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Direito ·

Direito de Família

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Friedrich ENGELS A ORIGEM DA FAMILIA DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA 9ª edição A ORIGEM DA FAMÍLIA DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO Ao lançarmos outra edição brasileira deste livro deixemos que o próprio Engels apresente sua obra No prefácio que escreveu para a quarta edição Londres 16 de junho de 1891 dizia Até 1860 não se poderia sequer pensar em uma história da família As ciências históricas ainda se achavam nesse domínio sob a influência dos Cinco Livros de Moisés A forma patriarcal da família pintada nesses cinco livros com maior riqueza e minúcias do que em qualquer outro lugar não somente era admitida sem reservas como a mais antiga como também se identificava descontando a poligamia com a família burguesa de hoje de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da História No máximo admitiase que nos tempos primitivos pudesse ter havido um período de promiscuidade sexual É certo que além da monogamia conheciamse a poligamia no Oriente e a poliandria na Índia e no Tibete mas estas três formas não podiam ser dispostas historicamente em ordem sucessiva figuravam juntas uma ao lado das outras sem nenhuma conexão Tam A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado Coleção PERSPECTIVAS DO HOMEM Volume 99 Série Ciências Sociais Direção de MOACYR FÉLIX Friedrich Engels A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado Trabalho relacionado com as investigações de L H Morgan 9ª Edição Tradução de LEANDRO KONDER civilização brasileira Título do original alemão DER URSPRUNG DER FAMILIE DES PRIVATEIGENTAUIMS UND DES STAATS Desenho de capa HÉLIO DUTRA Diagramação LÉA CAULLIRAUX Direitos desta edição reservados pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA SA Rua Muniz Barreto 715721 RIO DE JANEIRO RJ 1984 Impresso no Brasil Printed in Brazil Sumário Prefácio à primeira edição1884 1 Prefácio à quarta edição1891 5 A origem da família da propriedade privada e do Estado I Estágios préhistóricos de cultura 21 1 estado selvagem 22 2 a barbárie 24 II A família 28 III A gens iroquesa 91 IV A gens Grega 109 V Gênese do Estado ateniense 120 VI A gens e o Estado em Roma 133 VII A gens entre os celtas e entre os germanos 146 VIII A formação do Estado entre os germanos 163 IX Barbárie e civilização 177 Índice dos nomes citados 203 Índice das matérias 211 Prefácio à primeira edição1884 As páginas seguintes vêm a ser de certo modo a execução de um testamento Marx dispunhase a expor pessoalmente os resultados das investigações de Morgan em relação com as conclusões da sua até certo ponto posso dizer nossa análise materialista da história para esclarecer assim e somente assim todo o seu alcance Na América Morgan descobriu de novo e à sua maneira a concepção materialista da história formulada por Marx quarenta anos antes e baseado nela chegou contrapondo barbárie e civilização aos mesmos resultados essenciais de Marx Devo assinalar que os mestres da ciência préhistórica na Inglaterra tiveram quanto ao Ancient Society¹ de Morgan a mesma atitude que já tinham ¹ Ancient Society or Researches in the lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization por Lewis H Morgan Londres Mac Millan and Co 1877 Este livro foi impresso na América e é muito difícil encontrálo em Londres O autor morreu há alguns anos Nota de Engels Em 1891 a Editora J H W Dietz de Stuttgart 1 assumido em face de O Capital de Marx os economistas oficiais da Alemanha que andaram durante muito tempo a plagiálo com zelo igual ao empenho em manter silêncio sobre ele Meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever Disponho entretanto não só dos excertos detalhados que Marx retirou à obra de Morgan 1 como também de suas anotações críticas que reproduzo aqui sempre que cabíveis De acordo com a concepção materialista o fator decisivo na história é em última instância a produção e a reprodução da vida imediata Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos de um lado a produção de meios de existência de produtos alimentícios habitação e instrumentos necessários para tudo isso de outro lado a produção do homem mesmo a continuação da espécie 2 A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção pelo grau de desenvolvimento do trabalho de um lado e da família de outro Quanto menos desenvolvido é o trabalho mais restrita é a quantidade de seus produtos e por consequência a riqueza da sociedade com tanto maior força se manifesta a influência dominante dos laços de parentesco sobre publicou uma tradução alemã L H Morgan Die Urgesellschaft oder Untersuchung über den Fortschritt der Menschheit aus der Wildheit über die Barbarei zur Civilization N da R 1 Referese à súmula do Ancient Society de Morgan feita por Marx e publicada em russo em 1945 Ver Arquivo de Marx e Engels tomo IX N da R 2 Engels incorre aqui numa inexactidão ao colocar a continuação da espécie ao lado da produção dos meios de subsistência entre as causas que determinam o desenvolvimento da sociedade e das instituições sociais Contudo no próprio texto de A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado Engels demonstra pela análise de dados concretos que o modo da produção material é o fator principal que condiciona o desenvolvimento da sociedade e das instituições sociais N da R 2 o regime social Contudo no marco dessa estrutura da sociedade baseada nos laços de parentesco a produtividade do trabalho aumenta sem cessar e com ela desenvolvemse a propriedade privada e as trocas as diferenças de riqueza a possibilidade de empregar força de trabalho alheia e com isso a base dos antagonismos de classe os novos elementos sociais que no transcurso de gerações procuram adaptar a velha estrutura da sociedade as novas condiçôes até que por fim a incompatibilidade entre estas e aquela leva a uma revolução completa A sociedade antiga baseada nas uniôes gentílicas vai pelos ares em consequência do choque das classes sociais recémformadas dá lugar a uma nova sociedade organizada em Estado cujas unidades inferiores já não são gentílicas e sim unidades territoriais uma sociedade em que o regime familiar está completamente submetido às relações de proprieda de e na qual têm livre curso as contradições de classe e a luta de classes que constituem o conteúdo de toda a história escrita até nossos dias O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais esse fundamento préhistórico da nossa história escrita e o de ter encontrado nas uniôes gentílicas dos Índios norteamericanos a chave para decifrar importantíssimos enigmas ainda não resolvidos da história antiga da Grécia Roma e Alemanha Sua obra não foi trabalho de um dia Levou cerca de quarenta anos elaborando seus dados até conseguir dominar inteiramente o assunto E seu esforço não foi em vão pois seu livro é um dos poucos de nossos dias que fazem época No que a seguir vai exposto o leitor distinguirá com facilidade o que é de Morgan e o que acrescentei eu Nos capítulos de história consagrados à Grécia e Roma não me limitei a reproduzir a documantaçâo de Morgan mas acrescentei todos os dados de que dispunha A parte que trata dos celtas e dos germanos é essencialmente minha pois os documentos de Morgan sobre o assunto eram de segunda mão e quanto aos germanos afora os escritos de Tácito só conhecia as pés simas falsificaçôes liberais do senhor Freeman Tive que refazer toda a argumentação econômica que se era suficiente para os objetivos de Morgan não bastava em absoluto para os meus Finalmente respondo sem dúvida por todas as conclusões desde que Morgan não seja expressamente citado F ENGELS 4 Prefácio à quarta edição1891 AS EDIÇÕES ANTERIORES de que se fizeram grandes tiragens estão esgotadas há bem uns seis meses e o editor me vinha pedindo desde algum tempo que preparasse uma nova Trabalhos mais urgentes impediram que eu o fizesse até o presente momento Desde o aparecimento da primeira edição transcorreram já sete anos durante os quais grandes progressos se verificaram no estudo das formas primitivas da família Foi necessário portanto corrigir e aumentar minuciosamente a obra tanto mais que se cogita de estereotipar o atual texto o que me privaria por algum tempo de qualquer possibilidade de corrigilo Como disse revi com atenção todo o livro e fizlhe alguns acréscimos em que espero ter considerado devidamente o atual estado da ciência Além disso faço neste prefácio uma breve exposição do desenvolvimento da história da família desde Bachofen até Morgan principalmente porque a escola préhistórica inglesa que tem um acentuado matiz chauvinista continua fazendo todo o possível para silenciar a revoluçã 5 produzida pelos descobrimentos de Morgan nas velhas noções de história primitiva embora não sinta o menor escrúpulo em apropriarse dos resultados obtidos por Morgan Também em outros países se segue com zelo em alguns casos o exemplo dado pelos ingleses Meu trabalho foi traduzido em diversos idiomas Primeiro em italiano Lorigine delia famiglia della proprietà privata e dello stato versione riveduta dallautore di Pasquale Martigneti Benevento 1885 Logo em seguida apareceu a tradução romena Origina familei proprietatei private si a statului traducere de Joan Nadejde publicada na revista de Jassi Contemporanul de setembro de 1885 a maio de 1886 Depois a dinamarquesa Familjens Privatejendommens og Statens Oprindelse Dansk af Forfatteren gennemgaaet Udgave besörget af Gerson Trier Köbenhavn 1888 E está sendo impressa uma tradução francesa de Henri Ravé baseada na presente edição alemã Até o início da década de sessenta não se poderia sequer pensar em uma história da família As ciências históricas ainda se achavam nesse domínio sob a influência dos Cinco Livros de Moisés A forma patriarcal da família pintada nesses cinco livros com maior riqueza de minúcias do que em qualquer outro lugar não somente era admitida sem reservas como a mais antiga como também se identificava descontando a poligamia com a família burguesa de hoje de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história No máximo admitiase que nos tempos primitivos pudesse ter havido um período de promiscuidade sexual É certo que além da monogamia conheciamse a poligamia no Oriente e a poliandria na Índia e no Tibete mas estas três formas não podiam ser dispostas historicamente em ordem sucessiva figuravam juntas umas ao lado das outras sem nenhuma conexão Também é verdade que em alguns povos do mundo antigo e algumas tribos selvagens ainda existentes a descendência é contada por linha materna e não paterna sendo aquela a única válida e que em muitos povos contem 6 porãneos é proibido o casamento dentro de determinados grupos maiores naquela época ainda não estudados de perto ocorrendo este fenômeno em todas as partes do mundo estes fatos certamente eram conhecidos e a cada dia a eles se acrescentavam novos exemplos Mas ninguém sabia como abordálos e inclusive na obra de E B Tylor 18651 apareciam como costumes exóticos ao lado da proibição vigente em algumas tribos selvagens de tocar na lenha que ardesse com qualquer instrumento de ferro e outras futilidades religiosas semelhantes O estudo da história da família começa de fato em 1861 com o Direito Materno de Bachofen Nesse livro o autor formula as seguintes teses 1 primitivamente os seres humanos viveram em promiscuidade sexual impropriamente chamada de heterismo por Bachofen 2 estas relações excluíam toda possibilidade de estabelecer com certeza a paternidade pelo que a filiação apenas podia ser contada por linha feminina segundo o direito materno e isso se deu em todos os povos antigos 3 em consequência desse fato as mulheres como mães como únicos progenitores conhecidos da jovem geração gozavam de grande apreço e respeito chegando de acordo com Bachofen ao domínio feminino absoluto ginecocracia 4 a passagem para a monogamia em que a mulher pertence à um só homem incidia na transgressão de uma lei religiosa muito antiga isto é do direito imemorial que os outros homens tinham sobre aquela mulher transgressão que devia ser castigada ou cuja tolerância se compensava com a posse da mulher por outros durante determinado período Bachofen encontrou as provas dessas teses em numerosos trechos da literatura clássica antiga por ele reunidos com zelo singular A passagem do heterismo à monogamia e do di 1 E B Tylor Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization Pesquisas sobre a História Primitiva da Humanidade e do Desenvolvimento da Civilização Londres 1865 N da R 7 reito materno ao paterno segundo Bachofen processase particularmente entre os gregos em conseqüência do desenvolvimento das concepções religiosas da introdução de novas divindades representativas de idéias novas no grupo dos deuses tradicionais que eram a encarnação das velhas idéias pouco a pouco os velhos deuses vão sendo relegados ao segundo plano pelos novos Dessa maneira pois para Bachofen não foi o desenvolvimento das condições reais de existência dos homens mas o reflexo religioso dessas condições no cérebro deles o que determinou as transformações históricas na situação social recíproca do homem e da mulher Dentro de seu pontodevista Bachofen interpreta a Oréstia de Ésquilo como um quadro dramático da luta entre o direito materno agonizante e o direito paterno que nasceu e conseguiu a vitória sobre o primeiro na época das epopéias Levada por sua paixão por Egisto seu amante Clitemnestra mata seu marido Agamenon quando este regressava da guerra de Tróia mas Orestes filho dela e de Agamenon vinga o pai matando a mãe Isso faz com que ele se veja perseguido pelas Erínias seres demoníacos que protegem o direito materno de acordo com o qual o matricídio é o mais grave e imperdoável de todos os crimes Apolo no entanto que por intermédio de seu oráculo havia incitado Orestes a matar sua mãe e Palas Atena que intervêm como juiz ambas as divindades representam aqui o novo direito paterno protegem Orestes Atena ouve ambas as partes Todo o litígio está resumido na discussão de Orestes com as Erínias Orestes diz que Clitemnestra cometeu um duplo crime ao matar quem era seu marido e pai de seu filho Por que as Erínias o perseguiam por que o visavam em especial se ela a morta tinha sido muito mais culpada A resposta é surpreendente Ela não estava unida por vínculos de sangue ao homem que assassinou O assassinato de uma pessoa com a qual não houvesse vinculação de sangue mesmo que fosse o marido da assassina 8 era falta que podia ser expiada e não concernia absolutamente às Erínias A missão delas era a de punir o homicídio entre consanguíneos e o pior e mais imperdoável dos crimes segundo o direito materno o matricídio Nesse ponto contudo intervém Apolo defensor de Orestes e em seguida Atena submete o caso ao Areópago o Tribunal do Júri ateniense há o mesmo número de votos pela condenação e pela absolvição Então Atena como presidente do Tribunal vota em favor de Orestes e o absolve O direito paterno vence o materno Os deuses da jovem geração como os chamam as próprias Erínias são mais poderosos que elas e só lhes resta resignaremse e finalmente também elas convencidas poremse ao serviço do novo estado de coisas Essa nova e inteiramente correta interpretação de Oréstia é uma das melhores e mais belas passagens do livro mas ao mesmo tempo é a prova de que Bachofen acredita como outrora Ésquilo nas Erínias em Apolo e Palas Atena isto é crê que foram estas divindades que realizaram na época heróica da Grécia o milagre de derrubar o direito materno e substituílo pelo paterno É evidente que tal concepção que considera a religião como a alavanca decisiva na história do mundo conduz afinal de contas ao mais puro misticismo Por isso estudar a fundo o volumoso livro de Bachofen é um trabalho árduo e muitas vezes pouco proveitoso Isto no entanto não diminui seus méritos de pioneiro já que foi o primeiro a substituir as frases sobre um desconhecido e primitivo estágio de promiscuidade sexual pela demonstração de que na literatura clássica grega há muitos vestígios de que entre os gregos e os povos asiáticos existiu realmente antes da monogamia um estado social em que não somente o homem mantinha relações sexuais com várias mulheres mas também a mulher mantinha relações sexuais com diversos homens sem que com isso violassem a moral estabelecida Bachofen provou que esse costume não desapareceu sem deixar vestígios sob a forma de necessidade para a mulher de entregarse durante determinado período a outros homens entrega que era o 9 preço de seu direito ao matrimônio único que portanto primitivamente não se podia contar a descendência senão por linha feminina quer dizer de mãe a mãe que essa validez exclusiva da filiação feminina se manteve por muito tempo mesmo no período posterior de monogamia com a paternidade já estabelecida ou pelo menos reconhecida e por último que essa situação primitiva das mães como únicos genitores certos de seus filhos lhes assegurou bem como às mulheres em geral a posição social mais elevada que tiveram desde então até os nossos dias Sem dúvida Bachofen não enunciou esses princípios com tanta clareza porque o tolhi a misticismo de suas concepções mas o simples fato de têlos demonstrado em 1861 tinha o significado de uma revolução O volumoso tomo de Bachofen estava escrito em alemão isto é na língua da nação que menos se interessava então pela préhistória da família contemporânea Por isso permaneceu ignorado O sucessor mais imediato de Bachofen nesse terreno entrou em cena em 1865 sem jamais ter ouvido falar dele Esse sucessor foi J F Mac Lennan o pólo oposto de seu predecessor Ao invés do místico genial temos aqui um árido jurisconsulto em lugar de uma exuberante e poética fantasia as plausíveis combinações de um arrazoado de advogado Mac Lennan encontra em muitos povos selvagens bárbaros e até civilizados dos tempos antigos e modernos uma forma de matrimônio em que o noivo só ou assistido por seus amigos deve arrebatar sua futura esposa da casa dos pais simulando um rapto com violência Este costume deve ser vestígio de um costume anterior pelo qual os homens de uma tribo obtinham mulheres tomandoas realmente de outras tribos pela força Mas como teria nascido esse matrimônio por rapto Enquanto os homens puderam encontrar mulheres suficientes em sua própria tribo não tiveram motivo para semelhante procedimento Por outro lado e com frequência não menor encontramos em povos não civilizados certos grupos que em 1865 ainda eram muitas vezes identificados com as 10 próprias tribos no seio dos quais era proibido o matrimônio vendose os homens obrigados a buscar esposas e as mulheres esposos fora do grupo enquanto isso outro costume existe em outros povos pelo qual os homens de determinado grupo só devem procurar suas esposas no seio de seu próprio grupo Mac Lennan chama as primeiras de tribos exógamas e as segundas de endógamas e de imediato sem maior investigação estabelece uma antítese bem definida entre tribos exógamas e endógamas E ainda quando suas próprias investigações sobre a exogamia lhe evidenciam que em muitos casos senão na maioria ou mesmo em todos essa antítese só existe na sua imaginação nem por isso deixa de tomála como base para toda a sua teoria De acordo com ela as tribos exógamas não podiam tomar mulheres senão de outras tribos o que apenas podia ser feito mediante rapto dada a guerra permanente entre as tribos característica do estado selvagem Pergunta Mac Lennan mais adiante de onde provém esse costume da exogamia Em sua opinião as idéias de consangüinidade e incesto nascidas bem mais tarde nada têm a ver com ele Sua causa poderia ser o costume bastante difundido entre os selvagens de matar as crianças do sexo feminino logo após seu nascimento Disso resultaria um excelente de homens em cada tribo tomada separadamente tendo como conseqüência imediata a posse de uma mesma mulher em comum por vários homens isto é a poliandria Daí decorria por sua vez que a mãe de uma criança era conhecida mas não o pai por isso a ascendência era contada pela linha materna e não paterna direito materno E da escassez de mulheres no seio da tribo escassez atenuada mas não suprimida pela poliandria advinha ainda outra conseqüência que era precisamente o rapto sistemático de mulheres de outras tribos Como a exogamia e a poliandria procedem de uma só causa do desequilíbrio numérico entre os sexos devemos considerar que entre todas as raças exógamas existiu primitivamente a poliandria E por isso devemos ter como indiscutível que entre as raças exógamas o primeiro sistema de parentesco era aquele que reconhecia apenas o vínculo de 11 sangue pelo lado materno Mac Lennan Estudos de História Antiga 1886 O Matrimônio Primitivo 1 pág 124 O mérito de Mac Lennan consiste em ter indicado a difusão geral e a grande importância do que ele chama de exogamia Quanto ao fato da existência de grupos exógamos não o descobriu e muito menos o compreendeu Sem falar das notícias anteriores e isoladas de numerosos observadores exatamente as fontes de Mac Lennan Latham já havia descrito com muita precisão e justeza Etnologia Descritiva2 1859 esse fenômeno entre os magars da Índia e afirmara que o fenômeno predominava em geral e se verificava em todas as partes do mundo O próprio Mac Lennan cita esta passagem Além disso também o nosso Morgan observara e descrevera perfeitamente o mesmo fenômeno e isto em 1847 em suas cartas sobre os iroqueses na American Review e em 1851 na Liga dos Iroqueses3 ao passo que como veremos a mentalidade de advogado de Mac Lennan causou confusão ainda maior sobre o assunto do que a causada pela fantasia mística de Bachofen no terreno do direito materno Outro mérito de Mac Lennan consiste em ter reconhecido como primária a ordem de descendência baseada no direito materno conquanto também aqui conforme reconheceu mais tarde Bachofen se lhe tenha antecipado Mas também neste ponto ele não vê claro pois fala sem cessar em parentesco apenas por linha feminina kinship through females only empregando continuamente essa expressão exata para um período anterior na análise de fases posteriores de desenvolvimento em que se é verdade que a filiação e o direito de herança continuam a contarse exclusivamente segundo a linha materna 12 o parentesco por linha paterna também já está reconhecido e expresso Observamos aqui a estreiteza de critério do jurisconsulto que forja um termo jurídico fixo e continua aplicandoo sem modificálo a circunstâncias para as quais já não serve Parece que apesar de sua plausibilidade a teoria de Mac Lennan não deu a seu autor a impressão de estar muito solidamente assentada Pelo menos chamalhe a atenção o fato digno de ser notado de que a forma do rapto simulado das mulheres seja observada mais marcada e nitidamente entre os povos em que predomina o parentesco masculino quer dizer a descendência por linha paterna pág 140 E diz mais adiante É muito estranho que segundo as notícias que temos o infanticídio não se pratique por sistema em lugar onde coexistem a exogamia e a mais antiga forma de parentesco pág 146 Esses dois fatos contestam diretamente sua maneira de explicar as coisas e Mac Lennan não lhes pode opor senão novas hipóteses ainda mais embrulhadas Não obstante sua teoria foi acolhida na Inglaterra com grande aprovação e simpatia Mac Lennan foi considerado por todos como o fundador da história da família e a primeira autoridade na matéria Sua antítese entre as tribos exógamas e endógamas continuou sendo a base reconhecida das opiniões dominantes apesar de certas exceções e modificações admitidas e se transformou nos antolhos que impediam ver livremente todo o terreno explorado e por conseguinte todo progresso decisivo Em face do exagero dos méritos de Mac Lennan que ficou em voga na Inglaterra e seguida a moda inglesa em toda parte devemos assinalar que com sua antítese de tribos exógamas e endógamas baseada na mais pura confusão ele causou um prejuízo maior do que os serviços prestados com suas pesquisas Entretanto cedo começaram a ser conhecidos fatos e mais fatos que não cabiam em seu bem arrumado esquema Mac Lennan somente conhecia três formas de matrimônio a poligamia a poliandria e a monogamia Logo porém que a atenção foi dirigida para esse ponto acharamse provas cada 13 a gens ulterior baseada no direito paterno gens como a encon tramos entre os povos civilizados da antiguidade A gens grega e romana que tinha sido até então um enigma para os historiadores ficou explicada tomandose como ponto de par tida a gens indígena o que deu nova base ao estudo de toda a história primitiva O descobrimento da primitiva gens de direito materno como etapa anterior à gens de direito paterno dos povos civi lizados tem para a história primitiva a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da maisvalia enunciada por Marx para a economia política Essa descoberta permitiu a Morgan esboçar pela primeira vez uma história da família onde pelo menos as fases clássicas da sua evolução em linhas gerais são provisoriamente estabele cidas tanto quanto o permitem os dados atuais Evidente mente iniciouse uma nova era no estudo da préhistória Em torno da gens de direito materno gravita hoje toda essa ciência desde seu descobrimento sabese em que direção enca minhar as pesquisas e o que estudar assim como de que modo devem ser classificados os resultados Por isso fazemse atual mente nesse terreno progressos muito mais rápidos que antes de aparecer o livro de Morgan Também na Inglaterra os estudiosos da préhistória geral mente reconhecem agora os descobrimentos de Morgan ou melhor dito se apoderam desses conhecimentos Mas quase nenhum deles reconhece francamente que é a Morgan que devemos esta revolução do pensamento Sempre que possível silenciam sobre o seu livro e quanto ao próprio Morgan se limitam a condescendentes elogios a seus trabalhos anteriores esmiuçam com zelo pequenos detalhes de sua exposição mas omitem obstinadamente qualquer referência às suas descobertas realmente importantes A primeira edição de Ancient Society está esgotada na América vendemse mal as publicações desse tipo na Ingla terra parece que a publicação desse livro foi sabotada siste maticamente e a única edição à venda desta obra que faz época é a tradução alemã 17 Por que essa reserva na qual é difícil não perceber uma conspiração de silêncio sobretudo se se levam em conta as inúmeras citações feitas por simples cortesia e outras provas de camaradagem tão freqüentes nos trabalhos de nossos reno mados pesquisadores da préhistória Será talvez porque Morgan é americano e se torna muito duro para os historia dores ingleses apesar do zelo muito mérito com que copiam documentos terem de depender de dois estrangeiros geniais como Bachofen e Morgan quanto aos pontosdevista gerais indispensáveis para ordenar e agrupar esses documentos em uma palavra quanto a suas idéias O alemão ainda podia ser tolerado mas o americano Em presença de um americano acendemse os brios patrióticos de todo inglês vi nos Estados Unidos exemplos engraçadíssimos Acrescentese a isso que Mac Lennan foi de certo modo proclamado oficialmente fundador e chefe da escola préhistórica inglesa que até certo ponto se considerava de bomtom em préhistória não falar senão com o mais profundo respeito de sua teoria histórica artificialmente construída que conduzia desde o infanticídio até a família de direito materno passando pela poliandria e pelo matrimônio por rapto Era considerado grave sacrilégio manifestar a menor dúvida acerca da existência de tribos exógamas e endógamas que se excluíam absolutamente umas às outras portanto Morgan ao dissipar como fumo todos esses dogmas consagrados cometeu uma espécie de sacrilégio Além disso destruiu esses dogmas com argumentos cuja simples exposição obrigava todo mundo a admitilos como evidentes E os admiradores de Mac Lennan que até então vacilavam perplexos entre a exogamia e a endogamia sem saber que caminho tomar que se viram obrigados a bater na testa e ex clamar Como pudemos ser tão estúpidos que não desco brimos tudo isso nós mesmos há muito tempo E como se tantos crimes ainda não bastassem para que a escola oficial voltasse friamente as costas a Morgan este fez transbordar o copo não somente criticando de um modo que lembra Fourier a civilização e a sociedade da produção mer cantil forma fundamental da sociedade de nossos dias como 18 também falando de uma transformação dessa sociedade em termos que podiam ter saído dos lábios de Karl Marx Ele recebeu o merecido quando Mac Lennan indignadamente o acusou por ter uma profunda antipatia pelo método histórico e quando o professor GiraudTeulon endossou essa opinião em Genebra em 1884 E no entanto o mesmo senhor Giraud Teulon errava impotentemente em 1874 Origens da Família pelo labirinto da exogamia de Mac Lennan de onde apenas Morgan haveria de livrálo Não é necessário detalhar aqui os demais progressos que a préhistória deve a Morgan no curso deste trabalho encontrarseá o que precisa ser dito sobre o assunto Os quatorze anos transcorridos desde o aparecimento de sua obra principal aumentaram bastante o acervo de nossos dados históricos sobre as sociedades humanas primitivas Aos antropólogos exploradores e pesquisadores profissionais da préhistória juntaramse estudiosos do direito comparado que trouxeram novos dados e novos pontos de vista Com isso algumas hipóteses de Morgan sofreram um abalo ou mesmo caducaram Os novos dados porém não substituíram em parte alguma suas idéias principais por outras A ordem por ele introduzida na história primitiva subsiste ainda no fundamental Podese mesmo dizer que essa ordem vai sendo geralmente reconhecida na mesma medida em que se procura ocultar quem é o autor desse grande progresso 1 FRIEDRICH ENGELS Londres 16 de julho de 1891 1 Ao regressar de Nova Iorque em setembro de 1888 fiz relações com um exdeputado pela circunscrição de Rochester ô qual tinha conhecido Lewis Morgan Infelizmente não soube contarme grande coisa sobre ele Morgan vivera como particular em Rochester ocupado somente em seus estudos Um irmão dele tinha sido coronel e ocupara um posto no Ministério da Guerra em Washington por intermédio desse irmão conseguir interessar o governo por suas pesquisas e fazer publicar várias de suas obras às expensas do erário público Meu interlocutor também o havia ajudado por diversas vezes quando exercia seu mandato no Congresso Nota de Engels 19 as notícias que temos das tribos humanas no estado selvagem Pois bem as sociedades dos macacos são muito mais difíceis de observar que as dos homens Por isso enquanto não dispusermos de uma informação ampla devemos recusar qualquer conclusão provinda de dados que não inspirem crédito Entretanto o trecho de Espinas que citamos nos dá melhor ponto de apoio para investigação A horda e a família nos animais superiores não são complementos recíprocos e sim fenômenos antagônicos Espinas descreve bem de que modo o ciúme dos machos no período do cio relaxa ou suprime momentaneamente os laços sociais da horda Onde a família está intimamente unida não vemos formaremse hordas salvo raras exceções Pelo contrário as hordas constituemse quase que naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a poligamia Para que surja a horda é necessário que os laços familiares se tenham relaxado e o indivíduo tenha recobrado sua liberdade É por isso que só raramente encontramos bandos organizados entre os pássaros Por outro lado é nos mamíferos que vamos encontrar sociedades mais ou menos organizadas justamente porque o indivíduo neste caso não é absorvido pela família Assim pois a consciência coletiva da horda não pode ter em sua origem um inimigo maior do que a consciência coletiva da família Não hesitamos em dizêlo se se desenvolveu uma sociedade superior à família isso foi devido somente ao fato de que a ela se incorporaram famílias profundamente alteradas conquanto isso não exclua a possibilidade de que precisamente por este motivo aquelas famílias pudessem mais adiante reconstituirse sob condições infinitamente mais favoráveis Espinas cap 1 citado por GiraudTeulon em Origens do Matrimônio e da Família 1884 1 págs 518520 Como vemos as sociedades animais têm certo valor para tirarmos conclusões concernentes às sociedades humanas mas 1 A GiraudTeulon Les Origines du Mariage et de la Famille Genebra 1884 N da R 34 somente num sentido negativo Pelo que é de nosso conhecimento o vertebrado superior apenas conhece duas formas de família a poligâmica e a monogâmica Em ambos os casos só se admite um macho adulto um marido Os ciúmes do macho a um só tempo laço e limite da família opõemna à horda a horda forma social mais elevada tornase impossível em certas ocasiões e em outras relaxase ou se dissolve durante o período do cio na melhor das hipóteses seu desenvolvimento vêse contido pelos ciúmes dos machos Isso é suficiente para provar que a família animal e a sociedade humana primitiva são coisas incompatíveis que os homens primitivos na época em que lutavam por sair da animalidade ou não tinham nenhuma noção de família ou quando muito conheciam uma forma não encontrada entre animais Um animal tão sem meios de defesa como aquele que se estava tornando homem pôde sobreviver em pequeno número inclusive numa situação de isolamento em que a forma de sociabilidade mais evoluída era o casal forma que Westermarck baseandose em informações de caçadores atribui ao gorila e ao chipanzé Mas para sair da animalidade para realizar o maior progresso que a natureza conhece era preciso mais um elemento substituir a falta de poder defensivo do homem isolado pela união de forças e pela ação comum da horda Partindo das condições conhecidas em que vivem hoje os macacos antropomorfos seria simplesmente inexplicável a passagem à humanidade esses macacos dãonos mais a impressão de linhas colaterais desviadas e em vias de extinguirse e que no mínimo se encontram em processo de decadência Isso basta para se rechaçar todo paralelo entre suas formas de família e as do homem primitivo A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira condição para que se pudessem formar esses grupos numerosos e estáveis em cujo seio unicamente podia operarse a transformação do animal em homem E com efeito que encontramos como forma mais antiga e primitiva da família cuja existência indubitável nos demonstra a História e que ainda hoje podemos estudar em 35 certos lugares O matrimônio por grupos a forma de casamento em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres pertencemse mutuamente deixando bem pouca margem para os ciúmes Além disso numa fase posterior de desenvolvimento vamos nos deparar com a poliandria forma excepcional que exclui em medida ainda maior os ciúmes e que por isso é desconhecida entre os animais Todavia como as formas de matrimônio por grupos que conhecemos são acompanhadas de condições tão peculiarmente complicadas que nos indicam necessariamente a existência de formas anteriores mais simples de relações sexuais e assim em última análise um período de promiscuidade correspondente à passagem da animalidade à humanidade as referências aos matrimônios animais conduzemnos de novo ao mesmo ponto de onde devíamos ter partido de uma vez para sempre Que significam relações sexuais sem entraves Significa que não existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações Já vimos caírem as barreiras dos ciúmes Se algo pôde ser estabelecido irrefutavelmente foi que o ciúme é um sentimento que se desenvolveu relativamente tarde O mesmo acontece com a idéia de incesto Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e mulher como também ainda hoje em muitos povos é lícito o comércio sexual entre pais e filhos Bancroft As Raças Nativas dos Estados da Costa do Pacífico na América do Norte 1875 tomo I testemunha a existência dessas relações entre os kadiakos do Estreito de Behring os kadiakos das cercanias do Alasca e os tinnehs do interior da América do Norte inglesa Letourneau reuniu numerosos fatos idênticos entre os índios chipevas os kukus do Chile os caribes os karens da Indochina e isso deixando de lado o que contam os antigos gregos e romanos a respeito dos partos dos persas dos citas e dos hunos etc Antes da invenção do incesto porque é uma 1 H H Bancroft The Native Races of the Pacific States of North America vols IV Nova York 18751876 N da R 36 invenção e das mais valiosas o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais repugnante que entre outras pessoas de gerações diferentes coisa que ocorre em nossos dias até nos países mais beatos sem produzir grande horror Velhas donzelas de mais de setenta anos casamse se são bastante ricas com jovens de uns trinta anos Mas se despojarmos as formas de família mais primitivas que conhecemos das concepções de incesto que lhes correspondem concepções completamente diferentes das nossas e muitas vezes em contradição direta com elas chegaremos a uma forma de relações carnais que só pode ser chamada de promiscuidade sexual no sentido de que ainda não existiam as restrições impostas mais tarde pelo costume Mas disso não se deduz de modo algum que na prática cotidiana imperasse inevitavelmente a promiscuidade As uniões temporárias por pares não ficam excluídas em absoluto e ocorrem na maioria dos casos mesmo no matrimônio por grupos E se Westermarck o último a negar esse estado primitivo dá o nome de matrimônio a todo caso em que os dois sexos convivem até o nascimento de um pimpolho podese dizer que tal matrimônio podia muito bem verificarse nas condições da promiscuidade sexual sem contradizêla em nada isto é sem contradizer a inexistência de barreiras impostas pelo costume às relações sexuais É verdade que Westermarck parte do pontodevista de que a promiscuidade supõe a supressão das inclinações individuais de tal sorte que sua forma por excelência é a prostituição Pareceme ao contrário que será impossível formar a menor idéia das condições primitivas enquanto elas forem observadas através da janela de um lupanar Voltaremos a falar desse assunto quando tratarmos do matrimônio por grupos Segundo Morgan desse estado primitivo de promiscuidade provavelmente bem cedo formaramse 1 A FAMÍLIA CONSANGUÍNEA a primeira etapa da família Nela os grupos conjugais classificamse por gerações todos os avôs e avós nos limites da família são maridos e mulheres entre si o mesmo sucede com seus filhos quer dizer com os pais e mães os filhos destes por sua vez constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns e seus filhos isto é os bisnetos dos primeiros o quarto círculo Nessa forma de família os ascendentes e descendentes os pais e filhos são os únicos que reciprocamente estão excluídos dos direitos e deveres poderíamos dizer do matrimônio Irmãos e irmãs primos e primas em primeiro segundo e restantes graus são todos entre si irmãos e irmãs e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros O vínculo de irmão e irmã pressupõe por si nesse período a relação carnal mútua 1 1 Em uma carta escrita na primavera de 1882 Marx condena nos mais ásperos termos o falseamento dos tempos primitivos nos Nibelungos de Wagner Onde já se viu que o irmão abrace a irmã como uma noiva A estes deuses da luxúria wagnerianos que no estilo moderno tornam mais picantes suas aventuras amorosas com certa dose de incesto responde Marx Nos tempos primitivos a irmã era esposa e isso era moral Nota de Engels A quarta edição do presente livro Engels acrescentou nesse ponto outra nota sobre o assunto A seguir reproduzimola Um amigo meu francês grande adorador de Wagner não está de acordo com a nota precedente e adverte que já no Ogisdrecka um dos antigos Eddas que serviu de base a Wagner Loki dirige a Freya esta recriminação Abraçaste teu próprio irmão diante dos deuses Do que parece ser possível inferirse que já naquela época estava proibido o casamento entre irmão e irmã O Ogisdrecka no entanto é expressão de uma época em que já estava completamente destruída a fé nos antigos mitos constitui uma simples sátira no estilo da de Luciano contra os deuses Se Loki representando o papel de Mefistófeles dirige ali semelhante recriminação a Freya isso constitui antes um argumento contra Wagner Alguns versos mais adiante Loki diz também a Niordhr Tal é o filho que procriaste com tua irmã Vodh systur thinni gaztu slikam mong Pois bem Niordhr não é um Ase e sim um Vane e na saga dos Inglinga está dito que os casamentos entre irmão e irmã eram praticados no país dos Vanes o que não ocorria entre os Ases Isso tenderia a provar que os Vanes eram deuses mais antigos do que os Ases Em todo caso Niordhr vive entre os Ases em pé de igualdade e a Ogisdrecka é assim uma prova de que no tempo da Exemplo típico de tal família seriam descendentes de um casal em cada uma de cujas gerações sucessivas todos fossem entre si irmãos e irmãs e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros A família consanguínea desapareceu Nem mesmo os povos mais atrasados de que fala a história apresentam qualquer exemplo seguro dela Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é o sistema de parentesco havaiano ainda vigente em toda a Polinésia e que expressa graus de parentesco consanguíneo que só puderam surgir com essa forma de família e somos levados à mesma conclusão por todo o desenvolvimento ulterior da família que pressupõe essa forma como estágio preliminar necessário 2 A FAMÍLIA PUNALUANA Se o primeiro progresso na organização da família consistiu em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas o segundo foi a exclusão dos irmãos Esse progresso foi infinitamente mais importante que o primeiro e também mais difícil dada a maior igualdade nas idades dos participantes Foi ocorrendo pouco a pouco provavelmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos isto é irmãos por parte de mãe a princípio em casos isolados e depois gradativamente como regra geral no Havaí ainda havia exceções no presente século e acabando pela proibição do matrimônio até entre irmãos colaterais quer dizer segundo nossos atuais nomes de parentesco entre primos carnais primos em segundo e terceiro graus Segundo Morgan esse progresso constitui uma magnífica ilustração de como atua o princípio formação das sagas norueguesas o matrimônio entre irmão e irmã não produzia horror algum pelo menos entre os deuses Se se quer desculpar Wagner em lugar de recorrer ao Edda talvez fosse melhor invocar Goethe que na balada O Deus e a bailadeira comete falta análoga relativamente ao dever religioso da mulher de entregarse nos templos rito que Goethe faz assemelharse muito à prostituição moderna Nota de Engels à quarta edição 39 reconhecidos pelo seu sistema no qual há algumas centenas de parentescos diferentes Com esta crescente complicação das proibições de casamento tornaramse cada vez mais impossíveis as uniões por grupos que foram substituídas pela família sindiásmica Neste estágio um homem vive com uma mulher mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens embora a poligamia seja raramente observada por causas econômicas ao mesmo tempo exigese a mais rigorosa fidelidade das mulheres enquanto dure a vida em comum sendo o adultério destas cruelmente castigado O vínculo conjugal todavia dissolvese com facilidade por uma ou por outra parte e depois como antes os filhos pertencem exclusivamente à mãe Nessa exclusão cada vez maior que afeta os parentes consanguíneos do laço conjugal a seleção natural continua a produzir seus efeitos Segundo Morgan o matrimônio entre gens não consanguíneas engendra uma raça mais forte tanto física como mentalmente mesclavamse duas tribos adiantadas e os novos crânios e cérebros cresciam naturalmente até que compreendiam as capacidades de ambas as tribos As tribos que haviam adotado o regime das gens estavam chamadas pois a predominar sobre as mais atrasadas ou a arrastálas com seu exemplo A evolução da família nos tempos préhistóricos portanto consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos círculo que originariamente abarcava a tribo inteira A exclusão progressiva primeiro dos parentes próximos depois dos parentes distantes e por fim até das pessoas vinculadas apenas por aliança torna impossível na prática qualquer matrimônio por grupos como último capítulo não fica senão o casal unido por vínculos ainda frágeis essa molécula com cuja dissociação acaba o matrimônio em geral Isso prova quão pouco tem a ver a origem da monogamia com o amor sexual individual na atual acepção da palavra Provao ainda melhor a prática de todos os povos que se acham nesta fase de seu desenvolvimento Enquanto nas anteriores formas de família os homens nunca passavam 50 por dificuldades para encontrar mulheres e tinham até mais do que precisavam agora as mulheres escasseavam e era necessário procurálas Por isso começam com o matrimônio sindiásmico o rapto e a compra de mulheres sintomas bastante difundidos mas nada além de sintomas de uma transformação muito mais profunda que se havia efetuado Mac Lennan esse escocês pedante transformou por arte de sua fantasia tais sintomas que não passam de simples métodos de adquirir mulheres em diferentes classes de famílias sob a forma de matrimônio por rapto e matrimônio por compra Além do mais entre os índios da América e em outras tribos no mesmo estágio o arranjo de um matrimônio não concerne aos interessados aos quais muitas vezes nem se consulta e sim a suas mães Comumente desse modo ficam comprometidos dois seres que nem sequer se conhecem e de cujo casamento só ficam sabendo quando chega o momento do enlace Antes do casamento o noivo dá presentes aos parentes gentílicos da noiva quer dizer aos parentes desta por parte de mãe excluídos os parentes por parte de pai e o próprio pai e esses presentes são considerados como o preço pelo qual o homem compra a jovem núbil que lhe cedem O matrimônio é dissolúvel à vontade de cada um dos cônjuges Em numerosas tribos contudo como por exemplo entre os iroqueses formouse pouco a pouco uma opinião pública hostil a essas separações em caso de disputas entre os cônjuges intervinham os parentes gentílicos de cada parte e só se esta mediação não surtisse efeito é que se levava a cabo o rompimento permanecendo o filho com a mulher e ficando cada uma das partes livre para casar novamente A família sindiásmica demasiado débil e instável por si mesma para fazer sentir a necessidade ou simplesmente o desejo de um lar particular não suprime em absoluto o lar comunista que nos apresenta a época precedente Mas lar comunista significa predomínio da mulher na casa tal como o reconhecimento exclusivo de uma mãe própria na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai significa alto apreço pelas mulheres isto é pelas mães Uma das idéias 51 mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior média e até em parte superior da barbárie a mulher não só é livre como também muito considerada Artur Wright que foi durante muitos anos missionário entre os iroquesessenekas pode atestar qual é a situação da mulher ainda no matrimônio sindiásmico A respeito de suas famílias na época em que ainda viviam nas antigas casasgrandes domicílios comunistas de muitas famílias predominava sempre lá um clã uma gens e as mulheres arranjavam maridos em outros clãs gens Habitualmente as mulheres mandavam na casa as provisões eram comuns mas ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa podia a qualquer momento verse obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora E era inútil tentar opor resistência porque a casa se convertia para ele num inferno não havia remédio senão o de voltar ao seu próprio clã gens ou o que costumava acontecer com freqüência contrair novos matrimônio em outro As mulheres constituíam a grande força dentro dos clãs gens e mesmo em todos os lugares Elas não vacilavam quando a ocasião exigia em destituir um chefe e rebaixálo à condição de mero guerreiro A economia doméstica comunista em que a maioria das mulheres se não a totalidade é de uma mesma gens ao passo que os homens pertencem a outras gens diferentes é a base efetiva daquela preponderância das mulheres que nos tempos primitivos esteve difundida por toda parte fenômeno cujo descobrimento constituiu o terceiro mérito de Bachofen Posso acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missionários acerca do trabalho excessivo com que se sobrecarregam as mulheres entre os selvagens e os bárbaros não estão de modo algum em contradição com o que acabo de dizer A divisão do trabalho entre os dois sexos depende de outras causas que nada têm a ver com a posição da mulher na sociedade Povos nos quais as mulheres se vêem obrigadas a trabalhar muito mais do que lhes caberia segundo nossa maneira de ver têm freqüentemente muito mais consideração real por elas que os nossos europeus A senhora civilizada cercada de aparentes homenagens estranha a todo trabalho efetivo tem uma posição social bem inferior à mulher bárbara que trabalha duramente e no seio do seu povo vêse respeitada como uma verdadeira dama lady frowa frau senhora e o é de fato por sua própria posição Novas investigações acerca dos povos do noroeste e sobretudo no sul da América que ainda se acham na fase superior do estado selvagem deverão dizernos se o matrimônio sindiásmico substituiu ou não por completo hoje na América o matrimônio por grupos Quanto aos sulamericanos são referidos tão variados exemplos de licença sexual que se torna difícil admitir o desaparecimento completo do antigo matrimônio por grupos Em todo caso ainda não desapareceram todos os seus vestígios Pelo menos em quarenta tribos da América do Norte o homem que se casa com a moça mais idosa tem direito a tomar igualmente como mulheres a todas as irmãs da mesma logo que cheguem à idade própria Isto é um vestígio da comunidade de maridos para todo um grupo de irmãs Dos habitantes da península da Califórnia fase superior do estado selvagem conta Bancroft que têm certas festividades em que se reúnem várias tribos para praticar o intercuro sexual mais promíscuo Com toda a evidência são gens que nessas festas conservam uma vaga reminiscência do tempo em que as mulheres de uma gens tinham por maridos comuns todos os homens de outra e reciprocamente O mesmo costume impera ainda na Austrália Em alguns povos acontece que os anciãos os chefes e os feiticeiros sacerdotes praticam em proveito próprio a comunidade de mulheres e monopolizam a maior parte delas em compensação porém durante certas festas e grandes assembléias populares são obrigados a admitir a antiga posse comum e a permitir que suas mulheres se divirtam com os homens jovens Westermarck 52 págs 32 e 33 dá uma série de exemplos de saturnais 1 desse gênero nas quais ressurge por pouco tempo a antiga liberdade de intercursos sexual entre os hos os santalas os pandchas e os cotaros na Índia em alguns povos africanos etc Westermarck deduz de maneira assaz estranha que estes fatos não constituem restos do matrimônio por grupos cuja existência ele nega e sim restos do período do cio que os homens primitivos tiveram em comum com os animais Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen o da grande difusão da forma de transição do matrimônio por grupos ao matrimônio sindiásmico Aquilo que Bachofen representa como uma penitência pela transgressão de antigos mandamentos dos deuses uma penitência imposta à mulher para ela comprar seu direito à castidade não passa em resumo de uma expressão mística do resgate mediante o qual a mulher se liberta da antiga comunidade de maridos e adquire para si o direito de não se entregar a mais de um homem Esse resgate consiste em deixarse possuir durante um determinado período as mulheres babilônicas estavam obrigadas a entregarse uma vez por ano no templo de Milita 2 outros povos da Ásia Menor enviavam suas filhas ao templo de Anaitis 3 onde durante anos inteiros elas deveriam praticar o amor livre com os favoritos que escolhessem antes de lhes ser concedida permissão para casaremse em quase todos os povos asiáticos de entre o Mediterrâneo e o Ganges há práticas análogas disfarçadas em costumes religiosos O sacrifício de expiação que desempenha o papel do resgate tornase com o tempo cada vez mais ligeiro como nota Bachofen A oferenda repetida a cada ano cede lugar a um sacrifício feito uma única vez ao heterismo das ma 1 Saturnais Festas de massa designadas segundo o deus romano Saturno que se celebravam na antiga Roma em comemoração ao término da semeadura Designação geral para farras desbragadas e comércio sexual promíscuo N da R 2 Milita Deusa babilônica do amor N da R 3 Anaitis Deusa do amor da Antiga Tirana N da R 53 tronas seguese o das jovens solteiras verificase a prática antes do matrimônio ao invés de durante o mesmo e em lugar de abandonarse a todos sem ter o direito de escolher a mulher já não se entrega senão a certas pessoas Direito Materno 1 pág xix Em outros povos não existe esse disfarce religioso entre alguns deles os trácios os celtas etc na antiguidade em grande número de aborígines da Índia nos povos malaios nos ilhéus da Oceania e entre muitos índios americanos hoje as jovens gozam de maior liberdade sexual até contraírem matrimônio Assim acontece sobretudo na América do Sul conforme podem atestálo quantos hajam penetrado um pouco em seu interior De uma rica família de origem índia refere Agassiz Viagem pelo Brasil 2 Boston 1886 pág 226 que tendo conhecido a filha da casa perguntoulhe por seu pai supondo que seria o marido de sua mãe oficial do exército em campanha contra o Paraguai mas a mãe lhe respondeu com um sorriso Não tem pai é filha da fortuna 3 As mulheres índias ou mestiças falam sempre neste tom sem considerarem vergonhoso ou censurável de seus filhos ilegítimos e essa é a regra ao passo que o contrário parece ser a exceção Os filhos amiúde conhecem apenas sua mãe porque todos os cuidados e todas as responsabilidades recaem sobre ela nada sabem a respeito do pai nem parece possa ocorrer à mulher a idéia de que ela ou seus filhos tenham o direito de reclamar dele alguma coisa O que aqui parece assombroso ao homem civilizado é simplesmente a regra no matriarcado e no matrimônio por grupos Em outros povos os amigos e parentes do noivo ou os convidados à celebração das bodas exercem durante o casamento mesmo o direito à noiva por costume imemorial e ao 1 J J Bachofen Das Mutterrecht Stuttgart 1861 N da R 2 L Agassiz A Journey in Brazil Boston 1886 N da R 3 Em português no original alemão Engels traduz a seguir Nota do Tradutor 54 noivo só chega a vez por último depois de todos isso se dava nas ilhas Baleares e entre os augilas africanos na antiguidade e ocorre ainda hoje entre os hareas na Abissínia Há povos ainda em que um personagem oficial chefe da tribo ou da gens cacique xamã sacerdote ou príncipe aquele que representa a coletividade é quem exerce com a mulher que se casa o direito da primeira noite ius primae noctis 1 Apesar de todos os esforços neoromânticos para coonestálo esse jus primae noctis continua existindo em nossos dias como uma relíquia do matrimônio por grupos entre a maioria dos habitantes do território do Alasca Bancroft Tribos Nativas I pág 81 entre os tanus do norte do México op cit pág 584 e entre outros povos e existiu durante toda a Idade Média pelo menos nos países de origem céltica onde nasceu diretamente do matrimônio por grupos em Aragão por exemplo Enquanto em Castela o camponês nunca foi servo em Aragão reinou a servidão mais abjeta até a sentença ou édito arbitral de Fernando o Católico em 1486 documento onde se diz Julgamos e determinamos que os senhores senyors barões supraditos tampouco poderão passar a primeira noite com a mulher que haja tomado de um camponês nem poderão igualmente durante a noite das núpcias depois que a mulher se tenha deitado na cama passar a perna por cima da cama ou da mulher em sinal de sua soberania Nem poderão os supraditos senhores servirse das filhas ou filhos dos camponeses contra a vontade deles com ou sem pagamento Citado segundo o texto original em catalão por Sugenheim A Servidão 2 São Petersburgo 1861 pág 35 Afora isso Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do que ele chama de heterismo ou Sum 1 Direito à primeira noite Na época do feudalismo o direito que tem o senhor feudal à primeira noite com a noiva no casamento de qualquer de seus servos N da R 2 S Sugenheim Geschichte der Aufrebuag der Leibeigenschaft und Horigkeit in Europa bis au die Mitte des neunzehnten Jahrhunderts São Petersburgo 1861 N da R 55 pfzeugung à monogamia realizouse essencialmente graças às mulheres Quanto mais as antigas relações sexuais perdiam seu caráter inocente primitivo e selvático por força do desenvolvimento das condições econômicas e paralelamente por força da decomposição do antigo comunismo e da densidade cada vez maior da população tanto mais envilecedoras e opressivas devem ter parecido essas relações para as mulheres que com maior força deviam ansiar pelo direito à castidade como libertação pelo direito ao matrimônio temporário ou definitivo com um só homem Esse progresso não podia ser devido ao homem pela simples razão que dispensa outras de que jamais ainda em nossa época lhe passou pela cabeça a idéia de renunciar aos prazeres de um verdadeiro matrimônio por grupos Só depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindiásmico é que foi possível aos homens introduzirem a estrita monogamia na verdade somente para as mulheres A família sindiásmica aparece no limite entre o estado selvagem e a barbárie no mais das vezes durante a fase superior do primeiro apenas em certos lugares durante a