema Visa anular portanto a meu ver a terminologia incesto e sua relação com a constituição do sujeito tal qual o descrédito atual à psicanálise visa fazer Mantive ao longo do texto a designação abuso sexual porque deste modo realizava uma interlocução com aqueles que assim denominam o fenômeno Ao final deste escrito tendo explicitado a crítica ao termo e o que ele significa proponho que o tema desse estudo seja lido a posteriori como O incesto e a constituição do sujeito trauma infantil e as fantasias femininas MEES 2001 p 140 68 Gabel que participou do Congresso de Estocolmo e estava avisada sobre as conclusões preferiu utilizar o termo abuso para o título do seu livro editado um ano depois Crianças vítimas de abuso sexual Quanto ao fenômeno da criança abusada sexualmente ressaltamos o fato de que há uma tendência na modernidade a empurrar o sujeito para o lugar de vítima e toda vítima deve querer um ressarcimento Quando utilizamos o termo abuso anunciamos um fato que denota um mau uso e ultrapassagem de limites Quando usamos o termo exploração supomos que algo da ordem do econômicofinanceiro está em jogo Segundo Koltai Nossas sociedades parecem levar cada vez mais em conta as vítimas sejam elas de dramas pessoais ou coletivos presentes ou passados Vivemos num mundo em que o sofrimento parece ter se tornado intolerável e no qual vai surgindo uma nova divisão social vítimas de um lado responsáveis civis de outro onde vítimas reivindicam o ressarcimento por perdas e danos sofridos REVISTA TEXTURA ano 4 n 4 2004 Estamos problematizando uma reflexão para levar o leitor a perceber que por trás de um termo há um conceito e por trás deste há um contexto social histórico e político que lhe dá suporte Queremos contribuir para um questionamento sobre o que permeia a utilização de um ou outro termo apreendendo suas implicações teóricas e práticas Manter uma nomenclatura pode revelar a intenção de salvaguardar não só o sujeito mas também todo o campo de pesquisa nessa área de tentativa de transformar as crianças em meras vítimas excluindo a dimensão do desejo2 e da subjetividade do sujeito supostamente abusado Dessa forma poderemos contribuir também para que o profissional não seja visto pelo paciente como aquele que pode proporcionarlhe algum meio de ressarcimento se não for financeiro que seja afetivo como penalização vingança punição do agressor entre outros Entender o tema como ultrapassagem de limites é diferente de abordálo numa perspectiva exploratória Excluir o termo incesto é também forcluir da discussão questões essenciais sobre a constituição subjetiva do sujeito humano É sobre essa constituição que o psicólogo pode oferecer maior contribuição para o debate 2 Da palavra alemã lust vontadedisposição de fazer algo de sensações corpóreas agradáveis HANS Luiz Dicionário comentado do alemão de Freud Rio de Janeiro Imago 1996 70 Capítulo 4 O CAMINHO DA CRIANÇA OU DO ADOLESCENTE NA REDE DE PROTEÇÃO implicações sobre o lugar do psicólogo Neste capítulo demonstraremos o caminho que uma criança ou um adolescente que supostamente sofreu abuso sexual deve percorrer nos equipamentos do sistema de proteção integral quando é feita a notificação ao Conselho Tutelar Discorreremos também sobre o lugar do psicólogo nesse contexto e sobre as pesquisas psicanalíticas sobre o incesto Descreverei um dos casos atendidos por mim em um dos Centros de Referência da cidade de São Paulo de criança em situação de violência sexual para que entendamos como funcionam os equipamentos sociais Antes lembremos que as instituições ou equipamentos sociais sejam públicas ou privadas que atendem as demandas da criança e do adolescente em situação de violência geralmente fundamentam sua prática no ECA seguindo a doutrina da proteção integral priorizando o trabalho em rede nos casos de violência A proposta de rede visa que todos os serviços que atendem a criança e adolescente possam além de oferecer atendimento de qualidade articularse de forma a somar esforços trabalhando pela ótica da complementaridade SAYÃO 2006 p 13 Essa filosofia de trabalho visa contribuir para a diminuição dos custos pois evita a sobreposição de ações e diminuição dos vácuos no atendimento Escolhi este caso porque envolve o trabalho de vários profissionais de alguns equipamentos da rede de proteção o que corresponde ao ideal proposto pelo ECA Tanto os profissionais como a família conseguiram dar sua contribuição para que a criança fosse acolhida e respeitada 71 41 Relato do caso1 Nossa menina a quem chamaremos de Ana2 tem 7 anos mora com a mãe que chamaremos de Maria com o padrasto que chamaremos de João e um irmão mais novo Seu pai é falecido a mãe mora com esse companheiro há mais ou menos dois anos com quem teve um outro filho que hoje tem 1 ano e oito meses de idade A mãe trabalha o dia inteiro como auxiliar de serviços gerais O companheiro está desempregado e tem a tarefa de cuidar das crianças Ana freqüenta a escola no período vespertino É o padrasto quem a leva à escola e a mãe a busca Durante o ano letivo de 2003 Ana deixou de freqüentar a préescola da rede municipal de ensino A diretora chamou a mãe e a questionou sobre as faltas da menina A mãe justificou dizendo que não tinha como pagar a condução pois havia mudado recentemente de residência e a diretora da escola próxima à sua casa disselhe que não poderia aceitar a transferência de Ana visto que o ano escolar já estava findando era setembro de 2003 Contudo esta última garantiulhe que a vaga de sua filha já estaria assegurada para o próximo ano letivo na 1ª série do ciclo básico Assim mãe e padrasto concordaram em que Ana não fosse mais à escola naquele ano ficaria com o padrasto durante o dia auxiliando nos serviços da casa O irmão freqüentava a creche também da rede municipal em período integral 42 Relato da dor Em uma tarde João combinou encontrarse com Maria em frente ao supermercado pois iriam fazer compras deveria levar Ana Quando Maria chegou João disse que se perdeu de Ana e que a menina havia desaparecido Maria procurou o auxílio da polícia para encontrar sua filha João retornou ao lar para ficar com o filho Algumas horas depois Maria dirigiuse à casa de sua mãe e lá encontrou Ana no colo da tia materna e ambas estavam bastante assustadas A menina a princípio não queria que a mãe se aproximasse mas depois aceitou o contato e explicou que João soltou de sua mão durante o percurso até o mercado andou muito rápido e ela não conseguiu acompanhálo 1 Os dados foram colhidos em entrevistas com a mãe durante o processo de anamnese psicológica ou seja entrevistas diagnósticas num Centro de Referência para Atendimento à Crianças e Adolescentes em Situação de Violência Sexual da cidade de São Paulo 2 Todos os nomes são fictícios para assegurar o anonimato das pessoas 72 Quando se viu sozinha procurou um policial Ela deu um ponto de referência próximo à casa da avó Eles a colocaram numa viatura e levaramna até o local onde Ana reconheceu a rua e guiouos até a casa Quando a mãe convidou a menina para voltarem para casa Ana disse que não queria voltar A tia reservadamente chamou Maria e disselhe que Ana havia relatado que tinha sido abusada pelo padrasto naquela tarde pouco antes de irem ao mercado A menina relatou à tia que desde que saiu da escola ele a tem tocado de maneira estranha pedindo para que fique sem roupas com a desculpa de que vai dar banho nela Naquela tarde João pediu para que se deitasse na cama ele a acariciou e de seu pipi saiu um leitinho branco é comum crianças descreverem dessa forma o esperma masculino A mãe depois de acalmarse conversou com a filha que novamente contou a história confirmando o que a tia havia dito A família decidiu que Ana não voltaria para casa ficaria com a avó e tia materna até que a mãe resolvesse o que iria fazer de sua vida 43 A notificação A tia dirigiuse à delegacia do bairro para fazer um boletim de ocorrência acusando o cunhado de ter abusado sexualmente de sua sobrinha Segundo Jefferson Drezett3 acreditase que a maior parte das mulheres não registre queixa por constrangimento e medo de humilhação somado ao receio da falta de compreensão ou interpretação dúbia do parceiro familiares amigos vizinhos e autoridades Ferreira J D 2000 p 14 Entretanto a tia de Ana não hesitou em tomar a frente e levar o caso ao conhecimento das autoridades O escrevente após registrar a notificação encaminhou a tia de Ana ao delegado que autorizou a abertura de processo criminal e orientoua a procurar o Conselho Tutelar da região No dia seguinte a tia dirigiuse ao Conselho Tutelar que depois de escutála chamou a mãe de Ana para uma entrevista Após a entrevista orientaramna a levar a filha ao hospital Pérola Byton local onde há equipamentos e médicos legistas especializados em fazer o exame de corpo de delito em crianças e adultos com suspeita de terem sofrido abuso sexual 3 Jefferson Drezett Ferreira doutor pelo curso de pósgraduação do Centro de Referência da Saúde da Mulher e de Nutrição pela Universidade de São Paulo é um dos fundadores do serviço especializado ao atendimento a pessoas em situação de violência sexual do hospital Pérola Byton em São Paulo 73 É importante ressaltar que o laudo médico expedido baseado no resultado do exame de corpo de delito é fundamental para qualquer procedimento na área jurídica Esse laudo poderá fornecer provas ou indícios que comprovem ou descartem a hipótese de abuso sexual Podemos citar por exemplo os casos de crianças com doenças sexualmente transmissíveis DST De acordo com Ferreira são poucos os casos em que o diagnóstico de DST em crianças não esteja relacionado com o abuso sexual e ainda comenta alguns aspectos que devem ser observados nesse exame pelo médico A condição de virgindade no momento do estupro é de grande importância visto permitir a confirmação do crime pelo diagnóstico do defloramento recente Os retalhos himenais apresentamse tumefeitos de coloração vermelha intensa por vezes hemorrágicos e de aspecto irregular Os espermatozóides podem ser detectados no conteúdo vaginal ou no canal cervical até 72 horas da violência Sua presença também pode ser verificada pela coleta de material da região anal ou cavidade oral ALLARD 1997 apud FERREIRA p 17 No mesmo período é possível visualizar a presença de manchas de esperma depositadas nas vestes da vítima por meio da lâmpada de Wood GABBY et al 1992 apud FERREIRA p 17 Algumas dessas manchas quando de pequena dimensão podem ser detectadas através da microscopia ótica OBRIEN 1998 apud FERREIRA 1999 p 17 O Conselho Tutelar encaminhou Ana também para atendimento especializado no Centro de Referência solicitando avaliação psicossocial Além disso o Conselho comunicou formalmente à Vara da Infância e Juventude o caso Devemos destacar que o Conselho Tutelar no caso de Ana seguiu todos os passos propostos pelo ECA O conselheiro que acompanhou o caso foi bastante discreto assertivo e acolhedor tanto na recepção como no encaminhamento dessa ocorrência 74 44 A chegada ao atendimento Maria mãe de Ana agendou uma entrevista de triagem com o serviço social do Centro de Referência4 Após essa primeira abordagem o profissional encaminhou Maria para o atendimento psicológico Depois de percorrer vários serviços da rede de atenção Maria finalmente pôde ser escutada por um profissional da área de psicologia Foram feitas duas entrevistas com ela na primeira relatou com detalhes a história do abuso sexual da filha na segunda relatou histórias de abuso sexual em sua própria infância e também na infância de sua mãe avó de Ana A mãe de Ana foi convidada a ser incluída no tratamento pois foi diagnosticado uma demanda por parte dela sobre a questão do abuso sexual que era anterior ao ocorrido com Ana ou seja o ocorrido com Ana atualizou questões que já pairavam na subjetividade da mãe No entanto a mãe de Ana jamais havia tido a possibilidade de elaborálas Maria aceitou comparecer às entrevistas e comprometeuse a trazer Ana na próxima Ana chegou para o atendimento levando uma bolsinha que continha lápis e papel Acompanhoume até a sala onde logo liberou sua curiosidade pelos brinquedos e depois fixouse nos lápis de cor tinta e papel sulfite Quando interrogada sobre o motivo de sua ida ao Centro ela disse é porque meu padrasto mexeu em mim5 Conversei com Ana sobre a possibilidade de serem feitos alguns atendimentos com sua mãe Esclareci a ela que seria resguardado o sigilo sobre o que conversássemos ou seja eu não contaria à mãe o que a filha havia me relatado Ana aceitou e passou a freqüentar assiduamente às sessões de psicoterapia 45 O desenrolar das sessões com a mãe Maria chegou às duas primeiras sessões bastante aflita Falava ininterruptamente sobre seus sentimentos e pensamentos em relação ao abuso que a filha havia sofrido Afirmavase na figura da irmã que tomou a atitude no processo de notificação Lamentavase do que havia acontecido com a filha mas ao mesmo tempo tentava negar a situação 4 A equipe técnica do Centro de Referência achou por bem que a área de serviço social faria a primeira abordagem dos casos a fim de melhor acolher as famílias que ali chegavam 5 Palavras de Ana escritas no prontuário da criança que está no arquivo da entidade 75 Relatou que no exame de corpo de delito da filha nenhum vestígio foi encontrado do possível abuso mas disse que no depoimento de João padrasto e suposto abusador ao delegado ele confessou o crime sendo preso imediatamente O oferecimento de uma escuta clínica e o estabelecimento do vínculo terapêutico fizeram com que a mãe fosse revelando seus sentimentos por João e a culpa que sentia pelo que aconteceu à filha Dizia que o amava e que estava sendo muito difícil essa separação mas precisava ficar longe dele Tinha vontade de perguntar a ele por que havia abusado de Ana Maria sentia um misto de vergonha por ainda gostar de João e culpa por não poder proteger a filha Durante as sessões Maria foi recuperando sua própria história de abuso Contou que precisou sair de casa antes dos 15 anos porque seu padrasto a assediava Disse que contou para a mãe mas ela não acreditou Então resolveu ir morar com seu namorado Logo engravidou de Ana Ele faleceu quando Ana tinha 3 anos Depois da separação da mãe e do padrasto de Maria o qual também assediou sua irmã mais nova a mãe de Maria contou às filhas que também havia vivido uma situação de abuso em sua puberdade Contou que quando seu pai morreu ela ficou alguns dias na casa de um tio até sua mãe se restabelecer Esse tio a violentou Ela nunca havia contado o fato a ninguém Maria culpavase por não ter conseguido proteger sua filha da mesma forma que sua avó não protegeu sua mãe e sua mãe também não a protegeu Não compreendia como não havia percebido as intenções de seu companheiro ao provocar a saída da menina da escola ao querer ficar com ela sozinho em casa Uma fantasia de Maria era a respeito da adolescência de Ana tinha medo de que a filha não conseguisse arranjar namorado de que passasse a gostar de mulheres e se tornasse homossexual Aos poucos esses medos e fantasias foram sendo elaborados até que Maria assumiu que essas eram questões suas e não seriam necessariamente de Ana Esse fato fez com que ficasse mais tranqüila em relação ao futuro da filha Maria ainda tinha de enfrentar outro conflito O filho que havia tido com João iria fazer 2 anos e o menino sentia falta do pai e dos tios Não sabia se deveria permitir o contato com os irmãos do pai se deveria leválo à penitenciária para o pai vêlo Tinha dúvidas em chamar familiares de João para o aniversário do menino Esses impasses foram trabalhados nas sessões Maria decidiu visitar João e levou o menino para ver o pai Consegui fazer a pergunta que tanto a atormentava Por que ele fez isso Passou a manter um contato amistoso com os 76 familiares do pai que a apoiaram e entenderam que ela agiu da melhor maneira Acreditaram que ele errou e ela só estava protegendo sua filha Depois de um tempo Maria enamorouse de outro homem que também tinha um filho Iniciou um novo relacionamento Decidiu que evitaria ao máximo deixar sua filha a sós com homens adolescentes ou adultos até que Ana fosse adulta Dessa forma asseguravase de que estaria protegendo a filha 46 O desenrolar das sessões com Ana Minhas intervenções com Ana foram com base no método psicanalítico A criança é levada a uma sala com diversos brinquedos e material gráfico e convidada a brincar com o que desejar e a falar sobre o que quiser A criança em seu mundo de brinquedos o distingue perfeitamente da realidade e gosta de ligar seus objetos e situações imaginárias às coisas visíveis e tangíveis do mundo real ZANOTELLI 1999 p 341 As intervenções do analista são feitas com a intenção de possibilitar à criança apropriarse aos poucos do que lhe aconteceu ou do que não lhe aconteceu de saber por que está ali Para tanto é preciso escutar como ela se desloca nas brincadeiras pois o significante6 na criança se entrelaça com o corpo de uma maneira muito mais estreita que no adulto CORIAT 1999 p 23 O psicólogo deve ter sempre o cuidado de não se transformar em um profissional que dificulte as elaborações mas sim facilitar a montagem de uma estrutura que possibilite um sujeito desejante que mesmo no seu tempo infans está marcado por um discurso um enredo Ana era uma criança simpática e curiosa Interessavase preferencialmente por desenhar Gostava de pintar com guache nas cores azul preta e vermelha Logo nas primeiras sessões reclamou que sentia falta da escola Disse que seu pai e depois corrigiu dizendo ele não é meu pai a havia tirado da escola Perguntou se eu poderia ajudála a voltar para a escola Um dia desenhou a mãe o irmão e o padrasto depois cobria a figura do padrasto cobriuo com tinta azul e disse 6 Termo introduzido por Sausserre para designar a parte do signo lingüístico que remete à representação psíquica do som ou imagem acústica Em psicanálise é o elemento significativo do discurso consciente ou inconsciente que determina os atos as palavras e o destino do sujeito PLON ROUDINESCO 1998 77 Ana Ele está preso Psicóloga Por quê Ana Porque mexeu em mim Psicóloga Como Ana Ele mandou eu tirar a roupa deitar na cama e olhar pra ele depois saiu um leitinho branco do seu pipi Psicóloga E depois Ana Depois ele me levou pra passear e soltou da minha mão A polícia me levou pra casa da minha tia e ele foi preso Ele me tirou da escola Quero voltar pra escola Nesse momento percebi que a falta da escola estava se tornando um fator de muito sofrimento para Ana Ela parecia saber que a questão do abuso era um fato que não mudaria que providências já haviam sido tomadas mas quanto ao seu retorno à escola ainda havia o que fazer Pedi à mãe de Ana que falasse com a diretora para que esta permitisse que a menina voltasse a freqüentar as aulas A mãe o fez entretanto não teve sucesso em sua tentativa O caso foi passado para o profissional do serviço social que comunicou ao Conselho Tutelar a necessidade de a menina retornar à escola O Conselho por sua vez fez uma requisição à escola solicitando o retorno imediato da criança às aulas Ana retornou à escola na semana seguinte Continuou por mais algumas sessões desenhando objetos da sua casa pessoas de sua família amigos da escola e a professora Refez seus laços com os colegas de classe e participou da festa de Natal da escola Ana se despedia pois no próximo ano mudaria de escola Um dia incluiume em um dos seus desenhos 47 A relação da justiça com o psicólogo Durante o período em que o caso estava sendo acompanhado o Centro de Referência foi contatado pelo promotor público que cuidava do caso de João padrasto de Ana O promotor pediu permissão para que fosse citado nos autos do processo o nome da psicóloga que atendia Ana A profissional do Centro de Referência forneceu os dados 78 Um mês depois fui intimada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a prestar depoimento em uma das varas criminais como testemunha de acusação do processo de João Para crianças que sofreram violência doméstica prestar depoimento em audiência judicial geralmente é tão constrangedor quanto a própria situação de abuso que elas vivenciaram As perguntas feitas pelo advogado do agressor ou juiz podem causar angústia confusão intimidando a criança ou adolescente em suas respostas alterando versões já apresentadas e retirando totalmente a credibilidade do relato da vítima COSTA C H 2004 p 142 A justiça supõe que estará preservando a criança de mais uma situação de constrangimento se o profissional responder às perguntas concernentes ao que ocorreu a essa criança ou seja falar no lugar dela Matos esclarece os danos são muito maiores quando famílias médicos escolas ignoram o apelo da criança obrigamna a passar por exames mal conduzidos e até mesmo dolorosos depoimentos sem fim e acareações MATOS apud COSTA 2004 145 O fato de eu precisar prestar depoimento foi conversado com a mãe de Ana durante um dos atendimentos Ela disse que também recebeu uma intimação semelhante e acrescentou que sua irmã que fez a denúncia também deveria depor Perguntei à mãe se ela me autorizaria a revelar em juízo conteúdos das sessões que diziam respeito ao abuso cometido por João Maria autorizoume a dizer o que havia dito sobre o abuso sexual da filha Eu lhe disse que iria me valer do direito da paciente ao sigilo para não revelar qualquer outro dado que houvesse sido conversado em sessão Ana foi participada da situação Em um dos atendimentos disse a ela que o juiz havia me chamado para falar em audiência sobre o que aconteceu a ela assim como chamou também sua mãe e sua tia Perguntei a paciente se ela concordava Ana pediu apenas que eu falasse que João a havia tirado da escola Perguntei ainda se poderia dizer ao juiz mais alguma coisa do que ele fez E Ana disse de maneira categórica Você pode dizer isso Só isso que ele a havia tirado da escola 79 48 A audiência a postura do psicólogo As perguntas que fiz mim mesma enquanto profissional foi Devo ou não respeitar o que a paciente pediu Devo ou não revelar à juíza as declarações de Ana sobre o que aconteceu Caso eu faça estarei quebrando o sigilo profissional Será que revelar o que Ana disse é essencial para a decisão da juíza visto que o réu já havia confessado o crime Se a tia e a mãe também serão ouvidas em que a quebra do sigilo poderia ajudar a minha paciente Estas são questões essencialmente éticas e fazem com que o psicólogo se depare com outros questionamentos para quem trabalha Para o sistema judiciário fornecendo material que facilite a punição de um suposto abusador Ou trabalha para oferecer acolhimento e possibilidades de elaboração ao seu paciente Chegando à Vara Criminal fui recebida por um funcionário que perguntou se eu gostaria de esperar pelo chamado do juiz em sala junto ou separada do réu e se prestaria meu depoimento na presença do réu Escolhi ficar separada em ambas as situações por motivo de segurança pessoal Enquanto aguardava o chamado da juíza chegaram o advogado a mãe e a tia da menina A tia estava bastante ansiosa e conversou comigo como se estivesse em uma sessão terapêutica Logo um funcionário veio organizar a ordem em que as testemunhas seriam chamadas avisando que o réu estava na sala em frente Quando entrei na sala de audiência estavam a juíza o promotor o advogado de defesa do réu e o escrevente A juíza dirigiuse a mim e inicialmente perguntou meus dados pessoais e em seguida se atendia Ana e por qual período de tempo Perguntou também se atendia a mãe da menina e a freqüência dos atendimentos Repetia tudo que eu dizia ao escrevente que lavrava a ata A juíza então prosseguiu Questionoume se Ana havia relatado que o padrasto tinha abusado sexualmente dela Apenas respondi que Ana havia me dito que ele não a deixava ir à escola A juíza perguntou se era somente isso Disse que sim e comuniquei que estava protegida pelo Código de Ética dos Psicólogos que assegura o direito ao paciente ao sigilo não podendo assim dar maiores informações A juíza compreendeu e perguntou se nas entrevistas a mãe falou sobre o abuso da filha Respondi que sim e relatei o que a mãe havia me dito A meritíssima perguntou se os advogados presentes tinham mais questões Responderam negativamente Em seguida a juíza agradeceume e pediu ao escrevente para encerrar o depoimento Entregou a ata para ser lida e assinada pela depoente 80 A juíza foi extremamente compreensiva e discreta quando respeitou os limites impostos à fala da psicóloga pelo direito ao sigilo resguardado ao paciente que consta nos artigos 9º a 13 do Código de Ética do Psicólogo os quais transcrevemos a seguir Art 9º É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger por meio da confidencialidade a intimidade das pessoas grupos ou organizações a que tenha acesso no exercício profissional Art 10 Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no art 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código excetuandose os casos previstos em lei o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo baseando sua decisão na busca do menor prejuízo Parágrafo único Em caso de quebra do sigilo previsto no caput deste artigo o psicólogo deverá restringirse a prestar as informações estritamente necessárias Art 11 Quando requisitado a depor em juízo o psicólogo poderá prestar informações considerando o previsto neste Código Art 12 Nos documentos que embasam as atividades em equipe multiprofissional o psicólogo registrará apenas as informações necessárias para o cumprimento dos objetivos do trabalho Art 13 No atendimento à criança ao adolescente ou ao interdito deve ser comunicado aos responsáveis o estritamente essencial para se promoverem medidas em seu benefício Maria e Ana depois do depoimento deixaram de comparecer aos atendimentos no Centro de Referência Maria alguns dias depois telefonoume dizendo que não tinha mais dinheiro para pagar a condução para ir ao atendimento e que a filha tinha ido passar férias em Santos na casa de uma outra irmã sua Embora ambas já estivessem mais tranqüilas e tocando bem suas vidas eu julgava que ainda seria preciso dar continuidade ao tratamento De certa forma paira a dúvida sobre se o meu depoimento não inviabilizou a continuidade do tratamento de ambas A pergunta que podemos fazer é que lugar o psicólogo ocupa quando se dirige a um tribunal para ser testemunha de acusação do suposto abusador de seu paciente 81 49 O lugar do psicólogo Quanto aos profissionais da rede de proteção integral podemos dizer que estes acreditam estar contribuindo para a proteção da criança apenas aplicando a lei Sem dúvida não é papel do juiz de direito da criança e do adolescente tampouco dos órgãos que os representam como as delegacias da infância e juventude e os Conselhos Tutelares lidar com as seqüelas produzidas em crianças e adolescentes que passaram pela experiência de abuso sexual Cabe sim ao psicólogo auxiliar não só a criança ou o adolescente como também sua família a elaborar psiquicamente o que lhes aconteceu Os equipamentos do sistema da rede de proteção integral que acolhem a criança e o adolescente em situação de violência sexual buscam na ciência médica exame de corpo de delito e psicológica psicodiagnóstico um saber que possa lhes responder se o sujeito sofreu ou não abuso sexual e em caso de confirmação produzir provas que promovam a punição do agressor Nesse contexto o psicólogo é o profissional da ciência convidado a servir o sistema judiciário e também poderá utilizar seu espaço de escuta para coletar dados elaborar relatórios e fornecêlos ao juiz contribuindo assim para a aplicação da lei De outro lado os usuários dos serviços da rede de proteção ou seja a mãe ou o responsável e a criança ou o adolescente percorrem os serviços na tentativa de buscar uma resposta para a lacuna que a experiência do abuso sexual causou em sua própria subjetividade Procuram os serviços para aplacar sua dor para obter respostas Buscam acolhimento mas ao mesmo tempo são portadores de muitas interrogações Questões que muitas vezes as instituições não podem lhes responder e por isso mobilizam o corpo social a produzir saberes a aprimorar a rede de atenção e as leis a fim de aplacar essas dúvidas Portanto o psicólogo deve oferecer a oportunidade para que a criança ou o adolescente e seus familiares atravessados pela experiência do abuso sexual produzam um saber Deve se dispor a ser depositário de tudo que o paciente puder produzir em forma de discurso Deve provocálo a falar sobre essa e outras experiências de sua vida fazendo com que se implique em suas fantasias e desejos se defronte com a castração e se depare com as contradições que a experiência da vida revela É nesse lugar de escuta que o psicólogo deve estar 82 410 Tabu e incesto Nesse subtítulo percorreremos o caminho feito por Freud no campo da antropologia para iluminar o fenômeno do incesto e as formas de repressões sociais existentes para contê lo Freud 1913 pesquisou o modo como as sociedades primitivas se organizavam utilizandose da antropologia social Estabeleceu uma relação entre as proibições dessas sociedades e as encontradas nas neuroses obsessivas Nesse trabalho dialoga sobre fatos da psicologia social adotando o método psicanalítico O autor analisou o comportamento dos aborígenes australianos e observou um severo rigor a propósito de evitar relações sexuais incestuosas Na verdade toda sua organização social parece servir a esse intuito FREUD 1996 p 22 Essas sociedades eram subdivididas em grupos menores e se organizavam por um sistema que se chamava totemismo ou seja um animal fenômeno natural ou vegetal considerado antepassado comum ao clã determinava a dinastia a qual a pessoa pertencia As relações dos membros com seu totem eram a base dessa sociedade Assim os aborígines misturavamse entre si e conviviam com membros de outros totens Entretanto há uma lei contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e conseqüentemente contra seu casamento FREUD 1996 1913 p 23 A penalidade para as relações sexuais com pessoas de um clã proibido era a morte para o homem e o castigo para a mulher Poupavam a vida da mulher por acreditar que ela pudesse ter sido coagida O homem é morto mas a mulher é apenas espancada ou perfurada por lanças ou ambas as coisas até ficar quase morta FREUD 1996 p 24 A severidade dessa lei pode ser compreendida porque as pessoas nascidas sob o mesmo totem eram consideradas parentes consangüíneos Contudo não foi somente entre os membros da cultura aborígine que o autor encontrou severidade quanto à aplicação de castigos entre aqueles que violavam o sistema de organização social Em uma tribo da África Ocidental inglesa uma moça tinha de evitar o pai no período que vai da puberdade ao casamento Na Melanésia o menino quando chegava à puberdade era retirado da casa onde moravam a mãe e as irmãs e não podia mais pronunciar o nome delas por toda a vida O homem não podia chegar perto da mãe de sua esposa ou só 83 podia seguir a sogra ao longo da orla marítima depois que a maré tivesse levado suas pegadas da areia Na Nova Caledônia se um irmão e uma irmã encontrase num caminho a irmã escondese dentro do mato e o irmão passa sem virar a cabeça FREUD 1996 p 29 Em Gazelle uma moça depois de casada não podia pronunciar o nome do irmão e em New Macklenburg os primos também eram proibidos de se falar Freud acreditava que havia certa sabedoria entre esses povos quanto a suas regras de evitação no que diz respeito ao genro e à sogra Segundo o autor a identificação simpática da mãe com a filha pode facilmente ir tão longe que ela própria se apaixona pelo homem que a filha ama isso pode levar as formas graves de doença neurótica como resultado de violentas lutas mentais contra essa situação emocional FREUD 1996 p 3334 Para o autor pode haver desejo também por parte do homem em relação à sogra pois em razão da proibição do incesto o amor do filho pela própria mãe pode ser desviado para a mãe de sua esposa ele tem um impulso ao recair em sua escolha original embora tudo nele lute contra isso FREUD 1996 p 34 A proibição das relações sexuais entre parentes consangüíneos é considerada tabu Segundo Freud esse é um termo polinésio que significa algo consagrado misterioso e perigoso O autor se refere a Wundt que descreve o tabu como código de leis não escrito mais antigo do homem Wundt 1906 apud FREUD 1996 p 37 Havia a crença de que o tabu envolvia poderes mágicos atribuídos a pessoas ou coisas e que podiam ter efeitos destrutivos se violados Uma pessoa podia se tornar um tabu em determinadas circunstâncias como por exemplo mulheres durante o período menstrual ou após o parto pessoas enfermas ou os mortos O tabu tem sua origem na fonte dos instintos mais primitivos e duradouros humanos no temor dos poderes demoníacos WUNDT 1906 apud FREUD 1996 p 42 Wundt diz que com a evolução da sociedade pouco a pouco o tabu vai se transformando numa força com base própria independente da crença em demônios Desenvolvese nas normas dos costumes e da tradição e finalmente da lei apud FREUD 1996 p 42 Freud encontrou em sua clínica pessoas que criaram para si mesmas proibições de tabus individuais que obedecem ao mesmo rigor que os das sociedades primitivas chegando a dizer que a doença do tabu seria a expressão mais apropriada para a condição dos pacientes obsessivos grifo do autor 84 Em nossa sociedade ocidental contemporânea as relações de consangüinidade são estabelecidas a partir do sobrenome que o indivíduo porta De acordo com ele podese identificar a linhagem familiar da qual ele faz parte seus ancestrais e seus descendentes Qualquer um que tivesse violado um tabu tornarseia um tabu porque possuía a perigosa qualidade de tentar os outros a lhe seguir o exemplo Esse fenômeno foi observado também nas crenças e valores das culturas mais civilizadas As proibições obsessivas do neurótico são também misteriosas em sua origem Como no caso do tabu a principal proibição o núcleo da neurose é contra o tocar e daí ser às vezes conhecida como fobia de contato ou délire du toucher FREUD 1996 