fase inferior da segunda É a forma de família característica da barbárie como o matrimônio por grupos é a do estado selvagem e a monogamia é a da civilização Para que a família sindiásmica evoluísse até chegar a uma monogamia estável foram necessárias causas diversas daquelas cuja ação temos estudado até agora Na família sindiásmica já o grupo havia ficado reduzido à sua última unidade à sua molécula biatômica um homem e uma mulher A seleção natural realizara sua obra reduzindo cada vez mais a comunidade dos matrimônios nada mais havia a fazer nesse sentido Portanto se não tivessem entrado em jogo novas forças impulsionadoras de ordem social não teria havido qualquer razão para que da família sindiásmica surgisse outra forma de família Mas tais forças impulsionadoras entraram em jogo Deixemos agora a América terra clássica da família sindiásmica Não há indícios que nos permitam afirmar que nela se tenha desenvolvido alguma forma superior de família que 56 nela tenha existido a monogamia estável em qualquer tempo ou lugar antes do descobrimento e da conquista O contrário aconteceu no Velho Mundo Aqui a domesticação de animais e a criação do gado haviam aberto mananciais de riqueza até então desconhecidos criando relações sociais inteiramente novas Até a fase inferior da barbárie a riqueza duradoura limitavase pouco mais ou menos à habitação às vestes aos adornos primitivos e aos utensílios necessários para a obtenção e preparação dos alimentos o barco as armas os objetos caseiros mais simples O alimento devia ser conseguido todo dia novamente Agora com suas manadas de cavalos camelos asnos bois carneiros cabras e porcos os povos pastores que iam ganhando terreno os ários no indiano País dos Cinco Rios e no vale do Ganges assim como nas estepes de Oxus e Jaxartes na ocasião esplendidamente irrigadas e os semitas no Tigre e no Eufrates haviam adquirido riquezas que precisavam apenas de vigilância e dos cuidados mais primitivos para reproduzirse em proporção cada vez maior e fornecer abundantíssima alimentação de carne e leite Desde então foram relegados a segundo plano todos os meios anteriormente utilizados a caça que em outros tempos era uma necessidade transformouse em passatempo A quem no entanto pertenceria essa riqueza nova Não há dúvida de que na sua origem pertenceu à gens Mas bem cedo deve terse desenvolvido a propriedade privada dos rebanhos É bem difícil dizer se o autor do chamado primeiro livro de Moisés considerava o patriarca Abraão proprietário de seus rebanhos por direito próprio por ser o chefe de uma comunidade familiar ou em virtude de seu caráter de chefe hereditário de uma gens Seja como for o certo é que não devemos imaginálo como proprietário no sentido moderno da palavra É indubitável também que nos umbrais da história autenticada já encontramos em toda parte os rebanhos como propriedade particular dos chefes de família com o mesmo título que os produtos artísticos da barbárie os uten 57 Família natureza e cultura Familianatureza e culturaindd 1 211113 0906 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA REITORA Dora Leal Rosa VICEREITOR Luiz Rogério Bastos Leal EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA DIRETORA Flávia Goulart Mota Garcia Rosa CONSELHO EDITORIAL Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ ElHani Cleise Furtado Mendes Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria Vidal de Negreiros Camargo Apoio Familianatureza e culturaindd 2 211113 0906 Miriã Alves Ramos de Alcântara Elaine Pedreira Rabinovich Giancarlo Petrini Organizadores Salvador Edufba 2013 Família natureza e cultura Coleção Família Contemporânea cenários de uma transição Familianatureza e culturaindd 3 211113 0906 2013 autores Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA Feito o depósito legal Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 em vigor no Brasil desde 2009 REVISÃO Tatiana de Almeida Santos NORMALIZAÇÃO Mariclei dos Santos Horta CAPA PROJETO GRÁFICO e EDITORAÇÃO Rodrigo Oyarzábal Schlabitz SIBI Sistema de Bibliotecas da UFBA EDUFBA Rua Barão de Jeremoabo sn Campus de Ondina 40170115 SalvadorBA Brasil Telfax 71 32836164 wwwedufbaufbabr edufbaufbabr Editora filiada a Família natureza e cultura cenários de uma transição Miriã Alves Ramos de Alcântara Elaine Pedreira Rabinovich Giancarlo Petrini Organizadores Salvador EDUFBA 2013 220 p Coleção família contemporânea ISBN 9788523211264 1 Família Aspectos sociais 2 Natureza 3 Cultura 4 Pais e filhos 5 Abor dagem interdisciplinar do conhecimento 6 Nascimento 7 Morte 8 Educação ambiental I Alcântara Miriã Alves Ramos de II Rabinovich Elaine Pedreira III Petrini Giancarlo 1945 IV Série CDD 3068 Familianatureza e culturaindd 4 211113 0906 Sumário 7 Apresentação Cenários de uma Transição Miriã Alves Ramos de Alcântara Elaine Pedreira Rabinovich Giancarlo Petrini Capítulo 1 13 Família entre natureza e cultura Giancarlo Petrini Capítulo 2 41 Pessoa entre natureza e cultura na perspectiva da modernidade Marina Massimi Capítulo 3 57 Nascimento e morte na família originalidade e evidência da existência humana Miriã Alves Ramos de Alcântara Capítulo 4 71 Natureza e cultura há alguma coisa que está dentro do homem que não esteve fora Há alguma coisa que está fora do homem que não esteve dentro Elaine Pedreira Rabinovich Capítulo 5 77 Família e cuidado parental no ser humano um olhar biopsicossocial Ana Maria Almeida Carvalho Vera Silvia Raad Bussab Elaine Pedreira Rabinovich Capítulo 6 127 Família na filosofia contemporânea o debate natureza e cultura Francesco Botturi Familianatureza e culturaindd 5 211113 0906 Capítulo 7 151 Interdisciplinaridade e estudos sobre família como instituição natural Riccardo Prandini Capítulo 8 163 Família líquida desafios para as políticas sociais Marcos Roberto do Nascimento Capítulo 9 191 Família cultura e educação ambiental alfabeto intergeracional Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima Soraya Carvalhedo Honorato 217 Sobre os autores Familianatureza e culturaindd 6 211113 0906 7 Apresentação Cenários de uma Transição Miriã Alves Ramos de Alcântara Elaine Pedreira Rabinovich Giancarlo Petrini Os artigos reunidos neste livro têm como foco o entrelaça mento entre natureza e cultura no debate sobre a família Eles consti tuem um conjunto de reflexões orgânicas entre pesquisadores oriun dos de centros de pesquisa avançados como a Universidade Católica de Milão a Universidade de Bolonha a Universidade Federal de Mi nas Gerais UFMG a Universidade de São Paulo USP e a Universida de Católica do Salvador UCSal dedicados a analisar em perspectiva comparada o fundamento das transformações na estrutura familiar contemporânea no que tange à constituição de seus membros e dos vínculos que são tecidos em seu interior A problemática relativa à família atual apresenta o cenário que requer dos estudiosos das Ciên cias Humanas e Sociais Aplicadas o debruçarse sobre esse conjunto de mudanças sobretudo considerando as dimensões naturais e cul turais da família A crise social promovida pela queda do Welfare State e a ten dência do Estado a delegar à família o ônus de cuidados considerados até então como eixo de políticas públicas juntamente com o declínio das ideologias que consideravam a família como lugar de opressão e mecanismo de reprodução das desigualdades sociais conferem apoio à tese de que a organização familiar é uma manifestação exclusiva da cultura Familianatureza e culturaindd 7 211113 0906 8 Os estudos avançados dos autores desta publicação se alinham a vozes do universo científico que tendem a olhar a família com mais acuidade Busca repensar uma definição unívoca da família Essa de cisão teóricometodológica decorre do fato de que se destacam nas pesquisas sociais e humanísticas importantes conexões e interfaces a respeito da família considerandoa lócus fundamental da constru ção dos laços societários como centro de produção da estruturação psíquica básica como unidade social de pertencimento fatores que parecem funcionar como pêndulo entre uma dimensão cultural que caracteriza a família e a dimensão de natureza que a constitui Por tanto uma problematização relevante da família contemporânea a partir da Saúde Coletiva e do Direito da Educação à Comunicação da Antropologia à História das Ciências Políticas à Filosofia solicita uma atenção que integre elementos naturais e culturais necessaria mente presentes na família O capítulo que inaugura a coletânea de autoria de Giancarlo Petrini intitulase Família entre natureza e cultura Com o objetivo de analisar a problemática relativa às relações entre a natureza e a cultu ra especialmente no âmbito da família partese da hipótese de que o moderno desenvolvimento técnico e científico alterou as relações en tre natureza e cultura com consequências relevantes na configuração da realidade humana e da convivência social A manipulação genética ao lado da concepção de ilimitada autonomia individual gera expec tativas em vista de consequências pouco estudadas O autor revisita as obras de Mill Jonas e Habermas que indicam o desenvolvimento da eugenética além dos campos técnicos envolvidos a ocupar lugar central no modo de conceber e organizar a existência remetendo a questões antropológicas mais amplas No capítulo Pessoa entre natureza e cultura na perspectiva da modernidade Marina Massimi trata da polarização entre natureza e cultura no que diz respeito às conceituações de pessoa na moderni dade e suas consequências na psicologia moderna e contemporânea Esta discussão apoiase nas contribuições acerca do desenvolvimento Familianatureza e culturaindd 8 211113 0906 9 do universo cultural da Idade Moderna ocidental elaboradas por al guns autores da filosofia contemporânea como Guardini Husserl Horkheimer Arendt Zambrano Coloca também a necessidade atual de uma mais adequada compreensão e integração destes dois polos e de suas articulações para proporcionar uma conceituação da pessoa que integre efetivamente todas as dimensões da experiência humana A reflexão acerca dos processos de nascimento e morte na famí lia a partir da psicologia do desenvolvimento é o foco do capítulo de autoria de Miriã Alves Ramos Alcântara intitulado Nascimento e morte na família originalidade e evidência da existência humana Nascimento e morte são processos marcantes do início e do fim da existência hu mana que suscitam indagações acerca do sentido do viver mobilizando tentativas de resposta em indivíduos e grupos de todas as culturas e de todos os períodos da história Na Psicologia a pergunta sobre o sen tido da existência humana está no cerne das correntes teóricas mais influentes com reflexo nas investigações acerca da origem e evolução do comportamento A antiga discussão sobre a origem das caracterís ticas pessoais longe de oferecer respostas definitivas deu lugar a ver tentes que apoiam sua natureza intrínseca em contraposição àquelas que defendem a influência do ambiente com forte base interacionista No estudo da família nascimento e morte são processos agregadores dos sujeitos envolvidos e os insere na percepção do pertencimento e na iminência do enfrentamento de rupturas Em outro sentido tais processos envolvem mecanismos que ultrapassam a decisão do ser hu mano incapaz de interferir na epigênese da gestação e da morte Por outro lado os modos de viver a gravidez e o parto a separação e o luto são fortemente marcados pela cultura e configuram motivações na aco lhida ou repulsa desses processos Elaine Pereira Rabinovich no capítulo intitulado Natureza e cultura há alguma coisa que está dentro do homem que não esteve fora Há alguma coisa que está fora do homem que não esteve dentro de safia o leitor a considerar o debate natureza e cultura com base em duas hipóteses A primeira delas referese à anterioridade cultural das Familianatureza e culturaindd 9 211113 0906 10 características e potenciais humanos Esta se contraporia e ao mes mo tempo complementaria a segunda hipótese de que todos os ele mentos da vida social teriam sido desejados e ativamente planejados pelo ser humano A partir de uma conversa com Ana Maria Almeida Carvalho a autora relata como este tema se tornou desatualizado na psicologia de desenvolvimento devido a uma compreensão ampliada dos significados de natureza e cultura Esta compreensão implica em uma necessária indissociabilidade de ambos os termos dado a cultura ser o ambiente natural do humano É apresentado de modo sumário o pensamento do geógrafo humanista e fenomenólogo Berque 2010 para quem as trajetividades sujeitocultura e objetonatureza são substituídos por um terceiro termo o encontro entre ambos Ana Maria Almeida Carvalho Vera Silvia Raad Bussab e Elaine Pereira Rabinovich autoras do capítulo Família e cuidado parental no ser humano um olhar biopsicossocial examinam questões a respeito das bases biológicas da família e do cuidado parental humanos a par tir de um olhar que tenta recuperar o que Morin 1979 chamou de unidade biopsicossocial do ser humano Reexaminam a concepção de família como instituição culturalmente arbitrária sem qualquer fundamento biológico para concluir pelo reconhecimento das bases biológicas da família e do cuidado parental compartilhado apontan do pressões seletivas e soluções adaptativas que operaram no decorrer da evolução na criação dessas bases biológicas mecanismos e proces sos biopsicológicos que constituem essas bases e sua suscetibilidade flexibilidade em relação a contextos ecológicos e históricoculturais Concluem que natureza e cultura não se opõem são indissociáveis A cultura é parte intrínseca da biologia humana e indispensável para sua viabilidade Francesco Botturi no sexto intitulado Família na filosofia con temporânea o debate natureza e cultura apresenta através do raciocí nio dialético as condições culturais que favorecem a conceituação e a compreensão dos problemas referentes à família bem como a ex periência vivida em família Para alcançar este objetivo o autor pro Familianatureza e culturaindd 10 211113 0906 11 blematiza as principais objeções culturais que repercutem sobre uma visão de família como uma realidade sem identidade própria e sem nenhum ideal Estas posturas estão na base de uma posição cultural substancialmente antifamília Riccardo Prandini propõe o desafio da reflexão interdiscipli nar sobre natureza dana família tomando o problema da viabilidade de conectar natureza e família considerando a divisão contemporâ nea do trabalho científico que pressupõe abordagens e metodologias bem diferenciadas No capítulo de sua autoria intitulado Interdiscipli naridade e estudos sobre família como instituição natural traça a abor dagem epistemológica da família e sua institucionalização indicando problemas da concepção de família contingente e mutável marcada pelo caráter voluntaristico na qual o vínculo e a dependência tor namse fenômenos que reduzem o potencial humano No capítulo intitulado Família líquida desafios para as políticas sociais Marcos Roberto do Nascimento apresenta desafios para polí ticas sociais de família diante das mudanças que ocorrem no interior da família Tendo em vista as limitações no campo teórico decorren tes da complexidade e fluidez do fenômeno recorre à noção de famí lia líquida na análise das implicações teóricas para a formulação de políticas sociais de família no Brasil Encerrando a coletânea o nono capítulo intitulado Família cultura e educação ambiental alfabeto intergeracional discute natureza e cultura no âmbito da família avança para a questão da educação ambiental considerada sob o viés da dimensão intergeracional de cui dado com o ambiente Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima e Soraya Carvalhedo Honorato apresentam um programa educacional para o desenvolvimento da cidadania ambiental que envolveu famílias resi dentes em uma área de proteção ambiental no interior do estado da Bahia A pesquisa constitui um estudo de caso a partir do Programa de Educação Ambiental EA envolvendo diretamente 1296 pessoas na Área de Proteção Ambiental APA do Pratigi Para a proposta edu cacional com 388 famílias foi assimilada a direção de Costa 1993 Familianatureza e culturaindd 11 211113 0906 12 que afirma constituirse o processo educacional em criação de espaços para que o educando situado organicamente no mundo empreenda ele próprio a construção de seu ser em termos individuais e sociais Referências ARENDT Hannah A condição humana Rio de Janeiro Forense Universitária 1999 BERQUE Augustin Logique des lieux de lecoumène Communication v 87 n 87 p 1726 2010 COSTA Antonio É possível mudar a criança o adolescente e a família na política social do município São Paulo Malheiros 1993 HABERMAS Jürgen Il futuro della natura umana I rischi di una genetica liberale Torino Einaudi 2002 GUARDINI Romano O fim da idade moderna Lisboa Edições 70 1995 HORKHEIMER Max Eclipse da razão Torino Einaudi 1969 HUSSERL Edmund La crisi delle sicenze europee e la fenomenologia trascendentale Milano Il Saggiatore Net 2002 JONAS Hans Il principio responsabilitá unetica per la civiltá tecnologica Torino Einaudi 2009 MILL John Stuart Saggi sulla religione Milano Feltrinelli 2006 ZAMBRANO Maria Pessoa e democracia Lisboa Fim do século 2004 MORIN Edgar O enigma do homem para uma nova Antropologia São Paulo Jorge Zahar 1979 Familianatureza e culturaindd 12 211113 0906 13 Capítulo 1 Família entre natureza e cultura Giancarlo Petrini Introdução O presente capítulo tem como objetivo estudar a problemáti ca relativa às relações entre a natureza e a cultura especialmente no âmbito da família O moderno desenvolvimento técnico e científico está mudando as relações entre natureza e cultura com consequên cias relevantes na configuração da realidade humana e da convivên cia social Os poderes extraordinários das biotecnologias atualmente disponíveis para alterar situações dadas e a difusa mentalidade que reivindica uma ilimitada autonomia dos indivíduos para realizarem suas vontades geram entusiasmos apaixonados e grandes temores por causa de possíveis consequências danosas e efeitos colaterais não previstos Cabe ao estudioso elucidar o significado as implicações as repercussões dessas atitudes para que os indivíduos bem como as instituições que estão envolvidas na elaboração das escolhas e na sua regulamentação jurídica possam dispor não somente de informações técnicas mas também de critérios que elucidem questões éticas e hu manas envolvidas Com efeito as operações de bioengenharia sobre o corpo põem em discussão significados que vão muito além dos cam Familianatureza e culturaindd 13 211113 0906 14 pos técnicos envolvidos antes ocupam um lugar central no modo de conceber e organizar a existência remetendo a questões antropoló gicas mais amplas Por isso fazse necessária uma compreensão ade quada do horizonte antropológico e social no qual se inscrevem essas práticas e da relevância das questões em jogo Afinal de contas é inevitável estabelecer certa analogia entre a atual etapa de desenvolvimento das biotecnologias e o processo de in dustrialização quando a capacidade técnica não encontrava limites à sua aplicação em busca de grandes lucros Foi assim que florestas se tornaram desertos rios tiveram suas águas envenenadas e a atmosfera ficou poluída Foram necessários cerca de 200 anos antes que começas sem a serem aceitos limites ao poder das tecnologias Antes que certa sensibilidade ecológica começasse a difundirse prevaleceram atitudes predatórias que ainda no presente provocam grandes catástrofes Por isso falase muito já de Ecologia Humana como um campo de empenho político e social destinado a cuidar do que é especificamen te humano no homem e na mulher Isto para que em analogia com a Ecologia da natureza física e animal o caminho do ser humano não seja apenas determinado pelas possibilidades técnicas e pelas expecta tivas de lucro mas seja a razão e a liberdade em busca do bem comum A problemática aqui enfrentada constitui o ponto de encon tro entre dados próprios do progresso científico técnico e reflexões das Ciências Humanas que em diversas etapas históricas procuram elucidar aspectos humanos envolvidos Não interessa ao presente es tudo entrar no específico do debate filosófico mas lançar mão de contribuições importantes dadas pela filosofia procurando ampliar o horizonte da razão para compreender melhor graças à prática da interdisciplinaridade aspectos da realidade que sem essa abertura poderiam permanecer na sombra Para estudar as etapas mais significativas do percurso da rela ção entre a natureza e a cultura e suas interações em contexto familiar recorreuse a obras de John Stuart Mill Hans Jonas e Jürgen Haber mas além de outros autores que contribuem para o diálogo Familianatureza e culturaindd 14 211113 0906 15 De Mill 2006 será analisado principalmente o ensaio A natu reza escrito nos anos 50 do século XIX publicado em seguida junto com outros dois ensaios sobre o teísmo e a respeito da utilidade da religião com o título Saggi sulla religione O autor nasceu em Londres em 1806 e era filho do filósofo e economista inglês James S Mill Cresceu nos ambientes cultos da sociedade inglesa caracterizada pela forte adesão à crítica iluminista onde conheceu entre outros Ricardo e Bentham de quem apreciou a teoria do utilitarismo orientado para a busca da maximização da feli cidade Entre as numerosas obras que escreveu aqui interessa recor dar Utilitarismo MILL 2000 Ensaio sobre a liberdade MILL 1991 e o Saggi sulla religione MILL 2006 do qual faz parte A natureza Tais obras contribuem para a elaboração da concepção de autonomia do sujeito um dos principais interesses do autor Hans Jonas nasceu quase 100 anos depois na Alemanha onde teve mestres ilustres como Edmund Husserl Martin Heidegger Ru dolf Bultmann Hebreu ativista no movimento sionista emigrou da Alemanha quando o nacionalsocialismo chegou ao poder nos anos 30 do século passado É possível que a experiência da precariedade da vida que se manifestou dramaticamente durante a Grande Guerra o tenha levado a pesquisar o organismo vivente e a buscar O princí pio responsabilidade uma ética para a civilização tecnológica JONAS 2009 criticando o caráter messiânico de certa maneira de entender o progresso técnico e científico É particularmente importante na sua construção filosófica O princípio vida fundamentos para uma biolo gia filosófica Jürgem Habermas nasceu em 1929 sendo adolescen te enquanto ocorria a Segunda Guerra Mundial Depois dos estudos de filosofia tornouse assistente de Adorno a Frankfurt Por causa de uma divergência com Horkheimer que deveria ser relator de sua pesquisa de pósdoutorado em 1958 mudouse para Marburg Voltou a Frankfurt em 1964 para ocupar a cátedra de filosofia e sociologia deixada livre por Horkheimer Habermas pertence à segunda geração da Escola da Teoria Críticas de Frankfurt Menos pessimista a respeito Familianatureza e culturaindd 15 211113 0906 16 das possibilidades da razão do que os seus predecessores ele conside ra que a modernidade não é uma etapa superada da história mas um projeto ainda não plenamente realizado Manteve relevante presença no debate público por ocasião de eventos importantes da atualidade Por causa disso assim como Jonas em 1987 ele ganhou o Prêmio para a Paz dos Livreiros alemães logo depois do dia 11 de setembro de 2001 Em seguida escreveu suas considerações sobre alguns pro blemas de biotecnologia publicando O futuro da natureza humana HABERMAS 2002 Por fim procurase superar a contraposição entre natureza e cultura para indicar a inevitável convergência entre processos e fenô menos próprios do organismo na sua dimensão biológica e a liberda de e a razão do ser humano Estes podem interagir de maneiras dis tintas a depender das opções de valores que orientam a conduta com consequências relevantes na ordem prática configurando diferentes identidades e individualidades Natureza e cultura da veneração dos antigos ao domínio dos modernos Durante milênios desde os tempos da préhistória até os albo res da sociedade moderna a natureza suscitava sentimentos de medo e de veneração A partir da renascença e da ciência moderna carac terizada pela observação e pela verificação dos fenômenos através da experimentação a natureza passou a ser estudada num grande esforço de compreensão Mais recentemente depois que o iluminismo e o posi tivismo reduziram a influência da tradição judaico cristã na cultura do minante foi possível avançar na dominação da natureza subjugandoa para submetêla aos próprios interesses1 Já Descartes 1984 anteci 1 Recordamos o Cântico das criaturas de São Francisco de Assis exemplo típico de uma pos tura de contemplação diante da natureza percebida não como material a ser aproveitado de acordo com sua utilidade econômicoprodutiva mas como sinal que remete ao Mistério Criador Familianatureza e culturaindd 16 211113 0906 17 pandose ao espírito dos novos tempos afirmava que agora os homens querem tornarse mestres e possuidores da natureza Na língua grega a natureza é indicada com a palavra physis de significação abrangente indica a natureza física mas também sua origem seu fundamento sua destinação sua regularidade KOIKE 1999 O homem antigo ficava admirado cheio de maravilha e ao mes mo tempo de temor reverencial diante de fenômenos da natureza que se apresentavam como um extraordinário poder ou uma impressio nante beleza A natureza suscitava perguntas a respeito da origem do destino do significado de todas as coisas e de maneira especial do ser humano A palavra cosmos indicava uma ordem imperscru tável que abarcava desde o movimento dos astros até a vontade dos homens e dos deuses fonte de harmonia e de justiça mas também de um destino que reinava sobre todas as coisas e que poderia ser trágico Diante do espetáculo da natureza o espanto inicial traduzse em perguntas intrigantes que estão na origem da filosofia isto é do movimento da razão que aos poucos foi substituindo as antigas visões míticas No livro Locke e o direito natural Bobbio 1998 referindose à classificação das ciências feita por Aristóteles afirma que a categoria de natureza abrange tudo aquilo que não é produzido pelo ser huma no isto é tudo que não depende do agir humano De um lado então está a natureza isto é o conjunto das coisas que não dependem do ser humano e que são aceitas como necessidades Do outro as coisas que existem porque foram feitas pelo homem e por isso podem ser desfeitas Foram elaborados a partir disso conceitos antitéticos entre natureza e cultura técnica arte ampliandose em seguida a dicoto mia entre natureza e costumes ou normas isto é entre natureza e convenções As regularidades observadas na natureza foram compreendi das como leis que expressavam a ordem racional da natureza à qual foi atribuído um valor normativo Viver de acordo com a natureza foi reconhecido como respondente às exigências éticas Familianatureza e culturaindd 17 211113 0906 18 Ao longo da Idade Média a natureza era considerada como resultado da inteligência e da potência criadora de Deus relembra ainda Bobbio 1998 Nesse contexto compreendiase o direito natu ral como a lei inscrita por Deus no coração dos homens ou como a lei revelada nos textos sagrados mas também a lei comunicada aos homens por meio da razão A partir do início da era moderna a natureza deixou de ser sinal de Outro do Mistério Criador e não demorou muito para deixar também de ser considerada como o modelo normativo que aconselha va a viver segundo a natureza Foi John Stuart Mill iluminista inglês famoso pelo estudo sobre o individualismo que nos anos 50 do século XIX escreveu um ensaio so bre a natureza Ele deu uma densa argumentação para retirar do concei to de natureza significados que não eram funcionais ao novo estágio do desenvolvimento técnicocientífico e produtivo que não correspondiam à perspectiva de expansão da autonomia do homem diante de realidades externas a ele de acordo com o ideal iluminista da emancipação Ele afirma que com o seu ensaio quer indagar acerca da verdade das teorias que fazem da natureza o banco de prova do justo e do injusto do bem e do mal ou que de qualquer modo ou medida atribuem mérito e aprovação ao seguir imitar e obedecer a natureza MILL 2006 p 19 Mill 2006 quer demonstrar a inconsistência da exortação viver de acordo com a natureza que atravessou séculos desde os tempos présocráticos até época recente Digase logo que o autor teve pleno êxito Ele chega à conclusão que não se pode tomar a Natureza como referência moral Notese que Mill 2006 ao tomar uma representação da natu reza que atravessa diferentes épocas históricas e culturas não se dá ao trabalho de compreender os significados que essa representação tinha em cada contexto Na realidade ele limitase a comparar a ex pressão que quer criticar com a representação mecanicista da nature za Por outro lado o ser humano aparece na obra de Mill ora como parte da natureza ora como contraposto a ela Familianatureza e culturaindd 18 211113 0906 19 Esta breve obra de Mill 2006 sobre a natureza interessa como documentação de um passo decisivo no percurso que levou à mudan ça substantiva da relação do ser humano com a natureza de venera ção e respeito a aproveitamento O que podemos fazer é somente tirar vantagem para os nossos objetivos particulares das propriedades que encontramos dadas na natureza MILL 2006 p 1516 Os des dobramentos sucessivos da postura elaborada pelo autor foram muito além do que ele auspiciava Em primeiro lugar o ensaio quer justificar a inversão da ten dência de seguir a natureza ainda dominante em sua época apontan do para a possibilidade de estudar a natureza não mais para indagar o significado dos fenômenos observados mas para compreender mo dernamente a utilidade dos mesmos Se o inútil preceito de seguir a natureza fosse mudado no preceito de estudar a natureza de conhecer e prestar atenção às pro priedades das coisas com as quais devemos lidar enquanto estas propriedades possam favorecer ou impedir certa finalidade nós te ríamos alcançado o primeiro princípio de toda ação inteligente ou melhor teríamos chegado à definição da ação inteligente mesma MILL 2006 Em segundo lugar o autor quer argumentar contra o jusna turalismo isto é contra a afirmação de uma lei natural como critério ideal de justiça superior à vontade de qualquer legislador por apresen tar critérios independentes da força e do poder político2 Com efeito no século de Mill ainda era vivo o debate entre jusnaturalismo e po sitivismo jurídico que acabou por afirmarse e prevalecer Este último proclama a validação de normas jurídicas não porque correspondem à lei natural mas porque são promulgadas por órgão legislativo legi timamente constituído e dotadas de força de coerção graças ao poder estatal que impõe sanções a quem não as observar 2 Para compreender o debate a respeito do Direito Natural revigorado depois da Segunda Grande Guerra BOBBIO 1998 Familianatureza e culturaindd 19 211113 0906 20 Mill 2006 p 1718 afirma que no seu tempo já não eram mui tos os que recorriam à natureza para deduzir regras de ação com precisão jurídica e com a tentativa de tornálas aplicáveis a qualquer humana intervenção Todavia ele observa que quando algo pensa mento ou ação é considerado como segundo a natureza adquire uma forte validação e viceversa quando algo é declarado contrário à natureza é recusado e rejeitado Aliás o termo contra a natureza não deixou de ser um dos epítetos mais injuriosos Mill 2006 identifica dois modos principais de compreen der a natureza o primeiro se refere a todos os poderes existentes quer no mundo exterior quer no interior e tudo o que acontece por meio desses poderes Nesse sentido também a volição que proje ta a inteligência que organiza e a força muscular que executa estes movimentos constituem eles mesmos poderes da natureza MILL 2006 p 16 Mas noutro sentido ao qual Mill se refere no seu en saio natureza indica não tudo o que acontece mas somente o que acontece sem a obra ou sem a obra voluntária e intencional do ho mem MILL 2006 p 16 Rapidamente o autor chega a delinear com clareza seu ponto de vista que estava em sintonia com as expectativas e as exigências do capitalismo emergente isto é do contexto cultural e político no qual vivia A verdadeira finalidade e objeto da ação é exatamente alterar e melhorar a natureza afirma ele afinal se o artificial não é me lhor do que o natural que escopo tem todas as artes da vida MILL 2006 p 17 Em seguida elogia algumas obras da engenharia que na época deviam suscitar assombro Diz que todos admiram a constru ção de pontes que unem o que a Natureza havia separado o trabalho de bonificar pântanos naturais desviar raios com pararaios furar poços trazer à luz do dia o que a natureza tinha sepultado em suas profundidades construir diques para conter a violência das águas e margens de rios para evitar inundações Mais importante que louvar essas proezas é reconhecer que as vias da natureza devem ser conquistadas e não obedecidas que seus poderes estão muitas vezes Familianatureza e culturaindd 20 211113 0906 21 diante do homem em posição inimiga que ele deve arrancarlhes me diante a força e o engenho o pouco que pode para o próprio uso MILL 2006 p 24 Estas atitudes sim merecem aplausos assevera Mill 2006 A admiração e o louvor das capacidades que extraem da nature za benefícios para conduzir de maneira mais humana e digna sua exis tência são na realidade reprovações da natureza constituem uma ad missão de sua imperfeição que é tarefa e mérito do homem esforçarse continuamente para corrigir e mitigar MILL 2006 p 24 Mill 2006 afirma que as tentativas de interferir nos proces sos da natureza em vista de melhorar as condições de vida para os ho mens sempre foram vistas com suspeita por parte das religiões Em contextos politeístas essas atividades eram consideradas ofensivas aos seres sobrenaturais aos quais era atribuído o governo da natureza e mais tarde no monoteísmo ofendiam o Ser onipotente e criador do qual dependeria o curso da natureza Ele cuida de rebater a posição dos que consideram ímpia qual quer tentativa de exercitar um poder sobre a natureza como usurpa ção do poder divino mesmo notando que se tratava de uma tendência em franca diminuição Mill 2006 critica a tendência a considerar os esquemas da natureza como modelos a serem imitados por se tratar de obra divina e portanto perfeita Em seguida inverte a posição e convida as pessoas religiosas a orgulharse das intervenções humanas sobre a natureza para tornála benéfica e justa Pois sem essa ação a ordem da natureza expressa injustiça e maldade e o homem na sua esfera limitada deveria fazer uso de justiça e de bondade para tentar corrigir suas imperfeições MILL 2006 p 27 A inversão da postura humana diante da natureza exige que o homem moderno se despoje dos sentimentos de admiração e de maravilha diante de fenômenos grandiosos da natureza Um ciclone um precipício nas montanhas o deserto o ocea no quer seja ele calmo ou em tempestade o sistema solar e as gran des forças cósmicas que o mantém unido o firmamento ilimitado e Familianatureza e culturaindd 21 211113 0906 22 para uma mente cultivada cada estrela excitam sentimentos que fa zem parecer tão insignificantes toda a potência e os empreendimen tos humanos A uma mente imersa nestes sentimentos ter um olhar crítico sobre coisas tão superiores a ele ou ousar medirse contra a grandiosidade do universo parece presunção intolerável por parte de uma criatura tão mesquinha como o homem MILL 2006 No entanto no processo de afirmação da racionalidade ilu minista a admiração o temor e a reverência para com a natureza devem ser demolidos e substituídos por postura mais adequada à disponibilidade de capacidades técnicas e científicas de intervenção que não podem ser bloqueadas ou inibidas por sentimentos irra cionais Afinal de contas argumenta Mill 2006 matar que é o ato mais criminoso que um ser humano possa cometer é o que a natu reza realiza com cada um e muitas vezes depois de grandes tortu ras e sofrimentos como somente os maiores monstros às vezes fizeram A natureza empala os indivíduos os racha ao meio como a roda da tortura os joga como alimento a bestas ferozes os queima vivos os lapida com pedras como os primeiros mártires cristãos os faz morrer de fome ou de frio os envenena rápida ou lentamente além de guardar ainda outra centena de tipos horrendos de morte MILL 2006 p 29 E a natureza faz isto com a maior indiferença e desprezo para com a qualidade de suas vítimas exterminando os homens mais justos juntamente com os piores sem importarse de eliminar pessoas das quais dependem o bemestar e a esperança de muitas pessoas Em suma a anarquia e o reino do Terror são superados em injustiça ruína e morte pelos furacões e pelas pesti lências MILL 2006 p 30 Mill 2006 reconhece que o avanço da racionalidade vai cor rigindo os exageros de sentimentos devotos ou poéticos e as criatu ras humanas racionais religiosas ou não se insurgem para comba ter os males provocados pela natureza e nisto cada geração supera a anterior contribuindo dessa maneira para o aprimoramento da civilização Familianatureza e culturaindd 22 211113 0906 23 Mill 2006 p 39 como homem que viveu na época vitoriana sofrendo inevitavelmente sua influência afirma que nada de verda deiramente precioso existe no homem natural a não ser suas capacidades elas constituem um inteiro mundo de possibilidades to das dependentes para serem realizadas de uma disciplina eminente mente não natural A vida não poderia proceder se não se admitisse que os impulsos devem ser controlados e que a razão deve dirigir as nossas ações Uma natureza humana melhor é fruto da educação e do exercício afirma Mill 2006 de acordo com escolhas racionais Sem esse treinamento até mesmo os impulsos mais positivos porque necessários à preservação dos homens tornariam a vida sobre a terra uma aflição por demais semelhante a tirania e a violência própria do mundo animal Nesse sentido os sentimentos mais elevados dos quais seja capaz a humanidade tornamse uma segunda natureza mais for te da primeira não tanto orientada a dominar a natureza originária quanto a absorvêla em si mesma MILL 2006 p 44 Esta natureza artificialmente criada é a única que é recomendável seguir No que se refere a natureza humana bem como a natureza das outras coisas o dever do ser humano não é seguila mas melhorála No final do ensaio Mill 2006 chega à conclusão que seguir a natureza erigindo a modelo das próprias ações voluntárias o curso espontâneo das coisas é simultaneamente irracional e imoral Irra cional porque todas as ações humanas têm como finalidade alterar o curso espontâneo da natureza visando condições melhores de exis tência imoral porque quem tentasse imitar no seu modo de agir o curso natural das coisas seria considerado o pior dos homens O au tor conclui que o que existe de bom é fruto do esforço dos homens e é seu dever trabalhar para corrigir o curso natural da natureza e conduzir a parte dela sobre a qual é possível exercitar um controle a tornarse mais conforme a um elevado nível de justiça e de bondade MILL 2006 p 52 Familianatureza e culturaindd 23 211113 0906 24 Possibilidades tecnológicas e mundo da vida Mill se fez portavoz da mentalidade que vinha sendo construí da desde o início do racionalismo e que em sua época já era bastante difusa De um lado afirmouse a necessidade de dominar a natureza e colocála a serviço do homem isto é a serviço do poder e do lucro sem outros limites que os determinados pelo estágio de desenvolvi mento das tecnologias disponíveis De outro lado começou a afirmar se especialmente em época mais recente a mentalidade segundo a qual o bem do homem nada mais tem a ver com a sua natureza e sim tão somente com suas livres escolhas BELARDINELLI 2007 Não é necessário fazer a lista das conquistas que descrevem a progressiva realização desse domínio sobre a natureza mas também é desnecessário elencar os desastres de dimensões planetárias que se verificaram como consequências quase sempre não intencionais das operações realizadas Na grandiosa obra Fausto Goethe 1997 de poucas décadas anterior a Mill traz um eco da grandiosidade das visões e das ex pectativas geradas nesse período mas não deixa de intuir ao mes mo tempo o drama que se vinha delineando Planos audaciosos são executados com trabalho febril e tendo o protagonista vendido a alma ao demônio todos os obstáculos são removidos para alcançar os objetivos propostos O que no entanto de início tinha o aspecto de uma esperada libertação começa a mostrar seu rosto de opressão de violência e de sangue Lembrese por exemplo o caso de Filemon e Baucis um casal de velhos camponeses que habitava numa casinha nas dunas ao lado de uma capela com um pequeno sino Eles repre sentam o mundo da tradição Mas com seu apego ao antigo estilo de vida querem impedir a expansão do poder de Fausto Eles não acei tam vender sua propriedade A casa então é incendiada e os velhos são mortos Mefistófeles se encarrega de eliminálos Nesse sentido Goethe 1997 manifesta uma consciência mais complexa e realista da realidade que estava sendo gestada Familianatureza e culturaindd 24 211113 0906 25 Realizouse um grande desenvolvimento nos domínios das ci ências e da técnica mas o esforço para dominar a natureza e a história acabou conduzindo a razão a servir os poderes econômico militar po lítico e ideológico Tendo abandonado as exigências elementares como ponto de referência para a sua atividade restou à razão colocarse a serviço do poder e do mercado PETRINI 2003 A Escola de Frankfurt elaborou a crítica mais consistente à razão de matriz iluminista afir mando que na era industrial a razão tornouse um instrumento algo inteiramente aproveitado no processo social Seu valor operacio nal seu papel no domínio dos homens e da natureza tornouse o único critério para avaliála HORKHEIMER 1976 p 2732 Foi assim que a Primeira e a Segunda Guerra Mundial se mearam destruição e morte como jamais se tinha visto A explo são da bomba atômica os totalitarismos nazista e Stalinista a constante violação dos direitos humanos o desastre ecológico a fome de mais de um terço da população mundial a extensão do comércio de armas e o narcotráfico constituem um chamado de atenção a respeito da crise da modernidade PETRINI 2003 Es ses problemas não tiveram suas origens nas áreas atrasadas do mundo nos setores ainda não conquistados pela razão moderna Pelo contrário é exatamente a parte tecnologicamente mais avan çada da sociedade que teve maior participação na gestação dessas circunstâncias históricas O agir técnico está expandindo rápida e progressivamente suas possibilidades não somente sobre a natureza externa mas sobre a na tureza humana Evidentemente os homens do século XIX que como Mill 2006 tinham acalentado um domínio cada vez mais amplo da razão sobre a natureza graças aos instrumentos da tecnologia não podiam prever que suas ações traziam em seu bojo resultados não intencionais produziam efeitos colaterais cujas consequências são carregadas de riscos Familianatureza e culturaindd 25 211113 0906 26 Biotecnologia e amor ao destino humano a responsabilidade segundo Hans Jonas Jonas 2009 p 24 chama a atenção a respeito do significa do do agir humano agora totalmente mudado O mesmo homem tornouse um dos objetos da técnica O homo faber dirige a si mesmo a própria arte e se prepara a reprojetar com engenhosidade o inventor e o artífice de todo o resto Ele dedica a maior parte de sua obra filo sófica aos problemas que percebe nesse contexto Nossa tese é que as novas formas e as novas dimensões do agir exigem uma ética da previsão e da responsabilidade em alguma medida proporcional tão nova quanto as eventualidades com as quais tem a ver No início de sua obra mais conhecida Jonas apresenta o im perativo que considera adequado ao novo tipo de agir humano Esse imperativo responde à preocupação de que o uso ilimitado de ins trumentos técnicos venha impedir às futuras gerações de serem res ponsáveis ou benévolas Num estilo tipicamente kantiano ele afirma aja de tal modo que as consequências de sua ação sejam com patíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra JONAS 2009 p 16 Jonas 2004 p 34 coloca o centro de sua reflexão no organis mo vivente Ele focaliza a vida em todas as suas expressões materiais o corpo vivo o ser orgânico Afirma ele Nossas observações preten dem mostrar até que ponto o problema da vida e com ele o problema do corpo tem que ocupar o centro da ontologia Recordando o panvitalismo isto é os primórdios da interpre tação da realidade quando tudo parecia dotado de vida animada Jo nas 2004 adverte que o ser humano estava convencido de que a vida está presente em tudo quanto existe Mas esta vida universalmente presente emerge como paradoxal vulnerável insegura ameaçada fi nita profundamente irmanada com a morte Nesta visão de mundo o mistério com que o ser humano se defronta é a morte que contradiz tudo quanto ele compreende tudo o que possui uma explicação natu Familianatureza e culturaindd 26 211113 0906 27 ral a universalidade da vida A morte destacase como o enigma que perturba JONAS 2004 p 18 A inquietação provocada por este drama despertou interrogações que inauguraram nova etapa do pen sar humano Evolucionismo e crítica ao dualismo de Descartes A partir da renascença e ainda mais especificamente com o dualismo cartesiano entre res cogitans e res extensa foi afirmandose a posição oposta o natural aquilo que se pode compreender é a morte o que constitui problema é a vida JONAS 2004 p 19 Com a extraordinária expansão da astrofísica cresceram as dimensões do universo compreendido como material inanimado forças sem finali dade matéria extensa sujeita à medição e ao cálculo da matemática Neste horizonte experimentaram um extraordinário cresci mento as ciências naturais cujo objeto é a pura matéria privada de qualquer traço vital Só as coisas podem ser objeto de conhecimen to exato Pouco a pouco elas chegam a ser consideradas também como a única coisa real na realidade A nãovida é a regra e a vida é uma exceção e um enigma JONAS 2004 p 20 Antigamente o cadáver era o dado incompreensível suscitando inúmeras tentativas de resolver o paradoxo por ele apresentado agora somente na morte o corpo deixa de ser um enigma voltando ao estado familiar dentro de um mundo essencialmente corporal O idealismo e o materialismo constituem tentativas de supe rar o dualismo de origem cartesiana censurando ora um ora outro dos polos Esses paradigmas no entanto não dão conta da realidade por inteiro Nesse sentido é curioso observar como os materialistas procuram explicar o organismo que vive que sente e que busca como um subtil logro da matéria JONAS 2004 O organismo vivo no entanto não é somente matéria nele encontramse a rex cogitans e a rex extensa ele é um ser material mas ao mesmo tempo mostra sinais de uma interioridade O corpo vivo Familianatureza e culturaindd 27 211113 0906 28 documenta que as duas esferas não estão separadas constituem uma unidade psicofísica e devem ser compreendidas de modo unitário Para mostrar que as ciências da natureza não dão conta da realidade do ser vivo e para pôr em evidência que o organismo se move em vista de um fim e é dotado de liberdade toma como ponto de partida o metabolismo Em polêmica com Descartes Jonas 2004 afirma que o me tabolismo não é apenas um método para produzir energia como acontece com uma máquina que com essa finalidade consome com bustível De fato a máquina não se altera ao consumir combustível O caso do metabolismo de um organismo vivo é diferente não so mente o combustível muda transformandose em energia e resíduos mas o próprio organismo muda ao mesmo tempo Kampowski 2010 p 39 que acabou de publicar um estudo sobre Jonas e Habermas afirma Mediante o metabolismo o ser vivente é o processo de seu mesmo porvir e combina identidade com mudança contínua com efeito graças ao metabolismo com o decorrer do tempo o organis mo permanece sempre o mesmo mas a matéria de que é constituído muda completamente Jonas empreende uma grande discussão a respeito da teoria do evolucionismo que considera como uma espécie de superação desse dualismo No dualismo cartesiano o ser humano gozava ainda de um lugar privilegiado no mundo sendo o único ser vivo dotado de consciência res cogitans No evolucionismo darwinista ele repre senta apenas a etapa mais complexa da evolução da matéria O ser humano nada mais é que um membro no meio de outros ao longo de um único processo evolutivo já que todos os seres vivos procedem de uma mesma origem passando por diferenciações graças à lei da sele ção natural Com isto não é negada a diferença específica entre seres humanos dotados de autoconsciência e todos os outros seres vivos O dualismo cartesiano limitava a interioridade na nature za ao caso solitário do ser humano deixando o restante da natu reza viva para a análise puramente mecânica KAMPOWSKI 2010 Familianatureza e culturaindd 28 211113 0906 29 p 66 Com o evolucionismo esse dualismo que conseguiu apresentar como aceitável a purificação da matéria de qualquer mistura com o espírito ao preço unicamente de um problema metafísico des truiu a posição especial do ser humano o seu isolamento no conjunto da natureza Tornouse impossível considerar seu espírito assim como os fenômenos espirituais em geral como irrupção abrupta de um princípio ontologicamente estranho KAMPOWSKI 2010 p 67 Então não há uma descontinuidade entre os seres humanos e os outros seres vivos pois todos pertencem ao mesmo processo evolutivo partilhando a forma mais simples da vida como origem mesmo que no momento se encontrem em diferentes estágios da cadeia evolutiva Teleologia e liberdade O que dá identidade ao ser vivo não é portanto sua composi ção material mas o que Aristóteles chamava de alma como forma do organismo Estabelecese dessa maneira uma dialética entre ne cessidade e liberdade entre seu poder de permanecer em vida sua capacidade de afirmar seu ser acima da sua natureza material e ao mesmo tempo a dependência dessa natureza Somente para os seres vivos o nãoser é uma verdadeira possibilidade e uma verdadeira ame aça de modo tal que com o comparecimento da morte o ser encontra se pela primeira vez diante do não ser KAMPOWSKI 2010 p 42 A esse respeito Jonas 2004 p 14 afirma Afetado no mais íntimo de si pela ameaça de sua própria negação o ser tem que afirmarse e um ser afirmado é existência como desejo O ser vivo dotado de um cor po encontra resistência para continuar vivendo deve fazer esforços Isto implica que ele tende para algo em vista de uma finalidade viver Toda a esfera do vivente é caracterizada por essa finalidade ao passo que a morte sua possibilidade tornase motivo para uma existência interessada Familianatureza e culturaindd 29 211113 0906 30 O autor mostrando que o ser vivo tem desejos e especialmen te o interesse a permanecer em vida reintroduz a noção de teleologia do ser A rejeição das causas finais afirma Jonas 2004 p 44 foi parte da grande luta contra o aristotelismo que acompanhou o nascimento da ciência moderna Mesmo nos estágios mais elemen tares da evolução o organismo vivente tem como finalidade a con tinuidade de sua vida Nesse sentido os diversos órgãos o aparelho digestivo e outros órgãos vitais desempenham funções orientadas a uma finalidade bem precisa No ser humano esta finalidade tornase autoconsciência É verdade que a ciência moderna não reconhece finalidades à natureza ela não pode ser vista de maneira antropomorfa não existe um projeto consciente que guie a evolução dos viventes em seu conjun to pois tudo procede segundo a lógica do acaso mas isto não impede a Jonas de reintroduzir o finalismo na compreensão dos seres vivos Seu objetivo é mostrar que todo ser vivo deve lutar para afirmar sua existência Jonas está dessa maneira colocando as bases para uma responsabilidade do ser humano diante da vida Além disso para o ser que é portador de finalidades próprias se apresentam diversas possibilidades a saber a realização dos próprios fins ou sua negação e no limite a continuidade da vida ou o seu desaparecimento Por isto à compreensão teleológica dos seres vivos associase a liberdade3 Com a capacidade de imaginar e de verbalizar o ser humano deixa de ver as coisas diretamente passa a vêlas através da tela de ideias afirma Jonas 2004 p 207 Isto lhe permite ter uma experiência sim bólica da realidade onde o sujeito tem em suas mãos o mundo sem que este se lhe imponha por sua presença É nesta mediação de terceiro grau que encontra seu lar o fenômeno da verdade como tam bém o da falsidade O ser humano com efeito configura expe 3 Assim a liberdade do estágio animal é a liberdade de variadas adaptações por ações que se diferenciam do objetivo a ser alcançado e que por isso se encontram sob a alternativa de certo e errado de êxito e fracasso JONAS 2004 p 206 Familianatureza e culturaindd 30 211113 0906 31 rimenta e julga seu próprio ser interior e seu agir exterior segundo uma imagem daquilo que lhe convém JONAS 2004 p 208 Jonas 2004 percorre um longo caminho para construir uma nova ontologia do ser uma nova metafísica não fruto da dedução de alguma fé religiosa mas resultado da análise dos organismos vivos desde os seres mais elementares até o ser humano que é o mais com plexo Nesse sentido a satisfação e o sofrimento humanos são muito diferentes da satisfação e do sofrimento dos animais mesmo que o ser humano também participe da escala do sentir animal Afinal de contas somente o ser humano é capaz de ser feliz e infeliz gra ças à medida do seu ser em padrões que não se restringem à situação imediata JONAS 2004 p 208 O princípio responsabilidade Está aberto dessa maneira o caminho para o livro Il principio responsabilitá que tornou famoso Hans Jonas no mundo e que cons titui um desenvolvimento e uma aplicação prática dos resultados de seus estudos anteriores acima recordados Jonas 2009 afirma que as técnicas aumentaram de tal ma neira o poder que não tem comparação com as técnicas em uso nas épocas anteriores à modernidade e a ética tradicional não tem capaci dade para abraçar as novas situações Transformouse a natureza do agir humano por isso deve mudar também a ética É necessária uma ética da responsabilidade para o futuro da natureza humana A vulne rabilidade da natureza compromete o equilíbrio da inteira biosfera do planeta Tendo a disposição um poder técnico capaz de extinguir o gê nero humano ou de reduzir ingentes massas a condições de miséria o homem moderno deparase com o dever de garantir a permanência da vida humana no mundo Jonas 2009 elabora um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano Familianatureza e culturaindd 31 211113 0906 32 Aja em modo que as consequências da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra ou dito em negativo aja em modo tal que as consequências da tua ação não destruam a possibilidade futura da vida ou então simplesmente não ponha em perigo as condições de sobrevivência indefinida da humanidade sobre a terra ou ainda dito nova mente em positivo inclua na tua escolha atual a integridade futura do homem como objeto da tua vontade JONAS 2009 p 16 A preocupação de Jonas 2009 é dar um fundamento consis tente ao imperativo por ele formulado Esse fundamento não pode ser o tradicional jogo de direitos e deveres típicos das sociedades modernas Em primeiro lugar porque se trata de proteger as futu ras gerações isto é indivíduos ainda não nascidos que por isso não podem ser titulares de direitos Além disso entre gerações que não estão simultaneamente presentes no mundo é impossível a recipro cidade de direitos e deveres Jonas recorre então a um fundamento ontológico recorrendo a uma disciplina que Jürgen Habermas declarou morta há tempo isto é a metafísica afirma Kampowski 2010 p 97 Jonas 2009 p 61 funda o dever da geração atual para com as gerações futuras na própria natureza humana Toma como pon to de partida a pergunta de Leibniz por que existe algo em lugar de nada que ele entende não como uma questão a respeito da ori gem da realidade mas como uma pergunta a respeito do significado do existente por que algo deve ter a prioridade sobre o nada qualquer que seja a causa pela qual vem à existência Jonas 2009 argumenta que a realidade dos seres vivos constitui um bem um va lor porque afirma uma positividade expressa na finalidade inscrita nos próprios seres vivos imanente aos organismos a saber a con tinuidade de sua existência Aqui reside o verdadeiro fundamento à pretensão de ser isto é ao dever ser do ser Quando o ser depende Familianatureza e culturaindd 32 211113 0906 33 do livre agir de outrem este agir deve ser imposto como dever como imperativo Após uma longa argumentação para demonstrar a racionali dade de sua construção Jonas 2009 p 102103 afirma Na capaci dade de ter finalidades em geral podemos reconhecer um bememsi cuja infinita superioridade com relação a toda ausência de finalidade do ser é intuitivamente certa Em toda finalidade o ser se declara a favor de si mesmo e contra o nada4 Esta é a ponte entre o ser e o de ver ser que dá fundamento à responsabilidade como imperativo Um mundo no qual existam seres vivos é melhor do que um mundo no qual não existam seres vivos No conjunto dos organismos os seres humanos são os únicos capazes de responder à exigência que emerge do ser Eles dispõem do senso moral por meio do qual são capazes de responder à pretensão do ser e têm o livre arbítrio graças ao qual podem responder sim ou não a essa pretensão e isso os qualifica como portadores de responsabilidade KAMPOWSKI 2010 p 108 A responsabilidade da qual fala Jonas 2009 não é de tipo ju rídico relativa a atos realizados que a legislação