p 44 Para a psicanálise a vida mental de um adulto vai sempre carregar a matriz do desejo por sua primeira escolha de objeto para amar Assim a fixação incestuosa da libido desempenha papel principal em sua vida inconsciente que vai se deslocar constantemente a fim de encontrar substitutos para colocar no lugar do proibido Inspiradas no sistema dos povos primitivos as culturas civilizadas aprimoraram seus mecanismos de repressão social visando preservar sua forma de organização social A exemplo disso apresentamos no Capítulo 2 os dispositivos jurídicos modernos a serem aplicados àqueles que traduzem em ato desejos que para a continuidade da vida em sociedade devem ser reprimidos Se a violação de um tabu pode ser corrigida pela reparação ou expiação isso prova que a obediência à injunção do tabu significa em si mesma a renúncia a algo desejável FREUD 1996 p 51 Atualmente o ECA além das penalidades previstas oferece espaços para tratamento daqueles que violam o tabu do incesto Entretanto é impossível dissociar esse tratamento de uma espécie de punição Esse sentimento de punição pode atravessar quem é violado neste caso a criança e o adolescente E quiçá o psicólogo que vai fazer o atendimento ou a emissão de laudos e relatórios dirigidos ao juiz Considerando o pressuposto freudiano de que uma pessoa pode ser eventualmente considerada tabu por se encontrar em situação que possa provocar desejos proibidos em outros e despertar neles conflitos de ambivalência encontrado nas culturas primitivas e relacionado aos casos tratados em sua clínica podemos dizer que a criança ou adolescente abusado sexualmente por membro do núcleo familiar ocupa um lugar mesmo que momentaneamente de tabu Dito de outro modo ela desperta no outro sentimentos ambíguos de penalização por ter sido violada e de inveja por ter concretizado o desejo incestuoso que 85 há em todos porém sacrificados em prol da comunidade O mesmo pode se dizer do abusador Segundo Freud Essa poderosa força mágica do mana corresponde a dois poderes o poder de fazer alguém lembrar de seus desejos proibidos e o de induzilo a transgredir a proibição em obediência aqueles desejos FREUD 1996 p 51 411 A linguagem da ternura Esperase que o adulto transmita à criança as regras e normas sociais Uma dessas normas é a proibição do relacionamento sexual genital entre um adulto e uma criança Também se espera que uma criança que esteja descobrindo seu corpo e o corpo do outro tenha curiosidades a respeito das questões sexuais O sujeito infantil é portador de uma sexualidade mas ainda não tem todas as faculdades desenvolvidas para saber discernir o certo e errado o bom e mal o que pode e o que não pode A criança tem fantasias lúdicas sobre como manter um papel maternal em relação ao adulto Esse jogo pode tomar uma forma erótica mas permanece sempre ao nível da ternura FERENCZI 1943 p 351 Entretanto sabemos que nem todos os adultos conseguem fazer essa interdição e acabam se deixando seduzir bem como seduzindo crianças Eles aproveitamse de uma situação de poder para obter gratificação sexual genital Confundem as brincadeiras das crianças com os desejos de uma pessoa que já atingiu a maturidade sexual e se deixam levar a atos sexuais sem pensar nas conseqüências FERENCZI 1943 p 352 Ferenczi se refere ao fenômeno como uma ocorrência muito comum e que perpassa por todas as classes sociais Constata em sua clínica algumas reações advindas das crianças molestadas Coloca que para se defender a criança pode recorrer ao mecanismo da identificação ansiosa com o parceiro adulto introjetando o sentimento de culpa do adulto a brincadeira até então anódina aparece agora como um ato que merece punição Acrescenta que se a criança se restabelece de tal agressão sofre uma enorme confusão sentese ao mesmo tempo inocente e culpada O encontro de uma criança com um adulto que não interdite o contato físico sexual genital ou seja um adulto que use sua influência para abusar sexualmente da criança pode criar sérios conflitos no desenvolvimento subjetivo dela O autor ainda aponta para um certo terrorismo do sofrimento Esse fato acontece quando as crianças são obrigadas a resolver conflitos familiares Como exemplo podemos 86 citar as mães que se queixam continuamente de seus sofrimentos fazendo do filho um substituto maternal não levando em consideração que se trata de uma criança Elas fazem com que os filhos carreguem em seus frágeis ombros o fardo de todos os outros membros da família Ressalta ainda que não é por desinteresse que as crianças aceitam essa posição mas para poderem fruir novamente da paz perdida e da ternura que daí deriva FERENCZI 1943 p 355 87 Capítulo 5 O PSICÓLOGO E O CAMPO JURÍDICO análise das entrevistas 51 Contextualizando nossa análise1 Nossa análise foi elaborada a partir de fragmentos retirados dos relatos dos entrevistados Levaremos em consideração a singularidade de cada sujeito suas concepções e vivências sobre o tema incluindo seus pensamentos reflexões teóricas e profissionais bem como suas concepções e opiniões pessoais seus pontos de vista oriundos do senso comum compartilhados por setores ou agrupamentos sociais seus conflitos angústias e sofrimentos seus juízos de valor e suas formulações éticas morais e religiosas Por conta do sigilo que uma pesquisa deve preservar estamos impedidos de relatar maiores detalhes sobre onde nossos entrevistados trabalham sobre a missão e a filosofia da instituição Mesmo assim faremos uma reflexão também sobre as questões institucionais que permearam a fala dos nossos sujeitos Os três psicólogos entrevistados trabalharam ou ainda trabalham em programas sociais que atendem crianças adolescentes e famílias em situação de violência sexual Cada um desses programas faz parte de instituições distintas situadas em cidades diferentes Escolhemos propositalmente sujeitos que executam a mesma tarefa porém em municípios e entidades diversas a fim de investigarmos se há diferenças relacionadas ao fato de se trabalhar em uma ou outra instituição e em caso de resposta afirmativa quais seriam elas A partir do levantamento das questões de nossos entrevistados articularemos suas colocações às opiniões de autores que trabalham a conexão da Psicologia com o Direito Pensaremos em uma aliança possível entre os dois campos que possa equacionar a angústia e a impotência encontrada na fala dos nossos sujeitos Comparandoas ao que alguns teóricos dizem confirmamos que há uma tensão fundamental entre o campo da psicologia e do Direito na atenção à criança e ao adolescente em situação de violência Levantamos a hipótese de que no âmago de todo sofrimento relatado pelos três sujeitos pode estar a dificuldade ou até 1 As frases que representam as falas dos três sujeitos desta pesquisa serão escritas entre aspas a fim de diferenciálas do corpo do texto 88 mesmo a impossibilidade do psicólogo em atender a demanda da justiça assim como Freud já havia nos alertado e mais tarde também Lacan 511 As questões de André Eu sirvo à área da Saúde ou sirvo à área do Direito Quem é meu Deus A primeira experiência de André no atendimento a crianças e adolescentes e famílias em situação de violência sexual foi como estagiário de um curso de especialização de uma Universidade Sendo um curso de especialização a necessidade de um referencial teórico era iminente e a base teórica metodológica bem definida a psicanálise As supervisões eram periódicas e as reuniões de equipes também Os estagiários atendiam famílias encaminhadas pelo fórum nas quais os pais ou parente próximo eram suspeitos de abusar sexualmente de uma ou mais crianças no interior do grupo familiar Sua segunda experiência veio quando após ter terminado o curso de especialização assumiu a função de psicólogo em um Centro de Referência na periferia da capital paulista o qual atendia crianças adolescentes e famílias em situação de violência sexual A equipe era multiprofissional e as famílias atendidas não necessariamente tinham processo aberto no fórum então muitas vezes cabia à equipe do Centro de Referência fazer a primeira notificação ao órgão competente nesse caso o Conselho Tutelar seguindo assim os preceitos do ECA Dessa forma pôde trazer reflexões sobre a diferença da condução do tratamento entre as duas instituições André foi o sujeito que mais apresentou questionamentos a respeito do tema incesto e abuso sexual a respeito das denúncias e da perícia e principalmente sobre a interface dos campos Psicologia e Direito Trouxe também conteúdos sobre a moralidade que permeia os trabalhos sobre a sexualidade Com respeito à moralidade supomos que o aparecimento desse tema em sua fala esteja ligado ao fato de André ser filho de mãe religiosa e pai pastor de igreja protestante Contanos que em seu processo de análise pessoal deparouse com esse fato a religiosidade o que lhe rendeu muitas elaborações Na faculdade eu fiz uma monografia sobre a religiosidade e agora estou preparando um mestrado em sexo faço um rascunho de mestrado nessa área que envolve isso religião e sexualidade Então é reflexo da minha 89 história toda Sobre seu processo analítico diz Tem sido gostoso pensar essas coisas até porque eu estou em análise há 6 anos já pensando essa história toda André cumpre os quesitos necessários para oferecer uma escuta de qualidade a seus pacientes está em processo de análise é estudioso e se submete à supervisão Mesmo assim vivencia conflitos que ficaram mais evidentes na segunda entrevista Todo analista é avisado de que o desejo inconsciente que o move é matériaprima de seu trabalho e que combinado ao que move inconscientemente o paciente poderá construir na transferência o caminho da cura do analisando A obrigatoriedade da notificação Apesar de ter a conduta de orientar uma pessoa da família a fazer a notificação ao órgão competente nos casos de suspeita de abuso André diz que é uma relação complicada o psicólogo clínico da família se fizer uma denuncia ele quebra o vínculo Conta o caso de uma psicóloga sua supervisionanda que fez a denuncia mas encaminhou o caso para outro psicólogo atender Ela viu que o vínculo não rolou depois da denúncia Porque ficava uma ambivalência Refletindo sobre o que poderia acontecer a nível da fantasia da criança para justificar a quebra de vínculo André diz que a criança pode ter pensado assim que legal que bom que você entrou na minha família denunciou meu avô isso não vai mais acontecer comigo obrigada eu te odeio porque meu avô está quase sendo preso por tua causa Referese ao sentimento de culpa que a prisão de um membro da família pode gerar na criança então foi culpa minha que meu avô está sendo julgado Dessa forma nosso sujeito sustenta uma opinião Por isso que eu acho que não dá pra você julgar encaminhar pro judiciário e cuidar ao mesmo tempo Questiona o ECA que obriga o psicólogo a denunciar diz se na minha concepção denunciar naquele momento pode ser pior do que não denunciar Acho que são aí entra nessa coisa do ato médico a medicina vai dizer pra psicologia o que é que ela deve fazer Diante do impasse da denúncia André tomou a seguinte decisão Eu tenho que denunciar mas eu posso esperar um ano pra ver se essa mãe toma consciência e consegue se essa família some do meu contato então eu tenho que fazer isso Diz ainda que apesar de sua postura ter ambivalências legais do ponto de vista ético é o melhor a fazer Aponta para o fato de que uma denuncia infundada pode repercutir negativamente à toda classe de psicólogos O ECA fica nessa coisa que eu tenho que denunciar mas se eu denuncio eu corro sério risco de cortar o vínculo que outro psicólogo ele vai confiar também se eu for processado posso tentar justificar isso 90 Adverte ainda O psicólogo que atende e denuncia ou viceversa que faz essas duas funções poderia ser comparado ao homem que gera uma criança e depois transa com ela Ele também faz as duas funções A perícia Quando se refere a perícia André diz Eu não sei se tem alguma coisa mais confusa na psicologia do que isso Questiona sobre a perícia nos casos de abuso e diz são duas ciências diferentes são duas disciplinas Nosso sujeito prossegue em suas reflexões dizendo Essa idéia de Freud que o que vai dar neurose é a fantasia não necessariamente o fato Essa idéia de Freud é muito polêmica Os advogados caem matando a maioria dos psicólogos falam mal Nessa frase revela divergências no interior do próprio campo da psicologia Num primeiro momento André separa o psicólogo clínico daquele que trabalha no fórum como pertencentes a campos diferentes do conhecimento Fala sobre os conflitos que eles psicólogos do fórum vivem quando precisam dizer ao juiz se houve abuso ou não Ressalta que para o clínico não importa se houve abuso de fato porque pode ser uma fantasia o que importa é como ficou isso na mente do paciente Em sua opinião o psicólogo do fórum quer inverter as funções quando espera que o clínico faça perícia quem tem que dizer se houve abuso ou não é o psicólogo do fórum Mais à frente André começa a refletir de forma mais solidária em relação aos psicólogos do fórum Eu acho que é muito complicado o trabalho deles dizer se houve abuso ou não isso não é função deles é do juiz Ressalta as cobranças que o juiz faz aos psicólogos do judiciário e você que é psicólogo teve abuso ou não aí ela a Psicologia está submissa ao Direito Apesar de parecer contraditório André começa a caminhar no sentido de buscar a interface entre os campos Vamos detalhar mais algumas das questões levantadas por André O depoimento em juízo Quando André exerceu o cargo de psicólogo em Centro de Referência situado em uma comunidade bastante carente enfrentou embates com a área jurídica pois a equipe do fórum demandava que ele fosse depor psicólogos do fórum que queriam que eu fosse depor e eu não cheguei a ir eu mandei uma carta mas queriam que a gente fizesse o trabalho de dizer se tinha abuso ou não Nosso sujeito continua se perguntando sobre as questões éticas do depoimento em juízo e servese de metáforas para sua reflexão Se no meio de um atendimento eu digo pro 91 juiz Olha realmente aconteceu uma relação entre o pai e a filha Aquela filha podia ficar com raiva de mim psicólogo dela porque eu denunciei o pai dela A obrigatoriedade de tratamento André é favorável à obrigatoriedade do tratamento Eu acho que funciona mais do que se for por adesão livre né porque a hora que você começa a mostrar as coisas feias da família as coisas que estão acontecendo eles saem Entende a figura do juiz como a de um pai que capaz de colocar limites àqueles que não os tem E se não tiver a figura de pai dizendo vai ter que fazer terapia sim é melhor ir forçado e resistente mas ir do que ficar resistente e sair O entrevistado acredita que o alcance da terapia realizada em consultório de casos de abuso sexual é muito pequeno Se não for na rede porque a rede é assim o judiciário está sabendo Acho que a psicologia não tem esse poder de pai de obrigar vai sim Às vezes a tentativa de interdição por meio da terapia é mal sucedida Bom eu falei mas vamos tentar mais um pouco pra ver se essa família toma consciência do que está acontecendo porque se eles conseguirem tomar consciência de que não é normal transar entre si fazer de conta que não vê acho que talvez estruturaria a família Nesse caso por exemplo não teve esse alcance teve que entrar um juiz Aí tem que entrar um pai no meio né falar ó ou vai sair ou eu bato em você ou eu te prendo Nosso sujeito percebe a autoridade do juiz como abusiva com os técnicos quando impõe a eles que produzam laudos periciais ou quando o poder judiciário faz leis como o ECA que torna compulsória a notificação Por outro lado considera importante o fato do juiz determinar que a família faça psicoterapia A política institucional Quando atendia os casos dentro da Universidade André sentiase protegido por não precisar utilizar a sua escuta clínica para fazer perícia nos casos de abuso sexual Diz Como ali era uma questão de saúde mental não tinha essa questão assim teve relação penetração ou não Naquela instituição o importante no atendimento era compreender como a criança ou adolescente simbolizou o possível abuso Ressalta ainda que a instituição já comprou muita briga com os diferentes campos do saber e principalmente com o jurídico quando decidiu sustentar a posição de que a equipe não faria perícia nos casos atendidos Segundo o entrevistado o Fórum já entendeu 92 Por isso a instituição onde André foi estagiário resolveu atender somente casos que já notificados ao Fórum e com a condição de que seus profissionais não seriam chamados para periciálos André diz que na universidade o serviço de atendimento funciona num ambiente protegido Nosso sujeito tece críticas aos núcleos de atendimento da rede de proteção que não têm estrutura para atender a demanda de casos de abuso sexual Diz uma onguezinha que está lá na periferia que não tem judiciário e nem Conselho Tutelar perto aí não dá pra fazer clínica que faça essa coisa de denúncia mesmo Interface Psicologia e Direito O Direito entende que uma criança que está sendo abusada pelo pai pela mãe isso faz mal é crime mas não leva tanto em consideração a questão que se eu tirar essa criança ou esses adultos do lar também faz mal e isso não é crime Essa frase emitida pelo entrevistado demonstra a cerne do conflito entre os campos O juiz preocupase em evitar que a criança venha a sofrer novas violências e procura aplicar bem a lei Já o psicólogo preocupase com as conseqüências dessa aplicação da lei na vida da criança A aplicação da lei pode gerar mais uma violência André justifica a importância da psicoterapia afirmando que o setting terapêutico não possui estatuto de investigação mas sim um lugar para falar da disfunção da dor que a família tem Quando eles podem falar da dor e eles sabem que não estão sendo julgados eles costumam aderir e aí ficam André tenta buscar uma interface entre os campos dintinguindoos porém sem separálos completamente Nosso sujeito faz uma proposta Então vamos fazer o seguinte o judiciário cuida da justiça o judiciário o tutelar ONGs que trabalham com isso e a psicologia cuida do emocional Acho que aí dá pra fazer um trabalho legal André se indigna e diz Como é que um juiz ou alguém do jurídico vai dizer o que é que eu tenho que fazer ou não na minha profissão na minha área técnica se ele não sabe o que é aliança terapêutica Sobre a Psicologia e o Direito acrescenta São áreas distintas Acho que a idéia da interface vamos pensar vamos falar junto Então chama um psicólogo pra pensar como é que a lei pode ser melhor Sua fala aponta para uma saída um diálogo entre os campos a partir da disposição do Direito em compreender a Psicologia A gente tem os juizes aqui de São Paulo que estudam 93 psicologia Eu lembro o dia em que eu vi sabe o doutor fala o nome do juiz com o livro do Winnicott eu falei que legal um juiz lendo Winnicott que bacana isso A gente está debaixo de uma Constituição antes de ser psicólogo eu sou cidadão brasileiro conclui André 512 As questões de Cláudia Eles psicólogos queriam dar um passo maior do que podiam por exemplo ao se meter no jurídico Cláudia também trabalhou num Centro de Referência e atendeu crianças adolescentes e famílias em situação de violência sexual durante dois anos primeiramente como psicóloga e depois como coordenadora técnica Esse Centro era financiado pelo poder público municipal Havia psicólogos assistentes sociais educadores e um advogado na equipe Nesse Centro a equipe optou por atender casos encaminhados do Conselho Tutelar ou da vara da infância Esse manejo desobrigava o profissional a fazer a primeira notificação visto que esta já havia acontecido e a criança já tinha um prontuário na Vara da Infância Assim o tratamento psicossocial aconteceria independentemente do processo na justiça Seu depoimento traz muitas interrogações a respeito das questões de ordem política que atravessavam o cotidiano do seu trabalho e sobre o despreparo dos profissionais de sua equipe O que motivou Cláudia a trabalhar na área de atendimento a casos de abuso sexual contra a criança e o adolescente foi a possibilidade de contribuir para a área social Não sabemos quais fios de sua história pessoal que a levaram a tal escolha mesmo porque ficou pouco tempo no programa e pelo que sabemos não voltou mais a trabalhar na área Cláudia diz sentir grande angústia ao lidar com o atendimento a crianças e adolescentes com suspeita de abuso sexual Fala sobre sintomas físicos uma menina de um ano e meio que foi abusada e essa menina foi parar no hospital eu não agüentei senti ânsia de vômito Mesmo estando em análise e supervisão após sua saída da instituição Cláudia não voltou a escutar casos de abuso sexual provavelmente por lhe ser tão aversivo O aspecto que mais marcou essa entrevistada foram as dificuldades político institucionais enfrentadas por ela e por sua equipe Além da problemática dos casos de abuso sexual ela e sua equipe eram violentadas por atraso no pagamento de salários e por 94 condutas desrespeitosas por parte dos supervisores do setor público Essa duplicidade de violações à integridade e à subjetividade dos profissionais levou à saída gradativa dos técnicos e depois de alguns meses ao fechamento do programa A abordagem da questão política foi bastante delicada durante essa entrevista pois a entrevistada não queria expor sua chefia e também não queria expor a si mesma em um depoimento que pudesse vir eventualmente a prejudicála no futuro Cláudia fez questão de respeitar os limites éticos de uma entrevista que seria publicada pedindo para retirar nomes e fatos constrangedores Mesmo assim conseguiu expressar seu malestar que ficou explicito nas linhas e entrelinhas de sua fala O impacto da escuta de casos de abuso na subjetividade de quem escuta A entrevistada traz alguns exemplos de como a fantasia do psicólogo pode ser despertada na escuta de casos de abuso sexual Conta sobre um caso que deixou toda a equipe com muito medo pois o suposto abusador era percebido como ameaçador A equipe chegou a acionar a gerência municipal e a instituição para garantir a sua segurança Cláudia não via exatamente a necessidade de um segurança mas percebia que a equipe estava ameaçada simbolicamente Diz É o olhar que a presença da pessoa significava e o que isso podia dizer Cláudia conta que recusou atender casos de crianças muito pequenas que foram abusadas sexualmente porque não se sentia em condições de fazêlo Diz mexeu comigo Pensava na minha filha fiquei com aquela sensação de que poderia acontecer com a gente E eu fiquei em pânico A gente entra em pânico mesmo O despreparo da equipe Cláudia fala que havia profissionais que a preocupavam Diz não tem a menor noção nem como começar um atendimento Conta que um dos educadores contratados revelou em uma reunião de equipe que era exinterno da FEBEM e lá tinha sofrido abuso sexual por isso considerava a si mesmo conhecedor do assunto muito mais que todo o grupo Ele escancarou para a equipe o que ele tinha passado Cláudia diz que a partir desse fato e como o moço não estava em processo de análise pessoal achou por bem não mantêlo na equipe e lamenta Eu fui inteiramente massacrada pela equipe fui colocada e representada como uma pessoa autoritária Com o passar do tempo observou que a qualidade do serviço prestado estava sendo prejudicada Diz A gente estava doente Apesar de buscar supervisão segundo Cláudia a 95 equipe não conseguia falar sobre as questões e aproveitavam o espaço para formar um conluio contra a coordenação O cuidado com o cuidador Nossa entrevistada fala como enquanto coordenadora e portanto responsável pela qualidade do serviço prestado pela instituição lhe preocupava a formação de sua equipe sentindose segura quando o psicólogo era bom Diz Eu ficava tranqüila havia técnicos que eram bons eram técnicos supervisionados eram técnicos que tinham passado um pouco por análise e só não estavam em análise porque não tinham condições financeiras de bancar Diz que o profissional além de se tratar precisa ter uma formação continuada Afirma não dá pra você ficar sem estudo sem um grupo de estudo análise e atendendo Não dá pra fazer sem esse tripé Caso contrário o técnico pode adoecer ou atuar com os pacientes como foi o caso do educador que ela teve que dispensar Diz Eu vi técnicos faltando atrasando os técnicos faltavam muito Cláudia fala que o profissional que não se cuida não consegue saber quais os seus limite e acaba não conseguido saber sobre suas potencialidades A política e o des amparo institucional Cláudia diz que havia muitas questões de ordem política atravessando cotidiano dos profissionais desde a concepção e constituição do Programa Diz Eu me sentia muito incomodada politicamente porque é uma zona de política e de como foi constituído esse programa Eu sofria muito com isso Ressalta acontecia um desrespeito por parte da supervisora do poder público com relação à pessoa de Cláudia Acredita que isso acontecia por ela ter feito parte da equipe que havia saído do programa Cláudia foi a única técnica que ficou no Centro que fez parte do grupo anterior considerado como fracassado pela supervisora Apesar da entrevistada não mencionar tivemos notícias de que a equipe anterior não conseguiu lidar com algumas questões políticas financeiras e institucionais e também foi gradativamente se retirando do programa Essas questões foram trazidas com grande malestar pela nossa entrevistada No momento em que falou sobre essa questão ficou emocionada e revelou tristeza ao dizer que a falta de repasse de verba fez com que o programa fosse fechado Apesar de receber salário diz Questionei muito esse lado de subutilização do profissional Eu permanecia naquele trabalho Eu não me sentia remunerada 96 Por outro lado Cláudia nos fala de iniciativas por parte da instituição que refletia positivamente no trabalho Diz Tínhamos uma gerência que providenciava algumas coisas legais instrumentalizar os técnicos teoricamente Achava super legal Mesmo não podendo pagar em dia seus profissionais havia um movimento da instituição na tentativa de aliviar as tensões entre a equipe gerada pela falta de repasse de verba do poder público municipal Interface Psicologia e Direito Cláudia é bastante crítica quanto à interface da Psicologia com a área jurídica em relação à elaboração de laudos e relatórios sobre a questão do abuso sexual Diz A gente parou de dar laudos para o juiz Isso a equipe fez bem A coordenadora disse que ao estudar sobre o limite da psicologia em dizer se houve ou não abuso sexual é muito grande e a equipe decidiu que não iria fazer laudos Diz Então a equipe entrou sabendo que não responderia não apresentaria laudos para o juiz porque isso não era da nossa alçada Sua opinião é bem definida quanto à falta de preparo do psicólogo em dialogar com o campo da justiça Diz Ele queriam dar um passo maior do que podia por exemplo se meter no campo jurídico Eu acho que isso é o mal do psicólogo Diz ainda que havia comentários de que o juiz da região deu a guarda de uma criança para o abusador Esse fato afastou mais ainda a possibilidade de interface do Centro de referência com as Varas da Infância e da Família Cláudia ainda aponta que havia uma boa relação com o conselheiro tutelar da região e que sua equipe estava buscando contato com a Saúde para implantar um trabalho de rede Diz A gente estava começando a fazer um trabalho de rede com os conselheiros tutelares com as subsecretarias A gente estava entrando em contato com o SUS para fazer um trabalho de rede Em seu ponto de vista os conselhos tutelares e a área da Saúde seriam os interlocutores do Centro de Referência para um trabalho em rede e suporte para a prevenção da violência sexual contra a criança e o adolescente naquela região 97 513 As questões de Maria O cara abusador sexual foi pra cadeia ele morreu lá assassinado Bateram estupraram A violência maior que a gente vê na nossa sociedade tem tudo a ver com a violência doméstica tudo a ver com a dinâmica familiar Maria trabalha há mais de dez anos em uma organização não governamental com a missão de prestar atendimento psicossocial a todo tipo de violência contra crianças e adolescentes inclusive o abuso sexual A instituição é conveniada com o poder público municipal que é seu maior mantenedor A equipe da ONG é formada por psicólogos e assistentes sociais Nos primeiros anos que sucederam a inauguração do serviço os profissionais recebiam casos de todos os equipamentos da rede de proteção e muitas vezes tinham a responsabilidade de fazer a notificação ao Conselho Tutelar Com o tempo passaram a atender somente casos encaminhados pelo Conselho ou seja casos em que a instância jurídica já havia sido acionada Nossa entrevistada faz diagnóstico atende casos individualmente e em grupos Também faz orientação a pais Emite freqüentemente relatórios para a Justiça nos quais opina se houve ou não abuso sexual Maria está montando pela primeira vez um grupo psicoterápico de homens abusadores sexuais de crianças e adolescentes A equipe reúnese semanalmente para a discussão de casos e há pouco tempo os diretores da instituição permitiram supervisões técnicas dentro do horário de trabalho porém quem as custeia são os profissionais Quanto à análise pessoal diz que já passou por psicoterapia considera importante mas hoje não dispõe de condições financeiras para retornar Também não tem estudado devido à falta de tempo mas diz que em breve pretende voltar a fazer grupo de estudo na área de musicoterapia Maria diz que o fato de não querer minimizar as injustiças é que lhe motiva a trabalhar na área Sabe eu sou uma pessoa eu não gosto de injustiça A entrevistada está avisada quanto ao que a motiva mas não o relaciona a fatos de sua história de vida Ela trabalha com grupos de orientação a pais Com adolescentes utiliza a técnica de musicoterapia Gosta muito dessa atividade Diz É o que me salva Essa escolha também está relacionada a sua história pessoal que apesar de não transcrita na entrevista me foi revelada após o seu término Maria começou a estudar música na primeira infância e hoje a 98 toma como um hobby E vale a pena ressaltar que seu pai é advogado Então supomos que sua escolha em trabalhar na interface com a Justiça está ligada a esse fato Maria foi o sujeito que trouxe o discurso mais carregado de angústia e sofrimento ao falar de seu trabalho Eu lembro muito da minha filha eu choro Sente um malestar em relação ao seu trabalho porque é muito pesado Quantos adolescentes que eu atendi que já morreram pelo menos uns quatro Porém acredita ter uma função social muito importante O impacto da escuta à violência e as formas com que o psicólogo se defende Maria nos conta sobre como é difícil o cotidiano de seu trabalho Diz É difícil trabalhar com violência doméstica é muito difícil eu às vezes me sinto muito mal Choro quando eu saio daqui Informa que os pais abusadores agridem com palavras a equipe técnica Diz Eles xingam a gente de vagabunda piranha Tem hora que você tem vontade de falar dá vontade de descabelar Fala do impacto que a violência sexual causa na subjetividade dos profissionais que passam a atuar ou seja repetir o que os pacientes trazem A equipe fica tão chocada que se defende muitas vezes xingando nos bastidores dos atendimentos o abusador dizendo Que cachorro esse cara um monstro Nossa entrevistada acredita que o psicólogo às vezes se torna muito violento tem um discurso que acaba reproduzindo a violência quando produz falas assim Põe no paredão esses caras Manda matar Diz que ela também se inclui nesse discurso e fala Sabe quantos caras que atendi e que aconteceu isso O cara foi pra cadeia e ele morreu lá assassinado Bateram estupraram Maria aponta sentimentos muito ambíguos pois acredita que o psicólogo não deveria ter essa opinião a respeito de um ser humano Diz Sempre fui a favor dos Direitos Humanos mas você olha pra um cara que abusou de uma filha e você fala vai pra cadeia eu quero que ele morra lá como se se fosse Deus e o pior é que o cara morreu lá e a culpa A entrevistada percebe que seu trabalho a deixou com um olhar contaminado e se percebe vendo violência em tudo Diz principalmente em relação a minha família minha filha os filhos de amigos então é uma situação que pega um pouco O des amparo institucional A entrevistada afirma que trabalha oito horas por dia quarenta horas por semana escutando casos de violência contra crianças e adolescentes na grande maioria das vezes cometida pelos próprios pais Por isso tem consciência de que todos deveriam fazer terapia 99 porém os salários são baixos e o profissional não pode pagar Aponta a pressão do serviço público municipal para que não haja fila de espera na instituição Assim a profissional diz que atende um paciente em seguida do outro Esse fato somado a outros já mencionados a faz se sentir violentada Diz a gente também é violentado uma violência meio velada Maria diz que a instituição atende as pessoas abandonadas e acaba por abandonar seus técnicos não dando apoio e não compreendendo seus limites Acredita que a instituição violenta psicológica e financeiramente seus profissionais Diz E aí eu me questiono sobre a qualidade do atendimento Depoimento em juízo Maria nos fala que já perdeu as contas de quantas vezes já foi depor em juízo Diz Eu fico muito nervosa então você sai de lá com medo de ser ameaçada Ressalta que a equipe é respeitada pelo juiz da Vara da Infância no município entretanto é desconsiderada pela promotora Diz Ela chamou a gente de uma palavra que a gente foi ver no dicionário era preguiçoso Contanos um episódio que considerou violência psicológica cometida por uma juíza durante a inquirição a uma criança de sete anos Maria acompanhava sua paciente na audiência e mesmo havendo comprovação do abuso pelo exame de corpo de delito e ainda os relatórios a juíza fez questão de que a criança falasse Perguntou insistentemente onde o pai mexeu Fala onde foi A criança não queria falar chorava e agarrava a psicóloga Então ela chorando apontou