pode avaliar como lesivos dos direitos de alguém Ele se refere a um sentimento moral originário diante de alguém que é frágil e por isso é confiado aos cuidados de outrem que dispõe de poder para proteger ou para elimi nar Somente seres humanos podem ser sujeitos dessa responsabili dade Eles tendo o poder de proteger ou de danificar são livres e por isso podem ser responsáveis Se podem na opinião de Jonas então devem ser responsáveis Jonas 2009 dá dois exemplos particularmente significativos a responsabilidade dos pais com os filhos e a responsabilidade do es tadista com a sua nação quer os pais quer os estadistas são obrigados a tutelar o bemestar dos que são confiados aos seus cuidados No caso da relação paisfilhos a responsabilidade não pode ser recusada 4 Jonas 2009 p 102103 ainda afirma que Neste tender a um escopo podemos reco nhecer uma autoafirmação substancial do ser que se põe em sentido absoluto como melhor respeito ao não ser Familianatureza e culturaindd 33 211113 0906 34 e não admite précondições a obrigação de cuidar é natural procede do simples fato que o filho existe No neonato é evidente que a vida é um bem para ele mas que não pode alcançar este bem sem a nossa ajuda Por isso ser e dever ser coincidem Nós podemos perseguir o bem dele como se fosse o nosso porque somos seres racionais ca pazes de transcender os limites de um interesse particular No caso dos estadistas a obrigação é de tipo contratual fundada num acordo prévio e por isso eles podem ser exonerados Pensando ao uso das biotecnologias e à possibilidade de ma nipulação genética teoricamente capaz de produzir seres humanos programados e portanto não mais capazes de autodeterminação Jonas 2009 p 53 afirma que a responsabilidade da geração presen te consiste em preservar para os homens das gerações vindouras a capacidade de serem livres e morais isto é responsáveis Devemos vigiar a respeito do seu dever de autêntica humanidade portanto sobre a sua capacidade de atribuirse e de absolver esse dever aquela capacidade da qual nós talvez possamos priválos com a alquimia da nossa tecnologia utópica Jonas 2009 dedica muitas páginas para explicitar seu argu mento metafísico a favor da vida seu livro no entanto recebeu uma acolhida muito positiva apesar das críticas à sua posição metafí sica pela capacidade de descer a questões práticas e concretas na ma neira de articular a responsabilidade Ele observa que o poder capaz de produzir mudanças é muito maior do que a capacidade de avaliar as consequências do uso que dele se faz Por isso de um lado ele con vida a reconhecer a limitada capacidade de prever futuras consequên cias dos novos modos de intervir na natureza especialmente quando se trata da natureza humana O reconhecimento dessa ignorância tornase um aspecto relevante da ética que visa manter sob controle nosso desmedido poder JONAS 2009 p 12 De outro lado convi da a nunca agir com a biotecnologia como num jogo de apostas onde se pode ganhar mas também se pode pôr tudo a perder para não cor rer o perigo de perder o gênero humano Quando se trata de natureza Familianatureza e culturaindd 34 211113 0906 35 humana que é capaz de verdade de juízo moral e de liberdade temos o dever de conservar algo que é infinito em seu valor mas temos tam bém a possibilidade de perder esse algo infinito Por isso é melhor afirma Jonas 2009 dar crédito às profecias de catástrofes do que às promessas de salvação é melhor de qualquer forma que o progresso técnico mantenha uma postura humilde O projeto de Bacon de tomar o poder sobre a natureza e aqui ilustrado através do ensaio de Mill foi por demais bem sucedido O poder tornouse autônomo enquanto suas promessas se transforma ram em ameaça sua perspectiva de salvação em apocalipse JONAS 2009 p 181 Ao perguntarse qual força política poderia controlar este po der das biotecnologias Jonas parece orientarse ainda que de má vontade para regimes autoritários possivelmente de tipo comunista considerando as atuais democracias inadequadas De um lado con sidera o indivíduo impotente diante dos desafios atuais e recorre às forças políticas de outro dá o exemplo da relação dos pais com os filhos exatamente para mostrar como o princípio responsabilidade pode ser operativo na prática O futuro da natureza humana Habermas publicou na Alemanha em 2001 o pequeno livro O futuro da natureza humana que tem como subtítulo Os riscos da eugenética liberal Na edição em língua italiana o subtítulo ficou Os riscos da genética liberal Evidentemente a obra de Jonas influenciou o pensamento de Habermas apesar das diferenças que caracterizam esses dois autores Os dois pensadores diferem pela localização do núcleo da capacidade moral do ser humano KAMPOWSKI 2010 p 162 Para Jonas reside na capacidade que o ser humano tem de assumir responsabilidade enquanto para Habermas está na capaci dade do ser humano participar de um discurso entre iguais Os dois autores alertam a respeito das biotecnologias e do risco de ficar com Familianatureza e culturaindd 35 211113 0906 36 prometida a capacidade do ser humano levar uma existência moral O perigo que eles percebem é que corremos o risco de construir um indivíduo que perdeu sua capacidade de ser moral ou imoral servindonos dessas tecnologias corremos o perigo de impor a nossa imagem de ser humano às futuras gerações KAMPOWSKI 2010 p 162 grifo do autor Para Habermas ao impor a nossa imagem às futuras gerações impedimos a realização da ação comunicativa introduzindo no rela cionamento com eles um elemento de domínio até agora desconheci do A objeção que melhorar a descendência com meios tecnológicos não é diferente de melhorar o ser humano através da educação e da socialização Habermas responde que chega o momento em que a criança pode tomar distância crítica com relação a socialização e a educação que recebeu Não pode fazer o mesmo com intervenções diretas no seu corpo que já fazem parte da identidade de sua pessoa KAMPOWSKI 2010 Habermas está preocupado nos últimos tempos com os fun damentos morais prépolíticos do Estado liberal Aliás este foi o tema do seu diálogo com Ratzinger em janeiro de 2004 na Universidade de Munique Diferentemente do percurso de Hans Jonas sua firme rejeição à metafísica deixa sem fundamento a busca do bem A per cepção de Horkheimer 1976 p 27 parece ainda não superada quan do dizia A afirmação de que a justiça e a liberdade são em si mesmas melhores do que a injustiça e a opres são é cientificamente inverificável e inútil Come ça a soar como se fosse sem sentido do mesmo modo que o seria a afirmação de que o vermelho é mais belo que o azul ou de que o ovo é melhor do que o leite Encontrase em Habermas o reconhecimento da mesma limi tação da ciência moderna enunciada por Weber 1974 quando afir mava que um médico pode prolongar até de maneira significativa a Familianatureza e culturaindd 36 211113 0906 37 vida de um doente mas não é capaz de dizer por que vale a pena viver5 A diferença é que Habermas percebe o limite que a razão mo derna se impôs com certo desconforto e inquietação que eram ausen tes em Weber 1974 e que o mantém aberto ao diálogo em busca de respostas adequadas Habermas 2002 faz a tentativa de distinguir entre moral e ética A moral é universal indica o que é justo mas não consegue dizer por que o ser humano deve ser moral porque é melhor ser jus to Movendose no horizonte das ciências positivas faltamlhe instru mentos linguísticos para avançar A ética insere a pessoa no contexto de crenças compartilhadas que se referem à vida boa a busca do bem movendose no espaço da metafísica podendo então responder a es sas questões A ética mesmo sendo tão importante não é universal antes é circunscrita ao universo de valores religiosos compartilhados Ele discute três temas nos quais as biotecnologias correm o perigo de interferirem indebitamente na liberdade das pessoas a diagnose genética préimplantação a pesquisa com células estami nais retiradas de embriões humanos e as técnicas de manipulação genética Nos primeiros dois casos Habermas 2002 vê o perigo de uma nova edição da eugenética que tinha sido tentada pelo nazismo com a possibilidade de gerar vida humana em modo condicionado selecionando as características do ser que está começando a ser gesta do Pois o limite conceitual entre prevenir o nascimento de uma criança gravemente doente e a decisão eugenética para melhorar o patrimônio hereditário não pode ser mais delineado com segurança HABERMAS 2002 p 2324 Com relação às células estaminais Habermas 2002 manifes ta a preocupação de que o uso dos embriões para fins terapêuticos 5 No escrito A ciência como vocação citando Tolstoi Weber 1974 p 169170 afirma A ciên cia não tem sentido porque não responde à nossa pergunta a única pergunta importante para nós o que devemos fazer e como devemos viver E acrescenta É inegável que a ciência não dá tal resposta Familianatureza e culturaindd 37 211113 0906 38 incentiva uma postura instrumental com relação à vida humana afrouxando a sensibilidade moral relativa ao respeito pela vida6 Com relação às perspectivas próximas de manipulação genética Habermas 2002 p 24 grifo do autor entende que o melhoramento genético prejudica a capacidade do indivíduo de ser e verse como o protago nista de sua vida e de suas ações e ameaça a igualdade entre as pessoas e entre as gerações O fenômeno inquietante afirma ele consiste na falta do limite entre a natureza que nós somos e a dotação orgânica que nós nos damos Enquanto na intervenção terapêutica sobre o embrião podese supor o seu consenso futuro numa espécie de contexto comunicativo antecipado no qual o embrião é tratado como uma segunda pessoa um tu no caso da manipulação genética quando outra pessoa impõe sua decisão o embrião é tratado como objeto não existindo nenhum contexto comunicativo antecipado O embrião seria tratado como objeto de um agir instrumental e não como potencial sujeito no con texto de um agir comunicativo HABERMAS 2002 KAMPOWSKI 2010 Falando de uma pessoa que tenha sido objeto de intervenção genética prénatal Habermas 2002 afirma que após uma interven ção prénatal de engenharia genética aquela natureza subjetiva que nós vivemos como indisponível é na realidade o resultado de uma instrumentalização Nesse caso a falta de distinção entre espon tâneo e artificial viria a incidir na sua modalidade existencial KAM POWSKI 2010 p 55 Exatamente essas circunstâncias apresentam na visão de Habermas um problema moral e a necessidade de manter limites jurídicos a essas práticas Habermas desenvolve uma sutilíssima argumentação para dizer de um lado que não damos por óbvia a ideia de que a vida 6 Se se aceita como normal a geração e o emprego de embriões para fins de pesquisa médica transformase também a percepção cultural da vida humana prénatal com o resultado de tornar cada vez menos preciso o sensório que estabelece os limites entre os quais aplicar o cálculo custosbenefícios Hoje ainda percebemos como obscena esta práxis de reificação HABERMAS 2002 p 23 Familianatureza e culturaindd 38 211113 0906 39 humana deva ser desde o início garantida em maneira absoluta mantendo aberta a possibilidade do aborto em certas condições e de outro que continua a ser inquietante o fato de que nós opera mos para outros uma distinção tão carregada de consequências entre o que merece viver e o que não o merece KAMPOWSKI 2010 p 6970 grifo do autor Referências BELARDINELLI Sergio Bioética da natura e cultura Siena Cantagalli 2007 BOBBIO Norberto Locke e o direito natural 2 ed Brasília UnB 1998 DESCARTES René Discours de la méthode Paris Vrin 1984 GOETHE Johann W Fausto Belo Horizonte Itatiaia 1997 HABERMAS Jürgen Il futuro della natura umana I rischi di una genetica liberale Torino Einaudi 2002 HORKHEIMER Max Eclipse da razão Rio de Janeiro Labor 1976 JONAS Hans Il principio responsabilitá unetica per la civiltá tecnologica Torino Einaudi 2009 O princípio vida fundamentos para uma biologia filosófica Petrópolis Vozes 2004 KAMPOWSKI Stephan Uma liberta piú grande la biotecnologia lamore e il destino umano Siena Cantagalli 2010 KOIKE Katsuzo Aspectos da physis grega Revista Perspectiva Filosófica v 6 n 12 p 166178 juldez 1999 Disponível em httpwwwufpebr ppgfilosofiaimagespdfpf12artigo80001pdf Acesso em 8 out 2013 MILL John Stuart Saggi sulla religione Milano Feltrinelli 2006 Utilitarismo São Paulo Martins Fontes 2000 Sobre a Liberdade 2 ed Petrópolis Vozes 1991 PETRINI João Carlos Pósmodernidade e família um itinerário de compreensão Bauru EDUSC 2003 WEBER Max Ensaios de sociologia 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 1974 Familianatureza e culturaindd 39 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 40 211113 0906 41 Capítulo 2 Pessoa entre natureza e cultura na perspectiva da modernidade Marina Massimi Introdução A profunda mudança cultural que iniciada na Modernidade e completada na Pós Modernidade produziu a polarização entre Na tureza e Cultura teve reflexos marcantes na maneira de conceber a subjetividade humana entendendose com este termo a percepção de si mesmo enquanto pessoa Esta mudança é expressa poeticamen te num trecho escrito em 1966 por Sinyavsky 1977 dissidente russo exilado em Paris num livro publicado em Paris sob o pseudônimo de Abram Terza Pensamentos repentinos Escreve o autor Antigamente o homem e seu meio familiar era ligado à vida universal histórica e cósmica de modo muito mais amplo e sólido Pois hoje mesmo que tenhamos a nosso dispor jornais mu seus rádios aviões percebemos superficialmente este fundo comum penetramos superficialmente nele Pouco o conhecemos Nós lemos o jornal e morremos solitários em nosso sofá estreito e inú til Compararmos nosso horizonte pretenso com o estilo de vida de um simples camponês do passa do todos os seus gestos pertenciam a um signifi Familianatureza e culturaindd 41 211113 0906 42 cado universal Ele mantinha uma ligação perma nente com a imensa criação do mundo e vivia o calendário de uma história comum que começava de Adão e terminava com o Juízo Universal An tes de pegar na colher iniciava fazendo o sinal da cruz e por este único gesto ligavase à terra e ao céu ao passado e ao futuro SINYAVSKY 1977 p 4445 tradução nossa O apego a certa tradição cultural que ligava imediatamente a pessoa ao cosmos conectava o tempo presente ao eterno que se evi dencia neste retrato poético do camponês russo traçado por Sinya vsky 1977 caracterizava também o universo cultural do Ocidente medieval A estrutura unitária do mundo medieval em cujo berço nas ceu e se desenvolveu a estrutura antropológica e o universo cultural do homem Ocidental foi rompida com o advento da modernidade Os efeitos desta reviravolta cultural no que diz respeito às concep ções de Natureza Cultura e Pessoa são analisados por vários filóso fos contemporâneos Nossa contribuição visa propor algumas dessas análises focando especialmente os efeitos desta mudança no que diz respeito à concepção de pessoa concepção esta originada e original da tradição filosóficoteológica medieval Romano Guardini a subjetividade moderna entre nature za e cultura Em primeiro lugar abordamos a leitura deste processo feita pelo filósofo ítaloaustríaco Romano Guardini 18851868 num con junto de conferências proferidas na Universidade de Tubingen em 19471948 e depois de Munique em 1949 e publicadas posteriormen te 19511995 sob o título O fim da idade moderna A dissolução do universo medieval e a emergência de uma nova idade são retratadas por Guardini 1995 como um processo de longa duração iniciado no século XIV e definido em seus traços fundamentais no século XVII O autor assinala em pormenores os elementos desta profunda transfor Familianatureza e culturaindd 42 211113 0906 43 mação cultural o advento da ciência moderna propondo uma nova atitude do homem diante do conhecimento da verdade a afirmação do sistema econômico capitalista que se define por suas próprias leis e critérios de modo autônomo relativamente a outras instâncias de juízo uma nova concepção de poder político tomado como indepen dente de autoridades transcendentes a superação da concepção cos mológica de universo finito em prol da existência de um infinito número de mundos segundo a expressão filosófica formulada por Bruno 1992 Disto decorre uma nova concepção de universo caracterizada pela incomensurabilidade e pela perda da ordem consolidada ao lon go de séculos a partir de critérios e eixos norteadores enraizados na solidez da tradição clássica e medieval aparecem de todo lado re lações infinitas que por um lado deixam o campo livre e por outro recusam à existência humana o seu lugar objetivo Esta recebe um es paço aberto para se movimentar mas sem lugar definitivo GUAR DINI 1995 p 36 Nos alvores da Modernidade a De hominis dignitate oratio de Pico da Mirandola 2001 é expressiva desta posição cada pessoa pode escolher a sua própria modalidade de ser no mundo em virtude da liberdade soberana que Deus lhe concedeu A experiência cósmica de infinito se expande no espaço da terra e nela o homem é atraído pelo desconhecido por novos mundos a serem descobertos e também explorados O saber não é mais entendido como pura apre ensão do dado do mundo mas como possibilidade de apropriação e de manipulação do mesmo o homem ocidental escreve Guardini 1995 p 37 sente a possibilidade de se aventurar num mundo infinito e de se tornar o seu senhor Neste berço constituise a consciência da personalidade própria da Idade Moderna O indivíduo passa a se interessar por si mesmo É objeto da observação e da análise psicológica GUARDI NI 1995 p 37 A autoconsciência do novo homem da modernidade é caracterizada pelo sentimento de sua potência manifesto nos ter mos utilizados na época para definir o ideal antropológico o homem Familianatureza e culturaindd 43 211113 0906 44 como divus dono de si mesmo e criador pelo seu engenho guiado pela fortuna e coroado pela glória terrena pelo sucesso Ao mesmo tempo porém tal autoconsciência é marcada por um sentimento de angústia decorrente da perda de um lugar objetivo de pertença de um universo transcendente onde reconhecer raízes Comenta Guardini 1995 p 37838 a angústia da Idade Moderna é devida em gran de parte ao sentimento de não ter nem um lugar simbólico nem um refúgio que seja imediatamen te convincente e também da experiência sempre renovada de não encontrar no mundo um lugar para a existência e que satisfaça a sua necessidade de sentido Segundo Guardini 1995 as dimensões da nova imagem da existência do homem moderno são três o conceito de natureza a emer gência da subjetividade e o conceito de cultura como os decorrentes reflexos no que diz respeito a visão antropológica e cosmológica O conceito de natureza da Idade Moderna indica em primeiro lugar o dado imediato do mundo o conjunto das coisas antes da in tervenção humana condição e terreno para o conhecimento e a ação em segundo lugar indica um conceito de valor um critério normativo do conhecimento e da ação acerca do que é justo saudável perfeito é o que se entende corriqueiramente por natural Da natureza assim entendida derivam os critérios norteadores da existência humana in dividual e social e esta mesma natureza assume um caráter sagrado sendo que esta conotação religiosa independe porém da Revelação cristã tal como era na Idade Média mas sim é colocada quase em contraposição com a mentalidade cristã O próprio homem se reco nhece como pertencendo à natureza mas na medida em que tomar consciência desta pertença ele apropriase dela transcende a relação imediata com a natureza pondose diante dela como senhor Para Guardini 1995 esta posição remete ao segundo elemen to fundamental da concepção moderna da existência a subjetividade Familianatureza e culturaindd 44 211113 0906 45 Esta corresponde a uma nova experiência do eu apreendido como centro e medida dos valores da existência como personalidade a saber forma humana que se desenvolve a partir de disposições e iniciativas próprias GUARDINI 1995 p 41 A personalidade é inquestionável devendo ser compreendida a partir dela mesma esta visão antropológica aplicada no Renascimento ao divus o homem de engenho e de sucesso posteriormente tornase norma geral e co locase inclusive como critério ético o novo ideal da autenticidade e da sinceridade substitui o ideal tradicional da objetividade do bem e da verdade A referência à personalidade encontra expressão formal no conceito de sujeito o autor dos seus próprios atos e ponto de referência para a definição dos critérios que determinam o valor des ses atos Guardini 1995 p 41 observa que a definição mais precisa de sujeito encontrase na filosofia de Kant para ela o sujeito lógico ético e estético é um elemento primordial para lá do qual nada mais pode ser pensado tem o caráter de autonomia permanece em si próprio e fundamenta o sentido da vida espiritual Assim como a natureza a personalidade também adquire cunho religioso o gênio aparece cheio de mistério No conceito idealista de espírito a subje tividade do indivíduo unese ao todo e é tida como a expressão do espírito do mundo Uma terceira dimensão fundamental da imagem da existência do homem moderno é a da cultura esta é tida como o mundo da ação e da criação humana numa acepção do termo que se identifica com a civilização Na civilização o homem constrói a existência como a sua própria criação Segundo Guardini 1995 este conceito coincide com a afirmação da ciência e das técnicas modernas ou seja do conjunto de procedimentos pelos quais o homem estabelece e realiza seus obje tivos A cultura adquire dimensão religiosa no sentido de que em seu âmbito o homem concebe o sentido de sua existência1 1 Gostaríamos de evidenciar a respeito deste tópico as influências nefastas desta visão da cultura como projeto civilizatório e como poder de realizalo através da dominação militar econômica e tecnológica no que diz respeito a história dos Estados modernos e particu Familianatureza e culturaindd 45 211113 0906 46 Estas três dimensões da imagem do mundo da Modernidade são entre elas conectadas Todavia segundo Guardini 1995 já esta mos na época do fim deste mundo e os sinais de sua dissolução são evidentes na apreensão contemporânea destas três dimensões Em primeiro lugar após a década de 30 começou a se modi ficar o sentimento da natureza o homem não a percebe mais como lugar de harmonia e ordem benigna A percepção de que o universo é finito coloca também a possibilidade de seu desaparecimento e por tanto um sentimento de inquietação e de desamparo conjuntamente à consciência da responsabilidade pela sua preservação Atualmente esta intuição de Guardini 1995 confirmase de modo evidente e as recentes e cada vez mais frequentes catástrofes naturais em par te devidas ao descuido e desrespeito humano pela ordem natural contribuem para delinear a natureza como fonte de perigos e de imprevistos como também como exigência de cuidado e de respei to Portanto o mundo da natureza não é mais um âmbito onde o homem se percebe seguro Hoje diante das devastações produzi das pela ausência de escrúpulos afirma Guardini 1995 p 5253 o homem sabe que em última análise o que está em jogo na técnica nem é a utilidade nem o bem estar mas o domínio domínio no sentido mais extremo da palavra que se exprime numa nova for ma do mundo Este domínio diz respeito a elementos da natureza e da exis tência humana proporcionando possibilidades insuspeitadas larmente à história do Brasil Com efeito por autores brasileiros do século XVIII NUNES 1781 e do século XIX SILVA 1998 o termo civilização é entendida como aculturação José Bonifácio por exemplo coloca no referido documento que aculturar os índios brasileiros significa tornálos civilizados cultos e propõe nesta perspectiva uma série de técnicas e de instrumentos Cultura então é também projeto planejamento A cultura entendida como civilização implica também numa dominação tratase de um projeto que o homem elabora propondo uma representação de si mesmo e do outro e que portanto também se impõe so bre o outro É um planejamento sobre a própria vida e a vida do outro de que são exemplos as utopias e os projetos coloniais Em nome do projeto de civilizar os índios muitos deles foram destruídos assim como em nome de projetos civilizatórios ainda hoje são elimina dos povos pessoas culturas e memórias MASSIMI 2000 Familianatureza e culturaindd 46 211113 0906 47 de construir mas também de destruir sobretudo quando se trata da natureza humana muito menos fixa e segura de si do que se pensa geralmente GUARDINI 1995 p 53 O potencial destruidor é ainda mais ameaçador na medida em que o Estado anônimo colocase como o detentor deste domínio No momento atual portanto o homem diante da natureza deve tomar uma decisão extrema ou o ho mem consegue realizar corretamente a obra de dominação e então esta será imensa ou tudo estará acabado GUARDINI 1995 p 53 Esta grave decisão assume um teor quase religioso derivado do senti mento da profunda solidão do homem diante da sua consciência que o torna responsável pelo mundo A análise que Guardini 1995 delineava lucidamente em 1951 é confirmada pelos acontecimentos deste início do século XXI Um aspecto que nos interessa particularmente nesta análise são as con sequências da mudança no que diz respeito à personalidade e ao su jeito Se na Idade Moderna a subjetividade fundavase uma teoria do sujeito tido como o fundamento de todo conhecimento no fim da Idade Moderna em correlação com a técnica afirmase uma diversa estrutura antropológica cujo fundamento não é mais a ideia do sujei to autônomo Tratase de uma estrutura antropológica relacionada à técnica e ao planejamento e que Guardini 1995 define como o ho mem da massa A este tipo de homem não convém mais a personali dade e a subjetividade ele não quer se afirmar como sendo diferente dos demais nos comportamentos e formas de vida que assume Pelo contrário ele aceita e se adapta as formas da vida social assim como são impostas pelo planejamento e a tecnologia nem experimenta o desejo de viver conforme a própria vontade e iniciativa autônoma Atualmente utilizase o termo homologação para definir esta condi ção de existência Guardini 1995 assinala que em decorrência desta nova mentalidade no ser humano atenuase o sentimento de perten cer a uma ordem de realidade peculiar e diferenciada Colocase assim no mundo como um objeto entre outros Evidentemente a aceitação desta condição depende de uma transformação estrutural na experi Familianatureza e culturaindd 47 211113 0906 48 ência do eu e dos relacionamentos sociais como também da relação do indivíduo com a cultura Com efeito esta mudança antropológica acarreta uma posição crítica diante da cultura não mais aceita como espaço e ordenação segura da vida como ocorrera na Idade Moderna A desconfiança no que diz respeito à cultura como lugar de enraizamento e de iden tificação da pessoa ocorre pelo fato da história contemporânea ter evidenciado os graves erros decorrentes de certos posicionamentos redutivos da moderna cultura ocidental evidenciados pelos repetidos fracassos quanto às tentativas de explicar o ser humano positivismo materialismo idealismo existencialismo têm mostrado sua inade quação em fornecer uma compreensão abrangente e consistente dos fenômenos humanos Hoje segundo Guardini 1995 p 68 ninguém consciente de sua humanidade se reconhecerá na imagem que lhe oferece a antro pologia dos tempos modernos quer seja biológi ca psicológica sociológica ou de qualquer outra espécie Essa imagem refere apenas aspectos par ticulares de si próprio maneiras de ser correla ções estruturas mas não a reproduz de modo al gum Falase do homem mas não se chega a vêlo O movimento dirigese para ele mas não o atinge Pretendese agarralo mas ele escapase O ho mem da concepção da Idade Moderna não existe Após estes fracassos o que permanece e se atesta é o fato de que a pessoa é finita e que existe enquanto tal mesmo que não queira mesmo que ela negue sua essência pessoa que detém a liberdade magnífica e terrível de poder manter o mundo ou de poder destruílo de se afirmar a si própria e de se realizar ou de se abando nar e perder GUARDINI 1995 p 68 A alternativa à emergência da pessoa em sua dimensão essencial seria o terrível prevalecer de forças anônimas sobre o ser humano De fato segundo o autor o reconhecimento da condição hu mana assim delineada remete a dois possíveis posicionamentos ou Familianatureza e culturaindd 48 211113 0906 49 o desaparecimento do indivíduo particular no seio da coletividade o que seria ameaçador ou a adaptação do indivíduo às estruturas da vida e do trabalho e a renuncia a uma liberdade criadora agora impos sível Esta segunda possibilidade levaria o indivíduo a concentrarse no seu eu mais interior para apreender e cuidar do que lhe é essencial Este processo implica também numa transformação termino lógica o termo personalidade está desaparecendo e em seu lugar emerge o termo pessoa A concepção de pessoa neste contexto remete segundo Guardini 1995 à acepção estoica do termo não designando tanto um ser extraordinário e aberto ao infinito quanto um núcleo austero e limitado que exige ser preservado e desenvolvido em cada indivíduo Assim a modalidade em que Guardini 1995 entende a con dição da pessoa no mundo contemporâneo parece aproximarse da concepção do cuidado de si do último Foucault 1995 e da cultura de si de Hadot 2005 Longe de assumir uma posição pessimista Guar dini 1995 assinala a possível positividade deste desenvolvimento na medida em que proporciona a recuperação do fato humano funda mental que é o ser pessoa como promessa para todo homem e não apenas restrito a algumas personalidades A essência do ser pessoa é o de ser chamado à vida por Deus ter responsabilidade por si mesmo e ser capaz de atuar no mundo em virtude de uma força interior ou seja de estabelecer um início Dificuldades na apreensão da natureza da cultura e da pessoa decorrentes da moderna redução da racionalidade Quais seriam as causas do paradoxal fracasso da cultura mo derna em apreender seu próprio artífice o ser humano Vários filóso fos contemporâneos Arendt Husserl Horkheimer identificam esta causa na atrofia e decorrente patologia da razão moderna De fato uma concepção da razão e do saber tomados como autônomos ou seja desvinculados de raízes sociais e culturais de sua própria gênese Familianatureza e culturaindd 49 211113 0906 50 e tradição determinou uma ruptura entre o universo do pensamento e a realidade Disto decorre também a pretensão do primeiro de ser capaz de determinar e planejar aquilo que a realidade deveria ser a razão em sua expressão mais elevada que é o saber científico seria por si mesma capaz de construir a realidade desde que siga o método da ciência que é capaz de proporcionar a certeza matemática confor me a filosofia de Descartes 1988 assinalara Este posicionamento descrito por Arendt 1999 p 296 em Condição Humana marca os inícios da filosofia moderna A razão em Descartes e em Hobbes limitase a prever as consequências isto é à faculdade de deduzir e concluir a partir de um processo que o homem pode a qualquer momento desencade ar dentro de si mesmo Tratase do jogo da men te consigo mesma jogo este que ocorre também quando a mente se fecha contra toda a realidade e sente somente a si própria Uma crítica contundente que assinala a redução da raciona lidade nos termos da razão instrumental da ciência e da tecnologia finalizada ao domínio sobre o mundo natural e humano e incapaz de fornecer alicerce adequado para compreender o homem e a socie dade é proposta por Horkheimer 1969 Segundo este autor a con sequência mais grave da incapacidade da razão moderna conceber a totalidade e relacionarse com ela é a renúncia à verdade Nas suas palavras o significado é substituído pela função HORKHEI MER 1969 p 27 Assim também conceitos como felicidade justiça beleza etc perderam suas raízes intelectuais sua espessura cultural A dissociação entre exigências humanas e verdade objetiva modifica os critérios de juízo em todos os campos da existência e a relação da pessoa com estas exigências esvaziadas de sua objetividade é reduzi da aos termos de um psicologismo individualista e relativista Nes se sentido somente o restabelecimento de um horizonte unitário e global pode curar o adoecimento da humanidade contemporânea As Familianatureza e culturaindd 50 211113 0906 51 culturas humanas não podem renunciar à sua universalidade que se sustenta na busca da verdade sua essência constitutiva Husserl 2002 em A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental reitera a urgência da autocrítica da razão abordando também os problemas da natureza da cultura e da pessoa De fato uma reavaliação do que é a razão permite reintroduzir o tema da natureza da cultura e da pessoa de forma nova Husserl 2002 p 10 assinala como sendo a causa da crise da razão moderna uma reviravolta que aconteceu em meados do século passado no que diz respeito à atitude frente às ciências A re viravolta consiste numa maneira geral de estimar as ciências de fato a visão global do mundo própria do homem moderno na se gunda metade do século XIX foi determinada pelas ciências positivas e pela prosperidade que elas prometiam o que por sua vez impli cou a indiferença e desconsideração no que diz respeito às questões que são decisivas para a autêntica humanidade As questões que elas excluem por princípio são exatamente aquelas que são as mais urgentes para a nossa época desgraçada cuja humanidade é abandonada aos altos e paixões do destino são es tas as questões que dizem respeito ao sentido ou à ausência de sentido de toda esta existência huma na Estas questões não exigiriam elas também em sua generalidade e necessidade que se impõe a todos os homens que sejam meditadas suficien temente e que se contribua para uma resposta que surgia da via racional Acerca da razão e da desrazão acerca de nós mesmos enquanto ho mens sujeitos de liberdade o que a ciência tem a dizer Ciências simples de fatos formam uma simples humanidade de fato Estas ciências não têm nada a dizer HUSSERL 2002 p 10 Nas palavras do próprio autor o que está em questão não é a cientificidade delas e sim o que as ciências e a ciência em geral sig nificaram e podem significar para a existência humana HUSSERL Familianatureza e culturaindd 51 211113 0906 52 2002 p 10 O âmbito dos significados precede o das ciências e per tence ao âmbito da cultura que para Husserl referese ao modo de manipular a realidade orientado por um projeto que fornece também critérios de orientação global O conceito de cultura na verdade co nectase com a vida humana na sua totalidade tanto individual como comunitária em cujo interior se desenvolve o que é individual Ms Trans E III 1 apud BELLO 1998 p 41 A cultura portanto pertence ao mundodavida tendo vários níveis e sendo a ciência um deles A apreensão da natureza também é dada neste âmbito no sen tido de que ela também é uma formação do espírito A própria ciência da natureza que fábrica uma representação objetivada da natureza funcional à experimentação ela também é uma atividade do espírito Devido ao erro da razão moderna pelo contrário as ciências da natu reza acabaram para se tornar modelo inclusive para a cultura Impossibilidade da Psicologia Científica solucionar a cisão entre natureza e cultura No domínio da psicologia científica este reducionismo acar retou as consequências mais deletérias Com efeito a psicologia de senvolveuse enquanto disciplina científica no meio da contraposição entre Ciência da Natureza e Ciências da Cultura tendo a pretensão de constituirse como sendo terreno intermediário entre estes dois uni versos Tarefa impossível pois a psicologia científica em suas origens é ela mesma perpassada em seu âmago pelo reducionismo que natu raliza o fenômeno humano nos termos das ciências experimentais Por consequências também as tentativas das teorias psicológi cas darem conta da relação entre natureza e cultura na apreensão de seu objeto revelamse insatisfatórias O reducionismo fica evidente por exemplo na posição de Skinner 1976 p 234 este coloca que a análise do ambiente social conduzida nos termos da análise experi mental do comportamento fornece uma explicação dos aspectos es senciais da cultura no esquema de referência de uma ciência natural Familianatureza e culturaindd 52 211113 0906 53 chegando a entender a cultura como a composição de todas as vari áveis que afetam o indivíduo e que são dispostas por outras pessoas A redução cientificista da natureza acarretou também uma cisão entre mundo natural e mundo espiritual atingindo assim a estrutura unitária da concepção da pessoa formulada no âmbito da tradição ocidental Na psicanálise esta ruptura é reproposta por uma acepção da vida instintiva em termos de mero mecanismo biológico as pulsões e por uma interpretação do mundo da cultura como sen do o produto da sublimação do instinto a sublimação podendo ser direcionada de várias formas no processo analítico Desse modo se a interpretação freudiana de cultura numa primeira leitura parece diferenciarse da proposta behaviorista não consegue porém supe rar o reducionismo psicologista com efeito a gênese da cultura é ex plicada no âmbito da natureza a energia sublimada sendo de algum modo sempre concebida como fenômeno inerente à esfera psíquica Conhecemos uma solução muito mais convenien te a chamada sublimação pela qual a energia dos desejos infantis não se anula mas ao contrá rio permanece utilizável substituindose o alvo de algumas tendências por outro mais elevado quiçá não mais de ordem sexual Exatamente os com ponentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social Ao reforço de energia para nossas funções mentais por essa maneira obtido devemos pro vavelmente as maiores conquistas da civilização FREUD 1974 p 20 Se por um lado cabe reconhecer o mérito da tentativa empre endida por Freud 1974 para compatibilizar na psicanálise os dois âmbitos da natureza e da cultura por outro é evidente que a expli cação dada dos processos culturais incorre no psicologismo Com efeito tratase mais uma vez de uma definição de cultura dentro de um referencial e de categorias preconcebidas no contexto da teoria Familianatureza e culturaindd 53 211113 0906 54 psicanalítica ou seja limitadas dentro do âmbito do discurso psicoló gico naturalizado a sublimação dos desejos reprimidos seria de fato o dinamismo psíquico causa da produção cultural efeito Portanto a cultura seria ainda definida no âmbito do universo psicológico sen do assim subordinada à ciência à sua linguagem e aos seus métodos Isto evidencia que a relação entre cultura e psicologia é estabelecida por Freud 1974 de modo a depender da concepção da Psicanálise como ciência determinista moldada pelo Positivismo Dessa forma é na base das categorias psicanalíticas que Freud 1974 propõese a explicar a gênese da cultura Existe aqui uma implícita prioridade a psicanálise é uma ciência e como tal cabe a ela explicar a cultura Com efeito Freud 1974 movese num horizonte profundamente marcado pela epistemologia positivista modulada segundo uma modalidade peculiar marcada pelo contexto cultural e científico alemão do século XIX onde enfrentar o tema da cultura seria inevitável A Psicologia contemporânea também não consegue solucionar os problemas decorrentes pela herança das categorias modernas de natureza e cultura que reproduzem na abordagem a pessoa uma ine vitável polarização Por um lado as modernas neurociências buscam resolver a experiência humana nos termos da natureza assim como o método científico atualmente a define por outro as abordagens his toricistas estruturalistas e construcionistas entendem a pessoa como construto criado ou pelo processo histórico ou pela linguagem Tra tase em suma de enfoques parciais e evidentemente inadequados em proporcionar uma abordagem integral da questão humana Para uma fenomenologia da pessoa Panorama a fenomenologia da pessoa propõese hoje como um caminho heurístico possível De fato a fenomenologia realiza aquela análise radical e realmente livre de pressupostos que torna possível apreender o que é propriamente essencial HUSSERL 2002 p 236 grifo do autor da psique de uma pessoa do elemento psíquico Familianatureza e culturaindd 54 211113 0906 55 do mundo da vida podendo portanto constituirse em alicerce sóli do e autêntico de uma ciência da pessoa Referências SILVA J B de A e Projetos para o Brasil São Paulo Companhia das Letras 1998 Coleção Retratos do Brasil ARENDT H A condição humana Rio de Janeiro Forense Universitária 1999 BELLO A A Cultura e religiões uma leitura fenomenológica Bauru EDUSC 1988 BRUNO G Sobre o infinito o universo e os mundos São Paulo Abril Cultural 1992 DESCARTES R Discurso do Método Lisboa Edições 70 1988 FOUCAULT M História da sexualidade III O cuidado de si Rio de Janeiro Graal 1985 FREUD S Cinco Lições de Psicanálise São Paulo Abril Cultural 1974 p 744 v 39 GUARDINI R O fim da idade moderna Lisboa Edições 70 1995 HADOT P Esercizi spirituali e filosofia ântica Torino Einaudi 2005 HORKHEIMER Max Eclipse da razão Torino Einaudi 1969 HUSSERL E La crisi delle sicenze europee e la fenomenologia trascendentale Milano Il Saggiatore Net 2002 MASSIMI M Matrizes do pensamento em psicologia social na América Latina história e perspectivas In CAMPOS Regina GUARESCHI Pedrinho Org Paradigmas em psicologia social perspectiva Latino Americana Petrópolis Vozes 2000 p 3258 NUNES F J S Política Brasílica Porto n 1781 manuscrito PICO DELLA MIRANDOLA G Discurso sobre a dignidade do homem Lisboa Edições 70 2001 SINYAVSKY A D Pensieri improvvisi Milano Jaca Book 1977 SKINNER B Ciência e comportamento humano São Paulo Edart 1976 ZAMBRANO M Pessoa e democracia Lisboa Fim do século 2004 Familianatureza e culturaindd 55 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 56 211113 0906 57 Capítulo 3 Nascimento e morte na família originalidade e evidência da existência humana Miriã Alves Ramos de Alcântara Introdução O presente capítulo tem o objetivo de contribuir para a com preensão dos nexos entre natureza e cultura nos estudos da família através da análise de dois fenômenos transversais a esta instituição o nascimento e a morte Estes fenômenos têm o poder de acionar a memória individual e coletiva mobilizar emoções fomentar laços dissolver e consolidar vínculos essenciais na vida da pessoa Desins talando o indivíduo de si mesmo nascimento e morte opõemse e contrastamse em termos do sentimento e das relações entre os sujei tos deste processo Por outro lado eles se complementam no que se refere à busca do sentido e da felicidade A sociedade atual lida com o problema da felicidade e das ne cessidades humanas buscando satisfazêlas Com este intuito cons truiu um verdadeiro sistema o mundo da técnica que além de solucionar problemas de graves consequências proporciona maior conforto e comodidade O espaço para o desejo humano no entanto se mantém ainda que este não esteja mais tão diretamente conectado à satisfação das necessidades Familianatureza e culturaindd 57 211113 0906 58 Reconhecendo o valor da técnica e do seu alcance para a organização da cultura ocidental indiquemos inicialmente a rela ção entre natureza e cultura deste vetor Até muito recentemente os desejos humanos estavam estreitamente ligados ou interconec tados à satisfação das necessidades Encontravase no mundo do trabalho e no mundo da família o suporte efetivo para a expressão de profundos desejos O trabalho de parto tornava a mulher e seu marido agentes na mediação de gerações nos sentidos ascendente e descendente O trabalho do artesão e do agricultor imprimia a norma humana no mundo da matéria As obras de arte a arqui tetura as descobertas da ciência e os feitos da engenharia de cada época indicavam como ápice da razão e da técnica a materializa ção dos desejos mais elevados de superação dos limites humanos De alguma maneira o ser humano procurava respostas às suas aspirações e ideais quando estas emergiam nas necessidades do corpo e no seu cotidiano Com o advento da sociedade industrial fezse necessário dis sociar o que até aquele momento esteve integrado Tornando as neces sidades básicas da vida humana relevantes a técnica deixa de lado os desejos e a espiritualidade do campo da consciência Neste momento o ser humano constrói o universo não humano da coisa ilustrado pelos arranhacéus Este representa o progresso econômico mas não apenas Simboliza a nova maneira de procurar e dar sentido às rela ções e aos vínculos orientado pelo capital Neste horizonte instaurase uma nova ferida narcísica pela qual a sexualidade dissociase do amor e da procriação convertese em objeto de prazer Por outro lado o trabalho se converte em âmbito de produção de bens e distribuição de objetos com fins mercantilis tas A maior liberdade sexual em relação aos aspectos marcadamente biológicos acontece em concomitante à liberação de um humanismo que procurava estabelecer o domínio de impulsos sexuais através de regras de conduta BRODEUR 1994 Familianatureza e culturaindd 58 211113 0906 59 Vida e morte na família estado da arte A linha de pesquisa acerca do significado da vida e da morte na família cresce e ganha consistência na última década retomando a discussão posta de lado com o advento da juventude como valor a vivência do nascimento e da morte no contexto de dinâmicas familia res complexas e em constante transformação inclusive as mudanças relativas ao vínculo A principal demanda da pessoa nas diversas fases da vida re presenta um desafio para os membros mais jovens da família aceitar acolher e apoiar as necessidades decorrentes de um corpo em trans formação O status desenvolvimental das mudanças no curso de vida é conferido pelos nexos entre o biológico o cultural e o simbólico que acompanham concepções e representações acerca da vida da morte e sobretudo das trocas sociais nas etapas em que a pessoa pode apre sentar vulnerabilidades de diversas ordens As investigações acerca da origem e evolução do comporta mento pautadas nas correntes teóricas mais influentes da psicologia no entanto não chegam a formular uma resposta ao motivo da exis tência humana e do por que vale a pena viver deixando o espaço para a filosofia e para a metafísica A antiga discussão sobre a origem das características pessoais longe de encontrar resposta cedeu lugar a vertentes que apoiam a natureza intrínseca do organismo em contra posição à influência do ambiente com forte base interacionista Esta atitude esvaziou a pergunta sobre o sentido da existência desviando a atenção para a estrutura no caso da psicanálise e para trocas pessoa ambiente implicadas na aprendizagem do comportamento influên cia da pragmática Do ponto de vista da experiência da pessoa na família nasci mento e morte reivindicam atitudes com as quais lidar com os fatos da vida Estar diante da vida como um novo começo olhar a cada instante como sendo feito naquele momento o fazerse de cada ins tante implica na atitude de valorização de todos os fatos e encontros Familianatureza e culturaindd 59 211113 0906 60 como possibilidade de abertura ao outro atitude que na família traz importantes consequências desde a compreensão de que o cônjuge é renovado a cada momento até a decisão de acolher os filhos que nascem ou são adotados Por outro lado em alguns momentos é possível viver conjuga lidade parentalidade e filiação tendo como horizonte a percepção da precariedade da vida sinal da existência da morte com implicações no modo de lidar com eventos inesperados normativos ou disrupti vos assim como com características difíceis dos membros familiares o que predispõe à emergência de conflitos de diversas ordens Este dado pode ser dificultado quando se coloca sobre a própria pessoa a responsabilidade por produzir a própria felicidade e a do outro Esta pretensão revelase insuficiente pois o outro é incapaz de satisfazer o desejo de bem e de felicidade que o ser humano carrega No entanto a vida familiar é pensada como âmbito que proporciona a resposta a essa expectativa Nascer e morrer são processos que a seu modo pos suem um ponto de convergência constrangem a pessoa a conectarse com dimensões simbólicas e existenciais que ultrapassam o tempo e o espaço presentes Tratase de eventos que marcam o início e o fim da existência humana e suscitam indagações acerca do sentido do viver mobilizando tentativas de resposta da pessoa Esse processo acontece em todas as culturas e em todas as épocas mobilizando o ser humano a lidar com a natureza gerando formas culturalmente novas de en frentar os desafios à sua sobrevivência desenvolvimento da ciência arte literatura Na psicologia a pergunta sobre o sentido da existência huma na está no cerne das motivações para o comportamento Sem a res posta para o porquê da vida o vazio e a angústia existenciais afetam o ser humano A busca do indivíduo por um sentido é a motiva ção primária em sua vida e não uma racionaliza ção secundária de impulsos instintivos Esse sen tido é exclusivo e específico uma vez que precisa Familianatureza e culturaindd 60 211113 0906 61 e pode ser cumprido somente por aquela determi nada pessoa Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vonta de de sentido FRANKL 1999 p 58 Tal necessidade de sentido acerca da vida é um impulso espe cificamente humano arraigado nas camadas mais profundas do psi quismo O nascimento da criança e a transição para parentalidade Embora hoje a família enquanto contexto de desenvolvim ento ou como principal nicho ecológico seja alvo de muitas pes quisas esta sua característica de acordo com Kreppner 2000 foi por muito tempo negligenciada Apenas nas décadas de 60 e 70 com a difusão dos estudos etológicos é que a família foi redescoberta e situada como um contexto importante espaço de mediação entre in divíduo e sociedade A ideia de continuidade de características entre as espécies en contra certo respaldo em outras abordagens que por meio da com paração com o comportamento animal fundamenta as explicações da conduta humana A perspectiva coconstrutivista segundo a qual os processos psicológicos superiores são culturalmente construídos afirma que só a partir do mundo cultural é que se pode construir ativamente a rede de conhecimento e significados Bastos e Almei da Filho 1999 p 61 corroboram esta ideia ao afirmar que os indivíduos constroem ativamente seus próprios contextos dentro dos limites socialmente articulados pela cultura e a dinâmica re sultante fundamentase em práticas coletivas e significativas que o próprio sistema cria para se autoproduzir As mudanças por que passa o corpo feminino durante a gravi dez o parto a amamentação e o puerpério não requerem o apoio da cultura para que se realizem mas são acionadas por mecanismos de caráter biológico que as tornam inevitáveis No momento em que o Familianatureza e culturaindd 61 211113 0906 62 óvulo é fecundado tem início uma série de transformações inerentes às combinações da cadeia de genes que determinam desde as carac terísticas físicas do embrião até sua alimentação e posição no ventre materno Este é um dos processos humanos em que a vontade e a compreensão dos genitores não interferem diretamente na manifes tação dos acontecimentos A mãe é incapaz de sequer imaginar as feições exatas do filho que carrega em seu ventre e muito menos de precisar as divisões celulares e até mesmo os movimentos que ele re aliza durante os nove meses No entanto é exatamente diante do as pecto de desconhecimento ou de mistério quanto aos passos desses processos que surge o maravilhamento com a criança e o sentido de presente que esta traz para a família A expectativa em torno da chegada do filho leva os pais a pre pararemse para acolhida de um ser que ainda não conhecem A espe ra do desconhecido transforma a família introduzindo novos signos e símbolos Se de um lado o aspecto simbólico não tem uma finalida de imediata mas é inerente à expectativa de ser genitor este universo simbólico o prepara para ingressar em contextos culturais complexos e inovadores que concretizados pela cultura oferecem suporte como o sistema de saúde a família extensa a creche os parques dentre outros Do ponto de vista do corpo feminino os acontecimentos acio nados durante a gravidez pelos sistemas neuronais e hormonais re querem constante adaptação a mudanças O protagonismo feminino contribui com a decisão de viver essas transformações buscando bem estar e de assumir a dramaticidade que estes processos desencadeiam Marcada pela temporalidade a parentalidade é intransitiva irreversí vel e atemporal Embora acionada por dispositivos fisiológicos a ma ternidade toma parte dentro de um processo amplo de coconstrução e de diálogo com a cultura desde as tradições familiares até os valores e normas que uma comunidade apresenta para dar significado à mu dança Familianatureza e culturaindd 62 211113 0906 63 O nascimento de uma criança surpreende os pais e os deixam gratos pela forma com a qual a natureza mesma esculpe suas próprias características naquele novo ser É ainda mais verdadeira a gratidão muitas vezes ao lado do pesar e da perplexidade dos pais quando aco lhem crianças que não têm a formação completa de seu corpo físico Neste caso ainda é mais presente e aguda a busca pela origem desses processos Desde muito cedo as crianças trocam experiências com os pais e outros membros da família assim como a reconhecem suas in tenções Kreppner 2000 analisou a interdependência entre criança e família na trajetória de desenvolvimento evidenciando o papel da família como o principal contexto de desenvolvimento e como a insti tuição responsável pela transmissão da cultura A troca de informações na família é um processo recíproco pois os membros familiares enviam mensagens simbólicas e espontâ neas assim como também as recebem compartilhando deste modo aspectos subjetivos uns dos outros e sentindose participantes de uma rede de apoio mútuo A evidência de que a criança depende do adulto desde o ventre materno estendese para a vida do adulto pois não é possível garantir a continuidade permanência e atualidade de processos de natureza neuronalfisiológica que garantem a vida humana Do mesmo modo não é possível atribuirse a própria identidade sem o outro A pes soa não tem origem em si mesma portanto só é possível tornarse adulto na relação com outra pessoa As características próprias do ser humano são transmitidas por vias muito amplas que ultrapassam as definições biológicas Tais relações são marcadas por uma qualidade por uma integralidade de doação incondicional Este espaço define o âmbito da iniciativa de educar a criança gesto indispensável à conti nuidade da vida humana O dom inicial da existência mostra sua de manda por confiar no outro naquele que possui condições de acolhê lo e de fazêlo crescer Familianatureza e culturaindd 63 211113 0906 64 A vida manifesta na criança através do nascimento necessita do apoio de pais dispostos a dar continuidade à profunda lógica da novidade nascer é início e novidade como afirma Arendt 1989 p 516 Finitude e morte perguntas fundamentais Há diferentes concepções e atitudes frente à morte que in fluenciam o modo de estar na vida e na família Heidegger 2003 p 5 em Mundo finitude e solidão questionase acerca da filosofia e afirma seu caráter incomparável uma vez que a metafísica não pode retirarse do interior do ser humano Ele questionase Como a metafísica pode se evadir de nós Como e para onde se nós mesmos somos os homens Mas o que é o homem Se sabemos tão pouco sobre o homem como nossa essência não seria estranha para nós Heidegger 2003 p 67 continua A filosofia é propriamente uma saudade da pátria um impulso para se estar por toda parte em casa Novalis Estar por toda parte em casa significa estar em casa a qualquer momento e sobretudo na totalidade Nós somos e porque somos esperamos sempre por algo Sempre somos chamados por algo como um todo Para Heidegger 2003 a intuição da finitude nasce da busca pela totalidade e define a singularidade da pessoa humana Esta se ocupa dos meios necessários à sobrevivência a fim de mascarar sua inquietação forjando um cotidiano regular e previsível Neste hori zonte a vida esvaziase de gosto uma vez que a única certeza é a do imprevisto da fragilidade e da morte inerente ao movimento da com preensão No entanto esta perspectiva acerca da morte contrapõese à experiência do ser humano diante do nascimento e da nova vida O bebê manifesta uma irresistível força e tendência a manterse vivo recorrendo a todos os meios para ultrapassar a circunscrição da tem poralidade e do espaço O bebê humano comportase não como al Familianatureza e culturaindd 64 211113 0906 65 guém destinado à morte marcado pela finitude mas lançase na vida confiando naqueles aos quais pertence Suas interações com o mundo são marcadas pela certeza de ser apoiado por uma realidade maior A expressão desta confiança é confirmada pela temporalidade fator indispensável ao desenvolvimento humano tanto do ponto de vista do conceito deste processo quanto no que se refere à ocorrência do cuidado ao surgimento do vínculo e das transformações concretas que formam a base de processos amplos de natureza psicossocial Nos termos propostos por Bergson o tempo é compreendido pela pessoa como duração durée ROSSETTI 2001 Augras 1978 apresenta o tempo como condição que inevitavelmente conduz à morte O ser hu mano vivencia o tempo como certeza existencial do caminho para a morte A autora descreve a compreensão desse horizonte existencial da seguinte forma O futuro jamais é dado É sonhado temido mas nunca conquistado já que o seu limite sempre re cua Para o indivíduo porém o recuo acaba topan do em obstáculo irremovível que fixa em retorno todas as feições dos significados