a vagina E eu falei para a juíza Olha o que a senhora está fazendo A entrevistada fala que já foi em audiência de vários agressores sexuais e sempre pede para não fazêlo na frente do réu por motivo de segurança pessoal Diz Então é insalubre isso você tem medo de sair de lá e tomar um tiro ou o cara descobrir onde você mora Você não tem retaguarda da instituição para isso não tem você vai na fé em Deus entendeu Conta a história de um velhinho que abusou de uma adolescente e após o depoimento da psicóloga ele morreu Ele não morreu na cadeia porque eu acho que ele se matou antes É muito difícil é muito insalubre você fica se sentindo responsável Perícia Apesar da instituição não fazer perícia judicial os relatórios produzidos têm grande influência na decisão judicial 100 Maria considera que a relação com o Fórum é muito estressante para o psicólogo Acredita ser muita responsabilidade Você tem que fazer relatório e você vai decidir a vida da pessoa de uma certa forma Cuidando do cuidador Durante toda a entrevista Maria menciona a necessidade do psicólogo que trabalha na área da violência estar em processo terapêutico para preservar sua saúde mental Entretanto para oferecer um atendimento de qualidade o profissional necessita de respaldo institucional incentivandoo a buscar supervisão do trabalho realizado e também ter a aprimorarse e atualizarse profissionalmente Diz Então eu acho que a gente teria que ter um espaço para estudar para falar terapia para refletir supervisão 52 Um diálogo possível Já não é de hoje que o campo da justiça em especial a área da perícia técnica tem procurado na metodologia psicanalítica subsídios para sustentar o trabalho de investigação criminológica Em 1906 alguns juízes e promotores preocupados com a veracidade dos testemunhos efetuados nos tribunais europeus sobre os quais apoiavam algumas condenações passaram a utilizar a técnica da associação livre como meio de extrair a verdade dos réus e testemunhas Essa técnica baseada em um jogo infantil consiste em apresentar à pessoa uma palavraestímulo e ela deve pronunciar outra que lhe venha à cabeça e assim sucessivamente Freud preocupado com o uso da associação livre por pessoas que tinham interesses outros que não a cura das neuroses proferiu um seminário a convite do professor Löffler1 a fim de esclarecer entre outras coisas as semelhanças entre os campos da psicanálise e da justiça em relação à busca da verdade e principalmente realçar a diferença entre a posição do analista e do juiz em relação aos suspeitos de terem cometido crimes Para ele tanto o criminoso quanto o neurótico se defrontam com um segredo alguma coisa oculta Porém diz Freud o criminoso conhece e oculta esse segredo enquanto o histérico não conhece esse segredo que está oculto para ele mesmo FREUD 1986 1906 p 99 1 Wilhelm Löffler professor de medicina e diretor da policlínica médica da Universidade de Zurick da época 101 A tarefa de desvelamento do segredo aproxima os dois campos Tanto o terapeuta psicólogo ou psicanalista como o juiz acercamse de técnicas para descobrilo Entretanto a diferença está no que cada um faz com o segredo desvelado Esse fato vai determinar a colaboração ou não do sujeito no acesso ao segredo Na psicoterapia supõese que o paciente ajude a combater sua resistência porque espera lucrar com essa investigação isto é livrarse do sintoma e curarse O contrário ocorre com o criminoso Ele não cooperará com o trabalho do juiz ou com a sua equipe pois se o fizesse estaria trabalhando contra si próprio Na psicanálise a resistência é inconsciente no âmbito jurídico é consciente Freud diz aos juizes e aos profissionais desse campo que o escutavam Os senhores em sua investigação podem ser induzidos a erro por um neurótico que embora inocente reage como culpado devido a um oculto sentimento de culpa já existente nele e que se apodera na acusação Não julguem essa possibilidade como invenção ociosa lembremse que isso pode ser observado com freqüência na infância Muitas vezes uma criança acusada de uma transgressão nega veementemente sua culpa embora chore como um criminoso desmascarado Talvez pensem que a criança mentiu ao afirmar sua inocência mas isso nem sempre é verdade Pode ser que embora não tenha cometido a falta de que a acusam possa ter cometido uma outra que permanece ignorada e que não lhe foi imputada FREUD 1986 p 103 grifo nosso O autor acrescenta que um adulto muitas vezes comportase como uma criança e é tarefa árdua e talvez impossível aos juristas distinguir um indivíduo autoacusado daquele que é realmente culpado Ainda adverte aos juizes e aos peritos que não é possível aplicar a metodologia psicanalítica num interrogatório para uma investigação criminal Apesar de seu esforço em advertir os juízes sobre a impossibilidade da psicanálise em contribuir com a perícia criminológica em 1930 Freud deparase com a utilização das teorias do complexo de Édipo e da repressão no laudo de um perito da Faculdade de Medicina de Innsbruck sobre Philipp Halsmann jovem judeu de 22 anos para justificar sua condenação por crime de parricídio Após a condenação do jovem foi feita a apelação para a corte de Viena O Dr Josef Kupfa a fim de montar a defesa do caso solicitou a opinião de Freud sobre o assunto que 102 analisou o laudo Freud diz que a Faculdade levou longe demais as alegações do complexo de Édipo e destaca pontos que considera injustos Outros grandes nomes da época foram convidados a auxiliar em um movimento em defesa de Halsmann liderado por sua irmã Liuba entre eles Albert Einstein Este apelou ao presidente da Áustria porém sem resultado Mais tarde o jovem foi libertado porém foi deportado da Áustria e passou a viver nos Estados Unidos Moisés Kijak1 escreveu um artigo no qual afirma que as questões políticas e as de ordem antisemitas com necessidade de encontrar bodes expiatórios podem ter contribuído para a incriminação do rapaz El antisemitismo tenía en Austria una vigencia que provenía desde muchos siglos atrás Se exacerbaba en épocas de inestabilidad social en las que la necesidad de encontrar un chivo expiatorio hacía de los judíos y de otras minorías un blanco fácil Los antisemitas de derecha identificaban a los socialdemócratas con los judíos Tanto a unos como a otros demonizados en los eslóganes propagandísticos se los tenía por causantes de todos los males KIJAK 2004 v 59 nº 4 Para Kijak são os integrantes do aparato jurídico que Freud acusa de cometer grave delito ao perverter sua teoria para incriminar um inocente O caso Halsmann ilustranos que uma condenação pode estar influenciada por questões políticas de uma época e que mesmo com toda adversidade alguns personagens da história não se furtaram a prestar solidariedade ao jovem Desde a década de 1930 a psicologia evoluiu em seus conceitos e o campo da ciência jurídica também No capítulo 2 demonstramos que a Declaração dos Direitos Universais do Homem foi um marco histórico que fez dos direitos humanos um ideal almejado pela maioria das sociedades ocidentais Assim os tribunais foram se adaptando e buscando cada vez mais respaldo nos diversos campos do conhecimento principalmente na medicina e na psicologia para embasar as decisões judiciais na área de família varas de família e área criminal vara criminal e em nome da justiça aplicar corretamente a lei Levando em consideração o desenvolvimento da criminologia e a participação da psicanálise como campo do conhecimento utilizado para embasar muitos laudos periciais 1 Revista de la Asociación Psicoanalítica Argentina Sociedade Componte da la Asociación Psicanoanalítica Internacional Volume 59 nº 4 OutubroDezembro 2004 103 Lacan 1950 profere um seminário na XIII Conferência dos Psicanalistas de Língua Francesa intitulado Introdução Teórica às Funções da Psicanálise em Criminologia Sua fala vai bem mais longe do que a de Freud quanto ao fato de as questões culturais determinarem o delito Ressalta que o crime e o criminoso não podem ser concebidos fora de sua referência sociológica lembrando a máxima de São Paulo de que é a lei que faz o pecado Diz ainda que toda sociedade comporta uma lei seja tradicional ou escrita de costume ou de direito LACAN 1998 p 128 É a partir desses parâmetros que se pode identificar os níveis de transgressão que definem o crime Entretanto para se aplicar punições é preciso um grau de assentimento subjetivo por parte do criminoso necessária à própria significação da punição e à responsabilização O autor lembra que a psicanálise descobriu tensões na relação do indivíduo com a sociedade que revelam um malestar constitutivo que desnuda a própria articulação da cultura com a natureza LACAN 1998 p 129 A teoria psicanalítica profere que é por meio do sentimento de culpa que surge no homem o supereu o que sustenta sua sujeição às leis sociais Entretanto há uma parte que perpassa pela singularidade do sujeito e esta pode levá lo a cometer crimes abomináveis como o incesto e o parricídio Mesmo assim estes não deixam de ser atos que tem sua relação com a lei ainda que seja para contrapôla ou denegá la Lacan comenta sobre a dificuldade do trabalho dos peritos quando prestam depoimento em juízo sobre certos crimes Revela suas observações a respeito dos entraves por que passam esses profissionais Diz É flagrante a falta de um denominador comum entre as referências sentimentais em que se confrontam o ministério público e o advogado por serem as do júri e as noções objetivas que o perito traz E podemos ver essa dissonância no espírito do próprio perito voltarse contra sua função num ressentimento que se manifesta num prejuízo de seu dever LACAN 1998 p 141 Grifo nosso Essa falta de um denominador comum ou seja a ausência de um entendimento entre advogados e peritos pode gerar malestar neste último Porém o autor não acredita ser possível esse entendimento já que ambos partem de pressupostos diferentes no cumprimento de sua função Como já dissemos a verdade do sujeito que cometeu um delito não pode ser 104 revelada Assim o criminoso trabalhará no sentido de se inocentar e não de esclarecer ao juiz sobre a verdade dos fatos Em relação às implicações aos operadores de Direito ou seja juízes advogados e promotores nos casos de suspeita de abuso sexual à criança e ao adolescente Dodke promotora de justiça revela que é notória a dificuldade que esses profissionais têm em ouvir uma criança A autora pesquisou seis inquirições feitas por juízes a crianças supostamente abusadas sexualmente Em todas elas observou a inabilidade dos juízes dos defensores e dos promotores em estabelecer laço com a criança que permitisse a ela se colocar bem como a dificuldade em falar sobre o tema elaborando perguntas de difícil interpretação Assim acredita que os operadores do direito para ouvir a criança precisam estar emocionalmente preparados para não rejeitar a experiência abusiva e em conseqüência a própria criança DOLKE 2001 p 96 Sugere uma interlocução com o campo da psicologia pois acredita ser necessário sensibilidade por parte dos profissionais do campo jurídico para entender que Precisamos descer dos nossos lugares no sentido mais amplo e permanecer ao lado da criança de modo a não deixála ainda mais oprimida e humilhada DOLKE 2001 p 96 A autora defende a idéia de que a questão de abuso sexual em especial o intrafamiliar ou seja o incesto precisa ser amplamente debatida e questionada Acredita que o debate não deve se dar somente quanto à forma com que são ouvidas as crianças mas também quanto à responsabilidade penal do abusador à forma de cumprimento da pena à viabilidade do tratamento psicológico aos pedidos de arquivamento dos processos à destituição do pátrio poder em razão da prática abusiva à dita negligência da mãe A problemática do abuso sexual infantil transcende o jurídico e também por isso precisa ser pensada e repensada DOLKE 2001 p 97 Refere que o campo jurídico precisa ter humildade em reconhecer seus limites e que seus operadores devem ter disponibilidade mental para um trabalho interdisciplinar aceitando propostas de outras áreas de conhecimento DOLKE 2001 p 97 Acreditamos que a partir da inabilidade dos juristas para interrogar as crianças é que o psicólogo foi sendo inserido nas audiências para falar no lugar da criança em especial nos casos da suspeita de abuso sexual infantil na intenção de ambos os campos tanto da 105 Psicologia quanto do Direito de proteger a criança de mais uma violência a de novamente tornar pública sua intimidade Assim o psicólogo passou a assumir para si a situação constrangedora a fim de poupar a criança de vivenciála O técnico submetese à inquirição para preservar a integridade psicológica da criança Trabalha em consonância ao sistema de garantia de direitos Entretanto esse ato não soluciona o malestar gerado pela situação de abuso apenas o desloca de lugar haja vista os depoimentos dos entrevistados desta pesquisa Arantes 2004 tem uma opinião crítica em relação à psicologia aplicada ao campo jurídico Compartilha da idéia de que a atuação dos psicólogos nesse campo deve ser entendida tanto como lugar de prática como prática a ser pensada ARANTES 2004 p 18 Ao perguntarse o que é a Psicologia aplicada à Justiça ou Psicologia Jurídica quais os seus conceitos e no que se fundamenta propõe uma reflexão mais ampla sobre o tema A autora caminha na esteira dos questionamentos dos filósofos Canguilhem e Thomas Herbert que se perguntam como e porque esse campo se constituiu quais os seus procedimentos e de que natureza é a sua eficácia Recorre a Foucault para ressaltar que as práticas jurídicas são uma das mais importantes formas modernas de subjetividade que mais do que punir buscarseá a reforma psicológica e a correção moral dos indivíduos FOUCAULT apud ARANTES 2004 p 21 Quanto à atuação do psicólogo nas Varas de Família em que as disputas de guarda não envolvem crimes como por exemplo nos casos em que há suspeita de abuso sexual ou incesto a autora questiona a atividade de fornecer subsídio ao magistrado na elaboração de laudos pareceres e relatórios para dizer quais dos progenitores se encontram em melhores condições de educar os filhos Diz Que não se reduza uma questão tão delicada como esta aos seus meros aspectos gerenciais Pelo menos não em nome da criança ARANTES 2004 p 22 Faz a mesma pergunta de Canguilhem onde querem chegar os psicólogos fazendo o que fazem Essa atividade avaliativa defendida por muitos teóricos e regulamentada pela legislação brasileira tem causado malestar entre a nova geração de psicólogos que preferiria ter de si uma imagem menos comprometida com a manutenção da ordem social vigente considerada injusta e excludente ARANTES 2004 p 23 Atribuise esse malestar ao instrumentalismo da psicologia a serviço da objetividade e racionalidade com a função de dominar e modificar o meio físico nesse caso dominar e modificar o sujeito humano A autora baseiase em Pessanha para sustentar sua hipótese 106 quando o ocidente através de Descartes e de Bacon fez a escolha por uma forma de cientificidade e deixou de lado tudo que fosse dotado de alguma ambivalência deixou de lado também as chamadas idéias obscuras Com isso deixou de lado tudo o que na condição humana é ligado ao corpo ao tempo à história e a concretude PESSANHA apud ARANTES 2004 p 23 A partir das reflexões da autora compreendemos a posição de André e Cláudia que se sentem extremamente incomodados com a relação estabelecida entre a Psicologia e o Poder Judiciário Para eles a submissão ao enquadre jurídico tornase um paradoxo ao psicanalista pois um laudo pericial se inscreve na lógica da objetividade a ser aplicada à absolvição ou à condenação do acusado Assim os entrevistados ficam tomados por certo malestar ao utilizar sua habilidade de escuta para servir a essa norma Pessanha amplia a discussão para além do campo da Psicologia Argumenta no sentido de que as ciências humanas não podem se reduzir ao discurso coagente da razão abstrata pretendendo verdades ahistóricas e universais Tratase portanto de preservar a temporalidade do tempo a humanidade do homem a concretude do concreto PESSANHA apud ARANTES 2004 p 24 Já Maria outro dos sujeitos desta pesquisa apesar de ser favorável à função do psicólogo como auxiliar do juiz no julgamento de um suposto agressor não deixa de anunciar o constrangimento que às vezes essa tarefa lhe implica Sua insatisfação porém é projetada para o âmbito institucional Se entendermos a problemática como sendo maior que a tensão entre Psicologia e Direito algo da ordem social como nos propõe Arantes olharemos tanto os conflitos de Maria como dos outros dois entrevistados como tensões inerentes aos profissionais das ciências humanas de nossa época por causa da exigência moderna de uma objetividade impossível às ciências humanas Mara Caffé também pesquisou sobre a atuação do psicólogo no campo jurídico Inicia seu livro perguntandose até que ponto é possível o exercício da psicologia no interior das práticas judiciárias já que quando o psicólogo ou psicanalista desempenha uma atividade de perícia judicial ele não está em sua casa e esse terreno lhe é estranho Descreve o contexto do processo judicial como dominantemente marcado pela busca de uma verdade objetiva com a utilização de procedimentos racionais Diz As alegações das 107 partes devem vir acompanhadas de provas sem o que são descartadas ignoradas não possuem credibilidade CAFFÉ 2003 p 81 A psicanálise também busca a verdade na compreensão da dinâmica familiar porém essa verdade não é da ordem da objetividade dos fatos Segundo a autora a escuta psicanalítica produz provas de natureza muito diferentes daquelas habitualmente demandadas no contexto judicial CAFFÉ 2003 p 81 Nesse ponto a autora está em consonância com Freud que considera difícil aplicar as técnicas psicológicas cuja finalidade original é a cura do sujeito a um campo em que essas mesmas técnicas serão aplicadas vez ou outra contra o próprio sujeito A noção de verdade para a psicanálise é completamente diferente da noção de verdade objetiva do campo jurídico Ela revela os termos de uma subjetividade que não se confunde com a subjetividade tratada pelos advogados promotores e juízes pois se elabora na compreensão de processos inconscientes de fantasias CAFFÉ 2003 p 81 Assim endossa a posição freudiana de que a verdade do sujeito em análise está escondida dele mesmo Já a verdade do sujeito submetido ao processo judicial está oculta somente para os profissionais da justiça e o sujeito não está disposto a revelála Já que o juiz é inabilitado para poder abstrair o que se passa no interior de uma família em litígio que fará tudo para ocultar a verdade busca nos técnicos um auxílio para o desvelamento da situação A função do psicólogo perito é prestar esclarecimento ao juiz acerca dos vínculos afetivos em vigência na família bem como da dinâmica familiar das relações estabelecidas entre pais e filhos CAFFÉ 2003 p 73 Dessa forma o laudo psicológico seria para o juiz como uma confissão daquilo que o periciando não admitiria nem para ele mesmo Caffé lembra que o discurso jurídico apresenta aspectos de grande formalidade por isso demanda profissionais especializados que falem por seus clientes os advogados A família deixa de se comunicar e o grupo passa a incorporar termos como alegação petição acusação defesa entre outros Quando chegarem ao psicólogo os membros da família deverão se reapropriar dos seus conflitos relatandoos sem a mediação de advogados a família iniciará um diálogo com um interlocutor muito diferente daqueles que fazem parte exclusivamente da instância jurídica o que irá situála num outro campo transferencial determinado por outra qualidade de recepção de sua problemática CAFFÉ 2003 p 75 A autora perguntase como articular um processo pericial à ética da psicanálise pois 108 Perito e periciando formulam em sessões privadas um saber particular sobre as condições desse último cujo destinatário é um terceiro o juiz de certo modo embora não totalmente alheio ao processo intrínseco dessa investigação e revestido de muito poder nas decisões que envolvem o sujeito exposto à perícia CAFFÉ 2003 p 82 Nesse sentido Caffé considera que o lugar do perito é caracterizado pelo traço normatizador e mesmo sancionador que emana por assim dizer da própria instância jurídica CAFFÉ 2003 p 84 O psicólogo perito traz para sua casa essa herança do seu lugar institucional auxiliar do juiz Esse fato fará com que o periciando projete sobre a figura do perito suas fantasias articuladas a um processo avesso ao da psicanálise ocultar conscientemente a verdade Assim a técnica da associação livre estará prejudicada Por outro lado o psicólogo também fica impedido de utilizar a atenção flutuante pois nem periciando nem psicólogo podem suspender as funções de julgamento suspensão necessária a um procedimento analítico Maria nossa terceira entrevistada que apesar de certo desconforto elabora relatórios e faz depoimentos em juízo é favorável a que o psicólogo auxilie o juiz na produção de provas O motivo de seu sofrimento é a desproteção em que se encontra perante o acusado no momento do depoimento ao dar um depoimento que o incrimine Assim sua postura está em consonância com a posição de Caffé que acredita em um diálogo entre os campos A demanda de alguém que busca o psicólogo para a produção de um laudo pericial não é a de um sujeito que sofre mas que precisa produzir provas para um processo judicial Assim a psicanálise surge no lugar de um saber que faltou ao juiz Um lugar sobre outro lugar GUIRADO apud CAFFÉ 2003 p 99 pois é o Direito que convida a psicanálise para os domínios de sua casa É a partir desse lugar faltante não só para o juiz mas também para a família que procura a justiça e seus agentes para institucionalizar o conflito no qual está mergulhada que pode haver alguma possibilidade de interlocução entre a Psicologia e o Direito Apesar de a condição da instância jurídica e a situação de perícia não apresentarem condições para que a família elabore seus conflitos pode eventualmente circunscrevêlo numa ordem favorável a essa elaboração CAFFÉ 2003 p 93 A chamada do perito pelo juiz abre a possibilidade da falta entrar em cena suspende momentaneamente o discurso jurídico e promove um deslocamento para as falas da família A perícia implica um silêncio 109 mesmo que temporário dos agentes judiciários e está marcada pela referência a um saber cuja importância é muito valorizada CAFFÉ 2003 p 94 Na experiência da autora Os discursos de cada membro da família se reproduzem a princípio tal qual visto nos autos do processo sob forma de alegações Porém conforme avançam logo tomam uma outra referência O perito em sua recepção específica promoverá um certo deslocamento de uma fala depoimento do ponto de vista da psicanálise poderíamos dizer fala da defesa para uma fala narrativa do sujeito fala da angústia emergindo assim uma nova possibilidade para o relato familiar CAFFÉ 2003 p 95 No discurso jurídico não há espaços para se falar da angústia A impessoalidade e o distanciamento dos profissionais do Direito permitem ter segurança ao falar e promovem uma dessubjetivação do conflito as famílias são faladas por seus advogados e desimplicamse do conflito Este é adaptado à sua norma com utilização dos termos jurídicos tais como reclamanda ré vítima menores entre outros sem contar a burocracia a exigência do dever de prova e os longos prazos O ato decisório está nas mãos do juiz Resumindo o discurso psicanalítico este supõe um sujeito dividido que desconhece a causa dos seus sintomas e sofrimentos A possibilidade de interpretar o conflito o desvencilha do recalque e diminui a capacidade de gerar sintomas Para isso o lugar do analista deve ser o do não saber construído cuidadosamente na relação com o analisante afastandose da racionalidade e da objetividade O primeiro se recusa a ser sabido e o segundo pelo contrário se oferece ao conhecimento por parte deste outro abstinente CAFFÉ 2003 p 176 Dessa forma a autora conclui que o juiz procura as condições interpretativas conforme as submete às normas jurídicas e o psicanalista procura as condições interpretativas conforme as condições de transferência O juiz e as partes de um lado e o analista e o analisando de outro ocupam de saída determinadas posições discursivas que condicionam o que vai ser produzido durante e ao final de cada processo ou seja a solução de conflito de que se trata e a experiência de subjetividade que se institui aqui e ali CAFFÉ 2003 p 190 191 110 53 O que faz o analista Moraes conta um caso de uma mãe que acusava o pai de seu filho de abusar sexualmente do menino que tinha 2 anos e 4 meses Ela procura a psicanalista dizendo que precisa de um laudo pedido por seu advogado para entrar numa ação contra o pai da criança para que este não o veja nunca mais MORAES 1998 p 216 Essa mãe conta que ouviu por trás do muro o pai dizer Deixa deixa não vai doer não E o menino Não papai dói muito E o pai Se não deixar o papai vai embora e não volta nunca mais MORAES 1998 p 216 Assim no pedido da mãe estava posto que esse voto se cumprisse Segundo o ECA a mãe não tem só o direito mas o dever de proteger essa criança Entretanto qual a ética do analista que como sujeito não deixa de estar horrorizado com o que o pai fez à criança Moraes acredita que não poderá ser seu horror a nortear sua conduta pois seu lugar enquanto portando a função analítica é o de escutar para além deste horror até que o sujeito possa vir a se escutar MORAES 1998 p 216 Havia um pedido de ajuda por parte da mãe quando se preocupava com os efeitos traumáticos do abuso vivenciado por seu filho e por isso Moraes aceita ver a criança mas colocou o laudo como possibilidade dependendo do que fosse mais importante para aquela criança e não como objetivo do trabalho A psicanalista levou em consideração a concepção de Lacan de que o sintoma da criança se acha no lugar de responder ao que há de sintomático na estrutura familiar e se define como representante da verdade do casal parental Assim perguntase como se estruturaria essa criança tomada como objeto de gozo perverso de seu pai MORAES 1998 p 217 Essa mãe que se separou do marido para proteger seu filho enquanto mulher perdia o homem que dizia amar MORAES 1998 p 217 Era obesa e sofria de bronquite Após a separação o menino passou a dormir entre uma e duas da madrugada na cama da mãe e acordavam ambos por volta do meiodia A criança alimentavase de doces e apresentava freqüentemente infecções respiratórias Assim Moraes observou uma certa forma de abuso por parte da mãe em virtude de manter o filho colado nela sem lhe dar oportunidade de se separar e buscar outras relações A analista parte do pressuposto de que 111 nas psicanálises com crianças muito pequenas escutandoas podemos intervir do lugar que nos é dado pela transferência e só assim verificar os efeitos dessas intervenções Nos ensinamentos de Freud a respeito do mundo infantil ele nos mostra que o lugar ocupado pelos pais na infância de um indivíduo tem menos a ver com suas qualidades reais do que com aquilo que os marcou também a eles na infância E que a criança pelo brincar são ordenadas pela repetição que é estrutural e nessa ordenação ela irá reproduzir simbolicamente situações que lhe foram originalmente traumáticas apropriandose delas ao refazer o que lhe foi feito MORAES 1998 p 218 O menino logo na primeira sessão brincou com bichinhos de pelúcia dizendo que o papai do bichinho é muito feio porque faz dodói no bumbum do filhinho Sempre que a analista encerra a sessão o menino não aceita chegando a gritar e a jogarse no chão ou até mesmo querendo levar consigo algum objeto da sala mesmo sendo dito que ele iria voltar num outro dia Diversas variações onde o que estava em jogo era a maneira como ele poderia deixar de ser objeto da decisão que era da analista e assujeitarse para depois vir a ser o sujeito desta ação MORAES 1998 p 218 Essa criança precisaria se assujeitar não ao gozo de um outro mas à Lei ao qual os pais também estão submetidos e devem transmitir Como já vimos nos capítulo 1 e 3 a vida em civilização exige que o sujeito humano abra mão de certas satisfações pulsionais e da relação objetal para poder viver em comunidade O corte a essa relação é a função primordial de um pai Esta é a primeira Lei transmitida a proibição do incesto Freud nos indica em seu artigo sobre o FordDa quando fala do momento em que a criança mediante o jogo do carretel renuncia à satisfação pulsional permitindo sem resistência o afastamento da mãe e se recompensa de alguma maneira com isso ao encenar ela mesma a presença e ausência com os objetos a seu alcance MORAES 1998 p 218 A analista conta que depois de algum tempo houve um dia em que o menino insistiu para que a mãe o levasse à sessão desde o momento em que acordou Chegou antes do horário e ao me ver levantase em êxtase e me diz Oi Silvia eu já estou indo ta bom Depois eu 112 volto Vira as costas e vai saindo enquanto eu lhe digo Ta bom volte na terça MORAES 1998 p 219 Depois desse dia o paciente passou a aceitar o encerramento da sessão se incluído no processo pois era a partir de sua fala que o corte se dava Nas entrevistas com a mãe esta informou à analista de que concluiu que precisava pôr limites a seu filho e o tirou de sua cama colocandoo num quarto que seria só dele A criança passou a ter horários para dormir e deu preferência à alimentação salgada deixando os doces para sobremesa As brincadeiras do menino foram se modificando por meio das histórias construídas com animais de pelúcia Ele foi construindo para si um pai articulado agora à Lei aquele que o alimentava muito ou o deixava de castigo com fome que era muito forte e protegia seu filhinho dos monstros Mas corria o risco de morrer e quando ia morrer seu filhinho chorava tanto que ele sobrevivia MORAES 1998 p 220 A mãe anuncia que o menino irá para uma escola que não poderia custear as duas despesas e pede o laudo Sua decisão estava tomada à revelia da opinião da analista Moraes fornece o laudo escrito nos seguintes termos Não foi dado à mãe o direito de tirar do seu filho o contato com o pai nisso estava sendo barrado seu pedido de ter a criança como só dela ao mesmo tempo firmava que o contato com o pai seria necessariamente assistido por pessoa adulta e responsável cuja indicação ficaria a critério da mãe para que não houvesse possibilidade de que o pai abusasse novamente dele Nestes termos havia a clara intenção de proteger o corpo da criança de que esta não fosse objeto de gozo de seus pais MORAES 1998 p 220 Todo analista de crianças está sujeito à interrupção da análise por decisão dos pais e não como um combinado entre analista e analisante Entretanto o desejo do analista é sempre de que a análise prossiga e se esta desencadeou efeitos no analisante adulto ou criança ela prosseguirá mesmo que a análise tenha sido interrompida No caso desse menino como em todos os outros só depois poderemos saber se os efeitos dessa análise prosseguiram Assim na medida em que seus pais vão falar de suas próprias infâncias concluímos que numa análise é sempre do infantil que se trata 113 CONCLUSÃO Sócrates recebe a pena de morte injustamente aplicada Era acusado de cometer crime ideológico Apesar de seus discípulos lhe oferecerem oportunidade de burlar o veredicto ao deixarem a porta da masmorra aberta para que fugisse o sábio não aceitou submetendose à decisão do júri popular Sua lógica era de que seu destino deveria estar nas mãos da comunidade a qual pertencia Sócrates morre mas com isso algo vive Sua morte física o fez viver como simbólico e bem sabemos como essa história enfim se desenrolou VOLTOLINI 1999 p 202 Essa foi a origem do estado de direito democrático em que o demo povo decide o destino da polis cidade Mais tarde o Direito surge como dispositivo para se não impedir relativizar as injustiças cometidas contra os cidadãos Os tempo mudaram e a lógica que hoje rege as sociedades ocidentais é a do mercado e a da instrumentalidade Nela os interesses individuais amparados pela racionalidade sobrepõemse a qualquer interesse coletivo Bom seria se os abusadores sexuais de crianças e adolescentes se submetessem espontaneamente às penas previstas pela legislação Isso pouparia o trabalho de inúmeros profissionais Não haveria necessidade da inquirição das crianças nem da produção de laudos periciais Não haveria sequer a necessidade da existência do ECA e dos aparatos coercitivos do Estado aos abusadores e conseqüentemente essa pesquisa seria irrelevante Contudo as coisas não ocorrem dessa forma Vimos como o campo da criminologia se desenvolveu a fim de desvendar a verdade dos fatos referentes a um crime No caso do abuso sexual infantil vimos toda a preocupação da sociedade em desenvolver serviços a fim de proteger as crianças Parece contraditório que em uma época em que a criança passa a ser personagem central na cena social sendo depositária dos ideais de um futuro promissor precisemos de tantos dispositivos para assegurar sua proteção O fato de crianças e adolescentes terem se tornado portadores dos ideais sociais trouxe muitas complicações às suas vidas Uma delas está no fato de seus corpos jovens belos e viris despertarem inveja naqueles que já estão velhos e cansados Apesar de esse não ser nosso objeto de pesquisa podemos supor que essa seja a causa do aumento do fenômeno da pedofilia 114 A teoria psicanalítica desvela que o horror que sentimos pela quebra do tabu do incesto é porque esse fato nos remete a desejos infantis recalcados nos estratos de nosso inconsciente No início de nossa existência o primeiro objeto de amor é incestuoso e todos nós precisamos abdicar de sua realização para viver em sociedade No entanto esse desejo primordial recalcado vai nos acompanhar por toda a vida pulsando e produzindo a dinâmica da fantasia A psicanálise não quer impedir o desenvolvimento das conquistas dos direitos da criança e do adolescente e nem justificar o incesto mas quer contribuir para que tais conquistas possam ser sustentadas e legitimadas a partir do inconsciente aquele que não tem idade que não envelhece PRATES SILVA 2006 p 307 Quer incluir a dimensão da singularidade quando pensamos nos casos de abuso ou incesto Pretende entender que cada um vai simbolizar de forma particular o suposto abuso sofrido e que a fantasia tanto da criança quando de quem escuta estará permeando o tratamento e seu manejo fará toda a diferença quando o psicólogo estiver dialogando com o campo do Direito Assim poderá utilizar os aparatos sociais da rede de proteção integral de forma que esta esteja a serviço do sujeito e não o contrário É a sua escuta que deve guiar suas ações para então a conciliar ao que está prédeterminado pelas leis sociais Lembremos do exemplo de Moraes no caso citado no capítulo 5 em que foi atendido um menino de dois anos vítima de incesto cometido por seu pai Apesar de o discurso da mãe estar em consonância com o ECA quando pede um laudo para que o menino nunca mais veja o pai a psicanalista não se submete imediatamente a esse discurso Primeiramente escuta a mãe e depois o menino Espera um tempo para que suas intervenções façam com que a criança descole do discurso materno que por sinal também era abusivo Assim a criança tem a oportunidade de ressignificar a imagem paterna A analista produz o laudo porém manejao de forma a não destruir o saber sobre o pai construído em análise pelo menino Assegura visitas periódicas e monitoradas por uma pessoa da confiança da mãe Nas falas dos nossos entrevistados encontramos referências sobre formação deficitária baixos salários e pouco respaldo nas ações de proteção à criança e ao adolescente que desempenham Queixamse da falta de cuidados por parte das instituições e da dificuldade em dialogar com o campo do Direito que por sua vez possui profissionais juizes promotores e advogados inábeis para ações no campo do abuso sexual infantil Então é importante manter a figura do psicólogo para evitar possíveis revitimizações Sua presença nas audiências representa uma função de cuidado e proteção à criança que já 115 passou por situação de desproteção Entretanto perguntamonos qual o respaldo que o psicólogo tem para prestar um depoimento em juízo Uma pergunta importante a ser feita é sobre por que escolhemos ser cuidadores A sensibilidade pode qualificar uma pessoa para cuidar de outra porém o cuidar pode com facilidade converterse em mais maustratos Muitos fazem essa escolha sem antes elaborar adequadamente seus próprios conflitos psíquicos e acabam utilizando a posição de se tornar cuidadores como forma inconsciente de obter cuidados para si mesmo Garcia 20051 É preciso criar inventar uma rede de proteção e cuidados também para os psicólogos Não uma rede que promova reivindicações apenas monetárias mas que abra espaços para a reflexão sobre a formação a supervisão e o acesso à terapia ou à psicanálise por parte desses cuidadores Uma rede que promova a implicação das pessoas em seu trabalho para que este não esteja submetido à égide da instrumentalização e da submissão ao campo do Direito Os Conselhos Federais e Regionais de Psicologia e os sindicatos são órgãos legítimos para apoiar essa discussão acolhendo as angústias e as tensões vividas não só por aqueles que trabalham no campo da escuta ao abuso sexual infantil mas por todos os que trabalham no campo da violência e precisam dialogar com outros campos do saber bem como com as instituições que empregam os psicólogos A articulação com as Universidades que possuem o curso de Psicologia também é imprescindível pois é em seu interior que acontece a formação dos psicólogos Esse é o sentido do cuidado com o cuidador que essa pesquisa procurou refletir Um cuidado que procura responsabilizar o profissional sobre sua prática implicandoo em seu desejo em ser cuidador para somente depois pensar nas tensões que vivencia nas maneiras de articulação para que essas possam ser diluídas e transformadas em novas e incessantes reflexões sobre o compromisso social da Psicologia e em como esta pode contribuir para que o tratamento psicoterapêutico seja tomado pelo paciente como um direito e não como um dever e para que a ética do psicólogo seja considerada durante o diálogo com o campo do Direito Que a Psicologia possa auxiliar a pensar a promoção de políticas que coloquem o sujeito como centro da discussão e não como mero coadjuvante mas essa é uma outra história 1 Texto ainda não publicado apresentado pelo psicanalista José Carlos Garcia no Encontro do Programa Refazendo Laços em São José dos Campos em Dezembro de 2005 116 BIBLIOGRAFIA ARANTES Éster Mª M Pensando a Psicologia aplicada à Justiça In Psicologia Jurídica no Brasil BRANDÃO Eduardo S e GONÇALVES Hebe S Orgs Rio de Janeiro Nau Ed 2004 ARIÉS Philippe História social da criança e da família 2 ed Rio de Janeiro Guanabara 1981 AZEVEDO Maria A GUERRA Viviane N A Orgs Crianças vitimizadas a síndrome do pequeno poder São Paulo Iglu 2000 Infância e violência doméstica fronteiras do conhecimento São Paulo Cortez 1993 Pele de asno não é só história Um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em família São Paulo Rocco 1988 Violência de pais contra filhos a tragédia revisitada São Paulo Cortez 1998 Violência de pais contra filhos procuramse vítimas São Paulo Cortez 1984 BRASIL Constituição Federal 1988 São Paulo 1994 BRASIL Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá 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RepúblicaSEDHMEC Programa Sentinela Brasília SENAI 2003 NOGUEIRA NETO Wanderlino A convenção internacional sobre o direito da criança e a busca do equilíbrio entre proteção e responsabilização In Sistema de garantia de direitos um caminho para a proteção integral Recife CENDHEC 1999 122 PACHECO FILHO Raul A Psicanálise psicologia e ciência origens interrelações e conflitos In GUEDES Maria do Carmo MASSINI Marina Org História da psicologia no Brasil Novos estudos São Paulo EDUC Cortez 2004 PLON Michel ROUDINESCO Elisabeth Dicionário de psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 POMMIER Gerard O conceito psicanalítico de infância In CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONECÇÕES Tratase uma criança I Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 PORTO Paulo C M Evolução dos direitos humanos In Sistema de garantia de direitos um caminho para a proteção integral Recife CENDHEC 1999 PRATES SILVA Ana Laura B Da infância ao infantil na fantasia A direção do tratamento na psicanálise com 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com a lei São Paulo Fapesp 2005 VOLTOLINI Rinaldo A questão da vocação psicanálise e psicologia Tese Doutorado Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP São Paulo 1999 ZANOTELLI Maria Luiza A escuta do brincar na clínica In CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONECÇÕES I 1999 Rio de Janeiro Tratase uma criança Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 124 ANEXOS 125 ENTREVISTAS A seguir serão transcritas as entrevistas realizadas com três psicólogos que se dispuseram a falar sobre sua prática cotidiana no atendimento a crianças adolescentes e famílias atravessadas pela experiência do abuso sexual André nosso primeiro sujeito nos concedeu duas entrevistas sendo que se passaram um ano e oito meses entre a primeira e a segunda Sujeito 1 André1 psicólogo 27 anos Trabalhou no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual em uma instituição em São Paulo Data da entrevista 10102004 Horário 17h Local Base ecológica da Serra do Japi em Jundiaí SP A entrevista ocorreu durante um evento organizado por um movimento social contra o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes Nesse evento reuniramse 40 jovens de todo o Estado de São Paulo que fizeram parte de um projeto de protagonismo juvenil na área da prevenção da violência sexual contra crianças e adolescentes A primeira entrevista realizada com André sujeito número um desta pesquisa foi elaborada para a cadeira de Pesquisa em Identidade ministrada pelo prof dr Antônio da Costa Ciampa A finalidade do trabalho era encontrar pistas na história pessoal do entrevistado que revelasse momentos de metamorfose Essa teoria da transformação é encontrada no livro Representações sociais da realidade dos de Peter Berger e Thomas Luckmam os quais ressaltam que a identidade pessoal é construída historicamente e está em contínuo processo de transformação A própria tese do prof Ciampa transformada no livro História de Severino e História de Severina demonstra que a identidade é um processo em constante metamorfose A sugestão do professor foi de que as entrevistas pudessem ser aproveitadas para a dissertação Assim escolhemos o sujeito que tivesse o perfil para a pesquisa Entretanto nesta 1 Nome fictício 127 Pesquisadora E você nasceu em qual André Na verdade eu fui pra lá pequenininho eu nasci em São Paulo no hospital Nove de Julho Nem me lembro muito Aí fui pra lá pequenininho Eu acho que meu sotaque minha culinária minha comida meu jeito de viver é bem mineiro assim bem Pesquisadora Você veio pra cá com que idade André Voltei pra São Paulo com 19 Voltei pra fazer faculdade faculdade de psico Lá não tinha hoje já tem mas na época não tinha Aí fiz psicologia nome da universidade em 96 Pesquisadora Você se formou em 96 André Não eu comecei em 96 me formei em 2000 Aí em 2001 em 99 comecei a trabalhar com RH Aí trabalhei nas empresas nome da empresa Curtia muito isso Pesquisadora Seleção André Treina mais treinamento que seleção seleção também mas mais treinamento Mas o que o que eu odiava era aquilo olha você tem que fazer tal coisa até tal data você tem que preparar o grupo pra fazer tal coisa até amanhã Esses prazos malucos assim isso eu odiava esses prazos Aí quando eu me formei eu montei um consultório e estou trabalhando com ele até hoje Estou em clínica acho que o meu o meu grande gosto acho que é pela clínica clínica numa questão mais ampla também não só individual trabalho com grupos gosto bastante de trabalhar com grupos terapia de grupo grupo eu gosto bastante da clínica Às vezes morro de saudade de lá Pesquisadora De onde André De Minas Acho que eu faço um pouco essa ponte de trazer umas coisas de Minas pra alguns amigos aqui de São Paulo E acho que quando a gente trabalha com o nome do movimento social essa questão de mato de fazer trilha essas coisas pô eu fiz isso a minha infância inteira vivia no meio do mato essas coisas Então eu estou muito tranqüilo pra mim é muito fácil esse ambiente essa tranqüilidade E acho que eu trago um monte de coisa daqui de São Paulo metrópole e levo pra lá essas idéias novas que eu vou levando acho que eu vou fazendo meio Pesquisadora Mas você leva pra profissionais ou pra pessoas André Pra profissionais também Pra pra minha família também pros amigos 128 Pesquisadora E e a viola que você falou como foi André A viola é a primeira banda de rock na minha cidade fui eu que fundei nome da cidade Onde eu morei durante minha adolescência Então aí eu gostava muito de rock é bom pra esse povo lá ouve um universo de música música regional que se ouve muito Rolando Boldrim Tonico e Tinoco essas coisas Quando eu tava no colégio no segundo terceiro colégio aí eu comecei a conhecer essa coisa da viola viola caipira dessas músicas e aí foi legal Eu comecei a achava legal aquela coisa que antes na minha adolescência era muito brega né cigarro de paia essas coisas que meu avô fazia eu achava muito feio muito caipira né E aí de repente o caipira começou a ter uma uma coisa bonita pra mim assim eu comecei a gostar das raízes Aí minha mãe tem uma viola caipira veia ruim não afinava nem a pau aí eu aprendi a tocar e há dois anos eu comprei uma viola mandei fazer tô pagando até hoje ainda uma viola profissional tal Pesquisadora É essa que você toca André Não eu não trouxe viola Pesquisadora Então é violão André É o violão do pessoal A viola é outro jeito de tocar Então tem uma coisa assim a viola é é típico a hora que você escuta aquele negocinho aí você já vai assim pra outros lugares sai da capital Acho que a viola tem isso Pesquisadora Seu avô tocava viola André Não o meu avô era cantador cantadô Toca bandolim meu avô materno Aliás acho que minha família tem essa coisa assim eu sou muito ligado muito mas acho que à linhagem materna aos avós maternos As tias com quem eu moro na verdade são tias avós são irmãs desse meu avô Pesquisadora Cantador André Desse meu avô cantador Pesquisadora Ainda é vivo André É é tem 74 superanimado Segundo as coisas que eu vou vendo na minha análise na minha terapia meu complexo de Édipo foi com o meu avô Ele era muito mais presente ali 129 do que pai né Então meu avô ficou importante assim eu vejo que enquanto modelo assim esse meu avô materno Pesquisadora Mas você não escolheu a música pra trabalhar e ganhar dinheiro com ela André Não não Pesquisadora Você montou um grupo de rock e André É isso é coisa de adolescente A gente ganhava algum dinheiro mas era muito mais brincadeira de adolescente Na época antes de fazer faculdade eu cheguei a pensar sério em prestar música mas aí fazer o curso de música viver com música não é o que eu queria todo dia tem que estudar tem que trabalhar isso tem um prazo um prazo pra entregar um ensaio isso eu não queria Queria música pra brincar pra relaxar Hoje eu tenho um grupo de MPB que eu uso viola caipira Pesquisadora E tem nome André Tem Trio nome do trio Pesquisadora Vocês tocam profissionalmente André Acho que como todos têm outras profissões no grupo as outras duas pessoas então a gente toca uma vez por mês num bar bar de amigo lançamento de livro de amigo casamento de amigo mas tudo muito pra amigos Assim a gente cobra mas é muito mais uma brincadeira Pesquisadora Trio nome do trio André Nome do trio Explica de onde vem o nome Então acho que em São Paulo fiz alguns amigos poucos Pesquisadora Você está aqui desde André Desde 96 Pesquisadora Você prestou vestibular e veio pra estudar André Vim pra estudar e voltar Mas aí no 4º ano eu já comecei a trabalhar comecei a ficar interado em São Paulo já tinha gente querendo fazer terapia Então quando eu me formei montei o consultório eu já conhecia algumas poucas pessoas Aliás eu planejo ficar mais 130 cinco anos um pouco mais talvez em São Paulo e depois ir pra outra cidade Não sei onde aos moldes de Minas não precisa ser necessariamente Minas mas não São Paulo capital também não longe de São Paulo Uma vez por mês eu venho pra cá comprar livros disco ver os amigos sei lá Quem faz parte desse projeto é minha namorada a gente namora há cinco anos eu e a Ana31 E a Ana também topa a gente morar em outro lugar Pesquisadora O morar em outro lugar é por que motivo André É é eu acho que pra fugir das filas trânsito esse anominato de São Paulo morar num lugar onde eu possa conhecer meus vizinhos ter uma praça onde eu possa ir brincar com as crianças sei lá Acho que muito do que eu tive na minha infância que eu acho que foi muito bacana muito legal É um projeto daqui a cinco anos talvez me mudar Aí já é junto com a Ana já com casamento com alguma coisa assim Pesquisadora E ela é Pesquisadora André Ela faz psicologia tá tá terminando o 5º ano agora mas ela não gosta da área clínica ela faz estágio em hospitalar psico hospitalar A gente não conversa engraçado a gente não conversa muito sobre psicologia sobre o trabalho assim Os autores que ela lê eu não conheço os que eu estudo e é assim há três anos acabei entrando pra estudar a questão da sexualidade humana então vamos estudar isso vamos fazer curso tal Não é a principal área de interesse da Ana A Ana é essa coisa do do doente da morte somatização família esses termos assim Pesquisadora E a história de trabalhar com a sexualidade quando pintou André Ah começou na clínica né Na clínica eu comecei a estudar ver essa coisa Eu acompanhei dois casos de duas adultas duas mulheres adultas que me procuraram e elas traziam uma história de abuso sexual de incesto No meio dos atendimentos comecei a estudar isso tal Mas era eu estudava tanto quanto outros assuntos Não era um assunto principal não era mesmo Tanto que na faculdade meu tema de pesquisa minha monografia de final de curso foi religiosidade sobre religião psico da religião Aí no consultório eu comecei com essa coisa de estudar o incesto por causa dessas duas pacientes aí comecei a ler a pensar e nesse ínterim também um amigo meu tinha conhecido a Gorete que estava montando o nome do Programa lá na Zona Norte Aí mandei um currículo fui pra seleção 3 Nome fictício 131 e comecei a trabalhar no nome do Programa que é específico de violência sexual De lá pra estudar mais ainda fui prestar o curso fazer o curso do nome da instituição um curso de um ano e meio de atendimento a famílias com denúncia de incesto denúncia de abuso sexual Aí comecei a estudar isso estudar e agora estou rascunhando um mestrado nessa área de violência sexual que é um universo né as leituras passam a ser estas os filmes os amigos que você conhece trabalham com essa coisa né então pra você é um Pesquisadora E as duas pacientes o que pegou pra você ir fundo na história André O que me chamava bastante atenção interrupção É um paciente uma paciente assim que eu lembro que eu fiquei bastante preocupado em estudar porque ela se apaixonou por mim durante a sessão Então levar isso pra supervisão vamos entender foi tranqüilo assim porque não era uma mulher que me atraía se te atrai então pegava Mas aquilo dela foi uma terapia muito legal apesar de não ter terminado acho que podia ter continuado mas ela projetava um monte de coisas em mim né que ela não teve na história da família dela de masculino o casamento dela que tinha acabado tal E foi muito legal assim porque ela reconheceu na sessão me apaixonei por um cara que eu sabia que não ia dar certo então meu medo não deixa eu me envolver com as pessoas Você eu sabia que não ia sair comigo então acabei me apaixonando porque eu sabia que não ia dar certo Então a gente pôde trabalhar isso conversar tudo a visão de masculino dela o quanto ela abusava de mim a ponto assim de de me mandar flores pro consultório Receber flores anônimas pra mim foi um negócio meio esquisito Então ela falava não vou te dar um beijo e sair correndo tinha umas questões abusivas dela assim Então isso isso eu comecei puta que negócio maluco isso né Vamos estudar isso e aí comecei a estudar incesto Eu vi que o caso que eu acompanhei lá na na faculdade na clínicaescola tinha um caso de incesto que na hora eu não percebia e depois de formado que eu fui ver Um garoto que dormia na mesma cama com a mãe um garoto de nove anos apesar de ter o quarto dele ele dormia na mesma cama que a mãe lá O pai morava em outra casa outra história E depois da faculdade é que eu fui sacando o quanto aquilo era incestuoso aí eu comecei a ver que o negócio do incesto era muito mais amplo Pesquisadora Na época da faculdade não tinha essa linguagem André Não nessa época da faculdade não né porque a gente viu ah a mãe não consegue deixar o filho crescer ter a desenvoltura dele mas eu não saquei que o lance era incesto né O quanto o garoto dizia eu não quero crescer não quero virar adulto esse medo que é de 132 assumir a sexualidade só depois da faculdade depois de começar a estudar que isso aí eu comecei a ver Pesquisadora E essa paciente relatava experiência com abuso André Contava contava as histórias então E aí eu acho que eu me interessava por outros assuntos também M acho que não era só a sexualidade Estudar religião era muito forte também tal Mas aí foi quando eu conheci a G Eu precisava de um outro trabalho só o consultório não pagava minhas contas Eu já tinha saído do RH não quero clínica não quero mais RH tal E aí foi tipo assim tem um trabalho né não é o que eu quero estudar pro resto da minha vida mas era um trabalho em clínica perto da minha casa tal né um assunto que eu até me dava bem até gostava de estudar Então aí entrei no nome do programa em que trabalhou E aí assim acho que foi pela onda mesmo pela onda do rio fui fazer o curso do nome da instituição Aí se passa a semana inteira estudando sexualidade vai estudar Freud os três ensaios eu sei de cor e aí se vai estudar mesmo essas coisas né Acho que não foi uma escolha vou estudar vou né Pesquisadora Foi acontecendo André É foi Pesquisadora E você foi deixando André Fui Eu quero trabalhar com clínica né aí apareceu essa coisa do nome do Programa que é clínica e é um tema que eu ficava à vontade também eu me interessava e aí fui dando abertura fui deixando como você falou E hoje eu estou envolvido até o pescoço né meus livros são isso né não dá mais pra mas engraçado porque agora retomando essa questão do mestrado por exemplo eu tô voltando acom a questão da religiosidade um tema que me interessa bastante A minha pesquisa é porque a maioria das famílias clientes lá do nome da instituição quase 80 são muito moralistas A gente tem quase que 70 a 80 são famílias evangélicas pentecostais de verdade Eles vão à igreja eles acreditam sério naquilo não é fachada eu acho Então estou estudando um pouco a questão do abuso sexual e moral e religiosidade O quanto a moral não dá conta 133 Pesquisadora Fale um pouco do nome da instituição Como é o trabalho lá Como acontece o trabalho lá André Atualmente lá no nome da instituição eu fiz como estagiário eles eles abrem vagas pra estagi eles chamam de estagiários mas é um psicólogo já formado com uma pouca experiência tem que ser formado já não é Lá no nome da instituição a gente atende exclusivamente família só terapia de família Pesquisadora Você ainda está cursando André Não terminei meu curso de um ano e meio lá Eu estou agora como pesquisador É uma outra outra proposta Depois que você termina o estágio você pode fazer alguma pesquisa por lá tal Então além dessa proposta de rascunhar o mestrado que eu acho que eu só vou concorrer no final do ano que vem tem uma outra pesquisa que eu estou fazendo com o Cláudio e com a Gisele E aí três vezes por semana a gente vai pra fazer atendimento com essas famílias e é uma psicoterapia de família Pesquisadora As famílias como chegam lá André Chegam encaminhadas pelo fórum é é pelo fórum ou pela delegacia sempre algum órgão judiciário encaminhando algo jurídico encaminhando Pesquisadora Então já tem um processo André Tem Pesquisadora De abuso que aponta para o incesto André Sim O nome da instituição eles eles tem a seguinte proposta a gente não trabalha com a visão da justiça é com a visão da saúde então é com a visão de dinâmica familiar Por isso tudo que acontece ali na sessão fica em sigilo com a família não é passado pro fórum não é contado fica só entre a família mesmo E a gente não trabalha com a idéia de a gente não trabalha Eu já terminei o estágio né a gente trabalhava mas como eu estou na pesquisa a idéia é a mesma Não tem a divisão de atender vítima que normalmente os Centros fazem atender vítima de abuso sexual O nome da instituição trabalha vítima e a família Então a família toda na idéia do incesto A gente não tem a idéia de agressor e vítima A gente vê que é uma dinâmica por exemplo perversão de funções filho que faz função de mãe pai que faz função de irmão então a gente vê que é uma perversão de funções Então por isso o atendimento é exclusivo com família É um barato 134 Pesquisadora Mesmo e quando tem pena pra cumprir André A grande maioria dos casos lá está em vara de família ou da infância e da juventude não está na vara criminal ainda né que é quando sai o veredicto A grande maioria dessas famílias lá não tem uma pena a ser paga não tem um acusado que vai preso Porque a grande maioria dos abusos não é uma penetração então não tem como provar com exame então eles não são presos a grande maioria Acho que é basicamente isso lá Pesquisadora E a pesquisa de agora André Ah tá a pesquisa que a gente está fazendo é sobre a participação da mãe numa família incestuosa A gente está vendo que os quase 100 dos denunciados são os homens pais tios padrastos avós mas a gente tá vendo que há grande conivência das mães né as mães sabem não falam nada Na verdade a mãe faz a denúncia quando ela briga com o marido então é devia até saber mesmo era verdade aquilo que a filha falava Então ela vai lá no dia da briga e faz a denúncia A pesquisa nossa está mostrando um pouco desses dados A pesquisa vai sair agora em dezembro pro Congresso de psiquiatria no Rio Grande do Sul É internacional e a gente vai tá falando disso De mãe dos abusadores acho que queria dizer abusados que não são reconhecidas enquanto abuso na justiça Elas fazem a denúncia enquanto vingança do marido não pra proteção dos filhos risos A pesquisa que nós estamos fazendo é essa agora A gente a gente achou algumas pessoas que consideram que percebem a mãe enquanto incestuosa enquanto enquanto conivente Mas usar a fala mãe incestuosa a gente não achou nada ainda Aliás o conceito de família incestuosa de não dizer aqui tem uma vítima aqui um agressor a gente acha que o nome da instituição é que desenvolveu isso É idéia do nome do diretor da instituição que é muito novo também Se alguma criança procura se a família não topa fazer terapia lá no nome da instituição eles falam ah então atendam só as crianças A gente não não porque a gente acha que não funciona Talvez fosse até revitimizar então vocês são coitados mesmo ele não precisa de terapia sua mãe também A gente acha que poderia ir por não entendi o que disse Se a família insiste a gente dá o telefone de onde de lugar normalmente a USP mesmo a PUC o Mackenzie que oferecem psicoterapia gratuita mas o nome da instituição não faz atendimento individual A gente acha que com a questão do incesto não funciona Você conhece o nome da instituição 135 Pesquisadora Conheço mas não profundamente Não desse jeito Eu nunca fiz curso lá Conheço pelo livro do Cláudio Alguma coisa que a Claudia escreve Pouca poucas coisas Vou começar a conhecer agora pesquisando André É o nome da instituição acho muito legal assim pesquisam muito o pessoal é muito bacana fui superbem aceito eu acho que eu aprendi muito mais lá do que na faculdade Porque você faz você acompanha de cinco a oito famílias durante um ano e meio semanalmente A cada quinze dias você tem uma supervisão dessa família dessas famílias então você tem supervisão de todas as famílias Uma por mês de cada família e tem mais uma supervisão com a equipe toda que aí vem uma pessoa de fora do nome da instituição pra justamente não estar com o olhar contaminado A nome da supervisora lá da PUC que é nossa supervisora lá Pesquisadora Eu já ouvi falar André A nome da supervisora trabalha com essa questão da violência o mestrado dela foi sobre isso Pesquisadora A nome da supervisora ela é Pesquisadora André Pesquisadora É além disso da supervisão do atendimento a gente ainda tem um grupo de estudo No ano passado a gente estudou O malestar na civilização inteiro sem pressa assim e esse ano até quando eu estava no estágio a gente estava estudando Bion aí justamente pra trabalhar com a técnica de grupo né essa idéia do Bion pra trabalhar com grupo E como a gente faz terapia de família precisa de teoria de terapêutica de grupo que é muito legal interessante em algumas coisas mas eu entendo metade do que o pessoal discute lá Pesquisadora Mas é o mesmo grupo que faz estágio ou é outro de estudantes André É o mesmo grupo Então tem o nome do diretor que não faz atendimento ele fica supervisionando coordenando Tem a fulana que é a Pesquisadora contratada que faz supervisão e atende e mais quatro estagiários que fazem os atendimentos Às vezes sozinho e dependendo a estratégia em coterapia preferencialmente um casal Pesquisadora Junto atendendo junto André Sim Você quer que eu fale do trabalho 136 Pesquisadora Fala sobre o que você quiser risos Fale de você nessa história André Ah Bom acho que aí tem um monte de coisas assim porque ah bom agora eu tô tô vendo assim eu tô entrando num caminho que eu tô virando um sexólogo tô estudando e fazendo curso nessas áreas tô vendo essas questões é profundamente na questão da sexualidade e tal Pesquisadora E o que isso tem afetado você André Isso isso é que é o grande barato da coisa Pesquisadora E o André com essa história risos André O grande barato da coisa assim porque na faculdade eu faço uma monografia sobre religião sobre religiosidade e agora eu tô preparando o mestrado em sexo risos Então fica a puta e a santa mesmo essa coisa Que aí você vai vendo que são vertentes da mesma moeda na verdade mas claro tudo isso tem a ver com uma história minha tal uma história de vir de uma família supertradicional do interior do estado mineiro protestante né de um dogmatismo E aí de repente aparece eu que sou sexólogo assim na família né tô virando Pesquisadora E o protestantismo como que é Eu não sei André Tá Bom minha família é de igreja protestante que é aquela vertente mais européia dos presbiterianos metodistas Pesquisadora Mas presbiterianos ou metodistas André Atualmente eles freqüentam a igreja presbiteriana mas quando moravam em São Paulo eles freqüentavam a igreja metodista Então eu lembro assim até os 15 anos eu tocava na frente da igreja Pesquisadora Seu avô cantava também André Era meu vô sim meu vô era Pesquisadora Então a música também tinha uma ligação com a religião Não André É também mas tem esse lado pagão da música lá em casa que é a música de viola 137 Pesquisadora Ahn tá André Então tem esse outro lado também assim A igreja protestante assim tem algumas questões assim muito dogmáticas muito rígidas quanto à sexualidade Pesquisadora Como é André Bastante ortodoxas Não sexo depois do casamento Homossexual é é pecado tudo é pecado Pesquisadora Quanto ao preservativo André Não pra que preservativo você vai transar depois do casamento então pra quê Pesquisadora Depois do casamento não pode Tem que ter quantos filhos vier Como que é André Não não acho que isso isso é bem diferente Você tem eles dão uma ênfase grande pro planejamento familiar não endenti o que falou Tantos filhos na família não Você usa anticoncepcional camisinha Não isso é diferente da igreja católica Isso é diferente mas depois do casamento Antes do casamento se você se masturbar você vai pro inferno então se Eu exagerei um pouco mas no fundo a idéia é essa Pesquisadora Tem confissão André Não não Na idéia do protestante você não tem um intermediário você fala direto com o chefe direto com Deus Pesquisadora Você e Deus sem ninguém intermediando André Sim você pede o perdão você recebe Então aí claro eu vou sacando eu tô trabalhando agora religiosidade e sexualidade nessa proposta de mestrado então Pesquisadora Então agora com a proposta de mestrado você está tentando unir o quê A monografia e seu trabalho André Sim É estou vendo porque que que é essa coisa da minha família super religiosa minha família meus pais super religiosos e eu começo a estudar sexualidade e faço um rascunho de mestrado nessa área que envolve isso religião e sexualidade Então é reflexo da minha história toda né então Tem sido gostoso pensar essas coisas até porque eu estou em análise há 6 anos já pensando essas coisas todas 138 Pesquisadora E esse trabalho aqui do nome do movimento social como é que aparece em sua vida André É tudo via G G é a Pesquisadora que eu conheci que fiz a seleção Comecei a trabalhar com ela no nome do programa em que trabalhou e aí de vez em quando ela começava a falar do nome do movimento social Fui conhecendo as pessoas conheci você o M todo o pessoal nesse meio indo nos churrascos na casa dela conhecendo o pessoal todo Aí o nome do movimento social a G me chamou pro primeiro encontro do projeto de protagonismo pra estar falando um pouco de sexualidade com adolescentes numa metodologia que eu já tinha tido uma idéia lá no nome do Programa em que trabalhou que era através de música Então a gente pegou quatro músicas e ficamos conversando com a molecada Aí ela me chamou pra fazer essa aula eu já conhecia o pessoal os adolescentes do projeto e quando ela saiu do nome do movimento social aí eu me candidatei lá Eu nem sei se teve seleção pra isso ou se foi só uma indicação Sei que eu já entrei no projeto Como eu já conhecia todo mundo já tenho esse envolvimento grande com a arte e sexualidade Pesquisadora O nome do movimento é um trabalho do movimento André Isso Na verdade eu trabalho no projeto de protagonismo que é um dos projetos do nome do movimento social Esse movimento social está preocupado com o estudo da sexualidade e com ênfase no no abuso sexual tanto de exploração quanto do incesto Acho que o que eu mais estudei foi o incesto a idéia do nome do movimento social a gente Pesquisadora É exploração André A gente vê como um todo Aliás a minha visão também às vezes coincide com o pessoal do nome do movimento social às vezes não Eu acho que toda a forma de abuso sexual tem a ver com incesto na minha visão Pensar uma prostituição juvenil é como é que foi a educação sexual na família dessa garota Como é que os pais falavam de sexualidade Por que ela escolheu o caminho do sexual e não sei lá o de outra perversão o do roubo Vai via corpo Como é que foi a educação corporal dela Então pra mim tudo isso tem a ver com incesto É aí é muito legal trabalhar com adolescente porque eu sou um pósadolescente né acabei de sair da minha adolescência e 139 Pesquisadora Com quantos anos você está agora André Eu tenho 27 né então ainda uso cabelo comprido ainda uso camisa Tribanda ainda curto rocknroll não pretendo deixar de gostar E é um barato assim porque sempre com a molecada né não é tão diferente a minha idade da idade deles né Apesar de eu ter vivenciado um monte de coisas porque você tá estudando você tá fazendo análise então você tá aí sacando um monte de coisas né Eu tenho muito material pra provocar pra refletir junto com a molecada E é uma linguagem muito próxima da deles né A música que eles escutam eu escuto as baladas que eles vão eu vou então é um universo próximo assim também Pesquisadora E o André que você gostaria de ser André Que eu