do seu mundo repercutindo então na valorização do seu futuro na vivência do presente e na interpretação do pas sado A esse termo do horizonte existencial cha mase morte O ser diante de si mesmo nada mais é do que o ser para a morte É essa certeza inacei tável que fundamenta a ambigüidade do horizon te existencial O tempo antes definido como dimensão significativa do ser vê então a sua ori gem revelada o tempo é criação do homem não apenas na forma de parâmetro que facilita a orde nação das ações humanas mas sobretudo como tentativa de negar a morte AUGRAS 1978 p 32 Em outra posição Wojtyla 2003 afirma que o tempo é objeti vo e definido por uma realidade que transcende o próprio ser huma no este sim está enraizado na temporalidade e aspira à eternidade Dotado da capacidade de autodeterminação o ser humano não tem Familianatureza e culturaindd 65 211113 0906 66 seu ato tutelado pelo temor da morte mas ao contrário é livre e capaz de aderir ao bem O ser humano ainda tem dentro de sua identidade a marca da alteridade a lhe conferir a característica singularidade que jamais é vivida na solidão mas que é preenchida por uma presença Augras 1978 reflete acerca da atribuição de significado para o tempo e afirma que no decorrer do processo histórico houve mu danças substantivas das formas como o tempo é apreendido Desde a Grécia Antiga a simbolização do tempo esteve relacionada à morte e ao homem representado como senil Esta foi a imagem atribuída a Chronos senhor do tempo e da morte representado por um ancião que portava uma foice para ceifar vidas Na civilização contemporâ nea o significado do tempo sob a influência das relações de mercado foi equiparado ao valor monetário Diante da substituição do conceito de tempo enquanto morte para o de tempo enquanto dinheiro Au gras 1978 problematiza o indivíduo e os projetos existenciais do ser humano de cada época A obra de Arendt 1989 1999 em diversos momentos retrata o fenômeno da banalização da morte e da violência nas sociedades urbanas da pósmodernidade indicando em diversos processos sociais sinais do retorno à barbárie anterior à busca de sig nificado do ser da sociedade grega Arendt 2003 p 2526 assinala a origem destes processos O aspecto provavelmente mais surpreen dente e desconcertante da fuga da realidade é o hábito de tratar os fatos como se fossem meras opiniões Todos os fatos podem ser mudados e todas as mentiras tornadas verdadeiras Arendt 2003 no livro A condição humana afirma que os se res humanos vivem em condições diversas determinadas biologica mente vidanascimento historicamente mundopluralidade mas sua peculiaridade consiste em não ser mais completamente reduzido a essas condições Desde seu nascimento o ser humano entra em con tato com a pluralidade dos seres viventes e passa sua existência sobre a terra transformando o mundo natural em mundo artificial criado para responder de modo mais adequado às suas necessidades Essas condições acontecem na vida humana de acordo com três atividades Familianatureza e culturaindd 66 211113 0906 67 próprias da existência trabalho obra e ação que consistem em mo delos de ação condições de base sobre as quais acontece a vida na terra A busca por ultrapassar essas condições leva o homem a viver sem amor à vida Na obra As origens do totalitarismo Arendt 1989 descreve os totalitarismos nazista e stalinista com sua inédita lógica de opressão e negação da dignidade humana Além de negar o espaço público onde indivíduos podem se manifestar politicamente os totalitaris mos destroem a vida privada suprimindo projetos de vida pois a pes soa é vista como integrante de um estado total cuja meta coincide com o estado do qual todos dependem Todos são considerados como única massa homogênea mas todos estão isolados Na terceira par te da obra intitulada Ideologia e terror uma nova forma de governo Arendt 1989 reflete acerca do nascimento do ser humano repleto de significados e de esperança para aqueles que o acolhem Diante do novo ser humano a liberdade e a compreensão do que é a vida têm início O homem foi criado para que exista um começo diz Agosti nho de Hipona Cada novo nascimento garante esse começo A cada nascimento um novo começo surge para o mundo um novo mundo em potencial passa a existir ARENDT 1989 p 517 Aproximandose de Agostinho de Hipona Arendt 1989 afir ma que o homem foi criado para que haja o começo Nesse sentido pensar significa um novo começo um initium que corresponde à ca pacidade humana de agir Pensamento e Ação coexistem na liberdade Através dela a ação tornase visível e o pensamento deixa seus vestí gios O próprio homem é initium pois somente a sua vontade e a sua liberdade realizam o primeiro movimento ou o interrompe O nascimento e a novidade imprimem a exigência de que toda ação política seja um novo começo pois o novo começo do ser no mundo implica em compreensão e significa assimilar o sentido de algo que tem um sentido Em oposição à ação política está o sem sentido do totalitarismo o qual segundo Arendt 1989 não está su perado A força do nascimento opõese ao terror Familianatureza e culturaindd 67 211113 0906 68 O terror é necessário para que o nascimento de cada novo ser humano não dê origem a um novo começo que imponha ao mundo a sua voz tam bém a força autocoerciva da lógica é mobilizada para que ninguém jamais comece a pensar e o pensamento como a mais livre e mais pura das atividades humanas é exatamente o oposto do processo compulsório de dedução O governo totalitário só se sente seguro na medida em que pode mobilizar a própria força de vontade do homem para forçálo a mergulhar naquele gigan tesco movimento da História ou da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora nascimento ou morte ARENDT 1989 p 526 Considerações finais O ser humano sente de maneira intensa a urgência de respos ta ao desejo que se manifesta em todos os âmbitos da sua existência Este desejo encontra na sociedade atual diversas formas de satisfação O convite ao carpe diem evidencia que a opção pela obtenção imediata de respostas ou de um prazer que aplaque a inquietação ocorre em uma existência marcada pelo efêmero É neste ponto que a relação educacional atua eliminando a es traneidade da pessoa com seu próprio destino e desejo favorecendo a emergência de uma identidade diferenciada e original Esta educação é um convite ao retorno de um clima cultural baseado na homologa ção e na assimilação irrefletida de padrões de comportamento que distanciam o ser humano de si mesmo A família deve ser favorecida enquanto contexto primordial de educação à liberdade Referências AUGRAS M O Ser da compreensão fenomenologia da situação de psicodiagnóstico Petrópolis Vozes 1978 Familianatureza e culturaindd 68 211113 0906 69 ARENDT H A condição humana Rio de Janeiro Forense Universitária 2003 Eichmann em Jerusalém um relato sobre a banalidade do mal São Paulo Companhia das Letras 1999 Origens do totalitarismo São Paulo Companhia das Letras 1989 BASTOS A C S ALMEIDAFILHO N B Eventos disruptivos modos de partilhar e trajetórias de desenvolvimento no contexto de famílias vivendo em pobreza Interfaces Revista de Psicologia v 2 n 1 1999 BRODEUR C Hagamos un lugar al deseo In SANICOLA Lia Org Lintervento di rete Napoli Liguori 1994 FRANKL V E Em busca de sentido um psicólogo num campo de concentração Petrópolis Vozes 1999 HEIDEGGER M Os conceitos fundamentais da metafísica mundo finitude e solidão Rio de Janeiro Forense Universitária 2003 WOJTYLA K Metafísica della persona a cura di Giovanni Reale e Tadeusz Styczen Milano Bompiani 2003 KREPPNER K The child and the Family Interdependence in Developmental Pathways Psic Teor e Pesqu Brasília v 16 n 1 janabr 2000 Disponível em httpwwwscielobrpdfptpv16n14383pdf Acesso em 30 jul 2013 ROSSETTI R Bergson e a natureza temporal da vida psíquica Psicol Reflex Crít Porto Alegre v 14 n 3 p 617623 2001 Disponível em http wwwscielobrpdfprcv14n37847pdf Acesso em 30 jul 2013 Familianatureza e culturaindd 69 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 70 211113 0906 71 Capítulo 4 Natureza e cultura há alguma coisa que está dentro do homem que não esteve fora Há alguma coisa que está fora do homem que não esteve dentro Elaine Pedreira Rabinovich Após terminar o mestrado em que o foco foi o desenvolvi mento infantil defendido no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em que fui orientada por Ana Maria Almeida Carvalho tivemos o seguinte diálogo Elaine há alguma coisa que está dentro do homem que um dia não esteve fora Ana há alguma coisa que está fora do homem que um dia não esteve dentro Uma posição culturalista tem me levado consistentemente a enfatizar a influência do meio cultural construído sóciohistorica mente Donde o homem se faz no encontro com esse meio Como psicóloga clínica recebi uma forte influência da psicanálise aproxi mandome mais do pensamento de Winnicott 1982 devido à sua vertente cultural Ana vem de uma formação etológica neodarwinia Familianatureza e culturaindd 71 211113 0906 72 na em que a emergência do humano se dá no longo tempo e em adap tações bem sucedidas ao meio Seriam posições antagônicas como as que nomearam o debate deste livro natureza e cultura No entanto após este breve diálogo ambas concebemos que a outra tinha razão Ana acrescentando Ana É e atualmente o instinto é visto como algo maleável e parcialmente aprendido Portanto nem o instinto pode ser visto mais como apenas bio lógico e o único existente é o fenótipo Porém para mim também depois de ter estudado etologia pareceme absurdo não conceber que o desejo de sobrevivência é o que move o mundo Ou seja as explica ções de longo tempo são absolutamente lógicas e coerentes embora possam pecar pela tendência universalista O longo tempo não deixa de ser um tempo histórico BRAUDEL 1983 O que a etologia ensina Que a cultura é a natureza do homem que o homem é um animal cultural e que o meio em que vivemos é o meio sociocultural do homem Para a psicologia assim como para Ana e para mim o conflito entre natureza e cultura desapareceu há cerca de 40 anos Em seu lugar foram colocados dois posicionamen tos que generalizo como interacionista e construtivista O primeiro defendido pelos etólogos sustenta que a pessoa nasce com prédisposições que serão formatadas por meio das inte rações com outras pessoas e com o contexto Por exemplo a pessoa nasce com a prédisposição para falar mas falar depende de ter com quem falar da presença de outro falante Nasce também com a pos sibilidade de falar qualquer língua mas bem cedo com 10 dias de idade já está perdendo conexões neurológicas e estabelecendo outras que a capacitam a falar uma língua específica Portanto falar não é ensinado apenas é ensinada qual língua será falada Familianatureza e culturaindd 72 211113 0906 73 Assim para Carvalho Bussab e Rabinovich 20131 A criação permite a expressão da nossa natureza que por sua vez depende da primeira Uma nova compreensão do como se processa o efeito genéti co vem se construindo na Psicologia e na própria Genética Comportamentos não surgem de uma leitura simples dos genes emergem de uma tran sação bidirecional contínua entre todos os níveis de fatores biológicos e experienciais O segundo o ponto de vista construtivista defendido pela maioria dos psicólogos atualmente está ligado aos cognitivistas mas também à psicanálise A pessoa é transformada por meio de seus con tatos com outras pessoas e com o meio Formamse novas estrutu ras mentais vistas sejam nos estágios do desenvolvimento cognitivo conforme Piaget ou nas fases de desenvolvimento emocional segundo Freud 1948 até atingir um estágio pleno humano Há uma enorme diferença de nível ontológico entre essas duas posições em uma a pessoa nasce humana na outra a pessoa se torna humana Numa há uma continuidade com o reino animal noutra há um corte entre esses reinos Contudo muitas das disputas entre disciplinas ou mesmo principalmente dentro de disciplinas decorrem da busca de poder em que áreas são demarcadas e nomeadas e ao mesmo tempo e por meio disto apropriadas em nome de quem deu o nome Pode haver também ignorância e desconhecimento No entanto há pontes possí veis entre as disciplinas e o Programa de pósgraduação em Família da Universidade Católica de Salvador UCSal não deixa de apontar para tal possibilidade Dentro da questão da interdisciplinaridade e da relação natu rezacultura gostaria de fazer um resumo de algumas das ideias de 1 Família e cuidado parental no ser humano um olhar biopsicossocial de M A R Alcântara Elaine Rabinovich Vera Silvia Raad Bussab cap 5 deste volume Familianatureza e culturaindd 73 211113 0906 74 um geógrafo humanista Berque 2010 que se apoia em um biólogo querido aos etólogos e atualmente às ciências humanas Von Uexhul que mostra que cada ser vivo vive em um mundo decorrente de seus sentidos ou seja o mundo da abelha é diverso do da formiga Berque 2000 2002 2009 2010 cuja tese central pode ser dita a de que estamos perdendo a dimensão humana da vida no pla neta remetese ao conceito de chôra de Platão para reinterpretar a noção de bios Platão no Timeu utiliza a propósito do meio onde ocorre a realidade sensível genesis o que ele denomina chôra qualifi ca esta como o terceiro e outro gênero por não estar relacionada nem ao mundo inteligível nem ao sensível Berque sugere que esta ideia aplicada ao dualismo moderno leva a olhar a realidade dos meios humanos além de uma única polaridade aquela entre o sujeito e o ob jeto Este terceiro gênero além do sujeito e do objeto Berque 2010 p 14 tradução nossa chama de trajetividade As coisas que constituem nosso corpo medial nos so meio são trajectivas na medida em qie elas não são nem propriamente nós próprios ie sujeitos nem puros emsi destadados de nossa existência ie objetos Se elas existem para nós é apenas na medida em que nossos sentidos e os sistemas técnicos e simbólicos que os exteriorizam relacio namnas a nós mesmos enquanto alguma coisa A trajeção é justamente a operação deste enquanto que pelo qual as coisas da abstração de puro em si tornamse uma realidade humana quer di zer a realidade pois só podemos ser humanos e só existe para nós a realidade humana Esse devir sensível é a genesis O que Berque 2000 2002 propõe é que as consequências da nosas no modo de habitar o nosso planeta decorrem de uma visão de ciência e de homem exemplificada pelo pensamento cartesiano em que ocorre uma dissociação entre sujeito e objeto e o mundo se torna algo objetável e segundo ele transformanos em Cyborgs Ele propõe Familianatureza e culturaindd 74 211113 0906 75 então uma visão integrada de natureza e cultura onde ambas exis tem tão somente por meio de um mesmo momento e movimento em que o ser ao se exteriorizar encontra o meio sóciocultural que existe apenas a partir deste encontro Deste modo recorrendo a Platão voltamos ao início não ape nas da gênese mas também aos inícios do que conhecemos como filo sofia e reconhecemos como conhecimento Assim parece que a metá fora do elefante e dos sábioscientistas em que cada um ao descrever uma parte do elefante atribuise o conhecimento da verdade única e verdadeira continua nos guiando enquanto a resposta estaria em uma espécie de retorno à filosofia como uma forma de conhecimento integrado anterior à sua desintegração nos vários ramos da ciência Portanto a questão proposta por este livro é um retorno a algo que a psicologia pensou ter resolvido por meio de estudos sistemá ticos das condições objetivas e subjetivas de desenvolvimento mas para cuja resposta em termos interdisciplinares ou mais propriamen te para alcançar um objeto transdisciplinar será preciso retomar as questões originais da filosofia quais sejam a ontologia a epistemo logia a estética e a ética Referências BERQUE Augustin Logique des lieux de l ecoumène Communication v 87 n 87 p 1726 2010 Cybele et Cyborg les échelles de lécoumène Urbanisme n 314 p 4042 2000 Lhabit insoutenable Recherche sur lhistoire de la désurbanité LEspace Géographique Berlin v 31 n 3 p 241251 2002 Les travaux et les jours Histoire naturelle et histoire humaine LEspace Géographique Berlin v 38 n 1 p 7382 2009 BRAUDEL Fernand O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo São Paulo Martins Fontes 1983 CHANG Rosemarie S Ed Relations to environments A new look of umwelt Charlotte IAP 2009 Familianatureza e culturaindd 75 211113 0906 76 FREUD Sigmund Obras completas Madrid Editorial Biblioteca Nueva 1948 p 60299 v 2 PIAGET Jean Piaget 2 ed São Paulo Abril Cultural 1983 Os pensadores WINNICOTT Donald W Da pediatria à psicanálise 2 ed Rio de Janeiro Francisco Alves 1982 p 389408 Familianatureza e culturaindd 76 211113 0906 77 Capítulo 5 Família e cuidado parental no ser humano um olhar biopsicossocial Ana Maria Almeida Carvalho Vera Silvia Raab Bussab1 Elaine Pedreira Rabinovich Introdução Na primeira metade do século XX uma concepção insular do homem ainda dominava as ciências humanas rejeitando qualquer li gação com naturalismos e pensando o homem como destacado da natureza e oposto a ela No entanto segundo Morin 1979 encon tramse tentativas teóricas de ancorar a ciência do homem em uma base natural já no pensamento do jovem Marx bem como de outros pensadores do século XIX como Engels Spencer e Freud Esse esforço precoce de integração das várias ciências que tratam do homem não teria vingado por não ter encontrado um terreno propício nos conhe cimentos até então disponíveis na antropologia e na biologia os ca minhos abertos pela teoria da evolução pela genética e pela ecologia encontravamse ainda em seus primórdios REICHHOLF 2008 Ele renasce no entanto a partir da segunda metade do século XX com 1 Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq Funda ção de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP Familianatureza e culturaindd 77 211113 0906 78 a consolidação desses conhecimentos e da noção progressivamente mais fortalecida de interdisciplinaridade e tem sido desenvolvido em relação a diversos campos e fenômenos da experiência humana O objetivo deste capítulo é examinar as bases biológicas da fa mília e do cuidado parental humanos a partir de um olhar que recu pera o que Morin 1979 chama de unidade biopsicossocial do ser humano 1 Há evidências e argumentos para o reconhecimento dessas bases biológicas Quais São compatíveis com evidências históricas e an tropológicas 2 Há uma ou mais configurações particulares de famíliacuidado pa rental favorecidas por essas bases biológicas 3 O que justifica a família humana sua existência suas configurações e suas práticas de cuidado parental em termos adaptativos no sen tido biológico ou seja que pressões seletivas e que soluções adapta tivas operaram no decorrer da evolução humana na criação dessas bases biológicas 4 Que mecanismos e processos psicobiológicos constituem as bases biológicas da família e do cuidado parental 5 Qual o nível de suscetibilidadeflexibilidade desses mecanismos e processos em relação a contextos ecológicos e históricoculturais Para tentar essa integração propomos reexaminar a concep ção de família como instituição culturalmente arbitrária sem qual quer fundamento biológico Para isso percorremos duas etapas de revisão de literatura 1 A partir de uma perspectiva psicoetológica situamos comparati vamente os fenômenos Família e Comportamento Parental no rei no animal e particularmente no campo da evolução dos primatas examinando as funções adaptativas do grupo familiar no processo evolutivo a diversidade de arranjos familiares e parentais e suas re lações com pressões ecológicas e modos de vida associados Familianatureza e culturaindd 78 211113 0906 79 2 A partir de literatura das ciências sociais particularmente Paleoan tropologia História e Antropologia identificamos as configurações familiares e de cuidado parental no Homo procurando relacionálas aos modos de vida que se sucederam e coexistiram e ainda coexis tem na história da espécie Com base nessas literaturas procuramos responder as per guntas acima examinando a possibilidade de integração dessas evi dências em uma concepção não dicotômica de natureza e cultura para a compreensão de fenômenos humanos fundamentais como família e cuidado parental Para consolidar essa possibilidade retomamos a perspectiva psicoetológica visando apresentar o vínculo como fenô meno psicológico básico subjacente à constituição da família revendo as funções do apego seus mecanismos e condições de desenvolvimen to na vida individual Em conclusão revisitamos a concepção culturalista argumen tando pela possibilidade de apreensão da unidade biopsicossocial do ser humano através de um enfoque que integre os conceitos de na tureza e cultura compreendendo suas relações indissociáveis no ser humano cuja natureza é de um ser biologicamente sociocultural Família constructo cultural As concepções de família e cuidado parental no ser humano como instituições e práticas culturais arbitrárias sem qualquer funda mento biológico baseiamse em dois tipos principais de argumentos 1 O argumento da universalidade versus diversidade Reconhecese consensualmente que os fenômenos Família e Cuidado Parental são universais no ser humano desde a préhistória mas a diversidade de suas configurações indicaria que são moldados basicamente por fatores econômicos e socioculturais 2 O argumento da ausência ou variabilidade do cuidado parental Há farta documentação sobre a incidência de infanticídio abandono Familianatureza e culturaindd 79 211113 0906 80 e maus tratos na infância o que indicaria a ausência de qualquer predisposição biológica para o cuidado parental BADINTER 1985 É para esses argumentos que tentaremos encontrar respostas a partir de um olhar psicoetológico cuja premissa básica é de que tanto quanto a estrutura orgânica o comportamento ou seja a psi cologia de uma espécie é simultaneamente produto e instrumento de seu processo de evolução É o comportamento do fenótipo sua interação com o ambiente mediada por processos psicológicos que possibilita a retroação da seleção natural sobre a variabilidade gené tica A compreensão desses processos requer portanto a considera ção de questões de evolução e de adaptação os porquês filogenético e funcional definidos por Tinbergen 1951 Uma implicação central dessa premissa é que o modo de vida sociocultural essencial ao ser humano não surge como uma emergência tardia depois de conclu ída a evolução física da espécie e não afasta o homem da natureza Ao contrário a cultura é anterior ao homem moderno e é parte inte grante de sua evolução biológica o que tem sido reconhecido e enfa tizado por pensadores e pesquisadores de diversas formações como ilustram os excertos abaixo de Morin 1979 p 62 Como poderia o grande cérebro que evidente mente só é funcional no seio de uma cultura ter sido criado na natureza se se concebe a natureza como oposta independente ou anterior à cultura O valor de sobrevivência dos grandes cérebros é evidente se e somente se eles já alcançaram a essência da linguagem e da cultura Hockett Asher 1964 Nosso neocórtex que aumentou em interação com a cultura é incapaz de dirigir nossa experiência sem a orientação fornecida por um sistema de símbolos significantes Geertz 1966 Privado de cultura o sapiens seria um dé bil mental incapaz de sobreviver a não ser como um primata do mais baixo nível É perfeita mente evidente que o grande cérebro do sapiens só poderia surgir ser bem sucedido triunfar de Familianatureza e culturaindd 80 211113 0906 81 pois da formação de uma cultura já complexa e é surpreendente que se tenha podido durante tanto tempo acreditar exatamente no contrário Esse olhar abre a possibilidade de superar a dicotomia natu rezacultura em busca de uma concepção biopsicossocial do ser hu mano A cultura é parte inseparável e fator seletivo no processo de evolução humana a partir do gênero Homo Por quê Porque o cérebro não antecede a cultura a cultura cria o cérebro que gradualmente a cria e transforma a mão com capacidade de oposição do polegar e preensão em pinça não antecede a ferramenta o valor adaptativo da ferramenta primitiva pressiona a evolução da oposição do pole gar na direção de uma mão capaz de criar ferramentas cada vez mais elaboradas A evolução é um processo dialético e dinâmico ao qual não se aplicam raciocínios lineares O Homo e não apenas o Homo sapiens sapiens é portanto biologicamente sociocultural BUSSAB RIBEIRO 1998 CARVALHO 1989 1998 E embora se possa falar de fenômenos protoculturais em outros primatas e até em outros grupos taxonômicos fenômenos tais como transmissão intergeracional de hábitos alimentares e de habilidades de confecção e utilização de fer ramentas com diversidade cultural entre grupos da mesma espécie LALAND GALEF 2009 até onde se sabe apenas no Homo o modo de vida sociocultural veio a ser o único ambiente possível para a vida e o desenvolvimento A cultura é parte essencial da natureza humana Trazendo o foco para a família esse argumento é ainda mais contundente Entendida a partir de três traços centrais convivência parentesco e cuidado parental e com duas funções adaptativas po tenciais como unidade reprodutiva e como componente da rede so cial a família é muito anterior ao Homo sapiens ocorre sob diversas formas no reino animal e em uma variedade de grupos taxonômicos para vários dos quais não cabe absolutamente o conceito de cultura Uma revisão breve dessa diversidade é nosso ponto de partida para situar comparativamente a família e o cuidado parental no caso do ser humano Familianatureza e culturaindd 81 211113 0906 82 A família no Reino Animal ocorrência e configurações A conceituação de família a partir dos três traços centrais in dicados acima requer alguma explicitação quando generalizada para o reino animal A duração da convivência e do cuidado parental varia desde uma única estação reprodutiva até a vida toda do progenitor ou progenitores E o parentesco não é um critério estrito existem vários exemplos de adoção de filhotes de outros pais e até de outras espécies destes alguns já fazem parte da sabedoria popular como a adoção de ovos de pato por galinhas ou viceversa ou de cisne por patas como na história do Patinho Feio outros como a adoção de ovos do cuco Cucus canorus uma espécie parasita que deposita seus ovos no ninho de ou tras espécies de pássaros que os chocam e criam até a maturidade estão bem documentados na literatura VOGL et al 2002 Podese questio nar por que um animal cuidaria de um filhote que não tem sua carga genética Qual o ganho evolutivo dessa prática Esse aparente parado xo pode ser compreendido quando são analisados os mecanismos psi cobiológicos que subjazem ao comportamento parental inclusive nos casos de adoção pelo ser humano e que serão abordados mais adiante A diversidade de configurações familiares e de cuidado paren tal encontradas no reino animal está presente no ser humano com duas exceções a total ausência de família e a promiscuidade sem ne nhum cuidado parental o que não seria possível em um mamífero2 O Quadro 1 resume essa diversidade Quadro 1 Configurações familiares e cuidado parental no reino animal Sem família Promiscuidade Masculina eou feminina Famílias uniparentais Poli monogamias Sucessivas ou permanentes Patriarcais ou matriarcais Sem cuidado parental Cuidado parental mãe pai outros Cuidado parental mãe mãe e pai outros Fonte Elaborado pelos autores 2 A promiscuidade com cuidado coletivo é possível embora incomum no ser humano Uma experiência contemporânea nesse sentido foram as comunidades hippies que proliferaram nos anos 70 do século XX Familianatureza e culturaindd 82 211113 0906 83 Considerando apenas os animais que apresentam reprodu ção sexuada e que portanto precisam ter algum contato com par ceiros de outro sexo os casos em que não se aplica o conceito de família definido acima são os de animais solitários que se encon tram apenas para o intercurso sexual às vezes somente uma vez na vida depositam seus ovos em condições nas quais são chocados sem sua participação e nunca mais reveem os ovos ou os filhotes Essa estratégia reprodutiva é denominada pelos pesquisadores da área estratégia r JOHANSON EDEY 2006a Envolve pouco inves timento parental e se associa a alto risco de mortalidade das crias e correspondentemente a um número alto de ovos por postura o que garante ou melhora as chances de sobrevivência da espécie Um exemplo bem conhecido em nosso meio é a tartaruga marinha pro tegida pelo projeto Tamar A estratégia reprodutiva oposta estratégia K caracteriza se por custo reprodutivo crescente que envolve graus variáveis de investimento parental e um número decrescente de ovos ou de filhotes por estação reprodutiva É o caso de todos os mamíferos e de alguns outros grupos taxonômicos No contínuo de variações da estratégia K as variantes associamse negativamente ao núme ro de ovos e positivamente à dependência do filhote Associamse ainda positivamente ao grau de hostilidade do ambiente quanto mais hostil maior a probabilidade de ocorrência da estratégia K sob formas mais extremas Em ambientes hostis menos filhotes e maior investimento parental maximizam as chances de sobrevi vência da espécie mas essas duas facetas da estratégia K também podem se combinar de diversas formas como veremos a seguir na revisão sobre a evolução da parentalidade na ordem dos Primatas ilustrando mais uma vez a nãolinearidade dos processos evo lutivos e sua profunda interação com o ambiente RODRIGUES 1998 2009 Familianatureza e culturaindd 83 211113 0906 84 Evolução da parentalidade na ordem primatas Todos os primatas são estrategistas K embora haja muitas variantes em termos de arranjos de cuidado parental e de estrutura familiar É interessante apontar que essas variantes não apresentam um padrão evolutivo em uma única direção por exemplo na de parcerias estáveis ou de maior ou menor participação do pai no cui dado A participação das mães no cuidado é sempre garantida pela amamentação variando sua duração assim como a persistência do vínculo mãefilhote ao longo da vida A participação do pai bem como a de outros membros do grupo é muito mais variável entre os vários primatas O quadro 2 apresenta as relações entre os subgru pos que representam a sequência evolutiva dos primatas dos mais antigos para os mais recentes e em cada subgrupo exemplos da classificação das interações entre machos adultos e filhotes proposta por Whiten 1987 apud RODRIGUES 1998 Essa classificação en volve cinco categorias 1 cuidado intensivo com participação equi valente de pai e mãe 2 afiliação com interações afiliativas cotidia nas entre machos e filhotes 3 afiliação ocasional não cotidiana 4 tolerância em que os machos permitem a proximidade dos filhotes mas raramente interagem com estes 5 uso e abuso em que machos interagem com os filhotes de forma a obter vantagens para si pró prios por exemplo para evitar uma agressão ou atrair uma fêmea Podese notar no quadro que não há nenhuma direção associada ao percurso evolutivo nada que possa ser interpretado como uma es tratégia superior3 A estratégia reprodutiva e de cuidado parental de cada grupo ou de cada espécie e até mesmo como veremos a seguir entre grupos de uma mesma espécie associase basicamen te a fatores ecológicos e modo de vida 3 A noção de superioridade evolutiva é claramente incompatível com a teoria da evolução não há espécies superiores ou inferiores há espécies adaptadas em qualquer nível da es cala evolutiva A interpretação equivocada da teoria da evolução no sentido de indicar uma sequência evolutiva na direção de superioridade foi a raiz do darwinismo social e de suas consequências danosas para a história e para a própria teoria Familianatureza e culturaindd 84 211113 0906 85 Quadro 2 Sequência evolutiva dos primatas e classificação da interação machosfilhotes Sequência evolutiva Grupo taxonômico Interação machosfilhotes c 25 milhões de anos c 70 milhões de anos Antropóides Chimpanzé Bonobo Afiliação ocasional ou Tolerância Cercopitecídeos Velho Mundo Macacos japoneses Babuínos Afiliação ocasional Uso e abuso Cebídeos Novo Mundo Bugios Micos e saguis Afiliação Cuidado intensivo Prossímios Tolerância Fontes Leakey Lewin 1980 Ridley 2004 Rodrigues 1998 Um exemplo interessante dessa associação é o caso dos micos e saguis primatas do Novo Mundo da família Calitriquídeos RODRI GUES 1998 YAMAMOTO SOUZA 1998 Nessa família taxonômica os grupos incluem parentes e não parentes Em geral só uma fêmea é reprodutora com duas gestações anuais de gêmeos eventualmen te trigêmeos Pais e outros adultos e adolescentes principalmente machos cuidam dos filhotes desde o nascimento provendo transpor te proteção e alimentação exceto é claro leite materno que é for necido pela mãe Há evidências de que a sobrevivência dos filhotes está associada ao número de cuidadores no grupo e de que a par ticipação do pai no transporte diminui com o aumento do número de cuidadores Dentro desse quadro geral há variabilidade quanto aos sistemas de acasalamento que pode ser poliandria monogamia ou poliginia dentro do mesmo gênero e até de uma mesma espécie GOLDIZEN 1988 o que indica um alto grau de flexibilidade na interação genesambiente Ainda há controvérsias sobre a incidência desses sistemas no grupo taxonômico Segundo Yamamoto e Souza 1998 na maioria dos grupos estudados a fêmea reprodutora é po liândrica e produz feromônios ou apresenta comportamentos que inibem a ovulação das outras fêmeas principalmente das que não são parentes a poliginia poligamia masculina e a reprodução por mais Familianatureza e culturaindd 85 211113 0906 86 de uma fêmea sempre filhas da fêmea dominante foi encontrada em 10 dos grupos estudados Essas diferenças de configuração familiar parecem estar associadas a condições ecológicascomportamentais tais como o tipo de dieta e sua disponibilidade no ambiente impli cando maior ou menor deslocamento do grupo o risco de predação que afeta a probabilidade de imigraçãomigração de adultos jovens a ocorrência de simpatria convivência de diferentes grupos espécies eou gêneros no mesmo território a pressão demográfica no inte rior do grupo e outros As interações desse conjunto de condições configuram o grau de hostilidade do ambiente e há indícios de maior incidência de poliandria em ambientes mais hostis e de poliginia em ambientes menos hostis FERRARI DIGBY 1996 GOLDIZEN 1988 No extremo oposto está o grupo evolutivamente mais recente o dos grandes símios Antropóides atualmente classificados na família Ho minidae em que os machos têm papel limitado no cuidado parental não contribuem para o forrageamento de filhotes e fêmeas e contri buem pouco para a proteção de que se encarregam as fêmeas exceto eventualmente em situações críticas Nesse grupo se encontram os casos extremos de estratégia K a fêmea gera um filhote por vez e os intervalos entre nascimentos chegam a 78 anos RODRIGUES 1998 Aqui também as diferenças entre estratégias reprodutivas se correla cionam com características do habitat e das pressões de sobrevivência tal como ocorre entre os calitriquídeos Segundo a síntese de Ridley 2004 os gorilas Gorilla ocupam áreas relativamente restritas e se deslocam pouco isso se relaciona à sua dieta herbívora basicamente folhas abundante porém pouco nutritiva o que demanda um gran de dispêndio de tempo em alimentação Os grupos são estáveis e rela tivamente fáceis de defender contra outros bandos compõemse seja de um único macho dominante ou de alguns poucos machos subor dinados ao dominante cada um dos quais tem seu próprio harém de fêmeas Como em outros casos de poliginia o dimorfismo sexual é muito acentuado sendo os machos praticamente duas vezes maiores do que as fêmeas que são disputadas entre eles Machos jovens mi Familianatureza e culturaindd 86 211113 0906 87 gram ou são expulsos Quando um macho dominante é destronado por um outro tipicamente este pratica infanticídio com os filhotes do rival o que induz o estro das fêmeas e o nascimento de filhotes do macho vencedor Há poucas diferenças comportamentais e sociais entre as duas espécies conhecidas Gorilla gorilla e Gorilla beringei Os dois outros antropóides não humanos do continente africa no são do gênero Pan e incluem o chimpanzé comum Pan troglodites e o bonobo ou chimpanzé pigmeu Pan paniscus os mais próximos parentes do Homo que se diferenciaram deste há cerca de quatro a cinco milhões de anos e compartilham mais de 90 de nossa carga genética Embora pertençam ao mesmo gênero sua organização so cial e seus hábitos sexuais apresentam peculiaridades que também se associam a diferenças em modos de vida Os chimpanzés são onívoros que exploram grandes áreas em busca de frutas ovos e caça miúda compartilhando o território com outros bandos A extensão das áreas exploradas resulta em divisões temporárias do bando uma situação em que a poliginia é uma estratégia pouco eficaz pela dificuldade de controlar o acesso às fêmeas A estratégia adotada é predominante mente promíscua com o acesso às fêmeas sendo compartilhado por machos aliados o macho alfa dominante tem uma parcela maior de acasalamentos mas não monopoliza as fêmeas Uma consequên cia disso é que o infanticídio se torna uma desvantagem como as fêmeas compartilham seus favores sexuais com muitos machos um macho infanticida pode estar matando seu próprio filho e para garantir essa dúvida as fêmeas evoluíram sinais evidentes de seus períodos férteis indicados pelo entumescimento e coloração do tra seiro Um outro correlato é que o dimorfismo sexual é muito mais re duzido do que no gorila os machos não precisam disputar as fêmeas e além disso como aponta o autor um tamanho corporal excessivo seria bastante inconveniente para a alimentação arbórea O sucesso reprodutivo dos machos é garantido principalmente pela frequência de cópulas 100 vezes maior do que entre os gorilas e pelo volume da ejaculação correlacionado ao tamanho dos testículos em proporção Familianatureza e culturaindd 87 211113 0906 88 ao peso corporal 16 vezes maiores do que os de gorilas e dois terços maiores do que os dos humanos Tal como seus primos próximos os bonobos vivem em terri tórios grandes compartilhados por vários bandos de muitos machos Sua dieta é basicamente frugívora e a ingestão de outros animais é acidental e oportunística não envolve busca e caça ativas Compara tivamente aos chimpanzés a sociedade bonobo é mais pacífica e nela se articulam coalizões entre subgrupos especialmente entre fêmeas que são capazes de intimidar e dominar os machos auxiliandose umas às outras Agressões intragrupo e ataques a outros grupos são raros assim como o infanticídio Ridley 2004 aponta jocosamente que a sociedade bonobo parece uma utopia feminista de irmandade coope rativa e afetuosa e que como previsto pelo feminismo os machos se ajustaram a esse regime evoluindo também uma natureza mais gentil O segredo dessa solidariedade só recentemente reconhecido a partir da década de 80 está no sexo que funciona como fator de coesão social Machos e fêmeas são muito ativos em interações hétero e homossexuais estas últimas ainda mais frequentes entre fêmeas o sexo é praticado com frequência mil vezes maior do que entre os gorilas e com funções não reprodutivas evidentes Ridley 2004 recorre a esses exemplos de diversidade para apontar uma diferença na forma pela qual o comportamento e a ana tomia evoluem Em anatomia prevalece o que os evolucionistas cha mam de inércia filogenética ou seja o aproveitamento de caracterís ticas já presentes em espécies e grupos animais ancestrais O exemplo citado é do número de cinco dedos na mão presente desde os pri meiros anfíbios e que se manteve entre muitos de seus descendentes de sapos a morcegos e em todos os primatas No caso do compor tamento social afirma Ridley 2004 temse verificado muito pouca inércia filogenética espécies próximas diferem em organização social de forma correlacionada à sua ecologia pressões do habitat tipo de alimentação como nos casos exemplificados em primatas reci procamente espécies muito distantes em termos filogenéticos podem Familianatureza e culturaindd 88 211113 0906 89 apresentar padrões semelhantes por convergência ou seja por pres sões ambientais similares Um dos aspectos da vida social em que esse argumento fica bastante evidenciado é no que se refere a estratégias de cuidado pa rental Um exemplo extremo de cuidado compartilhado ou criação cooperativa HRDY 2005a já foi ilustrado entre os primatas no caso dos calitriquídeos Esse é um conceito particularmente interessante para esta discussão uma vez que seres humanos parecem também se caracterizar por esse modelo segundo diversos autores a sobrevivên cia do bebê humano durante a infância muito dependente e exposta requer o apoio de vários adultos além dos pais e as mães não seriam capazes de arcar com o custo energético do cuidado de vários filhos dependentes sem esse apoio que em geral é oferecido por parentes GIBSON MACE 2005 O modelo de compartilhamento do cuidado parental merece portanto uma consideração mais detalhada em ter mos comparativos Compartilhamento de cuidado parental Hrdy 2005a aponta que compartilhar o cuidado parental é raro no reino animal Ocorre sob formas diferenciadas em cerca de 3 dos mamíferos entre 8 e 17 das aves em insetos sociais Essa autora levanta questões funcionais a respeito do compartilhamento do cuidado e condições que propiciam a cooperação no cuidado pa rental por outros indivíduos que não os pais e indica possibilidades de resposta Por que outros cuidadores alopais4 compartilhariam o cui dado parental Qual é seu ganho evolutivo Cuidar do outro é uma forma de altruísmo um investimento que aparentemente não tem valor de sobrevivência para o indivíduo e que constituiu durante mui 4 Aloparents cuidadores que não os pais biológicos Alo do grego állos é um prefixo que indica Outro Um outro Diferente FERREIRA 2004 Familianatureza e culturaindd 89 211113 0906 90 to tempo um desafio para o pensamento evolucionista mas para o qual atualmente existem várias hipóteses possíveis A primeira envol ve o conceito de aptidão inclusiva5 que considera o fato de que indi víduos que colaboram para a sobrevivência de parentes com os quais compartilham genes estão aumentando a probabilidade de perma nência de seus próprios genes na população seleção de parentes6 Isso explicaria em primeiro lugar a participação dos próprios pais no cuidado a sobrevivência bem sucedida de um filhote significa a permanência de 50 dos genes de cada progenitor na população en tre animais cujos filhotes nascem com algum grau de dependência de cuidados o abandono dos filhotes implica uma probabilidade alta de desaparecimento desses genese portanto na maior probabilida de de preservação e de incidência na população dos genes daqueles pais que cuidam À luz desse argumento EiblEibesfeldt 1989 entre outros considera a evolução do cuidado parental como um evento chave na evolução da sociabilidade entre vertebrados e insetos so ciais o cuidado parental é a forma primária de altruísmo no reino animal A aptidão inclusiva justifica também a participação no cuida do parental de outros indivíduos aparentados avós irmãos mais ve lhos tios dependendo da composição do grupo social que também compartilham genes com os filhotes ainda que em graus menores do que os dos pais Para esses outros cuidadores haveria além disso três outros benefícios potenciais a permissão para permanecer no grupo de origem a oportunidade de melhorar sua posição no grupo pelo es 5 Inclusive fitness modelo proposto por Hamilton no artigo The evolution of altruistic behav ior publicado em The American Naturalist1963 DUGATKIN 2007 6 Kin selection com base nas proposições de Hamilton o biólogo e geneticista inglês John May nard Smith utilizou aparentemente pela primeira vez em 1964 a expressão kin selection seleção de parentes ou seleção baseada em parentesco para se referir às estratégias evoluti vas que favorecem a sobrevivência de parentes de um organismo dessa forma preservando os genes que este compartilha com aqueles CHARLESWORTH 2004 O exemplo clássico é a colônia de insetos sociais em que fêmeas estéreis realizam todo o trabalho de forma que a fêmea fértil sua mãe se ocupe apenas da reprodução de novos membros da colônia Familianatureza e culturaindd 90 211113 0906 91 tabelecimento de relações afiliativas e o ganho de experiência como cuidador particularmente no caso de fêmeas nulíparas7 Correspondentemente a essas hipóteses as condições que propiciam a cooperação no cuidado são de vários tipos além do pa rentesco condições ecológicas desfavoráveis como habitat saturado e risco de predação que desencorajam a dispersão de parentes e encorajam portanto sua permanência no grupo de origem a fase de vida reprodutiva em que se encontram os alopais potenciais a probabilidade de colaboração no cuidado de crias de outros pais é maior antes da fase reprodutiva do que depois que ela se inicia ou seja diminui conforme os alopais assumem o cuidado de suas próprias crias e a relação entre o custo da cooperação e sua compa tibilidadeincompatibilidade com o cuidado dos próprios filhos A cooperação no cuidado parental de crias alheias depende também da presença de predisposições dos alopais para reagir a sinais in fantis ou sua suscetibilidade às características físicas e manifesta ções emocionais dos filhotes Entre aves existe correlação positiva entre ocorrência de co operação no cuidado parental e período de dependência infantil o mesmo ocorre no caso de filhotes mamíferos que utilizam baby food alimentos transicionais entre a amamentação e a alimentação inde pendente fornecidos por adultos sob formas aceitáveis para a ingestão e a digestão do filhote por exemplo mastigados e regurgitados Em primatas a cooperação no cuidado também se relaciona com longo tempo de imaturidade associado a intervalos mais curtos entre nasci mentos como no caso de calitriquídeos Há evidências ainda de que 7 Um outro mecanismo proposto para a evolução do altruísmo é o altruísmo recíproco a perspectiva de que o parceiro de grupo ajudado venha futuramente a retribuir a ajuda Esse mecanismo explicaria casos de cooperação e compartilhamento entre membros do grupo mesmo em contextos que não envolvem cuidado de filhotes É interessante apontar que qualquer forma de vida social complexa requer um equilíbrio entre egoísmo e altruísmo o egoísmo absoluto só é possível para reprodutores assexuados e para animais sem vida social e sem cuidado parental Familianatureza e culturaindd 91 211113 0906 92 a existência de alopais facilita migrações e exploração de novos ha bitats outra consequência adaptativa para a espécie HRDY 2005a O que essas evidências implicam para o caso do ser humano Homo e outros primatas Ainda segundo Hrdy 2005a todos os primatas são intensa mente sociais e apresentam adaptações favoráveis a algum grau de compartilhamento do cuidado desde tendência a serem atraídos por filhotes e a protegêlos até forte atração por carregarsegurar filhotes A intensidade do compartilhamento varia entre as espécies e usualmente é regulada pela mãe por exemplo em langures os filhotes passam até 50 do dia com alomães já em rhesus as mães não permitem que os filhos sejam carregados por outros cuidadores A permanência de indivíduos jovens no grupo que favorece a possibilidade de cuidado cooperativo é documentadamente vantajosa para todos os primatas as vantagens incluem familiaridade com os recursos locais proteção contra predadores e apoio de parentes A permanência com a linhagem materna é particularmente vantajosa para as fêmeas por disponibilizar a ajuda de parentes mais velhas e da mesma idade preferencialmente as nulíparas para as quais a participação no cuidado também repre senta ganho de experiência como cuidadora Tipicamente só migram aqueles que não conseguem ficar o que muitas vezes ocorre porque os machos jovens não encontram no grupo parceiras receptivas devido a mecanismos psicológicos de evitação de acasalamento com companhei ros de infância um sistema de evitação de endogamia sobre o qual também há evidências no ser humano BUSSAB 2001 O Homo apresenta a maior variabilidade de arranjos de pare amento e os bebês mais caros que requerem maior investimento parental e têm períodos mais longos de imaturidade e dependência com altas exigências nutricionais e de proteção entre os primatas O intervalo entre nascimentos não é tão longo quanto entre outros antropoides três a quatro anos em sociedades caçadorascoletoras e Familianatureza e culturaindd 92 211113 0906 93 nascimentos gemelares são a exceção e não a regra como se dá com o calitriquídeos Essas características são compatíveis com o modelo de cuidado cooperativo de Hrdy 2005a em um formato menos extre mo do que o dos calitriquídeos mas bem mais acentuado do que em primatas em que a mãe é o cuidador exclusivo Como fatores seletivos que devem ter operado na direção do compartilhamento do cuidado parental no ser humano podem ser mencionados ainda a organização coletivista das sociedades préhumanas e préhistóricas que praticam a partilha de alimentos a disponibilidade de alomães aparentadas o que poderia estar relacionado à importância universal de siste mas de parentesco nas sociedades humanas HRDY 2005a KELLER 2007 e condições ecológicas que dificultariam o sucesso reproduti vo com cuidado uniparental ou exclusivamente parental Que evidências podem ser encontradas nas ciências humanas para o modelo de cuidado cooperativo no caso humano Qual é a ex tensão da variabilidade possível de arranjos familiares e de arranjos de cuidado e com que condições essa variabilidade se relaciona Configurações familiares e estratégias de cuidado parental no ser humano A diversidade de arranjos sociais e culturais humanos é ampla mente reconhecida É possível no entanto estruturálos em alguns padrões mais característicos no decorrer da história da espécie huma na desde seus primórdios até a contemporaneidade Para fins desta síntese consideramos três etapas históricas e culturais caracterizadas segundo o modo de vida e de produção predo minantes a designada como préhistórica que engloba mais de 90 da história humana até cerca de 10 mil anos atrás as sociedades pós agrícolas e as pósindustriais apenas cerca de dois séculos atrás8 8 A síntese apresentada a seguir é evidentemente uma simplificação que enfatiza apenas as tendências dominantes o que não exclui a ocorrência de variações e de padrões atípicos por exemplo intercurso sexual prématrimonial e homossexual eou adultério feminino em Familianatureza e culturaindd 93 211113 0906 94 Tanto quanto é possível reconstituílo a partir de evidências arqueológicas e paleoantropológicas e também do modo de vida de sociedades primitivas sejam as contemporâneas9 ou as ainda existentes no período da primeira globalização a era dos descobri mentos o modo de vida préhistórico constitui também um modelo provável do modo de vida de hominídeos préHomo sapiens que re presentam a maior parte da história evolutiva humana a partir de seus primórdios situados atualmente em mais de três milhões de anos atrás JOHANSON EDLEY 2006a LEAKEY LEWIN 1980 LE AKEY 1981 No modo de vida que caracterizou esse longo período os grupos préhumanos e humanos eram constituídos por famílias extensas de cerca de 30 pessoas a base da subsistência era a caça e ou pesca e coleta coletivas cujos produtos eram compartilhados en tre os membros do grupo Hinde 1987 discute os possíveis arranjos de pareamento de casais no período de adaptação evolutiva e na fase préhistórica Com base na correlação entre dimorfismo sexual e po liginia no reino animal sugere que nossos ancestrais tenderiam a ser moderadamente poligínicos seja de forma simultânea ou sucessiva monogamias temporárias isto é casais estáveis durante algum tem po provavelmente correlacionado com a fase de maior dependên cia dos filhos mas com possibilidade de outros pareamentos pos teriores Esse é também o padrão comum entre caçadorescoletores modernos com variações intra e intergrupais10 Hinde 1987 infor ma que no momento em que escrevia ou seja há pouco mais de 20 sociedades que os proibem como é atestado abundamente na literatura ficcional e históri ca GOMES 2010 9 Sociedades como a dos Kung que vivem no Kalahari sudoeste da África têm sido intensi vamente estudadas por pesquisadores interessados na história evolutiva humana RODRI GUES 1998 10 LéviStrauss 1994 por exemplo relata a coexistência de monogamia e poligamia entre os Nambikwara e os TupiKawahib Referindose aos indígenas com quem se defrontaram os portugueses no litoral brasileiro na época do descobrimento Del Priore e Venâncio 2010 relatam a ocorrência de poliginia apenas entre os grandes caciques e grande liberdade sexual para homens e mulheres antes do casamento Familianatureza e culturaindd 94 211113 0906 95 anos mais de 80 das sociedades humanas eram poligínicas ou acei tavam a poliginia cerca de 15 eram monógamas e algumas poucas poliândricas FORD BEACH 1951 MURDOCK 1967 apud HINDE 1987 mas considerando situações individuais a maioria dos indiví duos vivia monogamicamente por fatores associados a condições de subsistência Na comparação entre sociedades a incidência de mono gamia depende pelo menos em alguns casos de condições que exigem a presença de dois pais para a criação dos filhos Com base em estudos de sociedades contemporâneas de caça e coleta o padrão reprodutivo desse modo de vida se caracteriza por poucos filhos e alto investimento parental com cuidado materno in tenso para os padrões ocidentais O espaçamento entre os nascimen tos é de cerca de quatro anos a mãe é altamente responsiva aos sinais de aflição do bebê estes são prontamente atendidos uma vez que o bebê está a maior parte do tempo em contato corporal com a mãe que o carrega de forma praticamente contínua em seus deslocamen tos em busca de alimentos vegetais e durante os deslocamentos do grupo em busca de novos territórios de caça e coleta a amamenta ção é frequente continuamente disponível o que contribui para o espaçamento intergestacional por manter em níveis muito baixos os hormônios indutores de ovulação o desmame é tardio após os três anos de idade o cuidado é compartilhado principalmente com outras mulheres irmãs mais velhas tias avós que se ajudam mutuamente e a participação dos pais consiste em contribuir para a subsistência mediante produtos da caça e da pesca proteger os membros do gru po e interagir ludicamente com as crianças que são sempre alvo de muito interesse tolerância e atenção de todo o grupo Embora a mãe seja a principal cuidadora nos primeiros anos de vida há evidências obtidas em grupos Kung e Eipo de que o pai também é importante para a sobrevivência da criança a probabilidade de morte nos dois primeiros anos de vida é três vezes maior se o bebê tiver perdido o pai BUSSAB 2001 Esse sistema reprodutivo e de cuidado é uma adaptação eficiente no modo de vida de caça e coleta o espaçamento Familianatureza e culturaindd 95 211113 0906 96 dos nascimentos que é promovido também pelo uso de ervas con traceptivas ou abortivas quando ocorre uma gravidez muito próxima à anterior e por infanticídio sancionado culturalmente no caso de nascimento de gêmeos ou de crianças com deformações ou nascidas de parto pélvico possibilita o cuidado intensivo pela mãe de forma compatível com sua atividade produtiva a mãe não poderia carregar mais de uma criança juntamente com os produtos da coleta a con centração do cuidado em um número menor de crianças favorece sua sobrevivência e desenvolvimento equilibrando os riscos de redução populacional associados ao espaçamento de nascimentos e viabilizan do a subsistência do grupo em um ambiente relativamente hostil BUSSAB 2001 LEAKEY 1981 RODRIGUES 1998 A análise clássica de Engels 2002 já aponta as transforma ções que esse sistema vai sofrer com o surgimento do modo de vida e de produção agrícola há cerca de 10 mil anos dando origem ao se dentarismo à propriedade da terra e à herança o que gera normas culturais de virgindade prénupcial e de fidelidade conjugal para as mulheres como forma de assegurar a paternidade legítima Com o aumento da quantidade e da regularidade de obtenção de alimentos os grupos se tornam mais populosos organizandose tipicamente em famílias extensas e clãs A produção excedente intensifica relações de troca que substituem as práticas de partilha dos caçadorescoletores O modelo familiar se torna predominantemente patriarcal frequen temente é aceita e valorizada a poliginia11 e a atividade produtiva da mulher passa a ser cada vez mais restrita ao âmbito doméstico e à maternidade um número grande de filhos especialmente filhos homens se transforma em riqueza de recursos humanos para o traba lho de cultivo e de pastoreio Carvalho e colaboradores 2008 p 432 apontam que 11 Na maioria das sociedades em que é praticada a poliginia só é acessível para os mais ricos é um arranjo matrimonial caro em geral regulado por regras estritas de distribuição de bens e benefícios entre as esposas e os filhos Dessa circunstância decorre que facilmente se torna sinal de status Familianatureza e culturaindd 96 211113 0906 97 passa a ser desejável que as mulheres tenham muitos filhos mantendoseas quase que em esta do contínuo de gestação Os fatos de que entre os 20 ou 25 filhos nascidos de uma mesma mãe nesse regime um número significativo não so breviverá bem como a própria incidência alta de mortalidade feminina associada ao parto são minimizados como fenômenos naturais Esse descaso pela mortalidade infantil e materna vai acompanhar boa parte da história humana pós agricultura CARVALHO et al 2009 p 432 Emergem também diferenças nas estratégias de cuidado em função de desigualdades socioeconômicas O cuidado das crianças