gostaria de ser Pesquisadora É a gente falou um pouco do que você é e do que você foi E o que você gostaria de ser Quem você gostaria de ser André É acho que isso Pesquisadora O que você imagina André Acho que isso é o meu projeto aí de mudar de São Paulo Quando eu me dou esse prazo de cinco anos é pra escrever o mestrado nesse prazo estudar um pouco aqui e depois voltar pra outro lugar não sei pra onde talvez não pra cidade dos meus pais acho que não acho que agora eu preciso fazer um outro caminho É eu gostaria de mudar pra uma outra cidade mais ou menos próxima de São Paulo continuar trabalhando com essa questão da clínica e ter mais tempo Menos gastar menos tempo com trânsito com fila pra poder tocar mais viola pra ter filho pra poder curtir os filhos pra ir pescar de sábado Eu queria ter um tempo mais pra essas coisas que aqui em São Paulo não dá nessa fase não dá Quero casar casar no sentido assim eu e a Ana a gente brinca que é tem a ver com tudo isso A gente não quer casar no religioso a gente quer casar no civil e no poético então a gente vai trazer uma banda vai ter um poeta que vai celebrar assim aos versos de Adélia Prado algumas coisas assim Porque eu acabei me distanciando da igreja né eu não entro numa igreja faz acho que dois anos também dois ou três anos Bom faz um tempo Então apesar de eu me achar puramente religioso profundamente religioso mas não freqüento uma igreja não sinto necessidade disso então pretendo me casar nesse arranjo nosso meu e da Ana 140 Pesquisadora Nesse percurso que você fez de trabalho você acha que os religiosos teriam algo contra André De estudar sexualidade Pesquisadora É o seu percurso André Não na fala deles não Na fala não porque é abuso sexual precisa trabalhar com esse pessoal isso aí não sei o que eles precisam aceitar Jesus no coração risos Então eles são super a favor do meu trabalho Só que quando você começa a mostrar esses números olha a maioria são religiosos né isso assusta um pouco Alguns deles param pra escutar ouvem se preocupam é vamos entender isso Acho que as lideranças meus amigos que são líderes religiosos param pra ouvir pra escutar os outros não os outros não querem entrar em contato com isso Mas eu acho que sim minha família continua sendo muito religiosa e apóia bastante meu trabalho porque acham que é importante alguém trabalhar com essa cagada toda com essa merda toda então Pesquisadora Talvez eles não saibam exatamente onde isso pega não é André Eu acho que não eu acho que não sabem risos Acho que o André que eu gostaria de ser risos não entendi o que falou Pesquisadora O André que que você gostaria de ser era esse André Eu acho que sim mudando pra outro lugar onde eu possa estar eu e a Ana ter sei lá dois filhos uma casa com quintal não entendi o que falou ter um cachorro uma horta risos Pesquisadora Isso não dá em São Paulo André Por minhas varas pra pescar então não dá pra morar em apartamento Continuar estudando porque é um negócio que eu adoro adoro ler adoro pesquisar então É Você começa a estudar essas coisas É um barato Porque quando você está com um grupo de adolescentes e fala que você estuda sexualidade vai dar uma palestra sobre sexualidade tem mais ou menos a idade deles você vira o grande pó esse cara manja de sexo esse cara deve ser bom E não tem nada a ver com a coisa né é num outro âmbito não é performática a coisa mas fica essa fantasia eu percebo isso às vezes nos adolescentes percebo Então só um barato Mas eu acho que se eu continuar estudando for atrás do mestrado eu acho que acaba sendo um convite pra dar aula num lugar indo pro interior onde tem uma carência de 141 professores Eu acho que pode acontecer de eu ser professor e acho que eu gostaria acho que eu topo sem abrir mão do consultório Aí eu quero quero fazer um curso de aquarela quero voltar a fazer capoeira Então eu quero um monte de coisa que acho que nesse momento não dá tempo Pesquisadora Você fazia capoeira André Na faculdade brincava Acho que são esses meus meus projetos E tudo muito em parceria agora com a Ana eu e a Ana a gente vai pensando a gente tem um lance sério profundo duradouro da gente que agora acho que já não são só planos meus né a gente vai pensando junto tal Pesquisadora Bom eu acho que André Chega Pesquisadora Acho que chega André Você vai dar o meu diagnóstico agora Pesquisadora Olha não tenho a mínima idéia risos do que eu vou escutar ao transcrever André É acho legal Acho legal poder estar compartilhando porque eu vejo assim meu trabalho tem a ver com a minha história né Acho que essa repressão sexual que eu trouxe da minha história eu acabei elaborando profissionalmente né meu trabalho com sexualidade hoje Você quer perguntar mais alguma coisa Pode pe Pesquisadora Por enquanto acho que não Se tiver alguma necessidade de fazer uma de aprofundar alguma questão eu falo com você André É porque eu estou à disposição mesmo pra qualquer assunto que você achar sem restrição Pesquisadora Está bem André Como eu falo o tempo todo bastante de sexualidade e religiosidade se você quiser se aprofundar nisso eu estou à vontade pra me abrir pra falar não entendi o que falou se precisar Minha resenha meu resumo é esse se quiser se aprofundar em alguma coisa 143 Tutelar encaminhados pela polícia pela assistência social da prefeitura encaminhado por tudo quanto era lugar E não era só atendimento a gente também trabalhava com prevenção Então também tinha um grupo de jovens de adolescentes que a gente trabalhava que era um grupo de não entendi o que disse sobre como identificar o abuso como ajudar os amigos né era um grupo de profilaxia também E tinha os atendimentos clínicos Aí pra estudar um pouco mais disso eu descobri que tinha esse curso lá do nome da instituição Dentro da faculdade de nome da universidade que é um grupo que atende é que é um curso de um ano e meio práticoteórico Então a gente acompanhava Cada aluno lá acompanha cinco famílias durante esses um ano e meio Então o nome da instituição é só atendimento de família e você acaba estudando essa coisa do abuso sexual Aí fiz esse curso pra ajudar no meu trabalho lá no nome da instituição Aí acabou o projeto lá nome do Programa como costuma acontecer e continuei com o trabalho nome da instituição com o curso lá Aí finalzinho do curso do nome da instituição foi que eu conheci o pessoal do nome do movimento social pra fazer aquele projeto específico lá com os adolescentes e então acho que assim projetos específicos com a questão da sexualidade foi isso que eu participei até hoje Agora no consultório o tempo todo essa coisa do incesto não necessariamente uma relação sexual mas aquele filho que fica muito mais com a mãe e o pai fica meio de fora né todos os Édipos complexo de Édipo Então eu vejo que também tem a ver com abuso sexual no consultório apesar de não ter uma relação sexual de explícita mas o clima de erotização isso eu acho comum ver Então é um pouco disso Pesquisadora Como é o curso do nome da instituição André Eles dividem uma parte teórica Toda quartafeira tem um grupo de estudo então são vários temas sempre a ver com a questão ou da família ou da sexualidade ou do que envolva essa questão da da do abuso mais propriamente do abuso sexual Aí tem uma supervisão coletiva que alguém da equipe trás um caso que está atendendo vem um psicólogo de fora da universidade alguém que não está contaminado com o jeitão de funcionar lá do nome da instituição Na minha época era a nome da supervisora que vinha pra dar essa supervisão e apontava algumas coisas da instituição também porque afinal de contas ela estava fora universidade e podia falar o que quisesse lá então era alguém que não estava contaminada É então tem essa coisa teórica que é essa reunião de quartafeira e aí nos outros dois dias da semana são três dias por semana o curso Então um dia teórico e os outros dois dias de atendimento Então a gente entra com a família na sala é sempre atendimento de família A visão do nome da instituição é que primeiro que o tipo de abuso que o nome da instituição 144 atende é só o incesto Então se é outro tipo de abuso porque lá é um grupo de estudo também eles têm alguns itens que delimitam assim a gente vai atender esses caso esse não e os fóruns já são avisados então só encaminham casos de incesto pra lá O único jeito de encaminhar pro nome da instituição tem que ter uma denúncia aberta no fórum O nome da instituição não faz denúncia Se alguém liga lá eu quero ser atendido tem uma notificação o fórum está acompanhando né Aí é o atendimento terapia de família é uma hora e meia né A gente faz alguns contratos tem que vir o pai e a mãe tem que vir as pessoas que estão envolvidas na história não um atendimento de vítimas o nome da instituição não entende que no abuso no incesto tem essa coisa de vítima é um problema de família e o abuso seria um sintoma da família confusa E aí a gente tem a supervisão dos casos aí indicam alguns livros mais específicos daquela daquele tipo de família que a gente está atendendo né bem gostoso trabalhoso mas é eu acho que eu aprendi psicanálise estudando família incestuosa Pesquisadora É André Porque você vê o Édipo escancarado né Pesquisadora E havia casos que era possível dizer aqui há abuso ou era sempre na suspeita Como é que era André Então a compreensão que a gente teve lá é de que abuso não é necessariamente uma relação sexual mas onde tinha um componente de erotização entre pessoas hierarquicamente diferentes né um pai e uma filha uma mãe e um filho Então onde tem esse componente erótico exacerbado assim né a gente entendia que isso era abusivo Alguns casos a gente via que tinha relação sexual no meio mas não ficava muito claro O que a gente entendia lá no nome da instituição o que eu entendo hoje por abuso é que esse clima faz tanto mal emocionalmente do que uma relação propriamente dita Pegando a idéia do Freud né o que vai dá a neurose é a fantasia não necessariamente o fato Essa é a idéia do Freud que é muito polêmico isso não é Os advogados caem matando a maioria dos psicólogos fala mal né Mas como lá era uma questão da saúde mental não tinha essa questão assim teve relação penetração ou não É assim como é que a criança ou adolescente entendeu isso né O foco é na saúde mental mas o nome da instituição já comprou muita briga com isso 145 Pesquisadora Com a justiça André Hoje eu acho que a justiça já entendeu assim lá cuida da saúde né A gente não está investigando se teve abuso ou não né porque a partir do momento que está lá já está tendo o acompanhamento pelo fórum tem que estar pelo fórum diferente do nome de um programa que você tinha meio que investigar né Pesquisadora Como que é essa diferença André No nome do programa a gente teve por exemplo juízes juízes não psicólogos do fórum que queriam que eu fosse depor e eu não eu não cheguei a ir eu mandei uma carta mas queriam que a gente fizesse o trabalho de dizer se tinha abuso ou não E a gente entendia pelo menos eu e a minha coordenadora que esse era um trabalho do fórum e não da saúde mental Se no meio de um atendimento eu digo pro juiz Olha realmente aconteceu uma relação entre o pai e a filha Aí aquela filha podia ficar com raiva de mim psicólogo dela porque eu denunciei o pai dela Então essa ambigüidade né ao mesmo tempo que ela queria que denunciasse o pai ela não queria então miava toda a terapia Né Então eu e a coordenadora assumimos que não faríamos denúncia A gente estaria acompanhando e incentivando uma pessoa mais madura da família a mãe a tia o próprio pai a própria adolescente alguém procurar esse direito na vara da infância Mas é complicado é uma relação complicada breve silêncio Porque se você for ver qual é quem tem essa função de denunciar É a vara da infância que não entendi o que ele disse Conselho Tutelar O psicólogo clínico da família se fizer uma denúncia ele quebra o vínculo Ao mesmo tempo que a gente tem o ECA dizendo se você sabe e não denuncia né então E aí tem o Código de Ética da psicologia que diz que você não pode quebrar um segredo de sessão Então o que eu o que a gente tinha feito com a orientação da nome da coordenadora né desse pessoal também foi estar sacando vamos tentar ver quem é o mais saudável na família e que essa pessoa tome consciência pra procurar os direitos Se isso não acontecer e a família sumir do meu controle aí eu tenho que denunciar Aí não tem como senão eu tô sabendo aí eu sou cúmplice da história Mas num primeiro momento trabalhar para que alguém da família tenha essa autonomia Que não seja o analista pra fazer isso né Mas é difícil No consultório eu acompanhei uma família que fez isso né tinha mas era tinha muito mais violência física no meio Também tinha essa coisa do pai espiar a filha tomar banho emocionalmente é abusivo né E aí demorou um ano e pouco mas a própria mãe não que sabia da história tava ali fazendo de conta que não sabia né ela conseguiu sacar porque que ela não conseguia fazer aquele cuidado com a filha não tinha essa maternagem toda Aí ela vai e denuncia o próprio 146 marido mas levou um ano assim pra ela sacar que ela não tava cuidando da filha e foi muito legal porque eles continuaram em terapia né eles não ficaram com essa raiva Ah o psicólogo que denunciou Deu pra cuidar disso legal depois Pesquisadora Então você está dizendo que quando o psicólogo cumpre o estatuto que diz que em caso de suspeita você precisa denunciar obrigatoriamente o psicólogo que cumpre isso está sujeito a uma conseqüência na relação terapêutica André Sim é um risco Não necessariamente cada atendimento Acho que é cada atendimento mas seria um risco de você cortar o vínculo a aliança terapêutica O que a gente pega é assim o que o ECA diz é que você tem que denunciar só que não diz assim que você saiba Então o que eu tenho tomado isso não tem a ver com o nome da instituição que fez o curso nem com a fulana é opção minha assim eu tenho que denunciar mas eu posso esperar um ano pra ver se essa mãe toma consciência e consegue Então agora se essa família some do meu contato então eu acho que aí sim aí não tem como aí eu tenho que fazer isso Pesquisadora Essa é uma postura ética que você descobriu André Eu acho que sim apesar de ter ambivalências legais enquanto ética sim Porque tem coisas que eu considero abuso e se eu for contar isso pra um juiz ele vai dar risada da minha cara Pesquisadora Por exemplo André Ano passado tinha uma mãe no consultório e ela amamentava os filhos só que o mais novo tinha oito anos e eu considerava isso muito abusivo E tinha um tesão tinha uma erotização não explícita não era explícita mas não sei acho que um advogado ia dizer Não tá escrito que tem que amamentar é bom Não é o leite materno que faz bem né risos Tinha um novinho né Mas assim pegando a idéia da psicologia da psicanálise né pô tem um novinho pô isso é erótico e o pai não tava dentro o pai tava fora de dentro do contexto então essa mulher meio que gozava com o filho de oito anos E assim isso não era considerado abuso Ele veio porque o garoto estava indo mal na escola Aí você vai mexer você identifica essas coisas tal quer dizer ele tava preso a uma relação assim eu gosto da minha mãe mas se eu assumir isso né então não dá pra denunciar isso eu imagino Não é ilegal Depende do advogado depende do juiz mas é controverso é polêmico no mínimo E eu fico pensando Margarete que talvez isso fizesse tanto mal pra esse garoto do que se o pai tivesse relações com ele Lá no nome da instituição que fez o curso a gente atendia garotos 147 que o pai tinha relações sexuais com ele de penetração pelo menos era o que era suspeita né E o problema emocional era muito parecido com o desse garoto que não conseguia se concentrar no colégio né que tava tendo uma agressividade que tava tendo um monte de coisa Então assim uma penetração faz mais mal do que mamar no peito da mãe É polêmica a coisa né Mas eu acho que o ECA fica nessa coisa que eu tenho que denunciar mas se eu denuncio eu corro sério risco de cortar o vínculo E aí não é só comigo psicólogo Qual é o outro psicólogo que ele vai confiar também né Será que fica só comigo André ou é com a classe da psicologia Essa raça que fica me traindo Então eu acho que se você tem o fórum acompanhando isso o psicólogo de lá faz essa denúncia né meu vínculo fica neutro Regra da psicanálise o vínculo tem que ser neutro né se não Mas é confuso não é simples não acho simples Pesquisadora Como você foi elaborando e descobrindo essas coisas Procurou algum cuidado pra você ou não Como é que aconteceu André Se denuncia ou não denuncia Pesquisadora Pra você lidar com essas coisas Quando você se deparou com esses casos como é que você acabou lidando com isso André Não eu acho que quando eu quando a gente concorreu a essa vaga pra trabalhar no nome do Programa um dos critérios de seleção era A quanto tempo você está em terapia Pelo menos foi o critério que a fulana utilizou a coordenadora na época lá Está em terapia a quanto tempo Então tem que tá em terapia já tinha que ter né Mas depois a gente ficou amigo e ela começou assim É na nossa conversa perguntou da minha sexualidade assim super sutil com toda tranqüilidade Mas ela falou em relação ao próprio paciente e não dela própria É eu tenho isso eu na eu namoro e não sei o que Ela foi sondando um pouco eu acho da minha vida sexual como é que eu tava lidando com a minha sexualidade porque se não é complicado né acho que dá pra ficar doente nisso Lá no nome da instituição que fez o curso também eles fazem uma entrevista de admissão e assim percebe como é que você lida com essa questão uma das perguntas é por que que você está querendo estudar abuso né que que você quer com isso daí tem tanta coisa Pesquisadora É por quê Você já descobriu André Então eu acho que eu comecei eu caí nisso assim porque assim eu tava precisando de um trabalho na área clínica perto da minha casa e tinha essa vaga no nome do 148 Projeto Mas aí depois eu fique pensando por que é que eu aceitei né Eu podia ter negado risos sei lá Começou com uma coisa prática mas aí depois você começa a refletir Por que é que eu aceitei Eu acho que tem isso assim né você está estudando psicanálise você tem que estudar sexualidade você está estudando sexualidade você tem que estudar Édipo E Édipo são o quê Desejo entre filho e pai pai e mãe mãe e filha Então é assim estar estudando abuso acho que era um jeito de estudar complexo de Édipo um jeito mais prático Aliás dizem que todo o trabalho dizem não todo o trabalho do Freud foi em cima de abuso sexual Dizem as más línguas que é quando ele começou a perder cliente porque os pais não levavam mais os filhos né Então ele falou não o que importa é a fantasia não é o fato real da penetração Então ah se é fantasia aí voltaram alguns clientes alguma coisa assim pra estudar Édipo pra estudar estruturação de mente breve silêncio Essa coisa do denunciar também eu acho que dá um medo porque se eu estou ali eu entendo que aquela mãe está quase conseguindo ter autonomia pra ela procurar uma denúncia ela procurar resolver a situação cuidar da filha É mas durante esse tempo um advogado da pessoa que pode ser acusada pode não entender isso eu sofro e eu psicólogo sofro um risco legal ali de dizer que eu estou conivente né que eu estou fora do Estatuto Então acho que essa compreensão que a gente tem de esperar o momento certo de fazer a denúncia de ajudar a família a denunciar acho que é uma visão da saúde mental o direito não entende E aí eu acho que é assim tem um risco aí eu estou descoberto né Bom aí eu posso entender se eu for processado posso tentar justificar isso Pesquisadora Você pode dizer que não sabia André Como não sabia Está no ECA Pesquisadora Você pode dizer que não sabia que existia abuso ali André Ah tá Pesquisadora Quem vai dizer que você sabia André Não sei alguém da família pode dizer não mas eu te contei Não não sei o quê Pesquisadora É mas eu não comprovei essa seria a suposta fala de André sei lá André Mas assim acho que aí o complicado é quando alguém do fórum e isso já me colocaram nessa situação assim alguém do fórum não consegue dizer se tem abuso ou não Tem porque eles precisam de um crivo de dizer se teve ou não e o clínico não interessa Para 149 o clínico interessa é e daí como é que você ficou depois disso Pode ser uma fantasia pode ser um ato mas como é que ficou na tua mente Pro clínico interessa isso Mas eu acho que o pessoal do fórum eu estou falando de alguns amigos que eu conheço psicólogos do fórum então eu estou falando quando a gente toma cerveja juntos a gente fala dessas coisas Às vezes eles precisam de uma ajuda então querem que o clínico faça o que é função deles Lá no nome da instituição que fez o curso a gente fala assim olha se alguém de fora está fazendo a função que não era da função é a mesma coisa do incesto porque o incesto é o que é a criança e o adolescente fazendo a função que era a função pra mãe fazer ta fazendo a função do adulto Essa inversão de funções né a gente pode pensar que a bem grosso modo assim mas o psicólogo do fórum está querendo inverter a função quem tem que dizer que se teve abuso ou não é o psicólogo do fórum não é o clínico Mas é maluco Pesquisadora Sustentar isso não é fácil André Agora o clínico está lá toda semana com a família né O vínculo dele é melhor porque ele não está debaixo do juiz ele não está julgando Eu acho que o psicólogo do fórum tem essa dificuldade né O clínico eu acho que é mais fácil perceber essas coisas o vínculo é melhor a freqüência é muito maior Eu fico pensando meus amigos clínicos do fórum do judiciário não dizem isso mas eu acho que tem uma coisa assim sabe do tipo eu estou em desvantagem eu vejo a família uma vez a cada dois meses tenho que dar um veredicto aqui de sim ou não tem uma inveja risos Pesquisadora Mas não foi ele que buscou esse lugar também André Sim Pesquisadora E em que instrumentos eles se respaldam pra dizer se houve ou não houve André O psicólogo judiciário Pesquisadora É Como é que é a sua visão a respeito do trabalho do psicólogo judiciário Existem instrumentos pra poder dar o veredicto Você acha que existe André Tem mas eu acho que não dá pra ter essa precisão Estou me lembrando de algumas amigas que contam eles usam muito desenhos muita entrevista com a família com a família toda Mas aí fica naquilo né porque elas tem que dizer porque o conceito lá é teve é penetração ou foi sem penetração né Então isso num desenho não necessariamente mostra Eu acho que é muito complicado o trabalho deles porque está ligado a uma óptica da 150 legislação muito mais próximo do Direito do que da saúde mental né Então a Psicologia ela é um instrumento do Direito ela não é uma ciência em si então eu acho complicado mas é importante Complicado porque eu acho que é assim o psicólogo do judiciário fica querendo dizer se teve abuso ou não isso não é função dele é do juiz ele serve enquanto auxiliar do juiz né pelo menos está minhas amigas do judiciário dizem isso A função delas não é dizer Só que aí o juiz fala e aí e você que é psicólogo teve abuso ou não Elas dizem não Quem julga aqui é julgar juiz psicólogo psicologa né é outra coisa né Mas é muito complicado isso mas é sempre tem muita confusão Porque aí ela está submissa ao direito Pra sair desses rolos todos foi que o nome da instituição que fez o curso falou que a gente só atende os casos que já estejam denunciados Então não entra essa questão fica só no foco da saúde mental né Mas o nome da instituição que fez o curso está lá dentro da nome da universidade é um grupo de estudo protegido reservado e uma onguizinha que está lá na periferia de São Paulo que não tem judiciário não tem Conselho Tutelar perto eu acho que aí é complicado aí não dá pra fazer clínica que faça essa coisa de denúncia né e denuncie sim eu acho o pessoal da ONG talvez o Programa nome do Programa pudesse mas não dá pra conjugar com clínica eu acho aí é um programa de incentivo à denúncia que eu acho que é importante talvez trabalhasse junto ao Conselho Tutelar mas ao mesmo tempo denunciar e fazer clínica não dá breve silêncio Eu acho pelo menos breve silêncio Eu acho que isso não aconteceu ainda mas eu acho que se eu precisasse fazer uma denúncia eu denunciaria e encaminharia pra alguém Pro nome da instituição que fez o curso ou pra algum outro lugar Eu denunciaria mas eu não teria sustentação pra fazer terapia Tem uma garota que faz supervisão comigo e ela está com um caso assim Ela fez uma notificação denunciou e encaminhou o caso para outro atendimento Ela viu que o vínculo não rolou depois da denúncia Porque ficava uma ambivalência sabe a netinha de um senhor que ela denunciou e aí a netinha ficava assim sabe que legal que bom você entrou na nossa família denunciou o meu avô isso não vai acontecer mais comigo obrigada eu te odeio porque meu avô está quase sendo preso por tua causa ao mesmo tempo ficava nessa loucura né A gente acha que a criança tem raiva do avô do pai da mãe e tem mas é junto com outras coisas é misturado né Porque também tem uma parte legal do pai do vô né também tem uma coisa aí mistura com culpa da criança então foi culpa minha que meu avô está sendo julgado meu pai Eu não sei se tem alguma coisa mais confusa na psicologia do que isso tem 151 Pesquisadora Acho que não risos André Porque se fosse só a psicologia tudo bem mas quando esbarra com a coisa da legalidade do direito eu acho que aí é complicado são duas ciências diferentes são duas disciplinas Pesquisadora A psicologia fica um pouco subjugada não é André Me parece que si Porque o direito entende que uma criança que está sendo abusada pelo pai né pela mãe isso faz mal é crime mas não leva tanto em consideração a questão Então se eu tirar essa criança ou esses adultos do lar também faz mal e isso não é crime Eu posso tirar o pai tirar a mãe do lar e isso não é crime mas pra psicologia é crime é doença é neurose também As ópticas são diferentes Pesquisadora Você acha que o psicólogo tem formação suficiente pra se deparar com essas coisas André Não Pô eu vejo assim eu fiz há dois um ano e meio o curso no nome instituição mais o nome do movimentos social do qual fez parte mais nome da instituição em que trabalhou mas a hora que cai na clínica você fica com um medo você fala assim Será que eu denuncio Será que é o momento certo não Isso porque eu já estudei além da faculdade sobre esse assunto Eu acho que não Margarete eu acho que a gente não tem né Eu lembro assim quando eu estudei Édipo na faculdade é um negócio muito distante né Você fica assim é todo mundo tem é quando a menina se apaixona pela mamãe e aí o papai fala não não e tudo bem Só que na maioria dos casos não é assim tudo bem fica uma paixão ali no ar né risos Eu acho que a gente fala pouco de Édipo na faculdade não vê a gravidade do Édipo assim exacerbado Então na faculdade a gente não tem essa coisa assim com o judiciário a gente não a gente não estuda o ECA na faculdade Pelo menos eu não estudei eu não sei se tem uma matéria disso né Quando eu fui concorrer a cargos em ONGS aí o pessoal falava assim você conhece o ECA Eu falava não Aí eu comprei um vamos decorar o noventa e dois o noventa e quatro cento e um cento e três né risos Falei vamos decorar esses né Mas eu acho que se é lei e o psicólogo está debaixo da lei acho que tem que estudar isso na faculdade A gente está debaixo disso né e o pior acho que esse pessoal que vai trabalhar no judiciário teve menos formação ainda desse assunto Tem o curso do Sedes não sei se tem mais cursos pra área judiciária eu acho que ajuda né Mas eu vejo minhas amigas que estão no judiciário não têm essa formação breve silêncio Eu acho que dá pra dizer se a criança está perturbada ou não Aliás isso é engraçado também porque 152 então assim se estiver perturbada quer dizer que teve abuso se não tiver não teve E a idéia da resiliência né se for uma criança que consegue superar o trauma então ela não foi abusada Aliás eu lembro que foi muito louco uma família que a gente atendia no nome da instituição que fez o curso porque assim no nome da instituição a gente atende a família inteira então se tem irmão que está na família e que não tem a ver ali com o que o judiciário acha que é vítima abusado tal mas está emocionalmente envolvido está na terapia Tinha irmão que não tinha a ver com a relação sexual lá estava mais perturbado do que aquele que sofreu o abuso do que aquele que transou com o pai Você já viu isso E aí você fica assim você não quer ver isso Aí na supervisão você saca puta é é possível E aí você fica na coisa assim mas pra justiça então se eu fizesse um laudo daquele estava bem mais esperto porque ele nesse caso nessa família por exemplo eu lembro que esse por exemplo que tinha relações com o pai teve pelo menos pelo menos ele tinha o afeto do pai e esse que tava piorzinho o pai nem lembrava que ele existia negava até a paternidade Então né não estou defendendo o abuso de maneira nenhuma breve silêncio mas é uma criança que tinha uma resiliência maior Então se eu fosse fazer um laudo por exemplo eu poderia até dizer que aquela criança não foi abusada que quem foi abusado era aquele que estava mal Só que ali nas configurações das sessões eu sabia que quem tinha relação com o pai era aquele que estava mais ou menos bem não o menorzinho que estava mal Pesquisadora Eu atendi um menino que assistia ao abuso das irmãs e entre os irmãos o que tinha mais sintomas era esse menino sintomas muitos sérios André Então se pegar pelo judiciário esse garoto sofreu atentado ao pudor porque ele assistia cena de sexo explícito era menor tá isso é crime As garotas sofreram ou atentado violento ao pudor ou estupro tá Pra psicologia pra psicanálise não faz diferença só que as penas são menores pra atentado ao pudor é diferente de sexo de estupro assim as ópticas são diferentes né É complicado Pesquisadora E por exemplo você enquanto pessoa trabalhando na escuta dos casos de abuso essa questão de escutar você acha que de alguma forma tem alguma conseqüência na subjetividade do psicólogo que atende André Eu acho que sim A visão de mundo você diz na subjetividade 153 Pesquisadora Na subjetividade geral É de uma pessoa que se põe a escutar estudar André Eu acho que sim Tem coisas que são óbvias assim de um malestar né quer dizer você escuta coisas na sessão que você fica mal entendeu e aí na hora de dormir você fica lembrando do que te falaram né Pesquisadora Por exemplo André Uma criança que eu lembro que fazia questão de ficar de pernas abertas pra me mostrar a cor da calcinha no meio do atendimento Não é que ela estava descuidada e tava aparecendo a calcinha não era isso Ela fazia questão de me mostrar né Aí você ser cantado por uma menininha de cinco anos pô Isso dá um incômodo grande mexe né E ela não achava que aquilo era não era sacana da parte dela era uma brincadeira que ela costumava fazer em casa né tinha um adulto na casa dela que gostava de ver que pedia então ela achava que era era carinhoso isso E isso por exemplo assim eu lembro isso mexe né você sai meio assim pô E tem umas coisas que eu acho que a gente vai ficando assim mais bobo depois assim de visão de mundo às vezes você está no ônibus aí entra uma mãe uma criança e o pai aí senta ela a criança e o pai sentam lá na frente ou lá na frente ou lá atrás no ônibus Isso não é abuso mas você vê assim né por que que não pode ficar os três juntos Por que que não pode Podia dá sei lá dá um jeito fica os três juntos Mas assim é uma mãe que prefere ficar com o filho do que ficar ela o filho e o pai Então essas coisas são sutis você não pode contar pra ninguém porque vão falar que você está maluco né Mas aí você começa a ver essas pequenas coisas assim né como essa mãe por exemplo no ônibus deixa o pai de lado e prefere ficar com o filho Pesquisadora E aí imaginase André E pode ser um milhão de coisas O filho pode ter acabado de tomar uma injeção então ela está dando uma atenção especial pode ser um milhão de coisas mas pode ser uma relação de Édipo configurada assim né o marido está fora e eu e meu filho somos lindos Então você começa a ficar com essas coisas meio bobas assim de festa de aniversário de crianças você vê essas coisas parquinho né começa a ver umas coisas esquisitas E aí você começa a ficar meio assim será que eu estou vendo demais será que é real É tudo muito subjetivo né e aí dá um incômodo será que eu estou exagerando Será que eu estou 154 Pesquisadora Parquinho por exemplo André Não eu não costumo ir ao parquinho eu não tenho filhos mas eu fico imaginando assim poderia ver isso aí Eu lembro uma vez na fila do Play Center não do Hopi Hari que a mãe falava um negócio assim brigando com o marido e aí não lembro a questão mas assim tinha uma escolha clara eu quero ficar com meu filho você não é legal Briga de casal Só que imagina isso na cabeça da criança Então sai meu pai e entro eu no lugar de companheiro dela breve silêncio Coisas malucas assim às vezes quando eu vejo assim mãe amamentando o filho com três quatro anos pra mim é muito estranho né mas pra alguns médicos não é bom né o leite materno faz bem Então eu acho que você acaba ficando meio chato né Amigas minhas que beijam os filhos na boca assim eu acho muito esquisito isso assim né risos Porque na nossa cultura beijar na boca é erótico né mas assim pra mim é esquisito Mas pode ser moralismo meu não sei Pode ser paranóia minha Então eu comecei a ver que eu comecei a ficar mais encanado com essas coisas depois de atender casos de abuso Antes assim ah leite materno faz bem tem mais é que tomar mesmo Antes de eu entender o que era o complexo de Édipo eu acho Então dormir na mesma cama da mãe umas coisas assim você começa a ver assim né e não é que é errado né é que isso pra mim hoje assim é um indicador de que alguma outra coisa está estranha Mas eu acho que eu fiquei meio bobo com essas coisas assim silêncio Eu lembro de amigos que a visão deles é normal e hoje eu fico um pouco escandalizado com isso De tomar banho todo mundo junto assim e pra eles é normal assim sem problemas E eu também achava assim sei lá deve ser legal a cultura deles tomar banho todo mundo junto ao mesmo tempo a mãe o pai as crianças criança grande não é bebê não não são adolescentes mas não são bebês Aí quando você você começa a estudar essa coisa do abuso né do Édipo do incesto você fala bom tá pode ser normal mas por que que não é separado então por que que eles escolheram desse jeito Alguma coisa leva a essa configuração Por que que agora não é o banho da mãe agora é do pai ou da mãe e do pai e depois o das crianças o que que tem isso né Algum gozo tem aí você só que são amigos meus né Então você conversando essas coisas assim eu acho esquisito não você é quadrado você veio de Minas não sei o quê Então mas acho que sim você acaba questionando algumas coisas que você não questionava né Agora assim são amigos meus é a cultura deles é eles não tem essa visão eu tenho o direito de mostrar a minha visão mas não de querer que eles mudem né A casa deles né eu que não tomaria banho junto com eles né mas é breve silêncio Eu acho que você vê algumas coisas que antes ééé você acaba não vendo silêncio Isso é da psicologia por exemplo eu vou denunciar esses meus amigos que tomam banho junto com os filhos Pra psicologia não tem 155 crime né tem neuroses né Eles estão incentivando uma neurose Mas não é legal tomar banho com os filhos risos Você imagina eu dizer assim pro pro um juiz da vara da infância Olha esses casal toma banho junto com os filhos O juiz vai dar risada da minha cara né risos vai dizer E daí Pesquisadora Qual a idade dos filhos André Uns quatro bom ela já saberia tomar banho sozinha ela já poderia Então eu fico perguntando então por que que não toma banho sozinha Eu não sei que idade ela tem uma garota garotinha independente de ser garoto ou garota sei lá não é isso Por que que não incentiva a autonomia Eu acho que a coisa do abuso dentro da família pelo menos assim abuso de rua de estranho estupro de rua acho que é outra configuração não é Édipo né é outra história Mas tem essa coisa assim de todo mundo vai ser criança todo mundo vai todo mundo vai ser adulto eu acho que essa indiscriminação o que é do adulto o que é da criança eu acho que isso é que dá dá neura né E o que a lei diz é assim sexo é para adulto não é pra criança Mas onde começa o sexo Tomar banho junto pelado já não começou o sexo aí Tem um erótico nisso né São as intenções né porque a psicologia vai atrás disso né da intenção Acho que só dá pra olhar assim olhar pra essa garota por exemplo aí filha dos meus amigos é é ela tem um comportamento mais neurótico ou não Os índios tomavam banho todo mudo pelado ali vai dizer que todos então eram incestuosos e abusivos Mas a nossa cultura não é a cultura do índio né E a legislação também é outra então muda tudo silêncio O que eu estou juntando de material para o meu mestrado é que lá no nome da instituição que fez o curso por exemplo a gente foi ver que a maioria das famílias que estavam lá que eram encaminhadas pelo judiciário era muito religiosa A maioria né isso assim não tem base quantitativa pra dizer O meu trabalho de mestrado poderia ser esse lá né mas assim a maioria é evangélico E são evangélicos assim é são sérios eles vão à igreja acreditam nisso não é pra enganar o juiz Quer dizer a gente convive com essas famílias um ano e meio então você dá pra você ver que que eles são fiéis né evangélicos pentecostais e neopentecostais bem rígidos Então o que eu queria pesquisar é isso né por que é que tem essa rigidez tão forte de moralismo e uma hora descamba todo mundo transa com todo mundo ali risos Então isso é muito louco quando eu vi isso Porque é assim uma das minhas vontades também era fazer o mestrado em ciências da religião juntando a psicologia mas como eu estou na área da sexualidade e ninguém publicou sobre isso ainda eu falei ah descobri um negócio pra pra estudar Sexualidade e religiosidade Que eu acho que vai acabar sendo assim como é a formação do superego e ego Porque as famílias que 156 estão lá no nome da instituição que fez o curso têm um superego muito forte mas não têm muita estrutura de ego Então não sei não sei disso assim isso são maluquices que estão na cabeça Eu rascunhei um artigo mas aí eu precisaria da autorização do Conselho de Ética pra poder dar os dados quantitativos tudo isso fazer a pesquisa quantitativa entendeu silêncio E tem evangélicos também que não levam tão a sério Então como é que eu vou eu vou ter que criar categorias né os evangélicos que seguem a religião e os que são evangélicos nominais Porque não dá só pra dizer é evangélico é católico é espírita né eu vou ter que pegar qualitativamente como eles seguem a religiosidade né Então isso também vai dar um trabalho Pesquisadora E não tem a questão também da classe social de ser uma classe menos favorecida e aí as pessoas aderem às religiões neopentecostais André Tem tem isso e assim as denúncias que chegam no nome da instituição que fez o curso são da classe C raramente da classe B A jamais né Porque tem isso o advogado é bom então não sei o quê né tem todas essas coisas Acho que tem todo esse viés né aí tem que pegar o IBGE dos evangélicos pentecostais quantos qual a classe social Então fica um trabalho estatístico acho que é por isso que ninguém se interessou por isso ainda Pesquisadora Tem a classe social também não é André Eu acho que é isso também a gente acha assim então abuso é coisa de pobre Tem raros casos que a gente viu por exemplo assim de classes altas mas tem Agora no consultório Margarete é assim você vê que o pessoal que paga cem pau a sessão né não é da classe C então E tem abuso Então pra mim fica muito claro assim não é bem Pesquisadora E são pentecostais O pessoal do consultório André Não não a maioria não Então acho que tem tem que sacar esses viés sim Mas tem o moralismo tipo assim é o pai que assim minha filha não vai namorar antes dos dezoito anos não tem uma tem uma moralidade A gente acha que o abusivo é aquele que não entendi o que disse mas ele cuida muito bem da princesinha né porque ele adora ela né então tem uma paixão então também eu acho que não não tem um jeito só é muito variado mas é democrático tem pobre tem com Pesquisadora É isso acho que acho que tá bom né André Não sei o que você vai fazer com isso tudo 157 Pesquisadora Escrever Há alguma coisa a mais que você queira mencionar Que você acha que é legal contar André Acho que o que mais me aflige eu acho que é essa crise que a gente falou denuncio não denuncio denuncio em que momento Eu sirvo à área da saúde ou sirvo à área do direito quem é meu Deus Eu acho que essa é uma crise que eu mais eu me pego Pesquisadora Aflige André Sim Pesquisadora Angustia André Também acho que sim Pensando nessa garota que faz supervisão lá comigo por exemplo ela falou assim então bom agora eu tenho que denunciar Bom eu falei mas vamos tentar mais um pouco pra ver se essa família toma consciência do que está acontecendo porque se eles conseguirem tomar consciência de que não é normal transar entre si fazer de conta que não vê Pô seria a grande saúde mental acho que talvez estruturaria a família talvez o que uma lei não faz Nesse caso por exemplo não teve esse alcance teve que entrar um juiz Aí tem que entrar um pai no meio né falar ó ou vai sair ou eu bato em você ou eu te prendo Então assim de qualquer maneira não dá pra E outra a hora que você começa a mexer nessas coisas a família pode sumir e aí se não tiver um juiz pra dizer você vai ter que ir pra terapia sim né Lá no nome da instituição que fez o curso é muito tranqüilo muito tranqüilo não mas é mais do que no consultório porque você tem um juiz obrigando a ir pra terapia Pesquisadora Pois é e aí rola terapia mesmo compulsória André Ah tem casos que sim tem casos que não tem muita desistência Nos últimos anos lá no nome da instituição eles fizeram uma pesquisa dessas e foi apresentado em Congresso A aderência foi maior O que é muito maluco lá é que assim quando eles atendiam a pessoa que era acusada e a pessoa que era vítima O nome da instituição começou assim atendia o abusador e o abusado a aderência era menor Agora que eles atendem a família inteira a aderência foi maior Então eles têm algumas hipóteses porque distribui culpa porque não sei mais o quê um monte de coisa Mas o fato é que foi isso a adesão está sendo maior quando a terapia é de família no caso de abuso então bom mas o que é mesmo que eu estava falando Ah como se funciona compulsória né obrigar Eu acho 158 que funciona mais do que se for por adesão livre né porque a hora que você começa a mostrar as coisas feias da família as coisas que estão acontecendo eles saem né Vem a resistência e saem E se não tiver a figura de pai dizendo vai ter que fazer terapia sim Porque aí ele continua resistente mas vai ter que ir Então acho que é melhor ir forçado e resistente mas ir do que ficar resistente e sair Por isso que eu acho que o alcance de terapia de caso de abuso sexual no consultório é muito pequeno tem um alcance muito pequeno Se não for na rede porque a rede é assim o judiciário está sabendo né Acho que é sem ter um pai aí e a psicologia não tem esse poder de pai de obrigar vai sim Acho que lá no nome da instituição o lugar que mais funciona é por isso né E muitos casos que a gente vê assim né porque ali não vai ficar falando do abuso toda sessão Você vai falar do que a família quer falar porque às vezes o sim às vezes não o abuso seria um sintoma de um problema maior de família né De uma mãe que não sabe tomar conta dos filhos de um pai que não sabe discriminar quem é adulto não sabe o que fazer com a sexualidade dele Então isso daí são sintomas então a gente fica falando de outras coisas que a família quiser trazer Então isso seria um sintoma lá no caso o incesto Em outros tipos de abuso tem outra demanda É aí quando as pessoas vêem que não vai ficar falando toda sessão mas você comeu ou não comeu transou ou não transou A hora que você vê que passa essa fantasia e está cuidando da família eu acho que é muito mais fácil tá aderindo aí De repente você está no foco então você é o agressor você é a vítima você está o tempo todo querendo julgar né e aí não tem como aderir silêncio Quando começou essa história que eu ia trabalhar com abuso não é então eu passei na seleção vamos começar no nome do Programa em que trabalhou né Eu lembro que a minha visão era assim então cadê o monstro que vai chegar Aí você vê assim Muito engraçado eu lembro de um cara que eu atendi quando assim no meio da família tal isso lá no nome da instituição em que fez o curso e quando eu vi que ele era bancário eu lembrei puta o meu pai é bancário então não é um monstro assim não é E aí isso pega assim o abuso sexual não é um negócio que está no homem feio lá na rua né Pode estar na minha família pode estar no vizinho pode estar na minha igreja pode estar num num é um negócio é que a gente acha que é muito longe o abuso sexual Mas se abrir essa visão de que abuso não é penetração abuso é uma erotização da família da relação A relação abusiva seria uma erotização das questões hierárquicas assim das diferenças entre adultos e crianças e tal Aí você vê em qualquer lugar por isso que você vê no parquinho no Hopi Hari no ônibus no consultório risos Por isso que eu acho que eu vou ficando meio doido e você começa a ver abuso em todo o lugar Não o abuso da justiça mas o abuso psicológico Agora se você assume então é comum né a família adere Lá no nome da 159 instituição em que fez o curso vocês não vão ficar falando do crime vocês vão falar da disfunção da dor que a família tem e eles vão trazer a dor Quando eles podem falar da dor e eles sabem que não estão sendo julgados eles costumam aderir e aí ficam porque aí está falando da dor silêncio Por isso que eu acho que não dá pra você julgar encaminhar pro judiciário e cuidar ao mesmo tempo Senão você está fazendo o papel do pai que dá bronca e de mãe que cuida ao mesmo tempo Eu acho confuso isso mas a maioria dos programas nome de um programa tem feito isso Senão ao mesmo tempo em que você dá bronca você quer passar a mão na cabeça eu acho isso muito complicado Então vamos fazer o seguinte o judiciário cuida da justiça o judiciário o tutelar ONGS que trabalham com isso são os pais que dão broncas esse lado da regra e a psicologia cuida do emocional Acho que aí dá pra fazer um trabalho legal silêncio Pesquisadora É interessante André Eu tenho minhas críticas a esses programas até porque eu trabalhei lá né Então Como é que um juiz ou alguém do jurídico vai dizer o que é que eu tenho que fazer ou não na minha profissão na minha área técnica se ele não sabe o que é aliança terapêutica Como é que ele vai dizer o psicólogo é obrigado a denunciar se na minha concepção denunciar naquele momento pode ser pior do que não denunciar Depende do momento Dependendo do momento tem que denunciar sim vai fazer melhor Acho que são aí entra nessa coisa do ato médico a medicina vai dizer pra psicologia o que é que ela deve fazer risos São áreas distintas não dá é complicado Acho que a idéia da interface né vamos pensar vamos falar junto Então chama um psicólogo pra pensar como é que a lei pode ser melhor também A gente tem os juizes aqui de São Paulo que estudam estudam psicologia Eu lembro o dia em que eu vi sabe o doutor fulano O dia em que eu o vi com o livro do Winnicot eu falei que legal um juiz lendo Winnicot que bacana isso silêncio A gente está debaixo de uma Constituição antes de ser psicólogo eu sou cidadão brasileiro então silêncio Já deu muita coisa Pesquisadora É acho que já deu se precisar retomar alguma coisa posso te pedir André Claro A gente conversa sim 161 Sujeito 2 Cláudia1 37 anos psicóloga2 Data entrevista 17052006 início às 9h30min e término às 11h10min Local residência da entrevistada Cláudia trabalhou em uma instituição para atendimento a crianças adolescentes e famílias em situação de violência sexual na cidade de São Paulo Pesquisadora Fale sobre o seu trabalho na instituição Cláudia Fui convidada a trabalhar no nome da instituição onde estava sendo implantado o Programa Foi um momento de implantação do Programa e teve todos os entraves de implantação como estabelecimento de lugar Foi difícil para eu atender o caso Eu lembro de uma amiga que me disse Você está sendo atendida Não Você péra aí você não atende psicótico e atende casos de abuso sexual Eu respondi que atendia e atendo numa boa Hoje eu atendo numa boa mas antes no começo foi bastante complicado Eu lembro que ouvindo os casos que estavam chegando no início da implantação não tinha nem lugar para a gente atender a equipe estava se formando tudo era novo tinha esse complicador e hã esses casos chegavam muito fortes para mim Eu me lembro que eu ouvi um caso de uma menina de um ano e meio que foi abusada e essa menina foi parar no hospital Eu não agüentei Deu uma reação física em mim Achei que nunca iria acontecer na minha vida de sentir ânsia de vômito tamanha Não sei descrever o que é o que eu senti naquele momento Eu não sei se eu iria conseguir atender um caso daquele Tanto é que eu disse não é o meu limite e quem atendeu foi um outro psicólogo Pesquisadora E o caso dessa menina como era Ela foi abusada por Cláudia A menina foi abusada por um padrasto e foi parar na casa abrigo Ela veio da casa abrigo e estava passando por uma série de dificuldades em virtude dessa situação Não via a mãe e a gente estava ainda a equipe estava nessa interlocução com o abrigo 1 Nome fictício 2 A entrevistada apresenta embaraço fônico provavelmente por certa ansiedade despertada pelo fato da entrevista estar sendo gravada Na transcrição da entrevista não mantivemos as repetições que mostram este estado a fim de manter maior clareza do texto 162 Pesquisadora Ela foi para o hospital para fazer exame de corpo de delito Cláudia Não ela já passou por todo esse tratamento Quando ela chegou para a gente já tinha passado Chegou a fazer cirurgia de reconstituição Você quer que eu conte mais sobre esse caso Pesquisadora Por que você não quis atendêla Cláudia Eu acabei recusando esse atendimento pois me dei conta que eu não poderia atender esse tipo de caso Casos que eles falam um termo dilacera dilacerou dila tem um termo técnico que nem consigo Até eu conseguir pegar um atendimento como o daquela criança demorou porque esse caso mexeu comigo Então eu disse para a equipe que eu só atenderia adolescentes Foi aí que eu comecei a atender os adolescentes que chegavam para mim e eu poderia atender tranqüilamente Agora é porque que eu não conseguia atender né Tem uma coisa que também de filha de identificação né Minha filha era um pouco mais velha na época mas eu fiquei com aquela fantasia de que um dia isso fosse acontecer Então a gente começa a trabalhar nessa temática que mexe mesmo com a gente Num período nesse mesmo período eu não sei há quanto tempo eu já estava no Programa ela foi parar ela estava brincando com uma amiguinha e a amiguinha disse para ela e ela veio com uma queixa de dor na região do Pesquisadora Sua filha Cláudia Minha filha na região da vagina E eu fiquei em pânico Foi lá na casa da menina da amiguinha E eu perguntei para ela o que é que tinha acontecido para ela contar em detalhes Ela falou assim a mãe dela não parou de mexer na minha vagina Eu falei para ela muda a entonação da voz e acelera a fala expressa desespero que ninguém toca lá que ela não pode deixar ela não vai deixar e depois disso tudo desacelera a fala e abaixa a entonação da voz eu fiz um puta alarde A gente entra em pânico mesmo Eu até acordei o meu marido Ele me disse não precisa fazer não precisa entrar em pânico Ele tinha reparado que eu tinha extrapolado um pouco que com essa história de abuso eu fiquei mais sensível com essas questões e mais dentro de casa Como se a gente tivesse é tivesse mais cuidado e ficasse mais como se você pudesse proteger mais a sua prole Hã isso tudo foi no momento em que eu estava trabalhando lá E em análise porque eu fazia análise eu nunca levei a questão desse as questões mais de atendimento nunca senti vontade de levar Mesmo porque os problemas eram mais políticos Eu me sentia muito incomodada politicamente porque é uma zona tremenda de política e de como foi constituído esse 163 Programa Eu sofria muito por isso porque esse equipamento é que um equipamento social que deveria existir com máxima atenção e isso não tinha porque tinha pouca contribuição do governo federal tinha eu não sei vou poder falar mais sobre isso Do próprio convênio que tinha um convênio com a entidade e a Secretaria de Assistência Social que é eu não sei o que aconteceu eu não sei o que acontecia que as pessoas tratavam com arrogância a equipe técnica isso como um todo Eu estou dizendo como um todo é dessa instituição que recebia supervisores e supervisoras da Secretaria de Assistência Social e essas supervisoras tratavam com grosseria e arrogância toda a equipe técnica não só o do nome da instituição E eu não sei se isso tem alguma coisa relacionada ao nome do partido político Eu estou te contando tudo isso porque era uma coisa que me levava ao sofrimento Essa coisa de entraves políticos de muita confusão de não de dizer que vai fazer e não faz de você pressionar Aquela pressão de exigência de alguma mudança de ação que você está solicitando isso não fazia impacto nenhum então era tomado com extrema pessoalidade sabe era tão antiprofissional que eu levei um susto Foi quando eu decidi não eu não vou fazer eu não vou fazer mais parte disso Depois aconteceram várias coisas por problemas de repasse de verba e sei lá do repasse de verba que nós sofremos muito enquanto era psicóloga Então teve um momento no nome da instituição que eu era Psicóloga que eu fui Psicóloga e depois eu recebi o convite mais forçado da minha vida como coordenação como coordenadora do Programa Pesquisadora Você assumiu a coordenação Cláudia Eu assumi a coordenação A coordenação foi muito louca Eu exigi para o presidente da instituição que tivesse supervisão porque a equipe estava se estruturando num solo extremamente frágil e doente E eu queria eu pedi a supervisão e ele concedeu a supervisão Só que eu não pensei que o colegiado fosse prejudicar tanto assim Então a equipe decidiu como uma não é coordenação não tinha coordenado não tinha coordenação foi um colegiado então todo mundo mandava todo mundo fazia o que podia fazer todo mundo E no concreto não existia isso não podia existir Você tinha que tomar uma decisão você tinha que orientar você tinha que direcionar você tinha que delegar você tinha que fazer uma série de coisas porque aquilo lá era um momento de formação E aí o grupo se formou daquele jeito louco Eu a gente estava recrutando estava no momento de recrutar e assim cara a pior cagada nossa Eu me arrependo profundamente A cagada que eu fiz eu nem imaginava que isso fosse acontecer A gente estava recrutando educador A equipe técnica de psicólogos assistentes sociais e o advogado estava fechada e a gente estava recrutando educador A gente tinha decidido fechar o recrutamento com dois educadores então foi feita 164 uma seleção com indicação com pessoas próximas pessoas aqui da região e decidimos por duas cabeças que seria aquela pessoa Então ficamos com quatro candidatos e um candidato passou pelo crivo da instituição tinha eu e mais outro que assumia junto comigo que essa assistente da coordenação e aí esse cara passou Tinha uma coisa que me incomodava nele Nas reuniões ele não falava tudo A impressão que eu tinha era esse cara fala com tanta verdade E que verdade é essa que ele está contando Então aquilo lá começou a me incomodar e ele pegou isso pelo pessoal achando que eu é que não estava indo com a cara dele mas não era nada disso tosse Pesquisadora Qual verdade Cláudia Então a verdade tosse chegou A equipe estava se formando até a hora que a gente sentou juntos para estruturar o trabalho dele A gente estruturou você vai fazer isso e isso você vai fazer pesquisa de campo você vai até tal lugar Há tá bom ele respondeu Ele não chegava no horário ele chegava atrasado ele não aparecia quando a gente combinava e então perguntei a ele o que estava acontecendo Não está acontecendo nada é que eu estou com problema pessoal Eu falei bom não é isso para mim eu ficava imaginando para mim era não é isso que ele está dizendo Até que ele conseguiu apresentar um trabalho pois a equipe toda pressionou Nós precisamos do seu trabalho ver o seu trabalho para efetivamente executar a sua contribuição tosse Foi quando ele se abriu e contou que tinha sido abusado sexualmente Eu não sabia onde enfiar a minha cara quando ele disse que tinha sido abusado sexualmente Ele contou para a equipe Eu fiquei puta da vida Por que comigo Puxa vida Por que eu não sentei com ele e conversei É essa a verdade que eu estou te dizendo O que é que ele não tá dizendo Quando ele falou isso ele estava contando como é que iria ser o trabalho dele Como ele desenhou eu via que ele gaguejava muito que ele não articulava bem as idéias e ficava olhando o tempo todo para a gente Até que a equipe toda questionando mas por que assim por que assado Ele se abriu porque eu passei porque eu sei de tudo isso porque eu passei por isso Foi um negócio arregaçou Então eu sentei com ele parei estanquei naquele momento Puxei ele de lá peguei ele de lá Vamos sentar aqui e conversar Foi quando ele se abriu Ele escancarou para a equipe tudo o que ele tinha passado Ele tinha passagem pela Febem eu nem sabia e foi lá que ele tinha sido abusado Ele disse já tinha superado Puts eu só lembro da cara da assistente social ela foi contratada pela supervisora pela gerência do Programa que era a Secretaria do BemEstar Social como quem diz que merda Hum que estrago Eu senti assim a laranja podre Então eu falei puta fodeu e imediatamente já falei com ele já falei com a instituição avisando que não tinha 165 condições de mantêlo lá É uma questão de cuidado profissional com ele Ele não pode ficar mais aqui Eu fui inteiramente massacrada pela equipe hã eu não sei o que isso representou eu nem quis discutir Eu fui colocada e representada como uma pessoa autoritária E por quê Porque tinha uma formação colegiada Com tudo isso eu sofri muito porque eu estava preservando ele e preservando a equipe também Porém isso não foi entendido na supervisão Na supervisão a gente tinha uma supervisão duas supervisoras psicanalistas onde a equipe toda ia lá e daqui a pouco eu entro nos casos e só que isso eu acho que tem a ver É a gente tinha noção que as Pesquisadoras não davam conta daquilo daquele monstro né Pesquisadora Que monstro Cláudia O monstro que estava a situação A gente estava doente E assim a equipe já entrou na primeira sessão na segunda sessão hã falando que a gente não tinha nada a ver com o fracasso anterior Por quê Porque num momento teve um grupo que se formou e que não existiu mais e depois formouse um outro grupo E esse grupo mal entrou no lugar no Programa já se considerando fracassado Então começamos a trabalhar isso Eu tinha noção de que a supervisora não dava conta A psicanalista não dava conta Eu não sei eu tinha a impressão que a equipe não falava tudo e isso me incomodava um pouco A gente tinha uma reunião cada quinze dias não lembro e é claro que eu vou falar sobre o meu ponto de vista e tinha e eu vi que foi se formando um concluiu na equipe sempre tem aqueles que começam a minar o trabalho Pesquisadora E você fazia parte do outro grupo Cláudia Eu era a única que fazia parte do antigo grupo Por que eu fiz isso Por quê Eu me pergunto isso até hoje Eu nem lembro onde eu parei Hã por que eu fiquei com essa bandeira né Essa pergunta eu nunca fiz para mim Eu levei isso em análise e questionei muito esse lado de subutilização do profissional que eu via Eu queria um trabalho que pudesse pagar pelo meu valor pelo que eu posso contribuir e como eu posso contribuir muito e a análise estava em análise eu estava trabalhando isso de valorização do profissional Eu permanecia naquele trabalho Eu não me sentia remunerada só comecei a me sentir remunerada quando pedi para abaixar minha carga horária pois eu iria executar tarefas planejar ações naquele pedaço de tempo e a instituição aceitou isso A gerência não olhou com bons olhos aliás a gerência da Secretaria Municipal tosse eu não sei o que ela eu não sei o que eu represento porque ela vinha mas ela veio numa única reunião Aliás eu tive duas reuniões com a Secretaria da Assistência Social que foi a presença dela e a equipe 166 toda e a coordenação com extrema grosseria não entendi o que falou Eu comecei a sofrer muito com a bandeira que eu estava erguendo como que eu posso estar numa questão social representando um lugar onde eu possa executar alguma atividade e que eu possa fazer alguma coisa para a comunidade para a sociedade para o estado para o país fui buscar isso em análise Hã por isso que eu estava erguendo essa bandeira Tem uma parte minha política social como cidadã que é representando num lugar Agora tem uma outra parte que é minha pessoal por que da onde veio isso Eu fui buscar mesmo na análise o que me que atrai Tem uma hora que você se pergunta Por que aquilo lá Por que aquele objeto te atrai Cheguei a me perguntar será que eu fui abusada sexualmente gargalha Deixa eu ver se na minha história tem abuso sexual Têm as fantasias que hoje eu consigo falar Eu não conseguia falar tem as fantasias sexuais que eu que vi isso na análise que passou isso no intrafamiliar e que não teve a interdição do pai eu não tive pai e não foi um abuso que um abuso que Então isso foi um trabalho em análise porque essas questões mexem muito conosco Fui buscar isso porque eu também levanto essa bandeira Eee Pesquisadora Você estava falando de uma questão que foi trabalhada em análise Cláudia Foi trabalhado em análise Isso apareceu bem depois de eu ter trabalhado com abuso Eu vou falar um pouco dos casos que nos casos é muito engraçado Eu atendi os casos e com os casos eu tive um extremo cuidado Eu estava aprendendo e eu não sabia o que fazer Eu ficava perguntando para os técnicos que tinham experiência nessa temática e ia conduzindo os atendimentos para fortalecer o ego da criança O caso que ficou bastante marcado aliás todos os casos me marcavam todos os casos tiveram sua marca é a história o caso de uma menina que foi abusada diversas vezes e ela chegou bastante machucada no nome da instituição Ela foi e hã nem sabia que a nossa contribuição tivesse tanto valor depois que termina um atendimento Ela passou lá no Programa e ficou comigo acho uns oito meses Essa menina só brincava de uma coisa de jogo de memórias e ela sempre queria vencer Às vezes eu deixava ela vencer às vezes eu queria vencer Eu me lembro que quando ela trocava quando eu pedia para trocar de brincadeira eu sentia muito sono eu não entendia porque eu sentia tanto sono ri Eu sentia sono e ficava me perguntando será que eu não dormi ontem Eu ficava me perguntando se tinha alguma coisa fisiológica no meio mas não era uma coisa muito pesada pesada pesada Até que numa ocasião a gente estava trabalhando a transferência quando ficou legal quando eu achei que eu podia interpretar que podia dizer que podia pronunciar significações desses ocorridos Porque eu estava no atendimento e eu não entendia porque que eu sentia sono Eu ficava perguntando desse sono 167 se tinha essa relação tão pesada com o caso e a história dela Foi quando o sono começou a desaparecer quando tudo isso aconteceu Depois da transferência onde eu pude começar a dizer olha é você pode dizer não né Você tem que dizer não porque a menina ficou plasma uma coisa plasmática e ela viu essa potencialidade viu novamente as potencialidades começou a ver novamente as potencialidades quando ela conseguiu colocar no papel em desenho a história dela pesada pesada Ela foi abusada trocentas vezes por diversos namorados da mãe Pesquisadora Ela tinha quantos anos Cláudia Foi a partir dos cinco anos Ela chegou no consultório eu disse sete mas acho que foi nove quando chegou lá no Programa então a partir dos cinco e ela nem estava aqui em São Paulo Era um negócio bem rural de amassar a farinha de mandioca da mãozinha dela você vê os calos da mãozinha e ela consegui dizer Eu fui eu fui Eu disse te machucaram Eu não conseguia dizer eu ficava com uma tremenda raiva Foi quando eu consegui sacar que eu sentia todo aquele sono por uma coisa que eu deveria ter trabalhado em mim para não atrapalhar o tratamento Pesquisadora E você sentia Cláudia Sentia então o que eu pude ver depois daquilo tudo quer dizer quando eu consegui enxergar quando ela conseguiu dizer no papel no desenho o que tinha acontecido com ela Ela fez um desenho muito simples e primitivo de um parece aqueles barracos não não é barraco como é que chama aquele negócio lá de índio Oca parece oca Fora era o banheiro fora era a cozinha e ela estava fora Aí tinha o desenho do namorado da mãe e da mãe dentro da casa Eu fui perguntando Por que você está aqui fora Por que não está aqui dentro O que eles estão fazendo Não Não quero falar Aconteceu bom não quer falar enfim fui investigando aos poucos isso nem é a primeira nem é a única sessão Passou acho que umas quatro sessões e ela conseguiu dizer que foi machucada pelo namorado da mãe Eu sentia aí começou a cair a ficha para mim de que aquele sono representava que era pesado sim porque ela foi abusada por diversos namorados da mãe A história que chegou para gente é que ela foi abusada pelo namorado mas não pelos diversos namorados Então hã o sono foi uma coisa que para mim também apareceu num outro caso E eu não tinha sacado isso que era tão pesado que tinha alguma coisa que para mim era pesado E a pergunta que eu fazia era o que aconteceu meu Deus o que aconteceu com essa menina Porque teve esse outro caso que esse menino veio e quem foi abusada foi a menina A menina 168 estava sendo atendida por outra técnica e o menino puts o menino ele vinha para o atendimento e assistiu o abuso Eu não entendia não entendia eu falei mas qual é a dor dele Eu ficava perguntando E eu falei para eu fazia essas perguntas essa outra pergunta meu Deus o que ele passou eu não sei o que ele passou E ele depois de um tempo eu fui ver o que pude contribuir o que os atendimentos contribuíram para ele né Para ele poder ir para a escola para ele poder estar com a irmã para ele poder defender a irmã para ele poder defender a mãe Ele deve no meu imaginário ele passou por mais outra coisa Não passou só por assistir aquilo a cena Hã não fechei porque eu saí eu saí eu não agüentei o caso não é isso Eu saí porque eu não agüentei a situação política horrorosa porque eu acho que eu mereço dignidade para trabalhar porque eu não preciso trabalhar com pessoas grosseiras ainda mais num puta tema desse né Não precisa gira o tapete vermelho não precisa bater nas costas não é isso mas pô você tem que tratar a sua equipe tosse pelo menos a gerência de São Paulo decentemente Eu fui numa reunião com essas coordenadoras Eu não vou dizer que eu tenha referência para conhecer as coordenadoras dos nomes de outras instituições mas as coordenadoras tinham um discurso de preocupação política muito forte a única coisa que eu posso dizer hã eu conheci as coordenadoras dos nomes de outras instituições A gente discutiu algumas coisas pontuais não de casos não tinha nem como discutir isso tosse mas entre a tosse tinha um tentativa de fortalecer uma rede política mas foi um encontro só então não sei se eu posso dizer muita coisa A única coisa foi um encontro até legal que aconteceu Pesquisadora Fortalecer a rede política em que sentido Cláudia No sentido de voz Não uma voz de zona por exemplo eu sou da zona leste eu sou da zona norte eu sou mas um todo como São Paulo uma força política de voz nesse sentido Pesquisadora Voz dos trabalhadores do nome do Programa da cidade de São Paulo Cláudia Isso E em seguida eu saí Eu fiquei pouco tempo porque eu saí eu quis sair desse Programa por causa dessa falta de dignidade Na época os outros Programas continuavam Numa época em que a gente não estava