é partilhado com familiares do sexo feminino quando disponíveis e ou com outras mulheres remuneradas ou não amas de leite ser vas ou escravas nas famílias economicamente privilegiadas A fun ção paterna se concentra na provisão de subsistência e na autoridade do pai sobre todos os membros da família Esse modelo básico com variações maiores ou menores caracteriza as inúmeras civilizações agrícolas que vicejaram em todo o mundo nos últimos de 10 mil anos até épocas bem recentes como atesta em nosso meio o trabalho de Freyre 2003 E em associação com fatores socioculturais e religio sos continua a caracterizar algumas sociedades contemporâneas GEORGAS et al 2006 Embora dominante durante um período da história humana a partir da revolução agrícola esse padrão de organização familiar e cuidado parental não é o único e pode coexistir com arranjos atí picos O exemplo mais interessante é o de sociedades poliândricas que parecem ter sido ocorrências isoladas no decorrer da história e ainda apresentam exemplos contemporâneos sempre associados ao modo de vida agrícola Há relatos sobre a ocorrência de famílias po liândricas no Ártico canadense no Nepal no Sri Lanka e no Butão e Burns 1974 associa essa ocorrência à pobreza e à escassez de mu lheres devido à prática de infanticídio feminino Em uma reportagem Familianatureza e culturaindd 97 211113 0906 98 relativamente recente publicada no Portal Mulher a jornalista Ana Paula Padrão 2004 e o cinegrafista Hélio Álvarez documentaram a poliandria em aldeias pobres e isoladas no Himalaia na fronteira en tre a Índia e o Tibete Nessas vilas que enfrentam as dificuldades de um habitat muito hostil as mulheres cuidam dos animais e da terra enquanto os maridos fazem as longas viagens para obter o que lhes falta nas montanhas defendem a vila e cuidam da manutenção das casas no inverno As famílias são extensas multigeracionais As crian ças são criadas por todos cuidado altamente cooperativo e não sa bem quem é o pai algumas delas tendo quatro cinco ou seis pais o que não é considerado importante nesse modo de vida extremamen te comunitário Os depoimentos de mulheres casadas com dois três quatro ou cinco maridos que usualmente são irmãos que se casam com a mulher escolhida pelo mais velho salientam a necessidade de muita ajuda masculina para sobreviver e criar os filhos os depoimen tos dos maridos enfatizam a segurança econômica decorrente desse arranjo em que os bens familiares não precisam ser divididos e todos trabalham juntos Essas indicações que confirmam em certa medida as hipóteses propostas por Burns 1974 sugerem um padrão de asso ciação negativa entre afluência e poliandria o inverso do que parece caracterizar a poliginia como já foi sugerido acima no caso de poli gamia masculina e feminina entre calitriquídeos A poliandria seria então um arranjo mais típico de condições ecológicaseconômicas mais difíceis e hostis BORGERHOFFMULDER 1992 O final do século XVIII assiste ao nascimento do modo de pro dução industrial que é acompanhado por transformações radicais e rápidas no modo de vida Uma das mudanças mais relevantes para a questão focalizada aqui é o crescimento das cidades devido ao êxodo rural É essa mudança que vai constituir o principal fator da emer gência ao longo dos dois últimos séculos e nas partes mais indus trializadas do mundo da família nuclear um fenômeno de pouca ou nenhuma expressão em períodos anteriores no entanto famílias ex tensas e multigeracionais continuam a ser comuns principalmente Familianatureza e culturaindd 98 211113 0906 99 entre os menos favorecidos A monogamia é a regra na sociedade oci dental e se caracteriza com frequência crescente como monogamias sucessivas resultando em famílias recompostas em outras partes do mundo pode coexistir com a poliginia12 Novamente há variações nas práticas de cuidado correlaciona das a diferenças socioeconômicas talvez comparativamente maio res dado o crescimento da desigualdade entre camadas sociais mais e menos favorecidas e entre países ricos e pobres mas permanece o recurso a familiares quando disponíveis avós tias irmãs mais velhas estas principalmente em famílias mais pobres FERREIRA METTEL 1999 e outros cuidadores não familiares em geral também mulheres babás e outras trabalhadoras domésticas nas famílias mais ricas vizinhas ou outras conhecidas entre as mais pobres O modelo predominante parece continuar a ser o de mãe cuidadora e pai prove dor mesmo quando a mãe também sustenta a família CARVALHO et al 2008 Diversos fatores associados ao modo de produção industrial a inexistência de rede de apoio familiar para o cuidado em decorrên cia de migrações ou de distâncias urbanas a falta de condições pes soais ou econômicas para a provisão de cuidado por exemplo mães solteiras famílias pobres excessivamente numerosas entre outros aumentam a incidência de abandono MARCÍLIO 1998 a taxa de abandono no entanto é minorada quando a mãe tem contato com o bebê na primeira semana de vida sugerindo a atuação de preparações biológicas para o cuidado materno BUSSAB 2001 A análise detalhada das práticas de criação e de cuidado não é o foco deste trabalho No entanto é interessante lembrar que as trans formações nos sistemas de cuidado parental são necessariamente acompanhadas por ajustes nas concepções sobre a infância e a educa ção e portanto também em práticas de cuidado diferenciadas e resul 12 Mais recentemente a diversidade de arranjos também tem aumentado com maior incidên cia de famílias uniparentais em geral matriarcais chefiadas por mulheres e de casais ho mossexuais com filhos adotivos ou de um dos parceiros Esses arranjos não são focalizados neste trabalho por serem ainda pouco estudados em relação ao cuidado parental Familianatureza e culturaindd 99 211113 0906 100 tados diferentes dessas práticas Por exemplo nas sociedades ociden tais a criança pequena foi distanciada do corpo da mãe pela criação em berços a amamentação é mais espaçada e o desmame mais preco ce possibilitados originalmente pelo sedentarismo e requeridos pelo número maior de filhos Keller 1998 diferencia sistemas de criação que refletem diferentes padrões culturais e que conduziriam a per sonalidades culturais distintas13 Ariès 1981 comenta as mudanças nas concepções sobre a infância e em sua valorização sociocultural correlacionadas à redução da mortalidade infantil Modos de vida e de produção concepções e valores culturais circunscrevem as varia ções nos modelos de cuidado dentro dos limites de flexibilidade das adaptações humanas Mas apesar de sua diversidade há um compo nente comum entre esses modelos algum grau de compartilhamento do cuidado parental parece ser necessário para a criação bem sucedi da da criança14 Outro aspecto em comum é a predominância persistente das mulheres e principalmente das mães como cuidadoras Tal como no caso dos arranjos de casamento também aqui há exemplos atípicos isolados No clássico Sexo e Temperamento Mead 2000 descreve as diferenças na atribuição de papéis sexuais em três culturas da Nova Guiné associandoos a diferenças de temperamento e ao valor atri buído a elas em cada cultura Entre os Arapesh são valorizados tra ços femininos e a divisão sexual do trabalho é igualitária homens e mulheres cuidam tanto do cuidado quanto do sustento entre os 13 Ver item sobre Mudanças recentes neste texto 14 Como já foi apontado ainda não há estudos suficientes sobre a criação de crianças em famí lias uniparentais e a ocorrência e natureza de compartilhamento de cuidado parental nesses casos Em nosso meio Bastos 2009 se aproxima do tema ao estudar modos de partilhar em famílias pobres de Salvador mas focaliza basicamente a participação de crianças e não especificamente famílias uniparentais A família uniparental provavelmente ocorreu em vários momentos da história humana decorrente de viuvez abandono ou outros fatores mas há pouca informação sobre seu funcionamento e sua viabilidade Podese dizer que se trata de um modelo familiar que ainda não foi suficientemente testado em termos de fun cionalidade Familianatureza e culturaindd 100 211113 0906 101 Tchambuli as mulheres são dominantes em ambos os campos como provedoras e como cuidadoras e os homens se ocupam de arte ritos e outras tradições culturais e entre os Mundugonor são enfatizados traços masculinos para os dois sexos as mulheres é que cuidam mas de forma negligente e desprazerosa as consequências potencial mente prejudiciais dessa negligência são compensadas por cuidados providos por indivíduos desviantes da norma cultural mulheres e homens com traços femininos e segundo a autora é isso que viabi liza a continuidade dessa cultura Com o ingresso crescente da mulher no mercado de trabalho que se acentua a partir da metade do século XX a necessidade de com partilhar o cuidado assume novas proporções Como se tem resolvido o conflito inevitável entre o cuidado de crianças pequenas e o trabalho da mãe fora de casa Há sinais de mudança na participação de pais ou outros cuidadores do sexo masculino no cuidado de crianças peque nas Na estruturação das famílias Embora em termos históricos o período de tempo em que essas mudanças vêm ocorrendo ainda seja curto para a identificação de tendências os estudos recentemente re latados em Families across cultures GEORGAS et al 2006 oferecem pistas interessantes a respeito de tendências de mudança e de perma nência O Quadro 3 sintetiza algumas conclusões que se relacionam mais de perto ao nosso tema a partir do panorama descrito por Poor tinga e Georgas 2006 Quadro 3 Tendências de permanência e de mudança na família Tópico Tendências Urbanização educação e desenvolvimento econômico População urbana é maioria em países industrializados e ur banização aumenta em países em transição para a industria lização Associase frequentemente a desenvolvimento eco nômico que por sua vez se relaciona a educação e redução do analfabetismo Todos os autores se referem a esses fatores como associados à maioria das mudanças encontradas na estrutura e nas funções da família Padrões de residência de novos casais Tendência à mudança para residência nuclear em países em que a família extensa ainda é a norma 30 residência nuclear não implica ausência de laços familiares e de possibi lidade de compartilhamento de cuidado parental Familianatureza e culturaindd 101 211113 0906 102 Idade do casamento taxa de divórcio e número de filhos Tendência a casamento mais tardio devido a maior tempo de escolaridade e atraso decorrente na inserção profissional e aos custos da formação de uma família além de fatores cul turais ex tolerância familiar em relação a opções e estilo de vida dos jovens Taxas crescentes de divórcio em metade dos países e redução não observada em nenhum caso resultan do em aumento no número de crianças criadas em famílias uniparentais Redução consistente no número de filhos aumento não observado em nenhum caso Autoridade e poder Autoridade paterna persiste mas na metade dos países há sinais de esvaziamento da hierarquia nos papéis tradicionais de pais e mães e aumento da autoridade materna Tendência a aumento de autoridade paterna não observada em nenhum caso Mãe como pilar da família Apesar da referência consistente ao aumento de emprego ma terno persiste a percepção da mãe como centro da família mais próxima mais devotada e mais sensível em relação aos filhos e principal cuidadora Participação do pai em tarefas do lar é referida em alguns países mas como coadjuvante secundário Partilha do cuidado parental Com cuidado institucional nos países em que são disponíveis e com auxiliares domésticos em geral mulheres Não há referên cia explicita à participação de outros familiares nessa síntese Fonte Poortinga e Georgas 2006 Os autores associam as tendências de mudança identificadas à transição do modo de produção agrícola para o industrial Observam que essa transição criou oportunidades para a nuclearização da famí lia mais educação e emprego fora do lar para a mulher Apontam a redução do caráter sagrado do casamento como uma tendência consis tente mas consideram que não está claro se se trata de um fenômeno relacionado às demais mudanças ou independente com outras raízes culturais Salientam por outro lado que o papel da mulher na família parece ter mudado muito menos do que o do pai como autoridade e provedor O quadro resultante portanto parece sinalizar um processo em transição que conserva muitos aspectos da ideologia e das práticas tradicionais quanto a relações familiares e cuidado parental O que é evidenciado mais uma vez é a relação estreita entre modo de vida produção e arranjos familiares o modo de produção industrial criou um espaço anteriormente inexistente para o trabalho e a independên cia econômica da mulher e com isso afetou a organização e possivel mente a estabilidade familiar mas ainda sem modificar até onde há evidências seu papel central na família e no cuidado parental Familianatureza e culturaindd 102 211113 0906 103 O Quadro 4 é um ensaio de síntese das principais tendências identificadas na evolução históricocultural da família e do cuidado parental em Homo desde seus primórdios até a contemporaneidade e das associações sugeridas entre as configurações familiares e de cui dado parental e os modos de vida Quadro 4 Ensaio de síntese Fonte Elaborado pelas autoras Familianatureza e culturaindd 103 211113 0906 104 A lógica das evoluções biológica e culturalhistórica A comparação entre esse quadro e os relativos às configura ções de família e cuidado parental em outros animais Quadros 1 e 2 permite elaborar tentativamente um argumento sobre a possibilidade de apreensão da unidade biopsicossocial do Homo sapiens Conside rando apenas os casos relevantes ou seja em que ocorrem os fenô menos Família e Cuidado Parental seriam de esperar pela lógica da evolução associações entre configurações familiarescuidado paren tal e entre outros possíveis fatores Grau de hostilidade do ambiente devido a fatores ecológicos ou ou tros que afetam potencialmente a criação bem sucedida de novas gerações e portanto a sobrevivência Organização social tamanho e composição de grupos nível de hie rarquização e de interdependência das relações Taxa reprodutiva compatível com a manutenção da população em níveis viáveis por exemplo opção entre poucos filhotesespaçamen to de nascimentos em condições de escassez alimentar eou escassez de cuidadores e mais filhotes em condições de abundância eou disponibilidade de cuidadores Grauduração da dependência dos filhotes Disponibilidade de recursos adaptativos para ajustamento a novas condições Partindo da noção de que a cultura e o modo de produção as sociado constituem o nicho ecológico do ser humano essas asso ciações que evidentemente são todas interdependentes parecem permitir um grau razoável de compreensão da diversidade de configu rações tanto entre animais quanto em seres humanos e também dos limites dessa diversidade Podese propor que a lógica é análoga nos dois processos a evolução biológica e a evolução cultural o que não é de surpreender quando se parte da premissa de que a cultura é parte intrínseca da evolução biológica humana A lógica da evolução Familianatureza e culturaindd 104 211113 0906 105 dos sistemas naturais e culturais pode ser pensada como análoga em vários sentidos Além da ligação estreita com a interação comple xa de fatores associados em última instância ao modo de vida ou seja delimitada pelas condições de sobrevivência esses sistemas em evolução compartilham outras características o processo não é fina lista ou intencional ou seja não ruma para um propósito prédefini do os sistemas se transformam a partir das possibilidades existentes produzindo contradições e custos não estimáveis previamente que se expressam em novas transformações em rejeição ou aceitação de ino vações sua evolução é uma dinâmica permanente de desorganização organização ordemdesordem estabilidademudança Entre os primatas inclusive o homem as alternativas de con figuração familiar e de cuidado parental podem assumir como foi visto diversas combinações possíveis de estabilidadeinstabilidade de unidades familiares maior ou menor participação de pais no cuida do maior ou menor participação de outros cuidadores com forte tendência para maior participação do sexo feminino Seus limites pa recem ser a necessidade de algum tipo de unidade familiar ainda que uniparental e na maioria dos casos de algum grau de compartilha mento do cuidado Dizer que a evolução de sistemas culturais tem lógica análoga à da evolução de sistemas biológicos não implica que apresentem tam bém mecanismos iguais homólogos ou mesmo análogos É eviden te que a evolução do modo de vida sociocultural no Homo implicou novos processos e mecanismos possibilitados e desencadeados pela enorme flexibilidade do cérebro humano dos quais talvez o mais marcante seja a linguagem articulada que criam novos níveis de interação e interrelação entre os fatores listados acima A emergên cia da linguagem possibilita que os ajustes culturais requeridos pelo modo de vida e de produção se expressem em valores normas ide ologias na linguagem marxista superestrutura que desenvolvem dinâmicas próprias de estabilidade e mudança e que nem sempre acompanham de perto as transformações no modo de produção e nas Familianatureza e culturaindd 105 211113 0906 106 relações sociais Podese tomar como exemplo a persistência da mu lher como cuidadora principal apesar de sua participação crescente no mercado de trabalho citada anteriormente No entanto isso não implica uma arbitrariedade ilimitada na evolução cultural É possível também que essa persistência expresse fatores psicobiológicos que criam resistências à mudança No decorrer da evolução humana a própria cultura contribuiu para a criação de adaptações que circuns crevem possibilitam e também delimitam as opções de transforma ção É o que abordamos no próximo item retomando a perspectiva psicoetológica para apresentar o vínculo como fenômeno psicobioló gico básico subjacente à constituição da família revendo as funções do apego seus mecanismos e condições de desenvolvimento na vida individual e para discutir seu grau de suscetibilidadeflexibilidade em relação a contextos ecológicos e históricoculturais Vínculo natureza e função O apego pode ser definido como uma ligação afetiva indivi dualizada significativa cercada de emoção positiva na proximidade e no reencontro e de aflição na separação involuntária Pode ser fla grado em pleno andamento logo depois do nascimento e muito pro vavelmente até mesmo antes dele na vida intrauterina Na primeira semana de vida um bebê mediante poucas experiências é capaz de reconhecer e preferir a voz da mãe assim como há indicadores de res posta à voz da mãe ainda no útero BRAIN MUKHERJI 2005 apenas uma oportunidade de associação da voz da mãe com a sua face acelera o reconhecimento da face BUSHNELL 2001 SAI 2005 para dar um de inúmeros outros exemplos das capacidades precoces de ajus tes interacionais e de reconhecimento individual no recémnascido BUSSAB PEDROSA CARVALHO 2007 RIBEIRO BUSSAB OTTA 2004 Tal prioridade motivacional é sugestiva da importância do ape go e é reforçada pelo fato de os vínculos afetivos nos acompanharem por toda a vida Embora existam especificidades no apego do bebê ao Familianatureza e culturaindd 106 211113 0906 107 adulto na ligação afetiva do cuidador com a criança e na vinculação entre pares amorosos e entre adultos em geral PORGES 2005 as ligações afetivas serão apresentadas em seu conjunto tomandose o desenvolvimento inicial apenas como um ponto de partida Por que nos apegamos Questões relacionadas serão redimensionadas por considerações sobre a natureza do vínculo O entendimento do apego como uma necessidade primária hu mana explicitado plenamente no século passado por Bowlby síntese na trilogia publicada em 1984 mudou nossa concepção do afeto e de nós mesmos a tendência à vinculação se revelou como parte da nossa própria natureza portanto como um traço especialmente selecionado em função de uma pressão seletiva Colocounos num contexto evo lucionista no qual o apego remonta a uma ancestralidade muito mais primitiva vide os mamíferos em geral que constituem toda uma or dem que se define pela maneira peculiar de cuidado e ligação com a prole uma verdadeira Via Láctea nas palavras de Hrdy 2001 Ao mesmo tempo o estudo comparativo mostra nossas peculiaridades a sinfonia do apego humano variação de um tema básico e antigo mostra intensificações e requintes que podem ser reconhecidos pela precocidade do vínculo no desenvolvimento pela sua universalidade pelas características dos processos neurais e hormonais subjacentes e pela magnitude das emoções envolvidas Tudo indica que no processo evolutivo humano apegarse fez diferença Ou seja no ambiente natural de adaptabilidade evolutiva as variantes próprias de vinculações afetivas diferenciadas deixaram mais descendentes foram selecionadas O próprio Bowlby 1984 apresentou uma lista de possíveis valores adaptativos do apego fa vorecendo a função de proteção diante do perigo A compreensão úl tima do valor adaptativo de um traço requer um exame de indicado res filogenéticos comparativos fósseis numa escala de tempo ampla da evolução da espécie No nosso caso pelo menos da ordem de seis milhões de anos se quisermos considerar o período que se seguiu à divergência inicial de um ramo primata ancestral e que envolve Familianatureza e culturaindd 107 211113 0906 108 a adaptação às savanas africana e pelo menos dois milhões de anos dentro de um modo de vida intensamente social e cultural de caça e coleta JOHANSON BLAKE 2006b O conceito de adaptação implica também a compreensão das características ecologicamente relevantes do ambiente no qual este processo evolutivo ocorreu corresponden tes às forças de pressão seletiva efetivamente em ação o que no caso humano remete mais a um contexto socioafetivo peculiar do que a um ambiente físico particular Segundo esta lógica solitário na sava na o ser humano estaria mais fora do seu ambiente espacial do que com seu grupo numa base espacial Além disso pistas sobre a função adaptativa de padrões se lecionados podem ser complementadas pelo exame das consequên cias dos padrões nas diversas circunstâncias do desenvolvimento dos indivíduos contemporâneos Deste ponto de vista de fato a reação primeira de uma criança diante de ameaça mostrase compatível com a função de proteção proposta para o apego A mera presença da mãe funciona como base de segurança e permite a ampliação da explora ção do ambiente e a intensificação da brincadeira A separação invo luntária gera angústia suspensão de atividades e é cercada de muita emoção como medo raiva e tristeza emoções que sinalizam pela própria presença a importância adaptativa da vinculação Não parece ser por acaso que numa situação nova ou mediante a chegada de um desconhecido bebês procurem referenciamento em suas mães olhan do imediatamente para elas e que em caso de ameaça as crianças corram para suas figuras de apego A reação da mãe é prontamente assimilada Parece funcionar como um programa aberto que promo ve adaptação flexível a uma ampla gama de estimulações ambientais com uma aprendizagem rápida do perigo LAFRENIERE 2005 Tomado de modo mais amplo o referenciamento aponta uma outra função sem prejuízo da função de proteção anteriormente pro posta que julgamos merecer destaque a busca de referenciamento que pode ser generalizada para todas as situações novas curiosas e ambíguas As principais teorias contemporâneas sobre a evolução Familianatureza e culturaindd 108 211113 0906 109 natural e sobre o desenvolvimento humano apontam a importância do cérebro social da capacidade de assumir a perspectiva mental do outro como uma verdadeira chave para a evolução cultural e para o desenvolvimento da criança na cultura TOMASELLO 2003 A figura de apego primária muitas vezes a mãe assim como as demais pessoas com as quais a criança tem vínculos oferece muito mais do que uma proteção ao medo mais do que uma possibilidade de regulação de estados de necessidade da criança acalmandoa ou estimulandoa de acordo com as suas necessidades e também mais do que uma base de segurança para a exploração embora todas estas sejam funções adaptativas potencialmente importantes Conforme Trevarthen 2005 há uma busca de engajamento mental antes da linguagem significados são construídos recriados através de trocas amistosas ajustadas e estas descobertas são guiadas por prazer natu ral pelo mero compartilhamento O valor adaptativo de um traço fator de determinação final considerado dentro da escala filogenética da seleção natural guar da relações complexas com os fatores proximais de determinação da causação imediata e do desenvolvimento Ainda assim é a distinção entre estes níveis de análise que tem sido uma contribuição relevante da abordagem etológica à Psicologia ADES 2009 na qual muitas vezes estes níveis aparecem confundidos Outro exemplo de distinção entre causa e valor adaptativo pode ser ilustrativo nossa preferência pelo sabor doce é um determinante da escolha alimentar e não neces sariamente uma consideração consciente sobre o valor nutritivo No nosso modo de vida sedentário atual associado a uma culinária com oferta excepcional muitas vezes as razões conscientes perdem para nosso gosto natural pelos doces e pela gordura um sistema subjacen te a um padrão alimentar mais bem adaptado a outro tipo de ambien te e de modo de vida NESSE WILLIANS 1997 Evidentemente exis tem relações essenciais entre estes níveis de análise a pressão seletiva também abrange mecanismos proximais associados que garantam o valor adaptativo em questão No entanto não há uma correspondên Familianatureza e culturaindd 109 211113 0906 110 cia linear entre causa e função De volta ao contexto de apego não é o medo de predadores que faz com que nos apeguemos uns aos outros nem mesmo a natural vontade humana de aprender nossa emoção e motivação celebradas nos encontros e nas trocas ajustadas é que são os motores primários do afeto humano A formação do vín culo não está essencialmente determinada pela satisfação de outras necessidades primárias como alimento água e proteção A partir das colocações de Bowlby 1984 amplamente confirmadas na pesquisa subsequente demonstrase que a formação do apego não se dá nem por condicionamento secundário como queriam as teorias de apren dizagem da época nem por impulso secundário pela Psicanálise de então São as trocas interacionais ajustadas afetuosas e contingentes que estão na base da formação do apego Reforçamentos não o ga rantem e punições não o impedem embora é claro importem no contexto da emocionalidade do indivíduo Em resumo listamos um conjunto de valores adaptativos pos sivelmente associados à formação inicial do apego que vão desde a proteção de predadores e o fornecimento de cuidados provavelmente as funções mais ancestrais e compartilhadas com os mamíferos e os primatas até a função associada à comunicação ao compartilhamen to à construção de significados e da linguagem valores diretamente associados à evolução cultural dos últimos milhões de anos Portanto outro ingrediente agregado a este viver social tipicamente humano merece destaque na base de nossa evolução cultural encontramos um tipo de compartilhamento significativo afetivamente referido produto e instrumento da vinculação A vinculação afetiva pode ser entendida como elemento de co esão do grupo familiar composto pela mãe pelo pai pela criança e caracteristicamente no meio ambiente de adaptabilidade evolutiva por uma família estendida que funciona como unidade de busca de recursos e manutenção das tradições usos ritos e costumes O afe to parece ser a cola que une o grupo nós unidade cultural funda mental Embora este grupo no ambiente natural abarque as ligações Familianatureza e culturaindd 110 211113 0906 111 de parentesco e ainda que estas possam importar para a vinculação interessanos salientar que a coesão é forjada pela proximidade via convivência ajustada não por qualquer confinamento coletivo O reconhecimento de parentesco parece funcionar na regula ção da formação do vínculo e dos investimentos afetivos e parentais tanto quando se olha na escala filogenética e daí a seleção de paren tes é mecanismo considerado importante na base da seleção natural dos padrões altruístas HAMILTON 1964 quanto na ontogenética Por exemplo pais parecem investir mais nos filhos biológicos do que em enteados Além disso mais maustratos são registrados com en teados segundo pesquisas feitas em muitos países DALY WILSON 1994 Estudo feito numa população brasileira junto à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente e junto às escolas de ensino fun damental da Grande Vitória TOKUMARU BERGAMIN 2005 mos trou que crianças que conviviam com um pai ou mãe biológicoa e uma não biológicoa apresentaram 25 vezes mais chances de serem vítimas de maustratos do que as que viviam com ambos os pais biológicos Entretanto não obstante a potencial importância do reconhecimento de parentesco também como um fator proximal de investimento o ponto a ser aqui ressaltado é que a vinculação é que parece ser o mecanismo proximal mais efetivo que funciona como fator de proteção e que garante o investimento parental Tanto que embora muito significativos do ponto de vista de proteção à crian ça mesmo os índices nos casos de não parentesco são relativamente baixos da ordem de 05 Evidentemente muitos padrastos e ma drastas exercem uma parentalidade plena e vinculamse totalmente a seus enteados É a vinculação o fator que associado a uma tendência natural à parentalidade e a uma sensibilidade em relação aos sinais de necessidades de uma criança explica tanto as ocorrências de adoções situações nas quais não há nenhum parentesco subjacente quanto os baixos índices de maustratos nas famílias adotivas semelhantes aos constatados nas famílias biológicas da ordem de 002 e mesmo as possibilidades de adoção plena por padrastos e madrastas Familianatureza e culturaindd 111 211113 0906 112 O foco nos pais biológicos pode contribuir para o entendimen to dos fatores relevantes Embora sejam inúmeros os registros his tóricos de maustratos à criança há indicadores de que abusos e ne gligência ocorram mais frequentemente em circunstâncias especiais de falta de recursos e de desorganização familiar Badinter 1985 levantou uma tese sobre o mito do amor materno usando como evi dências entre outras as do episódio histórico da roda dos expostos na França de 1830 que testemunhava um alto índice de abandono Uma reanálise destes dados tal como a de Hrdy 2001 mostra que um experimento não premeditado feito na época com a proposição de alojamento comum de oito dias destas crianças com suas mães mulheres extremamente pobres reduziu o abandono de 24 para 10 O que mudou com este alojamento Não foram os conceitos cul turais da ocasião nem as condições econômicas A reação de mães da Roma Antiga da França do século XVIII ou mesmo a de uma parcela da população atual não era ou é antinatural nestes casos contrário aos ditames da natureza pode ser a proporção elevada de mulheres jo vens em circunstâncias desoladoras BADINTER 1985 HRDY 2001 Mesmo nestas condições a vinculação afetiva funciona como fator de proteção Dentre as condições favoráveis para garantir vinculação e in vestimento parental destacase o apoio social que pode ser enten dido como apoio familiar a família compreendida em amplo senso vínculos que abrangem mas superam parentesco Ao que tudo indica a coesão do grupo primário da família es tendida foi selecionada ao longo da evolução humana Ao enveredar mos há alguns milhões de anos pelo modo de vida cultural criouse uma força de pressão seletiva favorecendo a cultura Curiosamente os mecanismos assim selecionados não disseram respeito a formas frias de raciocínio nem a formas estritamente externas de ensino e sim a formas de intersubjetividade motivada empatia tendência à educabilidade e imitação ficamos mais apegados aumentou a vincu Familianatureza e culturaindd 112 211113 0906 113 lação dos pares e a coesão dos grupos o que por sua vez implicou em aumento da tolerância da cooperação e do altruísmo talvez como extensão dos cuidados parentais tão básicos O modo de vida caçadorcoletor perdurou por mais de dois milhões de anos e é considerado parte integrante do meio ambiente de adaptação evolutiva que deu à luz o gênero Homo Examinar os grupos que ainda praticam este modo de vida recentemente subs tituído por práticas agroindustriais é como olhar o nosso passado quem fomos e mais do que isso quem somos Proximidade física trocas afetuosas ajustadas desenvolvimento típico de vínculo são constatados e confirmam as proposições da teoria de apego quanto à função e ao desenvolvimento Nesses grupos o ethos predominan te é o da afiliação e cooperação intragrupo entre parentes e não parentes com partilha de recursos Não há chefes As decisões são tomadas por consenso por autogoverno o grupo coeso vive como uma comunidade moral unificada Lutas típicas intragrupos pri matas são substituídas por um entendimento do tipo isto não se faz conforme argumento desenvolvido por Ribeiro Bussab e Otta 2009 Subgrupos de homens com práticas de caça de mulheres que coletam vegetais e de crianças que brincam completam um cotidiano que parece levar harmoniosamente à inserção da crian ça em desenvolvimento no mundo cultural via exposição direta ao viver significativo do seu grupo de apego via compartilhamentos e construções de significados afetivamente referidos via empatia e cooperação via brincadeira Aliás a prioridade motivacional do brincar humano e a sua relativa intensificação em termos compa rativos com os demais primatas têm levado ao reconhecimento do valor adaptativo especial do padrão na evolução de nossa espécie cujo modo de vida baseado na cooperação e na tecnologia exi ge flexibilidade comportamental acarretando uma infância longa e protegida com amplas possibilidades de exploração e de práticas BICHARA et al 2009 p 113 Familianatureza e culturaindd 113 211113 0906 114 Vínculo mudanças recentes Novamente o que se ressalta é que cada coisa leva à outra mais compartilhamento a mais vínculo mais vínculo a mais compar tilhamento Vale o mesmo para as possíveis composições com os ter mos adicionais desta equação humana como cooperação altruísmo brincadeira Não é por acaso que a atenção conjunta e o assumir a perspectiva mental do outro capacidades humanas básicas subjacen tes à cultura representem também fatores essenciais que geram vín culos Nossa predisposição natural para a vinculação se concretiza na experiência A criação permite a expressão da nossa natureza que por sua vez depende da primeira Uma nova compreensão do como se processa o efeito genético vem se construindo na Psicologia e na pró pria Genética Comportamentos não surgem de uma leitura simples dos genes emergem de uma transação bidirecional contínua entre todos os níveis de fatores biológicos e experienciais Novas estruturas e funções emanam de estruturas e funções anteriores BJORKLUND PELLEGRINI 2002 A noção de estratégias adaptativas de desenvolvimento vem ganhando força bem como o reconhecimento de que as experiências iniciais de vinculação afetiva afetam estas estratégias Dentro de um referencial genético de possibilidades mediante os efeitos ambientais podem ser entendidas as variações individuais entre grupos e entre espécies assim como o potencial valor adaptativo destas variações que nos ensinam sobre a complexa trama que nos torna o que somos e que nos caracteriza como humanos Embora não seja objetivo des te trabalho o aprofundamento destas questões apresentaremos três pontos que podem contribuir para uma visão do entrelaçamento de fatores essenciais na evolução e no desenvolvimento que refletem a importância da família de novo como instrumento e como produto a questão dos estilos de apego a questão dos efeitos do apego inicial na adoção de uma estratégia reprodutiva na fase adulta e as ideias de Familianatureza e culturaindd 114 211113 0906 115 como o contexto socioafetivo e o modo de criação afetam característi cas psicológicas básicas Décadas de pesquisas têm evidenciado que o desenvolvimento de um estilo de apego seguro ou inseguro ainda no final do primeiro ano depende do ambiente socioafetivo de criação e do tipo de intera ção com a mãe entre outros fatores como o temperamento da criança BELSKY 2008 A segurança aparece com níveis moderados e ajusta dos de responsividade da mãe e a insegurança com níveis alterados de responsividade Crianças seguras exploram mais o ambiente choram menos na separação e acalmamse mais no reencontro as inseguras conferem o tempo todo a disponibilidade do outro brincam menos e acalmamse com mais dificuldade Novos entendimentos têm sido produzidos a partir de uma reflexão funcional Não se concebe mais o estilo de apego seguro como ajustamento ótimo a qualquer circuns tância Em ambiente mais hostil com mais riscos e menos recursos a responsividade da mãe pode ser alterada e pode ser adaptativo que a criança fique mais atenta explore menos e sinalize mais Diferen tes estilos de maternidade podem ser apropriados em circunstâncias diferentes HINDE 2008 Vale o mesmo para os diferentes estilos de apego Os estilos de apegos também parecem afetar o desenvolvimen to de estratégias reprodutivas em resposta flexível às condições con textuais e de cuidado em função de metas evolucionárias de adap tação às circunstâncias ambientais Ambientes de criação imprevisí veis e estressantes com clima afetivo negativo do ambiente familiar parecem favorecer reprodução precoce com relações parentais ape nas provisoriamente cooperativas BELSKY STEINBERG DRAPER 1991 com aceleração reprodutiva em condições adversas É como se o ambiente adverso promovesse uma estratégia do tipo salvese quem puder O tipo de apego além de ser um ajuste comportamen tal às condições de criação imediata poderia em longo prazo ser me diador de uma estratégia reprodutiva potencialmente adequada para estas condições Familianatureza e culturaindd 115 211113 0906 116 Muitas pesquisas têm confirmado estas previsões ao menos parcialmente demonstrando que circunstâncias adversas induzem estratégias reprodutivas quantitativas precoces com muitos filhos e baixo investimento parental ao contrário de uma qualitativa me nos precoce com poucos filhos e alto investimento parental e envol vimento afetivo como em trabalhos recentes com populações norte americanas BELSKY et al 2007 ELLIS ESSEX 2007 e brasileiras LORDELO et al 2011 O terceiro ponto aqui escolhido para acrescentar ingredientes de compreensão da complexa trama relacionada à família diz respei to às contribuições de Keller 2007 ao fazer estudos comparativos interculturais dos sistemas de criação humanos e identificar a pre sença de sistemas de criação básicos em todas as culturas mas em di ferentes proporções assim como analisar a calorosidade emocional Associando os conhecimentos da área da Psicologia do Desenvolvi mento ela definiu cinco sistemas bem como as respectivas consequ ências psicológicas de cada sistema 1 Cuidado primário e sensação de intimidade 2 Contato físicocolo e sentimento de coesão 3 Es timulação motora e autopercepção corporal 4 Contatos face a face comunicação e autoregulação 5 Envelope narrativo narração verbal dos eventos pelo adulto com foco na criança e estruturação do self Gradientes de tipos de ambientes ecossociais foram descritos desde o extremo referente a uma densa rede social tradicional com atenção compartilhada em grupo do tipo família estendida e com ênfase em cuidado primário colo e estimulação motora associado ao desenvol vimento de uma noção de self interdependente até os ambientes do tipo família nuclear das sociedades pósindustriais com atenção in dividualizada mais face a face e envelope narrativo associados ao desenvolvimento de um self independente Os cursos de desenvolvimento dependem de uma trama com plexa que integra as nossas predisposições naturais a circunstâncias ambientais específicas As próprias estratégias de desenvolvimento representam estas adaptações Familianatureza e culturaindd 116 211113 0906 117 Na comparação das sociedades modernas com os grupos caça dores coletores não é exagerado pensar que a nossa socialidade seja o aspecto que tenha mudado de forma mais dramática Apesar de de monstrarmos um amplo gradiente de possibilidades de ajustamento estas mudanças importam Vínculos afetivos com a mãe se desenvol vem mesmo numa amostra de famílias como as norteamericanas em que mais de 80 das mães trabalham fora e se ausentam durante o dia HRDY 2005b fatores como a sensibilidade da mãe e a das alomães importam Porém o contraste das famílias estendidas tra dicionais com as nucleares também impõe custos para a organização e para o bem estar Além disso alterações que perturbem o engaja mento certamente perturbarão os vínculos Alguns aspectos da organização social de caça e coleta rela cionados à família persistem mesmo na vida urbana pósindustrial fazem parte da nossa natureza O exemplo mais notável é a formação dos grupos de identificação RIBEIRO BUSSAB OTTA 2009 Todos os seres humanos fazem esta distinção e separam claramente grupos como parentes vizinhos colegas torcedores do mesmo time aprecia dores do mesmo hobby A intersubjetividade e o partilhamento emocional fazem parte essencial do envolvimento afetivo subjacente à constituição dos gru pos de identificação Na verdade não há como separar razão emo ção cognição e afeto nem na evolução nem no desenvolvimento Conforme Hrdy 2009 p 286 a queixa Ninguém me entende na verdade assume significado especial nenhuma outra criatura é capaz de se sentir tão só mesmo quando cercada por pessoas quando falha o compartilhamento Por sermos como somos quebras possíveis des te arranjo fundamental têm consequências em todos os níveis Não é por acaso que o fator mais significativo para a felicidade da maioria das pessoas seja a relação favorável com familiares e amigos se as ne cessidades básicas estiverem minimamente satisfeitas Não surpreende que entre os fatores de risco associados a qua dros psicopatológicos predominem aqueles relacionados às experiên Familianatureza e culturaindd 117 211113 0906 118 cias de vinculação afetiva na infância assim como não é de se estra nhar que praticamente todos os 20 fatores considerados de proteção a desordens mentais pela Organização Mundial de Saúde listados por Brune 2008 p 93 também estejam relacionados à afetividade Os resultados de uma pesquisa sobre Depressão PósParto numa popula ção brasileira de baixa renda da cidade de São Paulo podem ilustrar esta ideia Dentre os fatores de risco associados à DPP detectados nes ta pesquisa destacamse 1 ambiente familiar afetivamente empobre cido durante a infância com baixo nível de afeto e preocupação dos pais e alto nível de rejeição e de punição 2 maior grau de conflito com o companheiro atual 3 baixo suporte social percebido e 4 esti lo de apego com alto grau de ansiedade SILVA 2008 Retomando as questões propostas Procuramos apresentar evidências e argumentos para o re conhecimento das bases biológicas da família e do cuidado parental compartilhado apontando pressões seletivas e soluções adaptativas que operaram no decorrer da evolução na criação dessas bases bioló gicas mecanismos e processos biopsicológicos que constituem essas bases e sua suscetibilidadeflexibilidade em relação a contextos ecoló gicos e históricoculturais Esses argumentos podem ser compatibilizados com evidências históricas e antropológicas desde que se reconheça em que medida se contrapõem aos dois principais argumentos de um ponto de vista estritamente culturalista sugeridos anteriormente Por um lado a universalidade dos arranjos e configurações fa miliares e de cuidado parental humanos se expressa em sua existência necessária e não em suas configurações particulares que refletem a flexibilidade de ajustamento a circunstâncias e modos de vida dentro dos limites dessa flexibilidade A arbitrariedade cultural não é ilimi tada é circunscrita constrained isto é simultaneamente possibilitada e delimitada pela natureza humana que implica necessariamente a Familianatureza e culturaindd 118 211113 0906 119 cultura e pela lógica da evolução e isso é evidenciado pelo exame das configurações familiares e de cuidado parental ao longo da história e entre as culturas Arranjos acidentais ou culturamente propostos como a promiscuidade sem cuidado parental ou a criação coletiva de crianças sem vínculos interpessoais podem ter sido ou vir a ser en saiados durante a história humana mas tendem a desaparecer ou a ser combatidos por entrarem em conflito com exigências básicas da adap tação humana como a vinculação e levarem a resultados indesejáveis Por outro lado como foi ilustrado ao longo do texto a ocor rência historicamente documentada de ausência de cuidado parental sob as formas de infanticídio maustratos ou abandono remete a duas possibilidades o ajustamento a determinados modos de vida como no caso do infanticídio e do aborto em sociedades de caça e coleta ou cir cunstâncias de vida que inviabilizam ou dificultam a atualização das préadaptações humanas para o cuidado parental seja por prescrições culturais como a desvalorização social do cuidado materno tal como relatado por Badinter 1985 e a marginalização da maternidade fora do casamento como apontado por Marcílio 1998 e Tokumaru 2009 seja pela impossibilidade material de sobreviver sustentar e cuidar ade quadamente em situações de necessidade extrema Natureza e cultura não se opõem são indissociáveis A cultura é parte intrínseca da biologia humana e indispensável para sua viabi lidade Como já foi apontado sua evolução obedece a uma lógica aná loga de ajustamento e resposta a condições de vida e sobrevivência e estas são circunscritas pelos limites da flexibilidade humana tanto física quanto psicológica Referências ADES C Um olhar evolucionista para a psicologia In OTTA E YAMAMOTO M E Org Fundamentos de psicologia psicologia evolucionista Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2009 p 1021 ARIÈS P História social da criança e da família Rio de Janeiro LTC 1981 Familianatureza e culturaindd 119 211113 0906 120 BADINTER E Um amor conquistado o mito do amor materno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 BASTOS A Studying poor families in Salvador Brazil Reflections after two decades In BASTOS Ana RABINOVICH Elaine Ed Living in poverty developmental poetics of cultural realities Charlotte Information Age Publishing 2009 p 6997 BELSKY J Pesquisa e teoria de apego sob uma perspectiva ecológica In GROSSMANN K E GROSSMANN Klaus WATERS Everet Org Apego da infância à idade adulta os principais estudos longitudinais São Paulo Roca 2008 p 6994 STEINBERG L DRAPER Patricia Childhood experience interpersonal development and reproductive strategy and evolutionary theory of socialization Child Development v 62 n 4 p 647670 ago 1991 BELSKY J et al Are there longterm effects of early child care Child Development v 78 n 2 p 681701 marabr 2007 BICHARA I et al Brincar ou brincar eis a questão A perspectiva da psicologia evolucionista sobre a brincadeira In OTTA Emma YAMAMOTO Maria Org Psicologia evolucionista Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2009 p 104113 BJORKLUND D PELLEGRINI A The origins of human nature evolutionary developmental psychology Washington American Psychological Association 2002 BOWLBY J Apego Separação Perda São Paulo Martins Fontes 1984 BRAIN C MUKHERJI P Understanding child psychology Union King Nelson Thornes 2005 BRUNE M Textbook of evolutionary psychiatry the origins of psychopatholy New York Oxford University Press 2008 BORGERHOFFMULDER M Reproductive decisions In SMITH Eric WINTERHALDER Bruce Ed Evolutionary ecology and human behavior New York Aldine de Gruyter 1992 p 339374 BURNS E M História da civilização ocidental POA Globo 1974 BUSHNELL I W R Mothers face recognition in newborn infants learning and memory Infant and Child Development v 10 n 1 2 p 6774 2001 Disponível em httpinfantlabfiueduArticlesBushnell202001 pdf Acesso em 12 ago 2013 BUSSAB V A família humana vista da perspectiva etológica Interação Curitiba v 4 p 922 2001 Disponível em httpojsc3slufprbrojs2 Familianatureza e culturaindd 120 211113 0906 121 indexphppsicologiaarticleviewFile33222666 Acesso em 12 ago 2013 PEDROSA M CARVALHO A M Encontros com outro empatia e intersubjetividade no primeiro ano de vida Psicol USP São Paulo v 18 n 2 p 99133 jul 2007 Disponível em httpwwwrevistasuspbr psicousparticleview4192345591 Acesso em 21 ago 2013 RIBEIRO F Biologicamente cultural In SOUZA Lídio FREITAS Mª RODRIGUES Maria Org Psicologia reflexões impertinentes São Paulo Casa do Psicólogo 1988 p 175193 CARVALHO A M O lugar do biológico na psicologia o ponto de vista da etologia Biotemas Florianópolis v 2 p 8192 1989 Etologia e comportamento social In SOUZA Lídio FREITAS Mª RODRIGUES Maria Org Psicologia Reflexões impertinentes São Paulo Casa do Psicólogo 1988 p 195223 CARVALHO A M et al Mulheres e cuidado bases psicobiológicas ou arbitrariedade cultural Paidéia Ribeirão Preto v 18 n 41 p 431 444 2008 Disponível em httpwwwscielobrpdfpaideiav18n41 v18n41a02pdf Acesso em 12 ago 2013 CHARLESWORTH B John Maynard Smith Genetics v 168 n 3 p 1105 1109 2004 Disponível em httpwwwncbinlmnihgovpmcarticles PMC1448785 Acesso em 18 set 2013 DALY M WILSON M Some differential attributes of lethal assaults on small children by stepfathers versus genetic factors Ethology and Sociobiology v 15 p 207217 abr 1994 Disponível em httpbio illinoisstateedurcanderbsc202Daly20and20Wilson20Some20 attributes20of20lethal20assaults20on20small20children20 Ethology20and20Sociobiologypdf Acesso em 12 ago 2013 DEL PRIORE M VENANCIO R Uma breve história do Brasil São Paulo Planeta 2010 DUGATKIN L A Inclusive fitness theory from Darwin to Hamilton Genetics v 176 n 3 p 13751380 2007 Disponível em httpwww geneticsorgcontent17631375full Acesso em 18 set 2013 EIBLEIBESFELDT I Human ethology New York Aldine de Gruyter 1989 ELLIS B ESSEX M Family environments adrenarche and sexual maturation a longitudinal test of a life history model Child Development v 78 n 6 p 17991817 novdez 2007 ENGELS F A origem da família da propriedade privada e do estado Rio Janeiro Bertrand Brasil 2002 Familianatureza e culturaindd 121 211113 0906 122 FERREIRA A B de H Novo dicionário Aurélio Curitiba Positivo Informática 2004 Versão eletrônica 50 FERRARI S DIGBY L Wild Callithrix Groups stable extended families Amer Journal of Primatology v 38 n 1 p 1927 1996 FERREIRA E METTEL T Interação entre irmãos em situação de cuidados formais Psicol Reflex Crit Porto Alegre v 12 n 1 p 113 1999 FREYRE G Casa grande e senzala São Paulo Globo 2003 GEORGAS J et al Ed Families across cultures A 30nation psychological study Cambridge Cambridge University Press 2006 GIBSON M A MACE R Helpful grandmothers in rural Ethiopia a study of the effect of kin on child survival and growth Evolution and human behavior v 26 n 6 p 469482 2005 GOLDIZEN A Tamarin and marmoset mating systems unusual flexibility TREE v 3 n 2 p 3640 fev 1988 Disponível em httpdeepbluelib umichedubitstreamhandle202742274030000436pdfjsessionid69 6AFBAD9B5F97B54E6CC6E932193BEEsequence1 Acesso em 16 ago 2013 GOMES L 1822 como um homem sábio uma princesa triste e um escosês louco por dinheiro ajudaram D Pedro a criar o Brasil um país que tinha tudo para dar errado Rio Janeiro Nova Fronteira 2010 HAMILTON W D The genetical evolution of social behavior II Journal of Theoretical Biology v 7 p 1752 1964 Disponível em httpwww uvmedupdoddsteachingcourses200908UVM300docsothers everythinghamilton1964bpdf Acesso em 16 ago 2013 HINDE R Individuals relationships and culture links between ethology and social sciences New York Cambridge University Press 1987 HINDE R Etologia e teoria do apego In KLAUS E et al Org Apego da infância à idade adulta os principais estudos longitudinais São Paulo Roca 2008 p 112 HRDY S B Mãe natureza uma visão feminina da evolução maternidade filhos e seleção natural Rio Janeiro Campus 2001 Evolutionary context of human development the cooperative breeding model In CARTER C Sue Ed Attachmnent and bonding A new synthesis Cambridge MIT Press 2005a p 932 On why it takes a village cooperative breeders infant needs and the future In BURGESS Robert MACDONALD Kevin Ed Evolutionary perspectives on human development Califórnia Sage Publications 2005b p 167188 Familianatureza e culturaindd 122 211113 0906 123 HRDY S B Mothers and others the evolutionary origins of mutual understanding Cambridge Belknap Press 2009 JOHANSON D EDEY M Lucy Os primórdios da humanidade Rio Janeiro Bertrand Brasil 2006a JOHANSON D BLAKE E From Lucy to language New York Simon Schuster 2006b KELLER H Diferentes caminhos de socialização até a adolescência Rev bras crescimento e desenvolv hum São Paulo v 16 p 114 1998 Disponível em httpclientedoncoabmpsitedevtextos421htm Acesso em 16 ago 2013 KELLER H Cultures of infancy Heidi Kellers contribution New Jersen Lawrence 2007 LAFRENIERE P J Human emotion as multipurpose adaptations an evolutionay perspective on the development of fear In BURGESS Robert MACDONALD Kevin Ed Evolutionary perspectives on human development Califórnia Sage Publications 2005 p 189206 LALAND K GALEF B Introduction In LALAND Kevin Ed The question of animal culture Cambridge Harvard University Press 2009 LEAKEY R A evolução da humanidade São Paulo Melhoramentos 1981 LEAKEY R LEWIN R Origens Brasília Melhoramentos 1980 LÉVISTRAUSS C Saudades do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1994 LORDELO E et al Ambiente de desenvolvimento e início da vida reprodutiva em mulheres brasileiras Psicol Reflex Crit Porto Alegre v 24 n 1 2011 Disponível em httpwwwscielobrpdfprcv24n1 v24n1a14pdf Acesso em 16 ago 2013 MARCÍLIO M L História social da criança abandonada São Paulo Hucitec 1998 MEAD M Sexo e temperamento São Paulo Perspectiva 2000 MORIN E O enigma do homem para uma nova Antropologia São Paulo Jorge Zahar 1979 NESSE R WILLIAMS G Por que adoecemos a nova ciência da medicina darwinista Rio Janeiro Campus 1997 PADRÃO A P Mulheres indianas e a poliandria Portal Mulher 17 nov 2004 Disponível em httpwwwportalmulhernetarticlesaspid430 Acesso em 3 out 2013 Familianatureza e culturaindd 123 211113 0906 124 POORTINGA Y H GEORGAS J Family portraits from 30 countries an overview In GEORGAS James et al Ed Families across cultures A 30nation psychological study Cambridge Cambridge University Press 2006 PORGES S W The role of social engagement in attachment and bonding A phylogenetic perspective In CARTER C Sue Ed Attachmnent and bonding A new synthesis Cambridge MIT Press 2005 REICHHOLF J H Breve história da natureza no último milênio São Paulo SENAC 2008 RIBEIRO F BUSSAB V OTTA E De colo em colo de berço em berço In MOURA Maria L Org O bebê do século XXI e a psicologia em desenvolvimento São Paulo Casa do Psicólogo 2004 p 229284 RIBEIRO F BUSSAB V OTTA E Nem alfa nem ômega anarquia na savana In OTTA Emma YAMAMOTO Maria E Org Psicologia evolucionista Rio Janeiro Guanabara Koogan 2009 p 176188 RIDLEY M O que nos faz humanos São Paulo Record 2004 RODRIGUES M M Evolução do sistema parental em primatas o caso do Homo sapiens In SOUZA L FREITAS M RODRIGUES M Org Psicologia reflexões impertinentes São Paulo Casa do Psicólogo 1988 p 273292 RODRIGUES M M Evolução humana In OTTA Emma YAMAMOTO Maria Org Psicologia evolucionista Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2009 p 3341 SAI F Z The role of the mothers voice in developing mothers face preference evidence for intermodal perception at birth Inf Child Dev v 14 p 2950 2005 Disponível em httpinfantlabfiueduSai2005pdf Acesso em 16 ago 2013 SILVA G A Estudo longitudinal sobre prevalência e fatores de risco para depressão pósparto em mães de baixa renda 2008 212 f Dissertação Mestrado em Psicologia Experimental Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo São Paulo 2008 Disponível em httpwww tesesuspbrtesesdisponiveis4747132tde29072009162342ptbrphp Acesso em 16 ago 2013 TINBERGEN N The study of instinct Londres Oxford University Press 1951 TOMASELLO M Origens culturais da aquisição do conhecimento humano São Paulo Martins Fontes 2003 Familianatureza e culturaindd 124 211113 0906 125 TOKUMARU R S Investimento parental e maustratos de crianças In OTTA Emma YAMAMOTO Maria Org Psicologia evolucionista Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2009 p 96104 TOKUMARU R S BERGAMIN M P Uma abordagem evolucionista das relações paisfilhos e padrastosenteados In GARCIA Agnaldo Org Relacionamento interpessoal olhares diversos Vitória UFES 2005 p 2940 TREVARTHEN C Stepping away from the mirror pride and shame in adventures of companionship refletions on the nature of infant intersubjectivity In CARTER C Sue Ed Attachmnent and bonding A new synthesis Cambridge MIT Press 2005 p 5584 VOGL W et al Cuckoo females preferentially use specific habitats when searching for hot nests Animal Behavior v 64 p 843850 2002 Disponível em httpbehavzoologyunibechsysuifuploadsfilesesh pdfonlinetaborskymVoglAnimBehav2002pdf Acesso em 16 ago 2013 YAMAMOTO M E SOUZA M B C Sistema social dos calitriquídeos dados atuais e novas perspectivas de investigação In SOUZA L FREITAS M RODRIGUES M Org Psicologia reflexões impertinentes São Paulo Casa do Psicólogo 1988 p 247272 Familianatureza e culturaindd 125 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 126 211113 0906 127 Capítulo 6 Família na filosofia contemporânea o debate natureza e cultura Francesco Botturi Neste capítulo apresento por via dialética a ideia de famí lia natural comparando argumentos da técnica e da fenomenologia acerca das condições culturais pelas quais a ideia de família apresenta se como razoável Atualmente este debate deparase com duas principais fontes de objeções culturais à família entendida como realidade antropoló gica e ética fundamental e paradigmática 1 uma concepção relativis ta que faz da família uma realidade sem identidade especificamente própria e que por isso coincide com qualquer tipo de relação afetiva 2 uma concepção da afetividade humana que não tem o seu cumpri mento ideal na família As duas objeções combinadas dão lugar a uma síndrome cultural substancialmente antifamilista Naturalmente como todas as objeções também estas se nu trem de reivindicações de experiências e exigências humanas que têm as suas razões antropológicas e históricas como uma maior consci ência no mundo globalizado da ampla variedade das formas familia res uma sensibilidade derivada da revolução sexual dos anos 60 do século passado que mudou a compreensão da relação sexual e dos papéis com quais a se vive uma nova consideração da mulher etc Familianatureza e culturaindd 127 211113 0906 128 Mas com maior profundidade é evidente a crise de uma ideia da sexualidade e da família identificadas por uma sua natureza es pecífica e vinculante e o prevalecer de uma culturalidade que re solve em si cada significado A questão de natureza e cultura não é portanto objeto de um debate acadêmico mas concerne ao invés a autocompreensão de fenômenos humanos fundamentais Retome mos de modo analítico as objeções que se referem à relação natureza e cultura A redução de família e de sexualidade à técnica A primeira objeção diz respeito à existência de uma identidade natural da família que constitua paradigma de referência A A família seria uma realidade dotada de muitas identida des diferentes e incomparáveis as quais não têm como referência ne nhum modelo natural sempre e universalmente válido O texto de uma autoridade da antropologia cultural italiana Remotti 2008 de título eloquente Contra natureza Uma carta ao Papa conduz uma investigação articulada sobre a ideia de natureza cultural humana com uma ampla exemplificação etnológica sobre o tema da família A nós interessa a tese fundamental que afirma propondo no vamente temas do ceticismo da liberdade sexual e do jansenismo dos séculos XVI e XVII que o costume ou seja as tradições culturais constituem o real núcleo da ideia de natureza humana no sentido em que as concepções as práticas os costumes incorporados na tradição não somente modelam a nossa visão das coisas mas são ge neralizadas racionalizadas e transformadas assim em supostos pa radigmas naturais de valor universal Em outros termos aquilo que chamamos natureza humana não seria mais que uma sedimentação histórica de experiências tradições convencimentos práticos cultu rais Existe portanto no fundamento da ideia de natureza um pro cesso de estabilização de algo que não é natural constante e univer Familianatureza e culturaindd 128 211113 0906 129 sal como são as tradições culturais de certas sociedades humanas Tal estabilização pode assumir formas relativas não pretensiosas porque conscientes do caráter parcial da sua ideia de natureza huma na típicas das culturas mais primitivas ou mais localizadas ou então formas absolutas historicamente vencedoras como a de grandes culturas universalistas que utilizando o conceito de natureza em sen tido forte reforçado pela ideia de razão e de Deus se proclamam de valores absolutamente universais dos quais trazem a sua energia de expansão e também o seu direito de imposição Macroexemplos deste processo são o Cristianismo e o Islã e também as grandes filosofias do racionalismo moderno REMOTTI 2008 no qual seria bem visí vel que o apelo à natureza humana funciona como autoconvencimen to ideológico para uma práxis de poder É o momento de tecer algumas considerações a respeito deste exemplo de pensamento antinaturalístico no âmbito das ciências hu manas a Antes de tudo observarei que não é verdade que a variedade dos fenômenos e das formas culturais conduza à negação da ideia de natureza como tal Tudo depende da ideia de natureza que se coloca em campo Se essa é identificada com um modelo prefixado dos com portamentos ou então com uma moldura rígida e fixa então a varie dade cultural será incompatível com essa Se ao invés por natureza se entende um princípio genético permanente eou uma tendência fun damental estruturante então sua ideia não é completamente distante da investigação antropológica que em qualquer lugar e de qualquer modo documenta a existência da busca de regularização das relações sexuais familiares e sociais e de ordenamentos práticos da procriação humana1 1 O próprio LéviStrauss 1967 p 73 123 pondose o problema da universalidade da natu reza humana como problema da invariabilidade afirmava que a originalidade de cada cultura está na maneira particular de resolver os problemas de operar uma prospectiva de valores que são aproximativamente os mesmos para todos os homens todos os homens de fato sem exceções prosseguem uma linguagem algumas técnicas uma arte algumas cognições de tipo científico algumas crenças religiosas uma organização social econômica ou política diferente é a dosagem de tais atividades em cada cultura Familianatureza e culturaindd 129 211113 0906 130 Assim se é verdade que a pluralidade cultural exclui a orienta ção universal a certo tipo de família testemunha porém a inclinação comum a regular as relações entre entidades sexualmente diversas e assim documenta amplamente o constante cuidado universal do significado humano das relações sexuais e da geração Então a varie dade de formas a respeito de um idêntico interesse e de um mesmo cuidado ao invés de ser uma objeção pode ser a mais racional docu mentação indireta 1 Por outro lado o próprio Remotti 2008 tem incertezas sig nificativas À pergunta o que é a natureza de um lado responde defendendoa em oposição à cultura como condições naturais ou seja aquele conjunto de fatores que sem dúvida distinguem os seres humanos sob o ponto de vista biológico e ecológico dando assim uma definição pobre isto é naturalística de natureza identificada a cons tantes materiais de ordem físicobiológico No entanto afirma que a natureza humana não é uma estrutura estável e autônoma um fato já construído um produto acabado e completo e por isso ileso e imo dificável por parte de decisão ou vontade de transformação mas um processo biocultural através do qual a humanidade se realiza um construir a própria história isto é um princípio dinâmicogenético intrínseco pelo qual propõe o conceito de uma natureza humana a qual longe de ser uma estrutura autônoma se realiza somente me diante a cultura REMOTTI 2008 p 251 207 206 Esta perspectiva genéticoprocessual diversamente da ante rior nos interessa porque usa a ideia de natureza como princípio e estrutura a qual referirse para dar conta da pluralidade que é própria das expressões do único fenômeno humano De fato hipotetizar uma ideia de natureza como processo biocultural isto é como produ ção e não como produto significa referirse a algo de precedente às formas culturais precisamente um processo que é princípio dinâmi cogenético da sua produção O conceito de natureza como princípio do processo produtivo das diversas formas culturais como também são aquelas familiares Familianatureza e culturaindd 130 211113 0906 131 explica porque as formas culturais tendem a compreenderse como naturais pois assim cada cultura afirma o valor das próprias for mas isto é a sua casualidade e transitoriedade sua expressão de es tabilidade e por isso também de normatividade do comportamento como é exatamente a natureza com a qual se manifesta Concluise que a razão pela qual uma cultura se autocompreende espontanea mente como expressão de algo estável e universalmente válido não é somente uma razão ideológica de poder que não falta porém mais profundamente é o fato que a natureza do homem é o princípio per manente da própria culturalidade humana isto é da capacidade de exprimir formas culturais Por isso compreendese a autenticidade da tendência ao auto universalismo de cada cultura assim como sua relativização uma vez que todas as expressões da cultura pertencem ao humano e não são eventos naturalísticos pois expressam a natureza humana Esta por sua vez enquanto princípio é em si mesma irrepresentável e não se expressa totalmente por meio de nenhuma forma de cultura Por tanto cada cultura é expressão da natureza humana universal que porém se manifesta somente nas muitas formas culturais historica mente determinadas Logo existem condições antropológicas estru turais de uma cultura que são universais mas as suas efetuações his tóricas são sempre particulares Por isso o universal antropológico se dá sempre na forma do universal concretoconcreto universal isto é do valor universal universalmente compreensível e estimado tradu zível e comunicável de sua realização determinada e particular como é bem exemplificada na obra de arte que ao mesmo tempo é dotada de máxima universalidade e de máxima particularidade 2 O estatuto da cultura radicada na natureza geradora sem pre imanente e sempre transcendente às formas culturais está na comparação e da avaliação das próprias formas culturais Compará veis pois todas têm um princípio comum de referência pelo qual to das as formas culturais não são jamais completamente estranhas as formas culturais trazem a marca e as características da matriz natural Familianatureza e culturaindd 131 211113 0906 132 da qual provêm Por isso as formas culturais são valoráveis em força desta referência que fornece indicações de senso vinculante por ou tra parte diversas formas culturais podem ser deste ponto de vista equivalentes ou então de diverso valor mas não contraditórias A relação genética a uma natureza impede de qualquer modo o relativis mo e o indiferentismo A existência de um parâmetro natural implica que as formas culturais possuam uma conformidadecoerência de na tureza mas também que essa seja graduada nas diversas formas As formas culturais podem exprimir a natureza em grau e intensidade qualitativas muito variadas e portanto serem apreciadas sob diver sos pontos de vistas coerência refletividade funcionalidade etc de outra parte é possível também o contranatureza que o relativismo ao invés nega na medida em que qualquer forma cultural contenha elementos que contradizem os caracteres constitutivos ou alguns ca racteres fundamentais da identidade natural humana uma cultura do incesto ou da antropofagia ou dos sacrifícios humanos etc por quantos elementos segundo natureza humana possa ainda conter tem no seu centro uma ideia antinatureza Os caracteres constituti vos vinculantes da realidade familiar segundo a sua natureza serão considerados mais adiante Outra questão é as condições e competências da avaliação a princípio é importante afirmar a comparabilidade valorativa de fato a realidade é consignada à dialética cultural e à dialética das cultu ras no sentido de Maclntyre porque não existe historicamente uma autoridade sobre as partes que possa julgar como naturalidade de uma forma cultural de modo inapelável Cada autoridade cultural é legitimada a propor com os seus argumentos as suas razões de juízo B Um suporte antes uma radicalização da visão culturalista da família vem da Gender theory a teoria de gênero A partir dos anos 70 nos Gender Studies estudos de terceira ge ração sobre a questão feminina o termo Gender gênero é usado em oposição a sex sexo para distinguir o sexo social do biológico A dis tinção é em si preciosa porque coloca em evidência a dupla valência Familianatureza e culturaindd 132 211113 0906 133 da sexualidade humana como para todas as formas e expressões do humano vale também para a sexualidade a bidimensionalidade da quilo que é dado que o homem e a mulher recebem e se descobrem ser e daquilo que é elaborado que o homem e a mulher interpre tam e configuram2 BELARDINELLI 2002 BOTTURI MORDACCI 2009 COSTA MICHELINI 2006 Mas no âmbito do feminismo o qual coloca sempre o problema da relação entre os sexos e questio na papéis historicamente adquiridos e naturalizados a releitura da condição da mulher aconteceu em grande parte sob o emblema de uma subversão total da relação entre dimensão natural aqui no sentido de dada e dimensão cultural elaborada da sexualidade como documentam autoras como Buttler 2004 A afirmação de Beauvoir 1991 p 325 mulher não nasce se torna é reinterpretada reduzindo ao neutro a sexualidade biológica e atribuindo todo o significado à sexualidade psicocultural qual objeto de escolha e de reprojetação subjetiva não necessariamente conforme à orientação do sexo biológico Como afirma Wittig 1981 a identi dade sexual não tem nada de natural mas é ao invés um resultado de um jogo de cultura e poder que tem seu efeito sobre a identificação física dos sujeitos uma construção mítica uma formação imaginá ria que reinterpreta os traços físicos de per si neutrais mas marca dos por um sistema social mediante a rede de relações na qual são percebidos Uma nova visão das coisas inicia então se considerar mos que somos constringidos no nosso corpo e na nossa mente a corresponder frequentemente à ideia da natureza que foi fundada por nós Homens e Mulheres são categorias políticas não fatos naturaisWITTIG 1981 p 483 2 E é segundo a natureza racional do homem que ele seja um ser condicionado daquilo que é dado seja a sua elaboração cultural BELARDINELLI 2002 BOTTURI MORDACCI 2009 COSTA MICHELINI 2006 3 A estas posições se une também Buttler 2004 a diferença sexual tornase modelo hete rossexual como construção cultural que se propõe como natural e que se impõe como normativa Familianatureza e culturaindd 133 211113 0906 134 O entendimento deste ponto de vista é claro executar um pro cesso de redução do natural ao cultural e deste ao político segundo o qual a essência da natureza é a cultura e a essência desta é um exer cício de poder4 A subversão de tal herança pode estar somente em um desmascaramento do jogo de poder subjacente e na sua emissão sob termos novos liberalizados embora sejamos conscientes que ele é estrutural 1 o primeiro é a desnaturalização da sexualidade que aqui tornase radical em um processo de completa historicidade cultural e que anula toda identidade permanente Na perspectiva da teoria do Gender de fato o paradigma da relação heterossexual e as formas da sexualidade se relativizam multiplicandose sem limites Como ob serva Gomarasca 2010 no fundo se perfila um novo paradigma o da indiferenciação sexual como referente de todas as diferenças5 A teoria do Gender se põe assim como uma ponta avançada de todas aquelas posições pelas quais o dado natural é um sedimento cul tural ideologicamente significativo nada mais que uma construção histórica em relação a qual o ser feitos assim não tem significado em si mesmo não é portador de uma própria inteligibilidade e de uma mensagem em grau de instruir a experiência 2 Uma segunda consequência da teoria do Gender é que se dis solve a relação como lugar de identificação subjetiva As teorias sobre o gênero colhem com aguda sensibilidade que as questões da iden tidade do corpo sexuado em quanto mediado por relações comporta um problema de poder e que tal poder se exercita através da inter pretação da condição sexuada Mas a obsessão pelo poder opressivo da identidade sexual acaba por subtraíla do vínculo À questão da 4 Em sentido oposto ao reducionismo mais difundido no campo neuroético ou ecoético que apoia o naturalismo fisicista aqui o reducionismo vai em direção contrária do culturalismo político BOTTURI 2009 5 Segundo Gomarasca 2010 o paradigma da sexualidade não seria passível de generalização mas poderia ser uma implicação coerente por muitas posições tematicamente introduzido por Buttler 2004 e pelas autoras que fazem referência ao modelo do AntiÉdipo de Deleuze e Guattari 1992 Familianatureza e culturaindd 134 211113 0906 135 identidade as teorias do gênero respondem com uma interpretação voluntarista da corporeidade que não trabalha sobre a relação do eu e do outro e sobre a dialética construtiva da identidade e da diferença a favor de uma ideia de diferença no fundo autorreferencial Modelos fundados na emoção liberdade sexual e valorização da tecnociência A segunda objeção da qual queremos ocuparnos diz respeito não à família e à sexualidade como redutíveis a uma formalidade cul tural mas sim ao sentido da família em relação à afetividade huma na É claro de fato que na base das reinterpretações dos fenômenos existenciais e institucionais da sexualidade e da família está uma mu dança profunda da concepção da subjetividade humana e da sua afeti vidade desfavorável a uma concepção normativa natural da família Por outra parte quanto à família é próprio no âmbito da afetividade e do seu mundo de relações que são referências os traços daquilo que podemos chamar natureza humana Mas para evidenciar isto deve mos fazer um percurso que desconstitua o modo no qual hoje é vivida a experiência afetiva A percepção média que o homem contemporâneo ocidental tem de si mesmo é devedora de três fatores que lhe determinam for temente a identidade antropológica vivida certa ideia de afetividade emotiva da liberdade individualista libertária da razão tecnocien tífica Estas três ideias vividas matrizes de experiências formam um concurso de três fatores em sinergia e sustento recíproco Os três fa tores são de fato em relação circular certa ideia de desejo reduzido a emoção narcisista está sustentando a ideia de liberdade como auto disposição que encontra no poder tecnológico o instrumento da sua realização que por sua vez alimenta o desejo etc desejoemoção liberdadeautodisposição poder da racionalidadetecnológica A realidade que mais é colocada à prova sobre este aspecto são as relações entre os homens e em particular as que mais intimamen Familianatureza e culturaindd 135 211113 0906 136 te envolvem os sujeitos como as afetivas e sexuais Inevitavelmente a família padece dos efeitos do subjetivismo prevalente e não é mais concebida facilmente como um projeto orientado a bens próprios e vinculantes quais uma diferença sexual irredutível uma estabilidade exigível uma fecundidade predisposta mas é também essa concebida como uma forma cultural disponível a muitos modos e conteúdos Mais uma representação do sujeito em suma que um projeto Mas consideremos com maiores detalhes os modelos funda mentais daqueles fatores 1 Desejoemoção Na biografia dos solteiros e no imaginário coletivo parece prevalecer como regra a episodicidade afetiva e a au sência da história de amor Não obstante o fato que isto proclama do como conquista de liberdade individual cause sofrimento difuso e frustração repetida da parte de vidas sem fisionomia afetiva definida projeção de crescimento sem fecundidade generativa a experiência e a concepção afetivas contemporâneas se concentram sempre mais no emocional Como ilustrou Lacroix 2002 nos mais diversos setores da existência privada e pública tem um papel relevante à cultivação das emoções divertimento esporte publicística publicidade atribui ções grupais políticas etc são todos âmbitos no qual é documen tável como o elemento emocional seja característica antropológica emergente Escreve Lacroix 2002 p 35 O homem emocional procura estabelecer uma relação sensitiva com o mundo6 Típico do emocional é de fato mediar a si mesmo e o mundo através do sentir e o sentirse isto é através da autopercepção afetiva caracterizada pela autorreferencialidade instantaneidade automatismo de reação intensidade Emoção significa por isso concentração da experiência em um sentir egocêntrico pontual necessário intensivo no qual o su jeito tanto ganha em atualidade de si quanto perde em capacidade 6 Vale precisar que a emoção da qual se fala coincide com certo modo sintético de interpreta ção do afeto não é por isso identificável com o conteúdo semântico mais compreensível e variável do termo emotion da cultura anglosaxonica contemporânea nem com seu uso na psicologia empírica Familianatureza e culturaindd 136 211113 0906 137 em distender a própria experiência e de ver o mundo isto é antes de tudo ele mesmo em relação com os outros Neste sentido podese dizer que o emocional tem os caracteres contrários àqueles do senti mental que significa relação excêntrica e estática privilégio da dura ção longa cultivação do sentir tonalidade difusa GIDDENS 19947 O progressivo ordenamento do afetivo em direção à emotivi dade está em sintonia com uma questão sem solução que habita as profundidades da cultura ocidental a questão do relacionamento en tre logos e phatos da sinergia entre o cognitivo e o afetivo e de uma sua síntese como pensamento afetuoso e da uma afeição pensante BOTTURI 2004 GOMARASCA 2010 Enquanto ao contrário a cul tura ocidental parece sempre mais caracterizada por uma dramática contraposição e complementaridade entre razão entendida sobretu do em chave de racionalidade técnica e de afeição emocional 2 A condição do homem contemporâneo de fato favorece a decomposição dos elementos constitutivos da experiência humana na qual tem grande peso a decomposição da razão e afetos O preva lecer social da racionalidade analítica e calculadora técnicocientífica tende a assimilar cada forma de racionalidade e a estranhar o afetivo da esfera do racional a afetividade por sua vez sendo sempre me nos em comunicação com critérios racionais ontológicos e axiológi cos se desenvolve em termos sempre mais subjetivos e anônimos A cisão entre racionalidade calculista e vivência afetiva parece virar condição normal do homem contemporâneo Tratase de uma fratura que se documenta diversamente mas que agora caracteriza precisamente a experiência comum racionalidade da vida pública e casualidade crescente daquela privada instabilidade dos vínculos afetivos e impossibilidade da vida familiar crise profunda dos vín culos gerativosgenerativos fragilidade nos confrontos dos pesos e das tarefas da existência insegurança sempre maior no empenho 7 O sentimento romântico de fato como observa Giddens 1994 p 55 pressupõe um certo grau de investigação sobre si mesmo comporta portanto a exaltação do mundo afe tivo de uma subjetividade reflexiva identitária estável ainda que ambígua Familianatureza e culturaindd 137 211113 0906 138 educativo etc Se estabelece complexivamente uma síndrome cultural radicada e coerente constituída pelos polos da racionalidade como poder e da afetividade como emotividade que se completam e se sus tentam entre elas divididas e complementares nas suas oposições A esfera emocional exclui a racionalidade a regra a projeção a espera racional exclui ao invés o existencial o relacional o afetivo8 KAM PER 2002 Esta justaposição de razão calculista e de afetividade emotiva é bem representada por exemplo pelo duplo tratamento que o corpo humano recebe por uma parte esse é corpo tecnológico objeto de experimentação e de manipulação por outra é corpo de desejo vi vido e publicizado como sacrário da satisfação privada e da autoexal tação erótica e estética duas abstrações que acabam perversamente por sustentarse uma na outra O corpo portanto não é mais vín culo de significados viventes segundo a bela fórmula de Merleau Ponty 2000 centro orgânico de sentido e de relação e por isto de valor e de pudor bem sim objeto manipulável ou então lugar de sa tisfação egocêntrica Tudo isso comporta um progressivo prevalecer do impessoal a corporeidade tecnológica e a corporeidade pulsional não inervada por um logos superior unificante impõem de fato uma visão do mundo onde os protagonistas são a força organizativa e a energia do desejo possessivo e no qual a pessoa e as suas relações per sonalizadas ficam invisíveis 3 A questão da afetividade do corpo e da racionalidade são estreitamente coligadas com aquela da liberdade Neste contexto de exaltação do subjetivismo afetivo vigora a reivindicação inquestionável da liberdade individual da liberdade 8 Dáse em tal modo uma fatal separação entre emoção e racionalidade que nenhuma época da humanidade conheceu de forma tão aguda que conduz a uma dolorosa e surda antilógica por um lado e por outro lado uma vazia lógica formal que se repercute sob emo ções segundo o esquema do domínio e da exploração é em ato uma catástrofe emotiva pela qual de um lado a sociedade dos homens se perdeu em um poder de constrições das coisas e do outro os mesmos seres humanos sãos fechados na sua dimensão privada como em uma prisão sem grades KAMPER 2002 p 1021 Familianatureza e culturaindd 138 211113 0906 139 de escolha como valor absolutamente primeiro se não exclusivo reivindicação do próprio poder de decisão que pretende a absoluta disposição de si A defesa da liberdade é de fato o argumento públi co por excelência a sustento da temporalidade dos vínculos afetivos da equivalência antropológica e moral das identidades sexuais da legitimidade das várias formas de manipulação e disposição da vida humana manipulações genéticas fecundação tecnológica aborto provocado eutanásia etc viáveis a qualquer custo e sobretudo a quem custar Em outros termos o conteúdo da escolha foi desde já reabsorvido sob a forma de liberdade não conta se aquilo que foi escolhido é bom ou mal mas somente se foi escolhido porque a forma do ser escolhido é que atribui valor ao conteúdo Indiferença do conteúdo portanto e triunfo da forma isto é formalismo da li berdade e do valor Por outra parte à reivindicação libertária se acompanha como uma sombra de predicação nesses determinismos neuronais psíqui cos sociais que subtraem à liberdade e ao excedente do indivíduo cada espaço assim que o mesmo sujeito de um lado é solicitado a reivindicar a sua liberdade do outro é investido da mensagem sobre seu ser à mercê dos aparatos físicos pulsionais mediáticos sociais e financeiros Amor e liberdade Em tal contexto históricocultural como propor de novo a ideia de família Retornando a um discurso de antropologia fundamental que mostre a pobreza da síndrome emotivistatecnicistalibertária da qual falamos delineei outras dimensões do humano em cujo espaço se inscreve a realidade familiar Tratase de trabalhar sobre a essência dos afetos da razão e da liberdade e sobre suas íntimas relações nas quais afetosrazão e razãoliberdade se reconciliam mostrando um vulto significativo da natureza humana Familianatureza e culturaindd 139 211113 0906 140 1 O que torna possível que o afeto amoroso transformese em vínculo de amor Somente se o amor for algo mais que simples emo ção porque recompreende e supera o inteiro regime do sentir pai xão sentimento emoção O sentir enamorado é uma espontânea atração e tensão que é já movimento em direção ao ser do outro mas que se cumpre ao se tornar vínculo com a medida em que se relaciona conscientemente ser do outro e aprende a querer aquele outro ser isto é na medida em que se transforma em amor e no trabalho da relação amorosa Mas o trabalho do amor requer uma metamorfose e tem necessidade de uma energia que cumpra a transformação Tal energia não é a serviço do sentir mas nasce da inteligência e da capacidade de julgar que transforma a inconsciente verdade do enamoramento o ser relação a outros em uma relação afetiva conhecida e querida O amor nasce do juízo sobre o enamoramento mesmo não como tribunal externo e medida extrínseca do sentir mas como in térprete autorizado e partícipe do sentido dos afetos Esta é uma afirmação quase inaceitável pela cultura contemporânea a qual re pugna a ideia que se julgam os sentimentos ou então é a única coisa que permite a passagem do tu me emocionas ao eu te amo Por outra parte não se trata antes de tudo de um juízo moral sobre os sentimentos mas de um exercício da razão que se desprende da re lação afetiva que ilumina aquilo que o sentimento não pode ver De fato enquanto o sentimento registra a reação subjetiva da afeição e não poderia fazer diferente a razão lê nesta reação subjetiva uma realidade e uma direção de sentido Se a afeição é já um tender air verso o ser do outro aquilo que a razão vê julgando é o sentido da relação afetiva como afirmação do ser do outro com um exercício de razão portanto não técnicocientífica mas ontológica A este ofício é preposto não um juízo que afirma qualquer coisa de outro mas que afirma o ser do outro e vira sustento de um ato de vontade que olha o outro na sua totalidade como um bem Familianatureza e culturaindd 140 211113 0906 141 Certamente o enamoramento já intui a totalidade do outro o ser do outro como outro a sua ausência diria Lévinas mas ainda não a pensa Tal pensamento acontece somente com um juízo de existência qual afirmação do outro em si mesmo do seu ser evento original e irredutível Afirmação que não remove absolutamente o sen timento mas o transforma em uma comoção nova em um sentimento de nível diferente que pode ser expresso com a fórmula Alegrome porque tu existesporque tu és que é de outra natureza das fórmulas vividas eu gosto me emociona te desejo te quero etc Na passagem entre o sentir e o julgaramar muda a referência entre a relação se ao primeiro nível o objeto primeiro de afeto são as operações e qualidades dos outros ao segundo objeto é o outro como tal Tal diferença entre sujeito e as suas qualidades é fundamen tal para o amor que inicia verdadeiramente somente quando através das suas qualidades de sentir o outro é amado além disso por si mesmo ou pelo menos quando se começa a valorar que deveria ser amado assim como qualquer um que é sempre mais que suas qualida des e das suas operações o sujeito humano é no seu agir e é também sempre muito mais que isso como recordou Wojtyla 2004 é dota do de uma identidade escondida que não pode manifestarse como tal e permanece secreta ao próprio eu Por isso a relação humana não pode acontecer senão em uma dialética de velamento e desvelamento no qual é reposto o espaço da liberdade e do pudor a pessoa humana é constitutivamente velada e o entrar em relação é uma manifestação dela que implica um princípio de aliança e de colaboração de promessa e de respeito Notese que somente a não coincidência entre identidade subjetiva é a sua história expressiva que torna possíveis atitudes fundamentais nas relações humanas como o pudor o arrependimento o perdão no confronto com o outro Analogamente se deve dizer da promessa e da fidelida de de fato na sociedade da pertença tais atitudes tendem a desapa recer Familianatureza e culturaindd 141 211113 0906 142 A fórmula do amor alegrome pelo teu existir exprime então a sua natureza porque evidencia o termo autêntico da relação exatamente o ser concreto e misterioso desvelado e velado do outro Por esse motivo o amor ato complexo do sentir da inteligência e da vontade mostra não ser sempre demais o sentimento o amor embora sendo normalmente antecipado pelo sentimento enamorado acompanhado do sentimento de alegria fonte de sentimentos mais intensos de satisfação de alegria de ternura de respeito etc e con sistentes por força e duração o amor não se exaure jamais no senti mento mas é um ato de vontade sustentado do juízo que ama o ou tro como bem que vale em si mesmo e prova sentimentos conformes a esse O amor na essência mais própria é um ato da vontade com o qual quer o bem do outro o bem da relação com o outro Por seu estatuto o amor pode vir a encontrarse na situação que a sensibilidade contemporânea não parece em grau nem mesmo de pensar que lhe é requerida se não quer renunciar a si mesmo de afirmarse em ausência de sentimento ou também na presença de sentimentos negativos não porque não se sente mais ou se sen te negativamente o desagradável e o inimigo não se pode amar antes é nesta condição que o amor oferecendo grande prova de si mostra o modo mais puro a sua autêntica natureza Em todas as for mas eróticas o amor dá testemunho da sua relação profunda com o sacrifício 2 Analogamente a liberdade ligada ao querer bem é de nature za diversa daquela de um livre arbítrio que dispõe de si Certamente a liberdade é poder de escolha mas a sua redução a livre arbítrio em pobrece gravemente o sentido e a enrosca sobre si mesma em analo gia com a afetividade reduzida a emoção A liberdade humana é um organismo complexo BOTTURI 2009 no qual a radical capacidade humana de motivar a ação na qual está o fundamento da liberdade se articula como capacidade de aderir ao bem e de o escolher em concreto a liberdade se exercita de modo autêntico como escolha do bem Familianatureza e culturaindd 142 211113 0906 143 Mas isso ainda não exaure os significados da liberdade hu mana cujo exercício tem necessidade de um ponto genético sem o qual essa verdadeiramente não entraria em exercício a liberdade humana tem necessidade de uma outra liberdade para ativarse e orientarse na existência Como a Bela Adormecida mesmo sen do já perfeita na sua beleza tem necessidade de ser acordada pelo beijo do príncipe assim a liberdade humana tem necessidade da graciosa e gratuita relação de outra liberdade para entrar na posse plena de si mesma para dar forma completa à identidade huma na da qual é portadora Esta de resto é a experiência universal da necessidade que a criança tem do adulto para crescer e tornarse si mesmo fenômeno de reconhecimento que acompanha a vida durante todo o seu curso porque o amor a amizade a relação so cial ocorrem sobre planos e em graus diversos de todas as formas da relação humana necessária à estabilidade e ao crescimento dos sujeitos à definição histórica das suas identidades Em síntese a liberdade humana tem necessidade de uma outra liberdade para alcançar a si mesma e para exercerse na plenitude de suas capaci dades Por isso é a relação com outra liberdade que faz uma pessoa fazer a experiência do bem o bem fundamental de uma relação segundo liberdade e é ainda essa que desperta na experiência do bem a capacidade de escolha Estamos portanto bem longe de uma ideia de liberdade em colapso capaz apenas de dispor de si É neste triângulo da relação do bem e da escolha que a ex periência moral toma consistência pois a liberdade se conscientiza de ser vinculada à sua estrutura de responder não como a qualquer coisa que se impõe do externo mas como o que lhe permite de viver Respeitar o vínculo com a liberdade dos outros e com o bem é o modo pelo qual a liberdade conserva e realiza a si mesma Enfim o nexo entre as formas da liberdade de escolha de bem de relação sugere algo de decisivo quanto à natureza humana ou seja que a identidade não é nem individualista nem coletiva mas relacional e ainda mas que na relação a identidade tem o seu lugar Familianatureza e culturaindd 143 211113 0906 144 de nascimento A relação na liberdade o reconhecimento como es sência da intersubjetividade tem por isso um significado generativo porque tem o poder de trazer à luz o outro homem Como ninguém chegou à vida por si observa Henry 2001 assim ninguém chega ao exercício da existência sem a relação hospitaleira de outros No jogo do reconhecimento de fato a identidade e a diferença encontra a sua relação idealmente constitutiva que se reassume como nos lembra Arendt 2006 no círculo do nascimento biopsíquico e psicoespiritual dos sujeitos A identidade humana obtém a sua fisio nomia no jogo das relações na medida em que estas se realizam como troca generativa o ser humano existe na medida em que é gerado e assim da pertença ao lugar de origem Caracteres éticos do amor e da família Em tudo o que eu afirmei anteriormente estão incluídos os caracteres éticos do amor 1 Se o amor não é um destino fatal ou um evento casual mas uma obra na qual razão vontade e sentimento cooperam então o amor é obra da liberdade O amor livre e responsável pela relação não é algo que acontece por si mesmo mas deve ser perseguido volunta riamente seguindo e desenvolvendo a lógica intrínseca da afeição amor requer o exercício quiçá aquele mais radical da liberdade O nível do amor torna claro que os tipos de afeto não são confiados ao enamoramento no qual jogam também necessidade e caso mas à liberdade 2 Em tal sentido a ética dos afetos se concentra em um para doxal mandamento do amor que não é contraditório na medida em que se trata de um vínculo que o amor dá a si mesmo Em tal sentido a virtude moral por excelência do amor é a fidelidade O amor de fato quer dominar o tempo e lhe dá o seu sentido mas tem também ne cessidade dele para distenderse para vir a saber de si para entender aquilo que vale e ver os seus frutos Sem o desafio do tempo o amor Familianatureza e culturaindd 144 211113 0906 145 se transforma em episódio O tempo do amor se chama fidelidade isto é adesão estável àquilo que aconteceu para poder compreendêlo e permitir que ele exista Sustentar na fidelidade o tempo de um amor torna possível uma história de amor torna possível que um amor tenha história e que exista amor na história do homem Assumir a prova do tempo é uma dimensãi ulterior definitiva da passagem do enamoramento casual pontual estático ao amor querido alonga do trabalhoso No caso do amor sexualmente diferenciado o fazer família inicia esta intuição de estabilidade trabalhosa e projetada O amor compreende aqui o sentido da sua espontânea intuição de perenida de o amor uma vez iniciado não pode acabar porque o outro que lhe dá sentido não tem fim não tem um confim em que possa ser aprisionado Por sua natureza aquela do amor é uma obra sempre incompleta quando se poderá dizer de ter amado e ter sido amado o bastante De ter dado ao outro tudo aquilo que merecia Estas me didas são absolutamente estranhas à lógica do amor porque lhe são contraditórias Podemse programar operações prazos fixados como aquelas previsíveis com um partner sexual administrativo profissio nal etc Mas não tem sentido algum amar com prazos fixos porque o objeto do amor é um sujeito Quanso se ama se ama um quem não um qualquer coisa uma qualidade ou uma operação de qual quer um isto é um princípio de vida um manancial de iniciativa o centro de um mundo uma força de afeição Por difícil que seja a sua realização o ideal da perenidade do vínculo é absolutamente adequado à natureza do amor Prevenindo a estabilidade o amor acolhe a priori cada evento e o inclui na ampla visão que compreende cada possibilidade 3 O amor humano é concentrado no trabalho da relação no qual está em jogo o reconhecimento do outro como outro sujei to Reconhecer o outro de fato é a forma fundamental de hospita lidade entre os homens trâmite que se dá e se recebe não sempre em reciprocidade confirmação da própria humanidade ativação das Familianatureza e culturaindd 145 211113 0906 146 próprias capacidades declaração da própria identidade social Em tal sentido o reconhecimento vinculado da relação é generativo de huma nidade e de identidade A generatividade é por isso o significado fundamental tam bém da afetividade humana da qual a dualidade sexual genital é como a inscrição simbólica na carne viva a fecundidade biológica é memória viva que o sujeito corpóreo gerado é feito para gerar outros e a si mesmo cada um à própria identidade A identidade afetiva se constitui de fato segundo uma dúplice relacionalidade a uma rela cionalidade segundo diferença porque a identidade refulge da pura homogeneidade e si compraz da diferença que a codetermina b uma relacionalidade generativa porque uma relação que não seja fictícia como um jogo de espelhamento narcisista dos seus termos é sempre também mais dos seus termos o entre não é a soma de dois mas como ensina Buber 1936 e também Jacques 1982 é qualquer coi sa em si mesmo lá onde precisamente mora arriscadamente a iden tidade humana Se a relação não é extrínseca como entre as coisas ou projetiva isto é unidirecional mas se põe entre o sujeito e os faz seremrelação essa em qualquer medida é sempre terceira entre eles A experiência ensina que um amor é protegido que uma amizade é cultivada que um magistério é seguido em breve que as relações são objeto de cura em si mesmas Mas se a relação é vivida e honrada na sua lógica própria é produtora de realidade nova gerando outra que si mesma matrimônio e filho sodalício escola para estar aos exemplos feitos A generatividade humana significa um universo antropológi co gêneses e vínculo responsabilidade e fidelidade acolhimento e proteção cuidado e educação transmissão e tradição entre os sujei tos e daquilo que esta produz Neste sentido a identidade generativa é a nível do humano no qual se tem uma verificação bem significativa de uma estrutura natural O ser generativo é princípio e origem de um riquíssimo universo cultural Familianatureza e culturaindd 146 211113 0906 147 As visões materialistas do amor têm na geração a subordi nação do amor à lei da espécie que o humilha e o torna efêmero SOLOVËV 1983 Ao contrário a geração biológica exprime no ho mem a personalização madura do amor na medida em que essa é consciente expressão do amor e não consequência da atração sexual Por isso a geração exprime toda a potência do amor que afirma a si mesmo aceitando humildemente colocarse a disposição da posterida de Em tal modo a geração confirma a lei fundamental de transcen dência e de dependência juntas que é própria do vínculo conjugal que desde sempre é livre autor de qualquer coisa o instituto matrimo nial que uma vez constituído se subtrai à sua arbitraria disposição e exige o respeito das suas regras ou pegando de novo a ideia de Arendt 2006 é ator de qualquer coisa da qual reconhece não ser o autor Nos filhos esta lei de potência e de humildade própria do amor se manifesta em plena evidência DAGOSTINO 19999 Daqui decorre a centralidade antropológica da família que é plenitude do amor sexualmente diferenciado e biologicamentepsiquica mente generativo do qual depende a síntese e a realização de aspectos constitutivos da natureza humana A ideia ocidental de família incorpora assim um paradigma de humanidade segundo o qual o homem tem uma identidade relacio nal generativa uma identidade que se exerce e se constitui como rela ção que acolhe o outro na sua real e plena diferença e neste sentido o gera e entrega a si mesmo A importância da diferença sexual o valor da duração do vínculo no qual o outro continua a ser significativo no tempo a abertura à filiação são caracteres típicos desta concepção da identidade humana cuja perda não significa uma derrota da tradição 9 Como observa DAgostino 1999 p 14 reconhecendo a família como comunidade de amor e de solidariedade se obtém não somente o reconhecimento dos equilíbrios irrenunci áveis desta mas também o reconhecimento de uma imagem de homem que é a única sobre a qual fundar a esperança de uma sociedade e de um futuro propriamente humanos O ser humano que se abre ao amor familiar e que do amor familiar conheçe o valor pessoal e do ador é também capaz de construir e defender uma escala de valores evitando de tendências egocêntricas violentas e no limite destrutivas Familianatureza e culturaindd 147 211113 0906 148 religiosa mas a perda de um patrimônio e a dissipação de um recurso essencial para a conservação e a frutificação de tudo aquilo que é de mais precioso da civilização ocidental À distância quando não existe aversão da mentalidade contemporânea no que diz respeito a tal ideia de homem indica quanta experiência de vida e quanto trabalho cul tural e educativo são necessários a fim de que sobreviva na realidade familiar Referências ARENDT H Vita activa La condizione umana Milano Bompiani 1966 BELARDINELLI S La normalità e leccezione Il ritorno della natura nella cultura contemporânea Milano Soveria Mannelli Rubettino 2002 BUBER M Ich und Du Berlin Schocken Verlag 1936 BUTTLER J Scambio di genere Identidà sesso e desiderio Milano Sansoni 2004 BOTTURI F La generazione del bene gratuità ed esperienza morale Milano Vita e Pensiero 2009 Etica degli affeti In BOTTURI F VIGNA C Affetti e legami annuario di Etica 1 Milano Vita e Pensiero 2004 MORDACCI R a cura di In NATURA in ética annuario di ética 6 Milano Vita e Pensiero 2009 BEAUVOIR S Il secondo sesso Milano Saggiatore 1991 COSTA P MICHELINI F Ed Natura senza fine Il naturalismo moderno e le sue forme Bologna EDB 2006 DAGOSTINO F Una filosofia della famiglia Milano Giuffrè 1999 DELEUZE G GUATARI F Conversações Rio de Janeiro Ed 34 1992 GIDDENS A La trasformazione dellintimità sessualità amore erotismo nelle società moderne Bologna Il Mulino 1994 GOMARASCA P Lidea di natura nei Gender Studies In NATURA in ética Milano Enaudi 2010 MICHEL H Incarnazione una filosofia della carne Torino SEI 2001 MERLEAUPONTY M O visível e o invisível São Paulo Perspectiva 2000 Familianatureza e culturaindd 148 211113 0906 149 JACQUES F Différence et subjectivité anthropologie dun point de vue relationnel Paris Aubier Montaigne 1982 KAMPER D Desiderio In BORSARI Andrea WULF Christoph Org Cosmo corpo cultura Milano Mandadori 2002 LACROIX M Il culto dellemozione Milano Vita e Pensiero 2002 LÉVISTRAUSS C Razza e storia e altri studi di antropologia Einaudi Torino 1967 REMOTTI F Contro natura uma lettera al papa RomaBari Laterza 2008 SOLOVËV V Il significato dellamore e altri scritti Milano La Casa di Matriona 1983 WITTIG M One is not born a woman Feminist v 1 n 2 1981 Disponível em httpresearchuvuedualbrechtcrane2600linksfilesWittigpdf Acesso em 19 ago 2013 WOJTYLA K Persona e atto SantArcangelo di Romagna Rusconi 2004 Familianatureza e culturaindd 149 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 150 211113 0906 151 Capítulo 7 Interdisciplinaridade e estudos sobre família como instituição natural Riccardo Prandini Introdução É possível de um ponto de vista sociológico e no interior da contemporânea divisão do trabalho científico que pressupõe aborda gens e metodologias científicas bem diferenciadas conectar nature za e família Do ponto de vista da ciência contemporânea a Socio logia se ocupa do social e da sua institucionalização Aqui se abrem dois distintos problemas 1 Desconhecimento da natureza construtivismo Quer o objeto o social quer o processo a institucionalização é concebido como dissociado do natural entendido por sua vez como substrato material da realidade sobre a qual as formas sociais podem impri mirse de acordo com o gosto individual O natural é portanto con cebido pela maioria das abordagens sociológicas como uma espécie de tábula rasa inerte sem capacidade de intermediação a partir da qual colocar as formas técnicas de socialização Familianatureza e culturaindd 151 211113 0906 152 O que este problema significa para a família Significa que a família é concebida como modalidade contin gente e transformável de imposição sobre relações naturais de uma marca voluntariamente humana isto é não mais natural A natu reza é somente vínculo dependência da qual libertarse ou quanto muito material para decompor desconstruir recompor de modo que melhore o design da espécie que deve sempre mais adaptarse a imagens ideológicas que ultrapassam o debate acerca da natureza Esta posição conduz a diversas consequências do ponto de vis ta filosófico ao Niilismo do ponto de vista cultural a um relativismo idiossincrático subjetivista do ponto de vista sociológico teórico a um hiperconstrutivismo do ponto de vista políticosocial a um hibri dismo e um indiferentismo ético 2 Falso reconhecimento da natureza naturalização do so cial O objeto o social e o processo a institucionalização são conce bidos como meras reproduções da matéria que se autoorganiza evolu tivamente seleciona as formas mais adequadas à sobrevivência e me diante mecanismos culturais não especificados mantêm os resultados do processo que porém são sem finalidade O que este problema significa para a família Significa que a família nada mais é que matéria organizada na turalmente constituída a fim de melhorar e reproduzir A natureza aqui é reconhecida diferentemente do primeiro modelo mas somen te como contínuo material que do reino inanimado passa ao vegetal e animal Deste ponto de vista a natureza humana pode tornarse um problema para a natureza não humana o ecossistema a Mãe Terra a ponto de programar sua extinção tecnológica Do ponto de vista filosófico isto conduz a um evolucionismo natura lista e sem finalidade Do ponto de vista cultural a um pragmatismo técnicocientífico Familianatureza e culturaindd 152 211113 0906 153 Do ponto de vista sociológico teórico a uma renaturalização do hu mano Do ponto de vista políticosocial a uma eugenética e a uma ética do mais apto Na base destes problemas está uma concepção não realística da realidade natural uma incapacidade de distinguir diversos níveis ontológicos da realidade a impossibilidade de conectar estes diversos extratos ontológicos dentro de um tecido coerentemente científico Vem a faltar sobretudo o pensamento da íntima articulação entre natureza e cultura falta a capacidade de teorizar como a natureza passa na cultura e esta naquela sem perder as distinções mas reco nhecendo a intrínseca conexão das duas Em particular o ser humano não é reconhecido como parte da natureza capaz de modificála pro duzindo aquela supernaturalidade aquele excedente do natural que mesmo permanecendo no âmbito da natureza a redefine não só em termos apenas animais e sim propriamente humanos Resposta ao desafio o retorno ao realismo Como proceder para responder ao desafio A resposta que proponho ao desafio diz respeito ao reapropriar se de modo adequado à contemporaneidade do desenvolvimento cientí fico do realismo A pergunta que o realista põe ao cientista de qualquer ciência é como deve ser observada a realidade a fim que seja possível estudála cientificamente Ao cientista deve se colocar o problema da sua legitimidade social O que você está fazendo enquanto cientista na sociedade A resposta só pode ser estou procurando compreender o por quê do que se manifesta isto é os mecanismos geradores profundos que produzem os fenômenos para analisar O cientista não pode fugir da dis tinção entre observadorobservado na qual o observado a não ser que incorra em paradoxos observacionais deve ser distinto do observador Familianatureza e culturaindd 153 211113 0906 154 Conceitoschave do realismo sociológico Com a palavra realismo indicase hoje a crença na existência de entidades independentes do observador uma reação antitética à filosofia moderna O Realismo científico se baseia em três pretensões 1 a intransitividade a realidade é feita de objetos duradouros e inde pendentes estruturas e mecanismos geradores que impactam sobre o conhecimento 2 a transfactualidade as leis casuais são universais e reais operando mesmo quando não observadas ou permanecendo mesmo quando ocasionalmente desativadas 3 a estratificação a re alidade é diferenciada e estratificada A realidade é concebida como uma totalidade da qual sabemos algo e de maneiras diferentes no tempo quer através da percepção quer através da casualidade a per cepção indireta dos seus efeitos sobre a realidade material A percep ção não deve ser entendida de modo representacional e individualista o observador contemplativo que pode ter somente certeza dos con teúdos da sua mente mas como uma atividade prática e social uma espécie de teoria ecológica da percepção Nem todos os objetos são perceptíveis pelos nossos sentidos ou pelas tecnologias que os expan dem muitos podem ser apenas hipotetizados pelos efeitos que provo cam sobre a realidade percebível por exemplo os objetos teóricos dos campos de força ou gravitacionais mas também a sociedade para os quais lhe atribuímos realidade mediante um critério causal A análise transcendental que está na base do Realismo científico mos tra exatamente que a realidade é constituída por três domínios que se sobrepõem mas que são bem diferentes Quadro 1 o domínio do Real do Atual e do Empírico onde o primeiro compreende os outros dois e funda o realismo e o segundo o atualismo compreende o ter ceiro o empirismo O realismo é fundamentalmente uma ciência das causas en tendida como a poderes de produzir mudanças b modos caracterís ticos de seroperar propriedade dos objetos em virtude da estrutura deles relação entre elementos constitutivos c as propriedades me Familianatureza e culturaindd 154 211113 0906 155 diante as quais as entidades geram ou tornam impossíveis habilitam ou desabilitam os efeitos Quadro 1 Domínios da realidade segundo o Realismo Real Atual Empírico de modo mais amplo subjetivo Experiências conceitos e sinais Eventos Mecanismos Experiências conceitos e sinais Eventos Experiências conceitos e sinais Fonte Elaborado pelo autor A causalidade opera com eficácia real em uma temporalida de marcadamente transfactual isto é sua existência não pode ser deduzida somente dos resultados concretos porque estes são quase sempre codeterminados enquanto tendências que se manifestam como invariâncias empíricas só em condições de fechamento isto é também se contingentemente podem não ser observáveis e ainda quando são contrastadas por outras forças em ato portanto não atu alizadas As leis causais tendências são por isso potencialidades que podem ser exercidas ou não observadas ou não Podem ser analisa das como tendências contextualizadas entre condições habilitantes estimulantes ou capazes de concessões Os dois conceitos poderes causais e tendências são sintetizáveis com o conceito mais geral de mecanismo gerador Os mecanismos geradores são tendências que operam por necessidade natural e universalmente ao ponto de code terminar os fenômenos do mundo Onde um objeto é um poder ou um mecanismo coincide com a sua estrutura mas em outros casos são distintos como acontece onde os mecanismos são possuídos por objetos estruturados Uma corrente causal ou seja um processo complexo de causalidadecompreende potencialmente não uma mera sequência de eventos regulares conjunções constantes mas uma lógica dialé tica entre 1 eficácia transfactual de um mecanismo gerativo causa materialformal 1M 2 exercício espaçotemporal dos seus poderes Familianatureza e culturaindd 155 211113 0906 156 causa eficientefinal 2E 3 mediações múltiplas por parte da cau salidade holística para entidades complexas estruturadas a ponto de determinar casualmente como um todo os seus elementos consti tutivos que por sua vez influenciam o todo causa formalmaterial 3L 4 agir intencional na qual a causa é uma razão na esfera huma na causa finaleficiente 4D 5 efeito concreto regular que deter mina uma mudança codeterminada pela corrente 14 com também possíveis efeitos de retorno feedback Para poder identificar uma explicação causal é necessário elaborar uma metodologia específica chamada dialética epistemo lógica PRANDINI 2011a Em primeiro lugar precisa proceder de recursos e conhecimentos prévios dados para em seguida esten delas em modo analógico ou metafórico a fim de idealizar um mo delo hipotético do mecanismo gerador que se existisse seria capaz de explicar o fenômeno examinado Habitualmente o cientista se encontra no dever de colocar em competição mais de um modelo útil para explicar o fenômeno Cada um desses deve ser empirica mente testado certificado e verificado Uma vez identificado o mo delo que explica mais a realidade do que os outros o cientista pode parar mas no futuro também este modelo no momento vence dor poderá ser por sua vez testado e redescrito em um processo que inclui uma dialética de saber explicativo e taxonômico que exprime melhor o contínuo e fecundo diálogo entre objetos intran sitivos e transitivos da ciência Tal processo científico movese por etapas Em primeiro lugar é necessário alcançar as evidências empíricas ou regulari dades Este seria o nível do conhecimento científico em que se estabelecem resultados empíricos ou regularidades preliminares para a adaptação do mecanismo que os produz HUME NORTON NORTON 2003 considerando o nível humano da produção de conhecimento científico Em seguida formalizamse mecanismos construídos pela razão humana mediante a criação de modelos hipotéticos Este corresponderia ao nível kantiano momento em Familianatureza e culturaindd 156 211113 0906 157 que se utiliza a imagem para idealizar modelos do mecanismo ge rativo que dá consistência ao objeto investigado KANT 2005 Um passo adiante permite acessar mecanismos explicativos testados empiricamente o que corresponderia ao nível lockeano da neces sidade natural LOCKE 1978 Este momento é caracterizado pela dedução dos fatos de um determinado nível de realidade através da estrutura intrínseca de um nível mais profundo Por fim a de finição real fase na qual se identifica o tipo natural da estrutura originária que explica o fato Este seria o nível leibnizniano ou taxonômico da ciência o momento da explicação no qual vem identificado o tipo natural capaz de assumir uma definição real Este corresponde ao saber analítico a posteriori Por definição real entendese uma definição que elaborando o saber prévio de definições nominais capta a estrutura essencial ou verdade alethi ca do objeto estudado Com tipo natural Natural Kind enten dese que os objetos do saber possuem uma essência real própria em específico são universais reais isto é uma estrutura própria causa formal ou constituição com específicos poderes causais Esta essência real que na realidade é sempre mediada pela singu laridade do objeto universal concreto e pelas circunstâncias do sistema aberto se exprime no modo de ser e de operar do objeto incluindo o modo típico de manifestarse das suas propriedades empiricamente observáveis fenomenologia realista que o descre ve como uma necessidade natural o mecanismo gerativo em obra quer os observadores o observem quer não Claramente não é necessário confundir a essência real onto lógica com o essencialismo pois este é somente uma epistemolo gia reducionista e determinista