recebendo era um era um jogo de cartel zona sul recebia zona leste não zona leste não recebia zona norte sim Sabe era uma zona de recebimento pô os técnicos iam trabalhar na época que a gente não estava recebendo com essa temática que era pesada porque não dá para ficar sem análise não dá para você não deixar de cuidar de cuidados do profissional para tratar esses casos É claro que em um caso 169 eu vejo que com a formação que eu estou fazendo de psicanálise não dá para você ficar sem estudo a psicanálise é um grupo de estudo análise e atendendo Não dá para fazer esse tripé Muitos técnicos não tinham como bancar isso e eu vinha adoecendo eu via que nem esses técnicos que eu te falei do educador que eu vi o que aconteceu com ele antes ele não conseguia entrar dentro do estabelecimento A chave que eu tinha dado para ele entreguei na mão dele Olha você pega essa chave e você entra você entra no estabelecimento com essa chave eu disse Ele não conseguia mais colocar a chave ele ficava do lado de fora esperando outro técnico vir e abrir a porta o educador que eu tive que dispensar Então você vê isso eu vi técnicos faltando o nosso advogado que era quase recémformado ele foi ele começou a ir ele começou a se atrasar depois do atraso ele como era colegiado ninguém conseguia falar nada ninguém falava tosse então eu comecei a falar pessoal não dá para você chegar atrasado manter uma equipe e ele começou a faltar e então tem essas faltas que também não deu para a gente conversar e saber e tinha outros técnicos que falavam muito não tinha necessidade de falar muito assim aquele aquela coisa verborrágica que atrapalhava as nossas reuniões técnicas de falar sobre o atendimento Tinham casos que chegavam e que os técnicos hã eu sabia que não tinham condições de atender Tinha um caso de um menino que veio da Febem ia vir de camburão para ser atendido no Programa Tinha uma pessoa que já havia trabalhado na Febem sabia do esquema da Febem internamente o menino sai para fora ainda vai ser atendido por um Programa de abuso e exploração sexual aí que os cara vão né descascar a batata sabendo disso tudo eu já sabia que a gente não teria esse instrumento possível para atender esse tipo de caso e nós a equipe toda ficamos perdendo um tempo mas como que a gente não pode atender Como se eu não soubesse o que acontece o que acontece por um tempo com a equipe que quando falo em equipe me incluo também a gente acha que é deus a gente acha que é possível atender os casos que chegam na nossa mão que são encaminhados Por que a gente vai dizer não se ele precisa Então você vai fazer de tudo para atender só que tem a instituição a pior instituição para se trabalhar Estou falando filosoficamente estou falando que a Febem nem posso dizer gargalha Pesquisadora Claro que pode Cláudia A filosofia da Febem atravessada O técnico disse que a gente não podia atender Todo mundo que bom que a gente está dizendo não E foi assim a partir daí os técnicos começaram os psicólogos assistentes sociais e advogados e o advogado O educador começou a sacar as limitações então eles é a gente não tem muito é muito tinha um membro do cita o nome do coordenador de um Centro de atendimento que estava trabalhando lá 170 Então ela sabia exatamente a separação do jurídico e uma pessoa que trabalhou com o nome do coordenador Então portanto só atendia família e era legal porque a gente aprendia muito com ela Ela tinha claro essa divisão entre jurídico o que era atender qual era o lugar dela qual o atendimento dela o que ela deveria fazer Só que teve uma hora que ela sabia isso mas a conduta dela é de uma profissional que sabia o que estava fazendo quais os passos que deveria tomar porém teve um caso que ela se embananou nós nos embanamos A gente se embolou num caso extremamente complicado de suspeita de pedofilia Eu vi que o profissional ficou com medo do possível suspeito Eu vi esse cara o suspeito toda equipe viu esse cara A casa tinha um movimento bastante intenso de horários de atendimento e revezamento então a casa sempre estava cheia e a gente conhecia na discussão de casos os casos dos técnicos a cara os personagens dos casos Esse caso era para atendimento familiar Ela a assistente social chamou para atendimento familiar ele não veio e então ela sentiu medo Vamos levar isso para discussão na reunião técnica Foi o que fizemos acionamos a gerência falamos com a instituição sobre o caso e da possibilidade de ter mais casos desses Temos que pensar na nossa segurança Falamos com a instituição e depois disso foi conduzido para a gerência a qual pensou na possibilidade de se ter um segurança Mas lá eu não via isso Pesquisadora Lá Cláudia Lá eu não via a necessidade dessa outra segurança de uma polícia o que essa segurança que eu estou te chamando que eu estou falando é da polícia mas é assim era um medo gerou um medo que ela conseguiu dizer de ameaça que é um olhar que a presença da pessoa significava e o que isso podia dizer né o que podia devolver para ele Nós tentamos também direcionar para que o atendimento fosse conduzido para isso o que foi um consenso geral naquele colegiado Foi um caso de difícil acesso difícil resultado e que não conseguiu entrar a meu ver não conseguiu fazer um trabalho realizar um trabalho psicológico que eu entendo de atendimento em psicanálise com um olhar psicanalítico Não dá em termos clássicos para ter um atendimento psicanalítico lá Agora a transferência lá evidentemente não rolou A gente não conseguiu falar sobre isso que é aquela contratransferência que estava acontecendo não conseguimos falar sobre isso não tínhamos conhecimento suficiente Fui vendo que também outros técnicos não tinham a menor noção das estruturas psíquicas certo Das três estruturas psíquicas não tinham a menor noção de qual o primeiro passo que um analista tem que fazer qual o trabalho que ele tem que se debruçar primeiro o que é interpretação Não estou falando em psicanálise O que ele deve 171 fazer como ele deve conduzir como e o que ele tem que dizer Ele tem que dizer que foi abusado Eu fui vendo isso que tinha técnicos que não viviam isso não tem a menor noção nem como começar um atendimento Comecei a ficar preocupada Em contrapartida eu ficava tranqüila tinham técnicos que eram bons porque principalmente aqueles que estavam atendendo crianças eram técnicos supervisionados eram técnicos que tinham passado um pouco por análise e só não estavam em análise porque não tinham condições financeiras de bancar a análise mas que tinham passado lá por análise Tinha outro técnico que trabalhou com o cita o nome do coordenador de um Centro de atendimento que eu sabia que estava em análise e tinha sua supervisão Porém as outras pessoas os outros técnicos eu perguntava Puta que o pariu o que o cara vai fazer Eu também ficava preocupada comigo mesma A quem recorrer que instrumentos que eu posso utilizar para esse tipo de caso Eu comecei a ficar preocupada Tínhamos uma gerência que providenciava algumas coisas legais de teóricos de instrumentalizar a gente os técnicos teoricamente Achava super legal pois a gerência da Secretaria da Assistência Social dava uma ventilada nas nossas ações a gente tirava dúvidas e nos fazia repensar sobre as ações Agora ao mesmo tempo eu fico pensando não dá para discutir os casos naquela equipizona toda A gente teve que reformular porque tinha gente que não sentia vontade de falar nem de ouvir o outro Como é que um advogado tem saco de ouvir os casos A gente dividiu e ficamos só psicólogos assistentes sociais ou às vezes trocava Mas mesmo assim havia psicólogos que não tinham Eu sentia que eles sentiam uma retração de falar sobre o seus próprios casos que emitiam alguma coisa que era dele Então eu me preocupava um pouco Puta e quando tinha alguns casos por exemplo de crianças que aquela técnica iria pegar eu ficava aliviada sabendo aquele caso chegou Agora a coisa começava a atrapalhar quando em algum momento eles queriam dar um passo maior do que podia por exemplo em se meter no jurídico Eu não sei eu acho que isso é o mal do psicólogo Ele está num lugar de poder quer dizer o psicólogo o assistente social o advogado ele está num outro num poder é invisível é que ele se sente É inflado de potência num narcisismo Ele acha que tem um saber na mão e eu acho isso meio perigoso sabe Não estou dizendo que tem que ser humilde Eu acho que ele quer dar conta de uma coisa que não é da alçada dele e então ele atropela ele atrapalha e não consegue ver isso Eu vi isso nessa onde eu fiz um Pesquisadora O que você chama de se meter no jurídico Cláudia Ele falar de coisas que ele não sabe pois não domina o assunto Deixa eu voltar a lembrar de um caso 172 Pesquisadora Vocês emitiam laudo e parecer para justiça Cláudia Sim eles solicitavam sim mas a gente não emitia Está vindo um monte de casos Eu comecei a ficar assustada porque a vara tirou a guarda não esquece se não eu vou cruzar Pesquisadora Fale fale a respeito Cláudia Eu estou com medo de falar bobagem É que na época olha só eu levei isso em discussão para a coordenação para a gente fazer um movimento apresentando para a vara pois a equipe ficou assustada porque a vara estava tomando algumas atitudes não entendi o que disse Lembrando com muito cuidado a vara estava entregando a criança para o abusador Então isso era um caso que estava pipocando não entendi o que disse Eu quero só tomar o extremo cuidado com aquilo que eu estou falando porque eu posso estar completamente enganada Pesquisadora Mas de qualquer forma essa questão surgiu de que a vara Cláudia Estava entregando Pesquisadora Estava entregando o que Dando a guarda Cláudia Dando a guarda Pesquisadora Da criança Cláudia Para o abusador Mas então eu não quero nem considerar isso porque eu não Pesquisadora Sim mas pairou pelo imaginário da equipe que isso pudesse estar acontecendo Cláudia Poderia estar acontecendo É o que acontecia A gente parou de dar laudos para o juiz Isso a equipe fez bem antes da gente começar efetivamente a atender observamos aquela cartilha do nome do Programa e viu o lugar de cada um Decidimos isso a gente não vai fazer isso a gente vai fazer Então a equipe entrou sabendo que não responderia não apresentaria laudos para o juiz porque isso não era da nossa alçada Isso ficaria com o jurídico por isso que estava entrando lá o jurídico no Programa Então qualquer coisa ele tem competência para ouvir para escutar e para dizer a gente não não tem competência para 173 dizer muita coisa porque passava pelo crivo do jurídico lá no Programa não entendi o que falou Pesquisadora Qual sua concepção pessoal sobre a questão do abuso sexual E como você vê o que existe na sociedade para lidar com isso Cláudia Que bom que existem esses Programas Falta muita coisa A gente estava começando a fazer um trabalho de rede com os conselheiros tutelares com as subsecretarias A gente estava entrando em contato com o SUS para fazer um trabalho legal de rede porém tivemos que interromper por questões de verba e essas coisas todas Falta muita coisa falta orientação pois esse nome do Programa é uma pulguinha que representa Que bom que representa alguma coisa mas outros Programas que a gente possa dialogar tem poucos que a gente conhece Tem esse do cita vários programas que conhece Eu ouvi falar mas eu não fui lá para ver como eles trabalham tem o de Santos que eu também não sei como se chama que tem uma representação O nome de uma entidade eu sei que tem uma puta força uma puta representação mas a gente não conhece o trabalho deles Eu tenho vontade de conhecer Mas você vê eu sei que eles atendem casos sei como eles começaram mas eu não sei hoje como eles trabalham Tem muita coisa para se fazer nas escolas Eu acho que para os professores para a coordenação pedagógica tanto a escola pública como a escola privada não têm acesso a essa informação Como esse profissional pode cheirar uma criança possivelmente vítima Não tem isso eu não estou falando nem de classe social de modo geral Agora como eu olho você está me perguntando como é que eu olho o abuso Como assim Pesquisadora Como você concebe O que você pensa Cláudia O que é que eu penso bom é uma ferida É possível sim construir reconstruir novas significações É uma dor que é possível de ser curada com a ajuda de uma equipe bem estruturada O abuso é mexer com esses casos não é para qualquer um É um profissional tratado é um profissional em análise é um profissional que estuda muito ri e sempre que possível ele deve estar em circuitos políticos e movimentos políticos porque só assim a coisa pode ter algum movimento ou seja ter uma multiplicação de trabalhos A possibilidade de um atendimento efetivo não ter esse descaso com o paciente de o paciente ter que voltar de novo para o lugar para fazer o como é que chama eu até esqueci o exame Teve um caso que a mãe teve que levar de novo para fazer 174 Pesquisadora Exame de corpo de delito Cláudia De corpo de delito Eu falei Péra aí não precisa você já fez uma vez Mas ocorreram vários casos em que a mãe e a criança tiveram que repetir o exame Repetir a história diversas vezes É uma dor que eu não acho que seja incurável ela é curável sim é uma dor fudida eu não sei o que é isso risos Encerrada a entrevista agradeço a Pesquisadora Cláudia comprometendome a mostrar a transcrição para que ela autorize sua utilização neste trabalho 175 Sujeito 3 Maria1 36 anos psicóloga Data entrevista 24052006 início às 9h30min e término às 11h10min Local Instituição onde a entrevistada trabalha Pesquisadora Olá Maria Maria Oi Pesquisadora Queria que você falasse do seu trabalho do seu percurso e o que você considerar relevante Maria Está certo No geral eu trabalho no nome da instituição há muitos anos Trabalhei dois anos como voluntária de 94 a 96 Fiz uma especialização de violência doméstica na nome da universidade e atualmente atualmente não desde 98 eu trabalho no nome da instituição como técnica Trabalhei em Diadema e desde janeiro estou em São Bernardo A gente atende os quatro tipos de violência violência física psicológica negligência abandono e violência sexual Nosso trabalho aqui é psicossocial Assistentes sociais atendem e depois passam para os psicólogos Atualmente o nome da instituição está num trabalho de grupo privilegiando um pouco também a Aqui tem uma demanda muito grande então passamos a fazer esse trabalho Eu faço avaliação psicológica terapia em grupo grupos de orientação e musicoterapia É difícil trabalhar com violência doméstica é muito difícil Acho que tem um impacto na nossa subjetividade eu às vezes me sinto muito mal Choro quando eu saio daqui fico sentindo assim Eu tenho que fazer alguma coisa mas eu me sinto muito importante Às vezes eu fico um pouco neurótica Tudo eu acho que tem violência principalmente no abuso sexual eu já fico achando que aí tem nem sempre é assim A gente fica achando pêlo em ovo em determinadas situações e isso não é bom Eu acho que você fica muito ah não tem como você ter outro olhar você trabalha com isso você sabe da questão da dinâmica da violência no caso sexual É o que mais me pega essa questão do segredo do pacto do silêncio mas eu me sinto muito atenta às vezes até demais principalmente em relação a minha família minha filha os filhos de amigos então é uma situação que pega um pouco 1 Nome fictício 176 Pesquisadora Como que é essa atenção essa atenção demais que você citou Como é que é isso Maria Você fica você já olha porque é assim eu acho que a gente percebe a nossa sociedade violenta desigual bem assimétrica mesmo então por aí você já vê que outras crianças sofrem violência não só crianças a classe mais desprivilegiada economicamente a mulher e aí vai o negro mas enfim eu me sinto muito atenta É como se eu em qualquer situação visse na rua Não passa batido para mim entendeu Pesquisadora Dê um exemplo Maria Eu estou andando pela rua vejo uma mãe falando alto com a criança não é nem batendo eu já paro e presto atenção às vezes eu paro de fazer o que eu estou fazendo Isso já aconteceu comigo eu parar na rua e ficar prestando atenção uma mãe expondo a criança no caso da exploração a mãe com uma criança no colo pedindo dinheiro ao ponto de é eu sou um pouco invasiva às vezes invado Eu percebo que trabalhar com isso nos torna um pouco tensa e você acaba invadindo o outro como por exemplo eu chegar numa mãe e falar Você não pode fazer isso Eu vou ligar para o Conselho Tutelar Aconteceu também de eu ficar muito mal na minha família De eu ver um pai um tio batendo numa criança e ficar muito nervosa Eu me torno aquela pessoa Você é a certinha né Você não dá um tapinha na sua filha né risos Você então se torna chata Você se torna tensa e nada passa batido não passa É uma coisa difícil às vezes separar Se eu estou na rua vendo eu fico nervosa fico triste choro então mexe sim Eu saio muitas vezes daqui eu saio sonho e os meus sonhos então você não tem idéia risos Eu sonho com os casos Tem caso que eu sonho Eu saio de férias e fico ligando para saber nem sempre mas isso aconteceu no ano passado de dois casos e a minha colega me deu uma bronca falou para de ligar você está em férias Eu acho que é uma rotina muito desgastante muito dolorosa entendeu É difícil separar Eu fico bem a percepção fica bem aguçada mas até o ponto de ver coisa aonde não tem entende E aí você se torna uma pessoa chata às vezes E eu como mãe risos acho que afeta muito a minha subjetividade risos a coisa pega porque eu me sinto muito culpada Se eu falo com uma vozinha mais alta e altero um pouco minha voz Eu erro toda mãe erra né Se eu erro grito com minha filha por exemplo isso é difícil acontecer porque eu sou uma mãe super eu acho né carinhosa cuidadosa bem próxima Mas já aconteceu e eu me sinto muito mal eu me sinto uma bruxa Eu choro no outro dia ou no mesmo dia Eu venho aqui no trabalho eu choro eu fico Sabe a gente trabalha com isso e é muito difícil viu Você se cobra muito De você se você não pode ser aquela mãe que erra entendeu 177 Porque você já sabe de tudo que é ruim Mas você é uma mãe poxa você tem teus limites Mas não é fácil não é fácil eu estou sentindo na pele como mãe Pesquisadora Sua filha tem quantos anos Maria Três anos e quatro meses Às vezes eu tenho vontade de bater mas não bato Só o fato de sentir vontade risos eu me sinto muitos risos eu me sinto uma bruxa literalmente mas é complicado Quando eu vejo alguém batendo não compreendi o que disse É mais isso não tem nada a ver é criação Tem sim eu sou tia então acho que afeta nesse sentido e você se torna uma pessoa insuportável para os outros e para você mesma Eu não bato na minha filha mas outro dia eu dei um falei alto lá com ela tive um descontrolezinho Eu fiquei arrasada mas arrasada A ponto de eu não conseguir atender aqui direito aqui no outro dia para você ter uma idéia Então eu acho que você ao trabalhar com isso você fica muito vigilante consigo mesma e com o outro Poxa as coisas têm limites né As pessoas erram eu sou uma mãe eu sou uma pessoa Eu tento separar não vou dizer para você que eu consigo mas tem vezes que eu não consigo Eu quero impor um pouco a minha opinião não ta fica uma coisa meio de nome da instituição vai salvar o mundo risos sabe assim risos Eu sei que não tem nada a ver isso mas é complicado Se for com relação às crianças que eu tenho aqui Você quer saber especificamente de abuso Pesquisadora Fique à vontade Se você puder falar de abuso fale Maria Para mim o abuso é uma coisa Olha eu vou falar para você as violências mexem muito comigo Todas Violência física mexe muito mas a sexual sabe é uma coisa que parece que pega mais porque eu vim de uma família onde meu pai me respeitou muito meus irmãos Então você imagina você sendo invadida na tua na tua intimidade no teu no teu eu Você sendo um sujeito então é horrível Eu fico muito tocada fico mesmo O meu papel ali eu tento acolher claro todo psicólogo faz isso né Eu tento acolher eu tento explicar literalmente para a criança e para a mãe O trabalho com a mãe é importantíssimo pois o primeiro contato é a orientação Eu explico um pouco o que pode acontecer com a criança em termos de sintomas que ela possa desenvolver Explico até o quanto é confuso para a criança o fato de ela ter sido violentada mas de talvez ter sentido prazer porque é uma estimulação na pele nos genitais onde têm muitas terminações nervosas Eu explico para a mãe tudo isso que é complicado porque a criança o que eu percebo muitas vezes que foi abusada muito tempo e que a mãe protegeu que a criança fica muito confusa Ela se coloca numa posição eu não presto mesmo mas eu gosto então eu tenho que ser punida eu 178 sou ruim eu sou uma péssima pessoa É uma violência muito difícil eu acho Agora quando a criança tem apoio da mãe não entendi o que disse então fica mais light porém eu percebo que é uma doença muito complexa porque claro envolve a mãe envolve esse triângulo E a gente sabe que é complicada a traição O pai o padrasto ter trocado a mãe pela filha é muito muito confuso Eu tento orientar a criança No primeiro atendimento eu converso com ela Explico o tipo de violência e coloco sobre a questão da queixa da demanda mesmo que chegou até aqui E aí eu hã tem criança que fala tem criança que não fala que nega Eu tento mesmo assim passar para ela algumas orientações Daí eu percebo é interessante dá para perceber se ela relaxa um pouquinho depois que eu falo Falo que tem muitas crianças que não conseguem falar porque elas têm medo porque elas foram ameaçadas Crianças e adolescentes que se sentem confusos porque talvez sentiram uma coisa no corpo que elas não sabem o que é mas é gostoso e ruim ao mesmo tempo é ambíguo Em todo tempo eu vou pontuando isso para a criança essa ambigüidade né O corpo o que é saudável o que não é saudável mas que também poderia ter sido gostoso O meu papel é aquilo eu tenho que orientar eu tenho que acolher e principalmente eu tenho que ser um um adulto né um modelo para essa criança de vínculo saudável pois a gente vai estar respeitando ela Elas seduzem isso mais em terapia quando já entra no processo Teve um caso lá em Ribeirão que a criança seduzia muito adolescente e ele claro fazia isso porque achava que era só assim que iria conseguir meu carinho minha admiração meu respeito por ele Eu falei para ele que não que não era assim ele não precisava não entendi o que disse as coisas e que ele não precisava É é é ele disse que estava apaixonado Eu tive que devolver para ele Então acontece muita é muito difícil sabe Porque eles querem carinho mas é um carinho que para eles foi deturpado Eles querem esse carinho do terapeuta carinho assim o respeito a aceitação e ao mesmo tempo tem uma sedução é muito difícil muito difícil Se você sofreu um abuso e você é psicólogo nossa Aí a coisa pega não é o meu caso mas eu imagino que não deve ser fácil Pesquisadora Você acha que complica em que sentido Maria Porque você se você não foi tratado eu acho que pega porque você acaba entrando no jogo mesmo E e e a tua autoestima em baixa então O outro gosta de mim o outro me dá presente o outro Afeta o tratamento não dá simplesmente não dá A não ser que você tenha feito um tratamento tenha elaborado porque eu acho que é uma violência muito difícil O que eu sinto também é que a gente tem que tomar cuidado porque a criança já foi violentada e ela repete isso em vários lugares então não é fácil 179 Pesquisadora Como que a criança chega aqui para vocês Maria É uma denúncia que geralmente vem pelo Conselho Tutelar Atualmente só pelo conselho a gente recebe via conselho então o conselho recebe e já manda como abuso sexual então a gente dá prioridade Pesquisadora Vem direto do nome da instituição Maria Vem direto do nome da instituição Então depende em geral direto do nome da instituição do conselho para o nome da instituição Às vezes vem da escola mas a gente pede para a escola que denuncie para o conselho porque o conselho faz uma pesquisa para ver a quantidade o índice da violência na cidade E a gente atende só que assim a instituição tem muito problema porque a gente faz uma avaliação em seguida a gente manda para a fila de espera e depois de anos a pessoa vai conseguir uma vaga Eu entrei aqui esse ano e eu estou propondo uma discussão em grupo para que a gente pare com isso Porque isso é um absurdo a gente tem que achar uma solução Eu estou tentando buscar os que eu estou pegando em avaliação eu já estou encaminhando para terapia seja no meu grupo seja encaixando em algum outro grupo Têm muitos grupos aqui fechados então a gente tem dificuldade pelo grupo fechado terapêutico então seria um grupo aberto seria melhor que entrasse mais pessoas enfim não ficasse essa lista de espera Porque a pessoa já se sente violentada e somente depois de quatro anos ela é chamada Ela se sente de novo violentada né Mas pô o que vocês estão fazendo aqui na minha casa Vocês estão viajando né essa é a crítica constante dos usuários do nome da instituição Pesquisadora Por que vocês fazem a primeira abordagem e colocam na espera Você não quer que seja feita essa abordagem Maria Faz a primeira abordagem com o assistente social olha só como é demorado a coisa Então se tiver um psicólogo se tiver uma vaga vai para a terapia vai para a avaliação avaliação mais ou menos um mês um mês e meio se tiver vaga ela vai para a terapia Se não tiver ela vai para uma fila de espera e pára tudo Daí demora entendeu demora muito tempo Pesquisadora Todos os casos Maria Todos 180 Pesquisadora Inclusive os casos de violência sexual Maria Todos todos A gente também atende o agressor a pessoa que agride A gente tem que é uma é uma é uma coisa muito difícil também que você olha assim para aquele homem você fala meu Deus do céu como é que pode né Sim a tendência às vezes é tem que tomar muito cuidado Eu acho que o profissional tem que unilateralizar mesmo sabe Aí coitadinha da vítima e tal que cachorro esse cara um monstro tal né e eu acho que isso acontece com os profissionais Você fica indignada se fica sente raiva É uma coisa que mexe muito com teus sentimentos E a gente eu tenho que me policiar muito não é fácil Às vezes eles são muito sedutores se gosta breve silencio então é complicado Agora a gente tem esse olhar ele precisa de ajuda às vezes sofreram abuso e têm psicólogos que não conseguem atender eles não conseguem separar então não dá para eles não dá Para mim dá Eu já atendi vários como experiência mas não vou dizer que é fácil porque não é Eu sinto às vezes eu olho para aquele cara e falo Pô mas o que é isso Fico indignada sabe uma indignação assim Pesquisadora E como é que é isso Você fica indignada mas você chega a falar disso Maria Eu falo risos e às vezes quando eu estava fazendo terapia eu falava muito para a minha terapeuta era um tema recorrente Eu acho que afetava a minha subjetividade sim Eu ficava mexida e de alguma forma olhando os homens com outros olhos sabe e isso não é legal Sabe aqueles chavões A gente vê muito aqui Muitos homens que abusam A gente fala homem não presta homem não controla o impulso sexual homem é mais é não é tão evoluído como a mulher umas basbaquices assim umas coisas assim que vêm que afetam mas que você tem que claro trabalhar isso separar mas é uma coisa que vêm e e e assim eu percebo que a gente fica muito indignada A gente xinga viu pensa que eu não xingo É um cachorro Olha que cachorro esse cara safado Assim tem que tomar cuidado porque poxa a gente é técnico né risos Aí vem de novo aquela coisa mas você é um ser humano risos Sabe isso é que pega você é um ser humano Você tem raiva dele você também tem ódio você fica tensa fica indignada mas você tem que se segurar Então eu acho que o psicólogo é muito e vai para o psicólogo que trabalha com isso é muito difícil Diferentemente de quem trabalha em consultório pois é outra coisa A gente aqui é muito violentada Como se fosse paciente risos eles têm raiva da gente eles xingam a gente de vagabunda piranha Vocês não têm nada o que fazer Então você tem que ser paciente Você tem que tirar a psicologia mesmo do fundo da sua alma e falar vamos lá Porque não é fácil Tem hora que você tem vontade de falar vaiii colocar tudo por água abaixo 181 entendeu Dá vontade às vezes de só que assim da vontade de se descabelar É engraçado isso é muito fácil de se descontrolar em certos casos porque você é violentada também A tendência é reagir com uma postura de não está vendo E até ter um certo preconceito com o caso sabe Esse caso esse cara essa situação e estigmatiza Isso é um grande problema eu acho que rotular a gente sabe que interessante não é bom mas eu percebo que acontece isso aqui com os profissionais Sabe esse cara é assim né Poxa mas ele não é só isso né Ele é muito mais do que isso A psicologia tem que tomar muita gente que trabalha com isso tem que tomar muito cuidado para não rotular porque é muito fácil rotular usando os testes que já de alguma forma categorizam Pesquisadora Os abusadores que vocês atendem vêm por livre e espontânea vontade ou é uma medida Maria Eles não são obrigados Alguns vêm Assim claro porque houve uma denúncia no conselho então são intimados e vêm Tem uns que depois que a gente faz um contato eles conseguem se vincular então eles vem Agora têm muitos que não vêm Tem que mandar para o fórum e é muito difícil Tem caso que a gente perde depois de muitos anos na fila de espera a gente perde o caso o cara foi embora deve estar abusando de outras crianças Eu vou começar agora um grupo só de homens agressores sexuais Pesquisadora Quantas pessoas no grupo Maria Bastante a gente tem Pesquisadora É a sua primeira experiência Maria Eu tinha muita resistência em montar e agora eu vou começar Minha chefia me deu uma intimada sabe me deu uma cobrada Pesquisadora E por que você tinha resistência Maria Acho que é isso essa essa raiva sabe de olhar para a cara dos caras e não entendi o que disse risos Seu safado risos Tanta mulher aí pô para você transar e você vai transar com as menininhas Vai que então assim eu me sinto sabe eu sou uma pessoa eu não gosto de injustiça eu fico muito mal eu fico indignada eu fico passando mal sabe Só que aí vem o outro lado Ah o psicólogo ele compreende risos Eu eu tenho que compreender o outro de alguma forma na doença dele Claro que eu não vou concordar com o que ele fez não é isso mas eu tenho que compreender um pouco a dinâmica 182 dele para eu poder ajudálo né e aí é é é Não é fácil ser psicólogo Eu não acho fácil não Muito melhor você ser médico dentista muito mais fácil sem dúvida Eu atendi um agressor foi muito interessante foi uma terapia individual Ele admitiu então foi diferente Ele saiu de casa ele foi abusado é como se tivesse uma justificativa entendeu Ele abusou ele falou e ele tinha ele era um cara muito assim precisava de ajuda sabe ele falou para o juiz ele pediu ajuda Ele falou Olha eu fui abusado eu estou errado As pessoas falam que eu menti mas eu não quero Então eu comecei a olhar ele poxa admirei a coragem dele porque tantos anos que eu avalio e agressor nenhum fez isso ele foi o único né não faltava na terapia sabe elaborou o abuso que ele sofreu Enquanto a mãe dele foi uma pessoa muito ruim o que eu não acredito falou que ele quis fazer enfim ele pegou ódio das mulheres e foi muito complicado Mas o cara não sofreu abuso quando o cara não tem uma justificativa sabe assim é um abusador que se chama situacional situacional porque ele abusou só naquela situação ele não é um pedófilo ele não é um é esse daí é um pedófilo Pesquisadora Ele já tinha abusado Maria Já várias vezes Agora esses muitos que eu vou avaliar que eu vou atender não foram situacionais eles abusaram da filha ou da enteada ou da sobrinha enfim não foram vítimas de abuso É muito mais difícil para mim Olha só eu tenho que ir pelo lado do entendimento maior A questão da cultura mesmo essa cultura de uma forma violenta que a gente vive do homem sobrepujando a mulher do adulto sobrepujando a criança né eu vou por esse lado então isso não é justo Vamos tentar entender vamos tentar mostrar para ele que há outras formas de ele ver as coisas ver o mundo ver o filho ver a família ver a mulher mas não é fácil Sabe o que eu acho muito interessante e que a gente precisa tomar cuidado não entendi o que disse risos o psicólogo se torna muito violento eu não falo só de mim não eu falo breve silencio muito taxativo muito né Ele tem um discurso muito interessante reproduzindo a violência e eu me coloco também Põe no paredão esses caras Manda matar Sabe quantos casos eu atendi que aconteceu isso O cara foi para a cadeia ele morreu lá assassinado Bateram estupraram e aí a ambigüidade é muito ambíguo o sentimento é ambigüidade Ao mesmo tempo que você fala isso não é justo eu sou contra eu sou sempre fui contra a pena de morte eu sempre fui a favor de direitos humanos sempre mas de repente tem hora que você olha para um cara que abusou de uma filha e você fala vai para a cadeia eu quero que ele morra lá sabe assim Como se se fosse deus risos e o pior é que o cara morreu lá em Diadema e a culpa Aí a gente ficou aquele 183 cara olha só o cúmulo que o psicólogo chega risos fala esse cara não tem jeito risos Sabe umas afirmações que às vezes a gente fala bom é o seguinte isso não tem jeito Ah tudo bem mas na psicologia se trabalha com a mudança com a transformação a psicologia trabalha com a busca de algo melhor de uma de se tornar um ser mais saudável pô mas é o seguinte tem cara que não tem jeito então às vezes a gente se pega falando isso e é uma sensação de muita tristeza Às vezes falo isso às vezes eu falo isso quando eu atendo um adolescente delinqüente Eu infelizmente tive uma experiência muito marcante com um adolesceste Ele estava no PCC e eu fui na casa dele Abandonado pelo pai a mãe não gostava dele e o tratava diferente do outro filho só para resumir ele estava bem fazendo terapia Então esse menino ele estava em terapia e o mandei para um projeto social para ganhar R 6500 Ele ficou feliz da vida e se tornou líder lá no projeto todo mundo o elogiando Aí entrou em recesso o projeto e ele