O mesmo acontece com o funda cionalismo que é uma epistemologia que ignora o inevitável jogo do filósofo em um contexto cultural dado sem entre outras coisas a possibilidade de chegar aos pontos de Arquimedes ou de operar em regime de bootstrapping Familianatureza e culturaindd 157 211113 0906 158 Os tipos naturais constituem objetivos taxa que tornam pos sível o saber taxonômico que interage no tempo com as tentativas melhores e melhoráveis de explicação e compreensão Entre os uni versais reais taxa e o concreto estão os tipos type e inclusos os tipos ideais que diferente do convencionalismo weberiano são tentativas de abstrair do caso concreto o universal do objeto WEBER 1974 Enfim um token instância é uma expressãoexemplo de um tipo A explicação de um fenômeno não é portanto baseada nem sobre a indução nem sobre a dedução mas sim na tentativa de recolocá lo sob um novo esquema de conceitos que indicam os mecanismos geradores que o produzem em particular mediante as operações de retradução e abdução Este processo que descreve a lógica da descoberta científi ca se baseia sobre uma dialética epistemológica que procede da fenomenologia o saber do fenômeno visível à explicação estrutu ral daquilo que o gera causa através da crítica das hipóteses e das teorias disponíveis É uma lógica dialética com três etapas onde as incoerênciascontradiçõesaporias causadas pela falta de completude teórica eou da subdeterminação empírica 2E fase da mudança e da novidade empurram para uma explicação mais complexa e global isto é mais capazapta de explicar 3L fase da nova teorização o fenô meno mediante a identificação dos mecanismos causais 1M fase da verificação e a nova conceituação transformação negativa da teoria 2E 4D Tal dialética procede ao infinito até atingir níveis sempre mais profundos de conhecimento que tendem à verdade alethica Aplicação do realismo sociológico ao problema da família O problema da natureza e cultura na família se expressa da seguinte maneira o que há de natural na família em que por família se entende já uma mediação humana que constitui e institui certo tipo de relação social Por natureza aqui se entende uma realidade ontológica présocialordenada e geradora independentemente do co nhecimento que temos dela ou da capacidade de reproduzila que pos Familianatureza e culturaindd 158 211113 0906 159 suímos enquanto seres humanos que está antes da mediação social embora influenciando esta mediação da qual ela é em seguida hu manizada a ponto de desembocar no conceito de natureza humana e não naturezasimplesmente animal Para responder a esta questão são necessárias ao menos duas distinções além da identificação de alguns mecanismos geradores de tipo présocial A primeira distinção é assexual que diz respeito à re produção sexuada da espécie homo A segunda distinção é aquela en tre sociedades anônimassociedades individualizadas Neste ponto é necessário muita atenção Do ponto de vista da história da natureza porque a natureza tem sua história morfogenéti ca nem a reprodução sexuada nem a constituição de sociedades in dividualizadas são dadas como óbvias São por sua vez os produtos da evolução natural que especificam formas de vida sobretudo entre os mamíferos e os primatas Nós porém partimos de um momento no qual o ser humano ou qualquer seu predecessor de espécie diferen te mas próxima possuíam já estes dois poderes Os mecanismos que ligam estas duas distinções no limite en tre social e natural e que dão origem ao homem são mecanismo de isolamento ou mecanismo de apego e de vínculo social mecanis mo da libertação dos limites corpóreos mecanismo da pedomorfose ou neotenia mecanismo da transposição mecanismo da familiari zação do desconhecido mecanismo da cooperação mecanismo da cerebralização ou da neocorticolização nascimento da linguagem Interessanos ocuparnos principalmente do primeiro isola mento ou apego e em extrema síntese do terceiro familiarização O emergir do humano enquanto espécie bem distinta das outras es pécies animais depende de específicos mecanismos gerativos por sua vez baseados sobre pressupostos naturais que representam modelos fundamentais de interconexão elementos necessários para o emergir da família enquanto forma de relação social Em tal sentido a família tornase verdadeiramente a primeira forma do social que pressupõe Familianatureza e culturaindd 159 211113 0906 160 o natural como seu suposto e que por sua vez tornase substância substantia de outra articulação social No fim do raciocínio que se firmará brevemente sobre o me canismo generativo e centrífugo da relação A família poderá ser definida em termos estritamente socio lógicos como aquela relação constitutiva e portanto emergente que liga em um certo modo e com uma certa ordem a diferença sexual com o problema de inscrever o neonato em uma genealogia e que institui tal conexão diante de terceiros Ela é portanto um grupo social instituído em um sistema simbólico de parentesco que articula a aliança a filiação e a frater nidade em referência à distinção natural dos sexos das idades e das gerações intergeracionalintrageracional Esta definição nos ajuda a cumprir quatro fundamentais opera ções que outras abordagens sociológicas não podem cumprir permi te desenvolver uma teoria da diferenciação relacional da família que não confunde relações sociais diferentes consequentemente permite distinguir entre a morfogênese da família da morfogênese de estilos de vida familiar como as convivências more uxório e as uniões ho moafetivas consequentemente permite distinguir o reconhecimento jurídico social econômico etc diferenciado e assim não discrimina do para a família nem para os outros estilos de vida permite compre ender a família como uma instituição natural isto é manter uma ordem entre o fato social e aquele natural sem confundilos e fazelos colapsar um no outro reconhecendo a sua relativa autonomia mas também a necessidade que encontrem uma configuração ordenada permite compreender a família como relação social que medeia entre Familianatureza e culturaindd 160 211113 0906 161 estratos diferentes da realidade biológico psicológico social cultural etc em que o estrato social é somente um entre outros e não o úni co evitando assim as derivações sociologizantes PRANDINI 2011b permite reconhecer e sustentar publicamente as funções de mediação entre público e privado individual e social natural e cultural que a família representa para a sociedade como um todo Estas operações não são possíveis no horizonte de uma socio logia conflacionista individualista holística ou indiferenciada que seja que ao invés tende a confundir o que é a família com aquilo que ela não é O fato de que a família seja uma relação social que implica a presença de cônjugesparentes ascendentesdescendentes e a socie dade confirma o realismo da teoria e a possibilidade científica de seguir a sua morfogênese A relação familiar em outros termos se configura como uma peculiar modalidade social de dar forma a três momentos peculiares do fenômeno humano Um provir hori zonte temporal passado um convir horizonte temporal presen te e um advir horizonte temporal futuro Este tríplice horizonte pode ser compreendido através de uma verdadeira gramática gene rativa da família ou da sua estrutura preposicional que especifica a sua originalidade e originalidade sui generis DONATI 2009 O provir colhe a necessária dependência a proveniência do ser humano de outros seres humanos Institui o humano como ser da do outro de uma geração de uma precedente mediação hu mana do ser mediante o outro de um dom institutivo Este regis tro temporal e existencial chama atenção sobre a relevância de uma memória que atribui pertença e identidade de uma aliança que se coloca no social de uma filiação que institui uma trama de respon sabilidades geracionais de uma herança e de um débito com outros O convir colhe o ser com os outros a solidariedade a ne cessidade no presente de colaborar com os outros de estar juntos Este registro temporal e existencial reclama a necessidade para o hu mano de serestar no social a sua coconstitutividade mas também Familianatureza e culturaindd 161 211113 0906 162 a necessidade de distinção de individuação de assimetria que servem justamente para ligarcom Somente entre distintos é possível uma relação O advir simboliza o ser para o outro a projetualidade e a generatividade paternidade e maternidade que tira o humano do possível isolamento e autorreferência e que lhes fazem reconhecer o ser da e o ser com É um registro temporal e existencial que pro jeta o presente rumo ao futuro que obriga a imanência à transcen dência que impulsiona à geração do novum Dados estes pressupostos será depois mais simples prever as consequências de desconsiderar a natureza da família Traduzido do italiano por Raimundo Mário Santana Referências DONATI P Família no século XXI abordagem relacional São Paulo Paulinas 2009 HUME D NORTON D NORTON M Ed A treatise of human nature Oxford Oxford University Press 2000 KANT I A religião nos limites da simples razão São Paulo Escala 2005 LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano 2 ed São Paulo Abril Cultural 1978 PRANDINI R Transcendental realism and critical naturalism in roy bhaskar the return of ontology in scientific social research In MACCARINI A M MORANDI E PRANDINI R Ed Sociological realism London Routledge 2011a p 3056 PRANDINI R La famiglia oggi tra indistinzione e ridistinzione relazionale In MELINA Livio Ed Il criterio della natura e il futuro della famiglia Cantagalli SienaRoma 2011b p 89121 WEBER M Ensaios de Sociologia 3 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 1974 Familianatureza e culturaindd 162 211113 0906 163 Capítulo 8 Família líquida desafios para as políticas sociais Marcos Roberto do Nascimento Introdução Famílias mutantes famílias tentaculares famílias em desor dem e famílias em crise famílias pósmodernas e famílias líquidas Não se pode esquecer das famílias patriarcais e das conjugais moder nas São tantas as famílias quanto suas denominações Igualmente diversas são as tentativas teóricas e metodológicas de dar conta da complexidade que envolve o fenômeno de mudança na estrutura da família moderna A família enquanto uma importante instituição so cial chama a atenção de teóricos políticos elaboradores de políticas sociais e religiosos devido às suas múltiplas funções reprodução hu mana reprodução social regulação social suporte afetivo e moral socialização consumo etc A família em mudança pode comprometer todas essas funções ou parte delas seja pela sua completa falência diante de certas atribuições sociais o pai provedor ou a mãe dona decasa seja pela simples fragilidade da própria família enquanto instituição diante das mudanças na sociedade que afetam suas bases A família está diante de desafios próprios à sua dinâmica in terna conflitos de geração conflitos de gênero separações arranjos Familianatureza e culturaindd 163 211113 0906 164 no domicílio etc e externa os quais a afetam internamente cuja origem é a economia de mercado o consumismo as mudanças nos padrões de comportamento dos homens e das mulheres sobretudo destas últimas a exacerbação do individualismo a fragilização dos padrões de ética e moral fornecidos pela religião pela escola e pela política Há mudanças profundas nos planos macro e micro que afe tam a dinâmica da família Não que se defenderá aqui ou se vaticinará o fim da família mas que se reconhece que a família em mudança é menos causa dos problemas da sociedade dentro de certa perspec tiva as políticas sociais caminham muitas vezes no sentido contrário e mais vítima dos imperativos de uma sociedade cada vez mais eco nômica política e socialmente desregulada A família nesta perspectiva responde às mudanças empreen didas na sociedade por um modelo de sociedade construído a partir do projeto de modernidade que incessantemente promove a destrui ção de bases simbólicas e materiais para paradoxalmente se susten tar Tal sustentação caminha sempre na corda bamba devido à neces sidade de continuamente substituir o velho pelo novo o passado pelo futuro a certeza do fim pela incerteza da permanente fugacidade das coisas Por isso não está proposto neste artigo o fim da família mas pelo contrário a sua capacidade de diante das mudanças internas e das forças externas continuar dialeticamente realizandose Os estudos sobre família no campo do Serviço Social apresen tam vários desafios de ordem teórica e metodológica No campo te órico o principal desafio diz respeito às rápidas mudanças que vêm ocorrendo na estrutura familiar de tal maneira que a realidade empí rica não cabe nos conceitos de família apresentados pela sociologia por exemplo Há um desajuste entre os modelos teóricos e a com plexidade dessa realidade Complexidade revelada pelas mudanças até certo ponto absolutamente irreversíveis nos papéis sociais dos membros da família paimãe provedorcuidadora maridomulher pelas mudanças no tamanho e composição das famílias pelas mudan ças no padrão de formação de novos casais pela ampliação da inter Familianatureza e culturaindd 164 211113 0906 165 venção do Estado no âmbito das famílias das camadas populares pelo predomínio de uma moral fortemente individualista nas famílias das camadas médias e altas Enquadrar esta realidade nos conceitos ora disponíveis os quais privilegiam a formação nuclear casal casado com filhos ou um dos progenitores e seus filhos tem sido um exer cício realmente criativo No campo metodológico o principal desafio é mensurar e identificar a dimensão do fenômeno em sua complexidade Isso implica lançar mão de um conceito de família que caiba dentro dos instrumentos de coleta de dados demográficos sem que se perca a complexidade do fenômeno ou criar novos instrumentos capazes de captar a complexidade do fenômeno Este desafio se coloca de manei ra inquietante para o campo da demografia da família por exemplo na medida em que muitas vezes o que se quer medir não é o que se mede Isto é tomase a definição de família apresentada pelo IBGE1 e o que é realmente captado pelos dados é a composição ou arranjos familiares nos domicílios MEDEIROS OSÓRIO 2001 Fica de fora portanto desta realidade transformada em dados o que define e dá sentido à noção de família Singly 2007 p 31 afirma que a definição da família pela sua forma ou estrutura ou seja pelos seus elementos visíveis e de simples descrição estatística corre o risco de fazer desaparecer essas relações que são portanto os elementos de análise mais importantes no plano teórico O que se pode ocultar num estudo sobre família fortemente pautado por análise de dados agregados sobretudo num contexto de mudanças são 1 a dinâmica das relações de gênero e de gerações 2 as formas de funcionamento das famílias decorrentes dessa dinâmica Considerase ainda um li mitador das análises mais complexas a restrição da noção de família à esfera do domicílio Ao tomar a noção de família nuclear e colála à estrutura física e contábil do domicílio correse o risco de assumir que 1 Nos domicílios particulares considerase Família a a pessoa que mora sozinha b o conjun to de pessoas ligadas por laços de parentesco ou de dependência doméstica c as pessoas ligadas por normas de convivência IBGE 2002 Familianatureza e culturaindd 165 211113 0906 166 esta estrutura de família sempre preenche funções idênticas ou que a regulação das relações entre os sexos e as gerações seja a mesma ao longo do tempo e em diferentes espaços e localidades Nesse capítulo pretendemos apresentar um argumento que aponta para os grandes desafios que as políticas sociais de família enfrentam diante das mudanças que estão ocorrendo na estrutura da família brasileira tendo em vista as limitações no campo teórico de correntes da complexidade e fluidez do fenômeno2 Este capítulo será dividido em três partes A primeira trata do esgotamento da hegemo nia do modelo patriarcal de família Na segunda parte apresentare mos uma perspectiva que baseada na ideia de modernidade líquida de Bauman 2001 formulará a noção de família líquida resultado do projeto inacabado da modernidade Finalmente daremos início a uma reflexão que coloca a noção de família líquida como um dos principais desafios para as políticas sociais no Brasil Família em mudança o esgotamento do modelo patriarcal A principal temática sobre a família não reside mais nas re lações de poder do pai sobre o filho ou do marido sobre a mulher o que caracteriza o patriarcado mas sobre a ruptura da estabilidade da família conjugal moderna Não se trata de evidenciar as desigual dades entre os papéis de homens e mulheres no cumprimento das funções da família mas antes a volatilidade dos papéis ou mesmo sua negação Na medida em que o modelo de família conjugal moder na está calcado na representação desses papéis sua fluidez provoca a ruptura com essa localização simbólica da tríade pai mãe e filhos 2 Temos consciência que ao apontar alguns desafios nosso trabalho permanece no limbo das especulações sobre as limitações no campo dos estudos das políticas públicas sobre família Por um lado este nosso trabalho não avalia uma política pública específica e por outro há poucos estudos sobre políticas públicas de família no Brasil Nesse sentido não há apenas desafios para as políticas públicas mas também para os estudiosos da área Familianatureza e culturaindd 166 211113 0906 167 Duarte 1995 p 38 grifo do autor destaca esta complexa realidade da família contemporânea da seguinte forma O crepúsculo da família ocidental moderna em seu modelo central deita sem sombras e dúvidas sobre o futuro de nossa cultura Essas sombras e dúvidas são relativas a um processo muito mais amplo e profundo que a dissolução ou trans formação de uma forma institucional precisa tra tase do desafio de reformulação da combinação funcional entre individualismo e hierarquia que tinha servido de modo tão precioso e estratégico O processo que mais fortemente marca esta ruptura no con texto da mudança da família é o da individualização da mulher Esse processo não marca apenas a desarticulação do modelo patriarcal de família mas em sua continuada radicalização evidencia a frágil es tabilidade da família moderna Parece ser consensual na literatura sobre o tema que a mulher tem um papel central no processo de trans formação da estrutura da família Se por um lado autores como Castells 2002 e Therborn 2006 afirmam que para o patriarcado exercer e justificar sua autori dade sobre as mulheres esposas filhos e filhas é necessário que ele permeie toda a organização da sociedade da produção e do consumo à política à legislação e à cultura por outro Tourraine 2006 afir ma que a sociedade contemporânea já entrou de vez num período de supremacia feminina Segundo Tourraine 2006 p 227 o univer so da sedução contribui precisamente para dar às mulheres o papel principal na inovação cultural Isto é mesmo que o patriarcado não tenha sido plenamente decomposto pela exposição ao ácido processo de emancipação da mulher ele já não mais resiste às forças inovado ras que brotam do processo de individualização da mulher SINGLY 2007 dos movimentos feministas CASTELLS 2002 dos direitos sexuais O duplo processo de desvinculação do feminino da mater nidade e do casamento cria um clima que vai arejando o patriarcado Familianatureza e culturaindd 167 211113 0906 168 no mundo ocidental Tourraine 2006 que evidentemente não é o único sociólogo contemporâneo que destaca este ponto enfatiza que é na ordem da sexualidade que se colocam a afirmação e a vontade de procriação das mulheres Diz ele é reivindicando uma sexuali dade independente das funções de reprodução e de maternidade que as mulheres se constituem verdadeiramente em movimento social e avançam o mais longe possível TOURRAINE 2006 p 217 Esse processo de afirmação da identidade feminina frente ao patriarcado é amplo e diverso e a ele somamse outros processos dos quais é ele mesmo derivado Como afirma Therborn 2006 por volta de 1900 a família europeia foi submetida a três grandes mudanças institucionais e econômicas a meu ver intimamente ligadas proleta rização urbanização industrialização E no aspecto sóciopolítico a escolarização Ainda que o poder masculino seja reafirmado no con texto da família conjugal moderna sobretudo por causa do proces so de privatização da família o patriarcado vai perdendo sua força dentro da nova ordem sociossexual melhor definida a partir da se gunda metade do século passado Embora não esteja presente nesta discussão uma referência explícita às autoras feministas sobre o tema o movimento feminista com seus diferentes matizes desempenhou papel fundamental neste processo com suas lutas pelos direitos das mulheres Therborn 2006 destaca ainda as inovações na legislação de família que em todo o mundo teve um papel central na regulação do matrimônio herança propriedade e direitos das esposas No Brasil as inovações no direito de família foram constituin do condições fundamentais não só para o reconhecimento de direitos das mulheres crianças e idosos mas também para a ampliação do conceito jurídico de família o que será de fundamental importância para o reconhecimento da família homoparental num futuro próxi mo Segundo Genofre 2003 no Brasil as Constituições reconheciam apenas a família legítima Até a Constituição de 1988 o conteúdo moral da legislação vigente afirmava a resistência do catolicismo à dissolubilidade do casamento Familianatureza e culturaindd 168 211113 0906 169 o Código Civil desconheceu completamente a família natural a união de fato reconhecida apenas pela jurisprudência dos tribunais No seu artigo 380 dispunha que o pátrio poder é exerci do pelo marido com a colaboração da mulher cabendo ao marido ainda a a chefia da socieda de conjugal b o direito de fixar o domicílio da família c o direito de administrar os bens do ca sal d o direito de decidir em caso de divergência BRASIL 1988 p 98 Com a Carta Magna de 1988 houve uma ampliação do concei to de família onde a união estável entre homem e mulher foi reconhe cida como entidade familiar e os direitos e deveres referentes à socie dade conjugal são igualmente exercidos pelo homem e pela mulher BRASIL 1988 Se por um lado as inovações na legislação têm um impacto direto no comportamento dos atores sociais no tocante às represen tações da família no contexto do patriarcado societal aquele que está ramificado por todas as instituições da sociedade não se pode dizer por outro que tais inovações sejam suficientes para romper com as barreiras das desigualdades de gênero ao que aqui chamamos de patriarcado familiar A despeito disso as mulheres seguem sen do as principais vítimas de violência doméstica e seguem com as suas jornadas de trabalho não remunerada no interior da família e tendo rendimentos inferiores ao dos homens por exemplo Segundo Therborn 2006 p 195 apesar das grandes e mar cantes mudanças ocorridas no patriarcado é pesada a carga de do minação paterna e marital trazida para o século XXI A longa noite patriarcal da humanidade está chegando ao fim Está alvorecendo mas o sol é visível apenas para uma minoria Com isso o autor afir ma ao final de seu monumental trabalho que em um nível mais abstrato e analítico a mudança da família no século XX não foi nem evolucionária nem unilinear dados que contrariam a moderni zação e o evolucionismo do início do século XX THERBORN 2006 Familianatureza e culturaindd 169 211113 0906 170 p 43031 Tanto é assim que dentro de sua perspectiva geocultural os sistemas familiares em todo o mundo são diversos e apresentam características distintas De certa forma a velocidade e a profundidade das mudanças ocorridas no patriarcado no último quarto do século passado produ ziu uma grande confusão em torno da compreensão do fenômeno de mudança na estrutura da família Nesse sentido buscaremos discutir o aspecto fluido da nova realidade da família no mundo e no Brasil Família em mudança sociedade e família líquidas A sociedade líquida O projeto da modernidade insiste na negação do tradicional como forma de superação necessária dos traços de atraso Bauman 2001 fala de uma modernidade líquida que pode ser usada para interpretar as mudanças na estrutura da família contemporânea A modernidade líquida é o contínuo processo de liquefação dos sólidos culturais sociais políticos que travam o projeto de consolidação da economia de mercado como única forma de ordenamento social A modernidade líquida é a base ficcional do modo de vida na sociedade de mercado Como diz Bauman 2001 p 9 Essas e outras objeções semelhantes são justifica das e o pare cerão ainda mais se lembrarmos que a famosa frase sobre derreter os sólidos quan do cunhada há um século e meio pelos autores do Manifesto comunista referiase ao tratamento que o autoconfiante e exuberante espírito moder no dava à sociedade que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente demais para mudar e amoldarse a suas ambições porque con gelada em seus caminhos habituais Se o espírito era moderno ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emanci pada da mão morta de sua própria história e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos isto Familianatureza e culturaindd 170 211113 0906 171 é por definição dissolvendo o que quer que per sistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo Essa intenção clamava por sua vez pela profanação do sagrado pelo repúdio e destronamento do passado e antes e acima de tudo da tradição isto é o sedimento ou resíduo do passado no presente clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à liquefação A sociedade líquida de Bauman 2007a está associada às in certezas à insegurança produzida pela globalização negativa Os Tem pos Líquidos de Bauman 2007a apresentam cinco características que evidenciam as profundas mudanças na sociedade contemporânea 1 A passagem da fase sólida da modernidade para a líquida Esta passa gem coloca as organizações sociais em constante processo de instabi lidade na medida em que não conseguem se reorganizar num espaço de tempo insuficiente para que as novas formas se estabeleçam Dado o caráter de curto prazo das novidades que vão se sucedendo não há tempo suficiente para se estabelecer formas de arcabouços de refe rência que orientem as ações humanas bem como suas estratégias existenciais de longo prazo 2 O divórcio entre poder e política O Es tado moderno perdeu a capacidade de tomar decisões desvinculadas da dimensão planetária que o envolve mesmo que tenham urgência e relevância local A política entretanto não alcança esta dimensão pois como diz Bauman 2007a permanece local Grande parte das funções do Estado são transferidas para as forças imprevisíveis e vo lúveis do mercado eou são deixadas para a iniciativa privada e aos cuidados dos indivíduos BAUMAN 2007a p 8 O que como veremos tem impacto sobre as concepções de políticas sociais 3 O enfraquecimento da comunidade A vida comum de uma população em um território soberano do Estado apresentase cada vez mais frá gil e sem substância A solidariedade social é minada e os mercados promovem a divisão e não a unidade A sociedade passa a ser percebi Familianatureza e culturaindd 171 211113 0906 172 da como uma rede fluida em vez de uma totalidade sólida 4 O colap so do pensamento de longo prazo e o enfraquecimento das estruturas sociais Esta característica leva à fragmentação da vida e à fugacidade dos hábitos 5 Os indivíduos são chamados a responder pelos riscos causados pela volatilidade e instabilidade das circunstâncias A con formidade às regras é substituída pela flexibilidade diante das mes mas Os indivíduos devem estar prontos à mudar de táticas e de estilo abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento e buscar oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do que com as próprias preferências BAUMAN 2007a p 10 Cabe aos indivíduos buscarem a melhor forma de manteremse plenamen te adaptados úteis ao mundo líquidomoderno O ônus do insucesso neste caso e por isso mesmo recai sobre os ombros dos indivíduos Estas características evidenciam o tom realista do argumen to de Bauman 2007b sobre o que ele chama de mundo líquido moderno Esse realismo aponta também para o aspecto negativo da modernidade líquida Como diz ele a vida líquida é uma vida precária vivida em condições de incerteza constante BAUMAN 2007b p 8 Ao mesmo tempo em que esse realismo nos coloca diante do que é negativo na modernidade nos leva a criar novas possibili dades para compreender a realidade e superar seus limites apesar de um certo tom sombrio e pessimista em seu livro Amor líquido BAU MAN 2004 É dentro desse contexto de mudanças na sociedade contempo rânea que Pereira 1995 destaca cinco características das alterações recentes na estrutura familiar 1 queda da taxa de fecundidade 2 declínio do número de casamentos e aumento da propensão à disso lução dos vínculos matrimoniais 3 alteração na composição e tama nho da unidade familiar 4 aumento do número de família chefiadas por um só dos progenitores sendo a chefia feminina mais comum 5 os períodos em que as pessoas solteiras ou descasadas permanecem sozinhas variam muito Tais mudanças segundo a autora além de gerar uma modificação nos mecanismos tradicionais de solidariedade Familianatureza e culturaindd 172 211113 0906 173 familiar estão também associadas às mudanças da sociedade como um todo Essas mudanças fazem parte de um processo de cisivo de evolução da organização e da estrutura familiar o qual por sua vez tem fortes ligações com mudanças estruturais mais amplas desenca deadas em última instância pela dinâmica global das forças produtivas e das relações de produção que governam as formações sociais contemporâ neas PEREIRA 1995 p 105 A lógica pulsante da racionalidade moderna destrói continua mente as bases éticas e morais da sociedade sem que as destrua de finitivamente para que estas possam ser reconstituídas A dita crise da família só pode ser explicada pela crise éticomoral da sociedade moderna contemporânea e não o contrário A dissolução do espaço público em vários países do Ocidente que no Brasil ganha contornos dra máticos e a passagem de uma ética da produção para uma ética do consumo entre outros fatores são os grandes responsáveis pela desmoralização da transmissão familiar dos valores e não o con trário KEHL 2003 p 173 É importante ressaltar que o projeto de família moderna de sempenha um papel importante na engrenagem do sistema de domi nação na sociedade capitalista Embora a família não tenha perdido a sua função de transmitir segurança às gerações novas e velhas e ainda ser uma instituição importante para a reprodução humana e a autor realização do indivíduo social sexual e afetivamente ela responde à dinâmica de uma sociedade fluida e autofágica como a sociedade capitalista moderna Uziel 2002 destaca o papel deste projeto de família Familianatureza e culturaindd 173 211113 0906 174 O repúdio das virtudes monásticas de pobreza e castidade a elevação do casamento e o apareci mento de um novo conceito de casamento base ado na prudência e na previsão vinham de mãos dadas com o novo valor da acumulação de capi tal A mentalidade burguesa considerava os filhos como reservas para o futuro e dedicou uma aten ção sem precedentes à sua criação O novo estilo de vida doméstica criou condições favoráveis para o surgimento de um novo tipo de personalidade dirigida internamente e autoconfiada que cons titui a mais profunda contribuição da família às necessidades de uma sociedade de mercado base ada na competição no individualismo no adian tamento da recompensa na previsão racional e na acumulação de bens materiais LASCH 1991 apud UZIEL 2002 p 12 Lasch 1991 apud UZIEL 2002 pergunta se o aumento no ín dice de divórcio e os conflitos de geração mais intensos não signifi cariam o esgotamento a inadaptação da família às novas condições sociais ou se seriam um presságio do enfraquecimento da estrutu ra social com repercussões nas várias instituições A segunda opção parecenos mais plausível tendo em vista a realidade social contem porânea A família aparece neste contexto como o resultado dessa liquefação das estruturas sociais Talvez pareça mais razoável para muitos que a família se liquefaça mais facilmente que a própria socie dade mas certamente um é o resultado do outro Do ponto de vista demográfico as evidências de uma fecundi dade sempre em queda a redução da taxa de crescimento da popula ção e o crescimento negativo em alguns países desenvolvidos levam à incerteza no mundo afinal tratase da capacidade da população de se reproduzir A fecundidade talvez seja um dos pontos centrais das incertezas de um ponto de vista demográfico no estudo da família Tentativas de controle de nascimentos tentativas de aumento de nas cimentos uns bem sucedidos outros não nos dois casos compõem o quadro de políticas de população na Europa ocidental A questão po Familianatureza e culturaindd 174 211113 0906 175 pulacional sempre foi central na sociedade capitalista O capitalismo é excludente e sua estratégia de acumulação já prescinde do excedente de população dos trabalhadores supérfluos KURZ 1992 GEORGE 2003 A crítica ácida de Guattari 1987 à sociedade capitalista cobra dela a inspiração que forjou o modelo de família capaz de sustentar as aspirações desta sociedade A sociedade toma como prioridade o sentimento a afetividade e as relações sexuais como realização pessoal Isso ganha um espaço maior dentro da família As coisas parecem confusas ao se tentar ex plicar o que acontece dentro da família em mudança pois tal contexto no interior da família se confronta com padrões culturais em mudan ça mas ainda vigentes nas relações familiares A família líquida A modernidade é um projeto inacabado que vai penetrando em todas as formas de relações sociais nas diferentes instituições e es feras humanas Ao mesmo tempo em que é criativo é desestabilizador A família não está imune ao aspecto desestabilizador desse projeto contínuo e instável a ponto de não termos certezas quanto àquilo que as tendências indicam A dinâmica global da família contemporânea apreendida a partir dos dados agregados esconde a complexa e multifacetada dimensão das relações familiares inscritas no campo de significação da família3 O cenário atual mostra uma família que se move entre a fugacidade dos vínculos matrimoniais e a normatividade latente da tradição que os inspira entre a redução da fecundidade marital e o aumento pela procura de reprodução assistida entre o aumento de uniões desfeitas e o aumento de casamentos e recasamentos entre o 3 Esta noção diz respeito à extensão dos laços entre parentes que transcendem o âmbito dos limites do domicílio Isso quer dizer que um campo de significação pode compreender múl tiplos domicílios percebidos como da família Os vínculos entretanto não são de amizade mas de parentesco não importando o grau embora a grande maioria deve restringirse aos parentes mais próximos Familianatureza e culturaindd 175 211113 0906 176 aumento da coabitação de casais heterossexuais e o reconhecimento das uniões homoafetivas entre a exacerbação da individualidade e o desejo de viver junto entre o ideal de duração até que a morte os separe e a duração do desejo foi bom enquanto durou Diante desse cenário podese visualizar a seguinte situação plenamente legítima do ponto de vista dos atores sociais que circu lam neste campo de significação da família e comum na sociedade brasileira Uma avó viúva aproximadamente 75 anos observadora das normas sociais que fundamentaram sua relação conjugal vê al guns de seus filhos e filhas se separarem e se casarem novamente Vê netos sendo gerados e recebe outros netos emprestados os filhos dos novos genros e noras Vê seus netos e netas engravidarem antes do casamento ao mesmo tempo em que outros netos e netas se casam e se separam antes mesmo de terem filhos Vê seus filhos separados morando sozinhos ou acompanhados dos filhos eou filhas Recebe os netos que vêm morar consigo buscando apoio para estudar e cui dados de avó ou simplesmente dar um tempo na relação com os pais Apesar da aparente situação caótica a família isso mesmo a família se reúne para as festas de final de ano Mas qual família A família da avó ou a família do segundo casamento da filha a família do filho mais velho ou a do neto pai solteiro com seu filho Qual família A idealizada ou a realmente vivida por eles Pais separados filhos ausentes enteados presentes meioirmãos conviventes etc Esta com plexa família cabe no ideal de família que persiste ou é o resultado de novas representações Diante desse cenário que parece caótico mas que é relativa mente comum no cotidiano das pessoas no Brasil guardadas eviden temente as devidas proporções em termos de clivagens socioeconô micas culturais e religiosas a família vai se mostrando tentacular líquida pósmoderna Interessanos aqui aquilo que cada expressão de família traz de novo ou de velho isto é aquilo que muda ou per manece do ponto de vista das representações sociais em torno da fa Familianatureza e culturaindd 176 211113 0906 177 mília ou nos arranjos domiciliares por isso a discussão em torno da concepção de família líquida O conceito de família líquida busca apreender por um lado a ideia de processo que caracteriza as mudanças na estrutura das famílias a família em mudança cujas relações estão se liquefazen do sem destruir suas propriedades associado às transformações na sociedade contemporânea e por outro busca apreender a realidade multifacetada das famílias família conjugal moderna família tradi cional família homoafetiva famílias pobres famílias de classe média família monoparental feminina etc baseada nos diferentes arranjos familiares ensejados pela subjetividade dos indivíduos diferenças de classes cursos de vida entre outros Nesse sentido o adjetivo líquida de nossa definição que tenta incorporar as dimensões processual e conceitual não carrega o mesmo conteúdo negativo postulado por Bauman 2001 como mencionado acima A modernidade líquida é o resultado do próprio movimento da sociedade capitalista que vai destruindo as bases das relações sociais em todas as suas dimensões e as substitui por relações que tendem a serem mais fugazes inconstantes frágeis e instáveis A família líquida não está livre desse processo Como resultado desse movimento a família líquida ganha contornos múltiplos e não tão definidos E nessa multiplicidade vemos desde as famílias ditas nu cleares mais rígidas ou com relações horizontais do ponto de vista do gênero a famílias homoafetivas Chamamos então de família líqui da aquela que se caracteriza pela união de dois indivíduos fortemente orientada pela subjetividade dos projetos pessoais pela sexualidade plástica4 pela fragilidade da afetividade pela busca de satisfações mú tuas e pela distinção em relação à parentela 4 A sexualidade plástica é a sexualidade descentralizada liberta das necessidades da repro dução A sexualidade plástica pode ser caracterizada como um traço da personalidade e desse modo está intrinsecamente vinculada ao eu Ao mesmo tempo em princípio libera a sexualidade da regra do falo da importância jactanciosa da experiência sexual masculina GIDDENS 1993 Familianatureza e culturaindd 177 211113 0906 178 No que tange às mudanças nos sistemas de família pelo mun do e especialmente no Brasil não há diferença nos processos da sociedade como um todo Caminhase para um mundo líquido bem como para uma família líquida Nesse aspecto a família contemporâ nea é privada e pública na medida em que por um lado ocorre uma focalização nas pessoas a família se autonomiza em relação à paren tela à vizinhança e ao resto da sociedade e por outro o Estado se torna um elemento da vida doméstica uma vez que cria mecanismos de controle que garantem certas condições de funcionamento para a família Por exemplo desde o século XIX foram criadas regras jurídi cas para limitar o direito da punição paterna Therborn 2006 afirma que o pai não é mais o chefe incontestável da família a família não é mais patriarcal O interesse da criança é uma noção que serviu e serve de justificativa para as intervenções do Estado na família Para Vaitsman 1994 p 51 o processo de aprofundamento e extensão do individualismo através do qual ter aspirações e construir identidades não mais ligadas exclusivamente à esfera privada estimula a instabi lidade e a volatilidade nas relações íntimas no casamento e na família O fim da rigidez do burguês moderno chega assim às relações no casamento e na família É dialético entretanto este processo Não há na evaporação do que era sólido a eliminação definitiva das propriedades da família como no cenário apresentado acima onde persistem certos elemen tos que garantem a permanência de certos vínculos familiares A família é um espaço de socialização e os indivíduos acredi tam que ela constitua um dos vínculos ideais para atingir a felicidade e para a realização de si mesmos Numa perspectiva que evidencia o aspecto fluido da família contemporânea Singly 2007 p 131 afirma que o eu é mais importante que o nós mas ele não propõe bem ao contrário o desaparecimento do grupo conjugal nem do grupo fami liar E embora o individualismo contemporâneo desestabilize a famí lia não a torna inútil Para Singly 2007 a lógica que preside a função Familianatureza e culturaindd 178 211113 0906 179 das famílias da segunda modernidade5 é a procura não de solidez mas da satisfação das necessidades psicológicas de cada membro do casal Porém o que nos permite dizer diante da família líquida que algo persiste e garante que os vínculos possam ir se renovando Há um ideal de família que mesmo diante das mudanças na sociedade e na família faz com que os casais se unam e as famílias se formem re construindo laços baseados numa representação de família que ainda persiste A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada diz Roudenesco 2003 mas não substituída Isso implica que novos e velhos valores sentimentos ideias práticas e comportamentos mis turados e ressignificados negados e reafirmados não esgotarão a ca pacidade de resistência ou persistência da família na modernidade Não só os atores sociais operam com um certo ideal de família mas também os teóricos que se debruçam sobre o tema A família tradi cional ou a família moderna a família em desordem ou a família ten tacular Todas elas estão imersas num mesmo processo de mudança social que contudo não é linear Apesar da dificuldade em definir família neste contexto de mudança ela se mantém como organizadora da sociedade ocidental contemporânea Adquire ao longo dos tempos configurações diver sas e é sempre possível anexar mais uma ao rol das já existentes Kehl 2003 p 169 fornece um argumento psicanalítico para ver nesta fa mília tentacular reminiscências do ideal de família ainda operante A família tentacular contemporânea menos endo gâmica e mais arejada que a família estável no pa drão oitocentista traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados projetos abando nados e retomados esperanças de felicidade das quais os filhos se tiverem sorte continuam a ser 5 A segunda modernidade se define pelo crescimento do direito dos indivíduos menos indi vidualizados da primeira modernidade ou seja as mulheres e as crianças e por um aumen to da demanda de fluidez na formação de laços eletivos ou contratuais de relaxamento dos estatutos como referentes aos homossexuais que lhes impedia o acesso a certas formas de vida conjugal de família SINGLY 2007 p 174 Familianatureza e culturaindd 179 211113 0906 180 portadores Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido em que aquele par apostou na falta de um padrão que corresponda às novas compo sições familiares na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado Ideal que não deixará de orientar desde o lugar das fantasias inconscientes os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje Ideal que se não for superado pode funcio nar como impedimento à legitimação da experiên cia viva dessas famílias misturadas engraçadas esquisitas improvisadas e mantidas com afeto esperança e desilusão na medida do possível A família neste caso não só não perde atributos como poten cializa novos atributos e resignifica papéis sociais Isso quer dizer que a família guarda ainda o essencial papel de proteçãocuidar porém já não está assentada no papel tradicional da mulher cuidadora As pressões de natureza religiosa e social sobre os projetos subjetivos do homem e da mulher do esposo e da esposa do pai e da mãe perdem força ao mesmo tempo em que a dinâmica moderna da família suscita a construção de novas bases para os vínculos dessas díades e um novo conteúdo para a autoridade entre pais e filhos Apesar do reconhecimento da instabilidade dada pelo cará ter fluido da família líquida numa sociedade líquidamoderna essa realidade cria possibilidades positivamente novas para a construção de relações mais horizontais entre os gêneros e menos autoritárias entre as gerações Entretanto a sociedade tem que buscar garantir que os valores sempre em mudança sejam capazes de produzir com portamentos éticos e morais mais justos e igualitários vinculantes e solidários humanistas e democráticos contrários ao que o mundo líquidomoderno criticado por Bauman 2001 revela e não cobrar da família o que ela já não é mais O núcleo implodido da família conjugal burguesa não destruiu o ideal de família que permite que a própria satisfação de desejo se Familianatureza e culturaindd 180 211113 0906 181 realize no interior da vida conjugal Apesar do surgimento dessa nova família tentacular ou líquida persiste um ideal de família a partir do qual se reproduzem valores e normas em relação aos membros constituintes dessa família As mudanças se processaram de maneira bastante rápida de tal sorte que as gerações passadas e presentes estão convivendo Avós e pais das gerações anteriores quando predomina va um contrato tácito de obrigações entre gerações e pais e filhos das novas gerações que de certa forma ainda operam com elementos dos padrões anteriores mas apresenta uma dinâmica nova marcada pelo individualismo pelas uniões desfeitas e reconstituídas pelos ninhos vazios etc O desamparo se faz sentir porque a família deixou de ser uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e precário regi do pela lei menos confiável entre os humanos a lei dos afetos e dos impulsos sexuais O mal estar vem da dívida que nos cobramos ao comparar a fa mília que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos Ou com o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores que não necessariamente o realizaram Até onde teremos de recuar no tempo para encontrar a família ideal com a qual compa ramos as nossas KEHL 2003 p 165 Singly 2007 criticando a noção parsoniana de isolamento da família moderna para designar a ruptura com a parentela afirma que estudos têm apontado a manutenção dos laços sobretudo com aqueles parentes mais próximos o sogro e o pai a sogra e a mãe os cunhados e cunhadas de ambos os lados Seja como for a família resiste aos ventos fortes e incansáveis que vão erodindo as bases tra dicionais dos laços de solidariedade geracional da família Evidente mente que como se tem mostrado não se trata aqui de uma defesa do tradicional em detrimento do moderno mas do reconhecimento Familianatureza e culturaindd 181 211113 0906 182 de que em todo e qualquer processo de mudança subsistem elementos novos trazidos pela onda inovadora e elementos velhos resistentes mas não inquebrantáveis Como diz Kehl 2003 p 171 creio que ainda cultivamos uma dívida para com a formação familiar tradicional o passado idealizado representa um abrigo diante das mo dalidades de desamparo que enfrentamos no pre sente No ocidente a família que foi duramente criticada e questionada pelos movimentos de con testação dos anos 1960 em nome das liberdades sexuais dos direitos dos homossexuais das reivin dicações feministas e dos movimentos de jovens hoje tem sido revalorizada pelos próprios grupos marginais que a contestavam Pares homossexu ais reivindicam o casamento institucional soltei ros de ambos os sexos lutam pelo direito de adotar crianças e constituir uma família normal A fa mília mudou mudaram os papéis familiares mas não foi substituída por outra forma de organiza ção molecular A força desse ideal é notada por um lado na reivindicação das famílias homoparentais de um status de família normal ao mesmo tempo em que a legitimidade jurídica decorre desta mesma represen tação Os casais de pessoas do mesmo sexo buscam se aproximar da chamada família normal para se legitimar no plano social e jurídico da sociedade brasileira Num estudo sobre famílias e homossexualida de Uziel 2002 p 10 destaca a seguinte notícia O Globo de 10 de janeiro de 2002 refere uma sen tença dada por uma juíza do sul determinando pensão em caso de morte para um companheiro de um segurado O jornal transcreve um trecho da sentença as pessoas que integram uniões ho mossexuais caracterizadas pela estabilidade co munhão de vida afetividade e externação social constituem efetivas comunidades familiares que merecem tanto a proteção do estado quanto aque las integradas por casais heterossexuais Familianatureza e culturaindd 182 211113 0906 183 Isto é as uniões homossexuais reivindicam um status de nor malidade para se legitimarem ao mesmo tempo em que a sociedade de certa forma espera isso dessas uniões como se as uniões heteros sexuais fossem imunes aos fatores desestabilizadores da conjuga lidade Por outro lado apesar das altas taxas de divórcio no Brasil e a redução do casamento6 entre solteiros os dados do Registro Civil IBGE 2007 mostram que entre 1996 e 2006 é crescente a proporção de casamentos entre indivíduos divorciados com cônjuges solteiros Além disso está havendo um aumento de casamentos entre cônjuges divorciados de 09 em 1996 para 22 em 2006 Estes dados revelam uma tendência de formação das novas fa mílias cujo ideal de família ainda está fortemente presente7 Isto é a despeito de um novo padrão de casamento e de conjugalidade que vem se observando o que se quer é formar uma família Na prática esta família pode ter múltiplas tonalidades A família afirma Singly 2007 como o futuro na moderni dade é algo em aberto Diante desses ventos de transformação a fa mília em mudança ou líquida está suficientemente conectada neste campo de significação familiar para suportar a demanda de uma so ciedade líquida Desafios para as políticas sociais Para Santos 1979 a definição de políticas sociais no Brasil nos remete a uma escolha trágica Quando se enfrenta o desafio de formu 6 Segundo o IBGE 2007 o casamento é o ato cerimônia ou processo pelo o qual é constituída a relação legal entre o homem e a mulher A legalidade da união pode ser estabelecida no casamento civil ou religioso com efeito civil e reconhecida pelas leis de cada país No Brasil um indivíduo só poderá casar legalmente se o seu estado civil for solteiro viúvo ou divor ciado Nesse sentido estão fora dos dados acima as uniões não formais isto é as uniões consensuais ou estáveis 7 Este é um tema de pesquisa que deve ser explorado mais detidamente o que não é objeto desse nosso trabalho uma vez que ficam de fora as informações sobre as uniões não for mais Familianatureza e culturaindd 183 211113 0906 184 lar políticas sociais para ou que envolva a família esta definição faz ainda mais sentido Não só porque envolve aspectos práticos finan ciamento público alvo suporte institucional avaliação de resultados etc mas também aspectos teóricos conceitos de famílias concepção de políticas sociais etc A literatura que versa sobre o lugar da família nas políticas sociais no Brasil aponta para uma crítica a qual considera que as po líticas pelo menos até a década de 80 do século passado priorizavam a família como provedora de bem estar material afetivo e emocio nal FARIA 2004 Todavia ao realocar a família nas políticas sociais isto é colocar a família em lugar de destaque a partir dos avanços da Constituição de 1988 sobretudo no que diz respeito à definição legal de família e da Política Nacional de Assistência Social essas po líticas não avançaram no sentido do entendimento teórico do lugar da família na sociedade contemporânea No sentido jurídico DIAS 2005 talvez haja maior entendimento e avanços em relação à família enquanto objeto de regulação ou intervenção mas do ponto de vista sociológico enquanto fenômeno social há muitos pontos cegos A crítica que se faz neste texto é a ausência nas discussões teóricas sobre o desenho de políticas sociais de família desse debate que considera central o entendimento da família como um fenômeno social em pleno processo de mudança O desafio portanto é assumir a família como uma realidade multifacetada em franco processo de mudança Isso implica por exemplo avançar nas discussões de gêne ro na formulação dessas políticas Além disso as concepções de políticas sociais de atenção à fa mília devem considerar a multiplicidade de famílias decorrente desse processo de mudança Dentro do debate sobre a definição do conceito de política para a família Faria 2004 discute sobre duas concep ções possíveis de política para a família Uma que concebe a política como um conjunto de objetivos cuja consecução é buscada por meio de um conjunto coerente e articulado de políticas e programas implementado por intermédio de um arcabouço institucional especí Familianatureza e culturaindd 184 211113 0906 185 fico FARIA 2004 p 69 A outra concebe a política para a família como qualquer intervenção pública que afete a família intencional mente ou não Neste caso como diz Faria 2004 esta concepção seria sinônimo de política social ou política pública Isto é no primeiro caso esta concepção seria definida por seus objetivos explícitos quan to aos resultados sobre a família e no segundo por seus objetivos implícitos Se por um lado as políticas sociais no Brasil passaram do in divíduo como objeto para por outro a família como objeto isso não se deu tomando a família em sua complexidade A família ainda se apresenta como um dado seja em sua dimensão ideológica como ideal como base da sociedade seja como estrutura composta por pai mãe e filhos com suas respectivas funções De uma maneira complementar Barros 1995 define política familiar correspondente à primeira concepção discutida por Faria 2004 como um conjunto coerente de princípios objetivos progra mas e recursos orientados para o fortalecimento e desenvolvimento da vida familiar e para facilitar o desempenho da função social da fa mília Nesse sentido a política social de família é o que o Estado realiza por ação ou omissão para afetar os cidadãos em seus papéis como membros da família ou para influenciar o futuro da família como instituição BARROS 1995 p 122 No entanto Barros 1995 chama a atenção para um grande desafio das políticas sociais de família que está relacionado ao que se entende por família Para ela o problema central é em que medida a política irá abarcar toda a diversidade de família existente em um país ou irá privilegiar um tipo determinado de família Disso deriva todo o desenho de uma política social para a família e consequentemente o impacto dela sobre o seu objeto Não há dúvida de que nesse aspecto as políticas sociais seguem sendo uma escolha trágica Entretanto há uma forte tendência nas políticas sociais de tomar a família como ele mento central na proteção social CARVALHO 2007 Nesse sentido para além do debate sobre a universalidade nas políticas sociais de Familianatureza e culturaindd 185 211113 0906 186 distribuição de renda no Brasil o que se deve pensar é qual modelo de política social dá conta dessa realidade multifacetada da família e não qual o modelo de família é o mais adequado para a eficiência das políticas sociais Num esforço teórico de elaborar um conceito de família para fomentar a prática dos assistentes sociais no Brasil Mioto 1997 p 118 define família como uma instituição social historicamente condicionada e dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida Nesse sentido a autora considera que a família contemporânea pode ser entendida como uma caixa de resso nância dos problemas e desafios deste final de século que envolvem problemas de ordem ética econômica política e social MIOTO 1997 p 121 A família não deve ser considerada portanto apenas como um objeto de intervenção dentro da lógica das concepções de políticas de atenção à família mas como uma instituição altamente dinâmica e com identidades múltiplas Considerações Finais O tratamento da família puramente como um dado e um obje to enseja equívocos que comprometem a eficácia das políticas sociais No novo padrão de família líquida multifacetada é preciso reconhe cer por exemplo o lugar da mulher neste novo cenário Do contrário é provável que as políticas sociais possam reproduzir formas de desi gualdades de gênero dentre as camadas mais pobres e aumentar os diferenciais de gênero entre classes Nesta perspectiva de análise apontamos três desafios impor tantes para as políticas sociais no Brasil 1 elaborar desenhos de po líticas públicas que evitem reforçar as diferenças de gênero tanto no acesso quanto nas responsabilidades e obrigações exigidas pelas po líticas 2 reconhecer a realidade multifacetada das famílias contem porâneas e a pluralidade de arranjos familiares para além do modelo nuclear idealizado vigente Cabe ainda ressaltar 3 a necessidade da Familianatureza e culturaindd 186 211113 0906 187 construção de instrumentos metodológicos capazes de apreender esta complexidade da família contemporânea Para tanto é necessário que a formação dos profissionais que lidam diretamente com a elaboração e execução das políticas sociais de família contemple essa nova dinâmica da família líquida na socie dade contemporânea Referências BARROS N A de El análisis de las políticas sociales desde uma perspectiva familiar Serviço Social Sociedade São Paulo v 16 n 49 p 117132 nov 1995 BAUMAN Z Modernidade líquida Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 Amor líquido sobre a fragilidade dos laços humanos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004 Tempos líquidos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007a Vida líquida Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007b CARVALHO M C B Famílias e políticas públicas In ACOSTA Ana VITALE Mª Amélia Org Família redes laços e políticas públicas 3 ed São Paulo Cortez Instituto de Estudos Especiais da PUCSP 2007 p 267 274 CASTELLS M O poder da identidade Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 169286 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil 1988 São Paulo Revista dos Tribunais 1988 DIAS M B Manual de direito das famílias 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2005 DUARTE L Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família In RIBEIRO Ivete RIBEIRO Ana DUARTE Luiz Org Família em processos contemporâneos inovações culturais na sociedade brasileira São Paulo Loyola 1995 p 2741 FARIA C A Fundamentos para a formulação e análise de políticas e programas de atenção à família In CARNEIRO Carla Bronzo Ladeira COSTA Bruno Lazzarotti Diniz Org Gestão Social o que há de novo Belo Horizonte Fundação João Pinheiro 2004 v 1 p 6780 Familianatureza e culturaindd 187 211113 0906 188 GENOFRE R M Família uma leitura jurídica In CARVALHO Mª do Carmo Org A família contemporânea em debate São Paulo EDUC Cortez 2003 p 97105 GEORGE S O Relatório lugano São Paulo Boitempo 2003 GIDDENS A A transformação da intimidade sexualidade amor e erotismo nas sociedades modernas São Paulo EDUSP 1993 GUATTARI F Revolução molecular pulsações políticas do desejo São Paulo Brasiliense 1987 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE Estatísticas do Registro Civil 2006 Rio de Janeiro IBGE 2007 v 33 p 1167 Publicações do Censo 2000 Rio de Janeiro IBGE 2002 DVD KEHL M R Em defesa da família tentacular In GROENINGA Giselle PEREIRA Rodrigo Coord Direito de Família e Psicanálise rumo a uma nova epistemologia Rio de Janeiro Imago 2003 p 163179 KURZ R BARBOSA K O colapso da modernização da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 MEDEIROS M OSÓRIO R Arranjos domiciliares e arranjos nucleares no Brasil Classificação e evolução de 1977 a 1998 Brasília IPEA 2001 Texto para Discussão nº 788 MIOTO R C T Família e Serviço Social contribuições para o debate Serviço Social Sociedade São Paulo v 17 n 55 p 114130 nov 1997 PEREIRA A P P Desafios contemporâneos para a sociedade e a família Serviço Social Sociedade São Paulo v 16 n 48 p 103114 ago 1995 ROUDINESCO E A família em desordem Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 SANTOS W Cidadania e justiça a política social na ordem brasileira 3 ed Rio de Janeiro Campus 1979 SINGLY F Sociologia da família contemporânea Rio de Janeiro Editora FGV 2007 THERBORN G Sexo e poder a família no mundo 19002000 São Paulo Contexto 2006 TOURRAINE A Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje Petrópolis Vozes 2006 UZIEL A P Famílias e homossexualidade velhas questões e novos problemas 2002 183 f Tese Doutorado em Antropologia Instituto Familianatureza e culturaindd 188 211113 0906 189 de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002 VAITSMAN J Flexíveis e plurais identidade casamento e família em circunstâncias pósmodernas Rio de Janeiro Rocco 1994 Familianatureza e culturaindd 189 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 190 211113 0906 191 Capítulo 9 Família cultura e educação ambiental alfabeto intergeracional Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima Soraya Carvalhedo Honorato Introdução O presente capítulo visa analisar a dimensão intergeracional de cuidado com o ambiente a partir de um programa educacional para o desenvolvimento da cidadania ambiental Este programa articulou o binômio natureza e sociedade mediante o envolvimento de famílias residentes em uma área de proteção ambiental no interior do Estado da Bahia A pesquisa constitui um estudo de caso a partir do Programa de Educação Ambiental EA envolvendo diretamente 1296 pessoas na Área de Proteção Ambiental APA do Pratigi Para a proposta edu cacional com 388 famílias foi assimilada a direção de Costa 1999 que afirma constituirse o processo educacional em criação de espaços para que o educando situado organicamente no mundo empreenda ele próprio a construção de seu ser em termos individuais e sociais Entendida a educação pois enquanto processo de formação humana vez que todo aquele que nasce necessita ser engajado numa nova condição para poder existir RODRIGUES 2001 as propostas de educação em valores o respeito ao meio ambiente e ao patrimônio Familianatureza e culturaindd 191 211113 0906 192 comum da humanidade assumem relevância na formação familiar da criança Considerase a educação ambiental conforme Huerta 1999 como aquela que promove a aquisição de consciência de valores e de atitudes para efetiva participação populacional seja na discussão dos rumos locais regionais nacionais ou internacionais Enquanto iniciativa que sensibiliza famílias e grupos populacionais constitui a educação ambiental em um elemento estratégico para o desenvolvi mento sustentável Compreendese que a família tem um papel decisivo na estru turação dos valores pois independentemente da sua configuração re presenta um espaço singular de desenvolvimento da criança em relação à sua sociabilidade e às suas capacidades COSTA 1993 No seio das relações familiares assimilamse modelos que nortearão o comporta mento infantojuvenil Consoante explica Szymanski 2006 p 84 a família é o ambiente em que as crianças encontram os primeiros outros e ela começa a constituirse como sujeito O ambiente fami liar constitui este espaço de promoção das trocas intersubjetivas no qual vai sendo esculpido o primeiro referencial de valores que poderá vir a influenciar na formação identitária da criança diante do mundo Segundo informa Pequeno 2001 p 3 É a família que propicia os aportes afetivos e so bretudo materiais necessários ao desenvolvimen to e bemestar dos seus componentes Ela desem penha um papel decisivo na educação formal e informal é em seu espaço que são absorvidos os valores éticos e humanitários e onde se aprofun dam os laços de solidariedade É também em seu interior que se constroem as marcas entre as gera ções e são observados valores culturais A iniciativa para o desenvolvimento de um programa de edu cação ambiental em APA adveio do reconhecimento do papel familiar enquanto elemento de formação de sustentação cultural e de troca da própria comunidade pesqueira da região estudada Familianatureza e culturaindd 192 211113 0906 193 Neste trabalho entendese a intergeracionalidade como um fa tor promotor de igualdade entre as gerações enquanto experiência potencializadora de mudanças de mentalidades FEDEGER 2004 capaz de gerar trocas que integrem valores de diferentes gerações MAGALHÃES 2000 Através de análise descritiva discutese o Programa de Educa ção Ambiental executado mediante o Termo de Parceria celebrado en tre o Instituto de Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul da Bahia IDES e o Centro de Recursos Ambientais CRA para fortalecer a gestão da Área de Proteção Ambiental do Pratigi APA Para tanto analisouse a interação dessa unidade de conservação com as famílias e com a sociedade civil envolvendo municípios integrantes do Bioma Mata Atlântica Este bioma tem sido alvo de intensa exploração e descaracte rização com consequente ameaça do seu acervo para as espécies e para as famílias que ali vivem de atividades relacionadas direta ou indiretamente com a natureza A história da humanidade se resume em conquistas desco bertas guerras e conflitos para garantir o domínio a sobrevivência e a perpetuação da sua espécie CÂMARA 2000 tendo como cená rio a exploração desmedida dos recursos naturais e seus distúrbios irreparáveis em nível mundial PIMM 2005 Os impactos da onda desenvolvimentista e do modelo neoliberal também distanciaram a distribuição de bens entre os diferentes segmentos da população do minante imprimindo vulnerabilidade não apenas à natureza mas à própria condição humana de determinados estratos sociais Ao longo da história recente a desproporção do processo destrutivo do plane ta passou a atingir de forma indiscriminada todos os seres viventes em diferentes pontos do planeta deteriorou o meio ambiente pela tecnologia industrial e pela superpopulação com ameaça aos recursos naturais para a sobrevivência da humanidade A superação da desin tegração do tecido social exige a superação da fragmentação do co nhecimento CARDOSO 1995 Para tanto a poluição atmosférica de Familianatureza e culturaindd 193 211113 0906 194 origem industrial em Londres e a poluição por mercúrio de origem industrial química na cidade japonesa de Minamata com milhares de vítimas e consequências que ainda reverberam em pobreza dor e dis criminação HORIKAWA 1999 não podem ser vistos isoladamente Esta circunstância exige uma formação humana e uma capacitação na perspectiva da cooperação mútua MATURANA NISIS 1997 A recente tragédia de 2011 no Japão evidencia igualmente a relação entre natureza sociedade e a corresponsabilidade internacional com a proteção do meio ambiente Foi no contexto da década de 60 do século XX que os proble mas ambientais até então examinados à distância passaram a ocupar a agenda internacional projetando novas iniciativas no Brasil Entre estas iniciativas achase a criação de órgãos ambientais RONCAGLIO 2007 e novos mecanismos de sustentabilidade orgânica O Centro de Recursos Ambientais da Bahia criado dentro dessa racionalida de proveu subsídios para fortalecer a gestão da APA do Pratigi entre outras mediante um Termo de Parceria com o IDES adotando como eixo norteador a educação ambiental e a cidadania enquanto elemen tos essenciais para o envolvimento dos diferentes atores CARVA LHEDO et al 2002 Estabelecer critérios e normas para a criação implantação e gestão de Unidades de Conservação UC tais como a APA constituiu se um exercício nacional de ordem políticainstitucional para promo ver a conservação da biodiversidade a exemplo de países como os Estados Unidos da América e a Costa Rica ARAUJO 2007 No Brasil a criação de UC tem respaldo na Constituição Federal de 1988 e fun damentação legal na Lei 9985 BRASIL 2000 que instituiu o Siste ma Nacional de Unidades de Conservação SNUC Em seu artigo 2 parágrafo I o legislador citado por Machado 2006 define unidade de conservação espaço territorial e seus recursos ambientais incluindo as águas jurisdicionais com caracterís ticas naturais relevantes legalmente instituído Familianatureza e culturaindd 194 211113 0906 195 pelo Poder Público com objetivos de conservação e limites definidos sob regime especial de admi nistração ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção MACHADO 2006 p 786 A promoção da educação ambiental está entre os objetivos desta lei Focada em uma nova cidadania a educação ambiental per mite construir relações satisfatórias entre a população e as unidades de conservação conforme se verifica em atividades ecopedagógicas analisadas por Jacobson e Pádua 1995 as atividades de ecoturismo descritas por Berbert e Carvalho 2002 e aquelas atividades que res significaram a conservação da biodiversidade na agricultura familiar relatadas por Margolius e colaboradores 2001 Também a Lei n 9795 BRASIL 1999 que dispõe sobre a EA e institui a Política Nacional de Educação Ambiental PNEA apre senta a matéria como um componente essencial da própria educação nacional atribuindo ao poder público em níveis federal estadual e municipal o incentivo à sensibilização da sociedade para a importân cia das unidades de conservação à sensibilização ambiental das po pulações tradicionais ligadas às unidades de conservação e à sensibi lização ambiental dos agricultores Esta diretriz se coaduna com a Lei nº 9394 também nominada Lei de Diretrizes e Bases BRASIL 1996 cujo artigo 2º apresenta como finalidade da educação o pleno desen volvimento do educando seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho Este fim que se inspira nos princí pios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana se configura dever comum da família e do Estado COSTA LIMA 2001 p 293 Embora o incentivo à Educação Ambiental esteja inscrito nos documentos das Nações Unidas desde a década de 70 do século XX por ocasião da Conferência de Estocolmo identificase que o tema família não foi concretamente vinculado ao tema Seguiramse à Declaração de Estocolmo UNESCO 1972 a Carta de Belgrado de UNESCO 1975 a Conferência de Tbilisi UNESCO 1977 o Con gresso de Moscou em UNESCO 1987 o Capítulo 36 da Agenda 21 Familianatureza e culturaindd 195 211113 0906 196 por ocasião da Conferência do Rio em 1992 Em cada um destes pas sos conforme lembra Cartea 2006 buscouse a adequação da natu reza teórica dos aspectos metodológicos e dos componentes sociais da Educação Ambiental No entanto percebese uma lacuna quanto à relação deste assunto com o papel da família Em que pese a Educação Ambiental seja missão do poder pú blico podendo ser instrumento de sensibilização para a sociedade re conhecer a importância da manutenção das unidades de conservação é fundamental integrar as famílias nesta iniciativa Os temas trans versais como âmbito de conhecimento e experiência elencam entre outros a própria educação ambiental de modo a promover valores de solidariedade e compromisso com as gerações futuras YUS 1998 A deficiência de quadros e de recursos disponíveis nos órgãos am bientais nas três esferas do Poder Executivo tem inviabilizado ações de cunho educativo de fiscalização e de licenciamento de modo que o descompromisso com a conservação da vida resulta na destruição acelerada e indiscriminada dos principais ecossistemas brasileiros e das unidades de conservação THEULEN 2004 Muitas dessas áreas legalmente protegidas apresentam problemas graves terras não regu larizadas e não demarcadas falta de funcionários ou equipamentos para fiscalizar e gerilas SÁ FERREIRA 1999 Outra modalidade de parceria cívica é a atuação conjunta en tre o poder público e a Organização da Sociedade Civil e Interesse Público OSCIP prevista na Lei nº 9790 BRASIL 1999 O Termo de Parceria TP é o instrumento para firmar vínculo de cooperação entre o Poder Público e as entidades qualificadas como OSCIP per mitindo o fomento e a execução das atividades previstas no plano de trabalho resultante desta cooperação O IDES foi pioneiro nacional na proposição e assinatura do TP com a finalidade de partilhar com o poder público a gestão de uma unidade de conservação a APA do Pratigi Em observação sistemática MINAYO DESLANDES 2002 do cotidiano da APA constatouse que o CRA no âmbito regional era um órgão com inúmeras deficiências Es Familianatureza e culturaindd 196 211113 0906 197 tas deficiências eram percebidas mediante a desarticulação das ações do enfraquecimento institucional além do descrédito institucional na ocasião dentro das comunidades locais CARVALHEDO et al 2002 Neste contexto de fragilidade acerca da gestão dos recursos na turais o IDES vislumbrou o CRA na condição de órgão gestor da APA do Pratigi um potencial parceiro para fortalecer a conservação da na tureza A lógica da parceria pretendia potencializar nas comunidades da APA o capital humano o social o produtivo e o empresarial sob a égide da dignidade e da educação ambiental Para tanto focouse sobretudo no papel familiar enquanto primeiro círculo de integração da criança com sua comunidade e com o seu entorno As famílias passaram a ser levantadas para poderem integrar o trabalho de EA O Programa de EA ora estudado foi concebido para diagnosticar junto com a comunidade os problemas socioambientais a sua dinâmica e o contexto local Para tal atividade buscouse a identificação de lideran ças comunitárias como potenciais integrantes do conselho gestor da APA do Pratigi Organizouse igualmente uma lista das famílias segundo a sua ocupação pesqueira sua composição e número de crianças A rea lização da campanha de educação ambiental esteve focada nas famílias A iniciativa do TP permitiu a aquisição de equipamentos a contratação de uma equipe executora para gerir a APA elaborar projetos captar re cursos e coordenar a vigilância ambiental Integraram a equipe além de profissionais externos dois técnicos de nível médio oriundos das comu nidades pesqueiras aos quais foi atribuída a vigilância para a prevenção dos ilícitos ambientais Foram contratados um jornalista para redigir o jornal da APA do Pratigi e dois pedagogos para coordenar as atividades de educação ambiental nas oficinas e subsidiar os programas de rádio en sejando à educomunicação também praticada nos mesmos moldes por outros educadores MAGALHÃES 2006 A APA do Pratigi inserese na região do Baixo Sul da Bahia compreendendo uma área de Mata Atlântica de 86000 ha com florestas ombrófilas e floresta estacional decidual e semidecidual manguezal restinga e brejo interiorano Abrange os municípios de Familianatureza e culturaindd 197 211113 0906 198 Piraí do Norte Ibirapitanga Ituberá Igrapiúna e Nilo Peçanha cujas coordenadas estão compreendidas entre os paralelos 13º 32 30 e 13º 55 S e os meridianos 38º 5730 e 39º 1030 W BAHIA 2007 A Economia dos municípios que compõem a APA do Pratigi se baseia sobretudo na comercialização de produtos agrícolas BAHIA 2000 Contudo o manejo inadequado de exploração de produtos agroflorestais tem causado impactos negativos na paisagem natural como o raleamento das florestas degradação de mananciais hídricos a redução significativa da fauna silvestre terrestre e aquática assore amento de rios e aterro de manguezais Esta pesquisa constitui um estudo de caso de um programa de Educação Ambiental realizado nesta APA durante 24 meses envol vendo diretamente as famílias residentes na área e as famílias ouvin tes da rádio e das campanhas advindas da EA Para tanto procedeuse análise descritiva centrada nos dados acerca das comunidades dos seus espaços geográficos e dos processos interativos pelo contato di reto dos pesquisadores com a ação promovida pautado na ecopeda gogia GADOTTI 2003 com foco no desenvolvimento da cidadania planetária O marco zero foi a sistematização dos dados segundo a memória do programa relatórios registros fotográficos gravações de caso e programas de rádio edições dos jornais da APA listas dos participantes nos eventos depoimentos dos representantes comuni tários e dos executores do processo pedagógico O estudo também analisou 1 a metodologia empregada na mobilização comunitária e a pertinência das ferramentas utilizadas para o desenvolvimento das atividades com diferentes faixas etárias e 2 a repercussão e eficiên cia do Programa enquanto produto do Termo de Parceria Fases do programa de Educação Ambiental O programa de Educação Ambiental EA com as fases de Diagnóstico Rápido Participativo DRP Mobilização e a Execução da Campanha envolveu 16 comunidades dos três municípios então in Familianatureza e culturaindd 198 211113 0906 199 tegrantes da APA mediante ações de educação ambiental nãoformal Rio do Campo Jatimane Itiúca Barreiras e Barroquinha Boitaraca São Francisco Barra dos Carvalhos Ambar Ancoral Ilha das Flores Ponta Tubarões e Contrato Pescaria e Timbuca Dentre estas foram eleitos os pólos de mobilização ou locais para os encontros das comu nidades e realização das atividades Com as ações de educação informal mediante programa de rádio e publicações educativas foi ampliada a abrangência para toda a região do Baixo Sul da Bahia Cairú Camamú Ibirapitanga Igrapi úna Ituberá Maraú Nilo Peçanha Piraú do Norte Taperoá Valença e Tancredo Neves O programa executado no período 20012002 estabeleceu parcerias com a Embaixada da Holanda e com o Fundo Mundial para a Natureza WWF tendo apoio da Fundação O Boticário de Proteção A Natureza FBPN Etapa de diagnóstico Privilegiouse compreender a unidade de conservação segun do a perspectiva dos sujeitos residentes nas comunidades rurais com vistas a selecionar e inscrever as comunidades a serem atendidas pe las campanhas educativas A investigação foi precedida por pesquisa documental com foco no levantamento socioambiental número de crianças regularmente matriculadas nas escolas identificação de lide ranças comunitárias ocupação laboral das famílias reconhecimento de recursos naturais disponíveis e impactos ambientais Por meio de um censo populacional BAHIA 2000 e conta gem direta da população realizada em duas comunidades Ambar e Ilha das Flores subárea sul do Pratigi foi possível comparar o núme ro de famílias envolvidas e o tamanho aproximado de sua população estimandose a porcentagem de pessoas atendidas nas campanhas educativas Familianatureza e culturaindd 199 211113 0906 200 Para robustecer a observação direta da realidade o DRP es timulando a participação popular foi considerada a perspectiva de cada comunidade a ser atendida pelo projeto A constatação e o estímulo à diversidade e à singu laridade de opiniões é um recurso importante para a Educação Ambiental não apenas pela questão ética de respeito ao outro mas sobretudo porque não há como prescindir da participação popular na implementação de medidas que venham re duzir os impactos ambientais ou que privilegiem a conservação ambiental SÁ FERREIRA 1999 p 4853 As fases de planejamento e de execução das atividades refleti ram as diferentes dinâmicas do cotidiano de cada comunidade obser vandose os elementos culturais específicos ASSMAN 1998 Buscou se a prática da negociação relativamente ao aprazamento dos traba lhos e ao modo operacional para a condução das atividades respei tandose assim a participação dos educandos enquanto processo de cidadania PUIGGRÓS 1997 Foram adotados os procedimentos de observação direta do trabalho de campo da observação participante das cartas dos diários e dos documentos públicos GODOY 1995 da entrevista e do uso da história de vidahistória oral ALBERTI 2004 O levantamento populacional prévio e a lista de nomes dos educandos colhidos na primeira fase da execução dos projetos pre tendeu a divulgação da área protegida o fortalecimento institucional a divulgação dos parceiros e a identificação das pessoas das comu nidades para a organização da agenda e controle da distribuição do material A mobilização das famílias Consoante Donati 2008 a família é compreendida como um fenômeno social total dado ao seu caráter suprafuncional Desta for Familianatureza e culturaindd 200 211113 0906 201 ma acena a família com um conjunto de múltiplas potencialidades que agregam diversas dimensões da existência humana psicológicas econômicas sociais jurídicas políticas e religiosas Considerouse a família como um elemento primordial para o processo de mobilização comunitária e para a divulgação das atividades em diferentes níveis 1 no programa de rádio APA do Pratigi O Futuro Continua Aqui 2 nas escolas estuarinas pelos vigilantes ambientais da APA e no se gundo momento em visitas domiciliares às famílias com o apoio dos agentes de saúde e dos professores atuantes naqueles locais 3 nas Secretarias de Educação dos três municípios envolvidos O público alvo do programa de EA foi identificado e caracterizado com base nos critérios ocupacional etário e de gênero Desenvolveramse debates para os jovens e adultos oficinas para crianças e adolescentes e em uma fase posterior do programa a integração dos dois grupos etários em campanha para cada comu nidade envolvida Buscouse sobretudo envolver os diferentes mem bros das famílias das duas comunidades para que a troca intergeracio nal fortalecesse o compromisso A oficina de construção dos bonecos o uso de técnicas tea trais e os debates foram adotados porque permitem a promoção da integração dialógica dos educandos e têm a capacidade de suscitar no público reações aferidas a partir da identificação da realidade de les com as questões apresentadas FREIRE 2006 p 68 vinculando se este saber fazer enquanto uma necessidade real caracterizadora da mudança de lugar de sujeito passivo para sujeito ativo FREIRE FAUNDEZ 1985 Neste contexto de integração os eventos do coti diano da comunidade eram resgatados por seus pares quer fosse no debate quer fosse na oficina de bonecos fortalecendo a possibilidade de intervenção cidadã Ao longo das oficinas as crianças foram incentivadas a ouvir estórias dos pais e dos avós estimulandose a troca das informações e das experiências de outras faixas etárias para que todos falassem sobre como cuidavam da terra e das águas na sua infância As ofici Familianatureza e culturaindd 201 211113 0906 202 nas são formas de produção coletiva de conhecimento e constituíram oportunidade para motivar cada criança e adolescente em relação ao legado ambiental Os educadores atentos à riqueza do processo de aprendizagem do público infantojuvenil centraram a atenção no exercício da autoconfiança convidandoos à integração social a partir da expressão espontânea das perguntas dos questionamentos das observações enquanto processo de incentivo da consciência crítica que legitima a cidadania FREITAS 2001 As oficinas enquanto estímulo ao fortalecimento do compro misso intergeracional foram criadas durante a atividade dividiramse em quatro etapas 1 teatro de fantoches e demonstração dos mate riais e métodos de trabalho 2 distribuição para as crianças dos kits de cadernos reciclados 3 divisão de grupos de trabalho 4 trabalho coletivo de confecção dos bonecos e 5 apresentação do teatro de bonecos confeccionados no encerramento do debate Já os debates com os adultos envolveram diferentes categorias ocupacionais de modo a enriquecer cultural e operacionalmente as atividades Pescadores marisqueiras pequenos agricultores meren deiras agentes de saúde líderes comunitários extrativistas de pia çava e dendê líderes religiosos educadores e os estudantes engaja ramse na dinâmica segundo as suas vivências originais Durante os debates emergiram os seguintes temas 1 o aterro dos manguezais 2 a mariscagem na época de desova 3 a captura do camarão em período de acasalamento 4 a pesca com bomba e a legitimação da responsabilidade dos pescadores frente à conservação estuarina 5 a beleza cênica do manguezal e sua importância como mantenedora da perpetuação da vida 6 reciclagem e o tratamento adequado dos resíduos sólidos 7 as noções de ecologia sob a perspectiva do ecos sistema manguezal e a valorização das culturas tradicionais na região a partir das figuras folclóricas do manguezal 8 a contribuições dos mais velhos no cuidado com os bens que hoje dispomos A análise da Gráfico 1 que retrata o envolvimento das comu nidades no programa ambiental fonte de observação dessa pesquisa Familianatureza e culturaindd 202 211113 0906 203 revela a média geral da participação social de aproximadamente 32 dos 4042 moradores estimados CARVALHEDO et al 2002 Foi con siderada relevante à repercussão da parceria institucional visto ser a primeira atividade desse porte e natureza educação ambiental e haver grandes distâncias geográficas entre as comunidades e os po los de mobilização dificultando o acesso Tratase igualmente de um trabalho pioneiro na APA envolvendo número diferenciado de parcei ros junto às comunidades de forma simultânea e concatenada com dois veículos de comunicação de massa continuamente disponíveis o programa de rádio com edição semanal e o jornal da APA com edição trimestral Considerandose a quantificação de educandos e moradores durante a campanha de sensibilização mediante listas e registros de imagens temse que do total da população 1296 pessoas estiveram diretamente vinculadas à campanha de sensibilização sendo 45 de crianças e adolescentes e o restante de adultos O público de São Francisco congregando as famílias dos pes cadores e das marisqueiras com 652 moradores obteve uma partici pação de 15 do total da população adulta retratando diferentemen te das demais comunidades baixo envolvimento com a causa ambien tal caracterizado nos recorrentes ilícitos constatados no diagnóstico pesca com bomba caça de animais silvestres desmatamento e cons truções irregulares inobservância dos parâmetros ambientais previs tos no plano de manejo da APA do Pratigi Fator de igual relevo e que impactou negativamente o engajamento desses atores na campanha foi a coincidência das atividades educativas com o período da pesca sendo essa a principal atividade econômica de Barra dos Carvalhos e de São Francisco Realidade oposta à de São Francisco verificouse na comunidade quilombola Boitaraca essencialmente agroextrativista Não obstante o difícil acesso ao local do evento e o horário noturno para as atividades a participação dessa comunidade e dos professores foi de 76 do povoado inclusive dos moradores mais idosos Familianatureza e culturaindd 203 211113 0906 204 Gráfico 1 Número de pessoas por comunidade que participaram das campanhas de sensibilização ambiental Fonte Dados dessa pesquisa 2010 A desmotivação expressa no público adulto e jovem do São Francisco bem assim a prática delitiva recorrente em todas as comu nidades são reflexos do processo educativo falho e omisso do Estado e dos municípios visto não consolidarem propostas integradas e con tinuadas no escopo da educação formal e nãoformal preconizado no artigo 10 da norma infraconstitucional em questão BRASIL 1999 As famílias da área apesar do interesse das crianças não se mostra ram motivados ao longo da experiência de EA É a mesma realidade denotada por Cribb 2008 ao debruçarse sobre os diversos aspectos da gestão de unidades de conservação especialmente das APA 1 os precários sistemas de educação 2 os conflitos de interesses entre as diferentes representações da sociedade público e privado 3 as ingerências governamentais na imposição dessas áreas protegidas e 4 os impactos da degradação ambiental produto da desarticulação entre o poder público a comunidade e a iniciativa privada Familianatureza e culturaindd 204 211113 0906 205 A despeito da necessária ressignificação do processo educativo a partir da inserção da ecopedagogia no currículo escolar Fernandes e Feitosa 2006 entendem que a educação escolar é fundamental para construir uma sociedade focada no princípio da sustentabilidade O Gráfico 1 também revela um engajamento ainda tímido do público infantil vez que apenas 14 da soma total das crianças de todas as comunidades compareceram aos eventos programados mesmo após o convite pessoal em cada prédio escolar e diariamente reforçado no programa de rádio Identificouse uma participação po sitivamente diferenciada do público infantil e adolescente nas comu nidades de Contrato Jatimane Barra dos Carvalhos e em Tubarões povoado longínquo acesso por estuário e trator ou marítimo Nelas constatouse um vigoroso processo de mobilização fosse pela moti vação dos professores com a dinâmica educativa proposta fosse pelo acervo didático oferecido Outro indicador do engajamento dos pro fessores foi a espontânea assimilação das melodias e letras das canções por parte das crianças de Barra dos Carvalhos formando um coral Neste esteio a experiência aqui retratada reafirma o pensamento de que a atividade de mobilização que antecede o exercício do processo educativo é estratégico para a formação de multiplicadores agentes pela formação de novos sujeitos sociais BUTZKE PEREIRA NOE BAUER 2001 Considerouse relevante o apoio das famílias quando ouvindo as músicas entoadas pelas crianças a estas somavam as vo zes dos mais velhos que aprendiam com os menores as cantigas sobre conservação da natureza Atento ao teor do artigo 12 da Convenção sobre Direitos da Criança ONU 2004 que trata do direito da criança e do adolescen te à participação o programa de EA promoveu a perspectiva partici pativa e incentivou a integração da população infantojuvenil a sua palavra e a sua criatividade Observouse que as crianças interagiram de forma especial com os seus pais e com os mais velhos partilhando saberes novos e incentivando a assimilação dos valores propostos no programa Familianatureza e culturaindd 205 211113 0906 206 Ao enfatizar a riqueza regional e o legado cultural da popu lação os programas de rádio e o material didático despertaram a au toestima e autoconfiança das crianças e dos adultos participantes e ouvintes do programa de rádio O respeito à linguagem e aos valores da cultura mostrouse relevante pois o público se identificou com o repertório que trata do cotidiano do pescador das figuras míticas e folclóricas e das perdas e ameaças no manguezal a partir da pesca predatória Ramsey 2002 relatou uma experiência similar no litoral ca nadense em que a música foi uma importante ferramenta pedagógica empregada para estabelecer conexão entre os educandos e o man guezal ecossistema predominante na região O objetivo do trabalho descrito pelo autor era sensibilizar aqueles alunos acerca da complexi dade e importância do ecossistema e motiválos ao pensamento refle xivo quanto aos resultados das atividades predatórias O processo de cidadania enquanto participação social dos indi víduos advém sobretudo da compreensão dos elementos constituintes do campo de ação das pessoas envolvidas VYGOTSKY 2001 Seja a cidadania na área de saúde de educação ou na área ambiental entre outras dimensões é fundamental que os grupos sociais se reconheçam enquanto titulares de direito O trabalho desenvolvido junto à comuni dade partiu do conceito de direito ao meio ambiente saudável enquanto bem comum a ser preservado por todos para o uso sustentável Durante o processo houve referência explícita aos patrocina dores de modo que os educandos e os moradores identificassem que um trabalho de tal magnitude requer a coparticipação de diferentes atores sociais Ademais caracterizado o engajamento do órgão públi co e parceiros privados na defesa ambiental explicitouse a dimensão coletiva da cidadania Durante o Programa de EA foi enfatizada a re lação entre a proteção do meio ambiente e o interesse público proje tandose a perspectiva de compromisso intergeracional dos diferentes atores no fortalecimento da cidadania ambiental Feita igualmente contínua menção ao papel da família enquanto agente de EA Familianatureza e culturaindd 206 211113 0906 207 Tabela 1 Comunidades diretamente envolvidas nas campanhas de sensibilização municípios a que pertencem população estimada e pessoas presentes nas oficinas COMUNIDADE MUNICÍPIO POP ESTIMADA POP ATINGIDA Rio do Campo Ituberá 356 36 Jatimane Nilo Peçanha 279 61 Itiúca Nilo Peçanha 329 40 BarreirasBarroquinha Nilo Peçanha 182 31 Boitaraca Nilo Peçanha 71 76 São Francisco Nilo Peçanha 925 15 Barra dos Carvalhos Nilo Peçanha 652 24 Ambar Igrapiúna 120 38 Ancoral Igrapiúna 150 46 Ilha das Flores Igrapíúna 100 40 Ponta Igrapiúna 95 74 ContratoTubarões Igrapiúna 358 33 Pescaria Igrapiúna 123 40 Timbuca Igrapiúna 302 23 TOTAL 4042 32 Fonte Elaborado em 2001 a partir do plano de Manejo da APA do Pratigi BAHIA 2007 Considerando os dados apresentados na Tabela 1 depreendese que a participação das 16 comunidades não foi homogênea Esta cir cunstância advém sobretudo de limites impostos pela dispersão geo gráfica das famílias nos distritos mais distantes circunstância que de per si dificulta a disseminação de informações e o comparecimento das pessoas nos eventos Esta contingência da distância revela que o processo de cidadania se fortalece quando há aproximação e o incen tivo de um objetivo comum capaz de agregar o interesse de diferentes comunidades O capital social resulta da mobilização dos diferentes atores para um fim comum MILANI 2003 que no Programa de EA constituía a mudança de comportamento na defesa do meio ambiente Salientase que nove das 16 comunidades contempladas pelas campa nhas têm acesso exclusivamente via fluvial exigindo o pernoite da equipe envolvida nas Campanhas Além de ter sido pioneiro na sua modalidade e no seu objetivo o Programa constituiuse na primeira experiência desta natureza a alcançar cinco destes 16 povoados Familianatureza e culturaindd 207 211113 0906 208 Ao longo do projeto constatouse que as campanhas de sen sibilização resultaram em integração entre a equipe da APA e as co munidades estuarinas proporcionando uma construção dialógica do diagnóstico acerca dos problemas ambientais vigentes bem assim a discussão de diretrizes para traçar o plano de ação da UC com vistas a promover a defesa ambiental O fortalecimento institucional do CRA foi um resultado posi tivo constatado mediante o aumento considerável no recebimento de denúncias de crimes ambientais a partir do programa Outros ele mentos configuram o fortalecimento do órgão o seu reconhecimento pela comunidade e a sua credibilidade enquanto corresponsável pelo meio ambiente a busca de informações sobre legislação ambiental e licenciamento a pesquisa científica e escolar a solicitação de fis calização ambiental a demanda de orientações referentes a constru ções civis e ao manejo dos recursos florestais e pesqueiros Apesar de abranger originalmente apenas três municípios Ituberá Igrapiúna e Nilo Peçanha incluindo posteriormente os municípios de Piraí do Norte e Ibirapitanga o escritório administrativo da APA do Pratigi passou a ser encarado pelas comunidades como uma base regional do CRA após o programa Um indicador significativo da repercussão da parceria insti tucional para desenvolver a cidadania ambiental mediante o progra ma educacional foi o fato dos professores terem continuado a utili zar o material didático distribuído durante a EA além do período de 24 meses As atividades de confecção e apresentação do teatro de fan toches também promoveram resultados positivos na população in fantojuvenil estimulando a curiosidade dos estudantes sobre temas ambientais e sua motivação na discussão de problemas locais promo vendose a relação entre interesse público e da responsabilidade de todos Esta dinâmica envolveu os familiares mediante uma prática de natureza lúdica e nova nas próprias casas Familianatureza e culturaindd 208 211113 0906 209 Conclusões O presente estudo de caso constatou que a atuação do CRA foi mais eficaz na APA do Pratigi e mobilizou o maior número de pessoas para a conservação a partir do estabelecimento de diversas parcerias com instituições focadas nos mesmos propósitos O estudo identifi cou a pertinência das ferramentas utilizadas para as diferentes fai xas etárias do públicoalvo apesar da participação ainda tímida de alguns segmentos comunitários em algumas atividades Constatou se que a adoção da educação ambiental como um processo ativo in terativo e interdisciplinar conforme recomendação dos Parâmetros Curriculares Nacionais promove a cidadania e a atitude protagônica de cada pessoa e do conjunto de indivíduos que se reconhece como titular de direitos Constatouse que o processo de participação das famílias na alfabetização dos seus membros neste novo ABC de cui dado com o meio ambiente pode ser realizado com as crianças e a partir das crianças A atividade lúdica e cultural envolvendo escola e família constituiu um fator de potencialização dos vínculos entre netos e avós entre pais e filhos fortalecendo a família em torno de um interesse comum As atividades ecopedagógicas devem ser delineadas continua mente com foco na preservação e na prevenção reversão e reparação do dano ambiental visto serem negligentes os processos no licen ciamento ambiental no manejo dos resíduos de consumo no uso do solo da vegetação e dos recursos hídricos que regem as atividades econômicas Somente a promoção da defesa ambiental a partir de três eixos pode vir a dar continuidade a este trabalho que repercutiu signi ficativamente na área da APA 1 a compreensão de que cada cidadão é titular de direitos e como tal tem obrigações com o seu país 2 o compromisso com as gerações futuras 3 a divulgação de que é no ambiente familiar que é possível fazer diferença na preservação do meio ambiente Familianatureza e culturaindd 209 211113 0906 210 Mesmo com os limites advindos de uma análise descritiva concluiuse que a repercussão da parceria institucional para desen volvimento da cidadania ambiental contribuiu positivamente na área observada na pesquisa em questão As campanhas desta magnitude agregando parceiros público e privado constituem iniciativa replicá vel para a sensibilização comunitária em áreas legalmente protegidas Apesar da complexa situação da APA do Pratigi a iniciativa de orga nização da sociedade civil em torno do interesse público mediante a parceria no fortalecimento da cidadania ambiental facultou a dis cussão da solidariedade com as gerações futuras Consoante Morin 2003 p 27 diante da paradoxal condição da época atual não há nenhuma consciência pertinente que seja válida se não tiver pelo menos o mundo como horizonte para todos os grandes problemas Assim a proposta do programa de EA mediante a conjunção de esfor ços visando construir horizontes para a sustentabilidade das pessoas e do meio ambiente envolveu positivamente família escola e socie dade civil e instituição governamental Compreendese que também a escola pode fortalecer a perspectiva de compromisso cívico com o lugar onde vive a criança e o seu entorno mas a alfabetização am biental que se aprende mediante o exemplo dos avós para os netos dos pais para os filhos e destes para os seus descendentes é tecida no espaço das relações familiares entre aqueles dos vínculos de afeto proteção e cuidado A concepção da educação procedente da Ilustra ção embora projete suas influências nos eixos do sistema educativo atual foi sendo superada pelas próprias demandas de mobilidade e de novas habilidades Conforme pontuam Burbules e Torres 2004 tanto a família quanto o trabalho como a cidadania ainda consti tuem as principais fontes de identificação na educação na perspectiva da Ilustração mas diante das mudanças contemporâneas passam a ser mais efêmeras ficando comprometidas com a mobilidade e com a competência com outras fontes de afiliação que ora se apresentam A Educação ambiental portanto demanda uma integração de valores e de solidariedade que costura a família e a escola mas convoca na Familianatureza e culturaindd 210 211113 0906 211 sociedade contemporânea outros planos de articulação tais como o rádio as campanhas educativas comunitárias a partilha de experiên cias criativas na ecopedagogia O papel da família enquanto espaço de interlocução sobre es tes fenômenos de grande repercussão no meio ambiente pode ser de cisivo para a assimilação de uma educação ambiental que se alicerce ao longo da infância e da adolescência mediante atitudes concretas de preservação economia respeito aos recursos não renováveis Referências AGENDA 21 Disponível em httpwwwecolnewscombragenda21 indexhtm Acesso em 6 out 2013 ALBERTI V Manual de história oral 2 ed Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 2004 ARAUJO M Unidades de conservação no Brasil da república à gestão de classe mundial Belo Horizonte SEGRAC 2007 ASSMANN H Reencantar a educação rumo à sociedade aprendente 3 ed Petrópolis Vozes 1998 BAHIA Plano de manejo da APA do Pratigi Ituberá IDES 2000 Plano de manejo da APA do Pratigi Salvador CRA 2007 BERBERT L de M CARVALHO H F B Educação ambiental em unidades de conservação programa viver a Mata Atlântica na Reserva Particular do Patrimônio Natural da Serra do Teimoso In CONGRESSO BRASILEIRO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO 3 2002 Fortaleza Anais Fortaleza Rede Nacional PróUnidades de Conservação Fundação O Boticário de Proteção à Natureza Associação Caatinga 2002 v 1 BURBULES N TORRES C Org Globalização e educação perspectivas críticas Artmed Porto Alegre 2004 BRASIL Lei Federal nº 9394 20 de dezembro de 1996 Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional Disponível em httpwwwplanaltogovbr ccivil03leisl9394htm Acesso em 6 out 2013 Lei Federal nº 9790 23 de março de 1999 Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público institui e disciplina o Termo de Parceria e dá outras providências Disponível em Familianatureza e culturaindd 211 211113 0906 212 httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl9790htm Acesso em 27 set 2013 BRASIL Lei Federal nº 9795 27 de abril de 1999 Dispõe sobre a educação ambiental institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leis l9795htm Acesso em 27 set 2013 Lei no 9985 de 18 de julho de 2000 Regulamenta o art 225 1o incisos I II III e VII da Constituição Federal institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl9985htm Acesso em 8 out 2013 BUTZKE I C PEREIRA G R NOEBAUER D Sugestão de indicadores para avaliação do desempenho das atividades educativas do sistema de gestão ambiental SGA da Universidade Regional de Blumenau FURB Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental Rio Grande v esp abrmaijun 2001 CARDOSO C A canção da inteireza visão holística da educação São Paulo Summus 1995 CARTEA P M Elogio de la educación ambiental Trayectorias México v 8 n 2021 p 4151 janago 2006 CARVALHEDO S P et al Área de proteção ambiental do Pratigi uma experiência inovadora de parcerias In CONGRESSO BRASILEIRO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO 3 2002 Fortaleza Anais Fortaleza Rede Nacional PróUnidades de Conservação Fundação o Boticário de Proteção à Natureza Associação Caatinga 2002 COSTA A É possível mudar a criança o adolescente e a família na política social do município São Paulo Malheiros 1993 Pedagogía y Justicia In MÉNDEZ E G BELOFF M Comp Infancia Ley y Democracia em América Latina Buenos Aires Temis 1988 p 5968 LIMA I S O L Estatuto e LDB direito a educação In BRASIL Pela justiça na educação Brasília MEC 2000 CRIBB S L S P Gestão das áreas de proteção ambiental e comunidades locais uma parceria necessária Revista eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental Rio Grande v 20 p 350371 2008 FEDEGER A Relação intergeracional concepções e re significados da atividade humana produtiva 2003 107 f Dissertação Mestrado em Psicologia da Infância e da Adolescência Universidade Federal do Paraná Curitiba 2003 Disponível em httpdspacec3slufprbrdspace Familianatureza e culturaindd 212 211113 0906 213 bitstreamhandle188417724ANDREA20MARIA20FEDEGER pdfsequence1 Acesso em 19 ago 2013 FERNANDES D G FEITOSA A A F Ecopedagogia e currículo a construção de saberes e sujeitos sociais na perspectiva do desenvolvimento sustentável In MATOS Kelma S Org Cultura de paz educação ambiental e movimentos sociais ações com sensibilidade Fortaleza Ed UFC 2006 FREIRE P Pedagogia da autonomia saberes necessários à prática educativa 34 ed São Paulo Paz e Terra 2006 FAUNDEZ A Por uma pedagogia da pergunta Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 FREITAS A L Pedagogia da conscientização um legado de Paulo Freire à formação de professores Porto Alegre EDIPUCRS 2001 GADOTTI M A ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da carta da terra Revista de Educação Pública Cuiabá v 12 n 21 p 1124 janjun 2003 Disponível em httpwwwufmtbrrevistaarquivo rev21moacirgadottihtm Acesso em 19 ago 2013 GODOY A S Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades Revista de Administração de Empresas São Paulo v 35 n 2 p 5763 marabri 1995 Disponível em httpraefgvbrsitesraefgvbrfiles artigos101590S003475901995000200008pdf Acesso em 19 ago 2013 HORIKAWA S A doença de Minamata problemas remanescentes e novas tendências de estudos Ambiente Sociedade Campinas v 2 n 3 e n 4 p 93107 1999 HUERTA J M El reto de la educación ambiental Revista de Psicodidáctica San Diego v 1 n 7 p 99110 1999 JACOBSON S PÁDUA S A systems model for conservation education in parks examples from Malasya and Brasil JACOBSON Susan Ed Conserving Wildlife International Education and Communication Approaches Columbia Columbia University Press 1995 p 315 MACHADO P A L Direito Ambiental Brasileiro 14 ed São Paulo Malheiros Editores 2006 p 786 MAGALHÃES D N Intergeracionalidade e cidadania In PAZ Serafim Envelhecer com cidadania quem sabe um dia Rio de Janeiro ANG 2000 p 153156 MAGALHÃES F C B Direito e meio ambiente o advogado como educomunicador ambiental In MATOS Kelma S Org Cultura de paz Familianatureza e culturaindd 213 211113 0906 214 educação ambiental e movimentos sociais ações com sensibilidade Fortaleza Ed UFC 2006 MANZANO FILHO G O novo retrato do Brasil Revista Galileu Rio de Janeiro v 9 n 108 p 4853 2000 MARGOLIUS R at al Rendimiento máximo la agricultura sostenible como herramienta para la conservación Washington Biodiversity Support Program 2001 Disponível em httpwwwfosonlineorgwordpresswp contentuploads201006RendimientoMaximopdf Acesso em 19 ago 2013 MILANI C Teorias do capital social e desenvolvimento local lições a partir da experiência de Pintadas Bahia Brasil In CONFERENCIA REGIONAL ISTRLAC 2003 Costa Rica Anais eletrônicos Costa Rica ISTRA 2003 Disponível em httpwwwlasociedadcivilorgdocsciberteca carlosmilanippdf Acesso em 19 ago 2013 MINAYO M DESLANDES S Caminhos do pensamento epistemologia e método Rio de Janeiro Fiocruz 2002 MORIN E Planeta a aventura desconhecida São Paulo UNESP 2003 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU A convenção dos Direitos da Criança Portugal UNICEF 2004 Disponível em httpwwwunicefpt docspdfpublicacoesconvencaodireitoscrianca2004pdf Acesso em 7 out 2013 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO A CIÊNCIA E A CULTURA UNESCO Congresso Internacional sobre educação e formação ambiental Moscou PNUMA 1987 Algumas Recomendações da Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental aos Países Membros In CONFERÊNCIA DE TBILISI 1977 Geórgia Anais Geórgia 1977 Documento sobre el estado actual de La educación ambiental In SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCACIÓN AMBIENTAL 1975 Belgrado Anais Belgrado 1975 Declaração de Estocolmo de junho de 1972 declaração sobre o ambiente humano Disponível em httpportaliphangovbrportal baixaFcdAnexodoid243 Acesso em 7 out 2013 PEQUENO A C A Educação e família uma união fundamental Espaço n 16 juldez 2001 PIMM S Terras da Terra o que sabemos sobre o nosso planeta Londrina Planta 2005 Familianatureza e culturaindd 214 211113 0906 215 PUIGGRÓS A Voltar a educar a educação LatinoAmericana no final do século XX Rio de Janeiro AGIR 1997 RAMSEY D The role of music in environmental education lessons from the cod fishery crisis and the dust bowl days Canadian Journal of Environmental Education Ontário v 7 p 116 2002 Disponível em httpcjeelakeheaducaindexphpcjeearticleviewFile282182 Acesso em 19 ago 2013 RODRIGUES N Educação da formação humana à construção do sujeito ético Educ Soe Campinas v 22 n 76 out 2001 Disponível em http wwwscielobrpdfesv22n76a13v2276pdf Acesso em 19 ago 2013 MATURANA H R REZEPKA Sima N Formacion humana y capacitacion 2ed Chile UNICEF 1997 RONCAGLIO C Emblema do patrimônio natural no Brasil a natureza como artefato cultural 2007 368f Tese Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Universidade Federal do Paraná Curitiba 2007 SZYMANSKI H Práticas educativas familiares e o sentido da constituição identitária Paidéia Ribeirão Preto v 16 n 33 2006 Disponível em httpwwwscielobrpdfpaideiav16n3311pdf Acesso em 19 ago 2013 THEULEN V Manejo e gerenciamento das unidades de conservação federais segundo a percepção dos seus chefes Natureza Conservação Curitiba v l 2 n 2 p 66 76 out 2004 VYGOTSKY L S Psicologia pedagógica São Paulo Martins Fontes 2001 SÁ R FERREIRA L Org Áreas protegidas ou espaços ameaçados um diagnóstico preliminar Brasília WWF 1999 YUS R Temas transversais em busca de uma nova escola Porto Alegre ArtMed 1998 Familianatureza e culturaindd 215 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 216 211113 0906 217 Sobre os autores Ana Maria Almeida Carvalho Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo USP 19691993 Aposentada em 1993 manteve vínculos com a USP como pesquisadora e orientadora até 2007 Colaborou com o Progra ma de Pósgraduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador de 2005 a 2011 Bolsa de produ tividade do CNPq de 1983 a 2007 e auxílios FAPESP entre 1995 e 2007 Doutorado 1973 e Livredocência 1993 pela Universidade de São Paulo Estágios de pósdoutorado na University of Sheffield UK 19892000 University of North Carolina USA 1995 and Duke University USA 1999 Área de pesquisa Enfoque psicoetológico à sociabilidade na infância Email amacarvauolcombr Elaine Pedreira Rabinovich Psicóloga clínica mestre em Psicologia Experimental e douto ra em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo Coordena dora do Grupo de Pesquisa Família autobiografia e poéticaUCSal Professora do Programa de Pósgraduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador Email elaineprbrasmailcombr Francesco Botturi Próreitor da Università Cattolica del Sacro Cuore Milano Doutor em filosofia e professor de Filosofia Moral Pesquisador de Familianatureza e culturaindd 217 211113 0906 218 filosofia da história Giambattista Vico e da relação entre epistemolo gia e antropologia É diretor da coluna editorial de Filosofia moral e codiretor do Annuario di etica da Editora Vita e Pensiero Email francescobotturiunicattbr Giancarlo Petrini Diplomado em Ciências Políticas pela Universidade de Perúgia É doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP onde lecionou durante muitos anos Desde 1989 atua como Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família Fundou e coordenou o Programa de pós graduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador onde atualmente leciona e coordena o Grupo de Pesquisa Família em mudança Email secretariapetriniyahoocombr Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima Pósdoutora pela University of Notre Dame USA Doutora em Saúde Pública pela UFBA 2002 Graduada em Enfermagem UFJF e posterior graduação em Direito UCSal Trabalhou como Juíza de Direito do Estado da Bahia tendo atuado entre 1990 até dezembro de 2003 Especializouse em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ 1978 e 1979 Atuou como docente e pesquisa dora do Programa de pósgraduação em Família na sociedade con temporânea da Universidade Católica do Salvador entre 2009 e 2012 Email isabelmsolgmailcom Marcos Roberto do Nascimento Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais mestre em Demografia na Faculdade de Ciências Eco nômicas CedeplarUFMG quando desenvolveu trabalho sobre enve lhecimento populacional e família Atualmente é professor do depar Familianatureza e culturaindd 218 211113 0906 219 tamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais onde desenvolve trabalhos sobre juventude e participa ção política e família e políticas sociais Email mnascimentopucminasbr Marina Massimi Possui graduação em Psicologia pela Università degli Studi di Padova 1979 especialização em Psicologia pela Università degli Studi di Padova 1981 mestrado em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo 1985 doutorado em Psicologia Experi mental pela Universidade de São Paulo 1989 e pósdoutorado pela Universidade de Coimbra 1992 Atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo Email mmassimi3yahoocombr Miriã Alves Ramos de Alcântara Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia UFBA desde 1996 É mestre em Saúde Comunitária 2001 e doutora em Saúde Pú blica 2007 pelo Instituto de Saúde ColetivaUFBA Docente e coorde nadora do Programa de pósgraduação em Família na Sociedade Con temporânea da Universidade Católica do Salvador UCSal Coordena o Grupo de Pesquisa Família e saúde na perspectiva relacional UCSal Email miriaalcantaragmailcom Riccardo Prandini Cientista político pela Università degli Studi di Bologna Dou tor em Sociologia pela Facoltà di Scienze Politiche Pósdoutor pela Universidade de Bolonha Pesquisador e professor de Sociologia dos processos culturais e comunicativos da Scuola di Scienze Politiche dellUniversità di Bologna Email riccardoprandiniuniboit Familianatureza e culturaindd 219 211113 0906 220 Soraya Carvalhedo Honorato Mestre pela Universidade Estadual de Santa Cruz É graduada em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Viçosa e pós graduada em Gestão Ambiental e Manejo de Sistemas Florestais pela Universidade Federal de Lavras Atuando como Coordenadora Regio nal da Unidade de Fiscalização do Instituto do Meio Ambiente na Base Ambiental da Costa do Dendê Trabalha voluntariamente como pesquisadora associada no Instituto Floresta Viva É sóciafundadora da Cooperativa Ouro Verde Bahia COOPERVERDE e auxilia esta em processos relativos a licença e autorização ambiental bem assim na Comissão Técnica de Garantia Ambiental CTGA Email solhonoratogmailcom Vera Silvia Raad Bussab Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo USP Desde 1975 vem se dedicando à investigação do desenvolvimento in fantil sob a perspectiva etológica Este tema de pesquisa está repre sentado na tese de LivreDocência em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo 2003 Coordena projeto sobre Depressão pósparto como um fator de risco para o desenvolvimento do bebê estudo interdisciplinar dos fatores envolvidos na gênese do quadro e em suas consequências Email vsbussabuspbr Familianatureza e culturaindd 220 211113 0906 Familianatureza e culturaindd 221 211113 0906 FORMATO TIPOLOGIA PAPEL IMPRESSÃO DO MIOLO CAPA E ACABAMENTO TIRAGEM 17 X 23 CM LATIENNET LATIENNE SWASHT ALCALINO 75 GM2 MIOLO CARTÃO SUPREMO 300 GM2 CAPA EDUFBA CIAN GRÁFICA 400 EXEMPLARES COLOFÃO Familianatureza e culturaindd 222 211113 0906