parou com tudo e a gente foi atrás dele numa visita eu e outro educador fomos lá atrás dele coisa que dificilmente um psicólogo às vezes se permite é ir na casa do cliente ir buscar mas eu tive que romper essa barreira entendeu porque eu avaliei que seria importante E eu eu fui e aí ele ficou meio assim e falou Olha se liga Você acha que eu vou voltar para ganhar R 6500 Eu ganho 200 por dia Eu fiquei muito triste eu olhei para ele e falei Olha a gente gosta muito de você A gente acredita em você a gente Ele falou Eu não preciso do amor de vocês gente eu preciso tanto eu preciso do amor dos meus pais só que eu nunca vou ter o amor dos meus pais Naquela hora foi e eu sabia que ele estava certo eu cheguei para ele e falei e aí vem a coisa de achar que não tem jeito Sua mãe desencana entendeu É ruim um psicólogo falar isso eu acho mas eu cheguei no limite Ela não vai mudar entendeu porque ela não quer então você só depende de você só isso É difícil falar isso para um adolescente porque puxa né ele queria isso da mãe dele mas eu tive que trazêlo para a realidade Pare de fantasiar entendeu Vai para a realidadeVocê precisa se amar você precisa se cuidar Porque a sua mãe não vai fazer isso Porque ela não quer ela não está em condições Enfim esse menino falou isso para a gente Eu não quero eu quero o amor dos meus pais e eu não vou Ter A gente tentou nesse caso com pai mãe tio padrinho tudo que você pode imaginar na família para ver se alguém se tinha algum adulto que realmente fosse um modelo para ele mas não tinha Ele falou para mim que naquele dia eles estavam planejando assaltar um banco quase que eu pergunto se era meu banco né risos Vai ser o meu Só para eu saber e depois eu pensei Puts que humor macabro mas assim eu falei aí ele falou que não ia mais lá Eu falei que a gente estava ali que a gente estava esperando e que a gente não ia desistir dele Ele falou assim Eu vou morrer mas vai 184 ter outros aí que vocês vão atender Ele não queria mais né Eu fiquei muito mal nesse dia eu fiquei nossa eu chorei muito aquele dia Chorei chorei chorei lá no nome da instituição porque foi demais para mim entendeu não entendi o que disse A violência maior que a gente vê na nossa sociedade tem tudo a ver com a violência doméstica tudo a ver com a questão da dinâmica familiar mesmo as pessoas a gente aqui atende mais as classes menos favorecidas mas tem muito isso na classe alta a gente sabe Às vezes é até pior Às vezes a criança tem condições materiais abundantes mas não tem o carinho Isso eu acho que em todas as famílias falta diálogo carinho amizade Eu coloco para os pais que o maior tesouro que eles podem deixar para os seus filhos não são bens né é claro que a educação roupa comida isso tudo é importante mas né Então eu me sinto muito impotente e às vezes eu acho que não tem jeito É ruim eu falar isso eu não acho às vezes eu tenho vergonha de falar isso mas só quem trabalha com violência doméstica é que sabe que tem uma relação maior com a falta de dignidade no país falta de moradia falta de saúde falta de educação falta de tudo Você vê professores agredindo alunos Você vê alunos agredindo professores Eles lá então às vezes você se torna um pouco pessimista Sabe eu acho que afeta a subjetividade você fica muito nossa Só que por outro lado eu sou uma pessoa otimista eu Maria eu sou e eu sei que o meu trabalho é importante Talvez eu possa ser na vida desse adolescente a única lembrança que ele vai ter Não querendo me gabar mas eu vou ser um adulto que respeitou ele que de fato se interessou Pesquisadora Por que ele chegou para vocês Maria Violência física e psicológica por parte do adulto Pesquisadora Ele era vítima Maria Ele era vítima era um adolescente vítima adolescente e a gente perdeu ele Quantos adolescentes que eu atendi que já morreram pelo menos uns quatro isso na cidade de Diadema Então é é é ah não sei sabe Às vezes eu fico se eu fosse uma pessoa com tendência depressiva eu já tinha entrado entendeu porque é muito pesado né Você é cobrado do nome da instituição Não faz nada A fila de espera Tem sim um lado da instituição a gente pode achar né que é tudo maravilhoso Eu acho que a instituição agora eu vou fazer a minha crítica eu acho que a instituição como eu já falei negligencia seus técnicos A gente não tem uma assistência Supervisão eu tenho que pagar não entendi o que disse eu não faço terapia porque eu não posso teria que fazer eu preciso abrir mão de alguma coisa né Eu acho que a instituição deveria porque eu acho que eles de alguma 185 forma nos negligenciam muito violentos com salários baixos falta possibilidade de fazer um curso por exemplo eu queria fazer um mestrado mas e aí como Como Eu quero fazer uma pesquisa aqui eu acho que tem muito campo aqui mas e aí a instituição vai deixar ou é só para alguns Sabe então é éé a gente luta viu Pesquisadora Quantas horas você trabalha Maria Oito horas por dia quarenta por semana É muito trabalho é relatório é correção de testes mesmo essas questões assim o teste psicológico muita coisa eu questiono então a gente precisa buscar uma supervisão mas não se tem então vai muito pela subjetividade do psicólogo e é complicado por que e aí A gente não está livre de ser neurótico Todo mundo aqui é não é mas então a gente tem que ter essa clareza A gente tem que fazer terapia mas como vai fazer É tudo caro Então eu acho que a gente é violentado também e a gente também é violento Eu percebo isso às vezes eu às vezes me percebo violenta Uma violência meio branca né risos Uma violência meio risos vedada sabe A gente se faz do tipo assim de uma pessoa boa né mas não é bem isso entendeu A gente acaba também se misturando um pouco com tudo isso e tem um monte de e a gente não consegue então sei lá às vezes eu fico cansada Às vezes eu fico cansada eu acho que a violência doméstica cansa mas é tão importante eu acho tão importante que se tivessem outros nome da instituição por exemplo na cidade de São Paulo e só tem aqui no ABC Eu acho um trabalho muito importante fundamental de educação de acolhimento desses pais Eu tento a todo o momento me policiar para não julgar as pessoas eu tento mas não é fácil isso não é fácil mas eu tento eu tento Chegou uma mãe aqui que quase matou o filho dela de três anos rasgou a orelha do moleque machucou muito e ela veio para mim A gente fala essa monstra E aí é muito interessante porque você vai com um olhar e conforme a entrevista vai rolando eu vou eu vou tentando separar e aí a gente consegue Alguns casos eu consigo outros não viu Outros eu não consigo Até às vezes eu evito conversar com a assistente social ler relatório para não me contaminar porque se eu leio eu fico com uma raiva entendeu Sabe assim eu fico indignada Falo o que é isso Eu lembro muito da minha filha eu choro ao ver uma criança de três anos eu fico imaginando a minha filha que é um doce de criança se ela tivesse uma mãe tão violenta assim Como ela seria Como seria essa criança Eu lembro muito da minha filha engraçado isso Eu fico pensando será que um dia eu vou ser assim será que um dia risos eu vou ter a capacidade sabe é terrível Por que a gente tem um ladinho eu acho eu percebo às vezes em mim eu pareço ser uma bruxa com a minha filha e eu sou uma fada às vezes mas tem hora que eu sou uma bruxa 186 quando eu grito quando eu falo eu estou sem saco risos Mas você é má aí o superego vem é isso o superego é muito assim ávido depois que você trabalha no nome da instituição Você fica chato insuportável às vezes com você mesma não porque você não pode Até minha amiga fulna estava falando É tem dia que eu chego porque a gente trabalha com isso a gente sabe o que pode o que não o que é adequado tapinha de psicólogo o que é adequado o que é inadequado mas poxa a gente às vezes tem que se questionar também péra aí você erra mesmo pare de querer ser risos mas é difícil Por isso que é a tensão viu Fechando um pouco aquilo que eu falei da tensão você se cobra sabe você o seu id vem aqueles impulsos assim agressivos risos Você fica muito mal com tudo isso eu né assim fico me sentindo muito mal é como se eu não pudesse sabe assim é como se eu humm que é isso que psicólogo é você ser mãe psicóloga risos Agora terapia é essencial essencial Pesquisadora Essencial em que sentido Maria Para mim Eu acho que para ter um espaço mesmo para falar eu nem sei se seria terapia entendeu mas enfim para eu ter um espaço mesmo para falar Eu acho que a gente tem necessidade de desabafar sobre essas coisas principalmente quando você sai de um atendimento Você sai mexida dos atendimentos A gente é meio peãozão de fábrica aqui entendeu É pau para toda a obra e isso não é bom eu mal saio de um atendimento que tenho tenho um minuto para tomar um café eu entro em outro então eu acho que é essa a violência também Às vezes a gente mesmo porque a prefeitura cobra porque a prefeitura paga sabe essa essa violência branca que eu falei essa pressão essa coisa que você tem que cumprir você tem que atender você tem tantas pessoas no mês atendidas Quando eu vim para São Bernardo eu fiquei espantada com o ritmo muito maior do que em Diadema A equipe muito mais tensa eu achei a equipe muito mais fechada a equipe mais mal humorada a equipe pior em termos psicológicos muito mais individualista Achei não sei se é por conta disso que a prefeitura cobra e as pessoas tem que entrar nesse clima e se esquece que você é um ser humano que trabalha com um tema tão pesado em seu cotidiano Então a instituição tem que olhar para isso pegar mais leve e dar apoio para os profissionais A gente tem que se sentir um pouco acolhido entendeu Porque senão a gente se sente um pouco largado um pouco só cada um por si A gente eu acho que a instituição isso aí faz tempo que rola se veste de uma roupinha de uma máscara de legal a gente atende as pessoas abandonadas as famílias abandonadas mas o próprio nome da instituição às vezes abandona os seus técnicos não dá apoio não compreende vitimiza psicológica e 187 financeiramente Então é complicado você sair disso tudo você se enxergar fora disso tudo Conseguir não misturar é muito difícil é difícil A gente vem passando por muitas coisas E aí eu me questiono sobre a qualidade do atendimento Como é que fica Será que eu vou conseguir que eu não estou sendo repetitiva Claro cada caso é um mas se você faz algo diferente Pesquisadora E o seu trabalho de musicoterapia Maria Ah Então eu estava pensando agora É o que me salva gargalhadas é o que me salva porque eu me divirto muito eu me divirto Eu acho que o nome da instituição eu já falei isso aqui eu falei Gente pelo amor de Deus vocês fazem grupo O tema é pesado e vocês ficam falando disso os caras passam aqueles filmes tem um projeto lá em Diadema que é terrível eu fico Gente vamos transformar isso aqui numa coisa mais leve porque olha só a criança não é só isso aconteceu esse episódio na vida dela de violência sexual ou violência psicológica mas tem outros momentos ela pode ter outros momentos e a musicoterapia proporciona isso então proporciona um seting mais lúdico onde os adolescentes eu atendo adolescente eles podem expressar o que eles sentem não exatamente falando porque às vezes é difícil falar sobre essa questão da violência doméstica eles têm medo mas precisa de alguma forma colocar expressar aquilo que está guardado então através dessa técnica é interessante Às vezes a musicoterapia ativa eles fazem um som não é aula de música mas eles expressam e tem todo um trabalho de socialização com o grupo então enquanto um toca os outros têm que escutar é uma regra Estão aprendendo a ouvir aprendendo a escutar aprendendo a se expressar e depois é um som grupal as pessoas às vezes eu gravo Também tem um trabalho de relaxamento Inicialmente a gente faz um relaxamento corporal um toque aprendendo a tocar de uma forma que não é violenta é uma massagem um alongamento depois a gente vai para a atividade às vezes é passiva Eles trazem um CD ou eu trago que tem uma letra que eu acho interessante a gente discute Às vezes trabalhamos aspectos cognitivos aspectos afetivos sociais e expressão corporal É muito interessante e também se dá muita risada porque se fala de assunto de adolescente sexo droga e rock roll Se joga a gente traz jogos também baralho Tem uma atividade com arteterapia eles gostam muito de desenhar mexer com argila Uma coisa que eu gosto muito é fazer instrumento com sucata baseado na busca de uma identidade a formação de uma identidade através do som se conhecendo um pouquinho Você vai fazer um instrumento baseado em você no seu jeito e aí sai muita coisa boa então é muito gostoso eu estou querendo pesquisar isso agora aqui no nome da instituição É musicoterapia familiar já 188 existe essa modalidade então trazer uma mãe e um filho para cá e fazer um encon uma sessão trabalhando as relações sociais mas num aspecto nãoverbal a princípio lúdico Tentando experienciar um momento mais lúdico entre eles tentando aprender tentando se ouvir através do som não da fala porque da fala o bicho péga risos então é o que me traz mais alento Mas no geral é um trabalho pesado Eles se saem bem porque sai umas coisas engraçadas né Pesquisadora E é só com adolescentes Com pais não Maria Não só com adolescentes Eu já fiz um grupo de terapia mas os adultos têm muita resistência Eles mas é difi Ah eu já fiz um grupo uma vez foi muito interessante elas gostaram mas algumas ficaram com vergonha muita vergonha O adulto acho que tem dificuldade de brincar A musicoterapia é brincar Você brinca você brinca com o outro você brinca com o instrumento Você faz uma ponte com você mesmo e com o outro brincando Eu estou querendo fazer chamar uma mãe e um filho escrever mesmo alguma coisa pesquisar mesmo alguma coisa fazer alguma coisa diferente que dá uma contribuição mas é difícil trazer as mães é difícil Pesquisadora Você já teve algum caso de suspeita de abuso por parte da mãe Maria Eu já atendi um caso mas é raro bem mais raro Eu atendi um caso lá em Santo André quando eu era voluntária foi muito difícil essa história foi um caso triste A assistente social tirou a criança dos pais que moravam na rua ela foi para a Febem era um bebê Esse bebê foi adotado por uma família bem louca bem desestruturada a mãe abusou da menina e o pai era omisso bem típico da família incestuosa ou a mãe é omissa ou o pai pode se trocar mas geralmente é a mãe Geralmente quem abusa mais é o homem não sei o porquê O índice que a gente tem aqui é mais com homem mas nesse caso era trocado era a mãe e o pai era omisso os papéis completamente invertidos O pai e a mãe ao invés de ficar no lugar de adulto o pai era muito infantilizado A criança subia para se para o patamar mais de adulto e a mãe deixava rolar Mas é muito complicado só vi esse caso mas a criança ficou muito perturbada e para piorar foi morar com o pai O pai casou com uma moça que era uma madrasta daquelas dos contos de fada bem típica Um caso muito difícil e a criança muito sexualizada nossa senhora uma coisa assim de louco O prazer dela é isso que às vezes eu passo na orientação é o sexo Enquanto ela não descobrir que ela pode sentir prazer com outras coisas com o corpo dela mesmo fazer esporte dançar que seja namorar também mas numa questão num namoro saudável ela só faz isso se masturba ela 189 masturba os outros só pensa em sexo porque foi a única coisa em que ela foi valorizada ou que ela foi de alguma forma tocada Então essa criança o prazer dela era se masturbar era o prazer dela se tirasse isso puts coitada não ia ter mais nada Mas ela tinha que aprender tinha que trabalhar isso olha tem outras coisas tem outras formas tudo bem é gostoso você gosta mas tem limite para isso tem hora para isso tem local você não pode fazer nos outros né mas era muito difícil porque a criança ela não tinha saída era uma forma muito abusiva Depois ela começou a apanhar da madrasta e o pai omisso novamente é isso Pesquisadora E o que move você a trabalhar nesse campo Maria Então a princípio olha só foi por acaso A princípio porque ah tem uma ONG legal vamos lá mas assim até para fazer o curso de especialização eu fiquei meio resistente ah não sei Mas depois que eu comecei a trabalhar eu eu gosto do que eu faço eu sinto prazer eu sinto prazer em poder dar um pouco para o outro uma outra visão não a minha mas uma visão mais saudável porque olha tem que ter respeito com a criança tudo tem limite regras enfim e levar um pouco de uma visão mais tentar dar uma equilibrada E o que me moveu é essa eu sou muito eu fico muito mal com isso muito mal péssima Então eu acho que quando você trabalha com você tenta fazer alguma coisa para minimizar um pouco essa injustiça de alguma forma não sei se dá para minimizar mas assim levar o outro lado para a pessoa tanto para a pessoa quanto para a vítima Pesquisadora Injustiça Maria A injustiça que aquela criança sofreu que ela sofre o desrespeito me mobiliza muito isso a desigualdade tentar lutar para que isso para que isso de alguma forma no mundo na sociedade onde a gente vive seja mais Pesquisadora Você tem idéia do porquê essa coisa da injustiça te move Maria Ah eu acho que tem a ver com uma questão pessoal Eu acho que o eu acho assim todo profissional que trabalha violência doméstica ou faz psicologia está em geral tem alguma coisa lá dentro que tem a ver Para mim tem a ver com a história dele Para mim eu acho que eu fui uma criança que sofreu violência doméstica só que psicológica então o que move para mim é isso puxa eu ficava eu olho e fico pensando às vezes se existisse o nome da instituição né se tivesse alguém para me ajudar para eu elaborar com algumas coisas então o que me move é isso tem uma questão pessoal Eu acho que para muita gente aqui tem eu acho que para todo o mundo de alguma forma Então eu eu fui 190 uma criança que sofreu injustiça isso me machucou muito isso trouxe conseqüências para mim então hoje eu tento trabalhar para que para procurar ajudar as crianças Eu tenho muito medo de ser injusta entendeu Eu tenho medo eu sei que às vezes eu sou em casa e mesmo no trabalho mas a gente vê isso eu fui uma criança que sofreu violência silêncio e seus olhos lacrimejam Eu fico pensando imagina se eu tivesse um psicólogo é muito engraçado volta uma imagem assim seria tão legal se tivesse um adulto naquela época que pudesse me ouvir Me ouvir Me compreender Porque os adultos não parecem que tem que compreender a criança eles querem impor para a criança e você tem que aprender sabe como adestrar um cachorrinho tipo assim é isso que me move a injustiça viu Machucar alguém troca de fita Então eu acho que nosso papel é muito importante e voltando para a musicoterapia Eu acho que a musicoterapia resgata a autoestima porque você aprende outras formas de você de você se ver de ver o outro e de fazer coisas Você faz coisas que são aceitas incondicionalmente lá porque não tem esse problema do bonito ou do feio de não ter muito ritmo ou de ter ritmo não entra nessa qualificação ah isso é bonito ou feito eu te aceito ou não te aceito Não te aceito mesmo e pronto Não tem esse negócio de não te aceito você é aceito Tudo o que você faz é aceito tudo o que você faz é importante é valorizado Pesquisadora Você é a única pessoa na instituição que trabalha com arte Maria Eu sou a única os outros psicólogos trabalham com telas argila mas isso daí dentro da ludo tem outro valor Eu acho que tem algumas assistentes sociais que também fazem grupo de orientação e utilizam O nome da instituição ultimamente vem se abrindo eu percebo para essa questão mais da arteterapia eu percebo isso porque antes não tinha Agora eles compram telas agora eles compram argila e eu acho que é legal eu acho que é uma forma de ter um objeto para intermediar tudo isso Pesquisadora Brincar Maria Brincar brincar eu acho que agente precisa brincar mais eu acho que é isso que eu falo aqui no nome da instituição eu falei paras as meninas que não dá porque trabalhar com violência e ser uma pessoa muito séria não dá Séria assim que eu quero dizer muito certinha sabe assim de não fazer uma piada de não falar uma besteira porque o ambiente já é pesado e você tem que relaxar um pouco e tornar o ambiente um pouco leve né e também com os usuários Porque se a gente só ficar falando de violência eu bati muito numa nessa tecla numa reunião geral Eu falei por que a gente só fica falando disso em grupo de orientação É o ECA a violência domes claro que precisa mas escuta e a 191 afetividade e o brincar e esse lado gostoso que precisa desenvolver com teu filho Muitos pais não sabem fazer isso Eles não sabem mesmo Eles não têm tempo às vezes estão estressados Eles não tiveram isso em casa Porque que a gente não pode de repente entrar aqui e trazer o brincar trazer o afeto também em relação ao nosso paciente para que ele possa tentar isso em casa como é que é É aprender a andar sabe assim Então o nome da instituição está mesmo nessa linha trabalhando com arte trabalhando com música e e e não estava dando certo as pessoas fugiam do nome da instituição porque pô você vai para um lugar que você não quer ir para falar que você bateu no teu filho e ficar nessa tecla entendeu Então você já foi punido pelo conselho pelo nome da instituição acho que ele precisa de uma pausa entendeu Tomar uma advertência mas você também tem que mostrar para essa mãe para esse pai que poxa tem outras formas de eles precisam disso Puxa me mostra outros caminhos eu que vou trilhar mas me mostra não adianta só ficar nisso não pode Eu acho que o profissional tem que ter um jogo de cintura Tem que trabalhar com arte Eu acho que a arte é um canal profissional também eu digo isso porque quando eu saio da sessão eu saio bem Eu às vezes entro mal com algumas coisas às vezes até comigo até pessoalmente Eu esqueço eu me sinto mais aliviada porque eu também toco porque eu também participo eu não fico só observando eu faço desenho também Eu toco eu falo O terapeuta é ativo mesmo ele participa ele vai fazendo as coisas junto não fica só olhando ou coordenando o terapeuta participa Isso dentro dessa linha É interessante eu não sei se você sabe a musicoterapia utiliza muito a psicologia as teorias psicológicas porque você tem a psicanálise então o paciente começa a bater no instrumento e usa a associação livre do som a fulana está entrando comigo ela é lacaniana ela está adorando ela não está acreditando ela falou nossa Ela até me pediu para usar os instrumentos com o grupo um outro grupo dela que não faz comigo com os instrumentos porque ela queria ver o que ia rolar na associação livre Ela ficou muito encantada questões mesmo do abuso sexual que é um grupo de meninas que sofre abuso sexual Ela ficou espantada ela falou é impressionante como de alguma forma sai Não sai de uma forma tão agressiva como é a fala Elaborar é uma coisa mais na brincadeira na brincadeira séria né e aí elas se soltam ela gostou muito Ela inclusive acha que na questão do abuso sexual é muito interessante usar a musicoterapia Tem outras linhas tem musicoterapia na linha gestalt gestalt que existencial humanística e aí vai jungueana lacaniana eu não conheço Tem a psicanalítica tem que inventar risos o desejo o imaginário e aí vai silêncio Mas é isso Eu respondi as suas perguntas 192 Pesquisadora Sim Maria Eu me perdi eu eu não sei eu gostei de conversar Pesquisadora Tem alguma coisa que você gostaria de dizer a mais sobre a questão do seu trabalho Ou algo que não seja do seu trabalho que você queira contar Maria Eu acho que o profissional que trabalha com violência doméstica tem que ser assistido Ele tem porque senão ele pode dar uma pirada entendeu Misturando coisas dele a violência que ele sofreu quando era criança e até às vezes se torna violento Eu acho que ele tem que ser assistido terapeuticamente Eu acho a maioria aqui faz Faz porque precisa mesmo Supervisão é essencial A gente ter sempre um a gente tem que estudar porque eu acho que a gente tem que ter um espaço para estudar só que trabalhando quarenta horas Se não tem se você tiver filho se não tiver beleza mas se você tiver é difícil Então eu acho que a gente teria que ter um espaço para estudar para falar para refletir Porque o que eu percebo é que o nome da instituição não tem essa reflexão sobre si mesmo Eu como Pesquisadora me sinto assim assado às vezes eu reproduzo essa violência enfim refletir mesmo Eu acho que o profissional que trabalha com violência doméstica ele tem que tomar muito cuidado com algumas coisas senão ele fica muito assim com um discursinho básico Não pode Isso aí é errado mas sem aprofundar muito porque eu acho que esse é um assunto que tem que aprofundar não é um assunto fácil a questão da violência E também tem que se divertir viu o psicólogo que trabalha risos ele tem que cuidar do lado dele de lazer de prazer Ele tem que ser um pouco mais leve porque você já trabalha com uma coisa pesada e se você eu sou assim eu me sinto uma pessoa leve então para mim é mais fácil mas tem gente que eu percebo é difícil e parece que o trabalho endurece parece que a violência doméstica te endurece trabalhar com isso todo dia sei lá fica um ser estranho risos uma criatura eu acho que é isso eu acho que trabalhar com arte e com violência doméstica tem tudo a ver acho que o nome da instituição deveria pensar mais sobre isso Muitos psicólogos criticam dizendo que ficamos dando risada na sala Mas olha é isso mesmo viu A gente fala coisa engraçada porque eu não estou aqui só para ficar sabe pontuando questões que o outro não está vendo Tudo bem eu pontuo mas eu também a gente pode transformar isso numa coisa mais leve até porque ouvir isso não leva a nada e eu como profissional até para esses pais que muitas vezes não tiveram pais foram que não tiveram a maternagem a paternagem então muitas vezes nós como psicólogos fazemos um pouco esse papel quando brinca quando dá risada quando é bem humorado Muitas vezes a gente é esse pai essa mãe que tem que acolher que tem que brincar que tem que dar 193 dura também Às vezes os psicólogos têm muito medo eu acho têm uma posição ortodoxa Eu acho que isso não ajuda Os profissionais tinham que pensar um pouco numa postura mais flexível não é tomar chá e ser amigo não é isso mas brincar mais no seting mesmo saber levar isso saber que é uma possibilidade Acho que é isso Pesquisadora Acho que então está bom agradeço pela entrevista Maria Se precisar estamos aqui Pesquisadora Obrigada Quando desligo o gravador a entrevistada começa a falar um pouco mais então pedi para ela deixar eu gravar e ela permitiu Maria Para finalizar eu ia te falar trabalhar com violência doméstica tem traz um nível de insalubridade para a saúde mental do psicólogo por isso que ele precisa muito se cuidar senão ele não vai ser um bom profissional Quantas vezes a gente chega aqui estressado com o trabalho claro o fórum o juiz é muita responsabilidade você tem que fazer relatório e você vai decidir a vida da pessoa de uma certa forma E a justiça então é insalubre e as ameaças Pesquisadora E a justiça Maria A justiça Ah a justiça A gente é respeitado pelo juiz não pela promotora pelo juiz pela promotora a gente não é Ela acha a gente muito preguiçosa ela usou outra palavra mas era isso aí julgando era uma palavra bem engraçada eu não sei depois eu vou perguntar paras as meninas Ela chamou a gente de uma palavra que a gente foi ver no dicionário era preguiçoso Então a gente também é violentada aqui risos a gente é julgado E a gente também faz isso com os outros e a responsabilidade é muito grande Eu várias vezes fui prestar depoimento no fórum Eu já perdi a conta eu nem fico mais nervosa na frente de um juiz mas eu fico muito nervosa porque ele fala coisas sabe sabe que vai comprometer então você sai de lá com medo de ser ameaçada você sai de lá às vezes com pena Aquele o cara vai ser preso Sabendo que eu contribuí para que ele fosse preso É claro que ele tem que pagar pelo que ele fez mas é difícil 194 Pesquisadora Você já prestou depoimento sobre a questão caso de abuso Maria Várias vezes várias e de diversas formas Eu alguns não teve resultado nenhum a justiça não fez nada e eu fiquei impressionada É um caso de um pedófilo famoso lá de Diadema O juiz me perguntou se eu achava que ele tinha que ser preso eu falei para ele que não iria responder essa pergunta porque não me competia Eu só posso dizer que ele precisa de uma terapia ou ir a um psiquiatra Mas eu não vou falar isso não me compete E teve outro caso de um velhinho que abusou de uma adolescente e depois ele morreu Ele não morreu na cadeia porque acho que ele se matou antes Ele se suicidou porque depois com o meu depoimento eu percebi que iria ser preso Estava na cara que ele tinha abusado É muito difícil é muito insalubre você fica se sentindo responsável Pesquisadora Como é que você identifica Em que você se fundamenta para poder dizer se ouve ou não o abuso Maria A gente a gente usa entrevista aberta entrevistas fechadas são várias coisas e testes Pesquisadora Com a criança Maria E com o agressor também com os dois A gente consegue muitas vezes chegar a um consenso só que a gente não afirma A gente usa o termo parece praticamente a gente afirma porque se parece que existe indício Pesquisadora E vocês escrevem no parecer para o juiz Maria Escrevemos e às vezes o juiz está violentando a criança na minha frente Eu fico mal a criança chorando Pesquisadora Violentando como Maria Pergunta onde seu pai mexeu E eu respondo que estava tudo comprovado tinha exame de corpo de delito tinha tudo exame psicológico E a juíza Fala onde foi A criança me agarrando e chorando Pesquisadora Quantos anos Maria Sete anos Então ela chorando apontou para a vagina E eu falei para a juíza O que a senhora está fazendo A sorte foi que a promotora teve bom senso com a advogada da criança e falou você quer perguntar ela falou Não Pô também né já tinha escancarado a 195 criança ali A criança não quis responder mais ela respondeu em avaliação e a juíza quis que ela respondesse lá então foi muito difícil foi muito complicado eu esse depoimento mexeu Depois eu fui no depoimento de um agressor de vários eu fui né Ele estava comigo ele estava na sala e eu pedi para o juiz para ele se retirar para não fazer o depoimento na frente dele Então é insalubre por isso entendeu Porque você tem medo de sair de lá e tomar um tiro ou o cara descobrir onde você mora Você não tem retaguarda da instituição para isso não tem você vai na fé em Deus entendeu Você vai achando que não vai acontecer nada com você E a responsabilidade mesmo do cara ser preso e o meu relatório contribuiu para isso meu relatório diz que tinha um indício Será que é por aí porque a gente sabe que o sistema penitenciário não vai recuperar mesmo e ele não vai ter terapia então adiantou ele só ser preso Eu acho que não ele vai ele foi preso mas ele precisa de um atendimento Pesquisadora Mas esse indício que você diz Como que é É quando ele conta Maria Não é uma série de coisas Ele às vezes não conta Ele se faz passar por uma pessoa muito certinha perfeita que nunca pensa em sexo que nunca bebeu que nunca fumou que nunca fez nada entendeu Uma pessoa perfeita um santo E a criança se observa o comportamento É uma avaliação baseada num todo Não é só do agressor é da criança também É complexo passa pela subjetividade do psicólogo e você pode errar como ser humano então você está sujeito a Você vê esse velhinho eu tinha certeza que ele abusou para mim estava claro Ele veio com uma conversa assim Não filha olha eu sou um velhinho Sem sexualidade né Sou crente Muito crente agressor sexual é muito evangélico ele faz alguma coisa impressionante E o HTP1 dos agressores a árvore especificamente é um desenho estranho geralmente é a árvore É engraçado pelo menos nas avaliações que eu tenho feito dá até para fazer uma pesquisa sobre isso A árvore especificamente bem esquisita nada comum é o que mais Pesquisadora Você estava falando dos indícios Maria Ah Os indícios O velhinho ele falava que era um santo Não filha olha eu estou cansado Você acha que eu um velho de setenta anos vou ter disposição Para subir a escada fez um drama fez um monte de de de Então são indícios de remédio na minha mesa para provar que ele era doente Quem deve não teme entendeu E então o cara do 1 House tree and people um tipo de teste psicológico para avaliar traços de personalidade 196 nada isso foi uma coisa muito interessante eu nunca vi uma coisa assim Ah filha eu sou doente E de repente o cara levanta e fala assim grita Você acha que eu tinha capacidade de abaixar uma porta Essas portas de comércio sabe De repente o velho levanta na maior velocidade levantou e fez assim Você acha que eu tinha capacidade para fazer isso Assim super ágil super nossa Parecia um esportista um atleta um alongamento sabe nem eu tinha Daí eu fiquei assim ele abusou A história é que ele tinha abaixado a porta e abusado da menina Você acha que eu tenho capacidade Porque ele subiu a escada fazendo um jeito de cansado parou na escada para respirar de repente ele levanta da cadeira com a maior agilidade física abaixa e faz a cena a psicóloga também fez a cena Eu olhei falei aí tem Os testes ele era muito eu sou o santo Então dá para perceber algumas coisas entendeu Faz o tipo de santo que não tem pensamentos sexuais Quando o cara não é geralmente ele admite Ah Eu já usei revista pornográfica eu já me masturbei já Enfim quando o cara abusa ele faz um tipo sabe Não eu não penso nisso eu não penso em sexo risos Não eu não vou para igreja Deus é pai isso é coisa do diabo Então esses indícios são fortes dão muita pista para a gente A gente acabou nem falando muito sobre o perfil do agressor né Se você quiser numa outra entrevista a gente pode falar Muita coisa por exemplo ele culpa muito a criança Tá vendo ela é uma galinha Aquela menina é uma safada Ela namora com todo o mundo Então põe no outro essa sexualidade desviada É como se ele fosse um ser assexuado entendeu Essa é uma coisa bem para mim bem forte no agressor silencio Tá bom Pesquisadora Sim Maria obrigada